Contos para jovens - Sistema Piaget de Ensino

Transcrição

Contos para jovens - Sistema Piaget de Ensino
O homem que sabia javanês
Lima Barreto
Ilustração Alexandre Camanho
Em uma confeitaria, certa vez, ao meu amigo Castro, contava eu as partidas que havia pregado às
convicções e às respeitabilidades para poder viver.
Houve mesmo, uma dada ocasião, quando estive em Manaus, em que fui obrigado a esconder a
minha qualidade de bacharel, para mais confiança obter dos clientes, que afluíam ao meu escritório de
feiticeiro e adivinho. Contava eu isso.
O meu amigo ouvia-me calado, embevecido, gostando daquele meu Gil Blas vivido, até que, em uma
pausa da conversa, ao esgotarmos os copos, observou a esmo:
- Tens levado uma vida bem engraçada, Castelo!
- Só assim se pode viver... Isto de uma ocupação única: sair de casa a certas horas, voltar a outras,
aborrece, não achas? Não sei como me tenho aguentado lá, no consulado!
- Cansa-se; mas não é disso que me admiro. O que me admira é que tenhas corrido tantas aventuras
aqui, neste Brasil imbecil e burocrático.
- Qual! Aqui mesmo, meu caro Castro, se podem arranjar belas páginas de vida. Imagina tu que eu já
fui professor de javanês!
- Quando? Aqui, depois que voltaste do consulado?
- Não; antes. E, por sinal, fui nomeado cônsul por isso.
- Conta lá como foi. Bebes mais cerveja?
- Bebo.
Mandamos buscar mais outra garrafa, enchemos os copos e continuei:
- Eu tinha chegado havia pouco ao Rio e estava literalmente na miséria. Vivia fugido de casa de
pensão em casa de pensão, sem saber onde e como ganhar dinheiro, quando li no Jornal do
Comércio o anúncio seguinte:
"Precisa-se de um professor de língua javanesa. Cartas etc." Ora, disse cá comigo, está ali uma
colocação que não terá muitos concorrentes; se eu capiscasse quatro palavras, ia apresentar-me. Saí
do café e andei pelas ruas, sempre a imaginar-me professor de javanês, ganhando dinheiro, andando
de bonde e sem encontros desagradáveis com os "cadáveres". Insensivelmente dirigi-me à Biblioteca
Nacional. Não sabia bem que livro iria pedir; mas, entrei, entreguei o chapéu ao porteiro, recebi a
senha e subi. Na escada, acudiu-me pedir a GrandeEncyclopédie, letra J, a fim de consultar o artigo
relativo a Java e à língua javanesa. Dito e feito. Fiquei sabendo, ao fim de alguns minutos, que Java
era uma grande ilha do arquipélago de Sonda, colônia holandesa, e o javanês, língua aglutinante do
grupo maleo-polinésico, possuía uma literatura digna de nota e escrita em caracteres derivados do
velho alfabeto hindu.
A Encyclopédie dava-me indicação de trabalhos sobre a tal língua malaia e não tive dúvidas em
consultar um deles. Copiei o alfabeto, a sua pronunciação figurada e saí. Andei pelas ruas,
perambulando e mastigando letras.
Na minha cabeça dançavam hieróglifos; de quando em quando consultava as minhas notas; entrava
nos jardins e escrevia estes calungas na areia para guardá-los bem na memória e habituar a mão a
escrevê-los.
À noite, quando pude entrar em casa sem ser visto, para evitar indiscretas perguntas do encarregado,
ainda continuei no quarto a engolir o meu "a-b-c" malaio, e com tanto afinco levei o propósito que, de
manhã, o sabia perfeitamente.
Convenci-me que aquela era a língua mais fácil do mundo e saí; mas não tão cedo que não me
encontrasse com o encarregado dos aluguéis dos cômodos:
- Senhor Castelo, quando salda a sua conta?
Respondi-lhe então eu, com a mais encantadora esperança:
- Breve... Espere um pouco... Tenha paciência... Vou ser nomeado professor de javanês, e...
Por aí o homem interrompeu-me:
- Que vem a ser isso, Senhor Castelo?
Ilustração Alexandre Camanho
Gostei da diversão e ataquei o patriotismo do homem:
- É uma língua que se fala lá pelas bandas do Timor. Sabe onde é?
Oh! alma ingênua! O homem esqueceu-se da minha dívida e disse-me com aquele falar forte dos
portugueses:
- Eu, cá por mim, não sei bem; mas ouvi dizer que são umas terras que temos lá para os lados de
Macau. E o senhor sabe isso, Senhor Castelo?
Animado com esta saída feliz que me deu o javanês, voltei a procurar o anúncio. Lá estava ele. Resolvi
animosamente propor-me ao professorado do idioma oceânico. Redigi a resposta, passei pelo jornal e
lá deixei a carta. Em seguida, voltei à biblioteca e continuei os meus estudos de javanês. Não fiz
grandes progressos nesse dia, não sei se por julgar o alfabeto javanês o único saber necessário a um
professor de língua malaia ou se por ter me empenhado mais na bibliografia e história literária do
idioma que ia ensinar.
Ao cabo de dois dias, recebia eu uma carta para ir falar ao doutor Manuel Feliciano Soares Albernaz,
Barão de Jacuecanga, à rua Conde de Bonfim, não me recordo bem que número. É preciso não te
esqueceres que entrementes continuei estudando o meu malaio, isto é, o tal javanês. Além do
alfabeto, fiquei sabendo o nome de alguns autores, também perguntar e responder "como está o
senhor?" - e duas ou três regras de gramática, lastrado todo esse saber com vinte palavras do léxico.
Não imaginas as grandes dificuldades com que lutei para arranjar os quatrocentos réis da viagem! É
mais fácil - podes ficar certo - aprender o javanês... Fui a pé. Cheguei suadíssimo; e, com maternal
carinho, as anosas mangueiras, que se perfilavam em alameda diante da casa do titular, me
receberam, me acolheram e me reconfortaram. Em toda a minha vida, foi o único momento em que
cheguei a sentir a simpatia da natureza...
Era uma casa enorme que parecia estar deserta; estava maltratada, mas não sei por que me veio
pensar que nesse mau tratamento havia mais desleixo e cansaço de viver que mesmo pobreza. Devia
haver anos que não era pintada. As paredes descascavam e os beirais do telhado, daquelas telhas
vidradas de outros tempos, estavam desguarnecidos aqui e ali, como dentaduras decadentes ou
malcuidadas.
Olhei um pouco o jardim e vi a pujança vingativa com que a tiririca e o carrapicho tinham expulsado os
tinhorões e as begônias. Os crótons continuavam, porém, a viver com a sua folhagem de cores
mortiças. Bati. Custaram-me a abrir. Veio, por fim, um antigo preto africano, cujas barbas e cabelo de
algodão davam à sua fisionomia uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento.
Na sala, havia uma galeria de retratos: arrogantes senhores de barba em colar se perfilavam
enquadrados em imensas molduras douradas, e doces perfis de senhoras, em bandós, com grandes
leques, pareciam querer subir aos ares, enfunadas pelos redondos vestidos à balão; mas, daquelas
velhas coisas, sobre as quais a poeira punha mais antiguidade e respeito, a que gostei mais de ver foi
um belo jarrão de porcelana da China ou da Índia, como se diz. Aquela pureza da louça, a sua
fragilidade, a
ingenuidade do desenho e aquele seu fosco brilho de luar diziam-me a mim que aquele objeto tinha
sido feito por mãos de criança, a sonhar, para encanto dos olhos fatigados dos velhos desiludidos...
Esperei um instante o dono da casa. Tardou um pouco. Um tanto trôpego, com o lenço de alcobaça na
mão, tomando veneravelmente o simonte de antanho, foi cheio de respeito que o vi chegar. Tive
vontade de ir-me embora. Mesmo se não fosse ele o discípulo, era sempre um crime mistificar aquele
ancião, cuja velhice trazia à tona do meu pensamento alguma coisa de augusto, de sagrado. Hesitei,
mas fiquei.
- Eu sou - avancei - o professor de javanês, que o senhor disse precisar.
- Sente-se - respondeu-me o velho. - O senhor é daqui, do Rio?
- Não, sou de Canavieiras.
- Como? - fez ele. - Fale um pouco alto, que sou surdo.
- Sou de Canavieiras, na Bahia - insisti eu.
- Onde fez os seus estudos?
- Em São Salvador.
- E onde aprendeu o javanês? - indagou ele, com aquela teimosia peculiar aos velhos.
Não contava com essa pergunta, mas imediatamente arquitetei uma mentira. Contei-lhe que meu pai
era javanês. Tripulante de um navio mercante, viera ter à Bahia, estabelecera-se nas proximidades de
Canavieiras como pescador, casara, prosperara e fora com ele que aprendi javanês.
- E ele acreditou? E o físico? - perguntou meu amigo, que até então me ouvira calado.
- Não sou - objetei - lá muito diferente de um javanês. Estes meus cabelos corridos, duros e grossos e
a minha pele basané podem dar-me muito bem o aspecto de um mestiço de malaio...Tu sabes bem
que, entre nós, há de tudo: índios, malaios, taitianos, malgaches, guanches, até godos. É uma
comparsaria de raças e tipos de fazer inveja ao mundo inteiro.
- Bem - fez o meu amigo -, continua.
- O velho - emendei eu - ouviu-me atentamente, considerou demoradamente o meu físico, pareceu que
me julgava de fato filho de malaio e perguntou-me com doçura:
- Então está disposto a ensinar-me javanês?
- A resposta saiu-me sem querer: Pois não.
- O senhor há de ficar admirado - aduziu o Barão de Jacuecanga - que eu, nesta idade, ainda queira
aprender qualquer coisa, mas...
- Não tenho que admirar. Têm-se visto exemplos e exemplos muito fecundos...
- O que eu quero, meu caro senhor...
- Castelo - adiantei eu.
- O que eu quero, meu caro Senhor Castelo, é cumprir um juramento de família. Não sei se o senhor
sabe que eu sou neto do Conselheiro Albernaz, aquele que acompanhou Pedro I, quando abdicou.
Voltando de Londres, trouxe para aqui um livro em língua esquisita, a que tinha grande estimação.
Fora um hindu ou siamês que lho dera, em Londres, em agradecimento a não sei que serviço prestado
por meu avô. Ao morrer meu avô, chamou meu pai e lhe disse: "Filho, tenho este livro aqui, escrito em
javanês. Disse-me quem mo deu que ele evita desgraças e traz felicidades para quem o tem. Eu não
sei nada ao certo. Em todo caso, guarda-o; mas, se queres que o fado que me deitou o sábio oriental
se cumpra, faze com que teu filho o entenda, para que sempre a nossa raça seja feliz". Meu pai continuou o velho barão - não acreditou muito na história; contudo, guardou o livro. Às portas da morte,
ele mo deu e disse-me o que prometera ao pai. Em começo, pouco caso fiz da história do livro. Deiteio a um canto e fabriquei minha vida. Cheguei até a esquecer-me dele; mas, de uns tempos a esta
parte, tenho passado por tanto desgosto, tantas desgraças têm caído sobre a minha velhice que me
1embrei do talismã da família. Tenho que o ler, que o compreender, se não quero que os meus últimos
dias anunciem o desastre da minha posteridade; e, para atendê-lo, é claro que preciso entender o
javanês. Eis aí.
Calou-se e notei que os olhos do velho se tinham orvalhado. Enxugou discretamente os olhos e
perguntoume se queria ver o tal livro. Respondi-lhe que sim. Chamou o criado, deu-lhe as instruções e
explicou-me que perdera todos os filhos, sobrinhos, só lhe restando uma filha casada, cuja prole,
porém, estava reduzida a um filho, débil de corpo e de saúde frágil e oscilante.
Veio o livro. Era um velho calhamaço, um in- quarto antigo, encadernado em couro, impresso em
grandes letras, em um papel amarelado e grosso. Faltava a folha do rosto e por isso não se podia ler a
data da impressão.
Tinha ainda umas páginas de prefácio, escritas em inglês, onde li que se tratava das histórias do
príncipe Kulanga, escritor javanês de muito mérito.
Logo informei disso o velho barão, que, não percebendo que eu tinha chegado aí pelo inglês, ficou
tendo em alta consideração o meu saber malaio. Estive ainda folheando o cartapácio, à laia de quem
sabe magistralmente aquela espécie de vasconço, até que afinal contratamos as condições de preço e
de hora, comprometendo-me a fazer com que ele lesse o tal alfarrábio antes de um ano.
Dentro em pouco, dava a minha primeira lição, mas o velho não foi tão diligente quanto eu. Não
conseguia aprender a distinguir e a escrever nem sequer quatro letras. Enfim, com metade do alfabeto
levamos um mês e o Senhor Barão de Jacuecanga não ficou lá muito senhor da matéria: aprendia e
desaprendia.
A filha e o genro (penso que até aí nada sabiam da história do livro) vieram a ter notícias do estudo do
velho; não se incomodaram. Acharam graça e julgaram a coisa boa para distraí-lo.
Mas com o que tu vais ficar assombrado, meu caro Castro, é com a admiração que o genro ficou tendo
pelo professor de javanês. Que coisa única! Ele não se cansava de repetir: "É um assombro! Tão
moço! Se eu soubesse isso, ah! onde estava!"
O marido de Dona Maria da Glória (assim se chamava a filha do barão) era desembargador, homem
relacionado e poderoso; mas não se pejava em mostrar diante de todo o mundo a sua admiração pelo
meu javanês. Por outro lado, o barão estava contentíssimo. Ao fim de dois meses, desistira da
aprendizagem e pedira-me que lhe traduzisse,
um dia sim outro não, um trecho do livro encantado. Bastava entendê-lo, disse-me ele; nada se
opunha que outrem o traduzisse e ele ouvisse. Assim evitava a fadiga do estudo e cumpria o encargo.
Sabes bem que até hoje nada sei de javanês, mas compus umas histórias bem tolas e impingi-as ao
velhote como sendo do crônicon. Como ele ouvia aquelas bobagens!
Ficava extático, como se estivesse a ouvir palavras de um anjo. E eu crescia aos seus olhos!
Fez-me morar em sua casa, enchia-me de presentes, aumentava-me o ordenado. Passava, enfim,
uma vida regalada.
Contribuiu muito para isso o fato de vir ele a receber uma herança de um seu parente esquecido que
vivia em Portugal. O bom velho atribuiu a coisa ao meu javanês; e eu estive quase a crê-lo também.
Fui perdendo os remorsos; mas, em todo o caso, sempre tive medo que me aparecesse pela frente
alguém que soubesse o tal patuá malaio. E esse meu temor foi grande, quando o doce barão me
mandou com uma carta ao Visconde de Caruru para que me fizesse entrar na diplomacia. Fiz-lhe
todas as objeções: a minha fealdade, a falta de elegância, o meu aspecto tagalo. "Qual!", retrucava
ele. "Vá, menino; você sabe javanês!" Fui. Mandou-me o visconde para a Secretaria dos Estrangeiros
com diversas recomendações. Foi um sucesso.
O diretor chamou os chefes de seção: "Vejam só, um homem que sabe javanês - que portento!"
Os chefes de seção levaram-me aos oficiais e amanuenses e houve um destes que me olhou mais
com ódio do que com inveja ou admiração. E todos diziam: "Então sabe javanês? É difícil? Não há
quem o saiba aqui!"
O tal amanuense, que me olhou com ódio, acudiu então: "É verdade, mas eu sei canaque. O senhor
sabe?" Disse-lhe que não e fui à presença do ministro.
A alta autoridade levantou-se, pôs as mãos às cadeiras, concertou o pince-nez no nariz e perguntou:
"Então, sabe javanês?" Respondi-lhe que sim; e, à sua pergunta onde o tinha aprendido, contei-lhe a
história do tal pai javanês. "Bem", disse-me o ministro, "o senhor não deve ir para a diplomacia; o seu
físico não se presta... O bom seria um consulado na Ásia ou Oceania. Por ora, não há vaga, mas vou
fazer uma reforma e o senhor entrará. De hoje em diante, porém, fica adido ao meu ministério e quero
que, para o ano, parta para Bâle, onde vai representar o Brasil no Congresso de Lingüística. Estude,
leia o Hovelacque, o Max Müller e outros!"
Imagina tu que eu até aí nada sabia de javanês, mas estava empregado e iria representar o Brasil em
um congresso de sábios.
O velho barão veio a morrer, passou o livro ao genro para que o fizesse chegar ao neto, quando
tivesse a idade conveniente e fez-me uma deixa no testamento.
Pus-me com afã no estudo das línguas maleopolinésicas; mas não havia meio!
Ilustração Alexandre Camanho
Bem jantado, bem vestido, bem dormido, não tinha energia necessária para fazer entrar na cachola
aquelas coisas esquisitas. Comprei livros, assinei revistas: Revue Anthropologique et Linguistique,
Proceedings of the English-Oceanic Association, Archivo Glottologico Italiano, o diabo, mas nada! E a
minha fama crescia. Na rua, os informados apontavam-me, dizendo aos outros: "Lá vai o sujeito que
sabe javanês." Nas livrarias, os gramáticos consultavam-me sobre a colocação dos pronomes no tal
jargão das ilhas de Sonda. Recebia cartas dos eruditos do interior, os jornais citavam o meu saber e
recusei aceitar uma turma de alunos sequiosos de entenderem o tal javanês. A convite da redação,
escrevi, no Jornal do Comércio, um artigo de quatro colunas sobre a literatura javanesa antiga e
moderna...
- Como, se tu nada sabias? - interrompeu-me o atento Castro.
- Muito simplesmente: primeiramente, descrevi a ilha de Java, com o auxílio de dicionários e umas
poucas de geografias, e depois citei a mais não poder.
- E nunca duvidaram? - perguntou-me ainda o meu amigo.
- Nunca. Isto é, uma vez quase fico perdido. A polícia prendeu um sujeito, um marujo, um tipo
bronzeado que só falava uma língua esquisita. Chamaram diversos intérpretes, ninguém o entendia.
Fui também chamado, com todos os respeitos que a minha sabedoria merecia, naturalmente. Demorei-
me em ir, mas fui afinal. O homem já estava solto, graças à intervenção do cônsul holandês, a quem
ele se fez compreender com meia dúzia de palavras holandesas. E o tal marujo era javanês - uf!
Chegou, enfim, a época do congresso, e lá fui para a Europa. Que delícia! Assisti à inauguração e às
sessões preparatórias. Inscreveram-me na seção do tupi-guarani e eu abalei para Paris. Antes, porém,
fiz publicar no Mensageiro de Bâle o meu retrato, notas biográficas e bibliográficas. Quando voltei, o
presidente pediu-me desculpas por me ter dado aquela seção; não conhecia os meus trabalhos e
julgara que, por ser eu americano brasileiro, me estava naturalmente indicada a seção do tupi-guarani.
Aceitei as explicações e até hoje ainda não pude escrever as minhas obras sobre o javanês, para lhe
mandar, conforme prometi.
Acabado o congresso, fiz publicar extratos do artigo do Mensageiro de Bâle, em Berlim, em Turim e
Paris, onde os leitores de minhas obras me ofereceram um banquete, presidido pelo Senador Gorot.
Custou-me toda essa brincadeira, inclusive o banquete que me foi oferecido, cerca de dez mil francos,
quase toda a herança do crédulo e bom Barão de Jacuecanga.
Não perdi meu tempo nem meu dinheiro. Passei a ser uma glória nacional e, ao saltar no cais Pharoux,
recebi uma ovação de todas as classes sociais e o presidente da república, dias depois, convidava-me
para almoçar em sua companhia.
Dentro de seis meses fui despachado cônsul em Havana, onde estive seis anos e para onde voltarei, a
fim de aperfeiçoar os meus estudos das línguas da Malaia, Melanésia e Polinésia.
- É fantástico - observou Castro, agarrando o copo de cerveja.
- Olha: se não fosse estar contente, sabes que ia ser?
- Quê?
- Bacteriologista eminente. Vamos?
- Vamos.
O primeiro beijo
Clarice Lispector
Ilustração Ana Raquel
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam
tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só
a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? - perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em
algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos
e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão
bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir,
gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente
engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma
sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio-dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz
secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por
instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, talvez
horas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus
olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando,
farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava... o
chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas
ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O
primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta
encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma
mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole
sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado
dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido
vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo
estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que
fazia. Perturbado, atônito, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo,
espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com
sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o
encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
Restos do carnaval
Clarice Lispector
Ilustração Ana Raquel
Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para
as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma
ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia
que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como
explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em
grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido
feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu.
No entanto, na realidade, eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me
haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de
escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu
ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um
saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao
constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase
nada já me tornava uma menina feliz.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à
minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta
do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável
com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas
com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.
Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha
cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus
cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados
pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho
intenso de ser uma moça - eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável - e pintava
minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita
e feminina, eu escapava da meninice.
Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto
me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera
fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa. Para isso comprara folhas e folhas de papel
crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu
assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora de pétalas o papel crepom nem
de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.
Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de
minha amiga - talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por
pura bondade, já que sobrara papel - resolveu fazer para mim também uma fantasia de rosa com o
que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre
quisera: ia ser outra que não eu mesma.
Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada:
minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação,
pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas - à ideia
de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de
combinação na rua, morríamos previamente de vergonha - mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria!
Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu
orgulho, que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.
Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De
manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse
bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! Chegaram três horas da tarde:
com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de rosa.
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso
sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava
vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me
comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não
tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa,
atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas
alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que
encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo
uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de
lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com
remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me
salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito
parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus
cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então,
mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era,
sim, uma rosa.
O homem de cabeça de papelão
João do Rio
Ilustração Odilon Moraes
No país que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de
nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem
importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente
em ideias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e
avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura,
eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem
concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no
centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam
de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de
automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarés fatigados, jornais,
trâmueis, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda e um
aborrecimento integral. Enfim, tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma
grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente,
possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a
capital do Bom Senso!
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse
rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a
norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a
verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora
pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira
de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os
amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês
com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras
coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a
própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrário do que ensinavam; os
amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do
que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só
para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os
mendigos, e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso.
Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia
a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os trâmites legais de um jovem solar, isto é: ser
bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o
resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram
vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a
chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também
para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
- Ouça! - bradava o tio. - Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja
bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a
ascensão: deputado, ministro.
- Mas não quero ser nada disso.
- Então quer ser vagabundo?
- Quero trabalhar.
- Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e
posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando, é vagabundo.
- Eu não acho.
- É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você
está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a
originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que
era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias
empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora
Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio
de ideias. Até alegre - qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de
biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro
em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão
não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido,
companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por quê? É tão difícil saber a verdadeira
razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
- É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo
tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
- A perigosa mania de seu filho é pôr em prática ideias que julga próprias.
- Prejudicou lhe, Sr. Praxedes?
- Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia,
quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol o comércio é uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável,
desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as
suas ideias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe
raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no
convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos,
por muito tempo, porque esses só o eram enquanto não o tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava
convencido de estar com a razão, de vencer. Mas a razão sua, sem interesse, chocava-se à razão dos
outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades
e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor
tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.
- É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o
professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera
numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de
jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa
hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa
diversa.
- Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...
- É da tua má cabeça, meu filho.
- Qual?
- A tua cabeça não regula.
- Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma
rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente
justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de
Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
- Só caso se o senhor tomar juízo.
- Mas que chama você juízo?
- Ser como os mais.
- Então você gosta de mim?
- E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em
arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos
descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça
e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
- Traz algum relógio?
- Trago a minha cabeça.
- Ah! Desarranjada?
- Dizem-no, pelo menos.
- Em todo o caso, há tempo?
- Desde que nasci.
- Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias
e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regularem bem...
Antenor atalhou:
- E o senhor fica com a minha cabeça?
- Se a deixar.
- Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...
- Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
- Regula?
- É de papelão! - explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a
de papelão e saiu para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da
Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A
respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os
parentes, porém, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que
Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava.
Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente,
desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de
posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama
crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi
eleito deputado por todos e, especialmente, pelo presidente da República - a quem atacou logo, pois
para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões.
Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava
admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de
concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de
Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à
opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
- Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de
tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
- Há tempos deixei aqui uma cabeça.
- Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a
sua cabeça.
- Ah! - fez Antenor.
- Tem-se dado bem com a de papelão?
- Assim...
- As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
- Mas a minha cabeça?
- Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
- Consertou-a?
- Não.
- Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
- Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como
acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa
sensível do tempo, das ideias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça
qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
- Faça o obséquio de embrulhá-la.
- Não a coloca?
- Não.
- V. Exa. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
- Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
- Qual! V. Exa. terá a primeira cabeça.
Antenor ficou seco.
- Pode ser que V. Exa., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que
sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o
clima e a moral de cada terra. Fique V. Exa. com ela. Eu continuo com a de papelão.
E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a
cabeça mais admirável - um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu
tudo com uma cabeça de papelão.
Conto de escola
Machado de Assis
Ilustração Renato Alarcão
A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia - uma
segunda-feira, do mês de maio - deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria
brincar amanhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse
parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de
lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que
o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de
meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo.
Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande
posição comercial e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me
meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a
lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de
virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três
ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a
jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se
Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a bolsa de
rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se
conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram
os trabalhos.
- Seu Pilar, eu preciso falar com você - disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas
horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o
que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina,
pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O
mestre era mais severo com ele do que conosco.
- O que é que você quer?
- Logo - respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não
digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito
no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e
músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me
estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em
todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o
nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a
admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras
letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive
remédio senão acabar também, entregar a escrita e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora e
recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o
Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi
através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio
de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na
escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.
- Fui um bobo em vir - disse eu ao Raimundo.
- Não diga isso - murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e
perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo e, rápido, disse-me que esperasse um pouco;
era uma coisa particular.
- Seu Pilar... - murmurou ele daí a alguns minutos.
- Que é?
- Você...
- Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele,
desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera.
Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo e vi que parecia atento; podia
ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles.
Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com
instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...
- De tarde, não - interrompeu-me ele -; não pode ser de tarde.
- Então agora...
- Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os
olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro e
continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar,
mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que
era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse
ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da
janela, à direita, com os seus cinco olhos. Era só levantar a mão, dependurá-la e brandi-la, com a força
do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele
a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas
com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava
logo aos jornais e lia a valer.
Ilustração Renato Alarcão
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou
para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- Não.
- Uma pratinha que mamãe me deu.
- Hoje?
- Não, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.
Tirou-a vagarosamente e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze
vinténs ou dois tostões, não me lembra; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue
no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim.
Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.
- Mas então você fica sem ela?
- Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de
ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre.
Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôsme um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de
sintaxe. Não conseguira reter nada do livro e estava com medo do pai. E concluía a proposta
esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem;
não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos
enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra
franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder
dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a
um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor,
alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes; mas parece que a lembrança das outras vezes,
o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria - e pode ser
mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal -, parece que tal foi a causa da proposta. O
pobre contava com o favor - mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe
lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à
minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que
só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
Não queria recebê-la e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal
interesse, que lhe pingava o rapé do nariz.
- Ande, tome - dizia-me baixinho o filho.
E a pratinha fuzilava lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse
nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com
indignação...
- Tome, tome...
Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse.
Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho
e - tanto se ilude a vontade! - não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.
- Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que
não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição,
e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em
um retalho de papel, que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um
esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao
castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu
mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o
mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu;
ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado - disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isto só - murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava -me o contrato feito.
Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda
mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em
brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes nem o mestre
fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos
de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o
mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele.
Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que
eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guarda-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha
achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase
lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
- Oh! Seu Pilar! - bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para
mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
- Venha cá! - bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois
chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu,
conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
- Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? - disse-me o Policarpo.
- Eu...
- Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! - clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que
lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entregueilha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E
então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma
ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da
palmatória.
- Perdão, seu mestre... - solucei eu.
- Não há perdão! De cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até
completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a
mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão.
Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio, apanharíamos tal
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: "Porcalhões! Tratantes! Faltos de
brio!"
Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhime ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso
dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não
olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo
como três e dois serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que
empalideceu. Compôs- se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude,
agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter
denunciado; e, na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?
"Tu me pagas! Tão duro como osso!", dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do
Costa, perto do colégio; havia de ser na rua larga de S. Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina,
já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em
outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe
que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, irritado com os dois meninos, tanto o da denúncia
como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com
ela na rua e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava
esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me
deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono
de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não
andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos
encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir
isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham,
passaram por mim e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles.
Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como
foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca...
Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde e acabei a manhã na Praia da
Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na
alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro
conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o tambor...
Uma vela para Dario
Dalton Trevisan
Ilustração Omar Grassetti
Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra a esquina, diminui o passo
até parar, encosta-se a uma parede. Por ela escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva.
Descansa na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre a boca, move os lábios, não
se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo apagou. O rapaz de bigode pede
aos outros se afastem e o deixem respirar. Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando
lhe tiram os sapatos, Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
Cada pessoa que chega ergue-se na ponta dos pés, não o pode ver. Os moradores da rua conversam
de uma porta a outra, as crianças de pijama acodem à janela. O senhor gordo repete que Dario
sentou-se na calçada, soprando a fumaça do cachimbo, encostava o guarda-chuva na parede. Ma não
se vê guarda-chuva ou cachimbo a seu lado.
A velhinha de cabeça grisalha grita que ele está morrendo. Um grupo o arrasta para o táxi da esquina.
Já no carro a metade do corpo, protesta o motorista: quem pagará a corrida? Concordam chamar a
ambulância. Dario conduzido de volta e recostado à parede - não tem os sapatos nem o alfinete de
pérola na gravata.
Alguém informa da farmácia na outra rua. Não carregam Dario além da esquina; a farmácia no fim do
quarteirão e, além do mais, muito peso. É largado na porta de uma peixaria. Enxame de moscas lhe
cobrem o rosto, sem que façam um gesto para espantá-las.
Ocupado o café próximo pelas pessoas que apreciam o incidente e, agora, comendo e bebendo,
gozam as delícias da noite. Dario em sossego e torto no degrau da peixaria, sem o relógio de pulso.
Um terceiro sugere lhe examinem os papéis, retirados - com vários objetos - de seus bolsos e
alinhados sobre a camisa branca. Ficam sabendo do nome, idade, sinal de nascença. O endereço na
carteira é de outra cidade.
Registra-se correria de uns duzentos curiosos que, a essa hora, ocupam toda a rua e as calçadas: é a
polícia. O carro negro investe a multidão. Várias pessoas tropeçam no corpo de Dario, pisoteado
dezessete vezes.
O guarda aproxima-se do cadáver, não pode identificá-lo - os bolsos vazios. Resta na mão esquerda a
aliança de ouro, que ele próprio - quando vivo - só destacava molhando no sabonete. A polícia decide
chamar o rabecão.
A última boca repete - Ele morreu, ele morreu. A gente começa a se dispersar. Dario levou duas horas
para morrer, ninguém acreditava estivesse no fim. Agora, aos que alcançam vê-lo, todo o ar de um
defunto.
Um senhor piedoso dobra o paletó de Dario para lhe apoiar a cabeça. Cruza as mãos no peito. Não
consegue fechar olho nem boca, onde a espuma sumiu. Apenas um homem morto e a multidão se
espalha, as mesas do café ficam vazias. Na janela alguns moradores com almofadas para descansar
os cotovelos.
Um menino de cor e descalço vem com uma vela, que acende ao lado do cadáver. Parece morto há
muitos anos, quase o retrato de um morto desbotado pela chuva.
Fecham-se uma a uma as janelas. Três horas depois, lá está Dario à espera do rabecão. A cabeça
agora na pedra, sem o paletó. E o dedo sem a aliança. O toco de vela apaga-se às primeiras gotas da
chuva, que volta a cair.