O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita
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O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita
Zurich Open Repository and Archive University of Zurich Main Library Strickhofstrasse 39 CH-8057 Zurich www.zora.uzh.ch Year: 2009 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Gassmann-Ramos, M A Abstract: Unspecified Posted at the Zurich Open Repository and Archive, University of Zurich ZORA URL: http://doi.org/10.5167/uzh-30596 Originally published at: Gassmann-Ramos, M A. O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita. 2009, Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, Departamento de Linguística Geral e Românica, Faculty of Arts. UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA GERAL E ROMÂNICA O CANCIONEIRO DA AJUDA CONFECÇÃO E ESCRITA VOLUME I MARIA ANA RAMOS Dissertação apresentada para obtenção do Grau de Doutor em Linguística Portuguesa – Linguística Histórica, sob a orientação do Professor Doutor Ivo Castro Lisboa 2008 ii Amicizia Noi non ci conosciamo. Penso ai giorni che, perduti nel tempo, c'incontrammo, alla nostra incresciosa intimità. Ci siamo sempre lasciati senza salutarci, con pentimenti e scuse da lontano. Ci siam riaspettati al passo, bestie caute, cacciatori affinati, a sostenere faticosamente la nostra parte di estranei. Ritrosie disperanti, pause vertiginose e insormontabili, dicevan, nelle nostre confidenze, il contatto evitato e il vano incanto. Qualcosa ci è sempre rimasto, amaro vanto, di non ceduto ai nostri abbandoni, qualcosa ci è sempre mancato. Vincenzo Cardarelli (1887-1959) [Poeti Italiani del Novecento, Ed. P.Vincenzo Mengaldo, Milano, Mondadori, 1978, p. 375] O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Resumo O título – O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e escrita – pretende anunciar um estudo que se posiciona entre a filologia do códice e a filologia do texto. O Cancioneiro da Biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa é a compilação antológica mais antiga da produção lírica galegoportuguesa referente a cantigas de amor. O estudo de 1904 de Carolina Michaëlis de Vasconcellos concedeu-nos a edição crítica do ciclo de amor e facultou-nos também grande parte das características e das hipóteses históricas relativas ao códice. H. H. Carter em 1941 publicou a importante edição diplomática do Cancioneiro da Ajuda, que restituirá ao público uma visão mais genuína do estado gráfico do manuscrito, ao demonstrar as diversidades entre a edição de C. Michaëlis e a trasladação medieval. Só em 1994, bastante tempo mais tarde, a edição fac-similada veio favorecer melhor aproximação ao manuscrito, criando condições propícias ao confronto com as edições precedentes. Este trabalho não se coloca, no entanto, em um âmbito editorial. Não se trata, pois, de mais um tipo de edição, mas de um estudo que, tendo como finalidade última a concepção textual mais apurada, procura acercar-se o mais possível da verdade textual primitiva que o trovador lhe terá conferido. Configurando-se estes modos de examinar um códice fragmentado como prolegómenos imprescindíveis a qualquer trabalho editorial, notar-se-á que a materialidade permite reconstituir estádios precedentes à cópia e elucidar alguns dos maiores problemas relativos às linhas de transmissão textual (unidades de cópia, momentos de tradição, qualidade de certas lições, inserções extemporâneas na colecção, fontes, etc.). Recuar até ao exemplar de base, do modo mais racional possível, é a maneira mais apropriada para observar a estrutura organizativa de um Cancioneiro que é, na realidade, produto de um aditamento criterioso de vários materiais de proveniências e de cronologias inconstantes. A reconstrução do modelo textual coopera também na representação da figura do compilador ou do comanditário, no perfil de um scriptorium, mas sobretudo na reflexão sobre a substância do manuscrito-arquetípico. O estudo da mise en page e da mise en texte permite apreender a disposição textual, assim como as condições nas quais se encontravam os modelos trovadorescos. Por outro lado, o carácter incompleto e inacabado explicita a ausência inicial de uma mise en livre que clarifica a fragilidade do códice que hoje conhecemos. A mise en graphie coloca por sua vez em evidência as técnicas adoptadas quanto ao modelo de escrita para um livro de amplo formato, a competência de quem copiou e as regras imprescindíveis a um livro de canto, projectado também para acolher partituras musicais. A v descrição e análise dos procedimentos grafemáticos consentem com apoio na raridade, na repetição e na alografia especificar a significação de um ou de outro fenómeno na tradição textual. Tanto a padronização gráfica como a persistência de alguns substratos gráficos proporcionam avaliações plausíveis quanto ao carácter das fontes utilizadas. As suposições sobre o estabelecimento da tradição manuscrita reavaliam a posição estemática do Cancioneiro da Ajuda e dos seus textos no conjunto da tradição lírica galego-portuguesa. Palavras-chave Cancioneiros, Cancioneiro da Ajuda, tradição manuscrita da lírica galego-portuguesa, codicologia, filologia textual. vi O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Résumé Le titre – O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e escrita – prétend annoncer une étude qui se situe entre la philologie du manuscrit et la philologie du texte. Le Cancioneiro de la Bibliothèque du Palácio da Ajuda à Lisbonne est la compilation anthologique la plus ancienne de la production lyrique gallego-portugaise ayant pour sujet les cantigas de amor. L'étude de 1904 de Carolina Michaëlis de Vasconcellos nous a fourni l'édition critique du cycle d'amour des troubadours et nous a également fait connaître une grande partie des caractéristiques et des hypothèses historiques concernant le manuscrit. H. H. Carter, auteur en 1941 de la publication de l'importante édition diplomatique du Cancioneiro da Ajuda, restitue au public une vision plus exacte de l'état graphique du manuscrit en mettant en évidence les différences entre l'édition de C. Michaëlis et la translation médiévale. C'est seulement bien plus tard, en 1994, que l' édition fac-similée a permis une meilleure approche du manuscrit en créant les conditions propices à sa confrontation avec les éditions précédentes. Ce travail ne se situe cependant pas dans un contexte éditorial. Il ne s'agit pas d'un nouveau type d'édition, mais d'une étude ayant comme finalité ultime la conception textuelle la plus proche de l'original et le meilleur accès possible de la vérité textuelle primitive qui lui a été donnée par le troubadour. Définir les modes d'examen d'un manuscrit fragmentaire comme préliminaires indispensables à tout travail éditorial nous oblige à noter que sa matérialité permet de reconstruire les états précédents de sa copie et d'élucider quelques uns des plus importants problèmes relatifs aux procédés de transmission textuelle (unités de copie, moments de tradition, qualités de certaines lectures, d'autres insertions dans la collection, des sources, etc.). Revenir à l'exemplaire de base de façon la plus rationnelle possible est la manière la plus appropriée pour observer la structure organisatrice d'un Cancioneiro qui est, en réalité, un produit qui a ajouté selon certains critères divers matériaux de provenances diverses et de chronologies inconstantes. La reconstruction du modèle textuel fait partie aussi de la représentation de la figure du compilateur ou du commanditaire, du profil d'un scriptorium, mais surtout de la réflexion sur la substance du manuscrit archétype. L'étude de la mise en page et de la mise en texte permet de découvrir la disposition textuelle ainsi que les conditions dans lesquelles se trouvaient les modèles de la poésie de troubadours. Par ailleurs le caractère incomplet et inachevé explicite l'absence initiale de la mise en livre qui éclaire la fragilité du manuscrit que nous connaissons aujourd'hui. La mise en graphie met à son tour en évidence les techniques adoptées quant au modèle d'écriture pour un livre de grand format, la compétence du copiste et les règles incontournables vii applicables à un livre de chant destiné également à accueillir des partitions musicales. La description et l'analyse des procédés graphématiques, grâce à l'appui de la rareté, de la répétition et de l'allographie, parviennent à préciser la signification d'un phénomène dans la tradition textuelle. Tant la conformité au modèle graphique que la persistance de quelques substrats graphiques nous fournissent les raisons plausibles des sources utilisées. Les suppositions touchant à l'établissement de la tradition manuscrite confirment la position du Cancioneiro da Ajuda et de ses textes dans le stemma de l'ensemble de la tradition lyrique gallego-portugaise. Mots-clefs Chansonniers, Cancioneiro da Ajuda, tradition manuscrite de la lyrique gallego-portugaise, codocologie, philologie textuelle. viii O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita ÍNDICE VOLUME I – PARTE PRIMEIRA. O CÓDICE RESUMO ....................................................................................................................................................v RÉSUMÉ...................................................................................................................................................vii PROLEGÓMENOS 1. PROLEGÓMENOS ...............................................................................................................................3 1.1. Examinar o Cancioneiro da Ajuda......................................................................................................3 1.2. História do projecto.............................................................................................................................7 2. APRESENTAÇÃO DO ESTUDO.......................................................................................................17 2.1. Objectivos...........................................................................................................................................17 2.2. Estrutura e organização....................................................................................................................21 2.3. Um Cancioneiro singular ..................................................................................................................24 PARTE PRIMEIRA. O CÓDICE 1. HISTÓRIA DO MANUSCRITO ........................................................................................................33 1.1. Conhecimento do códice. Edições.....................................................................................................33 1.2. Compiladores. Cronologia. Proveniência ........................................................................................42 1.3. Bibliotecas. Inventários.....................................................................................................................50 1.4. Cota antiga .........................................................................................................................................53 1.5. Proprietário. Marcas de posse. Pero Homem..................................................................................55 1.5.1. Identificação.................................................................................................................................55 1.5.2. Pajem, escudeiro, estribeiro-mor..................................................................................................59 1.5.3. Poeta. Justas e Cancioneiro Geral ...............................................................................................64 1.5.4. Cronologia textual........................................................................................................................68 1.5.5. Invocação poética a D. Denis.......................................................................................................75 1.5.6. Ambiente cultural.........................................................................................................................78 1.5.7. Intertextualidades. Anotação marginal a Juan de Mena ...............................................................82 1.5.8. A inscrição Rey Dō Denis ............................................................................................................91 1.5.9. Cancioneiros medievais. Cancioneiros quatrocentistas................................................................96 1.6. Évora. Vila Viçosa ...........................................................................................................................103 1.6.1. Testamento de Garcia de Resende .............................................................................................106 ix 1.6.2. Biblioteca de D. Teodósio..........................................................................................................108 2. HISTÓRIA INTERNA DO CÓDICE...............................................................................................115 2.1. Identificação da espécie. Marcas de conteúdo...............................................................................115 2.2. Incipit e explicit ................................................................................................................................115 2.3. Número de textos .............................................................................................................................116 3. DESCRIÇÃO DO SUPORTE MATERIAL ....................................................................................119 3.1. Número de fólios ..............................................................................................................................119 3.2. Natureza dos fólios ..........................................................................................................................119 3.3. Tinta e instrumento para a escrita .................................................................................................120 3.4. Estado dos fólios ..............................................................................................................................122 3.5. Dimensões dos fólios ........................................................................................................................125 4. DISPOSIÇÃO DO SUPORTE MATERIAL....................................................................................127 4.1. Disposição do pergaminho ..............................................................................................................127 4.2. Agrupamento dos fólios ..................................................................................................................128 4.3. Descrição da estrutura dos cadernos .............................................................................................133 4.4. Assinaturas de fólio. Reclamo.........................................................................................................228 4.5. Numerações primitivas. Assinaturas de cadernos ........................................................................232 4.6. Numerações modernas ....................................................................................................................240 5. PREPARO E APRESENTAÇÃO DO FÓLIO ................................................................................245 5.1. Picotagem. Pauta .............................................................................................................................245 5.2. «Mise en page».................................................................................................................................247 5.3. Lineamento.......................................................................................................................................251 5.4. Modelos de pauta.............................................................................................................................254 5.5. Os espaços em branco .....................................................................................................................259 5.5.1. Espaços em branco destinados à decoração ...............................................................................260 5.5.2. Espaços em branco destinados a texto .......................................................................................262 5.5.2.1. Textos incompletos em A e igualmente incompletos em B.................................................263 5.5.2.2. Textos incompletos em A, mas mais completos em B ........................................................268 5.5.2.3. Textos incompletos em A sem previsão textual. Mais completos em B..............................269 5.5.3. Espaços em branco destinados à identificação de autores..........................................................272 5.5.4. Um problema concreto: a atribuição da Guaruaya ....................................................................281 5.5.4.1. Cantiga presente no Cancioneiro da Ajuda ........................................................................281 5.5.4.2. Cantiga ausente no Cancioneiro Colocci-Brancuti.............................................................286 5.6. Espaços em branco destinados à música .......................................................................................294 5.6.1. Primeira estrofe ..........................................................................................................................298 x O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 5.6.2. Transcrição das fiindas...............................................................................................................300 5.6.3. A separação silábica...................................................................................................................312 6. DISPOSIÇÃO DO TEXTO ...............................................................................................................329 6.1. A justificação. «Mise en texte» .......................................................................................................329 6.2. As dimensões da justificação ..........................................................................................................336 6.3. Linhas preenchidas..........................................................................................................................336 6.4. Anotações marginais .......................................................................................................................339 6.4.1. De copista a artista. De artista a artista ......................................................................................339 6.4.2. Revisor textual 1 ........................................................................................................................340 6.4.3. Revisor textual 2 ........................................................................................................................344 6.4.4. A tradição textual .......................................................................................................................350 6.4.5. As correcções marginais. Tipologia ...........................................................................................356 6.4.5.1. A emenda opõe-se à lição de B ...........................................................................................358 6.4.5.2. A emenda coincide com a lição de B ..................................................................................363 6.4.5.3. A emenda opõe-se à lição de A e de B ................................................................................364 6.4.6. A importância da colação...........................................................................................................366 6.4.7. Comentários ulteriores ...............................................................................................................372 7. DECORAÇÃO....................................................................................................................................377 7.1. Procedimentos decorativos em cancioneiros .................................................................................377 7.2. A imagem nas Cantigas de Santa Maria.........................................................................................385 7.3. O sistema decorativo do Cancioneiro da Ajuda .............................................................................388 7.3.1. Advertências para os decoradores ..............................................................................................391 7.3.2. Miniaturas. Descrição. Localização ...........................................................................................398 7.3.3. Iniciais. Processo de rubricação e descrição dos principais tipos...............................................415 7.4. Alfabeto do rubricador ...................................................................................................................433 8. ENCADERNAÇÃO............................................................................................................................447 8.1. A primeira descrição .......................................................................................................................447 8.2. Novas interpelações .........................................................................................................................453 8.3. O novo restauro ...............................................................................................................................454 8.4. Possível identificação do modelo decorativo .................................................................................456 9. ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE A ESTRUTURA MATERIAL E O CONTEÚDO ..........463 9.1. A constituição do Cancioneiro ........................................................................................................463 9.2. Hipótese de reconstrução do modelo textual. Perfil do compilador............................................468 9.2.1. A ausência de rubricas atributivas..............................................................................................469 9.2.2. Textos de abertura de ciclo.........................................................................................................473 xi 9.2.3. Textos interrompidos .................................................................................................................474 9.2.4. Textos incompletos ....................................................................................................................475 9.2.5. Textos novos ..............................................................................................................................480 9.2.6. Textos mais ricos em música .....................................................................................................481 9.2.7. Textos colacionados ...................................................................................................................483 9.2.8. Texto duplo ................................................................................................................................484 9.2.9. Textos finais...............................................................................................................................485 9.3. Hipótese de reconstrução das condições materiais. Perfil de um scriptorium ............................490 9.3.1. Formato do Cancioneiro ............................................................................................................493 9.3.2. Preparação do pergaminho .........................................................................................................495 9.3.3. Ausência de numeração original ................................................................................................496 9.3.4. A assinatura de dois cadernos ....................................................................................................498 9.3.5. Trabalho de cópia.......................................................................................................................499 9.3.6. Trabalho de revisão ....................................................................................................................500 9.3.7. Trabalho do rubricador...............................................................................................................502 9.3.8. Trabalho do miniaturista ............................................................................................................502 9.3.9. A representação instrumental .....................................................................................................505 9.3.10. Trabalho dos encadernadores ...................................................................................................507 9.4. Hipótese de reconstrução de um manuscrito-arquetípico. Perfil paleo- e (estrati-) gráfico .......513 ANEXOS ANEXO I – Disposição do pergaminho (carne e pêlo) ........................................................................521 ANEXO II – Cadernos com numeração primitiva ..............................................................................527 ANEXO III – Sistema de numeração moderna dos fólios...................................................................537 ANEXO IV – Fólios com pauta .............................................................................................................543 ANEXO V – Número de linhas por fólio ..............................................................................................547 ANEXO VI – Textos com falta de estrofes no Cancioneiro da Ajuda.................................................553 ANEXO VII – Espaços em branco........................................................................................................557 ANEXO VIII – Transcrição das fiindas ...............................................................................................563 ANEXO IX – Linhas escritas por fólio .................................................................................................569 xii O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita ÍNDICE DE FIGURAS Figura 1 – Códice segundo C. Michaëlis.................................................................................................130 Figura 2 – Actual composição do códice.................................................................................................132 Figura 3 – Colocação da assinatura primitiva do caderno VI..................................................................234 Figura 4 – Colocação da assinatura primitiva do caderno X ...................................................................235 Figura 5 – Numerações modernas descritas por C. Michaëlis.................................................................242 Figura 6 – Estado actual das numerações modernas ...............................................................................243 Figura 7 – Tipo de réglure Leroy (mão 1 e mão 2) .................................................................................255 Figura 8 – Tipo de réglure Leroy (mão 2 e mão 3) .................................................................................255 Figura 9 – Tipo de réglure (fl. 1r) ...........................................................................................................256 Figura 10 – Cantiga da garvaia no primitivo caderno II .........................................................................289 Figura 11 – Stemma da tradição manuscrita (Tavani 1967 e ss.) ............................................................352 Figura 12 – Stemma da tradição manuscrita (D’Heur 1974, 1984; Ferrari 1979, 1991; Gonçalves 1976, 1988, 1993)...............................................................................................................................................353 Figura 13 – Stemma(s) da tradição manuscrita (Ramos 1992) ................................................................371 Figura 14 – Arco no Cancioneiro da Ajuda (fl. 16).................................................................................390 Figura 15 –Arco no Haggadah de Barcelona...........................................................................................390 Figura 16 – Pormenor da miniatura relativa ao ciclo de Pero Garcia Burgalês (fl. 21)...........................408 Figura 17 – Pormenor do chapéu relativo ao ciclo de Pero Garcia Burgalês (Magister?).......................408 Figura 18 – Ilustrações do fl. 77r.............................................................................................................411 Figura 19 – Esquemas de encadernação do tipo do Cancioneiro da Ajuda.............................................460 Figura 20 – Modelo figurativo n° 430 para a encadernação....................................................................461 Figura 21 – Roleta com motivo para a encadernação (Gid 1984: 360-361) [Roulette TMq5] ................461 Figura 22 – Pormenor da encadernação do Cancioneiro da Ajuda e do fecho........................................462 Figura 23 – Fecho equivalente ao do Cancioneiro da Ajuda ..................................................................462 xiii xiv O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita ÍNDICE DE QUADROS Quadro 1 – Localização dos textos de D. Joam Manuel e de Pedro Homem no Cancioneiro Geral........68 Quadro 2 – Medidas dos fólios ...............................................................................................................126 Quadro 3 – Cadernos VI-VIII .................................................................................................................179 Quadro 4 – Disposição da pele nos cadernos IX e X ..............................................................................206 Quadro 5 – Correspondência entre as numerações primitivas e a sequência actual................................237 Quadro 6 – Simultaneidades e discrepâncias entre os ciclos textuais entre A e B...................................277 Quadro 7 – As fiindas no ciclo de Pero Garcia Burgalês ........................................................................333 Quadro 8 – Medidas da justificação........................................................................................................336 xv PROLEGÓMENOS 2 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 1. Prolegómenos 1.1. Examinar o Cancioneiro da Ajuda O trabalho, aqui apresentado, apoia-se na análise da tradição manuscrita de parte do corpus da lírica galego-portuguesa e procura identificar o lugar que efectivamente ocupa um testemunho textual no diassistema histórico da produção poética medieval em consonância com parâmetros de espaço, de tempo, de prestígio social e de funções comunicativas. É bem conhecido que qualquer observação de natureza filológica à poesia dos trovadores se confronta com número incessante de dificuldades. Tanto o desfasamento cronológico entre a produção e a recolha dos materiais, como a discordância espacial entre os centros de produção, de cópia e de divulgação, como até a divergência perante os procedimentos à observação dos manuscritos, embaraçam a caracterização desta peculiar tradição manuscrita. Não estou a pensar apenas em problemas dependentes de operações ecdóticas referentes à exegese da edição crítica, mas na averiguação do mais adequado posicionamento que deve ocupar uma obra colectiva que compreende uma multiplicidade de textos de autores diferentes, quer em cronologia, quer em geografia, quer em critérios de antologização e de compilação. As normas de confronto, de avaliação e de escolha nem sempre são facilmente reconstituíveis até ao estádio mais primitivo. A pesquisa concentra-se na apreciação do mais antigo Cancioneiro da lírica galegoportuguesa, o Cancioneiro da Ajuda (finais do século XIII, primeiros anos do século XIV) e não em uma análise que se ampare do exame físico de outros cancioneiros, por me parecer que não é só a geografia italiana da cópia que os afasta, mas sim a própria concepção codicológica de cada um dos objectos. O Cancioneiro da Biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa é o único manuscrito ibérico, conhecido hoje, que se distingue como relator de uma confluência de composições, que podem ser incluídas no próprio movimento trovadoresco da lírica galegoportuguesa, circunscritas em grande parte à tipologia apropriada às cantigas d' amor. O estudo de Carolina Michaëlis de Vasconcellos, publicado em 1904, não nos disponibilizou apenas a edição crítica da colecção de cantigas d' amor trovadoresco. Não se trata, na realidade, a sua edição de uma operação limitada ao Cancioneiro da Ajuda, mas de uma autêntica reconstituição lachmanniana de todo o ciclo amoroso ao servir-se para a edificação de um cancioneiro ideal do testemunho dos manuscritos mais tardios copiados em Itália no século XVI. Além da edição textual, já a filóloga expunha um número inestimável de características e de conjecturas relativas à génese do manuscrito (história do códice, biografias de trovadores, enquadramento cultural, etc.). C. Michaëlis procurou assim conceder-nos o 3 Prolegómenos projecto inicial, não só na reconstituição do que seria realmente lacunar (intervenção facultada pela deficiência física observável nos textos mutilados, na falta de estrofes ou nos versos incompletos, etc.), mas ofereceu-nos sobretudo uma espécie de espelho que reflectiria a globalidade de um programa traçado pelo coleccionador ou pelo responsável da compilação. Quer dizer que a sua restituição crítica não contemplará apenas o texto lacunar (naturalmente por aquilo que denomino de conjectura de proximidade com fundamento nos testemunhos quinhentistas), mas vai igualmente conferir-nos através da hipótese, que poderíamos designar de conjectura à distância, a inclusão de textos que podem, de modo paradoxal, ter estado realmente ausentes do projecto inicial. No fundo, é necessário ter bem presente, talvez mais para nós até do que para C. Michaëlis, que o Cancioneiro não era, afinal, mais do que um travail en cours e que muitas das suas faltas textuais não podem ser sempre imputadas nem a acidentes físicos, nem a actos de negligência ou de demolição (Ramos 2004). H. H. Carter em 1941 recupera o Cancioneiro da Ajuda não como monumento literário, mas como um testemunho, que deveria ser examinado como um documento – um diploma – na sua superfície escrita, e não nos seus aspectos conteudísticos. Esta indispensável perspectiva reabilita o estado, podemos dizer, autêntico do Cancioneiro da Ajuda. Ainda que as edições diplomático-paleográficas não ingressem no círculo das edições científicas no mais alto grau, é incontestável que continua a ser imprescindível corroborar a utilidade de uma edição diplomática configurada nos moldes conservadores do paleógrafo americano. Não só como elo de ligação ao manuscrito ou no acompanhamento à edição fac-similada, como ainda, superando a regular transcrição das cantigas, pela inclusão de número significativo de componentes substanciais, que concorrem para o cotejo com o cômputo editorial de C. Michaëlis. Como rigoroso diplomatista, H. H. Carter – e muito bem – cingiu-se à transliteração técnica, não propiciando qualquer tipo de vínculo entre as propriedades da superfície gráfica e os processamentos da disposição textual do códice (Ramos 2007). A edição fac-similada de 1994 veio favorecer o acesso ao manuscrito em condições mais favoráveis de fruição, ao sopesarmos a confortável possibilidade de consulta simultânea a outros cancioneiros e às edições capitais, a crítica, a diplomática e a fac-similada. Seria quase espontâneo afirmar que qualquer ulterior apreciação textual, análise interpretativa ou crítica, dependentes do Cancioneiro da Ajuda, se encontrava complementada por estes acessórios de base, passagem, prévia ou subsidiária, a todos os estudos correlativos ao manuscrito ajudense. Dispondo de um completo campo editorial, o que faltaria então estudar neste manuscrito? Impunha-se, contudo, um regresso à história do manuscrito e à sua materialidade codicológica, porque podem, uma e outra, vir a elucidar os problemas maiores relativos às linhas de transmissão textual (unidades de cópia, momentos de tradição, qualidade de certas 4 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita lições, inserções extemporâneas na colecção, fontes, etc.). Em uma palavra, pode afirmar-se que importa regressar à situação do modelo, ou, dito de outro modo, convém retroceder até ao exemplar de base da forma mais racional possível. Trata-se de uma perspectiva indispensável, se considerarmos que uma obra colectiva, como um Cancioneiro, é consequência de um adicionamento criterioso de obras individuais, como também de outras colecções, pessoais ou variadas, mais ou menos extensas. Mas interessará, talvez mais ainda, regressar à noção de original, não só para a história literária, mas para a edificação de um mais sólido pedestal ao exercício da crítica textual. Para esta construção, será necessário revisitar a grafia, porque é através dela que se poderão criar condições para o exame transversal de variantes formais, em uma colecção plural e aditiva de textos literários. Talvez seja assim possível obter melhor racionalização estemática, entre a estemática, própria ao Cancioneiro, e a estemática, inerente às composições individuais que nele foram recolhidas. Constituído actualmente por apenas trezentas e dez composições, além da duplicação de uma delas, é fundamental, devido ao seu estado fragmentário, perseverar mais na avaliação do seu aspecto inacabado e imperfeito, do que na sua qualidade de códice truncado e lacunar, resultante de deteriorações materiais. Não podemos esquecer que aquele número corresponde a circunstâncias de degeneração concreta que nos impedem de conhecer a totalidade primitiva da colecção, mas também não devemos perder de vista o facto de que um número de cantigas, por mais total que seja, corresponderá sempre a uma escolha, historicamente determinada, feita por um comanditário ou por um compilador. E que, hoje, não temos mais do que uma preferência que os satisfazia na altura da confecção. Aqui se colocam os problemas fundamentais da Filologia cancioneiresca em articulação e dialéctica interna com os estudos românicos. Recordem-se alguns: como examinar um Cancioneiro entre obra antológica e obra compilativa? A extensão sincrónica da produção poética sugere o exame do Cancioneiro da Ajuda por si só, ou em conexão com a totalidade da tradição conhecida? Será essencial optar pela amplitude sincrónica de outras produções escritas literárias e para-literárias cronológica e diatopicamente confrontáveis? Como ponderar a validade da escolha expositiva entre um produto único e a pluralidade de produtos e, por fim, e não menos importante, como equacionar estes multifacetados problemas com as questões de método? Estas, posicionadas ainda em um plano pré-analítico, atingem o ponto crítico na própria concepção de «texto» no Cancioneiro da Ajuda. Como um «original» de uma obra escrita, ou mais como um qualquer material escrito resultante de cópia de cópia, de degradação em decadência, ou afinal só como um «texto», testemunho histórico intermediário, que deve ser depurado de erros, de equívocos e de impropriedades, na procura de um modelo ou mesmo de 5 Prolegómenos um arquétipo que desapareceu? Um arquétipo do Cancioneiro? Um arquétipo de cada texto? Ou um arquétipo de cada ciclo autoral? Até onde levar a restauração diacrónica de um Cancioneiro? Mas por que não contentar-se então com o abandono da reconstrução, tutelado pela veracidade documentária de um manuscrito, na perspectiva de um elogio e da vitalidade da variante? E por que não satisfazer-se simplesmente com o «texto» de quem copiou? A estas questões, poder-se-ia contestar até afirmando que o Cancioneiro da Ajuda faz parte dos manuscritos privilegiados, detentor de um dos mais ricos campos bibliográficos na produção medieval galego-portuguesa. Edição crítica de reconhecido valor, edição diplomática com prevenida transcrição e edição fac-similada com imagens reproduzidas com qualidade. O que sobrará então? Sobeja realmente o reconhecimento e a força da variante na minúcia da crítica das formas, não como um fim limitado e expedito, mas como uma transição compulsiva para o escrupuloso trabalho crítico. O trabalho a efectuar não será portanto de natureza editorial. O trabalho, aqui desenvolvido, corresponde e radica-se em fases de carácter pré-editorial. É assim na indispensabilidade da convivência contínua com o manuscrito que se desenraizará o sustentáculo mais profundo, que se consolidará o processo construtivo de um objecto inorgânico que não pode afastar-se da visão ampla e totalizante da estrutura de outros cancioneiros na România medieval. Se um Cancioneiro é uma colecção de canções, como examinar textualmente uma reunião de canções? Como um texto único que foi difundido por um objecto único? Ou como uma ordenada junção de textos de interesse estético reunida apenas em um objecto único? A este tipo de interrogações procurará dar respostas este trabalho, ao servir-se de um leque pluridisciplinar, multiforme e multíplice, na procura de uma extensão esclarecedora, que evita precaver-se, sempre que possível, da dispersão aleatória. As dificuldades a resolver serão decisivas para melhor adequação do Cancioneiro da Ajuda ao conjunto dos elementos que constituem a árvore genealógica da tradição lírica galego-portuguesa e para a deposição de um sedimento a qualquer ulterior prática editorial. Como editar? Será esta a pergunta que permanecerá sempre implícita ao estudo aqui desenvolvido. Deste modo, mais do que outros cancioneiros completamente concluídos, o Cancioneiro da Ajuda institui-se como um programa de antologia – ou de compilação – que, hoje, melhor poderá restabelecer não só os critérios intrínsecos às primeiras disposições quanto à reunião metódica de objectos poéticos, como nos propiciar, ao mesmo tempo, linhas definidoras, conducentes à centralidade da estrutura da confecção de um livro lírico-musical e do apuramento de um molde de escrita literária no ocidente da Península Ibérica nos últimos anos 6 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita do século XIII, ou no início do século XIV, se adoptarmos a incerteza da confecção na passagem de um século para outro. 1.2. História do projecto Talvez pudesse iniciar esta reflexão com um problema que constantemente sobrevoou este trabalho. De quanta linguística precisa um filólogo... E de quanta filologia precisa um linguista... E de que linguística precisa um filólogo… E de que filologia precisa um linguista... Não darei uma resposta unívoca a esta dúvida metódica em dados quantitativos, mas reclamando-me da rígida metodologia continiana e roncagliana, deixarei quase sempre subjacente que o estudo do Cancioneiro da Ajuda (só) poderá progredir entre o estudo da filologia do códice e o estudo da filologia do texto na busca da distinção entre crítica das lições e crítica das formas. Para a primeira perspectiva, a filologia do códice não poderá resistir à análise de um produto que é um texto literário sem os recursos filológicos propriamente ditos (quadro histórico-literário, quem manda escrever, onde se escreve, como se transmitiram estes textos, qual a materialidade da confecção, qual a estrutura da composição dos cadernos, qual a disposição textual, etc.). Para a segunda, a filologia do texto não subsistirá sem o suporte da linguística nos seus ramos mais amplos (como estão transcritos os textos, com que modelo caligráfico, quem escreveu, para quem, a quem se destina a escrita, com que regras, com que infracções, com que competência entre a língua aprendida e a língua copiada, em que condições de fidelidade ou de inconstância em relação ao exemplar, etc.). O meu primeiro contacto com o Cancioneiro da Ajuda procedeu de uma estadia em Itália, no Istituto de Filologia Romanza (Università 'La Sapienza') em Roma, resultante a uma breve aprendizagem de língua italiana na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A escola italiana de filologia e literaturas românicas, a romana em particular, aquela que mais se activava na edição crítica de trovadores galego-portugueses, não podia deixar de estimular uma bolseira portuguesa no projecto de realização de mais uma edição crítica que pudesse contemplar um trovador, cuja identidade, após as investigações de C. Michaëlis, se pressupunha integrar a colecção ajudense. Ao poeta – Rodrigo Eanes Redondo –, pertencente a uma linhagem activa durante os reinados de Afonso III e Denis, senhor em Santarém e próximo do poder régio, deveriam ser atribuídas algumas das cantigas reproduzidas pelo Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1993c). Ora, o Cancioneiro da Ajuda, sem entrar na explicação de um caso peculiar, não desfruta de qualquer rubrica atributiva e, rapidamente, me pareceu que não bastaria editar, adoptando os instrumentos da crítica textual, as cinco cantigas presentes no Cancioneiro da 7 Prolegómenos Ajuda (A 180 - A 181 - A 182 - A 183 - A 184), sem compreender como estavam organizados os trovadores nesta colecção e como, em confronto com o resto da tradição, se poderia efectivamente atribuir ou não estes textos mais a um autor do que a outro. A edição crítica, por outro lado, nunca se poderia privar de um contorno histórico, relativo ao autor das cantigas estudadas. De mais a mais, quando nas primeiras vezes observei o códice, o fólio, que continha estas cantigas, distinguia-se como um fólio desarticulado e sem aderência aos cadernos contíguos apontando, parecia-me nessa altura, para uma situação material bastante fragilizada e obscura. Antes de dar início ao trabalho editorial e, depois de ter feito a transliteração diplomática deste corpus textual, confrontos casuais com outros sectores do manuscrito interpelavam-me quanto à disposição das cantigas e quanto a certos procedimentos gráficos presentes neste pequeno conjunto poético. Parecia-me difícil, para não dizer impossível, encetar uma fixação textual quando a base que a transmitia não me inspirava qualquer probidade. Deste conjunto apenas uma cantiga se encontrava retranscrita nos Cancioneiro Colocci-Brancuti e Cancioneiro da Vaticana, o que não me confortava na procura de apoio crítico em uma tradição mais tardia que, eventualmente, viesse a contribuir para a clarificação de um conjunto poético diminuído pelo testemunho do códice mais antigo e, de forma geral, mais investido de autoridade. Talvez ainda sem uma percepção plenamente fundamentada, devo ter interiorizado e decidido que a edição crítica daquele poeta não se poderia efectuar, em nenhuma circunstância, sem um entendimento global dos critérios subjacentes à disposição de todas as cantigas na colecção colectiva. Para um dos primeiros congressos, dedicados à produção lírica galego-portuguesa (Pisa 1979), pedia-se-me que verificasse o estado material do Cancioneiro da Ajuda, após a descrição do códice de C. Michaëlis em 1904. Passadas dezenas de anos, e no começo da efervescência de estudos sobre cancioneiros, provençais, franceses e italianos no quadro da tradição românica ocidental, procurava-se saber se o Cancioneiro de Lisboa se teria entretanto deteriorado, ou se a descrição de C. Michaëlis teria apurado efectivamente os aspectos mais essenciais do estado material do códice necessários à crítica textual. Mais do que me aperceber da gigantesca perspicácia da eminente filóloga, era dar-me conta de que, além do seu envolvimento na restituição textual, tivera alguma ingerência no restauro de um Cancioneiro, que tinha sido encontrado em mau estado e com cadernos praticamente desagregados. Nas suas palavras, no momento em que o viu, em 1877, dizia que «o volume todo andava retalhado em seis parcellas» (Michaëlis 1904, II: 145) e na substituição 8 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita da encadernação confirmava: «… e dei explicações minuciosas sobre a ordem original das folhas, incluindo as de Evora» (Michaëlis 1904, II: 102). A restauração no «juntar as parcellas» teria sido preparada também com fundamento nos Cancioneiros italianos, que acabavam de ser descobertos em 1840 (Moura 1847; Monaci 1875) e em 1875 (Molteni 1880), o que nos permitia questionar a legitimidade de uma ordem primitiva do Cancioneiro da Ajuda, concordante ou distinta dos cancioneiros italianos. Escrutínios parciais deste confronto não me aconselhavam só à actualização da descrição do manuscrito. Estimulavam-me mais ao estudo do Cancioneiro como um objecto material que detinha um agregado de textos poéticos dissemelhantes e que não parecia ser portador de um corpus textual uniforme. Ao prosseguir o estudo de uma fracção textual, a editar individualmente, retiraria ao conjunto da colecção, em meu entender, um proveito colectivo que concorreria, por certo, para melhor entendimento do sector atribuível a um único autor, Rodrigo Eanes Redondo, ou a qualquer outro trovador. Não sei, mas creio que o nome deste trovador não deve ter entusiasmado muito Lindley Cintra. Mesmo se a edição se alargasse a outros trovadores da família Redondo, a edição crítica de uma produção textual diminuta, e de poetas de algum modo menos renomados, não o animava. No entanto, a força que me impelia ao exame da integralidade do Cancioneiro resistia à colossal edição de C. Michaëlis com os seus milhares de páginas, e a todas as Randglossen que ao Cancioneiro da Ajuda se referiam e, ao mesmo tempo, confrontava-se com as aspirações de Lindley Cintra no que dizia respeito aos estudos necessários à lírica galego-portugesa. A Lindley Cintra, não se instituía, por isso, esta possibilidade de estudo global de um manuscrito como um desempenho profícuo, que já estava amplamente estudado desde o princípio do século vinte – dizia-me –, para no final abordar apenas a elaboração de uma pequena edição crítica de um ou de dois trovadores de uma linhagem discreta. Além disso, acredito que temesse a minha tentação para a execução de um trabalho, excessivamente técnico, ou para uma colecta de dados quantitativos e distributivos, sustentado por matérias que cada vez mais se afirmavam no seu próprio campo de actividade como a Filologia, sim, mas entendida como um conjunto de disciplinas (scriptologia, grafemática, codicologia, paleografia, diplomática, reflexões teóricas sobre metodologias aplicadas ao mais produtivo exercício da crítica textual, etc.), animadas, em particular, por Ivo Castro. Pressinto também que, naquela altura, ao mencionar-lhe alguns aspectos gráficos que tinha detectado naquele abreviado conjunto textual, o alertava para faltas de estudos que o deveriam perturbar. O seu Prefácio à edição fac-similada do Cancioneiro da Vaticana (1973) e o projecto para estudar linguisticamente o Cancioneiro Colocci-Brancuti, anunciado depois na publicação também fac-similada deste cancioneiro em 1982, confirmavam este seu anseio por 9 Prolegómenos uma descrição da língua representada por cada um dos cancioneiros. Assim, verdadeiramente persuasivo, decidiu que a utilidade mais premente não procederia de uma edição de Redondos, mas de um estudo que contemplasse outro propósito que se poderia intitular A língua do Cancioneiro da Ajuda. Não era, com certeza, inédita a alteração que se operava em um plano de estudo, previamente elaborado na dependência de certo manuscrito. Modelo expressivo era o que se lia justamente no prefácio da Crónica Geral d'Espanha de 1344 onde o próprio Lindley Cintra confessava: «…longe estava eu então de suspeitar as surpresas que me reservava o estudo detido do extenso texto. Pensava encará-lo exclusiva ou quase exclusivamente como documento linguístico; o seu interesse histórico-cultural e literário havia de manifestar-se-me pouco a pouco e acabaria por impor-me como mais urgente a tarefa de o revelar, levando-me a deixar provisoriamente de parte o projecto e não menos importante comentário linguístico do texto…» (1983, I: XVII). Não devia na sua determinação estar afastada do seu espírito a ideia remota de Leite de Vasconcellos, expressa nas suas Lições de Filologia, com uma pequena insinuação maliciosa à edição de C. Michaëlis. Na explicação de alguns textos trovadorescos, não se eximia de afirmar em 1911 [1ª ed.] que ao Cancioneiro da Ajuda, depois da edição e investigação de C. Michaëlis (1904), faltava «…ainda um 3º. volume, destinado ao estudo da língua…» (Leite de Vasconcellos 1966: 94, n. 3). Foi com aquela agudeza que Lindley Cintra me desviou completamente de uma edição crítica da família dos trovadores Redondo e me convencia ao estudo de A língua do Cancioneiro da Ajuda. Recordo mesmo que, em momentos mais fervorosos, me instigava ao empreendimento mais ambicioso, o exame da Língua dos trovadores galego-portugueses. A esta distância, não deixa de ser significativo constatar como a primeira aproximação ao Cancioneiro da Ajuda foi motivada por um obstáculo concreto relativo à viabilidade de uma edição crítica de um trovador. E não deixa ainda mais de ser simbólico reconhecer, hoje, que a produção poética, atribuível a Rodrigo Eanes Redondo, após exames históricos e codicológicos, não deve nunca ter feito parte da colecção ajudense. Assim sendo, subsistia o estudo da Língua. Lembro-me, passado algum tempo, de ter saído de Lisboa para Roma com um projecto de trabalho muito bem organizado. Lindley Cintra tinha-me estruturado um plano que se configurava a um índice de uma boa gramática histórica. Convenci-me, e persuadi-o, de que não estudaria a língua dos trovadores, mas examinaria só a língua representada pelo Cancioneiro da Ajuda. Era um Cancioneiro que estava em Lisboa, o acesso ao manuscrito era cómodo, era um Cancioneiro que tinha uma boa edição diplomática e 10 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita era, além disso, um manuscrito que possuía já um largo estudo histórico-literário. Imaginei, por isso, um trabalho bastante exequível, sem obstáculos e sem grandes embaraços metodológicos. Antes do encontro com Aurelio Roncaglia, absorvi os seus trabalhos, La lingua dei trovatori (1ª ed. 1965) para o provençal e a La lingua d'oïl (1ª ed. 1971) para os trouvères. Queria estar muito informada para a reunião onde apresentaria o meu projecto. Repeti infinitas vezes o diálogo imaginário que queria ter com o grande filólogo romano. Arquitectei todas as suas perguntas. Ensaiei a réplica a todas os seus mais prováveis obstáculos. Na minha realidade, estava tudo, as palavras, as pausas, os silêncios, os pedidos de ajuda e de opinião. Mais do que um exame, mais do que uma defesa de argumento, este encontro parecia-me bem preparado. Naquele momento, a língua dos trovadores do Cancioneiro esboçava-se num horizonte quadriculado onde se viam todas as linhas e onde só faltava o preenchimento dos vazios e eu sabia – pensava saber – como preenchê-los. Vieram as perguntas. A mais glacial, só por ter permanecido intacta na minha memória, e por ter desencadeado outras, proferia: como estudar a língua de um Cancioneiro se o objecto cancioneiro não é um objecto uniforme. O Cancioneiro da Ajuda era uma antologia, uma compilação ou uma crestomatia? Quantos autores? Que autores? De onde? Quantos copistas? Quantos organizadores? Que modelo? Que modelos? Até aquele momento, pensava que tinha entendido o essencial do que já estava escrito por C. Michaëlis, julguei que as minhas preocupações com os elementos codicológicos poderiam resolver as questões primordiais ao estudo da língua, mas quase nenhuma daquelas interrogações me tinha ocorrido. Na precipitação do diálogo, parecia-me já que o Cancioneiro da Ajuda não era um, mas vários documentos adicionados uns aos outros. E um estudo de língua, seja ele de que natureza for, não poderia fixar-se do mesmo modo em um texto único ou em uma pluralidade de textos difundidos por uma superfície única. Passado o tempo, que me separa desta conversa, verifico que esta intuição não se averiguou como contrária à realidade. Como avaliar então este corpus que me tinha sido definido como indivisível e compacto? Um livro danificado só pelas vicissitudes do tempo? Já não era só a dificuldade de análise de língua de um texto literário – problema incontornável –, mas de um exame de língua de textos compósitos, aditados uns aos outros em concordância com certos critérios de admissibilidade, que precisavam de ser revelados. Foi talvez naquela tarde de ottobrate romane que a minha linguística se alvoroçou e nunca mais me deixou olhar para o(s) texto(s) nem para a(s) palavra(s) da mesma maneira. Aquela Filologia não era, entendi-o logo também naquelas horas, uma disciplina, era um método de trabalho exigente que se aplica na dependência da natureza do objecto submetido a exame. 11 Prolegómenos Estudar, estudar, comparar, procurar entender, entender, interpretar, repetia-me incessantemente. O objecto impunha certos exames e a análise deste Cancioneiro não poderia contentar-se só com a palavra nem com a superfície gráfica. Era necessário, antes de tudo, decretar se o Cancioneiro da Ajuda poderia ser uma fonte linguística em primeiro lugar e, em segundo, se poderia constituir-se como uma boa fonte linguística. Só não me disse Aurelio que, muitas vezes, o objecto é mais forte do que o observador, por mais obstinada que seja a sua perseverança. Várias vezes, o carácter irresolúvel perseverava. Cada caso instituía-se como um problema em si e não parecia existir um método soberano, capaz de tudo resolver na integralidade. Aprender esta diversa estima pela palavra no sentido mais lato, com tudo o que a envolve – quem a escreve, onde a escreve, com que meios, com que arte, com que organização, com que modelos – e restituir o Texto à sua forma mais genuína – passaram a constituir o alvo do que se pretendia alcançar. Antes de estudo da Língua, era o estudo do suporte da Língua que se sobrepunha. Aí entendi que o meu país, Portugal, possuía um condicionamento. A geografia, este extremo ocidente europeu, tinha implicações na recepção e no entendimento da civilização ou da história das tradições de cultura. Fazendo os mesmos estudos, e aparentemente os mesmos itinerários académicos, não líamos as mesmas coisas, não aprendíamos de igual modo, não procurávamos as mesmas respostas, não tínhamos os mesmos livros…A minha Filologia para textos portugueses, ou galego-portugueses, aproximando-se de uma romanística histórica, não era a Filologia Românica romana. Trabalhar em Filologia Românica, como demonstrava Aurelio Roncaglia, era uma maneira de me dizer que o estudo do Cancioneiro da Ajuda não se poderia nunca fazer sem uma ampla Filologia, sem a compreensão dos outros cancioneiros românicos. À força do entendimento pelo cotejo, que salienta as correspondências e evidencia as disparidades, Aurelio Roncaglia insistia no estabelecimento de limites, não só de um produto literário poético heterogéneo para uma persuasiva restituição linguística, mas na necessidade de recorrer a instrumentos mais potentes para a análise de manuscritos repertoriais, que não só contemplariam as circunstâncias de transmissão textual, como deveriam qualificar as superfícies paleográfica e grafemática, requeridas por um manuscrito definível como arquivo poético inomogéneo. Assim se integrava o Cancioneiro da Ajuda nos projectos de investigação sobre cancioneiros românicos na escola filológica romana – Interrelazioni fra settori culturali distinti nelle letterature romanze del duecento – como mais uma parcela a adicionar ao movimento colectivo de recolhas poéticas medievais. 12 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Uma escola é uma continuidade metodológica, não necessariamente uma homogeneidade de procedimentos – bem sei –, mas foi sobretudo a transmissão de problemáticas constantes na aplicação de métodos comuns que mais permitiram o exame orientado do Cancioneiro da Ajuda. Essa identidade, concentrada na mais ajustada observação do texto literário, não procurava entendê-lo apenas como monumento e produto estético, mas como determinar da forma mais completa possível as circunstâncias de cópia. E um dos pilares desta escola, Monaci, já o afirmava em 1875: «Perchè la futura critica del testo non manchi di fondamenta è necessario di determinare fino che sia possibile in quale modo il testo fu copiato.» (Monaci 1875: XII). Assim, se assinalava esta escola abrangente entre Filologia e Linguística, entre operações ecdóticas, que aprofundam e reaxaminam a metodologia lachmanniana, entre determinação da historicidade do texto e interacções multidisciplinares e multimetódicas no estudo e na fixação das estruturas formais mais profundas e mais superficiais do texto. Da identidade de um texto único, ao qual se aparentava o Cancioneiro, se deveria então irradiar para um policentrismo crítico, preservando sempre a bipolarização entre texto e método filológico, coordenando a cada instante a sistematicidade sincrónica e o movimento diacrónico na organização do Cancioneiro. Nesta estratégia metodológica de conjugação da soma de conhecimentos adquiridos à mais correcta acção de editar, era necessário determinar em primeiro lugar a melhor caracterização possível da fonte que difunde o texto na procura das condições que teriam envolvido o acto de escrita. A preocupação essencial na obtenção de um texto original centravase na possibilidade de uma edição exegética, ao restabelecer e avaliar os comportamentos da escrita do Cancioneiro da Ajuda para decompor uma tradição textual que nos chegou adulterada. Dado o seu carácter de objecto textual complexo, a pesquisa teria de prefigurar, para já, o contorno do estádio gráfico representado, mais do que reconhecer uma superfície apta a um aproveitamento como fonte linguística. Uma fonte que se distingue não no sentido em que normalmente encaramos as fontes escritas do passado – grafias que podem ou devem deixar transparecer estádios passados de língua –, mas como uma matriz complexa. Uma fonte que não se evidencia só pela intervenção diversa de mãos, mas pela variedade de materiais e pelo procedimento organizativo que deixa entrever um plano que agregava produtos de diversas autorias, procedências e de distintas cronologias. A reconstituição do desempenho da cópia textual e o reconhecimento dos modos de traslado tornavam-se assim essenciais para a caracterização de uma escrita literária, que teria ou não eliminado na obra colectiva a especificidade própria de cada obra individual. 13 Prolegómenos Foi com esta trajectória metodológica que os primeiros ensaios sobre o Cancioneiro da Ajuda se focalizaram sobre o «porquê» de certos aspectos que pareciam depender directamente de uma organização voluntariosa do manuscrito. O primeiro deles interrogava a falta de um sistema numerativo original do códice. Uma tipologia numerativa constituiria pela própria índole o primeiro elemento que corroboraria determinada sucessão de cadernos e de fólios no manuscrito. O ordenamento textual, revelado pela numeração, poderia concorrer para a instituição de uma tipologia estrutural procedente de preceitos baseados na geografia (autores galegos, autores portugueses, outros autores, etc.), na cronologia (trovadores mais arcaicos, trovadores mais recentes, etc.), ou em qualquer outra norma avaliativa quanto à inclusão do material poético. A ausência, quase total, de processo de numeração primitivo evidenciava um dos problemas sérios referente à ordenação textual, sobretudo quando sabíamos que a encadernação no século XIX tinha sido supervisionada por C. Michaëlis que interpretara e avaliara muitas das sequências textuais que hoje conhecemos. Os sintomas, portanto, quanto a uma disposição original de autores não eram automaticamente demonstráveis e, ao mesmo tempo, o único indício, deixado pelas assinaturas primitivas apenas em dois cadernos, não se combinava com a ordem actual. A formulação de juízos interrogantes consentia a expressão de algumas conjecturas, pelo menos, quanto ao significado das duas indicações numerativas e deixava objectivamente entrever problemas sérios na linearidade da disposição daqueles sectores (Ramos 1985). Uma vez que o Cancioneiro da Ajuda se mostrava como um manuscrito incompleto textualmente, e inacabado materialmente, a análise dos espaços deixados em branco tornava patente que os vazios não eram, afinal, resultantes a fortuitos actos de cópia, destituídos de sentido, mas à vacuidade correspondia um programa dotado de sistema que anunciava processamentos separativos quanto à inserção dos trovadores. Cada conjunto textual acatava certo número de regras decorativas, o que de algum modo concedia ao Cancioneiro da Ajuda, apesar da ausência de rubricas atributivas, princípios de repartição autoral e textual bastante nítidas. Este factor permitia rediscutir e reanalisar alguns casos de atribuição complexa, resultantes de distúrbios ocorridos na tradição posterior. O Cancioneiro da Ajuda não era, afinal, um manuscrito que reunia um conjunto de textos anónimos, mas uma colecção que recolhia um número determinado de autores, mesmo sem nome, identificável por um sistema rígido da respectiva disposição textual (Ramos 1986ª; 1986b). Outro estudo, apesar de publicação com data anterior, derivava ainda da inspecção dos espaços em branco. A previsão musical, perfeitamente comum, na primeira estrofe explicava-se por uma suspensão do trabalho, ou por uma dificuldade no recrutamento de técnicos especialistas na transcrição musical. Mas o mesmo tipo de previsão em alguns finais das 14 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita composições poéticas, nas fiindas, demonstrava também uma previsão para uma escrita musical. Esta, verdadeiramente insólita, não se adequava de modo algum aos modelos que se conheciam da transcrição musical conhecida em outros cancioneiros. Perante o carácter extraordinário deste fenómeno, que se comprovava não constituir um equívoco de quem copiava, o Cancioneiro da Ajuda assumia novo papel determinante em toda a produção medieval europeia. Não se conhecem hoje outros cancioneiros que tenham transmitido este elemento musical para a interpretação do remate conclusivo das cantigas e diversos estudos musicais mais recentes vieram corroborar esta excepcionalidade (Ramos 1984; Ferreira 2004). O papel musical do códice acentuava-se com outra observação que poderia cair na explicação da banalidade de uma incorrecta separação de palavras na escrita medieval. As separações silábicas e intervocabulares, que se documentavam nas estrofes com previsão musical, não eram consequentes a um comportamento arbitrário gráfico, mas a uma correspondência precisa na dispositio do texto à notação musical do modelo. O posicionamento literal, subordinado à escrita musical, não podia ser examinado na imperfeita união e separação de palavras, mas como um elemento imprescindível à presença ou ausência, por exemplo, de contiguidades gráficas e melismas musicais. A separação gráfica apontaria em muitos casos para alongamentos de sílabas na interpretação do canto, cujos melismas, não precisariam de uma representação hiática do ponto de vista gráfico. Além disso, a mise en texte permitia assim solucionar problemas de transmissão textual (fiindas com espaço interpretadas como composição monostrófica) devidos ao distúrbio suscitado pelo espaço musical nas primeiras estrofes e nas fiindas (Ramos 1985; 1995; 2005; Ferreira 2004). O silêncio musical abre perspectivas analíticas muito significativas, quer para a interpretação de certos procedimentos gráficos, que procedem da configuração física, quer para a funcionalidade de um manuscrito de natureza musical previsto para leitura à distância, exposta para partitura de canto. O carácter inacabado do manuscrito permitiu também o estabelecimento de uma tipologia procedente da descodificação do programa textual da colecção. A eloquência dos espaços em branco, como na altura denominei, não só divulgava uma explanação quanto ao programa decorativo em geral, não só mostrava como esta indicação, aparentemente só estética, favorecia uma intencional separação de autores, mas desvendava também suspensões textuais indubitáveis. O carácter pendente conferia desta maneira insuficiências aos modelos do Cancioneiro da Ajuda. Não só não comportariam materiais de óptima qualidade, como o compilador, ao prever espaços para ulterior preenchimento textual, apontava-nos a faculdade de em outro momento poder aceder a outros materiais mais ricos e mais completos para a sua 15 Prolegómenos colecção. Uma tradição que circulava, portanto. Assim, se caracterizava em alguns sectores um dos primeiros indícios sobre o carácter mediano dos exemplares, mas ao mesmo tempo excluíase a prática de composições monostróficas na lírica galego-portuguesa figuradas pelo Cancioneiro da Ajuda, como se podia constatar em outras tradições líricas. A antevisão textual nestes casos sugeria o perfil de um coleccionador ciente de uma tessitura formal que o seu modelo trazia em modo truncado (Ramos 2004; 2006). Por outro lado, a observação das correcções marginais possibilitava presenciar o cuidado explícito na verificação da transcrição textual de quem copiara, mas vinha sobretudo mostrar neste cotejo que os materiais utilizados para a averiguação textual do Cancioneiro não eram em todas as situações da mesma índole. O acesso a outras fontes para confronto punha em evidência o testemunho directo relativo a materiais perdidos de melhor qualidade que serviram para melhorar algumas lições primitivamente copiadas e que nunca chegaram a ser utilizados pelo antecedente dos cancioneiros quinhentistas. A revelação destas fontes laterais concedia ao Cancioneiro da Ajuda um valor inestimável não só pela sua alta cronologia, que era em parte conhecida, mas especialmente pelo testemunho sério de uma tradição textual activa, talvez mesmo contaminada por fontes não identificáveis fora do stemma (Ramos 1993). Foi o exame das emendas marginais que me fez aproximar das assinaturas do antigo possessor do Cancioneiro da Ajuda. Assim, surgia pela primeira vez na história do manuscrito o nome de Pedro Homem, poeta incluído no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende e estribeiro-mor de D. Manuel I, proprietário do códice no século XV. Todavia, além da presença do Cancioneiro da Ajuda nas mãos de um cavaleiro próximo da corte régia, víamos que uma das suas composições poéticas quatrocentistas mencionava justamente o rei D. Denis como poeta. A caracterização do perfil deste poeta permitiu localizar o Cancioneiro da Ajuda em Évora durante o século XV e a referência a Obras del Rey Dom Denis, descoberta no catálogo de D. Teodósio (1510?-1563), quinto duque de Bragança, apontava para a presença meridional do códice em ambientes régio, cortesão e senhorial durante este período (Ramos 1999; 2001). A história do manuscrito precisava-se, os critérios organizativos transpareciam e estes dados apontavam para hipóteses constitutivas de um códice que nunca deveria ter sido concluído, o que por outro lado, questionava a possibilidade de entrever um manuscrito nunca aprontado como objecto para oferta ou troca. De algum modo este carácter não findado invalidava a suposição de um Cancioneiro, confeccionado em Castela, suspenso pela morte de Afonso X, mas oferecido a D. Denis. Parte destas ilações foram sinteticamente expostas no estudo que acompanhou a edição fac-similada do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1994). Mas de tudo isto ressaltava fundamentalmente a noção de que, interrogado o Cancioneiro da Ajuda, ele não se poderia erigir como fonte linguística primária e uníssona. 16 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Além da sua qualidade cronológica, tinha de ser visto como livro miscelâneo e não como livro unitário. Se o carácter literário estorva e frustra exames de reconstituição linguística, mais decepcionante seria a apresentação de um sistema linguístico recolhido em uma fonte multíplice e alheia aos ditames mais incontornáveis (transcrição não autógrafa, omissão de data e de local, pluralidade de autores, de proveniências e de cronologia). O Cancioneiro da Ajuda não mostrará mais do que uma variedade escrita de uma língua literária, historicamente determinada, que foi objecto de codificações significativas. 2. Apresentação do estudo 2.1. Objectivos O enunciado dos objectivos deveria proteger-se sob a precaução expressa por G. Contini que, acerca das dificuldades da análise formal, dizia na sua famosa Postilla 1985 ao ensaio Filologia: «È certo che in linea generale maggiori difficoltà sorgono attualmente dalla riscostruzione formale che da quella sostanziale» (Contini 1986: 64-65). O seu «attualmente», daquela altura, deve introduzir hoje o mesmo tipo de cautela. Perante a complexidade de problemas colocada pelo manuscrito e perante alguns dos resultados, entretanto obtidos, o projecto deveria prosseguir não só pela pesquisa da mais apropriada explicação quanto à composição do manuscrito, mas também pela indagação de sintomas que deveriam caracterizar este Cancioneiro como um manuscrito que, presumivelmente, não seria apenas uma cópia simples e parcial de um modelo estável. O presente estudo retoma naturalmente a análise de 1904 e inscreve-se em uma metodologia que tem como suporte uma selecção de instrumentos codicológicos e de indicadores grafemáticos que conduz a uma descrição pormenorizada quanto à história material do manuscrito, ao modo subjacente ao plano, à organização, à execução, à sequência dos trovadores, ao ordenamento dos textos, à mise en page, à mise en texte, à ausência de uma mise en livre inicial, etc., e à superfície textual, propriamente dita, isto é, à apreciação dos sistemas paleográficos e grafemáticos adoptados pelo conjunto da colectânea. Não sendo explícito por um cólofon o local de produção do Cancioneiro, a análise de alguns procedimentos da própria confecção ou da morfologia paleográfica não elucidam, no entanto, um scriptorium preciso, mas enumeram princípios e critérios que dirigiram a cópia deste texto literário, mesmo se sabemos, hoje, que elementos concordantes não definem necessariamente um atelier ou um ambiente particular. Se o exame paleográfico-grafemático poderá explicar alguns dos mais complexos problemas ecdóticos, que se colocam na exegese de 17 Prolegómenos uma tradição antológica, o questionário grafemático orientado pretende determinar a coerência de um comportamento (micro)gráfico ou (orto)gráfico do(s) copista(s) perante o(s) texto(s) isolado(s) do(s) trovador(es) ou perante a(s) colectânea(s) que devia(m) transcrever. O propósito mais essencial busca alcançar respostas sobre a construção do manuscrito e sobre a implicação dos responsáveis no conjunto de actividades indispensáveis à edificação de um códice poético de grande formato. Tentar saber como foi arquitectado o Cancioneiro era uma maneira também de entender como é que os textos, que hoje conhecemos, se encontravam recolhidos nesta colecção. Porque é que os textos incompletos estavam circunscritos só a certos sectores? Porque é que alguns textos estavam limitados a uma única estrofe? Porque é que alguns ciclos textuais calculavam espaços mais ou menos abundantes de pergaminho para outros textos, quando sabemos que o desperdício de pergaminho não qualificava a confecção manuscrita medieval? Como justificar a presença de uma duplicação textual, e como fundamentar as correcções marginais, inseridas ou não no corpus poético principal. As rasuras procediam de quem copiava, ou de quem emendava? E como avaliá-las? Como simples verificação textual pelo modelo de base para a correcção de alguns erros de copista? Ou por um cotejo textual diferenciado mais apropriado? A observância do trabalho de traslado textual obtém resultados que decorrem do modo de inclusão dos diversos ciclos na organização colectiva, e permite formular importantes reflexões sobre a configuração estemática e sobre a função que efectivamente desempenha o Cancioneiro da Ajuda na história da tradição literária galego-portuguesa. Da circunstância incontestada de um manuscrito incompleto e inacabado, definida em relação a vários pontos de referência, resulta um manuscrito, que ao não ter existido nunca como livro completo, evidencia fases de fabrico que as vicissitudes temporais não suprimiram. Toda a problemática inerente a uma tradição textual heterogénea acentua-se neste caso com um trabalho que ainda estava a ser organizado, um projecto que estava a decorrer. As consequências textuais de uma tradição repertorial sublinham a dificuldade de um traçado de um plano ecdótico com um manuscrito além do mais não finalizado. As interrogações quanto à consistência do arquétipo solidificam-se e a comprovação de possibilidades de aproveitamento de mais de um modelo constrange a observação crítica de qualquer sector e confere ao Cancioneiro da Ajuda um estatuto muito mais valorizado que anula a simples passagem instintiva de um exemplar a uma cópia. Além do trabalho sem real finalização, as implicações do formato e da índole de um manuscrito musical instituir-se-ão na configuração textual como vias incontornáveis, quer na cópia textual (cópias, correcções, mudanças de mão, tintas, lacunas, insuficiências decorativas, 18 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita etc.) quer nas opções gráficas tomadas por cada um dos intervenientes na cópia das cantigas (preferências, ou renúncias, concedidas a um ou a outro sinal gráfico, etc.). A questão substancial pode então cingir-se a uma de duas possibilidades: terá sido a diversidade textual submetida a uma tessitura gráfica coesa, ou a transcrição espelha-nos ainda estádios preliminares e diatópicos da tradição? Qualquer um dos desfechos auferidos não deixará de concorrer para um exame ponderado quanto ao modo de propagação desta poesia medieval entre produção individual e recolha colectiva, tendo presente que a constituição deste projecto se efectua ainda durante certo dinamismo do movimento poético trovadoresco. Os exames textuais por si só não bastavam. Outras questões impuseram-se. Como interpretar certas imprecisões de natureza material? Quais os motivos que justificam a permanência de apenas duas assinaturas em dois cadernos? Como apreçar a disposição de fólios soltos em certos sectores do manuscrito? Como avaliar a colocação assimétrica do pergaminho em determinadas zonas? É da articulação entre a análise material e o posicionamento textual que provirá a descrição da estrutura dos cadernos e dos fólios soltos, e da arrumação das cantigas que, por sua vez, explicitará sequências sem decursos e incorporações mais diferenciadas em relação ao conjunto. As inclusões textuais mais avulsas forçaram a investigação para o exame decorativo e para a própria encadernação. Uma estrutura fascicular resistente apontaria para um estádio mais determinado e mais disposto para a operação final de um conjunto de cadernos prontos para o acto de encadernação. A ideia geral, bem propagada, de que o carácter incompleto do Cancioneiro da Ajuda provinha de uma laboração em um scriptorium afonsino, suspensa pela morte do rei (Alfonso X morre em 1284), evidenciaria em princípio maior número de negligências nos sectores finais. Ora, o exame decorativo facultará indícios significativos para a reconstituição de um trabalho estético com mais forte implicação na organização textual, do que na ornamentação de um manuscrito. Porquê? Da mesma maneira, os diversos estádios da encadernação do códice vão contribuir para dar a conhecer situações materiais significativas quanto à existência ou falta de uma protecção primitiva em um conjunto de cadernos de um projecto que não estava terminado. Estas operações, que em diferentes momentos revestiram este conjunto de cadernos, não só podem explicitar um itinerário cultural, como confirmar o carácter precário do aspecto geral do códice. Com este tipo de cômputo poder-se-á implementar um conjunto de instrumentos editoriais indispensáveis à análise de um texto único, ou de um ciclo de textos, interposto nesta tradição de formas multíplices. Ao definir como discordante ou idêntica a actuação de quem copia, ou de quem orientou a cópia, em relação ao(s) modelo(s), poderá depreender-se melhor a inserção textual no objecto Cancioneiro. 19 Prolegómenos O livro medieval é, na maioria das vezes, um livro compósito ou, pelo menos, miscelâneo, contendo obras de mais de um autor. Se esta afirmação é válida para recolhas de vários tipos de textos, ainda mais convincente se converterá no caso de colecções, que contêm obras em verso de mais de um poeta. Quer se preconize para estas colecções uma noção de antologia, que implica naturalmente critérios de escolha na obtenção de um cânone, quer se esteja perante uma colecção de obras reunidas na urgência de uma base compilativa, o Cancioneiro da Ajuda ilustrará estas diferentes atitudes. Alguns sectores parecem responder ao critério da escolha e outros retratam o acto da compilação. O exame paleográfico, além de ilustrar performances técnicas expressivas, revelará procedimentos gráficos particulares dependentes de um grande formato, de uma disposição textual e da natureza musical do códice. Mais do que a demarcação de mãos, é a aplicação mais ou menos disciplinada de procedimentos específicos para o tipo de gótica seleccionada que melhor caracterizará o comportamento vigilante na transcrição destas cantigas. A estratificação, física e paleográfica, poderá ser em parte validada pela análise grafemática, que tanto apontará para superfícies gráficas de grande uniformidade, como pode demonstrar a particularização de sectores bem demarcados no conjunto das adições textuais. O estudo da mise en graphie procurará assim entrever se às unidades compactas se sobrepõem ou se sobpõem estratos diferenciáveis que possam acusar itinerários textuais distintos. Deste estudo resultará que a disposição paralela ou subparalela não se posiciona apenas no plano de uma degradação material de um códice, mas procede de circunstâncias sucedâneas a um projecto que não chegou a ser efectivamente um Cancioneiro acabado. O Cancioneiro actual é o que nos subsiste de um plano organizativo de um programa de recolha de poesia lírica galego-portuguesa, que ainda estava a transcorrer, não o esqueçamos. O processo de cristalização material apontará para a coexistência de mais de um modelo para a confecção desta recolha e a interligação entre a fenomenologia interna (corpus textual) e a composição reconhecida pela fenomenologia externa (produto codicológico) revela uma contextura que anula a simples reprodução de um cancioneiro a outro cancioneiro. A consideração dos problemas materiais e dos estratos paleográficos e grafemáticos permite explicar as várias irregularidades, quer no plano da tradição textual, quer no plano da produção de um objecto-cancioneiro específico quanto à configuração física (ordem de grandeza, manuseamento e funções vitais para o canto e exegese musical) e quanto à visibilidade gráfica para uma leitura dinâmica (velocidade e eficiência de leitura, reconhecimento de hábitos e de técnicas de leitura em uma escrita prevista para a interpretação coral). 20 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Qualquer exercício de crítica textual, individual, ou em série, referente ao Cancioneiro da Ajuda, deverá assim com base em este tipo de investigação considerar as contingências, codicológicas, paleográficas e grafemáticas, quer quanto a decisões subordinadas a critérios de transcrição, quer quanto ao lugar que ocupam os textos e os trovadores insertos na colecção ajudense. Mais do que prosseguir na busca obsessiva e na reconstituição de um «original», convirá ainda aprofundar o conhecimento do Cancioneiro da Ajuda, através de trabalhos futuros com materiais codicologicamente, ou tematicamente comparáveis. Assim, se poderá melhor reconstruir a identificação quer de uma tradição paleográfica comum por meio de formatos análogos, quer por opções paleográficas específicas no cumprimento ou na infracção às regras da gótica. À identidade grafemática, dependente de preferências paleográficas, poderá também ser alargada em trabalhos de grafemática comparativa, quer dizer em estudos que possam relacionar procedimentos grafemáticos nos mesmos modelos de escrita. Dito de outro modo. De pouco nos servirão trabalhos de grafemática comparativa entre escritas cursivas e escritas góticas formais, ou entre casos de mise en texte para prosa e outros para poesia (disposição horizontal ou vertical), mas o cotejo paralelo entre procedimentos grafemáticos em um mesmo protótipo de escrita trará seguramente resultados que irão de par entre a rigidez paleográfica de um modelo e a actuação grafemática de uma representação de um sistema linguístico para determinado tipo de texto. A centralização no estudo do Cancioneiro da Ajuda não se protege, por fim, por uma aparente recuperação bédieriana, ou tão-pouco por um neobédiarismo. O Cancioneiro da Ajuda não poderá, enquanto tal, caracterizar-se nunca como um bon manuscrit, mesmo na mouvance de uma tradição lírica complexa. Pelo contrário. O recurso a potentes instrumentos de análise para a fenomenologia codicológica e para o modus operandi da reprodução textual em um único Cancioneiro tende, aqui, muito mais para a busca do profiling de uma diacronia e de um diassistema textual sob bases neolachmannianas no estudo da variantística e na acurada descrição crítica do zelo ou da displicência formal. Uma ampla recensio e uma ampla interpretatio, que confortará ou não o recurso último à emendatio, se temos presente a constatação de recensio aperta em alguns casos. 2.2. Estrutura e organização Este trabalho encontra-se estruturado com base em duas partes principais subdivididas em vários capítulos. A Parte Primeira. O códice e uma Parte segunda. A Escrita. A Parte Primeira. O códice apresenta a História do manuscrito que foi possível reconstituir. Após as propostas de C. Michaëlis (1904), G. Tavani (1967 e estudos posteriores) e 21 Prolegómenos de António Resende de Oliveira (1994), releva-se agora a importância da identificação de Pedro Homem, possuidor do Cancioneiro da Ajuda durante o século XV com o reconhecimento da mais antiga referência conhecida à produção poética a D. Denis e deve salientar-se a plausível presença do códice na biblioteca de D. Teodósio, quinto duque de Bragança no século XVI (capítulo 1). São expostas de seguida as características internas ao códice (descrição codicológica, constituição dos cadernos, preparação dos fólios, numerações, mise en page, mise en texte, espaços, revisões textuais, anotações, etc.). Deste corpo de investigação sobressai a dependência de um formato próprio à condição musical do manuscrito e à interpretação da dispositio textual que se aufere como factor determinante para a concepção organizativa de uma obra colectiva e destituída de rubricas de atribuição autoral. A fragilidade constitutiva de muitos cadernos, os fólios soltos e outros elementos de insuficiência material coadjuvam o sentido das conjunturas ligadas à confecção (do capítulo 2 ao capítulo 6). O estudo da decoração e das peças estéticas, que abrilhantam o fólio, comprova que o programa ornamental não exerce apenas uma função alusiva a um intento artístico, mas à determinação de um conjunto de procedimentos interligados à separação autoral e à posição harmonizada de cada série textual. O exame dos elementos decorativos mostrará ainda que, contrariamente à ideia difundida de um Cancioneiro inacabado por falta de promotor, ou por motivos pecuniários, o trabalho ornamental já se apresentava em condições bem precárias no início do estado actual do códice (capítulo 7). O exame dos processos de encadernação do códice permitiu ir mais longe no procedimento reconstrutivo, delimitando várias fases na protecção dos cadernos subsistentes, quer no estado de simples tábuas nuas, como no estado do revestimento com pele. A identificação tanto dos elementos decorativos gravados como dos fechos abre novas perspectivas de investigação quanto aos processos técnicos efectuados para o Cancioneiro da Ajuda e quanto à história da encadernação em Portugal (capítulo 8). Conclui-se esta Parte Primeira. O códice com um ajuste interpretativo entre a estrutura material e o conteúdo. Por um lado, procura-se refazer o itinerário da constituição do Cancioneiro. Por outro lado, articula-se um conjunto de hipóteses quer na linha de reconstrução do modelo textual para o esboço do perfil do compilador, quer na reconstrução das condições materiais para contorno do perfil de um scriptorium. A combinação destes elementos conduzirá à formulação da hipótese de reconstrução de um manuscrito-arquetípico e de um desejável perfil paleo- e (estrati-)gráfico (capítulo 9). A Parte segunda. A Escrita decompõe-se em um primeiro sector que contempla a estrita superfície gráfica do ponto de vista dos modelos de escrita escolhida. Assim, é caracterizado o 22 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita modelo de gótica adoptado e assim são descritas as mãos participantes no decurso da cópia. Às diferentes intervenções, analisam-se as particularidades na repartição do trabalho e descrevemse as principais características inerentes ao molde técnico como o cumprimento ou infracção às regras canónicas, como a aptidão ou imperícia na prática do sistema abreviativo ou no peculiar recurso a siglas (capítulo 1). A Descrição de grafias traduz nesta parte o corpo fulcral da investigação, encontrandose disponível nos diferentes capítulos a informação essencial e, em alguns casos, acessória à obtenção do conhecimento do estrato gráfico presente no Cancioneiro da Ajuda. Inicia-se este capítulo com uma análise aos processos de transcrição, perfilhados pela edição crítica (Michaëlis 1904) e pela edição diplomática (Carter 1941). Segue-se uma extensa reflexão sobre a problemática relativa ao escrutínio gráfico em objectos de índole colectável como os cancioneiros sob o ângulo da constitutio textus. As questões metodológicas apontadas ilustram as dificuldades inerentes a qualquer exame de natureza grafemática, efectuado em um manuscrito concebido no decurso de uma tradição e não proveniente de uma tradição estática. À consideração da língua literária são inseridas referências à incorporação de empréstimos («castelhanismos», por exemplo) que tanto documenta o estádio da fixação da escrita literária, como deixa transparecer a essência da cópia (capítulo 2). O questionário grafemático estabelecido baseia-se em grafias diagnóstico que melhor podem identificar a eventual estratificação. São assim examinados os seguintes indicadores grafemáticos: (i) uso de <j>, <y>, <ỹ> / <y>, <i>; (ii) uso de <g>, <gu>; (iii) uso de <h>; <iv> uso de <x>; (v) uso de grafemas duplos; (vi) uso de grafias cultas; (vii) uso de <s>, <ss>; (viii) uso de <c>, <ç> e <z>; (ix) uso de <ll>, <l>; (x) uso de <nn>, <~n>, <ñ>. À descrição das ocorrências dos factos mais significativos, segue-se um comentário que procura retirar da ocorrência da distribuição, da raridade, da repetição e da alografia, dados que contribuam para a caracterização do fenómeno apurado e para o seu envolvimento na tradição textual onde comparece (capítulo 3 e respectivas subdivisões). O Epílogo procura estabelecer, tal como no final da Parte Primeira. O códice, um ajuste de equilíbrios entre a opção gráfica e o formato com hipóteses conducentes ao perfil da escola gráfica, sobretudo pela disciplina de um preparo de escrita a um livro musical. Neste quadro, são sintetizadas as relações entre copistas e a acção da dinâmica textual. Com este desfecho reúnem-se informações mais expressivas que apontam tanto para uma padronização gráfica, como para a subsistência de alguns substratos gráficos. Chega-se ao termo do estudo com a caracterização do Cancioneiro no plano de uma hegemonia grafemática significante com algumas estimativas plausíveis quanto ao carácter das fontes utilizadas para a sua confecção. Mencionar suposições quanto a procedências textuais 23 Prolegómenos significa reavaliar a posição estemática do Cancioneiro da Ajuda e dos seus textos no conjunto da tradição lírica galego-portuguesa. 2.3. Um Cancioneiro singular Não é certamente um objecto trivial aquele que foi alvo de várias edições e aquele que, ao inspirar-se da data de publicação de uma monumental edição crítica (1904), promoveu a realização de dois colóquios internacionais no mesmo ano (2004), um em Santiago de Compostela em Maio, mais centrado nos estudos sobre o Cancioneiro, e outro em Lisboa em Novembro, mais dirigido para o próprio manuscrito. A singularidade do Cancioneiro da Ajuda não se circunstancia tanto pela alta cronologia ou pelas dimensões impressionantes para um livro de poesia medieval. As suas características distintivas advêm mais da sua condição de Cancioneiro inacabado do que da sua condição de Cancioneiro destroçado, lacunar e incompleto. A preocupação constante no vaivém permanente entre o que nos transmite o manuscrito, o que nos demonstrou C. Michaëlis e o que nos diz o resto da tradição cancioneiresca românica, esbarrou muitas vezes com a qualidade do que é ímpar no Cancioneiro da Ajuda. Como se no Cancioneiro da Ajuda o mostrar sem desvendar impedisse actos de decifração que traduzissem um pensamento cultural próprio à configuração de um objecto enigmático. Um objecto particularmente exigente, pode dizer-se! Parecia não haver solução para o Cancioneiro, sendo o que sou e sendo o Cancioneiro o que é. À força do exercício comparativo e às experiências, acumuladas pelo que revelavam outros cancioneiros foi possível, creio, prosseguir na caracterização da beleza imperfeita do mais belo dos nossos cancioneiros. Diagnosticar parecia cristalino no procurar a natureza e as causas da afecção, mas a interpretação exigia sempre um submergir franco e, de certo modo, instintivo na obra, quase até pela pura sensualidade de a tocar na demanda do entendimento. O trabalho meticuloso que pretendia esgotar os infinitos níveis de análise de um livro inorgânico, o desejo impossível de nada deixar por saber mostrava como o tratamento não dava mostras de ser sempre o mais infalível. Saber não quereria dizer sempre compreender. E várias questões ficaram por solucionar. Onde foi efectivamente copiado? Por quem foi efectivamente encomendado? Por que é que foi efectivamente interrompido? Que modelo estético esteve por detrás deste plano? A concepção imperfectível serviu curiosamente como guião para a reconstrução das diversas fases na composição do Cancioneiro da Ajuda. Foram as circunstâncias de estado perene de um livro de música, mais do que um livro de poesia, que exigiram uma convergência pluridisciplinar (história literária, história medieval e renascentista, história da música, história de arte, codicologia, paleografia, etc.). Foi através do recurso a estas matérias que foi exequível 24 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita auferir de uma concentração informativa sobre a estrutura do códice e sobre o modo de transcrição textual. Foram, por exemplo, os estudos sobre a notação musical em diferentes cancioneiros nos casos de envoi ou de tornada, que propiciaram a valorização melódica nas fiindas no Cancioneiro da Ajuda. Foram também os estudos de sistemas decorativos em outros cancioneiros que de algum modo possibilitam a compreensão do processo subjacente à planificação do Cancioneiro da Ajuda com miniaturas inaugurativas e com tipologia decorativa hierarquizada na construção de cada ciclo poético. Os momentos distintos para as encadernações só adquiriram maior autoridade, após o confronto com modelos estilísticos que não são exclusivos nem de Portugal, nem da Península Ibérica. Da confluência destes conhecimentos trouxe o Cancioneiro da Ajuda uma valia ainda mais eloquente quando damos conta de que a mise en page, a mise en texte, e mesmo a mise en graphie, não chegaram a consentir uma qualquer mise en livre final. Nestas circunstâncias, não só os espaços separadores entre poemas, que lhes fornecem individualidade, como a totalidade do conteúdo e a organização interna, interligada à materialidade codicológica, contribuem para a significação de um fragmento musical, que subsistiu apesar das contingências de um projecto inacabado e inicialmente não protegido por pastas de encadernação. Não estamos, estou convencida, perante actos de destruição intencional que, transcorrido o interesse poético, tenham desmantelado o Cancioneiro para qualquer aproveitamento material de fólios. Não estamos diante de um fragmento, que tenha subsistido ao estrago, estamos na presença de um objecto que é resultante de um programa que não foi levado a seu termo. O projecto textual não se concluiu nem na melhoria de textos insuficientes, nem sequer na integralidade do que estava previsto. Mas, mesmo assim, os elementos pressentidos para a construção do suporte não foram igualmente ultimados em nenhum sector. É um dado insubstituível para a compreensão da tradição textual, porque o Cancioneiro da Ajuda mostra ainda momentos de recolha e de selecção de materiais. Remanesceu assim, face ao tempo, um conjunto de cadernos, talvez mesmo desunidos uns dos outros, entre os finais do século XIII e o século XV. Não deve tão-pouco admirar que o corpo inicial, referente aos primeiros cadernos, se tenha extraviado, mais do que algumas secções que indiciam interpolações e concretas paragens de cópia. Nessa altura, talvez nos séculos XIV ou XV, grandes tábuas vão proteger uma pluralidade textual coerente, um Livro Miscelâneo, bem próprio da época. Ao conjunto de poemas sem nome de autor é associado outro fragmento linhagístico com implicação autoral mais renomada. Assim, a encadernação abrigará duas obras fraccionárias de livros unitários, uma ligada ao Conde D. Pedro, outra, pensava-se, atribuível a D. Denis. 25 Prolegómenos Cortes régias e senhoriais, pré e renascentistas no sul de Portugal, favoreceram a continuidade de um projecto grandioso que, talvez pela sua magnificência, não usufruíra de todas as condições para ser concluído. É por isso que a utilização do códice, comprovada durante o século XV, a atestação de posse e os comentários sugeridos pela leitura vão conformar a sobrevivência de um resto de Cancioneiro em um período que nos facultará a sua conservação até hoje. Foi, de facto, o uso quatrocentista e quinhentista que construirá a memória trovadoresca através da conservação do que será conhecido como Cancioneiro da Ajuda. O trabalho sobre este Cancioneiro singular propõe, em resumo, dados objectivos de natureza mecânico-experimental, mas também sugere opiniões, quer dizer maneiras de pensar, de ver, de julgar e de afirmar que procuram, no entanto, reduzir o mais possível a margem da subjectividade. São sempre apreciações resultantes de um sentido que procurou ser dado aos sintomas observados. Em uma crítica como esta, a intervenção conjectural é inevitável. Mesmo que ela se apoie na confluência de sinais consentâneos, a pressuposição contribuirá para um apuramento progressivo entre o que realmente é intrínseco ao texto e o que é próprio à transmissão. Mas as convicções não são necessariamente certezas. E tantas vezes me pareceu que era ainda importante aceitar banalidades para poder talvez entrever certezas. E abranger a perpetuidade de todas as dúvidas, acabou por me resguardar sob a efemeridade de todas as certezas. E, na verdade, le temps n'épargne pas ce que l'on fait sans lui… 26 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita *** É natural manifestar gratidão a quem me acompanhou e auxiliou na elaboração deste trabalho. O reconhecimento é, em primeiro lugar, de carácter institucional. À Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que, desde as aulas de Introdução aos Estudos Linguísticos, me concedeu meios metodológicos para examinar a Língua e como interpelar a Língua passada. É esta Faculdade, já com o seu Departamento de Linguística, que ainda me consentiu a faculdade de fruir de uma formação magnificente em um período de experiências, que abriam acessos no quadro académico português, a novas matérias com direito às primeiras programações independentes. História da Língua Portuguesa, Gramática Histórica do Português, Filologia ou Crítica textual no sentido da procura de um olhar rigoroso para um texto que, antes de ser lido e interpretado, deverá estar sempre tão próximo quanto possível daquilo que o seu Autor escreveu. A anuência na circulação interdepartamental e interdisciplinar consentia também neste período a participação em disciplinas como a Paleografia, a Diplomática e a Codicologia, o Latim vulgar, ou mesmo a aproximação à Língua e à Cultura de Itália. Em segundo lugar, a contingência que, auspiciosamente, me favoreceu o contacto com o Istituto de Filologia Romanza da Università 'La Sapienza' em Roma. Novas maneiras de estudar e, sobretudo, novos modos de aprender e entender facilitaram sentidos da compreensão da Língua passada, através de objectos escritos e, em particular, de produtos escritos literários. A Idade Média não possuía os mesmos confins, que hoje compartilhamos, e a circulação textual era, afinal, um indício de que a boa percepção de um texto medieval específico teria de percorrer e exceder quase sempre as linhas de demarcação da sua proveniência com instrumentos técnicos muito desenvolvidos (ciências da escrita, do códice, da história, da linguística). A Idade Média literária não poderia ser concebida sem os ambientes circundantes galo-românicos, provençal e francês, italiano, mas também catalão, castelhano, galego. Experiências que puderam em parte ser concretizadas com o auxílio de instituições governamentais como o Istituto Italiano de Cultura em Portugal, o Instituto Nacional de Investigação Científica ou o Consiglio Nazionale delle Ricerche. Só cronologicamente posiciono em terceiro lugar o Romanisches Seminar da Universität Zürich, que me acolheu no centro da România em um quadro de trabalho muito estimulante. Aí me tem sido dada a possibilidade de prosseguir sob a mesma orientação metodológica uma Filologia, rigorosa e exigente, e, mesmo à distância, me tem sido sempre permissível perseverar na interrogação de produtos escritos em língua literária galego-portuguesa, ou em língua portuguesa. Regalias reconhecidas em geral, mas ainda mais estimadas quando delas podemos beneficiar. 27 Prolegómenos Mas as instituições são pessoas. E são elas que as edificam realmente. Penso que nem sempre soube demonstrar-lhes quanto as apreciava, por acanhamento ou por pudor, e a dedicação, tantos anos reprimida, faz-me pensar no remorso ou na pena de ter frustrado expectativas, tendo convertido a minha vida em uma sucessão de demandas sem fim. Da Faculdade de Letras de Lisboa, as aulas práticas de Introdução aos Estudos Linguísticos com Ivo Castro revelam-se antes das aulas teóricas de Lindley Cintra. Os textos antigos divulgavam-se, depois, sob a perspicácia de J. M. Piel e, aquando da reestruturação global da Faculdade de Letras, com o novo Departamento de Linguística, sobrevieram aspectos fundamentais da investigação e ensino em disciplinas, que se assumiam não só como herdeiras directas da antiga licenciatura em Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa, mas como recursos a novas áreas do conhecimento filológico, material e textual, impulsionados por Ivo Castro. De Lindley Cintra permanece o papel fundamental em uma destreza, que não dava particular importância ao auxílio teórico, acentuando mais o exame dos elementos observados, e resta-me a inquietação de um saber que, perante um domínio amplo de escolas – em Linguística –, não deixou nunca de incutir a solidez e a continuidade da sua experiência. Ao Ivo devo esta determinante forma de estudar e de aprender a amar a palavra, bem própria do filólogo, e ao Ivo, que me arredou de um divertido e estival soggiorno linguistico, devo a convivência, não menos divertente, com a Filologia Românica romana. O reconhecimento pelo benefício prestado não é passível de ser pronunciado, nem desprovido do afecto, que me permite continuar a manter aceso o entusiasmo por estas matérias. E, aqui, talvez deva amparar-me em Alberto Caeiro: «Nem sempre sou igual no que digo e escrevo. / Mudo, mas não mudo muito. / A cor das flores não é a mesma ao sol / De que quando uma nuvem dura / Ou quando fica a noite / E as flores são cor da lembrança. / Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores. / Por isso quando pareço não concordar comigo, / Reparem bem para mim: / Se estava virado para a direita, / voltei-me agora para a esquerda, / Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés – / O mesmo sempre, graças a mim e à terra / E aos meus olhos e ouvidos convictos / E à minha clara contiguidade de alma....» (Alberto Caeiro, O guardador de rebanhos, XXIX, Ed. Castro 1986: 79; 145). Não me sinto muito à vontade para falar do tempo romano. Sei que não há palavras, que não haverá mesmo palavras suficientes para dizer o que eu aspiraria dizer! Das pessoas, dos livros, e do que se estudava e do que se aprendia. Tantos são os actos e os nomes, ligados aos estudos em Filologia, mas deles devo isolar, por me ter marcado definitivamente, o de Aurelio Roncaglia. Da sua escola permaneceu o privilégio de aceder a colocutores e amigas como Elsa 28 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Gonçalves e como Anna Ferrari que, em procedimentos de dúvida permanente, põem sempre em questão todas as crenças com o objectivo de buscar o fundamento mais sólido e irrefutável para a investigação da verdade. A alegria de ser aluna, já sem o ser. A voz, a maneira de olhar, o modo de se implicar em cada palavra, a maneira de estar, talvez mesmo a idade... Quase como reflexo condicionado, pegava em canetas e lápis afiados para tomar notas, para eternizar porções de palavras, impressões de rejuvenescer, a cabeça cheia de recordações de aprendizagem, reminiscências em que, aluna, me sentia implicada e seduzida por estes meios de aprender. Não é também sem algum embaraço emotivo que mencionarei aqui o reencontro com o fino perfil filológico de Luciano Rossi na Universidade de Zurique na mais emblemática hereditariedade de G. Tavani. Não só o diálogo, mas o incitamento, discreto e vigilante, à reactivação do meu trabalho, à persecução de uma ideia, ou à materialização de um empreendimento. E nesta doce beatitude, que é o sentimento de aprender, o que é o conhecimento? Aprender para ensinar? Um exame de passagem? Talvez o ser culto, ou o cultivar-se, não seja, afinal, mais do que o desejo de aprender na felicidade de continuar a ser discípulo! Não tendo ídolos, continuo a ter admirações sem limites. Como falar de todos? Como professores? Como colegas? Como amigos? Há heranças tão pesadas, que nos colocam em uma tal situação de devedores, um pouco como sujeitos, receosos e amedrontados, escravos da memória. E depois há outras heranças, das quais não se sabe logo que são heranças, tanto nutrem as nossas vidas diárias. Aos primeiros, em geral, figuras de pais ou de mestres, edificam-se monumentos, que nos esmagam, e aos segundos, companheiros, colegas, amigos sobretudo, nada se constrói, nada se prepara, se não mesas de banquete, onde cada um vem sentar-se, conversar, discutir e servir-se. Um verdadeiro filólogo deve pensar só em Filologia. Eu fui precisando de todo o resto, de música, de ópera, de palcos de poesia, de pintura, de delícias, de petites madeleines… A Vivaldi e a Händel, que nunca me deixaram desprotegida, e a todos os que me têm suportado, estou grata pelo tempo que me ia sendo dado, consciente de que era um tempo que, sem escrúpulo, lhes ia sendo retirado. Alguns apoios e presenças constantes deveriam aqui ser nomeados ou renomeados. Todos sabem quem são, tenho a certeza. E sabem como a inconfidência não nos é prezada. E 29 Prolegómenos sabem como as emoções são impúdicas, íntimas e pessoais. Reservo-me para o momento de uma palavra escrita à mão, lembrando-lhes que, de alguma maneira, foram eles que me levaram sempre a Lascia la spina, / Cogli la rosa; / Tu vai cercando / Il tuo dolor. / Canuta brina, / Per mano ascosa / Giungerà quando / Nol crede il cor [G. F. Händel, Il trionfo del tempo e del Disinganno, Oratório, 1707], prefiguração musical do Lascia ch'io pianga… de Almirena [G. F. Händel, Rinaldo, Ópera, 1711]. São eles que também, ao contrário de Verlaine, e dos seus Romances sans paroles, me dizem que há paroles sans chansons… Assim tem sido o Cancioneiro da Ajuda! 30 PARTE PRIMEIRA. O CÓDICE 32 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 1. História do manuscrito 1.1. Conhecimento do códice. Edições O Cancioneiro que é hoje conhecido por Cancioneiro da Ajuda encontra-se actualmente depositado sem cota na Biblioteca do Palácio da Ajuda em Lisboa e é designado, em geral, pela sigla A ou ainda CA, que comparece em alguns estudos1. Depositário parcial da mais antiga recolha das cantigas de amor2, é o único cancioneiro da lírica galego-portuguesa de procedência ibérica e é também o único chegado até nós que se pode situar ainda no tempo da actividade poética dos trovadores3. Do Cancioneiro da Ajuda pouco mais se sabe quanto à sua história antiga, anterior ao século XIX, para além de constituir provavelmente uma cópia incompleta de material proveniente de uma primeira recolha colectiva e para além de estar, por certo, ligado a um ambiente cortesão (Tavani 1969). Foi casualmente encontrado por Charles Stuart de Rothesay, embaixador do governo britânico em Portugal na Biblioteca do Real Colégio dos Nobres e, pela primeira vez, tornado público em Paris em 1823, com uma edição em número bastante reduzido de vinte e cinco exemplares, sob o título Fragmentos de hum Cancioneiro Inedito que se acha na Livraria do Real Collegio dos Nobres de Lisboa. Impresso á custa de Carlos Stuart, socio da Academia Real de Lisboa. Em París, no Paço de Sua Magestade Britannica. MDCCCXXIII. Edição magnificente com pretensões ao que poderíamos, hoje, designar de edição semi-diplomática foi acompanhada pela impressão de uma folha solta em 1824 ou 1825 com o título de Advertência que incluía uma descrição do códice e do seu estado de conservação de autoria atribuída ao erudito Timotheo Lecussan-Verdier4. Devido ao local da descoberta e ao título dado por Stuart 1 Se a sigla CA é utilizada por Michaëlis (1904) e reproduzida em vários ensaios portugueses que citam este manuscrito, A impõe-se após os estudos inaugurados pela escola filológica italiana, sobretudo com Tavani (1967) e o seu pioneiro exame sobre a tradição lírica galego-portuguesa. 2 É um facto que a maior parte das composições que constitui actualmente o Cancioneiro deve ser integrada em uma tipologia de amor (cantigas de amor, de meestria ou com refran). Algumas delas, no entanto, admitiriam uma classificação muito mais especializada (paródias, escarnhos de amor, sirventeses, dialógicas, encomiásticas) como A 37, A 38 [PaySrzTav]; A 62 [RoyGmzBret]; A 104, A 105, A 106 [PGarBu]; A 142, A 143 [RoyQuei]; A 198 [RoyPaesRib]; A 256 [PayGmzCha]; A 282 [PEaSol]; A 305 [MartMo?], etc. A este propósito, leia-se a opinião de G. Tavani que enumera as cantigas presentes no Cancioneiro da Ajuda que não obedeceriam ao cânone amoroso na sua comunicação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) realizado em Lisboa em Novembro de 2004 (Tavani s.d.). Além deste critério, admitem-se também agrupamentos métricos na organização da recolha (Billy 2004). 3 Ainda que a data não seja absolutamente determinável como vamos ver, não há hesitação em colocar materialmente a confecção deste manuscrito nos finais do século XIII, ou inícios do século XIV. 4 Charles Stuart, barão Stuart de Rothesay (1779-1845), foi diplomata britânico e reputado bibliófilo com desempenho de várias funções políticas em Madrid (1808) e em Portugal (1810). Conselheiro em 1812 e ministro em La Haye (1815-1816) foi ainda embaixador em Paris (1815-1830) e em St. Petersburg (184133 Capítulo 1. História do manuscrito na sua edição foi, durante algum tempo, identificado como Cancioneiro do Collegio dos Nobres. A 5 de Maio de 1832, por decisão governamental, foi transferido para a Biblioteca Real, contígua ao Palácio da Ajuda, pouco antes da extinção do Real Colégio dos Nobres que ocorre em 1837. Alguns anos mais tarde, foram encontrados na Biblioteca Pública de Évora onze fólios que pareciam pertencer ao Cancioneiro5. Deles deu notícia J. H. da Cunha Rivara em 1842 ao reparar no título dado por Stuart, Cancioneiro, «sendo os versos todos de um só auctor» (Rivara 1842: 406)6. Remata o seu comentário à publicação de Stuart desejando uma nova edição: «Este livro merecia pois uma nova edição, que o tornasse verdadeiramente vulgar e conhecido. O original está na bibliotheca real da Ajuda; e na bibliotheca publica eborense ha mais onze folhas 1845). Embaixador de D. João VI, no Brasil, participou na independência entre Portugal e Brasil e testemunhou praticamente a abdicação de D. Pedro IV em 1826. Conde de Machico em 1825 e marquês de Angra, no ano seguinte, é-lhe atribuído em 1828 o título Stuart de Rothesay da ilha de Bute. Correspondência, notas e materiais diversos do bibliófilo encontram-se actualmente em várias caixas depositadas na Universidade da Califórnia em Los Angeles (Department of Special Collections). A propósito do núcleo de duas importantes livrarias portuguesas, a do Conde de Lavradio e a de João Evangelista da Guerra Rebelo da Fontoura, Bivar Guerra pronuncia-se acerca da biblioteca de Lord Stuart de Rothesay como base das citadas livrarias (Guerra 1973: 120-123). Existe igualmente um catálogo de leilão da sua biblioteca em Sotheby, S. Leigh, and John Wilkinson [Auctioneers], Catalogue of the valuable library of the late right honourable Lord Stuart de Rothesay. London: J. Davy and Sons, 1855 ao qual se referia também C. Michaëlis (1904, II: 6, n. 1). A sua edição do Cancioneiro, largamente comentada por Michaëlis (1904), apresenta modificação de cantigas, alterações da ordem textual presente no manuscrito e leitura deficiente. Tem, no entanto, a enorme vantagem de podermos confrontar o estádio do Cancioneiro antes da intervenção da filóloga. Timothée Lecussan-Verdier, conhecido letrado e erudito francês dos finais do século XVIII que estabeleceu vários contactos com a cultura e com a política portuguesas da época, é o Autor desta introdução à publicação de Stuart. É ocasionalmente citado em diversos ensaios dedicados aos contactos literários entre Portugal e França durante este período (Michaëlis 1904, II: 9, 143; Cunha 1990: 53-81). Deve-se a Cunha Rivara a identificação da autoria desta Advertência: «A curta, mas erudita Advertencia, que no livro anda impressa, é obra do bem conhecido Thimotheo Lecussan Verdier, tão benemerito das letras portuguezas; e postque não traga o seu nome, facilmente se revela pelo estilo, e fóra de toda a duvida no-lo affirma o nosso amigo, dono do livro, pelo saber do proprio Verdier» (1842: 406). A esta introdução também se refere I. Francisco da Silva: «Tem no principio uma breve, mas erudita advertência, que se crê ser de Thimotheo Lecussan Verdier» (1909, II: 317). 5 Nem sequer C. Michaëlis é muito explícita quanto a esta notícia. A primeira vez que a ela se refere limita-se, no comentário à edição Varnhagen, «ás 260 Cantigas da impressão de 1823 [Stuart] juntara mais 42 tiradas das 11 folhas avulsas, vindas de Évora, e copiadas por Herculano» (1904: 21). Só mais adiante, em parágrafo específico, refere um enigmático «soube-se»: «Decorrido um deccenio, soube-se que em Évora se guardavam na Biblioteca Publica, onze folhas desmembradas do Cancioneiro...» (1904, II: 100). Por fim, no Índice alfabético remissivo, acompanhado de algumas notas adicionaes, s.v. Évora, informa que «na biblioteca pública antigamente dos Jesuítas, foram encontradas onze folhas avulsas do códice da Ajuda» (Michaëlis 1904, II: 965). 6 José Heliodoro da Cunha Rivara, responsável pela Biblioteca de Évora de 1838 a 1855, dá conta deste achado em uma brevíssima conclusão à notícia publicada em O Panorama sobre a edição de Stuart (1842: 406-407). 34 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita do proprio codice, as quaes já andavam extraviadas ao tempo em que se tratou de publica-lo» (Rivara 1842: 407)7. Também D. João d'Annunciada, pouco tempo após a publicação de Stuart, na sua manuscrita Historia da Litteratura Poetica Portugueza, depositada na Biblioteca Pública de Évora [Armário I-22] e redigida entre 1825 e 1847, referia-se ao Cancioneiro designando-o como Cancioneiro Portuguez Galliziano, indicando que C. Stuart o tinha mandado copiar em 1810. Faculta uma extensa descrição quanto ao conteúdo do Cancioneiro e referia, por fim, a existência dos fólios que se encontravam em Évora e que lhe tinham sido mostrados por Cunha Rivara8. É então que, após petição de Alexandre Herculano, na altura Bibliotecário-Mor da Real Biblioteca da Ajuda, os fólios eborenses são transferidos para Lisboa e posteriormente integrados no códice, a 26 de Junho de 1843 (Michaëlis 1904, II: 100)9. A produção editorial relativa ao códice activa-se, de novo, no estrangeiro. O historiador brasileiro Francisco Adolfo 7 Em uma das pastas referente à cota CXIV/2-34, documenta-se o seguinte: «São onze folhas que foram arrancadas do Cancioneiro do Collegio dos Nobres, o qual está hoje na Real Bibliotheca da Ajuda. Já andavam extraviadas quando o Sr. Carlos Stuart imprimiu o Cancioneiro em Paris. 1823». A propósito da transferência para a Biblioteca da Ajuda, pode ainda ler-se na mesma pasta: «NB As próprias foram por ordem do Ministerio do Reino entregues na Secretaria do Governo Civil em 28 de Maio de 1843 de cuja entrega serve de recibo o officio do Secretario Geral ao Bibliothecario, com data de 30 do mesmo mês; e que se conserva no Masso competente». Na cota em que estavam as onze folhas de pergaminho – CXIV/2-34 –, encontra-se agora cópia dos textos que Rivara teve a preocupação de fazer antes de os originais virem para Lisboa. Em outra nota, foi acrescentado: «Foram impressas na 2ª edição do mesmo Cancioneiro por Varnhagen em Madrid, 1849». Estas notícias são referidas por I. Cepeda no seu trabalho dedicado à antiga cota do Cancioneiro da Ajuda (Cepeda s.d.; Rivara 1850-1871). No mesmo ms., pode ler-se a indicação «As originais foram por ordem superior para a bibliotheca de Ajuda, onde se conservam com o volume de que faziam parte». M. Arbor, na mesma linha de I. Cepeda, apresenta uma síntese sobre estas cópias (Arbor 2007). 8 É no capítulo XXVIII [fl. 150v] que encontramos a descrição do Cancioneiro Portuguez Galliziano: «He quase desconhecido na litteratura Portugueza o Cancioneiro de que vou fallar. Consiste na copia d'hum Manuscripto mui antigo, e inedito do R. Collegio dos Nobres em Lisboa passado a letra moderna por Bernardo José de Figueiredo e Silva com faculdade de authenticar Documentos de letra antiga, e mandado copiar por Carlos Stuart em Maio de 1810 (...)». Alude à Obscuridade do Cancioneiro [fl. 155v], do Titulo [fl. 152v], dos Objectos que trata [fl. 185r], Quem seria o seu Author [fl. 187r], Que importância tem na historia [fl. 190v] e em nota de rodapé neste mesmo fólio refere-se aos fólios eborenses [fl. 190v]. 9 É com um ofício datado de 4 de Março de 1843 a D. Manoel de Portugal e Castro, Vedor da Casa Real, que A. Herculano solicita o envio dos onze fólios para a Biblioteca de que era responsável: «Consta-me tambem por via segurissima que na Bibliotheca Nacional da cidade d’Evora acabam de aparecer algumas folhas avulsas do celebre e antiquissimo Cancioneiro chamado do collegio dos Nobres, codice que apesar de truncado é um dos mais preciosos manuscriptos da Coroa. Estas folhas, que assim avulsas são inuteis onde se acham devem vir, senão completar, ao menos enriquecer o codice a que pertencem, e de que foram arrancadas por mãos ignorantes em tempos remotos. Parece-me portanto que S. Mag.e as mandará restituir igualmente a esta Bibliotheca se V. Ex.a entender que é conveniente reclama-las tambem pelo Ministerio do Reino». O seu pedido foi aprovado a 17 do mesmo mês e a 26 de Junho de 1843 A. Herculano recepciona os referidos fólios. O ofício de entrega data de 5 de Junho de 1843 e está assinado por D. Manoel de Portugal e Castro: «Mandando entregar nesta Real Bibliotheca d’Ajuda as onze folhas do Cancioneiro...» (Santos 1965: 117, 135, 136, 138-139; Freitas 1910). Um esboço histórico acerca da constituição da Biblioteca da Ajuda em Ferreira (1980) e, mais tarde, também por Cunha Leão (1992). 35 Capítulo 1. História do manuscrito de Varnhagen, visconde de Porto-Seguro, julgando reconhecer no códice o Livro das Cantigas10 do Conde de Barcelos, publica as suas Trovas e Cantares de um Códice do XIV Século: Ou antes, mui provavelmente, o «Livro das Cantigas» do Conde de Barcelos (Madrid 1849), seguido por um Post-Scriptum (1850), impresso na mesma cidade e ainda por umas Novas Páginas de Notas às «Trovas e Cantares», isto é, a edição de Madrid do cancioneiro de Lisboa atribuído ao Conde de Barcelos, desta vez publicadas em Viena em 186811. A primitiva localização do velho códice na Biblioteca do Colégio dos Nobres explica-se apenas por esta herança fortuita em meio jesuíta, visto o referido colégio ter pertencido à Companhia (Carvalho 1959). Dos cancioneiros quinhentistas italianos, pelo contrário, conheciase rapidamente o promotor das cópias e reconhecia-se o scriptorium onde tinham sido transcritos. Sabe-se que, por volta de 1525-1526, antes do saque de Roma em 1527, é A. Colocci (1474-1549) que promove as cópias italianas12. Mais recentemente, admite-se que por volta de 1525, estava presente na Cúria Romana, António Ribeiro, quel da Ribera, camarário de Clemente VII (1523-1534), o provável intermediário entre os textos ibéricos e a iniciativa colocciana (Gonçalves 1984; 1986). Desta colectânea (ou antologia), chegada a Roma, não subsistem notícias, por agora, concretas, mas conjectura-se que ela não deveria estar muito afastada do Livro de Cantigas de D. Pedro, datável de 1340-1350, referido no seu Testamento, documento que é apenas conhecido no século XVIII com o clérigo teatino António Caetano de Sousa (1735-1748). Só em 1904, após duas dezenas de anos de investigação, será publicada a grande edição crítica de C. Michaëlis de Vasconcellos: Cancioneiro da Ajuda. Edição Critica e Commentada 10 A designação «Livro das Cantigas» surgia com a publicação do testamento do Conde D. Pedro em que Caetano de Sousa explicitamente se referia a este «Livro»: «Nelle [Testamento] se declara Poeta, porque deixa as suas Poesias a ElRey de Castella, dizendo assim: Item mando o meu livro das cantigas a ElRey de Castella. Deste livro faz mençaõ D. Nicolao Antonio na Biblioteca Hispana Vetus [tom. 2. pag. 9], ainda que com a incerteza de ser do Conde, allegando a Affonso Chacaõ, que elle diz se imprimira em Hespanha; o Chantre Manoel Severim de Faria, em huma memoria de cousas raras, que tinha, faz mençaõ de ter o dito livro. Da sua existencia naõ póde já haver duvida, nem de que o Conde seja o seu Author, pela mençaõ, que delle faz no seu Testamento» (1946: t. I, Liv. II: 163-164). O Testamento de 1350 é publicado nas Provas (1946: 174-177). Na Biblioteca da Ajuda encontram-se cópias do testamento do Conde de Barcelos nos Cod. 51-VI-23, n°. 24, fl. 209-211; Cod. 51-VI-23, n°. 62, fl. 279-280v. 11 A publicação de Varnhagen, também examinada por C. Michaëlis (1904: 21-24), apresentava a novidade textual com os fólios de Évora ainda não criticamente inseridos, mas admitia a hipótese de identificação com o «Livro» do conde D. Pedro que, embora em outros moldes, não deixará de ser acolhida pela crítica posterior. Penso, por exemplo, na aproximação do arquétipo da lírica galegoportuguesa a este «Livro das Cantigas», desde as primeiras análises de Tavani sobre a tradição ms. (1967). A descoberta do outro Cancioneiro português [Cancioneiro Colocci-Brancuti / Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa] pelo historiador italiano Costantino Corvisieri na biblioteca do conde Paolo Antonio Brancuti é dada a conhecer a E. Molteni que, pouco tempo depois, projecta publicá-lo apenas nas partes não comuns à outra recolha. A edição será completada por E. Monaci devido à morte de Molteni (Molteni 1880). 12 E. Monaci publicou uma cuidada edição diplomática, acompanhada de fac-símiles, notas e índice onomástico, tabela de abreviaturas do Cancioneiro da Vaticana (Monaci 1875). 36 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita por Carolina Michaëlis de Vasconcellos, 2 vols., Halle a.S., Max Niemeyer, 1904. O incomensurável trabalho abrange a fixação do texto, não só dos poemas presentes no códice da Ajuda, como ainda de cento e cinquenta e sete composições obtidas nos cancioneiros copiados em Itália – o Cancioneiro da Biblioteca Nacional e o Cancioneiro da Vaticana13 – as quais, no entender da filóloga, deviam fazer parte da recolha primitiva, um «Cancioneiro Geral GalegoPortuguês», dividido em três partes: cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas «de burlas». Desta edição, que se insere na genuína tradição germânica de metodologia lachmaniana da época14, existem diversas reimpressões anastáticas: Torino, Bottega di Erasmo, 1966; Hildesheim-New York, Georg Olms, 1980; Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990, que inclui, contrariamente às precedentes, o Glossário15 que C. Michaëlis tinha publicado na Revista Lusitana, XXII 1920 (separata, de 1922) e um prefácio de Ivo Castro, que não só apresenta a edição portuguesa, como também analisa o trabalho filológico de C. Michaëlis16. Carolina Michaëlis historiava a sua longa convivência desde 1876 com talvez um dos mais importantes manuscritos medievais, depositado em bibliotecas portuguesas, o Cancioneiro 13 Além do estudo pormenorizado de B (Ferrari 1979), notícias sumárias e respectivas indicações bibliográficas acerca destes cancioneiros são reportadas pela mesma Autora nas sínteses inseridas no DLM (1993). 14 Convirá lembrar de que esta edição, intitulada Cancioneiro da Ajuda, não reproduz, na realidade, os textos que compõem hoje o manuscrito na sua condição fragmentária, mas sim o primitivo Cancioneiro da Ajuda com a integração de todos os outros textos que deveriam constituir o original projecto, uma colecção temática circunscrita às cantigas de amor limitadas ao momento de confecção (Ramos 2004). 15 O Glossário do Cancioneiro da Ajuda é instrumento que ainda hoje é fonte a que muito recorremos sempre que se impõe a abonação de formas do português antigo. De igual modo, as gramáticas históricas, os estudos que caracterizam o português medieval, ou dicionários etimológicos citam-no abundantemente, devido à sua alta cronologia. Chamo, no entanto, a atenção para uma dificuldade bastante importante na consulta deste glossário: como C. Michaëlis integrou na edição do ms. todos os textos que, no seu parecer, figurariam no primitivo cancioneiro, isto é, preencheu as diferentes lacunas de versos inteiros, de estrofes e de textos completos com material proveniente dos cancioneiros Colocci-Brancuti e Vaticana, verifica-se desde logo a inclusão de palavras retiradas destes mss. copiados, como se sabe, em Itália no século XVI. Assim, o designado Glossário do Cancioneiro da Ajuda menciona também formas linguísticas, sem qualquer indicação gráfica, que lhe podem ser estranhas. Todas as entradas com exemplificação posterior ao v. 6865 não se encontram graficamente representadas no pergaminho da Ajuda e, além disso, é sempre necessário verificar se outras localizações não dizem respeito a palavras de versos ou estrofes, introduzidas para completar cantigas que, na cópia da Ajuda, se encontravam incompletas. De idêntico modo deve ser considerado o Rimario do Cancioneiro da Ajuda, útil ferramenta para os recursos técnicos dos trovadores que é efectuado com fundamento no corpus editado por C. Michaëlis. Significa este facto, por exemplo, que uma variante como <trayçion> / <traỹçion> (A 248/A 248bis), em rima com <coraçon>, comparecerá com a grafia traiçon. Além disso, a ocorrência em A 358 não figura no actual estado do Cancioneiro. A forma <ar>, em posição de rima, não comparece igualmente no actual Cancioneiro da Ajuda, mas é proveniente também de um texto integrado por C. Michaëlis, A 386 (Viñez 1989). 16 À edição de 1904 foram feitas algumas recensões por importantes romanistas que proporcionam novas leituras ou interpretações. São de mencionar sobretudo as de Nobiling (1907 e 1908) e as de Lang (1908 e 1928). A filologia portuguesa manifestou-se também através de J. J. Nunes (1905), Azevedo (1912), Campos (1933). 37 Capítulo 1. História do manuscrito da Ajuda, provido até àquela data de edições deficientes17. Fora nesse ano, e logo após o casamento com o historiador de arte Joaquim de Vasconcellos em Berlim, há pouco instalada na cidade do Porto, que observara, pela primeira vez, em Lisboa, o códice da Ajuda18. Estava, pois, a publicar uma obra que tinha sido «planeada e iniciada ha mais de um quarto de século no próprio dia em que, hospeda ainda em tudo quanto se refere á língua, á literatura e á civilização do Portugal antigo, abri[ra] pela primeira vez, na Biblioteca da Ajuda, o códice vetusto e venerando que encerra os monumentos primevos da arte lírica peninsular». Especificava-nos como, logo no ano seguinte, de Maio a Setembro de 1877, «meses felizes e saudosos», o transcrevia, «na empresa de decifrar e copiar, com paixão e paciência essas páginas seis vezes seculares»19. Era Alexandre Herculano quem lhe tinha colocado à disposição a sua residência, anexa ao Palácio da Ajuda: «Não devo esquecer os manes de Alexandre Herculano, que jentilmente nos cedeu em 1877 durante o verão a sua casa contígua á Biblioteca» (1904, I: VIII; 101) e, anos mais tarde, não deixará de recorrer mesmo a Leite de Vasconcelos, que cooperará na leitura das provas20. A primeira interpelação que se nos coloca hoje é justamente como explicar este espaço de tempo decorrido entre 1877 e 1904. Não podemos omitir que E. Monaci tinha publicado, havia apenas dois anos, em 1875, a sua edição paleográfica, Il Canzoniere portoghese della Biblioteca Vaticana. O entusiasmo de C. Michaëlis prosperaria, por certo, com a troca de correspondência iniciada com Monaci que, por seu lado, no prefácio à edição parcial do Cancioneiro Colocci-Brancuti de E. Molteni, divulgada em 1880, augurava não só a importância das variantes que oferecia o Cancioneiro Colocci-Brancuti, como anunciava a promessa de que o Cancioneiro da Ajuda sairia brevemente em edição crítica como Parte Terceira da sua colecção Communicazione delle Biblioteche di Roma e da altre Biblioteche21. 17 Tinha apenas à sua disposição a «edição» Stuart publicada em 1823, assim como a notícia de Raynouard que a ela se referia no Journal des Savants (1825: 485-495), seguida da «defeituosissima» edição de Lopes de Moura (1847). E mesmo o «ensaio e estudo» de Varnhagen (1849-1850; 1868) pouco mais fazia do que melhorar apenas, em alguns aspectos, a edição Stuart (Innocencio da Silva 1859, II: 320; Michaëlis 1904, II: 21-24). 18 Joaquim de Vasconcellos, ilustre musicólogo e historiador de arte, natural do Porto, nascido em 1848, realizou os seus estudos liceais na Alemanha (Hamburgo entre 1859 e 1865). A esta cidade voltará ainda entre 1870 e 1871 e é também aqui que C. Michaëlis exercerá grande parte da sua actividade. 19 Início da Adverténcia Preliminar que abre o primeiro volume da sua edição (Michaëlis 1904, I: V). Na realidade, tinham-se passado vinte e sete anos entre a primeira transcrição e a publicação. 20 Em 1902, Leite de Vasconcellos dizia: «Este Cancioneiro [da Ajuda] está ainda em publicação, mas a ilustre editora tem a bondade de me enviar todas as folhas à medida que vão sendo impressas». Tive já a ocasião de me referir a esta colaboração entre os dois filólogos (Ramos 1991: 148). 21 Monaci tinha-se interessado já pela lírica galego-portuguesa com a publicação em 1873 de doze Canti antichi portoghesi tratti dal Codice Vaticano 4803, Imola (com tradução italiana, notas e proémio onde defendia, contra Paul Meyer, o carácter popular da cantiga de amigo). Após a redescoberta por Ferdinand Wolf em 1840 do Cancioneiro da Vaticana e da parcial edição de Caetano Moura em 1847, vai referir-se ao Cancioneiro da Ajuda, através da edição de Stuart de 1823, na introdução à sua edição diplomática do 38 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita C. Michaëlis não deixa de referir esta preciosa informação: «Ao professor Monaci agradeço a prontidão com que logo em 1880 me prestou todos os esclarecimentos precisos a respeito do Cancioneiro Colocci-Brancuti, então temporariamente em seu poder» (1904, I: VIII). A publicação do Cancioneiro da Ajuda, anunciada então em 1880, não chega a ser concretizada e, em estas páginas preliminares, explica C. Michaëlis as vicissitudes ocorridas perante o extraordinário trabalho que se poderiam talvez resumir apenas na frase «quanto maior número de factos apurava, tantos mais problemas surjiam» (1904, I: VI-VII). Poderíamos concentrar-nos, naturalmente, na vastíssima investigação histórico-literária que vai preencher o segundo volume e pressupor que era esta extensa convergência de materiais que teria retardado a publicação. Mas talvez mais judicioso seja evocar, em primeiro plano, parece-me, a sua meticulosidade textual. Na realidade, uma carta de Joaquim de Vasconcellos a Ferdinand Denis, datada de 12 de Maio de 1878, conhecida hoje através da publicação de Celso Cunha (1983), prognosticava que a edição do Cancioneiro da Ajuda devia entrar em tipografia «dentro de mais ou menos quinze dias», o que quer dizer que a fixação crítica dos textos estaria já concluída naquela data. Esta intenção concordaria, aliás, com o que escreve Monaci. No entanto, o Cancioneiro entrará em tipografia só em 1895, quinze anos mais tarde, para a impressão do I volume e, em 1900, iniciar-se-á a do II, dedicado aos estudos de essência literária. Comunicava Joaquim de Vasconcellos a Ferdinand Denis22: «Je mets aujourd’hui à la poste les fac-similes du Cancioneiro da Ajuda... J’ai dû recourir à mes notes que j’ai tirées à Ajuda. Madame a dû aussi fouiller ses manuscripts car elle est sur le point de publier chez Mr. Niemeyer (libraire de Halle qui a édité le Cancioneiro da Vaticana) une nouvelle édition du dit Canc.ro d’Ajuda, une édition critique avec une Introduction assez étendue, des notes nombreuses, des fac-similes, etc.; les éditions d’ailleurs très méritables de Lord Stuart et de Mr. Cancioneiro da Vaticana: «Nel Collegio dei Nobili in Lisbona erasi rinvenuto un brano di antico canzoniere che l’inglese Lord Stuart Rothsay fece stampare nel 1823. Quelle pagine scritte nel vecchio linguaggio della Gallizzia in uno stile che faceva ricordare i Trovatori provenzali, erano anonime e suscitarano ben presto dotte polemiche nelle quali ebbero parte Raynouard, Diez, Ribeiro, Bellermann, De Varnhagen» (Monaci 1875: VI). A publicação em 1880 de E. Molteni do Cancioneiro ColocciBrancuti «nelle parti che completanno il codice Vaticano 4803» trazia a Avvertenza de E. Monaci que não só explicava as condições da descoberta do Cancioneiro Colocci-Brancuti como a edição parcial, publicada postumamente, de seu aluno E. Molteni. Mas, nesta mesma data (1880), explicitando a sequência das publicações, Monaci comunicava: «il secondo supplemento mi veniva da quella illustre donna che è la Sig.a Carolina Michaëlis de Vasconcellos, la quale ha preparato una edizione critica dell’altro antico Canzoniere che prende nome della Biblioteca d’Ajuda. Tutti tre questi Canzonieri sono in intimi rapporti fra loro; e come quello d’Ajuda ebbe luce in parte dal Vat. 4803, cosi l’uno e l’altro oggi trovano nuovi riscontri e complementi nel Ms. Brancuti (...). Onde il Ms. d’Ajuda che è tutto anonimo, qui discopre quasi intera la serie dei suoi Trovatori e guadagna un ricco sussidio di varianti» (Molteni 1880: VII). 22 Conhecido historiador francês, conservador da Biblioteca Sainte-Geneviève, onde se encontra depositada aliás esta carta de Joaquim de Vasconcellos, autor de Portugal, Paris, Firmin Didot Frères, Éditeurs, 1846, além de numerosos outros estudos dedicados, sobretudo, a Camões e ao Brasil (17981890). 39 Capítulo 1. História do manuscrito Varnhagen ne pouvant se soutenir aujourd’hui en face de la critique. Il suffit de vous dire que ces Messieurs ne se sont pas aperçus des nombreuses transpositions de feuilles du codex d’Ajuda, du manque de feuilles, d’aucune des centaines de notes et corrections marginales de trois siècles différents (assez difficiles à lire, il est vrai) etc. etc. Presque tout est à refaire et Madame a eu une peine immense à préparer son manuscript qui entrera sous presse dans quinze jours, tant-au plus» (Cunha 1983: 321)23. Se a «édition critique» estava finalizada, como interpretar esta demora? De que tipo de edição crítica se trataria? C. Cunha explica, prioritariamente, este adiamento pela descoberta dos cancioneiros italianos. A correspondência com Monaci, o acesso a variantes textuais, a percepção da valia das lições conceder-lhe-iam, por certo, outra garantia textual na fixação crítica das cantigas. E a publicação, em 1880, do Cancioneiro Colocci-Brancuti não faria mais do que fortalecer as suas expectativas24. A urgência permitirá até que a casa Niemeyer lhe envie, inclusivamente, durante a preparação da sua edição, «as folhas de impressão do CB, á medida que iam sahindo do prelo, explorando-as sem tardar a bem do CA, cuja preparação estava em andamento» (1904: 54). Não será, portanto, surpreendente reler, hoje, a sua reconsideração: «Se hoje recomeçasse, seguia outro rumo. Há muito que reconheci quanto melhor teria sido dar logo em 1880 a edição paleográfica para fazer corpo com os outros dois Cancioneiros; levar a eito numa Quarta Parte a restituição integral dos textos todos, logo que Ernesto Monaci nos tivesse revelado as variantes do Cancioneiro Colocci-Brancuti e o estudo prometido»25. O linguista americano Edwin Williams, sentindo os problemas de uso da edição e glossário do Cancioneiro da Ajuda, tem a iniciativa de propor nova leitura editorial. É provável que tenha sido ao observar registos linguísticos que lhe pareciam invulgares para finais do século XIII − inícios do século XIV − que foi levado a estimular o seu discípulo Henry H. Carter a efectuar uma edição diplomática do Cancioneiro de Lisboa. De facto, é apontando algumas incorrecções de leitura e levantando algumas objecções aos critérios de transcrição seguidos por C. Michaëlis que o paleógrafo americano edita, em 1941, Cancioneiro da Ajuda. A 23 Caracterizei já o trabalho editorial de C. Michaëlis e a maneira de conceber a reconstituição textual do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 2004). Algumas opiniões acerca da actividade científica de C. Michaëlis, não circunscritas ao Cancioneiro, foram expressas no Colóquio que lhe foi dedicado no Porto em 2001. 24 A primeira notícia do descobrimento de B tinha sido dada por E. Molteni em 1878. À edição crítica de T. Braga Cancioneiro portuguez da Vaticana, Lisboa 1878, fará C. Michaëlis uma severa recensão na Zeitschrift für romanische Philologie, Supplementheft III (Bibliographie 1878), Halle 1879: 84-85. Notícia mais particularizada virá incluída no II vol. do Cancioneiro da Ajuda (1904: 44-48; 60-61). À edição Molteni, C. Michaëlis dedicará breve comentário também já na edição do Cancioneiro (1904, II: 49-53). 25 Na reflexão sobre os processos de transcrição e de comportamento editorial em textos portugueses, citámos já este passo (Castro-Ramos 1986: 99-122) e I. Castro no Prefácio à edição portuguesa do Cancioneiro da Ajuda, volta justamente a referir este célebre mea culpa (1990: m). 40 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita diplomatic Edition, New York-London, Modern Language Association of America-Oxford University Press (também com reimpressão por Kraus Reprint Co., Milwood, New York 1975 e pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2007), em que a muito rigorosa leitura diplomática (hoje poderíamos apelidá-la de «edição imitativa»26) oferece os textos da Ajuda na veste mais possível próxima do manuscrito. Todos os textos vêm acompanhados de notas paleográficas ou de informações de natureza material, apêndices referentes às rasuras ou correcções, às notas marginais e às lacunas presentes no códice. Em 1945, Marques Braga publica uma edição escolar do Cancioneiro da Ajuda, da qual só sairá o primeiro volume, na colecção dos Clássicos Sá da Costa, que adopta, na maior parte das vezes, as lições escolhidas por C. Michaëlis27. «Nesta impressão, seguimos o texto da edição de D. Carolina (...). Como esta reedição não se dirige só aos eruditos, convêm que todas as pessoas com curiosidade intelectual, que queiram conhecer os primeiros monumentos literários portugueses, possam compreender as Cantigas dos Trovadores. (...) para lhes tornar o esforço menos rude, acompanhando-as, imprime-se junto ao texto uma síntese das Cantigas em linguagem corrente» (Braga 1945: XVI-XVII)28. Uma visão crítica do campo editorial do Cancioneiro da Ajuda é exposta por I. Castro na sua apresentação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004), organizado em Lisboa (Castro s.d.). Por meu lado, reflecti na mesma problemática editorial, ao incidir a minha atenção na pertinência linguística e grafemática de uma edição diplomática como a de Carter (1941), publicada vários anos após o aparecimento da edição crítica (Michaëlis 1904)29. Uma retrospectiva global dos estudos subsequentes ao impacto da descoberta do Cancioneiro da Ajuda, foi apresentada por H. H. Sharrer em Santiago de Compostela em Maio de 2004. Desta panorâmica, é interessante o levantamento das cópias tardias oitocentistas, 26 A fim de evitar a colisão de «diplomática» com a edição de «diplomas», a Ecole des Chartes propõe esta nova designação de «imitativa» para definir a edição que pouco se afasta do ms., limitando-se apenas a uma transposição moderna com pouquíssimas intervenções (Bourgain-Vielliard 2002). Em colaboração com I. Castro, tive já a ocasião de me referir ao comportamento editorial de H. H. Carter nas suas duas grandes edições de textos literários portugueses (Cancioneiro da Ajuda, 1941 e Livro do José de Arimateia, 1967) onde, naturalmente, opta por critérios diferenciados em cada uma destas duas edições, normas muito mais conservadoras, «imitativas» para o Cancioneiro, que possuía já uma edição relativamente modernizadora por C. Michaëlis e preceitos mais modernizadores e quase interpretativos para o Livro de José de Arimateia que não dispunha ainda de qualquer edição completa (Castro-Ramos 1986). Desenvolvi esta reflexão sobre o procedimento editorial de H. H. Carter na Introdução à nova reimpressão em Lisboa da sua edição (Ramos 2007). 27 I. Castro comenta esta «simplificação» editorial de Marques Braga, apontando as carências de uma publicação que ora é designada de «impressão», ora de «reedição» (Castro 1990: l). 28 Diferentes notícias relativas aos projectos editoriais, ao valor do Cancioneiro, às hipóteses históricas ou cronológicas, etc., emitidas por académicos ou por outras entidades (Teófilo Braga, Agostinho de Campos, Ribeiro dos Santos, José Bonifácio de Andrade e Silva, João Pedro Ribeiro, etc.) constam do levantamento bibliográfico feito por Michaëlis (1904, II: 10-98). 29 Corresponde este texto ao preâmbulo à reimpressão da edição Carter (1941) publicada pela primeria vez em Portugal pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda (Ramos 2007). 41 Capítulo 1. História do manuscrito algumas já assinaladas por C. Michaëlis, efectuadas por quase anónimos amanuenses e das quais perduram alguns exemplares30. 1.2. Compiladores. Cronologia. Proveniência Investigações de diferente natureza têm sido orientadas no sentido de determinar o responsável ou os responsáveis ligados à compilação do códice31. Difícil é também precisar sem riscos a data da compilação ou até uma precisa cronologia dos textos que a constituem. Não menos problemática se afigura a localização inicial do códice. Onde teria sido compilado e qual teria sido o mentor do projecto? Teria estado em bibliotecas régias? Ou, pelo contrário, em bibliotecas particulares? No país, ou no estrangeiro? Como se reconstitui o seu trajecto até à Livraria do Real Colégio dos Nobres, único facto que faculta a instituição de uma data e de uma localização. Onde teria permanecido, portanto, até 1761, data conhecida da fundação do Colégio?32 Demasiadas são ainda as interpelações e se C. Michaëlis (1904) antecipou circunstâncias concernentes à corte portuguesa, propícias à composição de um cancioneiro deste 30 O ensaio de H. H. Sharrer está publicado no volume Cancioneiro da Ajuda. Cen anos despois (2004: 41-54) e, de certo modo, provocou a investigação mais pormenorizada de M. Arbor e C. Pulsoni sobre a cópia que se encontra em Cracóvia (2004). É ainda possível consultar um elenco bibliográfico sobre o Cancioneiro da Ajuda em http://sunsite.berkeley.edu/Philobiblon/BITAGAP/1082.html. Uma nova experiência ecdótica com base no Cancioneiro da Ajuda foi, entretanto, anunciada por M. Arbor em Santiago de Compostela (2004). Entender o Cancioneiro como entidade autónoma, editando-o criticamente como documento único. Como me parece que a concepção de edição diplomática de Carter (1941), ou o campo editorial do Cancioneiro, não são suficientemente examinados nesta proposta, reservo-me uma mais profunda reflexão em outro momento a propósito desta anunciada edição. A identidade do Cancioneiro da Ajuda não é comparável pela dimensão textual galego-portuguesa à ampla tradição dos cancioneiros italianos. Aproprio-me das palavras de E. Gonçalves que, sem dúvida, melhor explicitam o modo de editar um texto incluído no Cancioneiro da Ajuda: «…Por outro lado, se o Cancioneiro da Ajuda, como qualquer outro cancioneiro, não é um mero contentor de textos e por isso merece ser reproduzido na sua individualidade complexa e problemática, temos de convir que são os textos a finalidade última da fadiga do editor crítico e que, para uma aproximação da 'verdade' dos textos nas subtilezas da forma e substância que os seus autores lhe teriam conferido, o editor não pode, por vezes, limitar-se à lição manifestamente insatisfatória do códice, devendo recorrer à emenda 'por conjectura', a qual poderá revelar-se inferior à emenda ope codicum, possível para os textos transmitidos, não apenas por A, mas também pelos dois cancioneiros coloccianos ou por um deles. Concretizando: se bem entendo, o novo projecto de edição oferecer-nos-á o texto crítico das 310 cantigas nele contidas, ao qual faltarão, em muitos casos, palavras, versos e estrofes inteiras visivelmente ausentes por mutilação do códice, mas presentes em um ou nos dois outros testemunhos da tradição; as 310 cantigas serão anónimas, apesar de conhecermos, pelo testemunho dos outros cancioneiros, a autoria incontestável da maioria delas. Será esta a edição crítica de A capaz de dar ao leitor de hoje 'unha idea concreta de como o home do Medievo consumia os produtos da literatura, do particularíssimo tipo de cultura lingüístico literaria que podían promover libros manuscritos como Ajuda'? (Gonçalves 2007). 31 Além dos vários estudos relativos à tradição textual (Michaëlis 1904; Tavani 1967, reproduzido sucessivamente em vários ensaios do Autor e, por último, em 2002; D’Heur 1974, 1984; Gonçalves, 1976, 1988; Ferrari 1979, 1991), Resende de Oliveira propõe várias hipóteses constitutivas na compilação de alguns dos materiais da lírica galego-portuguesa (1988, 1994) e Livermore (1988), sem recurso exaustivo à bibliografia disponível, apresenta também algumas conjecturas a este mesmo propósito. 32 A fundação do Real Colégio dos Nobres foi examinada por Rómulo de Carvalho (1959) que, em vários capítulos, descreve as condições e o tipo de ensino ministrado neste colégio. O ms. da BN 562 de Lisboa inclui várias Memorias relativas aos motivos que incentivaram a criação do Colégio dos Nobres. 42 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita tipo, Tavani (1967; 2002) não deixou de apontar que lhe parecia justamente muito mais plausível uma confecção em ambiente castelhano com as circunstâncias materiais do scriptorium de Afonso X33. Esta percepção foi acolhida por Cintra que também considerou possível o Cancioneiro ter saído da «oficina» de Afonso X34. Breve comparação entre os códices das Cantigas de Santa Maria (mesmo através de reproduções) revela que o tipo de pauta utilizado no códice toledano e no florentino não corresponde entre si, nem nenhum deles, aparentemente, com o tipo de marcação que se encontra no da Ajuda. Não nos podemos esquecer, contudo, que a morfologia textual é diferenciada. Como prováveis compiladores ou conselheiros da compilação, é costume referir o rei D. Afonso III de Portugal ou o rei D. Afonso X de Castela, após a intuição pioneira de F. A. Varnhagen, ainda com a euforia da descoberta, se ter primitivamente inclinado para o Conde D. Pedro de Barcelos: o rei português, porque C. Michaëlis concebeu toda a vivacidade da recolha poética à volta da corte portuguesa do bolonhês35; o rei D. Afonso X, pelo atmosfera cultural da 33 Com a progressão dos estudos relativos à codicologia afonsina, não se poderá referir apenas um scriptorium afonsino. Se a geografia e alguns aspectos do trabalho e da tradução nos scriptoria é conhecida (Menéndez Pidal 1951/1999; Schaffer 1999, 2000), será ainda o exame material dos diferentes códices emanados destes centros que poderá permitir comparações analíticas que conduzam a uma tipologia de feituras semelhantes. Isto é, só quando dispusermos, por exemplo, dos diferentes traçados das mise en page de códices afonsinos ou quando confrontarmos as múltiplas normas técnicas é que poderemos eventualmente integrar o Cancioneiro da Ajuda com a sua mise en page e mise en texte em um destes centros atribuindo-lhe, mais seguramente, um made in. Os copistas podiam viajar, mas os materiais, os modos de preparação do pergaminho, a organização dos cadernos, os modelos decorativos, etc. circunscrever-se-iam a um espaço específico, ou melhor dizendo, a um scriptorium particular. Podemos imaginar naturalmente o ambiente de Afonso X (meios, técnicas, deliberação), mas por certo que Múrcia, Toledo ou Sevilha não trabalhariam exactamente da mesma maneira (Menéndez Pidal 1951; Schaffer 1999 e Montoya Martínez 1999). O exame de técnicas de diferentes mss. que conduzem a um mesmo espaço de produção tem sido processo, várias vezes utilizado, na reconstrução de difusão de mss. Os modos de picotagem foram comparados em conjuntos de mss. já nos anos 40 (Jones 1944, 1946, 1961). A preocupação de repertoriar dados codicológicos disponíveis (iter codicologum) desenvolve-se sobretudo após os ensaios de Gilissen (1973, 1976, 1977). Um dos últimos estudos relativos à técnica organizativa de um dos códices afonsinos, examinada por G. Avenoza, mostra algumas das características fundamentais deste funcionamento que não coincidiriam com o que se pode inferir, aparentemente da composição do Cancioneiro da Ajuda (Avenoza s.d.). 34 É na introdução à Ed. fac-similada do Cancioneiro da Vaticana que Cintra (1973: XVI) admite também esta eventualidade. 35 Os estudos efectuados nos últimos anos sobre as características literárias desta corte (talvez melhor seria dizer, deste rei) apontariam para que, ao lado de traduções de matéria bretã trazida de França (através do condado de Boulogne-sur-Mer), se reunissem também recolhas poéticas de trovadores à volta do suserano e dos seus mais importantes vassalos, a exemplo do que se realizava na corte de Louis IX e de Blanche de Castille (Corbin 1945; Mattoso 1981, 1985, 1993; Castro 1979, 1984, 1993; Ramos-Rossi 2006 [2002]; Ramos 2005). Poderíamos, por exemplo, perguntarmo-nos porque é que autores que exprimiram críticas severas de elevado teor poético à tomada de poder de Afonso III não comparecem como Autores de cantigas de amor na colectânea da Ajuda. Terão apenas produzido as famosas sátiras políticas endereçadas ao Conde de Boulogne, futuro rei português, sem produção de cantigas de amor? Ou estamos perante uma dificuldade de acesso a materiais de natureza amorosa que não chegam às mãos do compilador, visto que estes trovadores se tinham exilado em Castela? Ou encontramo-nos perante uma 43 Capítulo 1. História do manuscrito sua corte e pelos meios profissionais que a contornavam36; o Conde D. Pedro, pelo seu envolvimento na produção histórica e trovadoresca e, sobretudo, pelo facto de uma cópia parcial do seu Livro de Linhagens se encontrar encadernada com o Cancioneiro37. Se rapidamente se afastou a ideia de autoria, continua a ser-lhe atribuída a responsabilidade da compilação da grande recolha colectiva. C. Michaëlis previu, através de conjecturas bem ordenadas (cronologia dos trovadores, tipos de cantigas, definição genológica) um tipo de produção intimamente ligado a um ambiente régio ou nobre e a permanência natural do manuscrito em um desses centros. A elaboração teria sido disposta na última fase do reinado de D. Afonso III ou nos primeiros anos da actividade de D. Dinis. Mais precisamente, o Cancioneiro da Ajuda resultaria de um «Livro das Trovas del Rey D. Affonso», que chegou a identificar com o exemplar especificado no elenco da biblioteca de D. Duarte como um «Livro das Trovas del Rey D. Affonso encadernado em couro, o qual compilou F. de Montemór o Novo»38. C. Michaëlis identificava-o, por conseguinte, como uma «cópia graficamente inacabada» de um cancioneiro constituído por iniciativa de Afonso III. Deste modo, o processo referente à compilação seria pouco anterior a 1279, ano da morte do rei bolonhês. Em relação a D. Afonso III não era, na verdade, nem imprudente nem inverosímil admitir que um príncipe que vive a maior parte da sua vida na corte culta de Branca de Castela (Pernoud 1982) e, logo depois, no seu próprio condado de Boulogne-sur-Mer, situado em região de intensa actividade literária, não fosse, mais tarde, sensível ao tipo de recolhas poéticas que então por aí circulavam. A família em que se integrou era, como é sabido, protectora de iniciativas de cunho literário e, ao mesmo tempo, nelas participante. Quer na corte, quer por todo o condado, não se alheou de factos tidos por relevantes, tanto no exercício do poder, como escolha deliberada, um simples acto de censura que não faria mais do que acentuar um perfil de organizador da colecção amorosa que não incluía naturalmente trovadores hostis ao rei? 36 O ambiente literário e cultural da corte castelhana é amplamente conhecido (Ballesteros 1984; Bertolucci 1993; Schaffer 1999, 2000) e se pensarmos nas recolhas das Cantigas de Santa Maria não seria improvável prever a confecção de uma colecção paralela com materiais profanos (Paredes 2001). 37 Após os estudos de Cintra (1983-1990) e de Diego Catalán (1962, 1971) dedicados à historiografia ibérica e os de Mattoso (1981, 1985, 1993) que contemplam a matéria genealógica peninsular, a actividade cultural do Conde D. Pedro não pode deixar de ser considerada na preservação literária e histórica do ocidente peninsular. A encadernação conjunta de uma cópia do Livro de Linhagens e do fragmento Cancioneiro, confeccionada nos finais do século XV (a antecipação desta datação será desenvolvida nos capítulos dedicados ao proprietário do cancioneiro nos finais do século XV, Pedro Homem e à encadernação do códice), mais não faria do que acentuar esta responsabilidade do bastardo de D. Denis no espírito do coleccionador destas peças avulsas nos últimos anos de 400. 38 Esta sugestão não foi acolhida nos estudos subsequentes, mas as hipóteses que apresentei quanto à permanência em Évora do Cancioneiro da Ajuda no século XV, consolidam-se com o ambiente cultural favorável a cancioneiros do sul de Portugal (Évora, Vila Viçosa) receptivo a este tipo de recolhas (Ramos 1999, 2001). 44 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita no domínio da cultura. A alusão que lhe é endereçada em um poema de Moniot d’Arras39 – Chançons, va t’en sans perece / Au Boulenois di – prova bem sua a participação no movimento cultural em que vivia este baron de tel hautece na sua corte de Boulogne-sur-Mer no norte de França (Dyggve 1938)40: I 3 6 9 II 12 15 18 III 21 24 Plus aim ke je ne soloie, Mais ja n'ere amés, Car mes cuers ki me maistroie S'est si haut donés Ke n'en porroie avoir joie, Quant tant m' i serai penés: Hautece et Beautés Et Richors veulent que soie Del tout refusés Et jou ki guerpir devroie Che dont sui grevés, D'un desir ki me maistroie Sui si alumés Que pour meschief ke g' i voie N' em puis estre retornez: Ce fait Volentés Par qui maintes fois foloie Text ki set assés. D'un douç consir plain d'envie Me couvient languir, S'est trop crueus la folie Dont la mort desir, Car vivre amans sans aïe Vaut assés pis ke morir, N'em porrai garir, Ne ja par moi n'ert jehie 39 Moniot d'Arras, «le petit moine» é um dos trouvères, cuja actividade se pode situar entre 1213 e 1239. As suas primeiras composições são dedicadas à Virgem e, ao frequentar as cortes senhoriais do norte de França (Jean de Braine, Robert III de Dreux, Gérad III, senhor de Picquigny e o próprio conde de Boulogne), dedica a sua produção ao amour courtois. Uma das suas canções, anterior a 1227-1229, é citada no Roman de Violette de Gerbert de Montreuil e o jeu-parti com Guillaume le Vinier deve datar deste período (Lejeune 1941). É no Roman de Violette que comparece Philippe Hurepel, primeiro marido de Mahaut de Boulogne, futura mulher de Afonso e é ainda neste ambiente que se podem compreender algumas introduções técnico-formais na poesia galego-portuguesa (Beltrán 1984b; Ramos 2005). 40 H. Petersen Dyggve discute a identificação entre várias personalidades que neste período podiam ser apelidadas de Boulenois. A sua análise opta pelo futuro Afonso III de Portugal, conde de Boulogne-surMer por casamento com Mahaut de Boulogne, a quem deve ser endereçado este envoi na canção de Moniot d'Arras. Propõe uma datação provável de 1239 para a composição da canção e insiste até na presença da palavra «failli» que deve aludir à cruzada de 1239: «Le poète prie sa chanson d'aller sans tarder dire au Boulenois que, dans le cas où il persévérera dans les bonnes intentions que le poète lui a vu manifester à Hesdin [Pas-de-Calais], il ne manquera pas à la prouesse, ce dont plus d'un se réjouira et ceux s'ébahiront qui ont appelé «failli», c' est-à-dire lâche, couard, un seigneur de si haut parage» (Dyggve 1938: 47-65). I. Castro, a propósito da importação dos romances arturianos em Portugal, redifiniu o papel cultural do conde e da sua corte (Castro 1984: 68-78). 45 Capítulo 1. História do manuscrito 27 L'amor dont sospir. IV Ne quiç pas ke por ma vie De mort garandir D'un don de sa drüerie Me daignast saisir. Se je m'en duel, n'en doi mie Fors moi et Amors haïr, Qui m'ont fait coisir Tele dont ja n'ert merie La paine a soffrir. 30 33 36 V 39 42 45 VI 48 51 54 Toute riens qui Bontés bleche De soi a parti, Mais ens li ne truis largesce Qui tort a merchi, Pour coi li choil ma destrece, S'en fail au douç non d'ami, Joie en ai guerpi S'est drois que tote leeche Por dolor oubli Chançons, va-t' ent sans perece, Au Boulenois di, S'a bien faire ensi s'adrece Com a Hesdin vi, Ne faurra pas a prouece, S'en ierent maint esjoï Et cil esbahi Qui baron de tel hautece Clamoient failli. Dyggve, Chanson X [Raynaud n°1764] (1938: 99-101) Mas Moniot d'Arras voltará ainda a referir-se a este conde Boloignois em uma outra composição, Molt lieement dirai mon serventois, que menciona vários senhores que participaram na batalha de Taillebourg em 1242 no Poitou, entre S. Louis e Henri III de Inglaterra. Escrita pouco tempo após a passagem da ponte de Taillebourg pelas tropas de S. Louis (21 de Julho de 1242) e a batalha de Saintes no dia seguinte, a 22 de Julho de 1242, é sobretudo conhecida pelo refrain de protecção divina ao rei de França (Louis IX) e a seus irmãos, Charles (conde Anjou, rei de Nápoles e da Sicília), Aufor, Alphonse, conde Poitiers e Robert Ier, conde de Artois. São vários os nobres que aí são citados: li cuens Raimunz (v. 4); le conte d'Aubigois, Raymond VII, conde de Toulouse de 1222 a 1249 (v. 46); li rois d'Aragun (v. 4), Jacques ou Jayme Ier, rei de Aragão de 1213 a 1276; le seignor des François (v. 9), o rei de França S. Louis IX; Charle (v. 8), Charles, irmão de S. Louis, conde d'Anjou de 1246, rei de Nápoles e da Sicília em 1266; Aufor (v. 8), Alphonse, conde de Poitiers, irmão de S. Louis que é 46 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita referido ainda como li cuens de Poitiers (v. 42); le conte d'Artois (v. 8) e li cuens d'Artois (v. 42), Robert Ier, irmão do rei, conde de Artois em 1237; li cuens de la Marche (v. 9), Hugues X, conde da Marche de 1219 a 1249; la femme du comte de la Marche (v. 12), Isabelle de Angoulême, viúva do rei de Inglaterra, João Sem Terra, falecida em 12466; li Barois (v. 22), Jean des Barres, um dos importantes prisioneiros na batalha, le Champenois (v. 49), Thibaut IV de Champagne, etc. É neste ambiente que, entre outras personalidades que vão ser ainda nomeadas na canção, é recordado le conte Boloignois (v. 25), Afonso de Portugal, conde Boulogne-sur-Mer em 1238, ao lado de Raos de Clarmontois (v. 27), Raoul de Clermont, senhor de Ailly e de uma personagem desconhecida de Ponthieu na Picardia, Cil de Pontis (v. 28). Devido à extensão do sirventês sobre a batalha de Taillebourg, limito-me à transcrição da estrofe que faz referência ao conde de Boulogne: IV 28 32 La bataigle le conte Boloignois Vint premerains a cel assemblement; Molt i fu prués Raos de Clarmontois; Cil de Pontis i conqist los molt grant: Dusqu'as portes les menerent batant. A mie nuit s'en foï li lor rois. Diux, gardez nos le seignor des François Charle et Aufor et le conte d'Artois! Dyggve, Chanson XXVII [Raynaud n°1835] (1938: 141-145) Estas menções não podem deixar de sublinhar a importância do conde boulenois e do seu séquito no desenvolvimento que virá a ter a sua corte régia em Portugal41. Dos finais dos anos sessenta em diante, G. Tavani inventariou com minúcia os recursos ibéricos para realizar um projecto como o Cancioneiro da Ajuda. Com as circunstâncias conhecidas, era bem mais verosímil que o estruturar e o elaborar deste Cancioneiro tivessem tido lugar em uma corte mais diligente e enérgica no desenvolvimento intelectual do que a corte portuguesa. A corte de D. Afonso X era, deste modo, reconhecida como espaço com melhores qualidades para o encontro de pessoas e de materiais necessários à confecção de tal colectânea. Aí se dava forma não só ao arquétipo, modelo de toda a tradição, como ao próprio Cancioneiro da Ajuda, que não seria afinal mais do que uma cópia parcial desse mesmo arquétipo 41 Desenvolvi a importância deste ambiente francês a propósito de uma nota marginal da Crónica Geral de Espanha de 1344 na inauguração da cátedra Lindley Cintra na Universidade de Nanterre em Paris a 27 de Maio de 2003 (Ramos s.d.). 47 Capítulo 1. História do manuscrito interrompida e inacabada pelo falecimento do rei. Este raciocínio apoiava-se também nas particularidades da letra, no tipo de decoração, no uso dos dígrafos <ll> e <nn> e no peculiar inacabamento do manuscrito, que se prestava a ser explicado pela morte de D. Afonso X, em 128442. Entre elementos de diferente índole, é esta particularidade gráfica no espaço português a selecção de <lh> e <nh>, que levou G. Tavani e outros autores na sua esteira a aproximar a produção do Cancioneiro da Ajuda do ambiente castelhano da corte de D. Afonso X, onde a preferência gráfica por aquelas consoantes tinha sido, como se sabe, o <ll> e o <nn>43. O «Livro das Trovas del Rey D. Affonso» na Biblioteca de D. Duarte, citado por C. Michaëlis, adequar-se-ia melhor à obra profana de D. Afonso X e não a este Cancioneiro. As pesquisas mais recentes acerca da cronologia dos poetas do Cancioneiro, com o intento de estabelecer um período certo ligado à sua confecção, põem em causa a possibilidade de ver na morte de D. Afonso X o motivo de suspensão da cópia: «L’incompletezza del codice potrebbe anzi denunciare che esso, cominciato a copiare di sull’archetipo per ordine di Alfonso X, sia rimasto interrotto per la morte del re [1284] e (...) non più continuato...» (Tavani 1969: 137). Cintra conclui que «...não podemos deixar de o imaginar já elaborado no segundo ou terceiro quartel do século XIII...» (1973: XVI). A ser verdadeira a hipótese formulada por Resende de Oliveira (1994: 400-401), segundo a qual o trovador PayGmzCha, falecido em 1295, poderá ser o poeta mais recente integrado no Cancioneiro da Ajuda, este deveria ter sido confeccionado nos últimos anos do século XIII. A cantiga A 256, De quantas cousas eno mundo son em que o poeta compara o rei ao mar, poderia ser datável de 1287 ou 1288, após PayGmzCha ter sido substituído no cargo de Almirante do Mar, cargo que ocupava desde 1284, na sequência de mudanças políticas verificadas então na corte castelhana. Significaria esta hipótese que o Cancioneiro da Ajuda não poderia ter sido, pelo menos este sector, confeccionado antes da última década do século XIII, à volta de 1300 visto PayGmzCha ter falecido em 1295. Todavia, a inclusão de outros autores, sobretudo os Anónimos e a secção final, o exame das fontes de compilação ou uma melhor definição do espaço podem ainda modificar esta data para o começo do século seguinte44. 42 Voltarei a abordar estas possibilidades (cópia parcial de um arquétipo, dígrafos <ll> e <nn>) em outros momentos, mas aqui vale já a pena antecipar o facto de que a opção gráfica citada não seria exclusiva de Castela (Cintra 1963). 43 G. Tavani refere esta questão em um dos primeiros ensaios dedicados à La tradizione manoscritta della lirica galego-portoghese (1967: 41-94), opinião que vai ser reproduzida em estudos posteriores. Em um dos últimos ensaios do mesmo Autor, esta opinião é, no entanto, mais matizada (2002: 82-83). Mas L. F. Lindley Cintra tinha acolhido esta ideia na sua introdução à edição fac-similada do Cancioneiro da Vaticana (Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana. Cód. 4803 (1973: XVI). 44 No catálogo dedicado à Iluminura em Portugal, H. Peixeiro propõe a confecção entre 1276 e 1325, mas nada acrescenta em relação às propostas de G. Tavani e de A. Resende de Oliveira (Peixeiro 1999: 301303). 48 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A. Herculano referiu-se sobretudo à data do Nobiliário, que acompanha o Cancioneiro da Ajuda, que tem, evidentemente, uma letra já mais moderna, «nem parece anterior aos fins do século XIV nem posterior aos princípios do século XV». Emitia também a opinião de que o códice, que continha o Cancioneiro, teria estado em biblioteca de jesuítas: «O Codice pertenceu aos jesuitas, e foi trazido (...) do deposito de livros sequestrados à Companhia de Jesus para a Bibliotheca Real. Esse deposito conservava-se no edificio do antigo collegio daquele instituto, applicado depois para a casa de educação intitulada Collegio dos Nobres...»45. C. Michaëlis é de opinião que a primeira recolha reúne textos datáveis de 1275 a 1280 e julga «ter demonstrado a these que as poesias contidas no CA são na maioria, senão na sua totalidade, obra de trovadores alphonsinos e pre-alphonsinos», o que quer dizer que contaríamos com o reinado de Sancho II entre 1223 e 1245, com a regência de Afonso entre 1245 e 1248 e o seu próprio reinado entre 1248 e 1279. Datação idêntica à de C. Michaëlis é proposta por S. S. Neto (1956): «...provavelmente colecionado por ordem de Afonso III (que morreu em 1279), entre 1275 e 1280...» e acrescenta ainda que se encontra escrito em letra «gótico-francesa do século XIV...»46. Carter (1941) não chega a fazer uma proposta de data: «With regard to the date of inditement it is safe to assume that the French-Gothic minuscule, which was dominant throughout the century ending in 1380, indicates for the Ajuda, the general period, but not the decennial. Dona Carolina fixes the probable date about 1280, and has no hesitancy in considering this manuscript as an original»47. D’Heur (1973) opta pela decoração do ms. «c’est surtout l’examen des miniatures et d’autres observations codicologiques qui me confirment l’idée que le chansonnier A est bien une copie. Mais les limites chronologiques de la plupart des compositions sont 1230-1280»48. Quanto ao ambiente de recolha e confecção das compilações trovadorescas dos séculos XIII e XIV, o mesmo investigador sugere uma génese castelhana para a organização do projecto compilatório, deixando, no entanto, em suspenso a corte ou as cortes responsáveis por tal iniciativa. Se, por um lado, a associação da interrupção do trabalho à morte de Afonso X pode ser controversa e se o centro de produção parece menos competente, por outro lado, também 45 Expressa este seu parecer na sua edição dos PMH (Scriptores I: 140). O filólogo brasileiro reproduz esta opinião no seu ensaio sobre os problemas dos textos medievais portugueses (Neto 1956: 57). 47 Não deixa de ser curiosa esta atitude do paleógrafo que, perante este tipo de letra extremamente regular, não chega a optar por uma datação mais precisa (Carter 1941: XII). 48 Não há dúvida de que A é evidentemente uma cópia. Ou se datam os textos que o compõem e aí a cronologia é actualmente conhecida (morte de Charinho em 1295, sem aludirmos à indeterminação cronológica relativa aos Anónimos), ou se data a cópia e, aqui, são os dados de escrita e de codicologia que podem oferecer maior garantia. 46 49 Capítulo 1. História do manuscrito determinados aspectos materiais do manuscrito parecem incompatíveis, como vamos ver, com a sua confecção em um scriptorium bem preparado como deviam ser os de D. Afonso X. Quando o manuscrito não proporciona qualquer cólofon, é do exame da arquitectura do próprio códice, do seu modo de execução, da qualidade dos materiais e dos elementos com interferência na recolha que se podem extrair conjecturas, algumas delas fascinantes, acerca da pré-história do Cancioneiro. 1.3. Bibliotecas. Inventários Provavelmente por ser um objecto inacabado, o códice não comparece citado nos inventários antigos mais conhecidos, nem no das livrarias do rei D. Duarte ou do Condestável D. Pedro, ou mesmo o da biblioteca do Marquês de Santillana49. As referências conhecidas aludem a outras colectâneas, mas é difícil identificar algumas destas menções com o que hoje conhecemos por Cancioneiro da Ajuda. Certo é que quem encadernou conjuntamente, nos finais do século XV, os dois fragmentos, o do Livro de Linhagens e o do Cancioneiro, não ignorava que o Conde de Barcelos tinha sido o mentor da organização de um Livro das Cantigas, citado no seu testamento de 1350 legado a Afonso XI50. No próprio códice, no fólio que estava colado à pasta posterior da encadernação, encontram-se frases de várias mãos, datáveis dos séculos XV-XVI, mais ou menos desordenadas. C. Michaëlis fez sobressair o valor de algumas delas, que podem muito bem ser o que subsiste de uma transcrição de nótulas, ou mesmo de um registo espontâneo, talvez dignas de crédito, retiradas de um fólio associado ao códice, mas porventura em mau estado. Tanto aquela anotação que se refere a Dom Eduarte pela graça de D. rei deputugal e do algarve e sennor de ceta, como a que assinala explicitamente propriedade, este liuro hez do colaco do imfãt, apontam para um espaço régio. Será desta última, parece-me, que poderá vir, apesar de alguma ambiguidade, um indício na procura da propriedade durante este período, como agora propõe A. Resende de Oliveira. A transferência do Cancioneiro do ambiente régio para uma 49 São vários os catálogos de livrarias que disponibilizam referências a objectos que se podem identificar com cancioneiros, ou com recolhas poéticas, mas é difícil identificar estas menções com uma colecção de poesia trovadoresca. Cf. Alves Dias (1982), Balaguer y Merino (1881), Schiff (1905), Nascimento (1993). Diria até que é quase normal que este Cancioneiro não faça parte de qualquer inventário. Manuscritos como este, que se definem por projectos ambiciosos e quase sempre inexequíveis, acabam pela sua própria incomplitude por não figurar nos fundos inventariados. 50 Corrijo a informação de H. Peixeiro que indica, citando-me, uma provável localização do Cancioneiro da Ajuda na Livraria de D. Duarte. Não possuo qualquer indício de que este Cancioneiro tenha feito parte daquela Livraria (Peixeiro 1999: 302). 50 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita linhagem da pequena nobreza teria ocorrido durante o século XV com a família do colaço do infante51. Mesmo no manuscrito Catalogo Da Livraria do Real Collegio dos Nobres de Lisboa, BN COD. 7394, elaborado por António Manuel Policarpo da Silva, livreiro, após a extinção do Colégio, com a data de 1829, a inscrição do futuro Cancioneiro da Ajuda é posterior à primeira relação dos exemplares nela existentes, facto que acentua, de novo, o carácter disperso do Livro52. Este catálogo apresenta um subtítulo Livros Portugueses Manuscriptos com uma relação de vários objectos como Cartas dos Jesuitas da India (2), Tratado do Baptismo de Jesus Christo ou Vita Christi 1489 (2), Vocabulario de Lingoa Asiatica Portuguesa. Os Livros Manuscriptos de Folio somão 24. Após a Recopilação dos Livros de Folio Portugueses é assinalado no p. 6 [7], pela mão do mesmo livreiro Ant° M. Policarpo da Sa a seguinte indicação: Ha mais hum Livro escripto em Pergaminho, com 114 folhas das quaes 39. /são de Genealogias de Fidalgos, e 75 contem Poesias que parecem todas ao mes / mo objecto. Tudo indica bastante antiguidade, mas pode-se colligir do Tratado / Genealogico, que foi escripto depois do que escreveo o Conde D. Pedro, por isso / que falla delle este Manuscripto. He volume de grande marca – //. Segue-se-lhe a referência a um exemplar de Os Lusiadas por D. José Maria de Sousa Botelho, Morgado de Matteus, Paris 1817, com uma dedicatória explícita ao Colégio. Os critérios que presidiram à constituição da Biblioteca do Colégio dos Nobres (1761-1772) são relativamente conhecidos. Datados de 7 de Março de 1761, os ESTATUTOS /DO / COLLEGIO REAL / DE NOBRES / DA / CORTE, E CIDADE / DE LISBOA. [Vinheta] / Na Officina de MIGUEL RODRIGUES, / Impressor do Eminemissimo Senhor Cardeal Patriarca. / ANNO DE M.DCC.LXI. (BN Res. 1970a)53 referem-se à Biblioteca, ao 51 É S. Pedro quem propõe esta leitura este liuro hez do colaco do imfãte, classificando a escrita como uma gótica cortesana (um estilo de caligrafia usual característico da corte espanhola desde o século XIV). Admite, por isso, que a frase «poderá ter sido escrita por alguém educado em ambiente estrangeiro, provavelmente um castelhano aculturado residente em Portugal». Não deixa, no entanto, de notar a presença do determinante do e data-a com alguma reserva de meados do século XV (Pedro s.d.). A. Resende de Oliveira propõe a identificação deste colaço do infante com um Pedro Homem documentado em meados do século XV. Assim, se explicaria a manutenção do códice nesta família Homem nos finais do século XV, como vamos ver com Pero Homem, poeta e estribeiro-mor de D. Manuel (Oliveira s.d.). 52 I. Cepeda na sua comunicação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004), dedicada à antiga cota presente no Cancioneiro, inclina-se mais por uma arrumação que deixa reservado para o final as duas obras que o Autor do catálogo considerava mais valiosas no conjunto dos livros in-fólio na secção de livros em língua portuguesa (Cepeda s.d.). 53 O rosto da 1.a Ed. encontra-se reproduzido em Carvalho (1959: 96-97). Há igualmente uma reedição de 1777, executada na oficina de António Rodrigues Galhardo, impressor da Real Mesa Censória. 51 Capítulo 1. História do manuscrito Bibliotecário e às respectivas normas de funcionamento. Rómulo de Carvalho transcreve destes estatutos o interessante Título XIX – Dos Bibliothecarios, Livraria, e laboratorio do Collegio – que decreta que no novo Colégio haja uma «livraria propria» (1959: 27). A formação da Biblioteca foi iniciada com os exemplares que existiam em duplicado na Biblioteca do Paço – «livros dobrados» –, que correspondiam talvez a um número apreciável. Há efectivamente uma conta de despesa que refere 37 caixotes utilizados no transporte dos livros do Paço para o Colégio e estes recipientes seriam de volume significativo, porque a nota reporta-se a três carros para o transporte de oito caixotes (Carvalho 1959: 105). Além deste conjunto, a livraria deve ter sido, logicamente, também enriquecida com obras pertencentes a antigas bibliotecas jesuíticas. No século XIX, o códice ao ser descoberto em uma Biblioteca que tinha sido constituída por fundos de jesuítas e por «livros dobrados» da Livraria do Paço, só poderá permitir uma conjectura relativa a uma procedência jesuíta ou, na mais optimista das hipóteses, a um «livro dobrado». As circunstâncias materiais em que se encontrava o Cancioneiro da Ajuda, como vamos ver, autorizam como mais natural a primeira suposição do que a segunda. O Real Collegio dos Nobres, instituído em 1761, tinha sido instalado no antigo edifício do noviciado da Companhia de Jesus, no sítio da Cotovia, à Rua da Escola Politécnica em Lisboa, devoluto, após a extinção da ordem religiosa, em 1759. O envolvimento de S. José Carvalho e Melo na criação do Colégio é largamente documentado no estudo citado (Carvalho 1959: 46-117). Data de 1765 o juramento do Reitor do Colégio «para a creação e educação dos Fidalgos que haõ de ser providos em as Collegiaturas do Real Collegio dos Nobres...» (Ms. Ajuda: 51-XII-42, n.° 154 (Carvalho 1959: 123-124). Em 1771, revela-se como os livros remetidos à Biblioteca do Colégio eram vistos pela Secretaria da Real Mesa Censoria e cujas declarações deviam estar «nas folhas de guarda ao rosto de cada hũ dos mesmos livros» (Ms. Ajuda: 52-XIV-35). Quanto ao itinerário dos livros, depois da extinção do Colégio, o Ms. 225, n°207 da BN de Lisboa não oferece muitas indicações do Director da Escola Politécnica em um ofício datado de 26 de Março de 1842: «...ainda não se ultimou as escolha dos Los que devem compôr a Bibliotha da Escola...». E os «...Os Livros que pertencião ao Collegio dos Nobres ao tempo da extinção d’aquelle estabelecimento ainda não foram totalmente franqueados...». À passagem eventual do códice no interior de uma instituição jesuíta (de Évora a Lisboa) não deve ser alheio o rasto deixado naquela cidade com os onze fólios pertencentes ao Cancioneiro – um caderno e fólios desagregados –, encontrados na Biblioteca Pública. Este indício leva a presumir a passagem do códice por aquela cidade, ou no espaço da Companhia de Reprodução do rosto desta edição integrado nos parágrafos dedicados ao Colégio Real dos Nobres (Carvalho 1996: 446, 449, 452). 52 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Jesus, ou em qualquer outro lugar relacionado com uma estada régia ou privilegiada. Este acidente material não tem sido, até hoje, parece-me suficientemente explorado. Insista-se no facto de que não se trata apenas de fólios soltos, mas também de um caderno compacto54. 1.4. Cota antiga Merece ainda consideração a presença de uma antiga cota A. 5. n. 47 (descodifico a sigla como Armário 5, número 47; ou Armário A, estante 5 número 47), não muito afastada de uma assinatura autógrafa de Pero Homem55, em letra de chancelaria de meados do século XVI, sobretudo a caligrafia dos três números situar-se-ia entre as décadas de 1540-1560 (segundo a opinião de Eduardo Borges Nunes a quem renovo o meu agradecimento por esta inestimável datação), situada no verso de um fólio, o fl. 88, que antigamente estava fixado à pasta anterior da encadernação e que foi, depois, descolado e transferido para o fim do volume, pelo ordenamento de C. Michaëlis. Esta cota sugere, pelo tipo de sistema de seriação, a pertença do Cancioneiro a uma colecção pública, semi-pública ou privada, mas de dimensão apreciável, o que parece excluir a manutenção do códice em um ambiente isolado ou particular nesta altura56. Será então de supor que, nos finais do século XV, o Cancioneiro tenha sido integrado numa colecção mais vasta, provida já de inventário. Esta notificação de importância capital para a história do Cancioneiro neste período, está dependente de um trabalho organizado que pudesse estruturar os antigos sistemas de classificação dos livros nas nossas bibliotecas. Reuni já alguns casos, mas ainda não encontrei, infelizmente, outro livro antigo que apresente este mesmo modo de arrumar. Consultei, por exemplo, alguns catálogos manuscritos com letra dos séculos XVII e XVIII de bibliotecas jesuítas, visto este tipo de letra parecer aproximar-se daquela que era praticada pelas escolas jesuítas. Poderíamos encontrar eventualmente algum objecto que pudesse assemelhar-se ao Nobiliário e ao Cancioneiro da Ajuda: [Ajuda: Ms. 51-XI-39]: Index secundum nomina Auctorum (fl. 1-126); Index secundum titulos operum (fl. 128-195) [Ajuda: Ms. 51-XI-45]: Index Bibliothecas Domus Professae Ulyssiponensis Societatis Jesu 54 A presença do caderno (caderno VII) sugere naturalmente uma reflexão quanto ao problema da inexistência plausível de encadernação ou de um frágil invólucro que vai favorecer este tipo de acidente material. 55 No capítulo dedicado ao proprietário do Cancioneiro desenvolverei a biografia deste poeta cortesão dos finais do século XV. 56 I. Cepeda pronuncia-se acerca das eventualidades de identificação possível deste sistema de classificação, ainda que não tenha chegado a uma conclusão definitiva da localização desta regra de arrumação. Propõe como descodificação mais plausível das siglas uma referência a «Estante A, prateleira 5, número 47», e alarga a datação do tipo de letra até à primeira metade do século XVII (s.d.). 53 Capítulo 1. História do manuscrito [Ajuda: Ms. 51-XI-44]: Index Librorum Bibliothecae Collegii Ulyssiponensis Divi Antonii Magni, Societas Iesu ano MDCCXXXXV [Ajuda: Ms. 51-XI-37]: Index Bibliothecae D. Rochi [Ajuda: Ms. 51-XI-38]: Catalogus authorum qui sunt in D. Rochi Bibliotheca Se nenhum destes catálogos oferece uma pista precisa de investigação pelo próprio critério organizativo (recordo que, na maior parte das vezes, estes catálogos apresentam uma classificação pelo nome de autores e não por títulos), é interessante observar que alguns deles, mas sobretudo, o último oferece um tipo de letra que se aproximaria bastante da que registou a velha cota no Cancioneiro da Ajuda, o que poderia permitir, aproximar a morfologia paleográfica, própria deste ambiente religioso. No fl. 25 deste catálogo, há referências a Crónicas, mas nenhum dos casos parece identificar-se também com o nosso objecto. Embora a sondagem tenha sido extremamente circunscrita, nada nos indica, por enquanto, que o Cancioneiro estivesse já em Lisboa antes da incorporação na Biblioteca do Colégio Real dos Nobres. Visto não existir ainda qualquer trabalho sistemático que contemple as diversas tipologias de antigas cotas em bibliotecas portuguesas em manuscritos ou impressos, é praticamente impossível associar, por enquanto, esta cota do Cancioneiro da Ajuda a outro códice com o mesmo tipo de sistema, seguramente localizado57. Por outro lado, também não parece ser uma cota do Colégio dos Nobres, não só pela cronologia que é possível prever, como pelo próprio sistema de inventário. Na Biblioteca da Ajuda, encontram-se alguns livros, impressos no século XVI, provenientes do Colégio dos Nobres: [Ajuda: 11-XIII-12]: Petrus Canisius, Commentaria De Verbi Dei corruptelis...58 [Ajuda: 100-IV-14]: Petrus Canisius, Institutiones et Exercitamente Christianae Pietatis...59 [Ajuda: 98-III- 34]: Cano Melchior, De locis Theologicis Libri Duodecim...60 Em qualquer destes volumes encontro, de facto, uma antiga cota, escrita a lápis, que não parece corresponder ao sistema utilizado por esta biblioteca: «DD/3/5» em Melchior, «EE/7/ 37» em Institutiones, e «FF/3/14» em Commentaria. Admitindo que seja uma relação originária 57 Outros indícios, procedentes do estudo da Encadernação sugerem um alargamento da investigação a outros espaços ibéricos. Cf. capítulo dedicado aos estados diferenciados da Encadernação. 58 Pedro Canísio, Santo, S.J. 1521-1597, Commentariorum de Verbi Dei corruptelis libri duo. - Parisiis: apud Nicolaum Nivellium: cudebat Ioannes Charron, 1584; 2º. Cat. Col. Bibl. Esp. P 816 [BN L. 5751 A]. 59 Pedro Canísio, Santo, S.J. 1521-1597, Institutiones et exercitamenta christianae pietatis. Antuerpiae: ex officina Christoph. Plantini, 1566; 16. Voet, L. Plantin Press 888 [BN R. 9363 P]. 60 Cano, Melchor, O.P. 1509? -1560, De locis theologicis libri duodecim. - Salmanticae: Mathias Gastius, 1563; 2º Ruiz Fidalgo Salamanca 573 [BN R. 2990 A]. 54 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita do Colégio dos Nobres, o sistema fraccionário elimina, só por si, uma aproximação com o do Cancioneiro da Ajuda. Na BN de Lisboa, encontrei, igualmente, antigas cotas no Cod. 192: «A-5-16» (século XVIII); Cod. 411: «B-5-6» (século XVIII); Ms. 14: «A-2-14»; Cod. 365: «B-3-41» (século XVIII); Ms. 977: «C-1-17»; Ms. 6835: «U-2-17», que equivalem presumivelmente ao antigo sistema de cotas da própria BN. Na BM do Porto, a cota de um Nobiliário do século XVII, Ms. 280: «A-8-36», apresenta semelhanças com estas, tanto quanto ao sistema como quanto à morfologia gráfica. Se estes sistemas parecem relacionar-se sensivelmente com o do Cancioneiro, a morfologia paleográfica é bem posterior. Mais recentemente, I. Cepeda, ao abordar um possível reconhecimento desta antiga cota, aponta alguns casos de sistemas usados em bibliotecas constituídas por jesuítas, mas os seus resultados não foram ainda conclusivos a este respeito61. No entanto, elimina já algumas das hipóteses que poderiam manisfestar-se como verosímeis, como a da Biblioteca de Severim de Faria passada para a posse do Conde de Vimieiro. As cotas, que subsistem na Colecção Vimieiro da BN de Lisboa, não documentam qualquer tipo de cota equivalente à do Cancioneiro da Ajuda. Analogamente improdutivos são os sistemas de classificação da biblioteca de D. Teotónio de Bragança com indicações bem específicas ligadas à Cartuxa e, ainda hoje, perduram advertências, por exemplo, em exemplares da BN, com a referência a «Cax.», equivalente a caixa, ou caixote, seguida de um número que não coincide com o que se observa no códice ajudense (Cepeda s.d.). 1.5. Proprietário. Marcas de posse. Pero Homem 1.5.1. Identificação Tal como os responsáveis pela recolha, também o possuidor ou os possuidores do manuscrito não são conhecidos. Além das personalidades régias acima mencionadas, pouco mais se conjecturou com fundamento preciso. Infrutíferas têm sido quase todas as diligências para reconstituir, como vimos, com algum rigor as localizações primitivas do Cancioneiro da Ajuda. Além das conjecturas associadas a bibliotecas régias, o percurso do Cancioneiro da Ajuda permanece bastante enigmático até à sua descoberta em 1823. A elaboração do projecto ter-se-ia verificado na corte 61 I. Cepeda alarga o âmbito cronológico das características paleográficas da cota por considerar que é corrente encontrar este tipo de letras e de números em escritos da primeira metade do século XVII (Cepeda s.d.). 55 Capítulo 1. História do manuscrito portuguesa na última fase do reinado de D. Afonso III, ou nos primeiros anos da actividade governativa de D. Denis. Por outro lado, a corte de Afonso X e os seus instrumentos não podem deixar de ter influenciado este tipo de plano literário. Afigura-se-me que a probabilidade mais segura é a de o Cancioneiro, por não ter sido concluído, e talvez nem sequer primitivamente encadernado (os vestígios de encadernação inicial não são muito claros62), poder ter passado bastante tempo inobservado, mesmo na esfera de uma corte régia ou senhorial, até aos séculos XV-XVI, momento em que alguém culto, um homem do Renascimento, por exemplo, se encarregou de proteger os fólios e os cadernos soltos, quer do Livro de Linhagens, quer do Livro das Cantigas. Além das personalidades régias acima mencionadas, pouco mais se prognosticou com fundamento acerca da identidade dos possuidores que vieram depois. Todavia, no fólio 88v, fólio que antigamente estava fixado à pasta anterior da encadernação, e que foi descolado e deslocado por C. Michaëlis, há um nome de pessoa escrito a tinta castanha clara que se encontra com igual morfologia, no fl. 86v, fólio em branco que, até à intervenção de C. Michaëlis, era o último do códice. A anotação atributiva constituiria seguramente uma marca de posse. Esta assinatura aconselha uma pesquisa que consinta a sua eventual identificação63. Deste nome pareciam-me legíveis as letras Ephom. O Professor Borges Nunes, que fez o favor de o decifrar e a quem volto a agradecer todas as hipóteses atraentes, assim como o terme proporcionado documentação importante acerca da eventual personagem, pronunciou-se, sem qualquer dúvida, pela assinatura de p° homẽ, autógrafa nos dois lugares com uma leve diferença na ligadura do p para o o sobrescrito – mais alto no primeiro do que no segundo –, a qual assim abreviada, e pelo tipo de letra, é semelhante às da segunda metade do século XV, enquadrada por entrelaçados simples à esquerda e dobrados à direita e ainda por um traço por baixo, uma espécie de sublinhado, para o nome de Pero ou Pedro Homem. Esta anotação atributiva constitui, seguramente uma marca de posse, ou se se quiser, um registo de propriedade, marcado em dois lugares significativos, um visível no acto de abrir o Livro, outro ao fechá-lo, no último fólio disponível que se encontrava em branco. 62 O relatório do restauro do Cancioneiro da Ajuda realizado nos laboratórios da Torre do Tombo em 1999-2000 não chegou a ser publicado. O trabalho técnico ocorreu nos Laboratórios de Conservação e Restauro da Torre do Tombo sob os auspícios da Fundação Calouste Gulbenkian em 1999 e 2000 e com acompanhamento de Aires A. Nascimento (Newsletter. Fundação Calouste Gulbenkian, n°. 24, Novembro-Dezembro de 1999: 3). A apresentação do novo estado do códice decorreu durante a exposição «A Imagem do Tempo: Livros Manuscritos Ocidentais» (23 de Março a 2 de Julho de 2000). Entretanto, Aires A. Nascimento apresentou os resultados deste trabalho no Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) em Lisboa (Nascimento s.d.). 63 Tive já a ocasião de apresentar os resultados desta pesquisa em uma Ponencia apresentada ao VII Congreso da AHLM em 1997 em Castelló de la Plana que foi, mais tarde, publicada nas respectivas Actas (Ramos 1999: 127-185). 56 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Esta assinatura no Cancioneiro da Ajuda parece poder permitir, por um lado, um esclarecimento na história e no ambiente do códice na segunda metade do século XV e, por outro lado, consente algumas suposições plausíveis acerca da identificação do possuidor do Cancioneiro neste período. Durante o século XV, encontram-se registos ou menções a incontáveis membros da família Homem e mesmo se o número dos homónimos Pero ou Pedro é mais restrito, não há evidentemente caução absoluta para um firme reconhecimento do importante possuidor do Cancioneiro nesta altura. O patronímico prolifera neste e noutros períodos e o nome de Pero ou Pedro comparece também em diferentes lugares. A linhagem é de difícil traçado, mas pode isolar-se um ramo com ligação ao Infante D. Henrique, em que alguns dos membros são documentados como navegadores, outro encontra-se ligado ao infante D. Pedro com desempenho de funções administrativas, e outros são de mais problemática integração64. Devemos estar perante membros de diferentes ramos de linhagem. No Livro do Deão, Pero [Martins] Homem que «morreo na Beira» terá vivido na primeira metade do século XIV, possui vasta descendência de nome Pires65. Ainda neste século XIV, encontram-se vários registos da família Homem66. Alguns exemplos: Joham Nuniz Homem – referido no Livro do Conde D. Pedro «E Martim Anes, filho deste Joham Rodriguez Rebotim, suso dito, foi casado com dona –, filha de Joham Nuniz Homem»67. Fernam Nunes Homem – «Comendador da Hordem dAvis» (Crónica de D. João I de Fernão Lopes, 244)68. João Homem – partidário de D. João I são-lhe doados os bens de Álvaro Gil Fernandes de Carvalho69. João Homem – padrinho de baptismo de D. Duarte e do infante D. Henrique. Bispo de Viseu entre 1392-142570. 64 Devo a A. Resende de Oliveira a quem volto a agradecer a disponibilidade em facultar-me inúmeras menções no desintrincar genealógico desta complexa família, sobretudo nas linhagens mais antigas, de muito insegura sistematização, de acordo com o genealogista Manso de Lima, vol. XII, 1930: 480-640. 65 LD 2AM6-7 (Piel-Mattoso 1980: 80). 66 Monumenta Henricina, 1960-1974; Manso de Lima, vol. XII, 1930: 480-640; Freire, 1905, 1908, 1921; Baquero Moreno, 1980; Coelho, 1983, I; Silva de Sousa, 1991. 67 LC, 42AF11 (Mattoso 1980: 492). 68 Braamcamp, 1973, I: 244. 69 Coelho 1983, I: 470. 70 Sousa 1991: 17- 27-36-119-122-174. Oliveira 1968: 447. 57 Capítulo 1. História do manuscrito No século XV, registam-se alguns membros da família, ligados ao Infante D. Henrique e ao Infante D. Pedro, com claro apoio ao Regente no momento de Alfarrobeira: Pedro Homem – escudeiro do infante D. Pedro, tabelião de Torres Novas (1434-1452). Este escudeiro do Infante D. Pedro, residente em Torres Novas, obteve carta de mercê da rainha D. Leonor, dada em 12 de Fevereiro de 1434, pelo que foi nomeado tabelião da referida vila. Outra carta outorgada pela mulher de D. Duarte em 31 de Maio de 1436, designava-o tabelião das notas e escrituras públicas na mesma localidade e seu termo, cargo que ficaria a exercer conjuntamente com o criado da rainha, João Nunes. O diploma estabelecia que ficaria no pelouro de Luiz Vaz, o qual desempenhava as funções de escrivão na coudelaria da vila e seu termo. Durante a regência do Infante D. Pedro, obteve em 30 de Março de 1444, confirmação das atribuições que vinha exercendo. Devia conservar-se no desempenho dessa actividade, quando se integrou na hoste do Duque de Coimbra a caminho de Alfarrobeira. Veio a ser reabilitado, no entanto, a 26 de Agosto de 1452, mediante uma carta de liberdade que lhe foi concedida pelo rei. É mesmo de presumir que tornasse a ser integrado no exercício do ofício de tabelião público. Pedro Homem – escudeiro do infante D. Henrique, morador em Viseu (1456-1459). Pedro Nunes Homem – (será o mesmo que o escudeiro acima referido?), escudeiro do Infante D. Henrique, sobrinho do bispo João Homem (1430). Garcia Homem – na década de trinta terá participado em expedições ao longo da costa africana. Em 1445, era criado do infante D. Henrique. Casou com uma filha de João Gonçalves Zarco e a partir de 1454 estabelece-se na Madeira71. Gonçalo Homem – navegador, salienta-se nas expedições da costa africana na década de quarenta72. Gonçalo Homem – escudeiro do Infante D. Pedro. Gonçalo Homem foi nomeado em 12 de Setembro de 1443, escrivão do almoxarifado de Torres Novas, onde residia, em substituição do falecido D. João Afonso. Acompanhou o regente a Alfarrobeira, pelo que perdeu os seus bens em benefício do vedor da fazenda Lopo de Almeida, pertencente ao conselho do rei. Alguns anos depois de ter participado no conflito, obteve carta de perdão, pelo que foi restituído aos seus direitos civis. Após a reabilitação, passou a ser escudeiro da rainha, recebendo do monarca o cargo de tabelião das notas da vila de Torres Novas, função que já vinha exercendo ao serviço de D. Isabel (carta régia de 4 de Maio de 1456). Álvaro Martins Homem – terá chegado à Gronelândia ou a Terra Nova com João Vaz Corte Real, antes de 147473. 71 72 Sousa 1991: 36, 174; Marques [1987]: 550. Marques [1987]: 556. 58 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Heitor Homem – escudeiro do infante D. Henrique (1438-1445)74. João Homem – criado, morador no Porto, ligado também à casa do infante D. Henrique (1456)75. João Homem – bispo de Lamego (1448-1464)76. 1.5.2. Pajem, escudeiro, estribeiro-mor No entanto, há um Pedro Homem que parece reunir condições favoráveis para ser preferido como eventual possuidor do códice. Trata-se de uma personalidade que exerceu o cargo de estribeiro-mor do rei D. Manuel. A ele se refere Barbosa Machado: Pedro Homem. Estribeiro mór do serenissimo Rey D. Manuel, o qual sendo casado com D. Maria de Menezes, filha de Ruy Gomes da Sylva, teve della entre outros filhos, Antonio Homem Embaixador del Rey D.Manuel á Curia romana. Foy insigne poeta, de cuja veya se lem diversas Poesias no Cancioneiro de Garcia de Resende impresso em Lisboa por Herman de Campos 1516, a fl. 53. 54. 145. vers. 148.vers.149.153.155.vers.159.vers.168 (Bibliotheca Lusitana, III: 584-585). A. Caetano de Sousa já dizia que «Pedro Homem, foy Estribeiro môr, como referem diversas Memorias, e acompanhou a El Rey sendo Duque nas Justas, que se fizerão no casamento do principe D. Affonso, como refere Rezende na Chronica del rey D.João II, fol.82, vers e a Chronica del Rey D. Manoel, parte I cap. 24» (Provas III: 208). De facto, como nobre e cavaleiro, está realmente presente nas festas reais que comemoram os esponsais do príncipe D. Afonso, filho de D. João II e da rainha D. Leonor, com a filha dos Reis Católicos, realizado em Évora em Dezembro de 1490, festas inspiradas certamente nas do Condestável Miguel Lucas de Iranzo descritas na sua Crónica que abrange o período de 1458 a 147177. Pedro Homem fazia parte dos estribeiros que acompanhavam a entrada em liça de D. João II (1455-1495), logo após o Duque D. Manuel e o poeta e camareiro do duque, D. Joam Manuel (Garcia de Resende 1973: 184). 73 Marques 1974, I: 310. Sousa 1991: 119, 355. 75 Sousa 1991: 122. 76 Manso de Lima 1930. Recentemente, A. Resende de Oliveira acrescentou mais algumas referências documentais a outros «Pedros Homens» activos no século XV. Destes o mais significativo poderá ser um Pedro Homem, colaço do infante D. Pedro (Oliveira s.d.). 77 A descrição destas festas de Miguel Lucas denuncia uma prática pré-teatral no sul da Península Ibérica (Aubrun 1942). Os capítulos que Garcia de Resende dedica a estas festas, aos momos e ao espectáculo aproximam-se do tipo de descrição da crónica dos Hechos del Condestable Don Miguel Lucas de Iranzo (Crónica del siglo XV) (Mata Carriazo 1940). 74 59 Capítulo 1. História do manuscrito O seu nome é confirmado em carta de brasão de 1529. Um brasão «d’azur á six croissants d’or. Cimier: un lion du champ tenant entre les pates une hache d’armes au naturel, futée d’or» (Freire 1908 e 1973: 245). Por motivos etários, o Pedro Homem participante nas Justas eborenses em 1490 e estribeiro do rei D. Manuel (e tinha já este estatuto, como vamos ver, quando o futuro rei era ainda apenas duque de Beja) não parece ser nenhum dos dois escudeiros acima referidos do tempo dos Infantes D. Pedro e D. Henrique. Poderá, porém, ser aquele Pedro Homem que, em 1465, é assinalado como pajem do Condestável D. Pedro de Portugal, na altura Rei da Catalunha. L. A. da Fonseca (1982: 341-342) na relação dos portugueses que acompanharam D. Pedro faz referência a um «Pedro Homem. Esteve com D. Pedro na Catalunha, onde é referido como pajem real (13 Out. 1465)». Segundo L. A. da Fonseca, é possível que se trate do escudeiro do Infante D. Pedro que esteve a seu lado em Alfarrobeira ou do escudeiro do Infante D. Henrique, os dois conhecidos homónimos. Tive a oportunidade de observar, em microfilme, que, no Registo de 1465 do Arquivo da Coroa de Aragón, é referido, na verdade, um «pedro home paige del dit senyor» (13 de Outubro de 1465, Real Patrimonio-Mestre Racional, 2490, vol. 138r II, contas de Fernando Eanes de Maio de 1465 a Março de 1466)78. No entanto, pajem era o moço nobre, fidalgo que, antes de ascender a escudeiro, geralmente aos 14 anos servia nos paços de grandes senhores ou do rei (Campos Rodrigues 1979). Nos finais do século XV, viviam na corte a expensas do monarca, sendo de um modo geral, filhos de nobres pouco abastados. Se em 13 de Outubro de 1465, temos notícia de um Pedro Homem que é pajem na corte do Condestável D. Pedro, rei da Catalunha, é natural que após a morte do rei a 29 de Junho de 1466 em Grandollers del Vallés, o pajem tenha regressado a Portugal e tenha adquirido um dos primeiros escalões da nobreza, com o título de escudeiro. Deste modo, os escudeiros dos Infantes de Avis dos anos 50 não se podem identificar, pareceme, com o pajem de 1465 por serem, naturalmente, muito mais velhos. Mas, é com esta condição de escudeiro que vamos encontrar um Pedro Homem na corte de D. João II, documentado na sua Chancelaria, um ano após a sua subida o trono, recebendo vários benefícios, «graças» e privilégios do rei. Mais tarde, em 1492, um Pedro Homem será anunciado por D. Manuel como «fidalgo de nossa casa e nosso Estribeiro-Mor». Diz-nos Oliveira Marques (1979) que do século XV em diante, a categoria de escudeiro, antes transitória, se cristalizou de certa maneira numa classe inferior de nobreza fidalga. No 78 Devo esta possibilidade à gentileza de V. Beltrán e de M. Lourdes Simó que fizeram o favor de me facultar este microfilme. No estudo de Baquero Moreno (1982) sobre a presença de Portugueses na Catalunha durante a realeza do condestável D. Pedro (1464-1466) não encontro, infelizmente, qualquer indicação relativa a Pedro Homem. 60 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita século XV, estavam já equiparados a nobres, pelo menos, para certos efeitos. Parece claro assim que esta família Homem pertenceria a uma linhagem de segundo plano, da pequena nobreza, o que não é invulgar (Gomes 1995), mas que parece ter prosperado na dependência vassálica de algumas das mais importantes casas senhoriais do século, nomeadamente as dos Infantes D. Pedro, D. Henrique e nas casas reais de D. João II e de D. Manuel79. Dada a dispersão geográfica encontrada entre os diferentes membros da família, onde é difícil traçar linhas genealógicas coerentes, sem erros e sem lacunas, é de pensar que estamos perante membros de vários ramos da linhagem. Relativamente a Pedro Homem, provavelmente o futuro poeta, várias notícias são registadas na Chancelaria real. Assim, na Chancelaria de D. João II (Mendonça 1994), em Viana do Alentejo a 9 de Março de 1482 (IAN/TT. Cha. D. João II, L. 2., f. 36): «...querendo Nós fazer graça e mercê a Pero Homem, confiando dele (…) Temos por bem e o damos daqui em diante por escrivão das nossas sisas de Almalaguês e de Castel Viegas, termo da nossa cidade de Coimbra…». Em Évora, a 2 de Julho de 1482 (IAN/TT. Cha. D. João II, L. 2, f. 154v): «…carta de coudelaria de Pero Homem, morador em Fronteira, per que o damos em a dita vila por coudel, da feitura desta nossa carta a 3 anos primeiros seguintes…» (Cf. também os Itinerários de D. João II, Serrão 1993: 58). Em Évora, a 8 de Julho de 1482 (IAN/TT. Cha. D. João II, L. 2, f. 166): «…carta de Pero Homem, escudeiro do conde de Penela meu muito amado sobrinho, per que o damos daqui em diante por escrivão das nossas sisas de Miranda e de Podentes…». Em Sintra, a 30 de Janeiro de 1486 (IAN/TT. Cha. D. João II, L.1, f. 24v): «…carta de Pero Homem, nosso escudeiro, morador em a nossa mui nobre e leal cidade de Evora, per que o damos em a dita cidade e seus termos por escrivão da coudelaria, da feitura desta nossa carta a 3 anos primeiros seguintes…». Em Santarém, a 10 de Fevereiro de 1486 (IAN/TT. Cha. D. João II, L. 1, f. 29v): «…confiando Nós da bondade e discrição de Pero Homem, nosso escudeiro, que o fará bem e como cumpre a nosso serviço, e querendo-lhe fazer graça e mercê, temos por bem e damo-lo daqui em diante por escrivão do nosso almoxarifado da vila de Beja…». 79 R. Costa Gomes (1995) ao dar-nos numerosas informações sobre diferentes cargos da corte, não se refere, em particular, às coudelarias. Oliveira Marques na Nova História de Portugal (vol. IV) oferecenos indicações mais desenvolvidas sobre a coudelaria como «unidade de recrutamento de guerreiros a cavalo» que parece estar mais relacionada com a administração militar, enquanto a estrebaria aproximarse-ia de um cargo mais cortesão, estando mais ligada à criação de cavalos e ao fornecimento de transporte de pessoas e bagagens nas deslocações régias. O cargo de estribeiro-mor no século XIV talvez não tenha sido muito importante, se atendermos ao preenchimento do lugar por mouros (Costa Gomes 1995). Mas o recrutamento de servidores do rei na baixa nobreza era já visível no meio trovadoresco (JSrzCoe é um exemplo privilegiado). Este procedimento não faria mais do que reforçar a imagem de Pedro Homem, originário de uma linhagem modesta, como servidor do Rei no século XV. 61 Capítulo 1. História do manuscrito De novo, em Évora, a 1 de Julho de 1486, refere Pedro Homem, «nosso escudeiro, morador em a nossa cidade de Évora» ao qual o rei dá o cargo de escrivão da coudelaria de Évora, uma renovação de função, já anunciada em Sintra, a 30 de Janeiro de 1486. Na Chancelaria de D. Manuel, encontram-se notícias significativas, sobretudo aquela que nos dará praticamente a data de sua morte em 1498. Em Montemor-o-Novo, a 5 de Fevereiro de 1492 a propósito de uma herdade coutada, regista-se uma confirmação (IAN/TT. Cha. de D. Manuel, L. 26, f. 19v): [Dom Manuel] … «Por parte de Po Homem, fidalgo de nossa casa e nosso Estribeiro-Mor, nos foi apresentada uma carta del Rei D. João [II], dada em Santarém a 4 de Abril de 1486, a qual continha…». Há ainda um rol de duas cartas (IAN/TT. Cha. D. Manuel L. 31, f. 99v), uma de Lisboa, 13 de Março de 1498, com uma renda vitalícia para o filho mais velho de Po Homem, Francisco Homem: [Dom Manuel] … «Esguardando Nós aos muitos serviços que temos recebido de Po Homem, fidalgo de nossa Casa e nosso Estribeiro-Mor, cuja alma Deus haja…Temos por bem que, desse dia do seu falecimento em diante, Francisco Homem, seu filho maior, tenha de Nós em sua vida a renda de nossa portagem da cidade de Évora, que a tinha o dito Po Homem seu pai…». A outra carta corresponde a uma tença temporária para os filhos menores: [Dom Manuel] … «Havendo Nós respeito ao muito serviço… de Po Homem, fidalgo de nossa Casa e nosso Estribeiro-Mor, que Deus haja, e querendo galardoar… e fazer mercê a seus filhos, Temos por bem… que, desde o seu falecimento do dito Po Homem em diante, os ditos seus filhos tenham… pera ajuda de sua criação, em cada ano, enquanto por nossa mercê, os 45.000 reais que o dito seu pai de Nós tinha de tença em sua vida, dos 90.000 reais que já dante tinha, porque os 55.000 que deles falecem trespassou ele em sua vida, com nosso consentimento, em Pero d’Abreu pela renda da portagem de Évora que ele houve. A qual tença destes 30.000 reais Nós repartiremos depois pelos ditos moços como bem nos parecer…». Outro rol de três cartas de legitimação para três filhos ilegítimos de Po Homem (IAN/TT. Cha. de D. Manuel, L. 31, f. 3v) em Évora a 7 de Outubro de 1498: [Dom Manuel]… «querendo fazer graça e mercê a Beatriz Viveiro, filha de Po Homem, cavaleiro de nossa Casa, casado e de Lianor Rodrigues, mulher solteira…». Destas notícias pode levantar-se uma objecção de natureza geográfica em relação aos documentos apresentados entre 1482 e 1486. É possível que o Pedro Homem da região de Coimbra, escudeiro e escrivão das sisas em Almalaguês, Miranda e Podentes (1482), possa não ser o mesmo Pedro Homem que aparece praticamente na mesma altura na região alentejana, escudeiro, escrivão da coudelaria e escrivão do Almoxarifado de Beja (1482-1486). Mas, o que 62 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita parece bem provável é que o escrivão da coudelaria de D. João II seja o estribeiro-mor de D. Manuel em 1492 e, por conseguinte, o poeta assim nomeado no Cancioneiro Geral. Identificar o pajem do Condestável de 1465 com o escudeiro de D. João II em 1482/1486 e, posteriormente, com o estribeiro-mor de D. Manuel deve ser aduzida, no entanto, de algumas precauções: 1. o problema geográfico – são bem conhecidas as causas da atribuição do trono catalão ao Condestável. É facilmente explicável que um pajem de 1465 na Catalunha, após a morte do seu senhor em 1466, possa naturalmente ter regressado a Portugal. Assim, é lógico que apareça, alguns anos mais tarde, como escudeiro de um familiar do rei, o Conde de Penela e, pouco depois, do próprio rei D. João II; 2. o problema cronológico – a questão parece também solúvel, porque a documentação joanina surge quase vinte anos mais tarde, anunciando o novo estatuto, escudeiro, que segue a ordem regular da nobreza nesta altura, depois de ter sido pajem. Podemos conjecturar com estas datas que Pedro Homem teria então entre 30 e 35 anos na altura; 3. o problema político – isto é, a ligação de uma mesma pessoa a duas casas politicamente antagónicas. Há membros da família Homem que apoiaram o Infante D. Pedro em Alfarrobeira em 1449, alguns perderam privilégios e o próprio filho do regente, o Condestável D. Pedro, teve de se exilar em Castela até 1456. Pode um pajem do Condestável ter voltado à corte? A resposta a esta pergunta tem de ter em conta o factor tempo, porque 1449 estaria longe e o próprio Condestável tinha reatado, antes da sua ida para a Catalunha, contactos com o próprio rei D. Afonso V em 1453. Bastaria pensar no seu texto sobre a política marroquina em 1460 e na restituição do Mestrado de Avis que lhe tinha sido confiscado. Nestas circunstâncias, o Condestável D. Pedro assume já uma posição de colaboração com D. Afonso V e nas Coplas del menesprecio e contempto de las cosas fermosas del mundo, escritas entre 1453 e 1455, não deixa de endereçar uma dedicatória ao rei D. Afonso V, vencedor de seu pai em Alfarrobeira: «[C]omiença el prohemio dirigido al muy excelente e muy catolico prinçipe temydo e muy amado señor Alfonso el quynto deste nonbre... » (Michaëlis 1922, e Fonseca 1975). A este propósito não devemos esquecer que, pouco antes, em 1447, o Marquês de Santillana também tinha escrito as Coplas al rey don Alfonso de Portugal (Gómez Moreno - Kerkhof 1988: 268270). O estribeiro-mor de D. Manuel e poeta do Cancioneiro Geral deve ser com muita probabilidade o escudeiro de D. João II, se atendermos a que, neste reinado, Pedro Homem tem já as funções em 1482 de coudel em Fronteira (no Alentejo) e de escrivão da coudelaria de Évora e escrivão do Almoxarifado da vila de Beja em 1486. A documentação de D. João II e de D. Manuel parece revelar, pelo menos, uma progressão social de Pedro Homem. Esta intimidade 63 Capítulo 1. História do manuscrito com a corte vai manifestar-se também na sua participação nas Justas das bodas de Évora em 1490, em honra do casamento de seu filho D. Afonso com a Infanta D. Isabel, filha dos Reis Católicos porque, «na Cidade de Lisboa principal do Reyno ao tal tempo morriam de peste, e por isso se não podiam fazer nella as ditas festas (…) el Rey por mayor perfeiçam desejou, determinou que fossem na cidade de Evora, que he a segunda do Reyno» (Garcia de Resende 1973: 158). 1.5.3. Poeta. Justas e Cancioneiro Geral Pedro Homem é o terceiro aventureiro dos «sete justadores» que acompanha o Duque de Beja, futuro rei D. Manuel em primeiro lugar, e D. Joam Manuel, camareiro-mor também de D. Manuel, diplomata e grande poeta, ladeando a entrada em liça do Monarca e tendo escolhido Vénus por cimeira, um pouco como Juan de Mena no Laberinto de Fortuna em que a terceira ordem é de Vénus, e como divisa os seguintes versos: Si esta gracia, y hermosura Puede darla, De vos tiene de tomarla (Resende 1973: 184). O poeta Pedro Homem não desconheceria os versos de Juan de Mena que, naturalmente, se adequavam a uma festa matrimonial: Venidos a Venus, vi en grado especial los que em el fuego de su joventud fazen el vicio ser santa virtud por el sacramento matrimonial. (Kerkhof 1997: 149) A proximidade com o poeta D. Joam Manuel é interessante, porque praticamente toda a produção poética de Pedro Homem que conhecemos através do Cancioneiro Geral está associada à de D. Joam Manuel, quer na forma «pregunta» e «resposta», quer no modo epistolar, quer ainda nas intervenções e «ajudas» colectivas. A contiguidade nominal entre os dois poetas – camareiro-mor e estribeiro-mor – de D. Manuel é também material, no que diz respeito ao modo de ordenação da recolha de Garcia de Resende. Conhecem-se as diferenças entre os exemplares (Crabbé Rocha 1949) e conhece-se o exame material de alguns exemplares do Cancioneiro Geral (Dias-Castro 1977), mas não estão ainda suficientemente estudados os critérios de antologização ou compilação, que estiveram subjacentes à reunião de textos e 64 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita autores por G. de Resende80. É, no entanto, significativo observar que os ciclos destes dois autores surgem de modo, mais ou menos contínuo, e nos casos de participação colectiva, um deles está, muitas vezes, no seguimento ou na procedência do outro. Contrariamente a D. Joam Manuel, Pedro Homem não é um poeta excessivamente citado, nem antologiado, embora seja costume seleccioná-lo nos estudos relativos à pré-história do teatro devido ao «breve» que fez a «ũus momos». Relaciona-se, literariamente, com diferentes personalidades do Cancioneiro Geral como Nuno Pereira, Francisco da Silveira, Simão de Sousa, Fernão da Silveira, coudel-mor, Prior de Santa Cruz, mas as suas relações privilegiadas circunscrevem-se a D. Joam Manuel81. D. Joam Manuel, poeta palaciano e poeta bilingue do século XV, viveu entre as duas cortes. Activo entre 1475 e 1500, seu nome sobressai entre os poetas de melhor qualidade e dos mais polivalentes, no que diz respeito à sua produção poética no Cancioneiro Geral com os diferentes pleitos burlescos, preguntas, repostas, louvores. Tanto em português como em castelhano, manifesta enormes qualidades técnicas e temáticas. Bastaria recordar o Pranto à morte do príncipe D. Afonso (fl. XLVIIIv-XLIXr), incluído no Cancioneiro Geral, em que, recordando tristemente as Justas do ano anterior, nas quais participou também Pedro Homem, vai renegá-las declarando: Oh fiestas malditas, desaventuradas, que luego tan presto vos haveis tornado em lhoro el prazer, enxerga el borcado, las danças en otras muy desatinadas (texto 132, I, 1990: 396) A aparente originalidade das trovas de natureza religiosa como aquelas em louvor de Nossa Senhora, seguidas de outras em glorificação de Santo André (fl. XLIXv-Lr) faz pensar no Marquês de Santillana com os seus sonetos Virginal templo do el Verbo divino, soneto que o Marquês «fizo en loor de Nuestra Señora» e Si ánima alguna tú sacas de pena «otro soneto qu’el Marqués fizo a Sant Andrés». Outras composições de carácter didáctico, sobretudo a «Regra sua pera quem quiser viver em paz» e a «Ũa falla ou pallauras moraes» ao «mui alto princepe el-rei Dom Manuel Nosso Senhor» (fl. LIr-v), que não podem deixar, de igual modo, de recordar os Proverbios o Centiloquio do Marquês de Santillana, concluídos em 1447, por mandado do rei D. João II para instrução do príncipe D. Henrique, para preparar o futuro rei de 80 O volume V (1998), que acompanha a edição do Cancioneiro Geral de A. Dias, não contempla exactamente este aspecto, que poderia ser analisado de modo paralelo ao dos cancioneiros trovadorescos. É ainda o estudo de Jole Ruggieri que mais perspectivas aponta neste sentido (1931). 81 As qualidades poéticas do poeta, irmão-colaço de D. Manuel, são reconhecidas por diversos autores. Veja-se, por último, a breve notícia bio-bibliográfica em Ribeiro (1993: 336-337). 65 Capítulo 1. História do manuscrito Castela (Gómez-Moreno - Kerkhof 1988: 74, 77; Rohland de Langbehn 1997: 244, 248). Nos últimos anos, as «trovas» que fez sobre os sete pecados mortaes, endereçados a el-rei as quaes nom acabou também não podem deixar de ser associadas, quer quanto ao tema, quer quanto ao inacabamento, às Coplas de los pecados mortales de Juan de Mena, composição interrompida pela morte do poeta (Pérez Priego 1989: 305-328). Também Cataldo Sículo tinha reunido um conjunto de Proverbia endereçados ao príncipe D. Afonso, incluído nas Epistolae e quando o príncipe casou com a infanta D. Isabel, o humanista não deixou de saudar a princesa com um discurso em latim. Cataldo Sículo teria vindo para Portugal em 1485, convidado por D. João II exercendo funções de orator oficial e secretário latino de tanto de D. João II como de D. Manuel. Foi professor do filho bastardo de D. João II, D. Jorge, que se tornou em um «nobre versado nas Humanidades Clássicas»82. Além deste régio aluno, deve ter tido vários outros de diversa condição social, ligados à corte ou mesmo à Universidade, fazendo assim parte da nova atmosfera cultural da classe dirigente. Pedro Homem e D. Joam Manuel não podiam estar alheios a este movimento de pessoas e de leituras. Não deixa de ser extremamente curioso notar que D. Joam Manuel e Pedro Homem recebem correspondência de Cataldo Sículo com o conhecido Querimonia, a elegia endereçada a D. Joam Manuel (Ramalho 1988). Justamente Pedro Homem surge também como um dos amigos e protectores de Cataldo: Necnon Petrus Homo, caelesti lapsus ab aura De Stygio poterit te reuocare lacu. A puero ante alios Regi carissimus, illi Tanta fides, uirtus insita, tantus amor. (Ramalho 1996: 259) Esta referência a Pedro Homem é significativa não só pelas qualidades invocadas «descido da aura celeste», «grande a sua dedicação», «grande a sua virtude natural», mas sobretudo, o elemento biográfico que vem contribuir para melhor definição da integração cultural do poeta – «desde criança, ele foi queridíssimo do rei, mais que outros» – e, como conclui C. Ramalho, «os outros versos que a Pedro Homem são endereçados por Cataldo, fazem supor que Pedro Homem pertencia à camada instruída da corte» (Ramalho 1996: 262). Apesar da escassez dos documentos, a biografia de D. Joam Manuel em alguns momentos da sua vida é relativamente conhecida. Macpherson (1979), P. Botta (1981) e V. 82 A propósito deste célebre latinista, são vários os ensaios que lhe foram dedicados por Costa Ramalho, (1969, 1979, 1985, 1993). 66 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Beltrán (1988) indicam elementos para o traçado de um quadro histórico deste cubicularius do rei D. Manuel. Entre os anos 1460 (Macpherson 1979), 1460/1469 (Botta 1981), ou depois de 1450 (Beltrán 1988), pode-se conjecturar a data provável do seu nascimento. Juntamente com a mãe, Justa Rodrigues, ama de D. Manuel, transfere-se para a corte, do monarca recebe gratificações de vários géneros, incluindo o título e o próprio apelido, pois deve ser esta a origem do nome de família. É na corte que deve ter recebido a sua formação próxima do futuro rei e, como seu camareiro-mor, fará diversas viagens a Espanha em missão diplomática. Em 1475, devia viver na corte e era considerado «fidalgo da casa do príncipe». De 15 de Novembro de 1475 data a carta de legitimação pelo Pai, o bispo D. João Manuel. Data de 1488 um contrato com os carmelitas de Lisboa, e em 1490, está presente nas Justas de Évora com o duque D. Manuel e com Pedro Homem, entre outros. Em 1495, é citado como camareiro-mor, mas é natural que já exercesse estas funções anteriormente. Em 1497, conclui em Castela o difícil pacto matrimonial entre o rei português e a infanta D. Isabel, filha dos Reis Católicos e viúva do príncipe D. Afonso. Em 1498, encontra-se em Zaragoza no séquito do rei, e em 1499 é, de novo, encarregado de preparar o matrimónio de D. Manuel, entretanto viúvo, com a outra filha dos Reis Católicos. É durante esta missão que morre subitamente. Ou neste ano ou no seguinte, 1500, é a data provável da sua morte na corte dos Reis Católicos por ocasião da embaixada acima referida. «Faleceo lá de doença, do que el Rei foi mui enojado», diz-nos Damião de Góis (Crónica cap. 46, f. 44). Como vimos através da documentação de D. Manuel, Pedro Homem era já falecido, não muito antes, em Março de 1498. Esta breve notícia biográfica merece consideração, devido à proximidade da produção literária entre D. Joam Manuel e Pedro Homem, devido à correspondência na colocação dos textos na recolha de Resende e ainda nas próprias relações textuais e culturais entre os dois poetas. Ao mesmo tempo, reconhecê-los como homens comprometidos com a corte, de modo explícito, justamente através dos textos epistolares trocados entre ambos. Os textos destes dois autores encontram-se no Cancioneiro Geral como mostra o Quadro 1. Como se pode deduzir da enumeração abaixo representada, as produções poéticas de Pedro Homem e de D. Joam Manuel surgem integradas na colectânea resendiana com um flagrante paralelismo. Se este paralelismo é importante do ponto de vista cronológico – entre 1490 e 1498/1500 – é também essencial para melhor ajustar o quadro cultural e social em que o poeta Pedro Homem se inclui. A sua integração na corte era já clara com a documentação de D. João II e, agora, a sua presença literária ligada prática e unicamente a D. Joam Manuel, não só um dos poetas mais relevantes, como uma personalidade íntima da corte, colaço do futuro rei D. 67 Capítulo 1. História do manuscrito Manuel e seu camareiro-mor. Mas também um literato e um mecenas como referia o humanista Cataldo Sículo, que não deixou de ser um diplomata de grande confiança do rei. Quadro 1 – Localização dos textos de D. Joam Manuel e de Pedro Homem no Cancioneiro Geral D. Joam Manuel Pedro Homem Vol. I (textos individuais) 132-150 151 151 152-158 [159-169 – conjunto de textos constituídos por ciclos breves de um ou apenas dois textos por autor] 170-174 Vol. III (textos colectivos) 568 568 575 575 576 577 588 588 595 595 596 596 597 608 610 610 614 614 1.5.4. Cronologia textual Observaremos ainda que os textos com conjectura cronológica admissível não excedem um período muito mais longo do que dez anos: a) Texto 614: 1490 – A vinte e nove dias de dezembro de mil e quatrocentos e noventa, fez el-rei Dom Joam, em evora, uas Justas reaes no casamento do principe Dom Afonso, seu filho com a princesa Dona Isabel de Castela. b) Texto 132: 1491– De dom Joam Manuel à morte do princepe dom Afonso, que Deos tem, em modo de lamentaçam. O príncipe morre em 1491. c) Texto 142: 1495 – Ũa fala ou palavras moraes, feitas por dom Joham Manuel, Camareiromoor do mui alto princepe el-rei Dom Manuel Nosso Senhor. D. Manuel sobe ao trono em 1495. d) Texto 156: 1497, 1499/1500 – Dom Joam Manuel, a ũa senhora, que lhe mandou que lhe escrevesse novas de si, vindo ele d’ũu caminho que andara com ela, ficando ela em Castela. D. 68 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Joam Manuel vai a Castela para organizar o primeiro casamento do rei D. Manuel com D. Isabel, viúva do príncipe D. Afonso em 1497; em 1499/1500 está, de novo, em Castela para ajustar o segundo casamento do rei D. Manuel com D. Maria. e) Texto 158: 1499/1500 – Trovas que Dom Joham Manuel, camareiro-moor, fez sobre os sete pecados mortaes, endereçadas a el-rei as quaes nam acabou (morte em 1499 ou 1500) Quanto aos textos de Pedro Homem, é possível sugerir, aproximadamente, as seguintes datas: a)Texto 614: 1490 – A vinte e nove dias de Dezembro de mil e quatrocentos e noventa, fez elrei Dom Joam, em Evora, ũas Justas… b) Texto 170: 1486? – De Pedr’Homem a Dom Joam Manuel Embora não haja um episódio nítido nestas trovas, podemos, no entanto, referir os casos de alusões que contribuem para uma datação plausível. A donzela Faustina é uma clara nominatio e réplica a um texto de D. Joam Manuel (I, 1990: 150), o que demonstra as relações entre os dois poetas. Faustina na composição de D. Joam Manuel (texto 150: Outras suas em que mete no cabo de cada cobra ũa cantiga feita per outrem), fala um francês macarrónico, um texto híbrido, classificado como um dos casos de fonte anónima (Dias 1978): Nom sei donde se mostrou ũa donzela excelente, a Faustina parecente, qu’assi me desenganou: – Vuestr’amys vus vus ausem d’atendre l’amurose grace, altre que vus a plis la place vuestr françois em vão usem. (texto 150, I, 1990: 429) Mas é o verso relativo às sete cidades que pode contribuir para o estabelecimento de uma mais acertada cronologia: bem sei das Sete Cidades (texto 170, I, 1990: 476 ) Embora se possa associar esta referência a sete cidades com sete pecados ou com sete estradas, referidas quer em Juan de Mena, quer em D. Joam Manuel, deve aqui explicar-se pela 69 Capítulo 1. História do manuscrito incógnita que devia circular no tempo de Pedro Homem acerca das Sete Cidades. Antilha, Antilia ou a ilha das Sete Cidades foi uma das ilhas lendárias que, com a mitologia grega, a Idade Média imaginou e que a cartografia da época divulgou, colocando-a a poente do Atlântico Norte. No final do século XIV, na carta anexa a um exemplar de Ptolomeu, oferecida ao papa Urbano VI, vem desenhada a Antilha, com uma das versões da lenda que envolveu essa ilha fantástica. No mapa de Bartolomeu Pareto, em 1465, estão indicados os arquipélagos das Canárias, Madeira, Açores e a ilha Antília. Era ela que marcava o limite que os navegadores não podiam ultrapassar nas suas explorações. Outra versão da lenda contava também que Antilha tinha sido povoada no século VIII por cristãos ibéricos fugidos à invasão muçulmana. Deste modo, sete bispos teriam embarcado da costa portuguesa com os seus fiéis e encontrado refúgio na ilha. Aí instalados, edificaram sete cidades, correspondentes às sete dioceses. Há notícias, desde o tempo do Infante D. Henrique, que relatam a chegada de uma caravela e os navegadores reconheceram os habitantes como cristãos de ascendência portuguesa. É de especial interesse para a compreensão do verso em análise e para datação do texto que a lenda acerca da Atlântida se tenha prolongado, porque Antilha é de novo, na segunda metade do século XV, procurada por navegadores portugueses; D. Afonso V chega a incluí-la expressamente em uma doação, feita a Fernão Teles, das ilhas que, nas suas viagens, viesse a descobrir. Fernão Teles projectara navegar ou subsidiar viagens pelo Atlântico. Pediu para isso licença a D. Afonso V, que a concedeu por Carta de 28 de Janeiro de 1474 e renovou em m 10 de Novembro de 1475. O rei faz-lhe «pura e ymrrevogavell doaçam pera todo o sempre» das ilhas que descobrisse ou mandasse descobrir e povoar, com excepção das que se encontrassem «nas partes da Guynee». Este Fernão Teles é também poeta recolhido por Garcia de Resende. Em 1486, quando já devia ter desistido de a encontrar, a ilha das sete cidades volta a surgir na documentação real, referida, agora, como um dos objectivos de Fernão Dulmo. Mas, ao conceder autorização para esta viagem, D. João II já não se mostra, absolutamente, convencido de que as sete cidades da lenda tivessem sido construídas numa ilha, pois admite que o navegador as fosse encontrar, com mais segurança, em um desconhecido continente, «em terra firme» (Albuquerque 1979). O texto de Pedro Homem seria, com fundamento nestes elementos, não muito posterior, portanto, a 1486. Observemos agora outro verso deste mesmo poema de Pedro Homem: bem sei de Fernam Seram (texto 170, I, 1990: 476) 70 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita No cap. LXXXVI da Crónica de Dom João II, Garcia de Resende relata-nos o episódio Do que el Rey disse a Fernam Serram: «A Primeira vez quando el Rey entrou na Cidade de Lisboa, foy hũa muyto grande entrada, e solennissimo recebimento de grandissimas festas, e muytos e grandes gastos e despesas, cousa que foi nomeada por grande, e ouue ahy homens que gastaram muyto, e hum Fernam Serram caualleiro cidadam de Lisboa, homem honrado, vendeo duas quintas, e gastou tudo em atauios e vestidos, antre os quaes fez hun gibam bordado de pedras, e pedraria que valia muyto. El Rey porque fora demasia pesoulhe, e teuelho a mao recado, e por não parecer a alguem que elle favorecia e folgaua dos homens lançarem o seu a longe, hum dia a mesa lhe disse perante todos: Fernão Serram, quantas quintas fazem um gibam: que não deixava passar cousa malfeita sem reprensam, ou castigo» (Resende 1973: 129). D. João II esteve em Lisboa, pela primeira vez, de acordo com os seus itinerários, no ano de 1486 do mês de Julho em diante. É a partir de 7 de Julho, saindo de Santarém, «que pode localizar-se a partida da Corte para Lisboa, onde parece ter chegado ao redor de 10 de Julho» (Serrão 1993: 214). Portanto, o texto não deve estar muito dissociado, quer desta visita de D. João II a Lisboa em Julho de 1486, quer do episódio de Fernão Teles quanto ao problema da descoberta da ilha das sete cidades, também datável do mesmo ano de 1486. c) Texto 171: 1482?, mas antes de 1490/1491 – Cantiga de Pedro Homem, quando casou Dona Branca Coutinha. D. Martinho da Silveira refere-se também a este casamento (texto 160, I, 1990: 462) que transtornou a corte, e este poeta possui apenas duas composições, uma, o poema citado, relativo ao matrimónio de D. Branca e, outra, enviada de Arzila: De Dom Martinho da Silveira, estando em Arzila, a Simão Correa, em reposta doutras que lhe mandou d’Alcacer (texto 159, I, 1990: 460). Arzila foi tomada a 24 de Agosto de 1471 com D. Afonso V e o futuro D. João II. Por seu lado, deve ser D. Branca Coutinha, a D. Branca que participa numa composição Do Coudel-Moor Francisco da Silveira em que lhe pede que lhe respondam a esta cantiga (texto 608, III, 1993: 290). Francisco da Silveira era coudel-mor em 1482 (Serrão 1993). Também o Prior de Santa Cruz, se dedica a este acontecimento, colocando-se no lugar de D. Afonso que perdeu a sua amada: Do Prior de Santa Cruz polo Principe Dom Afonso, quando casou Dona Branca com quem ele andava d’amores (texto 610, III, 1993: 301), portanto antes de 1490 (casamento do príncipe)83. d) Texto 172: 1488 – De Pedro Homem, estando fora da corte, a Dom Joam Manuel que estava com el-rei em Almeirim. A corte de D. João II está várias vezes em Almeirim. A consulta dos 83 Esta mesma interpretação é dada por A. Dias a propósito do conteúdo desta composição. O príncipe D. Afonso renuncia a D. Branca pelos projectos de seu pai com Castela (V, 1998: 270, n. 122). 71 Capítulo 1. História do manuscrito Itinerários de D. João II, determina que nos anos de 1482, 1483, 1484 e 1488, a corte passou alguns meses em Almeirim. A composição de Pedro Homem reporta-se a João Falcão: Ca por nam saber se vam, nam sei se vivo, e tambem de Jam Falcam se é ja cativo. (texto 172, I, 1990: 478) No texto contíguo que transcreve a Reposta de D. Joham Manuel, além das notícias respeitantes ao Rei, ao Príncipe e ao Duque, o poeta «responde» a propósito de João Falcão: No feito de Joam Falcam ainda s’agora sonha, taforeas, capitam, Duarte Galvam Bergonha. A corte aqui se manea neste prado, mas logo benaventa Abril passado. (texto 172, I, 1990: 480) A corte, em Novembro de 1482, parte para Santarém e a 8 de Novembro, encontra-se em Almeirim (Serrão 1993: 77; Mendonça 1991). Em Dezembro, do mesmo ano de 1482, está também em Almeirim. Em 1483, aí regressa e há documentos datados de Almeirim em 1484. Registam-se novas estadias em Almeirim no mês de Abril de 1488 durante a Páscoa (Serrão 1993: 283-287). É, nesta altura, que foi decidido enviar a França, como emissário régio, o secretário Duarte Galvão. No dia 7 «...e depois de sobre o dito caso ter conselho, mandou logo por embayxador Duarte Galuão do seu conselho com cartas ao Emperador, e a el Rey de França (…)» (Resende 1973, cap. LXXII, 106; Pina 1977, cap. XXXII, 83). A 30 de Abril de 1488, parte a corte para Almada. O trajecto da Corte segue a estrada ribeirinha de Muge, Benavente, Samora Correia, Alcochete e Almada. Estava D. João II em Benavente, a 16 de Maio de 1488 (Serrão: 286-287). «Neste anno de oitenta e oito, estando el Rey em Benavente…» (Resende 1973, cap. LXXV, 109). Não só a referência a Duarte Galvão, a Benavente e a «Abril passado», mas também a alusão a João Falcão, colocam este texto em 1488 e depois do mês de Abril. João Falcão é um navegador «que havia sido capitão-mor de uma pequena armada enviada em 1488 a Mamora» (Freire 1908: 341), na costa atlântica de Marrocos. 72 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita João Falcão também poetou, e «d’elle existem umas trovas zombando da grande carapuça de velludo que Lopo de Sousa trouxera de Castella no verão de 1496», composição em que também participa Pedro Homem (Freire 1908: 341). G. de Resende fala também de uma «merce que el Rey fez a Ioam Falcam» (Resende 1973: 249): A tesoira do judeu que cercea mil pelotes por dar mais lugar òs motes ainda nela nam deu. Da volta soo se faria ũu faixam que cercasse o calação. (texto 596, III, 1993: 241). A. Dias, no volume dedicado à Temática do Cancioneiro Geral84, ocupa-se também da datação destas trovas (texto 172), que coloca também entre 1488 (Duarte Galvão) e o casamento do príncipe, interpretando os versos finais como uma alusão ao casamento de D. Branca Coutinha antes da boda de D. Afonso. e) Texto 173: 1488?/1496? – Pedro Homem a Don Gonçalo Coutinho. D. Gonçalo Coutinho participa na composição De Dom Joam Manuel a Lopo de Sousa, aio do duque, vindo de Castella no veram com ũa grande carapuça de veludo, que os castelhanos chamam gangorra (texto 596, III, 1993: 241), juntamente com D. Joam Manuel, Pedro Homem, João Falcão. Braamcamp Freire data este texto de 1496 (1908: 341). D. Gonçalo Coutinho participa ainda na longa composição De Pero de Sousa Ribeiro a estes casados abaixo nomeados, que andavam d’amores e partia-se el-rei com a rainha pera Almeirim (texto 613, III, 1993: 327). No mesmo texto, o poeta dirige-se também a Dom Martim de Castel Branco, Conde de Vila Nova. Don Martinho «veador da fazenda, duque depois foy Conde De Villa Nova», também participou nas Justas em 1490 e é «homem de muyta confiança» do rei, citado várias vezes por G. de Resende. Deve ser o mesmo Don Martinho que aparece associado a Don Gonçalo Coutinho no poema de Pedro Homem. Esta partida da corte para Almeirim corresponderá à do ano 1488, como o da composição de Pedro Homem a D. Joam Manuel? Há ainda notícias em 1498 de D. Gonçalo Coutinho que acompanha o rei D. Manuel a Castela, juntamente com Don Martinho de Castelo Branco e D. Joam Manuel. Pedro Homem já não participa nesta viagem, porque tinha falecido pouco antes. 84 Este V volume do Cancioneiro Geral saiu com data de 1998. Na minha Ponencia, dedicada a Pero Homem, apresentada em Castelló de la Plana em 1997, propunha já a datação de 1488 para aquele texto. 73 Capítulo 1. História do manuscrito f) Texto 174: 1490? – Breve que fez Pedro Homem a ũus momos. Embora seja difícil datar com garantia um «breve» deste tipo, não é despropositado associar este poema de Pedro Homem ao episódio descrito por Garcia de Resende Dos ricos momos que el Rey fez na sala da madeyra, pera desafiar a justa (Crónica de D. João II, cap. CXXVII). Este espectáculo precede as festividades em honra do príncipe D. Afonso pelo seu casamento com D. Isabel. Pedro Homem participa nas Justas que começaram na quinta-feira de Dezembro de 1490 e os momos tinham-se exibido na terça-feira anterior, «na sala da madeyra muyto excelentes e singulares momos reaes, tantos, tão ricos, e galantes, com tanta nouidade, e differenças de antremeses, que creo que nunca outros taes forão vistos» (1973: 178-180). Quanto a estes textos individuais, Pedro Homem nunca é identificado como estribeiromor do rei D. Manuel, o que pode fazer pensar que toda esta produção poética corresponde ao período em que estava ainda integrado na corte de D. João II. As datas conjecturadas para estes textos, como vimos acima, não contradizem esta hipótese. A documentação joanina observada refere Pedro Homem entre 1482 e 1486. Os textos podem ser situados entre os anos 80 e os anos 90. Só em 1492, D. Manuel assinala Pedro Homem como seu estribeiro-mor, o que significa que, tal como D. Joam Manuel, o poeta já tinha estas funções antes da subida ao trono do duque de Beja, ocorrida em 1495. Quanto às composições em que participa colectivamente apenas no texto, De Pedr’Homem, estribeiro-mor d’el-rei (texto 577, III, 1993: 157), encontramos a atribuição de estribeiro-mor, pela primeira vez, portanto, em texto já posterior a 1492. Neste caso, não participa D. Joam Manuel. A contiguidade dos dois cortesãos manifesta-se com frequência em outros poemas colectivos, tais como 568, 575, 588, 595, 596, 597, 610 e 614 (numeração da Ed. Dias 19901998). Há ainda textos em que intervém um estribeiro-mor, sem que seja segura a atribuição a Pedro Homem (textos 572, 582). A posição decorrente destes textos colectivos não permite alterar significativamente a cronologia que se podia inferir dos textos individuais. Como a maior parte dos textos de Pedro Homem está associada a D. Joam Manuel, e conhecendo as datas da morte, quer do camareiromor (1500), quer do estribeiro-mor do Rei (1498), é de crer que a produção poética de Pedro Homem não ultrapasse em muito uma dezena de anos. Mas, permitirão estes elementos associar um poeta do Cancioneiro Geral, cortesão e fidalgo, talvez mesmo pajem de poeta, «morador», com certeza, em Évora, ao proprietário do Cancioneiro da Ajuda, na segunda metade do século XV? 74 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Com esta inquietante pergunta, a leitura da produção poética de Pedro Homem não deixa também de suscitar respostas de algum modo surpreendentes. 1.5.5. Invocação poética a D. Denis Como ficou visto, a cronologia dos poemas datáveis adequa-se, globalmente, às datas da documentação joanina e às datas conhecidas da biografia de D. Joam Manuel, seu interlocutor privilegiado. Todavia, além desta concordância cronológica (finais do século XV), em uma das composições, a primeira que abre o seu ciclo de poeta como autor individual, endereçada justamente a D. Joam Manuel e que se pode datar à volta de 1486 (texto 170), encontra-se uma invocação ao rei D. Denis, curiosa por não se integrar nos modelos literários e inspiradores do século XV. DE PEDR’ HOMEM A DOM JOAM MANUEL I 1 2 3 4 5 6 7 8 Pois reposta nam s’escusa à que me trouxe Luis, invoco El-Rei Dom Denis da licença d’Arretusa Em seu nome mui tratado haveraa tam cedo fim, que se crea ser em mim seu escrito dobrado. 9 10 11 12 13 14 15 16 II Luis de Santa Maria chegou em hora tam forte que lhe ocupou a morte sua pousentadoria. Nam pude dele fruir soomente novas de vós, dizem qu’ee longe de nós olhos que o viram ir. 17 18 19 20 21 22 23 24 III Leixou a vila tam rasa o medo desta conquista, que todos perdem de vista a mais derradeira casa. A minha nam se derrama nem pode, inda que queira, porque tenho a companheira como nunca tereis dama. 25 26 IV Mas como convalecer a desora partirei, 75 Capítulo 1. História do manuscrito 27 28 29 30 31 32 para onde, nam no sei, nem se deve de saber. Per’aa corte nam seraa a poder de minha tença, porque nunca como laa do que me vem de Valença. 33 34 35 36 37 38 39 40 V De mim nam sei mais que diga, doutros muitos direi eu, se viesse jubileu que segurasse fadiga. Pero pois o i nam ha, socorrer e leixar far, mas dá-se tanto a vagar que nam sei quanto será. 41 42 43 44 45 46 47 48 VI A fama da devinal ia caminho da Beira , e torceo desd’a Guerreira por me dar nova de mal. Disse-me mais a malina, depois dos segredos mores , que todolos mantedores vos leixaram Faustina. 49 50 51 52 53 54 55 56 Fim Cousas que nam vam nem vam escuso por vaidades, bem sei das Sete Cidades, bem sei de Fernam Seram. E sei que des que vos vi nam tomei nenhũu prazer e mais sei quando naci, nam sei quand’hei-de morrer. (texto 170, I, 1990: 474-476). Este texto e, em particular, o meritório pedido de protecção ao rei trovador Inuoco el rrey dom denis / da licença da rrethusa não tem sido objecto de muito reparo. Encontrei estes versos por mero acaso, ao folhear, por outro motivo, a História da Literatura Portuguesa de Aubrey F. G. Bell (1971: 130). O especialista britânico, bem conhecido pela sua extensa obra sobre as literaturas portuguesas e espanhola, no capítulo dedicado ao Cancioneiro Geral e aos seus poetas, afirma: «Muitos escreviam em castelhano, e a influência espanhola sente-se a cada passo: influência de Juan de Mena, de Gomes e Jorge Manrique, de Rodríguez de la Cámara, de Macias, de Santillana. Este último, ao invés de Macias (…) nunca é citado; e todavia sente-se a sua influência constante. Pelo contrário, ninguém imita D. Dinis, embora Pedro Homem nos 76 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita surpreenda, citando-o uma vez como poeta». J. Ruggieri (1931: 129) sem indicar o nome do poeta fala também de «una sola volta ci offre un accenno a D. Dionisio». Uma verificação em C. Michaëlis (1904: 111-134) dá conta da relação de autores que tiveram conhecimento da obra poética de D. Denis. A fonte mais antiga e originária de todas as outras notícias subsequentes é o eborense Duarte Nunes de Leão (1530? -1608). O humanista contemporâneo de Resende, que se ocupou de obras jurídicas, linguísticas e históricas, pronuncia-se, citando o Cancioneiro do monarca não só na sua Chronica dos Reys de Portugal, «…quasi o primeiro que na lingua portugueza sabemos escreveo versos, o que elle e os d’aquelle tempo começaram a fazer á imitação dos Arvernos et Provençaes», como em dois outros textos: um de crítica histórica e outro de Genealogia verdadera de los Reys de Portugal, notícias que começaram a ser conhecidas nos finais do século XVI, mas sobretudo no século XVII. Todas as outras citações explícitas a D. Denis encontram-se em Pedro de Mariz, Frei Bernardo de Brito, Pe. António de Vasconcellos, Manoel de Faria e Sousa, Frei Francisco Brandão, A. Caetano de Sousa, D. Barbosa Machado, etc., e não fazem mais do que reproduzir Duarte Nunes, como já o notou C. Michaëlis (1904, I: 117): «mas todos repetem apenas, na parte relativa a D. Denis (…) as affirmações do que primeiramente enalteceu (…) os meritos do rei trovador» [Duarte Nunes de Leão]. Entre os escritores, Sá de Miranda (1481/85? - 1558) refere-se a D. Denis sem o citar como poeta, na Carta VI endereçada a D. Fernando de Meneses, vv. 61-66. Igualmente Camões (Os Lusíadas, III, 17) não o evoca como poeta, mas alude à sua protecção às ciências e às artes. É só com António Ferreira (1528-1569) que, de facto, encontramos D. Denis mencionado como aquele que «honrou as musas, poetou e leo», referido na Carta X. As referências que lhe são feitas encontram-se bem sintetizadas no artigo «Dom Denis» de E. Gonçalves (1993) no DLM e em alguns outros estudos como os de Deyermond (1983), Beltrán (1984), ou mesmo em Earle (1990) que alude ao rei trovador a propósito de António Ferreira. Estas menções ao rei são, no entanto, todas elas cronologicamente posteriores à invocação do poeta Pedro Homem do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. C. Michaëlis não o indica, portanto, no elenco de autores que se referem a D. Denis, mas, como recorda I. Castro na edição portuguesa do Cancioneiro da Ajuda a propósito do Índice Alfabético Remissivo: «D. Carolina conhecia praticamente tudo o que havia para conhecer da literatura medieval portuguesa e interpretou, ou intuiu, bem quase tudo (…). Resulta daqui uma ameaça letal e permanente: quem julgar ter feito uma descoberta, ou achado uma explicação, não deverá ficar descansado sem percorrer primeiro, e de lupa, todos os escritos de D. Carolina (…) única protecção eficaz contra desgostos de primazia frustrada» (1990: I, p). 77 Capítulo 1. História do manuscrito De facto, no Índice alfabético remissivo, acompanhado de algumas notas adicionais sob a entrada Denis (D.) rei de Portugal (I: 962), C. Michaëlis indica com um asterisco* [nota adicional] o seguinte: *Um poeta do Cancioneiro Geral de Resende parece não ter ignorado o talento lírico do monarca, pois invoca el rei Don Denis, da licença d’Aretusa (Pedro Homem, numa carta a D. João Manuel, vol. I, p. 460), conforme já deixei dito na minha Hist.da Lit.Port., p. 264. Esta Hist. da Lit. Port. só pode ser a «Geschichte der Portugiesischer Litteratur» publicada no Grundriss der rom. Philologie, II. Band, 2 Abteilung, Strassburg, Karl J. Trübner, 1897. Sem mencionar o nome do poeta e sem comentário desenvolvido refere-se à «alta importância destes versos», no capítulo Das Allgemeine Liederbuch (1448-1516) na n. 3: Nacheweisen kann ich das hier nicht. Ich erwähne nur, als Nachtrag zu (…), dass ein Dichter des Canc. de Res. Sogar König Dionysius zitiert (was hochwichtig ist). S. I 460: invoco el rey D. Denis da licença d’Aretusa! Convém ainda acrescentar que a filóloga tinha lido, no fólio onde se encontra a assinatura de Pedro Homem, «de tinta muito desvanecida o nome P. Gomes dasinhaga» (1904, II: 178). Julgo que esta leitura provém de inexacta decifração de uma outra palavra, escrita logo abaixo da assinatura de Po home, um pouco mais à direita, e que leio como das línhagẽs; faz sentido que, na abertura do códice, após o registo de propriedade (recorde-se que se tratava do fólio que estava colado à pasta anterior), surgisse a indicação do conteúdo, ou seja o Livro de Linhagens, que, como se sabe, antecede o Cancioneiro. A invocação de Pero Homem a D. Denis é, pois, a primeira feita por autor português ao rei trovador, em data anterior a 1498, pelo menos, ou mesmo a 1486, se aceitarmos a datação conjecturada para o texto em que comparece a invocação. 1.5.6. Ambiente cultural Já conhecido era o Prohemio e Carta (entre 1444 e 1449) que o Marquês de Santillana tinha endereçado «Al illustre señor don Pedro, muy magnífico Condestable de Portogal, el Marqués de Santillana, Conde del Real, salud, paz e devida recomendación»: [I] «(...) señor Infante don Pedro, muy ínclito Duque de Coimbra, vuestro padre, de parte vuestra, señor, me rogó que los dezires e cançiones mías enbiase a la vuestra magnifiçençia. En verdad, 78 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita señor, en otros fechos de mayor inportançia, aunque a mí más trabajosos, quisiera yo complazer a la vuestra nobleza, porque estas obras o a lo menos las más d'ellas, no son de tales materias ni así bien formadas e artizadas que de memorable registro dignas parescan. (...) Pero, muy virtuoso señor, protestando que la voluntad mía sea e fuesse no otra de la que digo, porque la vuestra sin impedimento aya lugar e vuestro mandado se faga, de unas e otras partes e por los libros e cançioneros agenos fize buscar e escrevir por orden, segund que las yo fize, las que en este pequeño volumen vos enbío (...). [XV] Acuérdome, señor muy magnífico, siendo yo en hedad no provecta mas asaz pequeño moço, en poder de mi avuela doña Mençia de Çisneros entre otros libros aver visto un grand volumen de cantigas serranas e dezires portugueses e gallegos, de los quales toda la mayor parte era del Rey don Donis de Portugal, creo, señor, sea vuestro visahuelo, cuyas obras aquellos que las leían loavan de invençiones sotiles e de graçiosas e dulçes palavras. Avían otras de Johan Suares de Pavia, el qual se dize aver muerto en Galizia por amores de una infanta de Portogal, e de otro Fernand Gonçales de Senabria. Después d'ellos vinieron Vasco Peres de Camoes e Fernand Casquiçio, e aquel grande enamorado Maçías, del qual no se fallan sino quatro cançiones, pero çiertamente amorosas e de muy fermosas sentençias, conviene a saber (...)». (Gómez Moreno-Kerkhof 1988: 437-454; Rohland de Langbehn 1997: 11-29). Não se sabe exactamente que tipo de volume terá enviado o Marquês de Santillana ao Condestável, mas no elenco da sua Biblioteca costuma ser apontada a obra inscrita sob o número 86: «Item altre libre de forma de full, scrit en pergami, post cubertes de cuyro empremptades, ab quatre gaffets, quatre scudets tots dargent, intitulat en la cuberta, el marques de Sanctillana, es tot rimades, e feneix en la penultima carta e muy fertiles riberas» (Balaguer y Merino 1881: 32). Poderia ser este que corresponderia ao exemplar a que faz referência no Prohemio. No entanto, é mais plausível que não se conserve este manuscrito enviado ao Condestável e sobra-nos apenas a conjectura relativa ao conteúdo deste «volumen». Desnecessário é recordar que Íñigo López, filho e neto de poetas, homem da sua época, era o claro representante dos procedimentos e inclinações da alta nobreza que, neste momento, começava a ler, a traduzir, coleccionar livros, tomar parte de forma intensa no exercício da literatura. Nobres eram não apenas os protectores das letras, mas também alguns poetas, especialmente inventivos, sobretudo devido à «exçelencia e prerrogativa de los rimos e metros que de la soluta prosa», como aconselhava o Marquês ao jovem Condestável (Prohemio [IV]). Um universo de leituras, a «bibliotheca de moral cantar» (Defunsión de Don Enrrique de 79 Capítulo 1. História do manuscrito Villena, III, 5), estava presente no Prohemio. A influência de Dante e a presença da erudição clássica não impediram Santillana de ser o último poeta castelhano a escrever uma composição em galego, Por amar non saybamente (Gómez Moreno-Kerkhof 1988: 18), antes do eclipse do galego-português como língua literária. O Marquês de Santillana teve, além do precioso contacto com o Condestável D. Pedro, ligações literárias com a corte portuguesa. Recordem-se as Coplas al muy exçellente e muy virtuoso señor Don Alfonso, Rey de Portugal (1447), escritas quando D. Afonso atingiu a maioridade e assumiu o poder. Consta de um elogio, de alusões ao modelo da lei divina pela qual ele deve orientar-se, e algumas desiderata, não muito diversas das qualidades presentes nos Proverbios. E refira-se também a Canción a la Reina Doña Isabel de Portugal, segunda mulher do rei D. João II de Castela, Dios vos faga virtuos, / Reina bien aventurada, / quanto vos fizo fermosa (Gómez Moreno-Kerkhof 1988: 22, 268-270). A este interesse crescente, dir-se-ia mesmo ao culto, pelas línguas e literaturas grecolatinas não era alheia a corte portuguesa. É nesse meio que, bastante jovem, o Condestável D. Pedro (1429-1466), filho do Infante D. Pedro, vai afirmar-se como uma das personalidades de maior proeminência na cultura do país, não só no empenho político, diplomático, mas sobretudo na diligência cultural. A sua longa permanência em Castela, o seu profundo conhecimento dos meios culturais, só podem ter favorecido um maior esmero na aquisição e na propagação das novas leituras, dos novos modelos, das novas técnicas literárias. A sua língua literária só poderia ser o castelhano e é impregnado deste ambiente linguístico-cultural inovador que o Condestável regressa a Portugal. A corte portuguesa não pode ter deixado de beneficiar desta experiência literária consistente. O Condestável tinha escrito inicialmente em português, mas é em castelhano que vamos conhecer a Satira de Infelice e Felice Vida, anterior a 1453, provavelmente entre Maio de 1449 e Junho de 1453, dedicada a sua irmã, rainha de Portugal; as Coplas del menesprecio e contempto de las cosas fermosas del mundo, escritas também em castelhano, entre meados de 1453 e finais de 1455, muito provavelmente ainda em 1454 e dedicada ao rei de Portugal, seu primo e cunhado; a Tragedia de la Insigne Reina Doña Isabel, escrita também em castelhano, mas já após o regresso do autor a Portugal, entre o ano de 1456 e a primeira metade de 1457, dedicada a seu irmão D. Jaime (Michaëlis 1922; Fonseca 1982: X-XXII). Sensibilidade literária inculcada pelo pai, detentor de amplos contactos não só com a cultura hispânica, mas também com a restante Europa culta, que bem conheceu. É ele que faz vir Mateus Pisano para educador do futuro D. Afonso V, é ele que promove traduções de obras consideradas fundamentais, é ele também autor e co-autor de obras clássicas. É ele também que vai pedir livros de poemas a Juan de Mena no seu louvor ao poeta, datável entre 1440/1448. A solicitação vai servir de modelo a 80 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita seu filho quando se endereçará ao Marquês de Santillana, pedindo-lhe, de igual modo, as obras. Releia-se o texto Do Ifante Dom Pedro, filho d'el-rei Dom Joam, em louvor de Joam de Mena incluído no Cancioneiro Geral: Nom vos será gram louvor por serdes de mim louvado, […] Sabedor e bem falante, gracioso em dizer, […] D’amor trovador sentido com’a quem seu mal sentio […] Por todo este sam contente das vossas obras que vejo e as nam vistas desejo, fazê-me delas presente. (texto 256, II, 1990: 256) A Reposta subsequente de Juan de Mena que provocará ainda uma Reprica do Ifante, é endereçada a D. Pedro como regente do reino, manifestando um tom encomiástico, característico do género: Princepe todo valiente, […] de lealtad y d’amor tam gran fruto havés mostrado que a vuestro gram honor dos reys y ũu senhor son y es muy obrigado. […] Antre moros y judios esta gram virtud se cante, entre todos tres gentios cantaram los metros mios vuestra perfecion delante. Juan de Mena, o poeta de Córdova, tinha certamente grande reputação na corte portuguesa. As suas qualidades poéticas levaram-no a ter contactos com as mais diversas personagens da vida social e intelectual do tempo, mas especialmente na corte castelhana de D. João II, onde se instalará como cronista e secretário do rei. É aí que vamos observar os seus contactos com o Marquês de Santillana, apesar da sua diferente trajectória política. Em 1438, Juan de Mena dedica-lhe o poema Coronación e, em 1455, os versos de saudação e de divertimento cortesãos. Em 1454, ainda estava na corte, trocava versos com o Marquês de 81 Capítulo 1. História do manuscrito Santillana, mas como, nesse mesmo ano, morre D. João II, retira-se em breve para Córdova e aí deve ter falecido em 1456 (Pérez Priego 1989: IX-XXXV). Na corte portuguesa, eram conhecidos os habituais temas e géneros da poesia cortesã – canções e «decires» amorosos – com o uso do ornatus facilis, e com a amplificatio rerum, coplas políticas e de circunstância, preguntas e repostas, versos satíricos, mas também as suas obras maiores, os dois extensos poemas narrativos (Coronación do Marquês e o Laberinto de Fortuna) e o poema alegórico (Coplas de los pecados mortales). Impregnado de todo este saber, o Condestável regressa a uma corte portuguesa que se assume cada vez mais como ponto de convergência cultural, um pouco como nas cortes régias e senhoriais do século XIII e meados do século XIV. A influência castelhana não apenas como modelo, mas sobretudo, como língua que traduz novas ideias, novas emoções e novos livros. Não ficará o Condestável muito tempo na corte. Em 1463, acompanha D. Afonso V na expedição a Marrocos e daí segue para a Catalunha, onde será rei de 1464, rei de Aragão, Sicília, Valença, Maiorca, Sardenha e Córsega, até à sua morte, em 1466. É, neste momento, e a esta figura distinta da família real e da cultura portuguesa dos meados do século XV e da vida peninsular de então – protótipo do político, mas sobretudo do homem culto do ambiente cortesão –, que vai estar ligado, como já vimos, um jovem Pedro Homem em 1465 (Real Patrimonio-Mestre Racional, 2490, f. 138r do Arquivo da Coroa de Aragão). 1.5.7. Intertextualidades. Anotação marginal a Juan de Mena Se Pedro Homem, poeta do Cancioneiro Geral, foi pajem do Condestável D. Pedro, rei da Catalunha, ainda que jovem, não poderia ter estado alheio, nem à produção poética do próprio D. Pedro, nem aos seus autores favoritos, nem às suas relações culturais. Não desconheceria os diferentes cancioneiros que circulavam por certo, nem «ignoraria» talvez a Carta-Prohemio endereçada, anos antes, ao seu senhor, texto que não é, como se sabe, mais do que um conhecimento da história da literatura medieval e da história da teoria estética da época85. Em um dos seus textos poéticos, a título exemplificativo, Pedro Homem tem como fonte D. García Álvarez de Toledo, poeta da geração 1431-1445, o que documenta também o seu acesso a estes autores (Beltrán 1988; Dias 1978): 85 Proemio y carta, de Íñigo López de Mendoza, marqués de Santillana, manuscrito 2655 de la Biblioteca Universitaria de Salamanca (Edição de Ángel Gómez Moreno e Maxim P. A. M. Kerkhof (Santillana, Íñigo López de Mendoza, Marqués de, Obras completas, 1998). Cf. também Beltrán (1997); Rohland de Langbehn (1997). 82 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Peroo cantou o tenor depois do Aque d’El-Rei, nunca foi pena maior, que saber mão de cantor, pois a mão do quanto sei. (texto 588, III, 1993: 206) Na corte de D. João II, não ignoraria a presença de preceptores humanistas. Já para D. Afonso V, o Infante D. Pedro tinha mandado vir o italiano Mateus Pisano e D. João II faz acorrer Cataldo Sículo. O trato íntimo com o colaço do duque D. Manuel, D. Joam Manuel, homem erudito, é mais uma prova de proximidade e, por certo, de influência de um dos poetas que mais faculdade demonstrou na arte cortesã, como o recordaria, entre outros, Sá de Miranda – E oh Manoel, que tais tempo lograstes – na Carta VI a D. Fernando de Meneses (Michaëlis 1885). Pedro Homem encontrava-se neste ambiente e nele participava. Recorde-se o seu breve aos momos, releia-se a sua carta a pedir «novas» da corte em Almeirim e observem-se, de novo, os poemas recebidos da parte de Cataldo Sículo. Mas, o próprio texto em análise endereçado a D. Joam Manuel (texto 170), além da inestimável referência a D. Denis, dá conta dos seus conhecimentos em relação aos modelos que circulavam na época: Dante, Ovídio, Juan de Mena. 1. da liçença da rretusa [v. 4] – A invocação às musas é frequente (Scudieri 1931). A célebre ninfa, metamorfoseada em fonte, em Siracusa, é retirada da Divina Comédia (Vol. I Inferno, XXV, 97) com a célebre Aretusa, companheira de Artémis86. Esta transformou-a em fonte, para a proteger de Alfeu que, transformado, por sua vez, em rio misturou as suas águas às da ninfa. A «mistura das águas» inspira Pedro Homem, na «osmose dos saberes»87: Em seu nome muy tratado haverá tam cedo fim que se crea ser em mym o seu escrito dobrado 86 A Fonte Aretusa fonte de água doce que surge de uma gruta a pouca distância domar, foi sempre cara aos siracusanos e foi sobretudo o símbolo da cidade desde a antiguidade. Mítica fonte cantada por inúmeros poetas fascinados pela lenda de Aretusa: Virgilio (Eneida, IX, 1121), Pindaro, Ovidio, Silio Italico, Milton, André Gide, Gabriele D'Annunzio, só para citar alguns dos mais significativos. 87 É muito curiosa esta referência a Aretusa. Como terão chegado a Pedro Homem justamente estes versos que não são, por regra, citados? Nem parece terem sido utilizados por Juan de Mena (Lida de Malkiel 1984). 83 Capítulo 1. História do manuscrito Dante também se referia às «due nature»: Taccia di Cadmo e d’Aretusa Ovidio; ché se quello in serpente e quella in fonte converte, poetando, io non invidio; ché due nature mai fronte a fronte non tramutò, si che amendue le forme a cambiar lor matera fosser pronte. Dante, por seu lado, tinha-se inspirado nas Metamorfoses (IV, 563, 604 e V, 572, 671) em que Ovídio aludia a De Cadmo in serpente De Arethusa in fonte Também Vergílio, Eneida, III, 694-696 aludia a Cadmo, filho de Agenor, rei da Fenícia, fundador de Tebas. Já velho, transformava-se em serpente, assim como Aretusa se metamorfoseada em fonte. Aretusa vai ser retomada na comédia Eufrosina (1555), em que Jorge de Vasconcellos no seu Prologo também a interpela: Eu sou dos que requerem Aretusa e comedia no mais maçorral estilo. Eyvos de falar mera lingoagem. Nam cuydeis que he isto tam pouco: que eu tenho em muyto a portuguesa, cuja grauidade, graça laconia, e autorizada pronunciaçam nada deue aa latina, que Vala exalça mais que seu imperio (Asensio 1951: 7). Camões também n’Os Lusíadas (IV, 72, 8) no episódio bem conhecido do Sonho de D. Manuel, falará desta junção das águas: De ambos de dous a fronte coroada Ramos não conhecidos e ervas tinha. Um deles a presença traz cansada, Como quem de mais longe ali caminha; E assi a água, com ímpito alterada, Parecia que doutra parte vinha, Bem como Alfeu de Arcádia em Siracusa vai buscar os abraços de Aretusa. Camões refere-se aos dois rios, o Ganges e o Indo do sub continente indiano e associa Alfeu, rio que nasce na Arcádia (Grécia) à fonte situada em Siracusa. Alfeu amava Aretusa, ninfa de Diana. É ela que vai transformar os dois amantes em rio e fonte. Já na oitava 69, v.8, Camões mencionava o Indo e o Ganges dizendo: 84 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Naceram duas claras e altas fonte [74, v.1] Das águas se lhe antolha que saíam [74, v.1 e 3] Eu sou o ilustre Ganges, que na terra Estoutro é o Indo. 2. olhos que o vyram hyr [v. 16] – As alusões a diversos ciclos de romances comparticipam de um romance anónimo muito conhecido no século XV, e que vai surgir também na Eufrosina: que ojos que nos vieron yr nunca uos veran en Francia mas trata-se, no caso de Pedro Homem, de uma réplica a outro texto de D. Joam Manuel (texto 133, I, 1990: 399): Vendo-me perder assi nunca me quis desviar, antes me deixei forçar dos olhos com que vos vi. Dístico presente também, de modo completo, em Duarte de Brito (texto 128, I, 1990: 389): olhos que me viram ir nunca me veram tornar e como menção primordial, Juan de Mena também tinha desenvolvido o tema dos olhos como cúmplices do enamoramento, tema já bem presente na poesia trovadoresca (Ruggieri 1931). Vuestros ojos que miraron con tan discreto mirar, firieron e no dexaron en mí nada por matar. Ellos, aún no contentos de mi persona vençida, me dan atales tormentos que atormentan mi vida: después que me sojuzgaron con tan discreto mirar, firieron y no dexaron en mí nada por matar (Cancionero de Herberay des Essarts, fl. 91r-91v; Ed. Pérez Priego 1989, texto 2) 85 Capítulo 1. História do manuscrito 3. a desora partirey [v. 26] – é também uma réplica a um texto de D. Joam Manuel em uma glosa a uma cantiga de um anónimo, com o tema da partida, para fugir ao amor, motivo constante nos cancioneiros: Despedistesme, senhora vida mia ado m’iree? No biviré sola un’hora, cierto es que moriré. Irme he a tierras estranhas, ali tal vida haree vida com las alimanhas tal consuelo me daree. Altas bozes bradaree: Do está minha senhora? No biviree sola un’hora, cierto es que moriree. D. Joam Manuel remata a sua «grosa» a esta cantiga com: Fim Donde está que no la veo? muestrame mi matadora, ca pues tal vida posseo no bibiré sola un’hora Y a mi triste sentido con verla descansaree, que pues me ha despedido cierto es que moriree. (texto 141, I, 1990: 416) Juan de Mena também abordara este tema da partida: Ya, mi bien, vos remediad, alegrando mi partida con un sí por despedida Remediad mi gran tormento e vida muy trabajosa, pues Dios vos fizo fermosa entre las obras sin cuento; y a mí, triste, reparad, alegrando mi partida con un sí por despedida. (Cancionero de Herberay, Ed. Pérez Priego 1989, texto 6) 86 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 4. do que me vem de Valença [v. 32] – ainda que em situação de rima (Valença e tença), seria atraente poder interpretar esta referência a Valença como elemento biográfico relativo à estadia do pajem Pedro Homem na Catalunha com o seu senhor Condestável D. Pedro, rei da Catalunha, Aragão, Valença… Mas como convaleçer a desora partirey para onde nam no ssey nem se deve de saber. Pera a corte nam seraa a poder de minha tença por que nunca como laa do que me vem de Valença. 5. pero pois o hy nam ha [v. 37] – Provavelmente também alusão ao y pitagórico e à conhecida bifurcação entre o bem e o mal que vai ser citado nas Trovas sobre os sete pecados mortaes… de D. Joam Manuel (1499/1500): Alhi dos caminhos vi que a principio se juntavam y despues afeguravam el pitagorico y. (texto 158, I, 1990: 446) 6. E sey desque v’vy… [vv. 53-56] – Embora estas trovas se aproximem globalmente da «grosa» de D. Joam Manuel ao texto anónimo acima citado, o paralelismo mais significativo com outro autor encontra-se, todavia, na parte final do texto de Pedro Homem: E sey desque v’vy nam tomey nenhũu prazer e mays sey quando naçy nam sey quandey de morrer. Que é quase uma tradução literal de parte do poema de Juan de Mena: Desque vos miré e vos a mí vistes, nunca m’alegré: tal pena me distes que della morré. Las cuitas e dolores, con que soy penado, 87 Capítulo 1. História do manuscrito son males d’amores que me avéis causado. Assí que diré, que mal me fizistes segund vos miré: tal pena me distes que della morré. (Cancionero de Herberay, fol.79v; Ed. Pérez Priego 1989, texto 3) Não é excepcional encontrar um poeta português de quatrocentos inspirar-se e imitar Juan de Mena. O poeta cordovês era lido e bem conhecido desde, pelo menos, o tempo do infante D. Pedro, duque de Coimbra e pai do Condestável. Há, como é conhecido, vários poetas que se inspiraram em Mena. Dizia-o encomiasticamente G. de Resende na sua Miscellanea: Vimos o grão sabedor dom Anrique de Vilhana Ioam de Mena o trouador no cume, e o primor do Marquez de Santilhana, que saber, cauallaria que honra, que fidalguia, que grandes filhos deixou, de que casas os herdou, de que rendas, e valia. (Resende 1973: 357-358) A. Dias assinala os poetas Fernão Brandão, João Gomes da Ilha, Fernão da Silveira e o próprio D. Joam Manuel como imitadores de Juan de Mena88. É, pelo contrário, uma aprazível coincidência encontrar no Cancioneiro da Ajuda uma nota marginal de comentário, datável do século XV, indiscutivelmente de autoria de alguém versátil em Juan de Mena. C. Michaëlis, ao lê-la, pensou no Infante D. Pedro devido, com certeza, ao seu poema em louvor de Juan de Mena. Esta anotação integrar-se-ia em um primeiro grupo de apontamentos (vinte e oito notas) em que um leitor, provavelmente do século XV, comenta o conteúdo de várias composições. Segundo S. Pedro, a maior parte destas notas, em tom jocoso, pertence a uma só mão em uma gótica cursiva, mais exactamente, identificável à letra joanina 88 No Índice dos poetas do Cancioneiro Geral com indicação dos versos alheios de que fizeram uso, A. Dias (1978) indica Fernão Brandão, Presumir de vos louuar (p. 409), João Gomes (da Ilha), Se deleyte es desear (p. 411), D. João Manuel, Doledvos de mys dolores (p. 412), Fernão da Silveira, Ó quem vista nam ouuesse; Sam dulçes males secretos (p. 417) como seguidores de Juan de Mena, mesmo se as últimas duas referências surgem interrogadas. 88 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita típica do século XV em Portugal (Pedro s.d.). Trata-se de uma mão que comenta abundantemente o texto em quase todos os fólios do primeiro caderno e só volta surgir no final do Cancioneiro, nos cadernos IX, XII e XIV. As anotações devem ter sido escritas em diversas circunstâncias (modificação de tinta e morfologia da escrita), mas S. Pedro admite que, mesmo assim, devem ter sido registadas por alguém que frequentou o Cancioneiro durante algum tempo. Nestas circunstâncias de coincidência cronológica, se o poeta Pedro Homem é um indubitável conhecedor e imitador (tradutor, quase!) da obra de Mena e é também o detentor do Cancioneiro da Ajuda, pode naturalmente ser ele também o próprio autor da anotação. E se o autor desta nota, relativa a Juna de Mena, corresponde à mesma mão de todas as outras notas, não me parece improvável admitir que o poeta Pedro Homem tenha sido o autor desta de leitura avaliativa89. e deste ap'ndeo joam de mena Para o autor desta nota, que continua a ser visível ainda hoje (f. 62 v, col.c), a fonte de Juan de Mena é uma composição do trovador Joan Garcia de Guilhade (A 232): A bõa dona por que eu trobava, e que non dava nulha ren por mí, pero s’ela de mí ren non pagava, sofrendo coyta sempre a serví; e ora ja por ela ‘nsandecí, e dá por mí ben quanto x’ante dava. E, pero x’ela con bon prez estava e con [tan] bon parecer qual lh’eu vi e lhi sempre con meu trobar pesava, trobey eu tant’e tanto a serví que ia por ela lum’ e sen perdí, e anda-x’ela por qual x’ant’andava: Por de bon prez, e muyto se prezava, e dereyt’é de sempr’ andar assí; ca, se lh’alguen na mha coyta falava, sol non oia nen tornava i; pero por coyta grande que sofrí oy mays ey d’ela quant’aver cuydava: 89 A esta nota tinha-se referido C. Michaëlis. Carter transcreve-a e, mais recentemente, S. Pedro, integra-a no conjunto de anotações de um comentário de uma mão A (Michaëlis 1904, II: 128-129, 175; Carter 1941: 134-135, 186; Pedro s.d.). 89 Capítulo 1. História do manuscrito Sandec’ e morte, que busquey sempr’i, e seu amor mi deu quant’eu buscava! (O. Nobiling 1907: 27-28, texto 6) A insânia por amor é tema renovado desde os trovadores provençais. É, naturalmente, embaraçoso encontrar o texto de Juan de Mena que sugeriu a comparação ao anotador do século XV, mas os temas do ensandecer por amor e o morrer por amor não são alheios a Juan de Mena. A «canción que hizo Juan de Mena estando mal» poderia aproximar-se, parece-me, daquela poesia trovadoresca de Joan Garcia de Guilhade: Donde yago en esta cama, la mayor pena de mí es pensar quando partí de entre braços de mi dama. A bueltas del mal que siento, de mi partida, par Dios, tantas vezes me arrepiento, quantas me miembro de vos: tanto que me hazen fama que de aquesto adolescí, los que saben que partí de entre braços de mi dama. Aunque padezco y me callo, por esso mis tristes quexos no menos cerca los fallo que vuestros bienes de lexos; si la fin es que me llama, o, qué muerte que perdí en bivir, quando partí de entre braços de mi dama! (Texto de Las ccc. del famossísimo poeta Juan de Mena (…) e coplas e canciones, Sevilla, por Jacobo Cronberger, 1517 [cópia da desaparecida Ed. de Sevilha de 1512], fol. 104r; Ed., Pérez Priego 1989, texto 1). O «ensandeci» e a «morte» de Joan Garcia de Guilhade pode ter feito reflectir no «adolescí» e «muerte» de Juan de Mena. O tema recorrente do «ensandecer» por amor e o «adolescer» por amor, teriam sido motivo de criação literária paralela para um leitor do século XV que não desconhecia, por certo, nem a meditatio mortis, nem a lamentatio amoris. 90 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 1.5.8. A inscrição Rey Dō Denis A invocação a D. Denis coloca, no entanto, outra questão: onde terá Pedro Homem lido ou tido conhecimento da actividade poética de D. Denis. Um Cancioneiro de D. Denis? Ou um apenas «ouvir falar» das capacidades poéticas de D. Denis? Ou talvez até pela Carta-Prohemio do Marquês de Santillana enviada a seu senhor, se dela teve realmente conhecimento e se continuarmos a supor que o pajem e o poeta da corte de D. João II podem corresponder à mesma pessoa. Uma leitura ponderada do estudo dedicado ao Cancioneiro da Ajuda por C. Michaëlis, dá-nos conta de um aspecto da história do manuscrito que, com o desenvolvimento dos nossos conhecimentos em matéria trovadoresca, deixou de ser proveitoso. Ao descrever o códice em um parágrafo intitulado Inscripção á moda de titulo, diz: Exteriormente, no corte transversal inferior liam-se, no tempo de Varnhagen, inscriptas a tinta preta as palavras: Rey Dō Denis (…). Já deixei contado (…) que, ao pegar a primeira vez, a 28 de Maio de 1877, no velho in-folio a encontrei mal legivel, e quasi totalmente apagada em 1890. Portanto, num espaço de treze anos, C. Michaëlis deixou de ver a anotação. Considerava que eram «escriptas por mão desconhecida, provavelmente depois de destroçado o volume», e que deviam corresponder apenas à «opinião individual de qualquer leitor moderno. No melhor caso, mas que é pouco verosimil, seriam repetição dos dizeres estampados na lombada, pelo encadernador; i.é no século XVI quando o fragmento andava sem frontispicio original» (Michaëlis 1904, II: 141). Em outro lugar, ao comentar a observação de Varnhagen: «Depois de novo confronto da sua impressão com o original (…). Refere-se á inscripção Rei D. Diniz (ou antes Rey Dō Denis), na orla inferior do codice, que primeiro desprezára ou não vira, opinando que ella indica, não o auctor, mas o possuidor do volume, o qual portanto julga anterior ao anno 1325». (Michaëlis 1904, II: 23). De facto, F. A. Varnhagen na publicação que seguiu as suas Trovas e Cantares de um Codice do XIV século: ou antes, mui provavelmente, 'O Livro das Cantigas' do Conde de Barcelos (1849), anuncia: «Leem-se na orla exterior do codice as palavras = rei D. Diniz = palavras a que ao principio nao‘démos nenhum pezo, por nao’ nos occorrer logo o argumento que ellas hoje nos ministram. Ainda quando aquelle disticho se achasse na lombada, que foi sempre o logar reservado em um livro para o nome do auctor, nao’ podiamos crer que disso se devia concluir ser o mesmo livro do rei D. Diniz, 91 Capítulo 1. História do manuscrito pois que alem de nao’ constar que este compozesse tambem um tratado de linhagens, o que ali está é, como vimos, o do conde D. Pedro, e o cancioneiro que nos deixou o rei, e foi ultimamente encontrado na Vaticana, (…). Logo o tal disticho só indicava o possuidor (…). Ora a circunstancia de haver pertencido o codice á livraria del rei D.Diniz, nao’seria jamais contraria, mas antes favoravel, á opiniao’ de ser della auctor seu filho querido o conde de Barcellos» (Varnhagen 1850: 344). Este é o apontamento publicado em 1850. C. Michaëlis viu-a também a 28 de Maio de 1877, já mal legível. E refere-nos ainda que «quando em 1890 lá voltei, a fim de cotejar novamente a minha restituição da copia diplomatica que tirara, – esta vez no proprio paço Real, para cujo rez do chão a livraria fora mudada havia um decennio – achei o volumoso codice no mesmo estado como em 1877. Notei porém, que a inscripção Rey Dō Denis traçada com tinta no corte inferior das folhas, se havia tornado illegivel para quem não a conhecesse de antigo» (Michaëlis 1904: 102). Embora não seja possível ter hoje uma ideia certa da cronologia desta nota, é pertinente associá-la a este contexto, paradoxalmente até pelo seu esbatimento – quer a tinta clara quer o carácter ilegível suscitam indícios de antiguidade –. Pode ser apenas uma coincidência o facto de Pedro Homem, possuidor de um Cancioneiro sem rubricas atributivas, invocar em um dos seus textos, o rei D. Denis, mas se a inscrição já lá estava, ou por outra hipótese, se ela lá foi colocada nesta altura, seria um outro indício a favor da ligação entre Pedro Homem, poeta do Cancioneiro Geral e possuidor do Cancioneiro da Ajuda. Possuía ele, nesta eventualidade, um Cancioneiro que julgaria pertença de D. Denis? Actualmente, a observação directa do códice revela que, ao longo da margem inferior entre o texto e a inscrição moderna a lápis para a numeração, é visível, com ultravioletas, uma linha de manchas descoloridas que poderiam corresponder a letras de grande formato com cerca de um centímetro de altura de corpo, sem que seja possível individualizar qualquer letra e muito menos estilo caligráfico, nem evidentemente vestígios nítidos da inscrição mencionada. Acresce que seria ainda problemático explicar como é que uma inscrição, a tinta preta, ainda que sumida, mas visível há cem anos, possa ter desaparecido uniformemente, quando numerosas outras nótulas marginais, de diferente cronologia, sobreviveram. No entanto, no canto inferior direito deste primeiro fólio do Cancioneiro, há uma sucessão de manchas que parecem corresponder, de facto, a uma curta inscrição que começa cerca de quatro centímetros do corte direito, em cuja direcção avança ao longo de uma linha que dista da margem cerca de três centímetros. O apagamento da antiga inscrição, observada por Varnhagen e por C. Michaëlis, poderia ter uma explicação plausível, se pensarmos que ela se encontrava, não directamente no fólio, mas na goteira do manuscrito e que seja a inserção dos fólios eborenses, a nova sequência dos cadernos 92 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita responsável pelo desaparecimento e pela ilegibilidade da inscrição. Convém não esquecer que em 1877 e 1890, «o volume todo andava retalhado em seis parcellas» (Michaëlis II: 145). Portanto, esta modificação resultaria da inserção do caderno e dos fólios eborenses e não de um desgaste do manuscrito90. Mas, redefinir com estes elementos a presença do manuscrito da Ajuda com Pedro Homem em Évora, em um meio se não real, pelo menos, cortesão, com um dono identificável com uma personalidade próxima do Rei, quer D. João II, quer D. Manuel, e com produção poética conhecida, é essencial, não só para a situação do Cancioneiro na segunda metade do século XV, mas para demonstrar o seu aproveitamento activo. Isto quer dizer que o manuscrito não se encontrava arrumado de modo estático, mas parece que, através dos elementos analisados, era um objecto lido ou consultado, quer pelos sinais de propriedade explícitos, quer pela nota relativa ao poeta Juan de Mena. Como terá herdado Pedro Homem o manuscrito? Como o terá encontrado? Simples apropriação, compra, oferta? As respostas a estas perguntas são débeis, mas parece agora claro que o Livro (se já possuía a forma de Livro que hoje conhecemos), não estaria muito afastado da biblioteca do rei de Portugal ou dos infantes de Avis. Efectivamente, a assinatura de Pedro Homem no fólio, que estava colado à pasta anterior da encadernação, levanta agora um problema essencial quanto à cronologia da própria encadernação que tem sido, normalmente, datada só do século XVI, como vamos observar no capítulo dedicado à encardenação do códice. Se Pedro Homem assinou também a indicação das linhagẽs no século XV, antes de 1498, quer dizer que aquele fólio com o respectivo texto estava ou já colado à pasta anterior ou na abertura do Livro, o que faz supor que os cadernos do Cancioneiro se encontravam já cosidos e associados a esta encadernação ou a estas tábuas. Se assim é, necessário será antecipar a confecção destas pastas para os finais do século XV. De qualquer modo, a assinatura indica que o fólio com os poemas de RoyFdz era já um fólio solto e desagregado e, já nesta altura, com funções de resguardo à pasta de encadernação, fosse esta que hoje conhecemos, ou fosse outra mais rudimentar91. De todo este conjunto de peças indivisas e indícios ricos, parece possível dar estrutura a um quadro e reconstituir um puzzle, como proposta admissível a que quase nada obsta. 90 Se, agora, o valor desta epígrafe é praticamente anacrónico, já no tempo de C. Michaëlis se reconhecia, de certo modo, a sua ineficácia. Com o progresso do conhecimento em matéria trovadoresca, este aspecto da história do manuscrito tinha deixado, muito rapidamente, de ser proveitoso, ao sabermos, pelos manuscritos italianos, que estávamos perante uma colecção de vários autores. 91 Tratarei deste assunto no capítulo relativo à Encadernação. 93 Capítulo 1. História do manuscrito a) O ambiente – o ambiente eborense, régio e humanista é bem documentado. Évora, neste encadeamento de ideias, adquire ainda maior importância. A presença constante da corte de D. João II em Évora, de acordo com os seus itinerários, é considerável. Na região, Pedro Homem está documentado em Fronteira, em Beja e é «morador em Évora». O caderno e os fólios isolados do Cancioneiro da Ajuda encontrados em Évora no século passado, têm assim uma explicação material bem plausível. O Cancioneiro esteve em Évora e o acidente relativo à mutilação, ou à não encadernação, de alguns fólios e de um caderno, deverá ter ocorrido nesta cidade. Aliás, além da existência desta colecção de poesias trovadorescas, Évora não pode deixar de ser associada a outra presença textual: a das trovas de Afonso Sanches endereçadas a Vasco Martins de Resende (Michaëlis 1904, II: 109 e 1905: 683711). As trovas, como é conhecido, «achárãose entre os papeis do grande Mestre André de Resende e estavão postas em solfa», o que revela que além da música e da rubrica atributiva, o ilustre humanista eborense e ideólogo do Renascimento, possuía um Cancioneiro (ou parte de um Cancioneiro), com um texto ligado a um seu eventual ascendente. Isto significa que se este Cancioneiro não se pode identificar com o Cancioneiro da Ajuda (pela presença da música e pela rubrica atributiva), outro português, além de Pedro Homem, conheceu, também em Évora, «versos authenticos de trovadores patrios, em bom estado de conservação», como já o afirmava C. Michaëlis (1904, II: 109). b) A personalidade – o que determina a individualidade de Pedro Homem, poeta e fidalgo da corte, e aquilo que o distingue em relação aos outros escudeiros homónimos é a sua condição social, integrado na pequena nobreza, mas com ascensão social, neste contexto, relevante junto do rei, «queridíssimo do rei», como o recordava Cataldo. E é, sobretudo, a sua cultura, o seu conhecimento dos modelos da época e a sua interessantíssima invocação a D. Denis que o fazem eleger como o mais provável Pedro Homem, possuidor do Cancioneiro da Ajuda nos finais do século XV. Ainda que a sua biografia deva ser enriquecida, é possível traçar já um trajecto coerente através da sua situação na corte portuguesa: 1465 – pajem real do Condestável D. Pedro? 1482 – escrivão das sisas? 1482 – carta de coudelaria quando é morador em Fronteira (do Alentejo). 1482 – escudeiro do Conde de Penela, sobrinho do rei D. João II? 1486 – escudeiro já do rei D. João II, morador em Évora. 1486 – escudeiro do rei, escrivão do almoxarifado da vila de Beja. 1490 – participa nas Justas de Évora, ao lado do duque D. Manuel e de D. Joam Manuel. 1492– «fidalgo de nossa casa e nosso estribeiro-mór» (D. Manuel ainda duque) 1498 – «Po Homem…cuja alma Deus haja» (D. Manuel, rei) 94 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Se Pedro Homem tem mais ou menos 13/14 anos em 13 de Outubro de 1465, quando está na Catalunha e é já falecido pouco antes de 13 de Março de 1498, deve ter morrido com cerca de 46/47 anos. Os poemas endereçados a D. Joam Manuel, como o texto em análise com a invocação a D. Denis, não podem ser posteriores a 1498. Aliás, D. Joam Manuel não viverá muito mais tempo. Morre em Castela em 1499/1500. Assim, as duas produções literárias dos dois poetas mantêm-se, praticamente, no mesmo arco cronológico. A uma personalidade, como este cortesão, Pedro Homem, pajem de poeta, poeta, convivente com poetas, de D. Joam Manuel, em primeiro lugar a Nuno Pereira, a Simão de Sousa, a Fernão da Silveira, coudel-mor, ao Prior de Santa Cruz, não seria improvável, nem inoportuno que possuísse uma colecção medieval de textos poéticos e que nela inscrevesse o seu nome por duas vezes. Esta transição pela corte do duque de Beja, onde encontrámos Pedro Homem, parece evidenciar que o percurso dos cancioneiros no século XV, pelo menos o do Cancioneiro da Ajuda, não deve ter sempre estado em ambiente régio, como o supunha C. Michaëlis (1904, II: 127 ss.). Não nos encontramos já com Pedro Homem directamente na corte régia, mas o possuidor do próprio cancioneiro não é sequer um infante ou outro magnate. Um cavaleiro apenas ao serviço do duque de Beja e que passará para a corte quando D. Manuel assume a sucessão de D. João II. Se o Cancioneiro talvez tenha tido um vínculo ao ambiente de D. Duarte pela nota que se refere a este rei, neste período com Pedro Homem ter-se-ia afastado da corte. A. Resende de Oliveira, em recente trabalho, desenvolvia justamente a importância desta passagem, pondo em evidência outro Pero Homem, filho de Pedro Afonso da Costa e de Mecia Rodrigues que, de acordo com o papel exercido pelos pais na criação do infante D. Pedro, seria precisamente colaço desse infante. Tendo presente a outra nota que se refere a este livro hez do colaco do imfãt92 estaríamos talvez perante o responsável pela translação do Cancioneiro do paço régio para uma linhagem da pequena nobreza. Talvez tenha sido a partir deste Pedro Homem, colaço do infante, que o Cancioneiro da Ajuda tenha passado para Pedro Homem estribeiro-mor de D. Manuel93. 92 A leitura mais recente desta nota foi comunicada no trabalho de S. Pedro sobre as notas marginais presentes no Cancioneiro (Pedro s.d.). 93 Dos novos elementos, é sobretudo interessante o filho de Pedro Afonso da Costa e de Mecia Rodrigues que, de acordo com o papel exercido pelos pais na criação do infante D. Pedro, seria precisamente colaço desse infante. Pero Homem, filho de Pedro Afonso da Costa e de Mecia Rodrigues Homem do Amaral, amos do infante D. Pedro, e irmão de João da Costa, bispo de Lamego (1447/1464) e de Viseu (1464/1482), com o nome de João Gomes de Abreu. Este importante desenvolvimento, efectuado por A. Resende de Oliveira, vem demonstrar também a vitalidade dos cancioneiros durante o século XV, mas vem também documentar a transição destes manuscritos da corte régia para cortes senhoriais (Oliveira s.d.). 95 Capítulo 1. História do manuscrito 1.5.9. Cancioneiros medievais. Cancioneiros quatrocentistas Não é de estranhar que um Cancioneiro medieval estivesse na posse de um quatrocentista. As leituras tinham certamente mudado, mas o uso destas velhas colectâneas não deveria estar completamente adormecido em bibliotecas. Há provas concretas deste facto no Cancioneiro Colocci-Brancuti e no Cancioneiro da Vaticana. Os dois cancioneiros copiados em Itália, por iniciativa de Colocci, contêm certo número de textos integrados em espaço disponível, sub-repticiamente, como, o designou G. Tavani (1968), incluídos em época tardia, bem posterior à organização primitiva. Estes textos atestam a veracidade de que o antecedente destes dois manuscritos estava, não só nas mãos de alguém do século XV, mas de alguém que se preocupava também com cópia de poesia. Justifica-se a integração destes poemas fora de tempo pela linguagem, pelos esquemas rítmicos e estróficos, pelas fórmulas retóricas e temáticas alheias, em geral, à lírica galego-portuguesa. A análise da cortesia entre tradição e novidade durante estes períodos tem sido diferentemente observada. J. Ruggieri fala-nos dos poetas «antiquiores» que tendem a uma arte poética «nova» (1980: 176). A. Deyermond (1982) reflectiu acerca da sobrevivência destes textos e na passagem da poesia medieval à poesia cortesã, mostrando as características dos poetas da corte portuguesa, «castelhanizados» pela versificação, pelos temas, pelo estilo e pelo género. V. Beltrán (1988; 1997) tem-se ocupado também desta transição de um período para outro, assim como G. Tavani (1983) abordou este problema com o seu «último período da lírica galego-portuguesa». Se o poema de Afonso XI (1311-1350), herdeiro de Fernando IV [B 607/V 209], Em huum tiempo cogi flores, em uma língua híbrida, testemunha da renovação poética integrado, talvez, em meados do século XIV, era já o primeiro sinal da novidade de grande alcance nas formas poéticas tradicionais é também o vestígio que vai anunciar a poesia posterior a 1340 (Beltrán 1985). A breve produção poética deste autor e o ter escrito em outra língua revela, finalmente, que a sua corte assentava já as suas preferências em outro tipo de actividade cultural, afastado da cultura trovadoresca em galego-português, delimitando já as características da escola «galego-castelhana». É neste mesmo quadro eborense e áulico que poderá também explicar-se a interpolação de textos «estranhos» à escola galego-portuguesa nos cancioneiros medievais. Chamarei a atenção para o conteúdo da própria nota que precede a «tenção» entre D. Afonso Sanches e Vasco Martins de Resende da biblioteca de André de Resende. A terminologia utilizada pelo anotador é já própria do século XV com as expressões «trovas» e «resposta». Isolarei de todos os textos espúrios, os mais flagrantes cujas rubricas rapidamente apelariam a este ambiente alentejano durante o período quatrocentista: são os casos em que a 96 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita terminologia técnica é a mesma que vamos encontrar em Resende − esparsa, mote, glosa, pregunta, resposta − e são ainda os exemplos interessantes de formulação organizativa quanto às regras da recolha − Outra… (Tavani 1969; Ferrari 1979). Mas a esta atmosfera seria quase suficiente referir as rubricas explícitas aos meios cortesãos como Álvaro Afonso o «cantor do senhor inffante». Nesta altura, a designação «infante» aplica-se porventura ao período correspondente à menoridade de D. Afonso V (1471) durante o qual foi regente seu tio, o Infante D. Pedro (Picchio 1966). Este atributo de «infante» que é praticamente título geral inerente aos filhos dos reis de Portugal com excepção do primogénito, aparece também no Cancioneiro da Ajuda, no fólio que serviu de protecção à pasta posterior até ao recente restauro94. Alguns destes textos espúrios, já estudados, aparecem interpolados na tradição manuscrita, ao nível do antecedente comum, uma vez que os mesmos se encontram nos dois cancioneiros italianos. Outras composições, também não genuínas, unicamente transcritas em V, podem ser interpretadas por um comportamento de copista diferenciado dos que copiavam B, mais sensíveis à mudança paleográfica com a famosa anotação littera nova. No exame do Cancioneiro Colocci-Brancuti, A. Ferrari (1979) comprova que estes textos apresentam a singular designação colocciana de lettera nova ou lettera nova fa scrivere. Colocci, ao referir-se a esta mudança paleográfica, pretendia assinalar uma nova escrita que marcava os «textos mais recentes» que encontrava no seu exemplar, isto é, uma forma de indicar os textos não medievais, de acréscimo posterior, em espaços disponíveis e deixados em branco pela transcrição primitiva. Há o caso de Leonoreta (Beltrán 1991: 47-64 e 341) com uma colocação física anómala em B de delicada interpretação, mas cujos elementos conhecidos insinuam, apesar de tudo, uma interpolação tardia da composição no tempo de Afonso XI, como agora se pode ler no verbete dedicado a Johan Lobeira no DLM (Ferrari 1993, 349-351). São os poemas, seguramente apócrifos, presentes em B e V, que podem contribuir para uma reflexão que caracterize talvez o micro ambiente de confecção de textos e de leitura. Uma consideração que deverá ter em conta que o acto de cópia de poesia actual em cancioneiros antigos, com espaços em branco disponíveis, além de outros elementos, explicaria que essas colectâneas medievais estavam em condições de ser manuseadas. Os exemplos de integração são, como se sabe, em número considerável: a) Quatro textos não numerados adicionados à sequência do ciclo de Roy Martinz do Casal [B 1159 a 1164 e V 762 a 767]. Trata-se de um ciclo de breves composições do género esparsas ou de poesias de mote e glosa, praticado em quatrocentos e estranhos, portanto à lírica 94 No Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004), A. Resende de Oliveira reexamina estas inserções textuais insistindo na circulação dos cancioneiros no ambiente da pequena nobreza (Oliveira s.d.). 97 Capítulo 1. História do manuscrito galego-portuguesa. G. Macchi (1966) analisa-os e justifica a sua exclusão do corpus trovadoresco devido às características dos aspectos linguísticos, métricos e retóricos. A designação Outra seria, além disso, fórmula frequente no Cancioneiro Geral de Resende para designar outra composição do mesmo autor, alheia, portanto, à compilação medieval. b) A cantiga de «textura nova», atribuída a D. Denis, Per muito amo, muito non desejo por surgir na sequência das poesias do Rei [B 605-606/V 208], inicialmente estudada por Lapa (1930), revela, também, através das suas características linguísticas, métricas e temáticas, carácter posterior à poesia galego-portuguesa, aproximando-se da poesia cortesã, como bem o demonstrou G. Tavani (1969: 219-233). c) Outro texto, Nojo tom’e quer prazer [V 404], normalmente atribuído a Fernan Velho, estudado por G. Lanciani (1975-1976), é também uma composição inserida, mais tarde, num espaço deixado em branco com claras diferenças em relação aos trovadores quanto ao estilo, ao vocabulário e à própria estrutura que utiliza as formas designativas de mote e grosa. d) Uma trova, a Do Port’and’ e vou mudar [V 387], atribuída a Fernand’Eanes no Cancioneiro da Vaticana, é constituída pelo esquema estrófico que inclui mote e glosa. O género do texto, a língua e o estilo, as fórmulas temáticas caracterizam-no como uma composição de quatrocentos, inserida no cancioneiro primitivo (G. Tavani 1969: 139-143). e) Uma pregunta de Álvaro Afonso, «cantor do senhor inffante», Luis Vaasquiz, depois que parti [V 410] coloca-nos, de novo, no mesmo ambiente, na corte culta do Infante D. Pedro e de D. Afonso V. Trata-se de um fragmento com a indicação de «Pregunta que ffez Alvaro Afomso, cantor do senhor Inffante, a huu escollar». O cargo de cantor, maestro da capela real, foi exercido por um Álvaro Afonso talvez até 1471. A referência ao «senhor inffante», permite colocar, provavelmente, o fragmento durante a menoridade de D. Afonso V, quando D. Pedro, seu tio, foi Regente do reino entre 1440 e 1447. Este poema durante bastante tempo considerado um excepcional exemplo de «pastorela à maneira nacional», não é mais do que a aplicação do género pregunta que, não só é desconhecido da lírica galego-portuguesa, como se encontra integrado na tradição presente na recolha de Resende. Um texto que obedece, como o demonstrou L. S. Picchio (1966), às preferências estéticas do Cancioneiro de Baena. f) Donna e senhora de grande valia [V 668], atribuída a Juyão Bolseyro que era reconhecido e citado como primitivo exemplo de arte maior (Clarke 1940: 202-212; P. Le Gentil (1949-1953: 408-439) e, afinal, apresenta características de língua e de métrica, que só excluem a atribuição ao trovador galego-português, como o caracterizam também como um texto apócrifo. (Tavani 1969: 183-217). g) Na composição Com’omen ferido, sem feno e sem pão [B 1075bis /V 666], a rubrica informa-nos de que é uma Pregunta que foi feita a Fernan d’Ataide (ou d’Atouguia) e feze-a 98 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Di[e]go Gonçalvez de Montemor-o-Novo. Bastaria já a indicação Pregunta para nos colocarmos também no século XV. A referência a Montemor-o-Novo, como justamente assinalou G. Tavani (1969: 139-143), adquire importância por ser possível associar o papel destas regiões do Sul que começam a assumir importância com a dinastia de Avis. E no catálogo da biblioteca de D. Duarte existe a referência, assiduamente citada, de um liuro das trouas d el rey dom afonso, encadernado em couro o qual copilou. f. de montemor o nouo (Alves Dias 1982: 208). Admitese que este Diego Gonçalves de Montemor-o-Novo seja a personagem que é citada no processo de Vasco Abul de Anrique da Mota (texto 803, IV, 1993: 208). Estes textos postrovadorescos, atribuídos a Diego Gonçalves e Fernando de Ataíde, talvez se identifiquem com os homónimos que comparecem no Cancioneiro Geral (Tavani 1969; Oliveira 1994; Rodiño Caramés 1997)95. Pelo menos, através destes factos, com o «cantor do senhor infante» e com a personalidade de Montemor, é possível enquadrar ainda, de modo mais claro, a existência do Cancioneiro da Ajuda em Évora na segunda metade do século XV, nas mãos de Pedro Homem, cortesão e poeta do Cancioneiro Geral. Aliás, o Cancioneiro da Ajuda não escapou à tentação da mudança métrica ainda que de forma isolada. Em uma das composições de RoyQuey [A 130], há um leitor quinhentista que tentou modificar e adaptar uma estrofe do texto do trovador96. C. Michaëlis identificando-o hipoteticamente com António Ferreira, classificava a transformação como «uma curiosa tentativa, de resto mal sucedida, de transpôr em decasyllabos á maneira provençal, ou seja em hendecasyllabos segundo a maneira italiana, alguns dos arcaismos, asperos e rebeldes versos de nove syllabas» (1904, II: 127): D’este mund(o) outro ben non querria por quantas coitas me Deus faz soffrer que mia senhor do mui bon parecer que soubess’ eu ben que entendia como og’eu moir’, e non lho dizer eu, nen outre por min, mais ela de seu [sen] o entender como seria. 95 Há alguns autores homónimos no Cancioneiro Geral. Entre os vários autores de nome Ataíde, releve-se a participação do homónimo Dom Fernando d’Ataíde, Pois triste tam soo fiquei (1993 III: 580, 174) na composição de Joam da Silveira, Aa Senhora Dona Margarida Freire (1993 III: 580). Diogo Gonçalves comparece na colecção de Resende no famoso Anrique da Mota a Vasco Abul... (1993 IV: 803) com Mui galante vos mostrais (1993 IV: 803, 214). 96 Também S. Pedro considera esta estrofe de uma mão tardia, caracterizando-a como uma letra humanista de finais do século XVI, ou mesmo de inícios do século XVII, mas devido à deterioração não chega a transcrevê-la (Pedro s.d.). 99 Capítulo 1. História do manuscrito Acompanhado à margem de: Outro ben d’este mundo non querria pol[as]coitas qu’amor me faz sofrer que mia sen[h]or meu mal todo sabia e que soubess’eu sempre atender. Se esse ben ouvesse, averia o mais do ben que ja querri’ aver ella o sabe ben sen lho dizer. [riscado e substituído pelo verso seguinte]: soubera o ela ben sen lho dizer e o sen posera en min como d… nunca lho ous………..dizer (Michaëlis 1904, I: 263-265) A par destas notícias óbvias relativas à presença na corte portuguesa de, pelo menos, um Cancioneiro medieval que, na primeira metade do século XV, acolhe outras composições poéticas, e da revelação do Marquês de Santillana a propósito do «grand volumen de cantigas serranas e dezires portugueses e gallegos» com poesias de D. Denis, é de recordar a presença na Roma quinhentista de um Cancioneiro português, antecedente de B, como documenta o ensaio de E. Gonçalves (1984). Neste ambiente de cultura humanista internacional – vários portugueses ilustres estão em Roma nesta altura –, com a presença na Cúria Romana de António Ribeiro, camarário de Clemente VII, encarregado pelo pontífice em 1525, de levar a Rosa de ouro ao Rei de Portugal. Um português desse ambiente diplomático-literário que pode estar ligado à história dos apógrafos italianos. Uma passagem da corte portuguesa à Cúria Romana. Segundo Barbosa Machado, o poeta Pedro Homem, estribeiro-mor do rei D. Manuel (e provável possuidor do Cancioneiro da Ajuda, como vimos), teve um filho Antonio Homem «Embaixador delRey D. Manoel á Curia Romana» mas, desta informação, não possuo elementos suficientes que permitam, por agora, outras conjecturas. À história da reconstituição dos cancioneiros galego-portugueses no século XV, acrescenta-se agora, uma prova da existência do futuro Cancioneiro da Ajuda também no mesmo período, em um meio cortês, numa linha lógica de interesses culturais que se vinham manifestando desde a geração de Avis, com a inserção de novos condições culturais do Infante D. Pedro, do Condestável D. Pedro, de D. Afonso V e de D. João II. Se a tradição manuscrita dos Cancioneiros medievais é caracterizada por ser fundamentalmente unitária, a definição mais precisa do ambiente em que estes cancioneiros se 100 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita mantiveram, mesmo o Cancioneiro da Ajuda que se supunha ter um percurso à parte, aponta para um meio cada vez mais exíguo e restrito – a corte régia – , mas também o acesso a estes cancioneiros pela pequena nobreza, o que explicaria ainda a pouca profusão destes materiais em um pequeno círculo de produção e fruição destes textos. Parece-me extremamente estimulante observar este fio coerente e quase sem ruptura desde a poesia medieval do Cancioneiro Trovadoresco à poesia cortesã do Cancioneiro Geral. Talvez não haja nem um hiato, nem um interregno tão significativo como, em geral, costuma ser apontado97. G. de Resende bem falava no seu Prologuo de «algũas obras que pude aver dalgũs passados» e «esses grãdes poetas que per tantas partes ssam espalhados». Os poetas cortesãos tiveram conhecimento da poesia medieval. Há, pelo menos, um que o diz, invocando D. Denis, de forma explícita. Os textos interpolados nos cancioneiros italianos só podem ter sido transcritos, porque o exemplar que lhes serviu de base foi, certamente, folheado ou lido98. O Cancioneiro da Ajuda parece com toda a probabilidade estar nas mãos de um poeta cortesão do século XV. Esta análise motivada pela identificação de Pedro Homem sugere uma reflexão conclusiva que englobe a continuidade e, ao mesmo tempo, a descontinuidade entre a canção cortês (ou canção trovadoresca) dos séculos XIII e XIV, e a poesia cortesã dos séculos XV e XVI. É, na verdade, necessário relevar a existência de algumas invariantes e, simultaneamente, sublinhar as diferenças, com o objectivo de acentuar que, no fundo, o interregno poético é ténue. De um lado, a continuidade poderia ser observada através de marcas bem precisas, tais como: a) o ambiente de corte e a condição de cortesão que, mesmo com as novas mudanças estéticas, a prática poética não deixa de ser um divertimento circunscrito ao paço. Um paço que, tal como anteriormente, era ainda caracterizado pelo seu carácter relativamente laico e livre de qualquer peia moral, no que diz respeito a esta actividade literária; b) uma poesia produzida por nobres, destinada a nobres e consumida por nobres, cimentada na própria circulação e conhecimento de poetas. O estatuto de poeta medieval e quatrocentista não seria fundamentalmente diferenciado; 97 As actividades lúdicas tinham-se talvez transformado, mas quando olhamos para os lazeres da corte (medieval e quatrocentista) continuamos a ver uma produção poética significativa, mesmo se os modelos técnicos deixaram de ser os mesmos. 98 A base das cópias italianas continua a suscitar vários problemas. Tratar-se-á de um único cancioneiro chegado às mãos de Colocci que o faz copiar duas vezes (opinião de D’Heur 1974, 1984; Gonçalves 1976; 1988; 1993, e Ferrari 1979; 1991 ou, pelo contrário, estaremos perante uma tradição múltipla, como o tem demonstrado Tavani ao longo dos seus vários estudos relativos à tradição manuscrita da lírica galego-portuguesa (1967;1969; 1979; 1999). 101 Capítulo 1. História do manuscrito c) as colectâneas medievais de certo modo continuavam a ter alguma existência activa, documentada, quer pela interpolação de textos tardios na colecção primitiva, quer agora pela situação do Cancioneiro da Ajuda; d) os topoi, de preferência geral, são muito semelhantes às variações sobre temas impostos, como o lirismo, a sátira, o jocoso, a corrupção, a desordem moral, o sagrado, o profano. Se a cortesia tinha, em traços gerais, como padrão os poetas occitânicos, os poetas de quatrocentos vão ter como modelo os poetas da corte castelhana, não só como autores, mas como tradutores das novas referências e das novas leituras. É o movimento estético que muda, mas o modo de compor e desfrutar o texto literário poético não se alteraria, essencialmente, nem no modo de apresentação, nem no de compilação; e) uma poesia certamente elitista, aristocrática e aristocratizante de concepção, mas obediente a certas regras de comportamento social, de atitudes convencionais quase sempre descodificadas no meio em que era apresentada. Continuará, no entanto, envolvida e dependente da atmosfera cortesã ou do palácio; f) uma produção textual que obedecia, evidentemente, a rígidas normas técnicas quanto à retórica em uma língua convencional conhecida e praticada apenas pelos meios que aderiram a estas práticas literárias. Por outro lado, a descontinuidade seria visível através de: a) uma poesia cortesã, com um ambiente aberto a outra cultura e naturalmente a outros modelos. A presença da Antiguidade, Dante, Petrarca e a pesquisa formal que vai assumir o bilinguismo, as referências e as citações de texto alheio, a glosa como parte integrante desta nova técnica, mais espontânea e desenvolvida do que as contrefacta medievais; b) constituem ruptura as novas formas técnicas – as perguntas, respostas, as cartas, as esparsas, os motes e glosas, os vilancetes, etc. c) desenvolvem-se, por conseguinte, novos géneros, nova descrição formal, novas preferências métricas. d) a elaboração de uma língua literária com outros modelos linguísticos que já não são os que estiveram subjacentes à literatura dos séculos XIII e XIV (Lapesa 1953-1954)99; No entanto, a constituição desta nova língua literária não é uma continuidade da língua literária medieval, a koinè do século XIII. É antes uma koinè elaborada segundo outros preceitos. A língua literária do século XV estaria tão afastada da língua corrente que se 99 A concepção de língua literária referente a este período está muito circunscrita aos aspectos da convivência bilingue em esta produção. Os moldes utilizados caracterizam-se, naturalmente, por outros parâmetros. 102 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita desenvolvia no centro-sul de Portugal com a presença cada vez mais estável da corte nesta região, como a língua literária do século XIII o estava para os dialectos setentrionais, como justamente já o assinalou I. Castro (1993: 102). A ruptura é mais técnica do que temática. A corte continua a ser itinerante, mas está a tornar-se cada vez mais estável e o seu universo, salvaguardando os novos modelos estéticos, não será, por certo, muito diferente do tempo afonsino ou dionisino, no que diz respeito ao lazer palaciano. Beltrán (1997) esquematiza, além das múltiplas razões que explicariam o «colapso» da escola galego-portuguesa, os elementos que caracterizam a «debilidad biológica, inherente a este período» e, assim, podemos dizer que, no que diz respeito à manutenção dos materiais, à organização de cancioneiros, há realmente, uma nítida interrupção nos processos de transmissão textual, mas parece não haver tão nítida interrupção nos processos de produção100. Mas são os mesmos espaços e os mesmos tipos de personalidades que vão ser responsáveis pela transmissão poética. A dinastia de Avis, sobretudo com o Infante D. Pedro, com D. Afonso V e com D. João II actua, neste aspecto, como tinha actuado D. Afonso III, D. Denis e D. Pedro, Conde de Barcelos. E o paralelismo prolonga-se. Assim como é a Itália renascentista e Colocci que vão preservar e transmitir a herança lírica galego-portuguesa da Idade Média, é a Évora renascentista, «que he a segunda [cidade] do Reyno» (Resende 1973: 158), e Pedro Homem, proprietário e transmissor, que nos vai proteger o Cancioneiro da Ajuda, retirando-o, talvez mesmo como um conjunto de cadernos cosidos, de um espaço, certamente não muito afastado da Livraria Real, mas poupando-o assim ao sismo do século XVIII. 1.6. Évora. Vila Viçosa A assinatura de Pedro Homem conduz não só à presença, praticamente segura do Cancioneiro da Ajuda na cidade de Évora durante o século XV, mas pode justificar esta comparência no ambiente eborense, alargando-o mesmo a outros locais alentejanos, como Vila Viçosa ou Montemor-o-Novo, no acolhimento favorável a este tipo de recolhas poéticas durante aquele período. Évora, tanto quanto sei, não voltou a ser relacionada com a poesia trovadoresca após as extensas notas de C. Michaëlis. A esta cidade referia-se ela, partindo também de um dado concreto − as onze folhas avulsas vindas de Évora − que pertenciam ao Cancioneiro da Ajuda)101. No capítulo dedicado à «Historia do Codice», apresenta-nos diferentes conjecturas relativas aos fólios de Évora, à importância da cidade de Évora durante o renascimento e ao 100 A. Resende de Oliveira retoma este indício ao explicitar a vitalidade destes objcetos ainda durante este século XV (Oliveira s. d.). 101 A inserção destes fólios é abordada na caracterização do códice (Michaëlis 1904: 21, 33, 59, 100, 102, 105, 136). 103 Capítulo 1. História do manuscrito papel da corte sobretudo a de D. Manuel e de seus filhos. Mas, todas as hipóteses apresentadas por C. Michaëlis são posteriores a Pedro Homem e ao ambiente em que se movia (quer a conjectura cronológica, quer o papel desempenhado pela corte manuelina). É na cidade de Évora que encontramos Pedro Homem, e é nesta cidade que, pouco tempo após a descoberta do Cancioneiro em Lisboa, se vão encontrar danificados e abandonados (provavelmente por acidente material) os designados fólios de Évora – um caderno e alguns fólios soltos do estado actual do Cancioneiro – fl. 4, fl. 16, fl. 17, fl. 29, fl. 36, fl. 40-fl. 45v, constituindo este último conjunto o actual caderno VII. A importância populacional, arquitectónica e o desenvolvimento da cidade durante os séculos XV e XVI são ocasionados pela presença da corte com residências mais ou menos prolongadas no sul de Portugal. Bastaria consultar os itinerários dos reis de 2ª dinastia e reler as descrições, sobretudo dos cronistas régios, Rui de Pina, Garcia de Resende, Damião de Góis, Francisco d’ Andrada para nos apercebermos da importância adquirida pela cidade alentejana. Mas não é fácil explicar a presença desta parte do Cancioneiro na Biblioteca de Évora em 1823, alguns anos apenas, após a fundação da Biblioteca e que nela se conservaram até 1843102. Évora, de facto, desde a 2ª dinastia tinha passado a ser uma cidade importante do Reino, e tinha-se convertido em um dos espaços vitais da actividade política e cultural. Bastaria recordar o calendário das cortes aí realizadas durante este período103: 1391: D. João I em Janeiro 1408: D. João I em princípios de Abril 1435: D. Duarte nos fins de Agosto 1436: D. Duarte no mês de Março 1442: O Infante Regente D. Pedro em Janeiro 1460: D. Afonso V em Novembro 1475: D. Afonso V em Fevereiro 1481: D. João II em Setembro 1490: D. João II em Março 1535: D. João II em Junho, etc. 102 A Biblioteca Pública de Évora foi constituída certamente com vários núcleos e diferentes recolhas de mosteiros, conventos ou de doações de alguns prelados, mas o fundo principal é certamente proveniente da biblioteca jesuíta do Colégio do Espírito Santo, que tinha sido, por sua vez, base da biblioteca da Universidade (jesuíta) de Évora. Deve-se, em 1815, ao erudito arcebispo D. Frei Manuel do Cenáculo (1724-1814) a fundação da Biblioteca Pública de Évora (Caeiro 1959). A antiga biblioteca tinha acompanhado a tradição de ensino que se tinha desenvolvido com a presença dos Jesuítas em Évora, por iniciativa de D. Henrique, filho de D. Manuel e futuro Cardeal rei. O Colégio (que se designou de Espírito Santo) começou a funcionar com carácter de escola própria em 28 de Agosto de 1553, devido à iniciativa de D. Henrique que pensava destiná-lo a eclesiásticos do seu arcebispado de Évora. A Universidade (projecto também do Cardeal D. Henrique) inaugurar-se-á a 1 de Outubro de 1559 e funcionará até 1759, data da expulsão dos Jesuítas. Releia-se a este propósito a carta de D. Henrique ao embaixador em Roma com a proposta bem justificada da criação da Universidade de Évora (Carvalho 1996: 853-854). 103 Um elenco da realização destes organismos político-administrativos é referido por Carvalho (1979). 104 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Além da presença da corte, recordem-se as festividades realizadas nesta cidade em homenagem do príncipe D. Afonso, filho de D. João II descritas por Garcia de Resende na Crónica de D. João II (1973: cap. CXX a CXXX), ou a representação, nestas localidades meridionais, de vários autos de Gil Vicente (1562) que se estreou na corte de D. Manuel, como se sabe (Camões 2002): Auto da Fé ao rei D. Manuel em Almeirim. Auto em Pastoril Português ao rei D. João III em Évora (1523). Auto da Barca da Glória ao rei D. Manuel em Almeirim (1519) Auto da História de Deus ao rei D. João III em Almeirim (1527). A comédia chamada Floresta de Enganos a D. João III em Évora (1536). Tragicomédia de Amadis ao rei D. João III em Évora (1533). Tragicomédia da Frágua à Rainha D. Catarina em Évora (1525). Tragicomédia dos Agravados ao rei D. João III na cidade de Évora (1533). A Farsa do Juiz da Beira em Almeirim a D. João III (1525). Auto das Ciganas a D. João III em Évora (1521). A Farsa do Clérigo da Beira a D. João III em Almeirim (1526). É também nesta cidade que D. Afonso, Cardeal-Infante (1509-1540), filho de D. Manuel, exerce as suas funções episcopais e D. Manuel desempenha boa parte da sua soberania. É também aqui que Cristóvão Rodrigues Acenheiro, cronista do século XVI, inclui nos seus relatos a famosa descrição da embaixada de Tristão da Cunha a Roma e conclui a sua Crónica dos Reis de Portugal em 1535104. Neste contexto, é de recordar a presença de D. Manuel como duque de Beja e de Pedro Homem ao seu serviço ainda durante o seu ducado. Esta convergência geográfica no sul de Portugal poderia justificar a presença acidental do caderno e dos fólios soltos em Évora, recolhidos entre os materiais que foram utilizados como constituição da biblioteca de Évora, projecto de Frei Manuel do Cenáculo105. 104 Cf. Serra (1880-1902); Catalán-Andrés (1971): Reuni já alguns destes elementos convergentes acerca da legitimação do espaço eborense no âmbito cultural quatrocentista: Frei Manuel do Cenáculo, em primeiro lugar pela fundação da Biblioteca; António Caetano de Sousa (1679-1759) faculta-nos a referência ao Livro de Cantigas de D. Pedro que se encontrava como uma das «jóias» conservadas por Manuel Severim de Faria que possuía o «dito livro» na sua Biblioteca; o próprio Manuel Severim de Faria (1582? -1655) formado em Évora e possuidor de uma preciosa livraria que passará para o Conde de Vimieiro e da qual subiste parte da colecção na BN de Lisboa. Um dos seus privelegiados interlocutores, Manuel de Faria e Sousa, efectuará a tradução do Nobiliario del Conde de Barcellos D. Pedro, hijo delrey D. Dionis de Portugal, traducido y castigado con nuevas illustraciones de varias notas, Madrid, 1646 e é do seu trabalho de tradutor que lhe virá o conhecimento do nome de alguns trovadores: Juan de Gaya, Afonso Sanchez (Poesia), Rey D. Dioniz (Poesia), D. Pedro Infante, hijo del Rei Dom Dioniz (Genealogias), Vasco Martins de Resende, etc.(Faria e Sousa 1646). As referências bem conhecidas de Duarte Nunes de Leão a D. Denis em 1585, 1590, 1600, 1606 e, pelo tipo de formulação, sugerem que o próprio Duarte Nunes de Leão tenha visto pessoalmente ou tenha tido conhecimento de algum cancioneiro. Contemporâneo e conterrâneo de Resende e de Severim de Faria alude a «hum Cancioneiro seu que em Roma se achou em tempo del rey D.Joam III», o que pode fazer pensar na eventualidade de talvez se referir ao exemplar que utilizava Angelo Colocci para a cópia dos dois cancioneiros italianos. Todos estes dados, ainda que indirectos em relação objectiva com 105 105 Capítulo 1. História do manuscrito Um anónimo autor seiscentista em defesa da sua tese sobre a autoria do Nobiliário revela-nos a consciência da diferenciação entre as «cantigas alheias» ao Conde e as «poezias de elrey Dom Diniz seu paj»: Em o testamento do Conde de Barcelos Dom Pedro está a a uerba seguinte. Item mando o meu liuro das cantigas a elrey de Portugal, com amis rezão lhe pudera deixar, o liuro das linhagens quando ouuera sido author delles antes que vm de cantigas alheas, ao muito cançioneiro de aquelle tempo que entrarião alguas poezias de el rey Dom Diniz seu paj (Machado Faria: 1944; Cintra 1983: 170, n. 124) Mas de todas as suposições, são mais evidentes as que se vão relacionar directamente com a família Resende (Oliveira 1949; Ramalho 1969). André de Resende (c. 1500-1573), em primeiro lugar, com uma indicação directa à sua Biblioteca que continha poesia trovadoresca relativa à tenção entre D. Afonso Sanches e Vasco Martinz de Resende. A sua Livraria permanecerá ligada à poesia trovadoresca com o manuscrito (texto isolado, mas acompanhado de música) que continha as «trovas» entre dois trovadores do tempo de D. Denis, das quais conhecemos, hoje, duas cópias tardias: Trovas / de D. Afonso Sanches filho del Rei D. Dioniz a / Vasco Martinz de Resende e resposta do mesmo / acharãose entre os papeis do grande Mes- / tre Andre de Resende e estavão postas em solfa (P-MS 419 da Biblioteca Pública Municipal do Porto, p. 9-11) No mesmo livro estavam as trovas de de dom. Afonso Sanches filho del Rey dom Dinis a Vasco Martinz, e reposta / do mesmo Vasco Martins (P-MS 419 da Biblioteca Pública Municipal do Porto (M-MS 9249 da Biblioteca Nacional de Madrid, fl. 25r)106. 1.6.1. Testamento de Garcia de Resende Por diferentes motivos, será contudo Garcia de Resende (1470?-1536) a personagem mais singular da família e da cultura portuguesa do século XVI. Nasceu e faleceu em Évora e foi sepultado no Convento de Nossa Senhora do Espinheiro. Ainda jovem, é acolhido no Paço e em 1490 era moço de câmara de D. João II e, em 1491, passou a moço de escrivaninha e secretário particular, funções que exerceu até à morte do rei. à eventualidade da presença efectiva do Cancioneiro neste ambiente meridional, não podem deixar de ser tomados em conta na avaliação do itinerário do ms. (Ramos 1991; 1999; 2001). 106 Veja-se, agora, a introdução às duas edições, quase simultâneas, destes dois trovadores de Arbor (2001) e Longo (2002). Mais uma versão foi encontrada na Biblioteca Nacional de Madrid em finais de 2007 (cota 3267, anterior K-61). Cf. a base de dados BITAGAP – Bibliografia de Textos Antigos Galegos e Portugueses – indica que este documento inclui, para além dessa tenção, as Trouas de Garcia de Resende a Nossa S.ra sobre este vilancete antiguo, com data aproximada de 1650 e que o ms. será uma cópia de textos do ms. 9249 da Biblioteca de Madrid. Cf. http://sunsite.berkeley.edu/Philobiblon/ BITAGAP 106 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita O afecto e a confiança do rei D. João II transmitem-se ao rei D. Manuel e até ao rei D. João III que continuaram a contemplá-lo com várias tenças e distinções. Em 1498, por exemplo, acompanhou a Toledo o rei D. Manuel acompanhado de sua esposa D. Isabel para o juramento como herdeiros dos Reis Católicos. Em 1514, é designado secretário tesoureiro da faustosa embaixada de Tristão da Cunha enviada por D. Manuel ao papa Leão X. A famosa viagem para oferecer a obediência ao papa fez sensação na corte pontifical, tanto pela sumptuosidade dos trajes, jóias e preciosidades, como pelo exotismo do séquito percorrendo as ruas de Roma acompanhada de elefante e rinoceronte da Índia e das famosas onças caçadoras do rei de Ormuz. Ao papel estimulante das cortes de D. João II, D. Manuel I e de D. João III em benefício da concepção cultural deste período não deixa de estar quase sempre associado o nome de Garcia de Resende (Martins 1970; 1972). A sua actividade literária concentra-se na publicação do Cancioneiro Geral em 1516 com um prólogo ao príncipe D. João, o futuro rei D. João III. Reúne as composições poéticas produzidas nas cortes de D. Afonso V, D. João II, D. Manuel e D. João III e conclui a colecção com o seu ciclo dedicado a Inês de Castro, resultado de uma consciência histórico-cultural meritória (Botta 1999). Redige também a Crónica de D. João II (terminada em 1533 e publicada em 1545) e acompanhada de uma Miscelânea (1.ª Ed. em 1554) em redondilhas que é uma interessante anotação de personagens, de acontecimentos nacionais e europeus com considerações do poeta perante a realidade. Da sua obra principal, o Cancioneiro Geral, conhecemos a localização de alguns exemplares da edição príncipe, o que revela a importância da publicação. Dias-Castro (1977: 100) indicavam-nos onze exemplares e Aida Dias (1998: 83) acrescenta mais alguns, o que totalizaria dezasseis exemplares hoje identificados. O número difunde uma imagem bastante restrita da publicação resendiana, se atendermos às informações do seu testamento. Na disposição do seu património, redigido à volta de 1523/1533, além de solicitar que fosse sepultado na sua cidade de Évora (Convento do Espinheiro), deixa naturalmente a sua filha Maria vários objectos como colares, cadeias, jóias, mas lega-lhe também materiais poéticos: …um livro de resar que vale quinhentos cruzados e tresentos e cincoenta cancioneiros ou mais que aqui tenho nas duas arcas, e armarios (…) os livros de historia (…) e mando que todas as obras que tenho escriptas em trovas, e prosa e a vida de El-Rei Dom João, cartas e tudo que tenho feito e a paixão, se o eu não tiver imprimido como desejo mando que tudo junto em um volume se imprima e façam mil livros que por serem cousas boas serão bem de compra… (Gromicho 1947: 17). 107 Capítulo 1. História do manuscrito Se estes impressionantes números parecem elevados e se a interpretação depende de uma verificação de leitura que ainda não é possível efectivar na Biblioteca de Évora107, a verdade é que a simples referência no seu testamento aos exemplares dos cancioneiros como doação não deixa qualquer dúvida quanto ao valor pecuniário da obra. Tratar-se-ia apenas de um número respeitante apenas ao Cancioneiro Geral, ou então, pela designação cancioneiros devemos entender também cancioneiros individuais, avulsos, prévios à compilação resendiana? Mas esta multiplicidade aponta para uma prática abundante na circulação textual destes materiais poéticos quer contemporâneos, quer mais antigos. É no Cancioneiro Geral de Garcia Resende, recorde-se, que encontramos os textos de Pedro Homem (texto 170), com a invocação poética a D. Denis que constitui a mais antiga referência (1486) ao talento poético do rei trovador. Se antes de 1498 (data em que temos notícia da morte de Pedro Homem) temos informação clara de que o actual Cancioneiro da Ajuda já se encontrava associado às linhagens (recordem-se as assinaturas de Pedro Homem no início do códice, à abertura do Nobiliário e no final do Cancioneiro), será não muito longe de Évora, isto é, na corte de Vila Viçosa, que voltaremos a ter notícias relativas à poesia trovadoresca. 1.6.2. Biblioteca de D. Teodósio A livraria de D. Teodósio (1510?/1563), 5º duque de Bragança, herdeiro do ducado, filho do primeiro matrimónio de D. Jaime é de grande importância para o conhecimento dos seus interesses culturais, mas é sobretudo extremamente curiosa no que diz respeito à poesia medieval galego-portuguesa. O duque teve como mestre Diogo de Sigeu, natural de Toledo, mas deve ter frequentado também o ensino na Corte Real, assim como em outras instituições europeias (Matos 1952). Por morte do pai, D. Jaime, sucedeu no ducado em 1532. Enviuvou a 24 de Agosto de 1558 de D. Isabel, filha de seu tio o infante D. Denis, e, no ano seguinte, em Setembro casou secretamente com D. Brites, filha de D. Luís de Lencastre, comendador-mor de Avis, da linhagem dos duques de Aveiro, sem autorização da rainha regente D. Catarina. D. Teodósio tinha agentes na Europa que lhe enviavam relatos dos acontecimentos principais, os quais reunia em volumes, que intitulou Os Livros de Muitas Cousas, do qual se desconhece o paradeiro (Teixeira 1983). À corte de Vila Viçosa acorriam personalidades como o toledano Diogo Sigeu, o sevilhano Juan Fernández, ou o português Fernão Soares, contratados 107 Não consegui localizar o testamento de Garcia de Resende, que foi visto por Gromicho na Biblioteca de Évora, pelo menos, na década de quarenta. A. Dias refere também este inconveniente (1998, V: 78-79; 423-431 [421, n. 1]). 108 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita para actividades pedagógicas. D. Teodósio conseguira obter do Papa Pio IV uma bula, datada de 13 de Julho de 1560, que o autorizava a fundar no mosteiro de S. Agostinho em Vila Viçosa uma universidade, cujos professores seriam religiosos agostinhos, concedendo-lhe os mesmos privilégios da Universidade de Coimbra. Se estes não fossem suficientes, o duque comprometiase a custear o que faltasse. Iniciaram-se as obras no convento para instalar a universidade, mas D. Teodósio adoeceu, vindo a falecer a 20 de Setembro de 1563. O projecto não teve, por isso, a continuidade desejada e esta tentativa deve associar-se ao que se tinha passado em Évora com a iniciativa do Cardeal D. Henrique para que existisse no País uma segunda escola universitária (Castelo-Branco 1967). A personalidade de D. Teodósio mereceu a António Caetano de Sousa extenso comentário, sobretudo à preservação da sua biblioteca: … como este príncipe era inclinado às letras e à lição dos livros (…) ajuntou copiosa livraria que fez mais preciosa pelos muitos manuscritos que nela se guardavam e era ornada de globos e instrumentos matemáticos mui curiosos. Estimava os livros como as peças mais preciosas do seu tesouro e por isso deixou ao duque seu filho, anexos ao Morgado da sua grande Casa dizendo no seu Testamento: Item deixo minha Livraria e todos os livros que tiver ao Duque de Barcellos meu filho, para que ande em Morgado, e não dará elle nem os seus successores, da dita Livraria nenhuns livros, sem comprarem outros, como elles, que metão na dita Livraria (Caetano de Sousa 1739: VI: 47-48). António Caetano de Sousa refere ainda que D. Teodósio I tinha um pajem dos livros em sua Casa, Nuno Álvares Pereira, e que «no palácio havia lições de ler, escrever, de gramática e música». D. Teodósio comunicava ainda com diferentes eruditos e «aos professores das artes liberais era mui grato». Aires A. Nascimento deu notícia do elenco da livraria ducal integrado no «Inventário [de bens] que se fez por falecimento do Sereníssimo Duque de Bragança D. Theodozio, realizado a seguir à sua morte, entre o ano de 1564 e 1567, na presença de D. Brites de Lencastre, sua segunda mulher» (Nascimento 1994). Não há conhecimento do inventário original, constituído pelo Notário Doutor Pereira de Sá, fidalgo da Casa do Rei e desembargador da Casa da Suplicação. O original do inventário ter-se-á perdido mas existe actualmente no Paço Ducal de Vila Viçosa, com data de 1665 e com a cota Res. 18 Ms., a «certidão com o treslado de huus autos de Inventario que se fez por falecimento do serenissimo Duque de Bragança D. Theodozio», a pedido do Conde de Figueiró, D. José Luís de Lencanstre. O inventário tinha sido redigido cem 109 Capítulo 1. História do manuscrito anos antes, mais precisamente no «Anno do nasimento de nosso Senhor Jesus Christo de mil e quinhentos sasenta e quatro em a villa de Villa Viçosa»108. A relação dos livros ocupa «96 meas folhas», o que dá uma ordem de grandeza da Livraria. Lembre-se, a título de comparação, que a livraria do Rei D. Manuel I que, como assinala Viterbo não reproduzia, por exemplo, as obras que eram citadas na livraria de D. Duarte, tinha referenciados «96 numeros» e alguns deles com mais de uma obra e de um volume, mas há também alusão em outros documentos que se mencionam diferentes espécies, «duzentos e trinta e um livros de sortes». O inventário da Livraria da Rainha D. Catarina, executado em Évora em 1534, enumera também um número significativo de quase uma centena de livros (Viterbo 1902: 7-11; 30-36 [9]). O contraste é também significativo com o inventário dos livros da Livraria do Estudo da Universidade que abrangem um pouco mais de cem títulos (Pereira 1964-1996). Mas, além do elenco de livros e, como dizia Viterbo, são curiosos os averbamentos de despesas destes monarcas. Nas verbas dispendidas para a Livraria da mulher de D. João III, D. Catarina, entre as várias menções ao livreiro e impressor, Affonso Lorenço, surgem indicações relativas a encadernações ou compras de livros. Destas alusões, publicadas por Viterbo, não posso ser indiferente a algumas delas, sobretudo à que corresponde a uma despesa em Abril de 1544 (Viterbo 1902: 30): «IXe lx reaes que despendeo em xxb d abrill do dito anno em mamdar guarnecer huũ Cancioneiro portuges.» (Fol. 205 v)109. Estão elencados na Livraria de D. Teodósio, com o respectivo preço, 1596 livros repartidos por vários temas: Teologia, Medicina, Cânones, Leis, Filosofia, Geometria, Arquitectura, Grego, Hebraico, Oratória e Gramática, Historiadores em Latim, Poesia [48 exemplares] Astrologia, Matemática, Livros italianos de diversas matérias, Livros em francês, em alemão, de Música, Livrinhos que estão em três caixotes pequeninos dourados, Livros de linguagem de Teologia e contemplação. Desta enumeração, isolarei os Livros Profanos em Romance [67 exemplares] e os Estoriadores em linguagem [76 exemplares]. Para além das diferentes designações enumeradas no Inventário do duque D. Teodósio, que permitem larga reflexão quanto aos interesses do Duque, são de retirar os seguintes títulos: 108 Estas indicações foram-nos facultadas por I. Cepeda na sua comunicação relativa à antiga cota do Cancioneiro da Ajuda. Desta certidão foi extraída cópia dactilografada em data mais recente, que serviu a Aires A. Nascimento para o seu estudo sobre esta importante livraria (Cepeda s.d.) 109 O importante artigo de Viterbo, que se fundamenta neste caso no inventário do tempo de D. João III, feito em Évora, relativo ao ano de 1534 (IAN/TT n°. 155), encontra-se agora disponível também nas obras digitalizadas pela BN de Lisboa em: http://bnd.pt/od/pp-24160-v/. 110 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Choronica del Rei Dom Afonso o Sabio Chronica de Ceita Choronica del Rei Dom Pedro o oitavo rei de Portugal composta por Gomes Eanes Cansioneiro de Romances Velhos Macarronea de Merlim Epístolas de Cataldo Vocabulário de Nebrija Gramática de Pastrana Cancionerio castelhano, Juan de Mena, Proverbios de Íñigo Lopes de Mendonça Cancioneiro de Juan de Enzina, Gil Vicente (em folha em pergaminho) Miscelanea de Garcia de Resende, etc. Mas, da leitura desta relação de livros, interpela-nos sobretudo o registo de dois títulos que, tanto quanto julgo saber, nunca foram mencionados nas diferentes reflexões sobre a lírica galego-portuguesa. São eles: Livro de Linhages de Portugal de letra de mão Obras del Rey dom Denis feitas de mão de pergaminho de marqua grande em taboas... (fl. 463 v.- fl. 464 r.)110. A existência de um Livro de Linhagens não causa extraordinária surpresa, se pensarmos que este tipo de obra deveria facilmente circular durante este período em todas as bibliotecas de casas nobres. Já a indicação Obras de D. Denis é mais estimulante. Em primeiro lugar, porque é muito rara no âmbito português; em segundo lugar, pelos indícios materiais do objecto. As Obras «feitas de mão de pergaminho» e o pormenor da encadernação «de marqua grande» e «em taboas» definem a natureza do objecto, quer dizer uma sumária descrição material que leva a situar este exemplar da biblioteca de D. Teodósio num tempo anterior ao século XVI: tanto o pergaminho, o ser feito de mão como as táboas da encadernação, fazem manifestamente pensar na confecção de códices medievais, para não dizer que evocam o próprio Cancioneiro da Ajuda. Mas, agora, até a indicação subsidiária, dada por I. Cepeda, com a menção ao formato – «de marqua grande» – pode fortalecer a conformidade com o códice ajudense e contribuir para uma eventual identificação da espécie. 110 Modifico agora a minha primeira leitura desta nota que tinha sido baseada apenas no ensaio de Aires A. Nascimento que reproduzia o dactiloscrito (Ramos 2001). I. Cepeda indica que nesta reprodução foi omitida a importante expressão que se encontra no ms. «de marqua grande» (Cepeda s.d.). Controlando a leitura do manuscrito, nota-se a indicação do valor atribuído, «…foi avaliado em oitenta reis». É interessante associar a esta indicação a «marca grande» que é referida ao livro (Cantigas de Santa Maria) doado por Isabel a Católica a sua filha Joana (Avenoza s.d.). 111 Capítulo 1. História do manuscrito Ao lado desta utilíssima indicação, temos também o valor material do livro, avaliado em oitenta reis, que se presta a interrogações difíceis de solucionar. I. Cepeda propõe, e parece-me que a sua asserção possa ser bem plausível, que o reduzido valor que lhe foi atribuído, talvez se explique por se tratar de um códice de época recuada, em escrita talvez de difícil leitura e, por isso, sem particular interesse, no perído em que foi inventariado. O manuscrito de D. Denis deve ser, assim, estimado em função do valor [reis] dos outros objectos que constituem o inventário: Hum Livro em portugues de letra de pena de Dom João de Castro Cancioneiro Geral Obras de Gil Vicente, em folha em pergaminho Cancioneiro Castelhano de folha de pasta Livro de Linhages de Portugal de letra de mão Obras del Rei Dom Denis feitas de mão… 1$600 400 400 200 1$000 80 Se não é pelo valor pecuniário que o códice de D. Denis mais se impõe, ressalta a importância emblemática da presença das Obras do rei trovador em uma biblioteca cortesã do sul de Portugal. No século XV, neste mesmo espaço alentejano, próximo da Corte Real, sabemos que o Cancioneiro [da Ajuda] estava em poder de Pedro Homem, que assina por duas vezes o seu códice e que invoca D. Denis em um das suas composições poéticas. Sabemos também que, até ao início deste século, era ainda visível na goteira do manuscrito («corte exterior») a inscrição Rey Dō Denis, advertência que não seria surpreendente nesta sociedade cortesã em uma colecção de poemas sem qualquer rubrica atributiva (Ramos 1999). Nesta altura, é de supor que o Nobiliário («Livro de Linhagens») já estava encadernado juntamente com o Cancioneiro, quando examinamos a localização da assinatura de Pedro Homem, quer no início das Linhagens, quer no fim do Cancioneiro. As «taboas» não deixam também de apontar para a encadernação com tábuas que ainda hoje possui o Cancioneiro. Estas simetrias são sedutoras e talvez fosse desejável admitir que este objecto da biblioteca de D. Teodósio se identificasse com o objecto de Pedro Homem, o futuro Cancioneiro da Ajuda. Não deixa de ser perturbante, mesmo que não passe de coincidência, que todas as referências ao trabalho poético de D. Denis (Duarte Nunes de Leão, seguido dos mais relevantes seiscentistas e setecentistas) apareçam associadas, em grande parte, ao meio eborense. Como obteve D. Teodósio estas Obras de D. Denis? Talvez por razões semelhantes às que foram apontadas para o irmão D. Teotónio (Castro 1984): a proximidade com a corte, os interesses culturais e o desenvolvimento humanista do duque, os próprios contactos com Cataldo Sículo (que era igualmente interlocutor de Pedro Homem, como vimos). Adicione-se 112 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita para D. Teodósio uma componente familiar: o seu segundo casamento com D. Brites de Lencastre aproxima-o da família dos duques de Aveiro, que eram descendentes de D. Jorge, filho bastardo de D. João II, com presença regular na Corte após a morte do herdeiro D. Afonso em 1491. Mas o mais significativo é que na biblioteca de um dos Duques de Bragança, que era também um erudito do Renascimento, existia um manuscrito de D. Denis, mais ou menos na época em que estava em Itália o exemplar que daria origem aos cancioneiros italianos. Em Portugal (no sul de Portugal, mais concretamente) também se coleccionavam e também se liam manuscritos medievais, mesmo que tivessem tido origem no norte, no ambiente galegoportuguês da primeira dinastia. Afinal, estamos perante mais um episódio da centralização a sul da vida nacional. Uma última indicação apontaria, ainda que de forma sumária, para a inserção do códice neste ambiente do sul. Trata-de de outra assinatura com ressonância meridional (Évora, Vendas Novas...) que comparece por três vezes, dir-se-ia de modo ensaístico, no fl. 86v de Gonçalo Gomes Mirador com as variantes: guonçalo guomez mirador guonçalo guomez guonçalo guomez mirador Trata-se de uma mão mais recente do que a de Pedro Homem, e caracteriza-se como uma letra humanista, já de finais do século XVI ou inícios do século XVII111. Poderíamos ainda integrar nestas alusões relativas a marcas de propriedade aquela que se encontra no fólio que estava colado contra a pasta posterior da encardenação este lyuro hez do colaco do imfante (fl. 87) com a identificação possível deste colaço a um Pedro Homem de meados do século XV, proposta, como já vimos, por A. Resende de Oliveira na sua apresentação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-004). 111 Estas tentativas de assinatura estão agora menos legíveis devido à limpeza do fólio. S. Pedro admite ainda que esta letra se aproximaria da que inscreve a estrofe marginal no fl. 33 ao lado de A 130 [RoyQuey], ainda que se verifique modificação nestes dois momentos de escrita (Pedro s.d.). Parece tratar-se de um nome de família circunscrito ao sul, mas ainda não possuo elementos que me permitam identificar este autógrafo. 113 Capítulo 1. História do manuscrito 114 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 2. História interna do códice 2.1. Identificação da espécie. Marcas de conteúdo O Cancioneiro da Ajuda, manuscrito sem catalogação, pertencente à Biblioteca da Ajuda, em Lisboa, é um códice em pergaminho, iluminado, datável pelas suas características materiais de finais do século XIII, inícios do século XIV112. Encontra-se encadernado com uma cópia do Livro de Linhagens do Conde de Barcelos, devendo a associação dos dois fragmentos datar dos finais do século XV113. O seu aspecto actual tem de ser interpretado como correspondendo a um empreendimento de grande fôlego, que não chegou a ser concluído, e não apenas como um fragmento sobrevivente a acasos temporais que o danificaram. É um códice de grandes dimensões (os fólios têm a média aproximada de 438 mm para a altura e de 347 mm para a largura). É bem provável que não tenha possuído uma encadernação de origem, justamente devido à suspensão do projecto. Nele, encontram-se, além das marcas de posse já referidas, poucas informações referentes a marcas de conteúdo que não se encontram nos fólios iniciais, devido ao estado fragmentário do início. No fl. 77r, em um lugar portanto, impróprio, parece haver uma inscrição relativa a conteúdo, Este lyuro he de cãto (?). Uma anotação avulsa, resultante de uma intervenção de leitor com escrita provável dos séculos XV-XVI. Insere-se esta anotação em um fólio, inicialmente em branco, que acolhe alguns desenhos a tinta com elementos figurativos e com instrumentos musicais, datáveis da segunda metade do século XV114. No fl. 88v, logo abaixo à assinatura de p°homẽ, como observámos também, surge a indicação das linhagẽs que anunciava a primeira parte do códice, quando este fólio se encontrava na abertura do livro. 2.2. Incipit e explicit O Cancioneiro começa, de facto, sem qualquer sinal protótipo no fl. 41, segundo a numeração feita por Stuart, ou na p. 79, paginação que é utilizada por Henry H. Carter. C. Michaëlis 112 A descrição do ms. acompanha as fichas propostas por guias de descrição catalográfica, adaptadas às exigências particulares deste Cancioneiro. Tive presente, em particular, as indicações de A. Petrucci (2001), as de Jemolo-Morelli (1984) e as mais recentes em âmbito francês, publicadas pela École Nationale des Chartes (Vieilliard et al. 2001; Guyotjeannin 2001; Bourgain-Vieilliard 2002). Uma visão de conjunto acerca destas tendências normativas em www.lettere.unifi.it/mdi/ ou www.iccu.sbn.it. 113 «É um volume em folio, de pergaminho, com dezoito polegadas de alto e doze de largo, escrito a duas colunas e em caracter que se julga ser do século XIV...». É esta parte da descrição dedicada ao «Cancioneiro denominado do Collegio dos Nobres» em I. F. da Silva (1909, II: 25 §107). 114 A este fólio se referirá o capítulo que pormenoriza a decoração do ms. Também M. Pedro Ferreira incidiu a sua atenção nos instrumentos musicais aqui reproduzidos (Ferreira 2004) e, mais recentemente, chamou ainda a atenção para a representação da dança (Ferreira s. d.). 115 Capítulo 2. História interna do códice introduzirá uma foliação, dando autonomia ao Cancioneiro, com início em fl. 1. 1O incipit coincide com parte de um poema atribuível a VaFdz pelo cancioneiro B 91 guer uos me tollede este poder. que eu [fl. 1/79]115 e o explicit primitivo atender quero mesura / ca non me ade falir [fl. 86/p. 249] corresponde ao poema que se encontra em B 895 e V 480, atribuído pela crítica a MartMo. Com a deslocação, por iniciativa de C. Michaëlis, para a posição final de um fólio que estava colado na pasta anterior da encadernação, contendo poemas atribuídos a RoyFdz, o explicit passou a ser ti. Non cuydara tant auiuer. como. [fl. 88v/252]. 2.3. Número de textos Contém apenas trezentas e dez composições e mais uma cópia dupla de uma cantiga atribuível a PayGmzCha, A 248 (A 248bis), não numeradas e sem indicação de rubrica atributiva, que se reportam a um conjunto plausível de trinta e oito autores, identificáveis por meio dos critérios da decoração do códice116. É necessário, no entanto, assinalar agora um elemento aproximável de rubrica atributiva, embora resultante, aparentemente, de um processo de revisão. S. Pedro decifrou no fl. 9v, à esquerda do incipit da cantiga A 39, Meus ollos gran cuita damor, uma indicação referente a p°da pont com traço horizontal sobre pont. Não é evidente compreender esta associação a Pero da Ponte neste sector. Por um lado, a rubrica comparece em um texxto incompleto com a transcrição apenas da estrofe inicial, incluído na parte final do ciclo atribuível a PaySrzTav. Mas o incipit também não se aproxima de qualquer outro conhecido de atribuição provável a PPon117. Todas as composições que constituem o Cancioneiro no seu estado actual inscrevem-se, globalmente, no género da cantiga de amor. G. Tavani no Colóquio dedicado ao centenário da publicação da edição crítica do Cancioneiro da Ajuda realizado em Lisboa em Novembro de 2004, ao efectuar uma leitura contínua de todas as composições, pronunciou-se acerca de algumas cantigas que não poderiam entrar no âmbito de um rigoroso cânone amoroso, como já assinalei. Trata-se de um cancioneiro incompleto e inacabado por dois motivos primordiais: o primeiro deles corresponde a uma objectiva suspensão do projecto inicial, acima referida; e o segundo decorre de uma série de acidentes sofridos ao longo da sua histórica, talvez devido à falta de encadernação. É assim, simultaneamente, mútilo e inacabado como denunciam tanto os 115 O restabelecimento com base em B permite a leitura Deus meu senhor se u9 prou] guer [B 91] (Ed.facs.1982: 57). 116 Michaëlis 1904, II: 223; Tavani (1969: 129-131); D’Heur (1973); Oliveira (1994). Insisto nesta dupla caracterização de mútilo e inacabado, porque há, de facto, lacunas físicas atribuíveis a acidentes materiais, mas há também lacunas de base, quer dizer, lacunas textuais (ou mesmo de Autor) que nunca chegaram a ser incluídas no conjunto que chegou até nós. 117 Esta decifração foi anunciada na comunicação efectuada por S. Pedro no Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) efectuado em Lisboa em Novembro de 2004. Voltarei a referir-me a esta indicação na descrição deste caderno II. 116 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita cortes perceptíveis em fólios de diversos lugares do códice, como a ausência não só de rubricas, decoração, música, etc., mas também de alguns textos que nunca chegaram sequer a ser concluídos. Esta particularidade é ainda comprovada por alguns espaços disponíveis previstos para estrofes que deveriam concluir textos fragmentários, assim como por fólios completamente em branco que poderiam receber outros conjuntos de poemas de autores já integrados ou a incorporar na colectânea. Aliás, na última cantiga, A 310, atribuível a RoyFdz, o refran é mesmo deixado incompleto, apesar do espaço de que dispõe o pergaminho. Esta interrupção raríssima a meio de um verso é reconstituível com base em B auiuer como.] ueuj sen u9 ueer [B 902/V 487]. É um sinal extremamente significativo para avaliar a real suspensão da cópia, tanto mais que é muito pouco frequente a interrupção a meio de um verso durante a cópia em este tipo de textos poéticos. 117 Capítulo 2. História interna do códice 118 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 3. Descrição do suporte material 3.1. Número de fólios No seu estado actual, o Cancioneiro é composto por oitenta e oito fólios que se encontram organizados em catorze cadernos e por mais três fólios cosidos, agora, isoladamente, após o último restauro, sobrevivência de cadernos extraviados ou de bifólios cortados. 3.2. Natureza dos fólios O pergaminho é o suporte em que se encontram copiadas as cantigas do Cancioneiro da Ajuda. Não se apresenta em todo o códice a pele com um tratamento completamente homogéneo, sendo bastante nítida a diferença de vários fólios que parecem ter sido mais expostos ao sol, ou resultantes de um preparo variável. A identificação do animal não é fácil, talvez uma espécie vitelina e não ovina118, mas é possível conjecturar, em diversos casos, uma pele exposta à luz, portanto de proveniência meridional, como seria naturalmente de prever. A tensão da pele, que a torna mais lisa e mais adaptada a códices luxuosos como este (Werner 1999), é determinante para uma boa aderência da tinta, mas é perceptível que, em alguns casos, a pele não deve ter sido uniformemente esticada, notando-se algumas pregas ou mesmo rugas nas extremidades, sobretudo as das margens inferiores119. Algumas destas imperfeições devem ter desaparecido devido ao aparo sofrido pelos fólios por causa da encadernação, mas as anomalias mais visíveis encontram-se, sobretudo, nos últimos cadernos. A tensão da pele está também ligada à disposição das fibras, registando-se irregularidades fibrosas sobetudo na confecção do caderno III e nos cadernos finais120. Análises de natureza laboratorial poderiam, seguramente, lançar luz sobre outros aspectos materiais ligados à confecção do manuscrito. Não as empreendi e não tenho conhecimento dos resultados das que eventualmente tenham sido realizadas, por exemplo 118 A identificação exacta do tipo de animal continua a ser bastante difícil (Ivy 1958: 34), mas L. Gilissen, em uma visita à Biblioteca da Ajuda (21 de Março de 1980), inclinava-se para um «parchemin de veau et pas de mouton». 119 Vejam-se, a este propósito, os ensaios de A. Di Majo, C. Federici e M. Palma (1985, 1988, 1996), sem referir os úteis estudos de Bischoff, que põem em evidência as zonas mais frágeis das extremidades dos fólios por coincidirem, muitas vezes, com zonas próximas das patas do animal (1993, 1996). Conservamse algumas receitas que descrevem o processo de fabrico do pergaminho, embora a Península Ibérica não disponha ainda de um exame sistemático das características da pele de manuscritos deste período (Chahine 2001: 17-50; Consoni 1992: 277-295). 120 Diferentes processos que descrevem o tratamento do pergaminho podem ser consultados no volume colectivo dedicado ao Pergament (Rück Ed. 1991), como também em Fuchs-Meinert-Schrempf (2001), que apresentam as mais recentes análises relativas a este suporte de escrita. 119 Capítulo 3. Descrição do suporte material durante o restauro recente que o códice sofreu. Incluem-se aqui análises tendentes à identificação dos animais que forneceram as peles, ao cálculo do número de animais necessários para um códice com as dimensões deste, e à medição da espessura do pergaminho. Uma apreciação minuciosa deste último tipo poderia determinar se os dois cadernos que contêm, ainda hoje, uma numeração primitiva (o caderno VI e o caderno X), pertencem ao mesmo modelo de densidade de todos os outros, já que desiguais espessuras no interior de um mesmo códice (dependentes também da parte do animal utilizada) podem não ser fortuitas121. O simples tacto sugere que os fólios destinados às miniaturas têm uma espessura mais densa, para evitar justamente o repasse das tintas. Também ocorre que o bifólio mais espesso parece colocar-se no início do caderno por motivos óbvios de resguardo, enquanto os bifólios com deficiências parecem ter sido disfarçados no interior do caderno. Isto é patente, pela primeira vez, no caderno VI, já que os cadernos anteriores ou estão privados de bifólio inicial (cads. I, II, III) ou abrem com a continuação de cantigas provenientes do bifólio anterior (IV e V). Assim, é o cad. VI o primeiro que, hoje, abre com uma miniatura e que não dispõe de qualquer lacuna física nem no início, nem no fim. Ora, este cad. VI é justamente o primeiro caderno que nos dá também a indicação da numeração primitiva X°J122. Não é, certamente, por acaso, que vamos também encontrar uma clara mudança material nos últimos cadernos do códice ajudense, não só no tratamento da pele (vestígios de insuficiente raspajem), como na disposição e, sobretudo, na qualidade da pele que parece bem inferior em relação aos primeiros cadernos. Se este procedimento fosse realmente verificável, a questão da confecção de cadernos deverá também ser revista em função do tipo de texto ou decoração que lhe estava destinado, como do tipo de pele que se encontrava disponível123. Os dados actuais apoiariam já uma mudança na concepção do projecto entre a primeira e a última parte do códice. 3.3. Tinta e instrumento para a escrita Não sendo particularmente fácil individuar que tipo de instrumento serviu para a escrita do texto, limito-me a indicar que ela surge delineada com traços de espessura e de leveza relativamente regulares ao longo do manuscrito, mesmo em mudanças de mão124. As dificuldades interpretativas são significantes quanto à representatividade do material, mas aqui bastaria talvez relevar a relativa constância da tinta e do corte da pena para os diferentes tipos de 121 Ainda que os resultados sejam heterógeneos, podem já observar-se certas tendências no tipo do tratamento dado à espessura do pergaminho em certas regiões da Europa ocidental (Bianchi et al. 1993; Bischoff 1994). 122 A tipologia das numerações é tratada no capítulo que descreve os vários sistemas presentes no códice. 123 Alguns casos de comportamento mais elaborado a este propósito são demonstrados nas experiências de Casagrande Mazzoli e Ornato (1999) e Maniaci (2000). 124 A análise paleográfica é referida no sector dedicado à Escrita do códice. 120 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita traçado (ponta larga, inclinada, ou talvez mesmo o designado bico de águia em alguns casos), assim como os processos de tempero da pena que parecem provir de um meio bastante profissional. Contudo, a utilização das penas e das tintas no Cancioneiro não deve ter variado expressivamente ao longo da transcrição das cantigas125. Mesmo quando constatamos as transformações finais, os resultados não chegam a ser fundamentalmente discrepantes126. A tinta utilizada ao longo da cópia caracteriza-se por uma pigmentação próxima do castanho-escuro a um castanho bastante escuro, que, em alguns casos, poderíamos caracterizar de quase negro127. De qualquer modo, uma análise química do manuscrito por microspectrometria (técnica espectroscópica que tem por finalidade análises quantitativas; exame de substâncias, baseados na produção e interpretação de seus espectros de emissão ou absorção de radiações electromagnéticas (por exemplo, nas zonas do infravermelho, ultravioleta, raios X, visível, etc.) só será produtiva em um quadro de apreciação comparativa com outros manuscritos ibéricos análogos. Estes testes seriam, naturalmente, lucrativos em uma óptica mais ampla que pudesse incluir outros objectos idênticos, submetidos à mesma verificação cuja finalidade prioritária seria a individualização de um ou outro centro de produção, de um ou outro scriptorium (tintas usadas no mesmo período ou em áreas geográficas próximas que podem relacionar ou distanciar manuscritos sem local de produção conhecido)128. 125 Como se sabe, a iconografia medieval não é muito explícita quanto ao tipo de instrumentos utilizados na escrita, mostrando-nos, a maior parte das vezes, um conjunto de objectos e não uma individualização clara de materiais que nos permitisse reconstituir a função exacta de cada um deles (Gasnault 1989; Mastruzzo 1993; Gumbert 1998a, 1998b). 126 No capítulo dedicado à caracterização paleográfica deste tipo de gótica, indicarei os traços mais significativos nas modalidades desta escrita. Mas, é curioso notar já que um especialista paleográfico como Carter (1941), não chegou a individuar mais de uma mão, o que significa que a mudança morfológica e a diferente técnica não lhe pareceram convincentes. 127 São de diferente tipologia as tintas utilizadas (à base de carbono, tintas ‘metálicas’, ou mesmo processos mistos), como é, relativamente conhecido, através de alguns tratados técnicos de confecção de tintas (Zerdoun 1983). A análise e o estudo dos pigmentos e dos corantes nos manuscritos continua a ser delicado, e sempre de difícil aplicação, devido não só ao uso de processos reactivos químicos que nem sempre agem de forma não agressiva e não destrutiva e também às normas rígidas das bibliotecas (recorde-se, no entanto, os bons resultados deste tipo de exames microcóspicos de identificação, a partir da metologia PIXE, Raman, em diversos casos de reconhecimento na pintura). Caso interessante é o desenvolvido no ensaio sobre diferentes técnicas de análise de tintas pretas (Fouchet-Flieder 1991). Exames desta natureza no Cancioneiro da Ajuda teriam utilidade em um programa colectivo na produção manuscrita da corte portuguesa ou da corte afonsina. 128 Os relatórios que documentam este tipo de observação de pigmentos são abundantes, mas isolarei aqui o ensaio de Vezin (1984), o de Van Hooydonk et al. (1998) e o de Clarke (2002) que bem ilustram os progressos destas novas técnicas que, em larga medida, tinham estado reservadas, até há pouco, apenas ao serviço do restauro e não ao do filólogo. 121 Capítulo 3. Descrição do suporte material 3.4. Estado dos fólios Os oitenta e oito fólios que actualmente constituem o manuscrito são de pergaminho de qualidade pouco uniforme. A raspajem não é homogénea, a pele apresenta diversas espessuras e encontra-se bastante enrugada em alguns lugares. A disposição do pergaminho nem sempre foi idêntica, sendo possível observar a não concordância entre o lado esbranquiçado da carne e o lado mais amarelo da pelugem. Muitos fólios estão deteriorados, principalmente o que esteve colado à pasta anterior da encadernação. Em alguns dos que vieram de Évora são ainda visíveis as marcas das dobras, pois são fólios que estiveram dobrados em quatro. Observam-se também manchas enegrecidas, presença de fungos e humidade em excesso129. Alguns fólios apresentam raspagens, mais ou menos cuidadas e alguns restauros de origem com algum êxito. Exemplos de algumas destas particularidades: No fl. 21v e no fl. 22 (cad. IV) vêem-se manchas acinzentadas ou ligeiramente azuladas do pêlo do animal. A pele foi menos raspada. O mesmo tipo de manchas observa-se no fl. 28v, no fl. 30, no fl. 35v (cad. V e cad. VI). No fl. 40, há um rasgão, que no verso afecta a grande capital esboçada, característica de início de cicio individual de poemas. A edição fac-similada, não tendo tomado as devidas precauções, deixa passar, na reprodução fotográfica, parte da palavra ren (fl. 39v, cad. VIIa). O fl. 46 (cad. VIIa) devido ao facto de ter sido dobrado para a encadernação, está mais reduzido na largura em relação à maioria dos outros fólios (cerca de 1, 5 cm a 2 cm). No fl. 47 (cad. VII) há orifícios no centro, provavelmente provocados pelo desgaste, mas não afectam o texto. No fl. 52 (cad. VIII), um rasgão foi cuidadosamente restaurado, sem que o texto sofra. No fl. 56 (cad. IX) são visíveis manchas de tinta verde, provocadas pela miniatura que desbotou. No fl. 57 (cad. IX), um buraco oval (20 x 10 mm), feito na margem inferior, beneficiou de um hábil restauro, facilmente detectado pelo facto de o texto cobrir parte da pele que serve de tampão. Trata-se da última parte da col.b «mia sennor que eu auia de». No verso, o texto foi espaçado, de modo a que a escrita não se sobrepusesse no restauro: (col.c) «saberen ……mio mais». Os fl. 62v e fl. 63 (cad. X) estão bastante manchados simetricamente da humidade que desbotou da decoração do, capital da col.b do fl. 63. Nos fl. 64v e fl. 65 (cad. X) verificam-se ainda manchas simétricas que afectaram o texto, sem contudo o tornar ilegível. Estas manchas são posteriores ao desaparecimento do fólio intercalado de que resta a pestana irregularmente cortada. 129 O último restauro eliminou algumas destas manchas de humidade. 122 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita O fl. 74 e 74v (cad. XIa) apresentam-se bastante manchados na parte superior. Os vestígios parecem resultantes de cola idêntica ao do fólio que esteve colado à pasta anterior. Este fólio, que, agora, se encontra aqui colocado (desde a intervenção de C. Michaëlis que o encontrou também solto no início do códice em contacto, portanto com a cola da pasta de encadernação) apresenta o texto bastante danificado e, em alguns casos, de difícil leitura. Como acidentes de menor importância assinale-se um pequeno orifício no fl. 4 na col.b que afectou ligeiramente o <o> de for e que se reflecte também no <p> de partir na fl. 4v na col. da direita130. Nos fl. 8 e fl. 8v, um pequeno orifício que não afecta o texto. No fl. 11 e fl. 11v, há uma escassa incisão, motivada talvez por uma correcção que atinge o <r> de cuidar e o <a> de q’uades. Há vários fólios onde é patente o corte da guilhotina com eventual dano textual ou decorativo: fl. 2 – a capital <C> tem a parte superior cortada (cabeça) fl. 5 – a capital <Q> tem a parte inferior cortada (pé) fl. 5v – a capital <J> tem a haste inferior ligeiramente cortada (pé) fl. 11 – a capital <S> tem a parte inferior ligeiramente cortada (pé) fl. 12 – a capital <E> tem a parte superior cortada (cabeça) fl. 13 – a capital <E> tem a parte superior cortada (cabeça) fl. 13v – a capital <Q> tem a parte superior cortada (cabeça) fl. 16 – o lado superior da miniatura ligeiramente danificado fl. 17, fl. 18, fl. 21, fl. 29, fl. 33–o lado superior da miniatura também danificado fl. 34v – a col.c tem o 1.° verso cortado fl. 35v – a col.c tem o <N> coratdo no lado superior e a col.d tem o 1.° verso muito próximo da cabeça do fólio. fl. 37 – o lado superior da miniatura também danificado. fl. 38 – era quase afectado o 1.° verso da col.a fl. 38v – na col.d era também quase afectado o 1.° verso. fl. 39 – o primeiro verso tanto da col.a como da col.b erm quase afectados pela guilhotina. fl. 40v – a miniatura danificada no lado superior. 130 Carter assinala grande parte destes acidentes na sua edição em notas relativas às composições ou no Apêndice final (Carter 1941: 29-30, XLVI, v. 22; XLVII, v. 19). 123 Capítulo 3. Descrição do suporte material fl. 42 – o 1.° verso da col.a quase danificado e o 1.° verso da col.b também, não se podendo conjecturar o número de versos perdidos a não ser pela estrutura do poema (Carter 1941: CLXII, CLXIII, CLXIV). As correspondências A 162/[...], A 163/B 316 (só a última estrofe). fl. 42v – o 1.° verso das duas colunas igualmente danificado. fl. 43v – o primeiro verso (ou os primeiros versos) das duas colunas muito danificados. fl. 44 – o 1.° da col.b mais danificado do que o da col.a. O 1.° verso da col.a é de difícil leitura «Prazer nen ben neno ar uerei» (Carter 1941: 103, CLXXII) fl. 44v – os primeiros versos danificados das duas colunas de texto, « a que uos ar ey aquest a dizer» e « [U]lle eu dixi con graça mia sennor» (Carter 1941: 104, CCXXIII, CLXXIV). fl. 45 – danificado o primeiro verso da col.a, «por quantỹst e que u9 ora direy» (Carter 1941: 105, CLXXIV). fl. 45v – o 1.° verso da col.c «ro ben.sennor e buscan me conuusco» que aparece reescrito sem <me> na linha seguinte «ro ben sennor e buscã con uusco» (Carter 1941: 106, n. 2). fl. 46v – as duas colunas têm o primeiro verso parcialmente danificado. fl. 47, fl. 48, fl. 51v, fl. 55v, fl. 59, fl. 60 – a miniatura tem o lado superior parcialmente danificado. A prova mais evidente de acidente material sofrido pelo Cancioneiro é constituída, no entanto, pelos fólios encontrados em Évora131: fl. 4/p. 85 – parece arrancado. Está colada uma rebarba na margem interna do texto. Pergaminho mais fino com uma ligeira prega no lado interior direito. fl. 16/p. 109 – parece arrancado. Pergaminho mais espesso com vestígio cclaro de ter estado dobrado (marcas de vincos). fl. 17/p. 111 – cortado. Vestígios de dobra com marcas de tinta. O verso está em branco. fl. 29/p. 135 – arrancado. Não é tão visível a dobra. O verso só tem na coluna esquerda onze versos. O resto do fl. encontra-se em branco. fl. 36/p. 149 – cortado ou, pelo menos, aparado. Também não é clara a marca da dobra. No fim da coluna da direita do verso há um espaço em branco de, mais ou menos, 10 cm. 131 «...às folhas descobertas na capital do Alentejo numeradas por Herculano de I a XI, dei eu, ao começar os meus estudos a numeração 117 a 127 indevidamente (...). A ordem que por este simples processo apurei em 1877 foi tres annos mais tarde plenamente confirmada pelo confronto com as partes análogas do apógrafo italiano C. B. (...)» (Michaëlis 1904, II, 136). 124 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [cad. VII] fl. 40/p. 157 – arrancado. Há um buraco na coluna esquerda do verso que afecta a capital. O rosto só tem a col.a preenchida. A col.b está em branco. O verso tem miniatura e está completamente preenchido. fl. 41/p. 159 – arrancado. Não se notam as dobras. Não tem miniaturas e está preenchido tanto o rosto como o verso. Há uns pingos de tinta azul no rosto direito, talvez provocados pela miniatura do verso do fl. anterior. fl. 42/p. 161 – arrancado com vestígios de união. Não tem miniatura e não se notam vestígios de dobras. Na margem superior, o texto está danificado. fl. 43/p. 163 – arrancado com vestígios de união. Rosto e verso preenchido sem miniatura. Não se notam vestígios de dobras. O texto está também cortado na margem superior. fl. 44/p. 165 – cortada ou aparada. Sem miniatura e sem dobras. fl. 45/p. 167 – cortado e unificado. Texto danificado. Rosto preenchido. Duas capitais manchadas. Verso com espaço em branco na coluna da direita com cerca de 20 a 25 cm. Desta abreviada delineação, verifica-se que o caderno eborense não sofreu o mesmo tipo de deterioração que os fólios desagregados. 3.5. Dimensões dos fólios No quadro que se segue, Quadro 2, incluo as medidas de diversos fólios, tendo tido, sobretudo, a preocupação de indicar a variabilidade de caderno para caderno. Tratando-se de um códice em pergaminho com fólios de tratamento desigual, parece-me útil mostrar as flutuações nos diferentes lugares do manuscrito. É uma indicação proveitosa que, associada a outras, poderá consentir uma apreciação acerca da aptidão profissional do local onde foi executado o Cancioneiro da Ajuda132. Insere-se em um grande formato definindo-se mesmo como um dos maiores cancioneiros no conjunto da tradição cancioneiril europeia133. 132 As medidas realizadas não oferecem um resultado absoluto por ser extremamente delicado realizar uma medição na pele que se apresenta, inúmeras vezes, vincada ou enrugada. 133 Os cancioneiros provençais em formato menor apresentam, além disso, uma disposição textual muito mais compacta. A título de exemplo, veja-se o importante Cancioneiro provençal H (Vat. Lat. 3207) com 216 x 152 (Careri 1990). A comparação com manuscritos franceses do século XIII revela a extraordinária dimensão deste Cancioneiro. O maior formato incluído no Album de manuscrits français du XIIIe siècle. Mise en page et mise en texte mostra o n°. 31 com 38,2 x 27, 8 cm (Careri et al. 2001). Cf. também as dimensões do Cancioneiro provençal R (BnF 22543) com 434 x 307 mm (Brunel-Lobrichon 1991: 246). 125 Capítulo 3. Descrição do suporte material Quadro 2 – Medidas dos fólios fl./ p. cad. I cad. II cad. III cad. IV cad. V cad. VI cad. VII cad. VIIa cad. VIII cad. IX cad. X cad. XI cad. XIa cad. XII XIII cad. cad. XIV cad. XIVa 1/79 3/83 8/92 10/96 15/107 17/111 20/117 22/121 26/129 28/133 33/143 35/147 41/159 43/163 40/157 47/171 49/175 55/187 57/191 62/201 65/207 68/213 70/216 74/225 75/227 77/231 79/235 81/239 85/247 [88]/[251] [88a]/[251a] Alturas na lombada 435 437 435 435 436 430 437 434 435 437 438 436 435 435 435 438 439 440 439 436 438 439 438 431 442 437 441 441 437 435 431 Larguras na goteira 440 436 437 436 437 432 443 438 440 440 438 439 437 438 443 435 443 440 442 436 437 437 438 440 442 436 438 437 442 432 405 126 na cabeça 343 342 338 341 347 344 351 345 348 347 344 346 346 344 332 344 351 342 343 343 343 346 345 334 352 344 346 344 349 322 281 no pé 347 342 343 342 345 343 346 343 346 347 345 344 344 342 328 345 347 344 342 343 342 345 343 335 345 345 346 345 342 316 330 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 4. Disposição do suporte material 4.1. Disposição do pergaminho Ainda que não seja possível, em um plano unicamente conceptual, definir o Cancioneiro da Ajuda, no seu estado efectivo, como uma unidade codicológica, podemos reconhecer na associação de cadernos que subsistiu uma ideia de projecto que aspiraria a uma concreta unidade material134. Esta noção é particularmente útil neste caso, na medida em que o manuscrito se revela como um travail en cours, por não ter sido concluído e por não ter recebido encadernação no momento em que foi suspenso. As pastas, ou melhor, as tábuas que hoje o protegem provêm de um momento bem posterior e, muito provavelmente, não lhe eram destinadas especificamente135. A colocação do pergaminho não satisfaz, em todo o códice, a um ordenamento que respeite a conhecida Lei de Gregory, segundo a qual a sequência dos fólios de um códice deve pôr em contacto duas faces do lado da carne, seguidas de duas faces do lado do pêlo, e assim sucessivamente136. Isto não se verifica regularmente nem na sequência dos fólios, nem na dos cadernos, como se verifica no Quadro I-Anexo137. As dimensões do códice ajudense oferecem uma disposição prática em bifólio, ainda que de tratamento artesanal, que se insere em um hábito comum para códices de grande volume, como é o caso deste, prefigurando um livro que não é para consulta manual, mas para colocar 134 O termo códice refere-se, em princípio, ao aspecto estrutural do livro que é formado por bifólios e por fólios reunidos em um ou vários cadernos. Esta concepção não abrange necessariamente a encadernação, o que quer dizer que um conjunto de cadernos cosidos pode ser já considerado um códice. São vários os exemplos em bibliotecas medievais de vários volumes desprovidos de encadernação (Frioli 1997; Vezin 1997; Munk Olsen 1998). 135 Caracterização, mais particularizada a este respeito, encontra-se no capítulo dedicado à Encadernação. 136 O ensaio de René C. Gregory relativo à composição dos cadernos de manuscritos gregos foi lida em uma comunicação apresentada à Académie des Inscriptions et Belles-Lettres de Paris a 7 de Agosto de 1885. 137 Foi Gregory quem primeiro chamou a atenção para este facto na colocação do pergaminho não só no interior de cada caderno, mas também na sequência de um caderno para outro. Este aspecto, se pode ser visto como uma preocupação de natureza estética, é também importante para a determinação de processos de trabalho no interior de um scriptorium (período ou centro cultural). Há casos em que o hábito é posicionar o lado da carne no rosto do fólio e na abertura do caderno, e outros casos em que a tendência é exactamente oposta, sendo escolhido a face da carne para o rosto do fólio e para o começo do caderno. Parece ser mais frequente o lado da carne na parte exterior do caderno, uma espécie de optimização das condições de trabalho, por meio de uma técnica relativa à imposição com a conhecida hipótese da dobragem in-quarto. Mas hoje conhecem-se casos de outros tipos de dobragem que não se integram no princípio do estudioso belga, como a forma in-sexto para códices de dimensões mais reduzidas (Gilissen 1972; 1977, acompanhado de algumas revisões nos estudos de Bozzolo e Ornato 1980; Palma 1988). 127 Capítulo 4. Disposição do suporte material em um suporte, uma estante de leitura. Também aqui, um estudo de codicologia comparativa impor-se-ia em âmbito ibérico, de modo a podermos explicar, eventualmente, as soluções funcionais que podem ter sido desenvolvidas na colocação do pergaminho. Estaremos perante irregularidades à lei de Gregory ou, pelo contrário, o aparecimento de disposições mistas poderá ter uma justificação operativa cujo motivo ainda nos escapa. 4.2. Agrupamento dos fólios Os fólios estão agrupados de modo heterogéneo em catorze cadernos, mais precisamente quatérnios, térnios, mesmo se, em alguns casos, seja possível reconstituir estruturas quínias. A inexistência de uma numeração primitiva torna impossível e inadequada qualquer tentativa de recomposição da estrutura primitiva. Observam-se várias lacunas materiais (totais ou parciais) com resíduos de fólios cortados, que devem corresponder, parte das vezes, ao interesse manifestado pela presença de miniatura, por fólios em branco ou ainda por bastante pergaminho disponível. Não é, no entanto, de excluir o puro acidente, que talvez se relacione com o aspecto inacabado do Cancioneiro e com a provável ausência de encadernação de primeira origem. A sequência actual, que inclui os onze fólios encontrados em Évora, está conforme a organização visionada por C. Michaëlis. Aliás, a sua descrição dos cadernos perfaz quase sempre a regularidade de quatérnios, introduzindo, conjecturalmente, lacunas totais ou parciais a fim de obter homogeneidade codicológica138. Como vamos observar, outros tipos de estrutura, como os cadernos em composição ternária não devem ser fruto de um arbítrio artesanal, mas consequência de uma organização na dependência do material que lhes estava destinado, o que quer dizer, que nos vamos encontrar, algumas vezes, perante critérios funcionais correlativos ao material. O manuscrito da Ajuda, como será possível também verificar, não se distingue por uma propensão constante nos códices deste época, uma disposição parcimoniosa do material, que facultasse sobriedade na utilização do pergaminho, a fim de, solidamente, o rentabilizar. Se há casos em que só deparamos com espaços vagos nos cadernos finais, até pela indolência que já não deveria modificar um caderno antecipadamente constituído, o pergaminho disponível no Cancioneiro da Ajuda (em algumas circunstâncias, mesmo abundantemente disponível) 138 É, de facto, a estrutura clássica quaternária que se encontra, a maior parte das vezes, em vários tipos de manuscritos, mesmo se outras composições (quínias, por exemplo) não deixem de aparecer em objectos deste tipo; os térnios, embora ocorram também em alguns mss., são formatos muito mais raros A organização fascicular pode estar associada também a uma área geográfica ou encontrar-se dependente de cacaraterísticas específicas de um local de produção, como os quínios que são frequentes em ambiente italiano nos mss. jurídicos e, mesmo depois, nos códices humanistas. Só mais tarde, se expandem na Europa ocidental (continental e insular) outros modelos de maior estrutura, em seis, em oito ou em dez bifólios. Estas diferenças podem estar também relacionadas como o tipo de animal que era utilizado que poderia, naturalmente, condicionar o formato e a construção codicológica (Gumbert 1993; Busonero 1999; Irigoin 1998; Sirat 1998; Vezin 1998). 128 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita encontra-se praticamente já do caderno III em diante139. É possível, poratanto, assegurar, que o empreendimento deste projecto não esteve condicionado por uma qualquer penúria de pergaminho. Um cancioneiro ideal para C. Michaëlis não podia apresentar-se como um cancioneiro inacabado, nem como um cancioneiro destroçado. Tratando-se visivelmente de um Cancioneiro inconcluído (textos incompletos, decoração interrompida, fólios em branco, espaços para estrofes, etc.), destroçado (fólios perdidos, arrancados, etc.), C. Michaëlis vai procurar conceder-nos o projecto inicial, não só na reconstituição do que seria realmente lacunar (reconstituição evidente através de uma deficiência física observável nos textos mutilados, na falta de estrofes ou nos versos incompletos, etc.), mas vai sobretudo oferecer-nos uma espécie de espelho que reflecte o plano traçado pelo coleccionador ou pelo responsável pela compilação. Quer dizer que a sua recomposição não contemplará apenas o texto lacunar (naturalmente por aquilo que denomino de conjectura de proximidade com fundamento nos outros testemunhos), mas vai igualmente conferir-nos a suposição, que poderíamos designar de conjectura à distância, facultando-nos, deste modo, a inclusão de textos que podem, paradoxalmente, ter estado realmente ausentes do projecto inicial. É o sector mais delicado desta metodologia: a importantíssima oposição que será imprescindível efectuar entre texto, realmente lacunar, deveras amputado em versos ou estrofes, e texto ausente que pode nunca ter comparecido tão-pouco no esboço inicial. E não me refiro, sequer, aos casos que, hoje, conhecemos melhor como textos suspeitos, pela cronologia ou por uma complexa atribuição, resultante de acrescentos posteriores no decorrer do enriquecimento ou da deterioração da tradição140. Menciono, pelo contrário, inclusões de ciclos de trovadores que perfariam a homogeneidade fascicular, inserções textuais que, com alguma segurança, podemos dizer que não deveriam ter estado presentes no códice da Ajuda141. C. Michaëlis ao 139 Uma das características específicas deste códice é, justamente, a concepção distributiva, quanto a vários tipos de espaços deixados em branco pelo responsável da compilação. Esta particularidade que tive já aoportunidade de pôr em evidência (Ramos 1986) será descrita no capítulo referente aos diferentes tipos de espaço presentes no ms. 140 Podíamos citar boa parte das cantigas que preenchem a primeira lacuna mas, aqui, talvez seja suficiente recordar apenas a inclusão dos designados cinco Lais de Bretanha que comparecem em B no fl. 10r-fl.11v e no ms. Vat. lat. 7182 (Ferrari 1979: 61; 1993: 374-378; Gonçalves 1976: 54-55) e que não deviam, naturalmente, ter feito parte, por diversos motivos (estrutura, tema, situação material em B, etc.) do projecto que hoje conjecturamos como Cancioneiro da Ajuda. 141 O corpus amoroso de AyMnz, limitado a duas cantigas de amor presentes em B (B 6 e B 7), não deixa de nos interrogar quanto à sua presença eventual no projecto de A, quando sabemos que os actuais cadernos iniciais deste cancioneiro contêm séries de trovadores com número de textos muito mais elevado. Os pequenos ciclos comparecerão em outros sectores do manuscrito. Esta reflexão aplica-se igualmente ao trovador seguinte, presente em B, DieMnz, também com duas cantigas, B 8, B 8bis, embora, neste caso, seja previsível a existência de uma situação lacunar em B. C. Michaëlis admitiu também que este trovador integrasse a primeira parte perdida do Cancioneiro da Ajuda. A situação também não é muito diferente em MonFdzMir com duas composições, B 44 e B 45. Um exame minucioso desta 129 Capítulo 4. Disposição do suporte material reconstituir a pré-história do fragmento, acabará, assim, por nos dar uma consistência ao arquétipo que nem sempre é perceptível de acordo até com a própria organização do Cancioneiro da Ajuda. Mais, C. Michaëlis vai transformar o códice da Ajuda naquilo que, hoje, poderíamos considerar como uma unidade codicológica, identidade que provavelmente aquele códice nunca desfrutou, revelando-o como uma autêntica unidade textual. Isto é, para auferir desta unidade textual, C. Michaëlis, apoia-se na situação lacunar para restabelecer conjuntamente uma unidade material do códice142. É curioso observar como vai proceder à descrição dos cadernos. Mesmo neste esquema material, podíamos dizer que adopta quase um critério lachmanniano, conferindo uma constituição de cadernos uniforme e solidária, uma estrutura ideal, portanto. Desta concepção resultará uma organização relativamente homogénea com quaternos praticamente em todo o códice, se ressalvarmos apenas o caderno X [MenRdzTen, JGarGlh, EstFai, JVqzTal, PayGmzCha] e o caderno XIV [VaRdzCal, MartMo, RoyFdz], aos quais concede uma estrutura quínia (1904, II: 149-150), como se pode observar na Figura 1. Pasta anterior Pasta posterior I caderno — quaterno VIII caderno —quaterno II caderno — quaterno IX caderno—quaterno III caderno —quaterno X caderno —quínio IV caderno—quaterno XI caderno —quaterno V caderno— quaterno XII caderno —quaterno VI caderno —quaterno XIII caderno —quaterno VII caderno —quaterno XIV caderno —quínio Figura 1 – Códice segundo C. Michaëlis Subsistem, todavia, numerosos problemas conexos à organização: a identificação dos autores das cantigas transmitidas unicamente pelo códice da Ajuda, sem correspondência nos outros manuscritos, um fólio solto, o fl. 46, com colocação desacertada, um fólio colado à tábua integração sistemática de cantigas de amor presentes em B, mostrará que, em vários casos, à luz do que conhecemos relativamente à constituição do corpus, a inclusão de algumas cantigas como projecto de preenchimento de A não parece justificável. 142 C. Michaëlis intui a existência de uma situação ordenada, embora incompleta, conjecturando o aspecto estrutural do livro através de uma associação adequada dos fólios, apoiada no cotejo com os outros cancioneiros. 130 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita da encadernação, fl. 88, um outro como fólio de guarda, fl. 74, um caderno, o VII, com coerência estrutural, originário de Évora e diferenças organizativas no interior das séries em confronto com a tradição posterior, para nem sequer aludirmos à irregularidade da colocação da pele em alguns lugares, como vamos observar pela descrição individualizada de cada um dos cadernos. A ordenação dos cadernos que aqui apresento e que constitui actualmente o Cancioneiro da Ajuda resulta do último restauro a que foi submetido o códice143. Mesmo a descrição esquemática, inserida no final do fascículo que acompanha a edição fac-similada, não corresponde já ao novo estado físico do Cancioneiro que se baseava no primeiro ordenamento realizado sob a responsabilidade de C. Michaëlis que tinha visto o volume «retalhado em seis parcellas» (1904, II: 145). Não só tinha integrado nos lugares que considerou ajustados, os fólios e o caderno procedentes de Évora, como examinou fólios soltos que pareciam ser sobras de antigos cadernos extraviados144. A exposição dos cadernos corresponde a um empreendimento ideal que procura restaurar o estado inicial do Cancioneiro, completando as incertas omissões que lhe pareciam indispensáveis, através da análise comparativa com os outros Cancioneiros145. Não só a inexistência de uma numeração primitiva, como a ausência de assinaturas ou reclamos, torna praticamente impossível a recomposição acertada de um estádio contíguo à primeira estrutura146. O exame das lacunas totais ou parciais, previsto por C. Michaëlis, em colação com os cancioneiros italianos é ainda visível através de notas manuscritas a lápis nos finais do verso dos respectivos fólios, que devem ser atribuíveis à filóloga, ou pelo menos, a uma mão contemporânea do levantamento das lacunas instituídas por C. Michaëlis. Os esquemas que, de seguida, apresento correspondem apenas à situação actual e só quando me parece, materialmente possível, referirei a conjectura referente às lacunas. Distingo, por isso, entre lacuna que legitima material ausente, especificando sempre se essa lacuna física 143 Notícia do restauro em Newsletter. Fundação Calouste Gulbenkian, n°. 24, Novembro-Dezembro de 1999: 3. Cf. também Nascimento (s.d.). 144 O índice do cancioneiro, a foliação, paginação e incipit das cantigas, assim como os esquemas dos cadernos encerram o pequeno fascículo de estudos que acompanha a edição fac-similada (1994: [61] [70]). 145 Esta atitude pressupõe que considera o Cancioneiro como uma parcela que subiste de um estádio conjecturável de um momento completo e concluído. No entanto, se não considerarmos (o que me parece mais plausível) o Cancioneiro como um fragmento de algo completo que se deteriou, mas como um projecto inacabado, este tipo de reconstituição é menos plausível, pelo menos, em todos os sectores do Cancioneiro. 146 Existem apenas dois cadernos com numeração primitiva, o caderno VI com a numeração X°J e o caderno X com a numeração X°IIII. «Ambas deviam ser nossos guias na apreciação das lacunas e coordenação dos cadernos, mas infelizmente não são guias de absoluta confiança» (Michaëlis 1904: II, 150, §134); por meu lado, mais do que reconstituir estádios passados, constato a regularidade daqueles cadernos com numeração no início e no final, o que excluirá sobretudo a não inclusão, nestes casos, de fólios soltos (Ramos 1985). 131 Capítulo 4. Disposição do suporte material corresponde ou não a lacuna de textos. Entre estas lacunas materiais e ausências textuais, é mais a inexistência de textos do que a ausência de trovadores que é passível de admitir reconstituição. Quer dizer que nos encontramos perante uma descrição que regista o acidente material, mas não vai mais longe na incerteza de inclusão autêntica de certos textos no Cancioneiro da Ajuda147. Limitando-me à conjectura de proximidade e não à conjectura à distância, não me pronunciarei sobre a eventualidade da presença de outros trovadores que poderiam hipoteticamente ter estado presente neste Cancioneiro. Como vamos notar pela descrição dos cadernos que subsistiram, apresento, em primeiro lugar, o esquema da situação actual e, logo de seguida, incluo uma proposta de configuração primitiva. Quanto a esta, é necessário insistir no facto de que me confino quase unicamente às lacunas textuais perceptíveis, não prevendo largas previsões de cadernos perdidos, de textos talvez incluídos, ou de autores admissíveis na concepção da compilação. O paralelismo com os cancioneiros posteriores está longe de ser absoluto entre textos ausentes e textos desaparecidos materialmente. Resigno-me, portanto, a este exame resultante apenas dos cadernos que chegaram até nós148. O códice pode actualmente ser representado pelo esquema seguinte que ilustra a diferença entre a descrição de C. Michaëlis e a situação actual (Figura 2). Pasta anterior Pasta posterior I caderno — quaterno II caderno — quaterno III caderno — terno IV caderno—quaterno V caderno— quaterno VI caderno —quaterno VII caderno —terno VIIa caderno —um fólio VIII caderno —quaterno IX caderno—terno X caderno —quaterno XI caderno —quaterno XIa caderno —um fólio XII caderno —terno XIII caderno —terno XIV caderno —quaterno XIVa caderno— um fólio Figura 2 – Actual composição do códice 147 A reconstituição de lacunas materiais e textuais é, na maior parte das vezes, possível graças ao cotejo com os cancioneiros italianos (Colocci-Brancuti, sigla B; Cancioneiro da Vaticana, sigla V), além da inestimável Tavola Colocciana (sigla C). 148 Referi-me explicitamente a esta distinção entre os dois tipos de conjectura, a conjectura a distância e a conjectura de proximidade, assim como ao projecto de C. Michaëlis na reconstituição de um Cancioneiro ideal na comunicação apresentada em Santiago de Compostela na comemoração do centenário da edição do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 2004). 132 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 4.3. Descrição da estrutura dos cadernos Indico a representação esquemática dos cadernos, utilizando a foliação do Cancioneiro, que é usada por C. Michaëlis (1904), mas acrescento, em geral, a paginação usada por Carter (1941). Considero as carcelas modernas apensadas pelo recente restauro e assinalo as pestanas sobreviventes de fólios perdidos. Deste modo, aponto também as lacunas materiais que afectam textos e espaços no pergaminho que, tanto quanto podemos supor, não conteriam provavelmente texto. Ainda que o Cancioneiro da Ajuda não faculte indicações atributivas, assinalo a distribuição dos trovadores, indicando as características materiais da inclusão das cantigas neste Cancioneiro. Procuro ter sempre presente a distinção entre lacuna, materialmente documentável (texto interrompido/texto incompleto), o que permite reconstituir um estádio imediatamente anterior (naturalmente por aquilo que denomino de conjectura de proximidade com fundamento, por certo, nos outros testemunhos), mas não recorro à suposição que vai mais longe, na conjectura à distância, que poderia talvez facultar inclusão de textos que podem, paradoxalmente, ter estado realmente ausentes do projecto inicial. Afasto-me, deste modo, da metodologia subjacente ao trabalho exegético de C. Michaëlis, que procurou sempre uma reconstituição estável e completa quanto à estrutura do seu arquétipo. É por isso que me confino a esta importantíssima oposição que será imprescindível efectuar entre texto, realmente lacunar, deveras amputado em versos ou estrofes, e texto ausente que pode nunca ter existido149. Na minha descrição dos cadernos, tentarei esclarecer e explicar alguns aspectos significativos, partindo sempre da disposição textual e dos critérios organizativos, resultantes da observação material de cada caderno. Mesmo se a tradição lírica galego-portuguesa é muito mais reduzida do que as tradições galo-românicas, este tipo de análise é devedor, em parte, do exímio ensaio de G. Gröber, Die Liedersammlungen der Troubadours (1885-1887), reexaminado pelo estudo de Avalle sobre a tradição manuscrita da literatura occitânica (1961), revisto este último por Leonardi (1993), sem omitir as suas outras numerosas contribuições sobre o fenómeno textual inscrito em cancioneiros, algumas delas recentemente republicadas (2002). O estudo dos cancioneiros fundamentava-se na sucessão de autores e na sequência de textos; os problemas atributivos eram analisados através da presença ou da ausência de uma composição da tradição, sem que houvesse uma preocupação paleográfica ou codicológica inerente a cada uma das recolhas. No âmbito da lírica galego-portuguesa, a análise do Cancioneiro Colocci-Brancuti por A. Ferrari permitiu a reconstituição dos estádios de cópia que por sua vez esclareceram momentos determinantes da maior parte da tradição textual (Ferrari 149 Caracterizei já este procedimento editorial subjacente à confecção do Cancioneiro da Ajuda, ao procurar exemplificar justamente esta indistinção operada na edição de C. Michaëlis (Ramos 2004). 133 Capítulo 4. Disposição do suporte material 1979). Mas também a edição da Tavola Colocciana observada também na sua materialidade contribuirá para um melhor juízo na análise prévia à crítica textual, como tem demonstrado E. Gonçalves nos seus estudos (1976, 1983, 1993, 1995)150. Ora, no caso do Cancioneiro da Ajuda, não se tratando de um cancioneiro contínuo, as hipóteses de reconstrução da estrutura neste capítulo seguem a sucessão de autores, a sequência de textos e servirão para a definição de uma macroestrutura que, associada a outros elementos, procurará caracterizar o processo genético do objecto151. Caderno I 1 2 3 […] 1 2 4 5 6 7 Primitivo caderno I [*] 3 [*] 4 150 5 6 7 [*] A este propósito, é fundamental a síntese retrospectiva e perspectiva do estudo dos cancioneiros provençais, apresentada por A. Roncaglia na abertura do Colóquio dedicado à Lyrique Romane Médiéval: la tradition des chansonniers realizado em Liège em 1991 (Roncaglia 1991) que, retomando as suas opiniões sobre a crítica textual (1974-1975, 1978), insistia na importância da análise codicológica, sobretudo em uma tradição antológica como a que nos é transmitida por cancioneiros. 151 No final da primeira parte deste estudo, exporei em conjunto as hipóteses que permitem uma reflexão acerca da articulação dos materiais originários e da consistência da(s) fonte(s) utilizadas pelo responsável do projecto. 134 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Este primeiro caderno corresponde a um quatérnio incompleto (três bifólios e um fólio com carcela), que coincide com o estado material descrito por Michaëlis (1904, II: 147). Apresenta uma lacuna inicial precedente ao fl. 1/p. 79 (recorde-se que A 1/B 91, [Deus meu senhor se uus prou] guer uos me tollede este poder. que eu é uma composição mutila) que B 91 atribui a VaFdzSend152. O início da deficiência deveria, pelo menos, abranger os textos iniciais do ciclo deste trovador. Esta lacuna textual só se materializa conjecturalmente por não subsistir, hoje, neste caderno, qualquer vestígio de um outro bifólio que lhe pertencesse. No entanto, a paralela omissão textual no final do caderno, no fl. 7v/p. 92, na composição A 30/B 123, Qven bõa dona gran ben q’r, atribuída a JSrzSom, de que nos subsiste apenas a primeira estrofe, impele a prognosticar a existência daquele bifólio que conteria, por um lado no início, parte das cantigas de VaFdzSend e, ao mesmo tempo, no final, o epílogo do ciclo de JSrzSom. Esta hipótese não permite, todavia, pensar que as doze cantigas, atribuídas em B a VaFdzSend, se encontrassem unicamente neste fólio153. Seriam necessários, avaliando a «mise en texte» do Cancioneiro da Ajuda, cerca de três fólios para aquele número de textos. Isto denotaria que, além de textos deste trovador neste bifólio, estariam alguns outros em um outro caderno anterior perdido. Sem propor qualquer reconstituição relativa a estes cadernos iniciais desaparecidos, poderíamos assim, quanto a este actual I caderno, pressupor uma estrutura quínia inicial154. Assim, os ciclos apresentar-se-iam do seguinte modo: 152 Todas as atribuições que, daqui em diante, serão referidas provêm das rubricas atributivas que, contrariamente a A, foram incluídas nos cancioneiros B/V. Adopto as siglas conhecidas para a designação dos trovadores, retiradas do Repertorio Metrico de Tavani (1967). Deste índice reproduzo também o incipit das cantigas. As numerações relativas aos textos seguem o uso habitual nos mss. A, B, V e C e são acompanhadas pelas referências editoriais Michaëlis (1904), Carter (1941) e, eventualmente, pelas de Brea et al. (1996). Quando os autores inseridos neste Cancioneiro possuem já edição crítica autónoma, indico-a igualmente. 153 C. Michaëlis conjecturava a «falta um caderno, pelo-menos; e talvez mais» (Michaëlis 1904, I: 1; II, 147) e ainda, em outro lugar, «faltam-lhe, a meu ver, as primeiras 32 folhas, ou quatro cadernos, com as 92 poesias que se acham inventariadas a principio da Tavola Colocciana (Michaëlis 1904; II 135, n. 2). A persuasão de que estes textos deviam ter figurado em A, fá-la incluir as doze cantigas de amor de VaFdzSend que se encontram em B, na Secção 1a do Appendice, de acordo com o preenchimento das lacunas preconizado por C. Michaëlis (doze textos, A 363 a A 372, atribuídos a VaFdzSend; e três textos, A 375 a A 377, de JSrzSom) (Michaëlis 1904, I: 715-742). Nos parágrafos dedicados à numeração primitiva a que C. Michaëlis designa de Marcas de registo admite a eventualidade de faltarem cinco cadernos, mas o confronto com os cancioneiros italianos levavam-na a calcular que a lacuna inicial abrangesse quatro cadernos. Insiste ainda neste número: «...teria enchido os quatro cadernos do CA, a meu ver, desgastados antes de 1500...» (1904, II: 150-151; 201). Hoje com o exame de A. Resende de Oliveira, alguns dos autores presentes em B não figurariam neste lugar. É o caso de FerFigLem, AyMnz, DieMnz, por exemplo (1994: 129). 154 Apesar das várias propostas plausíveis quanto aos Autores que deviam ter figurado nestes primeiros cadernos de A, prefiro não apresentar reconstituições totais dos possíveis cadernos iniciais porque, mesmo concretizando cálculos em números de textos e em nomes de trovadores, me parece aleatório reconstituir um largo sector, com base unicamente nos cancioneiros italianos. 135 Capítulo 4. Disposição do suporte material [VaFdzSend] [...]/B 79 [VaFdzSend] / C 79 [VaFdzSend] [...]/B 80 [...]/B 81 [...]/B 82 [...]/B 83 [...]/B 84 [...]/B 85 [...]/B 86 [...]/B 87 [...]/B 88 [...]/B 89 [...]/B 90 A 1/B 91 [incompleto em A o início da 1a estrofe] A 2/B 92 A 3/B 93 A 4/B 94 A 5/B 95 A 6/B 96 A 7/B 97 A 8/B 98 A 9/B 99 A 10/B 100 A 11/B 101 A 12/B 102 A 13/B 103 [incompleta em A a parte final por lacuna] A lacuna assinalada no interior do caderno (da qual subsiste um fólio restaurado com carcela com cerca de 3,5 cm) deveria equivaler à conclusão do ciclo de VaFdzSend com o final da cantiga A 13/B 103, PAr d’s sennor sei eu muí ben no fl. 3v/p. 84 que, no estado actual, contem apenas os onze primeiros versos. É bem possível que o fólio perdido compreendesse o final daquela composição e podemos mesmo conjecturar a presença de outras cantigas de amor, ou então a permanência do resto do fólio em branco, antes do início do novo ciclo de JSrzSom com miniatura no rosto do actual fl. 4/p.85, tal como vai suceder, várias vezes, ao longo do códice. A lacuna material em A no interior do caderno poderia, assim, reconstituir-se só com o 136 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita final daquela cantiga. Todo o resto teria ficado em branco, se assim interpretamos o início do ciclo seguinte de JSrzSom com miniatura só no fólio seguinte155: [VaFdzSend] A 13/B 103 [conclusão] A situação em B não nos pode auxiliar muito, visto que o ciclo de VaFdzSend, neste local, se conclui justamente com a mesma cantiga A 13 / B 103, PAr d’s sennor sei eu muí ben no fl. 27 deste último cancioneiro. No entanto, as cantigas que aí se seguem, atribuídas a JSrzSom, B 104, Ogan’en Muymenta (escarnho), B 105, Ay eu coytad’, em que coyta mortal (amor) e B 106, Hũa donzela quig’eu muy gran ben (amor), não condizem com o início do ciclo deste trovador em A, apesar da numeração concordante entre B e C. [JSrzSom] [...]/B 104 [JSrzSom] /C 104 [JSrzSom] [...]/B 105 [...]/B 106 A 14/B 107 [miniatura] A 15/B 108 A 16/B 109 A 17/B 110 A 18/B 111 A 19/B 112 A 20/B 113 A 21/B 114 A 22/B 115 A 23/B 116 A 24/B 117 A 25/B 118 A 26/B 119 A 27/B 120 A 28/B 121 155 Não me parece necessário imaginar um preenchimento deste fólio com a presença de dois ou três textos de VaFdzSend que não tenham chegado a ser transmitidas por B. Há casos no Cancioneiro em que temos escasso número de textos transcrito em um fólio completo. 137 Capítulo 4. Disposição do suporte material A 29/B 122 A 30/B 123 [incompleta em A a parte final por lacuna] E aqui observamos logo, neste I caderno, uma primeira disparidade na ordenação dos textos de JSrzSom entre A e B. Se excluirmos a primeira cantiga, B 104, que não se incluiria, talvez, em A por pertencer a outro género (escarnho pessoal), a atribuição das duas outras, B 105 e B 106, deve ser examinada à luz de A que inicia o ciclo de JSrzSom com outra cantiga A 14/B 107, Qvero uus eu ora rogar, precedida de miniatura, que só pode ser significativa de abertura de ciclo. Tendo presente a concepção deste sector do Cancioneiro da Ajuda, estas duas cantigas de amor poderiam mesmo pertencer ao autor precedente, VaFdzSend, quer dizer que podiam surgir no final do ciclo deste poeta. Mas se incumbem, de facto, a JSrzSom, como parece indicar a sucessão em B e a numeração colocciana, teriam estado em outro posicionamento no modelo de B, consolidado por uma deslocação de material apontada pela presença da cantiga de escarnho, comparativamente ao modelo de A156. Este fl. 4/p. 85 que inicia o ciclo de JSrzSom, resultante de um primitivo bifólio, inserido hoje com uma carcela moderna pelo recente restauro, que permaneceu aliás em Évora durante algum tempo, encontra-se com a pele bastante clara, ou por ter estado exposto longamente à luz pelo acidente material sofrido, ou por ser procedente de pele que comportou outro tratamento157. Esta perturbação explica que a passagem do fl. 3v ao fl. 4r é interrompida pela sequência normal pêlo/pêlo para pêlo/carne. A lacuna final em A, como observamos acima, incluiria a conclusão da cantiga A 30 (as últimas sílabas da primeira estrofe e as três últimas) e talvez as cantigas que em B surgem no início do ciclo158. 156 A inserção desta cantiga de escarnho, atribuída a JSrzSom, é examinada por Resende de Oliveira como uma deslocação em secção não adequada à correcta posição de Autores. As divergências observadas entre os dois cancioneiros não elucidam a sequência total da colocação da obra de Somesso (Oliveira 1994:89-93). Por meu lado, admito que o problema relativo à ordem das cantigas denuncie já, logo neste actual primeiro caderno de A, uma situação de cópia que revela perturbação e ausência de concordância inter-manuscritos com estes dois ciclos que deviam circular de modo anexo. Melhor definição atributiva virá do exame textual no âmbito da edição crítica das cantigas destes dois trovadores, mas virá também da análise do enriquecimento, da mudança e da deterioração da tradição após a compilação de A. Admite também C. Michaëlis a eventualidade da cópia de outros textos no fólio perdido e que estes textos pudessem pertencer a VaFdzSend, considerando como erro as atribuições de B e C (Michaëlis 1904, I: 30). O Apêndice II, «Cancioneiros e producción perdida na lírica profana galegoportuguesa» de Ron Fernández, inserido na edição conjunta da produção lírica, reproduz igualmente estas propostas de C. Michaëlis e Resende de Oliveira (LPGP 1996, II: 1004). 157 Se esta segunda hipótese é presumível, o diferente tratamento da pele dá-nos uma indicação inestimável acerca do ambiente que preparou este tipo de códice com material aparentemente irregular. 158 Vamos encontrar, algumas vezes, situações paralelas a esta. Um conjunto de textos, ou uma cantiga que em A deveria concluir o ciclo ou se encontrar no fim da série, vai surgir em B na abertura da obra do trovador. Este tipo de deslocação pode permitir não só avaliar o estado da tradição prévio às compilações, como conjecturar então que este tipo de mudança provém de uma alteração textual posterior e não de uma 138 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [VaFdzSend] [lacuna] fl. 1/p. 79 A 1/B 91, [Deus meu senhor se uus prou] guer uos me tollede este poder. que eu fl. 1/p. 79 A 2/B 92, SEnnor fremosa grand en ue fl. 1v/p. 80 A 3/B 93, SEnnor fremosa par deus gñ fl. 1v/p. 80 A 4/B 94, Qven oge maỹor cuita ten da/ fl. 2/p. 81 A 5/B 95, OMe que gran ben quer moller. fl. 2/p. 81 A 6/B 96, COmo uos sodes. mia sennor muí fl. 2/p. 81 A 7/B 97, UOs que miassi cuitades mía fl. 2v/p. 82 A 8/B 98, SE deus me ualla mia sennor fl. 2v/p. 82 A 9/B 99, SE cuita grande ẹ depesar non a fl. 3/p. 83 A 10/B 100, QVe sen consello que uus mía fl. 3/p. 83 A 11/B 101, Tanto me sençora ia cuitado que fl. 3v/p. 84 A 12/B 102, Qvero uus eu sennor gran ben fl. 3v/p. 84 A 13/B 103, PAr d’s sennor sei eu muí ben [texto incompleto/lacuna material, conclusão de A 13/ textos perdidos?] [JSrzSom] Miniatura fl. 4/ p. 85 A 14/B 107, Qvero uus eu ora rogar fl. 4/ p. 85 A 15/B 108, DE quanteu sempre deseiei de fl. 4v/ p. 86 A 16/B 109, Mvitas uezes en meu cuidar. fl. 4v/ p. 86 A 17/B 110, NOn me posseu sennor saluar fl. 5/ p. 87 A 18/B 111, AGora mei eu apartir. de mia sen/ fl. 5/ p. 87 A 19/B 112, Muitos dizen que pderan coita fl. 5/ p. 87 A 20/B 113, NOn tenneu que coitados son. fl. 5v/ p. 88 A 21/B 114, [P] vnnei eu muit en me guar fl. 5v/ p. 88 A 22/B 115, Ja meu sennor ouue sazon que pode fl. 6/ p. 89 A 23/B 116, [S] E eu a mia sennor ousasse fl. 6/ p. 89 A 24/B 117, SEnnor fremosa fuy buscar fl. 6v/ p. 90 A 25/B 118, Con uossa cuita mia sennor fl. 6v/ p. 90 A 26/B 119, Muito per deu agradeçer.se insuficiência lacunar em A. Veja-se a propósito desta composição a opinião de A. Resende de Oliveira sobre JSrzSom (2001). 139 Capítulo 4. Disposição do suporte material fl. 7 / p. 91 A 27/B 120, DEseiand eu uos mia sẽnor fl. 7 / p. 91 A 28/B 121, Ja foỹ sazon que eu cuidei. que me fl. 7v/ p. 92 A 29/B 122, BEno faria se nenbrar se fl. 7v/ p. 30 A 30/B 123, Qven bõa dona gran ben q’r [texto incompleto/lacuna material, conclusão de A 30 / textos perdidos?] Caderno II 8 9 […] 10 11 12 13 14 12 13 14 [*] Primitivo caderno II [*] 8 9 [*] 10 11 Encontramo-nos perante um quatérnio incompleto (três bifólios completos e um fólio com carcela) que coincide com o ordenamento observado por Michaëlis (1904, II: 147) com a correcta colocação do pergaminho, se excluirmos a interrupção com a lacuna correspondente ao fl. 12 em que a sequência carne/carne é interrompida para carne/pêlo. Uma primeira lacuna, no início do caderno, é facilmente reconstituível pelo facto de nos depararmos com uma conjuntura análoga ao caderno I, isto é, deveríamos possuir um bifólio completo que não só compreenderia as composições de início de ciclo de PaySrzTav, A 31/B 146, [Entend’eu senhor que faz mal 140 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita sen] folia que faç ỹ grand entendela ya no fl. 8/p.93, assim como a continuação, no final do caderno, da cantiga fragmentária em A, mas atribuída em B a MartSrz, A 61/B 151, PEro que punn en me guardar no fl.14v/p.106. Neste prévio bifólio perdido não é, contudo, possível imaginar no início só uma composição de PaySrzTav, como parece deixar subentender B. Deveria, portanto, conter a abertura do ciclo com miniatura e algumas outras composições, copiadas de tal modo que A 31/B 146 já se encontraria no rosto do actual fl. 8/p. 93 com a transcrição do final da primeira estrofe e das duas seguintes159. Não só a situação lacunar de B, como alguma não coincidência numerativa na lista colocciana permite examinar estes ciclos como uma série de textos com tradição diversificada entre a compilação de A e a da tradição italiana160. Repare-se sobretudo na sucessão das cantigas e na posição de A 61/B 151 no final do ciclo em B que tinham comparecido no início do ciclo em A e ainda no códice colocciano na presença de B 172, uma cantiga de escarnho associada ao ciclo amoroso161. [...]/B 140 [PVeTav] / C 140 [PVeTav] [...]/B 141 [...]/B 142 [...]/B 143 [...]/B 144 [tenção entre PaySrzTav e MartSrz] [...]/B 144 bis [cantiga de Alf X, Quen da guerra levou cavaleyros]162 [PaySrzTav] [...]/B 145 [PaySrzTav; amor] / C 145 [PaySrzTav] A 31/B 146 [incompleto o início da 1a estrofe por lacuna] A 32/B 147 159 Esta conjectura que impede logicamente apenas uma composição de PaySrzTav com miniatura, antes da actual A 31, obriga, ao mesmo tempo, à reconstituição de um estado de não coincidência textual entre A e B. O ciclo de PaySrzTav, independentemente das lacunas que os dois mss. apresentam, não dispunha da mesma ordem em qualquer um dos antecedentes. Mais uma vez, mesmo nesta parte inicial do códice, e como vimos com JSrzSom, teríamos um outro trovador [PaySrzTav] cujo ciclo textual não coincide, mesmo conjecturalmente, com a sequência de B. 160 As imprecisões na numeração colocciana são examinadas por D’Heur (1974: 30, n.111-112) e sobretudo por Gonçalves em comentário à série 140-141 que admite perturbação ordenativa na sequência textual (1976: 55-56). 161 Como se observou no ciclo de JSrzSom, a cantiga final de A, atribuída em B a MartSrz, comparece no início de ciclo neste último ms. Esta situação pode advir das modificações sofridas pelo ciclo de JSrzSom na compilação do século XIV. O início da transformação viria justamente da inclusão da cantiga de escarnho no conjunto da seccão amorosa (Oliveira 1994: 142-143). 162 A difícil organização fascicular deste sector em B é analisado por Ferrari que explica como se encontra copiada, neste lugar, a composição, embora riscada por Colocci, de Alf X (que será realmente transcrita no fl. 110v). Um erro que serve para explicitar o ordenamento de B e as dificuldades atributivas que daí advêm (Ferrari 1979: 101-102). 141 Capítulo 4. Disposição do suporte material A 33/B 148 A 34/B 149 A 35/B 150 A 36/[...] A 37/[...] A 38/[...] A 39/[...] [incompleta a parte final por espaço em A] [MartSrz] A 61/B 151 [MartSrz] / C 151 [MartSrz] A 40/B 152 [incompleto em A o início por lacuna] A 41/B 153 A 42/B 154 A 43/B 155 A 44/B 156 A 45/B 157 [mais uma estrofe em B] A 46/B 158 A 47/B 159 A 48/B 160 A 49/B 161 A 50/B 162 A 51/B 163 A 52/B 164 A 53/B 165 A 54/B 166 A 55/B 167 A 56/B 168bis A 57/ B 168 [incompleta nos dois ms., mas A prevê espaço] A 58/B 169 A 59/B 170 A 60/B 171 [espaço para mais uma estrofe em A; B apresenta oferece a estrofe complementar] A 61/B 151 / C 151 [MartSrz] [incompleta a parte final em A por lacuna] [...]/B 172 [escarnho] 142 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A lacuna tanto material como textual no interior do caderno, entre o fl. 9/p. 95 e o fl. 10/p. 97, hoje com carcela moderna devida ao novo restauro, de que nos subsiste o fl. 12/p. 101, é resultante de um primitivo bifólio. Não só o vestígio material da lacuna como a irregularidade da sequência carne/pêlo na passagem do fl. 9v para o fl 10r acentuam a fragilidade deste sector163. Este fl. 9v apresenta uma característica que só muito recentemente foi posta em evidência. De facto, ao lado do incipit, mais exactamente junto à inicial rubricada da cantiga A 39, atribuível a PaySrzTav, MEus ollos gran cuita damor, encontra-se uma indicação que quase poderíamos apelidar de rubrica atributiva, ainda que seja proveniente de uma revisão textual. De facto, S. Pedro leu p° da pont com um traço horizontal sobreposto a pont. Se fácil é reconhecer a identificação com o conhecido trovador Pero da Ponte, muito mais problemático é interpretar o indício atributivo, pois não encontramos nos textos, que nos foram transmitidos pelos cancioneiros, qualquer cantiga atribuível a PPon com um incipit próximo daquele, ou mesmo com uma estrofe ou verso que pudesse relacionar este fragmento entre a produção dos dois trovadores, PaySrzTav e PPon. S. Pedro inclina-se para a hipótese de que a cantiga tenha ficado incompleta pelo revisor se ter apercebido da sua incorrecta colocação164. No entanto, sabemos que ao longo do Cancioneiro ocorrem situações análogas em cantigas com uma única estrofe e com espaço previsível para ulterior conclusão, sem qualquer indicação deste tipo e não é possível ignorar outros textos que envolvem sérios problemas atributivos. Uma consulta às ocorrências de um incipit idêntico ou relacionável com esta cantiga, evidencia que os dois textos que comparecem neste Cancioneiro, iniciados por Meus ollos...circunscrevem-se unicamente a este ciclo (A 34/B 149, Meus ollos, quer-vus Deus fazer e A 39/[...], Meus ollos, gran cuita d'amor). Mas se é o termo <ollos>, <meus ollos> ou <ollos meus> que suscita a aproximação a uma composição de PPon não encontramos a ocorrência do vocábulo no corpus conhecido de PPon165. 163 C. Michaëlis ainda observou os vestígios do fólio desaparecido: «a folha 51 [=fl. 12] ainda ficou segura, porque da sua primeira metade, cortada ás tesouradas, deixaram subsistir as rebarbas» (Michaëlis 1904, II: 147). Cf. também a este propósito a edição de PaySrzTav (Vallín 1996). Hoje, é visível apenas a margem de restauro. 164 A decifração da rubrica foi apresentada na sua comunicação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (19042004) em Lisboa (2004). 165 Servi-me tanto das edição crítica da poesia de PPon (Panunzio 1991) como da base de dados referente à lírica galego-portuguesa: http://www.cirp.es/bdo/med/meddb.html. As formas <ollos> ou <olhos> comparecem em número elevado, mas só vamos encontrar <meus olhos> e <me9 olh9> em duas composições de amigo de PPon, uma no último verso de B 832/V 418, Vistes, madr', o que dizia e outra no v. 15 de B 836/V 422, Por Deus, amigu', e que será de mi. Nestas condições, parece difícil encontrar uma justificação evidente para esta indicação atributiva do revisor do Cancioneiro da Ajuda. 143 Capítulo 4. Disposição do suporte material Poderia provavelmente encerrar este fólio perdido, talvez com o rosto em branco seguido de espaço, ou então a conclusão do ciclo de PaySrzTav com outros textos, antes da abertura do ciclo de MartSrz166. O início da cantiga A 40/B 152 que proviria deste fólio perdido com a transcrição da primeira estrofe e dos três versos iniciais da segunda (dez versos na totalidade dos quais os primeiros sete teriam disposição espaçada para a previsão musical) não poderia ser a cantiga inaugural do ciclo de MartSrz, se calcularmos a presença da miniatura e os textos que lhe seguem. Significa esta situação que em A, o ciclo de MartSrz possuiu um conjunto de cantigas transcritas no fólio perdido (pelo menos quatro, se calculamos o rosto e o verso). Esta reconstituição torna-se, contudo, problemática devido à extensa lacuna em B, mas é seguro que a actual A 40/B 152 não pode ser inicial de ciclo, nem sequer das primeiras cantigas a ter sido copiada em A na sequência atribuída a MartSrz. O final do caderno com A 61/B 151 deixa-nos apenas os sete primeiros versos da cantiga encontrando-se o último apenas com as primeiras sílabas. A conclusão desta composição prosseguiria no fólio desaparecido que deveria conter talvez só o final deste texto com as três estrofes. E não se afigura que a cantiga B 172 (escarnho) estivesse presente em A, apesar do espaço que deveria dispor o fólio desaparecido167. Tal como na estrutura do caderno precedente poderíamos ter aqui também inicialmente um quínio168. [PaySrzTav] [lacuna] fl. 8/p. 93 A 31/B 146, [Entend’eu senhor que fez mal sen] folia que faç ỹ grand entendela ya. fl. 8/p. 93 A 32/B 147, A Ren do mundo que mellor que fl. 8/p. 93 A 33/B 148, Qvantos aquí despanna son to fl. 8v/p. 94 A 34/B 149, MEus ollos quer uus deus faz’ fl. 8v/p. 94 A 35/B 150, Como moỹreu quen nunca ben. fl. 8v/p. 94 A 36/[........], SEnnor os que me queren mal. fl. 9 /p. 95 A 37/[........], Ev soon tan muit amador do meu 166 Não deixa de ser surpreendente, nesta zona do ms., imaginar o rosto de um fólio em branco. Esta situação vai documentar-se só em um estado muito mais avançado da cópia, nos fl. 51 (cad. VIII.), fl. 55 (cad. IX), fl. 77 (cad. XII) e fl. 81 (cad. XIII). Nestas condições, talvez fosse melhor admitir, parece-me, que nos restava apenas o resto do fl. 9v em branco para um brevíssimo preenchimento do ciclo de PaySrzTav. O ciclo de MartSrz começaria assim de imediato no rosto do fólio seguinte com miniatura, prosseguiria no respectivo verso e no actual fl. 10/p. 97. 167 Em um primeiro momento, C. Michaëlis admitiu esta eventualidade (Michaëlis 1904, I:128), mas afastou entretanto esta hipótese (Michaëlis 1904, II: 210). 168 Uma reconstituição pormenorizada deste caderno II com o objectivo de determinar a que ciclo pertenceria a cantiga da garvaia encontra-se no ensaio que dediquei à análise atributiva desta cantiga em particular (Ramos 1986b). 144 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita fl. 9/p. 95 A 38/[........], No mundo non me sei parella fl. 9v/p. 96 A 39/[........], MEus ollos gran cuita damor [texto incompleto, conclusão de A 39 / textos perdidos? / espaço final col.c d / lacuna material] [MartSrz] [lacuna] fl. 10/p. 97 A 40/B 152, [Ay mia sennor se eu non merecesse] mais non quis d’s q’ meu mal entendesse. fl. 10/p. 97 A 41/B 153, Qual sennor deuia fillar. quen a fl. 10/p. 97 A 42/B 154, Marauillo meu mia sennor. de fl. 10v/p. 98 A 43/B 155, Nostro sennor como iaço coitado mor/ fl. 10v/p. 98 A 44/B 156, Nunca bon grad amor aia de min fl. 11/p. 99 A 45/B 157, Ja mia sennor nium prazer non me fara fl. 11/p. 99 A 46/B 158, SEnnor fremosa pois me non que/ fl. 11v/p. 100 A 47/B 159, Quando me nenbra de uos mia fl. 11v/p.100 A 48/B 160, Muitos me ueen preguntar mia fl. 12/p.101 A 49/B 161, O que consell amin de meu quitar fl. 12/p. 101 A 50/B 162, En tal poder fremosa mia sennor fl. 12v/p.102 A 51/B 163, Mal con sella do que fuỹ mia fl. 12v/p.103 A 52/B 164, SEnnor pois deus non quer que fl. 13/p. 103 A 53/B 165, DE tal guissa me uen gran mal fl. 13/p. 103 A 54/B 166, MEu sennor deus se uus prouguer fl. 13v/p. 104 A 55/B 167, Qvantos entenden mia sennor.a fl. 13v/p. 104 A 56/B 168bis, Non ouso dizer nulla ren a mia sen/ fl. 13v/p. 104 A 57/B 168, MMeu coraçon me faz amar. sen fl. 14/p. 105 A 58/B 169, Por deus uus rogo mia sennor fl. 14/p. 105 A 59/B 170, Por deus sennor non me desam fl. 14v/p. 106 A 60/B 171, Tal ome coi ta do damor. que fl. 14v/p. 106 A 61/B 151, PEro que punn en me guardar. [texto incompleto, conclusão de A 61 / textos perdidos / lacuna material] 145 Capítulo 4. Disposição do suporte material Caderno III [...] 15 16 17 18 19 [*] [15] [*] [*] 16 17 18 19 Primitivo caderno III? Este terno incompleto (um bifólio completo e três fólios com carcela de 2,5 cm) apresentaria realmente uma lacuna inicial com um fólio que concluiria, com certeza, o ciclo de MartSrz, homólogo do actual fl. 19/p.115 que contém hoje composições de NuFdzTor e que se encontra agora reforçado por uma carcela moderna. O bifólio constituído por fl. 16/p. 109, fl. 17/p.111, procedentes de Évora, foi também agora unido e fortalecido e montado em carcela onde é clara a passagem da linha da costura. Na última descrição física do Cancioneiro que acompanhava a edição fac-similada, anterior portanto a este último restauro, o bifólio estava ainda separado, o que poderia abonar em favor de uma suposição de dois fólios perdidos correspondentes àqueles fl. 16/p.109 e fl. 17/p.111. Quando observei o códice, pela primeira vez, estes dois fólios estavam, na realidade, desunidos, situação que interpretei como deterioração ulterior à descrição de C. Michaëlis169. É um facto que as dimensões actuais dos dois fólios e a concordância do pêlo com a carne e talvez o aspecto da pele autorizariam, no 169 Realizei uma primeira actualização da descrição do estado do códice, «Descrição codicológica do Cancioneiro da Ajuda» em uma comunicação apresentada ao Congresso Problemi della lirica galegoportoghese, realizado em Pisa de 8 a 10 de Fevereiro de 1979. Estes dois fólios encontravam-se realmente separados nesta altura e no momento em que o códice foi fac-similado em 1994, contrariamente a C. Michaëlis que os tinha associado (1904, II: 147). 146 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita entanto, este reforço efectuado agora pelo restauro. Com esta intervenção, deixou, por conseguinte, de haver lacuna, a seguir ao fl. 15/p.107, o que indica que não é imaginável sequência textual, referente ao ciclo atribuível a RoyGmzBret. Do ponto de vista material, esta união tem naturalmente uma implicação textual significativa e não deixa também de questionar as causas deste acidente invulgar, quer dizer, um bifólio que se separa completamente ao meio, mantendo os seus dois elementos. Se admitíssemos a lacuna correspondente ao fl. 16/p.109, seria necessário imaginar que não só o verso do fl. 15/p.107 se encontrava em branco, como ainda um provável fl. [15*r] e fl. [15*v], se achariam igualmente vazios o que facultaria uma conjectura bastante mais ampla do ponto de vista textual (verso do fl. 15/p.108 e um fólio integral, rosto e verso) para a conclusão do ciclo iniciado no fl. 15/p. 107 com apenas dois textos A 62, A 63 atribuíveis a RoyGmzBret ou a um Anónimo170. [RoyGmzBret?] A 62/B 173 [...] / C 173 [...] [miniatura] A 63/B 174 Da mesma forma, teríamos de arquitectar praticamente o mesmo critério para o homólogo do actual fl. 17/p.111. Quer dizer, se estamos perante um fólio, resultante de um bifólio inicial, será nesse caso necessário aceitar que o ciclo iniciado no fl. 16/p.109, atribuível a AyCarp que prossegue ainda na col.c e parte da col.d do fl. 16v/p.110 , deveria ainda persistir no correspondente do fl. 17/p. 111, em um plausível fl. [16*r ]e fl. [16* v] com outros textos deste autor ou, pelo menos, com previsão textual que lhe era dedicada. O moderno restauro, ao associar estes dois fólios (fl. 16/p. 109 e fl. 17/p. 111), examinando-os como um bifólio único primitivo, por assim o considerar materialmente, restringe-nos aquelas hipóteses insinuando, deste modo, que novos textos plausíveis que poderiam fazer parte do projecto inicial da cópia, tanto de RoyGmzBret/Anónimo, como de AyCarp, seriam previsíveis pelo compilador em número muito mais restrito do que se poderia conceber com a contingência daquelas lacunas171. Isto é, para o primeiro trovador, o responsável pela cópia teria então previsto apenas o restante do fl. 15/p.107 e todo o fl. 15v/p.108 e para Ay 170 A numeração de Colocci indica MartSrz para o n°.151. Após esta numeração, indica em aparato E. Gonçalves: «sotto 151 Colocci ha scritto 173 affiancato da un trato obliquo orientato verso il nome Martin Soares» e o texto 173 é precedido por uma longa razon que se encontra transcrita em B pela mão de Colocci «Esta cantiga de çima fez Martin Soariz A Roy Gomes... » [fl. 44r] que se relaciona com a cantiga precedente (Gonçalves 1976: 29, 56). No final da coluna a, e depois da transcrição da primeira estrofe de B 173 e do primeiro verso da segunda estrofe, encontra-se a indicação «Roy Gomez de breteyros». 171 Não é impossível que esta operação técnica tenha sido influenciada por C. Michaëlis que os apresentava unidos na sua descrição (1904, II: 147). 147 Capítulo 4. Disposição do suporte material Carp, estaríamos praticamente no final de ciclo do trovador, visto que o espaço deixado é mínimo, subordinando-se talvez a uma breve composição, se ponderamos os três quartos de coluna vazios em este termo da col.d no fl. 16v/p.110 (« following three-quarter column», Carter 1941: 188). O que é certo é que o caderno é, na realidade, constituído por um conjunto de ciclos breves de poetas, se o comparamos com os compactos conjuntos de VaFdzSend, JSrzSom, PaySrzTav e MartSrz, de quem o compilador possuía escasso número de textos. É assim que temos um contíguo de duas cantigas A 62/B 173, Pois non ei de don e A 63/B 174, Nunca tan coitad ome por moller com atribuição complexa, embora A seja claro quanto à autoria destes dois textos a um único trovador172. De seguida, o ciclo também breve, com quatro cantigas de AyCarp ocupa o fl. 16/p.109 e fl. 16v/p.110 com o final da coluna d em branco, o que supõe final de ciclo no momento da cópia de A173. Aqui, é também indicativo que esta sucessão, como outras séries precedentes (JSrzSom, MartSrz), ofereça outra cantiga para a estreia do ciclo. Esta cantiga, B 175 que principia o conjunto em B não chega a ser copiada em A. Poderia estar 172 A atribuição destas duas cantigas continua a ser, ainda hoje, problemática. Michaëlis considerou-as de Um desconhecido (I), mas admitia também que poderiam ser atribuíveis a RoyGmzBret (1904, I: 129; II: 336-341). Com base na atribuição explícita de B, Tavani (MartSrz 97, 33; MartSrz 97, 25, 1967: 465-466) e D’Heur (1973: 48) incluíram-nas no ciclo de MartSrz e é assim que comparecem na edição Bertolucci (1962: 107-109; 109-111) com os números XXX e XXXI. Por meu lado, na análise material deste sector, individualizei fisicamente os dois ciclos, PaySrzTav e MartSrz (Ramos 1986b). No entanto, Bertolucci corrige esta sua primeira opinião no artigo dedicado a MartSrz, eliminando-as do corpus deste trovador (Bertolucci 1993: 441-444). Resende de Oliveira, após análise de colocação na secção das cantigas de escarnho de B, atribui, como propunha C. Michaëlis, as duas composições a RoyGmzBret (1994: 67-68, 87-88, 431). Na edição das duas cantigas de escarnho deste trovador, E. Finazzi-Agrò (1975-76:183-206), não inclui estes dois textos no seu estudo. E na edição crítica dos poemas de Joham Mendiz de Bryteyros, onde várias vezes se refere a RoyGmzBret (1979: 31, 31n., 35, 35n., 37, 37n.), não considera aqueles textos presentes em A. Por fim, no artigo dedicado ainda a este poeta, Finazzi-Agrò refere-se apenas às duas cantigas de escarnho transmitidas por B, admitindo que A 62 e A 63 são atribuídas a RoyGmzBret sem argumentação válida (1993: 583-584). A publicação conjunta da lírica galego-portuguesa conserva o anonimato destas duas cantigas, apesar da explicitação a MartSrz em B (LPGP 1996, I: 23). 173 Nova documentação acerca do enquadramento histórico deste trovador e nova análise textual foram recentemente publicadas (Souto Cabo-Vieira 2001; Souto Cabo 2004). B inaugura o ciclo deste trovador com uma outra cantiga fragmentária com duas estrofes, B 175 explicitamente atribuída a AyCarp (Minervini 1974). C. Michaëlis admitia que esta cantiga estivesse copiada em A no fólio desaparecido, o que me parece bastante improvável pelo menos pela dispositio das cantigas em A (Michaëlis 1904, I: 134, 787-788). A cantiga que inaugura, de facto, o ciclo após miniatura corresponde a B 176 (=A 64), Quiseram ir. Tal e, portanto, para a colecção de A, seria a primeira do conjunto. Apesar da colocação correcta deste trovador nas respectivas secções, Resende de Oliveira considera o acrescento como um aumento de material imputável a B ou «eventual erro na atribuição desta composição». Admite, todavia, que o compilador de A, perante uma composição incompleta, tivesse optado por não a copiar (Oliveira 1994: 143-144, 315-316). Não me parece justificável esta hipótese, porque o compilador de A transcreve, algumas vezes, textos incompletos deixando espaço previsto para preenchimento de estrofes que faltavam. Bastaria citar os exemplos dos ciclos de JSrzSom, MartSrz ou PGarBu. 148 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita pressentida para o final do ciclo em A onde haveria espaço na col.d com apenas duas estrofes que nos transmite B, mas nunca no início do ciclo por motivos decorativos174. [Ay Carp] [...]/B 175 / C 175 [Ay Carp; amor]175 A 64/B 176 [miniatura] A 65/B 177 A 66/B 178 A 67/B 179 Esta curta antologia de autores com número reduzido de textos, acrescenta ainda outro pequeno ciclo composto por duas outras cantigas, A 68/B 181bis /B 1451/V 1061, En gran coita uiuo e A 69/B 182, Nostro sennor en que uus mereci, com atribuição igualmente problemática o que sublinha a precariedade material deste sector176. Analogamente, deparamos aqui com um começo de ciclo em B que não é paralelo ao de A com duas cantigas ausentes da compilação ajudense, B 180 e B 181. Tal como nos ciclos precedentes, temos uma nova sucessão na constituição da série. Não há dúvida quanto à conformidade autoral das duas composições A 68 e A 69 em A, mas os dois textos que surgem em B, B 180 e B 181, não deviam estar disponíveis no momento da cópia de A. O espaço que se encontra no termo da única estrofe transcrita por A 69 (reduzida também a esta única estrofe em 174 A introdução desta cantiga B 175 em situação textual deficiente (duas estrofes e o primeiro da segunda incompleto) seria devida à remodelação do século XIV. Ou estamos perante um erro atributivo em B e C, ou perante uma cantiga que pertenceria ao trovador precedente (Oliveira 1994: 143). Considerar a possibilidade de «três páginas em branco» estaria fora de questão com a decisão do novo restauro e não me parece que o compilador de A tenha decidido não copiar textos incompletos vistoq eu há exemplos vários de textos que aguardam estrofes. 175 Observe-se a perturbação idêntica aos ciclos de JSrzSom e MartSrz: a abertura destes ciclos não apresenta a mesma cantiga. 176 C. Michaëlis atribui-as a NuRdzCan (1904, I: 143). D’Heur mantém em parte esta atribuição (1973: 31, 93), apesar das duplas indicações de B e V a JGaya e a NuPor. A revisão do problema é examinada por Resende de Oliveira (1988: 740-741 e 1994: 68-70; 143-144, 397) que se inclina também para a atribuição, já sugerida por C. Michaëlis em 1904, a NuRdzCan (Cf. também Muriano Rodríguez 1996). No caso concreto de A 68, En gran coita uiuo, que comparece copiada mais de uma vez nos cancioneiros posteriores, B 181bis/B 1451/V 1061, é atribuída a JGaya em B 1451 e V 1061 (= A 68), a NuRdzCan em B 181bis (= A 68) e ainda em B 182 (= A 69) a NuPor. A versão que contém mais uma estrofe em V 1061 foi considerada como um caso de processo de reelaboração textual do trovador (Russo 1991; Muriano Rodríguez 1996b). Em concordância com A, parece-me importante insistir no facto de que, codicologicamente, estas duas cantigas chegaram às mãos do compilador como pertencentes a um mesmo autor. O espaço que se encontra disponível em A no fl. 17/p. 111, col. b, no final de A 69, admitiria apenas a inclusão de mais uma estrofe, além de todo o verso que permanece em branco e que poderia ainda acolher outras composições. A hipótese de Ron Fernández (dificuldade de leitura do modelo) a ser verdadeira aplicar-se-ia em outros casos semelhantes a este (1996: 1006-1007). E não observo muitas situações neste códice que sejam resultantes de decifração complexa do modelo. 149 Capítulo 4. Disposição do suporte material B 182) no final da col.b e as duas col.c d seria suficiente para a incorporação daquelas duas cantigas, B 180 e B 181. É importante voltar a insistir nesta modificação constante entre A e B quanto aos inícios de série que, efectivamente, em A, na contingência de terem sido reproduzidas, só poderiam estar no final do ciclo. [NuRdzCan] [...]/B 180 [NuRdzCan; amor] [...]/B 181 [NuRdzCan; fragmento amor] bis A 68/B 181 [NuRdzCan; miniatura] / B 1451 [JGaya] / V 1061 [JGaya] A 69/B 182 [NuPor] / C 182 [NuPor] [incompleta; espaço]177 Não deixa de ser curioso também que estas dúvidas atributivas coincidam com três ciclos breves, uma espécie de antologia/colectânea mais frágil. Pode este sector ser interpretado, parece-me, não só como reprodução de obras de Autores menores (trovadores com mais pequena produção ou um compilador com mais dificuldade de acesso a certos materiais), mas também por outro aspecto que creio permissível, pelo menos, em uma parte da série. Recordo que, após o ciclo de AyCarp, o compilador dispõe de dois textos de NuRdzCan (JGaya, NuPor em B, V178), seguido de um outro trovador, com idêntica nomeação Nuno. Os distúrbios atributivos que se verificam em B e V podem, muito bem, estar confrontados a esta similitude antroponímica. Uma confusão motivada pela sucessão sectorial e pela contiguidade de três trovadores com o mesmo nome, Nuno179. O ciclo de NuFdzTor que se inicia no fl. 18/p.113 perdura até ao final do caderno, concluindo-o com a composição A 79/B 182a, [A]y mia sennor u non iaz al no fl. 19v/p.116 que prossegue ainda no caderno seguinte, o actual IV. Encontramo-nos, assim, pela primeira vez, em uma situação de transição textual de um caderno para outro, o que permite solidificar a consistência material do ciclo deste trovador. [NuFdzTor] A 70/B 183 [NuFdzTor] / C 183 [NuFdzTor] [miniatura] A 71/B 184 177 Colocci não transcreve sempre o nome de NuRdzCan na sequência de B 180, B 180 e B 181bis atribuídas a este trovador (Gonçalves 1976: 56). 178 Atribuições motivadas pelas rubricas de B e V (González-Martínez 2004). 179 Esta suposição poderia talvez ser desenvolvida em outros casos de dificuldades atributivas com simultaneidade nos nomes dos trovadores (González Martínez 2004). Sequências nominais, ou mesmo sucessão alfabética. No entanto, esta reflexão deverá ser contemplada, naturalmente, nos manuscritos que contêm atribuição explícita, B e V e não com A que é completamente desprovido de rubricas atributivas. 150 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 72/B 185 A 73/B 186 [incompleta em A e B; espaço] A 74/B 187 A 75/B 188 A 76/B 189 A 77/B 180a A 78/B 181a A 79/B 182a A 80/B 183a A 81/B 184a [...]/B 185 [amor] Este posicionamento de continuidade entre estes actuais cadernos (III e IV), se não permite a reconstituição de um ou dois bifólios perdidos que perfizessem o paralelismo com os dois primitivos cadernos que deveriam ser, como vimos, quínios, comprova já a irregularidade manifesta no estabelecimento dos cadernos na organização do códice. Mesmo encarando a hipótese de fólios perdidos, que é hoje contrariada até pela junção dos dois fólios, 16/p. 109 e 17/p. 111, não chegaríamos, como mostra o esboço, à constância dos primeiros quínios. Este facto não pode deixar de ser considerado na ponderação acerca do tipo de ambiente que teria produzido o Cancioneiro, quero dizer, das características pelas quais se regia o meio responsável pela organização, em princípio homogénea, de um códice desta dimensão. A fragilidade deste formato de caderno diferenciado dos precedentes (ainda que tenha sofrido acidente importante) permite admitir uma composição material diferente com talvez mesmo fólios soltos que acolheriam estes ciclos breves, reduzidos no estádio da cópia, a um único fólio. Este caderno III ilustra justamente um modelo de composição que parece definir-se em função do tipo de material disponível, ciclos breves, talvez diminutos e inacabados, que são transcritos em cadernos de estrutura menor, à medida da sua instabilidade. Conjectura-se assim o fabrico de um caderno em conformidade com as particularidades do material que lhe é destinado. Poderíamos estar então perante fólios intencionalmente soltos e não fólios sobreviventes de bifólios fragmentados, como acontece em outros cancioneiros180. 180 Veja-se, agora, a este propósito a opinião de E. Gonçalves sobre a inclusão destes poetas neste sector (Gonçalves s.d.). 151 Capítulo 4. Disposição do suporte material [RoyGmzBret? Anon?] Miniatura fl. 15/p. 107 A 62/B 173, Pois non ei de don fl. 15/p. 107 A 63/B 174, Nunca tan coitad ome por moller. fl. 15v/p. 108 [em branco] [fim de autor /previsão textual/ col.c d] [AyCarp] Miniatura fl. 16/p. 109 A 64/B 176, Quiseram ir. tal fl. 16/p. 109 A 65/B 177, Deseg eu muit aueer mia sennor fl. 16v/p. 110 A 66/B 178, Aỹ deus que coita de soffrer.por fl. 16v/p. 110 A 67/B 179, Aỹ deus como ando coitado damor [fim de autor /previsão textual/ espaço col.d] [NuRdzCan? / JGaya? / NuPor?] Miniatura bis fl. 17/ p. 111 A 68/B 181 / B 1451/ V 1061, En gran coita uiuo fl. 17/ p. 111 A 69/B 182, Nostro sennor en que uus mereçi fl. 17v/ p.112 [em branco] [fim de autor /previsão textual/ espaço fim col.b c d] [NuFdzTor] Miniatura fl. 18/p. 113 A 70/B 183, IR uus queredes mia sennor.e fi fl. 18/p. 113 A 71/B 184, [A] meu tan muito mia sennor. fl. 18v/p. 114 A 72/B 185, Par deus sennor en gran coita fl. 18v/p. 114 A 73/B 186, ORa ueg eu que me non fara fl. 18v/p. 114 A 74/B 187, Qve prol uus a uos mia sennor fl. 19/p. 115 A 75/B 188, Qvereu a deus rogar de coraçon fl. 19/p. 115 A 76/B 189, Quand mia gora for e mialongar fl. 19v/p. 116 A 77/B 180a, [Q] ue ben que meu sei en cobrir fl. 19v/p. 116 A 78/B 181a, Aỹ eu demin que sera que fuỹ tal fl. 19v/p. 116 A 79/B 182a, [A] y mia sennor u non iaz al. [continua a cantiga no caderno seguinte] 152 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Caderno IV 20 [...] 21 22 23 [...] 24 25 Primitivo caderno IV 20 [...] 21 22 23 [...] 24 25 Trata-se de um quatérnio incompleto (dois bifólios completos, um fólio ainda com pestana e um fólio com carcela de 2,5 cm) que principia pela conclusão da composição A 79/B 182a, [A] y mia sennor u non iaz al. no fl. 20/p.117, atribuível a NuFdzTor. Este fólio contém ainda o final do ciclo deste trovador que se conclui no respectivo verso, fl. 20v/p.118, com os últimos sete versos da cantiga A 81/B 184a, PReguntam me por que ando san, que ocupa apenas o início deste verso na col.c. Todo o resto deste fólio permanece em branco (resto da col.c e toda a col.d), indício aparente de final de ciclo. Nesta extensão seria permissível conceber a contingência de cópia da cantiga B 185 com três estrofes que encerra o conjunto neste zona181. A lacuna que é hoje visível, logo de seguida, através de carcela moderna (resultante do novo restauro) é proveniente de um primitivo bifólio, que seria homólogo do actual fl. 24/p.125. 181 É mais provável que esta cantiga seja um dos casos de ausência textual e que o espaço que dispomos se destinasse unicamente à conclusão do ciclo. C. Michaëlis supõe a existência «segundo todas as probabilidades, um pequeno grupo de cantigas, com atribuição a um trovador novo» (Michaëlis 1904, I: 172). O paralelismo em B e C não autoriza, de modo satisfatório, a reconstituição da tradição textual neste sector, com presença de outros textos. 153 Capítulo 4. Disposição do suporte material A passagem do fl. 20v para o fl. 21r interrompe, logicamente, a sequência pêlo/pêlo. É muito delicado, e quase aleatório, prever o conteúdo deste fólio desaparecido. Ou tínhamos ainda um fólio completamente desprovido de texto, na sequência do verso do fl. 20/p.117 que permaneceu em branco, o que indicaria que se confiava afinal na obtenção de mais material de NuFdzTor; ou então estaríamos perante outro breve ciclo de poemas de outro trovador que abrangeria apenas este fólio, à semelhança do que ocorre no caderno III com os ciclos breves182. A cantiga de amor B 185a, Assy me traj’ora coitad’ amor, com atribuição a NuFdzTor, tal como previa Michaëlis (1904, I: 172) não necessitaria de toda esta extensão para as suas três estrofes e refran (Michaëlis 1904, I: 794; Oliveira 1994: 144)183. No fl. 21/p.119, temos o início do ciclo de PGarBu com a correspondente miniatura inaugural que encima a cantiga A 82/B 186a, De quantos muí. O ciclo prossegue, sem perturbação significativa, na sucessão das composições como se observa pelo elenco que nos deixa apenas a lacuna física com três composições no interior do ciclo, B 199, B 200 e B 201, assim como o breve conjunto no final da série, pelo menos, com as cantigas B 220, B 221, B 222. [PGarBu] A 82/B 186a [miniatura]184 A 83/B 187a A 84/B 188a A 85/B 189a A 86/B 190 A 87/B 191 A 88/B 192 A 89/B 193 A 90/B 194 [espaço em A; mais uma estrofe em B] 182 O prever, nesta zona do ms., um fólio com rosto em branco não é provavelmente crível, como já observamos com o final do ciclo de PaySrzTav no II caderno, mas a tradição italiana parece não autorizar qualquer outra integração. 183 O espaço disponível corresponderia portanto ao verso do fl. 20 que contém apenas sete versos na col. c, todo o rosto do fl. [20r*] e do [fl. 20v *]. É praticamente possível afirmar que o compilador de A não teve acesso à cantiga B 185 a, Assy me traj’ora coitad’ amor. O espaço deixado em A, após o fl. 20v/p. 118, permitia facilmente esta cópia. Trata-se, portanto, de um texto ausente e não de uma perda de texto devido a um acidente material. 184 A Tavola Colocciana não faz curiosamente referência a PGarBu, passando da indicação de NuFdzTor a JNuCam. Uma primeira explicação dada por D’Heur no seu ensaio sobre a tradição manuscrita admitia que este lapso colocciano viesse da justaposição do nome de NuFdz com Torne[o]l e as anotações formais tornell, tornello (D’Heur 1974: 31-32). No entanto, E. Gonçalves considera mais provável que o humanista tenha omitido o nome de Burgalês por lapso ou por esquecimento (Gonçalves 1976: 56, n. 183 e n. 224). 154 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 91/B 195 [mais uma estrofe em B] A 92/B 196 A 93/B 197 [espaço em A; mais uma estrofe em B] A 94/B 198 [incompleta o final por lacuna] [...]/B 199 [amor] [...]/B 200 [amor] [...]/B 201 [amor] A 95/B 202 [incompleto o início por lacuna] A 96/B 203 A 97/B 204 A 98/B 205 A 99/B 206 A 100/B 207 A 101/B 208 A 102/B 209-210 A 103/B 211 A 104/B 212 A 105/B [213] A 106/B 214-215 A 107/B 216 A 108/B 217 A 109/B [218] A 110/B 219 [...]/B 220 [amor] [...]/B 221 [amor] [...]/B 222 [amor] [...]/B 223 [escarnho] A aptidão do compilador é notória quanto à disposição estrutural de algumas cantigas deste trovador185. Para a cantiga A 90/B 194, Sennor, queixo-me con pesar, que considera incompleta, prevê espaço, pelo menos, para mais uma estrofe. De facto, B disponibiliza-nos, neste caso, mais uma estrofe na sequência das duas primeiras. A cantiga seguinte, A 91/B 195, Moyr’eu e praz-me, si Deus me perdon, apresenta-se materialmente de modo completo em A, 185 Pronunciei-me já, algumas vezes, acerca do perfil do compilador com fundamento na reconstituição dos critérios subjacentes à cópia (Ramos 1986, 1989). 155 Capítulo 4. Disposição do suporte material mas B oferece-nos uma outra estrofe, além da transcrição revelar, neste ms., uma ordem diversa no ordenamento das estrofes. Na cópia da cantiga A 93/B 197, POla uerdade que digo sennor me no fl. 23v/p.124 é deixado também espaço na col.d para mais texto. Em B, observamos mais uma estrofe. A composição seguinte, A 94/B 198, SEnnor fremosa pois uus ui deixa-nos simplesmente a transcrição de duas linhas de texto devido à falha material. O fólio seguinte, fl. [23*] que deveria conter o final daquela composição, assim como talvez as cantigas que se encontram presentemente copiadas em B 199, B 200 e B 201, homólogo do fl. 21/p.120, perdeuse. Se a transcrição deste final de uma cantiga e de três outras deveria preencher o fólio (rosto e verso) desaparecido, parece-me que teríamos ainda de considerar uma cópia bem espaçada, talvez até com previsão de espaço para estrofes, visto que praticamente o início de A 95/B 202 se encontra já copiado no actual fl. 24/p.125. No fólio perdido, estaria apenas o primeiro verso e o começo do segundo. A pestana subsistente é original com indícios de corte assimétrico com cerca de 1,2/1,3 cm. E parece não haver solidariedade material entre os dois fólios subsistentes. A passagem do fl. 23v para o fl. 24 apresenta descontinuidade na sequência pêlo/pêlo. No entanto, é necessário acrescentar que B mostra ainda, após a transcrição de B 199 e B 200, vários fólios em branco, fl. 51v, fl. 52, fl. 52v, fl. 53, fl. 53v, fl. 54, fl. 54v, fl. 55 e fl. 55v, o que não auxilia a trasladação neste sector186. Só no fl. 56 comparece a transcrição de B 200 e as outras cantigas com atribuição a PGarBu. Torna-se assim flagrante reconhecer que o ciclo de PGarBu dispunha, em mais de um lugar, de uma insegurança textual que é não só verificável através do fólio desaparecido, mas através do estado precário em que chegaram algumas cantigas ao compilador do Cancioneiro da Ajuda, o que não deixa de ser expressivo quando outros elementos nos permitem eleger PGarBu como um dos trovadores mais significativos da colecção, no conjunto dos trovadores pelo número de textos incluído e até pela miniatura diferenciada187. Tanto o primitivo fl. [20*] que pode ser concebível com espaço vasto de final de autor para NuFdzTor como também o original fl. [23*], igualmente imaginável com cantigas de PGarBu, não permitem, contudo, reconstituir uma estrutura quínia como nos dois primeiros cadernos. Continuamos, portanto num ambiente de confecção fascicular inconstante, ou, pelo menos, em um meio que estrutura o material à medida que recepciona as colecções de textos. Esta suposição fragiliza uma situação estável de cópia de cancioneiro a cancioneiro. Em A, as cantigas de PGarBu são transcritas até ao final deste caderno IV e a cantiga A 102/B 209-210, Aỹ eu coitado e quand acharei. Quen continua no caderno seguinte, caderno V. O ciclo de PGarBu encerrar-se-á com a cantiga A 110/B 219, [M] Entre non soube por min 186 A estrutura deste caderno em B e respectivos comentários encontram-se pormenorizados em A. Ferrari (1979: 103). 187 É um facto que a miniatura que introduz este ciclo de PGarBu apresenta particularidades diferentes em relação às outras. Refiro-me a estas características no capítulo relativo à Decoração. 156 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita mia no fl. 28/p. 133 deste novo caderno. O resto da col.b deste fólio, assim como todo o verso permanecem em branco. Os textos ausentes em A, [...]/B 220, [...]/B 221 e [...]/B 221 poderiam ter sido copiados neste espaço disponível em A, sem contarmos com B 223 que pertence ao escarnho, o que vem comprovar, mais uma vez, a instabilidade textual do ciclo de PGarBu no momento da sua organização188. Estamos perante um quatérnio de base, apesar das anomalias lacunares no interior do caderno. [NuFdzTor] [cont. do caderno IV] fl. 20/p. 117 [cont.] A 79/B 182a, [A] y mia sennor u non iaz al. fl. 20/p. 117 A 80/B 183a, Pois naci nunca ui amar e ouço fl. 20/p. 117 A 81/B 184a, PReguntam me por que ando san fl. 20v/p. 118 [cont.] A 81/B 184a, PReguntam me por que ando san; [em branco] [fim de autor/ previsão textual/espaço col.c d / lacuna material] [PGarBu] Miniatura fl. 21/p. 119 A 82/B 186 a, De quantos muí fl. 21/p. 119 A 83/B 187a, Pois contra uos non me ual mía fl. 21v/p.120 A 84/B 188a, CVidaua meu que amigos auia fl. 21v/p. 120 A 85/B 189a, QVal dona fez mellor pareçer fl. 22/p. 121 A 86/B 190, [S] Ennor per uos sõo marauillado fl. 22/p. 121 A 87/B 191, Aỹ eu coitade por que ui a dona q’ por fl. 22v/p.122 A 88/B 192, Se eu soubesse u eu primero uí.a fl. 22v/p. 122 A 89/B 193, Que alogad eu ando du ỹria. se eu fl. 23/p. 123 A 90/B 194, SEnnor queixo me con pesar.gran fl. 23/p. 123 A 91/B 195, Moỹreu e praz me si deus me pdon. 7 fl. 23/p. 123 A 92/B 196, SE deus me ualla mia sennor de fl. 23v/p. 124 A 93/B 197, POla uerdade que digo sennor me fl. 23v/p.124 A 94/B 198, SEnnor fremosa pois uus ui. [texto incompleto/ textos perdidos? /lacuna material] 188 C. Michaëlis considera possível a cópia destes textos em A (Michaëlis 1904, I: 200). Resende de Oliveira admite apenas o verso do fólio e pensa que o copista não aguardava quaisquer outras composições (Oliveira 1994: 144-145). Se é verdade que há casos em que não temos prova de outros textos, aqui, creio que se possa considerar que o espaço, que nos sobeja, poderia acolher outros textos (dois? três?), o que não invalida esta situação, extremamente instável, do corpus de Burgalês. 157 Capítulo 4. Disposição do suporte material [lacuna] fl. 24/p.125 A 95/B 202, [Por muy coytado per tenh’eu] uaỹ querer ben tal.moller que seu serui fl. 24/p. 125 A 96/B 203, Aỹ eu que mal dia naçi.con tanto fl. 24/p. 125 A 97/B 204, [S] Ennor fremosa uenno uus dizer fl. 24v/p. 126 A 98/B 205, Par deus sennor ia eu non ei poder fl. 24v/p.126 A 99/B 206, [M] ais de mil uezes coideu eno dia fl. 25/p. 127 A 100/B 207, SE eu a deus algun mal mereçi. fl. 25/p. 127 A 101 / B 208, [...]ỹ mia sennor e meu lum é meu fl. 25v/p. 128 A 102 / B 209-210, Aỹ eu coitado e quand acharei. quen [continua a cantiga no caderno seguinte] Mas se a inconstância textual em A é visível e sustentável, é necessário incluir outro factor que envolve a disposição deste sector. É também com o ciclo de PGarBu que se regista concretamente a inclusão, pela primeira vez, de outro tipo de material. Refiro-me ao processo de transcrição das fiindas em algumas das suas cantigas189. O esboço seguinte mostra como o corpus de PGarBu pode ter chegado ao compilador e como se integra, de modo versátil, em A. Observa-se, em primeiro lugar, um breve grupo de duas cantigas sem fiinda que inaugura o ciclo tanto em A como em B. A 82/B 186a. Sem fiinda. A 83/B 187a. Sem fiinda. Segue-se um segundo grupo de cantigas com estrutura provida de fiinda, mas sem que esta esteja prevista com qualquer espaço para a transcrição musical. A 84/B 188a. Com uma fiinda e sem espaço. A 85/B 189a. Com uma fiinda e sem espaço. A 86/B 190. Com uma fiinda e sem espaço. A 87/B 191. Com três fiindas e sem espaço. A 88/B 192. Com uma fiinda e sem espaço. A 89/B 193. Com uma fiinda e sem espaço. 189 Trato deste aspecto com implicação na constituição da globalidade do códice, no capítulo dedicado aos critérios de transcrição musical. Servi-me também deste exemplo na apresentação de critérios de mise en page no Cancioneiro da Ajuda em Alicante no X Congresso da AHLM (Ramos 2005). 158 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A este segundo grupo entronca-se um outro, também de qualidade textual instável, em que A revela ter recepcionado material incompleto quanto a estrofes e B consegue, em alguns casos, preencher estes textos incompletos. A 90/B 194. Espaço para mais estrofe (s). B tem mais uma estrofe. Sem fiinda. A 91/B 195. Não há espaço em A, mas B tem mais uma estrofe. Sem fiinda. A 92/B 196. Sem fiinda. A 93/B 197. Espaço para mais estrofe (s). B tem mais uma estrofe. Sem fiinda Em A, temos a lacuna resultante de um primitivo bifólio, hoje fl. 21/p.119, que afectará o texto A 94 e provavelmente os três que se encontram copiados em B. A 94/B 198. Texto incompleto. Lacuna física [...]/B 199. Lacuna em A. Vários fl. em branco em B. [...]/B 200. Lacuna em A. [...]/B 201. Lacuna em A. A série de material incompleto prossegue, mas principia o conjunto de textos de PGarBu em que as fiindas estão trasladadas de modo a acolher texto musical. A 95/B 202. Com fiinda e com espaço. A 96/B 203. Sem fiinda A 97/B 204. Sem fiinda Novo grupo de textos em que A continua a prever material mais completo, ao deixar de novo espaço suficiente para mais estrofes. Mas destes casos, B não nos concede qualquer aperfeiçoamento textual. A 98/B 205. Espaço para mais estrofe (s). B não tem mais nenhuma estrofe. Sem fiinda A 99/B 206. Espaço para mais estrofe (s). B não tem mais nenhuma estrofe. Sem fiinda A 100/B 207.Espaço para mais estrofe (s). B não tem mais nenhuma estrofe. Sem fiinda Os textos que finalizam o ciclo e que encerram na sua estrutura fiinda ou fiindas comparecem todos com espaço para a música, o que quer dizer que este grupo de textos provinha de um local de confecção em que se favorecia a cópia musical na conclusão das cantigas. Este material de natureza invulgar, se atendemos aos outros casos em que as fiindas não apresentavam esta mesma marca distintiva, vai fomentar em B, ou nos seus antecedentes, 159 Capítulo 4. Disposição do suporte material um erro interpretativo190. Os copistas vão interpretar estas fiindas duplas ou quádruplas como cantigas independentes. Este equívoco só se explica porque estas fiindas possuíam no antecedente uma transcrição idêntica à da primeira estrofe, quer dizer com disposição correcta para a cópia da música. Os copistas em Itália vão decifrar estes casos como se tratasse de uma dispositio referente à primeira estrofe de uma cantiga ou como uma composição monostrófica e mesmo a numeração de B, em que Colocci assinala, várias vezes, no sector deste trovador a palavra cõgedo ou congedo, não se apercebe de que B 210 e B 215 não são textos autónomos, mas fiindas relativas à cantiga precedente191. Este facto é relevante, porque no caso de A 87/B 191 com três fiindas transcritas sem espaço, o copista não se engana considerando aquelas três fiindas como um outro texto. Aqui, actua justamente copiando-as com breves espaços entre os versos e Colocci não deixa de as enumerar à esquerda com 1, 2 e 3, o que parece querer dizer que o modelo também não as dispunha com espaço para a música. Estas incorrecções ilustram-nos o estádio prévio de B192. Ou na situação imediatamente precedente, ou em um momento mais alto da tradição o corpus lírico de PGarBu já se apresentava deste modo: alguns textos possuíam características musicais diferenciadas de acordo com a técnica musical prevista para a execução da fiinda. Esta discrepância originará má interpretação textual, quando um copista perante uma fiinda complexa com espaço musical a avaliou não como conclusão da cantiga que acabava de copiar, mas como um outro texto que se iniciava. A 101/B 208. Com uma fiinda e com espaço. A 102/B 209, B 210. Com quatro fiindas e com espaço. A 103/B 211. Sem fiinda A 104/B 212. Com uma fiinda e com espaço. A 105/B 213. Sem fiinda 190 O editor das cantigas de PGarBu, P. Blasco, não diferencia estes diferentes momentos, nem individualiza lacunas materiais (como na cantiga A 94 e A 95), nem de ausência textual no momento da cópia (como a inexistência de estrofes em A 90, A 91, A 93, A 95). Ao assinalar que B «vient complèter» estes casos, não menciona que os textos incompletos A 98, A 99, A 100 permanecem igualmente inacabados em B (Blasco 1984: 49). A situação destas cantigas não pode ser, portanto, considerada de modo idêntico. 191 Michaëlis assinalou esta repetição, mas não interpretou o erro como dependente de um modelo que teria tido as duas fiindas dispostas para a música (Michaëlis 1904, I: 219). 192 É a mesma mão que copia o caderno 6 e o caderno 7, a mão d, assim designada por Ferrari (1979: 102104), do fl. 48 (início do ciclo de PGarBu em B) ao fl. 51 com composições ausentes em A. O texto B 191 que em A 86 apresentava as três fiindas sem espaço, é interpretado correctamente pelo copista d. Os casos de B 210 e B 215 que comparecem no caderno 8 no fl. 58 e no fl 59 respectivamente, são transcritos pelas mãos b e c que atribuem autonomia às fiindas das cantigas A 102 e A 106, devido provavelmente à situação do antecedente, mesmo se não é de excluir uma zona perturbada pela intervenção de várias mãos neste caderno (Ferrari 1979: 83-84). 160 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 106/B 214, B 215. Com duas fiindas e com espaço. A 107/B 216. Com uma fiinda e com espaço. A 108/B 217. Sem fiinda A 109/B 218. Sem fiinda A 110/B 219. Sem fiinda O ciclo de PGarBu conclui-se logo no cad. V com a cantiga A 110/B 219, [M] Entre non soube por min mia no fl. 28/p.133. O restante da col.b deste fólio assim como todo o verso permanece em branco. Os textos ausentes [...]/B 220, [...]/B 221 e [...]/B 222 poderiam ter sido copiados, pelo menos em parte, neste espaço disponível em A, mas talvez seja mais plausível pressupor que não fariam parte do corpus nesta altura193. Caderno V 26 27 28 29 [...] 30 31 32 28 29 [*] 31 32 Primitivo caderno V 26 27 193 30 Ainda que se considere esta possibilidade, a presença da cantiga de escarnho B 223 no final deste breve conjunto de três cantigas de amor, aproxima-nos mais de uma nova situação textual na colecção quinhentista. Resende de Oliveira não encontrando justificação para esta ausência textual em A, inclina-se pelo «enriquecimento» subsequente, hipótese que me parece igualmente plausível, tendo em conta as características materiais do ciclo de PGarBu (Oliveira 1994: 144-145, 152). 161 Capítulo 4. Disposição do suporte material Este caderno com uma estrutura de quatérnio incompleto (três bifólios completos e um fólio com carcela) apresenta os primeiros fólios, fl. 26/p. 129, fl. 27/p. 131 e fl. 28/p. 133 com os últimos textos do ciclo de PGarBu, o que aponta para uma contiguidade segura entre estes dois cadernos, tal como se observa na adjacência entre o caderno III e o caderno IV com o ciclo de NuFdzTor que também se inseria em dois cadernos consecutivos. O ciclo de Burgalês termina com espaço em branco na parte final da col.b deste fl. 28r/p. 133, da qual nos sobra um quarto de coluna e todo o verso deste mesmo fólio (Carter 1941: 188). O fl. 29/p. 135, procedente de Évora, interpõe nesta posição o pequeno ciclo de três cantigas do trovador JNzCam, A 111/B 224, DE uos sennor quer, A 112/B 225, [N] on me queredes mia sennor fazer e A 113/B 226, [R] ogaria eu mia sennor por deus194. A lacuna, homóloga deste fólio, comparece, após o último restauro, com uma carcela moderna de 3,5 cm, à direita e não à esquerda, como se podia ainda observar pela anterior descrição na edição facsimilada195. Justifica-se, no entanto, este posicionamento do ponto de vista textual. Temos o final da cantiga A 113/B 226, [R] ogaria eu mia sennor por deus no fl. 29v/p.136 com alguns versos copiados (com onze linhas de texto) já no verso no início da col.c e com todo o resto desta coluna e col.d em branco revelando um estado designativo de final de ciclo, ou como indício de separação de autor, ou talvez até como sinal de que o compilador aguardava outro material, mas B não oferece mais nenhuma composição: [JNzCam] A 111/B 224 [JNzCam] / C 224 [JNzCam] [miniatura] A 112/B 225 A 113/B 226 É de acreditar, entretanto, que o fólio equivalente, hoje desaparecido, fosse um fólio em que o rosto deveria conter o início do ciclo de FerGarEsg com miniatura e ainda os três textos deste trovador presentes em B e com igual atribuição em C, de modo que a cantiga A 114/B 230, [Que grave cousa senhor d’endurou] disser algũa ren ca uus dira pesar concluísse a coluna d desse provável fl. [29*] antes do presente fl. 30/p.137, que mostra hoje o prosseguimento desta composição. A sequência carne/carne não se verifica na passagem do fl. 29v para o fl. 30, o que corrobora também o desaparecimento de fólio. 194 A análise crítica de características narrativas e dramáticas da poesia deste trovador em Tavani (1960). Cf. também Nodar Manso (1994). 195 C. Michaëlis considerava correctamente a posição desta lacuna e a conjectura textual (Michaëlis 1904, I: 234). Parecer idêntico em Resende de Oliveira (1994: 145). 162 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [FerGarEsg] [...]/B 227 [FerGarEsg; amor] / C 227 [FerGarEsg] [...]/B 228 [amor] [...]/B 229 [amor] A 114/B 230 [incompleto o início por lacuna] A 115/B 231 A 116/B 232 A 117/B 233 A 118/B 234 A 119/B 235 A 120/B 236 A 121/B 237 A 122/B 238 A 123/B 238bis A 124/B 239 A 125/B 240 A 126/B 241 A 127/B 242 A 128/B 243 O ciclo de FerGarEsg progride até ao final do caderno, concluindo-se no verso do fl. 32/p.141 com a cantiga A 128/B 243, Niun consello señor nõ me sey a esta coi. Um pequeníssimo espaço no final desta coluna denuncia-nos, muito presumivelmente, a conclusão do ciclo do trovador196. [PGarBu] [continuação do caderno IV] fl. 26/p. 129 [cont.] A 102/B 209-210, Aỹ eu coitado e quand acharei. quen fl. 26/p. 129 A 103/B 211, Que muit a ia que a terra non fl. 26/p. 129 A 104/B 212, IOana dixeu sancha e maria en meu fl. 26v/p. 130 A 105/B [213], Ora ueieu que fiz muy g’n folia 7 q’ pdi fl. 27/p. 131 A 106/B 214-215, Que muitos que miandam preguntan fl. 27/p. 131 A 107/B 216, ORa uegeu que xe pode fazer nos 196 Edição crítica da obra deste trovador em Spampinato (1987). 163 Capítulo 4. Disposição do suporte material fl. 27v/p. 132 A 108/B 217, [N] on me posseu mia sennor defender fl. 27v/p. 132 A 109 / B [218], [Q] uantos ogeu con amor sandeus fl. 28/p. 133 A 110 / B 219, [M] Entre non soube por min mia fl. 28v/p. 134 [em branco] [fim de autor / previsão textual / breve espaço col.b c d ] [JNzCam] Miniatura fl. 29/p.135 A 111/B 224, DE uos sennor quer fl. 29/p. 135 A 112/B 225, [N] on me queredes mia sennor fazer fl. 29/p.135 A 113/B 226, [R] ogaria eu mia sennor por deus fl. 29v/p. 136 [cont.] A 113/B 226, [R] ogaria eu mia sennor por deus [em branco] [fim de autor / previsão textual / espaço col.c d / lacuna material] [FerGarEsg] [lacuna] fl. 30/p. 137 A 114/B 230, [Que grave cousa senhor d’endurou] disser algũa ren ca uus dira pesar fl. 30/p. 137 A 115/B 231, [Q] uen uus foỹ dizer mia sennor fl. 30/p. 137 A 116/B 232, [S] Ennor fremosa conuen mia. fl. 30v/p. 138 A 117/B 233, [S] Ennor fremosa quant eu cofon fl. 30v/p. 138 A 118/B 234, [A] Mellor dona que eu nunca ui. fl. 31/p. 139 A 119/B 235, [Q] uan muit eu am uã moller.no fl. 31/p. 139 A 120/B 236, [O] m a que deus ben quer fazer.nõ fl. 31v/p. 140 A 121/B 237, [S] Ennor fremosa que. senpr ser fl. 31v/p. 140 A 122/B 238, [M] Eu sennor deus uenno uus fl. 31v/p. 140 A 123/B 238bis, [S] E uus amo mais que outra fl. 32/p. 141 A 124/B 239, [S] E deus me leixe de uos. ben fl. 32/p. 141 A 125/B 240, [D] Esoge mais ia senpreu roga fl. 32/p. 141 A 126/B 241, [P] unnei eu muit en me quitar fl. 32v/p. 142 A 127/B 242, [O] Ra uegeu o que nunca coidaua. fl. 32v/p. 142 A 128/B 243, Niun consello señor nõ me sey a esta coi [fim de autor / pequeno espaço col.d / fim de caderno] A recomposição deste caderno limita-se ao fólio homogéneo do fl. 29/p. 135, [fl. 29*] que abrangeria, como vimos, o início do ciclo de cantigas de FerGarEsg. É também esta a convicção de C. Michaëlis (1904, I: 234-238) e de Resende de Oliveira (1994: 145). Não é 164 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita igualmente exequível restabelecer aqui um quínio no âmbito deste sector, nem sequer um fólio prévio ao fl. 26/p.129, porque temos o prosseguimento do ciclo de PGarBu, vindo do caderno IV, nem tão-pouco um outro fólio, após o fl. 32/p. 141, porque estamos no fecho do ciclo de FerGarEsg com um diminuto espaço em branco. Teríamos, nesse caso, um quatérnio protótipo de recomposição relativamente espontânea. Caderno VI 33 34 35 36 [...] 37 38 39 36 [ * ] 37 38 Primitivo caderno VI 33 34 35 39 Neste caderno, encontramo-nos, de novo, perante um quatérnio incompleto (constituído por três bifólios completos e um fólio com carcela de 3 cm) que se inicia com um novo ciclo de poemas do trovador, RoyQuey, assinalado pela miniatura que precede A 129/B 250, Nostro sennor deus no fl. 33/p.143. As cantigas deste poeta prosseguem ininterruptamente no respectivo verso do fólio, nos fl. 34/p. 145, fl. 34v/p. 146, fl. 35/p.147, fl. 35v/p.148, fl. 36/149 e no fl. 36v/p. 150197. Em A 129/B 250, podemos ler uma fiinda que A não transmite. Ao lado da 197 Uma leitura do cancioneiro deste trovador em Panunzio (1971). 165 Capítulo 4. Disposição do suporte material primeira estrofe de A 130, encontra-se uma variante textual de toda a estrofe de uma mão que C. Michaëlis datou do século XVI198. [RoyQuey] A 129/B 250 [RoyQuey] / C 250 [RoyQuey] [miniatura] A 130/B 251 A 131/B 252 A 132/B 253 A 133/B 254 A 134/B 255 A 135/B 256 A 136/B 257 A 137/B 258 A 138/B 259 A 139/B 260 A 140/B 261 A 141/B 262 A 142/B 263 A 143/B 264 [...]/B 265 [amigo] [...]/B 266 [amor ‘giocosa’] O fl.36/p.149 é proveniente de Évora e o último restauro colocou-o acertadamente, quer dizer com a rebarba do lado direito e não ao lado esquerdo como se notava na encadernação precedente199. Justifica-se esta mutação, porque o texto do fl. 35v/p.148 prossegue com a respectiva fiinda no fl. 36/p.149. Manter a lacuna entre o fl. 35v/p.148 e o fl. 36 p.149 não se conceberia, porque a cantiga A 138/B 259, [S] Ennor fremosa uei o uus quei, iniciada ainda no final da col.d do fl. 35v/p.148, continua, portanto, no rosto, na col.a do fl. 36/p.149. C. Michaëlis 198 Esta variante com mudança métrica foi transcrita por C. Michëlis no aparato, atribuindo-a a António Ferreira (Michaëlis 1904, I: 263; II: 127). Carter inclui-a no Apêndice dedicado às notas marginais, adoptando, por dificuldades de leitura, a decifração da filóloga (Carter 1942: 186). S. Pedro, ao considerar que se trata de facto de uma mão tardia que escreve esta estrofe marginal à cantiga A 130, considera-a ilegível, não propondo melhor leitura. Caracteriza-a como uma letra humanista de finais do século XVI ou de princípios do século XVII, apresentando algumas semelhanças com o autógrafo nos últimos fólios, de Gonçalo Gomes Mirador (fl. 86v) que, por três vezes, ensaiou a sua assinatura (s.d.). 199 Era exactamente esta situação de um fólio com a rebarba mal cosida que ao manter-se no esquema da edição fac-similada, causava perplexidade e insólitas conjecturas a Ron Fernández na descrição da produção perdida inserida na edição conjunta da lírica (LPGP 1996: 1008). 166 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita tinha-o descrito exactamente deste modo, mas a inclusão deste fólio de Évora não tinha sido materialmente respeitada de acordo com a resolução acertada da filóloga200. No final deste fl. 36v/p. 150, vemos a última cantiga de RoyQuey, copiada em A, com a composição A 143/B 264, [P] Ois eu ora morto for. sei ben. Se esta é, de facto, a composição final deste trovador, aliás de estrutura breve [3x (2+1)], o espaço em branco desta col.d não parece destinar-se a outra cantiga, mas antes à marca de acabamento de ciclo. Nada impede, porém, de prognosticar que o fólio desaparecido (por certo, em branco) poderia aguardar novo material. O coleccionador poderia ter deixado o fólio homólogo em branco, destinado a acolher outros textos deste trovador201. A lacuna é também marcada pelo facto de a sequência carne /carne ser interrompida na passagem do fl. 36v para o fl. 37. Em B, verifica-se a presença apenas de mais duas cantigas atribuídas a RoyQuey. Uma delas, B 266, Pois minha senhor me manda é considerada por Tavani como uma cantiga de «amor giocosa», mas a cantiga que contém a numeração consecutiva à última que se encontra em A, corresponde a outro género que, em princípio, não deveria figurar no códice lisboeta. A cantiga B 265, O meu amig, que me muy gran ben evidencia pelo próprio incipit que se trata de uma cantiga d’amigo, que Tavani especifica ainda como «burlesca» (Rep., 148,15; 148; 17. Tavani 1967: 507). Devido ao pequeno espaço, uma «following one-half column», para reutilizar a designação de Carter (1941: 189), o copista poderia, no caso de dispor de outro texto, aproveitá-lo para a transcrição, pelo menos, do início de uma nova cantiga. Nestas condições, é de imaginar que, talvez, àquela cantiga de «amor giocosa», o compilador não tenha tido acesso, não se aplicando aqui, por consequência, uma perda textual202. No fl. 37/p. 151, temos o início de um outro ciclo antecedido de miniatura atribuível a VaGil com a cantiga A 144/B 267, Mvit aguisado ei, que continua a ser reproduzido no correspondente verso. Neste fl. 37v/p. 152 na transcrição de A 148/B 271, [S] E uus eu ousasse sennor no, o copista oferece-nos apenas duas estrofes nesta cantiga. Contrariamente a outros casos em que previu espaço para outra estrofe, aqui nada nos informa de que tenha havido 200 Era esta a posição do fólio com lacuna entre fl. 35v e fl. 36r que subsistia ainda no momento da edição fac-similada do Cancioneiro. O esquema relativo a este caderno mostra ainda a rebarba à esquerda (1994: 69). Chamei já a atenção para esta colocação do fólio, contrária à descrição de C. Michaëlis, quando reconstituí o caderno VI no ensaio dedicado aos sistemas de numeração do Cancioneiro (Ramos 1985: 35-36). 201 Nesta zona, como nos casos de dos ciclos de PaySrzTav e NuFdzTor, em princípio não se esperaria um fólio com o rosto em branco. 202 C. Michaëlis admite que o fólio perdido pudesse «têr contido mais alguns versos de Roy Queymado (...) se olharmos para o CB, que offerece no lugar correspondente mais duas cantigas d’esse trovador» (Michaëlis 1904, I: 288). Apesar do incipit com amigo, C. Michaëlis integra-a no seu Apêndice como tendo feito parte da composição inicial do Cancioneiro, editando as duas composições com os números 413 e 414 (Michaëlis 1904, I: 815-818). Se Resende de Oliveira exclui a presença desta cantiga d’amigo em A, não deixa inclusivamente de ter dúvidas quanto à autoria da própria cantiga d’amor B 266 a RoyQuey (Oliveira 1994: 145). 167 Capítulo 4. Disposição do suporte material percepção da carência textual. Em B 271, há mais uma estrofe posicionada entre a 2a e a 3a estrofes copiadas em A. Poderíamos talvez admitir que neste contexto tenha havido um salto de igual a igual, porque ao tratar-se de uma cantiga de refran constituído por um único verso, copiado portanto no final de cada estrofe, o erro pode ter sido motivado pela cópia do refran. Acrescento, entretanto, que o revisor que opera neste lugar induz correcção de algumas formas dos versos 2, 6 e 13. As rasuras que são mesmo visíveis na edição fac-similada e registadas também na edição paleográfica (Carter 1941: 89, n. 2, n. 3, n. 4, n. 5) denunciam uma verificação que não notificou, no entanto, qualquer falta de estrofe. É provável que o material de confronto também não a contivesse. O ciclo prossegue sem surpresa nos fl. 38/p.153, fl. 38v/p.154, fl. 39/p. 155 e fl. 39v/p. 156. No final da cantiga A 149/B 272, [E] stes ollos meus ei eu mui gran, no final da col. a, o copista deixa-nos espaço para mais texto, contrariamente ao que tinha sucedido no fólio precedente. Neste caso, B não transcreve mais nenhuma estrofe203. No verso do fólio, fl. 39v/156, encontra-se copiada na col.d a cantiga A 156/[.........], Punnar quer ora de fazer a meus com um pequeno espaço em branco no final da coluna, indicativo, por certo, de final de ciclo do trovador204. [VaGil] A 144/B 267 [VaGil] / C 267 [VaGil] [miniatura] 205 A 145/B 268 A 146/B 269 A 147/B 270 A 148/B 271 [intercalada mais uma estrofe em B] A 149/B 272 A 150/[.........] A 151/[.........] A 152/[.........] A 153/[.........] A 154/[.........] 203 C. Michaëlis indica também em aparato que não há mais nenhuma estrofe em B, mas alude à falta de «quatro folhas no apographo italiano» (Michaëlis 1904, I: 299). Não se trata exactamente de falta de folhas, mas de um caderno muito acidentado com lacunas assinaladas por sinais físicos, como fólios arrancados, concretamente, neste caso, os fólios que seguem os actuais fl. 70 e fl. 71 (Ferrari 1979: 106108). 204 Edição dos poemas de VaGil (Piccat 1995). 205 Uma extensa lacuna em B priva-nos de alguns dos textos de VaGil, assim como de outros que lhe seguiriam (JPrzAv,GEaVi, JSrzCoe). Este acidente de B é explicado por uma mutilação significativa desta zona (Gonçalves 1976: 21-23; 57) e por Ferrari (1979: 106-108). 168 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 155/[.........] A 156/[.........] Contrariamente a A neste sector, B não apresenta qualquer texto após A 149/B 272, [E] stes ollos meus ei eu mui gran, como se pode observar pela contagem. Faltam-lhe as últimas sete cantigas do ciclo VaGil transmitidas por A, assim como algumas das séries seguintes. Se A não poderá ser testemunho único de todos estes textos perdidos, por apresentar também lacunas e amputação, como vamos ver com a descrição dos cadernos seguintes, oferecer-nos-á porém a última parte do ciclo amoroso de VaGil. Além disso, dá-nos de seguida um texto de atribuição justamente complexa e cantigas de JSrzCoe que não chegaram a ser transmitidos por B. A. Ferrari, ao descrever esta zona em B, mostra como o caderno 9 que devia conter estes textos de VaGil corresponde a um «fascicolo posticcio», presentemente constituído por dois bifólios resultantes do que inicialmente deveria ter sido um caderno de cinco bifólios. O que subsiste deste primitivo caderno ou é consequência de um dos diferentes restauros comportados por B, ou A. Ferrari admite mesmo que esta situação precária do caderno provenha da primeira montagem dos cadernos. A demonstração de que, pelo menos, alguns destes textos de VaGil estavam copiados em B, é o reclamo que resta em uma das rebarbas (rebarba c no esquema do caderno 9, delineado pela filóloga italiana) com a indicação Et nõ soub que deve corresponder ou ao v. 1 ou ao v. 8, da penúltima cantiga, A 155, Non soube que xera pe sar. ssi pertencente presumivelmente ao ciclo de VaGil transcrito em A, se temos presente o modo de cópia do códice da Ajuda206. A este propósito vale a pena assinalar que este primeiro verso da 2a estrofe sofreu em A uma verificação pelo revisor e chegou a ser raspado. Podemos ler hoje Nõ ar soube parte affan com uma correcção marginal à esquerda ar que foi introduzido após rasura no verso, o que poderia certificar a variante que aparece na rebarba de B207. Mas a Tavola Colocciana ao indicar a sequência e os números de composições de autores nesta secção, aponta o estado inicial de B que devia abranger textos de VaGil, GonçEaVi, JPrzAv e JSrzCoe. E. Gonçalves, como já vimos, refere-se naturalmente a esta 206 Textos copiados em A com coerência decorativa pertencem ao mesmo trovador e neste caso não há nenhum elemento que permita separar a série. Quanto à interpretação do reclamo, A. Ferrari considera-o correspondente ao v. 8 de A 155 (Ferrari 1979: 106-108). C. Michaëlis admitia também que o reclamo fosse talvez uma variante do v. 8 (Michaëlis 1904, I: 307). Acrescento que poderíamos também encarar a hipótese de que esta indicação pudesse relacionar-se com o v. 1 da mesma cantiga A 155/[...], Non soube que xera pe sar. ssi, justamente pelo próprio incipit, embora a copulativa apele mais para o interior da cantiga e não para o início. 207 C. Michaëlis leu Nen ar soube parte d’affan, corringindo o ms. Nõ em Nen. O ms. é claro com o Nõ que deve ter o <õ> em vez de Non como no primeiro verso devido à rasura para a introdução da indicação marginal ar (Carter 1941: 93, n. 1). 169 Capítulo 4. Disposição do suporte material importante falha de B que nos despoja desta série de textos, mas compreensível pela «presenza tuttora avvertibile di brandelli delle carte asportate» (Gonçalves 1976: 21-23, 30, 57). Há porém outro factor que permite, sem dúvida, considerar este caderno de A como um autêntico quatérnio original, sem qualquer ocorrência de lacunas, o que é bastante expressivo em função da conjuntura deficitária de B nesta secção. A numeração primitiva X°J que está assinalada tanto no princípio do caderno, fl. 33/p. 143, como no final no fl. 39v/p. 156, com um levíssimo vestígio de um provável antigo reclamo neste último fólio, mas completamente ilegível, autentifica a primeira composição estrutural deste caderno VI208. Devido à numeração primitiva deste caderno, não há dúvida quanto à sua estrutura primitiva com quatro bifólios, não sendo possível a reconstituição em quínio209. Resta-nos a interpretação da lacuna do fl. [36*], par de um fólio proveniente de Évora com carcela nova de 2,7 cm, que deveria estar talvez em branco para receber possivelmente outros textos de RoyQuey. Se nos aferimos à sequência de B, não é possível conceber aqui outro fólio com um curto ciclo de poemas de um trovador menor, como sucedia no caderno III. [RoyQuey] Miniatura fl. 33/p. 143 A 129/B 250, Nostro sennor deus fl. 33/p. 143 A 130/B 251, DEste mundo outro ben non fl. 33v/p. 144 A 131/B 252, SEnnor que deus mui mellor fl. 34/p. 145 A 132/B 253, Fjz meu cantar e loei mia sen fl. 34/p. 145 A 133/B 254, Agora uiueu como querria ueer fl. 34v/p. 146 A 134/B 255, SEnprando coidando en meu fl. 34v/p. 146 A 135/B 256, NOstro sennor e ora que sera de fl. 35/p. 147 A 136/B 257, Por mia sennor fremosa quer fl. 35v/p. 148 A 137/B 258, NUnca fiz cousa de que me tan fl. 35v/p. 148 A 138/B 259, [S] Ennor fremosa uei o uus quei fl. 36/p. 149 A 139/B 260, [D] E mia sennor direỹ uos que 208 Refiro-me a esta numeração primitiva no capítulo dedicado aos diferentes sistemas de numeração do códice. 209 O facto de encontrarmos um sistema de numeração antigo neste caderno, não quer dizer que correspondesse necessariamente a uma sequência própria ao Cancioneiro. Podemos estar perante o aproveitamento de cadernos numerados destinados a outra aplicação e aqui utilizados. Cf. o capítulo dedicado às numerações primitivas e modernas. 170 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita fl. 36/p. 149 A 140/B 261, [C] Uidades uos mia sennor q’ fl. 36/p. 149 A 141/B 262, Djrei uos que mia uẽo mia fl. 36v/p. 150 A 142/B 263, [P] regoutou iohan garçia da mor fl. 36v/p. 150 A 143/B 264, [P] Ois eu ora morto for. sei ben [texto incompleto? / textos perdidos? / lacuna material] [VaGil] Miniatura fl. 37/p. 151 A 144/B 267, Mvit aguisado ei fl. 37/p. 151 A 145/B 268, [Q] ve partid eu serei sennor.de fl. 37/p. 151 A 146/B 269, [Q] ue sen mesura deus e contra fl. 37v/p. 152 A 147/B 270, [S] Ennor fremosa non ei oieu fl. 37v/p. 152 A 148/B 271, [S] E uus eu ousasse sennor no fl. 38/p. 153 A 149/B 272, [E] stes ollos meus ei eu mui gran fl. 38/p. 153 A 150/[.........], [M] uito punei de uus negar sen fl. 38v/p. 154 A 151/[.........], [S] Ennor fremosa pois posar aue fl. 38v/p. 154 A 152/[.........], [S] ennor fremosa quero uus rogar fl. 39/p. 155 A 153/[.........], [S] ennor fremosa pois mogeu assi. fl. 39/p. 155 A 154/[.........], [A] ỹ mia sennor quero uus p’gun fl. 39v/p. 156 A 155/[.........], Non soube que xera pe sar. ssi fl. 39v/p. 156 A 156/[.........], Punnar quer o ra de fazer a meus [fim de autor / pequeno espaço col.d / fim de caderno] [indicação da numeração primitiva X°J no fl. 33r e no fl. 39v] Caderno VII 40 41 42 43 44 171 45 Capítulo 4. Disposição do suporte material Primitivo caderno VII [*] 40 41 42 43 44 45 [*] O caderno VII (constituído por três bifólios reforçados com carcelas) principia actualmente com um texto A 157/[.....], NOstro sennor que miamin, no fl. 40r/p.157, desprovido de miniatura o que autoriza, desde já, supor um fólio anterior que contivesse textos precedentes com a inserção de miniatura relativa a este trovador. Não pode tratar-se, portanto de uma composição de abertura de ciclo. Tanto a disposição textual que ocupa a col.a, como o vazio total da b, consentem a suposição de que estamos perante uma cantiga que deve finalizar um ciclo. A situação material impele aliás a um problema atributivo importante. Esta única cantiga, A 157, não tem correspondência nos cancioneiros posteriores, devido à situação deteriorada de B, que não conteria nem o final das cantigas de VaGil, nem GonçEaVi, nem JPrzAv, nem sequer o princípio do ciclo de JSrzCoe. C. Michaëlis atribuiu-a a JPrzAv, considerando que, pela indicação de C, ter-se-iam perdido as séries de GonçEaVi, JPrzAv e parte do corpus de JSrzCoe, embora com uma imprecisão na contagem dos textos (Michaëlis 1904, I: 310-314; Tavani 1967: 441). Embora de modo interrogado, Tavani inclui-a no elenco dos textos atribuíveis a JPrzAv, mas ao mesmo tempo coloca-a na lista dos textos anónimos (Rep., 75, 12; 157, 34). D’Heur, pelo contrário, na sua nomenclatura associa a esta composição o nome do trovador GonçEaVi, servindo-se das mesmas sugestões de C210. Resende de Oliveira que examina todo este sector considera que, se o ciclo de A 158 a A 179 pertence ao mesmo autor, JSrzCoe, como vamos observar no caderno seguinte, então a cantiga A 157 só poderia pertencer ao autor precedente, de acordo com a informação de C. Nestas circunstâncias, a cantiga A 157 deveria ser atribuída, segundo a lista colocciana, a JPrzAv211. 210 Embora não se incluam aqui elementos de natureza interna nos critérios atributivos, pode assinalar-se que esta cantiga Nostro senhor, que mi a min faz amar (A 157), foi analisada com base na utilidade do método de análise retórico-estilística para a resolução de problemas atributivos (Fernández Graña 2000). 211 À imprecisão de contagem de C.Michëlis refere-se J. M. D’Heur para fundamentar justamente a sua atribuição desta cantiga a GonçEaVi e não a JPrzAv. Considera ainda o estudioso belga que o final do fl. 172 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Encontrando-se a col.b do fl. 40/p. 157 completamente em branco, após a cópia de A 157, e inaugurando-se no verso deste fólio um novo ciclo, parece-me claro que estamos fisicamente no final de ciclo de um autor do qual esta cantiga parece ser a única sobrevivência. É ainda indispensável persistir no facto de que o Autor desta cantiga não poderá ser, de qualquer modo, o Autor que se inclui no verso deste fólio devido à miniatura introdutória. Este fólio (fl. 40), agora reforçado com o fl. 45/p.167, por apoio material, transmite-nos o último poema, A 179/B 330, Por deus sennor que uos do conjunto de textos que é, geralmente, acordado a JSrzCoe. Já na situação prévia a este restauro, me parecia tratar-se de um fólio solto, mas inserto através de cola neste caderno, devido ao seguimento de textos do trovador JSrzCoe contido no respectivo verso. Este fl. 45r com o lado da carne coloca também outro problema material em relação ao fl. 44v que está do lado da pele. Não se respeita a regra de Gregory, mas o texto A 175, Deus que miogeu guisou de nos ueer, copiado na col.d deste fl. 44v, prossegue no fl. 45r, antes de A 176, [D]a mia sennor que tan mal uí, portanto há continuidade textual, mas não se verifica observância codicológica expressa até pelo verso deste fl. 45v onde são visíveis restos de pêlo. A análise às notas marginais presentes no Cancioneiro conduziu S. Pedro a um reparo ainda que sumário, acerca das diferenças morfológicas desta escrita aparentemete uniforme. Com fundamento no estudo do ductus do <z> estabelece que a mão que copia os dois últimos cadernos, XIII e XIV, também transcreveu este texto único presente no fl. 40r (Pedro s.d.). Se esta circunstância se apura na realidade, talvez se possa considerar que o ciclo de JSrzCoe estivesse já principiado no verso deste fl. 40 e que o copista que estava a trabalhar (ou que vai trabalhar) nos cadernos XIII e XIV tenha transcrito um ciclo em um caderno que se vai extraviar e do qual subsiste apenas esta composição (que seria a última) por aparecer no rosto de um fólio que deveria fazer parte do caderno seguinte. Mas, o que me parece mais relevante é, através desta situação – cópia dos dois cadernos finais, XIII e XIV e cópia também do fl. 40r – imaginar um trabalho não linear do ponto de vista da trasncrição textual. A uniformidade de trabalho da 39v [=p. 156] de A que coincide com o final do ciclo de VaGil indica mudança de autor, mas insisto no facto de que nunca há no Cancioneiro da Ajuda transcrição da obra de dois autores em um mesmo fólio. O fólio seguinte com o texto A 157, sem miniatura e com capital inicial decorada de acordo com os parâmetros de interior de corpus, não pode, portanto, ser princípio de ciclo. O vazio da col. b que D’Heur interpreta como lacuna (1973: 31-32; 51; 1975b, 24-25, 44-45), deve corresponder, como em outros casos de A, a um puro e simples final de Autor, onde não se começa novo ciclo, ou sinal de que ainda se aguarda a possibilidade de integrar outra cantiga. O facto de termos, pela primeira vez no códice, o início do novo ciclo com miniatura no verso do fólio quer dizer até que, em relação ao trovador de A 157, o compilador não esperava completar com muito mais textos. É aliás este critério de separação decorativa, para o qual chamei a atenção no breve estudo dedicado à eloquência dos espaços em branco em A (Ramos 1986), que leva Resende de Oliveira a dar uma atribuição diferente da de D’Heur a esta cantiga, considerando-a de JPrzAv (Oliveira 1994: 358-359). Cf. também Parrado Freire, que se limita a uma síntese a este propósito (2004). 173 Capítulo 4. Disposição do suporte material mão 1 que copia boa parte do ms. (até ao fl. 79r, se excluirmos este fl. 40r) tinha iniciado o ciclo de JSrzCoe no verso de um fólio, quer dizer que nos encontramos com uma mudança de critério ou com uma perturbação estrutural (os inícios de ciclos inscreviam-se normalmente no rosto do fólio). O facto de a nova mão, a mão 2 que efectua os últimos cadernos, reproduzir também um texto neste fólio que antecede o ciclo de JSrzCoe, evidencia que esta secção não se apresentaria de modo incontestável quanto à sua transcrição. Estamos, assim, perante um terno instituído por três bifólios originários de Évora, todos eles reforçados através da inserção de carcelas com moderno pergaminho. Esta procedência de um caderno integral, e não apenas de fólios isolados como nas circunstâncias anteriores, não pode deixar de nos levar a arquitectar um acidente paralelo relativo ao caderno precedente que deveria conter as cantigas de GonçEaVi e JPrzAv. Estes bifólios parecem ter estado, pelo menos alguns deles, primitivamente disjuntos. O facto de nos encontrarmos, logo de início do caderno, com um final de autor, seria legítimo imaginar um fólio ou mais que contivesse as primeiras cantigas deste trovador. Foi o que fez, naturalmente, C. Michaëlis ao introduzir um bifólio completo na reconstituição deste caderno eborense para perfazer o quatérnio. Não escondo que esta reconstrução levanta sérios problemas, sobretudo quanto à parte final do caderno. Se o actual fl. 45v/p. 168, como vimos, contém a cantiga final do ciclo, teríamos, nestas condições de conjecturar um fólio totalmente em branco, rosto e verso no final do caderno212. Deveríamos assim conceber que este potencial fólio [45*] compreenderia, por sua vez, um outro início de autor do qual nos resta a série que surge agora cosida de forma autónoma, e que passo a designar por caderno VIIa, constituído apenas por um fólio isolado com pestana, o fl. 46/p. 169. Esta suposição deve ser examinada, à luz de outros elementos e de acordo com a descrição do que nos resta hoje do caderno VIIa. A passagem do fl. 45v para o fl. 46 não se mantém a concordância pêlo/pêlo. [JPrzAv] A 157/[....] [JSrzCoe] A 158/[....][miniatura] A 159/[....] A 160/[....] A 161/[....] 212 Edição crítica dos poemas de JSrzCoe na tese de doutoramento [policopiada] apresentada à Faculdade de Letras de Lisboa por Ângela Correia (Correia 2001). 174 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 162/[....] A 163/B 316 A 164/B 317 A 165/B 317bis A 166/B 318 A 167-168/B 319 A 169/B 320 A 170/B 321 A 171/B 322 A 172/B 323 A 173/B 324 A 174/B 325 A 175/B 326 A 176/B 327 A 177/B 328 A 178/B 329 A 179/B 330 [JPrzAv/GEaVi/Anon] [lacuna] fl. 40/p. 157 A 157/[.....], NOstro sennor que miamin [provavelmente última composição de um ciclo / fim de autor / col.b em branco] [JSrzCoe/JPrzAv/Anon.?] Miniatura fl. 40v/p. 158 A 158/[....], En graue dia sen fl. 40v/p. 158 A 159/[....], [M] eus amigos que sabor aueria fl. 41/p. 159 A 160/[....], PEro meu ei amigos non ei fl. 41/p. 159 A 161/[....], [E] u me coidei u me deus fl. 41v/p. 160 A 162/[....], [O] Ra non sei no mundo fl. 42/p. 161 A 163/B 316, PElos meus ollos oúúeu fl. 42/p. 161 A 164/B 317, [N] On me sou ben dos me9 fl. 42v/p. 162 A 165/B 317bis, Nunca coitas de tantas gui. fl. 42v/p. 162 A 166/B 318, A tal ueieu aqui ama chamada fl. 43/p. 163 A 167-168/B 319, As graues coitas aquenas fl. 43/p. 163 A 169/B 320, SEnnor por deus que uus 175 Capítulo 4. Disposição do suporte material fl. 43v/p. 164 A 170/B 321, Comogeu uiuo no mundo fl. 43v/p. 164 A 171/B 322, Desmentido maqui un fl. 44/p. 165 A 172/B 323, SEnnor e lume destes ollos fl. 44/p. 165 A 173/B 324, SEnnor o gran mal e fl. 44v/p. 166 A 174/B 325, Noutro dia quando meu es fl. 44v/p. 167 A 175/B 326, DEus que miogeu213 a guisou fl. 45/p. 167 A 176/B 327, [D] a mia sennor que tan mal fl. 45/p. 167 A 177/B 328, MEus amigos quero u9 eu fl. 45/p. 167 A 178/B 329, Dizen que digo que uos que fl. 45v/p. 168 A 179/B 330, Por deus sennor que uos [fim de autor / espaço col.d / fim de caderno] Caderno VIIa 46 Primitivo caderno VIIa 46 O último restauro, ao tomar a decisão de coser este fólio (fl. 46/p. 169) de modo separado, baseou-se em um aspecto bem peculiar. O fólio apresentava, de facto, uma rebarba original (a pestana original mede cerca de 0,5 a 0,6 cm) com marca de já ter sido cosido pelo menos uma vez, de tal maneira que a sua dimensão, em relação a outros fólios do códice, continua a ser significativamente menor. A pestana está voltada para a esquerda, embora antes deste restauro se encontrasse voltada para a direita. Os técnicos inspiraram-se na regra de 213 Carter leu miogen transcrevendo os dois pontos de eliminação colocados debaixo de <en>. Acrescento que não só a correcção é feita a miogeu igualmente com os dois pontos de eliminação, mas há também um traço horizontal que elimina esta sílaba (Carter 1941:105), que C. Michaëlis não manteve na sua edição (Michaëlis 1904: 347). 176 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Gregory para esta modificação, ainda que o lado esquerdo pela lacuna material pudesse provar neste contexto outra posição (entre outra sequência de cadernos, por exemplo). Foi, por certo, este sinal distintivo que ocasionou a individualização deste fólio, não o associando os técnicos do restauro ao precedente caderno VII, nem no caderno VIII. C. Michaëlis mencionava também esta «folha avulsa» cosida pelo encadernador. Mas apesar de «bem aparada», admite que «o seu logar não era aqui, sendo ella o único resto de um caderno perdido, collocado aqui à toa». Considera ainda que o conjunto de cantigas seja de JPrzAv, devido à coincidência A 184=V 279a e que este fólio seria o que nos restava de um dos «cadernos desgatados antes de 1500» (Michaëlis 1904, II: 148, 206-207). Este fólio compreende um delimitado conjunto de cinco textos, de A 180/[.......], Que me uos nunca quisestes fa a A 184/B 677/V 279, [M] uitos uegeu que sse fazen de com atribuição desta última cantiga em B e em V a JPrzAv. A autoria destas cantigas tem sido por este facto controversa, desde C. Michaëlis que as conferiu, embora dubitativamente, a RodEaRed (?), partindo do princípio que C incluía o nome deste trovador após a série de JSrzCoe (Michaëlis 1904, I: 354-362). Tavani parte do princípio de que se a última cantiga da série, A 184, pertence a JPrzAv, todo o grupo deve ser, ainda que hipoteticamente, atribuído a JPrzAv (Tavani, Rep., 1967, 75, 7; 75,11; 75,15; 75,20; 75; 21; n. 5), e J. M. D’Heur mantém o conjunto no ciclo de JSrzCoe, situação que é materialmente inconcebível, de acordo com o habitual procedimento de A. O ciclo deste trovador deveria ter terminado, por conseguinte, no fl. 45v/p. 168, final do caderno VII (D’Heur 1973: 32-33; 52). Resende de Oliveira, ao considerar as cantigas de RodEaRed como um dos acrescentos tardios, admite a deslocação do fólio em A, eliminado a hipótese atributiva àquele trovador. Todas as atribuições têm partido, portanto, de sequências de A e B que não convêm ao estádio primitivo, sendo de excluir então tanto RodEaRed, por ser um Autor provavelmente não presente em A e JSrzCoe, pela disposição do seu conjunto de textos de forma coerente em A, não admitir outros cantigas.214. Finalmente, E. Gonçalves, no seu ensaio dedicado a JPrzAv, inclina-se também por uma atribuição a este trovador, considerando que este fólio devia proceder a cantiga A 157 (Gonçalves 2003)215. A sequência seria assim constituída 214 Qualquer consulta directa do códice reparava na particularidade física deste fólio, não só claramente solto, mas sobretudo com uma dobra nítida para a costura que o diminuía em relação aos outros fólios. A edição fac-similada acrescenta, aliás, uma margem branca à direita de cerca de 2cm, quando em quase todos os outros casos a margem se define à volta de 0,5 a 0,7cm. 215 Estas cantigas são publicadas na edição conjunta da lírica sob o nome de JPrzAv (LPGP 1996: 18, 489, 492, 494, 496, 497). 177 Capítulo 4. Disposição do suporte material por VaGil, JPrzAv, JSrzCoe e JPrzAv e este fólio deveria associar-se ao ciclo que precede JSrzCoe216. Por meu lado, e sem ter sequer a preocupação de aderir a uma ou outra posição atributiva, julgo que é essencial voltar a recordar que estas dificuldades atributivas são consequentes, de certo modo, à própria decisão de C. Michaëlis quando incluiu aquele fólio isolado neste lugar, quer dizer, no final do caderno VII. Se observarmos, no entanto, a edição Stuart que, desde ponto de vista, é particularmente útil, por ser a edição que nos dá a conhecer o códice no estado em que materialmente foi descoberto, verificamos que este actual fl. 46/p. 169 não se encontrava objectivamente nesta colocação. No momento em que Stuart editou o Cancioneiro, alguns fólios e um caderno (o actual VII) encontravam-se ainda em Évora (Stuart 1823). As principais diferenças sequenciais entre esta publicação e o que nós conhecemos hoje através da edição de C. Michaëlis são resultantes justamente da ausência destes fólios e deste caderno, além de algumas separações irregulares na estrutura das cantigas, sem naturalmente fazer referência aos problemas de leitura. C. Michaëlis refere-se às falhas da edição Stuart, enumerando diversas incorrecções no reconhecimento da identidade de cantigas, no reconhecimento dos grupos, no sistema de numeração, etc. (Michaëlis 1904, II: 6-8). Mas, neste contexto, a edição Stuart pode dizer-nos como se encontrava realmente o Cancioneiro, antes da intervenção material de C. Michaëlis, porque não é provável que Stuart tenha procedido a distorções ou a modificações de fólios217. Observando o sector que aqui nos interessa, verificamos como o ciclo de VaGil corresponde à ordem actual (A 144 a A 156). Regista-se apenas erro em A 148, em A 151 e em A 156 em que a fiinda da composição anterior é considerada como incipit e não como conclusão de cantiga, motivado pelo facto de estas fiindas possuírem espaço para a música218. Em continuidade a este ciclo de VaGil, que conclui o caderno VI, a edição de Stuart dános a transcrição dos textos que se encontram presentes no actual fl. 46/p. 169 com as cantigas A 180 a A 184219. E a sequência prossegue naturalmente com o início do actual caderno VIII 216 A Tavola Colocciana indica com o n°. 280, GonçEaVi, com o n°. 295, JPrzAv e com o n°. 301 RodEaRed. Não sendo possível estabelecer uma equivalência absoluta em relação a A, como vamos ver, prefiro não opor aqui as eventuais correspondências numéricas, contrariamente a D’Heur, que considera C 280 equivalente a A 157 e C 312 a A 159 (D’Heur 1973: 31-32, 51). 217 Na primeira parte do códice, faltam apenas os fólios que ainda permaneciam em Évora, o fl.4, referente ao início do ciclo de JSrzSom, o fl. 16, relativo ao ciclo de AyCarp, o fl. 17 com as cantigas de NuRdzCan, o fl. 29 com os textos de JNzCam e o fl. 36 com o final do ciclo de RoyQuey. 218 Erro semelhante ao que ocorreu em B na transcrição das fiindas com disposição musical em PGarBu. 219 Corresponde ao fólio que foi cosido, de modo autónomo, não neste lugar, mas no final do caderno VII, a que designo de cad. VIIa pela sequência que apresenta. 178 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita com o texto A 185 e com a série dedicada a RoyPaesRib220. O Quadro 3 mostra-nos como as discordâncias atributivas provêm da inserção do material eborense neste lugar por C. Michaëlis. Confrontando-se com dois mss. lacunares, C. Michaëlis decide integrar a série de JSrzCoe nesta sequência guiando-se pelo paralelismo que ocorre de A 163 =B 316 em diante. Fundamenta-se, assim, na atribuição de B, e como este ms. é lacunar quanto aos autores precedentes, insere o grupo A 180-A 184 após JSrzCoe considerando que este conjunto deve pertencer ao poeta que segue JSrzCoe em B, RodEaRed. Não se lhe afigurou que este fólio, até por elementos decorativos, podia preceder A 157, como nos mostra realmente a edição Stuart. Quadro 3 – Cadernos VI-VIII A / Stuart VaGil A 144 Michaëlis VaGil A 144 B/C VaGil B 267 / C 267 V VaGil [........] A 145 A 145 B 268 [........] A 146 A 146 B 269 [........] A 147 A 147 B 270 [........] A 148 A 148 B 271 [........] A 149 A 149 B 272 [........] A 150 A 150 [........] [........] A 151 A 151 [........] [........] A 152 A 152 [........] [........] A 153 A 153 [........] [........] A 154 A 154 [........] [........] A 155 A 155 [........] [........] A 156 A 156 [........] [........] 220 Todas as sequências dos trovadores presentes em A, até ao final do códice, apresentam, na edição Stuart, a disposição que conhecemos hoje, o que significa que as grandes distinções coincidem com os materiais eborenses que ainda não tinham sido integrados no Cancioneiro. 179 Capítulo 4. Disposição do suporte material Quadro 3 – Cadernos VI-VIII (cont.) A / Stuart Michaëlis B/C V fl. 46 [JPrzAv]/ [GonçEaVi] [........] A 180 A 181 A 182 colocados no final do A 183 material eborense [........] A 184 A 184= B 677 [JPrzAb] V 279 [JPrzAb] [........] Fl. e caderno VII Évora [........] fl. 40r [GonçEaVi] / [JPrzAv] [........] [........] A 157 C 280 [GonçEaVi] [........] [........] C 295 [JPrzAb] [JSrzCoe] [........] [........] fl. 40v a fl. 45v C 312 [JSrzCoe] A 158 [........] A 159 [........] A 160 [........] A 162 [........] A 163 B 316 A 164 B 317 A 165 B 317bis A 166 B 318 180 [........] O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Quadro 3 – Cadernos VI-VIII (cont.) A / Stuart [anon.] A 185 Michaëlis B/C V A 167-A 168 B 319 [........] A 169 B 320 [........] A 170 B 321 [........] A 171 B 322 [........] A 172 B 323 [........] A 173 B 324 [........] A 174 B 325 [........] A 175 B 326 [........] A 176 B 327 A 177 B 328 A 178 B 329 A 179 B 330 [anon.] A 185 [........] [........] C 301 [RodEaRed] [........] RodEaRed B 331 a B 336 [RoyPaesRib] [RoyPaesRib] [RoyPaesRib] [........] [........] A 186 A 186 B 337/C 337 [........] A 187 A 187 B 338 [........] A 188 A 188 B 339 [........] A 189 A 189 B 340 [........] A 190 A 190 B 341 [........] A 191 A 191 B 342 [........] A 192 A 192 B 343 [........] A 193 A 193 B 344 A 194 A 194 B 345 A 195 A 195 B 346 A 196 A 196 B 347 A 197 A 197 B 348 A 198 A 198 B 349 181 Capítulo 4. Disposição do suporte material O fólio isolado achava-se, portanto, no fecho do ciclo de VaGil, isto é, no final do presente caderno VI221. Vimos, no entanto, que não é possível que fizesse parte daquele caderno devido ao sistema de numeração primitiva. E C. Michaëlis ao aferir, que não era praticável a inserção naquele caderno, integra-o na conclusão das cantigas de JSrzCoe. Mas, podemos pensar que este fólio com estas cinco cantigas e um pequeníssimo espaço no final da cantiga A 184, continuasse no actual fl. 40/p. 157 com a cantiga A 157, que talvez fosse a última desse ciclo com seis cantigas conclusivas de um ciclo de um trovador, talvez JPrzAv, isto é: a) final do caderno VI com numeração primitiva; final de autor [VaGil]; não admite inserção de outro fólio; b) o fl. 46r/v seria o último fólio de um caderno extraviado com estas cinco composições: A 180 A 181 A 182 A 183 A 184/B 677/V 279 [JPrzAv] c) o fl. 40r que inicia o actual caderno VII conteria a última cantiga A 157 do ciclo que tinha terminado no caderno anterior e de que nos sobra apenas um fólio: A 157 (fl. 40r) d) no fl. 40v inicia-se outro trovador [JSrzCoe] que vai ocupar a totalidade do actual caderno VII, o que não permite qualquer alteração, por motivos de coerência decorativa; e) Se na realidade há mudança de mão neste fl. 40r (cópia da cantiga A 157) e mesmo que se admita a mesma atribuição de A 180 a A 184, não podemos deixar de ter em conta um diferente momento de cópia. Este texto, A 157, e talvez o ciclo ao qual pertencia teria sido adicionado em um outro momento diferenciado da cópia contínua da mão principal. 221 Esta localização permite reflectir na problemática do acentuado paralelismo entre A e B, sobretudo nas zonas de inserção de material proveniente de Évora. 182 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Aquelas cinco cantigas (A 180, A 181, A 182, A 183, A 184,) que, codicologicamente, se harmonizam (decoração, morfologia da escrita, etc.) transcritas em um fólio sobrevivente de um caderno acidentado e colocado no início de um novo caderno, constituiriam a parte final de um ciclo de um mesmo trovador. De acordo com C, este trovador poderia ser identificado a JPrzAv, se temos em conta o nome do trovador que precede JSrzCoe. Se se trata de uma lacuna mais primitiva, significa que este fólio de um caderno destroçado, não podia fazer parte nem do caderno VII e nem sequer do caderno VIII222. Mas quando se observa que o pergaminho de origem se encontrava dobrado e que apresenta marcas de ter sido cosido diferentemente, pode querer ainda indicar que houve uma circunstância, anterior ao achado do códice, em que tinha sido já empreendido salvaguardar este fólio, talvez mesmo no momento da encadernação conjunta das Linhagens e do Cancioneiro nos finais do século XV. É, por isso, que o fólio ficou, actualmente ainda mais reduzido em largura de 1,5 cm, 1,7 cm a 2 cm em relação aos outros. Resta-nos, por fim, a garantia de que A 157 só pode ser o texto final de um ciclo, visto que o novo Autor se transcreve no verso deste mesmo fólio. Mas, a mudança paleográfica aqui isolada interrogará também uma provável continuidade entre A 180 e A 184 por um lado e A 157 por outro. Insisto ainda que é, nesta posição, que vamos encontrar, pela primeira vez, na estrutura da cópia, um início de ciclo com miniatura no verso de um fólio e não no rosto, como em todos os casos anteriores. Esta mudança na transcrição do códice pode querer designar que estas zonas perturbadas são procedentes de mutação também dos procedimentos organizativos e dos materiais à disposição. Daqui em diante, este comportamento, aqui iniciado, voltará a aparecer nos ciclos de JLpzUlh (fl. 51v/p. 180), FerGvzSea (fl. 55v/p. 188), Anon. (fl. 77v/p. 232) e PPon (fl. 81v/p. 240). [JPrzAv / JSrzCoe/Anon.?] [lacuna] fl. 46/p. 169 A 180/[.......], Que me uos nunca quisestes fa fl. 46/p. 169 A 181/[......], [Q]ue sen meu grado mogeu fl. 46/p. 169 A 182/[......], PEr mi sei eu o poder que fl. 46v/p. 170 A 183/[......], Dizen mias gentes por fl. 46v/p. 170 A 184/B 677/ V 279, [M] uitos uegeu que sse fazen de [fólio a considerar talvez antes de A 157 / últimas composições de um autor] 222 Não deixa de ser surpreendente que a equipa que restaurou o códice não se tenha socorrido também da edição Stuart que, do ponto de vista material, corresponde mais ao estado do códice no momento da sua descoberta, do que a edição C. Michaëlis. 183 Capítulo 4. Disposição do suporte material Caderno VIII 47 48 49 50 51 52 53 54 50 51 52 53 54 Primitivo caderno VIII 47 48 49 O caderno VIII (com quatro bifólios completos) inicia com espaço previsto para miniatura no fl. 47/p. 171 e com uma única composição de um trovador, também de atribuição complexa, A 185/[......], Pois mental coita223. Todo o resto desta col.a e col.b permanecem em branco. Igualmente em branco está o verso deste fólio, fl. 47v/p. 172. Estamos, de novo, perante um indício de que o compilador previa completar o ciclo deste poeta do qual dispunha, no momento da cópia, apenas de uma única composição. A transcrição das cantigas do poeta seguinte, RoyPaezRib, com idêntica previsão de miniatura, começa no rosto do fl. 48/p. 173 e prossegue, sem acidente, até ao verso do fl. 50/p. 177 onde está copiada a cantiga A 198/B 349, 223 C. Michaëlis considera-a de Um desconhecido (II) (Michaëlis 1904, I: 363-366). Se Tavani a integra na lista dos Testi Anonimi, coloca-a também no conjunto dos textos de JPrzAv (75,17), mas esta eventualidade não se justifica devido à miniatura que encima A 185 (Tavani 1967: 517). D’Heur considera-a também de trovador Anónimo (1974: 32-33). Resende de Oliveira admite que, nesta posição, a cantiga possa ser atribuída a Estevan Travanca (Oliveira 1994: 70-72, 335). A edição LPGP, apesar da referência argumentativa do historiador, prefere ainda optar pelo anonimato (LPGP 1996: 23). 184 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [P] ar deus ay dona Leonor224. Não se pode considerar, em absoluto um final de autor, visto que, aqui também o compilador deixa não só a col.d em branco como todo o rosto do fl. 51/p. 179, igualmente sem texto, que deve ser explicado como espaço calculável para novos textos, embora B não nos conceda outras cantigas225. [RoyPaezRib] A 186/B 337 [RoyPaezRib] / C 337 [RoyPaezRib] [miniatura] A 187/B 338 A 188/B 339 A 189/B 340 A 190/B 341 A 191/B 342 A 192/B 343 A 193/B 344 A 194/B 345 A 195/B 346 A 196/B 347 A 197/B 348 A 198/B 349 O novo ciclo é retomado no próprio fl. 51v/p. 180 com as cantigas de JLpzUlh com a cantiga A 199/ B 350, A mía sennor que prosseguindo até ao fl. 54/p. 185. O conjunto de textos deste trovador mostra, no entanto, dois pequenos incidentes durante a cópia. O primeiro deles corresponde a um surpreendente pequeno espaço, na col.c do fl. 53v/p.184, no final de A 206/B 357, [N]ostro sennor que non fui, que não se assemelha aos outros casos de previsão para estrofe. Também no fl. 54/p.185, na col.b , no final da transcrição de A 209/B 360, [S]Enpr eu sennor roguei a, o copista inicia a cópia de um verso, [E] deseio meu mal, que é de problemática interpretação. Corresponderá este verso a um novo texto do trovador, ou a uma fiinda, subordinada à cantiga precedente. A ausência de decoração não permite avaliar o tipo de capital que lhe estaria destinada. Na realidade, a ausência de capital inicial tanto poderia fazer pensar no primeiro verso de uma nova composição: [E]u deseio meu mal, como no início de uma fiinda com previsão musical. No ciclo deste trovador, JLpzUlh de A 199 a A 209, só há 224 Edição dos poemas de RoyPaesRib (Barbieri 1980). Encontramo-nos aqui (fl. 51r/p. 179), pela primeira vez, com o rosto do fólio em branco conservado. Voltaremos a observar esta situação no fl. 55r/p. 187, no fl. 77r/p. 231e no fl. 81r/p. 239. 225 185 Capítulo 4. Disposição do suporte material previsão musical para a fiinda em A 202, enquanto as fiindas de A 204, A 205, A 207, A 208 não pertencem aos grupos de previsão musical. Se A 209 integrasse este grupo compacto sem previsão musical, talvez estivéssemos, então, em presença de um incipit226. Todo o resto desta col.b, assim como todo o verso deste fl. 54/p.185 e ainda o rosto do fl. 55/p. 187 que inicia o caderno IX permanecem em branco, o que viria consolidar a suposição de que seria possível completar o corpus do poeta com novo material, ou mesmo presumir a inclusão de um outro trovador, se atentamos na quantidade de pergaminho deixada em branco227. Se, em um primeiro momento, a passagem de início de ciclos ao verso dos fólios faz pensar em uma economia de pergaminho (poupar espaço), estes rostos em branco invalidam aquela primeira impressão. Inclinar-me-ia mais para uma mudança de compilador (ou um compilador que altera o seu critério inicial) adaptada a uma mutação de materiais. O cotejo com B é proeminente, tal como o ciclo de RoyPaesRib, com a incógnita do incipit de texto ou de fiinda no final de ciclo de JLpzUlh, após a transcrição de A 209: [JLpzUlh] A 199/B 350 [JLpzUlh] / C 350 [JLpzUlh] [miniatura] A 200/B 351 A 201/B 352 A 202/B 353 A 203/B 354 A 204/B 355 A 205/B 356 A 206/B 357 A 207/B 358 A 208/B 359 A 209/B 360 226 Edição crítica do ciclo deste trovador em uma dissertação apresentada em Pádua (Sbuelz 2003). C. Michaëlis pensa que este largo espaço devia conter outros trovadores presentes em B (Michaëlis 1904, I: 408; II: 210). Resende de Oliveira não considera, no entanto, os autores introduzidos em B como prováveis em A (Oliveira 1994: 309, 337, 419, 420, 428). Ron Fernández crê na possibilidade de que parte dos autores presentes em B, pudesse estar presente em A (LPGP:1009). Insisto apenas no facto de que esta disposição material com vasto pergaminho disponível permite apenas conjecturar a eventualidade de obter novo material do trovador já, em parte, transcrito, mas também autoriza conjecturar uma interrupção mais longa no trabalho da cópia que, ao iniciar o novo caderno, prevê ainda o rosto em branco. Não nos esqueçamos que nos encontramos num sector em que os ciclos se iniciavam no verso e não no rosto como na primeira parte do códice. Mas, entre os casos de início de ciclo no verso do fólio (JSrzCoe, fl. 40v; JLpzUlh, fl. 51v; FerGvzSea, fl. 55v; Anon., fl. 77v, PPon, fl. 81v), a situação de um dos Anónimos (fl. 77v) e de PPon (fl. 81v) surge também após um largo espaço em branco (verso de um fólio e rosto de outro), após a transcrição do ciclo de um Anónimo e de FerVelho, respectivamente. 227 186 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [....]/[.....] [Novo texto? / Fiinda?] O caderno trata-se, como se pode observar, de um quatérnio completo e sem qualquer lacuna. Não é previsível supor um bifólio suplementar para, eventualmente perfazer o quínio, porque quer o início do caderno com um ciclo novo, ainda que de atribuição complexa, como o final em branco não parecem autorizar outra estrutura. É o primeiro caderno que não sofreu qualquer acidente no seu interior, apesar do reforço efectuado agora entre o fl. 50/p. 177 e o fl. 51/p. 179 na parte central do caderno. [JPrzAv / Anon.?] Miniatura fl. 47/p. 171 A 185/[......], Pois mental coita fl. 47v/p. 172 [em branco] [final de autor/previsão textual/col.b c d] [RoyPaezRib] Miniatura fl. 48/p. 173 A 186/B 337, POr deus uus que fl. 48/p. 173 A 187/B 338, [N] unc assi ome de sennor fl. 48/p. 173 A 188/B 339, [D] E mia sennor entendeu ũa fl. 48v/p. 174 A 189/B 340, [Q] uando uus ui fremosa fl. 48v/p. 174 A 190/B 341, [T] an muit aia que non ui fl. 49/p. 175 A 191/B 342, [U] n dia que ui mia sennor fl. 49/p. 175 A 192/B 343, [T] anto faz deus a mia sẽnor fl. 49v/p. 176 A 193/B 344, [A] mia sennor a que eu sei querer fl. 49v/p. 176 A 194/B 345, [Q] uanteu mais donas mui fl. 49v/p. 176 A 195/B 346, [A] mia sennor que mui de fl. 50/p. 177 A 196/B 347, [O] s que mui gran pesar uiron fl. 50/p. 177 A 197/B 348, [A] guarir no ei per ren se fl. 50v/p. 178 A 198/B 349, [P] ar deus ay dona leonor. fl. 51/p. 179 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço nas col.d a b ] [JLpzUlh] Miniatura fl. 51v/p. 180 A 199/B 350, A mía sennor que fl. 51v/p. 180 A 200/B 351, [Q] uandeu podia mia sennor. 187 Capítulo 4. Disposição do suporte material fl. 52/p. 181 A 201/B 352, Ando coitado por ueer. un fl. 52/p. 181 A 202/B 353, [Q] uand ogeu ui peru podia fl. 52v/p. 182 A 203/B 354, [N] Ostro sennor que me fez fl. 52v/p. 182 A 204/B 355, [I] uro uus eu fremosa mia fl. 53/p. 183 A 205/B 356, [E] n q’ affan que ogeu ui esseỹ q’ fl. 53/p. 183 A 206/B 357, [N] ostro sennor que non fui fl. 53v/p. 184 A 207/B 358, [C]oỹt aueria se de mia sen fl. 53v/p. 184 A 208/B 359, [S] E eu moiro beno busquei fl. 54/p. 185 A 209/B 360, [S] Enpr eu sennor roguei a fl. 54/p. 185 [E] deseio meu mal [Novo texto? / Fiinda?] fl. 54v/ p. 186 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço fim col.b c d a b] Caderno IX 55 56 57 58 59 60 Primitivo caderno IX ? 55 56 57 58 59 60 ? O caderno IX (três bifólios completos) principia, como vimos, com o rosto do fl. 55/p. 187 em branco. Este espaço e uma eventual presença de um vestígio de fólio (de que hoje não subsiste qualquer indício) e devido à presença de vários trovadores em B, levou C. Michaëlis a considerar uma lacuna no início deste caderno, mas hesita depois quanto ao número destes 188 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita textos (1904, II: 210) 228. Não seria impossível que faltasse um bifólio (início e fim de caderno) porque a sequência carne/carne foi interrompida para pêlo na passagem do caderno VIII para o caderno IX. As cantigas do novo trovador, FerGvzSeav, começam a ser transcritas com a composição A 210/[....], Gran coita so, no fl. 55v/p.188 com miniatura e curiosamente com a capital decorada229. O ciclo prolonga-se até à col.b do fl. 58/p.193 com a última cantiga copiada deste trovador, A 221/B 389, NOstro sennor quen. O excedente desta coluna fica em branco, assim como o todo o verso deste fl. 58/p. 194. Ou estamos perante o final do ciclo deste trovador, ou pelo contrário, aguarda-se ainda material que pudesse ser transcrito no verso do fólio. Por irregularidades estruturais, B não nos transmite a série A 210 a A 216, mas uma das cantigas do interior da série, A 213/B 443/V 55, A dona que eu ui sempre por, é atribuída, em outra posição, ao trovador, Airas Veaz230. Resende de Oliveira interpreta a deslocação pelas vicissitudes da tradição ocorridas no século XIV, posterior, portanto, à confecção de A231. No momento da cópia do ciclo deste trovador, esta cantiga pertence codicologicamente ao mesmo trovador do ciclo que se iniciou no fl. 55v/p. 188 e que termina no fl. 58/p. 193. O ciclo encerra em A com espaço tanto no final da col. b, como em todo o verso. Como em outros casos, esta separação pode condizer apenas com uma separação de autor, como também revelar-se indicativa de que é ainda possível completar a obra amorosa de FerGvzSeav. A coerência de A no seu modo de transcrever estes textos impele a atribuição de A 213, apesar da concordância nominativa em B e V, com maior probabilidade a FerGvzSeav. 228 Entre JLpzUlh no final do caderno VIII e FerGvzSeav no início do caderno IX, B propõe-nos FerFdzCo, RodEaVas,PMaf, AfMdzBest e ainda PMaf com cantigas de amigo e de escarnho. Resende de Oliveira não pensa provável tal inclusão, mas nas biografias destes trovadores admite anomalias entre os cancioneiros (1994: 309, 337, 419-420,428). 229 Os aspectos decorativos incompletos, interrompidos ou nem sequer efectuados são descritos no capítulo dedicado à Decoração. 230 É deste modo que A. Ferrari interpreta esta zona de B, correspondente ao caderno 10. A anomalia estrutural explicaria a ausência destes textos em B. Mas, ao mesmo tempo, considera que o deslocamento de A 213, tanto em B como em V, contribuiria para esta dupla atribuição, motivada por um estado codicológico precário (Ferrari 1979: 109-110). O ciclo em B de AyVeaz (três cantigas de amor e uma de escarnho) encontra-se na zona final das cantigas de amor de B e V e a inclusão desta cantiga de escarnho que permite supor já modificação tardia na tradição textual (Lanciani 1974: 102-103). 231 Pelo número de trovadores ausentes em A, identificado pela sequência de B (AfMdzBest; FerFdzCog; PMaf e RodEaVas), admite o historiador que as divergências sejam independentes da cópia de A, quer dizer, situa as modificações que se documentam, neste caso, tanto em B como em V, como derivadas do exemplar remodelado no século XIV (Oliveira 1994: 146-147; 321- 322; 341-342). Por isso, AyVaez deve pertencer ao grupo de autores inseridos tardiamente (Lanciani 1974: 102-103). A este propósito pronunciara-se também D’Heur inclinando-se pela atribuição a FerGvzSeav (D’Heur 1973: 33 [nos 346352], 54, 57). 189 Capítulo 4. Disposição do suporte material [FerGvzSeav] A 210/[....] [miniatura] A 211/[....] A 212/[....] A 213/B 443 [AyVeaz]/V 55 [AyVeaz] / C 443 [AyVeaz] A 214/[....] A 215/[....] A 216/[....] A 217/B 384 [FerGvzSeav] / C 384 [FerGvzSeav] A 218/B 385 A 219/B 386 A 220/B 387 [....]/B 388 [ amor] A 221/B 389 O pequeno ciclo do novo trovador PGmzBarr principia analogamente com miniatura no fl. 59/p. 195 e conclui-se no início da col.c do verso do fl. 59v/p. 196. Sobra-nos, portanto, o resto desta coluna, assim como a col.d igualmente desprovida de texto: [PGmzBarr] A 222/B 392/V 2 [miniatura]232 A 223/B 393/V 3 Identicamente breve é o ciclo que principia no fl. 60/p. 197, atribuído a AfLpzBay, com apenas duas cantigas que ocupam apenas o rosto deste fólio. O final da col.b e todo o verso deste fl. 60v/ p. 198 permanecem em branco: [AfLpzBay] A 224/B 395/V 5 [miniatura]233 A 225/B 396/V 6 232 Embora Colocci assinale em B o novo trovador, PGmzBarr, não chega a inseri-lo, de igual modo, na Tavola (Gonçalves 1976: 57, n. 394). 233 Também aqui Colocci «ha traslasciato di riportare nella Tavola, prima del nome di Meen Rodriguez Tenoyro, quello di Don Afonso Lopes de Bayam», escrito por ele próprio em B, o que evidentemente provocará perturbação atributiva relativamente àquelas duas cantigas (Gonçalves 1976: 57, n. 397). 190 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Corresponde, portanto este caderno, e contrariamente ao precedente, a um terno completo com três bifólios sem vestígio de qualquer lacuna no estado actual234. Podemos estar perante um caderno ajustado também ao tipo de material que recolheu, como tínhamos já notado no caderno III. C. Michaëlis integrava, contudo, uma lacuna total para perfazer o quatérnio, mas do ponto de vista textual em A, não se encontra hoje motivo para tal inclusão. Entretanto, quando observamos o início do caderno X, que tem apenas a parte final da cantiga A 226/B 401/V 11, [Senhor fremosa creede per mi], é de conceber que começasse ainda no caderno precedente o início do ciclo deste novo trovador, MenRdzTen ou AfFdzCab. Se o fl. [54*], no começo do caderno IX teria de ser imaginado completamente em branco (rosto e verso), o fl. [60*] poderia já conter, no seu final, o início do ciclo de MenRdzTen ou AfFdzCab que compareceria já no início do caderno seguinte, o caderno X, com o terceiro verso de A 226/B 401/V 11, [Senhor fremosa creede per mi]. Naquele caderno IX, é ainda essencial apontar um aspecto material importante que ajuda a consolidar as difíceis características técnicas na preparação do códice e concretamente deste sector. A disposição do pergaminho no caderno não respeita o procedimento certo na colocação da pele. O lado carne do fl. 54v/p. 186, final do caderno VIII, não tem em consideração o rosto do fl. 55/p. 187, lado do pêlo, início do caderno IX o que poderia favorecer a hipótese de um bifólio perdido. fl. 55/p. 187 [em branco] [FerGvzSeav] Miniatura fl. 55v/p. 188 A 210/[....], Gran coita so fl. 55v/p. 188 A 211/[....], NEguei mia coita des fl. 56/p. 189 A 212/[....], POr non saberen qual ben fl. 56/p. 189 A 213/B 443/V 55, A dona que eu ui sempre por fl. 56v/p. 190 A 214/[....], SE ei coita muito a nego fl. 56v/p. 190 A 215/[....], DEs que uus eu ui mia fl. 57/p. 191 A 216/[....], DE mort e o mal que me fl. 57/p. 191 A 217/B 384, Aỹ mia sennor atanto lle fl. 57/p. 191 A 218/B 385, Sazon sei ora fremosa 234 A lacuna de um bifólio que se observava no início e no final do caderno tanto em Michaëlis (1904, II: 149) como no esquema da edição fac-similada (Cunha Leão 1994:[69]), deixou de ser necessária com a individulaização do fl. 46 (caderno VIIa). 191 Capítulo 4. Disposição do suporte material fl. 57v/p. 192 A 219/B 386, Gradesc a deus que me fl. 57v/p.192 A 220/B 387, POis o uiuo mal que eu so fl. 58/p. 193 A 221/B 389, NOstro sennor quen fl. 58v/p. 194 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço fim col.b c d] [PGmzBarr] Miniatura fl. 59/p. 195 A 222/B 392/V 2, Qvandeu mia se fl. 59/p. 195 A 223/B 393/V 3, POr deus sennor tan gran fl. 59v/p. 196 [cont.] A 223/B 393/V 3, POr deus sennor tan gran [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço início col.c d] [AfLpzBay] Miniatura fl. 60/p. 197 A 224/B 395/V 5, SEnnor que fl. 60/p. 197 A 225/B 396/V 6, [O] Meu sennor me guisou fl. 60v/p. 198 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço final col.b c d] Caderno X 61 62 63 64 [...] 65 192 66 67 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Primitivo caderno X [61] [*] 62 63 64 [*] 65 66 [*] [67] Este caderno X (três bifólios completos e um fólio com pestana de 1 cm) principia com uma composição que devia ter sido iniciada em um fólio anterior quase com os dois primeiros versos de A 226/B 401/V 11, [Senhor fremosa creede per mi]/[................] çon e gran direito faç e mui grã atribuída nos cancioneiros italianos e na Tavola Colocciana a MenRdzTen ou a AfFdzCab235. Vimos que o caderno IX se concluía de modo claro com o verso do fl. 60 v/p. 198 em branco, mas se reconhecemos esta lacuna inicial da cantiga A 226, será então possível prever o princípio deste ciclo com miniatura já no caderno anterior e que vai prosseguir neste caderno X com a continuação da cantiga A 226 e ainda a reprodução de A 227/B 402/V 12, Quando meu mui triste que termina na col. b (Michaëlis 1904, I: 436; II: 210). Toda a parte final desta coluna e todo o verso permanecem em branco. Resta-nos, portanto, deste trovador apenas a transcrição de duas cantigas finais de ciclo, se assim entendemos o espaço que nos é deixado. O cotejo com os cancioneiros italianos, permite-nos presumir que a estas duas cantigas deveria existir, muito provavelmente em A, um conjunto de quatro cantigas que são, tanto em B como em V, atribuídas a MenRdzTen. Nestas circunstâncias, observamos que o fólio, desaparecido nesta disposição em A, deveria conter a miniatura introdutória a este trovador e tanto no rosto como no verso desse fólio, se deviam encontrar talvez as quatro cantigas que estão transcritas em B e em V236: 235 A cantiga é atribuída a AfFdzCab em B e em C. A série em C e em B 398- B 403bis trazem um atribuição a AfFdzCab, enquanto a mesma série em V 8-V 13 se encontra sob a rubrica MenRdzTen. Neste caso, a crítica inclina-se para favorecer a rubrica de V, visto que a primeira cantiga da série B 718, tanto em B como em C, são indicadas como de Tenoiro (Marroni 1970; 1971). 236 B transmite ainda mais duas cantigas com atribuição a este trovador: B 403, um fragmento da cantiga d’amigo, B 718/V 319, Hir-vus queredes, amigo, d’aquen, quer dizer que se encontra nesta secção (B 403/V 13) apenas a cópia da primeira estrofe desta composição, acidente que remonta naturalmente ao modelo e que não deveria, pelo próprio género, figurar em A.Também a tenção com Juyão Bolseiro, Juyão, quero contigo fazer (B 403bis /V 14) por idênticos motivos não podia ter sido copiada em A. As causas destas modificações em B e V são explicadas por Resende de Oliveira pelas modificações da 193 Capítulo 4. Disposição do suporte material [MenRdzTen] A [...]/B 397 [MenRdzTen] / V 7 [MenRdzTen] / C 397 [MenRdzTen] [amor] A [...]/B 398/V 8 [amor] A [...]/B 399/V 9 [amor] A [...]/B 400/V 10 [amor] A 226/B 401/V 11 [lacuna inicial] A 227/B 402/V 12 Seria indispensável igualmente prever a inclusão de um bifólio, do qual não resta qualquer indício, antes do fl. 62/p. 201, porque temos só parte da cantiga A 228/B 418/B 426/V 29/V 38, [Que muytos me preguntáran] e direi uolles eu poren do ciclo de JGarGlh no fl. 62/p. 201, que continua a ser transcrito nos fólios seguintes, fl. 62v/p. 202, fl. 63/p. 203, fl. 63v/p. 204, fl. 64/p. 205, concluindo-se o ciclo deste trovador no fl. 64v/p. 206. A esta conjectura seria espontâneo imaginar o fólio homólogo entre o fl. 66/p. 209 e fl. 67/p. 211237. Segue-se uma nova lacuna, homóloga do fl. 64/p. 205, que poderia estar também em branco tanto o rosto como o verso. O confronto com os outros cancioneiros mostra o ciclo deste trovador do seguinte modo: [JGarGlh] [..........]/B 417 [JGarGlh] /V 28 [JGarGlh] / C 417 [JGarGlh] [amor] A 228/B 418/B 426/V 29/V 38 A 229/B 419/V 30 A 230/B 420/V 31/V 32 A 231/B 421/V 33 A 232/B 422/V 34 A 233/B 423/V 35 A 234/B 424/V 36 [......]/B 425/V 37 [escarnho] tradição no século XIV (1994: 54, 147-148, n. 52, n. 53; 389-390). São estas transformações sofridas pelo outro ramo da tradição que permite não considerar AfFdzCab, autor por certo tardio, presente em A (Marroni 1970: 71-75; Oliveira 1994: 73-74). Não penso que seja uma falta de espaço em A que tenha impedido a transcrição das duas cantigas de MenRdzTen, mas antes o género das composições (uma cantiga d’amigo e uma tenção) que não tinham lugar na colectânea da Ajuda. 237 Não me parece necessário imaginar outro Autor (Michaëlis 1904, I: 466). Podemos estar na situação normal de conclusão de ciclo. Não é também obrigatório conjecturar uma lacuna textual do trovador para supor a existência do fólio (contrariamente à opinião de Ron Fernández 1996: 1011), porque o fólio podia estar completamente desprovido de texto. 194 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 228/B 426/B 418/V 29/V 38 [......]/B 427/V 39 [amor] A 235/[......] / [......] A 236/[......] / [......] A 237/[......] / [......] A 238/[......] / [......] A 239/[......] / [......] A síntese mostra, além do paralelismo das cantigas deste trovador, algumas irregularidades. A primeira delas corresponde justamente ao início do ciclo em A com a parte final da cantiga A 228/B 418/B 426/V 29/V 38, [Que muytos me preguntáran] / [..........] e direi uolles eu poren, isto é, final da terceira e quarta estrofes de JGarGlh com múltipla tradição238. Acompanhando a estrutura material de A, é praticamente impossível imaginar que este fólio desaparecido contivesse apenas o início desta composição e ainda a que vai abrir o ciclo em B e V. Concebendo que este fólio conteria, em princípio, miniatura inicial, preliminar ao ciclo de JGarGlh, supondo mesmo que a primeira cantiga seria a que encontramos em B 417/V 28, Queyxey-m’eu d’estes olhus meus com uma estrutura 3x (4+2) +2, não é permissível prever, logo de seguida, a cópia de B 418/V 29, equivalente a A 228, porque só vamos encontrar o epílogo desta composição no rosto do fólio seguinte. Não é então provável adoptar esta contingência no fólio desaparecido em A. Como esta cantiga em B/V se apresenta, além disso, em dupla cópia, temos então de prever um estado do corpus de JGarGlh levemente diferenciado entre o momento da cópia de A e a fase da composição do modelo que originará as cópias italianas239. Poderíamos talvez arquitectar a cópia neste fólio perdido da cantiga B 425/V 37, Deus, como sse foron perder e matar, incluída, de facto, no Apêndice de C. Michaëlis como A 455, mas tratando-se de um escarnho de amor não é inquestionável que estivesse presente em A, de acordo com o projecto inicial de organização. É um argumento suplementar para pensarmos que este fólio, com o início do ciclo de JGarGlh, dispunha de uma sequência de textos da qual não é fácil determinar a quantidade, mas não corresponderia, na íntegra, ao estado da tradição 238 Uma das primeiras edições individuais de trovadores galego-portugueses contempla este poeta, JGarGlh (Nobiling 1908). 239 A transcrição desta cantiga deixa transparecer algumas insuficiências textuais: em B 418/V 29 [fl. 92v/fl. 8r], falta-lhe o incipit; em B 426/V 38 [fl. 94r/fl. 9v], temos uma precária separação de versos. 195 Capítulo 4. Disposição do suporte material prévio às cópias italianas240. A cantiga que em B/V encerra o ciclo de JGarGlh, B 427/V 39, A mha sennor ja lh’eu muyto neguey pressagia alguma hesitação atributiva entre os dois cancioneiros241, e entre os dois trovadores EstFai e JGar Glh. Além disso, a dupla cópia em B/V de A 228/B 418/B 426/V 29/V 38 mostra não só diferença de tradição (B 418 não copia o primeiro verso), como revela que, no início, o ciclo de JGarGlh se apresentava de modo complexo242. A cantiga A 230/B 420/V 31/V32 demonstra também alguma hesitação quanto ao modo de transcrição. O refran de estrutura particular (três versos com uma variatio no primeiro deles) ocasionou alguma perturbação já na segunda estrofe de A. Em B 420, o copista segue uma estrutura normal, copiando na primeira estrofe a integralidade do refran, mas nas duas seguintes, reproduz o primeiro verso de modo idêntico sem reproduzir a variatio243. O mesmo erro é reproduzido também pelo copista de V com uma inexactidão adicional. Entre a transcrição da primeira estrofe e as duas seguintes é introduzida uma rubrica atributiva, Joham Guilhade, como se a primeira estância correspondesse a uma composição monostrófica244. No fl. 65/p. 207, inicia-se com previsão para miniatura relativa a um curtíssimo ciclo de EstFai com A 240/B 428/V 40, [U] Edes sennor, reduzido praticamente a esta composição, porque de A 241/[.............], [P]Or muitas cousas eu que resta-nos apenas o incipit 245. O verso do fólio está também em branco e, no fl. 66/p. 209, temos outro agregado de quatro cantigas 240 Resende de Oliveira, como em outros casos, interpreta estas modificações em B/V como resultantes de «novo arranjo após a cópia de A» até pela presença de autores tardios (sobretudo AfSchz, mas também EstGuar, POrn no sector das cantigas de amigo) que podem ter perturbado a sequência. Além disso, pela própria cronologia, não podiam estar incluídos em A. Admite que B 425/V 37 pudesse estar copiado em A (Oliveira 1994: 148; 362-363). Mas a colocação de escarnhos de amor em A merecia uma reflexão independente que tentasse avaliar a inserção destes casos no códice de Lisboa. 241 Se em B é clara a inserção no grupo de JGarGlh, em V, parece que a atribuição se integraria sob o nome de EstFai que se encontra inscrito no alto, à direita do fl. 9v, mas é provável que esta indicação se reporte ao ciclo seguinte com EstFai (Tavani 1967:432, 70,5; LPGP, 1996: 440). 242 A complexidade deste sector em relação a A é visível através de C que regista claramente a inserção de AfSchz após os dois conjuntos de MenRdzTen e AfFdzCab e antes do registo a JGarGlh (Gonçalves 1976: 31-32). A estrutura de B mostra exactamente a mesma sequência quanto a estas séries de trovadores, AfSchz do fl. 90v a fl. 92v e JGarGlh do fl. 92v a fl. 94v, copiadas no caderno 11 (Ferrari 1979: 111-112). 243 O refran apresenta-se do seguinte modo em A: Meu amig en / quanteu uiuer.nunca uus / eu farei amor per que faça / o meu peor. (1a estrofe); direi uol amig outra uez com a repetição errónea de Meu amig en quanteu uiuer (2a estrofe) e meu amig ar direi q’ nõ (3a estrofe). 244 Michaëlis reconsidera todo este sector, hesitando justamente quanto à sua conjectura relativa a esta lacuna (16a) (1904, I: 442; II: 210). 245 Tínhamos observado já em JLpzUlh o caso de [E] deseio meu mal (na sequência a A 209) no fl. 54/p. 185, em que não é claro se estamos perante um incipit de um novo texto ou de uma fiinda relativa a A 209/B 360, [S]Enpr eu sennor roguei a, já que a decoração não chegou a ser efectuada neste fólio. A presença do incipit apenas, levou C. Michaëlis a referir uma interrupção de trabalho de copista «talvez ao reconhecer que tinha commetido um erro». Mas não se pode eliminar a hipótese de um problema material ao nível da fonte, ao pensarmos também que estamos em presença de um escasso ciclo de um trovador [EstFai] com uma cantiga transcrita apenas e com este início que acaba por não ter continuidade. Trata-se de um brevíssimo ciclo que mesmo na cantiga anterior (A 240, vv. 1, 7, 13) apresentava já problemas textuais com rasuras sem alternativa em nota marginal (Carter 1941: 139, n. 1; Michaëlis 1904, I: 469). 196 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita atribuíveis a JVqzTal246. A conclusão da última cantiga, A 245/B 433/V 45, [E] stes que ora dizen mia sen ocupa só parte da col.d do fl. 66v/210, ficando-nos o excedente da coluna em branco. O pequeno espaço que se observa no final da cantiga A 244/B 432/V 44, [M] Eus amigos muitestaua não me parece que convenha nem a estrofe, nem talvez sequer a fiinda247. Devíamos incluir aqui o fólio correlativo ao que foi previsto antes do actual fl. 62/p. 201. Conceberíamo-lo também em branco tanto o rosto como o verso, ou com previsão textual para outros textos de JVqzTal, ou para um diverso trovador. As concordâncias são relativamente próximas nos grupos destes dois trovadores. Se a cantiga B 429/V 41, Senhor fremosa, des que vos amey tem um incipit que não corresponde ao único verso copiado em A 241, Por muitas cousas eu que, podemos pensar em outra versão, ou mesmo em outro texto que A não chega a transcrever248. Quanto à série de JVqzTal, o cotejo parece coincidente entre as quatro composições transmitidas. Temos ainda uma composição, B 1549, Sancha Perez Leve, vós parecedes que Tavani considera de «amor giocosa» copiada em outro sector de B e que não deveria constar do projecto de A, nem pelo género nem pelo pouco espaço deixado249. Esta cantiga não figura, aliás, no Apêndice de C. Michaëlis (Tavani 1967: 450, 81,19). Encontramos no fl. 65/p. 207, apesar do espaço para a miniatura, um novo ciclo rudimentar, em que a reciprocidade com B não é absoluta. Se a cantiga inicial é conforme, a composição que é copiada em segundo lugar não equivale ao incipit de A. [EstFai] A 240/B 428 [EstFai] / V 40 [EstFai] /C 428 [EstFai] A 241/[...................] [.......]/B 429/ V 41 Segue-se no fl. 66/p. 209 novo ciclo de quatro cantigas de JVqzTal com total conformidade em toda a tradição250. 246 Edição do cancioneiro de Talaveira (Annichiarico 1974). Observamos também um espaço semelhante a este em JLpzUlh, A 206/B 357, [N] ostro sennor que non fui [fl. 54r no cad. VIII]. 248 O ms. apresenta unicamente [P] or muitas cousas eu que que C. Michaëlis transcreveu com mais uma sílaba sei: Por muitas coisas eu que sei (Michaëlis 1904, I: 470; Carter 1941: 140). 249 Avaliada como escarnho de amor (LPGP 1996, I: 558-559) tinha sido, no entanto, incluída nas Cantigas de Amigo (Nunes, Amigo, I: 247). 250 A indicação de JVqzTal não se encontra em C. Como nos casos de PGarBu, PGmzBarr, AfLpzBay, Colocci não inclui o nome de JVqzTal, como o fez em B em correspondência a B 430, não se registando o habitual paralelismo entre B e C com o ciclo B 430 a B 433 (Gonçalves 1976: 57, n. 434). 247 197 Capítulo 4. Disposição do suporte material [JVqzTal] A 242/B 430/V 42 A 243/B 431/V 43 A 244/B 432/V 44 A 245 / B 433/V 45 Temos ainda neste caderno no fl. 67/p. 211, após estes dois ciclos, o início da série de PayGmzCha com a cantiga A 246/B 811/V 395, [A] Dona que que inaugura com miniatura o conjunto de cantigas que se prolonga no caderno seguinte251. [PayGmzCha] [cantigas d'amor A/B/V] [.......]/B 808 [PayGmzCha] / V 392 [PayGmzCha] / C 808 [PayGmzCha] [amor] [.......]/B 809/V 393 [amor] [.......]/B 810/V 394 [amor] A 246/B 811/V 395 A 247/[..................] A 248/B 816/ V 400 A 249/[..................] A 250/[..................] A 251/[..................] A 252/[..................] A 253/[..................] A 248bis/B 816/V 400 A 254/[..................] A 255/B 842/ V 428 A 256/[..................] [secção cantigas d’amigo B/V] 251 Apesar de ser um dos trovadores, transmitido através de uma intrincada tradição textual é, no entanto, um dos que possuímos uma significativa edição crítica de C. Cunha (1945; 1999), além da pioneira de Cotarelo Valledor (1934; 1984). São de diferente natureza os elementos que permitem conjecturar para o ciclo de PayGmzCha uma proveniência diferenciada dos restantes grupos. Não só a própria cronologia actualmente proposta para este trovador, como a dupla cópia de uma mesma cantiga A 248 e A 248bis e algumas das correcções marginais, permite supor um outro tipo de fonte neste sector. 198 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [.......]/B 808/V 392 [amor] [.......]/B 809/V 393 [amor] [.......]/B 810/V 394 [amor] A 246/B 811/V 395 [amor] [.......]/B 812/V 396 [amor] [.......]/B 813/V 397 [amor] [.......]/B 814-815/V 398 [amor] [.......]/B 815bis /V 399 [amor] A 248/A 248bis /B 816/V 400 [amor] B 817 / V 401 [amigo] [.......]/B 818 / V 402 [amor] secção cantigas d’amigo B/V] B 838/V 424 [amigo] C 838 [PayGmzCha]252 B 839/V 425 [amigo] B 840/V 426 [amigo] B 841/V 427 [amigo] A 255/B 842/V 428 [amor] B 843/V 429 [amigo] [.......]/B 844/V 430 [amor] Pela designação numérica, é notória a ausência de paralelismo entre A e B/V. No primeiro grupo, tendo presente a organização de A, observamos que da sequência de doze cantigas em A, só encontramos nos cancioneiros italianos, três. Mas desta evidência, é ainda necessário assinalar a repetição de uma das cantigas em A. Se este fenómeno único em todo o códice merece naturalmente reflexão por si só, visto não ser excepcional em este tipo de cancioneiros antológicos ou compilatórios a repetição de peças soltas, a retransmissão de A 248 incorre em outro aspecto adequado aos processos de propagação das poesias deste trovador. 252 Este é um dos casos apontados por E. Gonçalves para evocar o significativo paralelismo entre B e C, concretizado através do erro comum aos dois testemunhos. Relativamente ao nº 838 tanto C como B designam Pae Gomez Charinho com o nome de Pero, enquanto V mantém o nome de Pae, ainda que se possa admitir, como o sublinha E. Gonçalves, uma correcção conjectural de V, motivada pela notoriedade do trovador (Gonçalves 1976: 20). 199 Capítulo 4. Disposição do suporte material Podemos também averiguar que o início em A 246/B 811/V 395 não compartilha a abertura do ciclo que, como se observa, tanto em B como em C começaria já em B 808253. Se é claro que uma mudança de algumas cantigas de amor para o bloco das cantigas de amigo, não constitui uma surpresa, quando pensamos nas remodelações da tradição, como precisamente o assinala Resende de Oliveira, é imprescindível apontar que, mesmo na transcrição do ciclo em A, não nos achamos perante uma tradição imperturbável254. Se os ciclos incompletos mostram que o compilador tem consciência da deficiência do material recolhido e não hesita em prever condições de cópia que vão melhorar a sua colecção (fólios disponíveis, espaços para estrofes), a cópia do ciclo de PayGmzCha, contrariamente a outros casos já assinalados com nítida previsão textual, revela-se de um modo distinto, quero dizer que este ciclo no interior da sua transcrição não deixa transparecer a instabilidade material que observamos em outras séries. Por um lado, o ciclo encontra-se copiado no interior de um caderno, o caderno X. Não podemos imaginar, portanto, um acrescento postiço e diferenciado dos outros casos, ou mesmo uma espécie de apêndice com as cantigas de este trovador mais tardio. Por outro lado, se assim fosse, teríamos de incluir os trovadores precedentes que provinham, mesmo do caderno IX (MenRdzTen), o longo ciclo de JGarGlh, os mais breves de EstFai e JVqzTal, antes de depararmos com a transcrição de PayGmzCha. Neste momento, temos de prever que é deste modo que deve ter chegado ao compilador a colecção PayGmzCha. E acrescente-se ainda que é copiado pela mão 1. A modificação material não é resultante nem coincide com uma perturbação paleográfica. Contrariamente também a outros ciclos, PayGmzCha comparece com miniatura precedente à cantiga A 246, o que significa que, para o responsável de A, a obra deste autor se iniciava visivelmente com aquela cantiga. Não é concebível, portanto, no plano de A, imaginar dois textos precedentes, como se apura em B/V e em C. Não só era manifesto para o compilador de A este começo de ciclo, como a própria cópia deixa transparecer uma continuidade textual serena sem perturbação no interior dos textos. Este aprazimento textual perante o modelo é ainda perceptível na passagem de um caderno para o outro, quer dizer que esta contiguidade material atesta certa identidade do corpus. A cantiga A 249 prossegue no rosto do fl. 68/p.213, 253 Este fenómeno não é raro. Vimos já outros casos em que a cantiga miniaturada em A não corresponde à cantiga inicial em B. Recordo os casos dos trovadores JSrzSom, AyCarp, NuRdzCan. 254 As cantigas de amor que não chegaram a ser copiadas em B (e a Tavola Coloccina consolida o paralelismo da tradição italiana) podem ter desaparecido no momento do novo ajuste de textos com a organização da nova colectânea, daí a eventualidade de as cantigas de PayGmzCha ter sido integrada na tradição em duas maneiras diferentes. Resende de Oliveira invoca aliás, para esta diversidade, a cronologia tardia de PayGmzCha (considera-o falecido em 1295) e, assim sendo, é natural que a primeira compilação do século XIII não tivesse tido acesso a todos os textos (Oliveira 1994: 55-56). 200 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita início do caderno XI, o que nos confere também um indício de uma continuidade fascicular255. No final de ciclo, no fl. 70/p. 217, já no caderno XI, podemos imaginar que o fólio desaparecido estivesse em branco e que pudesse acolher material de Charinho. Mas, no interior do ciclo, vamos já dar conta de alguns aspectos que nos indiciam certa fragilidade textual. Independentemente das três primeiras cantigas de amor que comparecem em B/V, a cantiga inicial em A figura nos dois cancioneiros italianos de modo incompleto. A última estrofe não chegou a ser copiada nem em B 811, nem em V 395256. A cantiga A 248 encontra-se também copiada no fl. 69/p. 215 e no fl. 69v/ p.216 com algumas variantes depois da primeira transcrição no fl. 67v/p. 212257. Mas, além desta dupla cópia em A, os cancioneiros italianos transmitem-na reduzida apenas às duas primeiras estrofes. Tal como a cantiga anterior, também esta é difundida defeituosamente. É também neste sector que, mais recentemente, G. Lanciani ao ocupar-se deste texto recopiado no interior do ciclo de PayGmzCha, não só propunha uma plausível explicação do mecanismo da reprodução textual, como admitia, também, um diferente modo de copiar desta zona, ou pelo menos deste autor. Este texto duplo permitia explicar que o Cancioneiro da Ajuda fosse o «primo esempio di canzoniere collettivo organizzato (intenzionalmente) per generi e costruito da materiali sciolti di varia natura e provenienza», fortificado justamente pelo exemplo da composição repetida de PayGmzCha. «più che svista o disattenzione di copista (...) sembra essere la traccia di un problema più complesso di tradizione e potrebbe spiegarsi come testimonianza di fonti diverse, di due fonti, ipotesi che parrebbe confermata dalla coincidente presenza nei tre relatori di due soli testi di Pay Gomez». Materiais diversos confirmados pela tradição italiana (Lanciani 2004). Diria até que poderíamos supor um material diverso no conjunto destes doze textos, que talvez tenha chegado às mãos do compilador em grupos distintos, evidenciado justamente pela segunda transcrição de A 248 que comparece uma vez no primeiro grupo, outra no segundo. Um 255 Não é a primeira vez que nos ocorre a passagem de um ciclo de um caderno para outro. Tínhamos já o ciclo de NuFdzTor do III caderno para o IV com a cantiga A 79; observamos também o ciclo de PGarBu do IV para o V caderno com A 102; apesar de o fólio se encontrar em branco, podemos igualmente admitir que o ciclo de JLpzUlh que se conclui no actual fl. 54r (caderno VIII) poderia não só prosseguir no verso, mas ainda neste primeiro primeiro fólio vazio do caderno IX (com este espaço, podemos ainda pensar em um outro ciclo); se para o fl. 74 (caderno XIa) temos de conceber um caderno perdido, a última composição deste autor Anónimo, A 270, continua no caderno XII. 256 Tanto C. Michaëlis (1904, I: 481) como C. Cunha (1999: 109) indicam que esta última estrofe falta em V mas, na realidade, a carência ocorre também em B, o que significa que esta cantiga se encontrava já incompleta no antecedente dos cancioneiros italianos. 257 Esta cantiga, que oferece a particularidade única de comparecer em quatro versões (duas versões em A, uma em B, uma em V), apesar do carácter incompleto dos cancioneiros italianos com apenas duas estrofes, contrariamente às quatro, seguidas de fiinda em A, foi objecto de reflexão conjunta na perspectiva da sua edição crítica no Colóquio de Crítica Textual Galego-Portuguesa, Santiago de Compostela, Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades, 28-30 de Abril de 2003. 201 Capítulo 4. Disposição do suporte material cálculo do número de textos, não pode deixar de nos interpelar para a possibilidade de individuar dois conjuntos (6+6) na definição do ciclo de PayGmzCha no momento da cópia da Ajuda. Cad. X A 252 [miniatura, início de ciclo] A 246 A 247 A 253 A 248 A 248bis A 249 A 254 Cad. XI A 250 A 255 A 251 A 256 [fim de ciclo] A cantiga A 250 (fl. 68r já no cad. XI), unicamente difundida por A, oferece-nos uma situação textual particular. De facto, no lado da goteira, provavelmente em posição de inserimento entre a 2a e a 3a estrofes, existe uma outra estância transcrita em cursivo, provavelmente de mão correctora que introduz este complemento textual258. S. Pedro considera que as singularidades gráficas de confronto do traçado destas anotações não acusam outra mão mais moderna, como o pensava C. Michaëlis (1904, II: 173-174), mas identificam-se com a mão do revisor. É através da comparação morfológica com outras intervenções do revisor que a análise paleográfica permite reconhecer a autoria desta mão na intercalação do texto da estrofe do fl. 68r. Além disso, é um aspecto muito significativo a presença desta estrofe no ciclo de PayGmzCha pela mão de um revisor que ao trabalhar ao longo do ms. nunca inseriu estrofes, mesmo nos casos em que havia precisão de espaço. Isto quer dizer que, aqui, no ciclo de PayGmzCha, as circunstâncias correctivas eram diferentes e o material de confronto mais rico. 258 C. Michaëlis não a introduziu na fixação do texto, colocando-a em nota através de uma leitura paleográfica e interpretativa. Atribui a cópia ao «proprio escrevente» (Michaëlis 1904, I: 488), mas C. Cunha, pelo contrário, integra no corpo da cantiga esta estrofe, considerando que ela teria sido «lançada pelo próprio copista ou por um dos anotadores» e que a identidade do sentido e de forma poética apoiariam a sua inclusão (Cunha 1999: 125). Os diferentes editores da cantiga têm seguido uma ou outra opção, como o sintetiza E. Gonçalves a este propósito na introdução à edição de PayGmzCha de Celso Cunha (Cunha 1999: 21, n. 10). No entanto, por meu lado, penso que este tipo de intervenção marginal seria mais provável da mão do revisor textual que opera em vários sectores do ms., ainda que a inclusão de estrofe completa seja raríssima, circunscrevendo-se as emendas a erros de copista, mas também a variantes (Ramos 1993). S. Pedro inclina-se também por esta solução, considerando que a estrofe marginal é transcrita pela mão do revisor, e isolando a grafia desta mão daquela que opera com correcções mais pontuais, ao marcar palavras idênticas, <Mais>, <señor>, <fazer>, <gram>, que comparecem em outros momentos de revisão (Pedro s.d.). 202 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A nova transcrição de S. Pedro (s.d.) que mantém grande parte da simbologia paleográfica pouco difere da leitura de Carter (1941: 187): Mais a q’ a mester sabedor […] mais ca esforç é puñar de […] amía señor ʃuíço todauia […] 7 deseíar seu bẽ 7 atẽder […] senp’ seu bẽ 7 s eme la dam […] q’r deffender por fazer a […] tã gram mesura nõ pode Similarmente, a cantiga A 255 figura em B 842/V 428 não só com as duas últimas estrofes alternadas como os copistas destes mss. não incluem a fiinda. Isto significa que a tradição relativa a PayGmzCha não só é abordada pelo compilador da Ajuda de modo relativamente instável (estrofe marginal, anotações correctoras), mas a dupla cópia de um mesmo texto parece mostrar que a este ciclo se tenha tido acesso de forma menos estruturada do que os ciclos precedentes. É claro que esta concordância não se conserva nos cancioneiros italianos, mas é curioso notar não só a alteração de sector (cantigas de amor transferidas para zonas das cantigas de amigo, o que não é invulgar na tradição italiana), mas sobretudo a deficiente qualidade textual destas composições em B/V que, como vimos, se apresentam reduzidas na sua estrutura. É um facto que a tradição de PayGmzCha apresenta em B/V outros textos que não comparecem em A e que devem ter feito parte do corpus inicial, mas é também uma evidência que os textos de A comuns a B/V sofreram importante deterioração na passagem do projecto inicial para a ampla compilação do século XIV. [.......]/B 808 / V 392 [.......]/B 809 / V 393 [.......]/B 810 / V 394 A 246/B 811/ V 395 A 247/ [..................] 203 Capítulo 4. Disposição do suporte material [B 812]/[V 396] [B 813]/[V 397] [B 814]/[V 398] [B 815]/[V 399] A 248/A 248bis/B 816/V 400 A 249/[..................] A 250/[..................] A 251/[..................] [.......]/B 814-815/ V 398 [amor] [.......]/B 815bis / V 399 [amor] A 248/A 248bis/B 816/V 400 [amor] [.......]/B 817/V 401 [amigo] B 817/V 401 [amigo] [.......]/B 818/V 402 [amor] B 819 a B 837/V 403 a V 423 [outros autores] B 838/V 424 [amigo] B 839/V 425 [amigo] B 840/V 426 [amigo] B 841/ V 427 [amigo] A 255/B 842/V 428 [amor] B 843/V 429 [amigo] B 844/V 430 [amor] B 845...../V 431.... [outros autores] 204 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Actualmente estamos, por conseguinte, em presença de um quatérnio incompleto. A lacuna correspondente ao fl. 64/p. 205 oferece a pestana original irregular com uma medida de 0,9 cm a 1,5 cm. A lacuna total de um bifólio interposto após o fl. 61v/p. 200 e antes do fl. 67/p. 211 explica-se pela necessidade de supor quer a parte inicial do ciclo de JGarGlh perdida, quer um espaço em branco, equivalente à parte final do ciclo de JVqzTal. Encontramo-nos também aqui perante um caderno com numeração primitiva, tal como no caderno VI. Regista-se um sistema semelhante ao já descrito naquele caderno. O antigo caderno X°IIII (ou uma numeração preexistente) preserva actualmente a numeração no princípio, fl. 61/p.199 e no remate do caderno, no fl. 67v/p.212259. A lacuna textual do início da composição A 226/B 401/V 11 [MenRdzTen] não podia, deste modo, encontrar-se no início deste caderno, visto que é um dos cadernos que contém o sistema primitivo da numeração X°IIII. Talvez se achasse no final do caderno anterior, apesar do vazio do fl. 60v/p. 198, que deveria equivaler a conclusão de autor, ou a expectativa de novo material. Nestas condições, é necessário conjecturar, pelo menos, o início do ciclo ainda naquele caderno IX. Aceitar para este caderno X uma composição inicial de cinco bifólios é muito problemática. Por um lado, não se compreenderia a numeração sobrevivente tanto no rosto do actual primeiro fólio do caderno, como no verso do seu último, se se tivesse perdido o primeiro bifólio. É também surpreendente que não tenha sido o bifólio do centro do caderno que tenha sofrido a totalidade do acidente. De facto no meio do caderno subsiste o fólio 64/p. 205 do qual se extraviou o fólio correspondente que talvez estivesse em branco260. Mas a necessidade de um fólio antes do fl. 62/p. 201 seria necessário devido à insuficiência da cantiga A 228. Por outro lado, a constituição estrutural em quínios não parece ser primordial no Cancioneiro. Este tipo de composição parece intervir só no início do actual estado do códice com os dois primeiros cadernos onde foi possível também prognosticar uma organização com uma disposição quínia. Mas este caderno X não satisfaz, além disso, a regra de Gregory, tal como tínhamos já observado também no caderno IX. O fl. 61/p. 199 (carne) não considera a disposição com o fl. 60v/p. 198 que tinha o lado do pêlo (final do caderno IX), a não ser que seja necessário imaginar a existência completa de um bifólio que perfizesse a regularidade. O fl. 61v/p. 200 (pêlo) não se acorda com o fl. 62r / p. 201 (carne) e, de igual modo, o fl. 66v / p. 210 (carne) não se ajusta ao fl. 67/p. 211 (pêlo), mas será preciso também imaginar um bifólio 259 O caderno VI era um quaterno. Se o mesmo tipo de numeração primitiva implica uma harmonização fascicular, deveríamos possuir aqui também um idêntico quaterno, o que impossibilitaria a reconstituição do bifólio, apesar da evidência textual. 260 Os acidentes que não ocorrem no exterior do caderno ou no meio, deixam normalmente vestígios com rebarba ou com pestana. 205 Capítulo 4. Disposição do suporte material completo para a reposição da concordância261. Esta particularidade material concorre para uma mais ajustada apreciação das circunstâncias de cópia deste sector. O ciclo de PayGmzCha em condições de cópia diferenciadas em relação à primeira parte do códice. Mas este desacerto adverte-nos, além disso, de uma inépcia material neste sector, o que quer dizer que à instabilidade textual corresponde também uma inaptidão material na formação do caderno com o lado do pêlo no rosto (Quadro 4): Quadro 4 – Disposição da pele nos cadernos IX e X cad. IX fl. 55 pêlo fl. 55v carne fl. 56 fl. 56v fl. 57 fl. 57v fl. 58 fl. 58v carne pêlo pêlo carne carne pêlo fl. 59 fl. 59v fl. 60 fl. 60v pêlo carne carne pêlo cad. X fl. 61 carne fl. 61v pêlo [lacuna?] fl. 62 carne fl. 62v pêlo fl. 63 pêlo fl. 63 v carne fl. 64 carne fl. 64v pêlo [lacuna] fl. 65 carne fl. 65v pêlo fl. 66 pêlo fl. 66v carne [lacuna?] fl. 67 pêlo fl. 67v carne [MenRdzTen? AfFdzCab] [lacuna] fl. 61/p. 199 A 226/B 401/V 11, [Senhor fremosa creede per mi] [......] çon e gran direito faç e mui grã fl. 61/p.199 A 227/B 402/V 12, Quando meu mui triste fl. 61v/p.200 [em branco] [fim de autor / previsão textual / parte da col.b c d] 261 Deste elenco é preciso ter em conta, apesar da ausência de indício de uma lacuna prévia ao fl. 62/p. 201, portanto a sequência pêlo / carne aqui não teria a mesma repercussão, porque é necessário conjecturar o início do ciclo de JGarGlh. 206 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [JGarGlh] [lacuna] fl. 62/p. 201 A 228/B 418/B 426/V 29/V 38, [Que muytos me preguntáran] [...........] e direi uolles eu poren fl. 62/p.201 A 229/B 419/ V 30, Amigos non posseu negar fl. 62/p. 201 A 230/B 420/V 31-32, SEnnor ueedes me morrer fl. 62/p. 201 A 231/B 421/V 33, U meu parti dum eu parti fl. 62v/p. 202 A 232/B 422/V 34, A bõa dona por que eu tro fl. 62v/p. 202 A 233/B 423/V 35, Amigos quero uos dizer fl. 63/p. 203 A 234/B 424/V 36, Qvantos an gran coita da fl. 63v/p. 204 A 235/[................], Gran sazon a que eu morrera fl. 63v/p.204 A 236/[................], Se mora deus gran ben fazer fl. 63v/p. 204 A 237/[................], [E] stes meus ollos nunca per fl. 64/p. 205 A 238/[................], [C] uidouss amor que logo me fl. 64/p. 205 A 239/[................], Esso mui pouco que ogeu fa fl. 64v/p. 206 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço parte da col.c d / lacuna material] [EstFai] [Miniatura] fl. 65/p. 207 A 240/B 428/V 40, [U] Edes sennor fl. 65/p. 207 A 241/[.................], [P] Or muitas cousas eu que (apenas o incipit) [só o incipit / texto perdido / espaço col.b] fl. 65v/p. 208 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço col. c d] [JVqzTal] [Miniatura] fl. 66/p. 209 A 242/B 430/V 42, [M] vito ando triste fl. 66/p. 209 A 243/B 431/V 43, [P] arti meu de uos mia sennor fl. 66v/p. 210 A 244/B 432/V 44, [M] Eus amigos muitestaua fl. 66v/p. 210 A 245/B 433/V 45, [E] stes que ora dizen mia sen [final de autor / pequeno espaço col.d] 207 Capítulo 4. Disposição do suporte material [PayGmzCha] [Miniatura] fl. 67/p. 211 A 246/B 811/V 395, [A] Dona que fl. 67/p. 211 A 247/[...................], [Q] ve mui de grado querria fl. 67v/p. 212 A 248/[....................], [O] ỹ eu sempre mia sennor [texto repetido no fl. 69] fl. 67v/p. 212 A 249/[....................], [D]izen sennor ca distes por mi [final de caderno com numeração primitiva; composição continua no caderno seguinte] Caderno XI 68 69 70 [...] 71 72 [...] 73 Primitivo caderno XI 68 69 70 [...] 71 72 [...] 73 No caderno XI (dois bifólios, um fólio com carcela e pestana e dois com pestana), temos o prosseguimento do ciclo de PayGmzCha no fl. 68r/p. 213, fl. 68v/p. 214, fl. 69r/p. 215, fl. 69v/p. 216, e conclusão do ciclo no fl. 70r/p. 217 até uma pequena parte da col.b. Todo o resto desta coluna, assim como o verso deste fólio está em branco. Segue-se uma lacuna com pestana e carcela de cerca de 1 cm, correspondente ao fl. 71/p.219, que permite imaginar que 208 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita este fólio perdido estaria em branco na expectativa provável de novo material relativo ao ciclo de PayGmzCha, uma percepção talvez de que se poderia melhorar a colecção do trovador. No fl. 71r/p. 219, estreia-se, com previsão de miniatura, o ciclo de FerVelho262. O novo ciclo é, deste modo, transcrito nos fl. 71r/p. 219, fl. 71v/p. 220, fl. 72r/p. 221, fl. 72v/p. 222. No final da col. d deste fl. 72v/p. 222, a cantiga A 264/B 441/V 53, Meus amigos muito me praz encontra-se incompleta com a falta de parte do último verso da fiinda devido à lacuna correspondente ao fl. 69/p. 215 que deveria conter, não só este final da fiinda como possíveis cantigas finais relativas a FerVelho. É de admitir que este fólio tivesse também espaço em branco que normalmente separaria o final da obra de FerVelho (B/V oferece apenas mais uma) do início do ciclo de BonGen no fl. 73/p. 223 que nos comparece em novo fólio com previsão de miniatura para o pequeno ciclo de apenas duas composições deste trovador263. O fl. 73v/p. 224 tem apenas parte da col.c preenchida e todo o resto fica em branco. O paralelismo na sequência dos textos entre A e B/V é manifesto: [FerVelho] A 257/B 434 [FerVelho] / V 46 / C 434 [FerVelho]264 A 258/B 435/V 47 A 259/B 436/V 48 A 260/B 437/V 49 A 261/B 438/V 50 A 262/B 439/V 51 A 263/B 440/V 52 A 264/B 441/V 53 [.......]/B 442/V 54 [amor] Restar-nos-ia o texto B 442/V 54, Por mal de mi me fez Deus tant’amar com uma estrutura 3x7 que poderia naturalmente ter sido transcrito no fólio extraviado. Assim sendo, teríamos, pelo menos, uma parte do rosto deste fólio em branco, assim como todo seu verso. 262 Edição de FerVelho em Lanciani (1977). O breve ciclo do trovador de Genova foi, por mais de uma vez, editado. Sem aludir, em particular, à edição de Peláez 1897 que, por vários motivos de natureza histórica, é ainda importante, o texto foi objecto de leitura crítica por Branciforti (1955), Horan (1966) e Piccat (1989). As relações com a família Calvo estabelecida em Sevilha são examinadas por Beltrán (1989: 9-13). 264 Entre o ciclo de EstFai e FerVelho em B, dá-nos A a sequência EstFai, JVqzTal, PayGmzCha, FerVelho, BonGen. Se B também nos transmite EstFai, JVqzTal, FerVelho introduz AyVeaz, PViv e BonGen e não PayGmzCha neste lugar. A Tavola não indica JVqzTal, como vimos, na sua enumeração, nem sobretudo PayGmzCha que não comparece neste sector nem em B, nem em C, mas refere EstFai, FerVelho, AyVeaz, PViv e BonGen (Michaëlis 1904, I: 518; Oliveira 1996: 149). 263 209 Capítulo 4. Disposição do suporte material [BonGen] A 265/B 449 [BonGen] / C 449 [BonGen]265 A 266/B 450 Neste caso, também não é possível supor a existência de um quínio para este caderno, visto que a composição de PayGmzCha, A 249/ [....], [D] izen sennor ca distes por mi, do caderno X, continua a ser transcrita no início deste caderno XI. O quatérnio incompleto entendese pelas lacunas no seu interior, a primeira delas justamente no meio do caderno, correspondente ao fl.71/p. 219. Deveria conter talvez uma previsão para novos poemas de PayGmzCha266. A pestana do fl. 71/p. 219 é original com recorte irregular que conserva 1,5cm a 1,8 cm. A segunda lacuna, correspondente ao fl. 69/p.215, entre os fl. 72v/p. 222 e fl. 73/p. 223, deveria conter a parte final de A 264/ B 441/V 53, Meus amigos muito me praz do ciclo de FerVelho e espaço separativo de autor267. A pestana do fl. 69/p. 215 é original com 0, 6 cm. [PayGmzCha] [cont.] fl. 68/p. 213 [cont.] A 249/[..........], [D] izen sennor ca distes por mi fl. 68/p. 213 A 250/[..................], Coỹdaua meu quand a fl. 68/p. 213 A 251/[..................], Qvantos ogandam eno mar fl. 68v/p.214 A 252/[..................], SEnnor fremosa pois fl. 69/p. 215 A 253/[..................], POis mia uentura tale peca fl. 69/p. 215 A 248bis/[...............], [O]ỹ eu sempre mia sennor [texto repetido no fl. 67v] fl. 69v/p. 216 A 254/[..................], Sennor fremosa por nostro sen fl. 69v/p. 216 A 255/B 842/V 428, A mia sennor que por mal des fl. 70/p. 217 A 256/[..................], DE quantas cousas eno mun fl. 70v/p. 218 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço col.b, col.c d / lacuna material] 265 As duas composições do trovador genovês encontram-se em B com rubrica atributiva e com numeração idêntica à da Tavola. A propósito deste trovador, Colocci reenvia ao ms. provençal K (BN, Paris 12473) pertencente a Bembo e que contém as poesias em provençal de BonGen (Gonçalves 1976: 57, n. 449). 266 Parece-me menos provável admitir um «autor descoñecido» em um único fólio (embora ocorram no códice situações comparáveis), como prevê Ron Fernández (1996: 1011). É talvez mais ajustado calculálo como previsão para completar a série Charinho. 267 G. Lanciani pronuncia-se a este respeito assinalando que «manca il resto del verso che doveva essere trascritto sulla carta successiva, andata perduta» (Lanciani 1977:100). 210 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [FerVelho] [Miniatura] fl. 71/p. 219 A 257/B 434/V 46, [P] ois deus non fl. 71/p. 219 A 258/B 435/V 47, Quanteu de uos mia sennor fl. 71v/p. 220 A 259/B 436/V 48, SEnnor que eu por meu mal fl. 71v/p. 220 A 260/B 437/V 49, A Maior coita que eu ui soffrer. fl. 72/p. 221 A 261/B 438/V 50, NOstro sennor que eu sempre fl. 72/p. 221 A 262/B 439/V 51, Muitos uegeu por mi maraui fl. 72/p. 221 A 263/B 440/V 52, SEnnor o mal que ma min fl. 72v/p. 222 A 264/B 441/V 53, MMeus amigos muito me praz [texto incompleto / texto perdido / lacuna material] [BonGen] [Miniatura] fl. 73/p. 223 A 265/B 449, [M] Ui gran poder fl. 73/p. 223 A 266/B 450, Ora non moiro nen uiuo fl. 73v/p. 224 [em branco] [final de autor / previsão textual / espaço col.c d] Caderno XIa 74 [...] 74 [...] Primitivo caderno XIa Este fólio isolado com carcela de 1,2 cm que inclui um conjunto de textos anónimos estava assimilado ao caderno XII na descrição de C. Michaëlis (1904, I: 149). A edição fac- 211 Capítulo 4. Disposição do suporte material similada posiciona este fólio no diagrama do caderno XI indicando que «constituía ant. o 1° fól. do cad. XII». [Anon. α] A 267/[.............] A 268/[.............] A 269/[.............] A 270/[.............] Foi também agora cosido este fólio, de modo independente, entre o caderno XI e o caderno XII. Apresenta ainda vestígios de cola castanha e oxidação por ter estado, de facto, em contacto com a cola da pasta anterior da encadernação. Esteve colado entre o final do caderno XI, montado com carcela (Ed. facs. 1994: [64]). C. Michaëlis refere-se à sua evidente inclusão, neste lugar, comprovada pela continuidade da cantiga A 270 no fl. 75r/p. 227 de um trovador Anónimo, cujas primeiras estrofes se encontram justamente no final da col.d do fl. 74r/p. 225, comprovando-se assim esta união ao caderno XII por coerência textual268. No entanto, não só o facto de ter conservado cola derivada da aderência à pasta, mas a própria edição Stuart revela que já naquela altura, este fólio se encontraria isolado, sobrevivência última de um caderno perdido. Mas esta suposição, não autorizada pela sequência de B/V, sugeriria que a composição e a sequência dos cadernos no Cancioneiro da Ajuda desde o caderno IX apresentam uma discordância não só textual com os testemunhos posteriores, mas sobretudo denota, de modo claro, uma diferente situação codicológica. Não nos encontramos só perante lacunas textuais devidas a acidentes sofridos pelo manuscrito, mas temos de reconhecer que, subjacente a estes sectores, foram seguidos outros critérios de composição em relação à primeira parte do códice. Além disso, os vestígios de cola na margem superior (cabeça) do fólio, por ter estado em contacto com o fl. 88a /p. 253 e inicialmente fixado à pasta anterior, autenticam o acidente e a carcela artificial de cerca de 1 cm que o segura neste lugar legitima-se pela continuidade da composição A 270 que prossegue no início do caderno seguinte, no fl. 75/p.227. É também um 268 Serviu de «custode» do volume (C. Michaëlis, 1904, II, 149). Cf. nota de Cunha Leão, Índices, (1994, 64). Convém acrescentar que se, de facto, o fólio serviu de protecção à pasta anterior, a edição Stuart já o inseria neste local onde foi editado de acordo com esta sequência (Stuart 1823: 97). Na Noticia do Manuscripto lê-se uma breve descrição: «A guarda, ou forro interior das pastas he de pergaminho, e a da parte do principio era huma folha do Cancioneiro, mas avulsa, porque o seu conteúdo não pega com o paragrapho, que se acha escripto na primeira folha» e em nota «Esta folha primeira se tirou deste lugar, e se meteo em folhas 103 [fl. 75], ficando o Nobiliario de numero 5 a 40, e o Cancioneiro de numero 41 por diante, e por isso principia esta copia com o dito numero 41». Na Advertência, [Thimotheo Lecussan Verdier] reforça esta posição: «esta folha de guarda, escrita de ambos os lados, acha-se n’este livro a folhas 103 [fl. 75], onde parece competir seo lugar». 212 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita fólio reduzido na largura em relação ao conjunto dos cadernos mais próximos. No lado da goteira, na parte superior, possui cerca de 1,5 cm a menos e, na parte inferior, à volta de 0,6 cm. Deveria este fólio constituir também o último de um caderno extraviado. Já Stuart admite que este fl. 74/p. 225 teria o seu lugar no início do caderno XII, e C. Michaëlis segue esta posição avaliando-o como simétrico à lacuna entre o fl. 78/p. 233 no final do caderno XII e o fl. 79/p. 235, início do caderno XIII. A nova situação material, ao isolá-lo, faculta a apreciação de que o fólio teria uma existência física diferenciada e que deve ser interpretado como o final de um caderno desaparecido, agregando-o assim, ao caderno perdido, caderno XIa e não a este caderno XII. Este fólio denota também agora outra singularidade essencial. É neste fólio que vamos encontrar uma mudança de mão não só do rosto para o verso, como no interior de uma cantiga. Quer dizer que o rosto deste fl. 74r com as cantigas A 267 e o início de A 268 são ainda copiadas pela mesma mão 1 e a conclusão de A 268 no fl. 74v é já copiada pela mão 3 que vai trabalhar em todo este caderno XII269. A actual arrumação assumiu que a carcela deveria permanecer dobrada para a direita com apoio no posicionamento da carne e do pêlo. No entanto, encontramo-nos perante uma conjuntura de contiguidade textual entre o fl. 74v com a cantiga A 270 que prossegue no fl. 75r com a transcrição de parte final da última estrofe acompanhada de fiinda. É um dos factores que comprovaria que neste projecto nem sempre se acatava a regra de orientação do pergaminho, visto o fl. 75r expor o lado da carne em contacto com o lado do pêlo do fl. 74v. [Anon. α] [Miniatura] fl. 74/p. 225 A 267/[.............], [Q....] me guisou de fl. 74/p. 225 A 268/[.............], [O] Ra posseu con uerdade dizer fl. 74v/p. 226 A 269/[.............], Sennor fremosa ia perdi fl. 74v/p. 226 A 270/[.............], [S] ennor fremosa ia [final de caderno; a composição continua no caderno seguinte] 269 É S. Pedro que, como vimos, individualiza esta mão neste caderno XII do fl. 74v em diante (s.d.). 213 Capítulo 4. Disposição do suporte material Caderno XII 75 76 77 [...] [...] 78 75 76 77 [...] [...] 78 Primitivo caderno XII O caderno XII teria então, copiado por esta mão 3, este conjunto de textos A 270-A 276 sem atribuição nominal, seguimento do contíguo A 267-A 270 do final do caderno anterior270. A série é copiada até ao início da col.c do fl. 76v/p. 230 com o ciclo de dez cantigas de um que designo de Anónimo α. Todo o resto deste fólio permanece em branco, assim como todo o fl. 77/p. 231 que também perdurou em branco271. Este abundante espaço corrobora a hipótese de um preenchimento textual proeminente, no tocante a este trovador. Mais até do que lhe dar um 270 Resende de Oliveira admite que esta série possa ser atribuída a VaPrzPar na medida em que a tradição italiana o coloca na sequência de FerVelho e pela manutenção das suas cantigas de amor na mesma zona nos cancioneiros quinhentistas (Oliveira 1994: 60-63, 438). Não se trataria, no entanto, de um paralelismo textual absoluto entre A e B/V, visto que os textos de A não se encontram copiados nos cancioneiros posteriores, nem vice-versa Esta mesma possibilidade era aludida, de modo muito menos justificado, por Livermore (1988: 128-129). P. Lorenzo acolhe já a opinião de Oliveira na sua notícia biobliográfica dedicada ao trovador (1993: 651-652). São, contudo, editados no conjunto das cantigas anónimas (LPGP, 1996, I: 22-23; II: 979-992). 271 Este fólio contém hoje alguns desenhos e ensaios de pena. Um deles parece corresponder a um cenário teatral, o que é interessante para compreendermos o percurso do ms. durante o século XV. Cf. capítulo dedicado à Decoração do códice onde é descrito este fólio. M. Pedro Ferreira no Colóquio Cancioneorio da Ajuda (1904-2004) em Lisboa interpreta grande parte destas representações como indícios de manifestação de dança e de execução musical (Ferreira s.d.). 214 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita nome, afigura-se-me essencial insistir no facto de que a tradição textual no modelo deste ciclo, referência de A, se qualificava por um espécime visivelmente incompleto, mas bastante claro quanto à tomada de decisão relativa à abundante previsão de pergaminho para o acréscimo textual ulterior272. O fl. 77v/p. 232 apresenta nova série, também de atribuição indeterminada, um Anónimo β com um ciclo diminuto, incompleto, por certo, com apenas uma composição. É igualmente provável que o fólio desaparecido, seu homólogo, estivesse em branco com previsão textual para completar o ciclo de este autor de quem possuímos só uma composição273. No fl. 78/p. 233, foi incluída uma série, identicamente, de atribuição desconhecida, Anónimo γ, mas desta vez, com três cantigas A 278-A 280 que se copiam até à col.c do fl. 78v/p. 234274. O que nos sobra deste fólio, parte final da col.c e toda a col.d permanecem em branco. Estamos, portanto, perante um terno incompleto do qual as duas lacunas são prováveis. Para o fl. 76/p. 229 foi necessário inserir carcela moderna, enquanto o fl. 77/p. 231 conserva ainda a sua pestana original, denotando-se a falha irregular do acidente. A primeira lacuna em branco condiz com a previsão textual relativa ao Anónimo α; a segunda lacuna, fólio homólogo do fl. 76/p. 229 em branco, com cálculo textual referente a este mesmo Anónimo ou a um outro, copiado com modos análogos a estes: [Anon. α cont.] A 270/[............] A 271/[............] A 272/[............] A 273/[............] A 274/[............] A 275/[............] A 276/[............] 272 Parece-me mais improvável a previsão, neste lugar, de um outro trovador do qual se aguardariam praticamente só dois textos que preencheriam o rosto do fólio, na medida em que o verso contém já a transcrição de novo ciclo. 273 Esta única cantiga, pela sua localização em A, na continuidade do grande conjunto que a precede de atribuição igualmente anónima, foi também incluída por Resende de Oliveira, com o mesmo tipo de raciocínio exercido para o ciclo precedente, na produção de AfEaCot (Oliveira 1994: 60- 63, 305-306), mas esta proposta não deixa de estar dependente de uma melhor compreensão da problemática tradição de AfEaCot com múltiplas rubricas atributivas nos cancioneiros quinhentistas. Reproduzido também anonimamente em LPGP (I, 1996: 22-23; II, 1996: 991). 274 Para este anónimo trovador, Resende de Oliveira, apesar do exame das sequências em B/V não se pronuncia por uma nomeação, pondo em relevo apenas as referências toponímicas a Santarém e à sua região e aproximando-o, por esse motivo, do ambiente cortesão de Afonso III (Oliveira 1994: 74-75, 323). 215 Capítulo 4. Disposição do suporte material [Anon. β] A 277/[..............] [Anon. γ ] A 278/[...............] A 279/[...............] A 280/[...............] Com esta previsão de espaço pretende-se expressar que se trata de autores, detentores de material incompleto, mas dos quais se aguardava possibilidade de os concluir, deixando para esse efeito pergaminho disponível. Nestes fólios perdidos é possível imaginar a continuidade da produção do poeta, ou supor até outro breve ciclo275. O final do caderno e o termo do trabalho desta mão 3 conclui-se através do desfecho destes Anónimos e o vazio da col.d do fl. 78v/p.234 talvez convenha mais à conclusão de ciclo do que a prévia estimativa para inclusão de uma única composição. [Anon. α] [cont.] fl. 75/p. 227 [cont.] A 270/[................], [S] ennor fremosa ia fl. 75/p. 227 A 271/[............], DEsoie mais me quereu fl. 75/p. 227 A 272/[............], [S]Ennor fremosa quer fl. 75v/p. 228 A 273/[............], [D]izedes uos sennor que fl. 75v/p. 228 A 274/[............], Tan muyto mal me fl. 76/p. 229 A 275/[.............], [M]Ia sennor quantos fl. 76/p. 229 A 276/[............], A deus gradesco mia fl. 76v/p. 230 [em branco] fl. 77/p. 231 [em branco; diversos desenhos] [final de autor / previsão textual / espaço col.c d a b] 275 C. Michaëlis não se decide por uma ou outra conjectura, visto o paralelismo entre os cancioneiros não se aplicar a esta zona. Existiriam «dous cyclos restrictos, mas completos de poesias; ou então um só um pouco maior» (Michaëlis 1904, I:546). Esta mesma hesitação é reproduzida na análise das lacunas na edição conjunta da lírica profana (LPGP 1996: 1012). 216 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [Anon. β] [Miniatura] fl. 77v/p. 232 A 277/[..............], Sennor fremosa pois [previsão textual / final de autor / espaço col.d / lacuna material] [Anon. γ] [Miniatura] fl. 78/p. 233 A 278/[...............], [A] Mays fremosa de fl. 78/p. 233 A 279/[...............], [P] Ero eu ueio aqui troba/ fl. 78v/p. 234 A 280/[...............], [A] Migos desque me party [final de autor / espaço col.c d / final de caderno] Caderno XIII 79 [...] [...] 80 81 82 Primitivo caderno XIII 79 [*] [*] 80 81 82 O caderno XIII (um bifólio e dois fólios com pestana irregular de 0,6 a 1,3 cm), assim como o seguinte caderno XIV, copiado pela mão 2, principia com novo ciclo atribuído a 217 Capítulo 4. Disposição do suporte material PEaSol, precedido de miniatura276. O conjunto constituído por quatro cantigas apresenta sérios problemas textuais. Sobretudo, em relação à cantiga A 282/B 1219/V 824a, [N] on esta de nogueyra a frey. Tavani considera que os testemunhos de B e V oferecem variantes de melhor qualidade textual, situação particularmente rara no códice da Ajuda e que deve ser interpretada, parece-me, pelas diferenças de compilação neste sector do códice277. O ciclo termina na col.c do fl. 79v/p. 236. Se a col.d deste fólio permanece em branco, o fólio que se extraviou estaria, muito provavelmente, também desprovido de texto. Esta lacuna, ou denunciaria similarmente previsão textual ainda para este trovador, PEaSol, ou para uma nova série, limitada a um ciclo breve. Se se tratasse de um fólio em branco teríamos um elemento que poderia justificar o seu extravio278). Os fl. 80/p. 237 e fl. 81/p.239 ainda conservam a pestana original com 1 cm a 1,3 cm. Relativamente à transmissão textual deste trovador, é necessário ainda assinalar que, das quatro cantigas de amor presentes em A, apenas duas se encontram transcritas nos cancioneiros italianos, que correspondem, além disso, às duas composições do interior do ciclo e não de início ou de final do conjunto. A conservação das duas cantigas, provenientes do interior de um curto ciclo, denuncia uma metamorfose na tradição que talvez acuse a perda do material das extremidades: [PEaSol] A 281/[.............] A 282/B 1219 [PEaSol] / V 824 [PEaSol] / C 1219 [PEaSol] A 283/B 1220/V 825 A 284/[.............] Não só o posicionamento destas cantigas em B/V, como os próprios problemas textuais acima referidos, autorizam uma apreciação do ciclo no momento da cópia de A, talvez mais completo em número de cantigas (o espaço previsto para mais textos reforça igualmente esta 276 Edição completa dos textos deste trovador (Reali 1962). Segundo Tavani este texto A 282/B 1219/V 824a, [N] on esta de nogueyra a frey, apresenta uma dupla tradição com deficiências métricas, novo motivo na quarta estrofe e uma irregularidade paralelística, além de uma particular ruptura na passagem da primeira estrofe. Apesar da autoridade textual de A em relação aos outros cancioneiros, Tavani não considera a aliciante conjectura de ‘variante de autor’ devido naturalmente às imprecisões temáticas e formais. Pelo contrário, admite uma reelaboração textual por um poeta que já não se adapta à rigidez do paralelismo (1963: 205-214). Das várias vezes que foi republicado este importante ensaio, refiro a edição portuguesa (1988: 350- 360). Se este facto fica a dever-se às vicissitudes sofridas por este sector na tradição quatrocentista (Oliveira 1994: 407), é importante insistir na presença desta já deteriorada tradição textual na zona final de A que, como temos observado, se vai definindo por uma cada vez maior instabilidade organizativa de autores e materiais. 278 Não é possível esboçar qualquer conjectura (novo autor? espaço para o mesmo trovador?), porque não se regista qualquer paralelismo com as outras colecções. 277 218 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita hipótese), mesmo se as propriedades textuais não parecem ser as mais ajustadas. Esta insuficiência textual em A afirma-se, por conseguinte, como um sinal de que os materiais integrados, neste sector, não desfrutavam da mesma vitalidade, proporcionalmente, às colecções incluídas nos primeiros blocos do códice. No fl. 80/p. 237, temos o início do ciclo de FerPad com espaço calculado para a miniatura279. Trata-se de um ciclo com apenas três cantigas das quais a última A 287/ B 978/ V 565, [O] s meus ollos que mia, é copiada já no fl. 80v/p. 238. [FerPad] A 285 / B 976 / V 563 A 286 / B 977 / V 564 / C 977 [FerPad] A 287 / B 978 / V 565 Daquele fólio sobra praticamente toda a col.d e todo o rosto do fl. 81/p. 239 que permanece igualmente em branco. Todo este espaço previsível para o enriquecimento da colectânea, quer de FerPad, quer de um outro trovador, acentua de novo a particularidade destes últimos cadernos finais do códice com insuficiência material, mas ainda com determinação na conservação de fólios inteiros vazios. No fl. 81v/p. 240, encontra-se copiado o ciclo de PPon com a cantiga A 288/ B 979/ V 566, [T] an muỹto uos, e este começo no verso do fólio autoriza a refazer um cálculo, relativamente preciso, no pergaminho deixado previamente para o ciclo do poeta precedente280. [PPon] A 288 / B 979 / V 566 / C 979 A 289 / B 980 / V 567 A 290 / B 981 / V 568 A 291 / B 982 / V 569; B 394 / V 4 [SaSchz] A 292 / B 983 / V 570 [.......] / B 984 / V 571 [amor] [.......] / B 985 / V 572 [encomiastica] [.......] / B 985bis / V 573 [pranto] 279 Em B, a série de FerPad inicia-se, de facto, em B 976. Colocci comete uma imprecisão ao transcrever a numeração correspondente ao primeiro texto de FerPad, B 976 (Gonçalves 1976: 61, n. 977; D’Heur 1973: 27; 1974: 38). 280 De PPon temos as edições Fernández Pousa (1956), Panunzio (1967), Juárez Blanquer (1988) e Mongelli (1995). 219 Capítulo 4. Disposição do suporte material [.......] / B 986 / V 574 [pranto] [.......] / B 987 / V 575 [pranto] [.......] / B 988 / V 576 [pranto] [.......] / B 989 / V 577 [amor] [.......] / B 990 / V 578 [encomiastica] Concedo mesmo que previsão mais vaga, quer para um ciclo breve, quer para um ciclo mais longo, talvez não possibilitasse o início de um novo ciclo no verso do fólio. Esta mão 2 insere os novos ciclos no rosto ((PEaSol, FerPad, VRdzCal, pelo menos). O conjunto de cantigas de PPon estende-se até ao verso do fl. 82v/p. 242 onde se encerra com cinco cantigas que vão finalizar o caderno XIII. Subsiste-nos apenas uma parte da col.d em branco no último fólio do caderno, fl. 82v/p. 242. Temos, portanto, hoje um terno incompleto com duas lacunas que devem ter correspondido a fólios desprovidos de escrita, o primeiro [79*] e o segundo, o fl. [79**], com previsão textual referente ou a PEaSol, ou a outro trovador com ciclo incompleto de quem se aguardaria material. A posição das lacunas descrita por Michaëlis não coincide na totalidade com o actual estado do caderno, porque integrava, na altura da sua delineação, uma lacuna total entre o fl. 80/p. 237 e fl. 81/p.239 (Michaëlis 1904, II: 149), antes do ciclo de PPon mas, na realidade, temos simplesmente um fólio desprovido de texto, o que quer dizer que não se trata aqui de uma lacuna física281. Se observamos o conjunto em B, verificamos que a maior parte das cantigas não figurariam de qualquer modo em A (sobretudo, os prantos). As duas cantigas de amor que aparecem integradas neste conjunto correspondem a uma modificação da tradição, se atendemos ao pouco espaço que nos resta em A no final do ciclo de PPon. Esta reorganização textual é também ilustrada pela cantiga A 291 / B 982 / V 569 que, embora fragmentária, se encontra com duas estrofes (a primeira e a quarta) atribuída em B 394 / V 4 ao clérigo SaSchz282. Deparamo-nos, de certo modo, perante uma situação organizativa idêntica ao do caderno III. Um conjunto de três autores com uma produção menos breve, mas que, no momento da cópia, se apresentava neste estado de exiguidade para o compilador. 281 Imagina um ciclo pequeno que «fica por preencher» (Michaëlis 1904, I: 574). Resende de Oliveira considera que esta dupla atribuição é também proveniente da deslocação das cantigas de amor para a zona das cantigas de amigo, um pouco como o caso de NuPor em relação a NuRdzCan (Oliveira 1994: 72, 408-409; 435-436). 282 220 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita [PEaSol? Anon.?] [Miniatura] fl. 79/ p. 235 A 281 / [.............], [E] v sey la dona ueli/ fl. 79/ p. 235 A 282 / B 1219/ V 824, [N] on esta de nogueyra a frey fl. 79/ p. 235 A 283 / B 1220/ V 825, [A] que ui ontras amenas de9 fl. 79v/ p. 236 A 284 / [.............], [V] Ou meu fremosa per al reỹ [final de autor/ previsão textual/espaço fim col.c d / lacuna material de dois fólios] [FerPad] [Miniatura] fl. 80/ p. 237 A 285 / B 976 / V 563, [S] e uos proguess a fl. 80/ p. 237 A 286 / B 977 / V 564, [N] vllome non pode saber. mia fl. 80v/ p. 238 A 287 / B 978 / V 565, [O] s meus ollos que mia fl. 81/ p. 239 [em branco] [final de autor /previsão textual / espaço col.d, a, b] [PPon] [Miniatura] fl. 81v/ p. 240 A 288 / B 979 / V 566, [T] an muỹto uos a fl. 81 v /p. 240 A 289 / B 980 / V 567, [S] E eu podesse des amar. a que fl. 82/ p. 241 A 290 / B 981 / V 568, [A] gora me parteu muy sen fl. 82/ p. 241 A 291 / B 982 / V 569, [A] mia sennor que eu maỹs283 fl. 82v / p. 242 A 292 / B 983 / V 570, [S] Ennor de corpo delgado [final de autor/ espaço col.d / final de caderno] Caderno XIV 83 84 85 86 [87] [...] [...] [...] 283 O texto (A 291/B 982/V 569, [A] mia sennor que eu maỹs) está também atribuído em B 394/V 4 a Sancho Sanches). 221 Capítulo 4. Disposição do suporte material Primitivo caderno XIV 83 84 [*] 85 86 [87] [*] [*] [*] [*] O actual último caderno, caderno XIV (um bifólio, três bifólios com pestana, de corte irregular variável entre 1 e 2,5 cm) copiado também pela mão 2 como o caderno XIII, constituído por um quatérnio incompleto dá-nos o ciclo de VaRdzCal com a cantiga A 293/B 993bis/V 582, [V] iuo coytad en tal coỹ, na companhia de previsão para miniatura. O ciclo, longo de dez cantigas, fica suspenso no final do fl. 84v/p. 246 com a cantiga A 302/[......]/[......], [J] a eu sennor muỹtas coỹtas devido a uma lacuna, aparentemente sem qualquer vestígio físico, mesmo com o recente restauro. No entanto, aqui é patente que temos de conceber, pelo menos, um fólio desaparecido que deveria conter, pelo menos, o final desta cantiga e talvez mesmo algumas outras do mesmo trovador. A inserção do seu ciclo amoroso nos cancioneiros posteriores aparece também, como alguns dos autores deste sector de A, no espaço dedicado às cantigas d’amigo, onde se encontram reproduzidas oito das dez cantigas do conjunto reproduzido por A, embora a sequência textual não seja idêntica nos cancioneiros: [VaRdzCal] A 293/B 993bis/V 582 A 294/B 994/V 583 A 295/B 995/V 584 A 296/B 996/V 585 A 297/B 997/V 586 [......]/B 998/V 587 A 298/B 992/V 580 A 299/[......]/[......] A 300/B 991 [VaRdzCal] / V 579 [VaRdzCal] / C 991 [VaRdzCal] 222 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 301/B 993/V 581 A 302/[......]/[......] Mas a análise desta sucessão mostra que o ciclo de Calvelo aponta outras anomalias, além da carência em B e V de duas cantigas de amor. Em primeiro lugar, a ordem das cantigas nas duas tradições não é condizente. Em A, não há qualquer perturbação notável: ciclo aberto por previsão de miniatura e prossecução regular até à cantiga A 302 que, na realidade, ficará por acidente material limitada só aos cinco primeiros versos. A ocorrência do acidente, que nos impede o acesso à totalidade desta composição, de que não remanescem vestígios, deve situarse em um estádio preliminar à estrutura que é agora possível restabelecer284. A inauguração do ciclo é com a cantiga A 300/B 991/V 579 e também com C 991, o que revela a diferente organização do ciclo. A cantiga A 295/B 995/V 584 acha-se incompleta em V sem a transcrição da última estrofe, embora o copista lhe tenha deixado algum espaço, devido a uma deterioração do modelo ou a uma paragem momentânea do trabalho. Em A 298/B 992/V 580, tanto B como V não só não transcrevem a fiinda como o v. 3 apresenta deficiência na transcrição da primeira parte. Se o copista de V dispõe este verso de forma alinhada com os dois precedentes, B adverte-nos do estado ilegível da fonte ao deixar-nos espaço correspondente a todas as palavras que não foram susceptíveis de transcrição285. Na cantiga A 301/B 993/V 581, as duas últimas estrofes estão trocadas em B e em V. A fiinda não é também transcrita em nenhum destes dois cancioneiros286. Mais significativo do que os casos precedentes, é a situação fragmentária da cantiga A 302 com a transcrição dos primeiros versos dispostos espaçadamente para a inclusão musical. Se o estado de A não nos permite recuperar fisicamente o fólio extraviado (condição já observada por C. Michaëlis e mantida até à edição fac-similada e ao novo restauro), autoriza, no entanto, depreender que este caderno comportava já insuficiência concreta antes da sua inclusão no estabelecimento do códice. Esta circunstância constitui um factor suplementar na caracterização fisicamente inconstante deste sector do Cancioneiro. Não só em relação a A, mas também em B e V, a situação não chega a ser nem melhorada, nem elucidada. Tanto em um como outro cancioneiro, a transcrição do ciclo Calvelo finaliza no termo da composição B 998/V 587 que 284 «A lacuna ja existia quando o encadernador procedeu ao seu trabalho» (Michaëlis 1904, I: 604). É deste modo que, igualmente, se observa também a descrição deste caderno XIV que assinala a lacuna «sem vestígios no restauro do caderno» (Cunha Leão 1994: [70]). 285 O verso não disponibiliza, portanto, «por ũa dona» (o <~> encontra-se entre as duas vogais e não apenas sobre o <a>, como o transcreveu Carter 1941: 174), antes de «que quero gran ben» que surge nos mss. italianos com diferença gráfica nas formas abreviadas de <que>, em V e <gram> em B. 286 C. Michaëlis regista estas diferenças entre A e V, não indicando a variação de B, por não ter tido acesso à totalidade deste ms. (Michaëlis 1904, I: 587-603). 223 Capítulo 4. Disposição do suporte material não se encontra em A, ou pelo compilador não ter tido acesso, ou por se encontrar no fólio perdido. A discrepância entre as sequências textuais anunciaria então que a produção do trovador não se mostrava de igual modo nas duas tradições, não se tratando, neste caso, de enriquecimento ou de perda textual, mas de variação quanto ao número e tipo de textos no momento organizativo das grandes colecções. No fólio seguinte, fl. 85/p. 247, temos, em primeiro lugar, uma cantiga também incompleta atribuída a MartMo, A 303/[..........], [.........], maỹs ambos ỹ faredes omelhor, o que possibilita a confirmação de fólio desaparecido, apesar da inexistência de indício palpável287. [MartMo] [.......]/B 887 / V 471 /C 887 [MartMo] [sirventês moral] 288 [.......]/B 888 / V 472 / V 1036 [tenção] [.......]/B 889 / V 473 [sirventês moral] [.......]/B 890/ V 474 [amor] [.......]/B 891 / V 475 [amor] [.......]/B 892 / V 476 [amor] [.......]/B 893 / V 477 [amor] [.......]/B 893bis/ V 478 [amor] [.......]/B 894 / V 479 [amor] A 303/[.......], [........] A 304/[.......], [........] A 305/[.......], [........] A 306/[.......], [........] A 307/B 895/V 480 [amor] O ciclo prossegue no verso deste fólio e é a última cantiga copiada na col.d, A 307/[B 895/V 480], [A]Mor non qued eu amando, com atribuição em B e V a MartMo que tem permitido a atribuição de todo o conjunto a este trovador. A cantiga é concluída no fl. 86/p. 249 287 A suposição mais económica veria um fólio conclusivo do ciclo Calvelo (final de A 302 e eventualmente a cantiga B 998/V 587) e um outro fólio com o início do ciclo que se segue, o de MartMo que deveria conter os primeiros textos do clérigo trovador. Não se afasta desta lógica suposição o principal conjectura de Michaëlis (1904, I: 604), seguida por Oliveira (1994: 150, n. 61) e Ron Fernández (1996: 1013). 288 C. Michaëlis ainda editou este ciclo sob o nome de um Desconhecido (VI) por não ter associado a numeração da Tavola n°. 887 ao texto B 895 (Michaëlis 1904, I: 605-615). A análise e a edição de MartMo em Stegagno Picchio (1968). 224 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita e todo o resto da col.a e toda a col.b estão em branco. O verso está igualmente desprovido de texto, o que asseguraria a introdução eventual de outros textos deste trovador. Além da surpreendente inserção destes trovadores clérigos no final do códice de A, a sequência dos textos em A e em B revelam, de novo, um estado textual completamente diferenciado entre as duas colecções289. É este fólio (fl. 86v) que durante algum tempo (pelo menos, até aos finais do século XV) foi o último fólio do códice. É nele que se encontra uma das assinaturas de p° homẽ290, assinatura que se vai reproduzir no fl. 88v. Neste fl. 86v, regista-se ainda um ensaio de assinatura por três vezes: guonçalo guomez mirador / guonçalo guomez / guonçalo guomez mirador que se encontram, agora, menos legíveis após o restauro291. As pestanas dos fl. 83/p. 243, fl. 84/p. 245, fl. 85/p. 247 são todas originais com medidas de 1 cm, 1,5 cm e 2,5 cm respectivamente, sem que seja claro reconstituir o conteúdo destes fólios homólogos. O fl. 86/p. 249, actual, é homogéneo do que esteve colado (com frases e alguns desenhos) à pasta posterior e encontra-se introduzido agora antes do ciclo de RoyFdz que constitui o caderno imediato, ou melhor o fólio solto que esteve colado à pasta anterior. [VaRdzCal] [Miniatura] bis fl. 83/p. 243 A 293/B 993 /V 582, [V] iuo coytad en tal coỹ fl. 83/p. 243 A 294/B 994/V 583, [D] Es quando eu a mia sennor fl. 83v/p. 244 A 295/B 995/V 584, [P] Or uos ueer uin eu sennor fl. 83v/p. 244 A 296/B 996/V 585, [M] Eus amigos pese uos do fl. 83v/p. 244 A 297/B 997/V 586, [P] Or que non ous a mia sennor fl. 84/p. 245 A 298/B 992/V 580, [N] On perçeu coỹta do meu cora fl. 84/p. 245 A 299/[......] / [......], [S] Ennor eu uiuo muyta meu fl. 84/p. 245 A 300/B 991 / V 579, [P] Ouco uos nembra mia señor fl. 84v/p. 246 A 301/B 993/V 581, [S] E eu ousass a maỹor gil fl. 84v/p. 246 A 302/[......] / [......],[J] a eu sennor muỹtas coỹtas 289 Os dois clérigos finais em A, MartMo e RoyFdz (e o caso de RoyFdz é particular visto encontrar-se em um fólio solto, colado à pasta e não sabermos exactamente se entre MarMo e RoyFdz haveria ou não outros trovadores) e os vestígios desta localização visível no sector das cantigas de amigo em B é examinada por Resende de Oliveira que explica a inserção destes trovadores (Oliveira 1994: 58-60, 7578, 130-132, 149-154, 383). 290 A identificação de Pero Homem e as respectivas assinaturas são tratadas no capítulo dedicado ao Proprietário do códice. 291 Desta personagem ainda nada posso adiantar, para além de poder referir que Mirador é nome recorrente no sul de Portugal. Também S. Pedro não se pronuncia por uma eventual identificação desta assinatura (s.d.). 225 Capítulo 4. Disposição do suporte material [texto incompleto / texto perdido / lacuna material] [MartMo? Anon.?] [lacuna] fl. 85/p. 247 A 303/[.......], [........] maỹs ambos ỹ faredes omelhor fl. 85/p. 247 A 304/[.......], [........], [C] Atiuo mal consellado.que fl. 85/p. 247 A 305/[.......], [........], [Q] ven uiu o mundo qual o fl. 85v/p.248 A 306/[.......], [........], [A] lgũa uez dixeu en meu fl. 85v/p. 248 A 307/[B 895 / V 480], [A] Mor non qued eu amando. [cont. no fl.86r] fl. 86/p. 249 [concl. do fl. 85v] fl. 86v /p. 250 [em branco] [final de autor / espaço fim col.a, b c, d / lacunas materiais / final de caderno] Caderno XIVa 88 [...] 88 [...] Primitivo caderno XIVa O fl. 88/p. 251 aparece presentemente após o fólio com inscrições e esboços de desenhos que se encontrava colocado à pasta posterior com algumas cantigas do último trovador. Funcionou como fólio de guarda. O ciclo, reduzido a um fólio, inaugura-se também com previsão de miniatura e, aqui, é necessário chamar a atenção para um aspecto fundamental: a cópia é mais interrompida e inacabada do que perdida. A interrupção ocorre no início do primeiro verso do refrão relativo à primeira estrofe. Na realidade, não é tanto a interrupção no interior do verso que poderia ser muito sintomática quanto à real forma de trabalho, mas a suspensão explica-se mais pela passagem de uma coluna à outra. O copista faz, de facto, uma 226 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita pausa no final da primeira coluna deste fólio, col.c e por motivos difíceis de imaginar, não chega a iniciar a cópia na coluna seguinte. [RoyFdz] [.......]/B 899 / V 484 / C 899 [RoyFdz] [amor] A 308/B 900 / V 485 A 309/B 901/V 486 A 310/B 902/V 487 [.......]/B 903/V 488 [amor] [.......]/B 904/V 489 [amor] [.......]/B 904bis/V 490 [amor] [.......]/B 905/V 491 [amor] [.......]/B 906/V 492 [amor] [.......]/B 906bis/V 493 [amor] [.......]/B 907/V 494 [amor] [.......]/B 908/V 495 [amor] [.......]/B 909/V 496 [amor] [.......]/B 910/V 497 [amor] [.......]/B 911/V 498 [amor] [.......]/B 912/V 499 [amor] [.......]/B 913/V 500 [amor] [.......]/B 914/V 501 [amor] O novo restauro descolou-o e incluiu-o no caderno XIV. A pestana moderna mede cerca de 3 cm. Este fólio isolado (fl. 88/p. 251) é o que também esteve fixado à pasta anterior da encadernação, possui a assinatura de p° homẽ na abertura do códice, a indicação das línhagẽs referente à cópia do Livro de Linhagens que inicia, como se sabe, o códice e ainda a inscrição da antiga cota A. 5 n. 47292. 292 A indicação das linhagẽs talvez da mão de Pedro Homem indica-nos a posição do fragmento do Livro de Linhagens já no início do códice nos finais do século XV. Cf. o capítulo dedicado ao proprietário do Cancioneiro e ao exame da cota antiga. 227 Capítulo 4. Disposição do suporte material [RoyFdz] [Miniatura] a A 308/B 900/V 485, [S] E om ouuesse de a A 309/B 901/V 486, [O] Ra começa o meu mal a A 310/B 902/V 487, [Q] Ve muy grand prazer og fl. 88 /p. 251 fl. 88 /p. 251 fl. 88 v/p. 252 [composição incompleta / ausência textual / col.d em branco] No fólio (fl. 87) que esteve colado à pasta posterior e que foi agora descolado encontram-se vários tipos de escrita293. 4.4. Assinaturas de fólio. Reclamo Desde 1904, data em que C. Michaëlis publicou a edição crítica e comentada do Cancioneiro da Ajuda até hoje, não foi feita mais nenhuma tentativa de descrição da numeração manuscrito da Ajuda. Nem em 1941, ao realizar a edição paleográfica do Cancioneiro da Ajuda, Carter (1941) esboçou nova exposição pormenorizada desta característica do manuscrito, remetendo praticamente todo este aspecto para a edição de C. Michaëlis, quando utilizará na sua edição uma referência a páginas e não a fólios. Do mesmo modo, todas as edições críticas que publicam textos do códice da Ajuda têm-se baseado exclusivamente ou no sistema da edição da filóloga alemã (1904) ou na paginação de Carter (1941) De facto, as numerações actuais dos fólios do Cancioneiro da Ajuda não correspondem exactamente às descritas e analisadas pela filóloga. Indicarei os vários tipos de numeração do manuscrito da Ajuda, sistema complexo e não coincidente em absoluto com o descrito por C. Michaëlis (1904, II: 137). O Cancioneiro da Ajuda não possui aparentemente nenhum indício directo de ordenamento nem de fólio a fólio, nem de modo sistemático de caderno a caderno. Não parece dever-se unicamente ao facto de nos encontrarmos perante um fragmento. Poderíamos até supor que se se tratasse de um cancioneiro acidentado e admitir que nos cadernos e fólios que nos sobravam os sistemas de referência permitiriam reconstruir até as partes perdidas. Não é provável que em todos os cadernos (ou em todos os fólios) tenha desaparecido um sistema de numeração colocado no final na margem inferior e que tenha sofrido sistematicamente o corte da margem, talvez no momento em que se procurou proteger aquele conjunto de fólios dentro de 293 A maior parte destes escritos avulsos foram transcritos por S. Pedro (s.d.). Os mais significativos reportam-se a uma marca de posse (colaço do infante) e ao rei D. Duarte (Pedro s. d.). 228 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita tábuas preexistentes294. Este facto naturalmente deixa marcas indeléveis na sucessão dos cadernos, porque não nos esqueçamos que uma das funções básicas de qualquer processo de ordenamento ou de enumeração se dirigia, em primeiro lugar, ao encadernador295. Refiro-me, portanto, aos modos de indicação fascicular que, neste caso, seriam ainda mais cruciais, visto que os próprios textos (cantigas) não ofereciam nenhuma advertência, se excluímos a miniatura introdutiva de ciclo e a consequente tipologia decorativa296. A conjuntura é totalmente distinta na produção em prosa que é auxiliada por compartimentos segmentados com ordenamento em títulos correntes, títulos, subtítulos, capítulos, parágrafos, etc297. Aqui, a sucessão de cantigas sem rubricas atributivas deveria ter exigido ainda mais um dado organizativo que poderia estar ligado a uma foliação ou a uma assinatura de cadernos. No Cancioneiro da Ajuda, não dispondo de índice de matérias, não vamos encontrar também nem indicação material, quero dizer, nem um guia que orientasse a correcta colecção de cantigas, nem indícios para um correcto ordenamento. Igualmente, parece não existir qualquer outra anotação textual que pudesse elucidar os responsáveis pela encadernação de uma apropriada sucessão dos cadernos. Esta inexistência material pode também insinuar um ambiente mais artesanal no fabrico desta colecção lírica298. Na busca de um Cancioneiro que oferecesse referências práticas quanto às localizações textuais, serão de vária natureza as intervenções a que o códice será submetido pelos seus diferentes editores. Estas ingerências declaradas, aliás, por C. Michaëlis, mostram-nos como foi necessário intervir, não só na sequência dos fólios, como na inserção de um sistema de foliação ou paginação. Se o aparecimento do Cancioneiro em estado fragmentário anuncia significativa perturbação, por um lado, os fólios eborenses por outro vão sublinhar o estado precário do objecto. Estes fólios não são sequer, em um primeiro momento, realmente introduzidos, mas 294 Admiti já que a salvaguarda dos dois fragmentos (Linhagens e Cancioneiro) tenha ocorrido nos finais do século XV, ao interpretar não só as assinaturas de Pedro Homem, como a indicação ao Livro de Linhagens que comparece no fólio que esteve colado como resguardo à tábua anterior (Ramos 1999). 295 Ainda que seja bastante plausível que este Cancioneiro dispusesse de uma ordem textual semelhante à dos cancioneiros italianos e ainda que se conheça, mais ou menos bem, o estado prévio à intervenção de C. Michaëlis (Stuart 1823, Varnhagen 1849, 1850, 1868), não há praticamente nenhum meio objectivo de conseguirmos saber, pelo menos, em alguns sectores, como se disporiam as sequências de autores ou de ciclos. 296 Apesar de o início se caracterizar por uma lacuna, não seria impossível que pudesse ter sobrevivido uma Tabula, mas é mais provável que este índice nunca tenha chegado a ser efectuado, devido ao carácter inacabado do Cancioneiro. 297 A estrutura e a legibilidade textual são, por natureza, mais evidentes nos textos em prosa com a divisão em parágrafos, com a indicação de incipit, da presença de índices, de rubricas e de processos identificadores da descodificação textual, a que não são alheios os desenvolvimentos de diversos sistemas de pontuação (Vezin 1985; Bergeron-Ornato 1990; Cottereau 1997; 2001). 298 Os danos provocados pela inserção nesta encadernação atingem mais a margem da cabeça do que a do pé. E por mais inexperiente que fosse o encadernador, é provável que não deixasse de contemplar um sistema numerativo (se ele existia, de facto) que o auxiliaria na montagem dos cadernos. 229 Capítulo 4. Disposição do suporte material colocados de forma contígua ao códice na incerteza de uma ajustada colocação naquele frágil e desmembrado Cancioneiro299. Diz-nos C. Michaëlis que, a este propósito, o novo bibliotecário gostaria de «melhorar» o seu precioso objecto. Confirmar-nos-á que, em 1895, tinha tido «a liberdade de instar que o deixassem intacto no triste statu quo historico em que nos foi legado, mandando apromptar apenas um involucro conveniente em que o custodiassem, porque juntando as parcellas, substituindo a encadernação antiga por outra moderna, e cerceando as margens deterioradas, com suas notas manuscriptas apagavam os tenues mas ainda assim valiosos vestigios da historia externa do codice que hoje servem de guia ao investigador». Mas a sua ingerência será determinante. Informar-nos-á, assim, de que «desfiz tambem a lenda das folhas baralhadas, creada por Varnhagen a bem do seu systema de interpretação, e dei explicações minuciosas sobre a ordem das folhas, incluindo as de Evora» (1904, II: 102). Este «juntar as parcellas», sob a égide de C. Michaëlis, será imprescindível para a compreensão do ordenamento actual do códice. Sabemos que «tiveram de substituir os cordões primitivos (...) por outros novos, de sorte que já não é possível reconhecer hoje os troços em que o volume andara dividido» (1904, II: 102, n. 3)300. No entanto, o ter coordenado tudo em uma mais apropriada ordem implicava um sistema de numeração operacional para as referências textuais na sua edição. O manuscrito não possuía uma numeração primitiva que pudesse permitir melhor conjectura quanto às sequências e quanto ao número exacto de lacunas. Ao observar o códice, C. Michaëlis reconhecia que uma numeração moderna, já existente, colocava o número 41 por ter atribuído os primeiros 40 fólios ao Nobiliário, mas destes existia ainda um fólio, no início do códice, que competia claramente ao Cancioneiro. Tratava-se de um fólio desmembrado de um dos cadernos que o encadernador tinha colocado como custódio, como fólio de guarda ao volume301. De igual modo, o mesmo encadernador teria inutilizado mais dois fólios do Cancioneiro, colando-os, um na protecção da pasta anterior, outro no resguardo da posterior. Só um destes foi descolado, por iniciativa de C. Michaëlis, devido à visibilidade de uma presença textual, continuando este fólio solto até 1894302. O fólio, colado também na pasta 299 Contrariamente a Stuart (1823), Varnhagen tinha já incluído na sua edição de 1849 estes fólios eborenses «copiados por Herculano» (Michaëlis 1904, II: 21, n. 1). 300 Convém não omitir que, quando C. Michaëlis viu o Cancioneiro em 1877 e 1890, segundo sua indicação, «o volume todo andava retalhado em seis parcellas» (1904, II: 145). 301 Na Noticia do Manuscripto, introdutória à edição Stuart, é descrito este fólio: «A guarda, ou forro interior das pastas he de pergaminho, e a da parte do principio era huma folha do Cancioneiro, mas avulsa, porque o seu conteúdo não pega com o paragrapho, que se acha escripto na primeira folha» e «Esta folha primeira se tirou deste lugar, e se meteo em folhas 103 onde pertencia, ficando o Nobiliário de numero 5 a 40, e o Cancioneiro de numero 41 por diante, e por isso principia esta copia com o dito numero 41» (1823: V). 302 Trata-se do fólio que comparece no final do códice com cantigas A 308 a A 310, atribuíveis ao clérigo RoyFdz. 230 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita posterior, não apresenta, à primeira vista, texto, mas o recente restauro também o descolou303. Esta numeração que incluía o Nobiliário não convinha à filóloga, entendendo o Cancioneiro como um objecto independente da primeira parte. A inconstância fascicular evidenciar-se-á com a entrada na Biblioteca dos fólios eborenses. Os fólios de Évora tinham sido, em um primeiro momento, numerados por A. Herculano com um sistema romano de I a XI. A própria C. Michaëlis depois de os analisar uma primeira vez, introduz uma sequência de 117 a 127 mas, ao reconhecer a sua numeração indevida pelo confronto, com as notícias relativas à ordem dos cancioneiros italianos, modificaa, integrando-os depois nos lugares apropriados: IV entre f. 43 e fl. 44....................corresponde ao fl. 4.....................................caderno I I e II entre 54 e 55........................corresponde ao fl. 16 e ao fl. 17...................caderno III XI entre 65 e 66............................corresponde ao fl. 29...................................caderno V III entre 71 e 72............................corresponde ao fl. 36...................................caderno VI V-X entre 74 e 75.........................corresponde à sequência fl. 40-fl.45............caderno VII A ordem estabelecida por C. Michaëlis parece ter sido concretizada, em primeiro lugar, pelo «exame material do pergaminho» em 1877 e «tres annos mais tarde plenamente confirmada pelo confronto com as partes analogas do apographo italiano CB. Só num caso, em que as folhas (V a X), cortadas direitinhas, exactamente pela dobra, formam um caderno coherente no fundo e na forma, o expediente não podia surtir efeito (1904, II: 136-137)304. Outra intervenção moderna marcante corresponde aos múltiplos sistemas de numeração todos a lápis, foliação ou paginação, situados em praticamente todos os lugares disponíveis das margens do fólio (Stuart, em primeiro lugar, sem integrar os fólios em branco, iniciada em 41; C. Michaëlis, uma foliação começada em 41 com inclusão dos fólios em branco, o de guarda, os que estiveram colados contra a capa e os de Évora; o bibliotecário Rodrigo Vicente de Almeida «collocando as folhas soltas no logar competente, as paginou de novo (...) de 1 a 174», excluindo o Nobiliario, tendo acrescentado outra numeração sucessiva incluindo, pelo contrário, o Nobiliário). Não chega a referir a atribuição deste último sistema numerativo mais lógico que 303 Newsletter. Fundação Calouste Gulbenkian, n°. 24, Novembro-Dezembro de 1999: 3. Ensaio recente sobre o estádio do Cancioneiro, prévio à edição de C. Michaëlis, foi desenvolvido com base em uma cópia do século XIX da Biblioteca Jagiellónska de Cracóvia (Ms. Lusitan. fol. 1). A análise que, neste estudo, é efectuada documenta, na realidade, o que C. Michaëlis pormenorizava na primeira centena de páginas da sua introdução à edição do Cancioneiro, na Historia do Codice e na justificação da deslocação dos fólios por ela efectuada, assim como a avaliação dos fólios provenientes de Évora (1904, I: [1]-97; 98-134; 135-153): por um lado, o fl. 88r e fl. 88v com as cantigas de RoyFdz que se encontrava colado à tábua anterior, deslocado depois para o final do códice; o fl. 74r e fl. 74v com o início do ciclo do poeta Anónimo que se encontrava como custódia do volume, antes do Nobiliário portanto, e, por fim, a integração dos fólios eborenses, justificada pelo seu trabalho interpretativo-editorial (Arbor-Pulsoni 2004). 304 231 Capítulo 4. Disposição do suporte material acaba por empregar nas suas referências textuais do fl. 1 ao fl. 88. A paginação iniciada em 79 corresponde ao sistema utilizado por Carter na sua edição paleográfica (1941)305. 4.5. Numerações primitivas. Assinaturas de cadernos Observação incipiente e relativamente despreocupada do Cancioneiro da Ajuda deixa entrever que não existe, portanto, vestígio nem de assinaturas, nem de reclamos, nem de numerações primitivas306. Mas mais do que esta real ausência, importa reflectir em que momento da confecção se colocaria a tipologia de sinais técnicos endereçados ao compilador. Se o Cancioneiro da Ajuda se mostra como um trabalho que estava a ser executado, esta advertência é também inestimável, na medida em que nos vai sugerir que estas notas, mais ligadas à encadernação, só se colocariam em um momento ulterior à transcrição dos textos e à própria decoração. Se a assinatura apoiava a exacta continuidade dos cadernos e se os reclamos deveriam garantir uma correcta integração fascicular no códice, quando pensamos em scriptoria com execução de cópias em simultâneo, não podemos deixar de nos interrogar, também a este propósito, acerca do ambiente que estava a produzir este Cancioneiro. Quer dizer que, se estávamos realmente, em um scriptorium profissional (com distintos trabalhos em simultâneo), esta cópia de cantigas parece não ter suscitado riscos de confusão de materiais com outras cópias que poderiam estar a ser efectuadas ao mesmo tempo no mesmo local. Um ambiente de trabalho, talvez então, com produção escassa e em um âmbito que não proporcionaria perigos de desordem nos materiais copiados. Esta carência de precisão parece levar-nos, portanto, a um produto isolado, reproduzido com significativos meios, é certo, mas de algum modo circundado por certo amadorismo no emprego das técnicas da produção de um códice deste tipo307. Poderíamos também entrever uma marca de arcaísmo nesta inexistência organizativa. Este facto não deveria surpreender se atendermos a que já nos anos cinquenta Florence De Roover dizia que «before the fifteenth century the pages of a book were not numbered, nor were the folios numbered until the thirteenth century (…). This distinguishing mark, the signature, was usually in the right-hand lower corner of the last page of the gathering (...). Another exceptional practice was the use of catchwords (reclamantes) to connect the quires, i. e., the first 305 Examinei já alguns dos problemas referentes a estes modernos e complexos sistemas numerativos (Ramos 1985). 306 As assinaturas dos cadernos (numérica, alfabética, mista), normalmente colocadas na margem inferior à esquerda ou à direita, foram usadas de modo diferenciado segundo os scriptoria (Bischoff 1993: 30; Derolez 1984, I: 40-48). 307 Se a numeração de fólios surge desde cedo em diferentes códices, parece, que os sistemas numerativos se incluíam após a transcrição do texto, o que quer dizer que os processos de referência identificativos não seriam prévios à transcrição textual (Turner 1977). Se esta indicação é verdadeira, as marcas que vamos encontrar esporadicamente em A, terão então ainda uma interpretação mais complexa. 232 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita word of the next quire being written below the line on the last page of the quire before it»308. Os sistemas de assinatura de cadernos, segundo os levantamentos de A. Derolez, deixarão de ser aplicados no século XIII e só voltará a comparecer este hábito no século XV e, praticamente, só em Itália que retoma a prática carolíngia (Derolez 1984, I: 40). No entanto e inexplicavelmente, dos cadernos que constituem o Cancioneiro, de composição bastante variável, como vimos, só dois, ou seja, os actuais cadernos VI e X, apresentam, de modo mais ou menos claro, uma numeração primitiva, ou melhor, uma assinatura parcialmente já notada por C. Michaëlis: «Das marcas de registo só duas subsistem. Uma inteira a f. 69, repetida a f. 74, i. é a principio e no fim do mesmo caderno; outra muito cerceada, no fundo da f. 96. A primeira diz XI; na segunda julgo reconhecer XIIII»309. Uma anotação exclusivamente fascicular coloca-nos já em um ambiente alto-medieval que se satisfazia, em geral, com o registo dos cadernos, e não com uma marcação de fólio a fólio. A indicação da sequência do caderno no códice ou mesmo as anotações no interior do caderno comparecem mais tarde, servindo-se mesmo, algumas vezes, só do bifólio central (Quadro IIAnexo)310. Ainda que C. Michaëlis não tenha considerado aquelas «Marcas de Registo» no parágrafo dedicado à numeração, a verdade é que estes dois cadernos possuem, efectivamente, um sistema organizativo idêntico entre si e, certamente, coetâneo. Assim, na margem inferior do lado esquerdo do fl. 33, está escrito, a tinta preta, semelhante à do texto, o numeral romano XoJ (ou seja, XI). Esta numeração é repetida no fim do caderno, no fl. 39v, mas do lado, direito e, ligeiramente, cortada pela guilhotina (Figura 3). Trata-se, portanto, de um primitivo caderno XoJ que, hoje, segundo a sequência física dos cadernos é o VI. Se seguirmos o levantamento de tipos de assinatura em cadernos, efectuado por A. Derolez, constatamos que nestes mss. humanistas que seguiam, por certo, tradição anterior, um dos sistemas mais frequentes com numeração romana comparecia unicamente no último fólio do caderno (Tipo I). O Tipo 3, que marca o primeiro fólio do caderno, «éventuellement en combinaison avec des signatures à la dernière page» está documentado no século X, não se mantém durante muito tempo e a sua ocorrência nos manuscritos analisados contempla apenas um limitado 0,7% (Derolez 1984: 45-46). 308 De Roover (1957: 608-609). Idêntica opinião em Ivy (1958: 44, 47, 48, 50 e 51). A análise dos sistemas de referência e de numeração têm sido largamente estudados no ambiente bizantino, hebraico e mesmo de alguma documentação árabe na Península Ibérica (Álvarez Marquez 2000), mas a produção ibérica em vulgar ainda não foi objecto de tal tipo de reflexão. 309 C. Michaëlis considera separadamente as marcas de registo destes cadernos. As suas inidcações reportam-se nesta citação à paginação e não à foliação do códice (1904: 150-151). 310 Se estamos, portanto, perante um uso que patenteia um hábito mais antigo, só poderá ser efectivamente interpretada esta marca em comparação com códices deste período que ofereçam tipologia idêntica. Aires A. Nascimento na sua apresentação na Biblioteca da Ajuda (Novembro de 2004) acerca do restauro do códice, não deixou de reconhecer a estranheza desta marcação no primeiro e no último fólio do caderno (Nascimento s. d.). 233 Capítulo 4. Disposição do suporte material Podemos perguntar se a utilização deste duplo código não institui uma característica arcaizante do espaço de confecção do Cancioneiro. De facto, B. Bischoff refere que «dans les plus anciens manuscrits latins, la numérotation est indiquée dans l'angle inférieur droit de la dernière page» (1993: 30). Parece entrever-se, ainda, no fl. 39v, por baixo de XoJ, o vestígio de uma sombra com sinais, que talvez não constitua sequer uma palavra, completamente ilegível, por estar cortada horizontalmente. Tratar-se-á de um antigo reclamo? A ser plausível esta hipótese, seria o único registo de reclamo em todo o manuscrito. Encontramo-nos no final do caderno VI e o caderno seguinte, o VII com a cantiga A 157, iniciada por «Nostro». Tratando-se de um caderno proveniente de Évora e, além disso, de um fólio colado a este caderno, devido à sequência textual de JSrzCoe (A 158-A 179), não me parece prudente, hoje, tentar ver naqueles sinais qualquer indício de «Nostro». Não só contar o número de letras que estaria presente no provável reclamo, como ainda admitir que fosse este o fólio imediato, visto que o fl. 40 coloca alguns obstáculos quanto ao seu posicionamento311. Mais conjectural seria ainda identificar o que subsiste dos caracteres com os de «Nostro»312. Esta suposição implicaria que estararíamos perante um reclamo de tipo horizontal. Ora, nada nos indica que neste Cancioneiro estivesse previsto este modelo horizontal (no meio ou à direita na margem inferior) e não o tipo vertical (com diversas possibilidades de marcação, mais ou menos junto da justificação). XoJ XoJ //////// fl. 33 fl. 39 v Figura 3 – Colocação da assinatura primitiva do caderno VI O caderno em que se verifica esta primeira ocorrência é composto por um quaterno incompleto, constituído por três bifólios (fl. 33 e fl. 39; fl. 34 e fl. 38; fl. 35 e fl. 37) e um fólio procedente de Évora, primitivamente numerado 119, e actual fl. 36. A numeração o início e no final certifica a sua constituição quaternária. 311 Como vimos na descrição dos cadernos este sector, proveniente de Évora, tem de ser examinado com alguma precaução no contexto sequencial do códice. 312 Nas Cantigas de Santa Maria, no Códice de los músicos (Esc. b.i.2 ou E), estudado por G. Avenoza, não se encontram reclamos ou se existiram encontravam-se na margem inferior, destinados talvez ao desaparecimento intencional pelo trabalho da encadernação (Avenoza s.d.). 234 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Quase com as mesmas características, motivadas pelo dano da guilhotina, encontro também no fl. 61 a numeração XoIIII no lado esquerdo da margem inferior, em posição muito mais baixa, em relação ao XoJ no fl. 33 (Figura 4). Este mesmo tipo de numeração, danificado com um corte em sentido horizontal, acha-se no fim do caderno, no fl. 67v - XoIIII. Neste caso, não é visível qualquer vestígio de reclamo, ou por a guilhotina ter atingido muito mais o corte da parte inferior da numeração, ou por ter eliminado integralmente o eventual reclamo. Este caderno, segundo se observa hoje, pela sequência física dos cadernos, corresponde actualmente ao número X. X°IIII XoIIII fl. 61 fl. 67v Figura 4 – Colocação da assinatura primitiva do caderno X É um quaterno incompleto constituído por três bifólios e um fólio. C. Michaëlis integra uma lacuna total entre o fl. 61 e o fl. 67, por considerar que este caderno era constituído por cinco folhas inteiras313. Se a reconstituição de C. Michaëlis se legitima pela necessidade de completar textos incompletos, a assinatura primitiva teria correspondido a um quínio e não a um quaterno como no precedente caderno VI. Esta constatação demonstraria que os cadernos não possuíam uma organização uniforme, o que deveria suprimir o empreendimento reconstrutivo de uma regularidade fascicular314. Comparando ainda com a observação feita por C. Michaëlis, verifica-se que a numeração inicial de caderno no fl. 61 não é referida pela filóloga, não tendo, assim, sido detectado o mesmo sistema de assinatura, adoptado esporadicamente nestes dois cadernos. Em resumo, no manuscrito da Ajuda, há dois cadernos, o VI e o X na sucessão actual que apresentam um sistema idêntico de numeração antiga. Esta numeração, romana, com características idênticas à mão do copista, caracteriza-se pela colocação no início do caderno (rosto) no lado esquerdo, na margem inferior, variando apenas a distância em relação ao pé do fólio (próximo da lombada). Qualquer tentativa de avaliação das dimensões seria falseada por ignorarmos a área original das margens (lombada, goteira, cabeça ou pé), ainda que o corte a 313 É mais um dos casos, como observado na descrição dos cadernos, de inserção no sentido de uma reconstituição de um formato ideal (Michaëlis 1904, II: 149). 314 Calculando até os fólios únicos que, agora, constituem os cadernos VIIa, XIa e XIVa, resultantes do recente restauro, só se acentua este estádio precário e variável. 235 Capítulo 4. Disposição do suporte material que os fólios foram sujeitos seja muito mais notável na margem superior (cabeça) onde o próprio texto foi, por vezes, danificado, do que na margem inferior (pé), onde o texto nunca foi danificado. A numeração do caderno completa-se com a colocação no último fólio do caderno (verso) no lado direito, na margem inferior, mais ou menos na mesma posição, tanto no caderno VI como no caderno X315. Esta primitiva numeração deveria permitir um inestimável indício para a reconstituição dos cadernos perdidos. Como a sucessão entre os primitivos cadernos X°J e X°IIII não parece harmonizar-se com o seguimento presente, e mesmo prevendo a reconstituição de um plausível caderno VIIa, admiti, em um primeiro momento, que estas numerações pudessem não pertencer realmente a este códice. A primeira suposição apontava-nos um preparo de cadernos prénumerados e não, por conseguinte, especialmente destinados a este manuscrito Esta hipótese parecia ter apoio sobretudo na análise desta tipologia numerativa. Se o caderno era numerado no rosto do primeiro fólio à esquerda, mas com um registo relativamente elevado em relação ao pé, não me parecia plausível que o corte tivesse sempre suprimido as numerações neste local. Pelo contrário, as numerações no verso do último fólio do caderno, como se representam por uma situação muito mais próxima do pé, podiam tornar-se mais susceptíveis de desaparecimento. Recordo que os danos textuais afectam, em maior quantidade de ocasiões, a cabeça do fólio e não o pé316. No entanto, nada nos indica que estas numerações fizessem parte integral do Cancioneiro: poderiam também referir-se a numerações preexistentes em cadernos que tivessem sido aproveitados para a cópia do Cancioneiro da Ajuda, se aceitarmos a hipótese da possibilidade de numerações prévias317. Esta hipótese poderia justificar-se com alguma convicção. A numeração no verso do último fólio do caderno pode ter desaparecido em todos os outros casos, devido às incisões de guilhotina, mas não é provável que a numeração no recto, tendo uma colocação mais elevada, tivesse também sido afectada sistematicamente. A suposição mais económica seria, portanto, admitir que estas numerações talvez não se relacionassem directamente com o Cancioneiro. Se a suposição pudesse confirmar-se, estaríamos perante mais um factor que concorreria para a definição das condições menos profissionais de fabrico deste manuscrito318. 315 No Códice dos Músicos das Cantigas de Santa Maria, G. Avenoza aponta a sobrevivência de duas assinaturas de caderno com um sistema alfabético, completamente diferente do que é adoptado no Cancioneiro, do qual observa a subsistência de b e d (cadernos 7 e 9), representada apenas no final de cada «pliego» (Avenoza s. d.). 316 Observe-se a descrição destes casos no capítulo relativo ao estado dos fólios. 317 Nestas circunstâncias, seria particularmente útil o cálculo rigoroso da espessura do pergaminho, o que permitiria verificar se são cadernos com um tratamento oscilante no interior do mesmo manuscrito. A observação manual não permite avaliar estas finas diferenças. 318 Como o exame de diferentes manuscritos se decide mais para que a inclusão da numeração não seja um acto prévio à cópia, mas posterior à transcrição do texto (Turner 1977), é difícil a estruturação desta 236 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita O elemento mais perturbante baseia-se no exame do paralelismo entre a situação actual do Cancioneiro, o seu estado primitivo e o que presenciamos nos cancioneiros italianos. Se olharmos para o Quadro 5 apercebemo-nos de que não é possível uma recomposição serena das diferentes estratificações do manuscrito, nem de um paralelismo incontestável entre o que vemos hoje e o que podemos prognosticar. Quadro 5 – Correspondência entre as numerações primitivas e a sequência actual cadernos primitivos [cad. I] [cad. II] [cad. III] [cad. IV] [cad. V] [cad. VI] [cad. VII] [cad. VIII] [cad. IX] [cad. X] cad. X°J cadernos actuais [...] [...] [...] [...] [...] cad. I cad. II cad. III cad. IV cad. V cad. VI [...] [...] [cad. XII] [cad. XIII] cad. X°IIII cad. VII cad. VIIa cad. VIII cad. IX [cad. XV] [cad. XVI] [cad. XVII] [cad. XVIII] [cad. XIX] [cad. XX] [...] [...] [...] cad. XI cad. XIa cad. XII cad. XIII cad. XIV cad. XIVa [...] [...] [...] cad. X Se o caderno X°J condiz, hoje, com o caderno VI não parece problemático prever uma sucessão de cinco cadernos em um estado anterior. Esta suposição não se diferenciaria, aliás, do que C. Michaëlis tinha previsto para a primeira grande lacuna319. A dificuldade acentua-se com hipótese. No entanto, ss processos de aperfeiçoamento destes sistemas numerativos provinham de um desenvolvimento dos meios e da abundância de produção. Ambientes com mais numerosa actividade desenvolveriam sistemas mais sofisticados e mais frequentes, enquanto produtos mais isolados não necessitariam, por motivos óbvios, deste tipo de precisão. 319 Esta reconstituição relativa aos primeiros cadernos e a um estádio do Cancioneiro mais longínquo e, portanto, menos controlável, assume várias formas. Na descrição da estrutura do caderno I aludi às 237 Capítulo 4. Disposição do suporte material a correspondência entre o primitivo caderno X°IIII com o actual caderno X. A termos em conta este estádio primitivo, significaria que entre o caderno numerado com X°J e o X°IIII só deveria, logicamente, existir dois cadernos, um com a numeração X°II e outro com o registo X°III. Ora, ao nos confrontarmos com a situação actual, damos conta de que temos um sector em que foi integrado um caderno proveniente de Évora, o caderno VII e, ao mesmo tempo, o fólio isolado, fl. 46, sobrevivente provável de um caderno VIIa. Isto quer dizer que já, na situação primitiva, faltariam, ou não estavam previstos nesta zona, dois cadernos. É uma averiguação substancial para o entendimento da fase do Cancioneiro da Ajuda, prévio ao que nós, presentemente, compreendemos. Pode querer dizer que, se é legítima a sequência do material de Évora nesta posição (caderno VII) e o fl. 46, isolado (caderno VIIa), a inserção daqueles ciclos textuais ou é ulterior às assinaturas dos cadernos X°J e X°IIII, ou não estava prevista para este sector no momento em que foi executada a assinatura dos cadernos320. Mas mesmo que não estivesse presente o caderno eborense, não encontraríamos também uma reciprocidade aceitável entre a assinatura primitiva e a sequência do Cancioneiro da Ajuda, antes da inserção do material referente ao ciclo de JSrzCoe: o primitivo caderno X°J corresponde ao actual caderno VI o primitivo caderno [X°II] corresponderia ao caderno VIII o primitivo caderno [X°III] corresponderia ao actual caderno IX o primitivo caderno X°IIII corresponde ao actual caderno X A perturbação não viria só da inserção do caderno VII, proveniente de Évora com o ciclo de JSrzCoe, mas existiria já um sector, visível hoje através do que nos sobra, hoje, como fólio único, o fl. 46 [caderno VIIa] com a verosímil atribuição de um final de ciclo a JPrzAv. É, portanto, possível que mesmo este fólio tenha tido também uma integração posterior àquela assinatura dos cadernos. Poder-se-ia assim prever que estes dois ciclos [JPrzAv e JSrzCoe] tenham sido submetidos a uma ulterior arrumação. É aliás curioso notar que boa parte dos cortes na margem da cabeça que afectaram texto situam-se neste caderno VII, como se a sua preparação de mise en page tivesse sido diferente. Observe-se o desgaste textual no primeiro verso nos fl. 42r, fl. 42v, fl. 43r, fl. 43v, fl. 44r, fl. 44v, fl. 45r, fl. 45v. A sequência, fundamentada pelo ordenamento pressentido por C. Michaëlis, não deixa, por aquele motivo, de colocar alguma interpelação. É um facto que esta intercalação resultou de um cotejo com o Cancioneiro Colocci-Brancuti, é verdade também que este ordenamento no diferentes possibilidades propostas por C. Michaëlis: faltas de um, quatro ou cinco cadernos (1904, I: 1; II: 150-151, 201). 320 Todo o caderno VII contém fólios montados. Inclui no fl. 40 uma cantiga, A 157 de atribuição complexa, provavelmente a JPrzAv (copiada pela mão 2) e o ciclo de JSrzCoe. Cf. capítulo dedicado à Escrita. 238 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita cancioneiro ajudense se subordinou ao que se podia inferir do cancioneiro italiano e do índice colocciano, mas se, às numerações primitivas, for dado um peso efectivo, será necessário imaginar que, aqui, as duas tradições se afastariam e não estaríamos perante uma equiparação tão perfeita entre os dois ramos da tradição lírica galego- portuguesa. Observemos de perto o quadro analisado na estrutura destes cadernos com as sequências entre os dois ramos, apesar da incómoda coincidência lacunar nos dois manuscritos auxiliadas pelo apontamento colocciano no preenchimento das lacunas que autoriza uma restituição da série dos trovadores e o número de textos que deve ter estado presente nesta secção da tradição. Após a sequência dos ciclos de JPrzAv, JSrzCoe, Anon./EstTrav?, RoyPaezRib, JLpzUlh, FerGvzSeav, PGmzBarr, AfLpzBay encontramos o paralelismo com o actual caderno X com o ciclo de MenRdzTen. Todos estes textos que se acham, agora, transcritos quer em A, quer em B, ou quer até conjecturados a partir da numeração colocciana, não poderiam estar copiados apenas nos dois cadernos, os primitivos, [...] e [...], que é possível recompor com base nas duas primitivas assinaturas de caderno de A, quer dizer, entre os X°J e X°IIII. Este facto incita-me, pelo menos, a questionar, neste sector, o ambicionado paralelismo que é, comummente, evocado entre as duas tradições321. Além disso, há um elemento de natureza paleográfica que pode corroborar a tessitura diferenciada nesta zona do Cancioneiro. O caderno VII, que contém o ciclo de JSrzCoe iniciado no verso do fl. 40, apresenta a particularidade de incluir no rosto deste fl. 40 uma cantiga, A 157, copiada por outra mão (mão 2). A mudança de mão indicia também um momento diferenciado na cópia (ulterior ou, pelo menos, não contínua), quando vamos constatar que esta mão 2 é a mesma que se ocupa da transcrição dos dois últimos cadernos, XIII e XIV322. Pode admitir-se, com certeza, um códice sem marcas de reclamo (prever mesmo o seu desaparecimento com a encadernação quinhentista), mas a convergência destas ausências (cadernos quase sem assinatura e carência de vestígios de reclamo) não pode deixar de estar relacionada com a incompletude do Cancioneiro e com a ausência de encadernação. 321 Se este aspecto parece levar a uma larga incógnita, alguns outros elementos que se delineam na arrumação dos autores nesta parte (cantigas com ordem diversa ou com deslocação de zona) ajudariam a solidificar esta hipótese de que, em um momento primitivo de A (atendendo sempre às duas numerações originais de A como numerações relacionadas de facto com A) a compilação dos autores não se disporia no modo em que hoje a conhecemos ou conjecturamos. Ainda a este propósito, veja-se o capítulo dedicado à Escrita do Cancioneiro, onde parece ser possível individualizar a mão que transcreveu o fl. 40r, mão 2 que copiou também os dois últimos cadernos, o caderno XIII e o caderno XIV. 322 A distribuição dos copistas encontra-se caracterizada no capítulo dedicado à análise paleográfica. 239 Capítulo 4. Disposição do suporte material 4.6. Numerações modernas Os fólios estão numerados com diversos sistemas de foliação e paginação, todos a lápis e todos em letra moderna. Uma das paginações é feita ao alto da página, no canto superior esquerdo do rosto e no canto superior direito do verso. Esta numeração começa em 79 e vai até 253. É bastante regular e é a seguida por Carter na sua edição paleográfica do Cancioneiro da Ajuda (1941) Deve ter sido efectuada por Rodrigo Vicente de Almeida, oficial da Biblioteca da Ajuda323. Este começo compreende-se, em virtude de este número, 79, aparecer na sequência da numeração que tinha sido atribuída ao Nobiliário do Conde D. Pedro que precede o Cancioneiro. Outra numeração, no centro da margem da cabeça, começa a 41 e termina a 55 v por ausência de margem disponível, ou seja, a partir do momento em que o texto passa a ser danificado pela guilhotina, não há evidentemente, espaço para o prosseguimento desta numeração, embora fosse possível preservá-la depois, nos fólios em que se volta a dispor de margem. Trata-se, portanto, de uma numeração incompleta. Além de inacabada é, também, uma numeração errada. Temos, por exemplo, o fl. 55 v que é um rosto. No primeiro fólio, debaixo do algarismo 41 há a notação «Stuart 41», escrita a lápis e com letra cuja identificação talvez possa ser atribuída a C. Michaëlis324. Mas, de acordo com a sua descrição, a numeração de Stuart, reconhecida também como heteróclita, está no centro da margem inferior e não na margem superior, como acabámos de notar: «A primeira numeração do volume (...) inscripta no centro da margem inferior, é de Lord Stuart. Saltando por cima das paginas brancas, marcou apenas 68 folhas do cancioneiro com algarismos de 41 a 108v» (Michaëlis 1904, II: 137)325. Relativamente ao centro da margem superior, afirma ainda a filóloga: «Ultimamente, no acto de restauração do vetusto monumento, a que os empregados da bibliotheca procederam, o digno e zeloso official Sr. Rodrigo Vicente de Almeida, collocando as folhas soltas no logar competente, as paginou de novo, no centro da margem superior, de 1 a 174»326. 323 Ainda que as indicações de C. Michaëlis a este respeito não sejam muito explícitas, subentende-se que esta numeração seja da responsabilidade do bibliotecário (1904, II: 137). 324 As imprecisões devem ser conferidas a Stuart que numera antes da inserção dos fólios eborenses, o que significa que alguns dos fólios, sobretudo os soltos, tivessem uma posição indefinida quanto à posição correcta do rosto e do verso. 325 Assinalo em itálico a localização referida por C. Michaëlis. A edição Stuart refere esta numeração que inclui o Nobiliário na «Noticia do Manuscripto» (1823: [v]). 326 Por esta indicação se depreende a complexidade atributiva destas numerações. Chamo a atenção sobretudo para a referência à colocação das «folhas soltas no logar competente» (Michaëlis 1904, II: 137). 240 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A terceira numeração é uma foliação, inscrita no canto inferior esquerdo do rosto que começa em 41 e vai até 117. Numeração não regular. Não há, de parte de C. Michaëlis, referência a nenhuma numeração nesta posição. Menciona, unicamente, uma numeração, iniciada também em 41, nesta margem inferior, mas não neste lado. A quarta numeração é complexa e está colocada no centro da margem inferior, em forma de equação que faz corresponder uma paginação de 1 a 174 a uma foliação de 41 a 108 v (rosto). Muito irregular e com muitos erros. Esta numeração prossegue com o seguinte esquema: 1 = 41 2 = 41 v 3 = 42 4 = 42 v 5 = 43, etc. Os erros desta numeração devem pertencer a Stuart, embora a colocação não seja esta. Como já referi, no estado actual do manuscrito, a fazer fé na nota «Stuart 41», a numeração atribuída a Stuart está no centro da margem superior iniciada em 41 e não no centro da margem inferior, como refere C. Michaëlis. Este sistema misto de paginação/foliação não é descrito nem referido pela filóloga. No primeiro capítulo da sua edição do Cancioneiro, «Resenha Bibliographica» (1904, II: 7-8), é referida naturalmente, a edição de C. Stuart de Rothesay (1823), observando principalmente as divergências na numeração efectuada no manuscrito. As divergências são devidas ao paleógrafo encarregado da reprodução, que suprimiu, não só as páginas em branco, como também as que não estavam completamente escritas, transferindo até poesias de uma coluna para outra. Assim, a edição de Stuart está reduzida em 7 folhas e reflecte os erros de numeração feitos no manuscrito. Finalmente, uma quinta numeração, não visível no primeiro fólio, mas que aí deve ter estado, situa-se no canto inferior direito do rosto e é uma foliação indicada com [1], 2, 3, 4, ……… até 88, embora não sejam muito perceptíveis as duas últimas indicações [87] e [88]. Inexplicavelmente, esta numeração encontra-se no local indicado por C. Michaëlis para a sua própria numeração: «feita por mim a lapis, de 41 a 127 (...) no canto de fóra da mesma margem [inferior], segue identico systema, incluindo todavia as folhas em branco, a de guarda, as que estiveram colladas contra a capa, e as de Evora»327. Não há coincidência, nem com a posição «no canto de fora» -, nem com o sistema - «de 41 a 127». 327 Coloco em itálico a localização de C. Michaëlis. O sistema escolhido na edição corresponde à foliação com a indicação entre parênteses da paginação. Para o texto A 1, por exemplo, inclui «f.1 (=41) a» (1904, II: 137; I: 5). 241 Capítulo 4. Disposição do suporte material Acrescente-se, ainda, que, no rodapé deste primeiro fólio, sob a numeração 1 = 41 (e em letra muito semelhante à que escreveu na margem superior «Stuart 41») pode ler-se: «A ordem em que estão agora as páginas deste com relação a Stuart». Trata-se, certamente, de uma nota inserida após a reordenação do códice a que C. Michaëlis faz referência. Talvez por este motivo C. Michaëlis, não refira a quarta numeração e, além disso, não há coincidência entre as numerações que afirma terem sido feitas por Lord Stuart, por Rodrigo Vicente de Almeida e por ela própria. As discordâncias são visíveis e devem ser resultantes da preocupação em conceder ao Cancioneiro uma ordem lógica e operacional entre as primeiras edições (Stuart 1823 e Varnhagen 1849), C. Michaëlis e o funcionário da Biblioteca. Para maior clarificação, apresento o esquema das numerações analisadas e descritas por C. Michaëlis e o esquema da minha própria observação (Figura 5 e Figura 6). 79 1 41 41 fl. 1 Figura 5 – Numerações modernas descritas por C. Michaëlis A atribuição das numerações, no registo de 1904, é a seguinte: 79 – Rodrigo Vicente de Almeida 1– Rodrigo Vicente de Almeida 41– Lord Stuart (centro da margem inferior) 41– Carolina M. de Vasconcelos (goteira da margem inferior) Tanto quanto posso precisar, a distribuição das numerações, como mostro na figura seguinte, é diferente (Figura 6): 242 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 79 41 «Stuart 41» 41 1=41 [1] fl. 1 Figura 6 – Estado actual das numerações modernas Para além do caso de 79, cuja localização concorda com estado de 1904, o de cada um dos restantes corresponde a interpretações hipotéticas: 41 «Stuart 41» (centro da margem superior) goteira da margem inferior) – Será uma numeração copiada da de Lord Stuart? Será uma numeração deslocada, posteriormente à descrição de 1904? A notação «Stuart 41» quererá dizer – feita por Lord Stuart? – ou numeração igual à de Lord Stuart? 41 (lombada da margem inferior) goteira da margem inferior) – em princípio parece ser a de C. Michaëlis, mas deslocada do lado da goteira para o lado da lombada, isto é, da margem exterior para a interior. 1 =41 (centro da margem inferior) – sistema misto de paginação/foliação, muito irregular. Parece (pelo menos, a foliação) ser a de Lord Stuart (ou igual) pelas incorrecções que apresenta, mas, quanto à paginação e quanto ao processo de equivalência, nada posso adiantar. [1] (goteira da margem inferior) – é uma foliação correcta, sem erros. Segundo C. Michaëlis, a única numeração começada por este algarismo, foi realizada pelo oficial da Biblioteca da Ajuda, Rodrigo Vicente de Almeida, mas não nesta posição. Ou se trata de nova deslocação, ou de outra numeração posterior. Com o novo restauro, esta numeração a lápis que, em alguns casos, era já ténue, deixou de ser observável em alguns casos. Observando os dois estados do manuscrito, o de 1904 (data da publicação do trabalho de C. Michaëlis) e o actual há, pelo menos, algumas conclusões, dignas de registo: 243 Capítulo 4. Disposição do suporte material 1.º – o sistema de numeração e a tabela apresentada no II volume da edição do Cancioneiro da Ajuda não correspondem ao estado actual das numerações de fólios do Cancioneiro; 2.º – logo, não podem ser seguidos por quem faça referência a lugares do texto; 3.º – as divergências estão relacionadas não só com o problema da atribuição, mas sobretudo com a posição e com o sistema das numerações; 4.º – há, pelo menos, mais uma numeração, posterior à descrição de C. Michaëlis - a numeração mista paginação/foliação; 5.º – por fim, são dois os cadernos que têm assinatura primitiva completa (os cadernos VI e X) e não apenas o caderno VI, tal como foi observado em 1904328. A assinatura primitiva caracteriza-se, portanto, pela colocação de numerais na margem inferior do rosto do fólio que inicia o caderno no lado esquerdo. E é completada com a colocação no verso do último fólio do caderno, no lado direito, também na margem inferior. Devido às não coincidências já assinaladas, elaboro nova tabela de concordância dos cinco sistemas de numeração, actualmente existentes no manuscrito Quadro III-Anexo. Indico, primeiramente, os sistemas da margem superior, seguindo a direcção lombada, centro, goteira e depois, o da margem inferior, tendo em consideração a mesma ordem. Não faço referência à tabela publicada por C. Michaëlis, por corresponder a um estado diferente (1904, II: 138139)329. Não apresento, também, nenhuma coluna à parte com os fólios vindos de Évora330. Para estes, coloco um E, identificador, nos respectivos fólios. 328 No fl. 21/p. 119 [caderno IV] na margem inferior, no lado esquerdo há também traços de tinta, indecifráveis, devido ao corte sofrido pelo fólio. Não me parece, entretanto, que se trate de qualquer tipo de numeração como nos outros casos. Inclinar-me-ia para talvez duas palavras de que resta apenas a parte superior de duas ou três letras. Não designo de reclamo, porque de acordo com o sistema do caderno X°IIII, ele surgiria debaixo da numeração. 329 As diferenças situam-se sobretudo na localização e no esbatimento de algumas destas numerações a lápis (Michaëlis 1904, II: 138-139). 330 Para a existência e introdução dos onze fólios vindos de Évora e para as investigações acerca do códice cf. Michaëlis 1904, II, capítulo II: 99-134. Sobre a vinda destes fólios de Évora para a Biblioteca da Ajuda cf. Cunha Rivara, «O Cancioneiro do Collegio dos Nobres» (1842: 406-407); Santos (1965: 117, 135, 136, 138 e 139; e M. M. F.(1980: 26). 244 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 5. Preparo e apresentação do fólio 5.1. Picotagem. Pauta O processo de empaginação, a optimização no preparo do trabalho conducente à mise en page, é perceptível em vários fólios, mas o picotamento no intercolúnio ou nas margens – dorso e goteira – não se manteve (ou náo foi efectuado), como se pode melhor ver em fólios da cópia do fragmento do Livro de Linhagens, não se podendo documentar a existência de perfurações331. O traçado da esquadria, destinada ao espelho da escrita é feito com uma ponta seca (um punctorium e a sua visibilidade é variável ao percorrer dos fólios, não se podendo afirmar que haja sempre a mesma desteridade no traçado332). Parece de excluir no Cancioneiro um preparo global no caderno até pela resistência da pele, embora este processo seja visível em outros manuscritos deste período. O grande formato apoia também este facto, quer dizer, um tratamento de bifólio a bifólio e não fascicular. É admissível também que as perfurações tenham desaparecido na margem externa com o aparo dos fólios. De acordo com os sistemas preconizados por Jones (1946: 389-403) a tipologia D (diferente da tipologia do Nobiliário que parece mais aproximar-se do C) seria aquela que mais se relacionaria com o que se pode inferir da marcação do Cancioneiro333. O fólio examinado à transparência mostra, várias vezes, total correspondência de linhas entre o rosto e o verso, evidenciando a preparação idêntica nas duas faces do fólio. A esquadria 331 Esta preparação do fólio (ou do caderno na sua totalidade) para a escrita será aqui abordada apenas no sentido da recepção do texto escrito. Outros elementos de natureza estética, económica ou ergonómica nas proporções concedidas à superfície do fólio a utilizar, serão avaliados no capítulo realtivo aos aspectos decorativos (Dukan 1986). É L. Gilissen quem nos descreve os principais processos dedicado a este momento da preparação do manuscrito para a escrita (Gilissen (1969; 1981). 332 É da tradição bizantina que se mantém esta técnica de marcação com ponta seca quando, nesta altura, comparecem já vários manuscritos marcados com lineamento a cor (Casagrande 1997; Derolez 2000). 333 Não há, naturalmente, garantia de que o fólio tenha sido sujeito a uma picotagem operacional para o traçado simétrico da correspondente esquadria, ou que se tenha sempre recorrido a esta técnica na preparação individual do fólio ou do próprio caderno, por não se reconhecer, hoje, se houve sempre uma interacção permanente entre estas duas operações preparatórias. O caso particular, observado por Gilissen, com os furos destinados apenas a uma referência simétrica, antes da preparação dos bifólios também não chega a ser observado aqui (Gilissen 1976). Será necessário ainda acrescentar que, contrariamente a outros elementos de individualização codicológica, conducentes à datação e à localização, e sem me referir mesmo à Península Ibérica, este aspecto relativo ao estudo da picotagem presente no preparo dos manuscritos continua a estar dependente dos trabalhos pioneiros de L. Webber Jones. Tanto a tipologia referida (doze tipos de picotagem!), como os vários instrumentos utilizados não favoreceram, como se esperava, aproximações entre manuscritos de que se conjecturava uma produção em um mesmo scriptorium, por os processos poderem variar mesmo no interior de um mesmo manuscrito (Jones 1941; 1944; 1946; 1961; 1962). A regularidade de alguns casos de marcação com a roda dentada foi, de modo idêntico, posta em causa, mais recentemente (Dane 1996; Muzerelle 1997). 245 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio não é, contudo, sistemática. O espaço intercolúnio é variável e os espaços previstos para a colocação da miniatura são inconstantes, dez, dezassete ou mesmo oito linhas e em cada fólio, o número de linhas pode igualmente oscilar. Consequência de uma eventual picotagem, que não se conservou (no caso de ter sido realmente efectuada), é o lineamento. É a ponta seca a técnica utilizada, o que significa que as linhas não possuem em todo o manuscrito qualquer vestígio de substância colorida. Os traços patenteiam certo profissionalismo na pressão efectuada, porque não ocorrem acidentes de rompimento do rosto para o verso. Temos apenas os vincos na pele que são, mais ou menos, visíveis tanto no rosto como no verso do fólio, mas sem ocorrências de desgaste no pergaminho, ocasionado pela marcação. A eventualidade de uso de uma única tabulam ad rigandum documentada em vários ambientes, não deve ter sido aqui utilizada em todo o códice. Verificam-se algumas diversidades, na transição de caderno para caderno334. É difícil saber se os copistas respeitaram o vazio da margem da cabeça devido aos cortes que sofreu este lado do fólio. Hoje, o manuscrito concede-nos uma imagem de texto quase coincidente (e mesmo danificado, por vezes) com o corte desta margem superior. A mão 2 (cadernos XIII e XIV) prepara o fólio de um modo diferenciado, prevendo de antemão a presença da miniatura, porque o espaço deixado não aparece com presença de linhas. Este traçado particular é perfeitamente visível na edição fac-similada no fl. 79r. Em outros casos, o fólio encontra-se com a presença de linhas (fl. 80r) como ocorre na mão 1 onde são visíveis as linhas mesmo com a execução da miniatura. A mão 3 deixou também mais intacto o espaço previsto para a miniatura (fl. 77v e fl. 78r). Poder-se-ia dizer que há uma marcação diferente na coluna da esquerda – para a miniatura e grande inicial – e, na coluna da direita, com a pauta normal para o texto. Também neste sector, a mão 3 deixou mais espaço para a notação musical que já não é pautada com linhas espaçadas de 10 mm, mas com um espaço muito maior de cerca de 30 mm. Nos cadernos finais, XIII e XIV, do fl. 80 em diante, observa-se uma preparação mais próxima quanto ao molde da que encontrávamos na mão 1335. (Exemplificação de fólios com reconstituição de pauta – Anexo IV) 334 O uso da tabula (ou mesmo de outros sistemas eficazes para a configuração da réglure), frequente em ambiente bizantino e hebraico, não está suficientemente desenvolvido na área ibérica, se excluirmos algumas observações feitas aos manuscritos visigóticos (Keller 1990). 335 O contorno gráfico das três mãos presentes no Cancioneiro encontra-se caracterizado no capítulo dedicado à Escrita. 246 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 5.2. «Mise en page». A mise en page336 das composições líricas galego-portuguesas pode ser definida através de certos critérios observáveis através da antevisão de todos os elementos no fólio que varia, naturalmente, de manuscrito para manuscrito (Cancioneiro da Ajuda, Cancioneiro ColocciBrancuti, Cancioneiro da Vaticana, Pergaminho Vindel e Pergaminho Sharrer337). Tendo presente a tradição latina em textos subordinados à métrica, será indispensável para o exame da mise en page a percepção deste ambiente cultural quanto à noção de verso, à de estrofe (a primeira e as seguintes) e ao próprio género de composição (matéria lírica e não narrativa, por exemplo)338. A disposição do verso que acompanha o estatuto representativo da prosa em uma notação contínua e a colocação individual do verso, linha a linha, resultam de processos de identidade métrica e rítmica essenciais no reconhecimento de um verso, enquanto verso cantado com apoio no sistema quantitativo ou na rima. A colocação verso a verso era necessária na identificação de versos métricos, o que poderia inicialmente disproporcionar o aspecto do fólio na margem da goteira e a relação dos copistas com o espaço vazio mas, aparentemente, não era imprescindível para a autenticação de um verso rítmico (não é o verso o factor essencial, mas o ritmo integral com o encadeamento das diferentes partes). A poesia métrica dispunha-se por um verso por linha (ou pela individualização da estrofe) o que conferia certa estrutura à composição. Mas a extensão de certos versos, a perda da percepção quantitativa levará a uma transcrição que perde a consciência da unidade-verso. A cópia não ocupará apenas uma linha e os versos serão transcritos de seguida, utilisando apenas a maiúscula para o seu início, podendo imaginar-se a 336 A mise en page, por vezes traduzida em português para empaginamento, caracteriza as tendências da disposição da página na confecção dos manuscritos (rosto e / ou verso do fólio, texto em colunas, texto em mancha única, parte do fólio preenchido, margens, fólio em branco, etc.). Como empaginamento pode provocar ambiguidade com a paginação, prefiro conservar a expressão francesa. A denominação é familiar a codicólogos e a paleógrafos que observaram a repartição harmoniosa do texto e das margens (Leroy 1977; Bischoff 1993; Bozzolo-Ornato 1980, 1984, 1990, 1997). Exemplos concretos e comentados de esquemas e de tipologias textuais encontram-se em Martin e Vezin 1990 e Martin 2000. Tratamento rigoroso, circunscrito a mss. franceses de natureza literária, pode ser observado no álbum dedicado ao século XIII (Careri et al. 2001). Circunscrevendo-se a textos literários occitânicos, G. Brunel-Lobrichon apresentou um elenco de diferentes formatos deste aspecto codicológico (1994). A utilidade desta observação técnica contribuirá não só para definir, de modo mais preciso, regras de comportamento ibérico em este tipo de manuscritos, como também para eventualmente permitir conjecturas sobre o tipo de confecção do próprio manuscrito e daí poder ser possível retirar informação relativa à tradição textual. 337 Não incluo neste elenco o descriptus Cancioneiro da Bancroft Library, nem os testemunhos autónomos com os Lais da Bretanha (Vat. Lat.7182) nem o fólio inserido em Miscelâneas tardias com a tenção entre Afonso Sanches e Vasco Martinz de Resende (MS 9249 e MS 3267, anterior K-61, da BN de Madrid e e MS 419 da BPM do Porto). A observação directa dos mss., ou mesmo das reproduções fac-similadas, mostra os diversos modos de disposição textual no fólio da poesia lírica galego-portuguesa. 338 A identidade material de «qu'est-ce qu'un vers au moyen âge?» é pergunta à qual procurou responder P. Bourgain, através de um estudo lexicográfico que coloca em evidência as diversas acepções (Bourgain 1989). 247 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio facilidade com que um copista pode transformar um verso, estabelecido com base em quantidade já não audível, em 'prosa', sobretudo em casos de versos mais longos. É, por isso, que na transcrição dos versos rítmicos compareciam procedimentos de legibilidade como a continuidade das frases, com marcas de iniciais, brancos, pontuação, etc. Mas, quando a rima se torna preponderante (século XII), quando o novo verso adquire o mesmo estatuto literário, a sua disposição aproximar-se-á da colocação do verso métrico e a disposição na marca da consonância será também visual-auditiva (não é alheia também a presença ou a ausência musical), impondo-se o «vers en vedette», como o afirma P. Bourgain no seu relevante estudo dedicado aos textos latinos339. Os protótipos de transcrição presentes no Cancioneiro da Ajuda e no Pergaminho Vindel assemelham-se pela cópia das cantigas em duas colunas por fólio, pela sucessividade dos versos na primeira estrofe, separados algumas vezes por um ponto identificador de final de verso e ainda por um espaço previsto para a transcrição musical no Cancioneiro da Ajuda e pelas respectivas frases musicais inseridas em seis das sete cantigas presentes no Pergaminho Vindel340. As estrofes subsequentes, tanto no Cancioneiro como neste pergaminho, dispõem-se através de cópia que considera o traslado verso a verso. O ordenamento textual do Pergaminho Sharrer com fragmentos de sete cantigas d' amor de D. Denis, além da disposição das cantigas em três colunas, oferece características de lineamento diferenciadas341. Mas o comportamento essencial não é análogo ao desempenho geral de outros manuscritos musicados. Isto é: a primeira estrofe com notação musical (ou com previsão como no Cancioneiro da Ajuda) e as estrofes seguintes não são copiadas verso a verso (Sharrer 1991: 15). Os cancioneiros copiados em Itália já não nos concedem, pelo contrário, a comparência ou propósito de notação musical explícita. Não se encontram, de facto, elementos rapidamente perceptíveis desta presença, mas é 339 A tradição latina foi examinada por P. Bourgain. A disposição da poesia latina rítmica é analisada nos cancioneiros líricos, tendo presente a importância de número de sílabas, o lugar das sílabas acentuadas em finais de verso, em confronto com a poesia que se geria pelo princípio da quantidade silábica. O grau de aperfeiçoamento na cópia marcava-se, já no fim do século VI, com a coluneta vertical à esquerda para colocar em evidência os versos de extensão diversa. O hábito perder-se-á e alguns mss. não acompanharão este rigor na preparação do fólio para os textos em verso, mas é sobretudo com a mudança de estatuto na versificação latina medieval que nos confrontamos com as primeiras mudanças de mise en page (1991: 61- 84). 340 Recordo que, após as várias hipóteses a propósito da natureza material do Pergaminho Vindel, M. P. Ferreira se inclinou, no seu estudo sobre o pergaminho, por uma «folha volante», e não um rótulo ou um rolo, dobrado ao meio, com duas colunas em cada lado (Ferreira 1986: 65). Esta redefinição terá, naturalmente, implicações na avaliação comparativa das diferentes posições da mise en texte. 341 Os aspectos codicológicos e paleográficos específicos do pergaminho dionisino são descritos por H. L. Sharrer. As dimensões que o aproximam dos manuscritos régios, a raridade da disposição textual em três colunas em um manuscrito com transcrição musical, o espaço uniforme entre as linhas de texto e as linhas que acolhem a notação musical, assim como a mudança de estilo paleográfico entre a estrofe musical e as seguintes, etc. revelam uma cópia distinta em relação a outros mss. musicais. Os versos encontram-se transcritos em modo contínuo em qualquer uma das estrofes. Corrija-se assim o lapso na comunicação apresentada em Alicante (Sharrer 1991: 15; Ramos 2005). 248 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita natural que uma análise escrupulosa possa revelar indícios que denunciem em alguns ciclos, comparência musical ou, pelo menos, disposição textual pronta a acolher melodia em exemplar precedente, não muito longínquo342. Terei a oportunidade de assinalar que algumas resoluções linguísticas e textuais de B só se poderiam compreender por um estado textual prévio condicionado pela presença musical343. As resoluções gráficas, motivadas por um espaço antecedente que acompanhava a presença neumática na pauta ilustram-se com alguns exemplos: con...sella…do (A 51) / consselhado (B 163); pec…ad assi (A 95) / peccadassi (B 202); en…sandeçi (A 81) / enssandecí (B 184 a); que m…amor (A 261) / quemhamor (B 438) / quemhamor (V 50). A situação de maior proeminência é, porém, o advérbio perceptível no conhecido refran de FerGarEsg: ue … ro... ya … men (A 126) / ue … ro … ya … men (B 241) em que se observa o preservar nítido do isolamento silábico em qualquer um dos códices. Como o advérbio não é identificado como vocábulo usual, o copista é levado a uma transcrição que preserva o seguimento gráfico que comparecia no modelo, comparável, com certeza, ao que conhecemos através de A. Este fraccionamento silábico em B revela que a fonte imediata deste cancioneiro mantinha ainda aquela separação, fomentada pela colocação dos sinais musicais na pauta344. Além deste ordenamento de palavras, cuja separação silábica se associa à conformidade da notação musical, procurei também interpretar outros aspectos da organização das cantigas através do exame de diferentes espaços carecidos de texto no Cancioneiro da Ajuda (o que não deixa já de ser uma forma de reflectir na mise en page associada à mise en texte deste ms., como será observado) e que se revelam depois como indispensáveis para o entendimento do manuscrito (individualização de autores, processos decorativos criteriosos, previsão estrófica e textual, conjectura musical em fiindas de ciclos de alguns trovadores)345. 342 Qualquer tipo de observação sistemática deveria incidir particularmente nas primeiras estrofes e nas fiindas que poderiam conter, em alguns ciclos, notação musical. Na tradição galego-portuguesa, esta observação no final das composições é imprescindível, se pensarmos nos casos de fiindas com transcrição diferenciada no Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1984). 343 Com base na separação silábica presente em A, e de acordo com a disposição neumática do modelo, algumas palavras surgem com um fraccionamento nítido que em B vai provocar, ou dificuldades de leitura, ou soluções gráficas que procuram preencher o espaço deixado vazio no antecedente (Ramos 1995: 703-719). A este propósito, e de modo ainda mais explícito, observe-se a rigorosa interpretação de E. Gonçalves da anotação marginal, Martin Codaz esta non acho pontada, que se encontra em V relacionada com a ausência de notação musical da sexta cantiga de MartCod (Gonçalves 1989). 344 O aspecto separativo que isola sílabas de algumas palavras, dependente de presença musical no modelo é tratado no capítulo relativo à separação musical. 345 Refiro-me, em particular, aos espaços em branco e aos processos decorativos no Cancioneiro da Ajuda que, além de uma observação codicológica quantitativa, permitem dar importância a um cancioneiro que normalmente parecia não poder ser tomado em linha de conta quanto à separação dos autores, visto não possuir qualquer rubrica atributiva. A previsão textual significaria que o compilador aguardava novas fontes; a previsão musical nas fiindas permite, além de revelar esta característica excepcional, conjecturar 249 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Como o Cancioneiro da Ajuda permaneceu inacabado, podemos observar a preparação de um fólio completamente em branco, antes da inclusão do texto. Na realidade, vamos constatar que os fólios, desprovidos de qualquer transcrição, não foram sujeitos à marcação, o que quer dizer que o fólio era preparado à medida que os copistas abordavam os textos. Não parece mesmo que tenham sido efectuados preparos de cadernos completos antecipadamente. Se observarmos o trabalho da mão 1 que concretiza uma ampla cópia de textos (mesmo sem sabermos se realizou a cópia dos cadernos iniciais perdidos, esta mão actua até ao fl. 74r), verificamos que o primeiro fólio em branco, fl. 15v, não está preparado para texto. A mesma atitude voltará a aparecer nos fl. 17v, fl. 28v, fl. 47v, fl. 54v, fl. 58v, fl. 60v, fl. 61v, fl. 65v e fl. 70v. Mas este procedimento que poderia ser discutível em um verso de fólio (a marcação do rosto poderia ser suficiente), será bastante claro nos fl. 51r e fl. 55r que não oferecem qualquer preparação. A mão 2 actua do mesmo modo, no fl. 81r e no fl. 86v. Também com a mão 3, vamos notar igual proceder no fl. 77r. Este comportamento não só permite agrupar uma prática de trabalho de copistas diferentes, mas consente a arquitectura de um trabalho que se executava em função de materiais que, à primeira vista, não pareciam previsíveis com antecedência. Quer isto dizer que, no momento da cópia, não havia condições materiais (ou por falta de textos, ou por deficiêmcia do modelo ou por intenção deliberada com o vazio daqueles fólios) para qualquer inserção textual nestes fólios. É um elemento fundamental para avaliarmos os ciclos que consideramos lacunares ou incompletos no Cancioneiro da Ajuda em relação ao resto da tradição. V. Beltrán em diferentes trabalhos, ainda que muitos deles se circunscrevam ao ambiente quatrocentista346, tem apontado mecanismos de preparo, a génese, os sistemas de classificação e de formação de cancioneiros347. Mais recentemente, apresentou o resultado de um amplo estudo comparativo sobre a mise en page de vários cancioneiros românicos, tendo em conta a tradição latina. Neste ensaio, apresentado no Colóquio Cancioneiro da Ajuda (19042004), V. Beltrán mostrou agrupamentos de manuscritos com fundamento na transcrição contínua do verso ou do verso por linha dependente, algumas vezes, de categorias de género (textos líricos, textos narrativos, cantares de gesta, crónicas em verso, hagiografia, didáctica em verso, etc.), outras vezes dos próprios factores métricos. A inserção da melodia condicionará diferentes fontes na estrutura do Cancioneiro (Ramos 1986). Cf. também mais adiante o capítulo referente à tipologia dos espaços em branco. 346 Recordo, em particular, os seus trabalhos sobre a transmissão textual de Juan Fernández de Híjar, Juan del Encina, Gómez Manrique, Ausìas March (1992, 1995, 1996, 2005). 347 São, de facto, inúmeras as contribuições de V. Beltrán no âmbito da explicação genética cancioneiril. Refiro, sobretudo, o seu ensaio relativo às grandes compilações e aos sistemas de classificação (1995), as suas observações ao trabalho de copistas na transcrição de cancioneiros (1996), a génese e a compilação destas colecções (1998ª, 1998b, 2002) e a confecção de cancioneiros efectuada em ambiente cortesão (2003). 250 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita também a disposição do verso ou da estrofe, como se notará em diferentes cancioneiros (maiúsculas no início de estrofe com ou não mudança de linha). O manuscrito de Toledo das Cantigas de Santa Maria (2003) propõe uma separação de versos sempre que seja possível, admitindo separação em casos de versos longos. Nos outros manuscritos marianos, nem sempre a previsão do fólio aceita a separação dos versos nas estrofes com música, mas as outras estrofes estão dispostas em coluna e com as estrofes marcadas por uma inicial particular definindo-se a tradição ibérica por um certo modernismo na opção pela cópia do verso por linha com marcas adicionais para a individulaização da estrofe. Uma característica local bem precisa, que não ocorre sistematicamente no resto da România, ainda marcada por intenso polimorfismo, mesmo no interior de um manuscrito, ou um hábito que se teria socorrido de modelos de transcrição de obras narrativas com versos dispostos em coluna348. 5.3. Lineamento O número de linhas traçadas depende da função textual da justificação e da previsão de UR349. Como já temos visto, o Cancioneiro da Ajuda dispôs de circunstâncias opulentas no uso do pergaminho. Se compararmos diferentes objectos deste tipo, outros cancioneiros, vimos que a densidade textual, resultante de uma marcação apertada, mais até do que a relação UR e módulo de escrita, se define por uma utilização muito mais comprimida. Boa parte de códices franceses, analisados sob este ângulo, revela uma flutuação entre quinze e cinquenta e nove linhas, podendo afirmar-se que são os traçados com trinta ou quarenta linhas os mais frequentes350. No entanto, no interior de um mesmo volume, não é raro encontrar diferenças de lineamento, não só de caderno para caderno, mas mesmo de fólio a fólio independentemente da mudança de copista, tendo sempre presente que a harmonia estética proviria sempre do livro aberto com o rosto do fólio e com o verso do fólio anterior. Esta intenção é clara no Cancioneiro da Ajuda, sobretudo nos primeiros fólios, com a colocação de primeiras estrofes com o espaço ao alto para 348 A exemplificação do polimorfismo é apontada por V. Beltrán, quer na tradição galo-românica, quer na tradição italiana. Acentua a distinção entre os modelos adoptados, ao individualizar a influência da verso narrativo sobre o lírico e o protoganismo dos humanistas na tradição poética moderna (que coincide com o Cancioneiro da Ajuda e pelo Pergaminho Vindel) (Beltrán s.d.). 349 A noção de unidade de réglure foi introduzida por Gilissen quando se ocupou do exame de técnicas de escrita medievais inferindo destas análises aquilo que poderíamos designar de «receitas» geométricas na utilização do fólio que se reproduzem com alguma regularidade (1973). A sigla UR corresponde, portanto, a «unité de réglure», ou seja, à distância que separa duas linhas rectrizes no fólio. 350 O estudo que incide em vários manuscritos franceses mostra que os volumes analisados oscilam entre estes números, em função do tipo de tradição da mise en page e dos condicionamentos materiais do corte e da dobra da pele. A tipologia dos mss. épicos revela que existe dois tipos de volumes: um com formato médio em duas colunas com trinta linhas, o outro, de grande formato, também em duas colunas com quarenta linhas (Careri et al. 2001). 251 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio a música em simetria nas duas colunas351. Outras vezes, quando não temos este tipo de posicionamento, encontramos o texto bastante próximo do corte desta margem da cabeça, podendo entrever-se, mesmo na edição fac-similada, a marcação total do fólio. É, por este motivo, que neste Cancioneiro não é sempre exequível observar o número de linhas vazias na margem da cabeça, nem avaliar se houve sempre escrita na primeira linha da justificação, porque uma primeira linha escrita poderia revelar, como se sabe, algum indício de arcaísmo nas particularidades da cópia. Não é fácil determinar nestas condições que tipos de atitudes tinham os copistas perante a primeira linha da justificação. Além disso, com o desgaste provocado pelo corte, não é possível sequer imaginar com segurança a dimensão real da margem da cabeça (Ker 1960). No Cancioneiro da Ajuda, observa-se uma variação no número de linhas entre quarenta e oito, quarenta e sete, quarenta e seis, quarenta e cinco e até trinta e uma que comparece ocasionalmente, mas não se pode falar de uma marcação dupla. A escrita., à primeia observação, poderia dar esta impressão, mas a transcrição é feita entre duas linhas rectrizes sucessivas. O número mais frequente é o quarenta e seis que comparece, por exemplo, nos fl. 1, fl.3, fl. 4, fl. 6, fl. 8, fl. 11, fl. 15, fl. 18, etc. Pode-se dizer que o lineamento é visível em grande parte dos fólios, com excepção de alguns casos, no verso, onde parece que não foi necessário submeter a pele a nova marcação. A mão 1, nos primeiros fólios tem muitas vezes ao alto a estrofe inicial (fl. 1r, fl. 1v, fl. 2r, fl. 2v, fl. 3r, fl. 3v), sem que nos seja possível identificar a sua atitude perante a primeira linha. Mas no fl. 4r, col.b, no fl. 9r, no fl. 10v, ou fl. 11v, observa-se que começa a sua transcrição na segunda linha. A mão 2 (cadernos XIII e XIV) também inicia o seu texto na segunda linha como nos fl. 80v, fl. 82v, fl. 84r, fl. 85r, fl. 85v. A mão 3 (caderno XII), ainda que nem sempre seja visível o traçado, comporta-se do mesmo modo como nos fl. 75r, fl. 75v ou fl. 77v. Os copistas do Cancioneiro seguem o comportamento dos profissionais deste período que tinham abandonado o hábito da escrita na primeira linha, como no século XII. Folhear o Cancioneiro com esta preocupação evidencia que a marcação da pauta não é sempre perceptível de igual maneira. O primeiro fólio actual revela a notação de linhas até ao corte superior, aproveitadas até para as indicações modernas de «Faltam provavelmente 4 cadernos» ou «Stuart 41». No fl. 1v, é ainda notória, mas no verso deste fólio, como em muitos outros, não se observa tão nitidamente esta marcação, como se o copista tivesse trabalhado à transparência ou que a espessura da pele o exigisse como nos fl. 31v, fl. 36v, fl. 63v, fl. 66v, fl. 67v, fl. 72v. Os versos em branco, como os fl. 15v, 17v, fl. 28v, fl. 47v, fl. 54v, fl. 58v, fl. 60v, fl. 61v, fl. 65v, fl. 70v não se encontram pautados, o que pode querer significar que a cópia 351 O cuidado na concordância do duplo fólio aberto não é independente das características musicais deste códice e da comodidade que os intérpretes beneficiariam com este formato. 252 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita assentava, em princípio, na marcação do rosto, ou que era feita à medida da transcrição textual e não antecipadamente. Mais, os rostos vazios, desprovidos de texto durante o trabalho desta mão 1, confirmam esta disposição, pois os fl. 51r, fl. 55r encontram-se também sem delineamento de pauta. No fl. 4r, a marca de linhas volta a ser proeminente e no fl. 5v com a transcrição de uma única estrofe, o traçado da pauta é incontestável. Nestes dois casos, é notória a margem inferior em branco sem marcação de linhas com uma dimensão de cerca de 5 a 5,5cm. Se calcularmos a mesma proporção para a margem da cabeça, poderíamos deduzir que tenha desaparecido, mais ou menos, esta quantidade de centímetros352. São também visíveis as marcas nos fl. 16r, fl. 18r, fl 26r, fl 31r, fl. 36r, fl. 38r, fl. 45r, fl. 58r, etc. A mão 2 (cadernos XIII e XIV) apresenta um traçado relativamente diferenciado, notando-se sobretudo a ausência da coluneta à esquerda, visível já no fl. 79r. Esta falta verificase também nos fl. 80r, fl. 80v, fl. 81r, fl. 81v, fl. 82r, fl. 82v. Mas a mão 2 retoma o formato com coluneta no caderno XIV, no fl. 83r, no fl. 83v e no fl. 84r onde se vê esta particularidade da mão 1 nos dois lados, coluneta à esquerda e à direita. O fl. 81r que ficou em branco não recebeu qualquer preparo. Quando esta mão 2 transcreve uma cantiga no fl. 40r, não deve ter efectuado marcação ao poder guiar-se pelo verso do fólio que já deveria ter iniciado o ciclo seguinte. A mão 3, ao retomar o trabalho no verso do fl. 74r, que já estaria pautado pela mão 1, reinicia uma nova marcação no fl. 74v que se caracteriza fundamentalmente pelo diferente espaço intercolúnio e pela falta das colunetas verticais como se pode observar nos fl. 75r, fl. 76r, fl. 77v, fl. 78r, fl. 78v. O fl. 77r em branco que conterá, depois, diverso tipo de ilustração, não foi lineado. Nesta parte final do manuscrito, pode ainda notar-se que o lineamento é marcado de modo mais nítido do que nos cadernos iniciais, a incisão pressionada foi mais enérgica. É um facto que a variação entre as duas linhas paralelas (pequenas colunas) verticais nas margens da lombada e da goteira não é constante. No entanto, há, apesar de tudo, a olho nu, certa harmonia nas medidas e na forma de justificação do fólio com um número de linhas, mais ou menos estável. As disparidades acentuam-se na secção final do manuscrito com a mudança de mão no caderno XII (mão 3) e nos cadernos XII e XIV (mão 2). Uma nova maneira de actuar, talvez mais apressada no traçado e insuficientemente especializada no preparo do pergaminho, que exigiu marcação em alguns versos devido à espessura da pele mais granulosa. As variações no 352 Em muitos manuscritos, as duas margens, superior e inferior, não são sempre simétricas e o espaço menor corresponde, quase sempre, à margem da cabeça. Este critério, apesar do desgaste devido à encadernação, é perfeitamente visível no Cancioneiro da Ajuda. 253 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio interior do trabalho da mão 1 são menos proeminentes, também pela qualidade do pergaminho que denota preparo mais regular nos primeiros cadernos (Quadro V- Anexo). Os sistemas de lineamento, de acordo com a classificação em âmbito bizantino em uma tipologia de vários modelos a que a maior parte dos estudiosos se refere, mostra que o responsável operou com uma base que se pode identificar em manuscritos produzidos mesmo fora daquele ambiente353. 5.4. Modelos de pauta Os protótipos da pauta para a mão 1 aproximam-se dos modelos bastante simples incluídos em de Leroy com a designação 20D2 e 20A2 (Leroy 1977)354, reproduzidos na Figura 7. Os esquemas propostos por A. Derolez, ainda que aplicados a manuscritos posteriores em pergaminho, podem também ser aqui referidos com os números 51 ou 53 do seu catálogo, embora a dupla coluna central no Cancioneiro da Ajuda mantenha o traçado das linhas que nunca comparece nos seus tipos de base de Derolez (1984)355. A mão 2, embora se sirva também deste molde no caderno XIV, usa no caderno XIII um dos sistemas mais simples com a supressão das colunetas verticais à esquerda e à direita do tipo 02D2 ou 02E2 como se observa na Figura 8 (Leroy 1977) ou 41, 43 (Derolez 1984). A mão 3 serve-se no caderno XII de um molde idêntico ao da mão 2 no caderno XIII. É necessário apontar que as linhas horizontais na margem da cabeça e do pé da lombada à goteira não são geralmente traçadas. 353 Refiro-me à conhecida classificação de J. Leroy com uma tipologia de base concretizada através de treze formas de marcar a réglure. Embora se aplique a manuscritos gregos em cadernos cuja abertura mostra, em princípio, a face carne, este ficheiro tem sido regularmente enriquecido com novos modelos de marcação que continua a constituir referência (Leroy 1976; 1977; Sautel 1995). A classificação de A. Derolez aplica-se a manuscritos humanistas, mas pode também servir de base comparativa na identificação dos tipos presentes no Cancioneiro da Ajuda (Derolez 1984). 354 A codificação de Leroy, que continua ser a referência em inúmeras descrições (Sautel 1996), tem suscitado algumas reservas, não só por se aplicar, em primeiro lugar, ao mundo bizantino, mas sobretudo por não espelhar uma série de casos repertoriados. Daí a proposição alternativa de Muzerelle que procura dar conta de todas as possibilidades teóricas da construção qualitatativa da mise en page (MuzerelleOrnato 1997; Muzerelle 1999). 355 De igual modo, Albert Derolez apresenta moldes simplificados em relação a Leroy, na classsificação efectuada em manuscritos humanistas em pergaminho. A ausência de notação de linhas no espaço intercolunar central é justificada pelo Autor: «Dans les réglures à deux colonnes, on n'a pas tenu compte de la différence entre les réglures à linéation (la linéation est l'ensemble des lignes horizontales...) traversant l'intercolonne et celles où l'intercolonne est blanc» (Derolez 1984, II: 15). 254 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 20A2 20D2 Figura 7 – Tipo de réglure Leroy (mão 1 e mão 2) 02D2 02E2 Figura 8 – Tipo de réglure Leroy (mão 2 e mão 3) O sistema de marcação no Cancioneiro da Ajuda deveria ser examinado à luz do que se produziu na Península Ibérica neste período, mas aqui verifica-se que o processo não operou com base na unidade fascicular, mas fundamentou-se, em geral, no rosto do fólio . A mise en page ao formatar o fólio apresenta-se como uma distribuição prevista do texto a duas colunas com quatro largas margens e com um traçado de linhas verticais e horizontais. A previsão de duas colunas inclui ainda o espaço intercolúnio e as linhas horizontais, rectrizes (para a colocação da escrita) com uma delimitação interlinear regular que se definirá pela unidade de réglure; e as linhas verticais que formam três rectângulos, calculando também o espaço deixado entre os dois principais. Esta técnica preparativa, consequente à decisão de transcrever textos 255 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio poéticos em duas colunas e com alguns critérios separativos entre textos, entre estrofes, entre autores e entre ciclos, além das iniciais que deveriam entrar na estreita coluna vertical terá também consequências significativas ao nível do produto gráfico análogo ao longo da cópia (Figura 9). a b c d e f g Medidas do fl. 1r 356: A a=49 b=56 c= 159 d=175 e=273,5 f=281 g=339 A=15 B=381 C=430 B C Figura 9 – Tipo de réglure (fl. 1r) corte357 : [h] 339 + [l] 430 = 769 mm intercolúnio358: c-d = 16 mm área espaço de escrita com intercolúnio e colunetas: [f-a] 232 x [B-A] 366 = 84912 mm2 área intercolúnio: 16 x 366 =5856 mm2 área colunetas: 14,5 x 366 = 5307 mm2 área de espaço de escrita sem intercolúnio: 73746 mm2 área total: 339 x 430 =145770 mm2 área margens +intercolúnio+colunetas: 145770-73746 = 72024 mm2 356 Para a definição dos termos quantitativos relativos à mise en page, cf. Bozzolo-Ornato 1983 e Bozzolo 1984. Boa parte destes termos é retirada do trabalho de Denis Muzzerelle (1985) sobre o vocabulário codicológico adaptado, em italiano, por Marilena Maniaci (1996) e em espanhol por Pilar Ostos, Ma. Luisa Pardo, Elena E. Rodríguez (1997). Adaptação inglesa sob a direcção de A. Ian Doyle. Edição trilingue on-line desde 2003: http://vocabulaire.irht.cnrs.fr/pages/vocab1.htm. 357 O corte (fr. taille; it. taglia) do fólio corresponde à soma da altura e da largura de um fólio. 358 O intercolúnio (fr. entrecolonne, it. intercolumnio) relaciona-se com o espaço que separa as duas colunas de escrita que, neste caso, é marcado por linhas verticais. 256 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita percentagem de área escrita: (73746 x 100): 145770 = 50.59 % percentagem de área branca: 49. 4 % 50, 6 % (área escrita) 49,4 % (área branca) Unité de réglure (UR)359 = 8 (7,95) mm Módulo da letra360: o = 4,5 mm l = 5 mm p = 5 mm Como tem sido observado, a preferência pelas duas colunas (independentemente da transcrição de textos poéticos que se presta a este modelo) fomenta, de modo significativo, a ampliação do formato do códice e um diferente rendimento do que o texto em pleno fólio, mesmo tendo em conta o desaproveitamento do espaço intercolúnio. A limitação da coluna, apta a acolher frases curtas (versos, portanto) será, em alguns casos exígua ou a um verso mais longo que ultrapassará a pauta, ou a um acidente de escrita que não consentirá o respeito integral por esta estética. Estou a pensar em alguns fenómenos que podemos designar de perigráficos que, só se podem explicar por um condicionamento técnico deste tipo de preparação. Poderia referir aqui, a título exemplificativo, logo em um dos primeiros textos, A 10, no segundo verso transcrito, encontramos no final da linha <uj> e na linha seguinte <uer>. A convivência com a grafia do manuscrito dir-nos-á que o uso de <j> não é figura frequente na mão destes copistas. A explicação deste uso virá de um motivo topográfico, quer dizer que, em final de linha, não tendo a possibilidade de poder transcrever por completo <uiuer>, como na maioria das vezes, o <j> servirá para desfazer a ambiguidade que podia criar a sequência <ui> nesta gótica em que o <i> não tem ponto361. Nesta perspectiva, podem ainda incluir-se os pontos verticais em final de linha ou o prolongamento de uma letra para preenchimento da caixa que são adoptados pela 359 A distância é medida entre duas linhas rectrizes sucessivas, guias de escrita. O módulo ou o formato da letra é efectuado em minúsculas. As maiúsculas e as capitais decoradas podem ocupar uma UR mais ou menos comum de 6UR. No entanto, podem medir-se 7UR (fl. 16r) para o <Q> , 8UR (fl. 4r) para o < Q> ou, excepcionalmente, 24UR para <I> inicial de ciclo (fl. 18r). 361 Esta maneira profissional de gerir a transcrição do texto poderá ser observada através de diferentes momentos de maior densidade de escrita, de momentos de economia ou de ritmo durativo na reprodução dos poemas. Refiro o uso, relativamente sistemático, em alguns sectores, na adopção de siglas para a cópia do refran, que se encontrava completamente já transcrito na primeira estrofe. A disposição diferenciada da primeira estrofe e de algumas fiindas que aguardam a transcrição musical entrariam igualmente nesta administração do espaço e, por certo, também do tempo (Vezin 1993; Obbema 1995; Maniaci 1997; Bischoff 1996). 360 257 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio mão 1 (fl. 1, colb; fl. 3v col.b; fl 12v, col.d, fl. 41v, col.d; fl. 44v, col.c, d; fl. 58, col.a) e pela mão 3 (fl. 74v, col.d; fl. 75r, col. a, b; fl. 75v, col.d; fl. 78, col.a; fl. 78v, col.c. As noções de perímetro, introduzidas por Bozzolo-Ornato (1980), ou as curiosas correspondências geométricas assinaladas por L. Gilissen (1977: 125-135) como as medidas que seguem o princípio de Pitágoras (como no fl.14r) têm como pressuposto uma preocupação quantitativa de ocorrências entre as dimensões absolutas e a proporção textual no fólio e, naturalmente, que este é um dado codicológico indispensável para a aproximação de manuscritos preparados em ambientes, mais ou menos, idênticos ou geograficamente próximos362. No caso do Cancioneiro, as grandes dimensões absolutas não podem estar dissociadas de um «emprego», de uma espécie de classe funcional com um rectângulo notável, a que se destinava aquele códice, um códice que não estaria previsto para grandes deslocações, nem um objecto destinado a uma qualquer circulação. Mesmo assim, é necessário insistir no modelo deste objecto com mise en page ampla em réglure e, por consequência, em texto, bastante diferenciado de outros cancioneiros românicos com formas mais diminutas e com mise en page adaptada a mais pequenos moldes. As dimensões, dependentes também da pele (e do animal disponível), condicionará a dimensão e o Cancioneiro, projecto ambicioso, não escapará a esta regra de um livro com uma superfície ampla e com pouca possibilidade de manipulação. A recepção restringir-se-ia a um uso relativamente reduzido, caracterizando-se por uma funcionalidade localizável em uma posição em estante (Bozzolo-Ornato 1980; Ruby-Sautel 2000). Talvez seja mesmo este pesado formato que tenha também demarcado uma eventual transmissão textual, directamente a partir do Cancioneiro da Ajuda. O estudo das simetrias, mais do que tirar conclusões relativas à origem ou à data, valeria a pena em uma perspectiva comparativa de formatos de Cancioneiros (largos, estreitos, etc.), quando a observação, desprovida da proporção geométrica, propõe as grandes diferenças do Cancioneiro da Ajuda. Em que modelos se terá baseado o mentor deste projecto? Além dos elementos que podíamos depreender de uma observação global do fólio, não é sem interesse relevar que a proporção entre a área escrita e a área vazia oferece uma dispositio textual que ocupa praticamente metade do fólio. A relação acentua-se ainda mais, ao termos presente a cópia por colunas. É inegável que é um facto que põe em causa a concepção generalizada de uma economia de pergaminho, não só pelos vazios observáveis no interior do 362 A bem conhecida regra do teorema pitagórico (num triângulo rectângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos c2=a2+b2) pode ser aplicada, sobretudo em códices com bifólios deste formato. Ou, dito de outro modo, estabelece-se que a relação do lado mais pequeno é igual a 3/4, sendo a relação de cada um dos lados com a diagonal, respectivamente igual a 3/5 et 4/5. O pergaminho neste Cancioneiro não se dobra facilmente no sentido goteira / lombada, mas a dobra é mais espontânea no sentido cabeça / pé, o que corresponde ao tratamento horizontal (melhor parte da pele) e não vertical (Gilissen 1977; Tschichold 1965; Ghyka 1978, Maniaci 2000b). 258 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita próprio suporte (abundantes espaços em branco que analisamos de seguida), mas pela imagem do próprio fólio pouco denso que aponta para um projecto que não foi constrangido a um ordenamento preso a um traslado mais poupado. 5.5. Os espaços em branco O manuscrito é incompleto, como temos visto, não só devido às diversas mutilações cuja causa nem sempre é evidente, como também a certo número de texto que não chegou a ser copiado363. Pensou-se que eram as miniaturas que, pela sua aparência, teriam provocado o corte de vários fólios; admitiu-se também que o pergaminho desprovido de texto em diversos fólios poderia ter favorecido o aproveitamento da pele. Se as explicações dos acidentes me parecem incertas e as conjecturas ilimitadas, o carácter inacabado do manuscrito, revela-se não só mais essencial para a reconstituição da confecção do Cancioneiro, como também para uma expressiva apreciação dos procedimentos de recolha do material ou os modos de elaboração364. Se os cálculos geométricos não são completamente fiáveis no caso do Cancioneiro devido às mutilações, sofridas provavelmente no século XV, a maneira de preparar o fólio é relativamente reconstruível sem entrarmos numa conjectura numérica improvável365. Um destes dados que bem ilustra o inacabamento, mas que não deixará também de ter uma leitura ligada à noção de «desperdício» do pergaminho e, consequentemente, ao meio ecoómico e cultural em que pôde ser produzido um códice destas dimensões, identifica-se precisamente com os diversos tipos de espaço em branco, que se encontram um pouco por toda a parte no Cancioneiro, mesmo no seu estado actual. Equivalem a espaços que não acolheram nem qualquer tipo de escrita ou decoração ou notação musical. Para maior clareza, é possível estabelecer uma tipologia destes espaços: 363 São também estes espaços designados como «Réservé» (isto é, «dont l'exécution a été remise à plus tard, et pour lequel l'espace nécessaire a été laissé en blanc»), ou «Réserve» («espace laissé vide d'écriture, destiné à recevoir par la suite un mot manquant, une rubrique, une initiale, une figure...»), mas parece-me que a designação espaço em branco é bastante eloquente para caracterizar estas ausências no ms. ajudense (Muzerelle 1985). 364 Independentemente da atracção das miniaturas ou do pergaminho vazio que poderiam, com toda a evidência, provocar usurpação, parece-me que a causa mais convincente seja atribuível ao estado inacabado, de facto, mas sobretudo, à condição de códice desprovido de encadernação. Deve ser esta série de cadernos desprotegidos de um resguardo que acabará por ser responsável pelo destroçar do Cancioneiro. 365 Podíamos dizer que o Cancioneiro da Ajuda entraria em um categoria em que a mise en page se afasta da obrigatoriedade da densidade económica textual e integra-se, diria até, em uma quase aeração de cada um dos fólios, o que pressupõe uma preocupação de legibilidade optimal e uma decifração confortável a maior distância, em que o contraste entre o preto e o branco se dispõem com sábia nitidez (Irigoin 1985; Bozzolo-Coq-Muzzerelle-Ornato 1984; 1997). 259 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Brancos destinados a uma decoração que não chegou a ser efectuada; Brancos destinados a textos completos ou estrofes que não chegaram a ser escritos; Brancos destinados a separar autores; Brancos destinados à música que não chegou a ser transcrita. 5.5.1. Espaços em branco destinados à decoração Nesta primeira categoria, encontramos um primeiro tipo de espaços quadrangulares vazios que se destinava à execução de miniaturas. Todas as miniaturas estão inconcluídas. As primeiras dezasseis encontram-se praticamente prontas – personagens, decoração, instrumentos musicais – sobrando apenas o fundo em branco que se conservaria deste modo, ou destinar-se-ia a acolher outro invólucro. Mas do fl. 65 em diante (caderno X), as miniaturas não chegam sequer a ser esboçadas e nestas condições encontramo-nos perante treze espaços completamente em branco que se encontram nos últimos quatro cadernos do Cancioneiro, sem qualquer intervenção estilística. A base de algumas delas, talvez pela natureza do pergaminho, tem aspecto diferente ou por terem sido confeccionadas no lado do pêlo como as miniaturas do fl. 40v (caderno VII), do fl. 51v (cadernoVIII) e do fl. 55v (cad. IX). Isto quer dizer que, dos cadernos que, hoje, constituem o Cancioneiro, dez tiveram a possibilidade de ser ornados pelo artista responsável por esta decoração. As cores – azul, vermelho, amarelo, laranja, castanho, verde – são aplicadas, mas do caderno X em diante, o pintor ou a equipe de pintura cessou o trabalho e nada executou nos últimos cadernos. Falarei ainda desta interrupção366. Nenhuma das grandes capitais que acompanham as miniaturas chegou a ser pintada. Encontram-se apenas esboçadas nas miniaturas que foram executadas; quanto ao espaço para as miniaturas previstas nenhuma delas tem qualquer indício de esboço para a capital, o que faz naturalmente supor que seria a mesma equipe que se ocupava destas grandes iniciais. As iniciais são de diferente dimensão de acordo com o tipo de estrutura que introduzem, quer dizer que a inicial de texto é diferenciada da inicial de estrofe, de refran ou de fiinda. Grande número delas está pintada em alternância com azul ou vermelho; outras não chegaram a receber qualquer pintura e subsiste apenas a letra de espera indicativa. Contrariamente ao miniaturista, que realiza apesar de tudo um trabalho contínuo ao longo dos dez primeiros cadernos, o rubricador (ou os rubricadores se interpretarmos neste sentido a mudança morfológica de algumas iniciais) proporcionou um trabalho que, à primeira vista quase ilógico, nem continuado, nem por cadernos. 366 O capítulo dedicado ao aparato decorativo e ilustrativo referirá esta suspensão. 260 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita O primeiro, o segundo e o terceiro têm todas as iniciais pintadas excepto dois ou três casos. No caderno IV, encontra-se maior número de espaços em branco e o caderno V caracteriza-se por uma ausência mais significativa de decoração de iniciais. Poderíamos imaginar que o rubricador interrompia a sua actividade e de que ele tinha trabalhado de modo menos metódico do que a equipe de pintura para as miniaturas. No entanto, se continuarmos a manusear o Cancioneiro, observa-se que o rubricador retoma o seu trabalho no caderno VI, aproveitando o verso do último fólio do caderno V. Daqui em diante, vamos encontrar iniciais rubricadas de forma assistemática nos cadernos VI, VII e VIIa. No caderno VIII não há qualquer decoração, mas no caderno IX não só retoma o seu trabalho como a morfologia decorativa aproxima-se do primeiro caderno. Maior disponibilidade para a confecção de iniciais filigranadas ou estamos perante outro artista que adopta os mesmo modelos, hipótese que se me afiguara mais provável. No caderno X, ainda temos a primeira parte trabalhada, mas os últimos fólios perduraram desprovidos de pintura; no caderno XI e no caderno XII ainda actua quase normalmente e é, aqui, no fl. 76 (caderno XII) que suspende definitivamente a sua tarefa. Deve, portanto, ter trabalhado por caderno, um pouco à pecia e talvez em um momento em que os cadernos ainda não estavam, naturalmente, ligados. Há, portanto, cadernos completamente vazios, alguns a que não teve qualquer acesso e há fólios com pintura irregular dentro de um mesmo caderno367. Mais interessante ainda é verificar que o rubricador trabalhava, não só de modo completamente independente da equipe responsável das miniaturas (não recebeu os cadernos pela mesma ordem) como o seu trabalho, parecendo prévio ao daquela equipe, não obedece a uma execução coerente (observem-se os fólios com miniatura e grande capital delineada mas sem qualquer vestígio de iniciais rubricadas no interior do ciclo, fl. 29r, fl. 37r, fl. 47r, fl. 48r, fl. 51v, fl. 60r). Esta forma de operar com os espaços para a decoração, permite também definir como menos profissional (deficiências económicas, acesso e disponibilidade dos artistas), o tipo de condições de produção do Cancioneiro. O trabalho põe em relevo a figura do compilador que orientava a decoração de acordo com a disponibilidade dos artistas a que tinha acesso. Ao estar excluído o circuito convencional copista Æ rubricador Æ miniaturista, torna-se mais plausível um âmbito à volta do responsável que controlava a organização dos cadernos para as miniaturas, mesmo que o trabalho de rubricação não estivesse ainda efectuado. O comportamento anuncia não só o inacabamento objectivo do Cancioneiro – miniaturas incompletas, miniaturas nunca esboçadas, cadernos completos com miniatura e 367 Veremos com mais pormenor no capítulo dedicado à Decoração as características do programa decorativo e de como algumas das interrupções estão dependentes, talvez, da disponibilidade da cor da tinta (azul e vermelho). 261 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio rubricação, cadernos com miniatura sem rubricação, fólios isolados dentro de cadernos, cadernos quase vazios –, mas prenuncia também a caracterização do meio ambiente onde teria sido confeccionado. 5.5.2. Espaços em branco destinados a texto Ao consultar este manuscrito, é surpreendente notarmos o número considerável de espaços em branco destinados a acolher texto, composições completas ou estrofes que visivelmente faltavam nos materiais de base. Alguns destes casos, como vamos ver, podem ser colmatados pelos testemunhos posteriores. Estes espaços em branco comparecem ou no final de ciclo de um trovador, ou depois de uma ou duas estrofes de uma composição, o que permite pensar que o compilador, ou o responsável pela cópia, tinha conhecimento de que aqueles textos se encontravam defeituosos e que poderia prever espaço para os concluir De igual modo, os copiosos espaços, em finais de ciclo, preparavam-se para um acesso a outro material que constituiria uma fonte mais rica. No entanto, é de salientar que nunca se verifica espaço disponível no interior de uma cantiga, quer dizer que o copista nunca transcreveu a primeira e a última estrofe, deixando espaço, por exemplo, para uma segunda estância. Vamos observar os primeiros espaços: como interpretar estes vazios interpolados entre poemas? Tratar-se-ia de textos voluntariamente ou forçosamente incompletos? Porque é que estes espaços se encontram sempre no final da composição e nunca entre estrofes? É difícil imaginar que o copista tenha assumido, por iniciativa própria, a responsabilidade de semelhantes lacunas que, entre outras coisas, implicaria um desperdício de pergaminho. Pareceme mais acertado que estes espaços vazios sejam devidos ao plano do compilador / supervisor. Tendo recebido um conjunto de textos de um trobador, normalmente compostos em uma forma fixa de, por exemplo, quatro estrofes de sete versos cada uma, e ao verificar que no corpus deste trovador, um dos textos não obedecia a esta forma fixa (deparava-se com textos de uma ou duas estrofes, por exemplo) prefere guardar espaço para preencher esta lacuna. Significa não só que pode dispor economicamente de pergaminho, como informar-nos de que pode ter acesso a outro material. Isto também quer dizer que o compilador, ou o responsável pela cópia, teria um perfil de conhecedor da Arte de Trovar e de alguém que se considerava em condições de poder obter material mais completo, proveniente de outra fonte. Mais, alguém que conhecia as condições para poder melhorar a sua cópia. Estamos perante um trabalho que está ainda a decorrer e um compilador que opera com um cuidado filológico, poderíamos dizer, não aceitando textos truncados ou ciclos deficientes. 262 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 5.5.2.1. Textos incompletos em A e igualmente incompletos em B Por incompleto, entendo os textos que têm espaço em branco destinado a ser preenchido posteriormente, e que se mantiveram em estado deficiente em toda a tradição conhecida. No Cancioneiro da Ajuda, deparamos com espaços em branco entre as composições a que não pode corresponder previsão decorativa. Todos estes espaços têm uma dimensão variável, suficiente para receber uma, ou duas estrofes, ou mesmo uma fiinda. Isto permite pensar que o material disponível para a cópia de A, deixava apreender falta de estrofe, mas não o lugar exacto onde devia ser introduzida. Uma visão global destes casos é apresentada no Quadro VI-Anexo. Aliás, em nenhum destes casos de previsão textual no interior de ciclos, se encontra uma antevisão para estrofes no interior da cantiga. As previsões em A ocorrem sempre no final da cantiga368. 1. [JSrzSom] A 25/B 118, Con uossa coita mia sennor fl. 6v/p. 90; Rep. 78,4 Estão apenas copiadas duas estrofes de sete versos. Há espaço na col.d para mais duas estrofes, cerca de catorze linhas. Deste poeta, só tínhamos composições em A que obedecem à estrutra de 4x7. «Il componimento consta di due strofe, e Colocci anota strophe sola, a significare come precisa la Michaëlis (1904, I: 55). Inoltre tale componimento, numerato da Colocci non senza palese esitazione 118, segue invece di precedere il componimento 119, id., Muito per deu agradeçer.se (Rep. 78, 11). Che la numerazione invertita non si debba a distrazione, lo conferma A, dove l’ordine dei componimenti è appunto quello della numerazione colocciana» (Ferrari 1979: 68). Assim, os textos XXV=119 e XXVI=118 em B não acompanham a ordem de A, mas a numeração de Colocci não só correspondia a duas estrofes, como apresentava a mesma sequência de A. A alteração real de B deve proceder de um incidente devido ao copista. Mas, independentemente desta disparidade numerativa, as duas cantigas permanecem nos dois manuscritos com apenas duas estrofes, apesar de A prever a possibilidade de a concluir. 2. [MartSrz] A 57/B 168, MMeu coracon me faz amar.sen fl. 13v, fl.14r/pp. 104-105; Rep. 97, 16 Tanto A como B têm apenas uma estrofe de seis versos. Em A, o espaço que se encontra na col.a do fl. 14 seria suficiente para a inclusão, pelo menos, de duas estrofes. Não existindo actualmente qualquer tipo de lacuna material na passagem do fl. 13v para o fl. 14r e não sendo este espaço destinado a abrir um novo ciclo de outro autor com miniatura, só se pode explicar este vazio como previsão de acesso a novo material textual. Carter, no comentário a este caso 368 Além da foliação e paginação no Cancioneiro, remeto também para o Repertorio de G. Tavani as referências textuais (1967). 263 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio (fl. 14r/p. 105) considera que estas dezassete linhas estavam reservadas provavelmente para miniatura (Carter 1941: 188), mas nunca há, neste Cancioneiro, casos de repetição de miniatura no interior do ciclo de um mesmo trovador. Não se presta, por conseguinte, este espaço a previsão decorativa. 3. [MartSrz? RoyGmzBret? Anon?] A 62/B 173, Pois non ei de don fl. 15r/p. 107; Rep. 97,33 Tanto em A como B, encontramos as mesmas duas estrofes de seis versos. Em A, o espaço é menos incontestável (apenas oito linhas) do que em outros casos, porque o copista principia logo o segundo texto do ciclo deste trovador no início da col.b, tendo deixado um espaço na col.a que comportaria a transcrição de uma estrofe. No final deste texto, dispomos ainda de espaço mas, deste poeta, no momento da cópia do ciclo, estavam apenas disponíveis estes dois textos, e provavelmente em situação deficiente. O compilador prevê aliás todo o verso do fólio em branco para a eventualidade de poder recolher mais textos ou para marcar o final de ciclo. 4. [NuFdzTor] A 73/B 186, Ora ueg eu que me non fara fl. 18v/p. 114; Rep. 106,12 Encontramos apenas uma estrofe tanto em A como em B. A transcrição em A desta estrofe de interior de ciclo relativa à quarta cantiga deste trovador ocupa a parte final da col.c do fl. 18v. O espaço em branco para mais texto encontra-se na parte superior da col.d antes da transcrição do texto seguinte, A 74/B 187, Qve prol uus a uos mia sennor. Carter calculou o espaço neste fl. 18v/p. 114, como «one-quarter column» (1941: 188). 5. [PGarBu] A 98/B 205, Par deus sennor ia ia eu non ei poder fl. 24v/p. 126; Rep. 125, 33 Nos dois mss., estão transcritas apenas duas estrofes. Em A, a cópia desta composição ocupa parte da col.c do fl. 24v e o espaço previsto para outra estrofe (oito linhas) é deixado disponível antes do início da transcrição da cantiga A 99/B 206 que, como vamos ver de seguida, se encontra também incompleta. 6. [PGarBu] A 99/B 206, Mais de mil uezes coideu eno dia fl. 24v, fl. 25r/pp. 126-127; Rep. 125, 18 Também deparamos com apenas duas estrofes de oito versos nos dois mss. O espaço que ocupa quase metade, «one-quarter column» (Carter 1941: 188) da col.a do fl. 25 é, por certo, também projectado para receber texto. 264 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 7. [PGarBu] A 100/B 207, Se eu a deus algun mal mereçi. fl. 25r/p. 127; Rep. 125,47 Qualquer um dos mss. transcreveu apenas três estrofes de sete versos, conservando-se espaço em A na col.b para acabamento textual «one-quarter column» (Carter 1941: 188) . 8. [PGarBu] A 103/B 211, Que muit a ia que a terra non fl. 26r/p. 129; Rep. 125,41 A tradição transmitiu-nos apenas três estrofes de sete versos desta cantiga. O espaço que se encontra no final do texto na col.b poderia conter ou mais uma estrofe, ou fiindas. 9. [FerGarEsg] A 123/B [238bis], Se uus eu amo mais que outra fl. 31v, fl. 32r/pp. 140-141; Rep. 43, 19 Este texto compreende apenas duas estrofes nos dois mss. O espaço em A na col.a com oito linhas estaria igualmente reservado para outra estrofe da qual B não nos dá testemunho. 10. [VaGil] A 149/B 272, Estes ollos meus ei eu mui gran fl. 38r/p.153; Rep. 152, 2 A cantiga apresenta duas estrofes nos dois mss. O espaço em A que acolheria mais texto é muito menor do que nos refere Carter com o «one-quarter column» (1941: 189). 11. [JSrzCoe] A 173/B 324, SEnnor o gran mal e fl. 44r, fl. 44v/pp. 165-166; Rep. 79, 49 A cantiga com três estrofes nos dois mss. dispõe no interior do ciclo do trovador de espaço na col.c, antes da cópia da cantiga A 174/B 325. O espaço, «one-quarter column» (Carter 1941: 189), seria suficiente, pelo menos, para mais uma estrofe. 12. [JSrzCoe] A 177/B 328, MEus amigos quero u9.eu fl. 45r/p. 167; Rep. 79, 36 Esta cantiga possui três estrofes tanto em A como em B. Em A, o espaço na col.b (oito linhas) seria suficiente para acolher o remate do texto. 13. [JLpzUlh] A 206/B 357, Nostro sennor que non fui fl. 53r, fl. 53v/pp.183-184; Rep. 72, 11 265 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio A cantiga contém quatro estrofes nos dois mss. e pareceria naturalmente completa, mas há um espaço no fl. 53v , um pouco mais pequeno do que em outros casos, não parecendo suficiente para uma estrofe. Mas não vejo outra interpretação possível para além deste hábito que exprime a precaução textual do responsável da organização. Esta cantiga deveria ser completada talvez por uma fiinda. 14. [FerGvzSeav] A 218/B 385, Sazon sei ora fremosa fl. 57r, fl. 57v/pp.191-192; Rep. 44, 9 Esta cantiga tem unicamente duas estrofes nos dois mss. Em A, no fl. 53v, na col.c deparamos com um espaço, antes da transcrição de A 219/B 386, que ocupa onze linhas e que poderia conter mais texto. 15. [FerGvzSeav] A 220/B 387, Pois o uiuo mal que eu so fl. 57v, fl. 58r/pp. 192-193; Rep. 44,8 Tal como na precedente composição do mesmo trovador, esta cantiga tem apenas duas estrofes nos dois mss. O espaço em A encontra-se na col.a no fl. 58r com onze linhas para a desfecho do poema. 16. [NuRdzCan? JGaya? NuPor?], A 68/B 181bis/B 1451/V 1061, En gran coita uiuo fl. 17r/p. 111; Rep. 109, 2 Um caso particular que entraria nesta especificação é o de A 68/B 181bis, En gran coita uiuo com múltipla atribuição. Em um primeiro momento, esta cantiga com a numeração acima indicada, comparece incompleta com apenas três estrofes de sete versos tanto em A como em B. Em A, o espaço previsto para outra estrofe encontra-se disponível na col.b. O espaço deixado em branco, antes da transcrição de A 69/B 182, é previsto com sete linhas para outra estrofe. Em B, neste sector, a tradição é paralela a A. Esta composição vai, no entanto ser recopiada em B 1451 e V 1061, em outro lugar e com outra atribuição, a JGaya. Nestas últimas cópias, o texto oferece mais uma estrofe. Por outro lado, A 69, segunda cantiga do ciclo presente em A, limitada a uma estrofe também em B 182, aparecerá com uma atribuição a NuPor. Independentemente da tradição italiana, este facto deve ser interpretado como os outros casos presentes em A, quer dizer, como um ciclo de um trovador que chega às mãos do responsável pela cópia em más condições e o comportamento perante este tipo de textos, é idêntico a todos os outros. Quando o material não o satisfaz (exemplares deteriorados? cópias de pouca confiança?) procede sempre do mesmo modo: 266 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita dispõe do pergaminho de maneira a ser completado em um outro momento. Quanto às complexas atribuições àqueles trovadores, julgo que o exame, tendo em conta naturalmente a cronologia, deverá também observar a posição deste trovador em A (em um dos primeiros cadernos, o III caderno, e que este fólio é um dos encontrados em Évora) que, neste sector, se integra em uma colecção breve de alguns autores com número reduzido de textos, na secção que designei de micro-antologia. Dois textos para [RoyGmzBrit? Anon.] no fl. 15; quatro textos para [AyCarp] no fl. 16; dois textos para [NuRdzCan? JGaya? NuPor?] no fl. 17, sendo estes dois últimos fólios provenientes de Évora. Não me parece fortuito que esta fragilidade física se deva separar da fragilidade textual369. A versão da mesma cantiga com mais uma estrofe com atribuição a JGaya (dupla atribuição e dupla transmissão) voltou a ser explicada como um caso de reelaboração na lírica galego-portuguesa (Russo 1991; Muriano Rodríguez 1996b). Contrariamente ao que afirma M. M. Muriano Rodríguez – «el espacio en blanco dejado entre la última estrofa de A68 y la única conservada de A69, no es suficiente para copiar esa supuesta segunda estrofa; además, resulta extraño que el espacio no se reservase entre la primera y la tercera» –, não é nem a quantidade de espaço em branco, nem a sua posição que podem funcionar como critério para a previsão textual. Sem entrar no problema atributivo entre um ou outro poeta e sem me pronunciar sobre o trabalho retórico da elaboração textual, insisto no facto real de que, no Cancioneiro da Ajuda, nunca há espaço previsto para estrofes intermédias e que estas previsões não podem resultar, objectivamente, de uma dimensão exacta do que faltava, mas de uma ideia de que faltava algum elemento textual. É absolutamente claro que neste fólio (fl. 17r), entre a cópia de A 68 e A 69, o copista, ou o responsável pela cópia previu um espaço que, na concepção da mise en texte do Cancioneiro da Ajuda, não pode ter outra explicação, além de inclusão textual. Mas esta observação não quer dizer que o copista ou o compilador tivessem uma ideia clara quanto à dimensão do que faltava. Mais ainda, neste caso concreto, o número de linhas deixado em branco, antes da cópia de A 69 corresponde a sete, o que quer dizer que foi calculado exactamente o mesmo número de versos das estrofes precedentes. A noção da estutura estrófica é óbvia com sete versos por estrofe. Carter observou também este mesmo número, «following seven lines», no seu Appendix III, page 111, col. 2, line 4 (1941: 188). Acrescentaria ainda, em relação ao comentário de Muriano Rodríguez (1996b) que a previsão de espaço não está necessariamente dependente do número de estrofes copiadas370. Poderíamos citar o caso de 369 Na descrição do caderno (III) que contem estes textos, referi já a problemática relativa a estas atribuições complexas (Resende de Oliveira 1988: 740-741 e 1994: 68-70; 143-144, 397; Russo 1991; e Muriano Rodríguez 1996b). 370 Se Muriano Rodríguez considera «arriesgadas» as minhas conclusões quanto à evidência de previsão textual –«...en aquellas composiciones con una o dos esrofas sí se pudo haber dejado espacio en blanco al 267 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio PGarBu com A 100/B 207, Se eu a deus algun mal mereçi no fl. 25r com a transcrição de três estrofes e antes da transcrição de A 101/B 208, Ay, mia sennor e meu lum'e meu ben, o copista deixou espaço para mais uma estrofe que não foi completada pela tradição posterior. Também com três estrofes constituídas por seis versos cada uma, encontra-se a cantiga de JSrzCoe A 173/B 324, SEnnor o gran mal e e, antes da cópia de A 174/B 325, N'outro dia, quando m'eu espedi, foi também previsto espaço com número de linhas suficientes para mais uma estrofe. A cantiga atribuível a JSrzCoe, A 177/B 328, MEus amigos quero u9.eu (fl. 45r) copiada igualmente com três estrofes de quatro versos, seguidos de um refran de dois, apresenta também no seu final espaço previsto para mais uma estrofe, antes de A 178/B 329, Dizen que digo que vos quero ben. 5.5.2.2. Textos incompletos em A, mas mais completos em B 1. [MartSrz] A 60/B 171, Tal ome coi ta damor.que fl. 14v/p. 106; Rep. 97,43 Em A, no fl. 14v, col.d há espaço com catorze linhas para mais texto, após as duas estrofes de sete versos. Neste caso, a transcrição em B oferece mais uma estrofe também de sete versos, encontrando-se o texto mais completo neste ms. (Bertolucci 1963: 103-104). 2. [PGarBu] A 90/B 194, SEnnor queixo me con pesar.gran fl. 23r/p. 123; Rep. 125, 53 O espaço previsto em A corresponde ao final da col.a, «one-quarter column», após a transcrição das duas estrofes (Carter 1941: 188). Em B, existe mais uma estrofe conclusiva (Blasco 1984: 105-107). Se se tratasse de um caso único, poderíamos admitir que a imprecisão em A adviesse da presença de refran e de um permissível salto de igual a igual. 3. [PGarBu] A 93/B 197, Pola uerdade que digo sennor me fl. 23v/p. 124, Rep. 125, 36 considerar que resultaban demasiado breves; pero en el caso de las tres estrofes, el espacio en blanco no tiene porque inidicar que la composición es breve» – (1996b: 482), como se entenderiam os casos citados de A 100 [PGarBu] com três estrofes copiadas de sete versos e com espaço final, igualmente de sete linhas para mais uma estrofe, antes do incipit de A 101, nem A 173 [JSrzCoe] em idêntica situação, antes da cópia de A 174, apesar das suas três estrofes, ou ainda do mesmo trovador A 177 com três estrofes, antes de A 178. Não me parece que a estética seja também responsável por esta dispositio textual, como propõe também M. Russo 1993: 141-142). Cf., a este propósito, o capítulo relativo aos critérios da Decoração. 268 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Em A, o espaço na col.d do fl. 23v ocupa dez linhas. Em B, há mais uma estrofe na parte final com sete versos (Blasco 1984: 117-120). 4. [FerVelho] A 259/B 436/V 48, SEnnor que eu por meu mal fl. 71v/p. 220; Rep. 50, 11 Em A, no final da col.c, encontramos espaço para mais alguns versos ou uma fiinda. Em B, há, de facto, mais alguns versos e mais uma fiinda, mas segundo a editora deste trovador, o copista escreveu neste lugar a fiinda do texto seguinte, aludindo à rasura presente em A (Michaëlis 1904, I: 507; II: 259; Lanciani 1977: 62-69). É uma composição que denota alguma instabilidade em A não só neste sector final. Além disso, estamos na parte final da cópia da mão 1 (fl 71v). Vêem-se emendas com tinta mais escura no v. 7 e alguma perturbação provocada pela estrutura muito rara desta cantiga. 5. [NuRdzCan? JGaya? NuPor?] A 68/B 181bis/B 1451/V 1061, En gran coita uiuo fl. 17/p. 111; Rep. 109, 2 Aceitando a modificação textual desta cantiga, poderíamos também integrá-la nesta série como texto que se encontrava incompleto em A e que, em um momento da tradição, sofreu uma amplificação textual de que são testemunhos B e V, embora em outro sector da cópia e com outra atribuição. A eventualidade de uma refundição textual foi já proposta por M. Russo (1991) e voltou a ser defendida por M. M. Muriano Rodríguez (1996b)371. 5.5.2.3. Textos incompletos em A sem previsão textual. Mais completos em B Neste sector, convém ainda mencionar que é possível examinar casos em que o responsável de A parece não ter tido qualquer percepção da deficiência do seu material (não prevendo, por isso, qualquer tipo de espaço) e B oferece-nos textos mais ricos. Refiro-me aos seguintes casos: 1. [MartSrz] A 45/B 157, Ja mia sennor, nẽum prazer fl. 11r/p. 99, Rep. 97, 10 Embora em A não se documente espaço, esta cantiga apresenta mais uma quarta estrofe transmitida por B (Michaëlis 1904, I: 97-98; Bertolucci 1963: 78-79). 371 A presença desta composição no Cancioneiro da Ajuda torna mais plusível a atribuição a NuRdzCan (trovador de meados do século XIII) e com colocação concordante no Cancioneiro Colocci-Brancuti (Oliveira 1994: 361, 397). Cf. também o comentário concedido a este texto A 68 no grupo dos textos incompletos tanto no Cancioneiro da Ajuda como no Cancioneiro Colocci-Brancuti. 269 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 2. [PGarBu] A 91/B 195, Moỹreu e praz me si deus me pdon. 7 fl. 23r/p. 123, Rep. 125, 25 Esta cantiga surge-nos com uma tradição textual complexa. Contrariamente a outros casos do mesmo trovador que se caracterizam por uma deficiência ao nível da organização de A (A 90 no fl. 23; A 93 no fl. 23v; A 98 no fl. 24v; A 99, A 100 no fl. 25 e A 103 no fl. 26) e que se define por um seguimento que não deixa de incitar a uma ponderação de conjunto, quando observamos a sequência da cópia. O material deste trovador, neste sector de textos, era deficitário. O responsável pela cópia de A apercebeu-se de várias destas imperfeições, esperando poder colmatá-las, mas no caso de A 91, essa precaução não se averiguou. É um facto que B concedenos, não só um texto mais integral, mas as estrofes estão dispostas diferentemente daquelas que podíamos presenciar em A, o quer dizer que esta cantiga se difundia em circunstâncias divergentes (Michaëlis 1904, I: 192-193; Blasco 1984: 109-112). 3.[RoyQuey] A 129/B 250, Nostro sennor deus fl. 33r/p. 143; Rep. 148,10 B dá-nos apenas a fiinda de três versos relativa a este texto. Não há espaço em A, mas não é surpreendente que um compilador aceitasse na sua compilação um texto sem fiinda (Michaëlis 1904, I: 261-262). 4. [VaGil] A 148/B 271, SE uus eu ousasse sennor.no fl. 37v/p. 152; Rep. 152,17 Não há qualquer espaço em A, mas B dá-nos mais uma estrofe que aparece intercalada entre a 2a e a 3a estrofe. A ausência desta estrofe em A poderia explicar-se através de uma cópia que erra, procedendo a um salto de igual para igual com a transcrição do refran, Doer uus yades de mi, embora este tipo de estrutura não tenha ocasionado semelhantes inexactidões ao longo da confeccão do ms. Se não aceitarmos esta imprecisão, podemos também admtir que este texto de VaGil se encontrava em forma mais completa no antecedente de B. Outro texto peculiar, não só pelas suas singularidades estilísticas, como pela sua cronologia e autoria, incluir-se-ia também nesta reflexão. Dedicar-me-ei, em pormenor, a esta cantiga no capítulo dedicado à distribuição de autores em A, mas aqui referirei já, devido ao seu aparente carácter incompleto, o caso de A 38, No mundo non me sei parella, fl. 9r, 9v/p. 95-96; Rep. 97,20, sem correspondência em B, devido à lacuna física no ms. colocciano. No fl. 9v, na col.c, antes da cópia de A 39, MEus ollos gran cuita damor, encontra-se espaço para mais alguns versos (cinco linhas) que não pode ser interpretado como destinado a miniatura (Carter 1941: 270 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 188) não só devido ao tipo de capital rubricada que inicia o texto seguinte, como à contingência impraticável de presença de uma miniatura no interior de ciclo. O texto seguinte, A 39, MEus ollos gran cuita damor, também sem equivalência em B, pelo mesmo motivo (lacuna física), tem apenas uma estrofe de seis versos. Há, não só mais espaço para mais estrofes nesta col.c, como toda a col.d se apresenta igualmente disponível. A esta débil situação, acrescente-se a indicação atributiva do revisor a PPon junto a A 39, Meus ollos, gran cuita d'amor 372 que, por enquanto, não me parece inteligível, nem pelo cotejo com o Cancioneiro Colocci-Brancuti. A. Ferrari, no seu estudo sobre o Cancioneiro colocciano, comentou uma das anotações inseridas no códice no fl. 303r e que deve ligar-se precisamente a esta cantiga. Na referência, numerada com V, relativa ao fl. 43, Colocci escreveu meus olhos et ibi argumentum imperfectum. Não é a única vez que A. Colocci utiliza este tipo de comentário nas suas apostilhas. De facto, no manuscrito autógrafo de Boccaccio Hamilton 90 (Staatsbibliothek Preussischer Kulturbesitz de Berlim), o humanista italiano no fl. 72 inscreve análogo parecer acerca de composição incompleta, Et ibi argumentum imperfectum, à margem do provérbio final da novela V (1979: 69-71). Mesmo se não é completamente seguro adjudicar o comentário colocciano ao seu modelo, ou ao seu Cancioneiro, não deixa de ser grande coincidência apontar que esta anotação pode convir à cantiga A 39, Meus ollos, quer-vus Deus fazer que, no Cancioneiro da Ajuda, está limitada a uma única estrofe373. Ainda que A. Colocci não aluda à atribuição na sua nota, o sector ao qual ela se refere, parece integrar-se no dos ciclos dos trovadores PaySrzTav e MartSrz e não no de PPon. Sem contarmos com estes casos de lacunas em B (A 38 e A 39) e com o caso de dupla tradição (A 68/B 181bis/B 1451/V 1061) observamos que a maior parte dos textos incompletos em A, continuam a estar do mesmo modo truncados em B. Daqueles que foi possível completar, o antecedente de B dá-nos apenas alguns casos sendo um deles que podem ter uma circulação diferenciada. Este elemento concorreria para uma definição de materiais extraordinariamente contíguos nas primitivas colectâneas374. Uma interpretação possível quanto à tradição textual destes poetas (JSrzSom, um texto no fl. 6v; Paay SrzTav, dois textos nos fl. 9r, 9v; MartSrz, dois textos nos fl. 14r, 14v; NuRdzCan, um texto no fl. 17r; NuFdzTor, um texto no fl. 18v; PGarBu, oito textos do fl. 23 ao fl. 26; FerGarEsg, um texto no fl. 32r; VaGil, JPrzAv?/Anon.?, um texto no fl. 38r; JLpzUlh, no fl. 53v FerGvzSeav dois textos, nos fl. 57v, 58 e FerVelho, um texto no fl. 71v) chegou ao compilador da Ajuda em colecções fragmentárias que não pôde ser melhorada no decorrer do 372 Refiro-me a esta indicação no capítulo relativo à descrição da estrutura dos cadernos (caderno II). Não seria o único caso de transmissão de uma cantiga circunscrita à primeira estância. Cf. capítulo dedicado aos espaços em branco previstos para texto. 374 No capítulo relativo aos textos incompletos em A, completados por B, enumero estes casos. 373 271 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio trabalho e que um número reduzido de apenas cinco poetas deste grupo MartSrz, NuRdzCan, PGarBu e FerVelho) conseguiu beneficiar de uma melhoria textual na compilação que serviu de base à tradição italiana, ainda que o caso de NuRdzCan tenha de ser considerado à parte, devido à sua particular tradição textual e atributiva. 5.5.3. Espaços em branco destinados à identificação de autores Encontram-se também espaços no final de ciclo de cada um dos trovadores que, mais do que nos indicarem um dos critérios da constituição da antologia, são extraordinariamente essenciais por nos revelarem um indício significativo de autoria em um cancioneiro integralmente desprovido de rubricas atributivas no projecto inicial, se excluirmos a intervenção do revisor em A 39 com a anotação a PPon. Um branco que corresponde a mudança de trovador. Isto mesmo quando o corpus de um trovador termina no rosto de um fólio na col.a todo o resto da col.a, a col.b e todo o verso podem permanecer em branco. O novo trovador só começará no rosto do fólio subsequente. Este comportamento implica uma percepção cuidada de atribuição no momento da cópia de A e denuncia as condições favoráveis do projecto com a abundância de pergaminho. Este pergaminho, deixado em branco, não significa que o ciclo esteja necessariamente concluído, mas denota que o compilador prevê maneira de poder completar o ciclo dos poetas com outras fontes (é uma situação idêntica aos casos de textos incompletos no interior dos ciclos). No entanto, aqui, o problema é muito mais complexo porque ingressamos no domínio da atribuição dos textos em um manuscrito completamente desprovido de títulos de identificação. Se é verdade que os textos presentes no Cancioneiro da Ajuda se encontram todos sem rubrica atributiva, é verdade também que os diferentes ciclos de cada um dos autores se encontram justapostos de maneira a que não se misturem. O início do ciclo é assinalado pela miniatura e pela grande capital delineada, como vimos e o final do ciclo por um espaço em branco que não deixa começar a meio de um fólio um outro autor. Mesmo quando as condições de trabalho se alteram (ausência de decoração, novo preparo de cadernos, etc.) nunca encontramos uma parcimónia deste tipo. Se houve amálgama de autores contíguos (ou pelo nome, ou pela cronologia, ou mesmo pelos materiais), a mistura deverá ser anterior à cópia de A. Este aspecto que parece impedir uniões textuais ao nível de A, revela-se indispensável em qualquer reflexão relativa à tradição manuscrita, evidenciando o modo como advinham os ciclos a esta organização375. Estou a pensar, por exemplo, no caso de vários «Nunos» que comparecem em uma mesma sucessão. Um dos textos atribuíveis a NuRdzCan no fl. 17r A 69, vai surgir na sua 375 Esta organização dos materiais parece denotar um critério talvez mais antológico e menos compilativo, sem pensarmos apenas na organização temática submetida ao cânone amoroso. 272 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita reciprocidade em B 182 com uma nova atribuição, também a um «Nuno», mas a NuPor. A sucessão continuava também com NuTdzTor, e é provável que estes materiais tenham circulado em conjunto. Talvez seja a associação nominativa o móbil desencadeador dos problemas atributivos nos cancioneiros posteriores. Considero, de idêntico modo – circulação contígua de materiais – a posição de PaySrzTav e MartSrz do fl. 8 ao fl.14v onde, sem o critério separativo de A, não seria permissível, com base unicamente na tradição transmitida por B, individualizar os dois diferentes autores. Por último, chamo a atenção ainda para a sequência JSrzCoe com JPrzAv ou JPrzAv com JSrzCoe do fl. 40 ao fl. 46v, dois trovadores cujos materiais devem ter circulado, mais ou menos, adjacentes um do outro e talvez, por isso, integrados de modo peculiar no Cancioneiro da Ajuda, como deixa entrever a análise, já efectuada, ao sistema de assinatura primitiva de dois cadernos. Ao empreender a interpretação destes espaços com o apoio dos mss. posteriores, vamos aferir que a concordância atributiva não é, por certo, constante. O Cancioneiro da Ajuda não tem sido geralmente usado, de forma estruturada, nas decisões atributivas, mas tendo agora presente este comportamento sistemático de distribuição decorativa, quanto à separação de autores, torna-se claro que o códice ajudense deverá ser integrado, apesar do seu silentium, em qualquer reflexão atributiva relativa aos autores que o integram. É um facto que, das actuais trinta e oito séries de ciclos que constituem o códice da Ajuda, quatro delas poderá permanecer anónima, por não possuirmos correspondência comparativa directa nos mss. italianos mas, apesar deste inconveniente, poderíamos considerar apenas um grande conjunto de textos anónimos, por aparecerem de maneira consecutiva na transcrição. No entanto, A pelo seu projecto decorativo revela-nos que estamos perante três diferenciadas séries, em que é possível conjecturar não um único trovador anónimo, mas três trovadores diferenciados neste sector: um trovador α , um trovador β , um trovador γ376. Por outro lado, há uma dúzia de casos em que não há simultaneidade atributiva que diga respeito a um número, mais ou menos, considerável de poetas nos testemunhos italianos. Situação em que os cancioneiros italianos separam ciclos compactos, casos de dupla atribuição, transmissão dupla, etc. O Cancioneiro da Ajuda oferecerá sempre um momento da tradição (naturalmente mais alto) que mostra como os materiais se encontravam (associados ou dissociados) naquela conjuntura377. 376 A este propósito, Resende de Oliveira propõe atribuição a algumas destas séries. À primeira, constituída pelo ciclo compreendido entre A 267 a A 276, inclui-a no ciclo de VaPrzPar (trovador α); a segunda com A 277 a AfEaCot (trovador β) e mantém o anonimato na série A 278 a A 280 (trovador γ) (Oliveira 1994: 74, 438) 377 É também Resende de Oliveira que se pronuncia de modo mais exaustivo acerca das relações entre os cancioneiros, ao reconstituir os blocos constitutivos no ordenamento dos trovadores (Oliveira 1988; 1994: 123-211). 273 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio A finalização de ciclo mostra também como os conjuntos de textos se instituíam. Em A, há um bom conjunto de autores que possuem um final claro (espaço em branco com pergaminho que não acolhe novo material, etc.). Podemos dizer que temos conclusão de ciclo em: JNzCam, FerGarEsg, PGmzBarr, AfLpzBay, JGarGlh, JVqzTal, PayGmzCha. Encontramos também finais de ciclo que parecem aguardar novo material que, por vezes, se acha transcrito nos mss. italianos: PaySrzTav, AyCarp, NuFdzTor, FerGvzSea. Mas deparamos também com numerosos espaços em branco em A que não foram preenchidos ulteriormente. Isto quer dizer que, destes poetas, só nos chegou uma tradição incompleta e que o compilador de A tinha consciência que, em relação àqueles trovadores, seria possível, em um outro momento, completar o corpus: NuRdzCan, RoyPaesRib, JLpzUlh, FerPad. Enfim, resta-nos referir os casos de trovadores que chegam até nós com um corpus mais rico e para os quais A não previu qualquer extensão textual, provavelmente por não possuir qualquer informação a este respeito: PGarBu, RoyQuey, PPon, MartMo. Podemos portanto concluir que, apesar da ausência atributiva explícita, é necessário tomar em consideração o Cancioneiro da Ajuda na individualização de autores. De facto, se não é possível falar de uma atribuição explícita com nominatio, não se pode negar uma funcionalidade física clara. Mais ainda: se a atribuição de A não se adapta sempre com a que nos confrontamos nos cancioneiros posteriores, isto quererá dizer que as discrepantes atribuições são devidas à transmissão, o que não faz mais do que sublinhar o valor da atribuição silenciosa do ms. de Lisboa. No entanto, se acreditarmos mais na atribuição posterior (mais moderna, portanto), como explicar, então, este claro comportamento do responsável pela cópia de A, sobretudo nos ciclos que não se encontram confundidos? Deveríamos, nesse caso, supor que ao nível estemático de A, a tradição estaria já tão desordenada, que o responsável não pôde aperceber-se. O que significaria que os processos de cópia, de transmissão, de antologização ou compilação teriam ocorrido em um momento muito anterior àquele que pensamos, hipótese que pareceria pouco justificável por motivos textuais, paleográficos, codicológicos e mesmo históricos. Os mais significativos casos de atribuição complexa com autores incluídos no Cancioneiro da Ajuda circunscrevem-se neste manuscrito a sectores concentrados378. Em primeiro lugar, o ciclo de PaySrzTav que deve ter circulado juntamente com o de MartSrz, quer dizer que, em A, há um trovador α separado materialmente do trovador β. De seguida, o breve ciclo de duas cantigas, não pode pertencer ao trovador β, por motivos decorativos, mas a um 378 Grande parte destes casos de duplicidade ambígua ou pouca clara atribuição foi largamente examinada por Resende de Oliveira que inclusivamente propôs algumas novas atribuições pela primeira vez, sobretudo no caso dos Anónimos (1994). Aqui, mais do que ter a preocupação de atribuir nomes aos conjuntos textuais de um ou outro trovador, preocupo-me apenas com a situação material da Ajuda e com o procedimento da transcrição na dispositio dos trovadores. 274 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita outro poeta, o trovador γ. Não há possibilidade de confirmar estas séries por B, devido à situação lacunar deste cancioneiro, mas a posição de A é completamente clara quanto à individualização destes três trovadores. O ciclo A 68 e A 69 (correlativo ao trovador γ ) com separação e amplificação textual em B e V, não pode, ao nível de A, ser dividido. Estas duas cantigas, em A, pertenciam ao mesmo autor sem qualquer dúvida a um trovador γ, sem que seja possível separar estas duas cantigas. O conjunto mais intrincado e já, algumas vezes, exposto, relaciona-se com a sequência que envolve os seguintes ciclos. Independentemente dos nomes a dar a cada um deles, pareceme importante assinalar quatro conjuntos, a menos que se admita que a série A 180 a A 184, preceda A 157 e aí, também por motivos de decoração, poderíamos supor um conjunto compacto, quer dizer que não existe nem miniatura, nem qualquer outro indício que pudesse separar aquela série. O problema é, no entanto, delicado, por nos encontrarmos perante dois fólios fragilizados materialmente. Além disso, todo este sector ocupa a área, extremamente débil, pela inserção de um caderno, proveniente de Évora, e pela posição instável de um fólio solto. Neste plano, mantendo-se isolados os dois textos precedidos de miniatura, A 157 e A 185, o que me parece indiscutível é que, tanto a série A 158 a A 179, como a A 180 a A 184 incumbem, em concordância com a mise en texte de A, só a dois trovadores diferenciados, sem qualquer separação no interior de cada uma daquelas duas séries. A série A 210 a A 221, que comparece de forma contínua em A, manifesta alguns problemas atributivos motivados por dupla atribuição em B. Mas o ciclo em A não oferece qualquer insatabilidade e todo o grupo é concedido a um único trovador. Quer dizer que estes ciclos, abaixo enumerados, ou se encontravam já em tradição misturada quando A foi copiado, ou todos os problemas de distúrbio atributivo resultam de consequências inerentes à propagação textual. A sequência seguinte mostra, através de uma individualização alfabética, o ordenamento separativo no Cancioneiro da Ajuda379: A 31 a A 39 [trovador α] [PaySrzTav/MartSrz] A 62 e A 63 [trovador β] [RoyGmzBret / MartSrz/ Anon] A 68 a A 69 [trovador γ] [NuRdzCan / JGaya /NuPor] A 157 [trovador δ] [JPrzAv / GEaVi / Anon] 379 Indicar um símbolo grego para cada um destes trovadores sublinha a percepção separativa, independentemente das rubricas nominais presentes nos cancioneiros posteriores. 275 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio A 158 a A 179 [trovador ε] [[JSrzCoe/JPrzAv / Anon.?] A 180 a A 184 [trovador ζ] [[JPrzAv/JSrzCoe/RodEaRed/Anon.?] A 185 [trovador η] [JPrzAv/Anon/EstTrav] A 210 a A 221 [trovador θ] [FerGvzSeav/Anon] A 226-A 227 [trovador ι] [MenRdzTen/AfFdzCab] A 228 a A 239 [trovador κ] [JGarGlh/ Anon] A 246 a A 256 [trovador λ] [PayGmzCha/Anon] A 267 a A 276 [trovador µ] [Anon.] A 277 [trovador ν] [Anon.] A 278 a A 280 [trovador ξ][Anon.] A 281 a A 284 [trovador ο] [PEaSol/Anon] A 288 a A 292 [trovador π] [PPon/Sanch] A 293-A 302 [trovador ρ] [VaRdzCal/Anon] A 303-A 306 [trovador ς] [MartMo/Anon] Tendo agora presente o confronto entre os dois cancioneiros, A e B, podemos, em síntese, apresentar as simultaneidades e as discrepâncias entre os dois testemunhos, partindo sempre de uma coesão estrutural do Cancioneiro da Ajuda e não tendo em conta as deslocações textuais de B380 (Quadro 6). A disposição dos ciclos de autores, assim como a organização no interior de cada ciclo, mostra como, apesar da ausência dos nomes, os autores aparecem claramente individualizados e, ao mesmo tempo, como os espaços de dimensão variável deixados muitas vezes no final de textos ou no final de ciclos revelam que o trabalho de cópia estava ainda a ser executado. 380 Não é a primeira vez que este paralelismo é apresentado. Tanto J. Marie D' Heur (1973) como os trabalhos de A. Resende de Oliveira (1988; 1994) submeteram a ordem textual a uma análise atributiva. Aqui, limito-me ao estado do Cancioneiro da Ajuda e à sua correspondência imediata com o Cancioneiro collociano. 276 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Quadro 6 – Simultaneidades e discrepâncias entre os ciclos textuais entre A e B I Caderno II Caderno III Caderno VaFdzSend JSrzSom PaySrzTav MartSrz RoyGmzBret AyCarp NuRdzCan NuFdzTor =B =B/≠B ≠B ≠B ≠B =B/≠B ≠B/=B = B / ≠B PGarBu =B/≠B JNzCam FerGarEsg RoyQuey VaGil GonçEaVi? JSrzCoe? [A 157] JPrzAv JSrzCoe? JPrzAv? [A 158 a A 179] RodEaRed? JSrzCoe? JPrzAv? [A 180 a A 184] JPrzAv? ? Anon? [A 185] RoyPaezRib JLpzUlh FerGvzSeav PGmzBarr AfLpzBay MenRdzTen JGarGlh EstFai JVqzTal PayGmzCha =B =B/≠B =B/≠B =B/≠B FerVelho BonGen Anon α =B / ≠B =B ≠B Anon β Anon γ PEaSol FerPad PPon VaRdzCal MartMo RoyFdz ≠B ≠B = B / ≠B =B = B / ≠B = B / ≠B = B / ≠B =B / ≠B IV Caderno V Caderno VI Caderno VII Caderno VIII Caderno IX Caderno X Caderno XI Caderno ≠B ≠B ≠B ≠B =B =B = B / ≠B =B =B = B / ≠B = B / ≠B =B =B ≠B XII caderno XIII Caderno XIV Caderno 277 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Não é evidente se a ausência dos nomes dos trovadores se explica simplesmente pelo inacabamento do Cancioneiro, ou se não dependerá da própria natureza do manuscrito, que não é um cancioneiro de mão, mas sim um grosso e pesado infólio, destinado a uma estante de leitura, preparada para o canto e para a execução musical. O espaço deixado entre a miniatura e a primeira estrofe da primeira composição de cada série, que em outros cancioneiros era muitas vezes utilizado para a rubrica atributiva, aqui adequa-se visivelmente apenas à transcrição musical e é idêntico ao das restantes composições da série. Subsiste, é certo, a hipótese das margens ou o interior da própria estrofe, lugares também aproveitados em outros cancioneiros galo-românicos381. Não tendo o Cancioneiro uma única secção absolutamente terminada, qualquer uma destas possíveis reconstituições não passará de simples suspeita. É um facto que este objecto, em comparação com a tradição cancioneiril europeia, se apresenta como um livro que é executado ainda durante o movimento literário e não uma recolha de memória de um movimento literário extinto, como de algum modo, são os cancioneiros provençais, copiados em Itália a uma larga distância da criação textual. É também visível que o formato deste Cancioneiro ultrapassa copiosamente as dimensões de qualquer outro cancioneiro definindo-se mais como livro de canto e não como livro de leitura. Precisaria um livro de canto, executado ainda em tempo dos trovadores, de uma preocupação atributiva, quando estes textos deveriam ser conhecidos no ambiente cortesão que os produzia e que os ouvia? 381 Não existindo um estudo de conjunto que avalie a tipologia atributiva em diferentes cancioneiros, procedi à observação de alguns casos que poderiam auxiliar à construção de uma hipótese plausível quanto à localização das rubricas atributivas no Cancioneiro da Ajuda. As indicações atributivas, muitas vezes, notadas por outra mão, podem comparecer de diferentes modos. No cancioneiro francês, depositado em Roma (Bibl. Vat. Reg. Lat. 1490), além da Tavola com os nomes dos trouvères, rubricados a vermelho, Ce sont les cancons de roi de nauare, Che sont les chansons le Castelain de couci, Ce sont les canons mon seigneur Gautier de dargies, encontramos a designação do trouvère, rubricada no que sobra da última linha como em Li rois de nauare [fl. ij] que deve anunciar a autoria da composição seguinte. No fl. XIII, a rubrica atributiva, por não haver espaço no final do verso, é colocada entre as duas colunas de texto junto à pauta musical, li castelaĩs. O mesmo processo com a integração entre as colunas ocorre no fl. XIIIv e no fl. XV. No fl. XVII, com o início de novo poeta, a rubrica é colocada antes da pauta musical, Ce sont les cancons mon seigneur gasson. Esta posição, que encima, paralelamente, a pauta volta a ocorrer no fl. XX com Ce sont les chancons leuidame de Chartres. No Chansonnier d'Arras (Bibl. de Arras, Ms. 657) (Ed. facs. A. Jeanroy 1875-1925), as indicações comparecem no final da composição (fl. 154v, fl. 155r). No fl. 156r, colb com um novo trovador, no mesmo fólio em que tinha terminado Li Kastelaĩs com uma miniatura e, em geral, entre esta e a pauta musical inseriu-se a rubrica atributiva, Ce sont les kancons Monseigneur Gautier de Dargies, mas há maior espaço entre a miniatura e a primeira estrofe do que entre as linhas correspondentes à primeira estrofe. Voltam a surgir atribuições nos finais de composição nos fl. 156v, fl. 158r, fl. 159r, fl. 159v, etc. O cancioneiro de Saint-Germaindes-Prés (Paris BN 20050) obedece aos mesmos critérios de primeira estrofe ou de pautas sem notação. No cancioneiro provençal da Riccardiana, Ms. n°. 2909 (Ed. Bertoni 1905) as rubricas comparecem em cada composição. No da Biblioteca Ambrosiana Ms. R 71, «i nomi dei poeti sono generalmente scritti in color rosso) in testa al primo componimento della serie...», mas podem também surgir a negro e em corpo mais pequeno (Bertoni 1912: X1). No cancioneiro provençal H (Vat. Lat. 3297) (Careri 1990), as rubricas atributivas encimam a composição como no fl. 11r, Arnauz danielz, no fl 11v, Narnauz danielz; no fl. 27r, peire vidal; no fl. 29r, Elias fonsalada, no fl. 30r, Rizartz Deberbezil, com espaços claros entre as composições. 278 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Além disso, certos aspectos da confecção do manuscrito apresentam-se com bastante elaboração: grande parte dos cadernos passou pelas mãos do rubricador para receber os diferentes tipos de capitais e passou também pelas mãos do miniaturista. Será de presumir a existência de um outro rubricador, reservado para a cópia dos nomes dos trovadores, mas que não chegou a actuar? Ou seria o responsável pela notação musical, que também não actuou, quem teria a incumbência de registar a atribuição dos poemas? Há cadernos completamente aptos a acolher a transcrição musical. Não me parece impraticável que, nestas circunstâncias materiais, a informação atributiva não fizesse parte do intento do compilador, mas também não elimino na planificação a presença de uma rubrica lateral, talvez ornamentada, à margem, ao lado do primeiro incipit do ciclo. No Pergaminho Vindel, a rubrica Martin codax a vermelho comparece ao alto, antes da pauta musical, e parece reproduzida pela mesma tinta das capitais iniciais decoradas a vermelho. A sexta cantiga no Pergaminho Vindel só apresenta o pentagrama traçado a vermelho, sem qualquer nota musical, mas é de registar o tipo de cor utilizado, se conjecturarmos que poderia ser esta mesma cor a que serviria para inscrever as rubricas atributivas. No Cancioneiro da Ajuda, parece-me exíguo o espaço entre a pauta que teria a notação musical e a miniatura. A indicação atributiva, escrita pelo revisor em A 39, a P° da Pont, além de se revelar, como vimos, extremamente complexa na análise da sua pertinência, coloca também uma outra questão relativa à indispensabilidade de rubricas atributivas na concepção do projecto Cancioneiro da Ajuda. Se o revisor textual actuou na maior parte dos cadernos do Cancioneiro (há vestígios da sua intervenção até ao caderno XI, o quer dizer que todo o trabalho da mão 1 foi conferido) e só apontou uma única vez a colocação de um nome de poeta ao lado de uma única cantiga A 39, Meus ollos, gran cuita d'amor, como interpretar a ausência de outras elucidações deste tipo em mais de setenta fólios? Significa esta anotação que todas as outras composições tinham uma atribuição correcta, não sendo, por isso, necessário notificar? Ou o seu material de superintendência não oferecia segurança quanto à autoria, quando vemos até que o nome de P° da Pont não parece legimitar-se em A 39, no estado actual dos nossos conhecimentos? Não podendo ser considerada como uma real rubrica atributiva este sinal do revisor, a sua posição à esquerda do incipit de uma composição em final de ciclo, não nos deve incitar, no entanto, a uma eventual regra de disposição atributiva. Apesar destas interrogações, não se pode deixar de reconhecer a relevância destes espaços em branco, recurso que afirma que os autores escolhidos foram dispostos segundo uma organização coerente do espaço, através de um exórdio com miniatura e da impossibilidade em colocar mais de um trovador em um mesmo fólio. 279 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio É esta situação que se pode observar na síntese que mostro de seguida que documenta a disposição ao longo de todo o Cancioneiro: Miniaturas, praticamente concluídas, que introduzem autor: fl. 4r-p. 85 [JSrzSom]; f1.15r-p.107 [RoyGmzBret]; f1.16r-p.109 [AyCarp]; fl.17r-p.111 [NuRdzCan? JGaya?]; f1.18r-p.113 [NuFdzTor]; f1.21r-p.119 [PGarBu]; f1.29r-p.135 [JNzCam]; f1.33r-p.143 [RoyQuey]; f1.37r-p.151 [VaGil]; f1.40v-p.158 [JSrzCoe]; f1.47-p.171 [JPrzAv? Anon?]; f1.48r-p.173 [RoyPaezRib]; f1.51v-p.180 [JLpzUlh]; f1.55v-p.188 [FerGvzSeav]; f1.59rp.195 [PGmzBarr]; f1.60r-p.197 [AfLpzBay]. Espaço previsto para miniatura: f1.65r-p.207 [EstFai]; f1.66r-p.209 [JVqzTal]; f1.67r-p.211 [PayGmzCha]; fl.71r-p.219 [FerVelho]; f1.73r-p.223 [BonGen]; f1.74rp.225 [Anon. α]; f1.77v-p.232 [Anon. β]; f1.78r-p.233 [Anon. γ]; f1.79r-p.235 [PEaSol? Anon?]; f1.80r-p.237 [FerPad]; f1.81v-p.240 [PPon]; f1.83r-p.243 [VaRdzCal]; f1.88rp.251 [RoyFdz]. Espaço em branco que deve separar autores: f1.9v-p.96 [PaySrzTav?]; f1.15v-p.108 [RoyGmzBret?]; f1.16v-p.110 [AyCarp]; f1.17r-p.111 e fl.17v-p.112 [NuRdzCan? JGaya?]; f1.20v-p.118 [NuFdzTor]; f1.28r-p.133 e f1.28v-p.134 [PGarBu]; f1.29v-p.136 [JNzCam]; f1.32v-p.142 FerGarEsg]; f1.36v-p.150 [RoyQuey]; f1.39v-p.156 [VaGil]; f1.40-p.157 [JPrzAv? Anon?]; f1.45v-p.168 [JSrzCoe]; f1.46v-p.170 [JPrzAv? Anon?]; f1.47r-p.171 e f1.47v-p.172 [JPrzAv? Anon?]; f1.50v-p.178 e f1.51r-p.179 [RoyPaezRib]; f1.54r-p.185, f1.54v-p.186 e f1.55r-p.187 [JLpzUlh]; f1.58r-p.193 e f1.58v-p.194 [FerGvzSeav]; f1.59v-p.196 [PGmzBarr]; f1.60r-p.197 e f1.60v-p.198 [AfLpzBay]; f1.61-p.199 e f1.61v-p.200 [AfFdzCob? MenRdzTen?]; f1.64v-p.206 [JGarGlh]; f1.65r-p.207 e f1.65v-p.208 [EstFai]; f1.66v-p.210 [JVqzTal]; f1.70r-p.217 e f1.70v-p.218 [PayGmzCha]; f1.73v-p.224 [BonGen]; f1.76v-p.230 e f1.77r-p.231 [Anon. α]; f1.77v-p.232 [Anon. β]; f1.78v-p.234 [Anon. γ]; f1.79v-p.236 [PEaSol? Anon.]; fl.80v-p.238 e f1.81r-p.239 [FerPad]; f1.82v-p.242 [PPon]; f1.86r-p.249 e f1.86v-p.250 [MartMo]; f1.87v-p.252 [RoyFdz]. 280 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 5.5.4. Um problema concreto: a atribuição da Guaruaya 5.5.4.1. Cantiga presente no Cancioneiro da Ajuda A cantiga No mundo non me sei parella (A 38), textum unicum da lírica galego-portuguesa, tem sido, desde a publicação de C. Michaëlis de Vasconcellos (1904 I: 82), sua primeira editora e comentadora, objecto de muita atenção, tanto mais que se trata de um dos textos mais divulgados e mais afortunados nos estudos relativos à lírica galego-portuguesa. Mais pelo seu hermetismo do que pela sua transparência, encontra-se esta composição na origem de vários estudos que contemplaram, de modo diverso, a fixação do texto, o género, a estrutura, a delimitação cronológica e a atribuição do poema382. Limitar-me-ei, aqui, apenas a um dos problemas que envolvem a análise desta composição − normalmente mais conhecida por cantiga da garvaia − o problema atributivo. C. Michaëlis de Vasconcellos publicou-a em 1904, sem hesitar, sob o nome de PaySrzTav. Por volta dos anos quarenta, porém, levantam-se as primeiras dúvidas interpretativas, cronológicas e é também posta em causa a atribuição que tinha sido dada por C. Michaëlis383. Pela primeira vez, o nome de MartSrz surge como o do autor mais provável, conjectura que vem a ser acolhida pelo editor deste poeta em 1963384. A emergência de novos indícios e a situação concreta no Cancioneiro da Ajuda, entretanto, permite repor o problema da autoria385. Terá sido a cantiga da garvaia composta por PaySrzTav ou por MartSrz? A atribuição a PaySrzTav, proposta por Michaëlis e seguida por vários estudiosos386, foi alterada, por motivos fundamentalmente de natureza interna, em favor do poeta do ciclo seguinte, MartSrz387. 382 Na impossibilidade de enunciar a meia centena de estudos dedicados a esta composição, remeto para Horrent (1955: 363-403) e Bertolucci (1963: 59-64) que reuniram os títulos fundamentais. Posteriormente, são de assinalar as recensões críticas a estes dois trabalhos: a J. Horrent, a notícia de Paiva Boléo (1956: 568-569) e a de Darbord (1957:113); à edição de V. Bertolucci, a importante recensão de Rodrigues Lapa (1965-1966: 469-474) e a breve notícia descritiva de Maia (1966-1968: 579). De indicar também o signifcativo ensaio que reúne grande bibliografia acerca desta composição, para além de nova proposta crítica, Rico (1973: 443-453). A edição crítica de G. Vallín (1996) aceita a inclusão desta cantiga no conjunto de cantigas de PSrzTav, referindo-se justamente à proposta que aqui retomo e que apresentei já (Ramos 1986b /1989). Referem ainda, de modo não exclusivo, problemas relativos a este poema: D’Heur (1973: 31, n. 122-125; 47); Gonçalves (1976: 29), Ferrari (1979: 69-71). Particularmente importante para este caso é a recensão de Gonçalves a este ensaio (1983: 403-412). A antologia dedicada à lírica galego-portuguesa atribui também a PaySrzTav este texto (Gonçalves-Ramos 19852: 134-136). 383 As primeiras dúvidas acerca da atribuição foram levantadas por Pimpão (1947: 138, 153-154, 195-197, 461 e de novo na 2ª Ed., (1959: 164-170); Paxeco Machado (1948: 258-264) e (1949: 21-23; 341-353). 384 Em uma das mais significativas edições críticas da poesia trovadoresca galego-portuguesa foi incluído este texto na série de MartSrz (Bertolucci 1963: 59-64). No entanto, a editora, em ensaios posteriores, reviu esta integração, admitindo PaySrzTav (Bertolucci 1993). 385 Ferrari (1979: 70); Gonçalves (1983: 406-409) e Ramos (1986: 220-222). 281 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Esta nova atribuição é defendida, entre outros, por J. Horrent e V. Bertolucci. J. Horrent (1955) justifica a nova atribuição com base na sequência de poetas e de textos no Cancioneiro Colocci-Brancuti, tendo presente também elementos estilísticos: «L'étude comparée des oeuvres poétiques de Paay Soarez et de Martim Soarez nous porterait plutôt à attribuer le poème de la 'guarvaya' au second des Soarez. Relisons les chansons de Paay Soarez. Nulle part nous ne retrouvons un sentiment analogue à celui qui nourrit notre poème, nulle part nous ne le voyons animé par une vive inspiration satirique. En revanche les poèmes de médisance de Martim Soarez ne se comptent pas et l'un d'eux, le nº 145 du C.B.N. ou 62 du C.Aj., est bien de la même veine que la ‘cantiga da guarvaya’» (Horrent 1955: 402). Quando V. Bertolucci edita os poemas de MartSrz, inclui na sua edição novos textos entre os quais a cantiga da garvaia, indicando para tal inclusão as investigações de E. PaxecoMachado e sobretudo as de J. Horrent concordando que, apesar de relatividade do critério, «non resta quindi che ricorrere all'esame degli elementi interni» (1963: 27). Tudo se explicaria pelo facto de o ciclo de poemas de PaySrzTav se encontrar não só próximo, mas inserido no ciclo mais completo de poemas de MartSrz; e pensa-se que embora se não encontre copiada em B, a cantiga da garvaia apresentaria todas as condições internas (o tema da senhor en saya, sobretudo)388 para ser atribuída a MartSrz, e não a PaySrzTav. Esta opção crítica em favor de MartSrz proporcionou sérias reservas a M. Rodrigues Lapa que as explicitou, com base também em elementos históricos e estilísticos, na recensão crítica à edição de V. Bertolucci, concluindo que «mientras no haya prueba en contrario, seguimos pues, atribuyendo las cuatro cantigas a Pai Soares de Taveirós» (1965-1966: 470). J. M. D' Heur, em um dos seus trabalhos dedicados à lírica galego-portuguesa, colocava também restrições à atribuição a MartSrz, inclinando-se para a atribuição a PaySrzTav: «Mme V. Bertolucci (...) voudrait attribuer ces quatre pièces de PA SO TA à M SO. Nous reviendrons ailleurs sur son argumentation qui ne nous a pas convaincu»389, reflexão que, todavia, não encontrei concretizada nos seus trabalhos posteriores. Embora se não ocupe da atribuição desta cantiga, E. Finazzi-Agrò (1975: 183-206) manifestava também dúvidas quanto à inserção no cancioneiro de MartSrz, da cantiga A 62, 386 Entre os autores mais significativos que aceitam a atribuição a PaySrzTav, encontra-se Piel (1948: 188-200); Spitzer (1949-1950: 186-195) e (1953: 512-514). Lapa (1952: 169-186); Cunha (1957: 100111) e, novamente, Lapa (1965-1966: 469-474). Veja-se agora também a edição dos poemas de PSrzTav (Vallín 1996). 387 Em especial os artigos de E. Paxeco-Machado (1948). 388 En saya é expressão utilizada em A 38 e em A 62 = B 173, atribuída, esta última cantiga em B, a MartSrz. 389 D’Heur não chega a particularizar esta sua reserva (1973: 31, n. 122-125). No entanto, emite a mesma opinião na 2ª Ed. deste estudo (1975: 23). 282 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Pois non ei de dona 'lvira que C. Michaëlis atribuíra a um desconhecido ou RoyGmzBret (1904, I: 129-131 e II: 336-341), isto é, ao poeta do ciclo seguinte, a MartSrz. O facto de se encontrar esta cantiga em A depois de miniatura e de capital do tipo relativo ao início de série, representa um dos exemplos, como vamos ver, de que, segundo o plano da compilação ou da cópia de A, deveria pertencer a autor diferente. A. Ferrari, sem tratar especificamente da cantiga da garvaia, indicava, pela primeira vez, elementos codicológicos em B que faziam, de novo, hesitar acerca da atribuição daquela série de composições a MartSrz. O problema colocava-se-lhe a propósito da atribuição do poema incompleto A 39, Meus ollos, gran cuita d'amor, último da série que inclui a cantiga da garvaia, A 38, série que, segundo V. Bertolucci se integraria no conjunto de MartSrz mas, a propósito da qual observava A. Ferrari: «credo che l'intera questione vada riesaminata (...) alla luce di queste note colocciane e della messa in opera materiale di questo settore di B, denotanti il progressivo, tentennante e discontinuo inserimento fisico di carte non previste, in un secondo tempo legate in un singolo fascicolo premesso all'inizio 'ufficiale' dei componimenti di MartSrz» (1979: 71). O problema da inserção de fólios não previstos, em este lugar de B, é reexaminado por E. Gonçalves na recensão crítica ao estudo de A. Ferrari (1983: 406-409). Partindo da descrição do caderno 5 de B, feita pela filóloga italiana (que observara já a inserção de fólios por Colocci o qual, deste modo, constituíra um caderno irregular de três fólios), E. Gonçalves estabelece a proveniência diversa destes fólios: o primeiro, fl. 36, que deveria estar ligado ao caderno 4; e, sobretudo, os fl. 37 e 38 que foram tirados do primitivo caderno 14 e continham os textos B 145 a B 150 de PaySrzTav que condizem com a ordem em A. Assim: B 145 = lacuna em A B 146 = A 31 B 147 = A 32 B 148 = A 33 B 149 = A 34 B 150 = A 35 Esta deslocação de seis cantigas provenientes do caderno 14 para formar um novo caderno inserido após o caderno 4 revela que Colocci pretendia colocar, logo a seguir à última composição do fl. 36 (o qual deveria estar unido ao caderno 4 com a tenção entre MartSrz e PaySrzTav B 144, Ay Pay Soarez, venho-vus rogar) a sequência dos seis textos atribuídos a PaySrzTav. Podemos notar, desde já, a ausência dos outros textos que em A seguem A 35 (A 36 a A 39). Dado o constante paralelismo entre A e B, o fenómeno não pode deixar de criar perplexidade. E. Gonçalves interpreta a deslocação operada por Colocci, mas não se ocupa, por 283 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio não utilizar A, da ausência daquelas quatro cantigas em B, A 36, A 37, A 38, A 39: «Sur les motifs qui auront porté Colocci à structurer son codex d'une façon apparemment si irrégulière, on pourrait faire l'hypothèse que l'humaniste a voulu imiter la structure de l'exemplar de B» (Gonçalves 1983: 409). Destas duas análises resulta que entre o actual caderno 4 de B (caderno que deveria terminar com uma cantiga de escarnho de MartSrz, B 143, Pero non fuy a Ultramar, e com a tenção entre MartSrz e PavSrzTav, B 144. Ay Pay Soarez, venho-vus rogar, provavelmente provenientes de outro sector, como diz A. Ferrari390) e o actual caderno 6 com as cantigas de MartSrz, não existia em um primeiro momento − o da cópia − qualquer separação, estando portanto a série de MartSrz sem nenhuma quebra. Colocci, ao introduzir em outro momento (o da «révision» como admite E. Gonçalves391) o fl. 37 e o fl. 38 com as composições de PaySrzTav, atraído talvez pela tenção entre MartSrz e PaySrzTav, estava a seguir a ordem do exemplar e, do mesmo modo, a seguir a ordem presente em A, o que pode confirmar a hipótese de que Colocci estaria, na verdade, a seguir o modelo. Este tipo de indícios materiais sugere nova reflexão acerca da atribuição do grupo A 36 a A 39: reflexão curiosa, pois incide na análise de um grupo de textos presentes em um manuscrito sem rubricas atributivas (A) e ausentes em um manuscrito que, normalmente, transcreve tais rubricas (B). São, portanto, observações codicológicas, todavia, que levam a conjecturar, com relativa segurança, uma consciência de separação atributiva clara na mente de quem teve a responsabilidade organizativa do Cancioneiro da Ajuda. Refiro-me aos dois tipos de dados acima referidos: 1. Miniatura que inaugura um novo ciclo, colocada sempre no lado esquerdo, ao alto do fólio (rosto e mais raramente verso). 2. Espaço em branco de dimensão variável no final de um ciclo de poemas de igual procedência, indicativo de que a mudança de fólio corresponde mudança de autor, a sugerir, parece, que a orientação da cópia não permite iniciar-se, em um mesmo fólio um novo ciclo de poemas de um novo poeta. 390 Pela descrição de B, torna-se claro como esta zona se encontra, materialmente, perturbada (Ferrari 1979: 100). 391 É bastante significativo este tipo de intervenção colocciana no reordenamento textual do códice (Gonçalves 1983: 408; Ferrari 1993: 119- 123 [120]). 284 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Nestas circunstâncias, a atribuição da cantiga da garvaia deve ser dada ao autor das composições que constituem o ciclo em que ela se insere, isto é, pertencerá a PaySrzTav ou a MartSrz, de acordo com a localização no manuscrito da Ajuda. O que me parece mais útil indicar é que, por um lado, no momento da compilação do material o responsável pela cópia do cancioneiro ‘recebeu’ a cantiga da garvaia e os outros textos, ausentes em B (A 36 a A 39), incluídos na série de um daqueles dois trovadores. Por outro lado, necessário é também recordar que em B o caderno onde estes textos estariam eventualmente transcritos é um caderno irregular, constituído e deslocado por Colocci em circunstâncias anómalas. A cantiga da garvaia, tal como o ciclo em que ela materialmente se inclui, encontra-se no actual caderno II de A. Este caderno inicia-se com uma cantiga incompleta por mutilação (A 31 = B 146, Entend’eu ben, senhor, que faz mal-sen) e conclui também com uma composição incompleta por mutilação (A 61 = B 151, Pero que punh’en me guardar). Neste caderno só possuímos composições de PaySrzTav e MartSrz, o que seria um indício justificativo quanto à confusão atributiva entre os dois trovadores392. As composições estão copiadas do seguinte modo: f1.8r A 31 = B 146, Entend’eu ben, senhor, quefaz mal-sen A 32 = B 147, A rren do mundo que mellor queria A 33 = B 148, Quantos aqui d'Espanna son f1.8v A 34 = B 149, Meus ollos, quer-vus Deus fazer A 35 = B 150, Como morreu quen nunca ben A 36 = ausente, Sennor, os que me queren mal fl.9r A 37 = ausente, Eu sõo tan muit’amador A 38 = ausente, No mundo non me sei parella fl.9v A 39 = ausente, Meus ollos, gran cuita d’amor [lacuna por mutilação em A] 392 fl. 10r A 40 = B 152, Ay, mha senhor, se eu non merecesse A 41 = B 153, Qual sennor devi'a faltar A 42 = B 154, Mara villo-m'eu, mia sennor fl. 10v A 43 = B 155, Nostro Sennor, como jaço coitado A 44 = B 156, Nunca bon grad’Amor aja de min fl.11r A 45 = B 157, Ja, mia sennor, nẽum prazer A 46 = B 158, Sennorfremosa, pois me non queredes A descrição do caderno encontram-se descritas no capítulo relativo à estrutura dos cadernos. 285 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio fl. 11v A 47 = B 159, Quando me nembra de vós, mia sennor A 48 = B 160, Muitos me veen preguntar fl.12r A 49 = B 161, 0 que consell’a mi de m'eu qui itar A 50 = B 162, En tal poder, fremosa mia sennor fl. 12v A 51 = B 163, Mal consellado que fuy, mia sennor A 52 = B 164, Sennor, pois Deus non quer que mi queirades fl.13r A 53 = B 165, De tal guisa me ven gran mal A 54 = B 166, Meu sennor Deus, se vus prouguer fl. 13v A 55 = B 167, Quantos entenden, mia sennor A 56 = B [167 bis], Non ouso dizer nulla ren A 57 = B 168, Meu coraçon me faz amar fl.14r A 58 = B 169, Por Deus vus rogo, mia sennor A 59 = B 170, Por Deus, sennor, non me desamparedes fl.14v A 60 = B 171, Tal om'é coitado d'amor A 61 = B 151, Pero que punh'en me guardar393 A leitura da descrição precedente permite estabelecer apreciável concordância entre as sequências presentes em A e as verificadas em B. Entre o f1.8r e o fl.9v de A, possuímos a sequência A 31 a A 39 idêntica à de B 146 a B 150, sem contarmos evidentemente com a ausência, neste último manuscrito, de correspondências a A 36, A 37, A 38, A 39. Após a lacuna, fisicamente visível, encontramos de novo um paralelismo notável entre os dois manuscritos: A 40 a A 61 e B 152 a B 171 exceptuando o caso de B 151 que não respeita a sequência numérica. 5.5.4.2. Cantiga ausente no Cancioneiro Colocci-Brancuti Examinando agora a situação da cópia em B, verificamos que a disposição textual de cada um destes trovadores se apresenta do seguinte modo: 393 A ordem dos textos em A indicaria para este texto o número B 172 e não B 151. O último texto da série em A corresponde ao primeiro da série em B (situação assinalada por Bertolucci 1963: 27). Referi-me a esta deslocação de textos do final de ciclo para o início nos dois cancioneiros na análise dos cadernos, como AyCarp, trovador que se encontra imediatamente a seguir ao ciclo de MartSrz em B, onde temos o início com uma composição de duas estrofes, B 175, Poys que sse nom sente a mha senhor. De acordo com a ordem de A (A 64 = B 176; A 65 = B 177; A 66 = B 178 e A 67 = B 179), a cantiga B 175 deveria, eventualmente, completar o ciclo e não o contrário. De facto, em A a primeira composição da série, logo a seguir à miniatura com a capital adequada ao início de série, é A 64 = B 176, Quisera-m’ir; tal consello prendi, correspondente à segunda cantiga da série em B. No final do ciclo em A encontramos espaço no fl.16v-p. 110 que seria suficiente à transcrição das duas estrofes de B 175 e à separação de autor. É de notar a proximidade entre estas duas séries e o paralelismo do acidente: a segunda cantiga da série em B é a que inaugura o ciclo em A. Será esta transposição mais um indício a confirmar a complexidade desta zona em B? 286 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita MartSrz (atribuição exp1ícita) fl. 36r e fl.36v B 143 = ausente em A, Pero non fuy a Ultramar B 144 = ausente em A, Ay Pay Soarez, venho-vus rogar PaySrzTav (atribuição explícita) fl.37r , fl.37v, fl. 38r três fólios B 145 = lacuna394, Cuidava-m’eu, quando non entendia B 146 = A 31 B 147 = A 32 B 148 = A 33 B 149 = A 34 B 150 = A 35 ausente = A 36 ausente = A 37 ausente = A 38 ausente = A 39 eliminados MartSrz (atribuição exp1ícita) B 151 = A 61 B 152 = A 40 B 153 = A 41 B 154 = A 42 B 155 = A 43 B 156 = A 44 B 157 = A 45 B 158 = A 46 B 159 = A 47 B 160 = A 48 B 161 = A 49 fl. 39r a 43v B 162 = A 50 B 163 = A 51 B 164 = A 52 B 165 = A 53 B 166 = A 54 B 167 = A 55 B [167bis] = A 56 B 168 = A 57 B 169 = A 58 B 170 = A 59 B 171 = A 60 Ao analisar a sequência textual nos dois manuscritos, reconhecemos que os textos ausentes em B (A 36 a A 39) poderiam ter sido incluídos no caderno 5, ‘fabricado’ voluntariamente por Colocci para a inserção dos poemas de PaySrzTav. Na verdade, parte do 394 Tal como na descrição da cconteúdo dos cadernos, faço distinção entre lacuna e ausente: o primeiro caso refere-se à mutilação física e o segundo aos textos que, eventualmente, poderiam estar ou não presentes no códice. 287 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio f1.38r, col.b e todo o f1.38v encontram-se em branco, o que levaria a pensar que aquele espaço seria suficiente para a inclusão das cantigas presentes em A. E. Paxeco-Machado usou exactamente este espaço para a atribuição das cantigas a MartSrz: «... o resto da folha 38 está em branco. Na folha 39, cantiga [123], recomeçam as de Martin Soares, de quem já eram a [115] e a [116]: nada nos impede de atribuir a este trovador a cantiga 38 do C.A., pois a 40 já corresponde à [124] do Canc. da Biblioteca Nacional (...)»395 . Também J. Horrent notou tal espaço: «Au fº 37 rº b commence la transcription des chansons de Paay Soarez qui se continue aux fº37 vº a-b et 38º rº a-b. La fin de la colonne b du fº 38 rº est en blanc ainsi que le fº38 vº. C'est à ces blancs que correspondent les chansons nº 36 à 39 du C.Aj. Au fº39 rº a-b commence la transcription des oeuvres de Martim Soarez». E, em nota, insiste ainda J. Horrent: «Le scribe du C.B.N. n'a pas copié ces chansons, mais a réservé l'espace qui leur était nécessarie. Il suffit pour s'en assurer de comparer le nombre de vers que comptent ces chansons dans le C.Aj.avec Ia disposition habituelle des vers dans le C.B.N.» (1955: 399). V. Bertolucci dizia ainda: «Se il gruppo di cui si paria avesse trovato accoglimento in B, sarebbe stato collocato, con moita probabilità, alla fine dei folio 38r (...) e nel folio 38v, dei tutto in bianco: complessivamente la lacuna sarebbe capace di comprendere appunto i nostri quattro componimenti» (1963: 27). O facto de o caderno 5 apresentar o resto do fl. 38r col.b e fl.38v em branco pode significar que, tratando-se de um «inserimento fisico di carte non previste» (Ferrari 1979: 71, n. 87) ou de um «cahier additionnel et non prévu» (Gonçalves 1983: 407) e tendo-se iniciado o caderno 6, o material disponível para o caderno inserido não devia preencher completamente os fólios deslocados. Revelará esta hipótese que os textos A 36 a A 39 não se encontravam no exemplar ou que, estando no exemplar estes textos não chegaram a ser copiados, ou que, por fim, tendo sido copiados, se teriam perdido devido ao acidente da deslocação dos fólios? Se temos provas físicas de uma previsão de continuidade entre o caderno 4 e o caderno 6 e se temos provas também materiais da inserção do caderno 5 com a transposição das cantigas, explicitamente atribuídas a PaySrzTav, temos então indícios para hesitar na atribuição a MartSrz das cantigas A 36 a A 39 que não chegaram a ser copiadas no caderno 5 nem se mantiveram em outra zona do manuscrito. Este problema atributivo voltou a ser reexaminado por J. C. R. Miranda (2004) com apoio na análise na constituição do Cancioneiro Colocci-Brancuti. Os elementos que justificam esta inserção justificam-se, segundo a sua proposição, em uma explanação verosímil: «A explicação mais credível é que tais textos sejam provenientes de suportes materiais autónomos – 395 Paxeco-Machado, 1948: 260. A numeração utilizada corresponde à Ed. de B de Paxeco-Machado (1949). 288 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita rolos ou cadernos isolados – que Angelo Colocci foi adicionando, à medida que lhe iam chegando às mãos, ao cancioneiro que mais recentemente mandara confeccionar» (Miranda 2004: 451). Sem comentar esta audaciosa conjectura, por contemplar a confecção de outro cancioneiro, limito-me a reenviar para os meticulosos exames de A. Ferrari (1979) e de E. Gonçalves (1983) que descreveram com escrúpulo a consistência física do modelo do cancioneiro colocciano396. Tendo presente a organização de A no que diz respeito à separação atributiva (miniatura, tipos de capital e espaço no fim da série), como estariam dispostos estes textos no Cancioneiro da Ajuda, antes das mutilações neste caderno II com a miniatura inicial e final de um bifólio e com o fólio homólogo do fl. 12. Reconstituindo o estado inicial, teríamos então um esquema que se justificaria do seguinte modo (Figura 10)397: [7] 8 9 [10] 10 11 12 13 14 [15] Figura 10 – Cantiga da garvaia no primitivo caderno II a) No f1.8r, temos a última parte da cantiga A 31 = B 146, o que faz supor a existência de um fólio precedente, na nossa representação o fl. [7v], hoje desaparecido, contendo o início desta composição; b) Neste fl. [7v], podemos ainda conjecturar, com relativa segurança, a presença da composição B 145 que deveria ocupar parte do verso e parte do rosto do f1. [7r]; 396 Não deixaria de ser muitíssímo surpreendente que, no século XVI, A. Colocci organizasse independentemente, a partir de rolos (ou mesmo de cadernos), dois Cancioneiros que, em largos sectores, coincidiriam com o Cancioneiro mais antigo (Cancioneiro da Ajuda). Não se compreenderia também a sua Tavola Colocciana (Gonçalves 1976) nem o paralelismo com o Cancioneiro da Vaticana (Ferrari 1993), nem sobretudo os textos recentiori (textos interpolados no exemplar) presentes em V e não em B com a famosa alusão à lettera nova. Mais difícil seria explicar também o «libro di portughesi» trazido por «quel da Ribera». E, mais do que tudo isto, a cópia à pecia não significa que estava a efectuar a realização de dois Cancioneiros, a partir de materiais dispersos «à medida que lhe iam chegando às mãos». 397 No capítulo relativo à constituição dos cadernos, explicito a reconstituição esquemática deste caderno II em relação ao estado actual. 289 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio c) É no fl. [7r] que deveria encontrar-se a miniatura introdutória do ciclo de poemas de PaySrzTav. Podemos ainda admitir que no fl. [7r] haveria espaço para mais uma composição. É, no entanto, difícil aceitar a presença, em A, da tenção entre MartSrz; e PaySrzTav, B 144. Teríamos, deste modo, o ciclo de PaySrzTav iniciado no primitivo fl. [7r], início também do caderno II. O ciclo inaugurar-se-ia com a cantiga B 145, Cuidava-méu, quando non entendia (é improvável como dissemos, a presença de B 144, Ay Pay Soarez, venho-vus rogar, apesar de ser possível prever espaço para mais um texto), prosseguia com B 146 = A 31, Emend'eu ben, senhor, que faz mal-sen e todas as outras composições no fl. 8r, no fl. 8v, no f1. 9r e no f1. 9v. Os dois últimos poemas, A 38 e A 39, apresentavam, por certo, problemas no tocante à qualidade textual. No primeiro caso, temos espaço para mais uma estrofe; no segundo, só temos a transcrição da 1ª estrofe. Todo o resto da col.c e toda a col.d do fl.9v ficam em branco. Como já o dissera J. Horrent (1955: 395-396), também V. Bertolucci no comentário que dedica à cantiga da garvaia (1963: 60-64), quando se refere à estrutura do poema, considera-o completo com as duas estrofes. Induzida por H. H. Carter (1941: 188) interpreta V. Bertolucci o espaço em branco entre A 38 e A 39 como «quello che normalmente é riservato alla vignetta», hesitando justamente quanto à dimensão: «per quanto nella riproduzione fotografica di questo foglio del codice lo spazio in questione appaia leggermente più piccolo di quello occorrente di solito per la vignetta»398. A observação de A revela que todas as miniaturas estão praticamente concluídas até ao f1. 60 (caderno IX) e que só do fl. 65 (caderno X) em diante é que começamos a ter espaço previsto para a miniatura, de dimensão maior do que aquele que se encontra no fim da 2ª estrofe da cantiga da garvaia. A regularidade das dezasseis primeiras miniaturas incluiria, por certo, as do caderno II. Mas, além do espaço, o elemento decisivo - que indica não tratar-se de previsão para miniatura - é a capital inscrita em um quadrado com elementos ornamentais, tipo de capital usada no interior de um ciclo e que não corresponde à capital que acompanha a miniatura. Não se refere seguramente este espaço a uma previsão decorativa, mas a uma previsão de espaço para texto. Podemos admitir que o organizador de A não concordava com aquela estrutura de duas estrofes, ou não estava satisfeito com o material que possuía, e ao prever espaço talvez 398 A cantiga era considerada incompleta praticamente por todos os estudiosos (Michaëlis 1904, I: 82; Pellegrini 1957: 113-118; Bertolucci 1963: 60). Bertolucci falava de, «dubbio non infondato sulla completezza del testo»; Lapa (1952: 169) dizia que, «segundo o mais provável [a cantiga] andará incompleta, pois há lugar vazio para mais versos» e ainda em (1953: 139) mantinha a sua opinião: «É conveniente insistir na ideia de que faltará à cantiga uma terceira cobra». Apesar da informação de Carter que, neste sector, interpretou imprecisamente este espaço como uma previsão de miniatura, V. Bertolucci não deixou de reparar, justamente, neste pequeno espaço que não deveria destinar-se à decoração. 290 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita possa querer significar que aguardava possibilidade de melhorar a sua cópia. Casos idênticos a este encontram-se com alguma frequência em A, mas aqui bastará referir um comportamento paralelo no mesmo caderno II, no ciclo de MartSrz. A cantiga A 57 = B 168, Meu coraçon me faz amar, encontra-se em A reduzida apenas à transcrição o da 1ª estrofe. Seguidamente, no f1.14r col.a, verifica-se espaço para mais uma ou duas estrofes. Em B não se observa mais texto, estando incompleta esta composição nos dois códices, como o reconhecera C. Michaëlis (1904, I: 120). A hipótese de Carter - espaço para miniatura, também neste caso acolhida com reservas por V. Bertolucci - é, de refutar porque, para além de a miniatura separar autores (o que aqui se não verifica), o tipo de capital rubricada que inicia a composição seguinte (A 58 = B 169, Por Deus vus rogo, mia sennor) não pertence ao tipo de grande capital que acompanha a miniatura, mas ao tipo relativo ao interior de série. Outro caso semelhante, incluído também na série de poemas de MartSrz, é o da cantiga A 60 = B 171, Tal om’ é coitado d'amor, que em A apresenta apenas a transcrição das duas primeiras estrofes, deixando o copista espaço para acrescentamento de texto no fl.14v, col.d. Em B, encontramos, na realidade, mais uma estrofe. Deste modo, a existência em B de mais uma estrofe prova que estes espaços se destinavam a texto e não a decoração399. Recordando o espaço existente entre a cantiga A 38, No mundo non me sei parella e a cantiga A 39, Meus ollos, gran cuita d'amor e observando também o tipo de capitais usado nestas duas composições relativo ao modelo de capital decorada para o interior de ciclo, podemos dizer que estas duas cantigas se encontravam incluídas na mesma série e que tanto uma como outra estavam incompletas para o responsável pela cópia do manuscrito da Ajuda. Se continuarmos a observar o tipo de capitais usado nas cantigas precedentes (A 32 = B 147, A 33 = B 148, A 34 = B 149, A 35 = B 150), verificamos que a presença contínua de capitais alternadamente inscritas num quadrado ou apenas rubricadas são características de interior de série; e apuramos ainda que, entre estas composições, o único espaço disponível é o destinado à notação musical. Desde A 32 a A 39 temos uma série de cantigas que, com base em estes elementos, pertenciam ao mesmo trovador no momento em que A foi copiado. Se em B a atribuição de B 147 = A 32, B 148 = A 33, B 149 = A 34, e B 150 = A 35 pertence a PaySrzTav, podemos dizer que em A as cantigas A 36, A 37, A 38 e A 39 devem também pertencer a PaySrzTav. Ao restituir-lhe este grupo de composições, restituímos-lhe também a cantiga da garuaia (A 38). 399 Como observámos alguns casos de previsão de espaço para texto em A são confirmados por B, como, por exemplo, em A 68 = B 1451, En gran coito vivo, sennor, A 90 = B 194, Sennor, queixo-me coa pesar, A 93 = B 197, Pola verdade, que digo, sennor. 291 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio São duas, em resumo, as provas: 1. Sabemos que em B o caderno 5, onde se encontram os textos de PaySrzTav (B 145 a B 150), foi inserido entre um contínuo de poemas de MartSrz e é proveniente de outra zona do manuscrito (um fólio do caderno IV, dois fólios do caderno XIV). Neste cancioneiro, não temos a transcrição de A 36 a A 39 por motivos que ou dizem respeito ao exemplar ou ao acidente da deslocação. O espaço em branco em B, no final do caderno 5, pode não se relacionar com a hipotética cópia destes textos, mas com a irregularidade da estruturação do códice neste sector400. 2. Sabemos que em A a miniatura separa autores, que o tipo de capital que acompanha a miniatura é de tipo diferente das iniciais usadas nos restantes textos pertencentes a uma mesma série. Em A, não temos rubricas atributivas, mas o tipo de decoração utilizada prova que os textos A 36 a A 39 pertencem materialmente ao mesmo poeta dos textos anteriores A 32 a A 35. O espaço que sobra no fim da transcrição da 1ª estrofe de A 39 no f1.9v seria destinado à conclusão da cantiga e, por certo, a fim de série, tal como sucede em outros casos. O copista só iniciaria cópia de poema de novo autor em outro fólio, depois de miniatura401. A série do poeta seguinte, MartSrz, começava provavelmente no primitivo fl. [10r] no nosso esquema, fólio que devia conter a miniatura relativa ao início do ciclo de MartSrz, elemento decorativo que pode ter fomentado o seu desaparecimento. A observação material prova que este fólio era homólogo do actual fl.12r e fl. 12v que compreendem as composições A 49 = B 161, A 50 = B 162, A 51= B 163 e A 52 = B 164. No fl. [10r] deviam estar, de acordo com a sequência em B, a composição B 151 = A 61 (que em A só aparecerá a encerrar a série, no f1.14v, col.d), e o início da composição A 40 = B 152 que prossegue no actual fl.10. Terá sido A 400 A descrição material do cancioneiro italiano e do trabalho colocciano (Ferrari 1979 e Gonçalves 1983) continua a parecer-me imprescindível e válida neste contexto. A. Ferrari analisa a intervenção de A. Colocci neste sector (1979: 69-70) e E. Gonçalves reconstitui o acidente material que terá ocasionado, no estado actual, a ausência destes textos em B (1983: 406-409). Ainda que J. C. Miranda (2004) se sirva, em parte, de alguns destes elementos materiais, não é clara a separação atributiva do micro-ciclo A 36-A 39 que, no Cancioneiro da Ajuda, não estão dissociados dos textos que os precedem A 31, A 32, A 33, A 34, A 35. 401 A presença da indicação do revisor, alusiva a PPon nesta cantiga A 39, acrescenta um outro elemento na reflexão que, por agora, não me parece possível explorar, como o indiquei no comentário à estrutura do caderno II. 292 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 61 copiado duas vezes, uma antes de A 40 e outra depois de A 60?402. Ou tratar-se-á de uma deslocação operada apenos em B? Em seguida, temos a transcrição de todas as outras composições de MartSrz (A 40 a A 61 = B 152 a B 171, nos fl.10r e fl. 10v, fl.11r e fl.11v, fl.12r e fl. 12v, fl.13r e fl. 13v, fl.14r e fl.14v) sem nenhuma lacuna física e de concordância quase total com a sequência de B (de exceptuar a posição de B 151). A última composição em A, A 61 = B 151, deveria continuar no primitivo fl. [15] representado no nosso esquema, que continha o fim do último verso da 1ª estrofe e as três estrofes presentes em B. Podemos supor que todo o resto deste fólio, parte da col.a, col.b e todo o verso se encontrariam em branco, significando assim final de série e final também do caderno II. O desaparecimento do fl. [15], homólogo do também desaparecido fl. [7] (talvez porque um possuía ainda bastante pergaminho não utilizado, o fim do ciclo de MartSrz, outro porque continha miniatura, início do ciclo de PaySrzTav), pode explicar a lacuna no início do caderno com as composições de PaySrzTav e a lacuna no fim do caderno com as últimas estrofes da última composição da série de MartSrz. Com a descrição do primitivo caderno II e com a reconstituição topográfica dos textos perdidos por mutilação em A, podemos observar a colocação dos textos de PaySrzTav e MartSrz ou, se preferirmos não os nomear, de dois trovadores absolutamente distintos para o responsável da cópia do Cancioneiro da Ajuda. Esta colocação só é reconhecível após a identificação do comportamento do organizador do Cancioneiro da Ajuda: como separava autores, como agrupava os textos de um mesmo autor, como previa espaços para textos incompletos e como estabelecia critérios para a decoração do manuscrito. Separar o ciclo compacto de A 31, A 32, A 33, A 34, A 35 de um micro-ciclo, A 36, A 37, A 38, A 39, como o faz J. C. Miranda (2004), implicaria dar à tradição textual, no momento em que o Cancioneiro da Ajuda é copiado, um peso tal na ambiguidade atributiva, que não me parece suficientemente justificável neste sector da cópia de A. Os elementos estilísticos devem ser, evidentemente, tomados em consideração; mas, em um caso como este, não ter presente estes elementos materiais, significaria aceitar que a tradição manuscrita galego-portuguesa, no momento em que A foi organizado, apresentava os ciclos dos poetas notavelmente misturados, e que o responsável pela cópia não se teria apercebido de tal situação. Esta peculiaridade de A deverá ser ponderada em qualquer tipo de reflexão sobre o estabelecimento da tradição manuscrita da lírica galego-portuguesa. A observação codicológica, a definição dos mecanismos e das condições materiais em que o texto foi transmitido e as rotinas de cópia podem indicar soluções mais garantidas, 402 Caso paralelo de dupla cópia encontra-se em uma cantiga atribuível a PayGmzCha, A 248 = B 816, Oý eu sempre, mia sennor, dizer no f1. 67v/p. 212, recopiada no f1. 69/p. 215. 293 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio sobretudo em um tipo de movimento literário como este em que a interpretação estilística e a análise dos conteúdos podem tornar-se, pela repitio, elementos mais frágeis403. Não nos esqueçamos de que eram elementos estilísticos que levaram E. Paxeco-Machado, J. Horrent e V. Bertolucci a atribuir a cantiga da garvaia a MartSrz. Mas também eram elementos estilísticos (ao lado de dados históricos) por que Lapa argumentava a favor da atribuição a PaySrzTav. O estudo de A. Ferrari e a recensão de E. Gonçalves assinalam a constituição irregular do caderno que em B contém as cantigas de PaySrzTav, como também a sua proveniência e a sua inserção naquela zona do manuscrito, a interromper a continuidade de composições de MartSrz. A revelação destes elementos codicológicos coloca dúvidas quanto à atribuição a MartSrz de textos não presentes em B. A observação sistemática da constituição de A demonstra que aqueles textos se encontravam na série de PaySrzTav e não na série de MartSrz. Com o regresso ao manuscrito da Ajuda, regressa a Guaruaya, com as outras três cantigas a PaySrzTav, ou a um único trovador, diferenciado do seguinte, justificando, parece-me, a atribuição, intuitivamente, proposta por C. Michaëlis de Vasconcellos. A minúcia com que o caso da Guaruaya aqui está apresentado procura mostrar como a reflexão atributiva deverá ter em conta a prática do Cancioneiro da Ajuda, apesar da ausência de rubricas atributivas. A atribuição deste grupo de textos (A 36 a A 39, incluindo a guarvaya, A 38) é um exemplo eficaz, parece-me, da relação entre espaços em branco e atribuição. Em anexo, incluo um quadro (Quadro VII-Anexo) que apresenta o ordenamento destes espaços em branco. 5.6. Espaços em branco destinados à música Sem considerar as Cantigas de Santa Maria que constituem tradição literária e musical distintas, a presença de música escrita nos manuscritos que transmitiram a poesia lírica galegoportuguesa é, como é sabido, extremamente rara. Restringe-se ao Pergaminho Vindel (R), ao Pergaminho Sharrer (T) únicos documentos que conservam música em cantigas profanas, e que são compostos apenas pelas sete cantigas d' amigo de MartCod, seis das quais apresentam notação musical, inscrita em pentagrama por dois copistas diferentes no primeiro fragmento, e 403 Já V. Bertolucci o reconhecia: «Non é certo impresa agevole enueleare una fisionomia poetica dallo sfondo della scuola gallego-portoghese, nella quale si tende ad una grigia uniformità di motivi e di formule» (1981: 127). De modo semelhante expressava A. Ferrari o mesmo cepticismo: «confesso per parte mia una forte diffidenza nei confronti di elementi 'interni', soprattutto quando si tratti di testi cosi tematicamente e stilisticamente monocordi» (1979: 70). De acrescentar, por fim, que após o estudo de A. Ferrari com a clarificação da estrutura dos cadernos de B e do material inserido em B, V. Bertolucci anunciava já «intendo tomare su questo caso [testi incerti tra Paay Soarez de Taveiroos e Martin Soares] in sede di una nuova edizione delle poesie di Martin Soares» na comunicação Critica testuale e antica lirica portoghese, apresentada ao Congresso sobre «Ecdotica e testi ispanici» (1981: 127, n. 11). 294 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita por sete cantigas d' amor de D. Denis no segundo. A escrita das frases melódicas obedece aos hábitos tradicionais, ao confinar-se à primeira estrofe de cada poema, com os versos sucessivos e identificados, algumas vezes, por um ponto separativo. A sexta cantiga no Pergaminho Vindel só apresenta o pentagrama traçado a vermelho, sem qualquer nota musical. Este tipo de suporte material usado para difundir um cancioneiro individual de um trovador (rolo? folha volante?404) com o texto acompanhado de música encontra paralelo, cronologicamente distanciado, em um dos apógrafos seiscentistas da tenção entre AfSchz e VaMtzRes405. O manuscrito depositado no Porto indica, na verdade, que as trovas «estavão postas em solfa» (Michaëlis 1904, II: 109), o que presume para esta cópia um modelo idêntico ao do Pergaminho Vindel. Outros indícios de rótulos, ou de cancioneiros individuais na estrutura do material lírico galego-português, sem sabermos embora se circulavam com melodia, podem ser documentados, indirectamente, no Cancioneiro Colocci-Brancuti e no Cancioneiro da Vaticana (Gonçalves 1989). Testemunho também de modelo musical é o que se observa no Cancioneiro da Ajuda em todas as cantigas406 que o constituem hoje, registasse espaço no interior da primeira estrofe de cada poema, dependente do projecto da cópia, mas em nenhum destes lugares, bem delimitados, se verifica o traçado da pauta – conjuntura diferente da que se vê na sexta cantiga de R com o traçado da pauta a vermelho –, vestígio, portanto, comprovativo de que o copista responsável pela música não chegou a colaborar no empreendimento de A. Contudo, tal como em R, os versos da primeira estrofe estão dispostos de modo contínuo e, grande parte das vezes, marcados por um ponto separativo. Materialmente, por conseguinte, A e R ilustram um mesmo costume. As restantes estrofes são transcritas verso a verso, tanto em A como em R, mas se o uso de ponto 404 Esta incerteza tem sido tratada em vários estudos de G. Tavani onde o estudioso italiano tem expressado a sua opinião acerca da hipótese de este testemunho ser um exemplo de rolo (2002: 86-87). M. P. Ferreira não admite a eventualidade material de um rolo, mas «é pois provável que se trate de uma ‘folha volante’, morfologicamente distinta mas funcionalmente equivalente aos ‘rolos’ referidos em B» (Ferreira 1986: 65). 405 Gonçalves 1993b: 628). O texto da tenção foi, há pouco editado, no conjunto da obra poética de AfSchz (Arbor 2001; Longo 2002). 406 De distinguir A 167-168, cantiga assim numerada por C. Michaëlis, correspondente a B 319. No ms. da Ajuda, A 167, As graves coitas, a quen as Deus dar de JSrzCoe, apresenta regularmente o espaço em branco na 1ª estrofe e as seguintes, 2ª e 3ª, estão copiadas de modo normal sem qualquer espaço. A série de nove versos que segue esta composição é interpretada como fiindas por C. Michaëlis (1904, I: 334336), apesar de hesitação, e por G. Tavani (1967: 445-446 e 241). No entanto, só o primeiro dístico mostra espaço para a música, idêntico ao da 1ª estrofe ou ao de outras fiindas que prevêem a inscrição da melodia. Mas o que surpreende, neste caso, é a ausência de espaço entre os outros versos, como se observa em A 102, Ay eu coitado! E quand'acharey quen, equivalente a B 209-210 de PGarBu, onde um conjunto semelhante de fiindas apresenta espaço entre todos os versos e não apenas no primeiro dístico. Por outro lado, a capital rubricada em A 168, corresponde à grandeza de inicial de cantiga e não à de fiinda. Tanto o rubricador como o copista devem ter interpretado estas fiindas como uma cantiga diferente, um pouco como em B as fiindas de PGarBu tinham sido dispostas como composição independente em B 210 e B 215. 295 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio no final de cada verso é regular em R, é bastante menos sistemático em A. As descrições de A407 reportam-se, essencialmente, a esse espaço na primeira estrofe destinado à música, mas este manuscrito propõe outro elemento importante ao prever, de igual modo, espaço musical em algumas fiindas o que pode talvez significar música própria e diversa da primeira estrofe no epílogo da cantiga, como vamos ver. Os cancioneiros copiados em Itália, B e V não oferecem presença de espaço musical, nem na primeira estrofe, nem em qualquer outra circunstância. Esta ausência impede, no entanto, qualquer surpresa, se conjecturarmos, com G. Tavani, que o modelo não deveria conter «né le miniature né la notazione musicale o lo spazio per trascriverla» (1969: 138). Entretanto, sabe-se que o exemplar de B estava ainda escrito em gótica, o que autoriza a situá-lo cronologicamente, apesar de conhecermos os limites do uso daquela letra em Portugal408. A. Ferrari, ao interpretar o apontamento do humanista italiano, A. Colocci – lettera nova –, presente em quatro lugares de B, considera que o qualificativo se refere aos textos integrados posteriormente no modelo, escritos em uma letra diferente, o que traduz um «chiaro riferimento [di Colocci] alla diversa scrittura con cui nell'exemplar erano grafati i componimenti di recente interpolazione» (1979: 72). No entanto, o facto de conhecermos a escrita gótica do exemplar não consente, todavia, um juízo acerca das suas eventuais particularidades musicais, mesmo se associarmos a característica paleográfica a A e a R, no que diz respeito à gótica. De modo diverso, observa-se em V um distintivo singular que pode contribuir também à delimitação cronológica do seu modelo: o ponto separador utilizado no início do manuscrito para distinguir o fim de cada verso409. Já E. Monaci tinha examinado este procedimento: «le poesie del canzoniere sono scritte per versi. Ma subito nella prima poesia si nota che ogni verso termina con un punto (...). Sembrerebbe dunque che il nostro copista avesse avuto dinanzi un esemplare dove i versi erano scritti (...) come prosa»410, o que provocou, por vezes, anormal identificação do verso. A. Ferrari, por seu lado, acrescenta: «lo stesso valga per B, dove frequentissimi sono gli errori (...) relativi ad errata divisione di versi» (1979: 77). Assim, quanto a V, podemos presumir um exemplar em que os versos estavam ainda separados por um ponto e, de modo provavelmente análogo em B, os vários erros no reconhecimento de versos podem ser ainda atribuíveis a este cuidado no modelo. Seria, contudo, útil fixar os limites dos 407 C. Michaëlis (1904, II: 135-179, em particular, p. 142-143); Carter (1941: XII-XIII); G. Tavani (1969: 80-81) com opiniões reactualizadas nas suas últimas publicações (2002b). 408 A datação desta letra em Portugal é relativamente larga na classificação dos paleógrafos, admitindo-se um uso prolongado deste tipo de escrita (Nunes 1969, I: 12). 409 A primeira cantiga em V de FerGvzSea, Muytos vej'eu que, con mengua de sen, texto que corresponde, em forma mais completa, a B 391 apresenta esta disposição. 410 Monaci (1875: XII-XIII). Também J. Ruggieri concorda com a análise de E. Monaci acerca desta diligência do copista de V (1927: 459-460). 296 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita desacertos na separação dos versos, isto é, circunscrevem-se à primeira estrofe, ou ocorrem em toda a cantiga? Esta pesquisa poderia elucidar o tipo de modelo ou modelos destes manuscritos, ao prenunciar um modo de cópia paralelo ao de A e ao de R – primeira estrofe com os versos ininterruptos, separados unicamente por um ponto e as restantes estrofes, reproduzidas verso a verso –; ou, outro modo de transcrição totalmente diverso – todas as estrofes transcritas como prosa –, por hipótese411. Se aquele exame mostrar que os erros na divisão de versos se situam apenas na primeira estrofe, poderíamos supor então uma fonte com a música transcrita ou, pelo menos, com espaço que lhe seria atribuível. Problemas, portanto, dependentes da escrita horizontal e da escrita vertical para a disposição da poesia. De recordar ainda a maneira de reproduzir os lais no manuscrito Vª (Vat. lat. 7182, fl. 267r-fl. 278v), que comparecem também no início do Cancioneiro Colocci-Brancuti (fl. 10rfl.11v). Consoante o parecer de S. Pellegrini, a cópia «porta le poesie, scritte non per versi, ma continuamente come prosa, esso ha d'altra parte talvolta maiuscole le lettere che risultano essere iniziali di verso, o segna la fine di un verso con una sbaretta o un punto»412. As letras iniciais e o ponto revelam modelo que devia possuir os versos identificados. Estes sinais gráficos, analisados paralelamente aos que se encontram na versão dos lais em B, podem talvez elucidar anterior presença musical, mesmo remota, ao ter presente o hábito musical em estas canções líricas. Refira-se, por último, outro vestígio que inculca presença de música em um antecedente de V, identificado por E. Gonçalves, no estudo acerca de uma nota, transcrita pelo próprio copista – m codaz esta nõ acho põcada – (1987: 183-195). Após importante emenda de leitura, põcada em pontada413, a Autora situa e justifica a pertinência desta nota, incorporada no antecedente, ao estabelecer correspondência com a sexta cantiga de Martin Codax que está, na verdade, privada de melodia em R. Este sinal de presença musical anterior está ausente em B, porque no sector adequado a nota não foi copiada414. Se este esclarecimento reforça um estado musical conhecido – a ausência de música na sexta cantiga de Martin Codax – , revela-nos, por outro lado, que fonte não muito afastada de V, possuía as mesmas características musicais de R, pelo menos, em este ciclo de poemas. 411 É necessário precisar que o uso de ponto em V ocorre em uma cantiga que, neste ms., possui apenas a primeira estrofe. Tavani (1967: 412). 412 S. Pellegrini (1959: 194). Entre as várias menções a este ms. feitas, quer por E. Monaci, quer por C. de Lollis, referidas no estudo de S. Pellegrini, cf. também V. Fanelli (1979, p. 158-159; 177). Estes poemas estão também transcritos em B 1, B 2, B 3, B 4 e B 5. Cf. G. Tavani (1967: 515-517). 413 O erro de leitura de E. Monaci, põchada, na edição diplomática de V levou vários editores a considerar põchada por fechada. As diferentes hipóteses são comentadas por E. Gonçalves no estudo referido (1987). 414 As causas relativas à omissão em B são ainda analisadas por E. Gonçalves: se B não teve o mesmo antecedente que V, a ausência da nota é facilmente explicável; se B e V, pelo contrário, possuírem igual fonte é, então, de imaginar que o copista de B a descurou, ou por negligência, ou por inesperado reparo filológico. 297 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 5.6.1. Primeira estrofe No arranjo dos textos, está previsto sistematicamente um espaço para a transcrição musical na primeira estrofe, desnecessário nas outras, porque as frases melódicas da primeira eram repetidas, em princípio, nas estâncias seguintes. Este é o comportamento regular de muitos cancioneiros que possuem transcrição musical ou previsão para uma inclusão musical posterior. As cantigas apresentam a primeira estrofe com os versos em modo contínuo, embora marcados, em geral, por um ponto que os individualiza. As outras estrofes são transcritas verso por verso. Algumas vezes, o verso é concluído ainda por um ponto no final e o seguinte iniciado por diferente capitalização (Michaëlis 1904, II: 142-143, § 128)415. Esta primeira estrofe no Cancioneiro da Ajuda encontra-se escrita sem individualização de versos por estar destinada a ser acompanhada pelas correspondentes frases melódicas. As outras estrofes (duas ou três, na maior parte das composições) estão transcritas, verso a verso, e de, forma contínua, não estando, deste modo, previsto nenhum espaço para a transcrição musical. Situação que se pode considerar normal e idêntica, não só em relação aos cancioneiros marianos (Anglès 1943, 1958, 1964; Ed. facs. 1979, 1991, 2003), como também à maior parte dos cancioneiros produzidos em ambiente galo-românico (Fernández de la Cuesta 1979; Beck 1938, 1976; Aubry-Haury 1875; Meyer-Raynaud 1968). Como se sabe, nesta primeira estrofe, registavam-se, por exemplo, as frases melódicas α e β que depois se repetiam, respectivamente, nas estrofes seguintes. Até aqui, o Cancioneiro da Ajuda comporta-se como os demais e faz parte dos manuscritos que, como diz Beck, «destinés à être notés, furent dès le début aménagés de telle sorte que le scribe chargé de la copie du texte traçait par avance les portées musicales ou laissait un espace libre entre les vers du premier couplet de chaque chanson» (1976: 36). Não é raro que manuscritos destinados a acolher música se tenham conservado com este projecto inconcluído, sem vestígio da intervenção do copista especializado, por ser o aspecto mais complexo no acabamento da transcrição. Algumas vezes, são apenas certas composições que, em um cancioneiro musical, não receberam notação, outras vezes, resta-nos apenas a marca do pentagrama. Pautas previstas para a transcrição musical sem inclusão do texto musical são mesmo exemplificadas na tradição galego-portuguesa no Pergaminho Vindel com a sexta cantiga (fac-símile: Ferreira 1986). Mas também o ms. de Florença das Cantigas de Santa Maria (Códice da Biblioteca Nazionale Centrale de Florença B. R. 20) não chega a passar pelas mãos do copista musical podendo, no entanto, notar-se a presença do pentagrama (Ed. facs. 415 Em relação a estes espaços para a música e a outros, referi-me já ao tratar da mise en texte. Cf. também capítulo referente à Decoração. 298 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 1991)416. Podíamos citar em ambiente francês o Chansonnier B (Berna, Bibliothèque de la Bourgeoisie, ms. 231) no qual algumas canções de Thibaut de Champagne como R 273, Dieus est ausinc con est li pellicans (fl. 3v), ou R 2026, Qui set pour coi Amours a non amours (fl. 5r) se encontram desprovidas de notação musical (Wallensköld 1925; Brahney 1989)417. No entanto, é visível que o delineamento da pauta foi efectuado naqueles casos. O Cancioneiro da Ajuda, não tendo recebido a notação musical, afasta-se ainda mais de outros cancioneiros, ao não possuir sequer o traçado da pauta – pentagrama –, como se pode observar nas canções acima citadas e como se verifica também pela sexta cantiga do Pergaminho Vindel, que nos faculta unicamente as cinco linhas para a inscrição musical. Além da ausência total de notação musical, a pauta em nenhuma das composições, que actualmente o constituem, foi preparada, o que faz pensar que seria o copista musical que se deveria encarregar também do traçado da pauta. Se alguns manuscritos que nos mostram pautas vazias, possuem outras composições com notação musical, podemos admitir que seria apenas o texto musical que faltava em relação a alguns textos. O musicólogo podia preparar, em um primeiro momento, as pautas nas primeiras estrofes e, só depois, inseriria as notas em cada uma das composições. O códice florentino das Cantigas de Santa Maria revela, no entanto, um estado intermédio, pois as pautas estão marcadas e não há nenhuma inclusão de nota musical. Esta dupla ausência no Cancioneiro da Ajuda – notação musical e traçado de linhas – revela que estes cadernos nunca passaram pelas mãos nem do técnico musical, nem do responsável (mesmo se é plausível conceber um mesmo perito) pelo lineamento paralelo para a primeira operação, se tivermos presente que esta tarefa geométrica pode ser contínua e não efectivada de cantiga a cantiga, como parecem demonstrar as transcrições conhecidas. 416 Pela edição fac-similada (Ed. Edilán 1991) observa-se a presença do pentagrama, quer nos fólios a duas colunas (fl. 97v, fl. 108r), quer na transcrição da estrofe musicada em toda a largura do fólio (fl. 28v, fl. 74v, fl. 127v). O stemma desta tradição mariana, que contempla a transcrição musical, é analisado por M. P. Ferreira que propõe uma datação. A notação, centrada nas Cantigas de Santa Maria, parece não ter sido anterior à década de 1270. O códice mais antigo, proveniente de Toledo, foi provavelmente escrito entre, aproximadamente, 1270 e 1275, exibindo uma notação caracterizada pelo regionalismo do vocabulário figurativo e por uma forte ambiguidade mensural (Ferreira 1994). 417 Das duas dezenas de Chansonniers (finais do sév. XIII, princípios do século XIV) que nos restam, boa parte conserva melodia, mas nem sempre a transcrição é uniforme em todas as canções que continham pauta prevista para tal efeito. São várias centenas de melodias que nos chegaram através do Chansonnier Cangé (Paris BN 846); Manuscrit du Roi (Paris BN 844); Chansonnier de l'Arsenal (Paris Bib. de l'Arsenal 5198); Chansonnier de Noailles (Paris BN 12615); Chansonnier de Saint Germain (Paris BN 24406). Cf. Aubry-Haury 1875; Meyer-Raynouard 1968; Beck 1938, 1976. 299 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 5.6.2. Transcrição das fiindas A situação musical deste Cancioneiro é todavia mais complexa na parte final de algumas composições do que nas primeiras estrofes. Na verdade, número significativo de cantigas traz a fiinda ou as fiindas ordenadas como na primeira estrofe, isto é, dispostas de modo a receber da mesma maneira notação musical. Como este modo de proceder não é comparável ao que se verifica na tradição cancioneiresca dos trobadors e trouvères, admite-se que possa reflectir um hábito musical galego-português em que as fiindas eram acompanhadas pela respectiva melodia. Se a fiinda podia exigir notação precisa é porque talvez fosse cantada com música distinta da prevista para as outras estrofes. No Cancioneiro, contudo, nem todas as fiindas dispõem de espaço para a música, o que aconselha alguma circunspecção quanto a esse carácter obrigatório de música própria e diversa no epílogo da cantiga. Na ausência de qualquer indicação neumática, resta conjecturar uma frase melódica nova ou uma variatio, mas nada nos adverte que não fosse uma simples repetitio. O que parece certo é que este fenómeno, unicamente documentado pelo Cancioneiro da Ajuda, revela um compilador que dispõe de fontes musicais distintas, o que leva a pensar em uma confluência de materiais de diferente tradição scriptológica. Comprova-se, efectivamente, a subsistência de diferentes sectores em que o material não possuía transcrição musical para as fiindas, outros em que todas as cantigas com fiinda eram dotadas de transcrição musical e outros ainda em que parte do ciclo de poemas de um mesmo autor apresenta previsão musical, enquanto alguns textos são desprovidos de tal propósito418. Não se trata de um acidente de cópia, como precipitadamente se poderia supor, mas analisando, caso a caso, vemos que a suposição de erro não é aceitável e que, na realidade, nos encontramos perante um espaço realmente intencional419. Cerca de 36% das composições que constituem o cancioneiro apresentam textos com fiinda. Destas, cerca de 35% contêm fiindas com espaço para a pauta e notação musical e cerca de 65% incluem as fiindas transcritas de modo convencional, quer dizer sem qualquer previsão para a transcrição musical. Como interpretar estes espaços que se apresentam com número expressivo? Poderiam ser analisados como uma variação de scripta musical, quer dizer que podíamos admitir que o facto de 418 Esta particular classe de espaços em branco, que corresponde também a um dos últimos momentos da confecção do códice, idêntico ao da primeira estrofe, revelar-se-á como um dos aspectos particularmente significativos na tradição musical trovadoresca europeia, como vamos ver. É de forma aparentemente menos metódica que vamos registar um mesmo tipo de espaço equivalente ao da primeira estrofe no final de algumas composições, destinado a receber também notação musical nas fiindas. Também nestes casos não há marcação de pauta musical. 419 Uma confusão entre um final e um início de cantiga poderia ser, em um ou outro caso, justificado como um equívoco facilmente compreensível em este tipo de textos com a primeira estrofe prevista para a transcrição musical. 300 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita encontrarmos esta previsão no final das composições significaria que não poderíamos estar perante uma repetição de frases melódicas da primeira estrofe, de acordo com o comportamento de outros manuscritos musicais, mas sim com uma variatio final, o que constituiria uma interpretação excepcional na tradição da lírica românica. Mas este primeiro juízo não explica o motivo de encontrarmos, apenas em alguns casos, este procedimento e não em todas as ocorrências de utilização de fiinda. A. Roncaglia aludia em vários dos seus trabalhos a este problema fundamental na produção europeia da lírica ocidental afirmando em relação à poesia siciliana: «Sono convinto che una delle più importanti, forse la piá importante in assoluto, tra le novità che caratterizzano, l'antica lirica italiana nei confronti dei suoi precedenti trovatoreschi (provenzali innanzitutto, ma anche francesi, ed anche germanici) sia il mutato rapporto fra parola e musica, in dipendenza da condizioni socioculturali diverse da quelle d' Oltralpe. Tuttavia m' avvedo bene, che di questo convincimento – certo non soltanto mio – risulta difficile render ragione in termini oggetivi e precisi. È difficile tradurre in asserzione fattuali e definire con sicurezza, nella loro portata e nei loro limiti, inferenze ricavabili solo da una documentazione sfuggente e in prevalenza da argomenti e silentio» (1978a: 365-397). Silentio não será, portanto, o que caracteriza o lirismo peninsular ibérico. Sabemos que não se encontrava ele até há alguns anos, sobretudo o profano em condições de ser objecto de total crítica filológica musical mas não deixa, ele também, de oferecer particular «rapporto, fra parola e musica», comparando-o com os casos de trobadors, trouvères e Minnesänger, ou interpretando-o até isoladamente420. O Pergaminho Vindel dá-nos a imagem do que poderia ser a execução melódica de alguns tipos de composição, mas não nos oferece qualquer indicação quanto à execução final das cantigas, por se tratar formalmente de outro género de composição. O Cancioneiro da Ajuda, ambicioso projecto de organizada compilação, não chega às mãos do copista-musical ou do musicólogo, mas não deixa de prever, além do uso habitual com 420 Pope (1934: 3-25), Tavani (1975: 179-186) e, posteriormente, I. Fernández de la Cuesta, 1982: 179185 referiram-se a esta tradição. M. P. Ferreira, ao editar o Pergaminho Vindel, reactualiza as principais informações ligadas à produção poética medieval galego-portuguesa (1986) e nos seus mais recentes estudos (1993; 1998a; 1998b; 2001; 2002) não tem deixado de elucidar vários dos problemas que ainda envolvem este aspecto da produção lírica medieval, não só galego-portuguesa, mas também ibérica, sobretudo após a importante descoberta de H. H. Sharrer relativa à música profana com o fragmento das cantigas de D. Denis (Sharrer 1991). De notar que a última edição dos poemas de D. Denis não contemplou este significativo aspecto na transmissão textual dionisina (Júdice 1998; Ramos 2001b). Dos ensaios publicados mais recentemente, isolo Cantus coronatus, relativo a D. Denis (2005), que oferece uma análise particularizada acerca da execução musical das cantigas d' amor. Concretamente circunscrita ao Cancioneiro da Ajuda é a sua apresentação ao Congresso O Cancioneiro da Ajuda, cen anos despois de 25 e 28 de Maio de 2004 em Santiago de Compostela, intitulada, «O rasto da música no Cancioneiro da Ajuda» (Ferreira 2004) e a sua intervenção em Lisboa no Colóquio Cancioneiro da Ajuda (19042004), onde aborda os silêncios musicais do Cancioneiro, «Som mudo no Cancioneiro da Ajuda» (Ferreira s. d.). 301 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio a primeira estrofe, e de reservar um espaço necessário para a transcrição musical final em certo número de textos. A orientação da cópia é muito clara nesse sentido. Este silentio do Cancioneiro da Ajuda não é comparável ao silentio do qual nos fala A. Roncaglia, em relação às composições sicilianas, mas é um silentio que julgo poder ser interpretado. Interpretação em dois tempos: um, em termos românicos, ou seja, a previsão musical no Cancioneiro da Ajuda é idêntica ou não à dos outros cancioneiros, sobretudo ibéricos e galo-românicos e, em outro tempo, a explicação pode subordinar-se ao próprio Cancioneiro, sem nenhum recurso comparativo. A situação musical do manuscrito da Ajuda é, portanto, mais complexa e afasta-se dos outros cancioneiros conhecidos. Estes espaços em branco finais tinham sido já notados por Carolina Michaëlis, embora a filóloga não tenha apresentado este facto em termos interpretativos, o que talvez não deva sequer surpreender, se atendermos à aparente assistematicidade de tal ocorrência. C. Michaëlis, no lugar em que descreve a disposição das estrofes e observa o espaço em branco deixado para a pauta musical, conclui: «O mesmo caso [transcrição do tipo de pauta] dáse a miudo com curtas estrophes ou meias-estrophes finaes, designadas pelos criticos modernos como tornada, cabo, volta, (Geleit), mas que na terminologia dos trovadores Portugueses se chamavam fiindas421. Em outro lugar, no parágrafo destinado aos avisos ao iluminador, volta a filóloga a aludir a estes espaços finais: «Para que o artista não desacertasse quanto ao tamanho das maiusculas, destinadas ao refran (...) e quanto ao typo que competia aos raros remates com musica propriamente d'elles, vem depois, em 21 casos, a palavra fijda, com til ou sem til sobre a primeira ou segunda vogal» (1904, II: 11, p. 174, § 144). Ora, como vamos ver trata-se, muito diversamente de um número de casos superior a esse que indica422. Referia-se ainda a esta peculiaridade, ao caracterizar o conteúdo das notas que acompanhavam cada texto e, concretamente, na nota IV: «Na IV.ª (Varia) comunico as notas escritas nos séculos XV e XVI por leitores diversos nas marjens do códice e aponto ou traslado algumas traduções de Diez e de Storck» (1904, I: XII). É, portanto, na secção Varia que vai incluir a sua interpretação relativa ao espaço deixado para a fiinda, assinalando-o, quase regularmente, nos lugares em que ele ocorria. No primeiro caso (A 95): «Á margem, ao lado do verso 29, é que o CA tem, pela primeira vez a nota fĩjda, da mão e lettra do escrevente, e não do 421 Estas observações de C. Michaëlis merecem algum comentário. Não parece haver divergência no Cancioneiro da Ajuda, tanto na primeira estrofe, como nos casos de fiinda com previsão musical. O que nós temos é o espaço deixado pelo copista, correspondente a três linhas da pauta para o texto, o que não é sinónimo de três linhas de pauta para a música. A pauta musical tem dimensões diferentes da pauta textual (1904, II: 142, n. 3 e § 128). 422 As advertências ao rubricador quanto ao tipo de inicial a decorar nestas fiindas (o copista introduz o mesmo tipo de indicação para o refran) são descritas no capítulo relativo à Decoração. 302 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita annotador. Porquê? Porque é a primeira vez que a fiinda apparecia no original com musica propria» (1904, I: 202), ou em A 104, «O escrevente pôs á margem a chamada fijda, que costuma accompanhar aquellas que tinham melodia sua no original» (1904, I: 216) ou, mais sinteticamente, em A 107, «A fiinda teve outr' ora o seu som proprio» (1904, I: 222)423. Esta ausência, voluntariamente estabelecida para notação da melodia à fiinda, se não pode ser resultado de má interpretação do copista, isto é, se não é consequência de uma confusão entre o final de uma cantiga com o início da composição seguinte, poderia ser apenas resultado de um modelo, eventualmente destinado à execução musical e que, na mudança de fólio, – rosto para verso – tenha sido necessária a repetição das frases melódicas já transcritas anteriormente. A verificar-se qualquer uma destas hipóteses, seriam possíveis algumas conjecturas acerca, do tipo de exemplar que teria servido de modelo ao Cancioneiro da Ajuda424. Contudo, todos os espaços previstos para a notação musical, destinados à fiinda não são atribuíveis nem à responsabilidade do copista, nem podem ser considerados de carácter erróneo, nem sequer consequentes a uma mudança de fólio. A observação da totalidade dos casos, um a um, mostra que se trata de ocorrência clara, voluntária, e inequívoca e que só se pode explicar pela comparência de um mesmo espaço musicado na fiinda, no material que serviu de base à organização do Cancioneiro. De qualquer modo, experimenta-se de imediato uma surpresa, ao verificarmos que este comportamento não é regular, nem é comum a todas as composições, cuja estrutura métrica inclui fiinda. Então como compreender a origem e a variação de tal facto? O primeiro passo dado no sentido do entendimento foi o de integrar esta característica na produção românica contemporânea. Creio oportuno poder adiantar que as observações já efectuadas, podem permitir eleger o Cancioneiro da Ajuda como um unicum na tradição trovadoresca ocidental (os manuscritos provençais musicados não têm nenhum caso de tornada com frase (s) melódica (s) e os manuscritos franceses não revelam, no estado actual da investigação casos de envoi com notação musical425. 423 Outras indicações semelhantes em A 115, A 118, A 131, A 132, A 133, A 134, A 135, A 136, A 137, A 138, A 139, A 141 (Michaëlis 1904, I: 240, 246, 267, 269, 271, 273, 275, 277, 179, 280, 282, 285, etc). 424 Para que se avalie da importância e do melindre subjacentes recorde-se o comportamento de Lord Stuart quando editou o Cancioneiro da Ajuda (1823). Stuart (ou o responsável pela transcrição para a sua edição) não ignorava que o espaço musical se encontrava, normalmente, na primeira estrofe e, tendo presente esta regularidade, faz coincidir fiindas de algumas composições com o início de outras, ou então como textos autónomos. 425 No Manuscrit du Roi (M), Paris, BN 844 (Ed. facs. Beck 1938), a transcrição musical comparece na primeira estrofe e, em alguns casos, a música pode ser copiada em outros lugares da composição: chansons à refrain ou chansons avec des refrains no fl. 67 e fl 68; fl 100v; fl. 121r, fl. 121v; descort no fl. 79v, fl. 80, fl. 80v; fl. 107, fl. 108, fl. 141v, fl. 142r e fl. 142v, etc. O ms. de Cangé, Paris BN 846 (Ed. facs. Beck 1976) que conserva uma centena de envois de canções, que em outros mss. não são transmitidos, não apresenta transcrição em qualquer um destes casos. Neste ms., deparamos apenas com 303 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Se, em um primeiro momento, poderíamos considerar que subsistiria uma dependência métrica nesta forma de transcrever as fiindas, quer dizer que uma estrutura particular imporia a presença musical, poderíamos então fazer uma associação entre métrica e música, ao contextualizar que mudança métrica favorecia mudança musical. Pelo que decorre da observação, sob a mesma estrutura métrica, temos composições onde à fiinda está reservado espaço para a música e outras com a mesma fórmula que do mesmo carecem inteiramente. A análise de todos os casos elimina esta eventualidade. Encontramos a mesma estrutura de cantiga em que a fiinda desfruta de espaço ou não o possui para a notação musical426. A análise destas ocorrências conduz às seguintes observações: 1. Das 310 composições actualmente existentes, 111 são textos com fiinda; 2. Destes 111 textos com fiinda, 59 são cantigas de meestria e 52 são cantigas de refran; 3. Destes 111 textos com fiinda, 39 fiindas têm espaço previsto para a notação musical e 72 fiindas não têm espaço para a notação musical; 4. Das 39 fiindas com espaço para a notação musical, 24 pertencem a cantigas de meestria e 15 pertencem a cantigas de refran; 5. Das 72 fiindas sem espaço para a notação musical, 35 pertencem a cantigas de meestria e 37 pertencem a cantigas de refran. As primeiras conclusões orientam-nos, portanto, no sentido de que a previsão musical na fiinda é menor do que a ausência de previsão e que esse mesmo cálculo espacial tanto pode surgir na cantiga de meestria como na cantiga de refran, o que elimina, desde logo, um uso peculiar e específico de cada um destes dois tipos de cantiga. Mas poderíamos empreender outra explicação que não considere forçosamente a métrica. Bastaria para isso atentar em uma característica que é dependente dos próprios trovadores: poetas que desenvolveram fiindas com execução musical especializada, contrariamente a outros que não praticaram tal exercício, como se pode observar no Quadro VIII- Anexo. O agrupamento que apresento mostra distintamente a composição do Cancioneiro com fundamento neste critério musical. as primeiras estrofes ou casos de lais (fl. 23; fl. 103). A peça 2115 de Raynoud-Spanke (Gontier de Soignies, composição XXII. Ed. Formisano 1980) apresenta um envoi construído sob a fórmula do refran, que reproduz metros e rimas, o que poderia deixar imaginar uma repetição idêntica no envoi. Mas, nesta tradição, não se encontra, de facto, transcrição (ou previsão) musical nesta parte final das composições. 426 Sem incluir a análise métrica de todos os casos em que comparece este espaço, posso, no entanto, referir que alguns esquemas repertoriados por Tavani (1967) como o n°. 160 tanto documentam casos com previsão musical, como casos sem esta previsão [RoyQuey, VaGil, JSrzCoe, JLpzUlh, FGvzSeav, FerVelho]. Com o n°.161, encontrei também idêntico resultado [PGarBu, FerGarEsg, RoyQuey, JSrzCoe], etc. 304 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Se analisarmos cada um dos casos, verificamos que temos uma primeira secção (VaFdzSend, MartSrz, e os primeiros seis textos de PGarBu) em que as fiindas não possuem qualquer espaço. Uma segunda secção que se inicia no interior do ciclo de PGarBu e que se prolonga, sem qualquer interrupção, até ao final do ciclo de poemas de RoyQuey. Uma terceira secção principia com VaGil que possui cinco textos com fiindas em que a primeira e a quarta estão escritas sem espaço e as outras apresentam-no. Este comportamento alternado não se mantém na poesia do ciclo seguinte JSrzCoe cujos poemas com fiinda têm o respectivo espaço. Deste trovador em diante, o comportamento é assistemático, isto é, tanto encontramos fiindas com espaço como fiindas sem espaço. O termo do Cancioneiro, na sua configuração actual, junta-se à primeira secção, sem qualquer espaço previsto para a conclusão final. Mas, então, que poderia significar esta diferente tradição musical? Os espaços, que encontramos nas fiindas, previam a repetição das mesmas frases melódicas, já transcritas na primeira estrofe, ou pelo contrário uma variação final, que utilizava as mesmas frases melódicas com ligeiras modificações, ou que introduziria frases melódicas completamente novas, nesta parte final da composição? Interrogações desta natureza são de resposta, muito improvável, em um cancioneiro que não chegou a ter transcrição musical. O que é possível responder e o que parece não suscitar dúvidas é subsistir neste Cancioneiro condições para afirmar que temos materiais de diferente tradição scripto-musical. Nestas circunstâncias, é curioso observar quem são os autores e quais são os lugares em que temos as fiindas com espaço para esta notação. Estou convencida de que a explicação plausível a dar a este facto situa-se ao nível da fonte, ao nível do modelo. A conjectura mais provável convergeria para uma variação de scripta musical, mais do que uma regra para o tipo de composição – meestria ou refran – ou, evidentemente, mais do que um paralelismo entre variação métrica e variação melódica. Logo, não haveria dependência de uma fórmula métrica ou de uma estrutura estrófica a uma execução musical. Assim, partindo deste dado, poderíamos reconstituir com certa segurança a composição musical do(s) modelo(s) do Cancioneiro. Não podemos saber que tipo de música estaria transcrito nestes casos, mas podemos imaginar uma situação próxima das primeiras antologias, provenientes directamente de Liederblätter que marcaria as diferenças de material em um Cancioneiro próximo talvez das primeiras colações427. Qualquer que seja a realidade, o 427 Recorde-se o caso de PGarBu com uma modificação clara no interior do conjunto de todo o ciclo em que as seis primeiras cantigas com fiinda (A 84, A 85, A 86, A 87, A 88, A 89) não possuem espaço e as segundas seis se apresentam com previsão musical (A 95, A 101, A 102, A 104, A 106, A 107). 305 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Cancioneiro da Ajuda revela uma cópia que denuncia a existência de várias fontes e não de uma fonte única, condição que será necessário ter em conta em qualquer situação de edição crítica de cada um destes poetas428. Esta distribuição poderá explicar-se tendo em mente os manuscritos utilizados como, exemplares na confecção do manuscrito da Ajuda, através de um dado físico que parece explicar as várias estratificações deste Cancioneiro ou do seu antecedente. Um Cancioneiro que, através deste elemento, se pressupõe ser um tipo de antologia feita a partir de vários Liederblätter ou Liederbücher, vários rolos de diferente proveniência e de diferente qualidade musical (ou então um Cancioneiro que copia tão fielmente outro Cancioneiro, onde era ainda visível a presença dos diferentes tipos de recolha). Sendo assim, dispomos em princípio, de material de quatro tipos, chegado às mãos do responsável pela realização do Cancioneiro: 1. Um primeiro tipo em que os Liederbläter não possuíam transcrição musical nas fiindas. É o caso dos poemas de VaFdzSend, MartSrz, RodEaRed, RoyPaezRib, JVqzTal, PayGmzCha, anónimo α, anónimo γ, VaRdzCal, MartMo e RoyFdz. 2. Um segundo tipo em que os Liederblätter possuíam todos transcrição musical nas fiindas. É o caso de FerGarEsg, Roy Quey e PGmzBarr. 3. Um terceiro tipo em que temos Liederblätter com e sem espaço musical para um mesmo autor, sem qualquer mistura na sequência do ciclo. É o caso de PGarBu e JGarGlh. Em PGarBu, encontramos um primeiro núcleo de poemas sem previsão musical e um segundo núcleo onde essa presença se verifica; em JGarGIh, observamos a situação inversa, em primeiro lugar, os casos com previsão musical e, em segundo lugar, os outros que a não têm. 4. Um quarto tipo que é idêntico ao terceiro: Liederblätter também com e sem espaço previsto para a música nas fiindas mas, neste caso, com a apresentação alternada. É o caso de VaGil, JSrzCoe, JLpzUlh, FerGvzSeav e FerVelho. É ainda indispensável pôr em relevo que este Cancioneiro apresenta, por certo, materiais mais requintados do que outros, de responsável ou responsáveis mais atentos à execução musical, com rolos em que esta notação era mais completa e em que esta marca de meestria musical se revelava na fiinda. Poderíamos até pensar em rolos de autor mais completos. Não se deve esquecer, no entanto, que este Cancioneiro apresenta ainda os rolos que não tinham registo musical, o que significa que o testemunho também não o tinha, talvez 428 Ao sugerir fontes heterógeneas, com base neste elemento musical, não quer dizer que esteja a caracterizar a consistência do modelo. A heterogeneidade de uma fonte pode não corresponder, como se sabe, ao estádio imediatamente anterior à cópia de um manuscrito. 306 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita voluntariamente. Serão estes rolos de jogral, menos requintados musicalmente, menos sujeitos à marca desta meestria? Quererá isto dizer que o autor-compositor tanto poderia colocar esta marca (limitação e carência) de qualidade musical, como não? Ou poderá antes remeter para tempos e lugares em que ainda se musicava a fiinda, em contraste com outros tempos e lugares em que ela já não era musicada? Curioso é que este traço físico parece coincidir com o estabelecimento da tradição lírica galego-portuguesa, de acordo com as investigações históricas mais recentes. As relações de parentesco entre os testemunhos conhecidos permitiram a A. Resende de Oliveira designar dois níveis da tradição lírica galego-portuguesa, marcados pela cronologia, pela condição social, pela geografia dos autores e pelos meios cortesãos que devem ter estado ligados à compilação das primeiras recolhas. Na compilação geral teriam, assim, confluído um Cancioneiro de cavaleiros, um Segundo cancioneiro aristocrático, um Cancioneiro de jograis galegos, uma Compilação de clérigos, uma Compilação de reis e magnates, um Cancioneiro de Joan Airas de Santiago, Cancioneiro de D. Denis e Cancioneiro de Estêvão da Guarda (1994: 179-211). Considerando o Cancioneiro da Ajuda como uma cópia da primeira secção do Segundo cancioneiro aristocrático, com o acrescento de dois clérigos, MartMo e RoyFdz, o exame histórico permitiu também, através da análise dos materiais relativos às fiindas, sublinhar a organização dos autores em três conjuntos diferentes: 1. Um constituído por trovadores principalmente galegos com cantigas que datam da primeira metade do século XIII. 2. Outro que reúne trovadores em maior número portugueses cuja actividade decorre na segunda metade do século XIII. 3. E, por fim, o que incorpora autores essencialmente galegos, com produção nos segundos e terceiro quartéis do século XIII429. O segundo conjunto, o dos autores com textos que contêm previsão musical, coincide globalmente com o dos autores portugueses presentes no códice ajudense, o que significaria que parece haver por parte dos trovadores portugueses uma maior propensão para musicarem as fiindas o que não é, naturalmente, irrelevante na concepção organizativa do Cancioneiro. É, assim, lícito admitir uma maior propensão dos trovadores portugueses para a execução dos versos finais ou, pelo menos, admitir que, na confecção da cópia das cantigas destes poetas, houve melhor qualidade na escrita musical da fiinda. 429 Leia-se a justificação histórico-geográfica de A. Resende de Oliveira na sua compilação O Trovador Galego-Português (2001). 307 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio Se se concede que a presença da transcrição musical é um elemento de grande qualidade de materiais, se se considera que estes materiais se associam à produção portuguesa, se podemos pensar que estes materiais de maior propriedade circulavam menos do que outros, então parece legítimo pensar que a confecção deste Cancioneiro não pode ter estado muito afastada dos centros de produção que tinham a possibilidade técnica e profissional de produzir ou reunir materiais com música. Se os melhores materiais pertencem a autores portugueses, a sua difusão não pode estar muito distante da sua produção430. Além desta particularização essencial – ambiente cortesão –, valorizo também a tradição scriptológica, reconhecível através deste útil indício de uma mise en texte particular, que permite reconstituir a estratificação do Cancioneiro (Ramos 1993). Este hábito não se mantém nas cantigas de D. Denis que preservaram notação musical. Nenhuma das três cantigas com fiindas dos fragmentos das suas cantigas d' amor (n° 2, 4, 6) inclui, além da primeira estrofe, notação individual para a fiinda (Sharrer 1991: 15-16). Mas podemos ir um pouco mais longe na reflexão que não se limite a esta objectividade material. Como depreender as características musicais que estariam representadas nos versos finais de algumas cantigas do Cancioneiro? À perplexidade desta questão, procurou responder M. Pedro Ferreira. A sua apresentação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004), na sequência do que tinha já exposto em Santiago de Compostela, contribuiu para uma avaliação mais consistente deste fenómeno musical conclusivo (Ferreira 2004; s.d.). Partindo da minha análise, referente ao tratamento das fiindas no Cancioneiro, e às várias interrogações que, na altura, coloquei nesse primeiro ensaio (Ramos 1984), M. Pedro Ferreira reaxamina as tradições scriptológico-musicais que poderiam ter servido de modelo aos antecedentes do Cancioneiro da Ajuda (poesia estrófica latina clerical e transcrição de canções de trouvères, sobretudo dos que estiveram activos durante o período francês de Afonso III)431. Não se devem esquecer as menções às contas relativas a menestréis durante a estadia afonsina em França: Pro ministerellis tunc pagatis in militia domini Alphonso nepotis (14 de Maio de 1239); Joannis de Alliaco, ministerellus dominis Simonis de Claro Monte, de dono, in nuptiis comitis Boloniae (23 de Maio de 1239); 430 É conhecido, por motivos óbvios dependentes da dificuldade técnico-musical, que os materiais com transcrição musical tiveram menor circulação do que os materiais desprovidos de notação melódica. 431 Alguns casos de representação musical particular encontram-se nas descrições de Anglés (1943, II: 17, 26, 29). M. P. Ferreira considerava que «se uma fiinda podia exigir notação própria, é porque nesse caso se cantaria com música diversa da das estrofes», embora também, em uma primeira análise, tenha rejeitado como implausível a hipótese de repetição pura e simples das mesmas frases musicais; num segundo momento, admitiu essa possibilidade (1986: 181-183; 1998a: 47-61 [49]; 1998b: 157-68 [164]). E, mais recentemente, considerou que a música da fiinda, quando tenha neste Cancioneiro espaço próprio para notação, seria algo diferente daquela correspondente às estrofes (Ferreira 2004). O perfil destas cortes portuguesas no desenvolvimento literário é examinado por V. Bertolucci (2001). 308 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Guillelmus ministerellus comitis Boloniae (24 de Junho de 1239) (Corbin 1945; Castro 1984: 71). Ao concentrar-se na análise de diferentes moldes de transcrição musical, refere no ocidente ibérico a notação do hino, Dum pater familias (Codex Calixtinus), com notação parcial que denotaria alguma variação com diferenças que parecem acentuar-se na estrofe final e no ataque do refran, apesar das deficiências interpretativas da notação432. Deixando de lado a tradição hiníca, complementa a sua investigação com material francês, chamando a atenção, em primeiro lugar, para os tipos de notação parcial ou integral em cancioneiros. A norma, tal como na representação musical dos hinos, incluía apenas a primeira estrofe, repetindo-se, mais ou menos espontaneamente, a mesma melodia nas estrofes seguintes. As excepções proviriam de casos concretos – lais e descorts – que, naturalmente, por características formais e métricas diferenciadas, exigiam uma representação musical integral, como sucedia também em algumas sequências litúrgicas. Examina, em particular, os casos de lais franceses, que não apresentavam transcrição musical na íntegra, mas incide a sua apreciação nos lais que aduziam cópia de música na estrofe final, admitindo que estes casos se poderiam aproximar das fiindas que teriam desfrutado de notação musical na tradição galego-portuguesa433. De facto, no Chansonnier de Noailles, ms. T (Paris, BN fr. 12615), comparecem sete lais, anotados de modo parcial, dos quais três mostram notação na parte final. Indícios, portanto, de que o material melódico podia ser tratado de forma diversa na repetição. Um, o Lai de l’Ancien et du Nouveau Testament de Ernoul le Vieux, que relata diversos episódios do Antigo Testamento, ao discorrer sobre os rituais do baptismo e da penitência434; dois outros anónimos, o Lai des amants e ainda o Lai du chèvrefeuille, que se 432 Trata-se de um caso de particular notação musical. Ao mesmo tempo, o bifólio que contém o cântico (fl. 193 [fl. 222]), embora possa ter existido previamente, deve ter sido incluído materialmente em um momento posterior à organização inicial (Moisan 1992: 228). Estudo codicológico do Códice Calixtino da Catedral de Santiago em Díaz y Díaz (1988). 433 Ainda que lai possa relacionar-se com diferentes campos semânticos (canto, música, narração, elementos técnicos, etc.), parte das referências identificam-se com várias formas líricas diferenciadas em variaçâo estrófica e temática, lai-descort; o grande lai ou lai independente; o lai arturiano ou integrado, assim designado este último por não possuir circulação autónoma e funcionar quase como um interlúdio inserido em outro tipo de textos. Dos grandes lais e dos lais arturianos, alguns ms. transmitiram-nos a notação musical, mas dos lais narrativos não se conserva nenhum documento com transcrição de música. Os lais não são desconhecidos na tradição galego-portuguesa, conservando-se dois testemunhos de Lais de Bretanha (tipo arturiano) no Cancioneiro Colocci-Brancuti, transcritos também em um volume miscelâneo da Biblioteca Vaticana, Vat. lat. 7182 (Ferrari 1993). 434 Ernoul le Vieux, também citado como Ernoul de Gastinnois (talvez originário de Gâtinais), é um trouvère desconhecido, mas contemporâneo de Rutebeuf, por sua vez, documentado em 1249, 1270 e que deve ter morrido à volta de 1285. As suas composições, entre as quais este seu lai bíblico com particular interesse narrativo, conservaram-se em recolhas importantes como o Manuscrit du Roi (M), Paris, BN 844) e no Chansonnier de Noailles (T), Paris, BN 12615 (Maillard 1964). São, na realidade, dois cancioneiros gémeos com uma tradição musical mais ou menos paralela (Parker 1978). 309 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio inscrevem na tradição arturiana435. A maior parte dos estudiosos considera que estes últimos lais de autores anónimos se integram em uma tradição musical mais antiga, anterior ao início do século XIII, com melodias que devem ser mesmo prévias aos próprios textos, datáveis talvez do último terço do século XII, apesar de voltarem a ser citados na Flamenca em meados do século XIII436. No romance, comparece com efeito no sector dedicado aos jograis a referência à performance musical: Apres si levon li juglar; / Cascus se volc faire auzir; Adonc auziras retentir / Cordas de manta tempradura. / Qui saup novella violadura, / Ni canzo ni descort ni lais, / Al plus que poc avan si trais. (vv. 592-598) Os versos seguintes introduzem as menções musicais a títulos lais que não são sequer casos de incipit: L'uns viola (l) lais de Cabrefoil, / E l'autre cel de Tintagoil; / L'us cantet cel dels Fins amanz, / E l'autre cel que fes Ivany. (vv. 599- 602) (Ed. Nelli-Lavaud 1960). Estes processos de representação musical, analisados por M. Pedro Ferreira, não deviam ser ignorados pelo ambiente de Afonso III. Tanto o que é representado pelo lai de Ernoul le Vieux, onde se compreenderia a inclusão musical na última estrofe pelas particularidades formais da sua composição, como os lais dos Anónimos, que mantiveram reprodução musical arcaica com nova transcrição musical final, dependente de uma variação métrica, ou de uma repetição com variação a partir de um mesmo material melódico. Isto quer dizer que, em França e, concretamente neste Chansonnier de Noailles, os lais ofereciam uma transcrição musical, quer com mudança musical efectiva, quer com repetição de frase melódica com variação. Podemos então pensar, como o afirmou M. Pedro Ferreira na sua comunicação, que o compilador do Cancioneiro da Ajuda possuiu materiais com duas maneiras de notação musical na parte final, o que confirmaria a hipótese de que nas fiindas era possível variar as frases melódicas: a) uma, seguida em Portugal, procurava manter, como no hino Dum pater familias e no Lai du chèvrefeuille, as variações melódicas, por vezes substanciais, concentradas no final da composição poética; 435 Estes lais comparecem intitulados nas rubricas dos mss. Tanto o Lai des amants como o Lai du chèvrefeuille não devem ser confundidos com duas das peças narrativas, atribuídas a Marie de France, com títulos semelhantes, o Lai des Deux Amants e o Lai Chevrefeuille. 436 Um problema de data coloca-se também com a cronologia da produção de Ernoul le Vieux se é, de facto, contemporâneo de Rutebeuf: a sua produção pode não ser tão arcaica. A datação do romance occitânico, Flamenca (Ms. Bibl. Mun. de Carcassonne) não apresenta uma cronologia clara, mas o enredo é certamente anterior à redacção, como se supõe, em geral. Se os episódios que relata se situam à volta de 1234, a sua composição é, por certo, posterior (talvez a sua redacção não possa ir além de 1276 com base no v. 3554 e na menção ao senhor d'Alga, castelo principal dos Roquefeuil no século XIII, entre Nant e Saint-Jean-du-Bruel), mas os textos líricos citados no répertoire des jongleurs, os lais, Chievrefeuil, Tintagoil, Fins Amants e de Ivain devem ser prévios à confecção do romance (Limacher-Riebold 1997). 310 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita b) a outra transcrição poderia deixar a variação ao critério do executante, não parecendo necessário incluir uma pauta com notação musical437. Esta faculdade musical, ao concentrar-se maioritariamente no sector de autores portugueses ou com actividade na corte portuguesa, como já tínhamos observado, consolida este elo entre mais uma influência trazida de França pela corte afonsina e uma apropriação local a esta prática interpretativa. A interferência não era, naturalmente, linear. Adapta-se uma possibilidade que existia em lais que, por sua vez, se apresentavam com estrutura particular. Mas, ao mesmo tempo, talvez seja necessário recordar que as fiindas galego-portugueses se caracterizam também por um conteúdo peculiar. Os trovadores, que se servem de fiindas nas suas composições, ignoram (ou não acolhem!) em absoluto uma das funções primordiais no mundo galo-românico, quer dizer, o envoi, no seu sentido de envio, dedicatória, como bem frisou A. Ferrari438. Não o perfilhando, circunscreve-se, assim, a fiinda apenas a uma conclusão, ao se integrar no cerne da composição, e ao acolher do ponto de vista estrutural, uma particularidade musical que se praticava em outro tipo de composição diferenciada métrica e estruturalmente (os lais). O gosto pela variação musical viria do norte de França que, deste ponto de vista interpretativo, aparenta ter desenvolvido mais esta particularidade melódica do que a Provença. Este aspecto, aditado a outros, não pode deixar de qualificar o ambiente em que se realiza o Cancioneiro da Ajuda. As singularidades musicais específicas em autores ligados à corte portuguesa e, por outro lado, a génese deste hábito de escrita musical, susceptível de se poder localizar em França, revelam que a confecção deste objecto não pode estar muito afastada de um ambiente que teve conhecimento desta prática e que teve acesso, em tempo útil, a materiais que prestavam atenção à conclusão musical das cantigas. Não devemos estar a uma grande distância desta atmosfera favorecida pelo regresso a Portugal do Boulenois, imbuído de cultura francesa. 437 Remeto para este trabalho de M. Pedro Ferreira a publicar nas Actas do Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) toda a análise técnica e o comentário crítico na representação musical destas composições copiadas em âmbito francês (Ferreira s.d.). 438 A propósito da ausência de senhal na lírica galego-portuguesa, assim se exprime a estudiosa italiana: «...un' altra clamorosa assenza nella lirica galego-portoghese: quella della tornada-envoi. Infatti è per lo più in questo tipo di tornada che i trovatori provenzali usano il senhal, inviando a donne amate o a protettori (spesso ad entrambi) i propri componimenti. L'assenza d'envoi sembra denunciare che la lirica galego-portoghese doveva affidarsi a contatti diretti piuttosto che al dialogo a distanza, che era quindi meno itinerante di quella provenzale...» (Ferrari 1984: 37-38). V. Beltrán cita, no entanto, o caso de PGtrz com um envio ao «rey de Portugal» (B 921/V 509) (1995b: 105, n. 81). 311 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 5.6.3. A separação silábica Nesta análise de previsão da cópia para a música, verifica-se ainda separação silábica, nitidamente marcada em algumas palavras das primeiras estrofes ou de fiindas com espaço para a música. O mesmo se deveria passar no modelo, com colocação neumática na pauta, o que quer dizer que, pelo menos em certos textos, o copista possuía uma fonte com texto musical escrito e com as palavras separadas de acordo com o posicionamento neumático. É esta uma peculiaridade musical, presente em A, que mais passou despercebida nos estudos dedicados à música trovadoresca, apesar de ter sido salientada por C. Michaëlis439 e por H. H. Carter440. Reconhece-se, de facto, uma separação silábica, ou mesmo cisão interna de sílaba, que se encontra nitidamente marcada em algumas palavras das primeiras estrofes, como ainda em fiindas que se amoldavam ao espaço para a música. O distanciar as sílabas corresponde, com muita probabilidade, a afastamento idêntico no modelo, de modo que o escriba conservou, por vezes, a palavra desunida, em concordância com as notas musicais na pauta. O procedimento no Cancioneiro da Ajuda parece ser contestado por R, onde falta a prática de separar, de igual modo, as sílabas: atente-se, sobretudo, no manifesto desequilíbrio entre o texto do primeiro verso da primeira cantiga com os respectivos sinais gráficos para a música os quais não cabem na pauta e o copista, responsável por este trabalho, tem de transpor as notas fora do pentagrama, a fim de ajustar melodia e texto. Repare-se também nas diferentes fases na génese de R, supostas por M. P. Ferreira (1986: 71, 165), em que os dois momentos reconhecidos na transcrição da música, o vazio da sexta cantiga e as características da disposição textual da última, denunciam que o modelo de R, no momento da cópia do texto, não dispunha de colocação neumática completa. Também no fragmento dionisino, não parece existir a prática da separação silábica em concordância com a disposição das notas (Sharrer 1991). Diversamente de todos os outros testemunhos, em vários textos de A, as sílabas afastadas deixam pressupor um antecedente com texto e música, facto reafirmado, em certos lugares, através de várias fiindas, onde o copista previra espaço musical, como observamos na análise precedente. Este aspecto define a qualidade musical dos antecedentes de A e R, mas é ainda mais peculiar para o caso de A, como vamos ver. Consciente de que é problema delicado expor, de modo indiscutível, o afastamento silábico em A, porque exame completo da ocorrência deveria, porventura, ter em conta a 439 «A primeira estrophe de cada poesia está escripta como prosa, apparecendo as palavras de longe em longe syllabadas, como para solfa» (Michaëlis 1904, II: 142, § 128). 440 «The first strophe of each poem is written in prose-form and the words often are syllabicated» (Carter 1941: XII). 312 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita separação e união de palavras441, além de dever registar um número, relativamente elevado, de espaços entre vocábulos, ou mesmo entre sílabas que dependem de rasuras, sem podermos saber se se devem ao pergaminho deteriorado ou a real propósito442. Outras vezes, é ainda difícil avaliar certos espaços, em escrita gótica com letras angulosas e de linhas quebradas, porque, se não procedem de raspagens, subordinam-se talvez ao próprio condicionalismo paleográfico. É, aliás, nesta eventualidade que, em algumas ocasiões, H. H. Carter parece afastar-se mais do manuscrito443. Assim, indicarei alguns casos onde, fisicamente, é notória a separação de sílabas também com o intento de dar a conhecer material metrica e musicalmente interessante que pressagia este zelo manifestado em A, ao ter, sobretudo, presente a advertência de C. Cunha: «há um fato que parece passar despercebido a alguns estudiosos – a interferência da melodia com que estes poemas eram cantados e que, com alongar ou reduzir a duração das sílabas, igualaria o tempo do verso» (Cunha 1985: 65)444. Assinalarei, da mesma forma e quando possível – textos em A copiados em B, ou em B e V–, a sequência gráfica nestes dois últimos manuscritos445: 441 Julgo que a separação e união de palavras, pelo menos, na 1.ª estrofe não é arbitrária. A observação mostra que vários casos obedecem a regras de acentuação e a encadeamentos justificados pela fonética sintáctica. Verifiquem-se, por exemplo, aquelas regras em A 16, A 26, A 51, A 76, A 155. Pelo contrário, a separação silábica nem sempre se submete às regras de acentuação. Problemas da interpretação dos mss. quanto à relação música e texto, música e métrica são estudados no significativo trabalho de S. Parkinson (1987: 21-55). 442 Há vários exemplos de maior espaço entre palavras que, sem corresponderem a rasuras, podem talvez ter explicação próxima da separação silábica, assinalados por Carter (1941), grande parte das vezes: pdí ca (A 25); sa coita (A 26); coita ca (A 57); meuq'rer gran (A 121); min en (A 185). A título exemplificativo, vejam-se outras ocorrências semelhantes, não assinaladas na edição paleográfica: end amor (A 43); quen uiuer (A 45); guisa leixades (A 47); creer mentira (A 48); ren ca (A 86); perderia se (A 190); ben auer (A 200); non morrera (A 227); non pessar (A 276), etc. 443 Indico alguns exemplos de desacordo, embora a avaliação seja embaraçosa: Carter (1941) assinala separação silábica que o ms. não apresenta de modo tão evidente como: en quanteu (A 50) / enquanteu (ms.); a qui (A 166) / aqui (ms.); a guisou (A 175) / aguisou (ms.); a uia (A 202) / auia (ms.); a chei (A 222) / achei (ms.); a quitar (A 242) / aquitar (ms.). 444 Com esta preocupação, procedi à análise destes casos e recupero aqui o ensaio que publiquei na Miscelânea in Memoriam Celso Cunha (Ramos 1995: 703-719). Com base nestes materiais analisados, M. Pedro Ferreira, retomou justamente há pouco estas ocorrências de separação silábica e apresentou algumas conclusões significativas a respeito da concepção musical dos modelos de A (Ferreira 2004). Parte da argumentação foi retomada na sua apresentação em Lisboa no Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) (Ferreira s.d.). 445 Represento o espaço silábico por três pontos, embora a distância milimétrica entre as sílabas seja desigual e a mudança de linha nos mss. é assinalada por barra oblíqua. Para localizar rapidamente e para a leitura do contexto, indico o número do verso na edição de A de C. Michaëlis e adopto, por fim, os critérios de G. Tavani, (1967), como em outros casos, nos incipit dos textos como nas siglas dos nomes dos trovadores. 313 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 1. A 2 =B 92 [VaFdzSend], Senhor fremosa, gran’enveja ei v. 1 grand en ... ue/ia (A) grãdenueia (B) 2. A 15 =B 108 [JSrzSom], De quant’eu sempre desejei v. 3 3. A 16 =B 109 [JSrzSom], Muitas vezes en meu cuidar v. 7 4. con ... sella ... do (A) consselhado (B) A 54 = B 166 [MartSrz], Meu sennor Deus, se vus prouguer v. 5 9. enquanteu ui ... uo (A)449 enquanteu uiuo (B) A 51 = B 163 [MartSrz], Mal consellado que fuy, mia sennor v. 1 8. fo ... ỹ morto (A) foy morto (B) A 50 = B 162 [MartSrz], En tal poder, fremosa mia sennor v. 3 7. quanto uos/ue ... iesey (A)448 quanto uosso ey esey (B) A 35 =B 150 [PaySrzTav], Como morreu quen nunca ben v. 4 6. consel ... lachar (A) conselhadjar (B)447 A 22 =B 115 [JSrzSom], Ja m’eu, sennor, ouve sazon v. 6 5. re ... ceỹ (A)446 receei (B) de ... uedes (A) deuedes (B) A 60 = B 171 [MartSrz], Tal om’é coitado d’amor v. 1 coi ... ta ... do (A) cuitado (B) 446 Há correção à margem: çeey. Carter leu ceey, mas a emenda possui claramente cedilha (1941: 10, n. 2). Cf. também S. Pedro (s.d.). 447 E. Molteni leu conselhadjar, mas a observação do ms. revela que pode tratar-se também de conselhachar, se considerarmos o <h> com um prolongamento na parte inferior que ultrapassa a linha, o que pode induzir a sequência <dj> e não <ch>, sendo o <d> resultado da haste superior do <h> (1880: 39, nº 83). 448 Carter apresenta: ie sey separado, mas no ms. está unido: iesey (1941: 15). 449 Carter desune en quanteu, contrariamente ao ms. (1941: 32). 314 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita v. 7 10. A 69 =B 182 [NuRdzCan?], Nostro Sennor, en que vus mereci v. 7 11. b) v. 6 toda ... uia (A) todauia (B) A 101 = B 208 [PGarBu], ay,mia sennor e meu lum’e meu ben v. 7 17. pec ... ad assi (A) peccadassi (B) A 99 = B 206 [PGarBu], Mais de mil vezes coid’eu eno dia v. 3 16. en ... cobrir (A) en ... cobrir (B) en ... sandeçi (A) enssandecí (B) A 95 = B 202 [PgarBu], Por muy coytado per tenh’eu v. 5 15. en ... cobrir (A) encorbrir (B)450 A 81 = B 184 a [NuFdzTor], Preguntan-me por que ando sandeu a) v. 4 14. mia ... gora (A) magora (B) A 77 = B 180 a [NuFdzTor], Que ben que m’eu sei encobrir v. 1 13. en ... durar (A) endurar (B) A 76 = B 189 [NuFdzTor], Quando mi agora for e mi alongar v. 1 12. coi / ta...do (A) coytado (B) com…e uos (A) come uos (B) A 122 = B 238 [FerGarEsg], Meu sennor Deus, venno-vus rogar a) v. 3 b) v. 7 om...é (A)451 home (B) per ... der (A) ider (B) 450 Molteni leu encorbrir. Na verdade, o ms. inclui outro grafema entre o <o> e o <b>, provavelmente <r> (1880: 77, nº166). 451 Este caso, que não considerei no momento do elenco, por me não parecer dos mais evidentes, foi sugerido por M. Pedro Ferreira (2004) na sua análise. 315 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 18. A 126 = B 241 [FerGarEsg], Punnei eu muit’en me quitar a) v. 7 ue ... ro/ya ... men (A) ue ... ro ... ya ... men (B) b) v. 8 uotr ome (A)452 u ... otromen (B) 19. A 129 = B 250 [RoyQuey], Nostro Sennor Deus, e porque neguei v. 6 20. a ... quele (A) aquele (B) A 142 = B 263 [RoyQuey], Preguntou Johan Garcia v. 3 toda ... uía (A) toda ... uya (B) 21. A 155 = […], [VaGil], Non soube que x’era pesar a) v. 1 pe ... sar (A) b) v. 2 seń ... ńor (A) c) v. 4 ui/ue ... r (A)453 d) v. 4 sen ... nor (A) e) v. 5 di ... zer (A) 22. A 156 = […], [VaGil], Punnar quer’ ora de fazer a) v. 1 b) v. 2 23. A 158 = […], [JSrzCoe? anon.?], En grave dia, sennor, que vus vi v. 29 24. guar ... de (A) (fiinda) A 159 = […], [JSrzCoe? anon.?], Meus amigos, que sabor averia a) v. 3 b) v. 6 c) v. 6 25. o ... ra (A) ol...los (A) quer... ria (A) ou/ues ... sen (A) dó ... ó (A) A 161 = [...], [JSrzCoe? anon.?], Eu me coidei, u me Deus fez veer a) v. 3 nun ... ca (A) b) v. 5 fa ... lar (A) c) v. 24 põ ... er (A) (fiinda) 452 De evidenciar que só parte do refran, após ue ro/ya men, foi emendada. O texto do revisor é ainda perfeitamente visível: ie, precedido do sinal de integração e q’ie soy uotr ome lige onde se deve corrigir que por q’ (Carter 1941: 76, n. 2 e n. 3; S. Pedro s.d.). 453 Embora não se trate de real separação silábica, dou também conta desta ocorrência, porque pode ilustrar um alongamento, uma paragoge ou, sobretudo, uma exigência melódica (Ferreira, 1986: 139, n. 7). 316 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 26. A 163 = [...], [JSrzCoe], Pelos meus ollos ouv’eu muito mal a) v. 1 b) v. 2 c) v. 3 27. A 165 = B 317 bis [JSrzCoe], Nunca coitas de tantas guisas vi v. 4 28. b) v. 6 en ... quanteu (A) enquanteu (B) per ... dudo (A) perdudo (B) A 207 = B 358 [JLpzUlh], Coyt’averia, se de mia sennor v. 5 35. me ... llor (A) melhor (B) A 205 = B 356 [JLpzUlh], En que afan que oge viv’,e ssey a) v. 2 34. ui ... uer (A) uiuer (B) A 200 = B 351 [JLpzUlh], Quand’eu podia mia sennor v. 4 33. que .. re (A) quere (B) A 195 = B 346 [RoyPaezRib], A mia sennor que mui de coraçon v. 5 32. o ... gei(A) oiey (B) A 191 = B 342 [RoyPaezRib], Un dia que vi mia sennor v. 3 31. con ... uen (A) conuen (B) A 190 = B 341 [RoyPaezRib], Tan niuit’á ja que non vi mi sennor v. 5 30. do ... e ... de u9 (A) doedeu9 (B) A 176 = B 327 [JSrzCoe], Da mia sennor que tan mal-dia vi v. 3 29. Pe ... los (A) pra ... zer (A) ual...uera (A) de ... la (A) dela (B) A 220 = B 387 [FerGvzSeav], Poys ouvem o mal que eu sofro, punhey v. 3 de ... uínar (A) devinhar (B) 317 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 36. A 221 = B 389 [FerGvzSeav], Nostro Sennor, quen m’og’a min guisasse v. 5 37. a ... o (A) ao (B) A 222 = B 392 = V 2 [PGmzBarr], Quand’eu, mia sermor, convusco falei a) v. 1 con ...uusco (A)454 con ... uusco (B) b) v. 4 a…chei (A) achey (B) c) v. 20 per... don (A) (fiinda) p don (B) perdon (V) 38. A 232 = B 422 = V 34 [JGarGlh], A bõa dona por que eu trobava v. 5 39. A 233= B 423= V 35 [JGarGlh], Amigos, quero-vos dizer v. 4 40. [C]ametre ... miassi (A) A 253 = [...], [PayGmzCha? anon.?], Pois mia ventura tal é, pecador v. 4 43. toda ... uía (A) A 239 = [...], [JGarGIh? anon.?], Esso mui pouco que og’eu falei v. 5 42. en...sandeçer (A)455 ensandecer (B) ensandecer (V) A 238 = [...], [JGarGIh? anon.?], Cuidou-ss’Amor que logo me faria v. 7 41. por ela ... nsandeçi (A) porel ensandeci (B) porel ensandecí (V) en ... quanteu (A) A 256 = [...], [PayGmzCha? anon.?], De quantas cousas eno mundo son v. 6 da ... quí (A) 454 Esta ocorrência foi também incluída por Ferreira (2004), mas este tipo de situação linguístca pareceme dos mais difíceis na inclusão de um elenco relativo à separação silábica. 455 Ocorrência acrescentada pela análise de Ferreira (2004). 318 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 44. A 257 = B 434 = V 46 [FerVelho], Pois Deus non quer que eu ren poss,aver v. 5 45. A 259= B 436 =V 48 v. 4 46. da ... qui (A) daqui (B) daqui (V) en...sandeçer (A)456 ensandecer (B) ensandecer (V) A 261 = B 438 = V 50 [FerVelho], Nostro Sennor que eu sempre roguei v. 2 que m ... amor (A) quemhamor (B) quemhamor (V) 47. A 289 = B 980 = V 567 [PPon], Se eu podesse desamar a) v. 1 des ... mar (A) desamar (B) desamar (V) b) v. 2 des ... amou (A) desamou (B) desamou (V) Como se vê, o distanciamento entre grafemas não é uma atitude sistemática no manuscrito da Ajuda, mas regista ocorrências em quase todos os cadernos457: às vezes, atinge só certas palavras, mas em outras ocasiões, atinge várias numa estrofe; são escassos os exemplos nas fiindas com previsão musical. Este fenómeno, aparentemente pouco ordenado, será devido à heterogeneidade do material ou ao copista que transcrevia, mais ou menos meticulosamente, o texto? Determinadas formas, que se encontram graficamente silabadas, poderiam justificar-se por não estar eventualmente concluído o processo da sua composição, o que conferia às suas unidades existência própria: en…durar (A 69) Mia…gora (A 76) con…uen (A 176) en…quanteu (A 205, A 253) 456 Trata-se de um exemplo idêntico ao anterior e, pelos mesmos motivos, considerado também por Ferreira (2004). 457 Só nos últimos cadernos XII e XIV não se registam exemplos equivalentes. No caderno XIII, nas ocorrências citadas de derivação prefixal, des amar e des amou em PPon, a separação é particularmente significativa, porque o copista utilizou o <s> sigmático, típico da posição final na escrita gótica, corroborando assim independência nos dois casos. 319 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio En…cobrir (A 77, A 81) En…sandeçi (A 81) ela ... nsandeçi (A 232) en...sandeçer (A 233) en...sandeçer (A 259) Toda…uia (A 99, A 142, A 238) Com…e uos (A 101) a…quele (A 129) de…la (A 207) a…o (A 221) da…qui (A 256, A 257) Des…amar, des…amou (A 289) Mas outras não oferecem qualquer dúvida quanto ao propósito deliberado de isolar as sílabas e, mesmo sem tratar dos critérios separativos, deviam estar em paridade com a posição dos neumas na pauta: En…ue/ia (A 2) Re…cey (A 15) Consel…lachar (A 16) Ue…ie (A 22) Fo…y (A 35) Ui…uo (A 50) Con…sella…do (A 51) De…uedes (A 54) Coi…ta…do (A 60) Per…der (A 122) Pe…sar (A 155) Sen…nor (A 155) Ui/ue…r (A 155) di…zer (A 155) o…ra (A 156) ol…los (A 156) guar…de (A 158) Quer…ria (A 159) ou/ues…sen (A 159) dó…ó (A 159) nun…ca (A 161) fa…lar (A 161) põ…er (A 161) pe…los (A 163) Pra…zer (A 163) ual…uera (A 163) do…e…de (A 165) o…gei (A 190) que…re (A 191) ui…uer (A 195) me…llor (A 200) per…dudo (A 205) de…uínar (A 220) per…don (A 222) por ela…nsandeçi (A 232) que m…amor (A 261) Esta atitude acrescenta novos elementos às provas circunstanciais, mas eloquentes, do modelo que continha a escrita musical notada458. Não limito essas provas às primeiras estrofes nem sequer aos casos de fiindas, importantes até por motivos organizativos, como já observámos. Não estamos apenas no plano do compilador (com um guia de cópia que prevê, por princípio, espaço nas primeiras estrofes459), mas perante um procedimento, à primeira vista aleatório, de copista que foi, pelo menos, em casos relativamente claros, fiel à disposição silábica do seu modelo. 458 Os ciclos, que contêm lacunas físicas no início ou no fim da série, são de mais difícil análise, mesmo se os textos que nos restam não apresentam separação silábica clara. Estão nestas circunstâncias A 180 a A 184 [JPrzAv? anon.?]; A 293 a A 302 [VaRdzCal]; A 303 a A 307 [MartMo]. 459 Podemos recordar a este propósito a situação da sexta cantiga no Pergaminho Vindel com espaço e pauta traçada (Ferreira 1986). 320 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Causa, no entanto, certa perplexidade a forte concentração do fenómeno em textos de trovadores que, por infortúnio, não são transmitidos pelos outros cancioneiros: A 155, A 156 [VaGil], A 158, A 159, A 161, A 163 [JSrzCoe? anon.?]. Algumas destas cantigas possuem previsão de espaço para a melodia na fiinda (A 155, A 158, A 159, A 161 com excepção de A 156 e A 163 que não usam o remate), o que demonstra dupla prova de modelo musical. Exemplos consideráveis, além dos trovadores citados, são visíveis em JSrzSom, MartSrz, NuFdzTor, PGarBu, RoyPaezRib, JLpzUlh, e, de modo mais raro, em VPSand, PaySrzTav, NuRdzCan, FerGarEsg, RoyQuey, FerGvzSeav, PGmzBarr, JGarGlh, PayGmzCha, FerVelho, PPon. Podemos conjecturar, por isso, que o material destes poetas continha, em certos textos, melodia transcrita. A análise promove outra ponderação acerca de textos que em A não apresentam outro indício de antecedente musical, além da primeira estrofe, quero dizer, qualquer nítida separação silábica nos lugares habituais. Nota-se, curiosamente, que esses casos dizem respeito, no essencial, a autores com número diminuto de textos, isto é, poetas com pequenos cancioneiros de uma, duas, três, ou mesmo quatro cantigas: A, 62, A 63 [RoyGmzBret? MartSrz?]; A 64 a A 67 [AyCarp]; A 185 [JPrzAv; Anon.?]; A 224, A 225 [AfLpzBay]; A 240, A 241 [EstFai]; A 242 a A 245 [JVqzTal]; A 265, A 266 [BonGen]; A 277 [Anon. β] ; A 278 a A 280 [Anon. γ]; A 281 a A 284 [PEaSol? Anon.?]; A 285 a A 287 [FerPad]; A 308 a A 310 [RoyFdz]. Esta verificação sugere, por agora, hipótese de material musicalmente diferente (mais pobre ou inexistente), para os limitados ciclos destes poetas em A. É presumível, portanto, que a maior parte destas palavras, separadas silabicamente em A, estejam unidas nos manuscritos posteriores, quer em B, quer em V, apesar de serem poucos os textos, neste confronto, transmitidos por este último manuscrito, se recordarmos que o modelo ou modelos seriam apenas antologias literárias e não musicais. Há, todavia, certas soluções gráficas que merecem apreciação. Em síntese teremos então, relativamente à tradição posterior, as seguintes resoluções: a) Casos em que se preserva a separação silábica em B e que podem ser explicados por estado linguístico ou scriptológico, independente da intenção de distanciar as sílabas: en... cobrir (A 81) en... cobrir (B 184) toda... uía (A 142) toda... uya (B 263) b) Ocorrências de resolução gráfica, motivada talvez por um espaço precedente: con ...sella…do (A 51) consselhado (B 163) pec…ad assi (A 95) peccadassi (B 202) 321 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio en…sandeçi (A 81) enssandecí (B 184a) que m…amor (A 261) quemhamor (B 438) quemhamor (V 50) c) Em outras circunstâncias, a variante de B parece provir de dificuldade na leitura ou interpretação da sequência gráfica no exemplar imediato ou anterior: quanto uos /ue... iessey (A 22) quanto uosso ey esey (B 115)460 por ella ... nsandeçi (A 232) porel ensandeci (B 422) porel ensandeci (V 34)461 d) A passagem de maior relevo é, porém, o advérbio patente no conhecido refran de FerGarEsg: ue … ro/ ya … men (A 126) ue … ro … ya … men (B 241) Se, nas formas precedentes, o modo de transcrever pode ser naturalmente explicado através do afastamento ou da uniformização da palavra, neste exemplo concreto (em provençal ou em francês)462, observa-se o preservar claro do isolamento silábico. O advérbio, ao não ser identificado, provavelmente, como palavra conhecida, provocou cópia tal e qual da sucessão gráfica que comparecia no modelo, semelhante, com certeza, à que conhecemos através de A. Aliás a fórmula sintáctica (sobretudo a incursão com or), o léxico e as rimas não parecem tratar- 460 C. Michaëlis leu: se non quando vus vej, e sei, substituindo quanto por quando e uos por vus (1904, I: 49, A 22, v. 6). 461 A leitura de Michaëlis conserva praticamente a sequência de A: E oraja por ela 'nsandeci (1904, I: 452, A 232, v. 5). De igual modo, Nobiling na sua edição transcreveu: e ora ja por ela 'nsandecí (1907:27). 462 É ainda controversa a identificação linguística de parte do refran de FerGarEsg. Trata-se de língua d'oc ou de língua d'oïl? Não comento as leituras e opiniões, como a de C. Stuart (1823) ou a de F. Varnhagen (1849-1850), primeiros editores de A, nem sequer a de F. Diez (1863: 111) que hesitava entre o francês e o provençal, embora se inclinasse pelo provençal; ou a de H. R. Lang (1895) que considerava em francês, ou mesmo a de C. Michaëlis que, mais de uma vez, se pronunciou pela língua d’oïl. Mais tarde, I. Frank (1949) interpretou, com reservas, o refran em provençal e M. R. Lapa inclina-se pelo francês. Todos estes estudos são mencionados nas análises mais recentes: Fernández Pereiro (1974: 130165) e ainda no seu artigo publicado em 1968, p. 19-68 [p. 64-68], chega à «conclusión firme de que son provenzales» os versos de FerGarEsg. Da mesma maneira pensa J. M. D’Heur em outro estudo «L'emploi de l'occitan dans le refrain d'une chanson d'amour de Fernan Garcia Esgaravunha» (1973b:105- 114). Os dois versos estão em francês é, pelo contrário, a opinião de G. Tavani expressa no Repertorio (1967: 248) e no seu curso universitário dedicado a Il Mistilinguismo Letterario Romanzo tra XII e XIV secolo [1981: 91]: «ai primi due versi portoghesi seguono gli altri due, francesi». Na edição das cantigas do poeta, M. Spampinato Beretta considera de novo: «La separazione scorretta delle parole mostra che né il copista portoghese di A né quello italiano di B avevano compreso il senso dei refran». Quanto à língua utilizada pelo poeta no refran conclui: «il testo dei due versi, in conclusione, e provenzale con alcuni errori (...)» (Spampinato Beretta 1987: 120-125). Reflecti sobre esta questão no ensaio publicado na Miscelânea de homenagem a G. Bossong (2008). 322 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita se de uma citação de um outro trouvère, de acordo com o que propõe o repertório de Nico Van den Boogard sobre Rondeaux et refrains (1969). O refran parece integrar-se no corpo da estrofe, através justamente de uma das rimas. A língua poética poderia apoiar-se também em uma espécie de amálgama de provençal (sachaz em vez de sapchtaz ou sapiatz) e do francês. Uma mistura que poderia explicar-se por esta preocupação de integração no meio poético galoromânico463: or sachaz ue ... ro/ya ... men (A) ar sachaz ue ... ro ... ya ... men (B) que ie soy u / otr ome lige (A) que iesoi u ... otromen lige (B) Este modo de escrita anuncia que o exemplar de B mostrava a palavra ue... ro... ya... men com as sílabas afastadas e até sem mudança de linha, como se pode, facilmente, imaginar, não se tratando, portanto, de separação incorrecta, como o interpreta Fernández Pereiro464. A causa efectiva foi, contudo, invocado por J. M. D’Heur no seu estudo dedicado ao poema de FerGarEsg: «L’adverbe est découpé dans les deux manuscrits en autant de syllabes qu’il comporte: la raison en est que l’original faisait coincider les syllabes du vers et les notes de la portée musicale» (1973b: 107). Quanto à segunda parte do dístico em língua estrangeira, o copista de B (mão C465) ou um seu predecessor, opera algumas mudanças ao unir ie...soy sem iesoi e ao separar uotr ome em u ... otromen, por admitir talvez <u> como forma autónoma em galego -português, transformando, pelo mesmo motivo, ome em omen, como já aludiu J. M. D’Heur466. Suponho que a separação silábica em B revela que a fonte imediata deste cancioneiro mantinha ainda aquele afastamento, provocado pelo condicionalismo musical, circunstância diversa das anteriores onde era impossível estabelecer se o propósito de separar sílabas ocorreria no antecedente imediato ou em outro mais afastado. As dúvidas gráficas, presentes na segunda 463 Recordo o caso da pastorela anónima, L’autrier m’iere levaz, / Sor mon cheval montaz / Sui por deduire allaz / Laz une praierie, onde só se pode explicar o v. 14, Quant la fui aprochaz, em rima com Dis li 'suer, car m'amaz, / Honorade en seraz / En tote vostre vie', por uma espécie de occitanização do francês aprochiez com uma rima marcada por <az> (Rivière 1974, n°. XLIX). Voltarei a referir a eventualidade de processos mistos de composição entre língua d'oc e língua d'oïl na análise de <ue ro ya men> no capítulo relativo ao uso de <y> e de <ch> e <z> em <sachaz>. 464 «La séparation incorrecte des mots montre évidemment que ni le copiste portugais du CA, ni l'italien du CBN n'en comprenaient le sens» (Fernández Pereiro 1974:159). 465 Pode observar-se a «Tavola delle mani» dos copistas de B, inserida no estudo de A. Ferrari (1986: entre 82-83; cf. ainda 84, 86, 104-105). 466 Estas modificações, que se verificam em B, e a respectiva interpretação que as aproxima do galegoportuguês deve ser alargada, da mesma forma, parece-me, à variante, ar sachaz de B, relativamente a A, or sachaz. As leituras de Fernández Pereiro (1974) e D’Heur (1973b) optam pela lição de B, ar sachaz, mas não se deverá pensar que ar pode ser mudança que se justifica por corresponder a um advérbio frequente nestas cantigas e, por conseguinte, mais familiar do que or para quem transcrevia textos em galego-português? 323 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio parte do refran, demonstram também que o exemplar, além de possuir o advérbio separado, devia apresentar a última frase, próxima das formas de A. A permanência das sílabas isoladas denota, assim, o carácter mais conservador de um breve texto em língua estrangeira, por ser, como é óbvio, menos reconhecível aos olhos de um escriba que copiava textos em galego-português. E revela-nos também que a tradição, pelo menos, em um refran (que se poderia conceber como como difícil para um copista467) que circulou com notação musical, ou apenas com espaço em branco a ela destinado, manteve durante mais tempo a marca musical, que nem sequer se esbateu em um cancioneiro (Colocci-Brancuti) com ausência quase total de vestígios musicais. Nos outros casos, as características gráficas – o preenchimento de espaço vazio por mais de um grafema –, que fogem à simples aglutinação, sugerem também um antecedente, relativamente próximo, onde se conservava ainda a separação silábica. Em V, pelo contrário, os poucos exemplos comuns a A nesta análise não permitem apreciar, mesmo globalmente, análogas atitudes separativas468. Em síntese, A possui vários indícios de antecedente com transcrição musical: primeira estrofe, algumas fiindas e, ainda nestas duas posições, diversas formas são separadas silabicamente, apesar de, em lugares definidos (pequenos cancioneiros), o único testemunho musical se circunscrever só ao espaço da primeira estrofe, o que pode fazer pensar, nestes casos, em um dispositivo para o aspecto textual e não necessariamente a um modelo com música. Em B e V, como sabemos, não se apuram quaisquer espaços para a notação musical, mas deduz-se que anterior separação silábica, concernente à música, deixou inteligíveis vestígios, pelo menos em B, o que gerou quer manutenção, quer variante que só pode ser explicada, afigura-se-me, por esta tendência física no exemplar. 467 Não parece possível uma identificação imediata deste refran a uma citação directa de algum dos trobadors ou trouvères. Nem Fernández Pereiro (1974), nem J. M. D’Heur (1973b: 113-114), encontram filiação directa para aqueles dois versos. G. Tavani (1981: 92-93) refere o problema da individualização da fonte, mas retém, sobretudo, o caráter de uma auctoritate ou «ornamento nobilitante», quer a citação seja real ou fictícia. Por meu lado, parece-me que, não encontrando a génese para os dois versos na reutilização de FerGarEsg, e tendo presente o processo linguístico na formação de palavras com elementos setentrionais e meridionais, o mais plausível é ver neste refran uma alusão não a uma ou outra língua, mas a todo o ambiente trovadoresco galo-românico (cf. capítulos relativos à análise de grafias <y>, <ch>, <z>). Acrescentarei a este carácter linguístico o elemento musical neste refran bilingue, ao recordar todo ele se apresenta com o tradicional espaço para a pauta musical. Seria a música, pelo menos, na segunda parte, um contrafactum, o que sublinharia a sugestão cultural? 468 Pode citar-se, no entanto, como exemplo, o v. 1, grauo ... iami (A 224); graiio ... ia mi (V 5) e grauoiamj (B 395) na cantiga de AfLpzBay, mas a separação em A não me parece muito nítida, apesar de assim ter sido considerada por Carter (1941: 130). Foi esta hesitação que me impediu de indicar este caso como eventual exemplo de manutenção de afastamento silábico em V, aliás mais pequeno do que se observa em B entre as sílabas do advérbio ue... ro...ya...men. 324 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A mais forte concentração do fenómeno situa-se em cantigas de trovadores que, por infortúnio, não se encontram copiados nos testemunhos posteriores, ou por lacuna ou por ausência pura e simples. Os casos em que não se observa a separação das sílabas correspondem, em geral, a poetas com poucos textos, o que faz conjecturar, como foi observado, um material musicalmente mais pobre ou mesmo inexistente para os ciclos breves do Cancioneiro da Ajuda. Esta reflexão sobre a separação silábica que tem como resultado uma reconstrução de sectores em que o compilador do Cancioneiro teve à disposição materiais musicais, foi há pouco, com base neste levantamento, desenvolvida com uma perspectiva musicológica (Ferreira 2004)469. Se a separação silábica documentava um material scriptológico particular, a cisão interna de uma sílaba vai denunciar uma consistência melódica essencial num determinado lugar da palavra. Manifestaria este facto que a separação ilustra um número muito mais elevado de notas sobre uma sílaba (ou sobre a sua vogal) o que, de modo quase claro, implica uma distribuição das sílabas em função do número de notas470. Segundo M. Pedro Ferreira, a separação gráfica intra-textual é indicativo sólido de uma oposição entre «densidade melódica normal» e «densidade melódica excepcionalmente elevada», ainda que esta marca não seja visível em muitos textos. O texto contínuo pode estar ligado a um estilo de articulação musical «simples» ou «silábico» (uma ou duas notas por sílaba) como um estilo «neumático» ou «melismático» (três ou mais notas por sílaba), o que não denota um estilo musical específico. O mais expressivo é notar que no Cancioneiro os doze autores envolvidos por este fenómeno distribuem-se um pouco por todo o códice, não apenas na zona das fiindas com previsão musical, mas também na primeira parte, no sector designado por Resende de Oliveira como Cancioneiro de cavaleiros. Os poetas que têm mais de uma composição com indícios de ter sido copiada de um modelo musicado são seis. Evidenciam-se JSrzCoe, com dezoito casos correspondentes a seis cantigas, JSrzSom, MartSrz e RoyPaesRib, cada um com três cantigas. Mas mais importante ainda me parece necessário notar um outro aspecto. Os autores em que M. Pedro Ferreira observa este comportamento musical têm, a maior parte das vezes, ligações ao território português (PaySrzTav; MartSrz, VaGil, JSrzSom; FerGarEsg, RoyPaezRib, PGarBu, JSrzCoe, e talvez ainda RoyQuey, JGarGuilh e JLpzUlh). Apenas três 469 A análise de M. Pedro Ferreira elimina algumas ocorrências, ou por poderem ser derivadas de constrangimento externo, ou pelo espaço não ser inequívoco. Estabelece para a sua interpretação um critério mínimo milimétrico na separação silábica e na própria cisão interna de sílaba. 470 Vale a pena insistir no comportamento extremamente rigoroso de quem copia. A correcta distribuição silábica não podia deixar de ser importante nem descurada na feitura deste códice. O valor musical do códice redefine-se também por este rigor. 325 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio deles tiveram maior permanência e contactos com a corte de Afonso X de Castela e Leão (MartSrz, VaGil, PGarBu e talvez RoyPaezRib)471. É, contudo, ainda expressivo que, aqui, não figurem os trovadores copiados na mesma zona do Cancioneiro da Ajuda como AyCarp, NuRdzCan, JNzCam. Recordo o pequeno número de cantigas e a provável ligação à Galiza, sem estarem directamente próximos da corte portuguesa. A transcrição de outros autores, como PPon, ligado à corte afonsina, não parece ter tido na base do seu ciclo materiais musicados, o que vai fortalecer a ideia de que a presença destes indícios, relacionados com a música, parece subordinar-se mais a Portugal do que a Castela. Acrescenta M. Pedro Ferreira «fosse porque os autores tivessem pessoalmente frequentado a corte, fosse porque, a partir de certo momento, aí tivessem circulado, com solfa, as suas composições» (2004: 200). Esta peculiaridade, acrescento, apoia também o largo sector de fiindas com previsão musical que abrange o grupo de poetas portugueses ou frequentadores da corte portuguesa. Ou o compilador responsável pela confecção do Cancioneiro tinha acesso privilegiado a fontes musicadas de procedência portuguesa, o que não ocorreria com as fontes musicadas de origem galega ou castelhano-leonesa; ou então, o acesso a fontes musicadas de proveniência, maioritariamente portuguesa, era mais importante no ambiente desta corte. É no terceiro quartel do século XIII que mais se vulgarizam os materiais musicados nas canções trovadorescas na corte portuguesa. Esta qualidade material não é inócua no contexto organizativo da cópia. Tratar-se-ia, por certo, de materiais de melhor qualidade472. Mais uma vez seria de pensar nos hábitos scriptológicos trazidos de França por Afonso III, quando pensamos que a notação nas Cantigas de Santa Maria não parece ser anterior à década de 1270 e esta data não deve estar muito afastada do que acontecia nas cortes senhoriais da Galiza. Na realidade, tudo levaria a pensar, e cito M. Pedro Ferreira, que «D. Afonso III, devido à sua conhecida ligação, enquanto conde, à cultura dos trouvères, introduziu na sua corte hábitos de inclusão de notação musical na cópia manuscrita da canção trovadoresca; isto não 471 Resende de Oliveira estabelece estes agrupamentos de acordo com critérios sociais e geográficos (1994). Esta sua opinião é retomada também na síntese sobre a constituição do Cancioneiro da Ajuda (Ramos-Oliveira 1993: 115-118). 472 Desta observação, M. Pedro Ferreira retira ainda algumas conclusões de natureza métrica-musical dependente da presença do melisma. As vogais mais privilegiadas pela ocorrência de melisma são naturalmente as mais abertas, mais adequadas à sustentação vocal: ‘e’ (dezanove casos), ‘a’ (dezasseis) e ‘o’ (doze). Os melismas distribuem-se por versos nas mais variadas posições dentro das estrofes, mas é interessante notar que há uma correlação positiva entre melisma e acentuação musical, por exemplo em JSrzSom, assim como uma aproximação entre RoyPaesRib (A 190, A 191) e MartCod. Casos de ritmo iâmbico, pausas sintácticas ou de realce semântico com a razom da cantiga como em A 60, A 95, A 159, A 161, A 165 (2004: 202). 326 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita teria sucedido senão muito mais tarde nos círculos senhoriais do norte-noroeste e na corte de Alfonso X (...)» (Ferreira 2004: 200-201)473. Esta interferência francesa reforça-se com a mudança no acto de notar a música na tradição galego-portuguesa. Volto a citar o musicólogo: «...o códice [das Cantigas de Santa Maria] mais antigo (proveniente de Toledo), provavelmente escrito entre 1270 e 1275, exibe uma notação caracterizada pelo regionalismo do vocabulário figurativo e pela grande ambiguidade mensural; esta notação, aparentemente experimental, pois não tem antecedentes directos conhecidos nem deixou descendência, foi substituída, por volta de 1280, por outra mais moderna, de matriz claramente francesa, aparentada com as escritas musicais do Pergaminho Vindel e do Pergaminho Sharrer» (Ferreira 2004: 201). Ao impor-se com tal evidência esta análise musical em um Cancioneiro, completamente desprovido de notação, não é possível não deixar de vislumbrar contornos do padrão cultural em que se arquitectou este objecto. 473 Ainda que não seja, hoje, possível desenhar um quadro completo do enorme papel desempenhado por Afonso III no seu regresso a Portugal e no abandono de seu condado de Boulogne-sur-Mer, estas parcelas musicais começam a adicionar-se, sobretudo à transmissão da Matéria de Bretanha e ao conhecimento da poesia dos trouvères (Castro 1976-1979; 1984b; 1993; Beltrán 1984; 1993; Ramos 2002; Ramos-Rossi 2006 [2002]). 327 Capítulo 5. Preparo e apresentação do fólio 328 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 6. Disposição do texto 6.1. A justificação. «Mise en texte» A justificação, termo muito exacto no âmbito da imprensa designa, aqui, a delimitação da superfície do fólio que deve receber a escrita ou, ao mesmo tempo, a base que assim é delimitada. A passagem da mise en page à mise en texte parece ténue. Na realidade, podem estabelecer-se dois momentos, o da organização do fólio (ou do caderno) para certo tipo de texto e a inclusão posterior do próprio texto com regras internas, que são independentes do que estava previsto no formato do fólio. Estamos, em parte, na presença de um opistógrafo, porque a regra de escrita nas duas faces do fólio não é omnipresente. Estes preceitos, contemporâneos da cópia, têm como principal propósito, a comodidade da leitura, o que significa que a mise en texte de uma canção épica, de um romance em verso, de uma canção com ou sem refran, ou de um texto religioso não obedece às mesmas regras. A mise en texte no Cancioneiro da Ajuda está, em primeiro lugar, dependente de um primeiro preceito que vai separar sempre a primeira estrofe das seguintes. As cantigas encontram-se transcritas pela primeira estrofe disposta de modo contínuo, sem separação regular de versos, embora algumas vezes se integre um ponto separativo, enquanto as outras estrofes estão copiadas com a estrutura verso a verso. A segunda norma, de maior amplitude, estará mormente conexa ao plano decorativo do Cancioneiro. O copista sabe de antemão que, em certos contextos, não deve escrever certas capitais a tinta preta (início de composição, iníco de estrofe, início de refran, início de fiinda, etc.), mas não ignora também que, no princípio de ciclo, tem de contar com um correcto número de linhas para a integração da miniatura e que o tipo de capital inaugural de ciclo lhe exige ainda uma acomodação ao seu traslado. Esta consciência é documentada pelas claras advertências aos decoradores (letras de espera, espaços acentuados, às vezes, por uma pequena linha que orienta a colocação da futura capital, mas também alinhamentos diversos em função do início diverso entre um verso integrado em uma estrofe e um verso relativo a refran ou a fiinda) que funcionarão não só como elementos de natureza estética, mas como factores que possibilitam maior conforto no uso futuro do códice474. O refran nem sempre é copiado de modo integral em todas as estrofes e algumas fiindas estão transcritas segundo os moldes da primeira estrofe475. 474 Como vamos ver no capítulo relativo à Decoração, estes critérios serão cruciais não só como guias de leitura, mas como indicadores de marcas atributivas e de ordenamento textual. 475 As siglas presentes em alguns casos de refran são referidas no capítulo referente à descrição paleográfica e a particularidade musical nas fiindas no capítulo que pormenoriza a tipologia dos espaços em branco. 329 Capítulo 6. Disposição do texto Não parece possível restabelecer os motivos que conduziram a certa hierarquização textual no interior do ciclo, mas não deixa de ser claro que, por exemplo, a primeira composição de um ciclo obedece sempre a critérios diferenciados (a sua colocação junto à miniatura e a sua grande capital filigranada). Podemos evocar o peso do modelo copiado, mas não podemos eliminar o engenho organizativo do responsável, seja ele resultante de um instigador de programa, ou proveniente de um meio profissional, subordinado a certas regras ou a uma particular tradição476. A preocupação permanente pela excelência e pela harmonia do fólio será marcada pelas simetrias entre colunas, pelo não iniciar uma composição em final de coluna, pela adaptação da extensão dos versos à esquadria, pelas abreviaturas em final de linha, pelo alongamento ou inserção paleográfica de alguns sinais para preencher a delimitação das linhas de margem de justificação. Nesta linha de procura modelar, não podem deixar de ser também referidos os processos correctivos, do erro incipiente às letras sopontadas à espera de rectificação, dentro do próprio texto477. A mise en page tinha calculado um quadro traçado regularmente e as linhas (mestras, directrizes, transversais) integravam, quase simetricamente, uma área que, mesmo nos cadernos finais com mudanças de pauta, é pouco variável, como vimos. A determinação do espaço destinado a receber o texto, como anteriormente se averiguou também, na preparação do fólio, exibe em todo o códice uma planificação sempre regular em duas colunas, apesar do trabalho preparatório das três mãos. Estas duas colunas não se encontram sempre preenchidas na sua globalidade, como foi também já descrito a propósito da interpretação dos espaços em branco. O intercolúnio é relativamente fixo no centro do fólio não se registando mobilidade desta coluna central de fólio para fólio ou de caderno para caderno. Muda apenas a medida desta disjunção nos cadernos finais, sobretudo, no caderno XII, como também foi já notado. Se a mancha textual se mostra praticamente uniforme em grande parte do códice, o apoio das linhas duplas verticais (colunetas) projectadas, em princípio, às pequenas iniciais para textos em verso (estrofes, refran, etc) não é regularmente aproveitado. É ainda visível que vários fólios subsistiram vazios sem cálculo material para justificação. Os textos não são numerados, não se encontram títulos correntes, nem qualquer outro tipo de rubrica indicativa, mas a ordem sequencial é, nas partes comuns, essencialmente a mesma dos outros cancioneiros posteriores. 476 Chamei já a atenção para as grandes diferenças de formato deste Cancioneiro, em relação a outros Cancioneiros europeus, que não se integram nestas dimensões. Mas apontei também a disposição textual muito mais compacta em códices provençais ou franceses, que se diferencia da imagem do fólio do manuscrito de Lisboa. 477 São tratadas à parte as indicações marginais que controlam e corrigem a cópia que implicaram rasuras ou que não chegaram a ser efectuadas. 330 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Resta apontar que esta justificação se apresenta como uma mancha textual não só com uma nitidez visível (livro para interpretação musical), mas com um apuro legível (livro para o canto). Se a estrutura dos cadernos parece então não ter tido em consideração um objectivo uniforme e concordante, podemos notar igualmente que o preparo do fólio para acolher o texto está também submetido à variação. O esquema de base parece obedecer a linhas mestras de configuração: certo número de linhas para a miniatura em início de ciclo; duas colunas de texto simetricamente divididas por um espaço intercolunar que também parece constante e duas margens à esquerda e à direita, abrangidas pela dupla linha vertical bem característica na transcrição de textos poéticos478. No entanto, este aspecto monocórdio não se mantém tão regularmente como poderia seria esperável nem nos vários testemunhos, nem no interior do próprio Cancioneiro da Ajuda479, como podemos comprovar através das respectivas reproduções480. O primeiro caderno não nos proporciona qualquer espaço, nem textual, nem separativo, mas no caderno II deparamos logo com uma primeira dificuldade na finalização de ciclo atribuível a PaySrzTav que não só nos deixa textos inacabados, como verosimilmente área pronta para acolhimento de outras cantigas481. Se confrontarmos também o ordenamento nos primeiros cadernos verificamos que o espaço destinado à colocação da miniatura é variável quanto ao número de linhas que lhe é destinado independentemente da mão que copia. No fl. 15/p. 107 (caderno III) e no fl. 47/p. 171 (caderno VIII), o número de linhas é oscilante, dezassete linhas no primeiro caso e treze linhas no segundo. À primeira miniatura não efectuada (ciclo de EstFai, fl. 65/p. 207) são reservadas dez linhas; no fl. 66/p. 209 (ciclo de JVaz) doze linhas; no fl. 67/p. 211 (ciclo de PayGmzCha), são deixadas treze linhas; no fl. 71/p. 219 (ciclo de FerVelh) doze linhas; no fl. 73/p. 223 (ciclo 478 A dupla linha vertical era característica da apresentação de textos poéticos latinos que evidentemente oferecia vantagem para a inserção correcta das iniciais de verso, colocadas justamente entre as duas linhas verticais. Um sistema portanto que se definiria por objectivos funcionais. Exemplos da tradição latina são largamente expostos por R. Raffaelli (1984: 3-24). 479 Gilissen utilizou este elemento codicológico com a preocupação de agrupar mss. ao aproximar objectivamente ateliers ou centros de produção com fabricos idênticos (Gilissen 1977). Este «outil privilégié de l’histoire du livre médiéval» não oferece naturalmente garantias absolutas à percepção de que um scriptorium produza sempre o mesmo tipo de «réglure», como o assinala E. Ornato (1997:44). Conhecem-se resultados do exame de diferentes mss., através de esquemas gráficos conclusivos, resultantes dos tipos de ordenamento do texto (em duas colunas e não em linhas contínuas; mancha completa, espaço ‘perdido’ entre as duas colunas, etc.) que é dependente não só da dimensão do formato previsto para o volume como da densidade textual. Mas este tipo de rigor não permite sempre delimitar espaços concordantes quanto à produção (Bozzolo et al. 1984: 209, 215-221). 480 A reprodução esquemática da preparação dos fólios relativos ao Pergaminho Vindel (reprodução da Ed. Ferreira 1986: 66-68) e ao Pergaminho Sharrer é bastante eloquente (Guerra 1991: 32-33). 481 A apreciação global da justificação em todo o códice pode ser completada com a análise do processo de réglure e, sobretudo, com a explicação da mise en texte, inferida a partir do sistema organizativo por ciclos de autores com os respectivos espaços em branco já examinados. 331 Capítulo 6. Disposição do texto de Bon Gen) treze linhas, etc. Mas limitemo- nos, para perceptibilidade da apresentação, ao espaço intercolunar. A distância separativa entre as col.a e col.b é flagrante entre os primeiros fólios e os últimos cadernos. Repare-se no exemplo do fl. 26/p. 129 (caderno V), no fl. 61/p. 199 (caderno X) onde observamos o trabalho da mão 1. No no fl. 75v/p. 228, mas sobretudo nos fólios seguintes deste caderno XII o espaço central é significativamente maior. Distâncias que podem oscilar praticamente da medida de base ao seu dobro, entre 1,7 a 3 cm. Não é só uma mudança de mão que se pode situar nestes últimos cadernos, mas uma alteração das linhas directrizes das simetrias da esquadria e mutações integrantes na configuração do material para estes cadernos482. Parece-me indicativo ilustrar as consequências destes dois momentos – o preparo do fólio e a inclusão textual –. A atitude dos copistas (ou do responsável pela cópia) perante o fólio e perante o texto vai revelar-se significativa também no exame da própria tradição manuscrita, se damos atenção à mise en page e quando ilustramos a mise en texte com o exemplo concreto do ciclo de um trovador profícuo no Cancioneiro da Ajuda como Pero Garcia Burgalês483. Esta consideração não se circunscreve apenas ao posicionamento do trovador em relação ao conjunto da colecção trovadoresca, mas ao encadeamento textual inerente ao próprio ciclo. Observe-se, então, o caso concreto da mise en texte do grande ciclo de PGarBu. Como vimos, é no caderno IV, no fl. 21, que se inicia a cópia das suas cantigas e é já neste caderno que registámos alguns aspectos que denunciam a postura do compilador perante o estádio do material de PGarBu antes da cópia no Cancioneiro da Ajuda484. A dispositio dos textos deste trovador vai mostrar-nos como se dispunha o material que serve de base à reprodução. O delineamento seguinte (Quadro 7) mostra como o corpus de PGarBu se integra em A. Há, em primeiro lugar, uma primeira estrutura que diferencia dois núcleos de tradição musical distinta com fontes de natureza diversa485: 482 Segundo Borges Nunes, a mudança de copista ocorre unicamente neste último sector (Ramos 1994), mas pressente-se já uma transformação de formas caligráficas do final do caderno X em diante. Esta modificação coincide, em parte, com a integração do ciclo de PayGmzCha. Mas a mudança técnica ocorre de facto no caderno XII com o conjunto de três ciclos de poetas anónimos, ainda que os dois cadernos finais demonstrem, de modo mais claro, a variação na morfologia paleográfica (Pedro s.d.). Cf. capítulo relativo à caracterização paleográfica. 483 Como será observado, no capítulo relativo à Decoração do ms., PGarBu é individualizado pela iconografia. A miniatura que lhe é atribuída apresenta o trovador com um chapéu, que foi rasurado em outros casos, como se fosse este o único trovador a quem se devia atribuir esta distinção. 484 Reenvio esta descrição para o capítulo relativo constituição dos cadernos (IV e V) onde se explicitam as condições textuais do ciclo deste trovador. 485 O esquema distributivo das fiindas presentes no Cancioneiro da Ajuda deixara sugerir esta primeira subdivisão do corpus de PGarBu (Ramos 1984: 19-22). Pelo estudo de A. Resende de Oliveira (1994) e de M. Pedro Ferreira (2004) é possível por um lado considerar que esta característica musical se aplicava maioritariamente à tradição portuguesa e à influência musical do norte de França. Cf. capítulos dedicados à transcrição das fiindas e à Decoração do códice. 332 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Quadro 7 – As fiindas no ciclo de Pero Garcia Burgalês Fólio Cad. Texto Fiinda sem espaço Fiinda com espaço 21v 22 22 22v 22v 23 24 25v 26 26v 27 27v IV IV IV IV IV IV IV IV V V V V 84 85 86 87 88 89 95 101 102 104 106 107 A 84 A 85 A 86 A 87 A 88 A 89 ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ ⎯ A 95 A 101 A 102 A 104 A 106 A 107 Mas além deste compartimento incontestável, é possível examinar com mais minúcia a constituição do ciclo do trovador burgalês ou, pelo menos, o estado em que ele se encontrava no momento de ser integrado no Cancioneiro da Ajuda. Podíamos admitir uma conjuntura que aclararia certo agrupamento dos seus textos486: Fonte 1 (duas cantigas sem fiinda) A 82/B 186a A 83/B 187a Fonte 2 (seis cantigas com material não musical) A 84/B 188a A 85/B 189a A 86/B 190 A 87/B 191 A 88/B 192 A 89/B 193 Fonte 3 (quatro cantigas com material incompleto em A, mas mais completo em B) A 90/B 194 A 91/B 195 A 92/B 196 A 93/B 197 486 Não pretendo reconstituir, de modo irrepreensível, um conjunto de fontes diferenciadas ou hierarquizadas no interior do bloco de cantigas de PGarBu, mas procuro mostrar como, através de elementos concordantes, se pode imaginar uma organização, uma matriz, mais ou menos, clara no antecedente que se deixará transmitir no actual códice por uma procedência codicológica não homogénea e ainda não definitivamente estruturada. O editor P. Blasco não diferencia estes diferentes momentos, nem individualiza lacunas materiais (como na cantiga A 94 e A 95) de uma ausência textual ao nível da cópia (como a inexistência de estrofes em A 90, A 91, A 93, A 95). Ao assinalar que B «vient complèter» estes casos, não menciona que os textos incompletos A 98, A 99, A 100 permanecem igualmente inacabados em B (Blasco 1984: 49). A situação destas cantigas não pode ser portanto considerada de modo idêntico. 333 Capítulo 6. Disposição do texto [Lacuna material] A 94/B 198 [...]/B 199 [...]/B 200 [...]/B 201 Fonte 4 (material musical / sem fiinda) A 95/B 202 A 96/B 203 A 97/B 204 Fonte 5 (três cantigas com material incompleto em A e em B) A 98/B 205 A 99/B 206 A 100/B 207 Fonte 6 (seis cantigas com material musical) A 101/B 208 A 102/B 209, B 210 A 103/B 211 A 104/B 212 A 105/B 213 A 107/B 216 Fonte 7 (três cantigas sem fiinda) A 108/B 217 A 109/B 218 A 110/B 219 Assim, o material de PGarBu é não só disposto em dois blocos (fiindas sem música e fiindas com música), mas a mise en texte permite ainda conjecturar algumas subdivisões no interior do ciclo com critérios associados à tradição musical e ao material deficitário ou insuficiente. Este exercício de observação da mise en texte de apenas um ciclo de um trovador mostra como, no momento em que foi confeccionado o Cancioneiro da Ajuda, o corpus de PGarBu chegou ao compilador. Não só um material que parece afirmar-se através de particularidades codicológicas distintas (fiindas com diferente tradição musical), mas sobretudo material truncado. Ao deixar espaço para as estrofes que faltavam, está o compilador a dizer-nos que aguarda nova fonte (ou que tem a possibilidade de ulteriormente poder ter acesso a outro material), o que não é irrelevante perante esta escassa tradição lírica galego-portuguesa. Mas ao não prescindir da intenção de melhorar o sua cópia, está ainda o compilador a advertir-nos que a 334 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita transcrição deste Cancioneiro não é simplesmente uma cópia de um objecto concluído (um protótipo ou um modelo já finalizado), mas a orientação da sua cópia espelha um trabalho em curso, como se ainda estivéssemos no estádio da colecção ou da colação dos materiais. Este aspecto fará elevar A para uma fase ainda mais alta na tradição487. Por outro lado, as incorrecções que sobrevêm em B, motivadas por uma dispositio textualis não muito diferenciada de A, sobretudo com os casos de fiindas interpretadas como cantigas autónomas, prenunciam que o antecedente material do corpus de PGarBu estaria mais completo em alguns casos, mas em outros a imperfeição textual persistia. Este material de natureza invulgar, se atendermos aos outros casos em que as fiindas não apresentavam esta mesma característica, vai fomentar em B, ou nos seus antecedentes, um erro interpretativo quanto à noção da estrutura da cantiga. Quem orienta a cópia, ou quem copia, interpreta estas fiindas duplas ou quádruplas como cantigas independentes. Este equívoco só se pode explicar porque estas fiindas possuíam no antecedente uma «mise en texte» com transcrição idêntica à da primeira estrofe com disposição material para a cópia da música. Estes casos são avaliados como se fossem a primeira estrofe de uma cantiga ou fortuitamente como composição monostrófica. E mesmo a numeração de B, em que Colocci assinala várias vezes no sector deste trovador a palavra cõgedo ou congedo, não se apercebe de que B 210 e B 215 não constituem textos autónomos, mas fiindas relativas ao texto precedente488. A dificuldade submete ainda o copista à repetição da mesma fiinda em B 215 em forma de estrofe de seis versos489. Além disso, estes erros em B vêm também comprovar que o lado direito do stemma difundia uma imperfeição textual que só se pode conceber através de um modelo (textual e musical) análogo ao que serviu de suporte a A. A transcrição correcta em B de fiindas múltiplas (A 87/B 191 com três fiindas) corroboraria igualmente a subsistência de um modelo paralelo ao de A, em que as fiindas se reproduziam sem previsão musical490. A análise destes parâmetros referentes à mise en texte, embora limitada a esta zona de A, não se adequa apenas a uma pesquisa supérflua e estéril da forma como foram reproduzidas as 487 Os principais estudos sobre a tradição manuscrita da lírica galego-portuguesa devem-se a Tavani que a teorizou metodologicamente desde 1967. Trabalhos posteriores vieram contribuir para a reflexão relativa aos diferentes testemunhos. Uma pormenorizada síntese sobre a questão com referência às diversas opiniões é apresentada por Gonçalves (1993) e complementos ulteriores em Tavani (1999). 488 As apostilas referidas como «notas coloccianas» forma examinadas, em primeiro lugar, por V. Bertolucci (1966: 13-30; 1969: 197-230) e por Brea-Fernández Campo (1992: 41-56). 489 C. Michaëlis assinalou esta repetição, mas não interpretou o erro como dependente de um modelo que teria tido as duas fiindas dispostas para a música (Michaëlis 1904, I: 219). 490 Observamos já esta situação na descrição do início do caderno V, onde são bem visíveis as indicações marginais para o decorador de «fíjda» para os diferentes versos finais da composição A 102 (fl. 26r) e com a precisão de «outa» para a cantiga A 103 [PGarBu]. 335 Capítulo 6. Disposição do texto cantigas, mas a uma chamada de atenção quanto a casuais apreciações a respeito de afastamentos ou similitudes entre A e B. 6.2. As dimensões da justificação A altura da justificação é calculada entre a primeira linha e a última linha do texto, tanto na lombada como na goteira de cada uma das colunas. A largura insere o espaço entre as colunas da pauta (Quadro 8). Não procedo a uma medição sistemática, mas esta sondagem concretiza a relação entre a totalidade do fólio e a organização do texto e faculta a percepção textual e, ao mesmo tempo, mostra que as singularidades emanam quase sempre do comparecimento de miniatura, da presença de pauta na margem superior ou inferior, ou de textos incompletos. Constitui este facto que o respeito pelo traçado da pauta e pelo quadro da réglure, se comprova, em geral, e que são as vicissitudes da mise en texte que fomentam a variabilidade. A flutuação não procede, portanto, de uma inconstância material, mas de uma flutuação textual que não se restringe a uma ou outra secção, mas a quase todo o Cancioneiro. Quadro 8 – Medidas da justificação fl./ p. cad. I cad. II cad. III cad. IV cad. V cad. VI cad. VII cad. VIIa cad. VIII cad. IX cad. X cad. XI cad. XIa cad. XII XIII cad. cad. XIV cad. XIVa 1/79 13/103 15/107 24/125 26/129 33/143 40/157 46/169 49/175 57v/192 61/199 70/217 74/225 78/233 79/235 85/247 – Alturas na lombada 343 372 302 345 335 371 362 361 341 368 341 372 208 368 230 358 – Larguras na goteira 373 372 295 348 338 371 – 359 369 375 180 372 363 373 331 365 – na cabeça 220 225 228 226 224 225 – 222 220 226 221 223 – 225 – 216 – no pé 222 225 223 225 218 225 – 220 222 225 – 224 212 224 223 219 – 6.3. Linhas preenchidas Não se tratando de um modo idêntico de escrita em cada cantiga, o que ocorre nas primeiras estrofes – escrita contínua – na qual todas as letras (e todos os versos) se seguem com intervalo regular, é diferente do que sucederá nas restantes com transcrição diferenciada – escrita linha a linha –. Será necessário ponderar, nas situações de reconstituição textual, que a ocupação das 336 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita linhas de uma composição estará em todo o manuscrito sempre dependente deste critério, independentemente dos copistas que a copiam. Como vamos observar, no comentário a alguns comportamentos grafemáticos, não são poucos os casos em que não há sempre marca de espaço entre palavras, quer na primeira estrofe, quer nas seguintes. O corte não é sempre efectuado, o que significa que podemos evocar contextos de escrita aglutinada, ligada a fenómenos explicáveis pela sintaxe, mas também registámos escrita silábica em função da presença de notas musicais. Logo no fl.1r, exemplificação em A 1, <mentreu>, <ogeu>, <damor>, <eno>, <quãteu>; em A 2, <eno>, <demin>, <estora>, <nullen>, <façeu>, <quantora>, <comeu>, <daq'sta>, <mende>, <comeu>, <seo>. A escrita silábica é notória também neste fl. 1r em A 2, <en...ue /...ia>. E voltará a comparecer no fl.4r em A 15 <re...ceỹ>; no fl. 12v, A 51 <con...sella...do> ou no fl. 14v em A 60, <coi...ta...do>491. O aproveitamento das linhas obedecerá a um esquema muito elementar. A mudança de linha será sistemática a partir da transcrição da segunda estrofe, isto é, cada verso ocupará uma única linha. A capitalização será só analisada de acordo com a estrutura formal do texto (cantiga, estrofe, refran, fiinda)492. É com esta concepção de verso a verso que se marcará a diferença entre alguns versos através da escrita reentrada, quer dizer o início de escrita ocorre após pequeno espaço em branco (o refran pode estar reentrado, assim como a fiinda) como na primeira cantiga em que é adoptado o refran, no fl. 3v, A 12 ou no fl. 8v, A 34 em que a reentrância é, de certo modo, preenchida pela inicial decorada493. Nem sempre reconhece o refran, podendo transcrevê-lo como verso simples, sobretudo nos casos de refran de um único verso, como no fl. 13v, A 56. As fiindas convencionais são tratadas com entrada de linha como no fl. 21v, em A 84; no fl. 22r, em A 85 e A 86; no fl. 22v, em A 87, as fiindas triplas possuem, cada uma delas, uma reentrada de linha; neste mesmo fl. 22v, A 88 e no fl. 23r com A 89, o copista mostra o mesmo desalinhamento intencional. As fiindas com previsão musical auferem o mesmo tratamento com saliência para inicial decorada, notando-se apenas uma diferença de grandeza no tipo de capital, 491 Todas estas ocorrências são analisadas no capítulo relativo à separação silábica e à sua correspondência musical. 492 As características dos elementos relativos à capitalização encontram-se no capítulo relativo à Decoração.Alguns processos técnicos observados na transcrição do refran, por definirem uma competência paleográfica, são referidos no capítulo que se ocupa da caracterização da Escrita. 493 Com a cópia em escrita contínua, o copista não assinalou, nestes casos, a marca de refran na primeira estrofe (em A 34, está rasurado). No capítulo relativo à caracterização da Escrita, introduzo elementos relativos à particularidade da transcrição do refran. 337 Capítulo 6. Disposição do texto em relação aos casos assinalados anteriormente (no fl. 24r, A 95; no fl. 25v, A 101; no fl. 26r, A 102; no fl. 26v, A 104; no fl. 27r, A 106, e no fl. 27v, A 107)494. O parágrafo francês é quase sempre aplicado no incipit de cada cantiga, não só na inaugural de ciclo com a grande capital, como em todas as outras de interior de ciclo, quer dizer que a escrita desta linha não é paralela ao alinhamento dos outros versos495. Com esta disposição de inícios de linha evidencia-se a estrutura da estrofe que não demonstra qualquer outro distintivo interestrófico. É, no fundo, a sucessão de diferentes reentrâncias que vai determinar a identidade estrófica, ou a construção da composição (meestria, refran, duas, três ou quatro estrofes, fiinda, etc.). A harmonia do paralelismo no alinhamento à esquerda pode ser compensada pela implantação decorativa. Nos fólios desprovidos de iniciais rubricadas, esta irregularidade de inícios de linha é particularmente nítida (fl. 29r, fl. 29v, fl. 30r, fl. 30v, fl. 31r, fl. 31v, fl. 32r). Não é surpreendente que os finais de linha em uma transcrição, verso a verso, se apresentem com uma escrita dentada, de linha para linha, em função da extensão do verso. Claro que, em muitos destes casos, não é possível a aplicação dos preenchimentos de finais de linha. Algumas vezes, a última letra é modificada em letra esticada ou o pequeno espaço é completado por alguns sinais verticais que preenchem o final da linha. Este desempenho sobrevém unicamente na primeira estrofe (em escrita contínua), em geral com a mão 1. Observe-se, no fl. 1r, o <r> esticado de <por> na primeira linha da col.b; no fl. 6r e no fl. 8r, o <s> em <uos>; no fl. 7v o <s> de <deus>; no fl. 44r são vários os casos com <r> em <fazer>, <saber>, <sabedor>, <sennor>, <fazer>, <seer>. Os pontos verticais abonam o preenchimento de final de linha também nos fl. 1r, fl. 2v, fl. 3v, fl. 5r, no fl. 44r, etc. com três pontos colocados na vertical no espaço UR. Não há separação interestrófica, mas é sustentável afirmar, em suma, que a transcrição textual do Cancioneiro da Ajuda obedece a um princípio de colagem à métrica – colometria –, em que a disposição de linhas de escrita põe em evidência a versificação, ligada às iniciais rubricadas que se incorporam às relações de subordinação métrica. Um procedimento, dir-se-ia, quase moderno na reprodução deste tipo de textos. Indico, no Quadro IX-Anexo, o número de linhas preenchidas ao longo do manuscrito, que proporcionam a imagem da regularidade de ocupação dos fólios. 494 O levantamento destes casos é mencionado no capítulo relativo à transcrição das fiindas. Podemos observar a excepção do incipit com <I> na cantiga de abertura de ciclo, no fl. 18r, A 70, de NuFdzTor que, ao ter uma morfologia vertical, não permitiu entrada de linha. Todos os versos desta primeira estrofe têm um início de linha absolutamente paralelo. Observe-se também a mesma situação no fl. 11r, A 45 e no fl. 53v com A 204. 495 338 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 6.4. Anotações marginais 6.4.1. De copista a artista. De artista a artista Ao não subsistir qualquer sugestão, como vimos, que pudesse estar em conformidade com um intitulativo, com rubrica ou com uma das partes do texto postas em valor (uso particular de tinta ou de variação de escrita para a abertura de cada um dos ciclos) sobram-nos as menções fora de texto através de elementos anexos que podem indicar-nos fases intermédias na elaboração da recolha496. Os vários tipos de notas que se encontram no lado externo à justificação devem ser qualificados em conformidade com a cronologia e com o conteúdo, porque a simples leitura anuncia discrepâncias que dependem do período em que aquelas notas foram colocadas. A acumulação destas anotações garante-nos não só a evidência de um manejo do Cancioneiro, além da cópia do texto primordial, durante a fase da preparação, como um uso ulterior denunciado pelos apontamentos de vários utilizadores. São de vária índole estas notas que se encontram, comummente na margem da lombada, da goteira e, em mais pequeno número, na margem inferior. Desde a edição de C. Michaëlis que são, mais ou menos, conhecidas estas «Notas marginais em cursivo» que foram pela filóloga qualificadas em três grupos: «1º) meras correcções de erros; 2º) avisos practicos do escrevente ou revisor para o pintor das maiusculas e copista da notação musical; 3º.) reflexões de varios leitores que se entretiveram a recamar a obra dos antepassados com glosas, ora serias, ora galhofeiras» (1904, II: 167). Grande parte destas achegas textuais foi colocada nos comentários às cantigas (secção IV Varia)497. S. Pedro agrupou-as diversamente, avaliando três tipos de marginalia: as anotações marginais, que sudivide entre instruções técnicas para os decoradores do manuscrito e notas do revisor e do corrector. Por outro lado, tal como C. Michaëlis, descreve as anotações marginais tardias de leitores e, por fim, as anotações com as marcas de posse e escritos espontâneos498. O exame técnico permitiu instaurar desigualdades entre estas disposições especiais com mais de 496 Os únicos sinais marcadores de evidência textual provêm da utilização das iniciais delineadas através de tipos ou de um módulos fundados sobre uma ordem de prioridade entre elementos inconfundíveis (cf. capítulo relativo à Decoração). 497 É nesta secção que C. Michaëlis inclui este tipo de comentários. Exemplificação deste tipo de indicação em A 1, A 2, A 3, A 10, A 15, A 16, A 20, A 21, etc. (1904, I: 6, 8, 10, 24, 36, 38, 46, 48). Mas não se pode afirmar que tenha dado particular importância aos aditamentos ou às remissões. Considera-as como meras revisões dependentes das imprecisões de cópia de quem transcreve, mas assinala-as muitas vezes no aparato, acolhendo-as ou não, em conformidade com a sua opção editorial (1904, II: 167; 170173). 498 Foi no Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) que S. Pedro apresentou esta nova repartição, tendo utilizado critérios de confronto cronológico e paleográfico (Pedro s. d.). 339 Capítulo 6. Disposição do texto uma mão nas notas coetâneas da cópia (revisor e corrector) e nas notas tardias (mão A, mão B, mão C, mão D). Além da proveitosa tipologia, afigura-se-me, que a classificação deve ser aprontada sob regras de um inter-relacionamento regular entre quem introduz estes acréscimos textuais e os motivos que podem aclarar a sua interposição. Diria, assim, que devemos principiar pelas indicações efectuadas por quem copia o texto que se manifestam por dois tipos de precaução: a) de copista para artista As indicações manifestam-se através de diferentes letras de espera que anunciam o tipo de decoração das várias maiúsculas que iniciam o ciclo, a composição, a estrofe, o refran e a fiinda499. Por outro lado, é também aplicada uma recomendação, escrita por extenso, também da responsabilidade de quem escreve, da palavra fijda para bem elucidar o trabalho do decorador quanto ao tipo de capital a introduzir em alguns destes contextos situacionais500. b) de artista para artista Outra sumária comunicação, de índole ornamental, não deve ser já concedida ao copista do texto, mas ao artífice que efectiva os primeiros elementos decorativos nas miniaturas iniciais, isto é, só se pode interpretar a referência ao açafrã (com outras variantes gráficas) como um informe quanto à natureza cromática do revestimento da miniatura. A informação prestada tanto pode dirigir-se a outro artista que aporia esta cor no fundo da miniatura, como poderá constituir uma espécie de memorandum do próprio técnico que está a dar forma colorida à miniatura501. 6.4.2. Revisor textual 1 As correcções, em número bastante elevado, alteram vários textos de um certo número de autores, com exclusão dos três últimos cadernos. Há, no entanto, séries de poetas sem qualquer interferência, mesmo no interior das zonas que denunciam colação e ainda textos emendados que não se adequam a comentário, porque são testemunhos únicos. 499 A análise da diferente morfologia das letras de espera permitiu a S. Pedro uma individualização paleográfica na transcrição textual do Cancioneiro e, ao mesmo tempo, sublinhar a existência de dois padrões de comportamento diferenciados, um, mais regular que S. Pedro atribui às características do scriptorium, outro, mais livre e mais individualizado, dependeria da competência dos próprios copistas (Pedro s. d.). 500 A escrita por extenso de fijda comparece em casos de fiindas com disposição particular, devido à representação musical. Mas, nem todos os casos foram assim designados. Cf. o capítulo referente à Decoração. 501 Por não estarem directamente implicadas no conteúdo textual, referir-me-ei a estas notas informativas no capítulo relativo à Decoração. 340 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Dignas, porém, de maior apreciação são, neste contexto, as notas que estabelecem relação directa com a justificação502. Em um rápido escrutínio, apreende-se que estas indicações marginais serviriam para corrigir enganos, equívocos ou desacertos de copista não reparados no interior do texto, como muitas vezes sucede nos códices deste período503. Negligências, talvez involuntárias, que não são rectificadas no decorrer da cópia pela mão que copia. Não se trata, nestas circunstâncias, portanto, de erros incipientes, imediatamente aperfeiçoados pelo copista por um próprio self-correction (Diller 1936). Não são estes casos denunciadores na sua íntegra de imperfeições de cópia das quais, no acto da escrita, o copista consegue ou tenta corrigir-se, como bem demonstrou A. Ferrari na sua análise ao Cancioneiro Colocci-Brancuti504. As vantagens da análise destes erros, ou seja, a análise da «immagine paleografica-visiva dell'antecedente perduto» tinham sido postas em evidência por A. Roncaglia em deliberações de restituição textual (1993). Mas o contexto das reformas textuais no Cancioneiro da Ajuda provarão que não houve percepção da falha no acto da cópia. Estes casos não parecem ser especificados pelos vários tipos de erros comuns em manuscritos deste período (visíveis, mnemónicos, mecânicos ou psicológicos505). São, assim, apontadas as emendas no Cancioneiro da Ajuda, através de vários sinais convencionais e funcionais que podem corresponder a pontinhos de supressão, a um par de pequenas barras oblíquas unidas por um traço horizontal ou ainda outro tipo de traços oblíquos que especifica a inserção de letras, sílabas, palavras ou, de modo mais circunstancial, de um ou outro verso506. Mas também se observa a correcção mais agressiva que elimina a palavra, ou 502 São bem conhecidas estas intervenções na transcrição de manuscritos. Já Florence E. De Roover pormenorizava esta prática no seu ensaio relativo à actividade do scriptorium: «...When the copyist had completed his transcript, it passed into the hands of a 'corrector'...who collated it with the original...word for word with the exemplar; and if the exemplar appeared to be incorrect, to compare it other manuscripts...The corrector might indicate all errors in the margin with a lead stylus...» (De Roover 1957: 603-604). 503 Assim são interpretadas por C. Michaëlis: «De uma letra muito fina, miudinha, facil de rasurar, foram traçadas por quem, tendo o dever e o empenho de não afear o codice, calculava que seriam apagadas por meio de raspadeira ou de corrosivos, mal tivessem cumprido o seu destino. – Devem ser portanto obra do proprio escrevente (a quem estou disposta a attribuir as correcções, executadas sem auxilio de notas marginaes); ou então provêem de pessoa, incumbida por quem mandara coleccionar as trovas, de revêr o treslado e vigiar pela sua absoluta fidelidade. Neste caso seriam tambem do revisor, e não do escrevente, as minusculas lançadas, com a mesma tinta adelgaçada e de traço igualmente fino e elegante, nos claros deixados abertos para as iniciaes de côr» (1904, II: 167). 504 O incipiens error no Cancioneiro Colocci-Brancuti foi estudado por meio de uma tipologia do erro por A. Ferrari que, com um atractivo título, «Sbagliando (loro), s'impara (noi)...», explicitou parte da tradição textual de B, baseada neste recurso (Ferrari 2001). 505 A classificação tipológica dos erros de cópia são descritos e exemplificados por A. Roncaglia, tendo presente o mecanismo da leitura e o surgimento do erro motivado pela memorização, pelo ditado interior ou pela execução manual entre o exemplar e a cópia (1974-1975). O problema da transliteração dos exemplares foi também minuciosamente analisado por A. Dain (1975: 95-158). 506 A especificação de todos estes processos de chamada para a localização da emenda encontram-se com reprodução fac-similada na análise paleográfica de S. Pedro em publicação (s.d.). 341 Capítulo 6. Disposição do texto parte da palavra, por um traço horizontal ainda que estivesse disponível a exclusão por sopontadura. Não é imprevisível que um trabalho, em coerência com o seu volume, tenha exigido nova leitura, mais minuciosa, atenta aos desvios da cópia. Averiguar-se-á que grande parte destas rectificações parecem ser apenas anotações pouco extensas, delimitadas ao que se poderia ponderar, na verdade, como pequenas faltas de precisão de copista507. Nestas intervenções marginais correctivas, é possível considerar o trabalho de duas mãos, uma (revisor 1) com particularidades distintivas de uma letra, definida por uma minúscula gótica cursiva, leva a uma cronologia idêntica à da confecção do Cancioneiro (finais do século XIII, princípios do século XIV)508; outra (revisor 2) tem intervenção mais consistente com emendas mais extensas, mas a letra cursiva de pequeno modúlo é datável também do mesmo período. S. Pedro apelida-o de corrector por considerar que é esta a mão que introduz as emendas previstas pelo precedente revisor e por apresentar, além disso, anotações textuais mais amplas. Assim sendo, podemos caracterizar cada uma destas ingerências textuais. Podíamos evocar para o revisor 1, a título de exemplo, para esta mão, correcções como a que se encontra à margem do v. 3 de A 15, <çeey> que modifica a parte final de <re çeỹ> (fl. 4r). Mas também é permissível notar ainda retoques mais simples, reduzidos a uma simples letra. Veja-se a integração de <e> em A 4, v. 7 relativo a <creed> (fl. 1v); a mesma vogal faltaria em A 14, v. 15 para o final de <ouuess> (fl.4r); em A 24, v. 11, um provável <da> inicial apresenta a substituição da vogal final <a> em <e>, corrigindo para <de> (fl. 6v); em A 29, v. 28, um <e> completa a forma <mort> (fl. 7v)509; a mesma vogal, <e>, é ainda proposta em A 51, v. 23 para <morte> que permanece praticamente unido a <ca> com a introdução de <e> (fl. 12v). Conjuntos de sílabas ou vocábulos monossilábicos são também apontados como nas seguintes ocasiões: <ám> em A 19, v. 19 que, após rasura, a forma será corrigida para <aueran> (fl. 5r). Não é improvável que a primeira transcrição contivesse a variante idêntica à que encontramos em B 112 com a terminação <iam>510. A forma <log> comparece à margem de A 47, v. 19 (fl. 11v) que, inicialmente, não a deveria conter, como se pode comprovar também por B 159 onde falta este vocábulo <mays tolhemen daq'ste cuidar>511. A sílaba <meỹ> em A 104, 507 Estes elementos de correcção caracterizariam assim um trabalho relativamente atento quanto à qualidade textual da cópia do Cancioneiro da Ajuda. 508 Uma técnica profissional e mudanças de pena que ilustram uma prática regular de escrita (S. Pedro s.d.). 509 A sequência no Cancioneiro apresenta <mort ca uiuer>. A indicação marginal com <e> está assinalada no final d <mort>. Carter considerou que se tratava do <c> de <ca>, mas o <e> é claro (1941: 20, n. 4). 510 C. Michaëlis editou a forma como log' averian com base na variante de B 112, loga u'iam (Michaëlis 1904, I: 43; Molteni 1880: 41). Carter assinalou a emenda e a rasura (1941: 13, n. 1). 511 A inserção em A provocou rasura de parte do verso (Carter 1941: 30, n. 2). C. Michaëlis refere-se à deficiência métrica do cancioneiro colocciano (1904, I: 101). 342 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita v. 16 (fl. 26v) corrige a sequência <mey pauor> com uma rasura após <y>, com um espaço visível resultante da eliminação de talvez um <a> (Carter 1941: 63, n. 1). Ainda com estas características, encontra-se, várias vezes, o monossílabo <eu> a integrar em A 166, v. 12 (fl. 42v) que apresentava a sequência <pola ui nunca ui tan amada>. O sinal de integração, ao preceder o primeiro <ui>, levou C. Michaëlis à leitura poi'-la eu vi, nunca vi tan amada (1904, I: 332). A deficiência mantem-se em B 318, <Poyla uj nũca uj tan amada> (Molteni 1880: 115). Mas o pronome <eu> é ainda visível à margem em A 192, v. 3 (fl. 49r), apesar da integração marcada pela rasura (Carter 1941: 113, n. 1). Também aqui a lição de B 343 mostra o verso sem a integração de <eu>, <Queu9 direy ora quem hauen> (Molteni 1880: 125). Esta tarefa de revisão encontra-se em todo o primeiro grande bloco, quer dizer que o trabalho da mão 1 foi inteiramente revisto. Melhor: houve a possibilidade material de conferir os ciclos de cantigas copiadas por esta mão, do fl. 1r ao fl. 74r, quer dizer do ciclo de VaFdzSend às primeiras cantigas do Anónimo `, mas podemos ver como a intensidade de revisão é variável em alguns ciclos como se pode comprovar pelo simples folhear da edição facsimilada512. Este revisor 1 é também responsável por uma integração de uma estrofe adjunta a um texto de PayGmzCha, A 250 (fl. 68r)513. C. Michaëlis pronunciou-se, de modo mais meticuloso, quanto às intercalações textuais, conexas a este trovador, que lhe pareciam ser provenientes de uma outra mão correctiva. A maior atenção que é concedida a este sector deve ser proveniente da presença à margem de uma estrofe, procedimento único em todo o manuscrito514. De facto, em mais nenhum lugar, nem nos casos de previsão de espaço para estrofes, o revisor teve a possibilidade de as incorporar. Mas, mais do que esta indagação, o mais relevante é sabermos, agora, que esta estrofe é inserida pela mão deste revisor 1. Segundo a opinião de S. Pedro, após exame comparativo com outras anotações marginais, a escrita da estrofe marginal anexada à 512 S. Pedro apresentou o elenco destas correcções marginais (s.d.). Por meu lado, estabelecendo uma comparação entre estas emendas e as lições textuais com os manuscritos italianos, apresentei em Roma em 1992 no âmbito de um Seminario dedicado a La lirica galego-portoghese, uma comunicação Riflessioni sulle correzioni marginali del Canzoniere dell'Ajuda da qual só uma pequena parte foi publicada (Ramos 1992). Conto voltar a esta importante particularidade do Cancioneiro em modo mais autónomo. 513 Na descrição do ciclo de PayGmzCha, apontei algumas das características particulares da inserção deste ciclo no Cancioneiro da Ajuda. Cf. descrição dos cadernos X e XI. 514 Ao não considerar C. Michaëlis que o revisor se tenha servido de outro material, examina, de modo mais peculiar, o ciclo de PayGmzCha: «Outras correcções ha, porém, de caracteres maiores, grossos e rasgados, que parecem accusar outra mão, bem mais moderna, e tambem proveniencia diversa. São as que se referem ás cantigas 250, 251 e 253. E como todas se acham dentro de um espaço circumscripto, no cancioneirinho individual de Pay Gomes Charinho, é possivel que derivem não da phantasia de um leitor, mas da comparação com outro texto. Possivel, mas de modo algum certo. Quanto á estrophe inteira, accrescentada a uma poesia da mesma Secção XXVII (No. 250) estou tão pouco segura d'esta interpretação que ao redigir e revêr as provas do texto ainda a quis attribuir ao copista, embora a letra a distancie da mão que escreveu as emendas» (1904, II: 173-174, n. 1; I: 488-489). 343 Capítulo 6. Disposição do texto cantiga de PayGmzCha, é incontestavelmente traçada pela mão do mesmo indivíduo, como se pode comprovar através da reprodução fac-similada das particularidades gráficas comuns. Deve-se também ao revisor 1 o apontamento vacat com o qual anula o texto A 248bis de PayGmzCha, copiado duas vezes – único caso também de repetição textual em todo o Cancioneiro – 515. Deve ser ainda este revisor 1 o autor da ténue indicação p° da pont, junto à cantiga A 39, Meus ollos gran cuita damor. É ainda incerta, neste contexto, uma explanação plausível quanto a este esboço de rubrica atributiva516. No decorrer do trabalho concernente à correcção, o revisor 1 apercebe-se de algumas falhas no traçado da inicial de refran. O copista nem sempre deixou o vazio relativo à decoração da inicial com a respectiva indicação para a insígnia ornamental. Ora, alguns destes casos são apontados pelo revisor através da indicação por extenso de reffran para que a decoração pudesse corrigir a imprecisão da cópia. No entanto, são vários os casos em que, com circunstâncias idênticas, nada foi registado517. Os últimos cadernos, o caderno XII, XIII e XIV não chegaram a ser revistos e, portanto todos estes textos finais não foram submetidos a um qualquer trabalho de supervisão. Nem a mão 2 que transcreveu os dois cadernos finais, o caderno XIII com os conjuntos textuais de PEaSol, FerPad, PPon e o caderno XIV com VRdzCal, MarMo e RoyFdz. Mas, igualmente, no caderno XII, com a mão 3, os ciclos anónimos, Anónimo `, Anónimo β, Anónimo γ, não foram subordinados ao exercício de verificação. 6.4.3. Revisor textual 2 Independentemente destas emendas, em aparência exíguas, surgem transcrições marginais com sequências completas ou mesmo versos inteiros, efectuadas por uma outra mão que deve ser identificada como um segundo revisor518. S. Pedro, ao analisar os recursos paleográficos da mão que executa esta nova tarefa não hesita em separá-la da mão que cumpriu o primeiro controlo519. 515 É um tipo de indicação que C. Michaëlis interpretou como está de vago=sobeja (1904, II: 174, n. 3). É fórmula que surge em outros manuscritos mas, muitas vezes, para assinalar ausência de textos (lacunas, textos não copiados) e não tanto uma cópia dupla de texto. 516 Cf. capítulo relativo à descrição da estrutura dos cadernos e à atribuição da garvaia (caderno II). Acerca da decifração desta anotação, cf. S. Pedro (s.d.). 517 Integro e comento estes casos no capítulo dedicado à Decoração. Cf. Também Michaëlis (1904, II: 174; Carter 1941: 185-187). 518 Insisto no falso indício da aparência simples destas anotações porque, se quisermos observar as pequenas correcções da revisor 1, alguns dos contextos emendados parecem coincidir com variantes em B que não possuíam a forma inserida pelo revisor 1 do Cancioneiro da Ajuda. 519 Ao designar um primeiro controlo na verificação inicial, não estou a atribuir, objectivamente, um tempo de revisão anterior a outro, visto que as duas intervenções não oferecem morfologia paleográfica 344 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Reconhece a paleógrafa que deve ser este segundo revisor o responsável pela incorporação das propostas de correcção do primeiro e, ao mesmo tempo, terá tido também uma acção mais consequente no trabalho correctivo520. S. Pedro opta pela designação de corrector em oposição a revisor, mas na realidade, tanto um como outro, examinam, revêem e corrigem. O carácter inesperado deste comportamente não deixa de ser explicitado no referido ensaio de S. Pedro, ao afirmar não conhecer outro manuscrito com intervenções documentadas deste modo quanto à correcção. Mas, como vamos ver, este conjunto de circunstânicas terá uma explicação plausível e bastante importante para o entendimento da tradição textual, não só do Cancioneiro da Ajuda, como de parte da tradição lírica galego-portuguesa posterior. A proclamada diferença de trabalho entre e outro revisor é procedente de uma desigualdade de material de confronto no exercício destes dois revisores. Quer dizer que, pelo menos, em alguns sectores, os dois revisores não se serviram do mesmo texto base da cópia realizada. Mas, antes de entrarmos nesta análise, a primeira inspecção revela grande diferença de comportamento entre este revisor 2 e o predecessor. Ao ostentar emendas textuais mais vastas, poderíamos pensar que ou é mais escrupuloso, quanto ao lugar do aperfeiçoamento textual, ou procede de outro modo, menos lacónico, do que o colega. Observa-se a tendência mesmo nos casos em que completa a primeira correcção, repetindo-a e incorporando-a em um contexto mais abrangente. Ao percorrer os primeiros fólios, vamos encontrar as primeiras intervenções do revisor 2 no ciclo de VaFdzSend na cantiga A 12, vv. 5 e 6 (fl. 3v) na qual o refran é, uma primeira vez, examinado pelo revisor 1 que demarca apenas um <o>, precedido de sinal de inclusão que não é muito visível no próprio verso. O revisor 2, não só parte desta primeira rectificação, como escreve todo o v. 5 <todo uoleu cuydo a sofrer / semẽda a morte>. O problema colocava-se no final da forma <cuyd> que, na transcrição do copista, se deveria apresentar sem qualquer vogal na sequência <cuyd a soffrer>. O revisor 1 assinala um <o> e o revisor 2, mesmo escrevendo todo o verso, a vogal final de <cuydo> parece riscada ou, pelo menos, com mais tinta que impede melhor decifração entre um <a> ou <o>. Diria que o problema se desvenda com transcrição do primeiro verso do refran nas duas outras estrofes. Assim, na segunda estrofe, escreveu o copista <[T]odo uoleu cuydassoffrer> e, na terceira estrofe, a presença do <o> é clara, <[T]odo uoleu cuido assoffrer>. Em B 102, a tradição apresenta tanto o verso da primeira estrofe como as estrofes seguintes com a ausência de <o>: <Todo uoleu cuy da sofrer> na primeira e <Todouoleu cuyda sofrer>. Portanto, a correcção à muito diferenciada em termos cronológicos. O que é significativo é depreender que há dois revisores que intervêm na verificação do trabalho da mão 1 e que cada um deles opera de modo distinto. 520 Em alguns casos, chegou a eliminar a indicação do revisor 1, o que permite, de algum modo, instituir uma ordem de trabalho em estes dois momentos de correcção. 345 Capítulo 6. Disposição do texto margem de A prevista para a primeira estrofe que coincidiria com a lição da última estrofe, não foi considerada pela tradição italiana521. Mas também no fl. 7r, na cantiga A 27 v. 20, atribuível a JSrzSom, o revisor 1 assinalou a emenda com <sol> e o revisor 2 retoma o vocábulo <sol> e acrescenta o contexto do verso, notando ainda <sol por uos ueer>. É de calcular que faltasse a palavra <sol> na cópia inicial do verso. Se compararmos este verso com B 120, apuramos que a lição corresponderia provavelmente ao estádio primitivo da cópia inicial de A. Assim, o copista de B transcreveu apenas <mha senhor p'u9 ueer> sem a forma <sol>, tal como tinha sucedido com o copista de A ou, melhor dizendo, com o modelo de A. Não só o revisor 1 assinala a falta de <sol> como o revisor 2 reescreve toda a parte final do verso a fim de bem situar a posição da forma <sol>522. Ainda nesta mesma cantiga, A 27 no verso, imeditamente anterior, v. 19, ocorria também uma passagem complexa. Talvez o copista de A tenha escrito, inicialmente, um verso incorrecto que permitiu ao revisor 2 intervir à margem com a anotação da forma <pder> com a abreviatura de <per> com <p> cortado. Novamente, vamos observar que em B 120, o copista do cancioneiro italiano transcreveu um verso com mais a sílaba <bẽ>, <e podela ia bẽ perder>. Não é impossível que em A tivesse ocorrido o mesmo erro que obrigou a correcção marginal indicar de que era necessário apenas a forma <perder> que é incorporada, após rasura523. Emenda mais consequente é observável no início de A 43 [MartSrz] que contempla os vv. 1-4. Com efeito, na margem da goteira, no fl. 10v, encontramos uma primeira anotação de <señor> do revisor 1 que corresponderia à segunda palavra do incipit, após <Nostro>. Mas a transcrição do revisor 2 ultrapassa o verso que acolheria a emenda <señor> e reproduz os versos seguintes (vv. 2 - 3 - 4), <[C]omo iaço coitado morrẽd assi ental poder damor [...]o ssen 7 mal pecado. al me tolle d' q'me ffaz>. Aqui, não me parece que seja só uma precaução para a correcta inserção ajustada da palavra necessária (deveria bastar-lhe o contexto do primeiro verso). Parece-me que a zona problemática seria mais extensa. Quando olhamos para B 155, vamos comprovar que, efectivamente, as dificuldades não deviam restringir-se ao v. 1, mas também ao v. 4. O copista, de facto, no v. 4 escreve <almy tolhelde que mj faz peor> em que a forma <tolh> é seguida de <el> que não comparece em A. É, aliás, de notar que a emenda 521 C. Michaëlis não tomou em consideração esta introdução de <o>, mantendo a leitura Todo vo-l'eu cuid'a soffrer nas três estrofes, emendando o verso da última que tinha a transcrição clara de <o> no final de <cuydo>, antes de <assoffrer> (Michaëlis 1904: 27; Molteni 1880: 36; Carter 1941: 9). 522 Neste caso, C. Michaëlis considerou a emenda, integrando-a no seu texto, mia senhor, sol por vus veer, como assinala em aparato a variante de B com a indicação de «sol falta» (Michaëlis 1904, I: 58; Molteni 1880: 44). Carter, neste caso, não indicou a correcção em aparato como costuma fazê-lo (Carter 1941: 19). 523 Também neste verso, C. Michaëlis toma como melhor lição a que é resultante da emenda marginal, lendo E podê-la-ia perder, acompanhada da variante do v. 19 em B: «e podê-la-ia ben perder» (Michaëlis 1904, I: 58; Molteni 1880: 44). Cf. também Carter (1941: 19, n. 2). 346 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita marginal em A, neste sector, hesita no recopiar o verso: logo após <tolle> e, praticamente interpolado na linheamento superior, encontra-se <d> com um sinal próximo de apóstrofo <'>, mas pouco perceptível524. Como se pode depreender pelo Cancioneiro Colocci-Brancuti, estes casos que suscitaram emenda no Cancioneiro da Ajuda correspondiam a zonas textuais fragilizadas525. O ensejo de observar todos estes casos é aliciante e, como vamos ver, muito útil para a reconstituição da tradição textual subjacente à elaboração do Cancioneiro da Ajuda. Poderíamos prosseguir, de facto, a análise do trabalho destes dois revisores mas, em particular, o desempenho do revisor 2. Como foi já apontado, o revisor 2 recupera a indagação do revisor 1, amplifica-a, complementa-a, mas é significativo indicar já um factor preponderante na sua actividade. No estado actual do Cancioneiro, vimos que o seu trabalho se localiza logo nos primeiros fólios (fl. 3v). É verdade que, no caso de algumas pequenas propostas de emendas, reduzidas a uma única letra (fl. 5v, fl.6v) ou alguns monossílabos (fl. 10r, fl.12v, fl. 13r, fl. 18v), o revisor 2 não interferiu tornando o contexto mais extenso. Não obstante, é surpreendente que, ao observarmos a sua intervenção no fl. 39v com uma anotação relativa a A 155, v. 24 [VGil], o revisor 2 não volta a trabalhar por um largo período, do fl. 40v ao fl. 45v, apesar das abundantes sugestões do revisor 1. Não só as correcções não chegam a ser integradas (a maior parte delas, sobretudo de A 165 em diante), como não há vestígio de trabalho do revisor 2 em todas estas zonas com a sua habitual transcrição textual mais extensa. Ora, parece-me, particularmente, significativo depreender que a suspensão de trabalho do revisor 2 coincide com o conjunto dos fólios constitutivos do actual caderno VII. Por um lado, o primeiro fólio deste caderno, o fl. 40r é copiado por uma outra mão, a mão 2 e, por outro lado, este caderno VII pertence a um caderno, inteiramente proveniente de Évora, com o ciclo de JSrzCoe526. A carência de actividade do revisor 2 mostra que este caderno não deveria estar colocado nesta sequência no momento em que o revisor 2 executava o seu trabalho. Se esta suposição é admissível, este novo elemento concorre para um melhor entendimento na incoincidência entre o registo primitivo dos cadernos e a sequência que, hoje, conhecemos527. 524 No v. 4, C. Michaëlis acolheu a lição de A, emendada pelo revisor 2, ao ler al me tolhe de que me faz peor, indicando em aparato a variante em B 155, al mi tolh'el de que mi f. p. (Michaëlis 1904, I: 93; Molteni 1880: 62). Carter anota parte da emenda (1941: 27, n. 3). 525 É por este género de coincidências de erro em dois cancioneiros e com copistas diferentes que não me parece unicamente plausível que este revisor 2 se tenha dedicado a transcrições textuais mais longas apenas para reajustamentes da sua correcção, ou para evitar confrontos sistemáticos com o modelo, como considerou S. Pedro na sua exposição (Pedro s.d.). 526 A análise das diferentes mãos é referida no capítulo relativo à Escrita e o exame do caderno VII na descrição da estrutura fascicular. 527 A assinatura dos cadernos é tratada no capítulo referente às numerações primitivas do Cancioneiro. 347 Capítulo 6. Disposição do texto Entretanto, não se trata de um caderno sem qualquer supervisão. O revisor 1 anota vários textos ao indicar à margem as formas correctas. Este facto quer dizer que o primeiro supervisor teve a possibilidade de se servir de um modelo para a sua correcção, fosse o texto base, utilizado pelo copista, fosse um outro. Em conformidade com os seus hábitos correctivos, as suas intervenções definem-se por um carácter sucinto e breve (letras únicas, monossílabos, uma ou duas palavras) como é possível examinar através dos exemplos seguintes: a) Em A 158, En grave dia, sennor, que vus vi, v. 29 (fl. 40v), o texto apresentava <E de tal preço guar de uos deus>. À margem, o revisor 1, escreveu <uos> que não foi inserido. C. Michaëlis leu com a correcção marginal, E de tal preço vos guarde-vus Deus (1904, I: 318; Carter 1941: 95, n. 1). Não é possível cotejar esta lição por este texto não ter sido transmitido no Cancioneiro Colocci-Brancuti. b) Em A 160, Pero m'eu ei amigos, non ei niun amigo, v. 17 (fl. 41r), o copista reproduziu <de soffrer a gran coita que sofri delo dia>. O revisor 1 assinalou a correcção <g'm> que Carter leu g'n (1941: 96, n.1), mas S. Pedro também considerou um <m> (Pedro s.d.). c) Em A 165, Nunca coitas de tantas guisas vi, v. 15 (fl. 42v), o texto apresentava <A mia uentura q'reu mal>. À margem, com sinal de integração entre as duas últimas palavras, o revisor 1 escreveu <muỹ g'm> que não foi inserido. C. Michaëlis inseriu a emenda marginal e leu A mia ventura quer'eu mui gran mal (1904, I: 331; Carter 1941: 99, n. 2). Em B 317bis, o verso encontra-se transcrito do seguinte modo: <E mha uent'a quereu p' en mal>528, mostrando exactamente a lição primitiva de A, antes da intervenção do revisor 1. A conjunção de circunstâncias traduz que a sequência <muỹ g'm> não se encontrava nem no modelo do copista de A (mão 1), mas a lição deficiente manteve-se no antecedente do cancioneiro italiano. A melhoria textual verificada pela intervenção do revisor 1 só se pode explicar por um acesso a uma fonte de melhor qualidade. d) Ainda neste ciclo e neste mesmo fl. 42v, pode observar-se a correcção à margem de <eu> a colocar em A 166, Atal vej'eu aqui ama chamada, v. 12. O copista de A tinha escrito <poila ui nunca ui tan amada>, verso que é considerado incorrecto pelo revisor 1, que insere à margem <eu> precedido de sinal de inclusão que é também repetido no interior do texto, após <poila>. C. Michaëlis lê, de facto, o verso com aquiescência do acrescento, poil'-la eu vi, nunca vi tan amada (1904, I: 332; Carter 1941: 100, n. 1). Conferindo, agora, a lição presente em B 318, vamos entender que este cancioneiro apresenta, de novo, uma variante que concorda com a do copista de A, não restabelecida: <Poyla uj nũca uj tan amada> (Molteni 1880: 115). 528 A verificação pelo edição fac-similada aponta para uma leitura <en> e não <eu>, tal como leu Molteni (1880: 115), diversamente de A onde <eu> é perfeitamente claro (Carter 1941: 99). 348 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita e) Em A 167-168, As graves coitas, a quen as Deus dar (fl. 43r), além de algumas outras correcções, repare-se na que comparece no v. 29. A lição inicial mostra <e pois la ui nõ llousei dizer ren>. Desta vez, é observável a última palavra, escrita pelo copista <ren> traçada por uma linha horizontal e, ao lado da justificação, o revisor 1 voltou a escrever <ren> com um sinal indicativo entrelinhado de introdução depois de <dizer>. C. Michaëlis editou também em consonância com o revisor 1, e pois la vi non lh' ousei ren dizer (1904, I: 336; Carter 1941: 101, n. 4, 5). O cotejo com B 319 revelerá, diversamente dos casos anteriores, uma lição com a exacta colocação de <ren>: <E poila ui non lhousei ren dizer> (Molteni 1880: 117). Aqui, poder-se-ia admitir a imprecisão do copista de A, uma interferência neste v. 29 com o v. 26 e com o v. 27 que terminavam, respectivamente por <ben> e <ren>529. Um cotejo com outros casos dentro deste ciclo revelariam que, algumas correcções previstas pelo revisor 1, como em A 172, Sennor e lume d'estes ollos meus, v. 16 (fl. 44r), A 173, v. 8 (fl. 44r), A 178, Dizen que digo que vos quero ben, v. 3 (fl. 45v), foram integradas no modelo de B (B 323, B 324, B 329), encontrando-se estes casos no cancioneiro italiano em conformidade com o revisor 1 e não com o copista de A. Um último confronto curioso, por colocar-se em um plano de natureza gráfico-métrica, ocorre em A 174, N'outro dia, quando m'eu espedi, v. 8 (fl. 44v). O copista escreveu <pouco> seguido de nota tironiana <7>. O revisor 1, além de introduzir à margem <que>, colocou pontos eliminatórios sob as duas últimas letras de <pouco>, <co>, traçando-as. Debaixo da nota tironiana foi também foi marcada supressão. C. Michaëlis incluiu as emendas à sua leitura...pouqu'e (1904, I: 346; Carter 1941: 104, n. 3). O copista de B 325 manteve a grafia inicial do copista de A, escrevendo <pouco e> (Molteni 1880: 119). Mas este v. 8 colocava ainda outros problemas textuais: a forma, inicialmente escrita <teuemio>, apresenta o <o> final eliminado pelo revisor 1 em A, mas em B, o copista transmite-nos a lição do copista de A não emendada, <teuemho>. C. Michaëlis leu apenas... teve-mi... (1904, I: 346; Carter 1941: 104, n.4; Molteni 1880: 119). Não apenas é significativa a conjuntura deste caderno VII, que não passou pelas mãos do revisor 2 (aquele que introduzia as emendas do revisor 1 e aquele que parece ter acesso a situações contextuais mais amplas), como também nos retém a atenção o realce do sincronismo dos desacertos entre o copista do Cancioneiro da Ajuda e o do Cancioneiro Colocci-Brancuti. Este facto demonstra que, na realidade, não estaríamos perante um erro de cópia do copista de A, mas de uma deficiência do modelo que se conserva na tradição posterior. Mas, ao mesmo 529 O carácter razoável desta contingência que responsabilizaria o copista de A e não a sua fonte, atenua-se ao observarmos que, em outros casos, o copista de B possui um modelo que continha já as correcções dos revisores de A. 349 Capítulo 6. Disposição do texto tempo, no interior deste ciclo, vemos que, de forma diferente, o copista de B segue já as emendas propostas pelo revisor 1 de A, o que denota que o seu antecedente, em alguns textos de JSrzCoe pelo menos, foram favorecidos por um aperfeiçoamento. O material de JSrzCoe não se apresentava nem completamente emendado, nem permanecia sem revisão na sua totalidade. Duas conjunturas diversas no interior do ciclo de um único trovador. O revisor 2 voltará a trabalhar no caderno seguinte, caderno VIII, assinalando algumas emendas logo em A 185, Pois m'en tal coita ten amor, vv. 6, 17 e as correcções tanto de um como de outro revisor vão comparecer com ingerências diferenciadas até ao final do caderno XI, o revisor 1 no fl. 73r em A 265, Mui gran poder á sobre min Amor, v. 28 em que se corrige <fez> com um <o> para fezo e o revisor 2 com interrupção no fl. 72r com uma nota em A 261, v. 15 com a correcção <del defender> que retoma a emenda <del> do revisor 1. A anexação das correcções é efectuada neste fl. 72r, mas no fl. 72v, já não se presencia trabalho do revisor 2530. 6.4.4. A tradição textual Merece grande apreço, portanto, o exame das correcções marginais contemporâneas da cópia, que, felizmente, não chegaram a ser rasuradas. Muitas das lições que foram corrigidas, como vimos, quer no interior do ciclo de JSrzCoe, quer em muitos outros casos, podem coincidir singularmente com lições variantes dos outros manuscritos. Por outro lado, e de modo mais casual, as correcções ajustam-se também à lição testemunhada pelos cancioneiros copiados em Itália. A análise destas rectificações leva a admitir a presença de um modelo e não de simples retoques baseados em probabilidades métricas intuitivas de quem dá a forma correcta. O objecto destinado a ser reproduzido poderia identificar-se com o exemplar primitivo – o que tinha sido utilizado na cópia principal –, e as imperfeições seriam apenas devidas a quem copiava, como pensava C. Michaëlis (1904, II: 167). Mas as irregularidades manifestam-se, também no mesmo lugar, nos outros cancioneiros (em particular, no Cancioneiro Colocci-Brancuti) e é improvável que copistas diferentes em condições de trabalho separadas no espaço e no tempo, cometessem a mesma infracção no mesmo local. Este facto implica, por ora, a existência de uma lição defeituosa na origem comum aos dois manuscritos. 530 Tanto C. Michaëlis como H. H. Carter indicaram grande parte destas correcções sem marcarem uma distinção entre uma e outra intervenção correctiva. A filóloga alemã no seu volume de estudos dedicado ao Cancioneiro, como no aparato editorial de cada um dos textos (volume I), onde algumas vezes assinalou estes casos (1904, II: 170-173). O paleógrafo americano indicou, em geral, em nota de rodapé, ocasionalmente com imprecisões de leitura do cursivo destas notas e remeteu para o Appendix I, as formas destinadas à eliminação («Cancellations») e para o Appendix II, notas marginais não separadas por uma cronologia paleográfica («Marginal Notations») (Carter 1941: 183- 187). 350 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Diferentes particularidades separam, como é conhecido, o Cancioneiro da Ajuda dos cancioneiros italianos (Tavani 1969, 2002; Oliveira 1994, 2001). Não é só o seu carácter de inacabado e incompleto que o diferencia mas, nas partes em comum, apresenta características que, do ponto de vista textual, se definem, muitas vezes, como determinantes no paralelismo entre os masnuscritos. A proveniência e a extensão da tradição lírica galego-portuguesa foram examinadas de modo pormenorizado por G. Tavani que estabeleceu um stemma que tem sido, mais ou menos, seguido nos estudos dedicados à lírica galego-portuguesa531. Este stemma provava que, através de uma primeira organização, provavelmente um volume colectivo, tinham sido organizadas algumas cópias, antologias-compilações das quais chegaram até nós os cancioneiros que conhecemos. O stemma, geralmente aceite, pela crítica no momento em que foi divulgado, e em diferentes mises au point do Autor que, ao longo dos anos, tem especificado, afinado e fundamentado a sua concepção metodológica, foi, no entanto, comentado através de reflexões parciais que preconizavam a construção de um stemma mais económico. por um lado, a eliminação de vários interpositi necessários ao aparecimento dos cancioneiros italianos; por outro, a particularização do modelo que teria servido de base aos cancioneiros italianos532. De uma primeira recolha colectiva ω teria sido realizada a cópia incompleta que hoje conheceríamos pelo Cancioneiro da Ajuda e, algum tempo mais tarde, provavelmente entre 1340 e 1350, outra cópia α que não se limitava apenas ao arquétipo, mas teria ampliado o seu conteúdo com a inserção de ooutros autores e de outros textos. Daqui se teria originado o exemplar ou exemplares que deram origem à tradição italiana (B, V e C) através de vários estádios justificados pelo Autor (Figura 11): 531 A reflexão, legitimada por critérios estritamente filológicos, surgiu em 1967 e tem sido reproduzido em diferentes estudos do Autor. Por último, consulte-se o ensaio, intitulado justamente, «Ancora sulla tradizione manoscritta della lirica galego-portoghese (quarta e ultima puntata)», publicado em 1999. 532 Lindley Cintra na «Introdução» à edição fac-similada do Cancioneiro da Vaticana não hesitou em reproduzir a proposta de Tavani (1973: VII-XVIII, sobretudo, XII-XIV). Mas, pouco depois, D’Heur apontava elementos que permitiam, segundo o estudioso belga, uma simplificação do ramo italiano (1974: 3-43; 1984: 23-34). 351 Capítulo 6. Disposição do texto ω A α γ Β(C) έ δ ξ B V Figura 11 – Stemma da tradição manuscrita (Tavani 1967 e ss.) As observações apresentadas nos últimos anos por E. Gonçalves, A. Ferrari e, de certo modo, já por J. M. D’Heur sugeriram a apresentação de um stemma total mais simplificado da tradição galego-portuguesa proposto, pela primeira vez, por A. Ferrari em Liège em1991 (Figura 12)533. 533 Foi neste Colóquio, dedicado ao estudo dos Cancioneiros, organizado por M. Tyssens em 1991 que A. Ferrari apresentou, de modo, bastante sintético, o novo stemma relativo à produção lírica galegoportuguesa. As indicações que sugerem este stemma simplificado não beneficiaram de uma publicação autónoma que, com base em um discurso argumentativo, avaliasse em conjunto todos os elementos que permitem a eliminação de códices intermediários e também a consistência material do exemplar (ou dos exemplares) que se encontravam em Roma no momento das cópias coloccianas. Todos estes dados são sugeridos por E. Gonçalves na sua edição dedicada à Tavola Colocciana (1976), por A. Ferrari no seu ensaio sobre a constituição material do Cancioneiro Colocci-Brancuti (1979) e por J. M. D’Heur (1974). Todos estes autores voltaram a ocupar-se desta problemática, D’Heur (1984), Ferrari (1991) e sobretudo E. Gonçalves que apresentou uma ampla sinopse sobre a tradição manuscrita da poesia lírica (1993). Posteriormente, em 1999, G. Tavani voltou a examinar o problema em um artigo que reanalisa os pontos relativos à consistência de α e à justificação das conjecturas necessárias aos antecedentes imediatos de B e V. Ver também sobre este assunto J. Paredes que sintetiza o estado da questão (Paredes 2006). 352 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita ω A α V B C Figura 12 – Stemma da tradição manuscrita (D’Heur 1974, 1984; Ferrari 1979, 1991; Gonçalves 1976, 1988, 1993) É um facto que, em todas estas reflexões, o Cancioneiro da Ajuda serviu sempre à separação clara entre a bipartição do plano alto, visto que este Cancioneiro se distancia por motivos histórico-culturais e textuais do ramo que origina a tradição italiana. E este lado do stemma constituído pelo Cancioneiro da Ajuda não propiciou qualquer outra conjectura, por se considerar que, por um lado correspondia a uma cópia parcial do arquétipo, por outro lado por não ter tido qualquer descendência nem derivação textual directa com base na transcrição das suas cantigas. A opinião que, derivada, de certo modo, de C. Michaëlis, o Cancioneiro ajudense não era mais do que uma cópia incompleta do arquétipo permaneceu até aos nossos dias. Por um lado, os estudos de Tavani, ao contemplarem a génese da tradição, apontavam para A a seguinte conjectura: «Do arquétipo (ω) nos últimos anos do século XIII ou talvez nos primeiros do XIV, tirou-se a cópia, parcial (por transmitir quase exclusivamente cantigas d'amor) e inacabada, hoje conservada na Biblioteca da Ajuda» (Tavani 2002: 102). Mas também E. Gonçalves considerou também que «...le manuscrit A doit être la copie d'un livre et non pas une anthologie 'faite directement' à partir de Liederblätter...» (Gonçalves 1991: 451)534. G. Lanciani, em um ensaio mais recente com a análise da cópia dupla de um texto de PayGmzCha (A 248), admitia a 534 É evidente que a bem conhecida «organização por géneros» na produção da lírica galego-portuguesa sugeriria uma organização prévia a esta cópia. C. Michaëlis assim o dizia: «O CA provavelmente não é o primeiro exemplar, mas apenas um treslado» (1904, II: 153). O estudo da fenomenologia organizativa admitira que «il aurait existé une première anthologie ordonnée par genres, et que celle-ci aurait été constituée à partir de rotuli contenant la production des poètes antérieurs à la fin du XIIIe siècle» (Gonçalves 1991: 451-452). 353 Capítulo 6. Disposição do texto hipótese de uma estrutura menos estável na constituição deste manuscrito535. Parece-me evidente que, através dos dados materiais já observados, o Cancioneiro da Ajuda não evidenciaria só uma cópia estável de livro a livro536. Se a génese de A não é ainda suficientemente clara, não subsiste, no estado actual dos nossos conhecimentos, qualquer descendência manuscrita, directa ou indirecta, com base no Cancioneiro da Ajuda. Dito de outro modo: o Cancioneiro da Ajuda não se instituiu como modelo a cópias posteriores. Devo insistir neste facto. Há pouco, parece-me que se criou uma forte ambiguidade entre descendência directa e treslados modernos de manuscritos medievais. No Congresso dedicado ao centenário da edição do Cancioneiro da Ajuda (Santiago de Compostela 2004), H. H. Sharrer no seu balanço Estado actual de los estudios sobre el Cancioneiro da Ajuda (2004), ao tomar como referência a minha afirmação relativa à inexistência de descendência textual do Cancioneiro (Ramos 1994), modalizava-a considerando que, nesta concepção, deveríamos incluir as cópias do século XIX. Ora, estas cópias do século XIX não são mais do que transliterações do Cancioneiro da Ajuda, algumas delas executadas antes da inserção dos fólios eborenses, que coincidem, na maior parte, com a edição Stuart (1823), não se podendo concebê-las, parece-me, como uma real transmissão textual, no sentido em que encaramos a tradição (não conservam lições mais autênticas que o manuscrito mais antigo tenha perdido!), não sendo possível uma recensio, nem sequer uma eliminatio codicum descriptorum537. O interesse pelos fólios eborenses favoreceu, como seria imaginável, uma cópia executada em Évora pelo escrúpulo bibliotecário de Cunha Rivara, antes do envio dos fólios para Lisboa e por Alexandre Herculano em Lisboa que as endereçou a Varnhagen (1849), mas os projectos de publicação do Cancioneiro pela Academia Real das Sciencias, nos primeiros anos do século XIX, não podiam deixar de providenciar também cópia para este efeito538. 535 A sua análise textual da dupla cópia sublinhava a direcção de «una opera in movimento», e acrescentava mais uma «anomalia» aos elementos já sugeridos pelo exame dos espaços em branco e pelas correcções marginais (Lanciani 2004; Ramos 1986; 1992). 536 Apontei já algumas hipóteses a este propósito no ensaio que acompanha a edição fac-similada do Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1994). Voltarei a referir esta possibilidade no final desta Parte Primeira, referente ao estudo do Códice. 537 Nesta perspectiva, seria também possível envolver neste raciocínio o campo editorial do século XIX. C. Stuart com certeza (1823), seguido de F. Adolfo de Varnhagen (1849) com o suplemento PostScriptum (1850) que continham os fólios eborenses, transcritas por Herculano, como nos diz C. Michaëlis (1904: 21) e ainda as Novas Páginas de Notas às Trovas e Cantares..., também de Varnhagen (1868). Este campo editorial oitocentista não se demove muito das cópias manuscritas que eram feitas ou encomendadas, mais ou menos, no mesmo período, pelos mesmos eruditos (cópias da Academia no âmbito de uma publicação desde 1814) (Michaëlis 1904, II: [1]- 98). 538 A cópia, que se conserva na Academia, tem a cota Ms. Az. 586. Estas cópias (completas, parciais, fólios de Évora) são enumeradas por H. H. Sharrer com a vantagem de chamar a atenção para este período da história do Cancioneiro, sobretudo com a localização actual (2004: 42-43). A cópia de Cracóvia, relocalizada mais recentemente (Ms. Lusitan. fol.1) foi descrita e examinada por M. Arbor e C. 354 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Mesmo que a cópia localizada em Cracóvia (Biblioteca Jagiellónska) seja prévia à edição de Stuart (Arbor-Pulsoni 2004), já Raynouard referia na sua Grammaire (1821) o acesso, por intermédio de Stuart, a uma cópia do Cancioneiro, menção anterior, portanto, à edição de Stuart (Michaëlis 1904, II: 10-13)539. No entanto, qualquer que seja a anterioridade destas cópias, elas não representam mais do que uma transcrição do Cancioneiro no estado em que C. Michaëlis realmente o descreveu, ao justificar a sua interpretação no novo ordenamento com a descolagem do fólio que estava aderente à tabua anterior (hoje, em posição final, com as cantigas de RoyFdz); com o fólio que servia de guarda ao volume, hoje fl. 74, por se ter detectado sequência textual com o fólio seguinte e, por fim, a análise argumentativa quanto à colocação dos materiais eborenses. É indiscutível que estas cópias manuscritas, que circularam nos primórdios da Filologia Românica, são úteis para a reconstituição da história da nossa disciplina, ou para a definição do quadro intelectual, que se gerou à volta da descoberta do Cancioneiro, mas nenhuma delas oferece um estádio textual que esclareça ou melhore a situação actual do códice. Estamos na presença de testemunhos equivalentes a codices descripti. Pode-se (e deve-se!), com certeza, discutir a colocação dos fólios de Évora (ou melhor, os fólios e o caderno VII) efectuada por C. Michaëlis, e penso mesmo que sobretudo a inserção do caderno coloca problemas sérios, não tanto pela decisão de C. Michaëlis, que se baseou no resto da tradição, mas pelos indícios materiais que apontam para uma arrumação diferenciada daquele fascículo, mesmo ao nível da elaboração do Cancioneiro540. Mas, não são, contudo, as cópias oitocentistas que podem facilitar esta tarefa (bastaria recordar que os fólios de Évora estiveram colocados de modo contínuo, no final do códice e não foram encontrados, se excluirmos o caso do caderno, com uma ordem ou com uma numeração precisas). Por conseguinte, é de considerar que o Cancioneiro da Ajuda não gerou descendência textual, não sendo possível construir um stemma de testemunhos com base neste Cancioneiro. No entanto, à falta de filiação, concede-nos o Cancioneiro alguns elementos que devem ser integrados na reflexão geral relativa à tradição no estabelecimento do seu ou dos seus Pulsoni (2004). A mesma preocupação orienta o ensaio dos mesmos autores quanto aos comentários de Ribeiro dos Santos sobre a «Noticia de hum Cancioneiro inedito» nas suas «Das origens e progressos da poesia portugueza», considerações tomadas já em consideração por C. Michaëlis (Michaëlis 1904, II: 2, 10, n. 2, 317, n. 2; Arbor-Pulsoni 2006). 539 Podemos referir também a recensão-notícia de Raynouard publicada no Journal des Savants, logo após a publicação parisiense de Stuart, onde refere explicitamente uma cópia e as citações relativas ao Cancioneiro: «Cette copie me fut depuis confiée pendant quelque temps, et j'y recueillis des notes utiles que j'ai eu occasion d'employer lors de la rédaction de ma Grammaire comparée des langues de l'Europe latine avec celle des troubadours, où je cite souvent le cancioneiro pour démontrer les nombreux rapports de la langue portugaise avec celle des poètes...» (Raynouard 1825: 488-495 [488]). 540 Abordei alguns destes problemas relativos ao caderno VII tanto no capítulo relativo às assinaturas primitivas dos cadernos, como na caracterização do trabalho do revisor 2. 355 Capítulo 6. Disposição do texto antecedentes. Refiro-me, aqui, em particular ao exame das notas marginais contemporâneas da cópia, executadas pelos revisores textuais da Ajuda e que, por um feliz acaso, não chegaram a ser rasuradas541. 6.4.5. As correcções marginais. Tipologia O interesse destas emendas procederá da simultaneidade com lugares variantes nos outros manuscritos, quer ofereçam lições concordantes ou lições divergentes. Já não é, hoje, possível considerar que estas notas são imputadas apenas à desatenção do copista, como o pensava C. Michaëlis (1904, I: 168-174), nem considerar que as precisões correctoras procedem unicamente do trabalho só de rectificação dos dois revisores, como previu S. Pedro (s.d.). Em síntese, diria que, antecipando a análise destes casos, quase todos os sectores abrangidos por uma proposta de correcção se ajustam a um locus suspectus na tradição. Sem contar com os três últimos cadernos, as correcções, em número bastante elevado, encontram-se ao longo de todo o códice e interferem em vários textos e em certo número de autores (JSrzSom, MartSrz, NuFdzTor, PGarBu, FerGarEsg, RoyQuey, JSrzCoe, RoyPaezRib, JLpzUlh, FerGvzSeav, PayGmzCha, FerVelho, BonGen). É preciso assinalar, todavia, que temos também algumas séries de poemas desprovidos de qualquer intervenção, mesmo no interior das secções que revelam colação. O ciclo de PSrzTav não oferece qualquer cotejo textual (fl. 8r- fl. 9v), mas é também relevante que os ciclos breves do caderno III, RoyGmz Bret, AyCarp, NuFdzCand (fl. 15r, fl. 16r-fl. 16v, fl. 17r) não contêm qualquer retoque. Vamos só reencontrar as emendas textuais com o ciclo mais extenso de NuFdzTor com conclusão já no caderno seguinte, caderno IV (fl.18r-fl. 20v). Tratase de mais um elemento que concorre para definir a singularidade deste sector542. A corroborar as características destes ciclos breves, vamos também observar que o ciclo de PGmzBarr (fl. 59r-fl. 59v) e o de AfLpzBay (fl. 60r-fl.60v), incluídos no caderno IX, não contêm igualmente correcções à margem. A mesma ausência volta a revelar-se em um outro ciclo breve, o de EstFai (fl. 65r-fl.65v) no caderno X, como se estes ciclos de limitada extensão tivessem uma tradição mais exígua que, além do texto de base, não permitisse outro confronto. Além do trabalho efectuado pelo revisor 1 no caderno VII, vamos também observar que o texto A 157 (fl. 40r) não foi objecto de correcção. Estando esta cantiga copiada pela mão 2 é plausível que ainda não estivesse copiada no momento em que operou o revisor 1. Um 541 O facto destas notas correctivas não terem sido rasuradas é mais um indício do inacabamento do Cancioneiro, não só porque nem todas foram integradas, mas sobretudo porque o responsável pela rasura, após verificação, não chegou a efectuar a eliminação. 542 Referi-me às particularidades destes ciclos breves na descrição do caderno III e no capítulo relativo à separação silábica. 356 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita argumento que consolida esta suposição é verificarmos que nenhum dos cadernos copiados por esta mão 2 (caderno XIII e caderno XIV) passou pelas mãos do revisor 1 ou do revisor 2 . A perturbação desta zona do Cancioneiro, que observámos já, evidencia também que os dois revisores não actuaram nos fl. 46r-fl. 46v543. Este fólio com um conjunto de cantigas A 180 a A 184, provavelmente final de um ciclo atribuível a JPrzAv, ao não ter sido submetido à verificação pode querer dizer que, tal como o fl. 40r (A 157), não se encontrasse ainda nesta posição no momento da revisão544. As correcções que encontramos no fl. 45v (A 178) e as que se presenciam logo no rosto do fl. 47r (A 185) revelam bem esta passagem de um fólio a outro, sem ter em consideração o fl. 46. Não deve tratar-se, efectivamente, de um salto de fólio, mas de mais um indício de que o fl. 46 não se encontraria nesta posição durante o trabalho de revisão545. Acentuando esta dependência entre o trabalho correctivo e alguns fólios de posicionamento mais frágil, é indispensável mencionar que um outro fólio (o actual fl. 74), o que servia de fólio de guarda ao códice, prévio, portanto, ao Livro de Linhagens, embora se associe textualmente ao caderno XII e ainda copiado pela mão 1, já não é submetido às anotações textuais. Outro vestígio de que este último fólio (fólio já solto?), fl. 74r, copiado pela mão 1 não se acharia nesta sequência no momento da correcção. O fólio que estava colado à tábua anterior (actual fl. 88) com o ciclo de RoyFdz, pertencendo pela organização ao sector final, com o sector de clérigos (caderno XIVa), não apresenta também correcções, tal como os cadernos XII, XIII e XIV. O controlo textual, tanto do revisor 1 como do revisor 2, denota por um lado, uma verificação que não é homogénea. Não podemos deixar de apontar a ausência de correcção em ciclos breves em relação a ciclos mais extensos providos de emendas. Por outro lado, as zonas mais instáveis do Cancioneiro manifestam alguma singularidade no trabalho de verificação. Em primeiro lugar, o caderno VII, proveniente de Évora com o ciclo de JSrzCoe, é só trabalhado pelo revisor 1. As suas propostas de emenda não foram, na maior parte, integradas pelo revisor 2 e este acaba por não ter acesso a este caderno, não se verificando nenhuma intervenção da sua parte à margem. Podemo-nos, nestas circunstâncias, perguntar se terá sido ele que integrou as primeiras propostas de correcção neste caderno (A 158, A 160, A 164). Em segundo lugar, a ausência de qualquer intervenção correctiva em sectores que, por outros motivos, denunciam instablidade na confecção do manuscrito – os cadernos finais, copiados por outras mãos (mão 2 e mão 3), o fl. 40r, copiado também por outra mão (mão 2), o antigo fólio de guarda (actual fl. 543 O desequilíbrio material é analisado nos capítulos relativos à estrutura dos cadernos (caderno VII, caderno VIIa) e à assinatura primitiva dos cadernos. 544 Cf. capítulo relativo à Escrita para a caracterização paleográfica das três mãos. 545 Além da análise estrutural relativa a este sector (caderno VII e VIIa), cf. as opiniões de A. Resende de Oliveira e de E. Gonçalves que, baseados em outros elementos, apontavam para o posicionamento irregular deste fólio (Oliveira 1994: 53, 146, 358-360; Gonçalves 2003). 357 Capítulo 6. Disposição do texto 74) e o fólio que estava colado à tábua (fl. 88) – explica que este trabalho de verificação se efectuou ainda com o Cancioneiro sem um ordenamento estável e definitivo, pelo menos, nas partes copiadas que chegaram até nós. Mais, estas correcções ao serem colocadas perante a tradição italiana vão evidenciar que os revisores do Cancioneiro da Ajuda não se serviram do texto de base que tinha sido copiado, mas recorreram a uma outra fonte para aperfeiçoar a cópia principal546. O exame e a observação sistemática destas rectificações demonstram acrescentos ou supressão de uma vogal, de uma sílaba ou, simplesmente, de uma palavra, que pode ou não ser integrada no texto, como vimos. Mas as correcções vão também envolver versos completos. Pelo contrário, os espaços para estrofes nunca foram preenchidos. Algumas emendas, todavia, não são passíveis de paralelismo com o resto da tradição por não ser praticável ajuizar o valor da correcção, porque nos encontrarmos perante unica (VaGil, JGarGlh). Desta examinatio inferem-se basicamente três situações: 1. a emenda de A opõe-se à lição de B 2. a emenda coincide com a lição de B 3. a emenda opõe-se à lição de A e de B 6.4.5.1. A emenda opõe-se à lição de B Limito-me, apenas, à exemplificação de alguns casos que documentem a diversidade547. Estes casos, que opõem os dois cancioneiros, podem-se explicar, de acordo as indicações que comparecem à margem, através de uma fórmula na qual as emendas de A1 se opõem à lição de B (A = A1 ≠ B). Estes contextos, assinalados em A1 e que se mantêm incorrectos em B, só podem denotar situações textuais diferenciadas nos antecedentes: PGarBu, Pola verdade que digo, sennor, vv. 6-7 (fl. 23v) A 93 A1 B 197 uiuer nuncalles tal uerdade negarei tal uiuer/nũcalhis [...] uerdade negarei JSrzSom, Desejand'eu vos, mia sennor, v. 20 (fl. 7r) 546 Não é fácil definir a consistência desta fonte. Não é impossível a eventualidade de mais de uma fonte, quando pensamos na heterogeneidade da revisão entre ciclos breves e ciclos mais extensos. 547 Mantendo A como sigla relativa ao Cancioneiro da Ajuda no estado em que foi copiado, reservo A1, para a correcção marginal. O sinal # corresponde ao posicionamento da integração. Como elemento comparativo, indico a lição do Cancioneiro Colocci-Brancuti (B) e, quando é possível, do Cancioneiro da Vaticana (V) que pode permitir a avaliação da consistência da emenda à margem do Cancioneiro da Ajuda. 358 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita A 27 A1 B 120 mia sẽnor sol por uos ueer sol por uos ueer mha senhor[...] p' u9 ueer FerGarEsg, Quen vus foy dizer, mia sennor, v. 3-4 (fl. 30r) A 115 A1 B 231 ca uus men/tíu # se non mal me uenna de uos uos ca uos mentiu [...] se non mal / me uenha deuos Se tivéssemos presente apenas A e A1, a consideração destes factos, ténues em conteúdo textual, não poderia impedir a convicção de uma conjectura que explicaria este tipo de correcção, independentemente da presença forçada de uma fonte diferenciada do modelo primordial. Quer dizer, o copista de A teria cometido um erro por omissão, o revisor integrava a forma ausente com auxílio do próprio modelo de base. Contudo, em estas situações de deficiência métrica, poderíamos pensar também em uma rectificação que procurasse restaurar a isometria com um cuidado exacto quanto ao lugar da emenda. Este procedimento faria então admitir, parece, a existência de um modelo que servisse para a correcção, mais do que elementares melhorias, apoiadas em competências técnicas de quem faz a revisão. Este modelo poderia, muito bem, identificar-se ainda com o exemplar primitivo, aquele que tinha já sido utilizado para a cópia principal e, desta maneira, deveríamos considerar que todo este tipo de imperfeições resultaria apenas de lapsos inerentes a qualquer mecanismo intrínseco à cópia. Mas, nenhuma destas hipóteses parece satisfazer, ao observarmos unicamente os exemplos acima assinalados. A coincidência na imprecisão tanto no copista de A como no copista de B, resultantes, como se sabe de ramos diferentes, não pode ser fortuita. É patente que o exemplar de B devia encontrar-se nas mesmas condições do exemplar de A, isto é, com a mesma imprecisão textual, antes das emendas. O confronto com outros cancioneiros mostrará, portanto, como as anomalias do copista de A se mantêm precisamente no mesmo lugar em B. Como é inverosímil que copistas diferentes, em circunstâncias isoladas, executem o mesmo tipo de infracção, devemos inclinarnos, muito provavelmente, para a existência de uma lição defeituosa na origem comum aos dois manuscritos. Observem-se os exemplos seguintes que sublinham esta situação: os dois cancioneiros desacertam no mesmo lugar, mas só no Cancioneiro da Ajuda foram possíveis, através do trabalho dos revisores, as mutações dos contextos que causavam problema: NuFdzTor, Par Deus, sennor, en gran coita serei, v. 8 (fl. 18v) 359 Capítulo 6. Disposição do texto A 72 A1 B 185 que me sera mia morte me mester me q’ mj sera mha morte [....] mester JSrzSom, Desejand'eu vos, mia sennor, v. 19 (fl. 7r) A 27 A1 B 120 e podela ya perder ider e podela ia bē perder PGarBu, Ay eu coitado! E quand'acharey quen, v. 30 (fl. 26) A 102 A1 B 209-210 de deus dela ben nen dessi d’s dela bē nē dessi de dela deus ben nen dessi Em uma composição de PGarBu (A 105), o copista escreveu a primeira estrofe sem inserir o segundo verso. De seguida, o revisor apercebe-se dessa inexactidão e reescreve à margem não só o verso que faltava, mas também o primeiro e o terceiro, de tal maneira que o copista (ou o revisor 2) integre correctamente o verso que não tinha chegado a ser copiado. A correcção é, de facto, incorporada. O escriba rasurará o que tinha já escrito e com os caracteres bem apertados, inclui naturalmente o verso que faltava, mas ultrapassando, como seria previsível, em casos como este, a réglure prevista. A observação do manuscrito B denota a ausência também deste verso, permanecendo a estrofe incompleta no códice italiano, sem vestígio de melhoria textual548. O estado primitivo de A e a disposição actual de B são, efectivamente, compatíveis ou com uma lacuna real de verso ou, se tivermos em linha de conta a natureza destes textos em verso, com uma confusão motivada pela rima que, no terceiro verso, terminava também em <en>. No entanto, como esta ocorrência se posiciona na primeira estrofe com escrita contínua, parece menos factível este erro de memorização visual ao nível da cópia de A: 548 P. Blasco na edição crítica dos poemas do trovador refere apenas «...les trois premiers vers sont répétés dans la marge...» (1984: 180). Não se trata, efectivamente, de uma simples repetição, mas de uma indicação correctiva, motivada pela ausência completa de um verso, como testemunha B. 360 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita PGarBu, Ora vej'eu que fiz muy gran folia, vv.1-3 (fl. 26v) A 105 Ora ueieu que fiz muy ğn folia 7 q. idi ali todo meu sen. por q.dixe ca nõ q.ria grã bẽ A1 Ora ueieu q fiz muy grã folia 7 q idi ali todo meu ssen. porq, dixe ca nõ qria gran bẽ B [213] Ora ueieu que fiz muj ğm folia [..............................................] por que dixi ca queria gran ben Uma irregularidade semelhante, mas muito mais complexa, figura em uma cantiga de FerVelho (A 264)549. Em A, é possível examinar o processamento do erro: o copista descurou aparentemente um verso. O revisor anula uma parte do texto transcrito com um traço horizontal, designa a lacuna com a marca de inserção e nota à margem o que é necessário corrigir. Mas, contrariamente ao exemplo precedente, a correcção não chegou a ser integrada, o que permite verificar o estádio primitivo de A e constatar que a mesma omissão vai ocorrer também em B e em V, o que significa que não se tratava de uma simples inatenção de cópia do copista de A, mas de uma deficiência material do modelo, idêntico nas duas tradições. Nestes dois cancioneiros manifesta-se, além disso, uma tentativa para modificar o texto: pode trata-se ou de uma contaminação aparente entre os dois versos (repare-se no determinante <hua> tanto em B como em V que parece uma reminiscência de <ũa dona> do v. 11 não copiado), ou também resultado de uma leitura laboriosa no arquétipo, devido a um acidente material. Estas correspondências não podem ter surgido seguramente em A, em B e em V sem admitir a presença do erro no modelo, como justamente já assinalou G. Lanciani na edição dos poemas de FerVelho550. 549 É uma cantiga com transmissão difícil, se atendermos à correcção que suscitou já no primeiro verso, a sequência <damor> que não tinha sido copiada no texto. O trabalho do revisor 1 que, neste caso, não será integrado (vemos só o traçado eliminatório no final do v. 10) mostra a dificuldade correctiva. O próprio Carter que não integra, naturalmente em uma edição diplomática, as correcções marginais no interior do texto, reservando-as para as notas de pé-de-página, aqui (talvez influenciado pela edição de C. Michaëlis), insere o verso inscrito na margem no interior do texto, salientando, em nota, a parte eliminada e a notação do verso que faltava: «This line is written in right margin; there is a superposed cross between lines 9-11 to indicate position» (Carter 1941: 155, n. 7; 156, n.1). 550 Tanto quanto sei, é G. Lanciani quem melhor se exprime acerca destas correcções marginais em A, ainda que circunscrita ao ciclo do poeta que edita, FerVelho: «A mio parere, occorre qui adottare integralmente la lezione della postilla marginale di A, perché il tentativo di salvare quanto più possibile tràdito dal ramo italiano urta contro l'esplicita intenzione del postillatore di A di ripristinare l'esatta 361 Capítulo 6. Disposição do texto FerVelho, Meus amigos, muito me praz d'Amor, vv.10-12 (fl. 72v) A 264 esto sabe d's que eu-ui-ben-falar /#/ e pareçer por meu mal e o sei A1 q. me fuỹ mostrar ũa dona q.eu uj bẽ falar B 441 e sabe d’s hua ui bē falar [……….........................] e parecer p’meu mal eu o sey V 53 e sabe d’s hu a ui bē falar [……….........................] e parecer p’ meu mal eu o sey Observando a sequência, podemos imaginar que o copista de A escreve o v. 10, transcrevendo <esto sabe d's que>, pode ter feito uma pausa exactamente no <que> e, ao voltar a olhar para o modelo, não retoma o <que> do v. 10, mas o <que> do v. 11: a. v. 10 v. 11 esto sabe d's que... ũa dona que... Com este erro, bem conhecido do «saut du même au même», o copista vai colocar no final do v. 10, o final do v.11 <eu ui ben falar>, o que lhe fará suprimir na cópia o v.11 e passar directamente para o v.12: b. v. 10 v. 11 v. 12 esto sabe d's que eu ui ben falar [ũa dona que..............] e pareçer por meu mal eo sei lettura; è da considerare inoltre che mentre A rivela chiaramente il meccanismo dell'errore (...), BV presentano una contaminazione tra i due versi complicata da quell' 'hua'(...) che a mio aviso rappresenta più semplicemente l'articolo indefinito di dona, soppravvissuto nella compenetrazione tra i due versi, verificatasi nel ramo (...). Il luogo qui discusso conferma da un lato che anche il capostipite presentava degli errori (che ne escludono l'identificazione con l'originale), dall'altro che al momento della trascrizione di A alla corte afonsina circolavano ancora i rotuli dalla cui aggregazione è derivata la tradizione canzonieresaca, e infine che quegli stessi rotuli già non erano più disponibili per un controllo dei testi al momento in cui da ω è stato ricavato il capostipite del secondo ramo (...)» (Lanciani 1977: 99, 107 [105]). 362 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Em presença do erro, o revisor 1 introduz à margem <q' me fuỹ mostrar> relativo ao final do v. 10, suprime com um risco o que estava incorrecto neste verso e transcreve todo o v.11 <ũa dona q'eu uj bẽ falar>. Portanto, a rectificação dispor-se-ia da seguinte maneira: c. v. 10 v. 11 esto sabe d's que eu-ui-ben-falar q' me fuỹ mostrar ũa dona q'eu uj bẽ falar Não tendo actuado, neste sector, o revisor 2, nem um copista que integrasse a emenda (diria quase felizmente!), estamos em condições de entender o erro e de observar o mecanismo da correcção551. Também aqui, poderíamos invocar um problema atribuível só à responsabilidade do copista de A. Mas, quando observamos o Cancioneiro Colocci-Brancuti e, também neste caso, o Cancioneiro da Vaticana, apuramos que a omissão era precedente ao trabalho do copista de A. Na realidade, este verso não foi copiado na tradição textual italiana, o que evidencia, obviamente que o exemplar possuía, de modo idêntico, esta falta. 6.4.5.2. A emenda coincide com a lição de B Neste encadeamento, podíamos supor que todos estes casos corrigidos ou a corrigir apontariam sempre para variantes nos manuscritos italianos, o que apoiaria uma recomposição mais homogénea do modelo utilizado pelos revisores de A ou, dito de outra maneira, as correcções ter-se-iam servido de um protótipo de qualidade superior ao qual o antecedente de B não teria tido acesso. Contrariamente a esta dedução, comprova-se, contudo, a harmonia total entre a lição de A já corrigida, em concordância com a nota marginal e, ao mesmo tempo, com a transcrição de B. Esta situação no cancioneiro italiano demonstra que, no exemplar deste manuscrito, estes textos continham já uma forma, equivalente à reparação de A1: JSrzSom, Muitos dizen que perderán, v. 22 (fl. 5r) A 19 A1 B 112 Comogeu uiu e non poral Comogeu uiu e nõ poral Comoieu uiue nō p’al 551 O dispositivo da correcção, aqui tomado em consideração, faculta a reconstituição das outras interferências dos revisores. Releitura, eliminação, sinal de integração e reprodução à margem do texto correcto (segundo o parecer de quem revê o texto base!) que deveria ser integrado. 363 Capítulo 6. Disposição do texto NuFdzTor, Quer eu a Deus rogar de coraçon, v. 23 (fl. 19r) A 75 A1 B 188 se non uedes quelle rogarey eu se nõ uedes q'lle rogareỹ eu552 senõ uedes q'lhi rogarei eu RoyQuey, Agora viv'eu como querria, v. 6 (fl. 34r) A 133 A1 B 254 /#/ de pois ar ui prazer deus nome se nũca ca se nũca depoys ar uj prazer de9 nō mj ca Não há, por conseguinte, qualquer variação textual, nestas circunstâncias, e encontramo-nos na impossibilidade material de saber com precisão o que subsistia previamente, isto é, o que é que foi objecto de ingerência da parte do revisor. Permanece apenas a possibilidade de prever um simples erro de copista em A ou, em alguns casos, esta hipótese poderá ser averiguada pelo exame dos sectores sujeitos a correcção, através de processos como o recurso a cabos de fibra óptica e a radiações ultravioletas (lâmpada de Wood), que poderão permitir o reaparecimento de texto, perdido, em princípio, pela raspagem. 6.4.5.3. A emenda opõe-se à lição de A e de B Ainda que mais raro, nota-se ainda um terceiro comportamento em que a correcção marginal, sem ser realmente reportada no interior do texto, nos revela três momentos textuais: a insuficiência de A, a sua própria proposição marginal e, em B, uma decisão que pode resolver a dificuldade, mas que não se encontra em conformidade nem com a lição de A, nem com a dos seus revisores (A1 opõe-se à lição de A et de B (A1 ≠A≠B), levando-nos a uma situação de varia lectio: JSrzCoe, Nunca coitas de tantas guisas vi, v. 15 (fl. 42v) A 165 A1 B 317 bis 552 A mia uentura q'reu /#/ mal muy g'am E mha uent'a quereu p'en mal Carter assinalou apenas parte da correcção marginal, se nõ uedes (1941: 45, n. 1). 364 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita FerVelho, Quant'eu de vós, mia sennor receei, v. 15 (fl. 71r) A 258 A1 B 435 V 47 e uos dix o grand amor que /#/ ei uos e u9 dixo muy g'ndamor q' ei e u9 dixo mui gndamor q' ei G. Lanciani considerou a edição deste verso, de acordo com a transcrição de B/V, e vus dix'o mui grand'amor que ei com fundamento no v. 9 que apresentava também mui gran. Acrescenta-nos, em comentário: «È probabile che entrambe le lezioni, quella di A e l'altra di BV, siano valide. E tuttavia il fatto che la lez. di A necessiti, per diventare isometrica, dell'inserimento del 'uos' postillato a margine, insinua il dubbio che la postilla possa essere opera di un lettore il quale, resosi conto che il verso era mancante di una sillaba, abbia provveduto ad emendarlo nel modo più ovvio» (Lanciani 1977: 55-61 [61])553. Trata-se realmente de um <uos> da mão do revisor 1 e não de um leitor subsequente. Certo é que será de distinguir entre uma produção escrita e uma recepção oral, mas este tipo de emenda exige um confronto não se pode socorrer da transmissão mnemónica554. Lições duplas comparecem em vários manuscritos. Poderíamos evocar a erxemplificação contida na edição de Raimon Jordan (Asperti 1990: 253), ou no Cancioneiro H, mesmo se é difícil compreender na totalidade a proveniência da operação de colação555. Destas notas, retiram-se, além disso, lições adiáforas em que a indicação marginal de A não concorda com a lição de B556. Não se trata nem de acrescento, nem de eliminação, mas pura e simplesmente de lições variantes, o que não quer dizer que possam ser irrelevantes557. 553 Lições deste tipo eliminam a exclusividade da verticalidade da tradição e apontam para uma confluência de variantes alternativas. E Contini bem lembrava que «ci può essere contravvenzione anche all'univocità, nel senso che l'esemplare può contenere, in interlineo o in margine, varianti redazionali (nei casi-limite, d'autore), offerte alla scelta dei copiatori» (Contini 1986: 89). 554 A ampla discussão entre transmissão escrita e transmissão oral, largamente discutida, não deixou de mostrar alguns casos que se explicariam pela oralidade, como procuraram demonstrar A. Tavera (1978) e M. Eusebi (1983ª, 1983b). O âmbito teórico e metodológico que se adequa à passagem da memoria al codice é examinado por C. Segre (1992). 555 As irregularidades só se podem pressupor ao imaginar que o copista tenha recorrido inicialmente a um exemplar que traria variantes de diversa proveniência e que, em outro momento, tenha ainda recolacionado com um exemplar alternativo (Careri 1990: 156-158). 556 As lições adiáforas concorrem para a consideração de variantes ocorridas ao nível da produção e não só motivadas pelo prejuízo da transmissão. Deste princípio, se conjecturaram variantes redaccionais imputáveis ao próprio trovador como, por exemplo, observou A. Roncaglia em Marcabruno (Roncaglia 1957). 557 Será de aplicar, nestes casos, o critério da lectio difficilior com a escolha lexical, ou sintáctica, mais rara, embora neste género de textos, inerentes ao rigor métrico, a banalização não seja o modo de proceder mais comum. As intervenções, em algumas destas correcções marginais com inserção métrica, 365 Capítulo 6. Disposição do texto MartSrz, Mal consellado que fuy, mia sennor, v.16 (fl. 12v) A 51 que uiss o uosso muy bon pareçer A1 muy bõ pareçer B 163 que eu uisso uosso [...] bō parecer MartSrz, Quando me nembra de vós, mia sennor, v.19 (fl. 11v) A 47 mais tollemẽ log aqueste cuidar A1 log B 159 mays tolhemen [....] daqste cuidar V. Bertolucci, na sua edição dos textos de MartSrz em A 51, assinalando as «lievi diversità di lezione, indifferenti riguardo al senso e alla metrica», optou pela lição de B 163 transcrevendo neste v. 16: que eu viss'o vosso bon parecer, enquanto C. Michaëlis tinha seleccionado a lição corrigida de A: que viss'o vosso mui bon parecer (Bertolucci 1963: 89-91; Michaëlis 1904, I: 109)558. No entanto, em A 47, a filóloga italiana escolheu a lição mays tolhem-me log'aqueste cuidar, modificando a leitura de C. Michaëlis Mais tolhe-m'én log'aqueste cuidar. Pode dizer-se que em A, o verso apresentava problemas patentes, no mínimo, através da integração de log (Carter 1941: 30, n. 2; Molteni 1880: 65; Michaëlis 1904: 101; Bertolucci 1963: 82-83). 6.4.6. A importância da colação A observação das correcções marginais – contraste ou coincidência com os outros manuscritos – revela alguns componentes determinantes na história da tradição galego-portuguesa559. Se para as coincidências de lições pouco haveria a dizer, senão corroborar uma tradição unitária e concordante, no caso das divergências, é preciso, no entanto, admitir uma dinâmica diferente. poderiam resultar deste conhecimento técnico (hipermetria, hipometria), quer dizer, «interventi consapevoli» como diria A. Roncaglia (1974-1975: 102). 558 A constatação de que este verso oferece duas tradições lições indiferentes é solidificada por situações paralelas nos vv. 3 e 4: ca nuncar pudi gran coita pder (A) e ca nũca pudi gram coyta pder (B) e nen perderei ia mentreu uíuo for (A) e nen perderey ia mentre vivo for (B). Mas, nestes dois versos da 1ª estrofe, não se encontram sugestões de correcção no Cancioneiro da Ajuda (Carter 1941: 33; Molteni 1880: 66). 559 A grande vantagem do inacabamento do Cancioneiro da Ajuda situa-se, justamente, no plano deste trabalho de colação que deixou marcas na maior parte do manuscrito, mostrando-nos uma fase importante não só na confecção do códice, como na tradição da lírica amorosa iminente, pelo menos, neste Cancioneiro. 366 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Esta ideia, sem comprovação irrefutável, implicaria assumir uma postura diversa daquela que, em geral, se adopta perante o Cancioneiro da Ajuda. Ao não nos defrontarmos com um objecto resultante de uma cópia singela de um modelo estável, a atitude a tomar perante o exame crítico de qualquer um dos textos nele incluídos, não poderá dispensar-se de inserir na recensio as emendas registadas à margem. Não falarei de uma influência exercida sobre o manuscrito por mais de um modelo no momento estrito da cópia, mas não se poderão ignorar fenómenos de contaminação no momento da emendatio. Uma emendatio a situar entre o original e o arquétipo à qual não se devem dissociar a filologia de Autor, problemas de variantes redaccionais e problemas estratégicos a conferir ao uso destas emendas. As escolhas não são realmente mecânicas (usus scribendi e lectio difficilior), mas os efeitos desta contaminação será determinante na configuração do stemma codicum. Mais, será imprescindível e razoável entrever a instabilidade do stemma na ramificação correlativa ao lado esquerdo com filões aparentemente autónomos (ou então filões já corrompidos). A aporia de fundo da crítica textual não aparece, aqui, como uma evidência relativa só à interpretatio, mas à reconstrução proposta que não se coibirá de um iudicium em relação à prioridade dos estádios da tradição manuscrita presente no Cancioneiro. Ora, a tradição manuscrita deste ramo implica que, mesmo ao aceitar a prioridade do iudicium que delibera, não pode desaproveitar este híbrido processo de contaminação no plano de uma emendatio contemporânea da cópia. Contrapor-se-á que, em uma tradição de base antológica, não é a uma reductio ad unum, que os materiais, por definição de conteúdo, se encontram ou associados, ou mesmo já amalgamados. A própria definição de um Cancioneiro deixa transparecer uma recolha de canções. Seja uma recolha de materiais a não perder, seja uma colecção de prestígio, ou uma compilação temática, a execução organizativa estará sempre dependente, em teoria, da presença de outros protótipos, resultando, portanto, em uma tradição de base compósita560. Clarifico 560 Foi este um dos argumentos (transmissão por colação de exemplares) que eliminaria a possibilidade de um tratamento crítico baseado em uma transmissão vertical (método lachmanniano) (Frank 1955). Para S. Timpanaro (ensaio revisto em 2002), a prevalência de stemmi bipartidos deveria ser explicada por várias causas: alterações, contaminações, actividade emendadora dos copistas, erros de classificação. Muitas edições concentraram-se em um único manuscrito (le bon manuscrit, bédieriano) e inseriram-se no plano da mouvance textual com a edição, quase sinóptica, de Pickens do cancioneiro de Jaufre Rudel (1978), ou na reflexão sobre a «Re-creation» na produção trovadoresca de A. Van Vleck (1991). Mas releiam-se as opiniões tanto de Marshall 1975, como sobretudo a de Roncaglia (1978c) e, naturalmente, a renovação metodológica com Contini (1986), exemplificada em diversos ensaios (1978, 1979). Com este apuro metodológico, citem-se as edições do trovador Raimon Jordan por S. Asperti (1990) ou mesmo a de G. Chiarini com Jaufre Rudel (1985) que se inserem em uma assumida metodologia neolachamnniana. Uma comparação metodológica com fundamento nos dois tipos de edição de Jaufre Rudel é proposta por M. L. Meneghetti que reflecte na arte de editar o trovador (1991). 367 Capítulo 6. Disposição do texto melhor este ponto: contrariamente a outras tradições (provençal, por exemplo), em que a tradição antológica é tardia, periférica e contaminada, a tradição ocidental ibérica é menos periférica, é menos tardia, talvez menos contaminada no enquadramento da cópia, porque é uma tradição menos interrupta. Assim, se reconhecia o ramo correspondente ao Cancioneiro da Ajuda. Uma cópia marcada pela sua primazia, mas uma cópia que, ao revelar-se como incacabada, apesar de tudo, retratava um modelo estável. Os reencontros entre os três manuscritos na sequência dos textos e de autores permitem imaginar, pertinentemente, um arquétipo comum. Na realidade, C. Michaëlis, como temos já visto em diferentes ocasiões, julgava estar perante um fragmento de um projecto mais completo, uma espécie de Cancioneiro Geral de poesia (de amor) galego-portuguesa (1904, II: 180, 210, 286-288). Mais tarde, G. Tavani demonstrava que os três manuscritos eram bem a consequência, em diferentes modos de um cancioneiro copiado na corte de Castela (2002: 98-130 [101]) Considera-se como hipótese mais provável que o manuscrito A seja o resultado parcial de uma cópia de um Livro e não de uma antologia, feita directamente, a partir de Liederblätter como o sublinhou E. Gonçalves (1991: 447-467 [451])561. Mas é claro que a fonte dos revisores do Cancioneiro da Ajuda, em muitos casos, oferecia uma lição que foi considerada de melhor qualidade. Esta fonte (este exemplar de confronto ou estes materiais avulsos que serviam para corrigir) não pôde ser integrada na formação do ramo que dará origem aos cancioneiros italianos. Mais, esta fonte não contemplou também todos os ciclos, se pensarmos que é um pouco surpreendente que os ciclos breves não tenham tido necessidade de qualquer correcção. Esta evidência diz-nos que a tradição da lírica galego-portuguesa no lado esquerdo do stemma não se transmitiu só por um esperável sentido vertical, mas acolheu nítidas mudanças que intervieram no plano horizontal. Este processo de contaminação de algumas lições, consequência de uma colação executada com outro material (ascendente, por certo) não se concretiza facilmente entre uma contaminação simples (com base em um único exemplar de confronto) ou em uma contaminação fraccionada (com base em sucessivas colações, com mais de um exemplar). Um exemplar compacto levaria a pensar em uma correcção compacta, dir-se-ia. Mesmo se deixarmos de lado os últimos cadernos consecutivos, XII, XIII e XIV, que não foram revistos – seria fácil imaginar uma paragem do trabalho de revisão nesta parte final –, continuam a ser enigmáticas as ausências de correcção nos ciclos de alguns autores e é, igualmente espinhoso, avaliar as pausas de trabalho do revisor 2, sobretudo no interior do caderno VII. Talvez seja 561 De algum modo, Resende de Oliveira não se afasta muito desta hipótese no seu ensaio dedicado à constituição dos materiais (1988: 691-751 [716-719]). 368 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita necessário evocar P. Maas e a sua complacência: «...contro la contaminazione non si è ancora scoperto alcun rimedio...» (Maas 1966: 62). Ou compartilhar com G. Pasquali o mesmo embaraço: «Ancor oggi io ammetto con lui [Maas] che recensione rigorosa non è possibile se non quando la tradizione sia verginale. Ancor oggi io son pronto a sottoscrivere la proposizione con la quale finisce questa seconda edizione: 'Contro la contaminazione... » (1952: VIII-IX)562. De qualquer modo, o que parece muito significativo no caso do Cancioneiro da Ajuda, além de uma eventual contaminação, é comprovarmos que a elaboração deste Cancioneiro foi submetida a uma revisão textual que pressupõe um material lateral não conhecido no resto da transmissão da lírica medieval. Este facto não pode ser dissociado de qualquer diligência no âmbito da crítica textual do corpus de cada um dos trovadores submetidos a esta prática. Ao pôr em evidência as zonas de texto corrigidas em A com idênticos contextos variantes em B, distancio-me da impressão de C. Michaëlis que considerava que estas notas não obrigavam a «postular que o revisor se serviu, alem do original copiado, de segundo exemplar mais correcto» (1904, II: 173). Os diferentes modos de operar no texto do Cancioneiro da Ajuda (em que A1 se opõe à lição de B; em que A1 se aproxima da lição de B e em que A1 se contrapõe à lição de A e B) não podem assim resultar de imperfeições devidas ao acto de cópia, mas pelo contrário documentam uma colação sucessiva com um outro material, reputado de melhor qualidade por quem tinha a obrigação de controlar a transcrição dos textos. Dito isto, e apesar da qualidade textual de A, apesar da sua rígida estrutura do ponto de vista da distribuição dos textos, de autores e de decoração, são patentes dispositivos textuais que, associados a outros elementos (textos com espaço destinado a estrofes que nunca chegaram a ser completadas, alternância de previsão musical nas fiindas, separação silábica irregular de algumas palavras na primeira estrofe, secção híbrida no final do códice), parecem reflectir uma realidade muito mais dinâmica no objecto ou nos objectos que serviram de modelo ao Cancioneiro da Ajuda (Ramos 1983, 1984). A apreciação destas notas marginais do Cancioneiro da Ajuda que integram, que eliminam, que substituem ou que completam lições imperfeitas faz crer, portanto, de uma maneira mais fiável, a uma outra fonte independente do modelo comum (em alguns sectores) 562 Estes problemas da contaminação foram largamente examinados por Pasquali (1952), Contini (1986) e, em particular, por D'A. S. Avalle que submeteu a exame a tradição cancioneiresca (1978, 2002ª, 2002b, 2002c). Veja-se, agora, a nova edição do seu fundamental estudo sobre I manoscritti della letteratura in lingua d'oc e a minuciosa revisão bibliográfica inserida por L. Leonardi (1993: 23-59). A. Dain admitia mesmo que a colação competia ao responsável do scriptorium: «c'est au chef d'atelier, au directeur du scriptorium qu'incombe ce soin. C'est lui qui confronte, ligne à ligne, le modèle et sa copie, qui corrige les fautes, et au besoin comble de sa main les lacunes» (Dain 1975: 38), porque seria pouco económica uma cópia, na qual o copista utlizasse mais de um exemplar, transcrevendo ora um, ora outro, como afirmava Maas (1966). 369 Capítulo 6. Disposição do texto aos três manuscritos colectivos. Esta fonte não se pode assimilar ao arquétipo se se reconhece a ausência de versos. E esta fonte também não se pode reconhecer no arquétipo se se verifica que não são integradas as estrofes nos espaços vazios (exceptua-se um caso de estrofe suplementar onde não havia espaço563). A irregularidade deveria encontrar-se no arquétipo comum, o que pode querer dizer, como hipótese, que o material utilizado pelo revisor de A era um material pré-arquétipo. É praticamente impossível definir o estatuto e a extensão desta fonte, porque tanto podemos pensar ou num cancioneiro incompleto, ou em uma pequena antologia, ou em um material ainda não completamente reunido, em resumo, em uma fonte em estado fluido que podia conter já lacunas de estrofes, visto que o revisor que integrava versos nunca chega a inserir estrofes que faltavam algumas vezes, se exceptuarmos o ciclo de PayGmzCha que parece ter beneficiado de uma conjuntura particular. Houve, por certo, uma fonte que não se pode identificar com o arquétipo comum aos três cancioneiros. Será necessário, deste modo, propor hipóteses tendo presente o tipo de emendas (por omissão, por composição, ou por substituição). Admitir um material em estado mais solto, misto ou, pelo menos, reconhecer a existência de duas fontes insólitas nas correcções presentes no Cancioneiro da Ajuda: uma responsável pelas inovações em que o Cancioneiro coincide com os manuscritos posteriores e que poderia situar-se na primeira ramificação do stemma; outra, desajustando-se da anterior, poderia identificar-se a uma fonte lateral independente, usada só pelo revisor do Cancioneiro. Esta, ao contrário, colocar-se-ia fora do stemma dos cancioneiros conservados e parece-me legítimo caracterizá-la como um cancioneiro parcial ou como uma pequena antologia, ainda que não se possam excluir fólios volantes, recolhas individuais, etc. Um decurso extra-stemmatico, portanto. Estas anomalias tocam uma quantidade significativa de textos e de autores mas, paradoxalmente, não dizem respeito à última parte do cancioneiro que, por outros motivos, se distingue como uma secção muito mais heterogénea564. De uma maneira esquemática, podemos supor que se tratava de um material pré-arquétipo no interior do stemma, ou mais prudentemente, de um material paralelo ao arquétipo, mas fora 563 Todos os casos de espaço para estrofe nunca foram preenchidos, mas como esta situação se verifica na primeira parte do ms., não é impossível que as integrações mais amplas aguardassem um outro momento. Pelo contrário, já em fase mais avançada da cópia, no ciclo de PayGmzCha (A 250), a integração da estrofe suplementar, não prevista por um qualquer espaço, deve depender de um contexto diferente na inserção do ciclo deste trovador. 564 É, nesta secção, que se verifica, por um lado, um caso de dupla tradição já estudado por G. Tavani (1963: 205-214); por outro, a existência de algumas séries de anónimos (que não chegaram a ser incluídos nos testemunhos posteriores) e a inclusão inesperada, em este tipo de cancioneiro, de dois clérigos, MartMo, RoyFdz (Oliveira 1988: 699-701; 708-709 e depois no seu estudo mais desenvolvido em 1994). Todo este sector é também examinado nos capítulos relativos à caracterização dos copistas e na estrutura destes cadernos. 370 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita do stemma565. Qualquer uma das proposições indica para o Cancioneiro da Ajuda uma posição bastante alta no stemma com comprovação directa de uma tradição dinâmica com circulação de materiais no momento da sua composição (Figura 13). ω ω ω1 ω1 ω2 ω2 ? A B α A α V B C V C Figura 13 – Stemma(s) da tradição manuscrita (Ramos 1993) Assim: a) w1 equivale a um estado pré-arquetípico, definível através de material fluido (transmissão vertical?), mas aparentemente com lacunas de estrofes (não é claro se a não inserção de estrofes nos espaços que as aguardavam, não terá dependido de um escrúpulo estético – não escrever em cursivo uma estrofe completa à margem–)566; b) w2 corresponderia a um estado arquetípico, mas com erros, com lacunas de estrofes e de versos que se mantêm na cópia inicial de A e na tradição italiana. Ou: c) w1 condiziria com a situação mais plausível, isto é, material paralelo (transmissão horizontal) ao arquétipo, mas exterior ao próprio stemma, o que explicaria que não observamos uma colação compacta em todos os sectores do manuscrito. 565 Embora me circunscreva ao lado esquerdo da tradição, parece-me útil a inclusão de todo o stemma. Sirvo-me da representação mais simplificada publicada por E. Gonçalves (1993). 566 O caso da estrofe à margem (A 251) no fl. 68r corresponde ao ciclo de PayGmzCha que, como vimos, apresenta outras particularidades no interior do ciclo (texto duplo, por exemplo). 371 Capítulo 6. Disposição do texto Se é verdade que estamos perante uma tradição homogénea extremamente estreita, e empobrecida em número de cópias colectivas, o Cancioneiro da Ajuda, considerado cópia de qualidade, mas sem filiação, propõe-nos a existência de outros manuscritos, dado essencial na reconstituição material da tradição manuscrita galego-portuguesa. No fundo, as anotações marginais que emendam o texto permitem recuperar a atestação de materiais (códices ou objectos avulsos) com melhor autoridade textual, anteriores ou paralelos à constituição do arquétipo. 6.4.7. Comentários ulteriores Menos importantes para a avaliação textual, mas muito significativas para a história do manuscrito são as abundantes notas mais tardias, inscritas também nas margens do manuscrito. Diferentes leitores introduziram pareceres à margem dos poemas e alguns dos juízos emitidos devem pertencer ao século XV567. Destas notas são, em primeiro lugar, importantes as marcas de posse, sobretudo, os autógrafos de Pero Homem568. Em segundo lugar, uma das talvez mais antigas referências deve ser a que menciona junto à composição A 232 de JGarGlh, o comentário – e deste aprendeo joam de mena (fl. 62v)569. A análise paleográfica desta anotação permitiu a S. Pedro considerar que esta letra cursiva se identificaria com uma joanina característica do século XV em Portugal. Quando analisei a assinatura de Pero Homem e este relevante reparo para a definição do perfil do possuidor do Cancioneiro da Ajuda, subentendi que pudesse ter sido da autoria de Pero Homem a alusão a Juan de Mena (Ramos 1999). O exame de S. Pedro considera que a mão que alude Juan de Mena é a mesma (mão A) que comentou outras cantigas no caderno I (fl. 1r, fl. 3v, fl. 4v, fl. 5r, fl. 5v, fl. 6r, fl. 7r, fl. 7v), no caderno X (fl. 62r, fl. 62v, fl. 63r) e nos cadernos XIV e XIVa (fl. 81v efl. 88v). Esta mão introduziu alguns comentários espirituosos: <diz uerdade> (fl. 1r), <este avia ẽnveia aos q'via morrer> (fl. 1r), <mylhor he mto dizello logo> (fl. 6r) ou <ao demo ao demo o amor> (fl. 88v)570. 567 C. Michaëlis considerou-as como notas de «cinco leitores que inscreveram as suas observações no codice» (1904, II: 175). S. Pedro contabilizou cerca de sessenta anotações tardias por mais de um utilizador (mãos A, B, C e D), diferenciadas por cronologia paleográfica ou por conteúdo (Pedro s.d.). 568 A análise relativa às assinaturas do poeta inserido no Cancioneiro Geral foi incluída no capítulo a ele dedicado. 569 Esta nótula de comentário comparativo entre JGarGlh e Juan de Mena foi analisada no capítulo dedicado a Pedro Homem. 570 Os comentários foram reproduzidos por C. Michaëlis (1904, II: 175-176) e por H. H. Carter (1941: 185-187). Ultimamente, S. Pedro ao identificar os tipos de mão, reproduzi-as na sua apresentação ao Colóquio Cancioneiro da Ajuda (1904-2004) a publicar. 372 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Outra mão (mão B), talvez dos finais do século XV, anotou pontualmente o fl. 23r <R°(?) bõo diz' dasã>571 e o fl. 42v <[...] mal aq'e q'r bem a sua amỹgo [...] aq'r mal lhes (?) q'r>572. Seguem-se alguns comentários com epítetos de qualificação em quase duas dezenas de composições (S. Pedro assinalou dezassete comentários) por uma outra intervenção (mão C), com uma escrita semelhante à que se encontra em documentação portuguesa entre finais do século XIV e princípios do século XVI: <boa> (fl. 1v), <Muito boa> (fl. 16r), <mui boa> (fl. 18r), <muj mujto boa> (fl 71v)573. Em conformidade com as particularidades paleográficas, podemos então dizer que, além da marca de posse de Pero Homem, datável de finais do século XV, remontam ainda a este século as duas mãos (mão A e mão B) que introduziram comentários jocosos ou de apreciação a algumas cantigas. Já do século seguinte, XVI, deve datar a mão C que se pronunciou sobre a qualidade de algumas cantigas. E deste século, ou já do início do seguinte, XVII, deve ser a introdução da estrofe marginal anexada a A 130574. Mais significativa é, portanto, esta nova mão (mão D) que transcreve a estrofe do fl. 33, variante de primeira estrofe de A 130, cantiga atribuível a RoyQuey, por tratar-se de um exercício de modificação métrica. Trata-se de uma mão mais tardia do que as anteriores com uma letra humanista de finais do século XVI ou de princípios do século XVII próxima da morfologia da grafia de Gonçalo Gomes Mirador, indivíduo que exercitou a sua assinatura no fl. 86v. Destas notas, retiram-se dois dados dignos de consideração. Um mostra-nos a actividade do Cancioneiro durante este período com leitores que inscreveram opiniões acerca do seu conteúdo. Outro factor, com certeza, mais proeminente, relaciona-se com a língua em que todas as notas foram escritas. Todas elas foram redigidas em português, o que vem documentar que o 571 Sigo a leitura de S. Pedro, apesar da dúvida quanto ao <R°> inicial. Carter não leu o <R°> do começo da anotação, talvez por o considerar um outro sinal (de integração?) e inclui em nota de rodapé e não no Appendix II, Marginal Notations, a leitura desta anotação bõo diz' da fa (1941: 55, n. 1). C. Michaëlis, por sua vez, leu bõo dizer daran (1904, II: 178). 572 Carter transcreveu: mal aqẽ q'r bem a sua amiga / al a qẽ mal q'r (1941: 186) e C. Michaëlis interpreta, reconstituindo, [este] quer mal a quem quer bem a sua amiga [e mal] a quem a mal quer (1904, II: 176). 573 As ocorrências são referidas por C. Michaëlis (1904, II: 175) que as inclui também no comentário às cantigas que receberam tal atributo, A 3, A 10, A 24, A 64, A 78, A 81, A 86, A 87, A 88, A 93, etc. (1904, I: 10, 54, 137, 166, 171, 184, 186, 188, 197). 574 C. Michaëlis considerou que seria de «mão e lettra bastante moderna, talvez do sec. XVI, infelizmente quasi apagada, uma variante da primeira estrofe (...). Talvez a tentativa, de resto mal sucedida, de um leitor quinhentista, que desejava melhorar i. é modernizar a velha poesia, substituindo os nonarios graves por decasyllabos» (1904, I: 263). Admitia mesmo que esta letra se aproximaria com a de António Ferreira por sugestão paleográfica: «(...)apresenta semelhanças que á cautela chamarei ligeiras com a do Dr. Ferreira (...)» (1904, II: 127). A estrofe, de decifração difícil, foi transcrita por C. Michaëlis (1904, I: 263) e por H. H. Carter que segue a leitura da edição de 1904 (1941: 186). 373 Capítulo 6. Disposição do texto Cancioneiro, durante este período, devia permanecer em ambiente de língua portuguesa, acentuado pela assinatura de Pero Homem, poeta do Cancioneiro Geral. A conjectura permite supor que, após a morte de Pero Homem, teria permanecido neste meio575. De todas estas notas, inseridas tardiamente, vale a pena ainda mencionar a anotação que se lê no fl. 23v, junto ao primeiro verso da segunda estrofe da cantiga A 92/B 196, SE deus me ualla mia sennor de [PGarBu]. C. Michaëlis tinha considerado como nota endereçada ao rubricador e é, por isso, que a leu como altuxo: «...por ventura fosse dirigida ao illuminador, marcando-lhe as dimensões do E, com que havia de principiar a 2ª estrophe.» (1904, I: 195). Mas volta a reflectir nesta anotação, mencionando a advertência paralela que se encontra no Cancioneiro Colocci-Brancuti: «No CB ha junto á cantiga B 266 (=252 [Molteni 1880]) a nota cartuxo. Será erro por o altuxo? Ou nome de auctor alias desconhecido?». A sua perplexidade acentua-se no comentário à edição desta cantiga de B 266, introduzida nos Appendices, editada como A 414: «Nota de Colocci, cuja significação não percebo: Cartuxo» (1904, II: 174, n. 2; 1904, I: 817). S. Pedro no seu exame paleográfico (s.d.) confirma que a forma que se encontra no Cancioneiro da Ajuda corresponde justamente a <cartuxo>. No estudo dedicado ao Cancioneiro Colocci-Brancuti, A. Ferrari referia-se a esta anotação na descrição do caderno 8, assinalando que, pela mão de Colocci, se encontrava enquadrada no fl. 68v, entre B 265 e B 266, a palavra Cartuxo. Não admitindo qualquer alusão atributiva, A. Ferrari interrogava-se: «Sarà troppo azzardato collegare a tale situazione la scritta colocciana Cartuxo presente alla c. 68vA? Ciò sarebbe possibile considerando 'cartuxo' una lusitanizzazione dell' italiano 'carticino', nel suo senso tecnico-codicologico di 'lembo', lì anotato a significare che l'omologa della c. 68 andava tagliata via» (Ferrari 1979: 104-105). Cartuxo em B 266 encima, de facto, o incipit, Poys minha senhor me mãda de RoyQuey que não é transmitida pelo Cancioneiro da Ajuda. Neste Cancioneiro, se não há coincidência nem quanto ao texto, nem quanto ao trovador, nem quanto ao lugar da nota, o paralelismo entre as duas indicações não deixa de nos interrogar. Se a hipótese de A. Ferrari apontaria para uma interpendência da anotação com «carta» em um cancioneiro cujo suporte material é o papel, no Cancioneiro da Ajuda esta indicação parece mais difícil de encontrar semelhante justificação. Confesso que, de imediato, não entrevejo uma explicação decisiva para este tipo de nota, mas a conexão com uma nota técnica, relativa a um pormenor do suporte material, deve eliminar-se, pelo menos, no Cancioneiro da Ajuda. Tratando-se de uma nota tardia de 575 A propósito da permanência do Cancioneiro em ambiente português, cf. também o capítulo relativo à Encadernação. As hipóteses, apontadas quanto aos motivos gravados na pele que cobre as tábuas de encadernação, sugerem um molde parisiense, mas não há nenhum outro indício de que o códice tenha estado fora de um ambiente português. 374 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita comentário (e não do copista ou de um dos revisores) que parece direccionada para os primeiros versos desta segunda estrofe de A 92, vv. 8, 9, [E] por non soffrer a maỹor / coita das que d's quis fazer, não me pareceria impossível, pelo teor dos versos, que se trate de uma alusão ao cartuxo, propriamente dito, quer dizer relativo à ordem cartuxa ou ao espírito religioso que pertence a essa ordem. Um conteúdo dos versos que teria inspirado ao comentador uma alusão ao espírito eremítico e contemplativo cartusiano576. Se esta suposição possui alguma legitimação, encontraríamos aqui talvez mais um elemento que coligaria o Cancioneiro da Ajuda ao meio eborense. Um anotador que não poderia ignorar o espírito dos cartuxos, que não estaria afastado de um ambiente que construía e inaugurava a Cartuxa de Évora com o ingresso dos primeiros monges nos finais do século XVI. A nota colocciana Cartuxo no Cancioneiro Colocci-Brancuti, entre dois textos, e envolvida por um rectângulo, que a coloca em evidência (por não ser compreensível?577), ao apresentar características linguísticas portuguesas, talvez tenha de ser examinada à luz de uma eventual anotação que, no antecedente de B, faria uma alusão, talvez paralela, à que se encontra no Cancioneiro da Ajuda. Devem ainda incluir-se neste conjunto de escrita tardia, os ensaios que se acham inscritos sobre todo o fl. 87r que se encontrava colado à tábua posterior. Embora estes casos não se possam intercalar na importância dos precedentes, acabam por denunciar, ainda que de modo mais misterioso, a passagem do códice por um ambiente pouco culto no qual o acesso ao Cancioneiro e, em particular, a este fólio em branco não foi impeditivo para a inserção de vários ensaios de pena, desenhos, frases, vocábulos do mais largo teor, etc. Este tipo de ensaio instintivo que comparece em outros manuscritos medievais, aqui assume, de novo, importância por desvendar um espaço menos atento à qualidade do códice578. Adaptam-se estes escritos espontâneos a meios alfabetizados ou semi-alfabetizados e, segundo S. Pedro, algumas fórmulas protocolares sugerem um ambiente proximo da Corte ou da Chancelaria régia. Como vimos, o 576 A ordem religiosa de grande austeridade e recolhimento, fundada por São Bruno em 1066 é introduzida em Portugal no século XVI. A Cartuxa de Santa Maria Scala Coeli foi construída em Évora, entre 1587 e 1598, pelo Arcebispo D. Teotónio da Casa de Bragança que tinha contactado com os cartuxos em Paris (1559). É pela contemplação, pelo silêncio, pela solidão, pela oração, pelo ascetismo e misticismo que se caracteriza o mundo dos cartuxos. A biografia de D. Teotónio, introdutor da ordem em Portugal, e a descrição da sua importante biblioteca são apresentadas por I. Castro (1984: 202- 272). 577 Se, de facto, cartuxo, pode relacionar-se com a ordem monástica, a forma portuguesa não se aproximaria, à primeira vista, da correspondente italiana ordem «certosina». 578 Não são infrequentes estes esboços de escrita em códices inacabados com pergaminho disponível, e códices com itinerários pouco estáveis. Cf. exemplos em ambiente italiano que têm sido apontados por A. Petrucci que publicou vários ensaios a este propósito (1978, 1992, 2001). O desenvolvimento de processos de escritas alfabetizadas ou semi-alfabetizadas é um dos mais amplos campos de investigação do paleógrafo romano. Títulos consultáveis na publicação da casa editora Viella (Roma), Bibliografia degli scritti di Armando Petrucci (I libri di Viella, 32), 2002 e também no levantamento de M. Palma, consultável em: http://www.let.unicas.it/links/didattica/palma/bibpetru.htm. 375 Capítulo 6. Disposição do texto códice encontrava-se neste período com Pero Homem, ainda próximo da Corte, mas já nas mãos de uma pequena nobreza. Deste fólio, devem ser postas em evidência as frases relativas ao rei D. Duarte <Dom Eduarte pela graca de deus rei de putugal e do algarue e senoor de ceta> e a que se refere a um sinal de propriedade <este lyuro hez do colaco>, uma e outra, recentemente circunscritas por A. Resende de Oliveira ao ambiente quinhentista português com notável circulação dos cancioneiros579. 579 É examinada, neste estudo de A. Resende de Oliveira (s.d.), a permanência de Cancioneiros em Portugal durante os séculos XIV e XV e, ao memo tempo, são evocadas as relações entre a Corte e os possíveis possuidores. Do seu trabalho sobressai a possível passagem do códice da corte régia para a pequena nobreza e a identificação do «colaço do infante» com um familiar de Pero Homem. Cf. capítulo dedicado às marcas de posse. 376 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita 7. Decoração 7.1. Procedimentos decorativos em cancioneiros Durante o período medieval, a eventual relação ou solidariedade entre imagem e texto tem sido, regularmente, explicada através de uma imperativa complementaridade, como se a imagem não pudesse ser dissociada do texto, ou se o texto não possuísse autonomia sem o esclarecimento imagético. A representação de figuras, a preferência por certas cores e o aproveitamento do espaço não pareceriam ser derivados de atitudes gratuitas, mas procedentes, quase sempre, de uma concepção bem estruturada, uma espécie de sintaxe decorativa na qual se espelhariam práticas sociais, apelos simbólicos, cenas mais ou menos complexas que se integrariam, na cadência de uma coloração precisa, ou até na inevitável proporção no arranjo de uma harmonia que se ajustasse ao espelho do fólio580. A construção da imagem procura, portanto, dispor a representação humana, fito ou zoomórfica no espaço social ou no campo simbólico onde a emblemática figurativa tem sido, até às análises mais recentes, um dos aspectos mais recuperado no exame da arquitectura ou da própria estatuária. A releitura pictórica não será naturalmente unilateral e não serão poucas as formas que vêm documentar este forte vínculo entre texto e imagem581. As extrapolações não são, no entanto, incontestáveis na busca de um ou outro sentido que cada elemento ou cada cor poderá trazer à complementaridade interpretativa582. Projectos decorativos que, na maior parte das vezes, procuraram ajustes, através de correspondências ou reenvios à decoração da própria mise en page destas composições poéticas, resultando em formas de susceptibilidade e de estética que, hoje, nem sempre são perfeitamente 580 Podíamos chamar atenção para a história das cores: o azul, por exemplo, que é menosprezado por Gregos e Romanos, torna-se uma das cores mais preferida pelo ocidente europeu e podíamos também apelar a simbologia que vai ilustrar a ausência de arbitrariedade na utilização de determinada cor. Mas, mais do que tudo isto, valeria a pena, reflectir aqui na interdependência das cores durante este século como, por exemplo, a representação da Virgem, as ‘cores’ do rei de França ou do rei Artur, a ordem colorativa no culto, no vestuário, na arte, etc. (Pastoureau 1986; 2002). Mas podíamos também aludir aos estudos que têm examinado as proporções decorativas entre a mancha e as margens, entre o negro e o claro, as divisões textuais com fundamento em procedimentos decorativos coerentes desde a miniatura à capitalização e às iniciais secundárias (Alexander 1978: 87-116). O preparo de «como se fazem as cores das tintas todas pera alumiar os livros» comparecerá no livro de Abraão b. Judah ibn Hayyim, provavelmente escrito em Loulé em 1462 (Sá 1960; Blondheim 1928, 1929, 1930). 581 A este título, em uma das colunas proveniente da antiga fachada norte da Catedral de Santiago, observa-se a imagem de um guerreiro adormecido, com as suas armas e a cavalgadura a bordo de uma barca sem leme. Trata-se de uma representação que só pode sugerir uma versão primitiva do Livro de Tristan que deveria ser conhecida em Santiago de Compostela por volta de 1110. Recorde-se também, neste âmbito, a imagem de vários jograis representados no refeitório do Palácio Arcebispal de Santiago, «amenizando o banquete terreno descrito nas suas mísulas, como figura anagógica do ágape celestial, ali mesmo musicado por velhos apocalípticos» (Moralejo 1993: 320). 582 Não se pode deixar, porém, de alertar para o risco de interpretação especulativa que recupera aspectos morfológicos da decoração na análise textual (Kristol 1978, Schäfer 1987; Wierzbicka 1990). 377 Capítulo 7. Decoração legíveis, quando nos confrontamos com múltiplos casos de ilustração deste tipo de manuscritos, destinados, a maior parte deles, à música e ao canto, portanto, a um aproveitamento visível também à distância. Este tipo de convergência entre a página do códice e a decoração compreender-se-ia até por uma forma de explicitação absolutamente necessária à fruição textual (ou musical, se atendermos aos grandes formatos), como se a decoração funcionasse enquanto glosa textual explicativa. Em um dos mais célebres manuscritos franceses, Bestiaire d’Amours, Richard de Fournival (1201-1259?/1260?), cónego em Rouen e Amiens, prosseguindo a antiga tradição dos bestiários e lapidários, articula esta rotina tipológica e a tópica amorosa dos trouvères, concedendo um sentido erótico à simbologia animal (Segre 1957). Esta crucial necessidade sernos-á justamente explicada no próprio prólogo através do papel que é adjudicado à imagem e à fruição textual o que aclarará esta agregação textual-decorativa583. Tendo sido o próprio Richard de Fournival quem concebe a sua obra como um produto também orientado para a ilustração, as imagens não só vão descrever a matéria textual, como a própria composição genética do texto. Recorde-se o momento em que se observa o próprio autor a trabalhar. Também os célebres comentários ao Apocalipse de provável atribuição ao Beato de Liebana (Apocalipse do Lorvão de 1183; as cópias existentes em Portugal dos Livros das Aves, os numerosos textos bíblicos ou vários Livros de Horas, entre os quais o da rainha D. Leonor, o de El-Rei D. Duarte, ou, o mais tardio, de D. Manuel, demonstram esta penetrante ligação entre o tema e a sua representação elucidativa (Gonçalves 1999; Martins 1971; Deswartes 1977; Markl 1983). 583 A tradição dos Bestiários (não só no bestiário arturiano, onde o animal tanto é elemento decorativo e aristocrático, como em Chrétien de Troyes, em que se torna símbolo de ideias ou de dogmas importantes), explica-se através de uma coabitação com o homem, combatendo-o ou acompanhando-o. Mas se esta presença permite aos autores da Idade Média reafirmar a diferença entre o homem e o animal (para não referir sequer a superioridade humana, como nos Bestiaires dos séculos XII, XIII de Philippe de Thaon, Gervaise, Guillaume le Clerc, Pierre de Beauvais, Brunetto Latini) ilustrará, quase de modo natural, este vínculo do texto à imagem. Estes tratados, em verso ou em prosa, que descreviam animais reais ou imaginários não se limitavam, frequentemente, a uma mera enumeração de características externas, mas incluíam aspectos simbólicos ou alegóricos, que dotavam, em primeiro lugar, a estes géneros literários ensinamentos morais (Martins 1951; Clark 1992; Cruz 1986; Gonçalves 1999). A este propósito, poderíamos referir as representações nos livros com a divulgação do texto do Apocalipse, acompanhado por comentários ao seu conteúdo por profusas e significativas ilustrações. Afinidades iconográficas e artísticas nesta tradição textual e figurativa provêm-nos de obras como a de Lambeth e de Abingdon, cópias que, suportadas por importantes patronos, documentam estes particulares nexos (Egry 1972). O Livro de Esopo (ms. da BN de Viena, Ser. V. 3270), apesar da previsão decorativa, transmitiu-nos apenas duas gravuras, descritas por I. Castro (1993). No âmbito português, exemplos da tradição iconográfica, largamente comentadas em Reynaldo dos Santos (1970) e, mais recentemente, no volume-catálogo da exposição dedicada à iluminura em Portugal na BN de Lisboa com vários contributos e reproduções desta produção iconográfica no ocidente ibérico (1999). 378 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Se em textos imbuídos de preocupação religiosa, moral ou didáctica, se entende esta solidariedade, torna-se quase inevitável interrogarmo-nos sobre textos que não se posicionavam necessariamente nem na conexão de preceitos morais, nem na crucial explanação. Da trintena de cancioneiros provençais, datáveis dos séculos XIII e XIV, nove apresentam miniaturas e em quase todos eles, a decoração é contemporânea da cópia dos textos poéticos e deve ter sido delineada, por certo, em apropriada correlação. Nos primeiros anos do século XIX, J. Anglade (1924) analisou em um resumido artigo, ainda que de modo bastante parcial, as miniaturas de sete cancioneiros provençais (A, H, L, I, K, M, C584). Nestes cancioneiros, não é infrequente observar o criador aristocrático a cavalo, com lança e escudo, ou mesmo a reprodução do colóquio amoroso com a midons. O posicionamento das mãos é, à primeira vista, um dos elementos mais eloquentes. A atitude manual, associada praticamente à retórica da oratória (a manus loquax, a palma da mão aberta, os dedos que indicam o discurso solene, ou o digitus argumentalis, a mão aberta apoiada no coração, denotando, naturalmente, a implicação sentimental), demonstrará também nas miniaturas do códice ajudense, como vamos ver, a hierarquia entre quem desfruta da arte trovadoresca e quem a executa, um posicionamento visível em gestos de submissão feudal entre o jogral em contacto com o trovador (Schmitt 1990, 1991). As iniciais decoradas dos cancioneiros provençais são, com frequência, preenchidas, de certo modo, por momentos da ‘vida’ dos poetas. Este paratexto mais não faz do que parafrasear, elucidando, o texto verbal. No primeiro destes cancioneiros, o cancioneiro A, no interior de 584 A descodificação das siglas dos Cancioneiros provençais pode ser consultada em diversos manuais, mas aqui bastaria referir, Riquer (1975, I: 12-13), Zufferey (1987: 4-6) e Meneghetti (1984: 325-326, n. 4; 337, n. 31, Brunel Lobrichon 1991: 255-256). Além do Cancioneiro R (Paris, BN, n°. 22543) que nos proporciona uma conjuntura ornamental peculiar, os cancioneiros com decoração mais emblemática correspondem aos seguintes: Cancioneiro A: Vat lat. 5232: 44 miniaturas em letras ornadas. Retratos, pequenas cenas, personagens de pé, a cavalo, acompanham uma dama ou apresentam-se como músicos; Cancioneiro H: Vat lat. 3207: 7 miniaturas independentes das letras ornadas. Representam trobairitz. Cancioneiro I: Paris, BN, fr. 854, é ornamentado com 91 ou 92 miniaturas num ms. que conte 200 f.. Decoram as grandes iniciais e figuram personagens a cavalo ou a pé. Cancioneiro K: Paris BN, fr. 12473. 78 miniaturas em 189 f. (Brunel-Lobrichon 1991); 83 (Meneghetti 1984) Cancioneiro M: Paris BN fr. 12474. Tem apenas 17 miniaturas em 538 f. e cerca de quarenta letras ornadas (Brunel-Lobrichon 1991); 21 (Meneghetti 1984). Cancioneiro N: Pierpont Morgan Libr. 819: tem a particularidade de acrescentar às 33 letras ornadas do princípio do texto, 77 desenhos marginais quase como uma banda desenhada em relação estreita com o próprio texto (Rieger 1985). Cancioneiro E: Paris BN, fr. 1749. Mau estado devido ao corte de uma trintena de letras ornadas, contém cinco iniciais que representam os trovadores. Cancioneiro C: Paris BN, fr. 856: encontra-se também mutilado de letras ornadas das quais uma cinquentena foi cortada antes da entrada do manuscrito na biblioteca do Roy no final do século XVII. Das 29 que sobram há animais fantásticos, pássaros, cães, um bestiário significativo que, de certa maneira, aparecerá em R. 379 Capítulo 7. Decoração letras iniciais, encontram-se representações retratistas de trovadores que, evidentemente, mais do que um anódino elemento decorativo, cumprem igualmente uma funcionalidade atributiva, fortalecendo a veracidade autoral, apesar de depararmos com a presença de rubricas antroponímicas585. Esta tendência retratista (não é, por certo, relevante reflectir sobre a duvidosa fidelidade da figuração) que procura, de algum modo, sublinhar a atribuição, explicitando quer as vidas, ou pelo menos alguns episódios, quer as razos, através da multiplicação iconográfica, pode também ser observável em cancioneiros franceses em que o tipo de vestuário (saia, camisa, manto) denuncia o estatuto social da personagem representada, sobretudo no caso da figuração de eclesiásticos, nobres, burgueses, cavaleiros (Huot 1987)586. Nestes códices, não deixa de ser relevante notar os avisos que são endereçados ao miniaturista através da identidade hierárquica de quem deve ser representado com uma advertência nominal relativa à função, Monge / Morge de..., lo Coms de Peiteus, lo Reis d’Arago, etc587. Não é também de abstrair o facto de que, a maior parte destes cancioneiros provençais decorados, são provenientes do norte de Itália e boa porção deles localizável na região veneta, o que significa que poderíamos encarar a hipótese de, por um lado, uma particular tradição local ou, por outro, de uma vontade de clarificação textual de uma literatura que, copiada no estrangeiro, mais necessitava de explicitação. As características dos cancioneiros decorados, originários do sul de França (E) e o da região de Narbonne (C) documentam, talvez por isso, um programa decorativo diferenciado. O retrato é muito menos regular comparecendo, através de uma substituição variada, com elementos zoo ou fitomórficos. A proximidade entre a produção e a cópia não obrigavam aquia uma necessidade figurativa. No cancioneiro C, observa-se ainda o ‘retrato’ de Arnaut Daniel no fl. 202, mas para Jaufre Raudel é um leão que lhe é adjudicado e no fl. 214, a Uc de Saint Circ é-lhe concedido um pavão no fl. 224 (Meneghetti 1984: 334335)588. 585 Ainda que, em momento posterior, se registe a introdução retratista da personalidade no interior da capital em mss. portugueses, tanto na Crónica Geral de Espanha de 1344, como em um dos mss. da Crónica de D. João I (Madrid BN, Vit-28-5, fl. 87r.) de Fernão Lopes em que vemos a representação do próprio rei (Cepeda 1999: 156-157). Não encontramos esta prática no Cancioneiro da Ajuda. 586 Da vintena de cancioneiros franceses, estabelecidos no final do século XIII, princípios do século XIV, são dezoito os que nos transmitiram transcrição musical e que nos oferecem também decoração indicativa com o mundo dos trouvères. Os mais significativos são: Paris BN 846, Chansonnier Cangé com 338 melodias; Paris, BN 844, Manuscrit du Roi com 417 melodias; Paris, Bibliothèque de l’Arsenal 5198, Chansonnier de l’Arsenal com 431 melodias; Paris, BN 12615, Chansonnier de Noailles com 360 melodias e Paris, BN 24406, Chansonnier de Saint Germain, 310 melodias. 587 Como justamente assinala M. L. Meneghetti no seu estudo, acompanhado de várias ilustrações, esta forma de reproduzir a imagem, revela o claro interesse do público, entre o século XII e XIII, não só pelo fenómeno trovadoresco, mas pela imposição da personalidade dos seus protagonistas, tendo sempre presente que a maior parte dos cancioneiros miniados se reproduziam em áreas afastadas dos centros iniciais da produção (Meneghetti 1984: 326-327, 335). 588 No âmbito destes projectos decorativos, é possível até admitir uma tipologia do retrato (trovadores que possuem uma única imagem no início do ciclo, mas também trovadores que nos surgem com vários 380 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Autores como Guiraut de Borneil, Arnaut Daniel, Uc Brunet, Guillaume de Cabestanh comparecem caracterizados em postura de autoridade, quer dizer, neste caso, em posição sentada. Não podemos deixar já de pensar na postura dos trovadores que instauram os respectivos ciclos no Cancioneiro da Ajuda. Todos os trovadores representados na colecção ajudense encontram-se, de facto, sentados, como vamos ver. Marcabru, Guy d’Ussel, Raimbaut de Vaqueiras surgem com a coroa de louros ou, pelo menos, com uma coroa de folhas verdes, no fundo o vencedor ou, simplesmente, o reconhecimento da competência literária. Esta atenção profissional é visível também pela figuração com o rolo de pergaminho ou com o próprio livro aberto em Gausbert de Puycibot, Daude de Pradas, N’Aimeric de Belenoi. O próprio dinamismo literário será, por fim, documentado pela excelência do digitus argumentalis, que assume dimensão de relevância nesta representação iconográfica em uma espécie de antropologia visual, essencialmente hierarquizada, como também podemos observar no próprio Cancioneiro da Ajuda, com o caso mais explícito da miniatura introdutória ao ciclo de PGarBu. Esta transição da linguagem verbal à linguagem figurativa não parece, portanto, conter, no âmbito provençal, uma função meramente decorativa, mas pode caracterizar-se através de um objectivo metacomunicativo, visto que algumas das figurações se confinam, essencialmente, ao enriquecimento da função narrativa. Não se pode, porém, afirmar que haja propriamente uma representação da criatividade poética, ainda que em Folquet de Marselha a imagem procure talvez mostrar o poeta a declamar um seu poema (Ms. N, fl. 63589), mas é curioso observar que no Codex Manesse, ou de Heidelberg, datável do século XIV (fl. 120v), dedicado ao Minnesang, o desenrolar do enorme rolo pergamináceo, em que estariam transcritos os poemas com o Minnesänger e a sua dona, não pode deixar de ilustrar esta preocupação em documentar a criatividade poética (Meneghetti 1984: 333-334, fig. 12)590. Resulta mais invulgar o trovador responsável pela interpretação das suas composições, ainda que se possa recorrer às miniaturas alusivas a Guiraut de Bornelh que aparece assistido retratos no interior do ciclo dos seus poemas). Veja-se, em particular, o caso de Uc de Saint-Circ no ms. C com a presença da simbologia iconográfica do pavão em relação com a composição do poeta, minuciosamente estudada por F. Zinelli (2006). 589 Trata-se de um passo preciso do texto poético reproduzido no próprio fólio (vv.1-16) de Meravil me cum pot nuls hom chantar em que «il trovatore respinto che declama, solo con se stesso, quei carmi che avrebbero dovuto invece essere accolti come giusto e conveniente tributo al valores di midons» Meneghetti (1984: 357 e reprodução do projecto de miniatura, ainda como desenho não colorido, na fig. 2). 590 O códice Manesse é uma recolha de poesias corteses alemãs (Minnesang) cujas composições foram compiladas no século XIV por Rudiger Manesse de Zurique. Publicado, pela primeira vez, em 1748, o códice contém 137 iluminuras que testemunham esta tradição gótica do retrato. Digitalização do deste códice disponível em: http://digi.ub.uni-heidelberg.de/diglit/cpg848. 381 Capítulo 7. Decoração pelos seus jograis cantores (ms. I)591. É um facto que esta figura, se ela se pode identificar realmente com o trovador (mas, podíamos imaginar também um senhor), encontra-se sempre em posição de autoridade, quer dizer sentada sempre à esquerda da miniatura, quase estático, e com posturas idênticas às da classe dominante (senhorial ou eclesiástica) que comparecem nos cancioneiros provençais, contrariamente aos músicos ou acompanhantes cuja posição parece ser mais variável e diferenciada de miniatura para miniatura. Esta regra de representação não pode deixar de ser invocada também no Cancioneiro da Ajuda. O vestuário do trovador, a atitude, a posição do corpo, as mãos, os pés, etc. Também nestes cancioneiros, o espaço decorativo ou contemplava todo o fólio, meio fólio, meia coluna ou mesmo parte das margens e é possível até que esta inserção decorativa no interior das iniciais seja fruto de uma intenção de associar a atribuição do texto à imagem, tendo presente que há uma diferença clara entre os cancioneiros que apresentam o plano biográfico figurativo, dos cancioneiros que não tiveram esta intenção [N e M], ou daqueles que a colocam em outro sector [E], como pensa Meneghetti (1984: 340). No ms. N (fl. 56), a decoração na margem inferior, concretizada através de várias figuras que apresentam uma indicação a vermelho (uma espécie de letra de espera-reclamo) remete para sectores do próprio texto (Folquet, Ben an mort mi e lor, Meneghetti 1984: 353359), revelando-nos, aliás, este caso, uma evidente ligação entre a imagem e o texto, como se desmetamoforizasse a composição poética. As miniaturas nesta posição, no ms. N, são uma forma de complementar o texto poético, enquanto nos mss. A, I e K se acentuam os dados biográficos com a representação retratística que não é tomada como uma preocupação ornamental, mas como uma utilidade atributiva, mesmo que este elemento pictural reduplicasse a informação da própria rubrica. De algum modo, diríamos que o plano decorativo intensifica o dado atributivo. Esta intenção será primordial no caso do Cancioneiro da Ajuda que, como vamos ver, acabou por se limitar unicamente a este dado atributivo pictórico sem qualquer inserção de rubrica atributiva. Mas, dos cancioneiros provençais iluminados, o cancioneiro R (Paris, BN, n° 22543) proporciona-nos uma conjuntura ornamental peculiar. Neste cancioneiro, encontram-se cabeças humanas, animais, monstros, além de algumas miniaturas marginais marcantes. Na maior parte do cancioneiro, todas as iniciais do princípio das composições são pintadas em azul e rosaavermelhado alternado592. O princípio da alternância favorece a proporção simétrica pela cor e 591 Na sua súplica, Guiraut de Bornelh não deixa de recordar que, de acordo com Afonso X, não competia aos trovadores a divulgação da sua arte (Bertolucci 1966; Vuolo 1968). 592 O azul, o vermelho e o dourado são as cores mais nobres (pense-se, por exemplo, nas representações de Afonso X que se apropria destas mesmas cores para a representação da Virgem) e, por certo que, neste ambiente repleto de simbologia, não são devidas ao acaso as escolhas nas composições cromáticas. A este 382 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita pela morfologia da inicial, como vamos também observar no Cancioneiro da Ajuda. As figuras que aparecem representadas no interior das letras poderiam representar os trovadores cujo nome se encontra inscrito a vermelho. Mas, há mais de um retrato para o mesmo trovador (Giraut de Bornelh no fl. 8v, fl. 9, fl. 9v, fl. 10, fl. 11v). Por outro lado, a cabeça representada na letra de espera (caricatura animal) pode estar em correlação com o conteúdo da composição. É provável admitir que a presença do animal (um porco ou um javali, por exemplo, mostrando a língua no início de uma pastorela (Gui d’Ussel) dependerá da vontade do artista em associar este tipo de animal à rusticidade do género (Brunel-Lobrichon 1991: 257). Esta figuração híbrida entre o humano e o zoomórfica não está também ausente no Cancioneiro da Ajuda: não nas miniaturas propriamente ditas, mas em algumas das capitais características de início de ciclo (fl. 15, fl. 17, fl. 29, fl. 40v, fl. 48). A desordem representada também por este mundo animal, as caricaturas do nobre ou do jogral ou mesmo a escolha da combinação de cores (como o amarelo e o verde) devem invocar a sensibilidade medieval associada à loucura, unívocas neste desconcerto593. A iconografia terá também a preocupação de ensinar, a função didáctica alertando também para aquilo que se poderia designar já de decadência da poesia provençal (a presença de Guiraut de Riquier neste cancioneiro, campo de cruzada albigense, a renovada moral, os novos ensinamentos, a cópia do manuscrito justamente na região de Toulouse. Uma cópia, portanto, regularizada pela atmosfera e pela recente conjuntura moral. No cancioneiro francês de Cangé, importante recolha de trouvères, a ilustração não é muito abundante (18 iniciais decoradas, uma para cada letra do alfabeto, com excepção do R e do Z), mas o processo organizativo comparece através de uma sequência alfabética (Beck 1927). Mas, além deste critério, os elementos biográficos serão também desenvolvidos pela iconografia do retrato literário (Huot 1987). Neste mesmo cancioneiro, comparece Thibaut de Champagne (Thibaut IV, rei de Navarra, 1201-1253) compondo um poema (texto iniciado por um P que integra a decoração, na composição Por froidure ne por yver felon. A miniatura incluída na letra F de uma outro poema de Thibaut de Champagne, Feuille nem flor nem vaut riens en chantant, o incipit mostra o poeta propósito, costuma ser referida a cantiga de Afonso X, 384, Como Santa Maria levou a alma dun frade que pintou o seu nome de tres cores em que o nome de Santa Maria comparece nos vv. 12- 20,...escrito con tres colores... A primeyra era ouro, coor rica e fremosa... e a outra d’azur era, coor mui maravillosa... A terçeira chamam rosa, porque é coor vermella / onde cada ũa destas coores mui ben semalla (Mettmann 1981: 334). 593 Dos vinte e dois cancioneiros compostos no final do século XIII ou princípios do século XIV, há transcrição musical em dezoito deles, mas os mais significativos em proporções decorativas são, além do Chansonnier de Cangé (BnF 846 com 338 melodias), o Manuscrit du Roi (BnF 844 com 417 melodias), o Chansonnier de l’Arsenal (Bibliothèque de l’Arsenal com 431 melodias), o Chansonnier de Noialles (BnF 12615 com 360 melodias) e o Chansonnier de Saint Germain (BnF 24406 com 310 melodias). 383 Capítulo 7. Decoração com o dedo na direcção de uma árvore coberta de folhas. A imagem que é reproduzida em um C, exibindo um jovem apaixonado com o coração trespassado por um dardo é inspirada pelo incipit, Amors, qui en moi s’est mise, / bien m’a droit son dart geté. E a imagem do unicórnio, morto pelos caçadores em presença da virgem, no interior da letra A ainda em uma composição de Thibaut de Champagne, Ausi conme unicorne sui só pode ter sido motivada pelo primeiro verso (Meneghetti 1984: 361-362; fig. 28). A caracterização da personagem acaba, portanto, por ser feita através do vestuário, da pose e da gesticulação. Assim, nos cancioneiros provençais, encontramos no interior de certas iniciais decoradas, o Monge de Foissan em um B (ms. C, fl. 345v) com uma indumentária adequada à sua função eclesiástica, Peire Cardenal (ms. K, fl. 149), Bernart de Ventadorn (ms. A, fl. 86), ou Arnaut de Maruelh (ms. N, fl. 66) e mesmo o caso da trobairitz Na Lombarda (ms. H, fl. 43v)594. As instruções dadas ao miniaturista são também preciosas (no Cancioneiro da Ajuda, apesar de encontrarmos abundantes indicações para o rubricador, não há qualquer aviso de tipo retratista para o miniaturista). Repare-se no exemplo citado pela estudiosa italiana no códice A «.j. homo a pe cantador» que comparece, mais de uma vez, com leves variantes gráficas, evidencia que, para além de uma preciosa indicação de natureza linguística, procura ilustrar o cerimonial do canto trovadoresco, isto é, procura exibir o trovador no desempenho da sua actuação, acompanhado de gestos deícticos que, presumivelmente, exprimem uma oratória através do posicionamento das mãos (a potestas, a mão no coração, o digitus argumentalis, as mãos elevadas em modo de ‘pietà’ no caso de uma trobairitz, ou o gesto do juramento, como vimos)595. Este tipo de prevenção quer dizer que os miniaturistas (ou os responsáveis pela decoração) procuravam, por meio de um minucioso processo, elementos claramente biográficos, a procura de uma situação real, como o representar inclusivamente a dama a quem se endereçava o canto de amor (Meneghetti 1984: 333, fig. 3 e fig 5). Mas neste cancioneiro A, outros exemplos são ainda mais claros. A imagem de abertura do ciclo de Peire d’Alvernha é assinalada «.j. maistro cu(n) capa q(ue) cante», ou Guiraut de Bornelh «.j. maistro jn carega» e a situação diferenciada já com Marcabru em que se indica apenas «.j. homo jugular sença 594 Exemplificação abundante na diferenciação do vestuário e reprodução de casos paradigmáticos em Meneghetti (1984: 330, n. 15 e fig. 6, 7, 8, 9; Careri 1990: Tav.20). Acerca da representação feminina nestas miniaturas com abundantes ilustrações, sobretudo no Cancioneiro N, veja-se o estudo de Angelica Rieger (1985). 595 São numerosos os estudos dedicados à análise da representação do gestus e da gesticulatio na Idade Média. Não me deterei nesta problemática da polissemia gestual, devido ao facto de a representação destas miniaturas, sobretudo no Cancioneiro da Ajuda, se limitar primordialmente ao significativo gesto da mão. Entre os vários ensaios, poderei referir a recolha de ensaios sobre Il gesto, em particular o de Bertelli-Maxwell dedicado justamente à ritualidade e à magia desta fonte histórica de comunicação não verbal (1995). 384 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita strume(n)te», como se estas intenções se transformassem em «espelho» da sociedade para utilizar a expressão da romanista italiana596. O caso particularmente atraente de Arnaut de Maruelh em que a comunicação para o miniaturista se limita a «.j. clerego et una dona» provém do texto da própria vida (clérigo de origem humilde, enamorado da condessa de Burlatz), ou ainda a miniatura dedicada a Bertolome Zorzi com a advertência «.j.gentil homo ka cante in prisione», ou Peire Vidal «.j.caualler cu(n) arme d’e(m)pereor», ou Jaufre Rudel «.j.baron su una naue con altra çe(n)te» só podem provir da experiência textual (Meneghetti 1984: 340-344). Também nos cancioneiros K e I, o programa decorativo revela praticamente o mesmo tipo de intenções. Peire d’Alvernha e Peire Rogier são representados solenemente, Guiraut de Bornelh está rodeado pelos seus cantores, Bernart de Ventadorn comparece em distinto cortesão, etc. Esta disposição ornamental (nobres, clérigos, cavaleiros, burgueses, jograis), em alguns manuscritos, pode ter mesmo influenciado a sequência dos autores, o que não deixará de fazer pensar na ordem antológica por estratos sociais como, de certo modo, mostra o Cancioneiro da Ajuda. 7.2. A imagem nas Cantigas de Santa Maria Nas Cantigas de Santa Maria, o mais relevante não é o paralelismo textual com o Cancioneiro da Ajuda, visto que as cantigas não se integram nem na mesma tradição textual, nem na mesma recepção; são os recursos técnico-decorativos que podem, naturalmente, aproximar as práticas ibéricas entre cancioneiros. São bem conhecidas as representações dos códices das Cantigas de Santa Maria não só em inserções pontuais, como nas mais recentes edições fac-similadas597; também está bem estudada a implicação do rei Afonso X no seu trabalho literário e artístico. 596 Se esta preocupação iconográfica era já tomada em conta pelos primeiros provençalistas, Avalle (1961) concede-lhe um lugar interpretativo importante na concepção e proveniência dos cancioneiros, sobretudo na nova edição ultimada por Leonardi (1993). 597 A monumental edição das Cantigas de Santa María, de Alfonso X el Sabio é uma reprodução integral, a cores, do manuscrito conhecido por «códice rico» T. I. 1 da Biblioteca do Escorial (Madrid), uma primeira parte da colecção mariana, começado por volta de 1255, com um formato 35 x 50 cm (512 fólios com 1264 miniaturas), e um volume complementar de mesmo formato com 412 páginas que contém quatro estudos sobre o códice: uma análise de Mathilde López Serrano; a transcrição do texto e um estudo filológico e literário de J. Filgueira Valverde; a análise das miniaturas e da estrutura arqueológica de J. Guerrero Lovillo; e a interpretação musicológica das Cantigas de José María Llorens. A edição é acompanhada por dois discos L.P. com uma selecção de Cantigas, pelo grupo Música Ibérica (Alfonso X 1979). Mais recentemente, foi editado pelo mesmo processo fotomecâncio o códice de Florença em 1991. Conclusão ou segunda parte da edição fac-similada do «códice rico» do Escorial com a reprodução, igualmente integral, do ms. B. R. 20 da Biblioteca Nazionale Centrale de Firenze (264 fólios de 45 x 32 cm), que corresponde à continuação imediata, ainda que inacabada do fac-símile acima referido com as mesmas características de formas e materiais. É também acompanhado de um volume complementar de 206 páginas com a transcrição do texto e da música das cantigas. Contém, além disso, estudos e comentários históricos, críticos e uma análise iconográfica e estilística das 530 miniaturas, das 88 ilustrações no início dos capítulos por Ana Domínguez Rodríguez, M. Victoria Chico Picaza e Agustín Santiago Luque. Integra também um disco L. P. com uma selecção de música (Alfonso X 1991). 385 Capítulo 7. Decoração Aqui valerá a pena chamar a atenção, em primeiro lugar, para a retratística do próprio monarca nos seus manuscritos. É justamente nos códices das Cantigas de Santa Maria que a sua personalidade se acha mais auto-referenciada (Chico Picaza 1986, 1991): a imagem de monarca, de pecador que espera pela salvação, de vassalo de Deus ou da Virgem, de doente curado pelos códices das Cantigas, ou simplesmente, de autor literário dos seus próprios textos598. É no escorialense Códice dos Músicos (Ms. b.i.2), fl. 29r, que se encontra representado o Rei com manto e coroa, acompanhado de um grupo de protagonistas (homens e mulheres) que se preparam para cantar o texto de um pergaminho que têm na mão. Ainda em outro códice escorialense, no Códice Rico (Ms. T. I. 1), no fl. 4v, fl. 5, Afonso X é apresentado com um pergaminho na mão no qual se lê «por q’trobr e cosa en que jaz entendimẽto por ẽ q’no faz ao dauer...», endereçado aos seus colaboradores-discípulos e no fl. 5r, com a própria presença do Rei (Dominguez Rodríguez 1979). Livro aberto sobre a mesa e os jovens que escrevem cantigas em pergaminhos onde se entrevê inclusivamente o pentagrama (Mettmann 1981: 22, X). A maioria das reproduções nos códices marianos vão também, de algum modo, contribuir à decifração do texto, se pensarmos até na nitidez das cantigas, que se prestam a explicitação mais convincente, mantendo-se, nestes casos, uma conexão entre a composição poética e a respectiva ilustração, efectiva em certos casos, mais ou menos clara em outros. Poderia pensar-se, sobretudo, nas situações alegóricas que exigem difícil e complexa reprodução (Dominguez Rodríguez 1979, 1985, 1992)599, mas a disposição de imagens, ordenada por número de textos, com base no número dez, com um ou dois músicos, é dependente de uma aparência de sistema ‘métrico’ que subjaz ao programa decorativo deste Códice dos Músicos, sendo mesmo possível reconhecer, nesta intenção de coerência formal, uma seriação de acordo com a família dos instrumentos musicais. Este monotematismo, regido pelo princípio da repetição, seria associável ao conteúdo igualmente homogéneo da recolha mariana, uniformidade que seria legitimada por uma «recherche de métricité» também na imagem (Jullian-Le Vot 1987). 598 É, muitas vezes, representado nos códices marianos na sua opulência régia e autoral (trono, vestuário, súbditos) e mesmo nas cantigas de loor, considera-se vassalo da Virgem, transpondo as práticas do amor cortês. (Domínguez Rodríguez 1979). Mas é também na posição de arrependido, comparecendo de joelhos, em situação de penitência, que não deixará de ser representado (Sánchez Ameijeiras 2002: 269276). 599 Estes diferentes modos de encarar o texto, atrás de uma morfologia pictórica objectiva e concreta, denunciam a intenção de implicar a imagem na recepção textual. A este propósito, já em 1949, Guerrero Lovillo (1949) ao descrever miniaturas marianas, apontava o carácter didáctico destas ilustrações, ideia que será desenvolvida de modo a pôr em relevo, através de uma narrativa activa que se serve da sequência, isto é, de imagens em série e da própria arquitectura (Keller-Kinkade 1984; Keller 1987) e ao pormenor expressionista concretizado por cenários múltiplos (Kulp-Hill 1995). Mas a relação entre o discurso verbal e o discurso pictórico não se encontra sempre associada. Há casos em que, de facto, o miniaturista não ilustrou realmente a composição poética, sendo possível mesmo supor que o artista tenha tido acesso a versões textuais precedentes ou a um outro recurso criativo (Beltrán 1985). 386 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita Tal como ocorre em outros cancioneiros, a iconografia afonsina está ligada ao texto, e um exemplo dos mais flagrantes encontra-se na particularidade específica das cantigas narrativas, que podem ser ilustradas em série600. Grande parte das miniaturas das Cantigas de Santa Maria repete o tema do texto em verso, sobretudo nas cantigas que contam milagres que, de modo espontâneo, se tornam em uma história. Outras circunscrevem-se ao espectáculo músico-poético, sobretudo no caso concreto das reproduções com instrumentos musicais (Códice dos Músicos), quando a narrativa está ausente ou quando a representação imagética é mais complexa. Nestes últimos casos, nas cantigas de loor, por exemplo, dir-se-ia que a ilustração se preocupa mais com a execução musical, porque a ‘história’ é mais dificilmente contável (bastaria pensar no problema da figuração da probidade de Virgem ou de uma ou outra alegoria)601. Em alguns casos, as imagens são quase uma repetição em linguagem textual, em outros casos podemos entrever momentos seleccionados em que se privilegia um episódio, um elemento, subordinando-se o figurativo a uma ideia da cantiga602. Em ensaio recente sobre as miniaturas marianas, evidencia-se justamente que as imagens que acompanham o texto não se instituem como sua concreta ilustração mas, através do recurso a meios específicos da retórica figurativa, glosam a cantiga em certas ocasiões, mas em outras não se privam de omitir motivos literários dificilmente representáveis (Sánchez Ameijeiras 2002: 287). Também não são poucas as ocasiões em que a imagem parece ter-se servido de outro factor que não aparece necessariamente na composição, como se o artista tivesse tido acesso a 600 Não quer isto dizer que nos encontremos perante uma ilustração inteligível da composição poética, mas torna-se evidente que é adicionada outra narração, através de nova linguagem, de tipo visual com a sua retórica figurativa própria como já mostrava o historiador austríaco O. Pächt e a Yarza Luaces que circunscreve o seu ensaio ao livro hispano-medieval (Päch 1962; Yarza Luaces 1984). 601 A génese decorativa das miniaturas afonsinas foi, durante muito tempo associada aos modelos franceses, desde os primeiros estudos até a alguns dos mais recentes. Poderíamos referir o pioneiro ensaio de Guerrero Lovillo (1949) até aos de F. Avril (1983, 1995) em que a aproximação entre a decoração afonsina e manuscritos galo-românicos encontraria traços estilísticos comuns, sobretudo com a Bible Maciejowski (Pierpont Morgan Library, New York, Ms. 638, retira o seu nome do Bispo de Cracóvia onde foi encontrada em 1604. Composta em França do Norte, conhecida também por Bible des Croisades, à volta de 1250, destinada a Luís IX, é composta por numerosas imagens por fólio que ilustram a história bíblica, desde a criação do mundo até Job e David) em que, pela primeira vez, os iluminadores utilizavam a sequência como base do próprio programa iconográfico do códice, como o demonstrou o estudioso francês. Em ensaios posteriores, retomando a ideia de que os modelos afonsinos proviriam mais do sul do que do norte (Aita 1919, 1921-1923), a historiadora de arte, A. Domínguez Rodríguez delimita esta filiação estética com manuscritos realizados no sul da Itália (1973, 1992). A estas conexões figurativas, já codificadas, não podem ter de ser associadas às influências múltiplas próprias da Península Ibérica com a tradição hispano-cristã ou hispano-muçulmana, como acentuou G. Menéndez Pidal (1951, 1962) ou às imagens da tradição manuscrita de Gautier de Coincy com os seus Miracles de Notre Dame (Marullo 1934; Klein 1981; Sánchez Ameijeiras 2002: 264-268). 602 A gramática da imagem, estudada por F. Garnier, subdividia as relações entre imagem e texto, admitindo até um mesmo tema podia ser tratado, portanto, de diferente maneira, dependendo esta opção dos elementos interpretativos do miniaturista, sobretudo nos pormenores, mais ou menos, concretos. São mais exemplificáveis as cantigas que não oferecem qualquer estrutura narrativa (Garnier 1982, 1989). 387 Capítulo 7. Decoração distintos elementos textuais ou figurativos603. Será natural, portanto, que a ilustração da cantiga contenha aquela história que mais facilmente se oferece à ilustração através de um preceito visual narrativo, dinâmico, em que se desenham personagens em acção, não ocultando o artista particularidades realistas e minúcias604. A sua observação perspicaz do texto acaba por se transformar em uma segunda leitura, através de uma interpretatio visual, um dinamismo esclarecedor do miniaturista que pondera na posição das figuras, nos gestos ou na arquitectura envolvente. Este cuidado explicativo acentua-se com as miniaturas em série ou em ciclos que vão pormenorizar ainda mais o decurso contínuo da narrativa, uma ilustração em microepisódios, ou subciclos em que a história, contada por meio de desenhos contidos em pequenos quadros, se apresenta sob forma de legenda meta-comunicativa605. Não se pode comparar este processo técnico com o que é observável no Cancioneiro da Ajuda. O que é de esperar, visto que as cantigas de amor não se prestam tão facilmente à narração em imagem. No entanto, e mesmo que as miniaturas da Ajuda pareçam apenas decorativas, não estão completamente ausentes momentos de representação dinâmica, que se especializam no espectáculo, no movimento, nos actores. Um caso concreto desta dissociação pode ser exemplificado pela representação de um animal longitudinal que ocupa o espaço de uma linha de texto em final de col. d (preenchimento de espaço) no fl. 68v., um «ribbon design» como o designa Carter [p. 217, col. 2, l. 29] (1941: 189). 7.3. O sistema decorativo do Cancioneiro da Ajuda Por outro lado, o processamento decorativo no Cancioneiro da Ajuda tem uma implicação absolutamente determinante no exame da tradição manuscrita. Só através dele é possível observar a individualização das múltiplas séries textuais desta colecção lírica. A especificação só é reconhecida por meio deste comportamento separativo, que se define pela presença da miniatura inicial e por uma hierarquização relativamente metódica de capitais no interior do correspondente ciclo. Elementos que, neste caso, se revelam essenciais na ausência total de 603 Este acesso lateral a outras fontes seria relacionável com as próprias prosificações das Cantigas de Santa Maria que se encontram no Códice Rico escorialense que apresentam em prosa as primeiras vinte e cinco cantigas (Chatham 1976; Fidalgo 2002: 207-244). 604 Tanto o programa iconográfico como a tipologia das imagens que «traduzem» realmente texto (imagens dinâmicas, imagens estáticas, acções monosequenciais ou multisequenciais, criação artística e literária coetâneas ou posterior ao texto) foram minuciosamente estudados no manuscrito parisiense do Libro del cavallero Cifar (BNP, esp. 36) por J. M. Cacho Blecua (Ponencia apresentada ao X Congreso Internacional de la Asociación Hispânica de Literatura Medieval na Universidade de Alicante em Setembro de 2003) que, a este manuscrito, já tinha dedicado numerosos ensaios (Cacho Blecua 2005). 605 Este modo de representação, quase didáctico e clarificador, comparece em numerosos actos pictóricos através sobretudo dos exempla e sententia com uma subordinação clara à estética comunicativa (Jauss 1978). Mas não é surpreendente que, sendo o espaço para as imagens mais limitado, a ilustração não possa coincidir em absoluto com todas as estrofes da cantiga. 388 O Cancioneiro da Ajuda. Confecção e Escrita qualquer rubrica atributiva. O programa subjacente à concepção da miniatura no Cancioneiro da Ajuda caracteriza-se por uma situação diferenciada, comparativamente ao que observamos no ambiente galo-românico e, até certo ponto, no mundo da produção afonsina. O dispositivo cénico parece indicar o acto ou efeito de representar, nomeadamente as peculiaridades, ainda que em espaço exíguo, do espectáculo trovadoresco, sem que, à primeira vista, se vislumbre qualquer intenção de transferência textual, ou de identificação autoral606. Não se vislumbra também uma intenção de leitura metatextual, que é muito mais evidente nos cancioneiros provençais copiados em Itália. Nestes, o público recepcionava um texto que exigia ao mesmo tempo um acompanhamento biográfico desenhado e pintado, que lhe facultasse indicações laterais sobre o autor do ciclo poético; o me