Versão de Impressão - Interações: Sociedade e as novas

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Versão de Impressão - Interações: Sociedade e as novas
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Um Olhar Psicanalítico sobre a Vitimação e a
Psicoterapia Dinâmica no Âmbito da Violência Doméstica
Henrique Testa Vicente, Rui Paixão, João Redondo
I
A relação entre psicologia e violência doméstica permanece controversa
e polémica, pois que numerosos autores continuam a sustentar a opinião de que qualquer tentativa para explicar a violência que recorra a conceptualizações psicológicas indulta as condutas abusivas e violentas dos
homens (Nicolson 2010). Colocando a tónica nos traços fundamentais
da psicanálise e da psicologia dinâmica – particularmente nas noções de
determinismo mental e motivação inconsciente – argumentam que estas
são particularmente problemáticas pois ignoram a origem política do problema, optando antes por focar as motivações inconscientes do comportamento. Face a estas críticas, Haaken (2008) questiona por que continuamos tão receosos em reconhecer ‘o lado pessoal da violência familiar’1?
A mesma autora assinala que, de forma similar ao que se passa numa
psicoterapia, a análise das resistências inerentes a determinados movimentos sociais deve preceder a análise das suas ansiedades e defesas.
1 Curiosamente, e a propósito da importância da agressividade na teoria psicanalítica,
em ‘Novas Conferências Introdutórias da Psicanálise’ (1996 [1933]), Freud formula
uma questão de figurino muito similar ao de Haaken: ‘Por que é que precisámos de
tanto tempo antes de nos decidirmos a reconhecer uma pulsão agressiva? Por que
é que hesitámos em utilizar, para a teoria, factos que eram evidentes e familiares a
qualquer pessoa?’ (Laplanche e Pontalis 1985: 38).
Interações número 22. pp. 7-22. © do Autor 2012
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Interações
No contexto da violência, as reações à teorização psicológica foram
moldadas pelo trabalho pioneiro de Lenore Walker, autora de The Battered
Woman (1979). Nesta obra, Walker afirmava que as mulheres se mantêm
nestas relações abusivas, não por simples masoquismo, mas sobretudo
devido a complexos fatores psicológicos e sociais. Nesse sentido, procede a uma alteração do retrato-tipo da mulher vítima que culmina na
identificação do perfil da ‘boa esposa’ – uma mulher ativamente envolvida e empenhada na ambição pessoal de criar uma família harmoniosa.
Este perfil coloca liminarmente em causa a ideia de uma mulher, cujas
baixas competências de resolução de problemas e autoestima empobrecida são exploradas pelo marido abusivo. A síndrome descrita obedece
a um esquema circular (o ciclo da violência), composto por três fases
sequenciais (aumento da tensão; ataque violento; apaziguamento). A
ênfase colocada numa série de antecedentes e consequentes previsíveis
contribuiu para ancorar a violência doméstica num modelo médico. Tal
como as doenças físicas seguem uma série invariável de estádios, também a síndrome do mau trato segue uma trajetória transversal e similar
em situações distintas. Haaken (2008), pertinentemente, observa que
o ciclo vicioso de Walker implica uma folie à deux neurótica, com uma
masculinidade ferida a combinar com uma feminilidade insegura. A estrutura patriarcal teria facultado aos homens uma vantagem no poder,
devido ao sentimento de permissividade em agirem a sua cólera e stress
na forma de ataques destrutivos sobre as mulheres. Mas estes homens
também experienciavam culpa e remorsos, procurando reparar o mal
cometido, o que lhes conferia uma humanidade dificilmente aceite por
algumas camadas da sociedade.
Durante os anos 1990, o protótipo neurótico do agressor foi substituído por um perfil psicopático, principalmente através da difusão generalizada do modelo ‘Poder e Controlo’ desenvolvido por Ellen Pence e
Michael Paymar (1993) em Duluth no Minnesota (Haaken 2008). Ainda
segundo Haaken (2008), a ‘roda do poder/controlo’, elemento central no
modelo Duluth, representa graficamente um conjunto de estratégias utilizadas pelos homens com o objetivo de manter o domínio absoluto sobre
a mulher. Para os proponentes e seguidores deste modelo, a fase de reparação seria apenas uma estratégia diferente de controlo. Para além disso,
foi descartada a dimensão interacional do modelo de Walker, no qual se
defendia que os esforços feitos pelas mulheres, no sentido de agradar os
seus cônjuges poderiam contribuir inadvertidamente para a manutenção
do ciclo da violência. A passagem de um modelo que reconhecia o papel
da mulher na dinâmica violenta do casal para um quadro de compreensão
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e a Psicoterapia Dinâmica no Âmbito da Violência Doméstica
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do problema centrado na dinâmica de uma única pessoa (o agressor), representa uma recusa coletiva em carregar com os ‘pecados’ dos homens,
mas também compromete o reconhecimento de elementos significativos
na vida das mulheres implicadas. As suas escolhas e ações passam a
ser consideradas contingentes e determinadas por forças sociais que se
encontram para além do seu controlo, enquanto o comportamento dos
homens é reafirmado como autónomo, voluntário e não-contingente na
sua natureza. Paradoxalmente, o subtexto inerente é que as mulheres não
têm qualquer grau de liberdade, ao passo que os homens têm liberdade
absoluta. Ora, tal entra em contraste absoluto com a ligação fundamental
e inequívoca da psicanálise à ideia de liberdade (sobretudo, à ‘liberdade de pensar’) e ao seu reconhecimento da igualdade como necessidade
imperiosa (Matos 2007). Assim, embora a mulher agredida seja aliviada
do ‘peso’ associado ao pensar sobre os motivos por detrás da opção por
manter-se numa relação abusiva, fica igualmente desprovida de um espaço para explorar as várias fases da sua vida em que tinha efetivamente liberdade de escolha. A reificação de uma visão clivada da realidade, através
da criação de duas figuras idealizadas – a ‘mulher boa’ e o ‘homem mau’
– que, na sua essência, se revelam elementares e sem substrato (para
além de profundamente desiguais), serviu provavelmente objetivos mais
políticos do que terapêuticos, procurando alertar as instituições sociais
para uma problemática sobre a qual reinava a indiferença (Haaken 2008).
Recentemente, alguns autores têm reclamado a necessidade de um distanciamento em relação ao paradigma de género e uma (re)aproximação
da psicologia à investigação, compreensão e intervenção em violência doméstica (Dutton e Corvo 2006), argumentando que as teorias baseadas
no género excluem a noção de violência no feminino e a sua prevalência
(Strauss 2009), trivializam possíveis injúrias aos indivíduos do sexo masculino e mantêm uma visão monolítica de um problema social complexo
(Dutton e Nicholls 2005). Segundo Nicolson (2010), ao negligenciarmos
as emoções, experiências e explicações psicológicas para a violência doméstica estamos igualmente a negligenciar aqueles que sofrem e a descartar possíveis caminhos para prevenir abusos futuros.
II
Apesar das resistências que foram sendo levantadas, emergiram conceptualizações psicanalíticas para a violência. Por exemplo, tomando
por base a experiência clínica de acompanhamento psicoterapêutico de
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Interações
vítimas de violência doméstica (abuso infantil, maus tratos conjugais,
violação), Seagull e Seagull (1991) identificaram um conflito interno fundado na crença inconsciente de que a recuperação completa do trauma
iria exonerar o perpetrador da culpa e ser um ato de deslealdade para
com outras vítimas, apelidando o fenómeno de ‘a ferida que não deve
sarar’.
Por seu turno, Celani (1999) aplicou o modelo de relações objetais de
Fairbairn (1952) à compreensão da dinâmica da mulher maltratada. Este
modelo enfatiza a importância das influências externas na formação das
estruturas egóicas, assinalando as trágicas consequências desenvolvimentais que advêm da confrontação precoce com ambientes desfavoráveis de privação, negligência ou violência. O primeiro movimento que
a criança mergulhada nestes contextos efetua concretiza-se numa série
de tentativas, muitas vezes desesperadas, para assegurar e maximizar a
vinculação a objetos frustrantes, mas simultaneamente sedutores (pois
mesmo os pais mais negligentes são capazes da gratificação ocasional).
Esta fixação ao objeto materno, encetada na esperança de colher algumas migalhas do escasso alimento afetivo, complementa-se com um
segundo movimento que consiste na internalização do objeto frustrante, pois a criança não pode viver com um mundo interno desprovido de
objetos, sob risco de sucumbir ao autismo mais esmagador (Meltzer
1975). Com efeito, mesmo um objeto parental violento e abusivo é melhor do que nenhum objeto. Os dois movimentos (focalização intensa
no objeto rejeitante e internalização do objeto rejeitante) são essenciais
para afastar o colapso do ego, mas implicam custos perniciosos a longo-prazo. Por que é que estes objetos internalizados são tão preciosos?
Porque a criança não tem outras fontes de segurança.
Para Fairbairn (1952), as qualidades de ‘bondade’ ou ‘maldade’ destes
objetos internalizados que, na verdade, constituem uma visão do self em
relação ao objeto, determinam o funcionamento adulto da personalidade,
o qual passa a refletir o terceiro movimento de clivagem que, entretanto,
se opera na criança, uma clivagem dos objetos externos e internos em
dois objetos parciais separados, a qual acarreta uma outra clivagem, desta feita da estrutura egóica que passa a conter dois subegos mutuamente
exclusivos. Será através desta estrutura de objeto/ego clivado que a criança soluciona o problema de gerir a sua agressividade e ressentimento em
relação a uma mãe que receia e odeia mais do que ama e confia. A conceptualização de Fairbain (1958), profundamente influenciada pelo trabalho
de Melanie Klein, postula ainda que esta clivagem em subestruturas egóicas parciais e irrealistas determina a procura, na idade adulta, de objetos
externos que reencenem a relação original que as criou.
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Este modelo é particularmente interessante quando aplicado a mulheres vítimas de violência que optam por permanecer em relações
abusivas, apesar de terem outras possibilidades de escolha, ou então
a mulheres que fazem escolhas sucessivas por companheiros violentos
e agressivos, muitas vezes, eles próprios dotados de uma estrutura do
ego similar que oscila entre os pólos acima enunciados.
Nestes casos, constatamos que, embora o modelo de Walker tenha
um poder descritivo assinalável, peca pela inexistência de uma explicação consistente para o facto de algumas mulheres repetirem este ciclo
ad eternum, enquanto outras, simplesmente, terminam a relação aos
primeiros sinais de violência. O modelo de Fairbairn (1952) parece, assim, complementar o modelo de Walker na sua dimensão explicativa.
Seguindo o que foi exposto anteriormente, a clivagem dos objetos que
a criança opera nas fases iniciais do desenvolvimento irá condicionar o
funcionamento num duplo registo, em que existem dois egos-parciais
– um libidinal e outro antilibidinal – que alternam na sua dominância sobre os processos conscientes, restando pouco lugar a um ego integrado
capaz de anular a ambivalência das duas dimensões. Os objetos/sujeitos que então se cruzam no decurso da vida adulta, ou são idealizados
ou demonizados, consoante o ego-parcial dominante. Nas situações de
violência, existe frequentemente a acoplagem de indivíduos com características similares. As mulheres sentem-se atraídas por homens com a
mesma natureza intrapsíquica, pois estes alimentam as fações do ego
essenciais à manutenção dos objetos internos e vice-versa. Importa aqui
salientar que, de outra maneira, seria o vazio, esse sim insuportável. É
por este motivo que os homens ditos ‘normais’ não interessam, pois
não alimentam as dimensões conflituais internas do psiquismo. Durante o ciclo de violência descrito por Walker pode, assim, observar-se a alternância entre egos-parciais, se bem que num registo de dissonância e
desencontro permanente entre os sujeitos envolvidos. Na primeira fase
deste ciclo, predomina o ego antilibidinal no homem que atribui à sua
companheira a insatisfação das suas necessidades (infantis), reagindo
com progressiva intensidade às frustrações ‘supostamente’ infligidas e
reivindicando um amor que, por muito grande que seja, é sempre insuficiente. A palavra-chave aqui é insaciabilidade. A mulher, por seu turno,
encontra-se na fase libidinal, desculpando, muitas vezes, o cônjuge por
estas ‘pequenas’ infrações, ou atribuindo a si própria a culpa pelo sucedido. Aquando da eclosão do episódio violento, dá-se uma modificação
na posição da mulher que, relembrando dolorosamente o mau objeto da
sua infância, alterna de ego-parcial, passando a dominar a componente
antilibidinal que motiva o desejo de separação e de afastamento. Peran-
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te a possibilidade de abandono, o homem procura manter o objeto pela
mudança para uma posição libidinal, de reparação e sedução, que reativa na mulher as tão desejadas qualidades do objeto-parcial interno benéfico e produz um novo câmbio na estrutura parcial do ego dominante,
completando um círculo que permite manter a realidade intrapsíquica
intacta e a segurança de um caminho já trilhado vezes sem conta.
O modelo de Fairbairn (1952) pode ser utilizado para a compreensão e intervenção psicoterapêutica, nomeadamente no reconhecimento
de uma compulsão para a repetição que eventualmente possa ocorrer
fruto de uma história de violência que, na precocidade das experiências
infantis, tenha comprometido as estruturas do ego. Este modelo compreensivo vai igualmente ao encontro dos estudos que revelam uma
maior prevalência de maus-tratos na infância, incluindo o abuso físico e
sexual (Coid et al. 2001; Stuart, Moore, Gordon, Ramsey e Kahler 2006;
Wind e Silvern 1992), e a organização de perturbações da personalidade
em mulheres vítimas de violência (Pico-Alonso, Echeburúa, e Martinez
2008).
Antes de finalizarmos esta breve explanação da aplicabilidade das
teorias psicanalíticas à compreensão da violência doméstica, convém
salientar ainda a distinção conceptual, avançada por Bergeret (2004),
entre ‘violência fundamental’ ou ‘violência natural primitiva’, ‘exações
violentas’, ‘ódio’ e ‘agressividade’, expressões que, por vezes, são utilizadas indiscriminadamente, mas que encerram em si diferenças substanciais.
Por ‘violência fundamental’, entende-se algo inerentemente universal à natureza humana: ‘uma componente instintual inata destinada a
ser progressivamente integrada noutras finalidades humanas no decorrer da infância e da adolescência para que o adulto alcance um livre e
eficiente exercício das suas capacidades amorosas e criativas’ (Bergeret
2004: 97), cujo grau de integração varia consoante o indivíduo. Esta
violência nasce e tira todo o seu significado dos fantasmas originais
(espécie ordenada dos elementos primitivos e inatos), trazidos geneticamente pela criança e incluídos na ordem do pré-simbólico (Laplanche e Pontalis 1985). Estes elementos, já referidos sob o termo pulsões
agressivas (Freud 1915) ou de pré-conceções (Bion 1979), caracterizam-se por um potencial que se atualiza na ordem do interativo, isto é, a sua
expressão-inibição começa por se estruturar na relação mais precoce
com os objetos parentais como condição intrínseca da existência, manifesta na necessidade de sobrevivência de todo o ser vivo. A primeira
manifestação do fenómeno acontece logo nos primeiros movimentos
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agressivos do bebé na relação precoce, o que fundamenta o papel para-excitatório da função materna. Segundo Bergeret (2004), estes elementos terão sido inicialmente sublinhados por Abraham, ao referir-se aos
fantasmas primários e violentos na relação mãe-criança e, em 1924, em
‘Histoire du Développement de la Líbido Basée sur la Psychanalyse des
Troubles Mentaux’ (Abraham 1989 [1924]), ao descrever a primeira etapa
desse desenvolvimento como pré-ambivalente e ligada às representações fantasmáticas de violência e de medo, relativas ao sentimento de
ataque do objeto2. Estes trabalhos abriram o caminho aos estudos Kleinianos sobre os fantasmas violentos muito precoces.
As ‘exações violentas’ que fazem as manchetes dos jornais estariam
intimamente associadas a esta violência fundamental, mas desta se distinguem por serem comportamentos secundários, enquanto a primeira
é de ordem primitiva e fantasmática. Segundo o mesmo autor, a violência fundamental ‘não passa de uma simples reação automática de um
modo muito primitivo, destinada a diminuir uma angústia de destruição
pelo outro e não proporcionando em si qualquer satisfação de natureza
libidinal’ que ‘não veicula qualquer vontade de prejudicar’, característica
da pré-ambivalência dos momentos primevos da existência da criança,
anteriores à triangularidade edipiana. Aqui retomamos Freud e o texto ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’ (1996 [1915]: 149), em que afirma
‘a psicanálise parece demonstrar que infligir dor não desempenha um
papel entre as ações intencionais originais do instinto. Uma criança sádica não se apercebe de que inflige dor ou não, nem pretende fazê-lo’.
Laplanche (1985) refere que tais asserções implicam a noção de uma
violência primordial, é certo que voltada para o exterior, mas radicada
no plano da autopreservação, de matiz puramente instrumental, não
albergando qualquer espécie de gozo sexual: ‘supõe-se que essa criança
destrua tudo em seu caminho, sem que a destruição seja visada em
2 A ambivalência, conceito fundamental da teoria psicanalítica que Freud vai resgatar
a Bleuler (1911), remete para a ‘presença simultânea, na relação com o mesmo objeto, de tendências, atitudes e sentimentos opostos, por excelência o amor e o ódio’
(Laplanche e Pontalis 1985: 49). A ambivalência torna-se, em Abraham, uma categoria
genética que permite especificar a relação objetal própria de cada fase. Em Freud,
particularmente no final da sua obra, a ambivalência toma uma maior importância na
clínica e na teoria do conflito. O conflito edipiano, nas suas raízes pulsionais, passa
a ser concebido como conflito de ambivalência (Ambivalenz Konflikt), pois que uma
das suas principais dimensões é a oposição entre ‘um amor fundamentado e um
ódio não menos justificado, ambos dirigidos à mesma pessoa’ (Laplanche e Pontalis
1985: 51). Nesta perspetiva, a formação de sintomas neuróticos é concebida como a
tentativa de conseguir uma solução para tal conflito.
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si mesma, nem tampouco a subjetividade do outro’ (Laplanche 1985:
94). Contrariamente à violência fundamental que encerra apenas uma
dimensão defensiva de sobrevivência básica, o ‘ódio’ e a ‘agressividade’
envolvem um objeto claramente identificado. O ódio implica a fruição
de algum grau de satisfação dos sentimentos dirigidos ao objeto, ao
passo que ‘ainda mais do que o ódio, a agressividade providencia satisfações de natureza erótica, pelo facto de ver sofrer um objeto com o
qual é mantida uma ligação extremamente ambivalente’ (Bergeret 2004:
98)3.
Nesse sentido, numa perspetiva epigenética, os primeiros modelos
imaginários ao dispor do pequeno infante são os modelos violentos, sobre os quais se irão articular posteriormente os modelos edipianos integrando em seu benefício os modelos precedentes. Segundo Bergeret
(2004: 99-100), quando esta integração não é bem-sucedida assiste-se a:
uma oscilação sem saída entre os imaginários violentos e edipiano ou, pior ainda, à recuperação de uma parte dos elementos libidinais (que permaneceram espalhados) no âmbito e em benefício da problemática imaginária violenta. Isso dará origem a título
fragmentário à agressividade, ao sadismo e ao masochismo, e a
título mais solidamente organizado à problemática psicótica sob
as suas diversas formas.
Para Bergeret (2004: 100, ‘é seguramente difícil encontrar a violência
fundamental em estado puro no adulto’, embora seja possível encontrar
situações que indiciam um retorno do recalcado como, por exemplo, as
afirmações ruidosas de ‘não-violência’ que correspondem, por vezes, a
um contrainvestimento perante o ressurgimento do fantasma violento.
Para este autor, e provavelmente num dos trechos da sua prosa mais
relevante para a problemática de que nos ocupamos, ‘o estatuto sociocultural tradicional da mulher comporta a mesma reação denegativa;
querer que ela fique reduzida somente ao estado de ‘boa’ mãe, logo de
‘boa’ esposa, é vedar-lhe toda uma parte do seu imaginário natural que
nunca poderia ser tão monolítico’ (Bergeret 2004: 100). Nesse sentido,
de forma similar ao modelo Duluth (Pence e Paymar 1993), também
a proposta de Walker (1979) apresenta, sob este prisma, um subtexto
3 O verbete do Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis (1985: 37) consagrado
à ‘agressividade’ exprime precisamente a sua dimensão objetal: ‘tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em comportamentos reais ou fantasmáticos,
estes visando prejudicar outrem, destruí-lo, constrangê-lo, humilhá-lo, etc.’
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oculto e pernicioso. O protótipo de ‘boa esposa’ que, supostamente,
reabilitaria o lado feminino da violência, afigura-se assim profundamente cerceador da sua complexidade interna, recusando-lhe a sua própria
‘violência fundamental’, num movimento repressivo que poderá condicionar uma evolução afetiva que deve sempre incluir esta componente
‘em benefício de uma dinâmica libidinal criativa e gratificante para o
conjunto da personalidade’ (Bergeret 2004: 100).
III
A assunção de um modelo psicodinâmico da violência familiar não significa que modelos sociais de compreensão do problema devam ser descartados; ao contrário, deve ser visto como uma outra forma de olhar
para o problema, igualmente importante.
As psicoterapias dinâmicas, do mesmo modo, constituem uma forma de autoconhecimento, ao mesmo tempo penosa e recompensadora
que, mais do que transformar ou remover sintomas, pretendem levar
a pessoa a deixar simplesmente de mentir a si própria, identificando e,
acima de tudo, compreendendo o seu papel nas dinâmicas relacionais
em que se encontra envolvida (Clarke, Hahn, Hoggett e Sideris 2006).
Neste espaço, e ao longo do processo psicoterapêutico, a pessoa deverá
ser acompanhada por um psicoterapeuta que, para além de uma sólida
formação no racional subjacente, tenha bem resolvidas as suas ‘violências’ pessoais. Assim, a supervisão clínica e a psicoterapia (ou psicanálise) do próprio terapeuta são elementos fundamentais para a clarificação do processo terapêutico, incluindo a subjetividade do paciente. Por
outras palavras, a ênfase terapêutica deverá estar sempre sintonizada,
não apenas nas experiências subjetivas do paciente, mas também na
monotorização sistemática e contínua das experiências subjetivas do
terapeuta. Este duplo movimento permitirá ao terapeuta maximizar a
compreensão dos movimentos relacionais no sistema terapêutico, analisando os movimentos transferenciais, mas também discriminando as
contratransferências sensu strictu (sentimentos e reações em relação ao
paciente, envolvendo circunstâncias nas quais o próprio passado do psicoterapeuta é repetido no presente); e sensu lato (sentimentos e reação
em relação ao paciente que são evocados por comportamentos que produzem sentimentos similares em quase todas as pessoas com quem
este estabelece contacto) (Gabbard, 1998). É neste contexto que uma
atitude empática pode nascer, isto é, quando a identificação emocional
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Interações
com o sofrimento do outro pode ser elaborada, sem o perigo de ser inconscientemente aglutinado na dinâmica relacional que o paciente procurará reproduzir transferencialmente. Como referem Bateman, Brown
e Pedder (2003: 90),
a experiência de alguém que tenta entender, em vez de julgar ou
controlar, proporciona a sensação de segurança e espaço no qual
começamos a ser nós próprios. Então a pessoa em sofrimento
pode sentir-se suficientemente segura para partilhar os seus problemas e para explorar aquilo que antes não se atrevia a pensar
ou dizer.
Esta empatia do terapeuta é condição para que, um outro movimento, menos evidente e mais complexo, possa também acontecer: o movimento empático do paciente para com o terapeuta (Aron 1996; Miller
2003). Este é o outro lado da ‘proximidade’ intersubjetiva paciente-terapeuta, capaz de possibilitar ao primeiro a introjeção de vivências
de segurança e de integração gradual das experiências inconscientes
clivadas; isto é, das experiências infantis originalmente marcadas pela
angústia persecutória, criando assim as introjeções positivas que não
puderam ser formadas devido ao fracasso do ambiente primário em
provê-las (Schestatsky 2005). As funções de holding (Winnicott 1956)
desempenhadas pelo terapeuta são uma outra forma de designar esta
intersubjetividade compensatória da função primária deformada, viabilizando um espaço onde a internalização da relação terapêutica como
uma ‘boa relação’ povoada de ‘bons objetos’ e, consequentemente, capaz de promover a autoestima, a validação dos sentimentos e a criação
de uma maior capacidade para lidar com as fantasias mais perturbadoras (Oldham e Phillips 2001). Neste processo, paciente e terapeuta
procuram um encontro capaz de dar ao vivido uma nova significação,
suscetível de transformar as repetições precoces dos maus objetos, contra os quais o paciente se viu incapaz de se proteger. É em resposta a
estas vivências precoces, ou a estas estruturas de ‘acomodação patológica’, na expressão de Brandchaft (1994; cit. in Schestatsky 2005), que
os padrões repetitivos se desenvolvem, marcando a vida do paciente,
mas também o espaço terapêutico. Expressam-se aí usualmente em estados mentais separados e contraditórios, suscitando grande ansiedade
e transferências ambivalentes que repetem esses padrões.
A fragilidade egóica destes pacientes é outro aspeto que o terapeuta
deve ponderar cuidadosamente quando realiza qualquer trabalho inter-
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pretativo. Kerneberg (1984, 2005) considera mesmo que só a partir da
análise cognitiva e afetiva das fantasias inconscientes, dos mecanismos
primitivos (particularmente da clivagem) e das distorções com que estes pacientes ‘veem’ o mundo é que esse ego poderá ser fortalecido e
passar a usar defesas mais maturas.
De qualquer modo, as psicoterapias dinâmicas têm, então, como objetivo central esta ‘irracionalidade’ repetitiva das más experiências, ou,
de outro modo, a desconstrução dos sentires, pensares e atuares dos
sujeitos subjugados ao poder de comportamentos repetitivos que não
entendem mas que os dominam, procurando descobrir em profundidade as significações que esses padrões assumem para o próprio e para
o outro. Na sua diversidade técnica e mesmo teórica, têm em comum
uma compreensão da vida mental como uma rede de significações, isto
é, assumindo a dimensão fenomenológica e solipsística da vida mental, percebem que essas coisas (definidas como objetos e factos) não
são, afinal, nem objetivas nem factuais, mas simples realidades significantes, o que as transforma inevitavelmente em fenómenos dinâmicos
prontos para a transformação.
De certo modo, as psicoterapias dinâmicas tentam reescrever aquilo
que não está ‘escrito’ ou que é vivido como ‘mal escrito’. Procuram,
assim, no passado a origem dos sentires, dos atos, dos comportamentos e atitudes, estruturados numa ‘história’ pronta a ser contada, mas
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Interações
Um Olhar Psicanalítico sobre a Vitimação e a
Psicoterapia Dinâmica no Âmbito da Violência
Doméstica
A Glimpse into Victimization and Dynamic Psychotherapy in Domestic Violence
Sumário
Summary
Neste trabalho, são consideradas as implicações de uma conceção dinâmica sobre a violência doméstica, incluindo a importância do
trabalho psicoterapêutico dinâmico com as vítimas de violência entre parceiros íntimos. Neste
sentido, são analisadas as críticas aos modelos
de L. Walker (1979) e Duluth (Pence e Paymar
1993) decorrentes das conceções psicológicas
e psicanalíticas. Estas críticas são revistas à luz
dos fenómenos neuróticos do tipo folie à deux
e das defesas assentes na clivagem (com os
objetos parciais ‘mulher boa’ e ‘homem mau’).
Os modelos psicanalíticos associados à análise
do conflito interno e à conceção das relações
objetais, como aquele proposto por Fairbairn
(1952), são também discutidos e aplicados à
compreensão da dinâmica da mulher maltratada. Finalmente, as psicoterapias dinâmicas
são analisadas como formas terapêuticas focadas na compreensão do mundo interno e
da implicação deste nas dinâmicas relacionais
abusivas.
This article analyses the importance of dynamic
models dealing with domestic violence, including the dynamic psychotherapeutic work with
victims of intimate partner violence. Psychodynamic and psychological main criticisms to L.
Walker (1979) and Duluth (Pence and Paymar,
1993) models and their views on domestic violence are also revised, considering the neurotic
folie à deux organizations and splitting defense
mechanisms (the ‘good wife’ and the ‘bad man’
partial objects). Psychoanalytical models on inner conflict and object relations, as proposed
by Fairbairn (1952), are used to understand the
internal world of abused women. Finally, dynamic psychotherapy is discussed as therapeutic modalities that are focused on a deep understanding of the internal objects which convey
several implications on external interpersonal
abusive interactions.
Palavras-chave: Psicoterapias dinâmicas, violência doméstica, psicoterapia e violência doméstica.
Keywords: Dynamic psychotherapy, domestic
violence, domestic violence and psychotherapy.