TEXTO PARA DISCUSSÃO: GESTÃO E INTERPRETAÇÃO. André
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TEXTO PARA DISCUSSÃO: GESTÃO E INTERPRETAÇÃO. André
TEXTO PARA DISCUSSÃO: GESTÃO E INTERPRETAÇÃO. André Fontan Köhler Introdução. Ao se tratar da gestão [e interpretação] de bens culturais, sejam eles monumentos históricos, conjuntos arquitetônicos e paisagísticos, cidades patrimoniais ou festivais, cumpre destacar que eles são objetos potenciais de experiências de lazer, de consumo turístico e de atividades educacionais. Aqui, ressalta-se a gestão [e interpretação] de bens culturais dentro do mercado turístico, por motivos de tempo. Contudo, não se restringe sua análise às experiências de lazer, dado que a maior parte dos pontos abordados é pertinente ao lazer e ao turismo. Choay (2006, p. 210, grifos da autora) sintetiza as bases para o crescimento do público para o patrimônio cultural, que guardam íntima relação com o crescimento do turismo cultural: Finalmente, o grande projeto de democratização do saber, herdado das Luzes e reanimado pela vontade moderna de erradicar as diferenças e os privilégios na fruição dos valores intelectuais e artísticos, aliado ao desenvolvimento da sociedade de lazer e de seu correlato, o turismo cultural dito de massa, está na origem da expansão talvez mais significativa, a do público dos monumentos históricos – aos grupos de iniciados, de especialistas e de eruditos sucedeu um grupo em escala mundial, uma audiência que se conta aos milhões. Apesar de massificado, o turismo cultural conta ainda com turistas com maior renda e maior escolaridade do que a média do mercado total, que tendem a permanecer mais dias e gastar mais no destino turístico. A não ser para destinos e atrações turístico culturais excepcionais, que podem desenvolver uma estratégia de captar todo o espectro do mercado de turismo cultural, nos vários mercados emissores, o segredo do sucesso parece residir na especialização e no atendimento de uma parcela muito bem definida do mercado, como apontam McKercher e du Cros (2002) e Apostolakis (2003). McKercher e du Cros (2002) e Richards (1996) apontam que a maior parte dos turistas culturais tem como principal motivação a diversão, relaxamento e entretenimento, e não o enriquecimento cultural. 1. A oferta do mercado de turismo cultural. Nas últimas décadas, tem havido expressivo crescimento da oferta turístico-cultural, em diversas cidades, regiões e países ao redor do Mundo, inclusive em muitos sem tradição turística. De um lado, isso é o resultado de políticas públicas que, dentro de objetivos mais gerais de regeneração urbana, de criação de uma nova imagem positiva e de formação de uma nova base econômica local, tentam fomentar o turismo cultural. Por outro lado, tem havido crescente profissionalização na oferta de atrações turísticoculturais, nos seguintes pontos: a) a provisão, por parte de organizações não governamentais culturais, de atrações voltadas ao consumo turístico, nas quais a educação convive com a diversão e o entretenimento. A York Archaeological Trust (YAT) mantém quatro atrações na cidade intramuros de York, das quais a mais famosa é o Jórvík Viking Centre; b) o surgimento de firmas que criam e exploram atrações turístico-culturais, no mais das vezes parques temáticos com temas e atavios culturais, a exemplo da Merlin Entertainments, que, no Castelo de Warwick, conjuga a preservação do castelo medieval com atrações cujas técnicas provém da Disneylândia, com jogos, simulações e dark rides. Essa firma conta com dezenas de atrações turístico-culturais na Europa, Ásia e Estados Unidos da América; c) a adaptação de bens patrimoniais importantes para o turismo, caso da Catedral de Liverpool, que conta, atualmente, com cafeteria, loja de lembranças, loja de artigos religiosos, tours guiados e visitas à torre (cobrança à parte), tudo dentro da catedral; d) a criação de parques temáticos com temas e atavios culturais, nos quais se combina as técnicas dos parques de diversões norte-americanos com algum elemento da cultural local, nacional ou internacional. Isso responde também às preferências de alguns públicos, como os turistas chineses, que preferem consumir experiências controladas, mesmo no segmento de turismo cultural. Contudo, cumpre destacar que Apostolakis (2003) recupera a noção de Richards (1997) de que o número de atrações turístico-cultural tem crescido mais do que a demanda, o que tem levado à competição crescente por turistas e visitantes entre as atrações e destinos concorrentes, inclusive com o encerramento de unidades deficitárias. Apesar da crescente importância do turismo, ainda há sérias discrepâncias entre as visões dos profissionais dos vários elos da cadeia turística e a dos responsáveis por museus e bens patrimoniais. Por mais que tenha havido certa convergência, nas últimas décadas, e muitas atrações turístico-culturais tenham claros objetivos turísticos e comerciais, ainda há um amplo espectro de museus, centros patrimoniais, centros culturais, monumentos históricos e festivais nos quais o consumo turístico conflita com a agenda preservacionista, museológica e de rememoração presente. 2. Gestão e interpretação no destino turístico. Tomar-se-á a escala de uma cidade para apresentar e discutir as principais formas de fomentar o turismo cultural, através da transformação de bens culturais em atrações turístico-culturais, ou mesmo através da criação de uma atração do zero. Há quatro maneiras principais de uma cidade transformar sua cultura, equipamentos culturais e patrimônio cultural em atrações turístico-culturais, aptas e preparadas para mais bem atender a demanda turística. São elas: a) criação de uma atração primária. Isso pode ser feito através da criação de uma atração completamente nova, ou, então, da adaptação de uma estrutura já existente. Projetos de remodelação urbana de cais, docas e portos redundantes tendem a contar com uma ou mais atrações primárias; quando a cidade tem fôlego financeiro, objetiva-se que a nova atração seja uma atração principal de dimensão nacional ou internacional; A recuperação de Albert Dock, conjunto de armazéns, cais e docas deteriorados, abandonados e redundantes, em Liverpool, Inglaterra, que é a maior concentração de estruturas patrimoniais protegidas do país. O conceito lá implantado – ainda hoje em vigor – combina o impressionante conjunto arquitetônico e paisagístico com museus, bares e restaurantes, comércio varejista – destaca-se a venda de souvenires –, residências de alto padrão, posto de informações turísticas e hotéis. A recuperação e a adaptação de Albert Dock representaram um investimento de £100,000,000.00 na segunda metade dos anos 1980, inclusive na instalação de grandes museus públicos, dos quais se destaca a filial do Tate Museum (Tate Liverpool). A partir de Albert Dock, a remodelação da orla fluvial espraiou-se ao norte e ao sul, com roda gigante, centro de convenções, terminais de cruzeiros e de balsas, museus, residências de alto padrão etc. b) criação de precintos urbano turísticos. Está detalhada, abaixo; c) implantação de circuitos, rotas e regiões turísticas. Lisboa formatou uma série de passeios a pé, tanto em regiões turísticas quanto em partes pouco visitadas da cidade, para que o turista visite, dentro de um roteiro pré-estabelecido, uma série de monumentos e conjuntos antigos da cidade. Dá-se a criação de rotas e roteiros também em conjunto com outras cidades, a partir, no mais das vezes, de um tema comum; d) criação e adaptação de festivais. Em York, o poder público local promove o Viking Festival, na baixa estação turística, que, por um lado, promove palestras e debates acadêmicos sobre a presença viking na Inglaterra, e, de outro, contempla representações e simulações de batalhas e rituais vikings, cujo ápice é a queima de uma réplica em tamanho natural de um barco viking, em pleno Rio Ouse. Trata-se da espetacularização da história em um evento facilmente “consumível” para turistas e visitantes, que reforça a imagem de York como a cidade viking por excelência da Inglaterra. Segundo Hayllar, Griffin e Edwards (2008, p. 9, tradução nossa), o precinto urbanoturístico é: Uma área geográfica distinta dentro de uma área urbana maior, caracterizada por uma concentração de usos do solo, atividades e visitação relacionados ao turismo, dentro de fronteiras razoavelmente bem definidas. Esses precintos geralmente tem personalidades distintas em virtude de seu composto de atividades e usos do solo, como restaurantes, atrações e vida noturna, seu acervo físico ou arquitetônico, especialmente a predominância de edificações históricas, e sua conexão com uma cultura ou grupo étnico particular dentro da cidade. Essas características também existem em conjunto. As políticas públicas de turismo de Manchester, Inglaterra, baseiam-se na divisão do centro e de alguns bairros da cidade em precintos urbano-turísticos, que contam com gestão e interpretação particular, em pontos que vão desde a promoção até a sinalização turística. Chinatown e The Gay Village apoiam-se em identidades coletivas particulares. A criação de distritos desses tipos são comuns em várias cidades ao redor do Mundo, com Nova Iorque, San Francisco e Boston (EUA). The Gay Village, além de concentrar bares, restaurantes e casas noturnas identificadas com o público LGBT, recebe uma série de eventos e festivais, ao longo do ano, dentro dessa temática. O maior deles, o Manchester Pride, conta com uma parada e 11 dias de exposições de arte, cinema e outras reuniões. Sua principal praça é dedicada a Alan Mathison Turing, “pai” das ciências da computação e herói nacional, cuja opção levou-o ao cárcere, em 1952, e ao suicídio, em 1954. O poder público tenta promover um clima de tolerância social, alegria e vida noturna; as bandeiras do movimento LGBT estendem-se por todo o precinto. Por fim, Russo e Borg (2002) chamam a atenção para dois pontos aparentemente contraditórios, mas que são pré-requisitos para o sucesso de um destino turístico, a saber: a) infraestrutura e superestrutura turística de padrão nacional ou internacional, altamente previsível e capaz de atrair firmas internacionais – atração de turistas e da oferta turística; e b) especialização da cidade em um segmento ou nicho do mercado turístico nacional ou internacional, através de elementos culturais únicos e singulares, ou que, pelo menos, sejam vistos como tais. 3. Gestão e interpretação na atração turístico-cultural. A atração pode ser um sítio arqueológico da escala de Angkor, cuja inscrição na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade exigiu como contrapartida do governo tailandês um plano de gestão, no qual uma das quatro grandes linhas era o desenvolvimento do turismo, ou um passeio fantasmagórico noturno pela cidade intramuros de York, Inglaterra, no qual os prédios antigos “ganham vida” através de narrativas repletas de lendas, histórias antigas e performances por parte de guias. A interpretação é fundamentalmente um ato de comunicação, que vai além de informar ou apresentar dados e termos técnicos. Interpretar é comunicar mensagens, emoções e práticas a alguém estimular a curiosidade, entreter e realçar as singularidades, significados e principais características da atração turístico-cultural alvo da interpretação. Em uma casca de noz, é tornar a experiência turística única e extraordinária. Para a transformação de um bem cultural/patrimonial em atração turístico-cultural, há pontos em comum nos casos mais bem-sucedidos, a saber: 1. Contar uma história: elaborar uma narrativa sobre a atração, e não apenas “descarregar” dados e informação sobre o bem em questão; 2. Fazer a atração “ganhar vida”: como colocado pela United States National Trust for Historic Preservation: “O drama humano é o que os visitantes querem descobrir na história contada, e não apenas nomes e datas. Interpretar a atração é importante, assim como fazer com que a mensagem seja estimulante e criativa” (MCKERCHER; DU CROS, 2002). Ser entretido é uma parte importante de grande parte das visitas; 3. Tornar a experiência interativa/participativa: possibilitar ao turista construir parte de sua experiência de visita; às vezes, provocações tornam a atração mais interessante do que um pacote fechado de informações; 4. Tornar a experiência relevante para o turista: relacionar a atração turísticocultural a contextos mais amplos, que a permitam tornar-se relevante para o turista. Tentar relacionar a história e os significados da atração com narrativas caras aos turistas; 5. Focar em qualidade e autenticidade: pensar a atração como um produto expandido, o que contempla acessibilidade, sanitários, lanchonete/cafeteria, loja de souvenires e sua relação com os arredores. Manter um alto nível de autenticidade, entendido a partir da ótica do público-alvo. O Jórvík Viking Centre é um exemplo paradigmático da interpretação patrimonial que está disponível, hoje em dia, para turistas, visitantes e residentes locais. Fruto de uma parceria entre o poder público local e o York Archaeological Trust, seus conceitos já foram transferidos para outras atrações na Europa, Ásia e Estados Unidos da América. A atração combina a exposição de objetos vikings provenientes de uma escavação arqueológica, onde hoje fica a atração, com a reconstrução dessa escavação, logo no salão de entrada. Após esse salão, o cliente – explicitamente tratado dessa forma – embarca em um pequeno carro, que o leva para a reconstrução do acampamento viking, em um conceito similar ao encontrado na atração Piratas do Caribe, em Walt Disney World. Há sons, cheiros, luzes; os habitantes falam um dialeto nórdico incompreensível, e o passeio interrompe um viking defecando, que reclama da impertinência. Tudo é feito para parecer o mais real possível, mas tudo, tudo mesmo, é falso e simulado. Aberto há mais de 30 anos, o Jórvík Viking Centre é um grande sucesso de mercado, e gera receita para que o York Archaeological Fund desenvolva suas atividades na cidade e arredores. 4. Considerações finais. Por fim, cabe elencar dois pontos para reflexão. A participação da comunidade local no processo de desenvolvimento do turismo (cultural) precisa ser um ponto central na agenda do poder público local. Isso precisa ser feito em três linhas principais, a saber: a) como fazer com que os residentes locais participem dos benefícios econômicos do turismo (emprego e renda)? Basicamente, há três caminhos: i. financiamento à abertura de pequenos negócios turísticos (microcrédito); ii. treinamento e capacitação para o emprego em negócio turístico (guias, cozinheiros, camareiras etc.); e iii. treinamento e capacitação para a produção associada ao turismo (por exemplo, artesanato); b) como fazer com que os residentes locais participem do processo de desenvolvimento turístico? Vital aqui é elaborar ações para aumentar a capacidade de participar, para que a população local não fique restrita à simples consulta; c) como fazer com que os residentes locais também aproveitem e participem da construção da oferta turístico-cultural? Trata-se, aqui, de sensibilizar a comunidade local para o valor de sua cultura e de seu patrimônio, e de acessar o conhecimento dos moradores, inclusive através da história oral. Cumpre direcionar parte dos gastos turísticos para a preservação patrimonial, o que não acontece em muitos destinos turísticos, inclusive nas principais cidades patrimoniais brasileiras. A cobrança de uma taxa socioambiental sobre a hospedagem parece ser a solução mais adequada, com parte dela sendo revertida para projetos e ações de preservação patrimonial e de educação patrimonial. APOSTOLAKIS, Alexandros. The convergence process in heritage tourism. Annals of tourism research, v. 30, n. 4, p. 795-812, 2003. BROOKS, Graham. Exploiting the benefits of World Heritage listing: Evora, Portugal, and Hoi An, Vietnam. In: HAYLLAR, Bruce; GRIFFIN, Tony; EDWARDS, Deborah (Orgs.). City spaces – tourist places: urban tourism precincts. Oxford: ButterworthHeinemann, 2008. cap. 17, p. 341-355. CHOAY, Françoise. 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