POE: elogio da fico, autoria dissimulada

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POE: elogio da fico, autoria dissimulada
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ELOGIO DA FICÇÃO, AUTORIA DISSIMULADA: UMA HIPÓTESE SOBRE
ARTHUR GORDON PYM
Luciene Azevedo
Resumo: Estudos recentes, inclusive no Brasil, têm apontado para o caráter formativo das investidas
ficcionais de Poe em relação ao público leitor ainda pouco familiarizado com os novos gêneros literários. Se já se tornou lugar comum afirmar que Poe é o inventor do conto moderno, que dizer da
forma romance, cuja única investida romanesca é considerada por outro escritor-crítico, Henry James, como fracassada? A hipótese que gostaríamos de testar neste ensaio diz respeito à possibilidade
de ler A narrativa de A. Gordon Pym como um jogo que considera uma intrincada negociação com o
horizonte de expectativas dos leitores do séc. 19 em relação à própria natureza do romance como
gênero ficcional. A aposta, feita pelo narrador-testemunha, no jogo entre garantir a verossimilhança
e exercitar-se na sua retórica, para lembrar a formulação de Silviano Santiago, funda o pacto pela
“suspensão da descrença” no qual o leitor se vê enredado, à revelia de sua vontade de verdade. Se
pudermos apostar que Poe está negociando com sua audiência a legitimação de um gênero, poderemos ler o relato de aventura como uma intrincada engenharia que faz o elogio da ficção.
Palavras-chave: A. G. Pym · romance · realismo
Abstract: The hypothesis that we would like to test in this assay refers to the possibility to read The
Narrative of A. Gordon Pym as a game that considers an intricate negotiation with the horizon of
expectations of the readers of the 19th century in relation to the proper nature of the romance as
fictional. If we are able to bet that Poe is negotiating with its hearing the legitimization of a sort, we
will be able to read the story as an intricate engineering that makes the compliment of the fiction.
Keywords: A. G. Pym · novel · realism
Em “Poe, Machado e Borges, não nessa ordem”, L. A. Fischer aposta na hipótese de que
essa trinca de autores é responsável, cada um a seu modo e respeitando-se as particularidades de inserção no sistema intelectual de seus países, por um papel formativo de seu público
leitor. 1 Foi lendo esse ensaio que nasceu a hipótese que gostaria de desenvolver aqui.
A ideia de formação no ensaio de Fischer é tributária da noção de sistema literário desenvolvida por Antonio Candido em sua Formação da literatura brasileira e supõe, como é
largamente sabido, a consolidação dos elementos considerados fundamentais para a circulação da literatura: autor, obra e público. Descartando a correlação entre a formação desse
sistema e o compromisso com a configuração da identidade nacional, tal como pressupunha Candido para o contexto brasileiro, Fischer reconhece não ser esse o panorama nos
Estados Unidos no momento em que Poe escreve. Ainda assim, insiste que a investida experimental em um novo gênero, o conto, demonstraria aguçado senso de percepção de Poe
para os novos modos de circulação da literatura e suas relações com a incipiente tradição
local. Aproveitando-me dessa perspectiva gostaria de ampliá-la para testar a hipótese de
Poe exercer essa função formativa não em relação ao conto, gênero do qual se tornou precursor, mas em relação ao único romance ao qual se arriscou como ficcionista: A narrativa
1
FISCHER. Machado e Borges e outros ensaios sobre Machado de Assis, p. 97-128.
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de Arthur Gordon Pym. Na ficção longa, Poe teria encontrado o desafio de constituir as bases para a legitimidade da forma do romance visando a um público cujo horizonte de expectativas tateava em relação à aceitação da ficcionalidade do gênero. Estendendo o mesmo
apuro formal e consciência crítica devotados à forma do conto à experimentação com a
forma romanesca, Poe quer arriscar-se a delinear um gênero, fundando uma tradição, e, ao
mesmo tempo, quer arrebanhar leitores, formar um público, negociando uma solução formal capaz de provocar interesse e atenção. Assim, à revelia do próprio Poe, que considerou
sua tentativa um fracasso, qualificando seu próprio livro de “a very silly book”, e da crítica
severa de Henry James para quem “the imaginative effort wasted”, a hipótese aqui desenvolvida aposta que A narrativa de Arthur Gordon Pym dramatiza o horizonte de expectativas do leitor americano do início do século 19 em relação ao gênero romanesco e que por
trás da aparente diluição da forma, há uma intrincada engenharia que pretende driblar as
restrições do horizonte histórico. Nesse sentido, o procedimento de Poe é muito próximo
ao das estratégias machadianas de garantir verossimilhança a um público acostumado à
retórica sincera dos narradores e pouco inclinado às gingas de capoeira 2 e aos piparotes ao
leitor. Consciente disso, Machado faz às vezes de um hábil negociador que tanto alenta
quanto fustiga, fazendo uso de uma dicção de ‘luvas de pelica’ devidamente acompanhada
pela distribuição de piparotes. A marca ambígua da autoria machadiana estaria ainda mais
dissimulada em Poe.
DOS FATOS PROSAICOS AOS MAIS ALTOS VOOS DA IMAGINAÇÃO 3
É importante ressaltar as dificuldades de legitimação do romance nos séculos 17 e 18. É
o próprio Antonio Candido quem se refere a esse panorama creditando à forma uma timidez envergonhada em consequência dos imperativos que tentavam delinear o surgimento
da novidade, impondo-lhe um padrão de funcionamento. A referida timidez diria respeito à
necessidade paradoxal de o romance “negar sua ficcionalidade fingindo um conteúdo de
verdade”. 4 Claro, é preciso guardar as devidas diferenças em relação ao momento em que
Poe escreve. Os imperativos morais e religiosos que marcavam a concepção clássica de representação e impunham o estreito limite do “divertir-edificar-instruir” para a ficção, já
tinham sido substituídos pela supremacia da razão e do verdadeiro:
a moral – desde a mais elevada até o conformismo banal e a obediência aos costumes; a verdade – religiosa, filosófica, metafísica – todas essas categorias extravagantes tornam-se outros
tantos “tribunais” perante os quais o romance é incessantemente julgado (e às vezes efetivamente, como mostra a história dos grandes processos). Nunca o romance gozou oficialmente
da liberdade que é e permanece, não obstante, seu patrimônio. Pois as diversas escolas que
se esforçam por ‘libertá-lo’ só fazem no final das contas substituir um tribunal considerado
caduco por outro mais moderno. 5
2
Imagem utilizada por Costa Lima para caracterizar o estilo machadiano. COSTA LIMA. Machado:
mestre de capoeira. p. 334 -335.
3
CARRINGER. Circumscription of space and the form of Poe’s Arthur Gordon Pym, p. 514. Tradução
minha.
4
VASCONCELOS. A formação do romance inglês: ensaios teóricos, p. 36.
5
ROBERT. Romance das origens, origens do romance, p. 22.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 175-182.
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No momento em que Poe escreve, o panorama por certo é distinto, no entanto a submissão à realidade e ao verdadeiro substituem a antiga tríade propulsora da timidez do romance. É a persistência desse controle sobre o ficcional 6 que torna necessário à literatura justificar-se e, não raras vezes, seus autores se veem obrigados a enxertarem na sua obra um
máximo de não-literatura”. 7 Tal perspectiva é agravada pelo surgimento do romance: “ Se
passarmos da literatura da imaginação, em geral, para o caso restrito da literatura de ficção
em prosa, veremos que o problema se agrava, por tratar-se de um gênero que não possuía
dignidade teórica aos olhos da opinião erudita”. 8
Nossa hipótese acredita que a ampliação e alfabetização do público leitor em escala
ampla em fins do século 19 nos Estados Unidos não tornaram as coisas mais fáceis para
quem se dedicava à ficção. Controlado pela exigência de verossimilhança, que supunha
adequação ao verdadeiro, ao plausível, Poe esforça-se para tensionar a convivência entre o
livre jogo com a imaginação e a validade realista da história que conta. Poe inverte o mecanismo do paradigma moralizante que autorizava a literatura a “narrar a própria verdade
com ar de quem está contando histórias”. 9 Se seus leitores exigem a representação da verdade, Gordon Pym só pode contar histórias. Aí começa a dissimulação: o leitor sequioso de
verdade, engole sem perceber a imaginação por estar devidamente disfarçada e justificada
no romance. Poe reverte a “autonegação do romance” e inverte os pólos: a vontade de real e
o apelo ao verídico são um disfarce acessório para servir à ficção e conduzir até ela.
Contra o pano de fundo da “utilidade” dos prefácios como orientadores de leitura para
os romances do século 18, usados como recurso para a produção do sentimento de verdade
que devia acompanhar as peripécias do herói, o prefácio que abre a narrativa de Gordon
Pym é uma demonstração de que Poe tem em mente a conquista de um difícil equilíbrio
entre a exigência dos leitores pelo verossímil e o jogo com a ficção. Prova disso é a reiterada busca do narrador por dar prova de verdade e validar seu testemunho em contraposição
à impossibilidade de atestar o acontecido.
A voz que fala no prefácio dá a saber aos leitores as hesitações que adiaram o conhecimento da narrativa pelo público:
Uma consideração que me detinha era que, não tendo mantido um diário durante a maior
parte do tempo em que estive fora, eu temia não ser capaz de escrever, de simples memória,
um relato tão minucioso e concatenado que tivesse a aparência daquela realidade da qual ele
seria verdadeiramente possuidor, contendo apenas o natural e inevitável exagero a que todos
6
A expressão alude ao primeiro livro que compõe a Trilogia do controle escrita por Costa Lima, O
controle do imaginário (1984) refere-se à sofisticada e intrincada hipótese de seu autor que aqui corro o risco de simplificar ao extremo: considerando-se a concepção clássica de representação, a desestabilização de um mundo cujo centro orientador era a religiosidade reivindicava para sua normalização regras que domesticassem a correspondência com modelos pré-estabelecidos cuja semelhança
com a realidade funciona como norma de regulação para a imaginação. O privilégio do decoro, da
retórica e da adequação ao modelo relegaria a imaginação a um segundo plano. A prevalência de
uma racionalidade ainda sob viés religioso se desdobraria no apreço ao fato e ao documento como
reverência à verdade, inaugurando a modernidade. O parâmetro hegemônico da racionalidade impôs
um controle ao imaginário. Recentemente, o autor volta ao tema, explorando a relação entre a existência do controle e o surgimento do romance.
7
CANDIDO. Timidez do romance, p. 109.
8
CANDIDO. Timidez do romance, p. 100.
9
CANDIDO. Timidez do romance, p. 109.
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estamos sujeitos ao detalhar eventos que exerceram poderosa influência sobre as nossas faculdades imaginativas. 10
Já aí o narrador, em um só movimento, adula e desilude o leitor mostrando-se preocupado
com a possibilidade de não poder honrar a expectativa do relato preciso, embora a própria
hesitação aponte na direção de uma atitude solidária e complacente com tal exigência. No
entanto, a mesma declaração inviabiliza a possibilidade de honrar o pacto com a veracidade. Seja porque falta o registro diário das aventuras, seja porque as únicas testemunhas capazes de assinarem tal pacto são o próprio narrador e um ‘índio mestiço” que não havia de ser
digno de muita confiança se consideramos o horizonte histórico do final do século 19.
É nesse ponto que se inicia o que chamamos de operação de travestismo, pois o narrador agora afirma que não podendo dar prova da garantia de verdade do que escreve entende que é “mais provável que o grande público considerasse minhas afirmações como uma
impudente e engenhosa ficção” (p. 16). É possível ler tal assertiva como uma fina ironia
contra a resistência do leitor a considerar o caráter ficcional do romance, exigindo-lhe as
rédeas do verdadeiro. Se o primeiro movimento aponta para a condescendência e a abertura de negociação com tal disposição de leitura, o movimento seguinte amplia as possibilidades do jogo e encurrala o leitor a firmar um pacto pela suspensão da descrença. Pois,
afinal, quem ou o quê vai dar prova da verdade já que os incidentes têm “natureza tão positivamente maravilhosa”? (p. 16).
A continuidade do jogo dá ainda outra volta ao parafuso. O narrador confessa que o
maior de todos os motivos para o receio de tornar público seu relato dizia respeito à desconfiança quanto a seus próprios talentos como escritor. No entanto, um certo senhor Poe,
o incentiva enfaticamente a publicar “um relato completo do que eu vira e vivera, e a confiar na sagacidade e no bom senso do público” (p. 16). O argumento que acaba por convencer o narrador é que qualquer mostra de inabilidade funcionaria como garantia de verossimilhança: “por grosseiro que fosse meu livro do ponto de vista literário, a sua deselegância
mesma, se é que houvesse alguma, seria a melhor chance de ser aceito como verdade” (p.
16). Mas a estratégia ainda não está completa, nem todas as peças entraram no jogo. O lance final se concretiza quando o narrador não se deixando persuadir por nenhum dos argumentos anteriores, cede a voz e a história para o próprio sr. Poe a fim de publicá-las “sob o
manto da ficção” (p. 16). Sabe-se que o prefácio que lemos hoje não aparecia na versão dos
dois capítulos iniciais do romance publicados no Southern Literary Messenger e assinados
pelo próprio Poe. Aqui, o jogo ganha sofisticação, o prefácio é uma grande mascarada: Arthur Gordon Pym deixa-se, a si e a sua história, que passa a reconhecer-se como ficção,
travestir-se de outro, o próprio Poe. Apesar de ter alegado pouco antes confiar o relato “ao
bom senso do público”, Pym, o autor cuja assinatura consta no fim do prefácio que lemos,
parece aturdido com a recepção da publicação, pois acreditando-se inábil para escrever a
“extraordinária série de aventuras nos Mares do Sul” (p. 15), delega-a a Poe, cujo nome de
autor é associado à criação de relatos ficcionais. No entanto, o próprio Pym o reforça, apesar do caráter fabular de que se revestem os acontecimentos narrados por seu autor travesti,
reconhece que nenhum fato foi alterado, mantendo-se, portanto, podemos deduzir, a fide10
POE. A narrativa de A. Gordon Pym, p. 15. Daqui por diante todas as indicações de páginas relativas ao romance seguirão entre parênteses logo após as citações da obra.
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lidade ao acontecido. Mas a audiência não o entende assim e rejeitando o crédito da inscrição ficcional instituído pela garantia da assinatura do escritor Poe lê o relato como verdadeiro, segundo comprovam as cartas enviadas ao próprio Poe, mencionadas no prefácio
assinado por Pym.
O imbróglio está formado porque a narrativa é uma contrafação de si mesma. Poe, autor
real, é responsável pelo jogo da representação, tornando-se autor suposto da ficção de A. G.
Pym que, no entanto, quer atuar no espaço impossível entre a autenticidade e a dissimulação. Sarcasticamente, respaldando-se na anuência do público que leu tudo como verdade,
encoraja-se a escrever do próprio punho a história que nos dá a ler, mandando aos diabos
as dúvidas sobre sua habilidade como escritor, atestando com a própria narrativa que “nenhum fato foi mascarado nas primeiras páginas escritas pelo sr. Poe” (p. 17) – e, no entanto,
o que lemos na primeira parte do livro são os incidentes de “natureza tão positivamente
maravilhosa” (p. 16). Por estabelecer tal semelhança entre as duas vozes autorais e convencido – pelo alegado “bom senso do público”?- de que o relato constitui em si mesmo prova
de autenticidade, diz não ser necessário separar as partes escritas por ele mesmo, Gordon
Pym, e pelo sr. Poe, pois, segundo afirma, “a diferença de estilo logo se fará sentir” (p. 17).
Conclui-se, portanto, a armadilha sob a qual está armada a engenharia do romance. O travestismo é necessário como procedimento para que seja possível estabelecer um equilíbrio
sutil entre finalidades tão díspares. Acenar ao leitor, sequioso pelo relato de verdade, oferecendo-lhe a sinceridade de um narrador obtuso, inexperiente e, ao mesmo tempo, formar
esse público leitor em outro modo de recepção, preparando-lhe para o intrincado arcabouço ficcional de autores fictícios que se autossimulam, transitando todo o tempo na linha
tensa entre a garantia (impossível?) do verossímil e de sua retórica.
Nesse sentido, a persuasão de que as aventuras de Gordon Pym são reais vão ao encontro do gosto do freguês: “surge portanto da entrega ao leitor daquilo mesmo que a sua mente já está preparada para receber”. 11 Mas o conforto e as certezas do leitor são dribladas e
acabam desconstruídas pela “falácia do narrador”. Esse movimento é o que justifica o equilíbrio instável de uma narrativa entre a piscadela à legitimação do romance como ficção e a
negociação com a exigência de um público leitor sequioso por relatos verdadeiros, dando
margem à reiterada acusação de seus críticos do excessivo descosido da narrativa.
Quando me refiro à negociação que Poe tem de fazer com seus leitores estou pensando
na ânsia deste por “conhecer todos os particulares” da história, “a época e o local da ocorrência ... informações sobre a identidade das partes envolvidas ... [esperando que] as testemunhas contem a história com suas próprias palavras”. 12 A dissimulação para driblar essas
exigências e favorecer a ficção está na fórmula eficaz da retórica da verossimilhança que
“persuade pelo verossímil, [mas] sustenta suas justificativas no provável”. 13 Negociar com o
leitor significa que a ilusão criada pelo autor é acolhida pela cumplicidade de seu público
que é pago com um piparote, para nos valermos, mais uma vez, da imagem machadiana.
Um episódio quase insignificante da narrativa é emblemático desse impasse e o torna
mais concreto. Trata-se da passagem, que aparece logo no início do relato, na qual Pym
11
SANTIAGO. Retórica da verossimilhança, p. 39.
WATT. A ascensão do romance, p. 31.
13
SANTIAGO. A retórica da verossimilhança, p. 41.
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preparando-se para embarcar às escondidas no Grampus, sem comunicar sua decisão à
família, encontra-se por acaso à noite na rua com seu avô que o reconhece. Julgando-se
disfarçado pelo fato de estar vestido com um grosso capote de marinheiro, mostra-se surpreso com a abordagem e ofendido com o tom com que o avô o interpela, agindo assim para
não colocar a perder o plano de seu embarque: “Senhor! Escute aqui, deve ter havido algum engano; para começo de conversa não sou nenhum Goddin como o senhor me chama,
e o senhor devia pensar duas vezes, que descaramento!, antes de chamar meu sobretudo
novo de casaco imundo” (p. 35). Diante da veemência da resposta, o velho sr. Peterson
mostra-se confuso, mas um impulso e a quase certeza de tratar-se de seu próprio neto, faz
com que o velho atire-se na direção de Pym com o guarda-chuva em riste, a fim de dar-lhe
uma lição. Mas um momento antes de confirmar-se sua intenção, recua entre embaraçado e
raivoso: “Que coisa... esses óculos novos... jurava que fosse o Gordon... maldito marujo dos
diabos” (p. 35).
À primeira vista, o episódio pode ser considerado como uma dentre muitas passagens
apontadas como inconsistentes pelos críticos, já que seria não apenas inverossímil acreditar-se irreconhecível pelo mero uso de um sobretudo ou mesmo não ser identificado pelo
próprio avô, apesar das condições adversas de luz e do inusitado do encontro. No entanto,
o singular episódio parece caracterizar o próprio mecanismo sob o qual a narrativa se estabelece como um todo em seu funcionamento. Travestir-se de outro, mostrando-se a si
mesmo, pois é disso que se trata: o avô tem razão, é mesmo A. G. Pym quem está diante
dele, no entanto, apenas a negativa veemente que aposta na própria enunciação é capaz de
convencer do contrário e abalar as certezas. Assim opera também a narrativa: fingindo-se
escrever no registro realista, adulando seu leitor que procura nela a caução da verdade, o
romance acentua sua ficcionalidade e legitima-se como fingimento.
Daí as inúmeras passagens ao longo do romance que parecem se divertir com a desilusão do leitor e soar como reprimenda: “Não há como inferir conclusões definitivas, mesmo
a partir dos dados mais simples, quando está em jogo algum preconceito, contra ou a favor”
(p. 31). A extrema preocupação com garantir a verossimilhança parece querer despistar o
leitor da armadilha a que está entregue, pois não seria possível ler tal afirmativa como um
apelo ao leitor que assuma suspender sua descrença, ao invés de eleger o padrão realista
como o único capaz de garantir interesse à narrativa?
Só assim as mais rocambolescas aventuras marítimas dos personagens e o desenrolar
atabalhoado das inúmeras peripécias que movimentam a narrativa de Gordon Pym podem
deixar de parecer estranhos ou equivocados e responsáveis pela desarticulação narrativa.
Não é apesar deles que o romance é “uma tentativa para transformar um gênero mal visto,
em um veículo de ficção maior”. 14 As polaridades não resolvidas (basta acompanhar o rigor
com que o relato assume a dicção National Geographic, obcecado com latitudes e precisões
geográficas) são o efeito mais visível da difícil articulação que é preciso empreender para
negociar a formação de um público leitor de romances. Assim podemos compreender o
fetichismo referencial como a contraface da mais desbragada aventura imaginativa.
14
CARRINGER. Circumscription of space and the form of Poe’s Arthur Gordon Pym, p. 515. Tradução minha.
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Nesse sentido, nada haveria de estranho no livre trânsito entre os “fatos prosaicos [e
precisos] e os mais altos voos da imaginação”. Pelo contrário, trata-se justamente disso: não
é possível justificar a narrativa atribuindo-lhe um fracasso pela excessiva dissonância e
desarticulação entre as partes do romance que ora apontam para o ritmo alucinado da narração de aventuras mirabolantes, ora derivam para a certificação, exaustiva, da verdade, do
testemunho, dos dados que dão prova de.
Poe tensiona ao máximo tais limites a ponto de levar o leitor a se questionar sobre a impossibilidade de verificar a verdade, o fato realmente acontecido, a fim de colocar o leitor
que acredita na sinceridade do narrador em xeque mate: “Nada jamais autoriza a catalogar
uma obra segundo seu teor de realidade, salvo um ‘aproximadamente’ que tenha assumido
força de convenção. Mas então o que faz o critério de exatidão ou verossimilhança parecer
tão evidente que seja em geral aplicado por instinto?” 15 Tal tensão, que evidenciam paradoxos formais, expunha o autor às exigências, aos horizontes de expectativas de seu leitor,
treinando este na condição moderna de leitor hipócrita e expondo, dissimuladamente, no
interior do relato a reflexão sobre a representação nela própria assinalada.
Nesse sentido, a história de Pym se autossabota, pois tranquiliza o leitor, comprometendo-se com o desejo de ser fiel à realidade, e, no entanto, “pretendendo haurir seu material no vivo para tornar-se ‘uma fatia de vida’ (...), não passa de um jogo” 16 que aponta para
a impossibilidade de cumprir o compromisso, que é apenas retórico. Diante do júri que
avalia e lê, a estratégia de composição do romance aponta para a derrocada da caução da
verdade, regozijando-se com a impossibilidade de honrar o crédito realista.
Poe estaria tentando barganhar com os leitores ávidos pelo verismo da história, o reconhecimento de um gênero apoiado no ‘como se’ assumido. O mecanismo aqui chamado de
travestismo implicaria em uma série de malabarismos estruturais (o que explicaria a convivência entre o apelo ao realismo descritivo e a mais desbragada imaginação) que “oculta[m]
o que não deveria[m] divulgar”. 17
Arriscando-se a uma forma incipiente, ao menos na tradição americana em que está inserido, e obrigado, pelas circunstâncias do momento histórico em que escreve, a planejar
sua narrativa considerando o horizonte de expectativas de seu público, Poe deve transigir
com essas variáveis, trabalhando, simultaneamente, para atenuá-las. Por isso, apostávamos
a partir da leitura do ensaio de Fischer na possibilidade de investimento na hipótese de Poe
ser considerado um autor formativo: de um público leitor, de outra concepção de forma
literária. A performance de rebuscada execução seria responsável não apenas pela recepção
crítica durante muito tempo desfavorável ao romance, como também pelo estranhamento
provocado nos leitores já que “o prato é muito refinado para que se banqueteiem”. 18
15
ROBERT. Romance das origens, origens do romance, p. 54.
ROBERT. Romance das origens, origens do romance, p. 53
17
COSTA LIMA. O controle do imaginário e a afirmação do romance, p. 59.
18
Comentário feito por James Kirke Paulding, uma espécie de conselheiro dos editores da Harper’s
de Nova York a Thomas Willis White, editor da revista Southern Literary Messenger, expondo o motivo da recusa da publicação em livro do romance de Poe: “Alegaram a existência de um grau de
obscuridade em seu mecanismo, que impedirá os leitores comuns de compreender o seu significado
e consequentemente de apreciar a refinada sátira que está implícita neles. Esta exige um grau de
familiaridade com várias espécies de conhecimentos, que tais leitores não possuem, mas que os
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A própria instabilidade do estilo narrativo não nos deixa esquecer a vicariedade dos
narradores responsáveis por ela. Afinal, quem está no comando da narração quando convivem lado a lado as mais eletrizantes aventuras, a memória imaginativa, e longuíssimas digressões, que parecem mais apropriadas a um verbete enciclopédico que a um romance,
sobre latitudes e curiosidades geográficas, pinguins e albatrozes? 19
Dissimulando-se entre as várias autorias possíveis, o romance negocia a legitimação de
um gênero fazendo o elogio da ficção, pois apesar de tantos esforços por garantir o realismo, contamos apenas com seu contra-efeito, já que “somos forçados a acreditar na boa-fé
do escritor e nenhum leitor razoável haveria de supor o contrário” (p. 274).
REFERÊNCIAS
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autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p. 99-120.
CARRINGER, Robert, L. Circumscription of space and the form of Poe’s Arthur Gordon
Pym. PMLA, v. 89. n. 3. p. 506-5l5.
COSTA LIMA, Luiz. O controle do imaginário e a afirmação do romance: D. Quixote, As relações perigosas, Moll Flanders, Tristram Shandy. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
COSTA LIMA, Luiz. Machado: mestre de capoeira. In: _____. Intervenções. São Paulo:
Edusp, 2002. p. 327-340.
FISCHER, L. A. Poe, Machado e Borges, não nessa ordem. In: _____. Machado e Borges e outros ensaios sobre Machado de Assis. Porto Alegre. Arquipélago Editorial, 2008. p. 97-128.
JAMES, Henry. Preface to volume 17 of the New York edition, 1909. Disponível em:
http://www.henryjames.org.uk/prefaces/altard_inframe.htm. Acesso em: 15 ago. 2009.
POE, Edgar A. A narrativa de A. Gordon Pym. Trad. J. M. M. de Macedo. São Paulo: Cosac &
Naify , 2002.
ROBERT, Marthe. Romance das origens, origens do romance. Trad. André Telles. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
SANTIAGO, S. Retórica da verossimilhança. In: _____. Uma literatura nos trópicos: ensaios
sobre dependência cultural. São Paulo: Perspectiva, SEC/SP, 1978. p. 28-48.
VASCONCELOS, S. G. A formação do romance inglês: ensaios teóricos. São Paulo: Ed. Hucitec/Fapesp, 2007.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
capacitariam a gostar da brincadeira”. RIBEIRO, J. A. Imprensa e ficção no século XIX: E. A. Poe e a
narrativa de A. G. Pym, p. 125-126.
19
Basta conferir um dos inúmeros exemplos ao longo de toda a narrativa. À longa e minuciosa descrição sobre a biche de mer, “um molusco dos mares da Índia”, segundo nos informa o cioso narrador, seguem-se os episódios que relatam a emboscada planejada pelos selvagens para matar os integrantes do Jane Gay (p. 223 e ss.).
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 175-182.