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Contratação temporária de servidores públicos:
desvirtuamento da exigência constitucional
do concurso público
Igor Bebiano Leite da Silva1, [email protected]
1. Graduado em Direito pela Faculdade de Minas (FAMINAS), Muriaé, MG.
RESUMO: O presente trabalho busca analisar o
instituto da contratação por prazo determinado para
atendimento de necessidade temporária de
excepcional interesse público, previsto no inciso IX
do art. 37 da Constituição de 1988. A contratação
temporária é importante instrumento para a garantia
da continuidade dos serviços públicos, sendo
imprescindível para a boa gestão da coisa pública.
Contudo, em flagrante afronta aos princípios
constitucionais norteadores da administração pública,
o instituto sob exame vem sendo desvirtuado
sistematicamente, com enormes prejuízos para a
coletividade. Partindo de um levantamento
doutrinário, foram analisados os conceitos básicos e
as questões polêmicas acerca da contratação
temporária, com exame da jurisprudência
dominante, de forma a demonstrar a correta
utilização do permissivo constitucional acima
referido.
Palavras-chave: contratação temporária, excepcional
interesse público, necessidade transitória.
RESUMEN: Contratación temporal de los
funcionarios públicos: la distorsión de la
exigencia constitucional de concurso público. Este
estudio tiene como objetivo analizar la institución
del contrato de plazo fijo para suplir las necesidades
temporales de excepcional interés público a lo
dispuesto en la sección IX del art. 37 de la
Constitución de 1988. La contratación temporal es
una herramienta importante para asegurar la
continuidad de los servicios públicos, siendo
indispensables para la buena gestión de los asuntos
públicos. Sin embargo, en flagrante afrenta a los
principios constitucionales rectores de la
Administración Pública, el Instituto examinado
sistemáticamente socavado, con enormes pérdidas
para la comunidad. A partir de una encuesta
doctrinal, los conceptos básicos y las cuestiones
controvertidas relativas a la contratación temporal
se analizaron con el examen de la jurisprudencia
dominante con el fin de demostrar el uso correcto
de la permisiva constitucional anteriormente.
Palabras llave: contratación temporal, excepcional
interés público, necesidad transitoria.
ABSTRACT: Temporary hiring of public servants:
distortion of constitutional requirement for public
tender. This study aims to analyze the institution of
fixed-term contract to supply temporary need of
exceptional public interest as provided for in section
IX of art. 37 of the 1988 Constitution. The temporary
hiring is an important tool for ensuring the continuity
of public services, being indispensable for the proper
management of public affairs. However, in flagrant
affront to the constitutional principles guiding Public
Administration, the institute under examination has
been systematically undermined, with huge losses
for the community. From a doctrinal survey, the basic
concepts and controversial issues regarding the
temporary appointment were analyzed, with the
dominant jurisprudence exam in order to
demonstrate the correct use of the above
constitutional permissive.
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Keywords: temporary hiring, exceptional public
interest, transient need.
Introdução
O Estado possui como finalidade primordial a manutenção e
execução de serviços públicos, razão pela qual pode ser considerado gestor
dos interesses coletivos. A atuação funcional do Estado concretiza-se pela
ação de seres humanos, os quais praticam atos em nome e por conta do
Poder Público, em conformidade com as atribuições previstas pela ordem
jurídica. Eis o elemento dinâmico da administração pública, personificado
nos agentes públicos.
É certo que as pessoas que prestam serviços ao Estado o fazem no
interesse da coletividade. E não se pode olvidar que a máquina pública é custeada
por todos os integrantes dessa mesma coletividade. Justo por isso, a admissão
de pessoal na administração pública deve obedecer aos princípios da
impessoalidade, moralidade e publicidade, a fim de garantir a isonomia entre os
interessados em ocupar um posto de trabalho no serviço público.
Vale dizer, o acesso aos quadros da administração deve observar
processo público de seleção, salvo as exceções constitucionais, mesmo
porque é de interesse do próprio Estado o recrutamento dos melhores
profissionais para a execução das atividades estatais, de forma a efetivar o
princípio da eficiência.
E a maneira mais democrática para a admissão de pessoal no serviço
público é através do concurso, procedimento por meio do qual o candidato é
avaliado pelo sistema de mérito. E o art. 37, inciso II, da Constituição de 1988,
consagrou o princípio do concurso público, exigindo, para o ingresso em cargos
e empregos públicos, a prévia aprovação em concurso público de provas ou de
provas e títulos.
Contudo, forçoso reconhecer que há situações transitórias, de
excepcional interesse público, que demandam a contratação temporária de
servidores. Dentre essas situações transitórias, algumas se revelam urgentes,
razão pela qual a abertura de processo seletivo regular certamente acarretaria
graves conseqüências para a continuidade dos serviços públicos, mormente os
essenciais, afetando toda a coletividade. Há também situações que não são
urgentes, mas, dada a natureza transitória da atividade, a criação de cargos e
empregos públicos não se justifica.
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Para disciplinar tais situações, o administrador público pode valer-se
da contratação por prazo determinado para atendimento da referida necessidade
de excepcional interesse público, conforme disposição contida no art. 37, inciso
IX, da Constituição da República.
Ocorre que, de forma recorrente, maus administradores da coisa
pública estão a utilizar o instituto da contratação temporária como meio de
admissão de pessoal, sem observância dos requisitos necessários para a validade
de tal modalidade de contratação, o que contraria o disposto no art. 37, inciso
II, da CR/88. Tal prática afronta, a um só tempo, a ordem jurídica, a eficiência
dos serviços públicos e os direitos e garantias mínimos dos servidores contratados
a título precário.
Constitui objeto de estudo do presente trabalho a análise do
regramento pertinente à contratação temporária, em especial seu fundamento,
requisitos de validade, regime jurídico aplicável, competência jurisdicional e
responsabilização das autoridades que desvirtuam sua correta utilização.
I–
Definições básicas
1.1 –
Classificação dos agentes públicos
A expressão agentes públicos possui amplo sentido. Designa todas as
pessoas físicas que prestam serviços ao Estado. São todos aqueles que exercem
uma função pública na qualidade de prepostos do Estado. Tal função pode ser
remunerada ou gratuita, definitiva ou transitória, política ou jurídica. Referidos
agentes estão, pois, vinculados ao Estado e agem em seu nome, ou seja, a
manifestação volitiva dos agentes é imputada ao próprio Estado.
O gênero agentes públicos pode ser dividido, para fins didáticos, nas
seguintes espécies: agentes políticos, servidores públicos, particulares
colaboradores e agentes de fato.
A conceituação do termo agentes políticos encontra divergência
doutrinária. Celso Antônio Bandeira de Mello (2003) entende por agentes políticos
os formadores da vontade superior do Estado. É uma definição mais restritiva,
visto que considera como tais apenas aqueles a quem incumbe a execução das
diretrizes fundamentais do Estado. De acordo com esta definição, seriam agentes
políticos apenas os chefes do Executivo, seus ministros ou secretários, bem
como os membros do Poder Legislativo, isto é, os senadores, deputados e
vereadores.
Este conceito restritivo funda-se na natureza do vínculo existente entre
tais agentes e o Estado. No mesmo sentido, José dos Santos Carvalho Filho
(2010, p. 639):
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[...] parece-nos que o que caracteriza o agente político
não é só o fato de serem mencionados na Constituição,
mas sim o de exercerem efetivamente (e não
eventualmente) função política, de governo e de
administração, de comando e, sobretudo, de fixação das
estratégias de ação, ou seja, aos agentes políticos é que
cabe realmente traçar os destinos do país.
Florivaldo Dutra de Araújo (apud MAGALHÃES, 2005) acrescenta à
concepção restritiva os membros do Supremo Tribunal Federal (STF), ao
argumento de que os ministros da referida Corte exercem função política, visto
que, além de ser o STF o guardião da Constituição (art. 102, CR/88), é o órgão
de cúpula do Poder Judiciário, sendo suas decisões definitivas e irreversíveis.
Hely Lopes Meirelles (1999, p. 71-73) apresenta um sentido ainda
mais amplo para a expressão agentes políticos, incluindo nesta categoria, além
dos chefes do Executivo, seus auxiliares imediatos e parlamentares, os
magistrados, membros do Ministério Público, membros dos Tribunais de Contas,
representantes diplomáticos e “demais autoridades que atuem com
independência funcional no desempenho de atribuições governamentais,
judiciais ou quase-judiciais, estranhas ao quadro do serviço público”. Para o
festejado autor, os agentes políticos são “os componentes do Governo nos
seus primeiros escalões”.
Adota-se no presente trabalho o conceito amplo de Hely Lopes
Meirelles, acima explicitado. É certo que os magistrados, membros do Ministério
Público e Tribunais de Contas possuem vínculo de natureza profissional e
permanente com o Estado, de modo que o preenchimento de tais cargos não
decorre de processo eletivo. Contudo, os agentes mencionados possuem assento
constitucional, exercendo suas funções com independência funcional.
Já a categoria dos servidores públicos abarca a maior parte dos agentes
do Estado. São todos aqueles que se vinculam ao Estado por uma relação
profissional, permanente, subordinada, verdadeira relação funcional. Maria Sylvia
Zanella Di Pietro (2000) divide o gênero servidores públicos nas seguintes
espécies: servidores estatutários, que são os ocupantes de cargos públicos,
regidos por estatuto; empregados públicos, contratados pelo regime
celetista; e servidores temporários, os quais atendem necessidade transitória
de excepcional interesse público.
Os servidores ocupantes de cargos públicos submetem-se a regime
jurídico estatutário, ou seja, a relação que os vincula ao Estado é disciplinada
por diplomas legais específicos, os estatutos. Em tais instrumentos constam os
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direitos e deveres dos servidores e do Estado. É uma relação jurídica decorrente
de lei, com normas de ordem pública, de natureza não contratual.
Os empregados públicos submetem-se às normas da Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT - Decreto-lei n. 5.452/43), sendo certo que as regras
disciplinadoras da relação Estado-trabalhador são as mesmas aplicáveis à relação
de emprego na esfera privada, observadas, por óbvio, as disposições pertinentes
ao Poder Público.
A última espécie de servidor público é a dos agentes temporários, os
quais são contratados por prazo determinado para atender necessidade temporária
de excepcional interesse público. Tais servidores exercem função pública, de
natureza transitória, precária, não ocupando cargo ou emprego.
A terceira categoria de agentes públicos diz respeito aos particulares
em colaboração com o Poder Público. São todas as pessoas físicas que prestam
serviço ao Estado sem se vincularem a regime funcional, podendo ser
remuneradas ou não. Nesta categoria incluem-se os jurados, mesários, integrantes
de juntas apuradoras, comissários de menores voluntários, bem como os titulares
de ofícios de notas e de registro não oficializados, os concessionários
permissionários de serviços públicos.
Por último, temos os agentes de fato. São aqueles que exercem uma
função pública em nome do Estado, porém sem ter uma investidura normal e
regular. Contrapõem-se aos agentes de direito e são agrupados em duas
categorias: agentes necessários e agentes putativos. Na primeira, enquadramse aqueles que praticam atos e executam atividades em situações excepcionais,
colaborando com o Poder Público, como ocorre em situações de emergência.
Os atos praticados por tais agentes são confirmados pelo Estado. Já os agentes
putativos são aqueles que exercem uma função pública, com presunção de
legitimidade, sem observância do procedimento legal para sua investidura. É o
caso dos servidores contratados temporariamente, quando suas contratações
não atendem aos pressupostos fáticos autorizadores de tal modalidade de
contratação, sendo declaradas nulas. Em relação a terceiros de boa-fé, os atos
de tais agentes devem ser convalidados, tendo em vista a teoria da aparência.
1.2 –
Regimes jurídicos dos servidores públicos
Regime jurídico, segundo José dos Santos Carvalho Filho (2010, p.
647), pode ser definido como “[...] o conjunto de regras de direito que regulam
determinada relação jurídica”.
É o regime jurídico que determina os direitos e deveres do servidor
público. Cumpre salientar que é de suma importância a análise da natureza do
regime jurídico aplicável a determinada categoria de servidores, visto que disso
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decorre a definição da competência legislativa e jurisdicional acerca da relação
funcional travada entre Estado e servidor.
Para melhor compreensão do tópico, importante distinguir o conteúdo
do regime jurídico de sua natureza.
Segundo Gustavo Alexandre Magalhães (2005, p. 44):
[...] a natureza do regime do agente público pode ser
trabalhista ou estatutário, por exemplo. Já o conteúdo do
regime consiste nos direitos e deveres específicos dos
servidores, que variam de regime para regime,
independentemente de sua natureza. Pode-se mencionar
como exemplo a possibilidade de haver a mesma previsão
de remuneração adicional para o trabalho insalubre, tanto
em um regime jurídico trabalhista quanto em outro,
estatutário. Neste caso, identifica-se o mesmo conteúdo
em regimes jurídicos de natureza diversa. Por outro lado,
podem existir regimes jurídicos estatutários que tratem
diferentemente de adicionais por tempo de serviço, de
maneira que em um deles o adicional seria anual
(“anuênio”) e no outro o adicional seria trienal (“triênio”).
Trata-se de regimes jurídicos de mesma natureza (natureza
estatutária), com conteúdos diversos.
Nota-se, pois, que o regime jurídico comum pode ser trabalhista ou
estatutário.
1.2.1 –
Regime jurídico estatutário
O regime estatutário consiste no conjunto de direitos e deveres
previstos no estatuto funcional do ente federativo. São disposições estabelecidas
unilateralmente pelo Estado com o intuito de reger a relação entre a administração
e o servidor. Não possui natureza contratual, mas sim funcional, regulamentar,
fundando-se na supremacia do interesse público.
Como bem salientado por José dos Santos Carvalho Filho (2010),
para o regime estatutário há um regime constitucional superior (com o núcleo
norteador), um regime legal (estatuto), contendo a disciplina básica sobre a
matéria, e um regime administrativo, de caráter organizacional, o qual se
materializa por meio de atos administrativos.
Considerando a autonomia entre os entes políticos, cada um deve
editar sua lei estatutária para disciplinar a relação jurídica funcional com
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seus servidores, a exemplo da União, cujo estatuto funcional está previsto na
Lei n. 8.112/90.
Cabe ressaltar que é competência privativa do chefe do Executivo a
iniciativa de lei que disponha sobre o regime jurídico dos servidores públicos,
conforme redação do art. 61, §1º, II, “c”, da CR/88.
O servidor estatutário ocupa cargo público, sendo certo que sua relação
com o Estado é de natureza institucional, visto que não há contrato entre as
partes. Trata-se, pois, de relação regida por normas de direito público, de modo
que o servidor se submete às disposições do regime jurídico previamente
instituído, não havendo margem para negociações, tal como ocorre numa
contratação do setor privado.
1.2.2 –
Regime jurídico trabalhista
O regime trabalhista baseia-se nas disposições constitucionais e
infraconstitucionais aplicáveis aos trabalhadores em geral. Por esse regime, a
relação jurídica entre Estado e servidor rege-se pela legislação trabalhista, em
especial a CLT, haja vista sua natureza contratual. Vale dizer, na hipótese em
epígrafe, há nítido contrato de trabalho.
Os agentes públicos submetidos ao regime trabalhista ocupam
empregos públicos, os quais são criados por lei e devem ser ocupados por
servidores previamente aprovados em concurso público.
Ao contrário do regime estatutário, aqui vigora o princípio da unicidade
normativa, de forma que os entes federativos que adotem este regime deverão
observar as disposições da CLT e legislação correlata. Como a competência para
legislar sobre direito do trabalho é privativa da União (art. 22, I, CR/88), uma
vez alteradas as disposições das normas trabalhistas vigentes, o regime jurídico
dos servidores trabalhistas também será alterado, ainda que estes pertençam
aos demais entes da federação.
Importante destacar que, embora ainda não exista regulamentação
específica, as denominadas “atividades exclusivas de Estado” devem ser exercidas
por servidores estatutários, haja vista a natureza peculiar das atividades
desenvolvidas pelo servidor.
Outra questão polêmica diz respeito à extensão do instituto da
estabilidade ao servidor celetista. Com efeito, o art. 41 da CR/88 diz que são
estáveis os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude
de concurso público. Dessa forma, o texto constitucional restringiu a aplicação
da estabilidade apenas aos servidores ocupantes de cargos públicos, estatutários,
portanto. E como bem observa Gustavo Magalhães (2005, p.79):
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[...] a EC n. 19/98 restringiu a estabilidade apenas aos
servidores ocupantes de cargo de provimento efetivo. Dessa
forma, considerando que os empregados públicos são
beneficiados pelo FGTS, negou-lhes expressamente o direito
à estabilidade. E não há que se falar em possível
interpretação extensiva do dispositivo, visto que não se
trata de omissão do Poder Legislativo, mas de opção clara
e expressa, que fica ainda mais evidente quando são
comparadas a redação original e a nova redação dada pela
EC n. 19.
No mesmo sentido manifesta-se José dos Santos Carvalho Filho (2010,
pp. 735-736):
O concurso é pré-requisito de ingresso no serviço público,
independente do regime jurídico a que pertencer o servidor,
e em nenhum momento a estabilidade foi atrelada a esse
requisito. Desse modo, não será atribuída ao servidor
trabalhista a garantia da estabilidade ainda que tenha sido
aprovado em concurso público antes da contratação.
Por outro lado, o Tribunal Superior do Trabalho reconhece o direito à
estabilidade aos servidores celetistas da administração direta, autárquica e
fundacional, nos termos da Súmula 390, a qual exclui apenas os empregados
das sociedades de economia mista e empresas públicas, em virtude do disposto
no §1º do art. 173 da CR/88. No tocante a estas, ressalva deve ser feita aos
empregados da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), os quais só
podem ser dispensados mediante ato motivado, conforme OJ-SDI-1-247 do
TST.
1.2.3 –
Regime jurídico dos servidores temporários
Já o regime “especial” disciplina a categoria específica dos servidores
temporários. O art. 37, IX, da Carta Política diz que a lei estabelecerá os casos
de contratação para atender necessidade temporária de excepcional interesse
público. A expressão “contratação” remete à idéia de que o Constituinte
reconheceu a natureza contratual da relação funcional entre o Estado e o servidor
temporário.
Discorrendo sobre a natureza jurídica do regime especial, esclarece
Carvalho Filho:
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Diz a Constituição que a lei estabelecerá os casos de
contratação desses servidores. Assim dizendo, só se pode
entender que o Constituinte pretendeu caracterizar essa
relação funcional como de natureza contratual. Cuida-se,
de fato, de verdadeiro contrato administrativo de caráter
funcional, diverso dos contratos administrativos em geral
pelo fato de expressar um vínculo de trabalho
subordinado entre a Administração e o servidor (2010,
p. 654, grifos do autor).
Observada a diretriz constitucional, a lei instituidora do regime
estabelecerá as disposições a serem aplicadas a tal relação funcional. Merece
destaque, pela clareza, a lição de Gustavo Magalhães:
Independentemente da natureza do vínculo, o regime
jurídico dos servidores temporários deverá ser distinto
daquele previsto para os agentes público efetivos. Ainda
que se adote o regime trabalhista, sua natureza será sempre
especial, pois, embora as normas de direito do trabalho
sejam as mesmas para o pessoal temporário e permanente,
pelo menos quanto às hipóteses de contratação, será
aplicada a lei local, e não o art. 443 da CLT. (2005, p. 83).
Ainda sobre o tema, asseverou o ilustre autor:
Não há que se falar também que a natureza jurídica do
regime poderia ser ‘especial’, considerando que tal
expressão consiste em rótulo vazio, desprovido de conteúdo.
Regime especial deve ser entendido como aquele
específico dos servidores com vínculo temporário, diferente
do regime jurídico dos agentes públicos integrantes do
quadro permanente da Administração. Como o dito ‘regime
especial’ pode assumir naturezas diversas, não pode ser
considerado regime jurídico autônomo quanto à sua natureza
(2005, p. 226).
Assim, a expressão “regime especial” deve ser entendida como o
regime jurídico aplicável aos servidores contratados temporariamente,
independentemente da natureza do regime adotado pelo ente contratante.
Regime especial, em uma simples definição, deve ser entendido em
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contraposição ao regime jurídico comum, aplicável aos servidores permanentes
da Administração.
1.2.4 –
Regime jurídico único
A redação original do caput art. 39 da CR/88 previa o regime jurídico
único no âmbito de cada ente federativo. O texto constitucional pretérito não
era claro o suficiente, de modo que gerou intensa divergência doutrinária e
jurisprudencial. Para uns, o regime único seria apenas o estatutário (excluído,
portanto, a adoção do regime celetista). Para outros, a unicidade referia-se à
adoção de apenas um regime pela pessoa federativa, ou seja, esta teria a opção
pelo regime que entendesse mais adequado e, uma vez escolhido, deveria ser
o único em seu âmbito.
A Emenda Constitucional n. 19, de 04/06/98, denominada de “reforma
administrativa”, alterou a redação do dispositivo acima citado e aboliu a
obrigatoriedade de instituição de regime jurídico único. Assim, um determinado
ente federativo poderia ter grupos de servidores com regimes distintos, desde
que previstos em lei.
Há de se considerar, outrossim, a decisão do Supremo Tribunal Federal
que deferiu parcialmente o pedido de medida cautelar na ADI 2135 MC/DF
(Rel. min. Néri da Silveira, Rel. p/ acórdão: min. Ellen Gracie, DJe 07/03/2008).
Tal decisão suspendeu a eficácia do caput do art. 39 da Constituição da República,
com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional n. 19/98, ensejando
o retorno de sua redação original, a qual dispõe sobre a instituição de regime
jurídico único para os servidores de cada ente federativo, no âmbito de sua
competência.
Com isso, restabeleceu-se a controvérsia acerca do significado da
expressão “regime jurídico único”. Muitos autores sustentam que o regime único,
obrigatoriamente, deve possuir natureza administrativa, estatutário para os
servidores permanentes e, em razão de suas peculiaridades, contratualadministrativo para os servidores temporários.
Por outro lado, José dos Santos Carvalho Filho sustenta que: “[...]
consideramos que a intentio do Constituinte foi a de que o regime de pessoal
fosse apenas único, seja o estatutário, seja o trabalhista [...]” (2010, p. 660,
grifos do autor).
Prossegue o ilustre doutrinador:
Cabe anotar, também, que a unicidade de regime jurídico
alcança tão-somente os servidores permanentes. Para os
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servidores temporários, continua subsistente o regime
especial, como previsto no art. 37, IX, da CF. Portanto,
será sempre oportuno destacar que a expressão “regime
único” tem que ser considerada cum grano salis, para
entender-se que os regimes de pessoal são dois – um,
o regime comum (tido como regime único), e outro, o
regime especial (para servidores temporários) (2010, p.
660, grifos do autor).
Portanto, a prevalecer a redação original do caput do art. 39 da Carta
Política, cada ente deverá adotar regime jurídico único para seus servidores
permanentes, seja ele estatutário ou trabalhista, desde que seja o único na sua
esfera de competência. Com relação aos servidores temporários, por expressa
ressalva constitucional, admite-se o regime “especial”, em razão de sua
excepcionalidade, a eles se aplicando o regime jurídico a ser instituído pelo
ente respectivo na lei autorizativa de tal modalidade de contratação. Vale dizer,
o ente federativo tem a faculdade de escolher o regime jurídico que entenda
ser o mais conveniente para reger sua relação funcional com os servidores
temporários.
II –
Princípio constitucional do concurso público
O art. 37, inciso I, da Constituição de 1988 estabelece que: “os
cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que
preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros,
na forma da lei”. O inciso II do dispositivo constitucional cima referido
dispõe que: “a investidura em cargo ou emprego público depende de
aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de
acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma
prevista em lei [...]”.
Verifica-se, a partir da leitura dos referidos incisos, que a Constituição
garantiu ampla acessibilidade aos cargos, empregos e funções públicas, sendo
certo que estabeleceu a exigência de prévia aprovação em concurso para ingresso
efetivo nos quadros da Administração.
O concurso público é o instrumento de que se vale o Poder Público
para efetivar o amplo acesso aos postos de trabalho no serviço público.
Em que pese a discussão doutrinária acerca do tema, pode-se dizer
que o inciso II do art. 37 apresenta uma regra e, ao mesmo tempo, um princípio,
como salienta Gustavo Magalhães:
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Nesse sentido, podemos inferir do art. 37, inciso II, da
Constituição de 1988, uma regra segundo a qual é exigida
a aprovação prévia em concurso público de provas ou de
provas e títulos como condição intransponível para a
admissão de pessoal à função pública – e um princípio que
visa a efetivar os valores de igualdade entre os seres
humanos e de boa gestão da coisa pública (2005, p. 90,
grifos do autor).
O princípio constitucional do concurso público é, pois, fruto dos
princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência, visto que se destina a
garantir o amplo acesso aos quadros do serviço público e, conseqüentemente,
selecionar os melhores profissionais para servir à coletividade.
Contudo, existem algumas exceções ao princípio em epígrafe. A
primeira está prevista no próprio art. 37 da CR/88 e refere-se aos cargos em
comissão e funções de confiança. Referida exceção justifica-se em razão da
natureza das atividades exercidas.
A segunda exceção diz respeito aos cargos eletivos, tendo em vista
sua natureza política.
Outra exceção é o ingresso de advogados e membros do Ministério
Público nos tribunais pelo sistema do quinto constitucional (art. 94, CR/88). O
acesso aos Tribunais de Contas segue regra similar, sendo inexigível o concurso
(art. 73, §2º, CR/88).
O art. 19 do ADCT da Carta de 1988, por sua vez, declarou a
estabilidade dos servidores civis que em 05/10/88 contavam com pelo menos
cinco anos de exercício continuado.
Vale citar, ainda, o art. 98, II, da CR, que prevê a justiça de paz, bem
como o art. 53, I, do ADCT, relativo aos ex-combatentes que tenham
efetivamente participado de operações bélicas durante a Segunda Guerra
Mundial.
Por fim, o concurso também é inexigível para a contratação por tempo
determinado para atender necessidade temporária de excepcional interesse
público, na forma do art. 37, IX, da Constituição de 1988, quando tratar-se de
casos urgentes. Nos situações não urgentes, deve ser observado o processo
seletivo, ainda que simplificado, a exemplo do que ocorre no âmbito federal
(art. 3º da Lei n. 8.745/93). Regramento similar está previsto no § 4º
do art. 198 da Constituição da República, o qual estabelece a admissão
de agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias
por meio de processo seletivo público.
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III –
Contratação temporária para atendimento de
excepcional interessa público
De início, vale citar a redação do inciso IX do art. 37 da CR/88: “a lei
estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender
necessidade temporária de excepcional interesse público”.
Do dispositivo constitucional acima transcrito, encontram-se todos os
requisitos para a contratação temporária, os quais serão analisados em seguida.
A norma constitucional sob apreciação é de eficácia limitada, visto
que atribui à lei ordinária a disciplina da contratação temporária de servidores.
O requisito em comento é pressuposto de tal modalidade de contratação.
Considerando a autonomia político-administrativa conferida pela Constituição
aos entes federativos, cabe a eles a edição da referida lei, de modo que uma
pessoa política não poderá valer-se da lei reguladora editada por outra.
No âmbito federal, a União editou a Lei n. 8.745/93, que estabelece
as hipóteses de contratação e o regime jurídico dos servidores temporários.
Questão polêmica surge quando um estado ou município edita lei,
determinando a aplicação de lei específica editada por outro ente federativo.
Nesse caso, como ressalta Gustavo Magalhães (2005), entende-se que não há
renúncia de competência legislativa, mas a ocorrência do fenômeno da imputação
ou reenvio, por meio do qual o legislador determina que as autoridades
responsáveis pela aplicação da lei dirijam-se a outros dispositivos que igualmente
tratam da matéria.
A lei em referência deverá estabelecer as hipóteses de contratação
temporária, fixar as condições e prazos máximos de duração do contrato,
conforme as situações excepcionais que arrolar. Deverá, outrossim, estabelecer
o regime jurídico disciplinador do vínculo Estado-servidor. Não é demais ressaltar
que a natureza do vínculo será sempre contratual. Desse modo, cabe ao legislador
de cada ente federativo adotar o regime que melhor lhe convier, optando pelo
regime celetista ou de contrato administrativo de trabalho.
Assim, a lei específica deverá instituir o regime funcional dos servidores
temporários. Não o fazendo ou sendo omissa em relação às garantidas mínimas
do servidor, deve ser aplicado o regime celetista, previsto no art. 7º da CR/88,
como regra geral a ser observada nas relações de trabalho subordinado.
Por fim, cabe ressaltar que, independentemente do regime adotado
pelo legislador, deve-se garantir os direitos mínimos ao agente temporário, de
forma a garantir a dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho,
fundamentos da República (art. 1º, III e IV, da CR/88).
Contudo, ainda que inexista lei disciplinadora, na hipótese de
ocorrência de fatos que demandem a atuação imediata do Poder Público,
74
MURIAÉ – MG
considerando o princípio da continuidade do serviço público, deve-se admitir
tal modalidade de contratação. Gustavo Magalhães ensina que:
Assim, deve ser permitida a contratação temporária nestes
casos, ainda que inexista lei ordinária prevendo as hipóteses
consideradas como de excepcional interesse público. É claro
que o dever de motivação pela Administração do ato de
contratação deve ser fiscalizado com muito mais rigor. Deve
o Poder Público demonstrar que a situação fática
efetivamente demanda a contratação de servidores
temporários como condição de resguardar interesses
públicos ameaçados. (2005, p. 239-240).
3.1 –
Conceito de necessidade transitória
A expressão necessidade transitória refere-se às situações de fato
autorizadoras para a contratação de agentes temporários, nos moldes do
permissivo constitucional contido no inciso IX do art. 37 da Carta Política.
Desse modo, necessidade transitória deve ser entendida como a
situação que demanda atendimento prioritário por parte da administração,
abrangendo situações urgentes – ainda que em atividades de natureza
permanente – ou não urgentes, para atividades de natureza transitória que,
justo por isso, não justificam a criação de cargos ou empregos públicos.
Há julgados do STF no sentido de limitar a abrangência da expressão
“necessidade temporária” às situações em que a própria atividade seja transitória
(ADI n. 2987/SC, Rel. min. Sepúlveda Pertence, DJ 02.04.2004; ADI n. 890/
DF, Rel. min. Maurício Correa, DJ 06.02.2004). Segundo tal entendimento, a
lei do ente federativo que estabelece hipóteses de contratação temporária para
atividades de natureza permanente seria inconstitucional, visto que, em tais
casos, a necessidade de mão-de-obra deve ser suprida pela criação de cargos
ou empregos, obedecendo-se às formalidades para ingresso no serviço público.
No mesmo sentido se manifestou José dos Santos Carvalho Filho (2010).
Contudo, no julgamento da ADI n. 3068/DF (Rel. min. Marco Aurélio,
Julg. 25/08/04), o STF mudou o entendimento acima e legitimou tal modalidade
de contratação para atividades de caráter permanente, desde que para
atendimento de situações urgentes. Vale citar a ementa do referido acórdão:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N.
10.843/04. SERVIÇO PÚBLICO. AUTARQUIA. CADE.
CONTRATAÇÃO DE PESSOAL TÉCNICO POR TEMPO
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
75
DETERMINADO. PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA
ATIVIDADE ESTATAL. CONSTITUCIONALIDADE. ART. 37,
IX, DA CB/88. 1. O art. 37, IX, da Constituição do Brasil
autoriza contratações, sem concurso público, desde que
indispensáveis ao atendimento de necessidade temporária
de excepcional interesse público, quer para o desempenho
das atividades de caráter eventual, temporário ou
excepcional, quer para o desempenho das atividades de
caráter regular e permanente. 2. A alegada inércia da
Administração não pode ser punida em detrimento do
interesse público, que ocorre quando colocado em risco o
princípio da continuidade da atividade estatal. 3. Ação direta
julgada improcedente.
Verifica-se, pois, que a expressão “necessidade temporária” deve ser
analisada sob o aspecto da urgência da situação excepcional. Se há urgência na
atividade a ser desempenhada, não importa sua natureza, poderá o administrador
público valer-se da contratação temporária, haja vista que, ainda que a atividade
seja permanente, a urgência da situação impossibilita o atendimento às
formalidades legais, de forma a preservar s direitos e interesses coletivos.
Para as situações não urgentes, o que deve ser analisado é a natureza
da atividade a ser desempenhada. Se esta for transitória, poderá a administração
pública utilizar a contratação temporária para a admissão de pessoal, visto que,
em casos tais, o provimento em caráter permanente revela-se incompatível
com o interesse público. Vale dizer, cessada a situação excepcional autorizadora
da contratação temporária, os serviços do agente temporário não são mais
necessários, o que justifica o seu enquadramento como agente temporário. Se
assim não fosse, mesmo diante de situações transitórias, haveria a necessidade
de admissão de pessoal em cargos ou empregos com a posterior declaração de
sua desnecessidade, uma vez cessada a necessidade pública transitória. Bem
de ver que tal hipótese afrontaria o princípio da razoabilidade e eficiência.
Celso Antônio Bandeira de Mello traz interessante e preciosa lição:
A razão do dispositivo constitucional em apreço,
obviamente, é contemplar situações nas quais ou a própria
atividade a ser desempenhada, requerida por razões
muitíssimo importantes, é temporária, eventual (não se
justificando a criação de cargo ou emprego, pelo quê não
haveria cogitar do concurso público), ou a atividade não é
temporária, mas o excepcional interesse público demanda
76
MURIAÉ – MG
que se faça imediato suprimento temporário de uma
necessidade (nesse sentido, ‘necessidade temporária’), por
não haver tempo hábil para realizar concurso, sem que
suas delongas deixem insuprido o interesse incomum que
se tem de acobertar (2003, p. 261, grifo do autor).
Pode-se dizer que para a validade da contratação temporária é
imprescindível o enquadramento da situação como transitória. A necessidade
de mão-de-obra deve ser sempre transitória, podendo-se classificar as situações
de excepcional interesse público em urgentes e não urgentes. Se urgentes,
ainda que permanente a atividade, justifica-se a contratação. Se não urgente, a
natureza da atividade deve ser transitória ou sazonal. Em ambos os casos, o
excepcional interesse público autoriza a contratação em comento.
E é justamente essa divisão da necessidade transitória em função da
urgência que definirá a exigência ou não da realização de processo seletivo.
Tratando-se de necessidade urgente, patente está a desnecessidade de realização
de processo seletivo, por óbvias razões. Já para as contratações temporárias não
urgentes, ou seja, aquelas cujo objeto é o desempenho de atividades de natureza
transitória, previsíveis, permanece a exigência de prévio processo seletivo para
admissão dos servidores. Tal exigência funda-se na possibilidade de planejamento,
por parte da Administração, da admissão de pessoal. Importante observar que:
De fato, a Constituição não exigiu expressamente a
aprovação prévia em concurso como condição de admissão
de pessoal em função público, visto que o art. 37, II, só
faz menção a cargos e empregos. Contudo, utilizando-se
de interpretação sistemática e teleológica, conclui-se que
o princípio do concurso público só poderá ser excepcionado
nos casos em que necessidades públicas urgentes
requererem atuação imediata da Administração
(MAGALHÃES, 2005, p. 173).
Em tais situações, a admissão dos servidores temporários deve ser
precedida por processo seletivo, tal como ocorre com os recenseadores do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Em outras palavras: como a
Constituição de 1988 consagrou o princípio do concurso público, sua dispensa
só pode ocorrer para evitar o perecimento de interesses públicos.
Importante destacar que, na dinâmica da rotina administrativa, uma
necessidade originariamente não urgente, pode tornar-se urgente em razão da
inércia do administrador pública em tomar as medidas cabíveis. Neste caso,
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
77
embora o ato de admissão seja válido (em razão da urgência), o administrador
público deverá ser responsabilizado por sua omissão. Responderá não pelo ato
de contratação em si, mas por sua omissão referente à não realização do processo
seletivo. Insta salientar que a questão da responsabilidade será apreciada em
tópico específico.
3.2 –
Conceito de prazo determinado
Do texto constitucional, infere-se que a contratação sob exame deve
efetivar-se por prazo determinado, ou seja, o vínculo deve ter natureza transitória.
Os contratos celebrados devem ter prazo certo, com duração restrita ao
atendimento da necessidade transitória. A expressão “prazo determinado” referese à duração do vínculo Estado-servidor, guardando íntima ligação com a
transitoriedade das atividades a serem desempenhadas.
Considerando a diversidade de situações que podem ser enquadradas
como de excepcional interesse público, seria difícil para o legislador estabelecer
um prazo uniforme para todas as hipóteses de contratação temporária. Por
outro lado, a inexistência de prazos a serem observados pelo administrador
certamente ensejaria a desvirtuação do instituto em referência.
Justo por isso, a lei deve prever um prazo-limite para as contratações,
observando, para tanto, prazo razoável para a tutela do excepcional interesse
público, de acordo com as atribuições a serem exercidas pelo servidor. Vale
dizer, a exigência de prazo determinado para o vínculo deve estar relacionada à
estrita observância da necessidade pública transitória, de forma que a contratação
não se perpetue no tempo.
No tocante à prorrogação dos contratos temporários, prática muito
comum no âmbito dos Estados e Municípios, cabe ressaltar que, como dito
antes, o contrato deve perdurar pelo tempo estritamente necessário para o
atendimento da necessidade transitória. Dessa forma, o prolongamento do vínculo
só deve ser admitido em situações justificadas e, de igual modo, pelo prazo
necessário.
3.3 –
Conceito de excepcional interesse público
De início, destaca-se a lição trazida por José dos Santos Carvalho
Filho:
Empregando o termo excepcional para caracterizar o
interesse público do Estado, a Constituição deixou claro
que situações administrativas comuns não podem ensejar
78
MURIAÉ – MG
o chamamento desses servidores. Portanto, pode dizerse que a excepcionalidade do interesse público
corresponde à excepcionalidade do próprio regime
especial (2010, p. 656).
A situação autorizadora para a contratação temporária deve ser,
além de transitória, excepcional, aqui entendida como algo extraordinário.
O interesse público excepcional reside no atendimento de situações de
exceção, indispensáveis para a continuidade dos serviços públicos, sendo
certo que não há necessidade de estar relacionado apenas a serviços públicos
essenciais.
Gustavo Magalhães ressalta que “deve, portanto, ficar claro que a
noção de excepcional interesse público destina-se a atender a situações
relevantes e indispensáveis, mas que não serão necessariamente urgentes”
(2005, p. 182-183).
Conclui-se, assim, que o conceito de excepcional interesse público
está relacionado à satisfação de necessidade pública transitória, seja esta derivada
de atividade permanente, porém urgente, seja decorrente de atividade de
natureza transitória, que, por tal razão, não justifica a admissão de pessoal por
meio de cargos ou empregos públicos.
IV –
Desvirtuamento da contratação temporária
A Constituição de 1988 estabeleceu que a investidura em cargo ou
emprego público depende de prévia aprovação em concurso público de provas
ou de provas e títulos (art. 37, inciso II). Verifica-se que a rigidez na admissão
de pessoal tem por escopo a moralização do serviço público, de forma a atender
aos princípios previstos no caput do art. 37.
Entretanto, devido à dinâmica dos fatos que ocorrem na sociedade, o
constituinte ressalvou determinadas situações da regra geral prevista no inciso II
do art. 37, a exemplo da previsão contida no inciso IX do artigo antes referenciado.
O instituto em questão, como analisado anteriormente, permite ao administrador
público contratar pessoal para atender necessidade temporária de excepcional
interesse público, inclusive com dispensa da realização de processo seletivo,
em casos urgentes.
A contratação temporária de servidores possui importante função social,
visto que busca resguardar o interesse coletivo. Contudo, nota-se que tal
modalidade de contratação tem sido utilizada em situações nas quais o interesse
administrativo não se revela presente.
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
79
4.1 –
A contratação temporária no âmbito do Programa Saúde de
Família
Obviamente, a contratação temporária de servidores pode ocorrer
em todos os setores de atuação do Estado, mas é na área da saúde que se
concentra boa parte das contratações.
A Constituição define a saúde como direito de todos e dever do
Estado. A execução das ações e serviços de saúde cabe ao Poder Público, sendo
certo que a iniciativa privada participa de forma complementar do Sistema Único
de Saúde (SUS), o qual é financiado com recursos de todos os entes federativos,
tendo em vista sua descentralização (art. 198, inciso I, CR/88).
O governo federal, a quem cabe elaborar as diretrizes da política
nacional de atenção básica à saúde, criou, em 1994, o Programa Saúde da
Família (PSF), o qual possui como finalidade a produção de resultados positivos
nos indicadores de saúde e de qualidade de vida da população assistida, o que
denota seu caráter definitivo. Tal iniciativa é louvável e possui inegável cunho
social.
Contudo, a implementação do PSF em diversos municípios brasileiros
não vem respeitando as normas constitucionais e legais pertinentes à admissão
de pessoal.
De início, cumpre ressaltar que a execução do PSF constitui atividade
própria do Estado, de modo que sua terceirização não pode ser admitida, sob
pena de se transferir à iniciativa privada a execução de atividade finalística do
Estado. Cabe aos municípios, como gestores locais do SUS, a implementação e
execução operacional do PSF e também do PACS (Programa de Agentes
Comunitários de Saúde, outro programa de estratégia articulada nos três níveis
de governo), no âmbito de seu território, mediante convênio e repasse de
recursos financeiros pela União, através do Ministério da Saúde.
Adriano Mesquita Dantas, em artigo sobre o tema, registra que:
Sendo assim, temos que para a celebração do convênio e
a implantação e execução do PSF os Municípios, entre outras
obrigações, devem selecionar, contratar e remunerar os
profissionais que integram as equipes de saúde da
família e garantir a infra-estrutura e os insumos
necessários para as atividades das unidades de saúde
da família. (DANTAS, 2007).
Assim, o PSF está consolidado como atividade permanente da
Administração, não havendo que se falar em contratação temporária de
profissionais para a constituição das equipes de saúde.
80
MURIAÉ – MG
No tocante aos agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes de
combate às endemias (ACE), o §4º do art. 198 da Constituição da República,
incluído pela EC 51/06, prevê sua admissão pelos gestores locais do SUS mediante
processo seletivo público, sendo certo que o §5º reserva à lei federal, entre
outras coisas, a disciplina sobre o regime jurídico e regulamentação das atividades
acima citadas.
E a Lei n. 11.350/06, que regulamenta o §5º do art. 198 da CR/88,
determina que o exercício das atividades de ACS e ACE dar-se-á exclusivamente
no âmbito do SUS, mediante vínculo direto com os órgãos ou entidades de
direito público da Administração, estabelecendo que a contratação dos agentes
deverá ser precedida de processo seletivo público. Vale dizer, ao gestor local do
SUS compete dispor sobre a criação de cargos ou empregos necessários à
execução das atividades de ACS e ACE. O art. 8º da referida lei estabelece que
os ACS e ACE submetem-se ao regime celetista, observadas as disposições do
art. 10, salvo quando adotado regime jurídico diverso pelos Estados, Distrito
Federal ou Municípios, mediante lei local.
Importante disposição consta do art. 16 da Lei n. 11.350/06, que
veda expressamente a contratação temporária ou terceirização de ACS e ACE,
salvo hipótese de combate a surtos endêmicos, na forma da lei aplicável.
O argumento mais utilizado pelos administradores locais para a
utilização da contratação temporária na admissão de pessoal para atuar em
programas (os quais pressupõem início, desenvolvimento e finalização) como o
PSF é o fato de que os recursos para o custeio de mão-de-obra são repassados
pela União, não constituindo receita permanente. Ocorre que tais profissionais
são contratados para atuarem em programas que, na verdade, são ações
permanentes, eis que constituem medidas de política de saúde pública,
integradas, pois, ao SUS.
Sendo assim, não se justifica as contratações de profissionais, a título
precário, para atuarem nos referidos programas, eis que incorporados
definitivamente nas políticas públicas de saúde.
4.2 –
Competência jurisdicional
A jurisdição, como se sabe, é una e indivisível. Contudo, a função
jurisdicional do Estado costuma ser classificada em espécies. Dentre as
classificações, vale destacar aquela que leva em consideração a natureza da
pretensão deduzida em juízo, podendo ser penal ou civil, esta última definida
por exclusão. Outra forma de classificação divide a jurisdição em especial e
comum. A jurisdição especial atribui a certos órgãos jurisdicionais o julgamento
de causas de natureza determinada, sendo exercida pela Justiça do Trabalho,
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
81
Justiça Eleitoral e Justiça Militar. Já a jurisdição comum possui natureza residual,
visto que, salvo as demandas submetidas à jurisdição especializada, as demais
pretensões são submetidas aos órgãos da Justiça Comum, Estadual ou Federal,
conforme o caso.
Essa “divisão” da jurisdição se faz pelas regras de repartição de
competência entre os diversos órgãos que compõem o Poder Judiciário. Alexandre
Freitas Câmara traz excelente definição:
Assim sendo, pode-se definir a competência como o
conjunto de limites dentro dos quais cada órgão do Judiciário
pode exercer legitimamente a função jurisdicional. Em outras
palavras, embora todos os órgãos do Judiciário exerçam
função jurisdicional, cada um desses órgãos só pode exercer
tal função dentro de certos limites estabelecidos por lei. O
exercício da função jurisdicional por um órgão do Judiciário
em desacordo com os limites traçados por lei será ilegítimo,
sendo de se considerar, então, que aquele juízo é
incompetente (2010, p. 99-100).
A competência do juízo é um pressuposto processual intrínseco
indispensável à validade do processo.
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, no julgamento do RE 573.2029/AM, deixou escrito:
Como é definida a competência? A jurisdição é una, mas
sabemos que, ante a necessidade de racionalização, há
diversos segmentos. Como é definida a competência
considerada certa causa ajuizada? É definida a partir das
causas de pedir e dos pedidos formulados na inicial.
Procedência ou improcedência resolve-se em outro campo,
que não é o da competência.
O art. 114 da CR/88, em sua redação original, assim dispunha:
Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios
individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores,
abrangidos os entes de direito público externo e da
administração pública direta e indireta dos Municípios, do
Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da
lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho,
82
MURIAÉ – MG
bem como os litígios que tenham origem no cumprimento
de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.
Nota-se que o texto constitucional originário definia a competência
da Justiça do Trabalho, como regra geral, apenas para o julgamento das lides
decorrentes das relações empregatícias, o que excluía as demandas decorrentes
de relação de natureza administrativa.
Seguindo tal entendimento, a SDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho
editou a OJ n. 263, in verbis:
CONTRATO POR PRAZO DETERMINADO. LEI ESPECIAL
(ESTADUAL E MUNICIPAL). INCOMPETÊNCIA DA
JUSTIÇA DO TRABALHO. A relação jurídica que se
estabelece entre o Estado ou Município e o servidor
contratado para exercer funções temporárias ou de natureza
técnica, decorrente de lei especial, é de natureza
administrativa, razão pela qual a competência é da justiça
comum, até mesmo para apreciar a ocorrência de eventual
desvirtuamento do regime especial (CF/1967, art. 106; CF/
1988, art. 37, IX).
O entendimento consubstanciado na OJ n. 263 considerava, para
fins de fixação de competência, a natureza da relação jurídica travada entre o
Poder Público e o servidor temporário. Se a contratação tivesse como pano de
fundo o regime estabelecido em lei especial (administrativo, portanto), a
competência seria da Justiça Comum, mesmo para apreciar eventual alegação
de desvirtuamento e ilicitude contratual. Segundo tal corrente, ainda que o
contrato administrativo fosse nulo, por não se enquadrar como hipótese válida
de contratação temporária, isto não o transmudaria em um contrato de emprego,
de forma a atrair a competência da Justiça laboral.
Contudo, o TST, em 2004, cancelou a OJ acima transcrita, passando
a trilhar o entendimento do Pretório Excelso, o qual vinha decidindo, de forma
reiterada, que a competência material, em casos tais, seria decidida em função
da causa de pedir e do pedido. Por tal motivo, a SDI-1 do TST modificou a
redação da OJ n. 205, que passou a dispor o seguinte:
COMPETÊNCIA MATERIAL. JUSTIÇA DO TRABALHO.
ENTE PÚBLICO. CONTRATAÇÃO IRREGULAR. REGIME
ESPECIAL. DESVIRTUAMENTO
I - Inscreve-se na competência material da Justiça do
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
83
Trabalho dirimir dissídio individual entre trabalhador e ente
público se há controvérsia acerca do vínculo empregatício.
II - A simples presença de lei que disciplina a contratação
por tempo determinado para atender a necessidade
temporária de excepcional interesse público (art. 37, inciso
IX, da CF/1988) não é o bastante para deslocar a
competência da Justiça do Trabalho se se alega
desvirtuamento em tal contratação, mediante a prestação
de serviços à Administração para atendimento de
necessidade permanente e não para acudir a situação
transitória e emergencial.
Malgrado os posicionamentos divergentes na jurisprudência, o
entendimento predominante no Tribunal Superior do Trabalho passou a ser aquele
que considerava como competência material da Justiça do Trabalho as causas
instauradas entre servidor temporário e a administração pública, quando havia a
alegação de nulidade contratual em decorrência de desvirtuamento do art. 37,
IX, da CR/88.
A partir do entendimento acima esposado, a competência seria definida
exclusivamente pela pretensão deduzida em juízo. Caso o autor pleiteasse verbas
tipicamente trabalhistas (pedidos), fundadas numa relação de trabalho – ainda
que nula – com o Poder Público (causa de pedir), a Justiça do Trabalho seria
competente para apreciar a demanda, independentemente do rótulo jurídico
da relação travada entre as partes. A procedência ou não do direito material
vindicado seria matéria de mérito, inclusive a declaração de nulidade do contrato.
Lado outro, se os pedidos fossem de natureza administrativa, restaria patente a
competência da Justiça Comum.
Vale dizer, se a contratação referenciada se enquadrasse nas hipóteses
de validade do instituto, a competência seria da Justiça Comum, Estadual ou
Federal, se o regime adotado pelo ente não fosse o celetista. Caso o regime
adotado fosse o trabalhista ou a contratação fosse irregular, seja porque não
fosse o caso de contratação temporária, seja porque o contrato fora
indefinidamente prorrogado, a demanda atrairia a competência da Justiça
Trabalhista. Frisa-se, ainda que o vínculo formal fosse administrativo, uma vez
que o autor alegasse que a realidade fática descaracterizou o vínculo original,
poderia subsistir uma relação de natureza trabalhista, sendo o juiz do trabalho a
autoridade competente para reconhecê-la, em sede de mérito.
Posteriormente, a Emenda Constitucional n. 45, de 30/12/04, tal como
foi promulgada, deu a seguinte redação ao art. 114 da Constituição:
84
MURIAÉ – MG
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I - as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os
entes de direito público externo e da administração pública
direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal
e dos Municípios; [...].
Aparentemente, o intuito do Constituinte derivado foi o de ampliar a
competência material da Justiça do Trabalho para processar e julgar as causas
derivadas da relação de trabalho do servidor público (gênero). Por outro lado, a
nova redação do art. 114 em nada alterou o entendimento então firmado pelo
TST, no tocante aos servidores temporários, visto que, mesmo antes da
promulgação da referida Emenda, se a pretensão do autor fosse o deferimento
de verbas tipicamente trabalhistas fundadas em uma suposta relação de emprego
com o Poder Público, ainda que nula, conforme explicitado antes, a competência,
segundo o posicionamento dominante no TST, seria da Justiça do Trabalho.
Contudo, em 2005, o então ministro Nelson Jobim, do Supremo
Tribunal Federal, ao apreciar a ADI 3395/DF, ajuizada pela AJUFE (Associação
dos Juízes Federais do Brasil), concedeu medida cautelar suspendendo toda e
qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CR/88, com a redação
dada pela EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, “a
apreciação de causas que sejam instauradas entre o Poder Público e seus
servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter
jurídico-administrativo”.
A referida decisão monocrática, que é dotada de eficácia erga omnes
e efeitos ex tunc, deu interpretação conforme à Constituição ao dispositivo
mencionado, sendo certo que fora posteriormente referendada pelo pleno do
STF, estando a ADI ainda em tramitação na Corte constitucional.
A polêmica agora reside no alcance material da liminar concedida,
concernente à expressão “típica relação de ordem estatutária ou de caráter
jurídico-administrativo”. Para alguns, a relação jurídico-administrativa seria sinônima
de relação estatutária, de forma que estariam excluídas da competência da
Justiça do Trabalho apenas as ações ajuizadas por servidores ocupantes de cargos
efetivos ou em comissão. Assim, as demandas instauradas entre o Poder Público
e os servidores temporários continuariam na esfera material da Justiça laboral.
Ao inverso, a prevalecer a tese de que a relação de ordem estatutária difere da
relação de caráter jurídico-administrativo, ambas estariam sujeitas à competência
da Justiça Comum, estadual ou federal, a depender do ente público. O último
entendimento parece ser o que melhor se coaduna com o ordenamento jurídico,
visto que toda relação estatutária possui caráter jurídico-administrativo, mas nem
toda relação jurídico-administrativa é estatutária.
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
85
Cabe destacar a análise de mérito do recurso extraordinário n. 573.2029/AM (Rel. min. Ricardo Lewandowski, julg. 21/08/08). O Supremo Tribunal
Federal reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional
suscitada no recurso, declarando a competência da Justiça Estadual Comum
para dirimir conflitos de relação jurídico-administrativa entre o Poder Público e
seus servidores.
Vale citar, pelo conteúdo didático, trecho do voto do exmo. ministro
Carlos Britto no julgamento do RE 573.202-9/AM, alhures mencionado:
Portanto, o meu ponto de vista é saber se, no caso concreto,
a lei criou um regime especial de proteção jurídica. Se
criou, o contrato é de Direito Administrativo, a definir a
competência da Justiça Comum – fica excluída a Justiça do
Trabalho. Se a lei silenciou, não protegeu por nenhum modo
o recrutado, a competência é da Justiça do Trabalho.
Mais adiante, ainda no julgamento do recurso acima mencionado,
sustentando tese contrária, o ministro Cezar Peluso deixou assentado que, ainda
que se aplique o regime celetista aos servidores temporários, por expressa
disposição legal, isso não desnatura a natureza da relação jurídica que o Poder
Público trava com o servidor. Segundo tal posicionamento, a relação jurídica,
ainda que sob o manto celetista, continuaria ostentando o caráter jurídicoadministrativo, revelador da preponderância do interesse público. Dessa forma,
a relação entre o Poder Público e seus servidores seria sempre de caráter jurídicoadministrativo, não importando o regime jurídico aplicável, de modo que caberia
à Justiça Comum solucionar as controvérsias oriundas de tais relações.
Importante mencionar, ainda, que o TST, no intuito de alinhar sua
jurisprudência com a do STF, cancelou a OJ n. 205 em 2009. Vale transcrever
ementa de recente decisão em recurso de revista da Corte Trabalhista:
RECURSO DE REVISTA. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA
DO TRABALHO. CONTRATAÇÃO EM CARÁTER
TEMPORÁRIO. REGIME ESPECIAL. I – De acordo com a
interpretação dada pelo Supremo Tribunal Federal ao art.
114 da CF/88, causa instaurada por servidor temporário
contratado pelo ente público por regime especial sempre
está no âmbito de competência da Justiça Comum, ainda
que haja discussão sobre eventual irregularidade na
contratação administrativa entre trabalhador e ente público
ou sobre FGTS. II – Por isso, o Tribunal Superior do Trabalho
86
MURIAÉ – MG
cancelou a Orientação Jurisprudencial nº 205 da SBDI-1 e
alinhou sua jurisprudência com a consolidada na Suprema
Corte. III – Assim, prevalece nesta Corte Superior o
entendimento de que o julgamento de litígio entre
servidores temporários e a administração pública, mesmo
que se discuta eventual nulidade da contratação
administrativa, não pode ser processado perante a Justiça
do Trabalho, pois tal hipótese afronta o comando inserido
no art. 114, I, da CF/88. IV – Diante do exposto, declarase a incompetência desta Justiça do Trabalho para apreciar
e julgar a presente causa e determina-se o encaminhamento
dos autos para a Justiça Comum Estadual. Prejudicado o
exame das demais matérias veiculadas no recurso de revista.
Recurso de revista a que se dá provimento (RR
10900.93.2008.5.08.0105, Rel. min. Fernando Eizo Ono,
4ª Turma, DEJT 28/06/10).
Não obstante a intensa divergência, dentro do próprio STF, acerca do
significado jurídico da expressão “caráter jurídico-administrativo”, o presente
estudo adota o entendimento de que a definição da competência deve ser feita
em função da natureza da relação jurídica entre Estado e servidor, restando na
seara de competência da Justiça do Trabalho apenas as demandas em que
figurem servidores vinculados ao Estado por regime trabalhista, ainda que
temporários, desde que a lei autorizativa da contratação temporária disponha
expressamente sobre a aplicação do regime celetista ou seja silente quanto ao
regime funcional dos servidores temporários.
Assim, nos casos em que o Poder Público admite servidores para
atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público, com
base em lei autorizativa que estabelece regime jurídico-administrativo para seus
servidores, a relação jurídica terá nítido caráter administrativo. E tal natureza
administrativa permanece ainda que a contratação seja considerada inválida, ou
seja, o vínculo que era originalmente administrativo não se transforma em
trabalhista pela simples declaração de nulidade da contratação, de modo que a
competência permanece com a Justiça Comum em tais casos.
Importante ressaltar, como analisado no tópico sobre regime jurídico
único, a decisão do STF que deferiu parcialmente o pedido de medida cautelar
na ADI 2135 MC/DF (Relator min. Néri da Silveira, Relatora para acórdão min.
Ellen Gracie, Julg. 02/08/07). Referida decisão suspendeu a eficácia do caput
do art. 39 da Constituição de 1988, com a redação que lhe foi dada pela EC n.
19/98, ensejando o retorno de sua redação original, a qual prevê a obrigatoriedade
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
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de instituição de regime jurídico único para os servidores de cada pessoa política,
no âmbito de sua competência.
A prevalecer o entendimento que apregoa que o regime jurídico deve
possuir natureza administrativa, a controvérsia acerca da competência, sob tal
ângulo, em tese, restaria superada, uma vez que, adotando a pessoa política o
regime jurídico-administrativo, seria ele aplicável a todos os seus servidores, de
sorte que as controvérsias advindas das relações funcionais seriam da competência
da Justiça Comum.
Contudo, como ressaltado por José dos Santos Carvalho Filho (2010),
o regime deve ser único, seja estatutário ou trabalhista. Ademais, a unicidade
de regime jurídico alcançaria apenas os servidores permanentes, de modo que
aos servidores temporários aplicar-se-ia o dito “regime especial”, assim
considerado por suas peculiaridades, em contraposição ao regime comum, este
sim único.
Portanto, segundo tal posicionamento, cada ente federativo tem a
prerrogativa de escolher o regime jurídico de seus servidores temporários,
podendo adotar o regime administrativo ou o celetista, sendo da Justiça do
Trabalho a competência para apreciar as demandas ajuizadas por servidores
deste último regime.
4.3 –
Responsabilização da autoridade responsável pela contratação
irregular
Em clara ofensa ao texto constitucional, maus administradores públicos
estão a utilizar a contratação temporária como meio de burlar a exigência
constitucional do concurso público e, assim, favorecer apaniguados. Trata-se, a
bem da verdade, de conduta que revela desvio de finalidade, bem como afronta
diretamente os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência,
visto que o Poder Público deixa de selecionar os melhores profissionais para
favorecer, na maior parte dos casos, apadrinhados políticos.
Outrossim, tal prática ofende a dignidade da pessoa humana e o
valor social do trabalho, uma vez que traduz-se em precarização do vínculo
Estado-servidor.
O desvirtuamento em epígrafe ocorre quando efetiva-se a contratação
temporária para atividade de natureza permanente, fora de situações urgentes.
Ocorre também quando há cargos ou empregos a serem providos, com concurso
público vigente, e a Administração, ignorando tal fato, contrata agentes
temporários para suprir a demanda por mão-de-obra. Vale citar, ainda, a hipótese
de contratação temporária derivada de atividades transitórias não urgentes,
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MURIAÉ – MG
situação em que o Poder Público poderia – e deveria – realizar processo seletivo
e não o faz.
Em todas as situações citadas acima, evidente está, como dito alhures,
a ilegalidade da atuação administrativa, devendo ser reconhecida a nulidade da
contratação e consequente responsabilização da autoridade administrativa
responsável pela contratação, nos termos do §2º do art. 37 da Constituição da
República.
Tal conduta caracteriza, em tese, ato de improbidade administrativa,
na forma do art. 11 da Lei n. 8.429/92, que dispõe: “Constitui ato de improbidade
administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer
ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade,
e lealdade às instituições, e notadamente: [...]”.
O objetivo do legislador foi preservar os princípios constitucionais
norteadores da administração pública. Ao discorrer sobre o dispositivo acima
citado, José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 1182) assevera que:
Na análise do dispositivo, merece destaque o fato de a
ofensa a princípios caracterizar-se como ato de improbidade
administrativa, com o que se refugiu à clássica noção de
que somente o enriquecimento ilícito e os atos danosos ao
erário seriam idôneos para caracterizá-la”. O ilustre autor
acrescenta: “o pressuposto exigível é somente a vulneração
em si dos princípios administrativos. Conseqüentemente,
são pressupostos dispensáveis o enriquecimento ilícito e o
dano ao erário.
No mesmo sentido, vem se manifestando o Superior Tribunal de
Justiça ao julgar ações ajuizadas pelo Ministério Público:
No que concerne à inexistência de dano ao erário e à
ausência de enriquecimento ilícito por parte da recorrente,
pacífico no Superior Tribunal de Justiça entendimento
segundo o qual, para o enquadramento de condutas no
art. 11 da Lei n. 8.429/92, é despicienda a caracterização
do dano ao erário e do enriquecimento ilícito (AgRg no
REsp 1143484/SP, Segunda Turma, Rel. min. Mauro
Campbell, julgado em 6.4.2010, DJe 16.4.2010).
Isto é: “o simples fato de a conduta do agente não ocasionar
dano ou prejuízo financeiro direto ao Erário não significa
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
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que seja imune a reprimendas, nos termos dos arts. 11,
caput, e 12, III, da Lei 8.429/92” (REsp 1143815/MT, Rel.
min. Herman Benjamin, julgado em 6.4.2010, DJe
20.4.2010). (REsp 1.191.095/SP, Rel. min. Humberto
Martins, julgado em 31.05.2010, DJe 16.06.10).
Quanto ao elemento subjetivo para a caracterização de ato de
improbidade administrativa, o STJ, ao apreciar o Recurso Especial n. 909.446 RN (1ª Turma, Rel. min. Luiz Fux, julgado em 06.04.2010, DJe 20.04.2010),
assentou que deve ser comprovada a má-fé do administrador público para a
configuração da lesão prevista no art. 11 da Lei n. 8.429/92. Se a conduta da
autoridade administrativa não for dolosa, poderá enquadrar-se como infração
funcional, passível de correção administrativa, mas não configurará ato de
improbidade.
Não obstante o entendimento do STJ quanto à exigência de má-fé,
não se pode negar que o simples fato de o administrador público não observar
as mais elementares regras de direito público, demonstrando despreparo para a
gestão da coisa pública, denota que sua conduta revela mais do que uma mera
irregularidade, mas sim verdadeiro ato de improbidade, por atentar contra os
princípios basilares da administração pública. No julgamento do Recurso Especial
n. 1.191.095, mencionado alhures, o ministro Humberto Martins, do STJ, citando
trecho do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, deixou escrito:
Quanto ao dolo, salta aos olhos a sua caracterização pelo
Tribunal a quo, grifo e sublinho: ‘A violação decorre do uso
abusivo que o Prefeito Municipal fez da lei que autorizava a
contratação sem concurso público em hipóteses
excepcionais, utilizando-a como mecanismo rotineiro de burla
à Constituição Federal e sua principiologia. Tanto assim que
não se cuido de realizar nenhum concurso público ou, ao
menos, estabelecer um cronograma de concursos, conforme
a disponibilidade orçamentária. (...) a própria sentença
monocrática reconheceu que as contratações temporárias
apenas objetivaram burlar a exigência do concurso público.
O artifício pelo Agente Político consistia em aplicar o
dispositivo autorizador da contratação que ultrapassasse
cento e vinte dias, de modo a eternizar o vínculo. (fl. 1.865).
(...) Induvidoso, portanto, que o réu violou a Constituição
e seus princípios, notadamente a igualdade, a finalidade,
a impessoalidade e a moralidade administrativa e o fez
90
MURIAÉ – MG
de modo absolutamente escancarado. Pouco importa
aqui o elemento subjetivo que o animou , embora custe
crer que o Prefeito Municipal de importante cidade
localizada em região altamente desenvolvida do Estado
de São Paulo, não tivesse a exata dimensão de sua ação”
Em arremate, o réu violou, e de modo grave a
Constituição Federal e seus princípios, caracterizando-se
sua conduta como de improbidade administrativa.’ (fl.
1.863-1.867).
Assim, revela-se de suma importância a atuação do Ministério Público,
seja por meio de termos de ajustamento de conduta (TAC) com os entes públicos,
seja ao ajuizar ação civil pública para coibir as contratações temporárias irregulares,
na forma do art. 129, inciso III, da Constituição da República. A utilização do
permissivo constitucional contido no inciso IX do art. 37 como meio de burlar a
regra geral do concurso público configura lesão aos direitos coletivos, haja vista
que toda a coletividade é prejudicada quando o gestor público utiliza de forma
abusiva o instituto da contratação temporária.
Igualmente importante é a atuação dos Tribunais de Contas, por meio
de fiscalização ou análise das prestações de contas dos entes públicos, de modo
a averiguar as reais condições das contratações temporárias e, caso constate
irregularidades, aplicar as sanções pertinentes aos agentes públicos.
4.4 –
Direitos assegurados ao servidor temporário
A contratação temporária de servidores, como visto em tópico próprio,
está prevista no texto constitucional como medida extraordinária, com o objetivo
de assegurar a continuidade da atividade estatal em situações temporárias de
excepcional interesse público. E, como tal, deve atender aos requisitos traçados
no art. 37, IX, da Constituição da República, quais sejam: a) previsão em lei
local; b) contratação por prazo determinado; c) atendimento de necessidade
temporária; d) caráter de excepcional interesse público. Todos os requisitos em
referência foram analisados anteriormente.
Uma vez descaracterizada a situação autorizativa da contratação
temporária, impõe-se o reconhecimento da nulidade contratual, sob pena de
afronta à ordem constitucional, nos termos do art. 37, §2º, o qual prevê a
nulidade do ato e conseqüente punição da autoridade administrativa.
Questão interessante diz respeito aos direitos do servidor em exercício de
função pública, designado em caráter precário, quando do rompimento de
seu vínculo funcional com o Estado.
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
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Segundo o pretérito entendimento do Tribunal Superior do
Trabalho, hoje superado pelas recentes decisões do Supremo Tribunal
Federal, uma vez declarada a nulidade da contratação temporária, ainda
que fosse ela fundada em regime de natureza jurídico-administrativa, o
vínculo original se transmudaria num vínculo trabalhista, embora nulo, por
afronta ao disposto no art. 37, II, da CR/88. Assim, o servidor temporário,
uma vez rompido o vínculo, faria jus apenas aos salários (em sentido estrito)
e aos depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço. A Súmula 363
do C. TST consolidou tal entendimento:
CONTRATO NULO. EFEITOS (nova redação) - Res. 121/
2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003 A contratação de servidor
público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso
público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º,
somente lhe conferindo direito ao pagamento da
contraprestação pactuada, em relação ao número de horas
trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo,
e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.
No mesmo sentido, o art. 19-A da Lei n. 8.036/90, incluído pela
Medida Provisória n. 2.164-41, de 2001: “Art. 19-A. É devido o depósito do
FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado
nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2o, da Constituição Federal, quando
mantido o direito ao salário.”
O entendimento consubstanciado na Súmula 363 do C. TST parece
atentar contra a própria ordem constitucional, haja vista que beneficia o Poder
Público, responsável pela contratação irregular, em detrimento do servidor. Como
bem observa Gustavo Magalhães (2005, p. 261):
Como já foi dito, se houve má-fé do trabalhador, ele deve
ser penalizado, tanto no plano cível quanto no plano
criminal. O ponto central da discussão aqui trazida à tona é
que vem sendo presumida a má-fé do trabalhador ao se
indeferir as parcelas remuneratórias.
Resta claro que, dessa forma, o Poder Judiciário vem conferindo maior
relevância à supremacia do interesse público, não observando, em sua máxima
dimensão, a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho,
fundamentos da República (art. 1º, III e IV, da CR/88). Em que pese a importância
da proteção do interesse público, não se pode negar que a valorização do
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MURIAÉ – MG
trabalho humano deve ser prestigiada, de forma a garantir a harmonia da ordem
constitucional vigente.
Recentemente, considerando o posicionamento ora trilhado pelo
STF, o TST consolidou sua jurisprudência no sentido de que cabe à Justiça
Comum apreciar as causas instauradas entre servidor temporário e Estado,
fundadas em regime especial, previsto em lei local. Dessa forma, ainda
que se discuta eventual nulidade da contratação administrativa temporária,
isso não altera a natureza jurídica do vínculo Estado-servidor, tampouco a
competência jurisdicional.
Assim, uma vez reconhecida a nulidade da contratação, haja vista
não estarem presentes os pressupostos autorizadores para a utilização do instituto
em questão, resta analisar os direitos assegurados ao servidor temporário, na
condição de agente de fato.
Antes de passar ao exame das conseqüências jurídicas da declaração
de nulidade contratual, importante destacar que o art. 1º da Constituição Federal
elenca a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho como
fundamentos da República. O trabalho humano também mereceu destaque no
caput do art. 170, como fundamento da ordem econômica e no art. 193, o qual
estabelece o primado do trabalho como base da ordem social.
Bem de ver que a nulidade advinda de disposição constitucional é
absoluta, operando efeitos ex tunc, ou seja, retroativos à data de constituição
do ato viciado. Justo por isso, sendo nulo o vínculo jurídico entre Estado e
servidor, não haveria, em tese, o direito ao recebimento de verbas decorrentes
do contrato quando de sua anulação, visto que, segundo a doutrina tradicional,
ato nulo não gera direitos ou obrigações, devendo as partes restituirem-se
mutuamente, retornando ao estado anterior.
Entretanto, tratando-se de prestação de serviços, torna-se impossível
a restituição ao agente temporário da força de trabalho despendida em prol do
Poder Público, o qual, importante frisar, foi o responsável pela contratação irregular
e conseqüente nulidade contratual. Dessa forma, a nulidade em apreço operaria
efeitos ex nunc, devendo o julgador pautar-se pelos princípios da boa-fé objetiva
e da primazia da realidade, conferindo ao agente público de boa-fé o
recebimento de verbas salariais e complementares, como gratificação natalina
e férias acrescidas do terço constitucional, observando-se o regime jurídico
formalmente adotado.
Vale dizer, se a contratação temporária funda-se em regime de caráter
jurídico-administrativo, não se aplica ao agente temporário, mesmo em situação
irregular, os direitos assegurados aos trabalhadores em geral, a exemplo do
FGTS, mas sim os direitos previstos para os servidores públicos no art. 39,
§3º, da CR/88.
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
93
O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais vem adotando tal
posicionamento, conforme se depreende das ementas abaixo transcritas:
AÇÃO DE COBRANÇA - SERVIDOR CONTRATADO SEM
CONCURSO - VERBAS SALARIAIS - CONTRATAÇÃO
TEMPORÁRIA IRREGULAR - BOA-FÉ OBJETIVA AFASTAMENTO DO ENUNCIADO 363 DO TST - DEVIDAS
AS PARCELAS SALARIAIS. O contrato de trabalho celebrado
entre a administração pública e o administrado deve aterse às regras insculpidas no artigo 37, II e IX da Constituição
Federal. No caso de contratação irregular, os efeitos do
vício serão observados ‘ex nunc’, pelo que tendo sido
despendida a força de trabalho do empregado fará jus às
parcelas anteriormente acordadas, e garantidas por lei, como
salário dos dias trabalhados e verbas remuneratórias,
indenizatórias e rescisórias. O princípio da boa-fé objetiva
deverá ser respeitado, vedado à administração pública alterar
os contornos do acordo anteriormente traçado com fins de
obter vantagem da sua própria torpeza. (Apelação Cível nº
1.0684.08.004208-9/001, 1ª Câmara Cível, Rel. DESª
Vanessa Verdolim Hudson Andrade, julgado em 07.07.09,
pub. 24.07.09).
APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO ADMINISTRATIVO SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL - FUNÇÃO PÚBLICA CONTRATAÇÃO TEMPORÁRIA - EXCEPCIONALIDADE CARÁTER ADMINISTRATIVO - COMPETÊNCIA DO
PODER JUDICÁRIO ESTADUAL - QUESTÕES DECIDIDAS
PELO STF - COBRANÇA DE VERBA RESCISÓRIA DE
NATUREZA TRABALHISTA - FGTS - IMPROCEDÊNCIA MANUTENÇÃO. Incabível reabrir discussão quanto à
natureza do contrato temporário de trabalho firmado entre
o particular e o Poder Público, se o STF, órgão judiciário
máximo do País, concluiu pelo nítido caráter administrativo,
e, por conseguinte, estabeleceu a competência do Poder
Judiciário Estadual para dirimir a controvérsia relativa à verba
rescisória pleiteada. Aos servidores públicos são devidos os
direitos previstos no art.7º da Constituição da República
que estejam elencados em seu §3º, do art. 39, dentre os
quais não está inserido o “”fundo de garantia do tempo de
94
MURIAÉ – MG
serviço”. (Apelação Cível nº 1.0145.09.509682-5/001, 4ª
Câmara Cível, Rel. DES. José Francisco Bueno, julgado em
02.07.09, pub. 21.07.09).
O entendimento acima esposado, alicerçado nos princípios da boa-fé
e da segurança jurídica, busca a harmonia entre a supremacia do interesse
público e a proteção do trabalho humano. Gustavo Magalhães (2005, p. 265),
discorrendo sobre o tema, assentou:
[...] a Constituição Federal de 1988 só será obedecida em
sua plenitude, considerando os vários ângulos analisados
no presente trabalho, se forem pagos aos servidores de
fato, que agiram de boa-fé, todas as parcelas remuneratórias
devidas, tais como férias, décimo terceiro salário, horas
extras, e demais adicionais e gratificações, além das
contribuições previdenciárias devidas.
Portanto, tratando-se de contratação temporária irregular, impõe-se a
declaração de nulidade contratual, assegurando-se ao servidor de fato, que agiu
de boa-fé, os direitos mínimos constitucionalmente previstos para toda a
categoria, em observância à proteção do trabalho humano, com a consequente
responsabilização da autoridade responsável por sua contratação.
Considerações finais
A Constituição de 1988 trouxe importantes inovações na sistemática
de admissão de pessoal pelo Poder Público. Garantiu a ampla acessibilidade aos
cargos, empregos e funções públicas, consagrando, de igual modo, a exigência
de prévia aprovação em concurso público para a investidura em cargo ou emprego
público. Tal exigência garante a observância dos princípios constitucionais
norteadores da administração pública, insculpidos no caput do art. 37 da
Constituição, visto que, além de ser o concurso público um instrumento impessoal
de seleção, é baseado no sistema meritório, de modo que revela-se um eficiente
meio para o recrutamento dos melhores profissionais para o serviço público.
Considerando a dinâmica da rotina administrativa e a necessidade de
continuidade dos serviços públicos, o texto constitucional, acertadamente,
ressalvou a contratação temporária de servidores para atendimento de necessidade
de excepcional interesse público. Para tanto, estabeleceu requisitos que autorizam
a referida contratação, nos termos do inciso IX do art. 37 da Carta Política.
REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – V. 7, N. 1, Jan.-Dez. de 2011
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A partir do levantamento realizado no presente estudo, constata-se
que as contratações temporárias irregulares são comuns nos quadros da
Administração, a exemplo do que ocorre na área da saúde em todo o país. Bem
de ver que condutas tais afrontam diretamente o ordenamento jurídico e não
devem ser chanceladas pelo Poder Judiciário, visto que não observam os
pressupostos fáticos estabelecidos no texto constitucional para o recrutamento
excepcional.
Quanto à competência para apreciar litígios envolvendo servidores
temporários, matéria outrora polêmica, o STF assentou que controvérsias oriundas
das relações de caráter jurídico-administrativo devem ser processadas e julgadas
pela Justiça Comum, Estadual ou Federal, conforme o ente contratante.
Embora não haja consenso quanto ao alcance da expressão “caráter
jurídico-administrativo”, deve-se entender como tal o vínculo baseado em lei
específica reguladora do regime “especial”, ou seja, se a lei que autoriza a
contratação temporária avança na disciplina dos direitos e deveres dos servidores
ou faz remissão a determinadas disposições estatutárias, patente está a natureza
administrativa da relação Estado-servidor, ainda que haja alegação de nulidade
da contratação, o que revela a competência da Justiça Comum. Por outro lado,
se a lei reguladora for omissa quanto ao regime jurídico aplicável aos servidores
ou estabelecer expressamente o regime celetista, a competência será da Justiça
do Trabalho. Bem de ver que o caput do art. 39 da CR/88 teve sua eficácia
suspensa por decisão do STF, o que reabre a discussão acerca da expressão
“regime jurídico único”. Contudo, deve ser considerado que o regime jurídico
aplicável aos servidores temporários possui natureza especial, não se enquadrando
no conceito de regime jurídico único, o qual, segundo autorizada doutrina,
refere-se ao regime comum dos servidores permanentes.
Infelizmente, o instituto em questão vem sendo utilizado de forma
fraudulenta por muitos gestores públicos, que encontraram na contratação
temporária um eficiente meio para burlar a exigência constitucional do concurso
público e, assim, prestigiar seus apaniguados políticos.
Dessa forma, revela-se de suma importância a atuação do Ministério
Público e dos Tribunais de Contas, bem como da própria sociedade, de forma a
coibir o desvirtuamento das contratações temporárias e, conseqüentemente,
proteger o interesse público da má gestão administrativa, com a adequada punição
dos agentes responsáveis pelas mencionadas contratações irregulares.
Referências
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de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
96
MURIAÉ – MG
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Janeiro: Forense, 2007.
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