Sociologia no Ensino Médio - Revista de Ciências Sociais

Transcrição

Sociologia no Ensino Médio - Revista de Ciências Sociais
Sociologia no
Ensino Médio
Volume 45 - número 1 - 2014
ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza
Universidade Federal do Ceará - UFC
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Revista de
Ciências Sociais
Sociologia no Ensino Médio
ISSN.BL 0041-8862 Fortaleza, v.45, n.1, p. 07-299, jan./jun., 2014
ISSN, v. eletrônica 2318-4620 Fortaleza, v.45, n.1, p. 07-299, jan./jun., 2014
Ficha Catalográfica
Revista de Ciências Sociais – periódico do Departamento
de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará – UFC
n. 1 (1970) – Fortaleza, UFC, 2014
Semestral
ISSN.BL. 0041- 8862
ISSN, v. eletrônica 2318-4620
1. Sociologia. 2. Ensino de sociologia; 3. Pensamento social; 4. Escola.
I- Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades.
Comissão Editorial
Edição
Eduardo Diatahy Bezerra de
Menezes, Irlys Alencar Firmo
Barreira, Antônio Cristian
Saraiva Paiva, Isabelle Braz
Peixoto da Silva e Jakson Alves
Aquino
Projeto gráfico:
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Conselho Editorial
Revista de Ciências Sociais
Volume 45 – número 1 - 2014
Publicação do Departamento
de Ciências Sociais e do
Programa de Pós-Graduação
em Sociologia do Centro de
Humanidades da Universidade
Federal do Ceará
Membro da International
Sociological Association (ISA)
ISSN.BL 0041-8862
ISSN, v. eletrônica 2318-4620
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(UNICAMP), Boaventura de
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de Coimbra), Céli Regina
Jardim Pinto (UFRGS), César
Barreira (UFC), Fernanda Sobral
(UnB), François Laplantine
(Universidade de Lyon 2), Inaiá
Maria Moreira de Carvalho
(UFBA), Jawdat Abu-El-Haj
(UFC), João Pacheco de
Oliveira (UFRJ), José Machado
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Oliveira (UFC), Maria Helena
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Editoração eletrônica:
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Organização: Danyelle Nilin
Gonçalves
Revisão: Sulamita Vieira
Endereço para
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Revista de Ciências Sociais
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Sumário
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45
n. 1, 2014
// DOSSIÊ: SOCIOLOGIA NO ENSINO MÉDIO
11
Apresentação
Danyelle Nilin Gonçalves
15
Educação e pensamento social brasileiro: alguns apontamentos
a partir de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre
Amurabi Oliveira
45
Viver e interpretar o mundo social: para que serve o ensino
da Sociologia?
Bernard Lahire
63
O ofício de ensinar para iniciantes: contribuições ao modo
sociológico de pensar
Irlys Alencar Firmo Barreira
87
Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica
de produção de currículo
Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra
103
Culturas juvenis e agrupamentos na escola: entre adesões
e conflitos
Irapuan Peixoto Lima Filho
// artigos
121
Os relatórios do desenvolvimento humano (RDHS/PNUD/ONU)
da década de 1990 e as propostas para enfrentar as múltiplas
formas de desigualdades
Maria José de Rezende
149
Ética civilizacional e teoria sociológica: uma revisão conceitual
de Durkheim
André Oda
187
As barracas de praia e a “civilização” do lazer: espaço urbano,
poder e sociabilidade na Praia do Futuro
Wellington Ricardo Nogueira Maciel
221
Pequena empresa inovadora e desenvolvimento: indústria naval
em Rio Grande
Sandro Ruduit Garcia
247
A expansão da Jurema na Península Ibérica
Ismael Pordeus Júnior
263
Questões culturais no Ceará
Gilmar de Carvalho
// ENTREVISTA
277
A sociologia de volta à escola: um balanço provisório
Ileizi Fiorelli e Danyelle Nilin Gonçalves
// resenhas
287
Fonseca, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério
Fábio Dias de Souza
293
Safatle, Vladimir de. A esquerda que não teme dizer seu nome
Sidnei Ferreira de Vares
Contents
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45
n. 1, 2014
// DOSSIER: Sociology in High School
11
PRESENTATION
Danyelle Nilin Gonçalves
15
Education and brazilian social thought: some notes based on
Florestan Fernandes and Gilberto Freyre
Amurabi Oliveira
45
Living and interpreting the social world: what is the use of
sociology teaching?
Bernard Lahire
63
The art of teaching novices: contributions to the sociological
way of thinking
Irlys Alencar Firmo Barreira
87
Sociology and basic education: hypothesis on the dynamics of
curriculum production
Simone Meucci and Rafael Ginane Bezerra
103
Youth cultures and school groupings: between adhesion and
conflict
Irapuan Peixoto Lima Filho
// articles
121
The human developent reports (HDRS/UNDP/UN) of the 1990’s
and proposals to address the multiple forms of inequalities
Maria José de Rezende
149
Civilizational ethics and sociological theory: a conceptual
revision of Durkheim
André Oda
187
The tents of the beach and the leisure “civilization”: urban
space, power and sociability in Praia do Futuro
Wellington Ricardo Nogueira Maciel
221
Innovative small businesses and development: naval industry
in the city of Rio Grande, Brazil
Sandro Ruduit Garcia
247
The expansion of Jurema in the Iberian Peninsula
Ismael Pordeus Júnior
263
Cultural questions in the state of Ceará, Brazil
Gilmar de Carvalho
// interview
277
The sociology back to school: an interim balance
Ileizi Fiorelli and Danyelle Nilin Gonçalves
// reviews
287
Fonseca, André Azevedo da. The construction of the myth
Mário Palmério
Fábio Dias de Souza
293
Safatle, Vladimir. The left who is not afraid to tell its name
Sidnei Ferreira de Vares
Dossiê:
Sociologia no ensino médio
Apresentação
As duas últimas décadas vêm trazendo “novos” interesses para
o campo da Sociologia. Dentre eles, as temáticas relacionadas
ao ensino de Sociologia na Educação Básica, em especial, no
Ensino Médio. Fruto de uma luta intensa que envolveu universidades, escolas, sindicatos e outras organizações, em 2008, se
estabeleceu a obrigatoriedade da disciplina de Sociologia nas
três séries dessa modalidade. Desde então vem se percebendo
um aumento gradativo das investigações sobre o tema.
Entretanto, vem havendo uma mudança de perspectiva.
Se muitos dos trabalhos produzidos no primeiro momento
buscavam analisar a história da disciplina no ensino brasileiro,
sua intermitência e a luta por sua reintrodução no currículo,
nos anos seguintes, os autores se dedicaram a refletir sobre os
instrumentos teórico-metodológicos do ensino da disciplina.
A partir da reintrodução no currículo do Ensino Médio, aumentou-se a produção científica da temática, passando a tratar, sobretudo dos desafios e perspectivas da Sociologia como disciplina
neste campo de atuação. Questões como o quê ensinar, de que
modo, abordagens metodológicas, debates sobre currículos, os
materiais didáticos e as experiências docentes passam a ganhar
mais destaque. Além das temáticas relacionadas ao currículo e
à formação dos professores, os saberes necessários à docência
na área e a própria “vida na escola” se apresentam como possibilidades de pesquisa.
O Dossiê apresentado nesta edição e intitulado Sociologia
no Ensino Médio trata dessas questões, compondo-se de quatro
artigos de professores de diferentes instituições brasileiras, além
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12
apresentação
de uma reflexão realizada por Bernard Lahire, da Universidade de Lyon,e,
ainda, uma entrevista com especialistas no assunto.
Apesar do crescimento nas investigações sociológicas das últimas
décadas, Amurabi Oliveira, então professor da Universidade Federal de
Alagoas (UFAL), reflete sobre como a educação não tem sido um objeto de
investigação privilegiado na pesquisa sociológica brasileira, ainda que a sua
gênese encontre-se ligada à questão educacional. Acerca de uma contribuição
clássica escreve o artigo intitulado Educação e Pensamento Social Brasileiro:
alguns apontamentos a partir de Florestan Fernandes e Gilberto Freyre que,
além de refletir sobre o contexto no qual os autores viveram, indica pontos
de aproximação na perspectiva dos dois autores.
A fim de responder um questionamento sempre presente sobre a
utilidade do ensino de sociologia, o sociólogo Bernard Lahire nos convida
a pensar sobre como viver e interpretar o mundo social. O artigo, fruto da
palestra apresentada no III Encontro Nacional Sobre O Ensino de Sociologia
na Educação Básica (Eneseb) em 2013, trata da questão da utilidade social
ou política da disciplina de Sociologia. O autor busca responder três indagações: é possível ensinar uma ciência que é tida e se apresenta geralmente
como conflituosa e por vezes até ideológica? Por seu conteúdo e forma, essas
ciências sociais não são voltadas a intervir apenas no nível de uma formação
superior? Não seria difícil, para jovens entre 6 e 11 anos, tomar distância e
desenvolver reflexões sobre seu mundo cultural? Ao responder a tais perguntas, o autor problematiza o sentido das Ciências Sociais na escola, já que elas
têm por objetivo trazer à tona realidades que permanecem invisíveis frente
à experiência imediata.
Continuando nessa mesma direção, Irlys Alencar Firmo Barreira,
professora da Universidade Federal do Ceará, no artigo O ofício de ensinar
para iniciantes: contribuições ao modo sociológico de pensar, assinala a
importância de pensar conteúdos temáticos e pedagógicos levando-se em
consideração o arcabouço teórico construído pela disciplina. Propõe que os
professores incorporem ao trabalho conceitos sociológicos, como ferramentas
de interpretação da realidade e estratégias pedagógicas que permitam trazer
à tona temas de interesse para os jovens estudantes. Parte de um diálogo
com autores clássicos e contemporâneos, para mostrar como “o modo sociológico de pensar” foi sendo construído e reconstruído. Considera também
que conhecimentos básicos de sociologia poderão, futuramente, orientar ou
influenciar não só uma escolha profissional na própria área, mas também
embasar outras profissões carentes de uma visão ampla dos mecanismos
que orientam as práticas sociais.
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Danyelle Nilin Gonçalves
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No artigo Sociologia e educação básica: hipóteses sobre a dinâmica
de produção do currículo, Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra, professores da Universidade Federal do Paraná, analisam as formas institucionais
que permitem a rotinização do conteúdo sociológico nas escolas. Partindo
da articulação entre currículo, pedagogia e avaliação os autores identificam
três instâncias para estabilização do conteúdo da sociologia escolar: o Plano
Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) e o modelo que caracteriza as Licenciaturas no Brasil. Procuram
argumentar que, mesmo que de forma heterogênea, essas instâncias têm
operado a lógica de seleção que define o conteúdo sociológico no Ensino
Médio, originando um currículo em termos nacionais.
Deslocando um pouco o olhar e partindo da ideia da pouca presença
das reflexões sobre a escola e a vivência escolar, Irapuan Peixoto Lima Filho,
professor da Universidade Federal do Ceará, se propõe a pensar sobre as culturas juvenis e os agrupamentos surgidos no interior da instituição escolar.
Em seu artigo Culturas juvenis e agrupamentos na escola: entre adesões e
conflitos, o autor ressalta a sociabilidade dos jovens no intramuros da escola, as vivências das culturas juvenis, dos estilos de vida e a formação dos
agrupamentos, assim como os conflitos decorrentes. Nota que o jovem que
frequenta a escola constrói alianças e disputas por meio de seu sentimento
de pertença a agremiações pré-determinadas que, de algum modo, orientam
sua participação na sociedade.
A entrevista de Ileizi Fiorelli, professora da Universidade Estadual
de Londrina (UEL) e pesquisadora das temáticas relacionadas ao ensino da
disciplina, traz um balanço de sua trajetória na área e dá conta da dinamização das pesquisas nos últimos anos e dos desafios de começar a avaliar a
qualidade do que está sendo produzido país afora.
É, portanto, com grande satisfação que apresentamos o volume 45,
número 1, da Revista de Ciências Sociais que, pela primeira vez, em 44 anos,
traz um dossiê com essa temática, buscando alargar essa discussão tão fecunda.
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amurabi oliveira
Educação e pensamento social
brasileiro: alguns apontamentos
a partir de Florestan Fernandes
e Gilberto Freyre
Amurabi Oliveira
Doutor em Sociologia (UFPE), Professor
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
atuante em seu Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política.
E-mail: [email protected]
introdução
O presente artigo almeja discutir sobre a educação e os professores no Brasil, partindo de escritos de dois autores considerados
clássicos no pensamento social brasileiro: Florestan Fernandes
(1920-1995) e Gilberto Freyre (1900-1987). Não se trata com isso
de desenvolver uma análise exaustiva e pormenorizada da questão
na vasta obra de ambos os intelectuais, mas sim de, partindo
de alguns textos, analisar como essa questão se apresenta para
ambos, indicando nas considerações finais alguns possíveis
pontos de convergência.
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
A opção pelos dois não é aleatória; tal escolha se justifica, por exemplo,
pelo fato de serem eles os pesquisadores nacionais mais citados na produção
das Ciências Sociais brasileiras (MELO, 1999; COSTA, 2010), e, além disso:
[…] Gilberto Freyre, forma com Florestan o mais perfeito par de opostos que
se possa imaginar. Não pela temática, que é em muitos pontos a mesma entre
ambos. Nem pela formação e pelas linhas de pesquisa, que em ambos percorre
o arco que da análise etnológica à reconstrução histórica em grande e pequena
escala, centrando, é claro, na análise sociológica. Mas pelo contraste entre a
perspectiva (COHN, 2001, p. 387).
Esse contraste1 também é reconhecido por Motta (2000), ao afirmar
que Freyre domina uma intuição mais de artista que de cientista, e que para
este a linha reta não é a menor distância entre dois pontos, escrevendo com
linhas muito sinuosas, ao passo que Florestan mesmo quando porventura
escreve errado seria por linhas retas.
No que tangencia a questão educacional, chama a atenção o fato de
que ambos integraram o leque de cientistas sociais que embarcaram na
proposta de Anísio Teixeira (1900-1971) referente ao Centro Brasileiro de
Pesquisas Educacionais – CBPE, e no caso de Freyre chegando a dirigir o
Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Recife. Isso não é algo de menor
importância, dado que “O Centro Brasileiro de Pesquisa Educacional (CBPE)
selou nos anos 50 o encontro entre ciências sociais e educação de forma não
mais reeditada no Brasil”. (BOMENY, 2003, p. 60).
Ainda que se trate de dois clássicos, no sentido próprio do termo, é
inegável que a Educação não foi um tema privilegiado no decorrer da carreira
de ambos, mesmo considerando-se que Fernandes tenha tido uma produção
mais significativa nessa seara, que na interpretação de Mazza (1997)2 se faz
presente desde seus primeiros escritos. Todavia, como bem assinala Silva
(2002), os trabalhos do sociólogo paulista, quando voltados para a Educação,
não apenas ocupam uma proporção quantitativa diminuta no cômputo total
de sua obra, como também apresentam um caráter mais “parassociológico”.
Logo, qual seria a importância de trazê-los para problematizar a questão
educacional? Nesse sentido, creio ser relevante pensarmos primeiramente
por que revisitarmos o pensamento social brasileiro. Acredito que Bastos
(2002, p. 183) nos dá uma resposta interessante: “[...] sem compreender tanto
as ideias como o lugar social desses intelectuais é impossível apreender o
movimento geral da sociedade brasileira”.
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amurabi oliveira
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Para alcançar o intento anunciado, dentro dos limites deste texto,
analiso como a educação e o professor se apresentam para os dois autores,
e finalizo com uma tentativa de buscar pontos de convergência existentes
entre as respectivas abordagens. Antes, porém, compreendo ser necessário
realizar um esforço na direção de contextualizar a origem da relação entre
Sociologia e Educação no Brasil.
A gênese educacional da sociologia brasileira
Como bem afirma Miceli (1989), a Sociologia no Brasil aparece primeiramente
vinculada às Escolas Normais, voltadas para a formação de professores, e
só depois surge no Ensino Superior. Mais que isso, por meio das Reformas
Educacionais Rocha Vaz (1925) e Francisco Campos (1931), a Sociologia passou
a figurar como componente curricular da Educação Básica, de tal modo que
devemos reconhecer que esta ciência emerge no Brasil ligada visceralmente à
Educação, tanto como componente curricular das últimas séries da Educação
Básica3, incluindo aí os cursos preparatórios para o Ensino Superior, quanto
dos cursos de formação de professores.
Interessa-me neste momento a questão específica da Sociologia
existente no curso de formação de professores, tendo em vista que ela
surge no bojo das reformas ocorrentes no país, principalmente a partir
dos anos de 1920. Em Pernambuco, destacam-se as reformas promovidas
por Estácio Coimbra (1872-1937), com base no Plano de Reforma de Ensino
cuja elaboração ficou sob a responsabilidade Antônio Carneiro Leão (18871966), que integrava o movimento da Escola Nova4. No conjunto de tais
reformas, a disciplina de Sociologia foi introduzida no curso de formação
de professores da Escola Normal de Pernambuco, cabendo a Gilberto Freyre
ser o primeiro professor dessa disciplina, o que ocorreu efetivamente em
1929 (MEUCCI, 2006).
Chama a atenção o fato de que, muitas vezes quando se pensa em
analisar a história da Sociologia no Brasil, alguns pesquisadores se referem
ao seu começo como momento que antecede à Sociologia Científica. Por
exemplo, na perspectiva de Liedke Filho:
No Brasil, esse período teve início em meados da década de vinte, quando foram
criadas as primeiras cátedras de Sociologia em Escolas Normais (1924-25),
enquanto disciplina auxiliar da pedagogia, dentro do esforço democratizante
do movimento reformista pedagógico que tem sua expressão maior no movimento da Escola Nova. Neste momento, ocorreu a proliferação de publicações
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
como os manuais e coletâneas para o ensino de Sociologia, os quais procuravam divulgar as idéias de cientistas sociais europeus e norte-americanos
renomados, tais como Durkheim e Dewey, bem como idéias sociológicas
acerca de problemas sociais como urbanização, migrações, analfabetismo e
pobreza (2005, p. 380-381).
De tal modo que é tomado como referência para o surgimento de uma
sociologia científica o advento dos primeiros cursos de Ciências Sociais na
Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo – ELSP (1933), na Universidade de São Paulo – USP (1934) e na Universidade do Distrito Federal – UDF
(1935)5. Esse novo momento caracteriza-se, segundo Fernandes (1980, p.
60), “[...] pela preocupação dominante de subordinar o labor intelectual, no
estudo dos fenômenos sociais, aos padrões de trabalho científico sistemático”.
Todavia, Freyre nos apresenta outra interpretação da história da Sociologia
no Brasil, ao discordar do que é exposto pela revista Anhembi (nº 30, vol.
X, maio de 1953) que toma como marco a vinda de professores estrangeiros
para a ELSP e USP, indicando o autor pernambucano a existência das pesquisas de Roquette Pinto e Froes da Fonseca no Museu Nacional no Rio de
Janeiro, Ulisses Pernambucano, no Recife, além dos trabalhos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Ressalva ainda sua própria experiência na Cátedra
de Sociologia na Escola Normal de Pernambuco, que teria sido a primeira
com trabalho de campo. Segundo ele:
[…] o início do ensino sistemático da Sociologia científica no Brasil data do
funcionamento da primeira cadeira de Sociologia moderna estabelecida no
Brasil acompanhada de e pesquisa de campo (Escola Normal do Estado de
Pernambuco) e já relacionada à psiquiatria pela íntima relação do catedrático
da mesma escola normal com seu colega de Psicologia, o psiquiatra Ulisses
Pernambucano (FREYRE, 2003, p. 111-112).
Podemos perceber aí um primeiro ponto interessante para se comparar
as perspectivas assumidas por Freyre e Fernandes, dado que eles analisam
de formas distintas o surgimento de uma Sociologia científica no Brasil, em
que pese a compreensão sensivelmente diferenciada em ambos sobre o que
é fazer ciência. Parece-me que a divisão mais hermética entre os diversos
períodos, encarando como pré-científica a Sociologia que surge antes do
advento dos cursos de Ciências Sociais, possui ao fundo o entendimento
de que há, por um lado, os ensaios de interpretação do Brasil, e por outro,
os estudos científicos sobre a sociedade; entretanto, adoto neste trabalho a
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amurabi oliveira
19
compreensão assinalada por Bastos e Botelho (2010), de que não há rupturas
essenciais entre ambos.
Voltando ao processo de introdução da Sociologia nos cursos de formação de professores, ressalta-se que nesse momento havia uma clareza de
que o surgimento de uma nova sociedade em curso demandava um “novo
professor” (NAGLE, 1974), e a Sociologia seria essa disciplina capaz de romper
com a formação meramente bacharelesca, trazendo um verdadeiro “realismo
sociológico” para os cursos ofertados nas Escolas Normais (MEUCCI, 2011).
O processo de renovação dos currículos de tais cursos liga-se diretamente ao movimento da Escola Nova, cujo manifesto publicado em 1932 foi
redigido por Fernando de Azevedo6 (1894-1974), marcadamente influenciado
por Durkheim (1858-1917) e Dewey (1859-1952). Sendo assim, não seria um
absurdo afirmar que a Sociologia adentra o Brasil por meio do ideário da Escola
Nova7, e das reformas promovidas pelos intelectuais ligados ao movimento,
ainda que, de acordo com Candido (1971), essa primeira tendência seja de
caráter filosófico-sociológico, que mais facilmente se traduz como pedagogia
ou filosofia que sociologia.
Porém a relevância daqueles ligados à Escola Nova não se encerra aí,
pois, ao analisarmos o diálogo estabelecido entre os campos da Sociologia
e da Educação no Brasil não podemos olvidar o papel que Anísio Teixeira
ocupou, principalmente ao fundar o CBPE em 1955 quanto ele estava à
frente do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, que como já assinalei
foi uma tentativa ímpar de criar um diálogo substancial entre as Ciências
Sociais e a Educação.
Interessante que tanto o CBPE quanto o próprio Anísio Teixeira foram
alvos de avaliações por parte de Freyre e de Fernandes; o primeiro vê na
figura do educador baiano um intelectual que estava à frente dos homens
de seu tempo, ao tentar resolver os problemas brasileiros por meio de uma
renovação de métodos, buscando uma verdadeira modernização social para o
Brasil, uma modernização principalmente da cultura, que estaria posta num
sentido mais amplo e profundo que aquele assumido pelos “modernistas”
do eixo Rio e São Paulo (FREYRE, 1960). Por outro lado, Florestan aponta
seu diagnóstico acerca da educação brasileira, que teria tornado evidente:
[…] a incapacidade do regime republicano, que não chegou a criar uma escola pública democrática e a abolir os privilégios que faziam da educação
um instrumento de dominação ou de ascensão social, apesar do esforço dos
educadores republicanos, no sentido de conduzir o processo revolucionário
para dentro da escola (1966, p. 561).
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
Apesar de Florestan destacar mais a dimensão relacionada ao processo
de democratização do ensino, há que se considerar a estreita ligação entre
democratização e modernização, na perspectiva do autor, o que faz com que
sua análise do trabalho de Anísio se aproxime daquela realizada por Freyre.
Também com relação ao CBPE, ambos realizam avaliações sensivelmente
distintas, ocupando, assim, posições diversas nessa estrutura, dado que
Freyre se torna diretor do Centro Regional do Recife. Em artigo veiculado no
último número da revista Educação e Ciências Sociais – publicação promovida pelo CBPE –, Freyre (1962) chama a atenção para a transformação em
curso no Brasil da figura de intelectual para intelectuário, que implicaria a
mudança de um ideal de produção de ciência independente e universitária
para um trabalho estatal, entendido como subserviente, hierárquico e burocrático. Porém, a produção feita em órgãos como o CBPE não era dirigida à
comunidade acadêmica e, tampouco, a grupos intelectuais, mas sim às elites
políticas “esclarecidas” do país, sendo assim, uma exceção à regra. Fernandes
(1966), por sua vez, preocupou-se em apontar os limites impostos pelo modelo adotado pelo CBPE; ainda que considere a data da sua fundação como
uma das mais importantes para o ensino do Brasil, critica duramente o fato
de constar, entre suas finalidades, a formação de um “mapa cultural” e um
“mapa educacional” do país. Segundo o autor:
[…] precisamos urgentemente de um centro de investigações nos moldes do
C.B.P.E.; mas, não de um centro que se concentre em objetivos de análise
estática do presente e que procure corresponder às exigências da situação
através de raciocínios formulados por semelhante tipo de análise. […] Não vejo
como a elaboração de mapas e seu confronto possam permitir alcançar esses
fins, que não podem ser definidos em face da atividade de processos sociais
recorrentes, mas que exige a análise do que está in flux ou seja, dos processos
sociais que operam no nível histórico (FERNANDES, 1966, p. 570-571).
Apesar da sua singularidade, o projeto do CBPE – que poderia ter
originado a formulação de um campo de ciências sociais aplicadas à educação – naufragou, tendo sido encerrado em 1977. No trabalho de Silva (2002),
encontramos uma análise detalhada desse processo, além do levantamento
de algumas hipóteses para a explicação do fracasso dessa experiência, o que
na perspectiva da autora estava ligado, dentre outros fatores, à resistência
de muitos pesquisadores em desenvolver pesquisas ligadas diretamente ao
campo educacional, pois em sua maioria “[...] tinham em maior ou menor
grau um desconhecimento, misturado a desinteresse, por questões educaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 15-44
amurabi oliveira
21
cionais stricto sensu.” (SILVA, 2002, p. 102), levando a uma incapacidade
das ciências sociais em harmonizar seu discurso com a lógica das políticas
educacionais. Incluam-se nesse cenário, também, fatores como: o advento
do Regime Militar, a partir de 1964, a profusão das teorias da reprodução8
no campo acadêmico brasileiro e a criação das Faculdades de Educação.
O período de crise do CBPE coincide também com um maior afastamento
dos cientistas sociais do campo educacional, cuja reaproximação tímida só
irá ocorrer, paulatinamente, a partir dos anos de 1980 (NEVES, 2002), o que
retomarei, brevemente, nas considerações finais desse trabalho.
Essa breve contextualização se fez necessária para compreendermos
melhor a moldura na qual se inserem Fernandes e Freyre, e de forma mais
ampla os movimentos do campo desenhado na interface entre a Sociologia
e a Educação, pois não há como compreender o hiato que se estabelece
entre a relevância social do fenômeno educacional e o parco interesse dos
cientistas sociais sem analisarmos esse período. Partamos então para como
a questão da educação, e principalmente do professorado, se apresenta em
Florestan e Freyre.
Escola pública, democracia e o professorado
Em Florestan Fernandes
Diferentemente de Freyre, Florestan, nascido em São Paulo, não apenas teve
uma origem social modesta, o que implicou uma vivência no sistema escolar
público, como também possuiu uma carreira de professor mais estável, vinculado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, e ambos os fatores
possuem implicações na sua forma de perceber o objeto educacional, que
aparece ao fundo já em suas primeiras pesquisas envolvendo o Folclore. Nestas, ele destaca o processo de aprendizagem das crianças, e ainda que pese a
influência de Durkheim em seus primeiros escritos – o que o ajuda a possuir
uma visão alargada de educação para além da escolar –, ele não se restringe a
compreender a educação como a ação de uma geração mais velha sobre outra
mais jovem, na forma como foi definida pelo sociólogo francês (DURKHEIM,
2011). Sua percepção alcança também a aprendizagem vivenciada entre as
crianças (FERNANDES, 1961); nesse sentido, aparentemente, a influência
de Azevedo teria sido mais significativa, pois a síntese original presente em
Sociologia Educacional (1954 [1954]) indicaria diferenças sutis com relação
à perspectiva durkheiminiana de Educação. Para Fernandes (1966, p. 556),
A relação pedagógica caracteriza-se, assim, duplamente: a) o indivíduo que oferece valores sociais – o professor, por exemplo – exerce certa
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pressão sobre o indivíduo que sofre a sua ação – digamos o aluno – a qual
visa compelir o segundo a aceitar os valores oferecidos; b) o indivíduo que
recebe os valores sociais, no caso o aluno, não o faz passivamente. Reage ao
mesmo tempo ao professor e aos valores oferecidos, de modo mais ou menos
crítico – de acordo com suas experiências anteriores, prestígio do professor,
estimativas coletivas sobre a necessidade dos valores oferecidos, etc. […] Ora,
Durkheim considera apenas o primeiro aspecto – a transmissão da cultura –
conservando-se fiel à orientação comteana (ação de uma geração sobre outra).
Para a ampliação do conceito de Educação, a influência de Dewey
teria sido decisiva no pensamento de Azevedo, pois o pensador americano
teria dado maior ênfase à reconstrução das experiências na aquisição dos
conhecimentos, e Azevedo ao articular os dois autores percebeu que ambas
as questões constituem fases distintas de um mesmo processo. E é apoiado
em uma compreensão de Educação mais alargada que aquela apresentada
por Durkheim que Florestan realiza a análise da educação na Sociedade
Tupinambá, entendendo-a como uma educação que tinha por base assimilar o indivíduo à ordem social, sem “destruir o equilibro psico-biológico
da pessoa”; encontra também, ali, um processo educacional que não ocorre
apenas na direção da geração mais velha sobre a mais nova, sendo, portanto,
mais complexo que aquele assinalado pelo mestre francês.
Nessa primeira fase do pensamento de Florestan, a influência de Karl
Mannheim (1893-1947) mostra-se decisiva, principalmente sua concepção de
técnicas sociais, compreendidas como “[...] todos os métodos de influenciar
o comportamento humano de maneira que este se enquadre nos padrões
vigentes da interação e organização sociais” (MANNHEIM, 1971, p. 89), sendo
a educação uma delas, preocupada em moldar não o homem em abstrato,
mas de uma dada sociedade e para ela. Villas Bôas (2006) destaca o impacto
das ideias de Mannheim sobre toda uma geração de sociólogos brasileiros,
incluindo aí Florestan Fernandes. Nas palavras do autor:
Esse diálogo permitiu a reelaboração de questões cruciais para aquela geração
de sociólogos, que se envolveu em um debate consistente e duradouro sobre o
sentido do conhecimento sociológico e a possibilidade de fazer história. Não
somente a sociologia, mas as ciências sociais como um todo se deixaram marcar
pelo paradigma que confere sentido histórico ao objeto de conhecimento. Naquela
época, fazer ciência significava fazer história, uma vez que os resultados das
pesquisas científicas levava a transformação da sociedade brasileira em uma
etapa ou nova fase de sua história (VILLAS-BÔAS, 2006, p. 116).
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Essa compreensão fica explícita na obra de Florestan quando ele
se posiciona a favor da aproximação entre a Sociologia Geral e a Sociologia
Aplicada, compreendendo a relevância dessa ciência no planejamento e
provocação da mudança social. Nesse sentido, segundo ele, a Educação
ocuparia uma posição de destaque na possibilidade de se pensar uma mudança cultural provocada9. Assim, adverte: “Adaptar a educação aos recursos
fornecidos pela ciência e às exigências da civilização científica representa a
tarefa de maior urgência e gravidade, com que se defrontam os educadores e
cientistas sociais no presente.” (FERNANDES, 1971, p. 169). Na oportunidade,
formula uma crítica perspicaz à formação dos educadores, compreendida
como empecilho para esse horizonte intelectual posto, na medida em que
“[…] a preocupação científica dos educadores ressente-se de seu caráter
predominantemente ‘informativo’ e ‘livresco’. Em regra, falta-lhes domínio
autêntico do ponto de vista científico” (Ibidem).
Desse modo, o professor passa a ser compreendido como um importante agente no processo de mudança cultural, que visa em última instância
consolidar o projeto democrático não plenamente acabado com o advento
da República. Para tanto, se faz necessária uma formação científica que forneça os elementos para que esse agente passe a cumprir, na compreensão
de Florestan (1966), essa função, até mesmo porque, a base do sistema de
ensino residiria, segundo ele, na formação docente. Um empecilho para a
concretização desse projeto estaria no fato de a Educação nunca haver sido
algo prioritário no Brasil, pois até o século XIX, mesmo na aristocracia, apenas uma pequena parcela precisava dela. Apesar do entusiasmo existente no
posicionamento de Fernandes, ele reconhece:
[…] a escola opera como um agente de solapamento da ordem social preexistente, em que se inclui, mas não tem forças para desencadear sequer
inovações essenciais ao aproveitamento prático das potencialidades construtivas que transporta consigo e para remodelar o meio social circundante
(FERNANDES, 1966, p. 74).
Portanto, não se trata de cair numa posição ingênua de compreender
a educação e o professor como elementos que isoladamente transformariam
a realidade social brasileira, e sim de reconhecê-los, aí, como indispensáveis.
Para Florestan, isto só seria possível com uma expansão não apenas quantitativa do sistema escolar – o que já estaria em curso – mas também qualitativa.
Ao analisar a situação que observava naquele momento, ele identifica ali
uma expansão ineficaz, na medida em que se amplia o acesso a um modelo
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escolar “tradicional”, por assim dizer. Apesar de nesse ponto haver uma aproximação entre a posição de Florestan e aquela presente entre os intelectuais
da Escola Nova – especialmente Anísio Teixeira e Fernando Azevedo com os
quais ele tinha mais proximidade –, é interessante notar que em sua posição
a expansão quantitativa do sistema escolar, ainda que insuficiente por si
só, permanece em destaque, distando, portanto, do viés mais conservador
existente na Escola Nova, segundo a leitura de Saviani (2009), no qual o foco
da dimensão qualitativa em detrimento da quantitativa do sistema escolar
propiciaria uma melhoria de qualidade educacional apenas para as elites.
Diante dos dilemas de um sistema escolar claramente antidemocrático,
na perspectiva do autor, qual seria o papel dos professores? Mais uma vez,
tem-se a impressão de ser decisiva a influência de Mannheim, principalmente no papel que ele atribui aos intelectuais (MANNHEIM, 1976), como
agentes engajados na mudança social, ainda que dentro de uma perspectiva
não utópica, de tal modo que, há uma aproximação evidente entre o papel
dos professores e dos intelectuais, uma vez que:
[…] os educadores precisam dar maior projeção ao elemento político em seu
horizonte intelectual. A questão não está, naturalmente, em modificar um jargão
consagrado por longos anos de debate. O que é preciso é modificar todo um
estilo de pensamento, que confinou, em prejuízo da democracia, a intervenção
do educador na solução dos problemas educacionais. […] O desejável, porém,
seria que os educadores preservassem seu poder de atuação social, discernindo
os interesses profundos da educação na ordem democrática dos interesses de
determinados círculos ou camadas sociais na manipulação das instituições
escolares. Assim, ele concorreria, de forma ativa, para a reconstrução social
do mundo em que vivemos, favorecendo a expansão e o aperfeiçoamento da
democracia nas esferas de sua influência, e concorrendo para dar à escola as
funções criadoras que ela deve desempenhar na constituição da ordem social
democrática, na formação de personalidades democráticas e no fortalecimento
de ideias democráticas de vida (FERNANDES, 1966, p. 543).
Há, desse modo, uma interpretação acerca do papel do professor como
sujeito ativo intelectual e politicamente. Todavia, se compreendemos que
as ideias de Mannheim mostram-se fundamentais na leitura da realidade
naquele momento, é interessante destacar a interpretação que Florestan
realizou do pensamento deste, especialmente no que tangencia a conduta
política, vista como:
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[…] responsável por uma extensa parte das inovações introduzidas e consideradas necessárias. Seria bom frisar, porém, que a “decisão pessoal” nesses
casos é inteligível à medida que se liga a movimentos sociais. Ou, em outras
palavras, enquanto constitui uma parte do processo social considerado em sua
totalidade. Como seres sociais, os homens “atuam uns contra os outros, em
grupos organizados de diferentes maneiras, e ao fazê-lo pensam uns com os
outros e uns contra os outros”. A conduta política, pois, não se aplica por si
mesma. Ao contrário, só é compreensível pela interação social dos indivíduos
em grupos ou camadas sociais, estimulados por interesses coletivos próprios
(FERNANDES, 1974, p. 235).
Estas questões ficaram ainda mais evidentes durante a Campanha pela
Defesa da Escola Pública – orquestrada em meio às discussões em torno da
primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), cuja elaboração iniciase em 1948, porém, apenas em 1961 a lei é promulgada10 – na qual Florestan
se engajara veementemente, emergindo daí outra face do sociólogo. Nas
palavras de Cardoso (2013, p. 178):
Este Florestan também foi um Florestan seminal, que se distinguiu, porque
mostrou que o acadêmico pode e deve, em certas circunstâncias, posicionarse e lutar para melhorar as condições de vida de seu país. Esta Campanha
teve importância muito grande naquela época, fins dos anos 1950, se não me
falha a memória.
Foi uma mobilização intensíssima, uma mobilização que nos levou ao que
então era raro: o encontro entre a universidade e os trabalhadores. Andamos
por sindicatos sem fim, pregando. Andamos por escolas, andamos pelo interior,
pregando, discutindo modificações concretas numa lei que iria dar as normas
fundamentais ao processo educativo no Brasil.
Segundo Florestan (1966), tal Campanha surge do repúdio de diversos
setores da sociedade ao projeto de lei que criaria a primeira LDB no Brasil,
tendo havido uma crescente radicalização do movimento, compreendendo
que o combate a esse projeto de lei não poderia ser o único alvo, considerando
os dilemas educacionais brasileiros no sentido amplo. De forma precisa ele
sintetiza, assim, a finalidade da Campanha:
Não se trata de defender a escola pública com argumentos dogmáticos ou com
artigos de fé. Nem de criticar, com ânimo destrutivo, as realizações do legislador.
O que importa, em nossas convicções, é o que deveria ser feito – não apenas
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para “prestigiar” a escola pública, mas para tirar dela todas as consequências
possíveis para a educação do Povo brasileiro e a renovação de nosso sistema de
ensino (Ibidem, p. 373).
Entretanto, o resultado final foi uma ampla vitória para os interesses
privatistas, ainda que tenha havido algumas “concessões” para a escola pública
(FREITAG, 1980); mas as consequências da Campanha são interessantes para
pensarmos a guinada mais ampla que vai sendo vivenciada no pensamento
de Florestan. Segundo Mazza,
Ele teria apreendido, valendo-se de sua experiência na Campanha, que o problema educacional brasileiro não cabia dentro da categoria clássica da demora
cultural, pois não se tratava apenas da necessidade de adequar as esferas e as
regiões menos desenvolvidas ao ritmo do progresso das mais desenvolvidas; o
autor teria tomado contato com grupos que nucleavam impulsos de resistência
às mudanças, criando situações de afloramento de verdadeiros dilemas sociais.
O autor já teria apontado para a existência de conflitos que se configuravam
nos interesses das diferentes classes que compunham a sociedade brasileira.
(MAZZA, 1997, p. 209).
Acrescentem-se a esse cenário as mudanças que vão sendo vivenciadas pelo autor, nos planos teórico e metodológico, pois, como sugere Freitag
(1980), ocorre na passagem dos anos de 1960 para 1970 uma verdadeira ruptura
epistemológica, marcada pela saída de uma fase “acadêmico-reformista” –
cujo conceitual teórico seria baseado prioritariamente em Durkheim, Weber,
Mannheim, Freyer e Radcliff Brown (entre outros) e em uma metodologia
funcionalista –, para outra “político-revolucionária”. Nesta, Florestan ancora
suas análises nos conceitos de Marx, Engels e Lenine, no método do materialismo histórico e em autores da escola marxista11. Para esclarecer sua tese,
Freitag (2005, p. 238-239) compara textos das duas fases:
No confronto desses textos da primeira e segunda fases fica evidente que o
Florestan da fase reformadora apostava no uso da educação, da ciência, e
em especial, da universidade como instrumentos decisivos para a reforma
social da sociedade brasileira. A educação em geral e a educação superior,
nessa versão, funcionariam como verdadeiras alavancas para uma mudança
social bem-sucedida, nos moldes de Karl Mannheim (cf. trabalho “Liberdade
e planificação social”, 1945).
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Já nos trabalhos da segunda fase (a do revolucionário), Fernandes argumenta
que, para que haja uma universidade nova, não bastaria agir apenas no plano
da reforma universitária e, sim, era necessário agir no plano da ação revolucionária. Essa não teria de começar pela mudança da universidade e sim
pela revolução. Essa teria de acontecer na sociedade como um todo, para que
a mudança da universidade pudesse ser concretizada com sucesso. Em suas
próprias palavras: “a questão da universidade brasileira [em 1984, festejando os
cinquenta anos da USP] se insere no movimento revolucionário global e será
resolvida com a emergência da classe operária no cenário histórico brasileiro”
(apud FREITAG, 1987, p. 177).
Porém, não teria havido uma ruptura abrupta, de modo que o “segundo
Florestan” já se encontrava em fase embrionária no primeiro, apresentando-se
principalmente nos textos referentes às contradições inerentes à sociedade
brasileira, aos conflitos raciais latentes e ao dilema educacional.
Nessa passagem, sua compreensão sobre o papel do professor também
se radicaliza, acompanhando a mudança teórica no pensamento do autor,
agora preocupado com uma mudança que requer luta social entre classes,
de tal modo que a formação científica do professor não se mostra suficiente.
Conforme Fernandes, “Se o professor pensar em mudança, tem que pensar
politicamente. Não basta que disponha de uma pitada de sociologia, uma
outra de psicologia, outra de biologia educacional, muitas de didática, para
que se torne um agente da mudança” (1989, p. 167).
Nessa direção, Florestan vê como positivo que os professores se
percebam como assalariados, portanto, como partícipes de uma luta mais
ampla na sociedade, cujos problemas ele conhece de perto, o que demanda
uma ação pedagógica politicamente orientada. De tal modo que:
O professor precisa se colocar na situação de um cidadão de uma sociedade
capitalista subdesenvolvida e com problemas especiais e, nesse quadro, reconhecer que tem um amplo conjunto de potencialidades, que só poderão ser
dinamizadas se ele agir politicamente, se conjugar uma prática pedagógica
eficiente a uma ação política da mesma qualidade (FERNANDES, 1989, p. 170).
A guinada teórica do autor implica, desse modo, mudança substantiva
na compreensão da sociedade e da educação, bem como do papel do professor, centrada agora na ação política revolucionária. Permanece, no entanto,
um fio condutor que é o reconhecimento da educação e dos professores no
processo de consolidação da ordem democrática no Brasil.
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Ainda que não tenhamos tido intenção de aprofundar o debate neste
trabalho, tendo em vista seus limites, ressaltou-se aqui como Florestan percebe o papel do professorado e da educação no Brasil, considerando ainda as
mudanças pelas quais passou seu pensamento, o que se mostra como uma
reflexão frutífera para pensar a interface entre os campos da Educação e da
Sociologia na sociedade brasileira.
A educação em Gilberto Freyre, e o combate
ao ensino livresco
Gilberto Freyre dista de Florestan não apenas pela sua origem geográfica, o
Recife, como também pela condição social – filho de família aristocrática;
experiência escolar com influência internacional, tanto no Colégio Americano
Batista, no Recife, quanto na sua graduação na Universidade Baylor, no Texas,
e principalmente no mestrado na Universidade de Colúmbia, durante o qual
estudou com o antropólogo americano Franz Boas (1858-1942), que ele indica
ter deixado marcas profundas em sua produção intelectual12.
É interessante destacar como a experiência nos Estados Unidos
foi decisiva na sua interpretação da sociedade e cultura brasileiras. Para
Pallares-Burke e Burke (2009, p. 65), “[...] os anos que Freyre passou fora
do Brasil foram importante para seu desenvolvimento não somente porque
permitiram que descobrisse novos mundos intelectuais, mas também porque encorajaram a distanciar-se de sua própria cultura”. Mais que isso, esse
país, especialmente a região Sul, passa a ser um contraponto constante na
sua compreensão do Brasil.
Outra questão que podemos pontuar para efeito de comparação
das experiências educacionais dos dois autores analisados neste trabalho,
é que, diferentemente de Florestan, Freyre não teve carreira marcada pela
estabilidade na docência: contando com algumas breves experiências no
Brasil e no exterior, ele próprio admitia nunca haver se sentido atraído para
o magistério (FREYRE, 2003).
Nesta reflexão sobre a educação na obra de Gilberto Freyre, ressalto
que, ao analisar a realidade do ensino no Brasil, o autor recua ao período
colonial, destacando, ali, a atuação da Igreja católica, principalmente pela
ação dos Jesuítas13, os quais, segundo ele, se preocuparam
[...] em desenvolver um sistema de educação que trouxesse sob a sua influência os filhos dos colonos ricos e também as crianças indígenas. E o fato é
que nas suas escolas, escolas que logo se fizeram famosas, o latim e a retórica
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que nelas se ensinavam tanto eram obrigatórios para os filhos de branco como
para os filhos de índio.
Negros e mulatos não eram, entretanto, geralmente aceitos nessas escolas,
razão porque não se deve contar o jesuíta entre as influências que favoreceram, no Brasil, o amalgamento das raças e a democratização social e étnica
da Colônia (FREYRE, 2001, p. 110-111).
Porém, esse não era o único modelo educativo que vigorou no Brasil, pois
a Casa-Grande era autossuficiente em amplos aspectos, incluindo o educacional,
onde pretos e pardos muitas vezes eram companheiros dos meninos brancos
nas aulas e até nos colégios, tendo havido ainda casos de meninos brancos que
aprenderam a ler com professores negros (FREYRE, 2005). Sobretudo a partir
do século XIX, emerge algo próximo da figura que hoje conhecemos desse
professor moderno, com formação científica própria em uma dada área do
saber; é o momento da ascensão do bacharel na sociedade brasileira, o que só
será possível ante a transferência do poder das casas-grandes para a cidade.
Esse novo cenário educacional aparece ao mesmo tempo como produto e
como elemento impulsionador das transformações sociais pelas quais passava
a sociedade brasileira, tendo em vista que:
Os meninos formados nesses seminários e nesses colégios foram um elemento
sobre o qual em vez de se acentuarem os traços, as tendências, por um lado criadoras, mas por outro dissolventes, de uma formação excessivamente patriarcal
[…] se desenvolveram, ao contrário, o espírito de conformidade e certo gosto de
disciplina, de ordem e de universalidade [...]. Esses alunos de colégios de padres
foram, uma vez formados, elementos de urbanização e de universalização, em
um meio influenciado poderosamente pelos autocratas das casas-grandes e
até dos sobrados mais patriarcais das cidades ou vilas do interior, no sentido
de estagnação rural e da extrema diferenciação regional [...]. Eles, alunos de
colégios de padres, representaram aquela tendência para o predomínio do
espírito europeu e de cidade sobre o meio agreste ou turbulentamente rural,
encarnado muitas vezes pelos próprios avós (FREYRE, 2006, p. 187).
Nesse sentido, a educação é agente e objeto das transformações sociais,
ainda que em dados momentos históricos ocupe mais uma função que a
outra – no século XIX especificamente, parece-me que mais de agente, na
obra do pensador pernambucano –, considerando-se a proeminência que
o bacharel passa a ocupar naquela sociedade. Freyre tece ainda críticas à
“monocultura intelectual” que havia aqui até então, através do ensino reliRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 15-44
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
gioso que devastava a paisagem intelectual, ao deixar crescer nos indivíduos
apenas ideias ortodoxamente católicas. Critica também o ensino de latim, ao
afirmar que “Nada mais amolecedor da inteligência que o ensino exclusivo
ou quase exclusivo do latim ou de qualquer língua morta.” (Ibidem, p. 437).
Lembremos que Sobrados & Mucambos foi publicado em 1936, logo, ainda
estava acirrado o debate entre os defensores da Escola Nova e a Igreja Católica
no que tange à questão do ensino, e Freyre ao apontar que o ensino católico
já se mostrara anacrônico no século XIX, acaba por criticar, ao fundo, seu
lugar em pleno século XX.
O autor observa a abertura paulatina de outras possibilidades educacionais no Brasil, com destaque para os colégios militares, que se apresentam ainda como uma franca possibilidade de ascensão social dos mulatos e
negros na sociedade brasileira (FREYRE, 2006, 2004), bem como de escolas
estrangeiras, principalmente de influência inglesa e francesa.
A educação de fato era um agente de mudança social na perspectiva
de Freyre, não à toa ele aponta que boa parte das “revoluções” ocorridas
no século XIX foram revoluções de bacharéis, como teria sido o caso da
Inconfidência Mineira (FREYRE, 2006). É nesse momento que, segundo a
leitura do autor, passa-se a realizar um investimento mais sistematizado na
educação, incluindo aí as famílias menos abastadas, cujas mães fizeram dos
filhos doutores ou bacharéis.
[...] vendendo doces ou frutas em tabuleiro ou quitanda, cozinhando em
casas ou sobrados de ricos, ou, menos puritanamente, aceitando o amor de
brancos opulentos que as enchiam de regalos. Parte desses regalos é que as
mais profundamente maternais souberam destinar à educação de filhos,
principalmente daqueles mais brancos que elas, as mães (ibidem, p. 754).
A centralidade que o bacharel assume nesse período é fundamental
para compreendermos a emersão do professor moderno, não mais o padre,
mas sim aquele com formação científica em uma dada área do saber. Contudo, Freyre não se furta de criticar que muitos bacharéis, mesmo durante a
República, eram demasiadamente bacharelescos, por assim dizer, abstratos e
técnicos, que “Precisavam de ser reeducados no sentido da realidade brasileira
ao mesmo tempo que no sentido de uma nova época” (FREYRE, 2004, p. 1020).
A análise de Freyre é, assim, marcada pela crítica a uma educação abstrata;
e, em grande medida, na sua interpretação, esta fora herança dos jesuítas
que desenvolveram aqui um ensino antes bacharelesco que experimental.
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Na complexidade do pensamento de Freyre há a valorização de
uma formação científica, dos “doutores”, porém, não nos moldes em que
vinha se realizando. Não à toa ele realiza as seguintes ponderações sobre
a formação de professores:
Deve ser dito que foi somente com a fundação das escolas ou faculdades de
Filosofia em São Paulo e no Rio de Janeiro, que se tornou, realmente, sistemática a preparação de professores e professoras para as escolas secundárias.
Até então (1934), essa preparação era uma espécie de aventura individual:
não havia, a rigor, oportunidade para o candidato a esse tipo de professorado
preparar-se metódica ou sistematicamente.
Os professores secundários eram escolhidos entre advogados, médicos,
padres, engenheiros, com pouco ou nenhum treino específico na atividade
do magistério em que ingressavam de improviso. A essa falta de preparação
sistemática é fácil associar a ausência de qualidade realmente pedagógica na
maior parte dos professores de ensino secundário no Brasil durante o império
(1822-1889) e na chamada primeira república (1889-1930), embora não se deva
esquecer que, no meio de professores secundários desse velho tipo, houve,
no Brasil, considerável número de homens notáveis, não somente pelas suas
qualidades de letrados como pelas suas virtudes pedagógicas. Alguns deles
destacaram-se como autores de livros didáticos que permanecem exemplos
admiráveis de tais virtudes e expressões de espírito ou cultura parauniversitária
(FREYRE, 2003, p. 92-93).
Na interpretação do autor, porém, ainda que diante dessa nova formação, em muitos casos persistia o ensino meramente retórico, mesmo no
ensino de ciências experimentais como a física e a química, de tal modo
que “Os museus ou laboratórios, raros e deficientes, quase não corrigiam os
excessos de ensino abstrato” (ibidem, p. 93).
Podemos associar o veemente combate ao ensino excessivamente
abstrato e retórico às experiências acadêmicas de Freyre nos Estados Unidos14, uma vez que o autor parece bastante entusiasmado com a realidade
universitária que encontrou naquele país, incluindo seus métodos de ensino.
Assim, não seria demais interpretar que, é na admiração que o autor aparenta
nutrir pelo sistema de ensino norte americano que poderíamos encontrar
algumas chaves analíticas para sua compreensão sobre educação.
Em conferência proferida na Faculdade de Direito do Recife, em 24
de maio de 1934, intitulada “O estudo das ciências sociais nas universidades
americanas”, Freyre destaca que o ensino superior naquele país apresenta
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
como função fazer o estudante pensar, possibilitando à geração nova uma
reinterpretação dos valores transmitidos por seus antepassados. Há nesse
ponto uma distância significativa da concepção de educação defendida por
Durkheim, que veio a se difundir amplamente no Brasil junto às escolas
normais em período posterior15.
Porém, um dos pontos mais interessantes diz respeito ao lugar da
pesquisa empírica, ainda que se tratasse de um ensino que, sem ser livresco,
permitia que os livros ocupassem um lugar de destaque:
Mas o estudo das ciências sociais não fica nos livros. O de sociologia e o
de antropologia social, principalmente, incluem o chamado “field work”
ou trabalho de campo; o “social survey” ou sondagem sociológica limitada
a certo grupo ou área social; as entrevistas sociológicas; o levantamento e
interpretação de estatísticas; e, ainda, a chamada “social case history” que é
o documento colhido no vivo, com toda a objetividade possível e todo o escrúpulo científico. Essas pesquizas, como visitas a fábricas, a penitenciarias, a
serviços públicos, a hospitais, como a colheita de dados antropometricos em
bairros característicos, escolas, oficinas; essa variedade de experiências e de
contactos humanos, por assim dizer dramatisam o estudo das ciências sociais
nos Estados Unidos, dando ao estudante o gosto de descobrir elle próprio os
fatos, o sabor quasi físico de aventura entre os elementos básicos da vida social
(FREYRE, 1934, p. 57).
Fica-nos ainda mais evidente que Freyre tomava esses princípios como
relevantes para o ensino, na medida em que tentou aplicá-los tanto em sua
experiência docente na Escola Normal de Pernambuco, no final dos anos de
1920, quanto na Universidade do Distrito Federal, já nos anos de 1930.
Segundo Meucci (2006), ao desenvolver seu programa de Sociologia
para a Escola Normal, Freyre buscou evitar “enciclopedismos”; porém, sua
maior ousadia e inovação no ensino residiam, sobretudo, na capacidade de
estabelecer relação entre o conhecimento teórico e a realidade social mais
próxima, o que pode ser percebido, por exemplo, na exigência que as alunas
tivessem dois cadernos, um primeiro para as anotações mais gerais das aulas,
e outro contendo testemunhos da vida social em fluxo. Mas será como professor da Universidade do Distrito Federal, de forma mais enfática quando
lecionou a disciplina Pesquisas e inquéritos sociais, que ele aplicará essa
inovação, de tal modo que seu curso começava não por conceitos abstratos
gerais, mas sim pelos problemas sociais. Ainda segundo Meucci (2006, p. 162):
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Com efeito, um dos aspectos notáveis dos cursos de Freyre foi o estímulo ao
trabalho de campo. E embora não houvesse nenhum Instituto de Pesquisa
obrigado na Escola de Economia e Direito e o propósito da Universidade fosse,
sobretudo, formar professores para o ensino médio e primário, a orientação
era que, de fato, os alunos fossem capazes de formular hipóteses, elaborar
inquéritos, confrontar conhecimento teórico e empírico.
Sendo assim, ainda que não tenha se tornado um autor especialista
no debate educacional, encontramos em Freyre uma proposta de ensino e
de formação docente, que só pode ser plenamente compreendida à luz de
uma visão mais ampla de sua obra, uma vez que, se tratava aqui, acima de
tudo, da formação do professor moderno, que emergia nessa sociedade em
ebulição, especialmente em termos educacionais.
Em palestra proferida para professoras rurais, em 15 de maio de 1956, em
Recife, Freyre expõe sua compreensão sobre o ensino, anunciando previamente
que não trataria apenas sobre “o que é”, mas também como o que “deve ser”; ou
seja, voltava-se para modificações que considerava desejáveis. Ele explicita que
a escola proporciona uma compreensão racional da natureza, e que o ensino
moderno é em grande parte científico, o que pressupõe também especialização
(uma das marcas de nossa época), mas que isso não implicaria, em absoluto,
domínio de um conhecimento restrito, no caso dos professores do meio rural,
dado que os especialistas que se destinam ao meio rural deveriam ser:
[…] iniciados no conhecimento de uma sociologia da vida rural que desperte
neles a atenção para problemas especificamente rurais de relações entre pessoas
umas com as outras e entre grupos uns com os outros; inclusive para o que
nesses problemas é psicológico ao mesmo tempo que social. Este conhecimento
é particularmente necessário ao professor ou à professora rural. Tanto quanto
o padre eles têm que lidar com almas (FREYRE, 1957, p. 8-9).
Por mais que se trate aqui de uma análise dos professores rurais, tendo
em vista as atividades desenvolvidas durante sua experiência docente, deve-se
levar em conta que, do ponto de vista de Freyre, a necessidade de conhecer
os problemas sociais da realidade na qual se circunscreve a prática docente
não é exclusiva desses professores, estendendo-se também ao espaço urbano.
Voltando a sua crítica ao ensino abstrato, Freyre adverte: “Nada de tecnicismo
hirto e fechado: como o agrônomo ou veterinário em meio rural, o professor
ou professora deve ser um líder de reconstrução social; e não apenas um
técnico” (ibidem, p. 10).
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
Diante dessa necessidade, o autor não hesita em situar em outro trabalho o lugar da Antropologia nesse cenário, ponderando que:
Dos problemas brasileiros de Antropologia, das questões americanas que
pedem orientação e o auxílio da Antropologia aplicada para a sua solução ou
tentativa de solução, seria erro grosso separarmos o problema da reforma do
ensino. Não a reforma do ensino como a compreendem os pedagogos convencionais, fechados na sua pedagogia de gabinete e, quando muito, de laboratório
(FREYRE, 1973, p. 138).
Em contraposição a essa postura dos “pedagogos de gabinete”, Freyre
propõe uma reforma do ensino assentada sobre “[...] o conhecimento vivo
[...] e com o máximo de aproveitamento dos nossos valores tradicionais e
populares. Inclusive a poesia do povo, sua música, sua arte, seu folclore.”
(ibidem, p. 140). Aponta como um exemplo exitoso a reforma empreendida
na Dinamarca, onde escolas camponesas associam o ensino da Agricultura e
criação de vacas e aves, com o da História, da Poesia e da Religião. Percebe-se
sua tentativa de aplicar tais ideias quando esteve à frente do Centro Regional
de Pesquisas Educacionais do Recife. Meucci (2012), ao analisar as pesquisas
desenvolvidas neste Centro quando sob o comando de Freyre, assinala:
Ainda que nenhuma pesquisa fosse propriamente realizada pelo próprio Freyre,
que chegou a ocupar o cargo de Diretor da DEPS, alguns dos temas expressam
seus interesses. Destacamos nesse sentido as análises que pretendem identificar áreas culturais e econômicas do nordeste com a pretensão de orientar
políticas públicas (seja na área de saúde, educação ou cultura) adequadas às
diversidades existentes em cada região (MEUCCI, 2012, p. 18).
Não seria exagero afirmar que no lastro de seus escritos e ações Freyre propõe
uma renovação pedagógica para o Brasil, próxima aos moldes da educação
que ele vivenciou nos Estados Unidos, na qual os livros são fundamentais
(demandando uma sólida formação científica), porém em repúdio a um ensino livresco, excessivamente abstrato, longe dos problemas sociais reais que
subjazem a prática pedagógica.
Considerações finais
Ao tomar esse “perfeito par de opostos” para pensar como questões alusivas
à educação e ao professorado se apresentam no pensamento social brasileiro,
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amurabi oliveira
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não busquei exaurir o tema; longe disso; até mesmo porque para cada um dos
autores aqui analisados demandaria uma série de estudos mais aprofundados
para se discutir essa temática.
Sem embargo, desejo chamar a atenção para o fato de que, ainda que
a Educação não tenha sido um tema prioritário na agenda de pesquisa de
ambos – mesmo no caso de Florestan que possui alguns trabalhos mais sistemáticos nesse campo –, devido a sua relevância social ela insistentemente
aparece em ambos, seja em termos de produção acadêmica ou de prática
profissional, em que pese experiências docentes de ambos – ainda que bastante distintas – e o envolvimento com o CBPE.
Observa-se que embora sejam substancialmente diferentes as abordagens
de Florestan e Freyre, elas convergem na crítica a uma perspectiva de análise
e prática educacional apartada do social. Ou seja, estes autores compreendem
que a educação deve ser pensada e vivenciada em interlocução intensa com a
sociedade, o que também se reverbera na prática dos professores, pensados
em ambos os campos como agentes ativos nesse processo.
Outro ponto de convergência pode ser reconhecido na necessidade
de se pensar uma formação científica para os professores, ainda que seja
relevante assinalar a posição “ambivalente” de Freyre com relação à ciência,
por rejeitar os “cientificismos”, apresentando mesmo uma postura “anticientífica”, que só lhe é possível por conhecer profundamente a produção
do conhecimento científico (CARDOSO, 2013). Portanto, ao indicarmos uma
aproximação entre esses autores, na compreensão da necessidade de uma
formação científica para os professores, devemos reconhecer que “[...] há
oposição diametral entre o modo gilbertiano de pensar e o paradigma de
ciência social que veio a prevalecer na Universidade de São Paulo e que vem
a difundir-se ou confundir-se com o paradigma de outras universidades, em
São Paulo e noutros estados” (MOTTA, 2009, p. 149).
Não sem menor relevância, é oportuna a questão trazida por Freitag
(2005), ao analisar o pensamento de Freyre e de Florestan (e também de Celso
Furtado) à luz da teoria de Karl Mannheim – segundo a qual os intelectuais
estariam interessados em desprender-se de suas origens de classe, visando
realizar uma análise “objetiva” da sociedade – chegando a uma conclusão
mais próxima da “[...] tese marxista que nossa Weltanschauung (visão de
mundo) é reflexo das condições materiais em que vivemos. Das Sein bestimmt
das Bewusstsein, isto é, ‘o ser determina a consciência’” (FREITAG, 2005, p.
236); ou seja, a análise da sociedade brasileira empreendida por esses autores
encontrar-se-ia fortemente arraigada em suas origens de classe, o que nos
possibilita compreender as diferenças entre ambos. Destaco também que
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EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
embora o pensamento de Freyre não seja linear, parece-me que suas considerações acerca do ensino e dos professores aproximam-se mais da primeira
fase de Florestan, dada a ruptura epistemológica vivenciada por este último,
a partir do final dos anos de 1960, marcada por uma radicalização do seu
discurso em uma franca aproximação do marxismo, havendo no “primeiro
Florestan” uma aproximação mais enfática com Freyre na questão educacional,
por meio da crença na necessidade de uma sólida formação científica – não
apartada dos dilemas sociais – para os professores.
Afora as questões pontuais que possam ser assinaladas neste trabalho, chamo a atenção para o fato de suscitar a possibilidade de pensarmos a
aproximação entre Sociologia e Educação no Brasil, não como um movimento
recente – ainda que, de fato, venha sendo fomentada de forma mais enfática a partir dos anos de 198016, conforme balanços recentes (NEVES, 2002;
MARTINS, WEBER, 2010; OLIVEIRA, 2013b) –, mas como algo constitutivo
da Sociologia brasileira.
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NOTAS
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Um dos pontos mais significativos das diferenças entre Florestan e Freyre
diz respeito ao processo de interpretação das relações raciais no Brasil. Segundo Bastos (2002), ao questionar a tese de uma equilibrada interação social
entre negros e brancos, apesar da exclusão econômica e política, Florestan
dirigiu uma crítica diretamente à obra de Freyre. A respeito das diferenças
entre esses autores, Motta (2000) indica que Freyre opunha-se a um modelo
orto-histórico, a uma concepção progressista de desenvolvimento, de inspiração marxista ou weberiana. O que ficará ainda mais claro considerando os
resultados aos quais chegam esses autores junto ao Projeto UNESCO, uma
vez que, se o projeto UNESCO, tal como realizado na Bahia, em São Paulo
e no Rio de Janeiro, representou uma revolução paradigmática, tal como
realizado em Pernambuco, por René Ribeiro em associação com Gilberto
Freyre, representou uma contra-revolução, por estes encerarem o sistema de
relações raciais em termos de miscigenação, encontro de culturas e tolerância
dos contatos de raça (MOTTA, 2007).
1
Apesar do cuidadoso trabalho que Mazza desenvolve acerca da questão
educacional, abarcando os textos produzidos entre 1941 e 1964, ela não refere
a conferência proferida durante o I Congresso da Sociedade Brasileira de
Sociologia, realizado em 1954, intitulada “O Ensino de Sociologia na Escola
Secundária Brasileira”, publicada posteriormente em A Sociologia no Brasil,
que se mostra como uma reflexão pertinente não apenas acerca do ensino de
Sociologia, mas também sobre questões de ordem sociológica que se colocam
ao pensarmos acerca da introdução de uma dada disciplina no currículo
escolar, e do próprio lugar da escola na sociedade.
2
Para uma melhor análise acerca do histórico da Sociologia na Educação
Básica, incluindo aí o seu retorno recente aos currículos escolares, vide os
trabalhos de Santos (2004) e Oliveira (2013a).
3
O movimento da Escola Nova ganha notoriedade no Brasil principalmente
após a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932,
que foi redigido por Fernando Azevedo. Para uma melhor análise do movimento, vide Xavier (2002).
4
É importante frisar que ao contrário dos dois primeiros, o curso da UDF teve
vida curta (1935-1939), dado o enceramento das atividades dessa universidade
ante ao advento e recrudescimento do Estado Novo (1937-1945).
5
Azevedo foi um importante sistematizador da Sociologia no Brasil, tornando-se catedrático nessa área, na Universidade de São Paulo, no período de
sua implementação. Entre os diversos livros que escreveu sobre a temática,
Sociologia Educacional – publicado em 1940 – ocupou posição de destaque
por longo período, nos cursos de formação de professores das escolas normais, juntamente com Sociologia e Educação, de Durkheim, autor no qual
se inspirou amplamente.
6
Ainda que levantemos a temática da ligação entre a introdução da Sociologia
no currículo escolar, especialmente nos cursos de formação de professores, e
o movimento da Escola Nova, não é menos relevante lembrar o envolvimento
dos intelectuais católicos nessa questão, tendo sido estes também importantes
rotinizadores do conhecimento sociológico nesse momento, destacando-se
as figuras de Alceu Amoroso Lima e Amaral Fontoura (MEUCCI, 2011). De
7
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38
EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
acordo com Cigales (2014, p. 57): “[...] a disciplina de sociologia fez parte do
cenário educacional brasileiro de euforia e disputa em torno da legitimação
de espaços e ideias. Primeiro, porque se constituía como uma disciplina
explicativa, e, portanto, os intelectuais ligados a cada um dos grupos – Renovadores e Católicos – pensavam que seria possível através dela encontrar
a explicação e a solução para os problemas sociais, econômicos e culturais.
Segundo porque a sociologia era uma ciência que possuía diversas definições
junto ao campo científico, o que facilitava sua vinculação a qualquer ideal ou
cosmovisão de mundo. Assim tanto católicos quanto reformadores possuíam
autoridade na explicação dos problemas baseados na sciencia sociológica.”.
Essa denominação de “teorias da reprodução” abrange um conjunto de
autores que estavam preocupados na correlação existente entre o sistema
escolar e a reprodução das desigualdades sociais. São mais conhecidos nesse
campo: Althusser, Baudelot e Establet, Bowles e Gintis, e Bourdieu e Passeron.
Para uma melhor análise dessas teorias, vide Nogueira (1990) e Silva (1992).
8
Para Florestan, a realidade social é movida tanto pela mudança cultural
espontânea quanto pela mudança cultural provocada. Segundo ele, porém, “O
que distingue a mudança cultural provocada da mudança cultural espontânea,
portanto, não é o conteúdo intencional dos processos que as produzem, mas
a maneira pela qual ele é elaborado. Assim, na primeira espécie de mudança, o conteúdo intencional adere a um horizonte cultural que confere aos
agentes humanos a possibilidade de escolher fins alternativos ou exclusivos
e de pô-los em prática através de meios que assegurem, no mínimo, controle
racional do desencadeamento e das principais fases do processo. Em outras
palavras, isso quer dizer que o horizonte cultural em questão permite basear
a escolha dos fins e dos meios na desirabilidade de certos efeitos, cuja relação
com determinadas necessidades pode ser posta em evidência antes deles
serem produzidos e cuja produção pode ser prevista, regulada e dirigida
pelos agentes humanos.” (FERNANDES, 2005, p. 132).
9
Em que pese o longo período de discussão e de disputas em torno da primeira LDB, é interessante notar a participação ativa de diversos intelectuais
no debate público do período, incluindo aí aqueles ligados à Escola Nova,
bem como outros intelectuais vinculados à Igreja Católica. Para uma melhor
análise do período vide o trabalho de Buffa (1979).
10
Para Freitag (2005), o ponto nevrálgico dessa passagem se dá com sua
aposentaria compulsória da USP, em 1968, havendo ainda uma terceira fase,
na interpretação da autora, que ela denomina de “militante solitário”, que
pode ser melhor examinada no trabalho de Soares (1997).
11
12
No prefácio da primeira edição de Casa-Grande & Senzala, ele afirma: “O
professor Franz Boas é a figura de mestre que me ficou até hoje maior impressão.” (FREYRE, 2005, p. 31); entretanto, Motta (2008) questiona até que
ponto essa influência teria sido tão decisiva, indicando como um pensador que
poderia tê-lo influenciado de forma mais decisiva Charles Maurras (1868-1952).
Apesar da influência decisiva dos Jesuítas no campo educacional brasileiro,
Freyre (1959) não se furta de reconhecer a relevância de outras ordens religiosas
nesse aspecto, cabendo nota para o papel dos franciscanos, especialmente
em relação à sua influência na parte setentrional do Brasil. 13
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Larreta e Giucci (2007) chamam a atenção para outro elemento importante
na constituição intelectual de Freyre, relacionado ao campo acadêmico norte
americano, que diz respeito à influência da Escola de Chicago em seus escritos,
cuja aproximação etnográfica estaria em inteira consonância com interesses
de Freyre. Ainda segundo os autores, “A presença da sociologia de Robert
Park e da Escola de Chicago na arquitetura conceitual do curso de Freyre e
em Sobrados e mucambos põe em evidência os limites das fáceis etiquetas
de classificação de autores” (p. 544).
14
No Brasil, foi publicado, em 1939, o livro Educação e Sociologia, de Durkheim,
baseado na edição francesa de 1922, traduzido por Lourenço Filho (18971970), que era ligado à Escola Nova, tendo sido reeditado inúmeras vezes,
exercendo forte influência nos cursos de formação de professores na sociedade
brasileira, naquele período.
15
Podemos apontar como um dos marcos significativos dessa reaproximação
a criação do Grupo de Trabalho “Educação e Sociedade”, no Encontro Anual
da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
(ANPOCS), bem como do Grupo de Trabalho “Sociologia da Educação”,
em 1990, nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPED).
16
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Palavras-chave:
pensamento social
brasileiro; sociologia da educação; Florestan Fernandes;
Gilberto Freyre.
Keywords:
brazilian social thought;
sociology of education;
Florestan Fernandes; Gilberto
Freyre.
EDUCAÇÃO E PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO
RESUMO
A educação não tem sido um objeto de investigação
privilegiado na pesquisa sociológica brasileira, ainda que tenha havido nas últimas décadas um crescimento no interesse
dos sociólogos pela temática; todavia, a gênese da Sociologia
brasileira encontra-se visceralmente ligada à questão educacional. Neste trabalho apresento brevemente essa origem
educacional da Sociologia brasileira, e busco apreender como
a questão da Educação se apresenta na obra de dois clássicos
do pensamento social brasileiro: Florestan Fernandes e Gilberto Freyre, e, apesar das diferenças substantivas entre estes
autores, indico, nas considerações finais desse artigo, alguns
pontos de aproximação na perspectiva de ambos acerca desse
objeto de investigação..
ABSTRACT
The education has not been a privileged object of study
in the Brazilian sociological research, although there has been
an increase in recent decades in the interest of sociologists
in the theme, however, the genesis of Brazilian sociology is
viscerally connected to the educational issue. In this paper I
briefly present this educational origins of Brazilian sociology,
and seek to discover how the issue of Education presents the
work of two classics of the Brazilian Social Thought: Florestan
Fernandes and Gilberto Freyre, and despite of the substantive
differences between the two, I indicate some approach points
in the perspective of both about this research subject in the
final considerations of this article.
Recebido para publicação em maio/2014. Aceito em julho/2014.
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bernard lahire
Viver e interpretar o mundo
social: para que serve
o ensino da Sociologia?*
Bernard Lahire
Professor de Sociologia na École Normale Supérieure de Lyon.
Responsável pela equipe: “Disposições, poderes, culturas,
socializações”, Centre Max Weber (UMR 5283 CNRS).
Para que serve a Sociologia?
Responder a questão: “Para que serve o ensino da Sociologia?”
implica, desde já, a questão: “Para que serve a Sociologia?”
Os quadros de realidades sociais que nos descrevem as
Ciências Sociais, em geral, e a Sociologia, em particular, têm,
primeiramente, como ambição produzir um conhecimento o mais
racional e justo possível do estado do mundo social. Eles podem
evidentemente tornar mais conscientes das complexidades e
das sutilezas da ordem social das coisas aqueles que esperam
por em prática políticas de democratização social, escolar ou
cultural ou ainda políticas de redução de desigualdades sociais
*Conferência Inaugural do III ENESEB (Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na
Educação Básica), realizado entre 31 de maio e 03 de junho de 2013, em Fortaleza-CE.
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e econômicas. Seria, no entanto, em vão querer deduzir conhecimentos
científicos uma linha ou um programa político bem específico.
“Uma ciência empírica – escreveu Max Weber – não seria ensinar a
quem quer que fosse o que ele deve fazer, mas somente o que ele pode – e
se for o caso – o que ele quer fazer” (M. WEBER, Essais sur la théorie de la
science. Paris: Presses Pocket, Agora, 1992, p. 125).
Podemos dizer, de maneira metafórica, que a descoberta científica
de nosso sistema solar tornou possível muitos progressos tecnológicos, mas
nunca ditou a conduta necessária a respeito dessa realidade física (não está
inscrito nesse conhecimento a necessidade de ir por o pé na Lua nem mesmo
de enviar homens ou animais ao espaço).
A respeito da escola, por exemplo, os trabalhos mundialmente conhecidos
de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron sobre as desigualdades sociais em
matéria de acesso ao saber ou à cultura (Os herdeiros e a reprodução) deram
lugar a interpretações e a “traduções” políticas bem diferentes.
Elas são, com efeito, por vezes, inspiradas por linhas reformistas muito
pontuais, guiadas pelas ideias segundo as quais seria necessário criar um
ensino de “anti-desvantagem”. Para contrariar a reprodução das desigualdades sociais através da Escola, pensou-se que seria necessário compensar as
desvantagens sociais de início pelas pedagogias da anti-desvantagem. Seria
necessário instalar em todos os níveis de escolaridade, uma pedagogia racional
adaptada à recuperação cultural e linguística das crianças oriundas dos meios
econômica e culturalmente mais desfavorecidos. A criação na França, nos
anos 1980, das Zonas de educação prioritária, fundada na ideia de que seria
preciso dar mais (tempo, modos material e humanos, etc) àqueles que têm
menos (àqueles menos dotados socialmente), ia nesse sentido.
Outros deduziram iguais trabalhos; era necessário – para evitar o afastamento maciço dos alunos oriundos dos meios populares – diversificar as
formas de excelência e não se limitar a um modelo restrito de seleção pelas
matérias mais nobres do momento (latim, matemáticas, etc.).
Antes de obstinar-se a querer avaliar todos os alunos pela medida
de um só padrão (privilegiando geralmente as capacidades de abstração, de
reformalização, etc.), certos reformadores pensavam que seria necessário
particularmente valorizar as culturas técnicas, tecnológicas, a aprendizagem
profissional, prática ou artesanal, insistindo na pluralidade das formas de
inteligência e de excelência.
Outros, enfim, se apoiando na mesma análise da relação das diferentes
classes sociais do sistema escolar, deduziriam disso, nos anos 1970, que era
a estrutura desigual do mundo social que deveria revolucionar e que todo
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progresso em matéria de acesso ao saber e à cultura dependeria da capacidade de “mudar as relações sociais de classe”. Somente uma “sociedade
sem classes” poderia levar a uma real redução das desigualdades culturais.
Através desse exemplo histórico, vemos bem que se coloca a questão
entre o “cientista e o político” (retomando o título de uma célebre obra do
sociólogo Max Weber) ou entre os cientistas e os políticos. Mas geralmente, o
que se coloca em questão aqui é a utilidade social ou política da Sociologia.
Para que e para quem serve a Sociologia? A Sociologia deve necessariamente “servir” a algo ou a alguém? E se ela tiver utilidade, qualquer que
seja, qual deve ser sua natureza:
• política (pesquisador-expert, pesquisador conselheiro do príncipe,
pesquisador dando armas de lutas aos dominados de toda natureza);
• terapêutica (a Sociologia como sócio-análise e meio de diminuir
os sofrimentos individuais pela compreensão do mundo social e de seus
determinismos),;
• cognitivo-científica (a Sociologia como saber, não tendo outros
objetivos que o de ser mais verdadeiro possível)?
Eis uma série de questões que giram em torno da utilidade e da inutilidade efetivas ou desejadas da Sociologia, com as quais os pesquisadores
são sempre inevitavelmente confrontados.
Visto que ela tem sua atenção mais frequentemente voltada para
sua própria sociedade e para os fatos que são contemporâneos ou que têm
repercussões no mundo contemporâneo; visto que ela preenche, por vezes,
funções críticas, e que seus resultados são geralmente legíveis pelos mesmos
“objetos” de suas pesquisas, a Sociologia é uma ciência comumente forçada
a passar tanto tempo a explicar e a justificar seus procedimentos e sua existência quanto a entregar os resultados de suas análises.
A singular situação das Ciências Sociais é, portanto, particularmente
desconfortável. Porque não somente é exaustivo ter de responder, continuamente, a questão “para que serve?”, como mais desconfortável ainda
é o fato de que a resposta “isso não serve pra nada” está frequentemente
na mente daquele que faz tal pergunta. É por isso que todo pesquisador
que pretende fazer um trabalho científico e, por conseqüência, defender
sua independência de pensamento contra toda imposição exterior à lógica
de sua profissão, é levado, uma vez ou outra, a defender sua liberdade a
despeito de toda espécie de demanda social (política, religiosa, econômica,
burocrática...).
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Essa permanência à distância das demandas de utilidade toma formas
diferentes, segundo outros autores e contextos. Por exemplo, Émile Durkheim,
fundador francês da Sociologia, podia insistir na indiferença de princípio
que deve adotar a Sociologia a respeito das conseqüências práticas de suas
descobertas, quando ele estabelecia uma diferença clara entre Sociologia
de educação (que diz “o que é”) e teorias pedagógicas (que determinam “o
que deve ser”):
A ciência, escreveu ele, começa desde que o saber, qualquer que seja ele,
é pesquisado por ele mesmo. Sem dúvida, o cientista sabe bem que suas
descobertas serão de modo verossímil, suscetíveis de serem utilizadas. Ele
pode até mesmo mostrar que direciona preferencialmente suas pesquisas
sobre esse ou aquele ponto, porque ele pressente que elas serão assim melhor
aproveitadas, e permitirão satisfazer a necessidades urgentes. Mas à medida
que ele se entrega à investigação científica, ele se desinteressa pelas coisas
práticas. Ele diz o que é, ele constata o que são as coisas, e ele se realiza nisso.
Ele não se preocupa em saber se as verdades que ele descobre são agradáveis
ou desconcertantes, se é bom que as relações que ele estabelece continuem
como estão, ou se seria melhor que elas fossem de outra maneira. Seu papel
é de exprimir o real, não o de o julgar [DURKHEIM, E. (1989). Éducation et
sociologie (1938). PUF, Quadrige, Paris, p. 71].
O pesquisador pode também resistir ao apelo da utilidade (rentabilidade) econômica dos saberes. Como escreveu Raymond Aron, no seu prefácio
na tradução da obra de Thorstein Veblen The Theory of the leisure class,
[...] a curiosidade sem outra preocupação além do conhecimento, sem outra
disciplina que aquelas que se impõem a ela mesma, sem consideração de
utilidade que, na civilização pragmática e pecuniária, reside aquela de alguns
e não de todos, essa curiosidade consagrada a ela mesma oferece uma garantia
sobre o despotismo do dinheiro, uma probabilidade de progresso e de crítica
[ARON, 1978, p. XXIII]
Ele pode, enfim, ver que a “utilidade” pode esconder uma relação
servil frente aos dominantes (politicamente, culturalmente, religiosamente,
economicamente...) e considerar que a produção de verdades sobre o mundo
social vai frequentemente ao encontro das funções sociais de legitimação,
de justificação dos poderes (e dos políticos) que podem querer atribuir às
Ciências Sociais. A propósito, em 1980, declarou o sociólogo Pierre Bourdieu:
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[...] entre as pessoas das quais depende a existência da Sociologia, há cada
vez mais pessoas para perguntar para que serve a Sociologia. De fato, a Sociologia tem mais probabilidade de decepcionar ou de contrariar os poderes
do que cumprir sua função propriamente científica. Essa função não é a de
servir a algo, ou seja, a alguém. Pedir à Sociologia para servir a algo é sempre
um modo de lhe pedir para servir ao poder. Enquanto sua função científica é
compreender o mundo social, a começar pelos poderes; operação que não é
neutra socialmente e que preenche sem nenhuma dúvida uma função social.
Entre outras razões, porque não existe poder que não deva uma parte – e não
a menor delas – de sua eficácia ao desconhecimento dos mecanismos que o
fundam [BOURDIEU, P. (1980), Questions de sociologie. Paris: Minuit, p. 23-24].
Contra as injunções multiformes de produção de um “saber útil”,
os cientistas sempre lutaram pela “curiosidade gratuita” ou a “pesquisa da
verdade” nela mesma e por ela mesma.
Ao mesmo tempo, não se pode deixar de pensar que atrás de fortes
reações frente às injunções de ser “útil” e de “servir”, se esconde uma defesa
de uma outra forma de utilidade; uma forma de utilidade superior; superior
pois, infinitamente mais desinteressada que a “utilidade” que se invoca quando se pede ao sociólogo para prestar toda uma série de serviços particulares
(de informações, de perícias, de conselhos ou, pior, de legitimações dessa
ou daquela ação, dessa ou daquela política).
O mesmo Durkheim, que defende a pesquisa desinteressada do
saber “por ele mesmo”, declara sobre isso na introdução de A divisão do
trabalho social (1895), que “a sociologia não vale uma hora de sacrifício
se ela não tiver ao menos um interesse especulativo”. E ele precisa isso em
suas lições de sociologia:
Um povo é tanto mais democrático quanto mais considerável é o papel
desempenhado, na marcha dos negócios públicos, pela deliberação, pela
reflexão, pelo espírito crítico. E é tanto menos democrático quando, ao
contrário, mais preponderem, nessa marcha, a inconsciência, os hábitos
inconfessados, os sentimentos obscuros, os preconceitos, numa palavra, os
escapos ao exame (DURKHEIM, E. Leçons de sociologie. Physique des moeurs
et du droit. 1890-1900).
É evidente que, para ele, as Ciências Sociais fazem parte plenamente
desse trabalho de deliberação, de reflexão e desse espírito crítico. Ele escreve ainda: “O cientista tem o dever de desenvolver seu espírito crítico,
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de não submeter seu entendimento a nenhuma outra autoridade que não
seja a da razão” (idem).
Filhas da democracia, as ciências sociais – obviamente mal vistas
pelos regimes conservadores e erradicadas pelos regimes ditatoriais – servem
(à) democracia e são preocupantes. Porque a democracia partiu ligada, na
história, com as “Luzes” (les Lumières) e, notadamente, com a produção de
“verdades sobre o mundo social”: verdade dos fatos objetiváveis, mensuráveis, que é infelizmente a verdade das desigualdades, das dominações, das
opressões, das explorações, das humilhações...
Na falta de ciências sociais fortes, e cujos resultados são o mais amplamente difundidos, os cidadãos ficariam totalmente desprovidos face a
todos os provedores (produtores ou difusores) de ideologia, multiplicados
ao longo das últimas décadas numa sociedade na qual o lugar do simbólico
(ou seja do trabalho sobre as representações) é consideravelmente apagado.
O papel dos especialistas da comunicação política (melhor, porém, seria
falar de “manipulação política”) ou do marketing, dos jornalistas, dos pesquisadores, quase cientistas, dos retóricos mais ou menos hábeis, enfim, de
todos os sofistas dos tempos modernos, não parou de crescer, e é, portanto,
imprescindível transmitir, o mais racionalmente possível e para o maior
número de pessoas, os meios de decifrar e de contestar os discursos de ilusão
sobre o mundo social.
O ensino da sociologia
O ensino da Sociologia, que eu desejaria pessoalmente, que fosse introduzido o mais cedo possível, desde a Escola primária, desempenha, a meu
ver, um papel crucial para a vida coletiva e para a formação de cidadãos
nas sociedades democráticas. Sustento que o ensino pedagogicamente
adaptado da Sociologia desde a Escola primária1, constituiria uma resposta adequada (e muito melhor que outras) às exigências modernas de
formação escolar dos cidadãos.
Alguns obstáculos a transpor
Várias objeções são muito espontaneamente levantadas desde o momento
em que se evoca um tal projeto de ensino de uma série de aquisições e de
ferramentas produzidas ao longo de sua história pela Sociologia. É importante
responder a tais interrogações.
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1. É imaginável ensinar uma ciência que é tida e se apresenta geralmente como conflituosa (as lutas entre as “escolas” ou “correntes” teóricas
tornariam impossível a constituição de um fundo de aquisições comuns),
e por vezes até ideológica?
Poderíamos responder a tal interrogação perguntando, primeiramente,
por que a fazemos particularmente a respeito da Sociologia. Considerando
uma disciplina como a História – ensinada em um país como a França, desde
Escola primária –, constatamos a mesma diversidade que na Sociologia, de
métodos, de modos de construção da realidade histórica, os mesmos debates
sobre a cientificidade (ou a não-cientificidade) da História e sobre seus laços
com concepções ideológicas. Esta diversidade intrínseca das maneiras de
fazer e de escrever a história (história quantitativa ou micro-história, história
política das ideias ou história social da cultura, história estrutural ou história
factual.) não impede, todavia, essa disciplina de estar presente desde a Escola
primária. A diversidade teórica e metodológica não é absolutamente um
sintoma de não-cientificidade, mas o sinal de um funcionamento “normal”
das pesquisas. Do mesmo modo, qual literatura estamos ensinando? O que
é que provoca a naturalidade e a evidência do ensino da literatura (de uma
parte do patrimônio literário), senão o hábito que nós temos de vê-las no
cenário escolar?
Como em toda ciência, as diferenças, os conflitos de “escola” ou de
“correntes” teóricas (sinais mais frequentes de uma boa saúde crítica dessas
disciplinas) não impedem a existência de um campo de referencias e de aquisições comuns por quem pratica ordinariamente sua profissão: aquisições
teóricas (exigência de um modo de pensamento relacional contra os modos
de pensamento essencialistas, o método comparativo ou o relativismo antropológico) e metodológicas (observações, entrevistas, questionários e modos
de tratamento dos dados quantitativos). E é graças a toda essa tradição e aos
constrangimentos empíricos que pesam sobre eles que as ciências do mundo
social não são redutíveis a “puras ideologias”, como gostariam todos aqueles
(entre os produtores profissionais de discurso sobre o mundo social) que
têm algum interesse de não ver essas ciências se desenvolverem (se estender
e ganhar em legitimidade). O que faz com que o conhecimento sociológico
não seja um conhecimento do mundo social “como outros” (religioso, político, ideológico, etc.) e que ele possa pretender certa robustez diante dos fatos
sociais observáveis, é que ele é uma construção racional apoiada nos dados
produzidos segundo métodos (explícitos) específicos.
O medo que alguns experimentam diante da ideia de ver entrarem
nos programas oficiais da disciplina temas “ideológicos” (controversos e
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polêmicos), ou simplesmente “sociais”, conduz paradoxalmente os alunos a
ficarem desprovidos face a todos os provedores (produtores ou difusores) de
ideologia, multiplicados ao longo das últimas décadas nas nossas sociedades
fortemente escolarizadas. O papel dos especialistas da comunicação política
(melhor, porém, seria falar de “manipulação política”) ou de marketing, do
jornalismo, dos quase cientistas, dos retóricos mais ou menos hábeis, enfim,
de todos os sofistas dos tempos modernos, não parou de crescer, e é crucial
transmitir o mais racionalmente possível para o maior número de pessoas,
os meios de decifrar e de contestar os discursos de ilusão sobre o mundo
social. Erro de cálculo republicano que conduziria, por intuito de conservar
uma pseudo-neutralidade escolar, a querer fora das paredes da escola os
“problemas” ou “fatos” sociais e ideológicos que se colocam e se impõem.
Por que não ensinar as ferramentas e as maneiras de pensar que as ciências
sociais constituíram de maneira eficaz há mais de cem anos, ao invés de
deixar os futuros cidadãos construírem (ou não) seus saberes sobre o mundo social, no seio de suas estruturas familiares ou nos quadros tradicionais
da socialização (ensino religioso, socialização política e sindical, etc.)? E se
julgará aqui que, do “retorno ao ensino moral”, regularmente proposto em
matéria de “formação para a cidadania” ou da introdução pedagogicamente
adaptada com um certo número de atitudes e de ferramentas inventadas pelas
ciências sociais, é o mais adaptado às exigências dos tempos modernos...
Uma vez doravante capazes de ensinar a atitude científica concernente
ao mundo físico e natural, nós deixamos tranquilamente se desenvolverem
disposições mágicas e pré-racionais a respeito do mundo social. Norbert
Elias mostrou bem que, ao longo da história, os homens progressivamente
conquistaram uma atitude de distanciamento, primeiramente em relação
aos fenômenos naturais, depois, mais dificilmente, em relação aos fenômenos sociais. Com efeito, os homens das sociedades pré-científicas foram
materialmente e cognitivamente impotentes frente aos “caprichos da natureza”. A ciência se inscreve num processo de distanciamento e de controle
dos efeitos e, por consequência em um processo de civilização. Oferecendo
meios de não tomar seus desejos (ou seus medos) como realidade, de ver as
coisas de maneira menos diretamente apegadas à posição, aos interesses e aos
fantasmas daquele que vê, a atitude científica permite sair progressivamente
da relação subjetiva, emocional e parcial à realidade:
Os membros da sociedade onde reina a ciência não são, geralmente, conscientes
do alto degrau de distanciamento, do controle de si e da neutralidade afetiva
requeridos para reconhecer que os acontecimentos que levam ao seu prazer
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ou sofrimento – e, sobretudo, do sofrimento – podem ser perfeitamente o
resultado não intencional de causas inanimadas, de mecanismos naturais sem
objetivo ou daquilo que nós chamamos de “acaso” (ELIAS, N. Engagement
et distanciation. Contributions à la sociologie de la connaissance. Paris:
Fayard, 1993, p. 95).
Frente à natureza, as sociedades têm, bem ou mal, encontrado respostas. Porém, elas têm muito mais dificuldades no que concerne às relações
inter-humanas. Elias nota, precisamente, um enfraquecimento da atitude
distanciada quando se passa, nas sociedades industriais, da relação individuo
/ natureza às relações de interdependência interindivíduos (intraestadistas) ou
intersociedades (interestadistas). Todavia, o desenvolvimento sem precedente
das ciências sociais nas universidades ao longo do séc. XX, sua presença em
numerosas formações universitárias ou profissionais e sua introdução no
lycée2 vão claramente no sentido de extensão de uma relação mais equipada,
mais informada e mais racional ao mundo social, enfim, de um conhecimento
comum mais científico da realidade social.
2. Pelo seu conteúdo e sua forma, essas ciências sociais não são intrinsecamente voltadas a intervir apenas ao nível de uma formação superior?
Se pensarmos imediatamente em teorias, conceitos ou “grandes
autores”, é bem evidente que a Sociologia não é transmissível no âmbito da
Escola primária. É evidente, por consequência, que é a adaptação com razão
de um certo número de ferramentas e de aquisições fundamentais dessas
ciências que se trataria de ensinar; e não uma cultura científica-universitária:
os comentários científicos sobre a sociologia compreensiva de Max Weber
ou a antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss não têm, com efeito,
nada de semelhante ao nível escolar. A tradução de “saberes científicos” em
“saberes escolares” tendo tido êxito na Escola primária – tanto com ciências
do homem próximas da Sociologia (a História e a Geografia) quanto com
ciências ainda mais abstratas e formais (as matemáticas) –, não vemos o que
impediria os sociólogos de proceder da mesma forma.
Por outro lado, o que pensar sobre programas e instruções oficiais que, na
França, exigem o ensino das “instituições da República” e seu funcionamento:
“a República, seus símbolos e sua divisa; o presidente da República, sua eleição
ao sufrágio universal; os parlamentares; a elaboração e o papel da lei; a justiça;
os eleitos locais, em particular o prefeito da comuna – um exemplo de serviço
público3”? Tudo acontece como se a imaginação pedagógica em matéria oscilasse entre a lição de moral e o curso de ciências políticas...
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3. Não seria demasiadamente difícil, para jovens entre 6 e 11 anos, se
construirem no seio de culturas (nacional, regional, familiar, escolar, etc.) e
se habituarem, ao mesmo tempo, a tomar distância ou a desenvolver uma
certa reflexividade com relação a esses mesmos pontos culturais?
É comum conceber os instrumentos de reflexividade como ferramenta
que intervém apenas “em um segundo momento”, depois de uma fase de
aprendizagem, interiorização ou de incorporação necessariamente pré- reflexiva. Seria, assim, impossível aprender a teoria do caminhar ao mesmo
tempo em que se aprende a caminhar.
A reflexividade viria somente depois que a aprendizagem “às cegas”
(não- consciente) fosse posta em prática. É verdade que, ao longo do seu
processo de socialização, a criança não tem a possibilidade de interiorizar
sua cultura e de aprender num mesmo movimento seu caráter arbitrário de
um ponto de vista cultural, histórico ou civilizacional. É necessário, com
efeito, que ela comece a ver o mundo a partir de um ”ponto de vista” qualquer para que se possa começar a fazê-la aprender a diversidade dos “pontos
de vista”; é necessário que ela construa sua personalidade a partir de um
ponto particular do mundo social, do tempo e do espaço, ou seja, que ela se
inscreva em uma cultura, um lugar, e em um determinado tempo, para que
seja possível fazê-la compreender a “relatividade” de sua situação cultural,
temporal e espacial.
Todavia, isso significa a necessidade de esperar o lycée para começar
a adquirir o hábito de certa descentração em relação a seu (ou antes, seus)
meio(s) de vida, o raciocínio comparativo ou o pensamento racional a respeito
de fatos sociais? Esperar o lycée para constatar que hábitos não-científicos
de pensamento sobre o mundo social impeçam muito seriamente – e como
poderia ser de outra forma, depois de tantos anos passados sem nada construir na matéria? – a instalação de novos hábitos de pensamentos ligados às
ciências do mundo social.
Se podemos facilmente admitir o fato de que a criança deve primeiro
“saber falar” antes de aprender a ler, a escrever e a constituir a língua como
objeto de estudo, não é nada menos que o sistema francês ensina hoje em
dia, e isso desde os seis anos, a leitura a escrita e rudimentos da gramática
francesa. A reflexividade linguística seria menos abstrata do que a reflexividade em relação ao mundo social? Pensando bem sobre isso, poderíamos
ser levados a concluir que é a constituição da língua como objeto de estudo
e de reflexão que se revela um exercício bem mais estranho ainda para as
crianças. A construção de si através de diversas instâncias de socialização
não seria, portanto, incompatível com a aptidão adquirida desde a escola
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primária ao considerar o mundo social a partir de um pensamento menos
mágico e mais científico.
A ideia, segundo a qual ensinar reflexividade e recuo até mesmo na
formação moral e cultural da criança, constituiria uma operação psicologicamente desestabilizadora é, no fundo, a manifestação de um profundo
etnocentrismo. Pensar que é necessário construir suas referencias, suas “marcas”, sua “identidade”, antes mesmo de poder começar a tomar consciência
da diversidade social (cultural, civilizacional, política, etc.) é, com efeito, o
melhor meio de conduzir a todas as formas de etnocentrismo, consistindo em
“repudiar pura e simplesmente formas culturais: morais, religiosas, sociais,
estéticas que são as mais distantes daquelas com as quais nos identificamos”
(LEVI-STRAUSS, C. Race et histoire. Paris: Folio, 1987, p. 19). O estado atual
do mundo social exigiria mais imaginação e deveria, notadamente, levar a
pensar que a identidade individual e a personalidade da criança não podem
mais doravante se construir fora do exercício de reflexão que lhes confere
às ciências sociais.
A familiarização com diferentes formas
de investigação
Como já foi dito, o objetivo de um ensino precoce da Sociologia não deveria ser essencialmente aquele de difundir um conhecimento de natureza
enciclopédica. Não se trata, a meu ver, de ensinar “teorias”, “métodos” ou
“autores”, mas de transmitir hábitos intelectuais fundamentalmente ligados a
essas disciplinas. Como transmitir tais hábitos intelectuais à escola primária
senão pelo estudo de “caso”, de “exemplos” visíveis de diferenças culturais
(e.g. comparar as diferenças alimentares de uma sociedade a outra, relacionando essas diferenças às condições de existência das populações, ao clima,
ao tipo de agricultura, etc.), assim como pela participação ativa dos alunos
nas verdadeiras investigações empíricas. Do mesmo modo que os alunos
adquirem o hábito de fazer quotidianamente o levantamento de temperatura
para objetivar e tomar assim consciência dos fenômenos meteorológicos ,
eles poderiam ser treinados para a observação e para a objetivação do mundo
social. Se a experimentação está no fundamento das ciências da matéria e
da natureza, o espírito de investigação está na base de todo o mundo social.
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A objetivação etnográfica
Uma das primeiras qualidades que o “olhar sociológico” (E. C. HUGHES, Le
regard sociologique. Essais sociologiques. Éditions de l’EHESS, textesrassemblés et présentés par J.-M. CHAPOULIE, Paris, 1996.) supõe é uma capacidade
de descrição e de narração daquilo que é possível observar diretamente
(paisagens, lugares, ambientações, objetos, personagens, maneiras de falar
ou de fazer), quando estamos armados de nossos sentidos e de nossas categorias de percepção do mundo social. A descrição e a narração, estando no
programa de Escola primária, não seria impensável orientar, por vezes, essas
tarefas em direção ao estudo dos comportamentos observados (melhor que
imaginados): comportamento dos alunos durante a recreação (as meninas e
os meninos jogam o mesmo jogo? Os alunos de CP jogam os mesmos jogos
que aqueles do CM2?), cenas de filmes disponíveis em fitas de vídeo (e que
podemos vê-las e revê-las quantas vezes forem necessárias), etc.
Desprovido de categorias léxicas, o olho do observador não pode achar
os meios de se fixar com precisão sobre as realidades observadas. Assim, a
qualidade de uma narração ou de uma descrição depende, em parte, da sua
riqueza léxica. A descrição e a narração de cenas realmente observadas (e não
de um fato ou de elementos imaginários) são, portanto, a ocasião de aprender
a nomear as coisas, a discriminar as situações, a designar gestos, mímicas ou
atitudes. É também a ocasião de mostrar que os comportamentos individuais
não se compreendem de maneira isolada, mas sempre “em relação a”, “em
reação frente a”, “em interação com”, outros elementos do contexto (outros
indivíduos, objetos, palavras ou gestos). Desse ponto de vista, os professores
(e os manuais escolares) poderiam se inspirar nas exigências da literatura
naturalista que visa compreender o homem e sua psicologia, relacionando-a
ao seu meio de pertença (Cf. É. ZOLA, Le Roman expérimental, op. cit. et la
belle étude de Jacques Dubois sur les romanciersréalistes J. DUBOIS, Les
Romanciers du réel, op. cit.).
A objetivação estatística
Os alunos bem que poderiam ser encorajados a criar coletivamente, questionários sobre temas escolhidos por eles. Poderiam, do mesmo modo, aplicar
esses questionários e dar os resultados por meio de contagem simples (a noção
de proporção sendo abordada desde os nove anos) para aprender o espírito
de investigação e adquirir o sentido e o interesse pelas investigações sobre
os (relativamente) números elevados. Poderíamos imaginar, por exemplo,
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que os alunos de uma classe conceberiam uma investigação por questionário
sobre o conjunto de alunos de sua escola (e.g. sobre os gostos musicais dos
alunos; sobre suas opiniões quanto a alguns aspectos da vida coletiva, etc.).
A entrevista sociológica: um exercício democrático
Considerando a prática de pesquisadores em ciências sociais, podemos
perfeitamente sustentar que a entrevista do tipo sociológica (que se opõe a
entrevistas burocrática, policial, de emprego, etc.) – que procura compreender
e não julgar, que obriga a se colocar no lugar da pessoa entrevistada, que se
propõe escutar atentamente o que o interlocutor tem a dizer, e mesmo ajudá-lo a dizer, e não lhe impor suas próprias categorias sociais de julgamento
ou de interrompê-lo sem parar, etc. – constitui um verdadeiro exercício de
democracia. Trata-se de uma técnica que permite realmente “atingir”, em
ato, o clássico (mais impreciso) “respeito aos outros”. Aprender a ser atento;
a desenvolver uma escuta paciente, compreensiva e curiosa; a lançar uma
discussão no momento oportuno, eis um meio concreto de adquirir certos
valores que, limitados ao estado de slogans democráticos, levantam do simples (e inútil) prêchi-prêcha4.
A necessidade histórica do ensino das ciências
do mundo social
Tentei explicar o que faz, a meu ver, o interesse e mesmo a necessidade
histórica do ensino da Sociologia desde a Escola primária. Essa ciência se
construiu historicamente contra as naturalizações dos produtos da história;
contra todas as formas de etnocentrismo fundadas sobre a ignorância do
ponto de vista (particular) que temos sobre o mundo; contra as mentiras
deliberadas ou involuntárias sobre o mundo social. Por essa razão, ela me
parece de primordial importância no âmbito da cidade democrática moderna.
A Sociologia se impôs, pouco a pouco ao longo de sua historia, pressões
geralmente severas, em matéria de pesquisa empírica da verdade, na precisão
direcionada para o rigor na administração da prova; e se distingue, por isso
mesmo, de todas as formas de interpretações arriscadas do mundo. Passando
da filosofia social, que poderia dissertar de maneira geral e pouco controlada,
ao conhecimento teórico-metodológico armado e empiricamente fundado do
mundo social, os sociólogos inventaram, assim, uma forma racional de conhecimento sobre o mundo social que pode legitimamente pretender a certa
verdade científica (mesmo se esta, como nas outras ciências, não é jamais
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VIVER E INTERPRETAR O MUNDO SOCIAL
definidamente estabelecida). Quando são fundadas na investigação empírica
(de qualquer natureza), as ciências sociais podem, assim, utilmente, em uma
democracia, constituir um contrapeso crítico ao conjunto dos discursos parciais mantidos sobre o mundo social, dos mais públicos e poderosos (discursos
políticos, religiosos ou jornalísticos) aos mais comuns.
Investidos em suas diversas ocupações comuns, familiares ou profissionais, lúdicas ou culturais, os atores das sociedades diferenciadas têm
finalmente apenas uma visão extremamente limitada de um mundo social
complexo. A divisão social do trabalho obriga, e eles consagram seu tempo e
sua energia a atividades tão circunscritas e localizadas, que dificilmente têm
tempo e meios de recompor os quadros mais gerais nos quais estão inseridos.
A visão horizontal é uma visão de proximidade, uma visão “de baixo” e um
pouco curta. Aonde “a sociedade” – esse monstro complexo e invisível – se
mostraria, hoje em dia, sem as ciências sociais racionais e empiricamente
fundadas, se não nos discursos públicos estatais, políticos, jornalísticos,
publicitários, religiosos ou morais, que pintam, cada um a sua maneira o
retrato deformado de uma época. Quando lemos jornais, ligamos nossa televisão, escutamos discursos políticos, etc., nós nos encontramos diante de
“resumos do mundo social”, mais ou menos gerais, que conferem uma forma
a esse último, tornando-o por conseguinte compreensível pelas consciências
individuais. Essas entidades, um tanto imprecisas, as quais designamos por
vezes de “problemas sociais” ou de “fatos da sociedade”, e que constituem
o objeto de todas as atenções públicas, são sempre meios de transformar o
monstro complexo e invisível em uma figura simples e visível.
As ciências sociais têm por objetivo fazer ascender a realidades que
permanecem invisíveis frente à experiência imediata. Por seu trabalho
coletivo de reconstrução paciente, elas oferecem imagens particulares do
mundo social, de suas estruturas, das grandes regularidades ou dos principais
mecanismos sociais que os regem.
Essas ciências são capazes de elaborar um “conhecimento mediato”
da realidade; ou seja, elas podem construir objetos jamais observados, vistos
ou “vividos” como tais, e sem nenhuma visibilidade de um ponto de vista
comum: probabilidades de repetência escolar por origem social, taxas de
inflação em um dado período de tempo, movimentos populacionais, etc.
Esse conhecimento mediato – que permite ultrapassar o horizonte limitado
de todas as visões que reduzem o mundo social ao que os atores puderam
sentir, pensar ou dizer dele – supõe numa dissociação da percepção e do
conhecimento: se trata de conhecer o mundo fora da percepção direta ou
imediata deste, por reconstrução da realidade a partir de um conjunto de
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bernard lahire
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dados coletados, criticados, organizados, agregados e postos em forma de
diferentes maneiras.
As ciências sociais se distinguem, portanto, dos outros gêneros de discurso pela possibilidade que lhes é dada de se aterem a imagens mais longas,
mais sistemáticas, mais controladas. As imagens que elas obtêm dependem,
decerto, sempre de um ponto de vista parcial e teoricamente limitado, mas
elas são ao mesmo tempo racionais e empiricamente fundadas. Do mesmo
modo, em relação às diferenças dos discursos públicos comuns, as ciências
sociais sublinham o caráter fundamentalmente histórico – e por conseguinte,
não-natural e mutável – daquilo que elas descrevem e analisam. No lugar de
nos “contar histórias” e de reforçarem os estereótipos de todo tipo, os pesquisadores tornam problemáticas as evidências menos discutidas e despertam
“nossas consciências sonolentas”, levando um olhar rigoroso, interrogador e
crítico sobre o estado do mundo. O que seriam as representações do mundo
social dos jovens “lycéens” sem um conhecimento mínimo do mercado
econômico, das organizações produtivas e da estratificação social, das desigualdades econômicas, sociais ou culturais, das estruturas de parentesco
e das formas contemporâneas da família, dos processos de socialização ou
dos determinantes sociais de consumo? Ousamos, com dificuldade, pensar
no recuo histórico que representaria um universo onde a grande maioria
dos futuros cidadãos desprovidos de todo conhecimento científico sobre o
estado do mundo, no qual vivem, ficassem nas mãos de alguns sofistas dos
tempos modernos.
Os estados, em toda parte do mundo, sublinham a necessidade de
formar para a cidadania, e visam geralmente responder a essa exigência
pelo ensino moral ou da educação cívica. Ora, as ciências do mundo social
poderiam e até mesmo deveriam estar no centro dessa formação: o relativismo antropológico (que não tem nada a ver com um indiferentismo ético), a
tomada de consciência da existência de uma multiplicidade de “pontos de
vista” ligada às diferenças sociais, culturais, geográficas, etc., o conhecimento
de certos “mecanismos” e processos sociais etc., tudo isso poderia utilmente
contribuir para formar cidadãos que seriam um pouco mais sujeitos de suas
ações em um mundo social desnaturalizado, um pouco menos opaco, um
pouco menos estranho e um pouco menos indomável.
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NOTAS
VIVER E INTERPRETAR O MUNDO SOCIAL
1
Correspondente ao que se denomina Ensino Fundamental, hoje, no Brasil.
2
Equivalente ao Ensino Médio brasileiro.
Programas da escola primária, Ministério da Educação Nacional, Direção
das escolas, CNDP, Paris, 1995, p. 71. Nos novos programas (2002), se prevê
desde o ciclo 2 que o professor explique notadamente aos alunos “a significação dos grandes símbolos da França e da República: o hino nacional, a
bandeira, alguns monumentos...”, O que se aprende na escola elementar?,
op. cit., p. 98.
3
4
Discurso enfático com tom moralizante.
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bernard lahire
Palavras-chave:
Ensino de sociologia,
pedagogia, cidadania,
conhecimento crítico.
Keywords:
Teaching sociology,
pedagogy, citizenship,
critical knowledge.
RESUMO
O artigo argumenta que o ensino pedagogicamente
adaptado da Sociologia, tal como acontece em outras ciências
sociais (história e geografia) ou matemática, desde a escola primária, permitiria construir uma resposta adequada às
exigências modernas de formação escolar dos cidadãos nas
sociedades democráticas. Tornaria possível difundir entre os
jovens um olhar rigoroso, interrogador e crítico sobre o mundo,
contribuindo para entender o mercado econômico, as organizações produtivas a estratificação social, as desigualdades
econômicas, sociais ou culturais. A tomada de consciência
sobre a existência das diferenças sociais e culturais contribuiria
a desnaturalização do mundo social e para formar cidadãos
mais sujeitos de suas ações.
ABSTRACT
The paper argues that the pedagogically adapted teaching of Sociology, as with other social disciplines (history and
geography) or mathematics, starting from primary school,
would allow the building of a proper response to the modern
demands of education of citizens in democratic societies. It
would also make it possible to disseminate among the young
a rigorous, interrogative, and critical world view, contributing
to a better understanding of the economic market, productive
organizations, social stratification, as well as economic, social
and cultural inequalities. Knowledge of the existence of social
and cultural differences would contribute to the denaturalization
of the social world and to the formation of citizens who are
subjects of their own actions.
Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em agosto/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, jan/jun, 2014, p. 45-61
O ofício de ensinar para iniciantes:
contribuições ao modo sociológico
de pensar
Irlys Alencar Firmo Barreira
Professora titular do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Ceará, pesquisadora do CNPq.
E-mail: [email protected]
introdução
Sendo o professor detentor de um saber que certamente é aprimorado ao longo de sua prática pedagógica, supõe-se que o ensino
torne-se uma tarefa mais fluente com o passar dos anos. Se essa
assertiva parece aplicável a diversos ramos do conhecimento,
em se tratando da sociologia a evidencia parece mais complexa.
De fato, o que e como ensinar são sempre desafiantes. Não por
acaso, as disciplinas introdutórias de sociologia criam fortes
tensões, pela expectativa desenvolvida por alunos iniciantes a
respeito do conteúdo do programa. Assimilar a arte do ofício,
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
no sentido do artesanato intelectual preconizado por Wright Mills, implica
uma aprendizagem construída ao longo do tempo que não se realiza apenas
na sala de aula, mas no decurso da própria experiência de pesquisa, o que
confere especificidade ao saber sociológico. O autor do livro A imaginação
sociológica, trabalhando com base em arquivo especializado da produção
acadêmica, supunha a sociologia como um ofício1 continuado, um senso
útil para a aplicação do método e da teoria como partes interdependentes
de uma totalidade2.
Se a condição artesanal da prática sociológica implica a necessidade
de um processo lento de articulação entre ensino e pesquisa, esse fato não
invalida a possibilidade de abordar e analisar questões de cunho sociológico
para iniciantes na matéria. Embora a complexidade da transmissão do saber
sociológico já se imponha na formação de futuros profissionais da área, ensinar
sociologia para os que não seguirão a carreira profissional suscita outras questões. Estas, vigentes sobretudo no momento em que o pragmatismo domina
as escolhas vocacionais, fazendo emergir a pergunta “para que serve?”, antes
mesmo da apreensão do significado do conhecimento da matéria. Considerar, por outro lado, que a sociologia resume-se a uma forma de aprendizado
rumo a um engajamento político é no mínimo empobrecer as possibilidades
de exploração desse campo de saber e suas potencialidades de uso, mesmo
para discentes que não irão aprofundar-se no assunto.
Quando a sociologia se constituiu em disciplina obrigatória para o
Ensino Médio3, o debate sobre como deveria ser a formação pedagógica do
profissional da área, ou reflexões a respeito de como transmitir ensinamentos
sobre esse campo de saber vieram à tona com nitidez. Vale registrar que a Lei
de Diretrizes e Bases do Ensino Nacional incluiu, inicialmente, a sociologia no
Ensino Médio mas não instituiu a obrigatoriedade na ocasião. Só posteriormente,
a regulamentação da sociologia como disciplina obrigatória no Ensino Médio
das escolas particulares e públicas, suscitou, entre os profissionais da área,
preocupações sobre o modo como pôr em prática uma pedagogia adequada a
essa tarefa. A introdução da obrigatoriedade da sociologia no Currículo trouxe
como principais tarefas a criação de condições referentes à formação de professores, à produção de material didático especializado, à implementação de
pesquisas sobre experiências de ensino da matéria e à formulação de novas
políticas acadêmicas com ênfase na pedagogia.
É importante mencionar que o primeiro Congresso Brasileiro de
Sociologia, realizado no período de 21 a 27 de junho de 1954, em São Paulo,
abordou a temática, tendo como principal referencia as formulações de
Florestan Fernandes. Em exposição denominada “O ensino da sociologia
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na escola secundária brasileira”, o sociólogo destacou o caráter formador
da disciplina, tendo em vista, a capacidade de fazer com que os estudantes
pudessem compreender o seu tempo, assumindo uma atitude crítica e objetiva
diante dos fenômenos sociais. A percepção da sociologia como conhecimento
capaz de elucidar processos sociais e históricos, associados a dinâmicas da
vida cotidiana, esteve fortemente presente nas discussões.
As reflexões de profissionais pioneiros na formação e consolidação
da sociologia brasileira, após cinco décadas, não se separam das discussões
atuais4. A permanência de antigos dilemas pedagógicos revela a complexidade
da questão, considerando-se que as idas e vindas da oficialização da disciplina, no Ensino Médio, têm sido permeadas de concepções diversificadas
provenientes do campo acadêmico. A polêmica sobre a prioridade conferida
ora à formação pedagógica – que valorizou o curso de licenciatura –, ora
ao bacharelado – com ênfase na formação de pesquisadores –, repercutiu
sobre a criação de profissionais especializados no ensino de sociologia.
Atualmente, as formulações sugeridas pelo Ministério da Educação (MEC)
supõem a necessária aliança entre ensino e pesquisa, levando-se em conta
as dificuldades dessa separação que termina criando ambiguidades ou
disputas na formação do profissional da área de sociologia. Disputas não
separadas de diretrizes institucionais, a exemplo do processo de avaliação
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
com ênfase na produtividade como critério de excelência e valorização da
formação de pesquisadores.
Fruto de propostas e esforços competentes de profissionais desse campo do conhecimento, os intelectuais e porta-vozes da nova Lei de Diretrizes
e Bases defendiam a eficácia positiva da sociologia na formação do aluno5.
Mesmo para aqueles que não iriam seguir a carreira de sociólogo, a matéria
teria a função de propiciar conhecimentos relevantes para a compreensão
da vida social e seus mecanismos de funcionamento, também significativos
para o exercício de outras profissões.
Como, por que, e quais conteúdos ensinar tornaram-se, portanto,
ponto de partida fundamental para a instituição de uma pedagogia sobre o
saber sociológico pensada em um sentido amplo. O conhecimento adequado
da matéria poderia, futuramente, orientar ou influenciar não só uma escolha profissional na própria área de sociologia, mas também embasar outras
profissões carentes de uma visão ampla dos mecanismos que orientam as
práticas sociais. Os cursos de administração, educação, planejamento e
economia, além de áreas de conhecimento, consideradas não-afins, seriam
beneficiados pelo diálogo interdisciplinar bem orientado com a sociologia.
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
Nessa direção, é importante lembrar o desenvolvimento de áreas específicas
tais como “sociologia das profissões” e “sociologia da saúde”, entre outras,
que vem contribuindo para a consolidação de interlocuções entre diferentes
campos do conhecimento.
O “modo sociológico de pensar”
As questões atuais que se impõem aos que pretendem ministrar o ensino
da sociologia são as seguintes: que conteúdos transmitir; como fazê-lo e, de
que modo é possível tornar essa matéria um objeto de interesse dos alunos
no Ensino Médio. Não seria exagerado afirmar que ministrar sociologia para
iniciantes é uma missão de maior complexidade do que a de transmitir esses
ensinamentos a discentes já conhecedores da temática. Trata-se, inicialmente,
não apenas de despertar interesse, mas também imprimir uma visão diferente
da que se costuma ter acerca dos fatos presentes na vida social. Explicações já
existentes no senso comum, sobre acontecimentos corriqueiros do presente
e do passado, dificultam interpretações de cunho sociológico6.
Somando-se aos esforços coletivos de profissionais da área de sociologia, atualmente voltados para o estabelecimento criterioso da transmissão
da matéria no Ensino Médio, este artigo busca contribuir para uma reflexão
sobre conteúdos temáticos e pedagógicos, priorizando o que poderia ser
designado “modo sociológico de pensar”. Este, baseado no uso de conceitos
como ferramenta de interpretação e ruptura com as formas previamente
construídas de explicação acerca do funcionamento da vida social. Trata-se
de um desafio de grande porte, considerando-se que a vasta experiência dos
profissionais da área, incluindo a minha, está mais voltada a discentes de
cursos de ciências sociais. Nesse sentido, a complexidade acerca da introdução
de pensamentos considerados “abstratos” para iniciantes emerge com mais
nitidez. Cabe aos profissionais não abdicar dos conceitos como ferramenta de
interpretação, acionando, por outro lado, estratégias pedagógicas de transmissão da matéria com utilização de tecnologias e inserção de temáticas de
maior interesse para os alunos.
No âmbito de uma informação introdutória, de caráter pedagógico,
impõe-se uma reflexão sobre o que significa o “modo sociológico de pensar”.
Em princípio é possível dizer que este supõe a tarefa de instrumentalizar os
alunos com categorias analíticas e maneiras de observar o que é designado
como “realidade social”, de modo diferente daquele utilizado costumeiramente
para explicar o mundo e nele se situar. Trata-se de posicionamento que evoca
os pensadores clássicos da sociologia interessados no estatuto científico da
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Irlys Alencar Firmo Barreira
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disciplina, sem a perda de sua especificidade. Os clássicos, por serem pensadores provenientes de um contexto de transição da sociedade tradicional
para uma ordem moderna e urbana, competitiva e permeada por conflitos,
impuseram-se à tarefa de analisar processos sociais em larga escala. São, nesse
sentido, referências – não-anacrônicas, pois reatualizadas – para a análise de
questões presentes na vida contemporânea.
Talvez, uma das tarefas mais difíceis no ensino da sociologia seja a
de romper com a ideia sedimentada de que lidar com pessoas carentes e ter
sensibilidade para “problemas sociais” não conferem créditos suficientes para
o exercício e o domínio dessa área do conhecimento. A sociologia exige, como
toda ciência, o manejo de conceitos e modelos teóricos capazes de explicar
o funcionamento das relações sociais, em diversos aspectos históricos e cotidianos. Não há, portanto, uma forma natural de pensar sociologicamente,
baseada no sentimento de “injustiça social” e independente da experiência e
conteúdo embasados na aquisição e manejo de conceitos. Nessa direção, uma
“volta aos clássicos” torna-se fundamental, supondo-se que temáticas sobre
as desigualdades sociais, as normas de comportamento e a legitimidade das
ações estão já enunciadas nos percussores do pensamento sociológico e devem
ser recuperadas à luz de questões e pensadores contemporâneos.
O pressuposto segundo o qual a curiosidade e a atenção voltadas
às questões sociais já asseguram, em princípio, imaginação sociológica é
bastante difundido. Isso ocorre na medida em que a sociologia lida com
fatos e situações a respeito dos quais é possível emitir opiniões e ensaiar
formulações sobre causas e consequências. É supondo a existência de um
conjunto de opiniões já sedimentadas sobre acontecimentos que o sociólogo
francês, Patrick Champagne (1998) sugere a necessidade de transformar
o “problema social” em “problema sociológico”, tarefa a ser realizada por
meio de um aparato metodológico e conceitual específico dessa área do
conhecimento. A perspectiva adotada é a de considerar que a prostituição,
a pobreza e a violência, para citar alguns exemplos, constituem sem dúvida problemas sociais mas é preciso pensar sobre como torná-los tema de
investigação sociológica.
Uma primeira questão que deve ser informada ao aprendiz é a compreensão da especificidade do pensar sociológico, a ser feita com base no
manejo de alguns conteúdos básicos. Assim como físicos, biólogos e matemáticos tiveram que realizar suas rupturas com explicações sobre fenômenos
relacionados ao corpo e à natureza, usualmente atribuídos a forças religiosas
ou a poderes mágicos, a sociologia fez também seu ponto de partida. Supor
que a vida social tem uma dinâmica e uma lógica de funcionamento, exigiu
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, jan/jun, 2014, p. 63-85
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
uma concepção sobre acontecimentos da vida cotidiana independente de
noções como “destino”, “sorte”, ou processos de mudança social baseados
em “leis naturais da história”. É importante lembrar que parte considerável
do pensamento instituído – denominado ideologia – firmou suas convicções
afirmando que os fatos são naturais e não sociais. É o caso da ocultação ou
naturalização das diferenças de gênero, de etnia, de classe e geração, muitas
vezes explicadas com base em supostos biológicos percebidos como forças
motrizes do comportamento humano.
O questionamento “sobre o óbvio” – brilhantemente explorado por Darcy
Ribeiro (1986), em texto homônimo – fornece pistas interessantes quanto à forma
de lidar com estereótipos e verdades previamente construídas que constituem
o maior obstáculo para a formulação do pensamento crítico. Darcy Ribeiro
tomou o tema das desigualdades sociais e seus efeitos na educação brasileira – a exemplo da reprodução das elites – como referência para formulações
construídas em torno de “verdades óbvias”. Nesse sentido, a recuperação de
exemplos retirados da vida cotidiana pode constituir um caminho interessante de exercício do pensar sociológico. Estereótipos e explicações difundidas
como sendo “verdades óbvias” constituem uma espécie de matéria prima a ser
talhada pelo “modo sociológico de pensar” a ser pedagogicamente explorado.
A sociologia reivindicou, desde o início, seu direito ao pensar diferente,
na medida em que lida com fatos sociais sujeitos a variadas versões e interpretações, permeando modos de classificar e diferenciar vários fenômenos
denominados por representações7. Assim, ao invés de ser um ponto de vista,
entre os demais, acerca da interpretação de situações cotidianas, afirmou-se
como estudo do conjunto dos pontos de vista, identificados em um espaço
social específico, verificando porquê e como eles surgem em um determinado
momento histórico. Visões de mundo, representações e classificações, como
partes da realidade social, ao serem tomados como objeto de um olhar sociológico, supõem contextualizações e alinhamentos processuais.
Uma primeira ruptura a respeito da interpretação de fatos e acontecimentos sociais refere-se ao abandono das explicações lineares. Em seu
lugar, destacou-se o reconhecimento de fatores complexos que concorriam
para a vigência de situações diferenciadas. Pensar sociologicamente supõe,
portanto, perceber que os acontecimentos são partes de um processo construído ao longo do tempo, dentro de processos históricos. Uma espécie de
estoque de eventos e situações que repercutem, influenciam ou se associam
em momentos posteriores.
As vinculações, por exemplo, entre migração, escolaridade e desemprego apontam o fato de que os acontecimentos não são meramente casuais,
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pois fazem parte de processos sociais mais amplos. A recorrência de características e posições sociais – nomeadas na sociologia clássica de estruturas
– figurações e, mais recentemente, a noção de rede sugere a possibilidade de
registrar modelos de comportamento e situações que podem, inclusive, ser
identificados com base na observação de frequências estatísticas.
O crescimento do número de trabalhadores nas fábricas, o desemprego
e o deslocamento de populações apontam situações históricas específicas
que podem ser vistas, também, de forma numérica e explicadas por meio de
processos sociais. Outra questão deriva dessa suposição anterior. Na medida
em que pessoas pertencentes a determinadas classes ou culturas tendem a
ter atitudes semelhantes, torna-se possível observar um sentido de totalidade
e de densidade que põe em questão o caráter espontâneo das ações sociais.
Trata-se de perspectiva que permite romper com as concepções de “sorte”
ou de “azar”, que acompanham o senso comum, chamando a atenção para o
fato de que as repetições, semelhanças e “coincidências” que se apresentam
na vida social devem-se a fatores amplos e gerais que interferem nas ações
dos indivíduos, embora pareçam adquirir um ar de casualidade. Tragédias
interpretadas como fruto do “destino” podem fazer parte de um circuito de
tendências e oportunidades sociais.
Uma observação sociológica da vida social supõe também que os indivíduos não têm possibilidades inteiramente livres de escolher suas trajetórias
de vida. Os conceitos de habitus8, em Bourdieu, e “processo civilizador”, em
Norbert Elias9, podem ser elucidativos na demonstração de que certas escolhas pessoais e trajetórias ocorrem em um quadro de influências ou campo
de possibilidades conectados a tendências sociais e históricas.
A luta contra os mitos e a crítica à percepção segundo a qual o conjunto de práticas ou ações que denominamos sociedade se move por forças
sociais – postas em um plano histórico que antecede e sucede as interações
entre os indivíduos – marcaram o pensamento dos fundadores da disciplina.
A sociologia distinguiu-se, portanto, da biologia e da física, entre outras ciências, na busca de encontrar pressupostos específicos, capazes de explicar
a vida social em seu acontecer permanente. Explicar “o social pelo social”
representou, na visão de Durkheim, a ruptura com preceitos religiosos e
metafísicos que povoavam uma visão de mundo até o alvorecer das ciências
sociais. Alguns autores, considerados pioneiros no pensar sociológico, podem
ser mencionados. Augusto Comte, apontado como o criador da disciplina
chamada sociologia, postulou um olhar para a dinâmica social feito com base
na observação empírica e não especulativa da sociedade. Seus seguidores, não
obstante as diferenciações de perspectiva analítica, retomaram a necessidade
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
de verificar a existência de processos sociais com base na análise de fatos
concretos. A máxima de Durkheim de “olhar os fatos sociais como coisas” –
muitas vezes mal interpretada como falta de percepção sobre a importância
dos valores na vida social – pode ser lida como a busca de inversão de uma
dimensão especulativa sobre o funcionamento da sociedade, baseada em
concepções filosóficas e morais. Durkheim procurou elaborar uma espécie
de “vida social como ela é”, independente de “como deveria ser”. A ruptura
com os mitos religiosos ou com as narrativas derivadas do senso comum,
particularmente enfatizada nas postulações de Marx, implicou, por sua
vez, a percepção de que a sociologia não se apresenta como um catálogo
de ensinamentos morais, ou pressupostos naturais do comportamento humano. A compreensão do modo de funcionamento desse feixe de relações
denominado sociedade exigiu, do investigador, o contato com fatos sociais
conectados a redes comportamentais de extensão variada.
A grande diversidade de interações humanas supôs, por outro lado, a
impossibilidade de respostas simples para problemas de natureza complexa.
Nesse sentido, toda e qualquer proposta de mudança social deveria considerar
a enorme complexidade de experiências, pontos de vista e compreensão de
processos históricos que fazem os acontecimentos cotidianos. Para o sociólogo alemão Norbert Elias,
[...] uma das tarefas da sociologia inclui, não unicamente, o exame e interpretação das forças compulsivas específicas que agem sobre as pessoas nos seus
grupos e sociedades empiricamente observáveis, mas também a libertação
do discurso e do pensamento das forças relacionadas a modelos anteriores
(ELIAS, 1999, p. 18).
A distância entre a análise do funcionamento de setores variados da
vida social e as eventuais propostas de intervenção implica a formulação de
um pensamento crítico, capaz de verificar o impacto das ações coletivas em
um cenário de permanente mudança e reprodução. A crítica sociológica
supõe, assim, uma visão de complexidade baseada na percepção das redes
de interação que se apresentam nos comportamentos e situações cotidianas.
No trabalho, no lazer, na moradia e na política, os fatos sociais se conectam
espacial e historicamente de forma combinada e/ou diferenciada, em meio
a tensões, conflitos e negociações. Evidentemente, diferenciam-se entre si
as teorizações sobre o mundo social, exprimindo-se em tradições e escolas. No entanto, para alunos iniciantes seria importante apresentar o que
Lahire (2013) denomina fundo de referências e aquisições comuns a que os
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Irlys Alencar Firmo Barreira
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profissionais recorrem no exercício de suas profissões. No que concerne à
sociologia, o pensamento relacional, o método comparativo ou relativismo
antropológico, acompanhados do uso de técnicas de investigação como entrevistas e questionários, permitiriam diferenciar o pensamento sociológico
do religioso, do político ou ideológico, tendo em vista sua capacidade de
observar e analisar fatos sociais.
Na tentativa de transmitir aos alunos um “modo sociológico de pensar”,
baseando em autores e principais interlocutores dessa área do conhecimento,
dois pressupostos básicos podem ser sintetizados.
1- Não há uma ordem social determinista que comanda o funcionamento do mundo
A compreensão de que o mundo social é comandado por forças incontroláveis e obscuras constitui uma visão determinista que deve ser criticada em
uma introdução ao pensar sociológico. Se a vida social possui uma dinâmica
própria, ela é construída pela ação mais ou menos consciente dos indivíduos.
A sociedade não é, portanto, uma entidade naturalizada e cósmica, capaz de
tornar seus membros meros autônomos de uma ordem imperial superior.
Tampouco, os indivíduos podem realizar ações do modo que desejam, apenas mobilizando vontades e projetos. O teórico da ação social, Max Weber,
mesmo preocupado com o sentido subjetivo do agir, reconhecia os limites
de seu caráter voluntário. As tensões e contradições do descompasso entre
vontades, possibilidades e constrangimentos podem constituir matéria
interessante para ser analisada com estudantes, tendo por base elementos
concretos, retirados da vida cotidiana. Nessa perspectiva podem entrar em
pauta preferências vocacionais, tensões familiares e pressões sociais acerca
de trajetórias profissionais, escolhas afetivas e políticas.
2 – O mundo social pode ser explicado por meio de categorias sociológicas
A influência das ciências naturais nas demais áreas do conhecimento terminou ampliando-se aos modos de analisar o comportamento humano, com
base em leis naturais de variadas espécies. Uma inversão dessa abordagem
considera que as ações humanas se explicam a partir de interações sociais
dotadas de variadas formas de interdependência. Um dos conteúdos a serem
repassados aos iniciantes na disciplina refere-se à história do surgimento da
sociologia como expressão inaugural de um “novo modo de pensar”, através
de rupturas com as percepções do senso comum. Norbert Elias, em trabalho
anteriormente citado, considera fundamental, nesse sentido, “mostrar como
e porque a interpenetração de indivíduos interdependentes forma um nível
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
de integração no qual as formas de organização, estruturas e processos não
podem ser deduzidos das características biológicas e psicológicas que constituem os indivíduos” (1999, p. 50).
As estruturas, processos e redes são, portanto, a grande tela de fundo na
qual se desenrolam enredos e tramas sociais diversos. O conceito de figuração,
utilizado por esse sociólogo e historiador alemão, oferece várias possibilidades
de registrar os mecanismos sociais, de longa duração, que produzem efeitos
objetivos sobre o comportamento cotidiano de indivíduos pertencentes a várias
culturas. Os comportamentos típicos da sociedade da corte, as atividades de
lazer e desporto – presentes nas instituições modernas, além de outros conjuntos de ações – devem ser observados, de forma articulada na sua historicidade.
As obrigações da corte, as regras de etiqueta e as tensões advindas do emergente
mundo burguês constituem exemplos interessantes e paradigmáticos. Desse
modo, pensar sociologicamente supõe perceber a vida social com regras, sentidos,
interações e disposições construídos com base em organizações complexas que
se desenvolvem historicamente. Trata-se de considerar que os indivíduos estão
enredados em uma teia de relações sociais conectadas a estruturas que nem
são a extensão exclusiva de cada um dos membros, tomados individualmente,
tampouco a expressão de forças sociais puramente autônomas10. Na reflexão
junto com os alunos, exemplos sobre a influência das instituições religiosas,
econômicas, familiares e políticas sobre os comportamentos sociais podem
auxiliar na compreensão desse postulado sociológico. As tensões e conflitos
advindos de trajetórias familiares ligadas a regras de comportamento podem
servir de ilustração para o papel das instituições e valores na regulação do
comportamento social.
Tomar as relações, conflitos e interações sociais como objeto de estudo
representa o primeiro esforço feito por diversos autores considerados fundadores do pensamento sociológico. Eles estavam preocupados em conhecer
processo sociais, materializados em diversas esferas da vida cotidiana, capazes
de tornar as pessoas unidas ou em conflito em torno de ideais. A presença de
agrupamentos que incorporam diferentes papéis individuais constitui uma
espécie de primeiro passo rumo a uma teorização da vida social a ser incutida
junto aos iniciantes do pensar sociológico. As classificações e divisões que
marcam o acontecer cotidiano podem servir de matéria crítica em torno da
qual é possível ir construindo o olhar sociológico.
Ressalta-se, em tal perspectiva, o suposto de que a vida social possui
uma dinâmica própria de funcionamento, não redutível às ações particulares dos indivíduos. Na afirmação desse postulado, Durkheim apontou os
atributos de coerção, exterioridade e generalidade como definidores do fato
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social, considerando as ações pessoais interligadas a um conjunto de injunções normativas e interativas. Na visão do sociólogo francês, uma ação que
parece dirigida por uma opção individual está, na realidade, condicionada a
regras amplas de socialização, não aparentes à primeira vista. Essa seria uma
perspectiva importante a ser explorada com iniciantes da área de sociologia,
tendo em vista a explicação de processos e regras que não estão formalizadas
em nenhum catálogo, mas fazem parte da configuração da ordem social. A teatralidade da vida social brilhantemente explorada por Goffman11, em várias
de suas obras, traz indicações relevantes sobre formas de comportamento e
performances que se efetivam no espaço cotidiano das interações.
Refletir sobre acontecimentos difundidos em jornais e outros meios
de comunicação, valendo-se de dados estatísticos, pode ser pedagogicamente
interessante no sentido de apontar possíveis explicações para recorrência
de mortes em determinados segmentos sociais, situações de violência entre
categorias sociais específicas, deslocamentos populacionais e outras manifestações coletivas. Em síntese, a abordagem sociológica põe os acontecimentos
em um mapa de fatos históricos e sociais, buscando convergências e explicações que vão muito além de uma relação entre causa e efeito. Lida com a
narração jornalística dela diferenciando-se, na medida em que rompe com
a natureza espetacular dos eventos na busca de uma significação para além
da sua expressão imediata. Na tentativa de superar as aparências, outros
planos de realidade são buscados distanciando-se a explicação sociológica
das interpretações oficiais.
O social dentro de nós
Outra dimensão importante a ser explorada na compreensão da dinâmica do
funcionamento das interações sociais refere-se à necessidade de se explicar o
modo como essa totalidade, denominada sociedade, vive em cada um de nós.
Trata-se de compreender que o contexto no qual estão inseridos os indivíduos
possui legitimidade ou reconhecimento, sobretudo porque o social está dentro
das mentalidades. Este é um dos pontos interessantes dos comportamentos
cotidianos trabalhados na sociologia por vários autores, considerando-se, no
entanto, que a afirmação de regras sociais na lógica dos comportamentos não
é absoluta. As ações sociais podem conter tanto características de aceitação
como de rejeição, combinadas em um sentido complexo e contraditório.
A sociedade está, da mesma maneira, presente na mente dos indivíduos pela recriação de redes incessantes de comunicação e solidariedade.
As regras e as obrigações morais de reciprocidade e solidariedade bastante
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
exploradas por Mauss (1981) em sua obra pioneira12 são transmitidas de geração
a geração por meio de um processo denominado de socialização. A partilha
de valores e as normas tornam assim os indivíduos ligados às malhas de um
mundo que os antecede, fornecendo-lhes um mapa de navegação social.
As variações desse processo fundamentam-se nas diferenças entre grupos,
classes e faixas etárias, demonstrando que as incorporações da vida social
nas mentalidades não se dão de maneira uniforme.
O processo de socialização constitui, portanto, o passaporte de entrada para a vida em sociedade, isto é, o preceito de incorporação das normas
sociais. Esse suposto – nem sempre evidente à primeira vista – faz com que
o permitido, o proibido, as classificações e as divisões simbólicas do mundo
apareçam como sendo naturais, integrando a “ordem das coisas”. Cabe ao professor de sociologia, junto com seus alunos, desvendar os sentidos aparentes
e ocultos da vida social. Não por acaso, Durkheim escolhe estudar o suicídio
para encontrar, através desse ato, supostamente dotado de uma deliberação
individual inquestionável, as marcas fortes do tecido social. E é exatamente lá,
onde o social aparece como estando ausente, que sua presença evidencia-se,
demonstrando a falência de um tecido unificador que Durkheim denominou
de consciência coletiva. O estudo do suicídio e a análise do crime, feitos pelo
sociólogo francês, permitiram mostrar que o ato de provocar a própria morte,
aparentemente a mais individualizada das ações, era, na verdade, uma manifestação típica de contextos socioculturais com frágeis regras de solidariedade.
Ou seja, o ato de suicídio, que tocava os temas da morte e da vontade individual, demonstrava, em contraponto, a não-existência de condutas humanas
inteiramente independentes de um contexto social de referência.
A existência do social, dentro de nós, pode ser percebida em vários
exemplos da vida cotidiana tais como as escolhas profissionais. Usualmente,
as pessoas seguem carreiras correspondentes a seu meio social de origem,
obedecendo também a imperativos familiares. Escolhas que parecem sugerir um percurso livre tais como o gosto musical, as preferências literárias,
a adesão a partidos políticos, crenças religiosas e círculos de amizade são
também condicionadas por contextos de socialização. O conceito de habitus,
formulado por Bourdieu (2009), também trabalhado por Norbert Elias (1990),
procura dar conta do modo como a vida social gera modelos e matrizes de
comportamento para diferentes campos da atividade social, influindo de
maneira sutil nas ações dos indivíduos.
O pensamento de Pierre Bourdieu circunscreve-se à tentativa de superar
as dicotomias estabelecidas entre os planos individual e social. O estudioso
francês, inspirado nos clássicos da sociologia (Marx, Weber e Durkheim), perRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 63-85
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cebeu o social como estando formado por um conjunto de relações históricas
permeadas por linguagens. Tais linguagens, que são também fontes de afirmação
de poder, induzem a existência de várias classificações arbitrárias do mundo
social. Por esse motivo, as mudanças sociais exigem uma transformação mais
profunda das classificações e dos modos de perceber a vida em sociedade.
A tarefa da ciência do social seria, nessa perspectiva, lutar contra o
monopólio da representação legítima do mundo, constituindo-se, assim, a
sociologia um dos caminhos capazes de suscitar uma outra forma de pensar
pautada pela crítica. A pesquisa realizada por Bourdieu a respeito do ensino
nas escolas comprovou a tendência à reprodução da desigualdade social, por
conta das classificações taxativas sobre o fraco desempenho de alunos integrantes dos estratos sociais menos favorecidos. Este é um exemplo interessante
que demonstra o papel das instituições no reforço das desigualdades sociais.
Desvelar o que está escondido, o não-explícito e desvendar a linguagem dos
fenômenos construídos como se fossem naturais, constitui o principal desafio
de uma ciência da vida social. Nessa perspectiva, trabalhar com exemplos
de reprodução das desigualdades sociais provocadas por instituições, que
supostamente querem diminuir os privilégios, tais como a Escola e as políticas de assistência, se constitui um recurso pedagógico interessante a ser
utilizado pelos profissionais sociólogos do ensino médio.
Em síntese, é importante refletir com os alunos sobre o fato de sermos
influenciados por nossa cultura na medida em que ela se faz fortemente
presente dentro de cada um de nós. As formulações do antropólogo Clifford
Geertz (1989) – baseado na ideia de multiplicidade – a respeito dos vínculos
existentes entre o indivíduo e a sua cultura, reforçam também o sentido dessa
conexão. O autor analisa o impacto do conceito de cultura sobre o conceito
de homem, criticando a existência de uma natureza humana previamente
definida. Ao invés da imagem do homem como modelo ou como arquétipo,
Geertz propõe a compreensão de vários tipos de indivíduos construídos por
diferentes culturas. “Assim como a cultura nos modelou como espécie única
– e sem dúvida ainda nos está modelando – assim também ela nos modela
como indivíduos separados. É isso o que realmente temos em comum – nem
um ser subcultural imutável, nem o consenso de um cruzamento cultural
estabelecido” (p. 64). A visão do autor permite analisar os comportamentos
de grupo, ao levar em consideração a multiplicidade de influências culturais.
A reflexão serve não somente para a análise de migrantes, mas também para
perceber a rede de interações sociais que permeia os vários segmentos da
sociedade. Refletir sobre as diferenças culturais, sobre o encontro e desencontro de pontos de vista entre pessoas de vários lugares, ou pertencentes a
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
uma mesma família, pode despertar nos alunos a ideia da natureza complexa
e diferenciada dos comportamentos sociais.
Conceitos básicos: a lupa do conhecimento
Não é possível analisar sociologicamente o funcionamento da vida social
sem o domínio de um quadro conceitual por meio do qual são modulados
e instituídos vários objetos de estudo. Impõe-se, para o professor, a questão de quais conceitos deveriam ser explorados, em um plano didático e
introdutório, com alunos do ensino médio. Desigualdades sociais, conflitos, sociabilidade, cultura e movimentos sociais podem ser considerados,
entre outros, conceitos geradores capazes de auxiliar no exame de vários
processos sociais contemporâneos. Em termos gerais, é importante apontar
alguns elementos que devem estar presentes em termos de um trabalho
didático conceitual. Explorar os conceitos de forma operativa, verificando
suas possibilidades de aplicação em campos diversos da atividade cotidiana,
incluindo filmes, músicas e romances, constitui uma prática pedagógica
relevante que pode dar bons frutos. De modo preliminar, alguns conceitos
podem apontar constelações de ideias a serem aprofundadas com base em
situações concretas.
Desigualdades e classes sociais
A vida social é permeada por desigualdades econômicas, sociais e
culturais que afetam diferencialmente os indivíduos, propiciando a formação de coletivos relativamente permanentes. As categorias, mais ou menos,
organizadas, que partilham situações econômicas e sociais semelhantes
foram nomeadas na sociologia de classes sociais. O conceito incorpora
comportamentos, atitudes e situações referentes ao lugar que os indivíduos
ocupam no sistema produtivo e nas formas variadas de consumo. Operar
com esse conceito, tendo por base os estudiosos pioneiros das temáticas
(Karl Marx e Max Weber), permite sinalizar e induzir rupturas com várias
concepções do senso comum, notadamente aquelas que atribuem as diferenças de oportunidade aos acasos e ao destino.
Conflitos
Os conflitos sociais fazem parte de todo aglomerado humano, referindo-se à diversidade de interesses e à luta permanente pela manutenção ou
modificação de privilégios ou posições sociais. Os conflitos estão presentes em
diferentes agrupamentos sociais e instituições, incluindo a família, a escola e
as relações de amizade. As formas de conflito são variáveis historicamente e
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os lugares nos quais se manifestam imprimem também marcas diferenciadas.
Analisar conflitos mais ou menos impactantes e, ao mesmo tempo, realçar
fatores e situações que concorrem para o seu aparecimento, constitui um
exercício importante no desenvolvimento do modo de pensar sociológico.
Movimentos sociais
São formas de organização e mobilização por direitos sociais e carência de determinados bens, envolvendo trabalhadores diversos, categorias
profissionais, afirmação de diferenças de etnia, gênero etc que lutam para se
fazerem reconhecer e serem respeitadas. Os movimentos sociais manifestamse no espaço público e utilizam várias estratégias para se tornarem visíveis
e adquirirem credibilidade. Podem contribuir para o desenvolvimento da
cidadania e aumento dos espaços de participação na vida pública. Diferentes
formatos e expressões de indignação podem ser descritos e analisados em
vários períodos da história brasileira e de outras sociedades.
Sociabilidade
As formas de sociabilidade supõem a presença de interações sociais
que tendem a perdurar no tempo, ultrapassando inclusive as razões de seu
início. O mundo social é permeado por diferentes formas de sociabilidade
que se apresentam em comportamentos ritualizados e sentimentos partilhados. As relações de amizade, as formas de amor, de encontro, partilha e os
conflitos entre interesses constituem expressões de sociabilidade. O conceito
de sociabilidade, desenvolvido por Georg Simmel, poderá indicar conteúdos interessantes à reflexão conjunta com os alunos, podendo exemplificar
encontros e interações entre jovens no espaço urbano.
Cultura
O conceito de cultura permite compreender a diversidade de crenças
e comportamentos que modulam as interações sociais. A cultura expressa,
também, a capacidade dos indivíduos de introjetar e exprimir crenças e
atitudes variáveis, de acordo com os contextos históricos e sociais. A sociologia se desenvolve relativizando o julgamento que uns indivíduos fazem
sobre outros, com base em pressupostos de sua própria cultura. Ao relativizar criticamente o sócio-centrismo das representações, o modo de
pensar sociológico procura entender a especificidade de comportamentos
característicos de diferentes agrupamentos sociais. O conceito de cultura é
particularmente relevante na reflexão sobre as diversidades sociais vigentes
na sociedade contemporânea.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, jan/jun, 2014, p. 63-85
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
Unidades temáticas
Na construção de unidades temáticas para o ensino da sociologia,
alguns referentes amplos podem ser priorizados13. A primeira questão que
se põe de um ponto de vista pedagógico é pensar o ensino de sociologia com
um conteúdo crítico, capaz de transmitir noções básicas e pontuais sobre a
dinâmica e o funcionamento de processos sociais contemporâneos. Pressupostos gerais de sociologia constituem um ponto de partida no delineamento
de questões fundamentais do programa.
Os pressupostos básicos podem comportar os seguintes itens:
1 - A história do surgimento do saber sociológico
Trata-se de pensar a sociologia a partir de um contexto de referência
formado por um “estoque de pensamento” característico do momento do
surgimento da ciência da sociedade. Uma breve caracterização do espaço
histórico em que a sociologia emergiu deve balizar uma das unidades ou segmentos da matéria a ser transmitida a iniciantes, enfatizando-se a “ruptura”
como requisito fundamental ao “modo sociológico de pensar”.
2 – Reflexão e apresentação de conceitos básicos, tendo como referência
temáticas sociais contemporâneas
Os conceitos devem ser apresentados com base em exemplos e situações históricas, sendo uma ferramenta importante para a construção de
uma visão curiosa e interrogativa sobre determinadas circunstâncias da vida
social. Trata-se de instrumentar o aluno com uma linguagem sociológica que
ainda não deve vir acompanhada por disputas entre correntes de pensamento,
tampouco reflexões abstratas desprovidas de situações exemplares.
3 – Conexão entre conceitos e temáticas da vida cotidiana
Os exemplos são sempre bem vindos para familiarizar os estudantes
com o pensamento sociológico. Eles devem estar amparados em uma contextualização de situações e emprego de conceitos, de modo a possibilitar uma
ruptura com as explicações do senso comum, já disponíveis. Questões de natureza pedagógica são fundamentais para a transmissão do saber sociológico,
interferindo na própria organização do programa. Este aspecto é tratado a seguir.
Elementos para uma pedagogia
No plano pedagógico, devem ser levados, inicialmente: a experiência do
professor, os alunos com os quais vai trabalhar e o modo como a sociologia
pode interagir com as demais matérias que fazem parte da grade curricular
do ensino médio. Em seguida, devem ser realçados os conteúdos sociológicos
que permitirão aos alunos refletirem sobre o seu cotidiano e a sociedade
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Irlys Alencar Firmo Barreira
79
da qual fazem parte. Nesse sentido, ressalte-se que Florestan Fernandes
considerava relevante o papel da sociologia na formação de adolescentes,
preparando-os para o enfrentamento de situações sociais características de
suas condições de vida.
Concebido sob a ótica aqui explicitada, o ensino de sociologia na
Escola Média contribuiria para uma “ressocialização” de jovens estudantes,
ajudando-os na percepção e no enfrentamento de dilemas cotidianos. Este
é um dos principais desafios da transmissão do saber sociológico. Evitar o
acúmulo enciclopédico de definições é um interessante ponto de partida,
exigindo do educador um programa dinâmico e capaz de oferecer subsídios
conceituais para compreensão da complexidade da vida contemporânea14.
Trata-se de fazer o estudante pensar o mundo com seus dilemas e desafios
provenientes de circunstâncias que são sociais e históricas. Florestan Fernandes, em referência feita anteriormente neste artigo, já se preocupava com
a necessidade de trabalhar com alunos utilizando “experiências concretas
sobre as condições materiais e morais da existência”. Sua formulação pedagógica visava evitar por os alunos diante de “entidades”, “ideias abstratas”
ou percepções do “homem em geral”.
Na mesma direção, José de Souza Martins15, professor titular da Universidade de São Paulo, apontou a necessidade de analisar os descompassos e a
distância social e cultural que separa gerações, agravando desenraizamentos,
desorganização da vida e descompassos decorrentes de ritmos desiguais de
desenvolvimento.
Corroborando com a ideia de conceber a sociologia como ciência a
partir da qual é possível desvendar o mundo social, torna-se viável a elaboração de um programa básico de ensino, associando os conceitos teóricos
com uma reflexão sobre processos sociais contemporâneos. Assim, espera-se
motivar os jovens a se interessarem pele estudo desta disciplina. Nessa direção, entender, por exemplo, o desemprego, as dúvidas quanto às escolhas
profissionais e as angústias coletivas dos jovens pressupõe a capacidade de
identificar problemas em um contexto social de referência, e não a elaboração
de um manual de auto-ajuda.
A conjugação criativa entre conceitos, filmes, músicas e outros recursos, possibilitados pelo uso de tecnologias, pode favorecer um plano didático coerente e capaz de suscitar a “imaginação sociológica” já preconizada
por Wright Mills.
O diálogo com outras disciplinas é também um recurso pedagógico
interessante, considerando-se a existência de confluência entre as várias
áreas de conhecimento que lidam com temáticas sociais. As disciplinas de
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O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
história, geografia e psicologia possuem pontos de conexão interessantes que
podem ser reforçados, verificando-se a possibilidade do uso de materiais
didáticos comuns. A título de exemplo, uma análise sobre o meio ambiente
pode estar apoiada em um texto a ser trabalhado simultaneamente nas
disciplinas de geografia, história e sociologia. Supondo-se que o ensino da
sociologia não está separado de uma infraestrutura educacional, com finalidade pedagógica, torna-se relevante uma reflexão sobre as possibilidades de
uso de materiais de informática e áudio visuais capazes de viabilizar aulas
dinâmicas e participativas.
Assim, não se espera que o aluno do Ensino Médio, ao concluir a disciplina, tenha aprendido todo o estoque conceitual, tampouco a história dos
autores e das escolas de sociologia. Deve-se evitar o acúmulo de informações
que possam redundar em desinteresse. Cabe, a cada professor, planejar seu
conteúdo didático, valendo-se de material já disponível encaminhado às
escolas MEC, elaborado por profissionais da área de sociologia que vem se
dedicando a essa tarefa. Em síntese, o ensino de sociologia na Escola Média
poderia ter no horizonte os seguintes pontos de referência:
- ajudar a pensar criticamente sobre a vida social;
- instrumentar o aluno com conceitos básicos;
- verificar a aplicabilidade de alguns conceitos fundamentais em
assuntos do mundo cotidiano e contemporâneo.
Se a sociologia é um esforço para se compreender a sociedade, é possível pensar nas múltiplas aplicações que esse saber oferece, sem abdicar da
integridade e patrimônio científico da disciplina, que é fruto de uma história
acumulada de conhecimentos.
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NOTAS
81
O tema da aquisição de conhecimento no sentido artesanal foi também
desenvolvido por Sennett (2012) que estabeleceu uma relação direta entre
a experiência do artífice e a busca pela qualidade – um querer fazer bem o
trabalho. Na percepção do autor, a motivação seria mais importante do que
o talento, no tocante ao desenvolvimento das habilidades artesanais, destacando-se, ainda, duas necessidades importantes para o aprimoramento da
capacitação de um artífice: o aprendizado lento e o hábito.
i
2
Ver Wright Mills, A imaginação sociológica, Rio Janeiro: Zahar, 1982.
A trajetória da introdução da disciplina no Ensino Médio é explorada por
Meucci (2007), em pesquisa sobre a criação e difusão de manuais didáticos, no
período compreendido entre 1930 e 1945, no Brasil. Consoante ao surgimento
de um mercado editorial e ao desenvolvimento de um campo disciplinar de
natureza pedagógica, os manuais de sociologia eram percebidos, fundamentalmente, como parte importante na formação de bacharéis e professores.
3
Um levantamento a respeito das questões de ordem pedagógica e dos conteúdos a serem ministrados por profissionais da área, sobetudo por ocasião dos
congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) pode ser encontrado
em, MORAES, César Amauri (2003).
4
Heloisa Martins – que atuou fortemente junto ao MEC e, mais especificamente,
na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, para que a sociologia voltasse
ao currículo do Ensino Médio – invoca o sentido de “promessa” utilizado por
Wirght Mills, considerando a importância dos indivíduos compreenderem
a sociedade em que vivem e dela participarem como cidadãos. A aquisição
de uma sensibilidade sociológica supunha estranhamento e ruptura com as
explicações do senso comum (Ver entrevista revista Coletiva, jan, fev, mar e
abril de 2013, Recife: Fundação Joaquim Nabuco).).
5
Os Cadernos de sociologia elaborados para escolas estaduais de São Paulo, sob
supervisão de Heloisa Martins, tomaram como objetivo da disciplina a formação
de “outro olhar sobre a sociedade”, tendo como referência a sensibilidade e
o estranhamento considerados requisitos fundamentais no aprendizado da
matéria. Ver a esse respeito SCHRIJNEMAEKERS, Stella Christina; PIMENTA,
Melissa de Mattos, “Sociologia no ensino médio: escrevendo cadernos para o
Projeto São Paulo faz Escola, in Cadernos CEDES, vol.31, n.85, Campinas 2011.
6
Sobre o conceito de representações, ver DURKHEIM (1989), em As formas
elementares da vida religiosa. JODELET (2001) faz um apanhado das possibilidades de aplicação do conceito de representações em pesquisas nas áreas
de sociologia e psicologia.
7
Para o desenvolvimento do conceito de habitus em Bourdieu, ver BOURDIEU,
Pierre (2009). O senso prático.
8
Reflexões sobre o processo civilizador, em Elias, podem ser encontradas no
livro O processo civilizador, uma história dos costumes, vol 1. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editores, 1969.
9
Esta é uma longa discussão no campo sociológico, envolvendo a própria
emergência dos conceitos de indivíduo e sociedade. Ver a respeito DUMONT,
Louis (1985), em O individualismo: uma perspectiva antropológica da
10
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82
O OFÍCIO DE ENSINAR PARA INICIANTES
ideologia moderna. Para uma reflexão sobre as teorizações que contrapõem
indivíduo e sociedade, ver BARREIRA, Irlys (2003), “O lugar do indivíduo
na sociologia: sob o prisma da liberdade e dos constrangimentos sociais”,
Edições UFC, Fortaleza, vol. 34.
11
Ver especificamente GOFFMAN, Erving (2011). Ritual de interação.
12
Ver MAUSS, Marcel, Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981.
Fiorelli (2000), destacando o papel formador da sociologia entre jovens do
Ensino Médio, considera a escola, a juventude e o trabalho como categorias
centrais importantes capazes de servir de eixos condutores na seleção e
desenvolvimento de conteúdos. A esse respeito, ver Ileizi Fiorelli, em “A
sociologia no ensino médio: os desafios institucionais e epistemológicos para
a consolidação da disciplina”, in revista Cronos, vol. 8 n. 2 jul, dez de 2000,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, p. 403-427.
13
Bernard Lahire, ao tratar da inserção do ensino da sociologia desde o Ensino Fundamental (escola primária, na França), enfatiza a importância da
disciplina, segundo ele, capaz de contribuir para a formação de um pensamento crítico e de abrir a possibilidade da tradução de “saberes científicos”
em “saberes escolares”. Ver LAHIRE, Bernard, “Viver e interpretar o mundo
social: para que serve a sociologia”, nesta memsma edição da Revista de
Ciências Sociais (2014).
14
15
Entrevista concedida ao jornal O Estado de São Paulo, 10 de fevereiro de 2008.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 63-85
Irlys Alencar Firmo Barreira
bibliografia
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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 63-85
85
Irlys Alencar Firmo Barreira
Palavras-chave:
Ensino, Sociologia,
modo de pensar, teoria.
Keywords:
teaching, Sociology,
way of thinking.
RESUMO
Somando-se aos esforços coletivos de profissionais da
área de sociologia, atualmente voltados para o estabelecimento
sério e criterioso da transmissão da matéria no Ensino Médio,
o artigo busca contribuir para uma reflexão sobre conteúdos
temáticos e pedagógicos, priorizando o que poderia ser designado por “modo sociológico de pensar”. Este, baseado no uso
de conceitos como ferramenta de interpretação e ruptura com
as formas previamente construídas de explicação acerca do
funcionamento da vida social, considera também que conhecimentos básicos de sociologia poderão, futuramente, orientar
ou influenciar não só uma escolha profissional na própria área,
mas também embasar outras profissões carentes de uma
visão ampla dos mecanismos que orientam as práticas sociais.
ABSTRACT
Adding to the collective efforts of the profissional sociology,
currently facing serious and judicious setting of the transmission
of matter in high scholl, the article aims to reflect on thematic
and pedagogical content prioritizing “the sociological way of
thinking”. This based on the perspective of the use of concepts
as a tool to interpret and rupture with the forms previously
constructed explanation about social life. It also considers
that a basic knowledge of sociology could in future, guiding
or influencing not only a professional choice in the area itself,
but also to base other impoverished professions for a broader
view of the mechanisms that guide social practices.
Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em julho/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, jan/jun, 2014, p. 63-85
Sociologia e educação básica:
hipóteses sobre a dinâmica
de produção de currículo
A missanga, todos a vêem. Ninguém
nota o fio que, em colar vistoso, vai
compondo as missangas.
Mia Couto – O fio das missangas
Simone Meucci
Professora do Departamento de Ciência Política e Sociologia
da Universidade Federal do Paraná (UFPR), doutora
em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), coordenadora do Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência (PIBID) em Ciências Sociais.
Rafael Ginane Bezerra
Professor do Departamento de Métodos, Técnicas e Práticas
de Ensino da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
doutor em Sociologia pela UFPR, coordenador do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) em
Ciências Sociais.
introdução
O movimento pelo retorno da sociologia à educação básica foi
constantemente acompanhado pela discussão sobre o delineamento de um currículo mínimo de caráter nacional para a
disciplina. Essa discussão, por sua vez, sempre esteve associada à
inquietação segundo a qual a sociologia escolar não possui uma
identidade bem constituída ou de que a sua inserção nesse nível
de ensino ainda é instável. Dito de outra forma, a estabilização
do conteúdo curricular da disciplina e a sua homogeneização,
em âmbito nacional, tendem a ser pensadas como antídotos
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 87-101
88
Sociologia e educação básica
para o dilema que consensualmente se expressa através da hipótese de intermitência histórica da sociologia.
Ainda que de feitio exploratório, lançando mão de questionamentos
e sugerindo hipóteses que pretendem inspirar novas pesquisas, o presente
artigo tem o objetivo de problematizar esse vínculo causal entre a definição
de um currículo mínimo e a consolidação da identidade da sociologia escolar
como uma disciplina da educação básica. Tendo como pano de fundo alguns
elementos da teoria dos códigos de Basil Bernstein, particularmente a sua
proposição de que os resultados do processo educativo estão associados à
articulação entre currículo, pedagogia e avaliação, identifica três instâncias
privilegiadas para se pensar a rotinização do conteúdo que vem sendo mobilizado pela sociologia escolar: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD),
o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza as
Licenciaturas no Brasil. Consideramos a hipótese de que essas três instâncias,
mesmo que de forma heterogênea, têm operado a lógica de seleção que define
minimamente o conteúdo a ser trabalhado pela disciplina.
Ressalta-se aqui que a heterogeneidade do processo de seleção não é
uma função da suposta falta de identidade e/ou legitimidade da sociologia
escolar. A propósito, uma tarefa reivindicada por este artigo é a demonstração de que essa caracterização negativa não é pertinente. A heterogeneidade
mencionada é um resultado da própria dinâmica institucional do Estado
brasileiro: diferentes atores, localizados em diferentes esferas e desempenhando funções que não estão imediatamente ligadas a políticas curriculares
acabam agindo no sentido de produzir a estabilização de conteúdos que
caracterizam um currículo.
Dessa perspectiva, deriva outra peculiaridade do texto que se apresenta aqui. Busca-se por dinâmicas de definição curricular em contextos e
documentos que usualmente são desconsiderados para esse propósito. Nesse
sentido, sugere-se que os textos oficiais e legais contidos nos parâmetros,
diretrizes e orientações nacionais não se constituem como únicas instâncias
decisivas para a efetiva definição do currículo.
Currículo: uma perspectiva sociológica
Uma análise sociológica do currículo não pode prescindir do exame da
dinâmica institucional e histórica que o envolve. Isso é importante para se
evitar a abordagem que vincula mecanicamente o resultado do processo
educativo à intencionalidade prevista no currículo. Embora essa ressalva
possa parecer um truísmo, no caso da sociologia escolar ela se faz necessária
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 87-101
Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra
89
pelo seu teor de advertência: a rotinização do conteúdo a ser trabalhado
pela disciplina não é suficiente para definir a sua identidade ou o seu papel
no contexto da educação básica.
A esse respeito, é pertinente evocar um argumento básico proposto
por Basil Bernstein (1996): não reduzido ao currículo ou ao conhecimento
que se ensina, o processo educativo deriva das relações que se estabelecem
entre o currículo, a pedagogia e a avaliação. Isso significa que a maneira como
se opera a transmissão do conhecimento e se verifica a sua sistematização
por parte de quem está sendo ensinado é tão importante quanto o conteúdo.
Em termos metodológicos, portanto, o currículo precisa ser pensado de uma
maneira não-essencialista.
Mesmo não sendo voltada especificamente para uma discussão sobre
o currículo, a teoria dos códigos de Basil Bernstein (1998) representa uma
abordagem não essencialista com grande valor heurístico para o argumento
desenvolvido neste artigo. De particular importância são as suas noções de
poder, controle, enquadramento e classificação.
De forma muito resumida e esquemática, no processo educativo o
poder encontra-se associado ao procedimento de seleção. Uma vez que
o estoque de conhecimentos ao nosso alcance tende ao incomensurável,
definir o conteúdo considerado válido para ser ensinado pressupõe a
capacidade de se estabelecer aquilo que é legítimo. Por outro lado, o controle vincula-se à lógica do enquadramento. Nela, o que está em jogo é a
dinâmica da transmissão do conteúdo: um enquadramento maior implica
maior controle do processo de transmissão por parte do professor, enquanto
um enquadramento menor desloca o foco do processo educativo para o
público que está sendo ensinado.
Quanto à classificação, essa noção faz referência às fronteiras mais
ou menos nítidas entre as áreas e disciplinas do conhecimento. Áreas muito
classificadas apresentam disciplinas com forte ancoragem epistemológica, o
que implica maior tendência ao isolamento. Caso se associe essa noção especificamente ao currículo, a classificação indica em que medida as disciplinas
terão uma relação de afastamento ou convergência.
É através da mobilização dessas noções que Berstein demonstra a
importância da articulação entre currículo, pedagogia e avaliação. Poder,
controle, enquadramento e classificação delineiam relações estruturais que
tornam legível o deslocamento do processo educativo em relação ao seu
conteúdo. Esse só será acionado após procedimentos de seleção, distribuição
entre disciplinas com maior ou menor integração e transmissão através de
rotinas com maior ou menor enquadramento.
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90
Sociologia e educação básica
Com efeito, essa perspectiva possibilita que a discussão sobre o processo educativo – seja aquele associado mais genericamente ao Ensino Médio,
seja aquele reivindicado para a sociologia escolar – estabeleça vínculos com
os dilemas organizacionais do Estado brasileiro. Desses dilemas, particular
relevância adquirem aqueles relativos aos movimentos de centralização e
descentralização das esferas decisórias que atingem o campo educacional
de maneira especialmente sensível. A esse respeito, como ilustração, podese fazer referência ao episódio de tramitação da primeira Lei de Diretrizes
e Bases (LDB) no Brasil. Discutida desde 1946, ela foi aprovada apenas em
1961, quinze anos depois, devido à travada discussão acerca da divisão de
responsabilidades entre municípios, estados e União.
Atualmente, em termos formais, no que tange pontualmente aos
currículos escolares, nacionalmente são definidas diretrizes gerais, expressas
em documentos oficiais como os Parâmetros ou as Orientações Curriculares
Nacionais, e elaboradas segundo um processo capitaneado pelo Conselho
Nacional de Educação, nos termos da LDB e da Lei n.º 9.131/95 que o instituiu. Aos sistemas estaduais de ensino e aos estabelecimentos escolares
cabe a definição mais precisa da matriz curricular e dos planos pedagógicos.
Ou seja, o pacto federativo em vigência determina que no plano nacional
sejam definidos preceitos genéricos, ao passo que as unidades estaduais e
as escolas definem e detalham os conteúdos.
Dado o arrazoado contido nesses documentos oficiais, essa característica do pacto federativo é considerada positivamente, na medida em que
contribui para colocar em prática o princípio da autonomia. Ressalte-se que
em seus artigos 8º, 12º e 15º a Lei de Diretrizes e Bases estabelece como tarefa
o zelo pela autonomia pedagógica, administrativa e financeira dos sistemas
de ensino. Está por trás disso uma concepção de escola democrática que
preserva, identifica e reflete sobre o conhecimento e seus nexos com identidades regionais, sobretudo através das discussões coletivas para a definição
das matrizes e dos projetos político-pedagógicos.
O processo de discussão sobre a responsabilidade de delineamento do
currículo ocorre, no entanto, numa trama institucional de ações que ultrapassa
o Conselho Nacional de Educação, as Secretarias e os agentes das escolas. Aqui
se evidencia a pertinência da abordagem proposta por Bernstein. Se o processo
educativo não se faz apenas nas ações curriculares, também não se pratica
somente em sala de aula. Tal como na metáfora que opõe convenção e direito,
costume e lei, a oposição entre currículo e prática escolar ignora, muitas vezes,
outras dimensões importantes do Estado brasileiro, bem como a grade de tarefas assumidas pelas complexas atividades da política educacional nacional.
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91
A oposição entre currículo e prática ignora, portanto, a complexidade
da ordem legal, além de ser indiferente às conexões entre os diversos órgãos
operantes. Há diversas ordens legais, assim como diversas práticas, sendo
que, por vezes, certas legalidades legitimam determinadas práticas como
também o contrário é verdadeiro. Em função disso, trabalha-se aqui com o
pressuposto segundo o qual o processo educativo se realiza também na ação
de outros agentes e instituições e num trânsito complexo entre o Ministério
da Educação e suas autarquias, as universidades, as editoras e as escolas.
O mundo legal, oficial e burocrático não é menos rico e menos contraditório
do que a prática escolar.
Em seguida, apresenta-se a discussão sobre três instâncias que têm
desempenhado um papel decisivo no que diz respeito ao processo educativo
para o Ensino Médio de uma forma mais geral, e para a sociologia escolar de
forma mais específica: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza as licenciaturas
no Brasil. Argumenta-se que essas três instâncias concorrem para originar
uma dinâmica heterogênea de seleção de conteúdos, contribuindo, assim
– mesmo que isso não esteja previsto no início do processo –, para originar
um currículo em termos nacionais.
O Plano Nacional do Livro Didático
O Plano Nacional do Livro Didático é, como se sabe, um programa que avalia
e distribui livros didáticos para as escolas públicas do país. Instituído por
decreto em 1985 – quando se previa a aquisição gratuita e universal para os
alunos do então chamado ensino de 1o grau –, foi ampliado, desde 2003, para
o ensino médio. Atualmente este Programa faz do Estado brasileiro, um dos
maiores compradores de livros do mundo, senão o maior. Vejamos os dados
sobre o último PNLD-2012 para o Ensino Médio:
. Investimento: R$ 333.116.928,96
. Alunos atendidos: 7.649.794
. Escolas alcançadas: 19.243
. Livros distribuídos: 34.629.051
Este processo é centralizado no Ministério da Educação: a seleção é
protagonizada pela Secretaria da Educação Básica; em particular, pela Divisão de Material Didático; ao passo que a execução é realizada pela Fundação
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
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Sociologia e educação básica
Embora existam poucas pesquisas sobre o efetivo uso do livro didático
(suspeitamos que é menos usado pelos alunos e mais pelos professores, como
bibliografia complementar), acreditamos que nas suas páginas se realiza
importante atividade de seleção e organização dos conteúdos. Assim, podemos considerar a hipótese de que o livro é auxiliar na escolha dos conteúdos
do professor em sala de aula, logo na definição curricular que se traduz na
experiência empírica dos docentes.
Os livros didáticos podem ser, nesse sentido, peça importante da
definição do conteúdo. São produtos que conectam, ao seu modo, indústria editorial, universidade (pelo autor) e escola (pelo professor e aluno,
seus leitores). A propósito, é importante lembrar que, no PNLD-2012, de
Sociologia, foram aprovados livros de autores doutores, pertencentes ao
quadro das universidades públicas brasileiras e essa não foi uma exceção
entre os livros inscritos.
Nesse sentido, é também importante destacar que a forma de abordagem do conhecimento sociológico nestes livros atende ao que Bernstein
chamaria de ‘classificação’. São livros que seguem, quase que rigorosamente,
uma estrutura baseada em autores e temas fundamentais das ciências sociais,
escapando muito pouco dos modos mais convencionais de transmissão de
conhecimento sociológico praticados na universidade.
Outro aspecto em tela aqui, e que pode ser problematizado a partir
do PNLD, é o impasse centralização/descentralização curricular. O Edital do
PNLD que orienta os critérios de avaliação dos livros (inclusive quanto aos seus
conteúdos) para as editoras é elaborado por uma Comissão Técnica composta
por um representante de cada área que, por sua vez, nomeia os pareceristas
avaliadores. Neste aspecto, o PNLD é uma ‘operação’ centralizada de avaliação
do material escolar que, se não impede a autonomia do professor e da escola
na escolha do material, limita seu leque de alternativas, pois o catálogo de
possibilidades resulta de uma seleção realizada pela equipe nomeada pelo
MEC. E ainda que os grupos de avaliadores sejam compostos por especialistas
das diferentes regiões, a produção dos livros está escandalosamente concentrada no Sudeste. No caso particular de sociologia, a maioria das editoras e
dos autores é de São Paulo e do Paraná. Não houve nem um autor ou editora
do Nordeste na primeira edição do PNLD.
Assim, ainda que não possamos dizer que o PNLD fere a autonomia
pedagógica proclamada na LDB, acreditamos que dois pontos devam ser
discutidos: a) há uma espécie de nacionalização dos conteúdos escolares
para o qual concorre a avaliação centralizada dos livros didáticos? b) como as
secretarias estaduais de educação e os estabelecimentos escolares enfrentam,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 87-101
Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra
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em seus contextos regionais, os conteúdos marcados pela centralização nas
condições de avaliação e produção do material escolar?
No caso da sociologia, há um mapeamento feito por Mario Bispo dos
Santos que revela ser fecunda a hipótese de correspondência entre os currículos dos Estados e o conteúdo que é solicitado no Edital do PNLD, o que
também sugere que temos efetivamente um conteúdo escolar nacionalmente
estável (SANTOS, 2012).
Portanto, compreendendo o livro didático como um artefato significativo
na prática escolar cotidiana – cujos usos, conforme já notamos, temos ainda
que avaliar –, o fato de ele chegar à escola pública por meio não apenas de
uma política de avaliação centralizada, mas também através de um mercado
editorial bastante concentrado, pode ter impactos importantes para definição
nacional dos conteúdos.
É provável que o incômodo com a suposta falta de conteúdos estáveis
da sociologia seja de outra natureza. E aqui vai uma nova hipótese: trata-se
de um incômodo com a seriação do conteúdo. Pode ser que a tarefa das
unidades regionais (secretarias e escolas) seja organizar em séries de acordo
com o nível de dificuldade este conteúdo. E efetivamente o livro único (que
foi demandado para o PNLD) não ajuda nessa organização seriada.
O Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM
Outra ação que parece contribuir para definir conteúdos no Ensino Médio
é o Exame Nacional. O ENEM, como é conhecido, foi criado em 1998, no
governo de Fernando Henrique Cardoso. O objetivo da prova – na época,
composta por apenas 63 questões e uma redação – era servir como modelo
de avaliação anual do aprendizado dos alunos no Ensino Médio, auxiliando o governo na elaboração de políticas de melhoria na educação do País.
Na primeira edição, o Exame contou com um número modesto de apenas
115,6 mil participantes, de um total de 157,2 mil inscritos.
Desde 2009, o ENEM mudou o sentido, o método de avaliação e de correção. É agora condição para o ingresso na maioria das universidades públicas
do país, com cerca de 180 questões. É aplicado em todas as unidades da Federação, organizado pelo INEP, uma das autarquias do Ministério da Educação.
Em 2013, o ENEM teve 7.173.574 inscritos e, em 2014, cerca de nove milhões.
Estes números têm, evidentemente, correspondência com os alunos
concluintes do Ensino Médio. Para compreender, numa série histórica mais
abrangente, o que representam esses cerca de sete milhões de alunos, levantamos o número de matriculados no ensino médio e no ensino superior em
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94
Sociologia e educação básica
1996, 2011 e 2012. Isso nos ajuda a compreender o fenômeno do ENEM, de
uma perspectiva de transformação do sistema educacional brasileiro:
2012: 7.944.741 no ensino médio / 7.037.688 no ensino superior
2011: 7.337.160 no ensino médio / 6.739.689 no ensino superior
1996: 5.739.077 no ensino médio / 634.236 no ensino superior
Estes dados, coletados do site do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), demonstram que a maior expansão do processo está
ocorrendo, atualmente, no ensino superior. Isso, evidentemente, muda o sentido
do ensino médio, já que a relação entre ambos os níveis está, gradativamente,
mais próxima. Em tese, os dados nos levam a crer que estamos transmitindo
conteúdo para alunos que, cada vez mais, querem realizar curso superior.
E, ainda que existam diferenças substantivas regionais, possivelmente essa
aproximação acaba por condicionar horizontes de uma política nacional para
o ensino médio e para o ensino superior. Com efeito, queremos dizer que isso
faz com que o ENEM jogue um papel ainda mais importante nesses conteúdos.
As novas diretrizes curriculares, publicadas em 2013, compreendem o
ensino médio como momento para reflexão acerca da ciência, da tecnologia
e do trabalho, entendidos como ferramentas não apenas para intervenção e
apropriação da realidade, mas como dimensões materiais e imateriais que
possibilitam a formulação de identidades. Idealmente, as novas diretrizes
parecem supor o ensino médio como um momento em que o aluno “toma
posse” de si, ao mesmo tempo em que domina os instrumentos intelectuais e
culturais da sociedade. Com efeito, segundo os números levantados, o ensino
médio se constitui, hoje, para parte da população de estudantes, como uma
formação geral que precede a etapa especializada, decisiva para a constituição
de agentes sociais ativos e autônomos.
O ENEM, recentemente expandido em suas funções, está, portanto,
articulado a um processo de transformação substantiva do ensino médio,
bem como à expansão quantitativa do ensino superior. Desde 2009, vem
exercendo funções de:
a) Avaliação do ensino médio que já faz sombra à “Prova Brasil”.
b) Condição para participação do estudante nos programas “Universidade para todos” (Prouni) e “Ciência sem fronteiras”, e para receber o
benefício do “Fundo de financiamento estudantil”(Fies).
c) Certificação da conclusão do ensino médio para estudantes
maiores de 18 anos.
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Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra
95
d) Classificação nos vestibulares de instituições públicas pelo Sistema
de Seleção Unificado (SISU), informatizado e gerenciado pelo Ministério
da Educação, no qual instituições públicas de ensino superior oferecem
vagas para candidatos participantes do ENEM. Em 2013, 113 universidades
adotaram o ENEM como forma de ingresso.
Além destas funções assumidas, há outra, mais ou menos evidente:
o ENEM tem forçado a abertura de portas para a integração das disciplinas
curriculares. Ainda que se diga que ele se dedica à avaliação dos currículos,
ele é assimilado, sobretudo, como definidor dos currículos, não apenas pela
prática escolar dos professores (principalmente de escolas privadas, cujo
interesse pela aprovação de alunos no ensino superior é capitalizado para
fins de marketing), como também pelo próprio Ministério que reconhece e
reforça a centralidade do ENEM para fazer cumprir alguns de seus interesses.
Com efeito, o documento que orienta os critérios de avaliação do
ENEM, 2014 – ‘Matrizes de Referência das Ciências Humanas e suas Tecnologias’1 – compreende a integração dos conhecimentos de Geografia, História,
Sociologia e Filosofia. E, nesse sentido, define as seguintes competências
fundamentais a serem avaliadas:
a) Compreender os elementos culturais que constituem as identidades.
b) Compreender as transformações dos espaços geográficos como
produto das relações socioeconômicas e culturais de poder.
c) Compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas, associando-as aos diferentes grupos, conflitos
e movimentos sociais.
d) Entender as transformações técnicas e tecnológicas e seu impacto nos
processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.
e) Utilizar os conhecimentos históricos para compreender e valorizar
os fundamentos da cidadania e da democracia, favorecendo uma atuação
consciente do indivíduo na sociedade.
f) Compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo suas interações no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos.
Nesta direção, vale ainda destacar os objetos de conhecimento que
serão reclamados na avaliação, segundo o INEP2:
a) Diversidade cultural, conflitos e vida em sociedade.
b) Formas de organização social, movimentos sociais, pensamento
político e ação do Estado.
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Sociologia e educação básica
c) Características e transformações das estruturas produtivas.
d) Os domínios naturais e a relação do ser humano com o ambiente.
e) Representação espacial.
Ressalte-se que, rigorosamente, estes fundamentos – a partir dos quais
se elabora o ENEM – reforçam o papel da sociologia, inclusive representando-a
como uma espécie de ciência integradora, capaz de articular, em particular,
conhecimentos da história e da geografia. Nesse sentido, é que argumentamos
a favor da inexistência de fragilidade do conhecimento sociológico escolar.
Ou seja, na nossa interpretação, sua definição e sua consolidação têm papel
fundamental de integração entre campos de saber, visível especialmente no
documento que define os critérios e os fundamentos do ENEM.
As licenciaturas:
formação de professores de sociologia
No Brasil a formação de professores para a educação básica guarda uma
característica que remonta pelo menos à década de 1930. Nesse período, aos
bacharéis de diferentes áreas era facultada a possibilidade de acrescentar um
ano de disciplinas relacionadas à educação para a obtenção da licenciatura.
Assim eram formados os docentes para o então chamado ensino secundário. Numa denominação que se popularizou, esse modelo de formação de
professores ficou conhecido como “3+1”.
Recentemente, num movimento ainda tributário da LDB de 1996 e que
atravessou os primeiros anos do século XXI, foram promulgadas as “Diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores para a educação
básica”. Nesse contexto, as licenciaturas passaram a ter os seus projetos
político-pedagógicos acompanhados pelo Conselho Nacional de Educação, e
vários ajustes foram realizados em função das novas diretrizes. Ainda assim,
em uma avaliação consensual na bibliografia que trata do tema, prevalece um
padrão de formação de professores com foco na área disciplinar específica e
que reserva um espaço apenas residual para a formação pedagógica.
Apesar da recorrência desse tema nos fóruns dedicados ao ensino de
sociologia, a formação de professores para a educação básica no Brasil é feita
de maneira fragmentada em todas as áreas disciplinares. Nos termos propostos
por Bernstein, trata-se de um processo caracterizado por forte classificação, o
que significa que as fronteiras disciplinares são muito demarcadas e a vigilância
epistemológica sobre elas é muito intensa. Em função disso, as instituições de
ensino superior, mesmo observando diversificadas iniciativas, não conseguem
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originar faculdades com o propósito de formar profissionais com uma base
comum, englobando diferentes especialidades.
A esse respeito, Bernardete Gatti (2010) comenta que a forte tradição
disciplinar que marca a identidade docente tem orientado os futuros professores
a se afinarem mais com as demandas de sua área específica de conhecimento
do que com as demandas gerais da escola básica. Mais do que isso, essa tradição faz com que as entidades profissionais e científicas oponham resistências
recorrentes a projetos e iniciativas de cunho interdisciplinar.
Especificamente em relação ao ensino de sociologia, esse forte
traço de classificação apresenta pelo menos três desdobramentos que
merecem considerações.
O primeiro é de ordem metodológica e tem sido sistematicamente
observado através da atividade de supervisão de estágio, no âmbito da Universidade Federal do Paraná. Formados durante três anos nas disciplinas
canônicas das três áreas (sociologia, antropologia e ciência política), os
acadêmicos iniciam as práticas de ensino com uma postura que naturaliza
o modelo do processo educativo característico da universidade. Por ser um
processo fortemente enquadrado, esses acadêmicos encontram dificuldades
significativas para compreender e colocar em prática metodologias mais
centradas nos alunos.
O segundo é de ordem curricular e está ligado ao fato de os acadêmicos
tenderem a naturalizar o conteúdo desse processo. Isso implica, por sua vez,
uma frequente tentativa de transpor o conteúdo estudado na universidade
para o âmbito escolar, operação associada à necessidade de simplificação e
que resulta, incontornavelmente, em tratar a Escola como um espaço hierarquicamente inferior à universidade. Julgando-se na posição de quem precisa
simplificar o conteúdo disciplinar para poder lecionar, os acadêmicos passam
a negar a escola como portadora de uma dinâmica própria.
O terceiro é de ordem política. Tal como demonstrado na seção em
que se discutiu o ENEM, os conteúdos previstos em sua Matriz de Referências
são fortemente tributários dos conceitos básicos das Ciências Sociais. Isso
significa que à sociologia está sendo facultado um papel estratégico de disciplina que pode integrar e aproximar as demais disciplinas que compõem
a área de Ciências Humanas.
Conclusão
Observamos, ao longo deste texto exploratório, que embora o detalhamento
curricular esteja previsto para ocorrer segundo o princípio da autonomia feRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 87-101
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Sociologia e educação básica
derativa, há processos centralizados que, não obstante, são também bastante
heterogêneos e que, apesar disso, estão produzindo condições para estabilização
e legitimação da sociologia escolar. O ENEM – vinculado ao Instituto Nacional
de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e ao poder central – tem
desempenhado papel decisivo na seleção de conteúdo. Não obstante, enquanto
a Matriz de Habilidades e Competências do ENEM prevê a distribuição dos
conteúdos em função de áreas do conhecimento, o que reforça o princípio
da interdisciplinaridade, as Licenciaturas – responsáveis pela formação dos
futuros professores – operam com um forte princípio de classificação, o que
contribui para a manutenção de nítidas fronteiras disciplinares. Finalmente,
se, por um lado, os documentos oficiais operam com um campo semântico
– advogando o deslocamento dos conteúdos, em função de habilidades e competências –, por outro lado, o PNLD, pelo menos no caso da sociologia escolar,
disponibiliza livros caracterizados por forte enquadramento, na medida em
que pressupõem a exegese de autores, textos e teorias.
Esses exemplos demonstram a plausibilidade de se afirmar que, a
despeito da existência de um currículo, a lógica de organização do Estado
brasileiro faz com que a nacionalização do conteúdo seja marcada por contradições, ainda que sejam estabilizadoras e estáveis.
Por fim, defendendo-se a hipótese de que a sociologia escolar possui
(sim!) um currículo nacionalmente delineado, desloca-se o debate sobre os
desafios que cercam a disciplina. Vive-se um momento no qual as conquistas
históricas que emergiram com a modernidade estão sendo violentamente contestadas. Da crença de que a política é o mal das sociedades contemporâneas à
exaltação de movimentos que tomam vingança por justiça, a lógica obscurantista que identifica problemas (e sugere soluções), através da simplificação de
questões complexas, ganha contornos de uma postura hegemônica que nega
o valor, a ação e os efeitos das instituições. Apenas soluções individuais são
reconhecidas fazendo se perder de vista o caráter positivamente revolucionário
da esfera pública e a dimensão social dos fenômenos.
Nesse contexto, nos parece que não é a suposta falta de identidade da
sociologia escolar que paira como um problema no horizonte, e sim o desafio
de posicionar o campo da educação como um todo, e dentro dele a radicalidade do raciocínio sociológico, na contramão dessa postura hegemônica.
Talvez o mais difícil e inquietante para o professor de sociologia seja, hoje,
demonstrar a trama das instituições e valores compartilhados que nos cercam
e condicionam, quando não determinam, nossas ações e nossas condições.
É preciso lembrar que quanto mais sofisticado o tecido mais fino e menos
visível é o fio. Isso não enfraquece o pano; apenas torna menos evidente sua
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constituição. E nos parece, com efeito, que a radicalidade e a dificuldade
da sociologia escolar é menos o delineamento do conteúdo do que a forma
de provocar, na escola, esse olhar que exige, a contrapelo, ver o que não é
imediatamente visível e, muitas vezes, o que não se deseja ver.
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NOTAS
Sociologia e educação básica
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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 87-101
Simone Meucci e Rafael Ginane Bezerra
Palavras-chave:
sociologia, currículo,
ensino médio, Brasil.
Keywords:
sociology, program, high
school, Brazil.
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RESUMO
Este artigo procura deslindar, de modo exploratório, as
formas institucionais que permitem a rotinização do conteúdo
sociológico nas escolas. Inspirados na teoria dos códigos de
Basil Bernstein – em particular a ideia de articulação entre
currículo, pedagogia e avaliação –identificamos três instâncias privilegiadas da estabilização do conteúdo da sociologia
escolar: o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), o Exame
Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o modelo que caracteriza
as licenciaturas no Brasil. Procura-se argumentar que essas
três instâncias, mesmo que de forma heterogênea, têm operado a lógica de seleção que define o conteúdo sociológico
no Ensino Médio.
ABSTRACT
In an exploratory manner this article aims to analyze the
patterns related to the consolidation of sociologial knowledge
at basic education. Following Basil Bernstein’s code theory and
its proposition about program, pedagogy and evaluation, we
suggest the National Plan of Textbooks (PNLD), the National
Evaluation of High School (ENEM) and the pattern of forming
knew teachers as three privileged areas of research. We argue
that this privileged areas have selected sociology’s disciplinary
content at high school level in Brazil.
Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em julho/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 87-101
Culturas juvenis e agrupamentos
na escola: entre adesões e conflitos
Irapuan Peixoto Lima Filho
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará
(UFC), professor da mesma instituição na área de Licenciatura,
autor do livro Em tudo o que faço, eu procuro ser muito Rock
and Roll: rock, estilo de vida e rebeldia.
Email: [email protected].
Para que serve a Sociologia?
Na sociedade brasileira, a inclusão da disciplina de Sociologia
no currículo obrigatório da Educação Básica, pelo Ministério
da Educação (MEC), a partir de 2008, veio cumprir uma justiça histórica relacionada não apenas à formação educativa da
juventude, mas também à própria disciplina. Tal advento obriga esta ciência a lançar olhar atento para uma das principais
instituições sociais: a escola.
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CULTURAS JUVENIS E AGRUPAMENTOS NA ESCOLA
Ao sociólogo que volta sua atenção à aproximação entre Universidade e Escola (de Ensino Fundamental e Médio) por meio das licenciaturas,
uma questão fundamental se destaca: com toda a justiça a alguns esforços
específicos, aparentemente, os estudos sobre a Escola nas últimas décadas
não privilegiam as relações sociais, as redes de sociabilidades, que existem
dentro dos muros das unidades institucionais de educação.
A Sociologia da Educação é um campo tradicional no Brasil – algo que já
dizia Candido (1987) em 1955 – porém, por muito tempo se privilegiou a análise
do processo educativo ou da própria escola a partir de enfoques estruturalistas,
por meio, sobretudo, das políticas educacionais e seus componentes ideológicos.
Por mais fundamental que seja tal discussão, não se pode esquecer a
escola como palco de sociabilidades. Um espaço social privilegiado na vida
de seu público-mor: os estudantes.
Além disso, também é possível refletir até que ponto os Programas
de Pós-Graduação em Sociologia ou Ciências Sociais, de modo geral, têm
aberto espaço, maior ou menor, para estudos sobre a Escola. Aparentemente,
legamos essa discussão aos Programas de Educação1.
Este artigo é um esforço inicial de reparação. Busca unir dois pontos
fundamentais à reinserção da Sociologia na Educação Básica: a vivência escolar como parte dessa sociedade e os estudos que permitem a compreensão
do público predominante dessa instituição, ou seja, a juventude.
Não apenas a escola – conforme será discutido adiante – tem dificuldades em enxergar o jovem como um sujeito social; a Sociologia (pelo menos
no Brasil) parece ter dificuldade em ver a escola como espaço fundamental
de socialização e de sociabilidade.
É preciso, portanto, pensar pesquisas sociológicas que transitem nesses
dois campos; e com isso não apenas abram novas perspectivas analíticas, mas
orientem a ação da Sociologia – e do professor de Sociologia – dentro desse
“novo” espaço escolar. Ou seja, precisamos unir aquilo que jamais deveria
ser separado: culturas juvenis e escola.
Juventude e escola
Em primeiro lugar, vamos tornar claros alguns pontos. Juventude é uma categoria que vem sendo cada vez mais objeto de estudos da Sociologia, porque
se percebe a mesma como um tipo de articulador de discussões, tendo em
vista a penetração social passível de se fazer por meio da operacionalização
desse conceito. Isso se torna possível quando os estudos contemporâneos
percebem a grande complexidade envolvida em torno do que é juventude.
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De acordo com a percepção das Ciências Sociais, está relativamente
claro que a denominação “juventude” só existe tal qual a conhecemos, a
partir de um momento muito recente da história ocidental. Autores como
Hobsbawm (1997) e Morin (1999) já atentaram à emergência da juventude
como um ator social específico em meados do século XX, tornando-se protagonista de vários processos sociais.
Na metade final daquele século, se consolidou a imagem de “juventude”
como um período de rebeldia, de transgressão, algo que foi encampado por
uma série de movimentos sociais, configurando-se, assim, um código de ideias,
práticas e valores muito relacionados ao que se entende como “ser jovem”.
Sarlo (1997) é particularmente perspicaz ao vincular o conjunto de
valores morais ligados à nova ideia de juventude com os bens culturais produzidos por meio de expressões artísticas específicas, como música, moda e
cinema. Embora sem sombras de dúvida, literatura e teatro tenham também
contribuído, música, moda e cinema foram fundamentais na construção da
noção de algo que o compositor brasileiro Belchior chamou de “uma nova
consciência e juventude”2.
Tais produções artísticas, por meio de seus autores, consolidaram
paulatinamente toda uma iconografia do “ser jovem”: calças jeans, cabelos
longos, roupas mais ousadas, adereços; além de um conteúdo peculiar:
uma atitude. Desse modo, temos que concordar com Sarlo (1997, p. 36)
quando diz que “a juventude não é mais uma idade e sim uma estética da
vida cotidiana”.
A Sociologia contemporânea não mais aceita a juventude como meramente uma faixa etária, a partir de autores como Abramo (1994), Pais (2003) e
Carrano (2000, 2009). Longe disso, a classificação diz respeito a uma série de
fenômenos sociais que envolvem trilhas de sociabilidade, adesões a estilos de
vida, estreitamento de laços em agrupamentos; além da construção de uma
“categoria” que pode ser entendida, também, como uma estética particular
e não somente como um objeto de consumo.
Todo esse consumo “da” juventude configura uma estética juvenil
poderosíssima que, de certo modo, domina a sociedade atual: ser jovem é
cool; ser jovem é top. “Ser jovem” é objetivo a ser alcançado. Mas, diferente
de uma faixa etária – que é algo simultaneamente transitório e determinado
(de 15 a 29 anos, como preconizam as políticas brasileiras) –, a juventude é
um bem; algo que pode ser adquirido; que envolve estilos de vida, estética,
categorias de consumo, sentimento de pertença etc.
A força simbólica desse imaginário de juventude construído nas
sociedades ocidentais terminou por resultar no que Pais (2003) chama de
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CULTURAS JUVENIS E AGRUPAMENTOS NA ESCOLA
juvenilização, um processo no qual os valores da juventude (e sua estética)
tornam-se extremamente valorizados e, poderíamos dizer, assumem até
uma hierarquia superior no mercado de bens simbólicos. Daí, a afirmação
de Vianna: “o conceito de juventude parece ter ‘colonizado’ todo o espaço
social. (...) A juventude é hoje uma espécie de mercadoria vendida em
clínicas de cirurgia plástica, livros de auto-ajuda e lojas de departamentos” (1997, p. 08).
Por isso, podemos perceber que falar de juventude não quer dizer
falar de uma faixa etária definida pelas políticas públicas brasileiras – de 15
a 29 anos –, mas de um processo social mais complexo, que envolve, repito,
a adesão a uma estética ou mesmo a um estilo de vida.
Na conceituação de Giddens, estilo de vida é entendido “como um
conjunto mais ou menos integrado de práticas que um indivíduo abraça, não
só porque essas práticas preenchem necessidades utilitárias, mas porque dão
forma material a uma narrativa particular da auto-identidade” (2002, p. 79).
Seguindo o raciocínio de Pais, pode-se dizer que, como parte da juvenilização, práticas juvenis associadas a beleza e moda, por exemplo, são extremamente
valorizadas em nossas sociedades, mobilizando adesões em massa e todas as
grandes consequências disso. Entretanto, apesar da busca algo incessante das
faixas etárias maiores por juventude, o “ser jovem” é experimentado de modo
talvez ainda mais visceral por meninos e meninas mais novos.
Isso serve de alerta para o fato de que pensar a juventude como uma
categoria complexa não exclui a dimensão etária; apenas acrescenta outras
camadas e outros significantes à vivência dessa experiência. O imaginário
da sociedade, de um modo geral, ainda mantém a noção de juventude como
“etapa” ou “fase” da vida, uma fase, um período. Contudo, ao mesmo tempo
– e paradoxalmente – os signos do que é ser jovem extrapolam tal faixa etária
e se tornam objeto de consumo de parcela da população que vai bem além
daquele marco biológico.
A Sociologia precisa tratar a juventude dentro dessa múltipla dimensão: como faixa etária, cronologia, estética, estilo de vida, bens culturais de
consumo etc. Este é o motivo de alguns autores optarem pelo uso da expressão “juventudes”, como modo de tornar mais clara essa dimensão diversa.
Como a estética juvenil é vivenciada através de expressões culturais,
podemos mobilizar a categoria “juventude” por meio do conceito de culturas
juvenis, que envolve práticas, saberes e agremiações que os jovens articulam
em sua vivência do que é “ser jovem”. Ou seja, grupos sociais formados a
partir de adesões estéticas ou políticas; movimentos organizados ou não;
participação em eventos e causas etc.
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O estudo das culturas juvenis pode ser realizado por meio de diversos tipos de inserção em campo; contudo, percebe-se que a escola é uma
instituição estratégica por demais para tal realização. Como afirma Dayrell
(2007), a escola é um espaço social privilegiado de sociabilidade juvenil, onde
indivíduos passam considerável parte de seu tempo cotidiano e durante um
longo período da vida.
A constatação de que não há ainda, no Brasil, muitos estudos sobre
culturas juvenis na escola, nos ensejou a organização de um Grupo de
Trabalho – em parceria com a Isaurora Martins de Freitas, professora da
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) –, no III ENESEB (Encontro
Nacional sobre o Ensino de Sociologia na Educação Básica)3. Esse Grupo de
Trabalho (GT), denominado Culturas juvenis na Escola, reuniu 18 trabalhos
tratando da temática, desencadeando-se, ali, uma onda de reflexões sobre o
tema (FREITAS; LIMA FILHO, 2013).
Entendemos, pois, ser preciso que o sociólogo volte seu olhar à escola
como espaço de sociabilidade e socialização, abordando, por exemplo, a
vivência das culturas juvenis nessa instituição.
A vivência dos agrupamentos nas escolas
É possível perceber a articulação das culturas juvenis no meio escolar através
da existência de grupos sociais ali organizados. Refiro-me, nesses termos, a
agremiações (formais ou informais) constituídas pelos próprios jovens, que
se distribuem em pequenas “turmas” dentro da escola; por vezes chamadas
no senso comum como “panelinhas”.
Em outro trabalho (LIMA FILHO, 2013), usei a categoria agrupamentos
para me referir às agremiações (geralmente informais) nas quais os jovens se
organizam para vivenciar, na prática, a adesão a um estilo de vida. No caso,
tomei como referência a análise de Giddens (2002), de acordo com a qual os
agentes sociais rotinizam suas práticas cotidianas por meio de um código de
valores e de regras de comportamento que podemos chamar de estilos de vida.
Embora passemos a vida inteira articulados a vários estilos de vida
diferentes (e complementares), aparentemente, a juventude é um momento
no qual há acirramento desse envolvimento, de modo que o jovem é, por
excelência, um sujeito social vinculado a estilos de vida.
No trabalho supracitado, analisei agrupamentos articulados em torno
do estilo de vida roqueiro, ou seja, aqueles envolvidos com as expressões em
torno do gênero musical do rock. Percebi, porém, que o modelo conceitual
da relação sujeito-agrupamento-estilo de vida não é circunscrito ao rock,
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mas um dos modos de navegação social empregados pela juventude (e mesmo por não-jovens) no seu cotidiano. Ressalte-se que os agrupamentos são
categorias operacionais, já que concretizam a expressão dos estilos de vida
e de suas variações4.
Observando a ligação estreita entre juventude e vivência de estilos
de vida muito específicos, percebemos que há uma equivalência, em alguns
casos, das culturas juvenis com esses estilos de vida.
Pensando nisso, que melhor locus para analisar os agrupamentos
do que na vivência escolar? A experiência como professor de disciplinas
de Estágio e de Prática do Trabalho Docente, na Licenciatura em Ciências
Sociais, permite um olhar sociológico sobre a navegação social dos jovens no
interior da escola, possibilitando, portanto, a observação dos agrupamentos5.
Essas agremiações se organizam orientadas por valores e comportamentos muito específicos que passam a identificá-las. Na Escola, em geral,
existem agrupamentos que se organizam por meio de vários catalisadores,
como: bens culturais (roqueiros, punks, metaleiros, hip-hoppers, capoeiristas e nerds), políticos (grêmios, partidos e/ou tendências políticas e outros),
religiosos (evangélicos, carismáticos, umbandistas), de gênero (homossexuais
e militantes LGBTT), dentre outros.
Cada um desses agrupamentos é a expressão de um estilo de vida
específico e, como tal, traz consigo um conjunto de códigos simbólicos
estruturados a partir de valores fundamentais e regras de comportamento.
Afinal, cada estilo de vida tem conteúdo próprio que o difere dos demais.
Para “ser roqueiro”, por exemplo, é preciso estar de acordo com o que os
roqueiros pensam “ser um roqueiro”. Há um modo de pensar e a expressão
disso em gestos e posturas; em ideias e atitudes. Podemos dizer: uma visão
de mundo que embasa tudo.
Nessa perspectiva, fala-se em estilo de vida por adesão: o indivíduo
entra em contato com o conteúdo do estilo de vida em algum momento de
sua biografia e, por meio de um sistema interno de concordâncias, vai desenvolvendo afinidades que resultam na adesão. Todavia, tal adesão requer
efetivamente que se professe a visão de mundo ali embutida.
O agrupamento nasce da articulação, localizada regionalmente, de
partícipes do mesmo estilo de vida. Entretanto, além de promover sociabilidades, uma das principais funções do agrupamento envolve a vigilância e
a defesa dos valores próprios do estilo, conforme será aprofundado adiante.
Através da inserção da Sociologia na Educação Básica, pode-se perceber a maneira como os jovens vivenciam suas experiências sociais dentro
da escola, ou seja, como movimentam – de acordo com suas singularidades
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– suas adesões às culturas juvenis e aos agrupamentos. Nota-se, assim, que
o jovem que frequenta a escola constrói alianças e conflitos por meio de
seu sentimento de pertença a agremiações específicas que, de algum modo,
orientam sua participação na sociedade.
Se percebermos a vida em sociedade como uma realidade complexa
em meio à qual nos ligamos a inúmeras instituições ou atividades sociais
– a família, a escola, a religião, a vizinhança, um grupo de amigos, movimentos sociais ou culturais etc. –, com diferentes níveis de envolvimento
e, ao mesmo tempo, um grande volume de expectativas a serem correspondidas, entenderemos que movimentamos um conjunto complexo de
códigos culturais que nos permitem transitar, bem ou mal, no seio de cada
um desses espaços sociais.
Assim, lembrando Giddens (2002), afirmamos que qualquer sujeito
social está envolto em grande volume de relações sociais complexas. Em se
tratando de grupos sociais, tais relações se traduzem também como adesões
ferrenhas, expressas publicamente. Como já escrito, a vida dos jovens parece
envolver um número ainda maior (ou com maior intensidade) de adesões desse
tipo, por se tratar de momentos em que a busca de autonomia como sujeitos
os leva a desenvolver vínculos estreitos com tais agrupamentos.
Por isso, apesar de todos os sujeitos terem que lidar com a afirmação
de identidade – “eu sou isso, eu sou aquilo”; “gosto disso, não gosto daquilo”
–, na juventude o elo com os agrupamentos que se formam a partir de tal
identificação parecem mais intensos.
A escola reflete essa condição. Recorrendo, outra vez, a Dayrell (2007),
a escola – assim como a rua ou a vizinhança – se torna lugar privilegiado
de exibição dos signos relacionados à pertença a grupos que, vistos em sua
totalidade, são compreendidos como parte do que chamamos de culturas
juvenis. Assim sendo, na escola são movimentadas adesões e vivenciados
conflitos entre os jovens, vinculados a regras sociais e ao convívio em tais
agremiações, que podem ser mais abertas ou fechadas, de acordo com suas
próprias características.
O esforço de compreensão dessa realidade torna-se ainda mais importante
quando consideramos o papel da escola como instituição social responsável por
significativa reprodução de valores e regras sociais, tal qual analisa Bourdieu
(2012; BOURDIEU; PASSERON, 2012) em vasta gama de estudos.
Analiso, aqui, a delicada relação entre juventude e Escola. Lembremos que o “ser jovem” é um tipo de bem cultural marcado por símbolos
e representações. Por isso, falo em uma estética jovem ou na juventude
também como estética (SARLO, 1997; LIMA FILHO, 2013). Peças de roupas,
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cortes de cabelo, elementos de linguagem (escrita, falada e visual) identificam o “ser jovem”.
Esses elementos têm conteúdo variável, em contextos e localidades
diversos; contudo, é clara a idealização de uma juventude que pode ser exibida por um usuário, mesmo que este não se encaixe em uma faixa etária
restrita. Basta usar certa maquiagem, determinado estilo de roupa ou fazer
uma cirurgia plástica na clínica estética do bairro6.
A inserção do adolescente – este sim, integrante de uma faixa etária
determinada, inclusive politicamente, no Brasil – nessa navegação social da
juventude não é feita sem problemas. Aderir e vivenciar um estilo de vida
não é algo simples, fácil e sem percalços.
O estilo de vida – e mais ainda sua expressão prática por meio da
formação e sociabilidade nos agrupamentos – é impositivo aos seus usuários.
É imperativo àquele que adere ao grupo concordar com suas regras de comportamento e valores morais professados. Além disso, há instrumentalização
de vigilância constante: cada membro vigia os demais e ativa os códigos que
podemos chamar de modos de inclusão e exclusão.
Os modos de inclusão se dão por meio de afinidades: o candidato
precisa deter (ou expressar) alguma concordância com os valores e regras do
agrupamento que o motive a se aproximar e tentar “ser aceito”. Porém, além
das afinidades, serão criadas senhas de acesso que permitirão a “entrada”. Tais
senhas são como “testes” aos quais os membros já consolidados do coletivo
submetem o iniciado para provar se ele tem valor.
O processo de entrada é gradual; mas, uma vez consolidado, se
acirram as “verificações”. Por isso, não basta aderir ao estilo de vida: é
preciso vivenciá-lo na prática, por meio dos agrupamentos, se submeter
às vigilâncias internas e exibir constantemente as senhas de entrada que
vão “comprovar o seu valor”.
No caso da aferição se mostrar falha, são ativados os modos de exclusão,
que desvincularão o sujeito do convívio no agrupamento. A lembrança da
discussão de Goffman (1988) do estigma é bem-vinda à comparação: o estilo
de vida se faz pela observação de suas regras e valores; daí a necessidade
de exibi-los constantemente (e são criadas regras para isso também); por
isso mesmo, não convêm aos seus membros estarem na presença (ou serem
vinculados) aos “outros”, os “de fora”, que “sujam” a legitimidade daquilo
que professam. O indesejado é excluído.
Na prática, os modos de exclusão podem ser expressos por brincadeiras (“tirar onda”), difamação ou mesmo violência física, dependendo
das condicionantes.
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A dinâmica da filiação aos agrupamentos pode ser observada nas escolas, especialmente (embora não exclusivamente) nos pátios e nos intervalos.
A vivência na escola permite a formação de alguns desses coletivos, embora sua
presença, nitidez e fortaleza dentro da mesma dependam de muitos fatores.
Tal fenômeno precisa ser compreendido, para que se possam entender
alguns dos desafios impostos aos jovens nas escolas. Além de todas as particularidades e dificuldades inerentes ao ambiente escolar – tal qual se apresenta
no Brasil, principalmente nas escolas públicas –, os jovens precisam também
lidar com as sociabilidades, nem sempre pacíficas, dos agrupamentos.
Afinal, os agrupamentos não podem ser compreendidos isoladamente,
mas essencialmente no convívio com outros, com o “diferente”. Como diz
Simmel (1977), os grupos sociais se fortalecem por oposição: é preciso um
contraponto para tornar mais claro, nítido e forte “o que eu sou”. A necessidade
de se contrapor a um diferente – e dizer “eu não sou isso” – dá ao grupo mais
coesão e identificação. Quando isso ocorre no interior da escola, formam-se
agrupamentos muito claros, como os já citados anteriormente: metaleiros,
nerds, religiosos católicos, evangélicos (em suas subdivisões), ligados, por
exemplo, a movimentos políticos ou organizados em torno de facções de LGBTT.
Jovem ou aluno?
Um dos grandes problemas que se apresentam nas escolas brasileiras de
hoje é a invisibilidade do jovem. Por incrível que possa parecer, o jovem simplesmente não é percebido dentro dos muros escolares, na maioria dos casos.
Já chamei a atenção para este problema anteriormente (FREITAS; LIMA
FILHO, 2013), assim como o fez Dayrell: “Cabe questionar em que medida a
escola ‘faz’ a juventude, privilegiando a reflexão sobre as tensões e ambigüidades vivenciadas pelo jovem, ao se constituir como aluno num cotidiano
escolar que não leva em conta a sua condição juvenil” (2007, p. 1107).
Uma vez dentro da escola, se esquece toda a discussão do início
deste artigo e o jovem se transforma em “aluno”: classificação homogênea, generalizante e assexuada. Eles são todos iguais, inclusive usando as
mesmas roupas, via fardamento.
A homogeneização tem fins disciplinares – lembremos a astuta descrição de Foucault (1999) sobre a introdução de disciplina desse tipo nas
escolas como uma forma de manutenção do poder – e precisa se manter
intacta dentro do modelo escolar que temos hoje.
Por sua vez, há sempre jovens tentando, a todo momento, subverter
essa ordem – ou testar seus limites – trazendo não raro elementos estéticos e
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simbólicos de seus agrupamentos, para quebrar a hegemonia disciplinadora do
fardamento. Usam camisetas de suas bandas favoritas, por cima ou por baixo da
blusa do uniforme; acrescentam lenços ou outros adereços; e usam bonés. Este
último evoca um elemento de “indisciplina” que chega a ser cômico no interior
das escolas de Fortaleza: os alunos insistem em usá-los – o que é um hip-hopper sem um boné? – e as escolas se esforçam loucamente para eliminá-los.
Bourdieu e Champagne atentam para o uso dessas estratégias de reação dos jovens, vinculando-as à resignação desencantada por perceberem
a desvalorização da carreira estudantil e, mais ainda, do diploma final do
Ensino Médio. Nas palavras deste autores,
[...] tal resignação exprime-se também pela multiplicação dos sinais de provocação em relação aos professores, como o walkman ligado, algumas vezes, até
mesmo na sala de aula, ou as roupas, ostensivamente descuidadas, e muitas
vezes exibindo o nome de grupos de rock da moda, inscritos caneta esferográfica ou com feltro, que desejam lembrar, dentro da escola, que a verdadeira
vida encontra-se fora dela (2012, p. 224, grifos no original).
A desvalorização dos certificados com certeza é um dos problemas.
Os jovens estudantes já perceberam que a escola não lhes dá o necessário
para o mercado de trabalho ou “para a vida”, então, questionam a utilidade
de todo aquele esforço e sofrimento que são os estudos por anos e anos a fio.
No Brasil, gera-se, aí, uma falta de identificação, crônica, dos jovens com os
conteúdos (e as metodologias) adotados pela Escola em suas disciplinas, que
sempre aparentam ser distantes, intangíveis, irreais, abstratos e não-práticos.
Todavia, temos que pensar que os exemplos dados pelos autores também são uma tentativa dos jovens exibirem / publicizarem, na Escola, suas
adesões aos agrupamentos dos quais participam. É uma forma de passarem
um recado à escola: “não somos apenas alunos, somos jovens!”.
Entretanto, a escola (pelo menos de modo genérico) é cega à iniciativa.
Insiste em rotular seus educandos como “alunos” e, pior, a considerar que
as formas de expressão que (tentam) exibir são não apenas indisciplinares,
mas indesejadas ao ambiente escolar.
Dentro das “salas de professores” – recantos isolados e “protegidos”
dentro dos muros das escolas – e das ainda mais bloqueadas salas de coordenação e diretoria; se dissemina o pensamento de que a livre expressão
identitária dos jovens no ambiente escolar é um risco à disciplina. Algo que
novamente nos remete a Foucault (1999) quando pensamos no controle dos
“corpos dóceis” para expressão e manutenção do poder.
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Mais do que tudo, ter jovens publicizando suas adesões aos agrupamentos parece aterrorizar os professores e gestores das escolas. As visitas
às escolas e as conversas com tais profissionais – bem como os relatos dos
alunos em Estágio de Docência – permitem perceber professores, de certo
modo, apavorados com seus discentes.
Ouvir ou cantar o Rap, por exemplo, com suas vestimentas típicas,
movimentos, gestos e danças é visto como expressão de ruptura com a ordem
escolar. Tendo em vista a maneira como as relações entre os estudantes e o
corpo escolar dirigente são construídas, é possível que tal “subversão” tenha
esse sentido para ambos os lados.
É bem provável que o fato de se sentirem tolhidos numa escola que
percebem não lhes ser “útil” – com temas e discussões desconectados de
suas realidades e que resultarão em um certificado desvalorizado – termine
por incentivar uma reação. A adesão e a vivência dos agrupamentos nos
intramuros da escola devem ser reforçadas por tal sensação.
Claro, há outros elementos na questão. Não se pode esquecer o abismo
que existe entre o capital cultural da escola e aquele que os alunos trazem
de casa. Os professores e a gestão também não compreendem bem essa
disparidade e, não raro, querem impor o capital próprio do “conteúdo” escolar. Por isso, mesmo quando há boa vontade por parte de professores – os
de Sociologia, inclusive – em usar “novas” metodologias ou didáticas para
despertar o interesse dos estudantes, incorre-se no erro de não refletir sobre
os diferentes capitais culturais em jogo.
Como já discutido em outra ocasião (SILVA; LIMA FILHO, 2013), ao
levar a música à sala de aula, por exemplo, o professor termina selecionando
material culturalmente estabelecido como “de boa qualidade”, já aprovado
no crivo do capital cultural reinante por meio daquilo que é “repassado” na
escola. Em Sociologia, recorrem-se às letras incendiárias do BRock dos anos
1980 ou à poesia profunda da MPB clássica para introduzir e discutir temas.
Entretanto, esse capital cultural é muito distinto daquele dos alunos, e tal
discrepância pode render falta de identificação, de interesse e até antipatia.
Os professores, por sua vez, classificam o capital cultural dos jovens – neste
caso, o Rap, o funk carioca, o forró eletrônico do Nordeste e vários outros
gêneros musicais populares – como algo de “pouco valor” ou mesmo inútil.
Porém, as leituras de Bourdieu e Passeron (2012) e Bourdieu e Champagne (2012) nos ajudam a perceber que, se no passado, os alunos incorporavam o capital cultural recebido da escola – ou, como era mais comum, a
instituição simplesmente excluía aqueles não “ajustados” ao modelo –, no
novo cenário político, muitos deles, mesmo concluindo o Ensino Médio,
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114
CULTURAS JUVENIS E AGRUPAMENTOS NA ESCOLA
terminam por não interiorizar aquele capital, gerando-se, simultaneamente,
entre eles, um movimento surdo de resistência.
Assim, as leituras referidas nos inspiram a considerar que, particularmente no caso do Brasil, a Escola como instituição precisa lidar, pela
primeira vez em sua história, com uma população que jamais a freqüentou.
Em nenhum outro momento da trajetória deste país tivemos as populações
de baixa renda freqüentando em massa o Ensino Médio.
Esse “novo” aluno – preto, pobre, da periferia – é elemento “estranho”
à Escola média; compartilha capital cultural distinto daquele incorporado
pelos professores e gestores; e, como demonstramos aqui é, frequentemente,
“mal-vindo” e, não raro, temido.
A vivência do jovem no Ensino Médio, portanto, é algo conflitivo. Esse
contexto precisa ser analisado e compreendido para se saber que a adesão aos
agrupamentos e estilos de vida dentro da Escola também gera mais conflitos.
Por um lado, há o aspecto já comentado da própria adequação do sujeito
às regras do estilo de vida e sua expressão prática nos agrupamentos. Por
outro, também podem ser estabelecidos conflitos e disputas em dois pólos:
dos agrupamentos entre si; e destes com o corpo gestor da Escola.
Não é necessário que seja assim, mas é bem mais provável que seja. Por
vezes, é possível ver articulações positivas entre agrupamentos específicos e
o corpo gestor, quando, por exemplo, alunos envolvidos politicamente desenvolvem atividades com este fim na escola. Ou quando um grupo se volta
para práticas teatrais que são usadas pela instituição para fins didáticos e de
exposição de temas em datas comemorativas.
Todavia, é mais comum vermos o estabelecimento de conflitos entre
esses agrupamentos e o corpo diretor da escola que, como discutido, não
entende os signos identitários, não reconhece o capital cultural que expõem
e ainda os temem por serem um “corpo estranho” dentro de um sistema
educacional que está a exigir profunda mudança e ampliação.
A compreensão desse ambiente conflitivo – até explosivo –, que é a
situação do jovem dentro da escola, é fundamental para que se discutam
mudanças nesse regime. Isso poderia evitar a radicalização do conflito no
contexto brasileiro atual e evitar tragédias maiores em futuro breve. Ademais,
a Sociologia imersa nesse ambiente – como ciência e disciplina – pode contribuir bastante e abrir grande campo de atuação.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 103-118
Irapuan Peixoto Lima Filho
NOTAS
115
Observe-se, por exemplo, que em um levantamento da produção de Sociologia da Educação nas pós-graduações brasileiras nos últimos 20 anos,
Martins e Weber (2010) não fazem qualquer menção à Sociologia no Ensino
Médio. Moraes (2003) também fez um levantamento da produção de pósgraduação em Ciências Sociais na USP e identificou que, dentre as 18 teses e 24
dissertações no campo da educação, defendidas entre 1945 e 1996, nenhuma
tratava do tema “ensino de Sociologia”.
1
2
Tal expressão aparece na canção Como nossos pais, de autoria de Belchior,
gravada por ele no álbum Alucinação de 1976. Contudo, a canção ficou mais
famosa a partir da versão expressa na interpretação de Elis Regina, no álbum
Falso Brilhante, do mesmo ano.
O III ENESEB ocorreu na Universidade Federal do Ceará (UFC), em Fortaleza,
no mês de maio de 2013, reunindo mais de 600 pessoas, entre pesquisadores,
professores e alunos de vários estados do Brasil.
3
Não podemos esquecer que, devido à complexidade dos estilos de vida em
suas totalidades, não raro existem em seu interior variações internas. Quer
dizer, determinadas ideias, valores ou regras de comportamento podem ser
interpretados ou vivenciados de modos diferentes, resultando em pequenas
distinções. Daí que um só estilo de vida pode dar origem a vários agrupamentos distintos, como é o caso do rock.
4
5
Algumas das escolas acompanhadas são: Liceu do Conjunto Ceará; Liceu
de Messejana; Escola de Ensino Médio Doutor César Cals; Escola de Ensino
Fundamental e Médio Governador Adauto Bezerra; Escola de Ensino Fundamental e Médio Arquiteto Rogério Fróes e Escola de Ensino Médio Presidente
Humberto Castelo Branco, dentre outras. Todas fazem parte da rede pública
estadual de ensino na cidade de Fortaleza.
Evidentemente, alguns desses bens custam caro, o que traz uma discussão
de acesso ao capital econômico. Contudo, parte considerável dos elementos
simbólicos que ajudam a compor a juventude como estética é acessível à
maioria da população.
6
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116
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118
CULTURAS JUVENIS E AGRUPAMENTOS NA ESCOLA
Palavras-chave:
juventude, culturas
juvenis, Escola, estilos
de vida.
Keywords:
youth, youth cultures,
High Schools, lifestyles.
RESUMO
Este artigo discute a vinculação entre a escola e a categoria de juventude, ressaltando o aspecto de sociabilidade dos
jovens no intramuros da instituição. Por meio da observação
sistemática das escolas através da experiência docente na
Licenciatura em Ciências Sociais, o autor analisa as conseqüências da vivência das culturas juvenis, dos estilos de vida
e a formação dos agrupamentos dentro das escolas; lançando
luzes sobre problemas inerentes ao ambiente escolar nem
sempre percebidos pela sociedade e abrindo perspectivas
de pesquisa a serem exploradas pela Sociologia neste campo.
ABSTRACT
This article aims to discuss the link between the high
schools and the category of Youth, emphasizing the aspect
of sociability of young people inside that institution. Through
systematic observation of high schools through teaching experience in Degree in Social Science, the author analyses the
consequences of the experience of youth cultures, lifestyles
and groupings within high schools; throwing light on problems
inherent to the schools environment, include these not always
perceives by society, and opening perspectives for research
to be explored by Sociology in that field.
Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em julho/2014.
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Artigos
Os relatórios do desenvolvimento
humano (RDHS/PNUD/ONU) da
década de 1990 e as propostas para
enfrentar as múltiplas formas de
desigualdades
Maria José de Rezende
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora da Universidade Estadual de Londrina.
E-mail: [email protected].
introdução
Nos Relatórios do Desenvolvimento Humano (RDHs) da década
de 1990, há muitas indagações e diálogos teóricos e políticos com
acadêmicos, técnicos, governantes, agentes governamentais e
lideranças da sociedade civil. São, ainda, muitas as sugestões,
suposições, aconselhamentos e disputas políticas reveladoras do
entrelaçamento de inúmeros desafios que têm ganhado destaque no interior dos documentos anuais divulgados pelo PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), desde
1990 até o presente momento1. Por isso, selecionar, no interior
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 121-147
122
OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
de centenas de páginas, elementos que possibilitem entender o modo como
os relatórios veem as relações entre as desigualdades e a pobreza excessiva, é,
para usar uma expressão de Norbert Elias (1998), como pescar num turbilhão.
Com certeza, a análise dos RDHs, assim como qualquer outra análise
documental de materiais com características semelhantes às dos RDHs, é
extremamente desafiadora, uma vez que são muitos os dados acerca das
condições de privação, de miserabilidade, de analfabetismo e de violação
de direitos fundamentais, entre outros, como também os contextos sociais
abarcados por eles. Muitos dados interpenetram-se, entrecruzam-se e revelam
o quão complexa é a implantação de ações e medidas capazes de favorecer o
desenvolvimento humano tido, nos documentos do PNUD, como um amplo
processo de reversão do sofrimento social e do caos cotidiano nos quais estão
mergulhados bilhões de indivíduos que vivem nos continentes africano,
asiático e latino-americano.
Em vista de seu caráter propositivo, os RDHs tentam mapear uma realidade
extremamente caótica, expressa no grande número de indivíduos desprovidos
dos meios mínimos que garantam uma existência capaz de impulsioná-los para
melhorias materiais (alimentação adequada, acesso a remédios, saneamento,
moradia) e imateriais (habilidades políticas, conhecimento, participação, interesse pelos processos de transmutação, desejo de mudança e crença na própria
capacidade de agir em busca de melhorias sociais diversas).
No que diz respeito à pobreza e às desigualdades – de renda, de
instrução, de acesso à participação, de conhecimento e de possibilidades
de ir vencendo paulatinamente a miséria –, pode-se dizer que os relatórios
fazem um enorme esforço para demonstrar que 1/3 do total de habitantes do
planeta não está, fatalmente, condenado ao perecimento. As condições nas
quais se encontram os mais pobres são reversíveis, insistem os preparadores
dos RDHs, os quais recebem inspiração tanto das discussões realizadas, nas
décadas de 1950, 1960 e 1970, por alguns técnicos graduados (tais como
Josué de Castro, Gunnar Myrdal, Celso Furtado) das Nações Unidas sobre
desenvolvimento social e sustentável, quanto das posturas mais recentes de
técnicos e acadêmicos como Mahbub ul Haq2, Amartya Sen3, Richard Jolly4,
entre outros. Ressalte-se que entre os mencionados, a obra de Sen tem sido
fonte de inspiração constante e continuada para aqueles que vêm produzindo,
ao longo de 20 anos, os relatórios.
A pergunta-chave que baliza este estudo é a seguinte: quais são os
percursos e estratégias criados pelos formuladores dos RDHs para convencer
diversos agentes (governantes, lideranças políticas, grupos organizados da
sociedade civil, entre outros) de que há urgência de investir em ações capaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 121-147
Maria José de Rezende
123
zes de diminuir as desigualdades (de renda, de gênero, de escolaridade, de
habilidade, de capacidade, de participação, de conhecimento e de longevidade)? Com este questionamento norteador, pode-se verificar, de imediato,
se os relatórios estão apegados, ou não, a algumas esperanças desligadas
dos reais processos de aprofundamento da concentração de riquezas e de
oportunidades no mundo atual.5
Todavia, não é este último questionamento o ponto de partida deste
artigo, e sim aquele que concebe os relatórios como tentativa de estabelecer
agendas públicas nacionais e internacionais que visem construir políticas de
combate às desigualdades mais gritantes. Entende-se que, conforme assinala
Goran Therborn (2001, p. 156), as Nações Unidas têm tentado desenvolver
procedimentos cujos propósitos são “melhoria e promoção da igualdade, estabelecendo alvos distributivos para, por exemplo, serviços de água e saneamento,
vacinação, nutrição, educação de meninas e redução da pobreza em geral”.
Este estudo sobre o modo como as desigualdades são tratadas no
interior dos RDHs parte ainda da compreensão de que os documentos são
fontes importantes de dados sobre as múltiplas formas de desigualdades e de
pobreza que vigoram no mundo, hoje. Há neles muitos elementos esclarecedores sobre a expansão das desigualdades de renda, todavia, detectam-se,
no seu interior, inúmeras dificuldades relacionadas ao encaminhamento de
medidas capazes de operar processos de desconcentração da renda. As sugestões de políticas distributivas de rendas parecem, nos documentos do
PNUD analisados neste estudo, frágeis e acanhadas. Tal dificuldade pode ser,
sem dúvida, um interessante objeto de pesquisa. Segundo José Eli da Veiga
(2006), as dificuldades de enfrentar os impasses distributivos atuais não são
somente das Nações Unidas. Ele afirma:
Não se percebe [hoje] qualquer propensão a encarar as necessárias ‘grandes
transformações estruturais das economias e das ‘sociedades´. Isto é, as transformações globais e nacionais de caráter redistributivo que nenhum setor da
ONU6, da OCDE7, do FMI8 ou do BIRD9 ousaria sugerir ou aconselhar. Afinal
esse é o maior tabu das relações internacionais, apesar das evidências de que
as desigualdades atrofiam o bem-estar (VEIGA, 2011, p. 3).
1. O enfoque das desigualdades nos RDHs da década de 1990 e as tentativas
de superação de perspectivas fatalistas sobre os segmentos mais pobres
Norbert Elias afirma que as análises da atuação da ONU têm, com freqüência,
destacado as dificuldades das Nações Unidas responderem adequadamente
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 121-147
124
OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
aos muitos desafios que têm emergido desde meados da década de 1950.
Tem-se a impressão, diz ele, que tendemos a considerar a ONU, mais do
que qualquer outra organização, como devedora em relação à solução dos
problemas (tais como: violências, desigualdades, pobreza, miserabilidade,
guerras, discriminações) que afligem muitos indivíduos ao redor do planeta.
Talvez fosse mais adequado, a seu ver, observar que as experiências “com
instituições que abarcam praticamente todas as nações são estágios num
processo de aprendizagem” (ELIAS, 1994, p. 138).
Os RDHs são concebidos, neste estudo, como portadores de sinais
de fortalecimento de um ethos em que a humanidade “vai tornando cada
vez mais o quadro de referência, como unidade social, de muitos processos
de desenvolvimento e mudanças estruturais” (idem, p. 136). Ao tentarem
articular propostas no âmbito da renda, da educação e da longevidade para
os diversos continentes, os Relatórios nos obrigam a lançar mão do pressuposto de que há desigualdades locais, regionais, nacionais e internacionais
que devem ser combatidas simultaneamente. A referência não é só, mas é
também, o modo como as desigualdades refletem suas consequências para
além do espaço nacional. Todavia, em momento algum, os RDHs deixam de
indicar que os principais caminhos e soluções devem ser buscados no âmbito
local e de acordo com as especificidades regionais.
Indiscutivelmente, muitas propostas dos RDHs causam mal-estar por
parecerem amplas e genéricas demais, ou seja, aplicadas a regiões e grupos
populacionais diversos. Aos elaboradores dos relatórios faltam, algumas
vezes, elementos para uma leitura mais detalhada, mais exata, de algumas
particularidades que emperram a maioria das políticas de combate às desigualdades. Isso porque, “de fato, a produção de conhecimento a serviço de
interesses localizados está difundida enquanto é ainda raro o uso consistente
da humanidade enquanto referencial” (ELIAS, 1998, p. 44).
A humanidade é o quadro mais amplo de referência porque os relatórios
estão empenhados na defesa de um desenvolvimento humano que englobe
a todos indistintamente. Mas os preparadores dos RDHs não supõem que a
diversidade humana deva ser ignorada. Daí a sua insistência na necessidade
de expansão de ações, por parte de governantes, agentes do Estado, sociedade
civil e lideranças políticas, que favoreçam, de modo mais criterioso, as crianças,
os jovens, as mulheres e os diversos grupos étnico-raciais.
Inspirados em Amartya Sen (2008; 2010; 2011), os formuladores dos
relatórios reiteram a ideia de que “o desafio do desenvolvimento inclui a
eliminação da privação persistente e endêmica e a prevenção da [pobreza]
súbita e severa. Contudo, as demandas respectivas sobre as instituições e
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 121-147
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125
políticas (...) podem ser distintas e até mesmo dessemelhantes” (SEN, 2010,
p. 244). Pode-se dizer então que, conquanto os RDHs tenham na base de
suas preocupações as melhorias capazes de abarcar a humanidade como um
todo, o “desenvolvimento tem aspectos que requerem análises e investigações
adequadamente diferenciadas” (SEN, 2010, p. 245).
Ao propor discussões sobre desigualdades, o economista hindu sempre
insistiu que a “diversidade humana não é nenhuma dificuldade secundária
(a ser ignorada, ou a ser introduzida ‘mais tarde’) ela é um aspecto fundamental” (SEN, 2008, p. 24) de toda e qualquer proposta do desenvolvimento
humano. Não há dúvida, então, de que a humanidade é diversa tanto nas
análises de Sen quanto nas de Norbert Elias. Ninguém mais do que este
último se empenhou em demonstrar as singularidades, especificidades e
diversidades entre os seres humanos. Para Elias, o processo civilizacional
somente avança quando os indivíduos desenvolvem a capacidade de ocupar não somente daqueles que pertencem ao seu próprio grupo social, mas
também dos que são de países, continentes, grupos sociais e étnico-raciais
completamente diversos dos seus.
As propostas, de Amartya Sen, de enfrentamento das desigualdades,
partem do pressuposto de que “os seres humanos são profundamente diversos.
Somos diferentes uns dos outros não somente em características externas
(...) mas também em nossas características pessoais” (SEN, 2008, p. 29). Para
ele, as demandas sobre igualdade só fazem sentido se forem consideradas
num quadro em que as diversidades estejam, inteiramente, no centro de toda
e qualquer reivindicação e de toda e qualquer avaliação das características
múltiplas das desigualdades.
Sugere-se que as propostas de Sen sejam remetidas ao campo de análise sociológico indicado por Norbert Elias. Parte-se do pressuposto segundo
o qual no debate sobre as desigualdades, é bastante frutífero confrontar as
sugestões daquele primeiro com as deste último, pela própria natureza das
questões levantadas por ambos. Para eles, a humanidade, tomada como
diversa, está no centro de suas indagações. Todavia, Elias se dedica a uma
discussão bastante útil para problematizar até que ponto é, ou não, possível
viabilizar as propostas dos RDHs inspiradas nos escritos de Sen.
Avanços na criação de um consenso – entre os diversos agentes sociais, conforme indicado pelo economista hindu, na obra A ideia de justiça
– sobre que políticas implantar para diminuir as desigualdades exigiriam a
expansão “da imagem do nós do indivíduo” (ELIAS, 1994, p. 186). Ou seja, é
ainda precário o sentimento de um nós, o que leva a uma não-identificação
“dos seres humanos com seres humanos como tais, independentemente de
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126
OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
sua filiação a determinado subgrupo da humanidade” (ELIAS, 1994, p. 187).
Há um habitus social10 que rechaça inteiramente o desenvolvimento de uma
empatia em relação àqueles que estão em condições distintas e/ou que são
diferentes por razões de ordens diversas.
1.1. Os RDHs da primeira metade da década de 1990 e as propostas de combate às desigualdades: os desafios postos aos habitus e às estruturas sociais
Norbert Elias alertava que o habitus social dominante no final do século
XX estava assentado em relações pouco democráticas. Isso, sem dúvida, é
responsável pelas muitas dificuldades postas no caminho da viabilização do
combate às desigualdades sugeridas pelos RDHs. Percebe-se, nesses documentos, um esforço enorme de convencimento dos múltiplos agentes sociais
(Estado; sociedade civil; setores empresariais, governamentais e lideranças
políticas locais, regionais, nacionais e internacionais) sobre a necessidade de
desenvolvimento de empenhos duradouros e coletivos a favor do combate
à miserabilidade extrema que acomete uma terça parte dos habitantes do
planeta. Para que os diversos agentes sejam persuadidos a se envolverem na
busca de ações que levem ao desenvolvimento humano, é necessário que haja
alguma brecha, por menor que seja, para a expansão de atitudes voltadas
para a diminuição das desigualdades e da pobreza.
O primeiro dado a destacar é que o RDH de 1990 – no capítulo
intitulado Crescimento econômico e desenvolvimento humano – insiste
na necessidade de considerar que atitudes voltadas para a defesa do crescimento econômico não são, necessariamente, capazes de potencializar o
desenvolvimento humano. As chances deste se efetivar podem, até mesmo,
ser perdidas em alguns países (tais como Brasil, Nigéria e Paquistão) que se
voltam, principalmente, para um crescimento não-sustentável e gerador de
riqueza e pobreza em escaladas descomunais.
O crescimento acompanhado por uma distribuição de renda equitativa parece
ser a forma mais efetiva de sustentar o desenvolvimento humano. (...) Ainda
que existam períodos de rápido crescimento do PNB (Produto Nacional Bruto),
é possível que o desenvolvimento humano não progrida significativamente se
persistir uma má distribuição de renda e se os gastos sociais se mantiverem
baixos (Nigéria e Paquistão), ou se estes gastos beneficiarem, principalmente,
os setores mais abastados (Brasil)11 (RDH, 1990, p. 99).
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127
Observe-se que o RDH de 1990 afirmava também que não se devia
esquecer que alguns países autoritários que subtraíam todas as liberdades
podiam, às vezes, ostentar altos índices de escolarização e de acesso aos
serviços de saúde. No entanto, tais melhorias não eram suficientes para
garantir o desenvolvimento humano que somente pode ser efetivo dentro
de um regime de amplas garantias de liberdades12. Os RDHs mostram-se de
acordo com o seguinte pressuposto:
Às vezes, a ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com
a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de
obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou morar de modo apropriado, de ter acesso à água tratada
ou saneamento básico. Em [alguns] casos, a privação da liberdade vincula-se
estreitamente à carência de serviços públicos (...). Em outros, a violação da
liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticas e civis
(...) (SEN, 2010, p. 17).
As experiências vividas, ao longo de décadas, teriam demonstrado, diz
o relatório de 1990, que pode haver crescimento econômico sem qualquer
desenvolvimento humano, mas este último depende sempre daquele primeiro.
Sem ele, não há como efetivar políticas de melhorias duradouras e estáveis;
isso porque tais políticas são afetadas por fatores macroeconômicos (exemplo:
crescimento e distribuição da renda), microeconômicos (aumento da renda,
da escolaridade, melhoria das condições de saúde nos lares mais pobres) e
mesoeconômicos (tais como programas governamentais voltados para os
setores sociais mais pobres). “As mesopolíticas cobrem a gama completa de
políticas fiscais, incluídas aquelas que afetam diretamente a distribuição da
renda” (RDH, 1990, p. 100). Todavia, o relatório esclarecia que se ocuparia
primordialmente dos gastos sociais e não de todas as outras mesopolíticas.
Os elaboradores do RDH de 1990 esclarecem, ainda, que ele daria
atenção tanto às mesopolíticas gerais (aquelas voltadas para bens e serviços
públicos direcionados a todos os grupos sociais indistintamente, tais como os
programas universais de educação, de saúde, de nutrição, de saneamento e
de habitação)13 quanto às mesopolíticas específicas que visam implantar bens
e serviços para grupos focais14 (RDH, 1990, p. 101). Este relatório aconselha
aos governantes a implantação, simultânea, de duas formas de política: as
que estão focadas na contínua diminuição da pobreza absoluta e as que estão
voltadas para o atendimento das necessidades de todos.
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Para compensar as baixas rendas primárias de segmentos importantes da
população, é preciso desenhar mesopolíticas bem estruturadas. Quando
um país registra ingressos baixos generalizados, mas uma boa distribuição
dos mesmos, talvez o mais apropriado seja uma adequada estruturação de
mesopolíticas indiscriminadas. Em países com uma renda média alta e bons
índices de crescimentos, mas com uma distribuição deficiente, é possível que
se requeiram algumas intervenções com objetivos específicos, que favoreçam
os segmentos mais pobres da sociedade (RDH, 1990, p. 103).
Ademais, desde os primeiros relatórios há tentativas de combinar políticas na área social que sejam realizadas pelo Estado com aquelas que sejam,
ora mais ora menos, levadas a cabo por indivíduos que atuem em setores
diversos tais como Organizações Não-Governamentais (ONGs), voluntariado,
entre outros15. O RDH de 1993 foi, provavelmente, o que mais insistiu nesse
tipo de co-responsabilidade entre indivíduos, organizações e instituições:
No presente relatório, a diferença decisiva consiste em que se considere a
participação como uma estratégia global de desenvolvimento, centrando-se no
papel fundamental que devem desempenhar as pessoas em todas as esferas da
vida. O desenvolvimento humano implica ampliar suas opções, e uma maior
participação permite que as pessoas possam por si mesmas acercar-se de uma
gama muito mais ampla de oportunidades. A pessoa pode participar individualmente ou em grupos. Individualmente, em uma democracia, as pessoas
podem participar como votantes ou, até mesmo, como ativistas políticos, ou
no mercado como empresários ou trabalhadores. (...) Não obstante, participam
de forma mais efetiva por intermédio de um grupo: como membro, talvez,
de uma organização da comunidade, ou de um sindicato, ou de um partido
político (RDH, 1993, p. 25).
Em alguns momentos, é destacado que o modelo ideal de desenvolvimento humano sustentável, ou seja, aquele que é capaz de combater as
desigualdades em seus múltiplos níveis, é o que respeita as diferenças (étnicas, raciais, culturais e de gênero), incrementa o crescimento econômico
e a renda dos mais pobres e melhora a condição humana “sem precisar de
grandes intervenções governamentais” (RDH, 1990, p. 104). O que isso significa? Que “os gastos no setor social, como porcentagem do PIB16 [sejam]
relativamente baixos” (RDH, 1990, p. 104). Isso demonstra que o primeiro
relatório já estava empenhado na defesa de um modelo de desenvolvimento
humano reiterado mais tarde, pelo secretário-geral da ONU, Kofi Annan,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 121-147
Maria José de Rezende
129
que, entre os anos 2000 e 2010, defendia a participação ativa de diversos
segmentos da sociedade (setores empresariais, voluntariado, ONGs) no
combate à pobreza e às desigualdades extremas. Ele afirmava: “É utópico
achar que podemos superar a pobreza sem a participação ativa do mundo
empresarial” (ANNAN, 2005, p. 1).
Fomentar um desenvolvimento humano em que cada um é responsável pela diminuição da pobreza extrema e da miserabilidade é a condição
essencial, segundo os preparadores dos RDHs, para impulsionar, de modo
concomitante, o crescimento econômico e o progresso social. Percebe-se que
ocorre, então, no interior dos documentos, uma paulatina transferência da
responsabilidade, pelo bem-estar, para os indivíduos, os quais devem ser,
de alguma forma, impelidos a resolver individualmente, conforme afirma
Bauman17 (2001), problemas sistêmicos. Aparecem muito frequentemente,
nos relatórios da década de 1990, as insistências na necessidade de tornar os
indivíduos independentes, o que significava que eles “devem ter a capacidade
de cuidar de si mesmos” (RDH, 1990, p. 141). Na mesma direção, lê-se ainda:
A ênfase na autoindependência econômica, política e social dos indivíduos
não implica uma crítica contra o intervencionismo estatal em matéria de desenvolvimento humano. Pelo contrário, a maior participação das pessoas no
processo de desenvolvimento depende da existência de políticas e programas
governamentais cuidadosamente desenhados. Não obstante, as intervenções do
governo em benefício do desenvolvimento humano também devem fomentar
a iniciativa privada em seu sentido mais amplo, incluída a dos empresários
privados, a das Organizações não-governamentais (ONG) e outras organizações
comunitárias e de autoajuda, assim como a das pessoas em sua qualidade de
indivíduos ou lares (RDH, 1990, p. 141).
Segundo os relatórios, a insistência na participação de uma multiplicidade de agentes está relacionada ao fato de que as mazelas sociais devem ser
combatidas em muitos âmbitos e não só no da renda. Os formuladores dos
RDHs afirmam, continuamente, que o baixo nível da renda tem importância;
porém, na discussão sobre desigualdade e pobreza, enfatizam ser ainda mais
relevante a “privação das capacidades básicas”, nos moldes defendidos por
Amartya Sen. Veja-se o que este último nos diz:
O enfoque informacional da análise da pobreza neste livro transferiu a atenção
do baixo nível de renda para a privação de capacidades básicas. (...) Tentamos
demonstrar que a privação de capacidades é mais importante como critério de
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
desvantagem do que o baixo nível de renda, pois a renda é apenas instrumentalmente importante e seu valor derivado depende de muitas circunstâncias
sociais e econômicas (SEN, 2010, p. 175).
Ao adotar a postura de que a renda é somente instrumentalmente
relevante, os formuladores dos RDHs passam, às vezes, a impressão de que
o aprofundamento do debate sobre a desigualdade de renda estaria subordinado ao debate sobre a privação das capacidades. Não há dúvida de que
os relatórios estão preocupados com a necessidade de distinguir pobreza de
renda e pobreza de capacidade18. Neste caso, observa-se que tais documentos se voltam para a defesa de estratégias do desenvolvimento humano que
atendam aqueles que vivem em situação de pobreza absoluta. A elevação
das capacidades, das habilidades e das oportunidades dos mais pobres deve
correr juntamente com a melhoria da renda. Somente assim se pode reduzir,
ao mesmo tempo, a pobreza e a desigualdade, o que depende de políticas
objetivamente voltadas para distribuir ativos (terras, por exemplo), expandir
o emprego, aumentar oportunidades e habilidades e prover serviços sociais
básicos para todos os que não possuem acesso a eles.
Pode-se perguntar: há indícios de que os RDHs da primeira metade
da década de 1990 se ocupam das desigualdades como disparidades entre
os mais ricos e os mais pobres? Sim, verifica-se, desde os primeiros documentos, uma preocupação com as disparidades. Há, no RDH de 1990, até
mesmo um item que trata dos obstáculos impostos pelas disparidades ao
desenvolvimento humano, sendo que os impedimentos advêm de muitos
tipos de desigualdades, as quais tornam abissais as diferenças de rendas, de
recursos e de poder entre os mais ricos e os mais pobres.
As disparidades existentes nas condições de vida – em áreas rurais e
urbanas – e nas oportunidades de emprego e de acesso à educação e à saúde,
entre homens e mulheres, devem ser tão combatidas quanto aquelas oriundas
da renda, diz o RDH de 1990. Segundo ele, “a fim de reduzir as disparidades
entre ricos e pobres, a realocação da infraestrutura social desempenha um
papel importante” (RDH, 1990, p. 140). Pode-se dizer, assim, que é dada
centralidade, à busca de melhor equidade nos investimentos em saneamento,
educação, saúde, moradia, nutrição, entre outros.
Os preparadores do RDH de 1994 insistem: a reversão das desigualdades somente se efetivará se os indivíduos alcançarem segurança na sua
vida cotidiana. As privações socioeconômicas e as crescentes disparidades
têm levado a conflitos de difícil solução. Por isso, dizem eles, a seguridade
humana e o desenvolvimento humano são inseparáveis. Eles afirmam que é
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Maria José de Rezende
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possível detectar, nos últimos 50 anos, avanços humanos importantes. Basta
observar os indicadores de esperança de vida ao nascer, o aumento do nível
educacional e as melhoras nutricionais para concluir que a humanidade tem
feito alguns progressos relevantes. Todavia, há ainda muito a ser feito, daí o
empenho das Nações Unidas, através do PNUD, em criar um instrumento,
o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para medir até que ponto esses
avanços são ininterruptos19:
(...) Em 1960 quase 70% da humanidade sobrevivia em condições humanas de
grande indigência (com um índice de desenvolvimento humano inferior a 0,4),
em 1992 (...) 32% da população mundial estava nessas condições. A proporção
da população mundial que desfrutava de níveis de desenvolvimento humano
bastante satisfatório (acima de um IDH de 0,6) aumentou de 25%, em 1960,
para 60%, em 1992 (RDH, 1994, p. 2).
Em razão da natureza propositiva e incentivadora dos relatórios, seus
elaboradores destacam sempre a importância dos avanços e dos progressos
verificados. No entanto, são enfatizadas as muitas disparidades que emperram
os processos de desenvolvimento humano20. No que se refere às desigualdades,
os RDHs destacam as disparidades de capacidades, habilidades, oportunidades
e rendas que afligem os mais pobres. Mesmo com alguns avanços, a situação
é apontada como caótica, no que diz respeito à privação vivenciada, ainda
hoje, por muitos habitantes do planeta:
Em que pesem os nossos avanços tecnológicos, ainda vivemos em um mundo
onde a quinta parte da população do mundo em desenvolvimento está faminta
ao ir dormir a cada noite, onde a quarta parte carece de acesso aos bens básicos como água de beber não contaminada e a terceira parte vive em estado de
abjeta pobreza (RDH, 1994, p. 2).
Conforme o RDH de 1994, em razão da não-participação da maioria
das pessoas no processamento de tais mudanças, há enorme dificuldade de
construção de avanços socioeconômicos que diminuam as desigualdades
(não só de renda, mas também de gênero, de habilidade, de capacidade, de
oportunidades). Em vista disso é necessário encontrar novas formas de cooperação produzidas por “uma participação mais equitativa das oportunidades
e responsabilidades econômicas em escala mundial21” (RDH, 1994, p. 3).
Norbert Elias em Mudanças na balança nós-eu – texto que compõe
a coletânea A sociedade dos indivíduos – afirma que a criação das Nações
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
Unidas e as tarefas que foram abraçadas por essa agência têm de ser encaradas
como “práticas e representações de um novo ‘nós’ são a expressão de um ‘novo
sentido da responsabilidade na escala mundial’ (ELIAS, 1994, p. 136), cuja
emergência e desenvolvimento se embasam concretamente nos fenômenos de
interdependência” (DEVIN, 2010, p. 65). Considera-se que as sugestões postas
no interior dos RDHs podem ser tomadas para exemplificar as discussões
de Elias sobre a orientação de alguns organismos rumo às tentativas de criar
uma responsabilidade mais ampla sobre os destinos da humanidade. A seu
ver, tais processos indicavam a predominância, na segunda metade do século
XX, de uma orientação voltada para maior integração entre os diversos povos
do planeta. Tais orientações produzem, simultaneamente, muitas formas de
desintegração. Isso quer dizer que existem ações planejadas e não-planejadas
que coexistem e impedem que as coisas se passem, exatamente, do modo
como os relatórios do desenvolvimento humano planejam.
Talvez, um dos maiores dilemas contidos nos RDHs é que eles tentam
dar, às suas propostas, um tom esperançoso como uma forma de convencer
os diversos agentes (governantes, lideranças políticas, lideranças da sociedade
civil, entre outras) de que é possível a construção de um agir propositivo e
voltado para a busca de melhorias coletivas. Fazem isso como que desconsiderando os elementos não-planejados que intervêm e desfazem os planos
lineares de avanços contínuos e estáveis. Veja-se o que diz o RDH de 1994: “É
necessário empreender ações (tanto preventivas como curativas) que apóiem
os processos de integração social” (RDH, 1994, p. 4).
As ameaças à seguridade humana são vistas como capazes de levar
ao processo de desintegração social. Neste caso, pergunta o RDH de 1994: o
que cabe à “comunidade internacional”? E responde: [cabe] “reconhecer um
conjunto claro de indicadores de segurança humana e um sistema de alerta
imediato baseado nesses indicadores. [Isso] poderia ajudar a esses países a
evitar que a situação chegue a um ponto de crises” alarmantes (RDH, 1994,
p. 4). A exposição das condições sociais dos diversos países, dizem os documentos em análise, pode tornar possível construir estratégias para evitar
catástrofes iminentes. Conforme assinala Norbert Elias (1994), estão em curso
alguns processos de aprendizado sobre como lidar com as desigualdades, com
a pobreza, com as mazelas sociais, com as inseguridades humanas tomadas
também como globais e não somente como locais.
O RDH de 1994 fala na necessidade de criar um novo paradigma de
desenvolvimento que “coloque o ser humano no centro do desenvolvimento,
considere o crescimento econômico como um meio e não como um fim,
proteja as oportunidades de vida das futuras gerações do mesmo modo que as
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das gerações atuais e respeite os sistemas naturais dos quais dependem todos
os seres vivos” (RDH, 1994, p. 5). Essa forma de desenvolvimento é, segundo
o relatório, indissociável da questão da equidade. Todavia, a ênfase recai
sobre a necessidade de distribuir melhor as oportunidades e as habilidades.
“Por conseguinte, talvez uma reestruturação das pautas de distribuição da
renda, produção e consumo em escala mundial seja uma condição prévia
necessária para toda estratégia viável de desenvolvimento humano sustentável” (RDH, 1994, p. 5).
É interessante observar que o relatório diz “talvez” e não “certamente”
seja necessário e urgente colocar em pauta efetivamente o debate sobre como
formular ações capazes de desconcentrar a renda. Pode-se dizer que esse tema
aparece, de fato, como o mais espinhoso no interior de todos os relatórios.
Todo problema se resume na seguinte questão: como criar estratégias para
convencer uma multiplicidade de agentes acerca da necessidade de envidar
mais e mais esforços na busca de uma maior equidade se isso, muitas vezes,
esbarra no interesse desses mesmos agentes? Por isso, os relatórios tentam
equilibrar-se entre o possível e o impossível, o viável e o inviável nas condições socioeconômicas mundiais, hoje.
Se a busca de equidade toca em interesses petrificados e difíceis de
enfrentar, qual é, então, a solução proposta pelos RDHs? A cooperação.
Deve-se estabelecer em escala mundial, dizem eles, uma coparticipação
econômica que evite os enfrentamentos e sejam capazes de dividir “equitativamente as oportunidades dos mercados” (RDH, 1994, p. 5). Não há dúvida
de que esse é o maior problema que salta aos olhos quando se toma contato
com os relatórios, ou seja, quando se tenta resolver questões de magnitudes
imensas, como as referentes às desigualdades, sem enfrentamentos (entre
estados, países, grupos sociais, organizações, associações, etc.) significativos.
Celso Furtado insistiu, muitas vezes, que, considerando as condições reais
dos países subdesenvolvidos, esse tipo de ação política que tenta evitar e/
ou neutralizar os enfrentamentos é, praticamente, impossível, uma vez que
é difícil, através da cooperação,
(...) modificar estruturas bloqueadoras da dinâmica sócio-econômica, tais
como [a concentração de terras], o corporativismo, a canalização inadequada
da poupança, o desperdício desta em formas abusivas de consumo e sua drenagem para o exterior. As modificações estruturais deveriam ser vistas como um
processo liberador de energias criativas, e não como um trabalho de engenharia
social em que tudo está previamente estabelecido. Seu objetivo estratégico
seria remover os entraves à ação criativa do homem, a qual, nas condições de
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
subdesenvolvimento, está caracterizada por anacronismos institucionais e por
amarras de dependência externa (FURTADO, 1992, p. 75).
1.2. Os RDHs da segunda metade da década de 1990 e as propostas de combate às desigualdades: os desafios postos aos habitus e às estruturas sociais
Observa-se que, em meados da década de 1990, há tentativa de tornar mais
e mais precisa a noção de desenvolvimento humano. Este último, afirma o
RDH de 1995, somente é possível se houver igualdade de oportunidades,
sustentabilidade dessas oportunidades de uma geração para a outra e aumento da possibilidade de que as pessoas sejam, de fato, beneficiadas pelos
avanços que vão sendo gerados paulatinamente (RDH, 1995, p. 1). Tal convicção, expressa no documento do PNUD, pressupõe, sem sombra de dúvida,
desafios postos ao habitus social, já que se sugere a necessária geração de
novos valores capazes de democratizar as oportunidades e as habilidades.
Faz-se preciso, ainda, criar novas disposições sociais22, novas atitudes. Estas
últimas são disponibilidades para uma dada forma de agir voltada para uma
melhor distribuição de recursos, oportunidades e capacidades.
É visível que as propostas dos RDHs vão aperfeiçoando – desde a década
de 1990 – o modo de mostrar, aos diversos agentes, os desafios cabíveis às
estruturas sociais, econômicas e políticas. No RDH de 1995, o ponto de partida
era a Declaração de Viena que havia sido produzida na Conferência Mundial
de Direitos Humanos, em 1993. Nela, múltiplas formas de desigualdades recebem um foco de luz especial. Diversos itens do documento, subscrito por
171 países, diziam respeito à necessidade de construir igualdade de acesso aos
serviços sociais básicos, à oportunidade de participação política, à justiça, à
empregabilidade e aos direitos de modo geral.
Ressalte-se que o RDH de 1995 deu destaque à necessidade de buscar
uma forma de desenvolvimento humano medido pelas melhorias no IDM
(Índice de Desenvolvimento relacionado à Mulher)23. Assim, todo o debate
acerca das desigualdades dá centralidade aos avanços e não-avanços no
combate às disparidades substanciais entre os sexos. O relatório de 1995
insistia que não existiam, em qualquer sociedade, oportunidades iguais
para homens e mulheres. Havia, sim, disparidades maiores e/ou menores.
O IDM mais alto era, naquele ano, o da Suécia (0,92 numa escala de 1 como
valor máximo). Os índices mais baixos, aqueles que ficavam abaixo de 0,5,
podiam ser encontrados em mais de 45 países (RDH, 1995).
De acordo com o RDH de 1995, o IDH, o IDM e o IPM (Índice de
Potencialização da Mulher)24 nem sempre eram coincidentes. Havia países
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Maria José de Rezende
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(Argentina, Chile e Costa Rica) nos quais o primeiro era bastante superior
ao segundo, o que demonstrava não serem equitativas as distribuições das
capacidades humanas, das habilidades e das oportunidades. Em outros
(Dinamarca, Suécia e Finlândia), o IDM era, até mesmo, superior ao IDH.
Os formuladores do relatório demonstravam, no entanto, que não haviam
encontrado qualquer relação automática entre a condição de países desenvolvidos economicamente e a condição de possuidores de altos IDMs. Identificavam, assim, situações em que o país preenchia a condição de portador
de um IDH que se enquadrava na categoria 1 e de um IDM correspondente
à categoria 9. Canadá25, Luxemburgo e Espanha estavam nessa situação.
O RDH de 1995 tem o mérito de revelar dados importantes acerca da
correlação entre o IDM e o IPM. Muitas vezes, pode parecer automático que
os dois índices sejam coincidentes, mas, não é verdade. Em todo o mundo,
o IPM é sempre expressivamente menor que o IDM. O avanço neste último
exige um esforço enorme que tem de ser aprimorado para que ocorram, de
fato, melhorias no IPM. Para exemplificar essa situação, basta verificar os
seguintes dados: na América Latina e Caribe o IDM é aproximadamente 6.8;
todavia, o IPM é 4.2. Nos países industrializados, o IDM é por volta de 8.8 e
o IPM é menor que 6.
Em vista de tais constatações, o RDH de 1995 demonstrava que a
desigualdade entre homens e mulheres devia ser tomada como independente da renda nacional. Em muitos países com níveis altos de renda, havia
muita disparidade que deveria ser combatida. Por isso, sugere o Relatório,
investir em melhores oportunidades para as mulheres deve ser um objetivo
não somente das nações mais ricas, mas de todas aquelas que apresentam
graus insatisfatórios do IDM. A melhoria na condição de vida das mulheres não pode ser vista como algo somente possível aos países dotados de
maior volume de recursos econômicos. Alguns países pobres (Sri Lanka e
Zimbabwe, por exemplo):
(...) têm elevado a taxa de alfabetização feminina até 70%. Ao comparar as
categorias, segundo o IDM, com os níveis de renda dos países, se confirma que
a eliminação da desigualdade entre os sexos não depende que se tenha uma
renda alta. (...) Por conseguinte, a igualdade entre os sexos pode ser promovida (...) sejam quais forem os níveis de renda. O que se necessita é um firme
compromisso político e não uma enorme riqueza financeira (RDH, 1995, p. 3).
Celso Furtado (1997) afirma que toda e qualquer forma de desigualdade
somente pode ser debelada através de uma postura política distributiva de
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
recursos e de poder. Na interpretação de Furtado, a própria disparidade de
renda é um problema fundamentalmente político – e não somente econômico – cuja diminuição paulatina depende de medidas institucionais. Segundo
ele, o investimento em ações de combate às desigualdades e exclusões exige
muitos enfrentamentos no âmbito da política institucional, da sociedade
civil e dos governos, entre outros. Assim, pode-se dizer que não apenas a
desigualdade de gênero é combatida através de firmes compromissos políticos, mas também muitas outras. Para Amartya Sen (2010; 2011), porém, as
desigualdades de participação, de habilidade, de capacidade, de oportunidades, de renda, de gênero, entre outras, somente são combatidas por meio da
geração de disposições institucionais, concebidas estas como um conjunto de
atitudes e de valores comprometidos politicamente com a busca continuada
e duradoura de “oportunidades sociais básicas [voltadas] para a equidade e
a justiça social” (SEN, 2010, p. 190).
Seria fundamental que os RDHs insistissem mais nos desafios políticos
inerentes às tentativas de diminuição das desigualdades. Toda distribuição
de poder, renda e recursos leva a embates políticos e institucionais de grande
monta. Isso traria consequências importantes, uma vez que teria de haver
um enfrentamento maior da diversidade de interesses que obstam o combate
às desigualdades de renda, de oportunidades, de capacidades e habilidades.
Ficaria, até mesmo, mais evidente que os múltiplos agentes envolvidos teriam
de ser confrontados politicamente em seus interesses, escolhas e valores.
Não por acaso o RDH de 1996 tem como objeto central de discussão,
já em sua sinopse, o aumento do “hiato mundial entre ricos e pobres” (RDH,
1996, p. 1). Gustave Speth, administrador do PNUD, afirma: “O mundo tornou-se mais polarizado economicamente, quer entre países quer dentro dos
países. Se as tendências atuais continuarem, as disparidades econômicas
entre países industriais e nações em desenvolvimento irão passar de injustas
para desumanas” (1996, p. 1).
Na discussão sobre as desigualdades de renda, esse Relatório é o mais
completo da década de 1990, visto apontar a coexistência, nas décadas de 1970,
1980 e 1990, de um crescimento econômico enorme que deixou “1,6 bilhão
de pessoas em situação pior do que há quinze anos” (RDH, 1996, p. 1). O documento demonstra, assim, que o crescimento econômico trouxe melhorias
aos mais pobres somente naqueles países em que os governantes implantaram
medidas garantidoras de equidade. Observa que onde isso não ocorreu o hiato
entre os mais ricos e os mais pobres cresceu vertiginosamente, não só quando
se avalia a situação do país, mas também quando se compara a situação desses
dois grupos (mais abastados e menos abastados) em âmbito mundial.
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A construção de elos entre crescimento econômico e desenvolvimento
humano mostrava ser algo que desafiaria os governantes, a sociedade civil
e todos os demais agentes e lideranças políticas comprometidos com a
construção da equidade. Conforme o Relatório, os percalços são enormes:
Durante os anos de 1975-1985, o Produto Nacional Bruto mundial cresceu cerca
de 40%, mas este crescimento beneficiou uma minoria de países. Ao mesmo
tempo, o número de pobres em todo o mundo cresceu [por volta] de 17%.
Os ricos estão ficando mais ricos. Atualmente, os bens dos 358 multimilionários
mundiais excedem os rendimentos anuais conjuntos de países que totalizam
perto de metade – 45% – da população mundial (RDH, 1996, p. 1).
Assim sendo, o documento em análise insistia: aumentaram, expressivamente, a pobreza e a desigualdade de renda no decorrer dos últimos 30
anos. Vêm à tona muitos dados sobre a situação dos jovens em várias partes
do mundo. Há indicação de que, quanto à oportunidade de emprego e de
renda, está havendo um agravamento da situação das gerações mais novas.
Segundo o RDH de 1996, estava ocorrendo uma estagnação de rendimentos e, também, um aumento do abismo entre os mais ricos e os mais
pobres. No entanto, mesmo em tais condições, era possível detectar um considerável progresso na saúde, na educação e no saneamento básico. Pode-se
dizer, ao se ler o Relatório, que parece haver duas forças distintas operando
nesse processo: uma direcionando ganhos incalculáveis para determinados
grupos, e outra que mobilizando esforços para fazer avançar melhorias sociais. É evidente a enorme dificuldade que os RDHs têm de sugerir políticas
distributivas capazes de desconcentrar a renda. Por essa razão, eles se atêm,
principalmente, às sugestões de expansão das ações (por parte do Estado,
da sociedade civil e de organizações, instituições e associações diversas)
que favoreçam a melhoria de capacidades, habilidades e oportunidades
para os mais pobres. O desenvolvimento humano colocaria, assim, os mais
pobres em condições de enfrentar, de modo mais substantivo, os efeitos das
desigualdades. Nesse aspecto, verifica-se que os elaboradores dos RDHs
buscam inspiração na proposta de Amartya Sen que insiste na diminuição do
sofrimento social “não pelo lado negativo, ou seja, diminuindo a riqueza dos
ricos” (SEN, 2001, p. 6), mas pelo lado positivo, potencializando os recursos
que os pobres possuem para enfrentar as diversas mazelas sociais.
Desse modo, os formuladores do RDH de 1996 insistem que o objetivo
do documento é “ajudar os dirigentes políticos a compreender a natureza
e a extensão da pobreza” (RDH, 1996, p. 2). Esta última, dizem eles, possui
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138
OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
muitas facetas (desnutrição, analfabetismo, moradia precária, falta de acesso
à saúde, à educação) e não somente uma (a da renda). Conquanto considerem
a pobreza derivada da renda como um fator importante, eles estão propensos
a sugerir políticas de combate à pobreza de capacidades humanas. Por isso,
o documento do PNUD sugere um novo padrão de medida, o MPC (Medida
de Privação de Capacidade):
Em vez de analisar a situação média das capacidades humanas, como faz o IDH,
a nova medida de privação de capacidade reflete a percentagem de pessoas que
carecem de capacidades humanas básicas ou minimamente essenciais, as quais
são ou um fim em si mesmas, ou necessárias para elevar o indivíduo do nível
de rendimento de pobreza e sustentar o desenvolvimento humano. O MPC
reflete a proporção de crianças com menos de cinco anos com peso abaixo do
normal, (...) a proporção de nascimentos não assistidos por pessoal de saúde
especializado (...) e a taxa de analfabetismo feminina (RDH, 1996, p. 2).
Richard Jolly (RDH, 1996) – autor principal do RDH de 1996 – esclarece
que se está buscando incentivar estratégias de crescimento econômico que
levem em conta a necessidade de investimento no desenvolvimento humano.
O objetivo é, assim, encorajar e apoiar ações26 voltadas para a promoção de
processos que facultem aos indivíduos mais pobres obter ganhos cada vez
mais substantivos, tanto no campo da renda quanto no das capacidades e
habilidades. Insiste o RDH de 1996 em demonstrar que o desenvolvimento
humano não é anticrescimento econômico; ele exige, sim, um redirecionamento do processo econômico capaz de evitar que o crescimento seja
insustentável, gerador de desemprego, desumano e descomprometido com
a democracia e com a participação política.
Considerações Finais
Em relação às desigualdades, as sugestões dos relatórios recaem, sobretudo,
na alocação mais equitativa de infraestrutura (reversão da urbanização precária), de educação e de saúde do que em aconselhamentos que visem uma
distribuição da renda por meio de melhorias salariais. Isto porque, conforme
os documentos a desigualdade não é somente fruto de abismos de rendas
entre os mais ricos e os mais pobres; ela deriva, também, das diferenças
abissais de oportunidades, habilidades e capacidades.
As preocupações do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano)27, dos
RDHs e da Declaração do Milênio (2000) podem ser tomadas, principalmente
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no que tange à relação entre desigualdade e pobreza, como tentativas de avançar
rumo a processos de combate às iniquidades que resultam em condenação de
1/3 da população mundial a toda forma de privação e impotência.
Ao se lançar um olhar sobre os relatórios, pode-se, de imediato, julgá-los frágeis, titubeantes e genéricos, notadamente no que diz respeito às
causas de algumas formas de desigualdades. As de renda, por exemplo, não
têm sido enfrentadas como resultantes de bloqueios estruturais que impedem a emergência de processos capazes de ao menos indicar alguma forma
de desconcentração da renda no mundo atual. Os RDHs da década de 1990
tratam das diversas formas de desigualdades (de renda, de gênero, de educação, de acesso à saúde, à participação política, entre outras), evidenciando,
simultaneamente, que estão, ainda, em busca de caminhos através dos quais
possam propor formas, mesmo que parciais, de combate às desigualdades
nas suas múltiplas faces e feições.
Há muitos fatores planejados e não-planejados que intervêm nas
soluções aventadas pelos RDHs. Todavia, verifica-se certa dificuldade dos
seus proponentes de lidarem, concomitantemente, com os elementos controláveis e não-controláveis. Para exemplificar, pode-se dizer que a busca de
ampliação das capacidades e das habilidades aparece, muitas vezes, como
dotada de linearidade. Os formuladores dos RDHs não se atêm ao fato de
as condições socioeconômicas atuais promoverem amplos processos que
desabilitam mesmo os que estariam habilitados e incapacitam mesmo os
capacitados. Para usar uma expressão de Zygmunt Bauman (2007), diríamos
que tais processos passam a ser endemicamente supérfluos.
No que se refere às propostas, de diminuição das desigualdades de
diversas naturezas, contidas nos RDHs, esclarece-se que o caminho tomado, neste artigo, foi o seguinte: as propostas presentes nos relatórios estão
sendo pensadas como parte de um processo de aprendizado28 – emergente
de experiências humanas geradas tanto em um organismo internacional,
como a ONU, quanto em outros contextos e espaços sociais e políticos – que
têm tentado impulsionar o desenvolvimento social e humano. Os relatórios
procuram também encontrar soluções – ainda que não cubram todas as
dificuldades e desafios – que podem ser tomadas como indícios “de um
crescente sentimento de responsabilidade mundial pelo destino dos seres
humanos” (ELIAS, 1994, p. 139).
As dificuldades colossais de levar adiante, por meio de uma multiplicidade de agentes, todas as sugestões, contidas nos RDHs – que indicam um
empenho mais incisivo no combate às desigualdades – devem ser analisadas
à luz da seguinte pergunta levantada por Norbert Elias (1994, p. 187): “Acaso
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
devemos presumir que (...) os sentimentos, a consciência moral e o habitus
social dos indivíduos estão muito atrasados em relação às estruturas sociais
e, especialmente, ao nível de integração que emergiu do desenvolvimento
não-planejado da humanidade?”.
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NOTAS
141
Sobre os muitos embates e as disputas políticas no interior do PNUD acerca
dos RDHs e da concepção de desenvolvimento humano, ver: Machado e
Pamplona, 2008.
1
Economista paquistanês, criador, com colaboração de Amartya Sen, “do
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) [cujo objetivo é] oferecer um
contraponto a outro indicador muito utilizado, o Produto Interno Bruto (PIB)
per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento.
(...) O IDH pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento
humano. (...) Além de computar o PIB per capita, depois de corrigi-lo pelo
poder de compra da moeda de cada país, o IDH também leva em conta dois
outros componentes: a longevidade e a educação” (PNUD, 2010, p. 1).
2
Economista hindu, prêmio Nobel de Economia em 1998, com vasta discussão sobre desigualdades, justiça social e pobreza. Acadêmico preocupado
em difundir o que ele denomina de teoria da escolha social. Suas obras têm
influenciado o debate acadêmico e as propostas de muitos técnicos que atuam no interior de organizações internacionais. Entre seus livros, podem-se
destacar: Sen, 2008; 2010; 2011.
3
Assessor e coordenador dos RDHs de 1996 e 1997.
4
Muitos cientistas têm demonstrado que há um alargamento das desigualdades na atualidade (BAUMAN, 1999; FURTADO, 2001; JUDT, 2011). Os
RDHs (1998; 1999) trazem também dados sobre a concentração da riqueza
no mundo globalizado.
5
6
Organização das Nações Unidas.
7
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.
8
Fundo Monetário Internacional.
Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento que compõe
o Banco Mundial.
9
O habitus social civilizador é, conforme Elias (2006), um padrão de auto
-orientação voltado para a observância de interesses coletivos. Esse habitus
não apaga os conflitos de interesses, mas possibilita a expansão de atitudes
cada vez mais democráticas e voltadas para a defesa de maiores equilíbrios
de poder e de recursos.
10
Há uma vasta literatura sobre o modo como os gastos sociais no Brasil têm
beneficiado, ao longo de várias décadas, os mais abastados. É o modelo que
sempre deu “mais aos mesmos” (DRAIBE, 2003, 1994). A coletânea Brasil:
a nova agenda social (2011) traz um estudo de André Medici que faz a seguinte constatação: “Mesmo com um sistema gratuito e universal como o
SUS (Sistema Único de Saúde), as famílias brasileiras pobres gastam mais
com saúde, em termos relativos, do que as famílias mais ricas. [Em 2002,
a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) revelou que] os 10% mais pobres
gastavam quase 7% de sua renda com saúde, enquanto os 10% mais ricos
gastavam 3%” (MEDICI, 2011, p. 51).
11
Os RDHs, inspirados por Sen, partem do pressuposto de que “o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade:
12
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OS RELATÓRIOS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO
pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social
sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência
excessiva de Estados repressivos” (SEN, 2010, p.16).
“No contexto dos países em desenvolvimento, a necessidade de iniciativas da
política pública com vista à criação de oportunidades sociais tem importância
crucial. (...) No passado dos atuais países ricos encontramos uma história
notável de ação pública por educação, serviços de saúde, reformas agrárias,
etc. O amplo compartilhamento dessas oportunidades sociais possibilitou
que o grosso da população participasse diretamente do processo de expansão
econômica” (SEN, 2010, p. 192). Destaque-se que no Brasil, Celso Furtado
(1964, 1966; 1969; 1972; 1974; 1992) discutiu abundantemente o assunto.
13
Assim como fazem os RDHs, Sen (2008; 2010) não recusa inteiramente as
políticas focalizadas, ele procura demonstrar os aspectos positivos e negativos,
para as políticas de combate às deficiências de capacidades, de colocá-las em
prática. “O direcionamento de políticas para um público-alvo é, na verdade,
uma tentativa e não um resultado” (SEN, 2010, p. 182).
14
Amartya Sen, em Desenvolvimento como liberdade (2010), discute amplamente a provisão de serviços públicos por parte do Estado. Ele considera
fundamental que o Estado assuma as responsabilidades pelos serviços básicos
de educação e saúde. Mas considera também importante que essa discussão
sobre a (in)capacidade do Estado suprir tais serviços seja enfrentada no
campo de um debate mais amplo sobre custeio público e política fiscal. O
grau de custeio social que uma sociedade pode e quer fornecer, aos mais
pobres, deve ser discutido politicamente por todos os agentes sociais. As
sociedades somente avançam rumo ao desenvolvimento humano quando são
capazes de estabelecer algumas bases consensuais sobre a melhor maneira
de distribuição de renda e recursos.
15
16
Produto Interno Bruto.
“Resumidamente, a ‘individualização’ consiste em transformar a ‘identidade’ humana de um ‘dado’ em uma tarefa e encarregar os atores [não só] da
responsabilidade de realizar essa tarefa (...) [mas também] das consequências
(assim como os efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de
a autonomia de facto também ter sido estabelecida)” (BAUMAN, 2001, p. 41).
17
18
Esta distinção está bastante trabalhada por Sen (2010).
Entre os cientistas sociais contemporâneos, Norbert Elias (1994; 1998) se
destacou em suas críticas às perspectivas lineares e graduais de desenvolvimento humano. Os processos e os contraprocessos civilizacionais ocorrem
de modo simultâneo. Avançam, paralelamente, diz ele, as forças sociais
impulsionadoras e as bloqueadoras das melhorias coletivas. Os preparadores
dos RDHs, ao tentarem definir propostas de aumento dos índices de renda,
longevidade e educação, atêm-se, propositalmente, aos elementos indicadores de avanços na seguridade humana. Todavia, não deixam de reconhecer
que muitos vivem em um mundo com muitas incertezas e insegurança em
relação à superação das privações de modo geral.
19
20
Em vários momentos dos RDHs fica visível que “a abordagem das capacidaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 121-147
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143
des de Amartya Sen [está] na base teórica do paradigma do desenvolvimento
humano” (MACHADO e PAMPLONA, 2008, p. 8).
Carlo Tassara afirma que há, na atualidade, uma nova proposta de cooperação internacional. Nas décadas de 1950 e 1960, esta última tinha um
enfoque econômico que visava buscar ajuda dos países industrializados
para os não-industrializados. Eram apoios para financiar a infraestrutura
e todas as outras condições de modernização. “Os Estados nacionais eram
os únicos atores da cooperação. Hoje em dia, a cooperação internacional
se concentra na luta contra a pobreza (...). Os atores da cooperação já não
são unicamente os estados nacionais, são também os governos subestatais
(municípios, províncias, departamentos, etc.), as organizações da sociedade
civil, as universidades e o setor privado” (TASSARA, 2011, p. 416).
21
A insistência dos RDHs de que o desenvolvimento humano é capaz de gerar
novas disposições sociais nos indivíduos condiz com as discussões de Amartya
Sen que tem alguns pontos de aproximação com as análises disposicionistas
que se desenvolveram na sociologia norte-americana nas décadas de 1920 e
1930 para pensar a combinação “de valores coletivos e atitudes individuais”
(COULON, 1995, p. 31).
22
“O IDM mede os avanços nos mesmos aspectos básicos que o IDH, mas
reflete a desigualdade entre homens e mulheres no que diz respeito a estes
avanços” (RDH, 1995, p. 5).
23
24
“O IPM reflete se as mulheres e os homens podem participar ativamente
na vida econômica e política e na tomada de decisões” (RDH, 1995, p. 5).
O RDH de 1996 levantou índices que classificaram o Canadá como o país,
entre outros 174, com o maior grau de desenvolvimento humano.
25
Os governos devem exercer ações corretivas, diz o RDH de 1996. Eles devem
se empenhar em direcionar o crescimento econômico para obter resultados
benéficos em favor dos mais pobres.
26
“O IDH indica que, se têm uma vida longa e saudável, as pessoas possuem educação, conhecimento e desfrutam de um nível de vida decoroso”
(RDH, 1995, p. 5).
27
Norbert Elias (1998) detalhou no que consiste o aprendizado como processo
de envolvimento e distanciamento. No caso dos RDHs, são vários os passos que
indivíduos, instituições e organizações vão dando no sentido de perceberem,
mais claramente, as múltiplas dimensões das desigualdades; mas é preciso,
além disso, desenvolver uma espécie de distanciamento para observar, com
maior precisão, o embate entre as forças voltadas para o desenvolvimento
humano e aquelas que operam justamente no sentido oposto.
28
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Maria José de Rezende
Palavras-chave:
desigualdades, pobreza,
desenvolvimento humano.
Keywords:
inequalities, poverty,
human development.
RESUMO
Este estudo busca indicar que os RDHs, da década de
1990, sistematizam inúmeras informações, de diversas regiões
do mundo, com o objetivo de demonstrar que há uma forte correlação entre pobreza e desigualdades. É visível que os objetivos
principais dos relatórios é incentivar um conjunto de ações aos
diversos estados-membros das Nações Unidas. Estão postas
no interior de suas centenas de páginas muitas sugestões de
políticas diminuidoras das múltiplas formas de desigualdades
que dificultam e/ou impossibilitam o desenvolvimento humano.
Através de uma pesquisa documental verificam-se quais são
os caminhos tomados pelos primeiros seis relatórios (19901996) para pôr na agenda pública os desafios sociais, políticos
e econômicos do enfrentamento contínuo e incessante das
disparidades excessivas que impedem a expansão vertical de
oportunidades, habilidades e capacidades.
ABSTRACT
The purpose of this study is to demonstrate that the
HDRs of the 1990s systematize countless information from
various regions of the world, in order to demonstrate that there
is a strong correlation between poverty and inequalities. It is
apparent that the main objective of the reports is to encourage
a set of actions to the various member states of the United
Nations. Within their hundreds of pages there are many policy
suggestions that decrease the multiple forms of inequalities that
hinder and/or make human development impossible. Through
documentary research it will be possible to determine what
ways were taken by the first six reports (1990-1996) in order
to add in the public agenda the social, political and economic
challenges of the continuous and constant dealing with the
excessive disparities that prevent the vertical expansion of
opportunities, skills and abilities.
Recebido para publicação em abril/2013. Aceito em agosto/2013.
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Ética civilizacional e teoria sociológica:
uma revisão conceitual de Durkheim
André Oda
Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP).
Mestre e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade
Estadual Paulista (UNESP/Marília) e Professor de Teoria
Social na Universidade do Sul e Sudeste do Pará. E-mail:
[email protected].
Uma leitura mais aprofundada de Durkheim nos permite identificar pelo menos duas fases distintas de sua obra: uma em que
ele começa dando mais importância às formas de solidariedade
social e às moralidades que lhes são correspondentes, e outra em
que ele enfatiza mais o aspecto representacional da sociedade.
Grande parte das diferenças de interpretação de sua obra pelas
sucessivas gerações de sociólogos está baseada na ênfase maior
em um aspecto ou em outro, de acordo com as opções teóricas
assumidas por cada comentador. Isso decorre, por um lado, do
fato de a sociologia ter se diferenciado em correntes distintas,
ressaltando cada vez mais a diferença entre vários níveis da
realidade social, de tal modo que, a partir da distinção progressivamente acentuada dessas diferenças, o objeto sociológico se
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150
ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
sofistica cada vez mais. Por outro lado, pode-se dizer que tais diferenças na
interpretação, em alguma medida, decorrem diretamente de contradições
inerentes aos desdobramentos teóricos sucessivos que o próprio Durkheim
realiza ao longo de toda a sua obra.
A sociologia de Durkheim, em seus primeiros momentos, esteve em
grande parte presa ao problema de encontrar um substrato sobre o qual fosse
possível localizar os fenômenos da vida social. Este substrato deveria satisfazer
algumas condições teóricas. Por um lado, deveria ser um fenômeno material
e, ao mesmo tempo, “espiritual” (por assim dizer). Por outro lado, deveria ser
um fenômeno presente tanto em âmbito individual quanto inter-individual.
O fato básico que preenche essas condições é o fato da associação e, decorrentemente, a solidariedade social. Em última instância, o problema é um dado
de densidade espacial básica: “quem está na presença de quem, por quanto
tempo, e com quanto espaço entre eles” (COLLINS, 1994, p. 187).
É sobre esse problema, mais morfológico do que da ordem das representações, que se assenta a Divisão do trabalho social (1893/2004). Para se
compreender a solidariedade social – um fenômeno que não está diretamente
ao alcance da observação –, faz-se necessário o estudo de sua expressão visível.
É através do direito que as formas de solidariedade mecânica e orgânica podem
ser apreendidas, porque, na concepção do autor, as normas jurídicas são a
expressão aparente das relações mais profundas e duradouras da associação e
da solidariedade que decorre dessas. O direito é, nesse sentido, como símbolo
aparente1, apenas uma expressão subordinada de uma solidariedade que é,
em relação a ele, ontologicamente mais vigorosa.
Na medida em que a sociologia de Durkheim evoluía e diferentes
dimensões dos fenômenos sociais foram se afirmando em suas particularidades – especialmente as representações sociais e os sentimentos coletivos
– algumas de suas novas afirmações sobre determinados temas foram se
contradizendo com as formulações mais antigas. Isso porque uma elaboração
mais desenvolvida sobre o papel das representações na vida social acaba por
colocar em xeque a ideia de um substrato social infenso a essas representações
e que unilateralmente as determinaria. À época de As formas elementares
da vida religiosa (1912/2000), Durkheim já apresentava uma concepção renovada e muito mais sofisticada sobre a vida social e, especialmente, sobre
o papel das representações coletivas2 na perspectiva mais elaborada de uma
dinâmica social que passa pela interação dos indivíduos e pela conformação
de sentimentos coletivos.
Este artigo se concentra em traçar algumas linhas gerais sobre
a sociologia de Durkheim, fundamentando a leitura na oposição entre
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
André Oda
151
natureza e sociedade. Argumento que esta oposição é mais vigorosa que
aquela entre indivíduo e sociedade, sendo o principal determinante de
seus posicionamentos éticos.
Antes de iniciarmos a revisão, é necessária uma ressalva: sob o ponto
de vista da oposição entre natureza e sociedade, a distinção entre sentimentos
e representações e outras tantas manifestações da vida social dentro da teoria
durkheimiana só pode ser levada a cabo até certo limite. Sob este enfoque,
tais diferenças tendem a diluir-se. Mas, se, por um lado, focando-nos nessa
oposição básica, acabamos por deixar obscurecidas algumas distinções – e
até, em alguns momentos, passando por cima da relevância que poderia ter
a posição relativa de cada livro, tomado em separado –, na ordem temporal
de toda a sua obra, por outro lado, essa postura tem a vantagem de se basear
em um aspecto (a oposição entre natureza e sociedade) que permaneceu
frente às sucessivas mutações de sua obra.
Sociedade versus natureza
Insistir na oposição entre natureza e sociedade significa operar um deslocamento discreto na tradicional problematização do “homo duplex” – uma
tematização durkheimiana nos termos de uma dualidade humana dentro da
qual portaríamos tanto uma existência individual quanto uma coletiva, i.e.,
social. Este pequeno deslocamento que proponho tem como efeito afastar o
foco de leitura da oposição entre indivíduo e sociedade, tal como usualmente
se faz, e – sem negar a realidade dessa oposição – enfatizá-la como sendo
apenas uma expressão daquela entre natureza e sociedade. Com isso, pretendo lançar uma chave de leitura que ilumina e integra aspectos de sua obra
comumente dispersos em seus inúmeros comentadores. A insistência nessa
oposição não é uma elaboração conceitual inteiramente nova na interpretação
de sua teoria sociológica, mas apenas a consolidação de uma distinção que
outros comentadores já haviam notado e ressaltado3. No escopo deste artigo,
busco prever as consequências teóricas desse deslocamento nas formulações
que subjazem seu questionamento ético das sociedades modernas.
Desde o início, o projeto científico de Durkheim consiste em tornar
os fatos morais4 um objeto possível de ser estudado. Fatos morais são fatos
sociais. E uma de suas asserções mais famosas é a de que os fatos sociais
devem ser tratados como coisas. Isso implica, por um lado, que o cientista
da moral deve ter uma postura tal que não imponha seus valores pessoais ao
objeto; deve impor-se uma rigorosa neutralidade axiológica. Se esta pressuposição – de que é possível realmente uma anulação dos valores subjetivos
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
152
ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
na observação científica – sofreu duros e bem justificados ataques das mais
diversas correntes das Ciências Sociais, por outro lado, o significado primeiro
dessa asserção floresceu em formulações cada vez mais ousadas. É que tomar
a moral como um objeto de estudo, tratando-a como uma “coisa”, significa
dizer que a moralidade dos povos pertence ao mundo que habitam; que esse
conjunto de prescrições de conduta não é imperativo que emana da natureza, de um deus ou de qualquer outra potência extra-humana. Significa
dizer que ela é historicamente constituída, variável, como são variáveis as
sociedades humanas.
(...) É possível que a moral tenha algum fim transcendental, que a experiência
não é capaz de alcançar; cabe ao metafísico ocupar-se deste. Mas o que é certo, antes de mais nada, é que ela se desenvolve na história, sob o império de
causas históricas, e tem uma função em nossa vida temporal. Se ela é esta ou
aquela num fenômeno dado, é porque as condições em que vivem os homens
não permitem que ela seja outra, e a prova disso é que ela muda quando essas
condições mudam, e somente nesse caso (DURKHEIM, 1893/2004, p. XLIV).
A sociologia de Durkheim está longe de ser a-histórica e despreocupada
com as mudanças sociais (cf. BELLAH, 1959). Claro que seria demais enxergar
em Durkheim o precursor de um “relativismo pós-moderno”, já que, nessa
variedade de sociedades da espécie humana, ele está claramente preocupado
em encontrar o que subsiste em comum a todas elas, a solidariedade e todos
os seus efeitos. Mas também é claro que sua explicação parte da constatação
da relatividade histórica das diferentes moralidades que compõem essas
sociedades. Veremos, mais à frente, as elaborações teóricas a partir das quais
podemos identificar os princípios de explicação das mudanças sociais e históricas na sociologia de Durkheim. De todo modo, a investigação científica
não pode procurar um ponto fora do mundo humano – a natureza ou uma
potência divina – para sustentar uma perspectiva da moralidade e impor, de
modo apriorístico, seus ideais do que a realidade deveria ser.
Sem a sociedade, deixado a si mesmo, do indivíduo restaria apenas
sua natureza orgânica e suas representações sensíveis imediatas, um átomo
biológico. E a natureza, na ótica de Durkheim, não é para o homem o reino
de uma liberdade primeira e inteiriça de que ele teria abdicado em uma
espécie de acidente teológico; é uma prisão de necessidades, a potência
infinita que o submete às incansáveis exigências da vida biológica. Para
ele, os apetites naturais, a vontade e a sede de sensações são a fonte do
sofrimento humano: fora do controle da sociedade, são um abismo sem
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fim, não são saciáveis, sendo, portanto, uma fonte de uma insatisfação
eterna (cf. MEŠTROVIĆ, 1988).
Natureza e sociedade, ambas são figuras discerníveis em pontos de
uma grande escala de complexidade. Em realidade, não são feitas de substâncias essencialmente diferentes; a sociedade é também, de certo modo,
um reino natural5. Mas, como dissemos, há entre a sociedade e os outros
reinos da natureza um salto de complexidade, cuja compreensão exige análise
científica6. Para o problema teórico da consciência, Durkheim não teoriza
um livre-arbítrio metafísico; dirá, ainda em sua primeira grande obra, que
a experiência individual de livre-arbítrio é um produto histórico da divisão
do trabalho social (cf. DURKHEIM, 1893/2004, p. 151-2). Considerando
que a vida social é uma sobredeterminação do mundo natural pelas determinações sociais, não há qualquer possibilidade de uma consciência livre
de determinações; mas, nesse caso, a consciência será tanto maior quanto
maior for o salto para além das contingências imediatas, quanto mais há
integração e individuação, imersão e ulterior separação do indivíduo na
sociedade. A vida social é, nesse sentido, uma elevação acima da natureza.
Os diferentes modos da solidariedade social formam um sistema de forças
que irá sobredeterminar todo determinismo natural; o circuito de sentimentos
sociais que emana da interação dos homens refluirá sobre as sensibilidades
do indivíduo, todo o conjunto de representações sociais irá se sobrepor ao
mundo das coisas e da natureza7.
Um homem livre é aquele que domina seus apetites e não está submetido à natureza. Eis a liberdade humana, na acepção clássica que Durkheim
cultiva, herdada de uma longa tradição do pensamento ocidental: a liberdade
é o domínio, o governo de si mesmo, que faz do homem algo além de um
animal movido por suas sensações imediatas. Daí deriva também, grosso
modo, a concepção clássica da democracia: governo de um povo sobre si
mesmo (que Durkheim reformulará de modo particular, como veremos na
segunda parte desta análise). Não é a ausência de obstáculos objetivos para
a realização de uma pressuposta potência infinita pré-social, uma concepção puramente negativa da liberdade humana e que nos é muito familiar; a
liberdade para Durkheim é, sim, a autonomia adquirida através da coletividade humana, um retorno do homem sobre si mesmo por intermédio da
sociedade, a realização do homem em sua relação com a totalidade social
através da qual ele se tornará um sujeito pleno, porque social, porque pode
se libertar de suas carências naturais e biológicas. Nas palavras de Durkheim:
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
(...) Contudo, além de ser falso que toda regulamentação é produto da coerção,
ocorre que a própria liberdade é produto de uma regulamentação. Longe de ser
uma espécie de antagonista da ação social, dela resulta. Ela é tão pouco uma
propriedade inerente ao estado natural, que é, ao contrário, uma conquista da
sociedade sobre a natureza. Naturalmente, os homens são desiguais em força
física; eles são colocados em condições externas desigualmente vantajosas,
a própria vida doméstica, com a hereditariedade dos bens que implica e as
desigualdades que daí derivam é, de todas as formas da vida social, a que
depende mais estritamente de causas naturais, e acabamos de ver que todas
essas desigualdades são a negação mesma da liberdade. Enfim, o que constitui a
liberdade é a subordinação das forças exteriores às forças sociais; pois é apenas
com essa condição que estas últimas podem se desenvolver livremente. Ora,
essa subordinação é muito mais a inversão da ordem natural. Portanto, ela só
se pode realizar progressivamente, à medida que o homem se eleva acima das
coisas para impor-se a elas, para despojá-las de seu caráter fortuito, absurdo,
amoral, isto é, na medida em que ele se torna um ser social. Porque ele não
pode escapar da natureza senão criando outro mundo, do qual a domina, e
esse mundo é a sociedade (1893, p. 406).
Paralelamente, em As formas elementares da vida religiosa (1912/2000),
o autor demonstra sua forte admiração pelo ascetismo que todas as religiões
pré-modernas mobilizavam: elas mostram que o homem não é dependente
da natureza, que pode infligir-se dor, se por ativamente em privação, e mostrar-se, assim, senhor de si:
(...) Dizíamos no início desta obra que todos os elementos essenciais do
pensamento e da vida religiosos devem se manifestar, pelo menos em
germe, desde as religiões mais primitivas. Os fatos precedentes confirmam
essa afirmação. Se há uma crença tida como específica das religiões mais
recentes e idealistas, é a que atribui à dor um poder santificador. Ora, essa
mesma crença está na base dos ritos que acabam de ser observados. Claro
que ela é desdobrada diferentemente conforme os momentos da história em
que a considerarmos. Para o cristão, é principalmente sobre a alma que ela
agiria, depurando-a, enobrecendo-a, espiritualizando-a. Para o australiano,
sua eficácia é sobre o corpo, aumentando as energias vitais, fazendo crescer
a barba e os cabelos, enrijecendo os membros. Mas, em ambos os casos, o
princípio é o mesmo: admite-se que a dor é geradora de forças excepcionais.
E essa crença não é sem fundamento. Com efeito, é pela maneira como enfrenta a dor que melhor se manifesta a grandeza do homem. Em nenhum
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outro momento este se eleva com mais brilho acima de si mesmo do que
quando doma sua natureza, ao ponto de fazê-la seguir uma direção contrária
à que ela tomaria espontaneamente. Deste modo, ele se singulariza entre
todas as outras criaturas, que vão cegamente para onde o prazer as chama:
deste modo, cria para si um lugar à parte do mundo. A dor é o sinal de que
se romperam alguns dos laços que o prendem ao meio profano; portanto,
atesta que ele se libertou parcialmente deste meio e, por conseguinte, é
justamente considerada como o instrumento da libertação. Assim, quem se
libertou deste modo não é vítima de uma pura ilusão quando se crê investido
de uma espécie de domínio sobre as coisas: ele realmente se elevou acima
delas, exatamente por ter renunciado a elas; é mais forte que a natureza, por
tê-la feito calar-se (DURKHEIM, 1912/2000, p. 335).
Está em jogo na reflexão durkheimiana sobre as sociedades industriais modernas a capacidade do homem para suportar o sofrimento. Vimos
que a vida social, como uma elevação acima da vida biológica, constitui
uma libertação do indivíduo de sua relação com o domínio do mundo
natural, na medida em que nessa vida social ele encontra força suficiente
para colocar-se além das necessidades naturais. Mas o mal das modernas
civilizações está em uma sociedade submetida à “doença da infinitude”
dos desejos8, animada por uma vida econômica em que estão ausentes
quaisquer freios morais e jurídicos. Essas novas necessidades, ainda que
tenham como objeto bens que as sociedades oferecem, ainda que se tratem
de indivíduos devidamente integrados na vida social, não deixam de ter
uma mesma natureza pré-social.
Esses desejos, essas vontades, essas necessidades precisam ser reguladas pela mesma sociedade, dirá Durkheim. Precisarão manter-se ligados aos
objetos que a moralidade comum lhes prescreve, sob pena de sde estenderem
indefinidamente e produzirem insatisfações existenciais insuperáveis na
experiência individual.
A ambiguidade da “integração social” em O suicídio
Entraremos agora comedidamente em uma polêmica que divide os comentadores de Durkheim em um sem-número de posições: o tema da anomia.
Na minha interpretação, é o ponto de vista da oposição entre natureza
e sociedade – mais do que o da oposição entre indivíduo e sociedade – a referência que nos permite compreender plenamente as posições de Durkheim
sobre o tema da anomia.
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
Acredito que boa parte das querelas sobre o tema é apenas expressão de
contradições enfrentadas pelo próprio autor. E uma das principais dificuldades que se enfrenta, ao comentá-lo, refere-se às inúmeras semelhanças entre
os fenômenos do suicídio egoísta e suicídio anômico, que Durkheim tanto
se esforçou em separar. Outra dificuldade comum diz respeito à validade do
argumento que identifica anomia como carências localizadas em sistemas de
normas sociais e jurídicas, a anomia como “normlessness”.
Pretendo oferecer uma chave de entendimento de anomia através de
uma breve análise lógica e teórica desse conceito, apontando linhas muito
gerais de seu desenvolvimento, desvencilhando-o, em primeiro lugar, da
problematização do egoísmo. Para explicar o suicídio egoísta, Durkheim
fala de uma ausência de integração como a patologia própria desse tipo de
suicida. Enquanto que, para explicar o suicídio anômico, aponta para uma
ausência patológica de regulação.
Mas, como mostrarei a seguir, o conceito de “integração social”, por
si mesmo, tem uma ambigüidade, superável apenas por uma intervenção
lógica. Proponho inserir termos novos para melhor marcar essas distinções.
Sugiro uma equivalência entre o termo “regulação”, acionado por Durkheim,
e o fenômeno que chamaremos de “integração objetiva”, entendendo este no
sentido de uma contenção exterior, social, dos desejos e apetites humanos.
Onde Durkheim se refere a “integração”, tout court, devemos entender como
um estado subjetivo do indivíduo em sua auto-representação como parte de
grupos sociais mais amplos, portanto uma “integração subjetiva”. Com essa
intervenção lógica em sua teoria, tentarei solucionar a ambiguidade conceitual da ideia de integração e, assim, manter intacta (o quanto for possível) a
unidade de seu sistema explicativo.
Leituras sofisticadas identificaram diferença radical entre egoísmo e
individualismo (cf. GIDDENS, 1998), na medida em que o egoísmo – ação
do indivíduo para si, para seus interesses, mais do que para outrem – seria
radicalmente diferente da evolução do individualismo como fenômeno moral
das sociedades modernas. Em uma sociedade em que a divisão do trabalho
se encontra em estágio avançado, o processo de diferenciação dos indivíduos entre si se opera tão profundamente que a única coisa que, com tantas
diferenças entre si, resta em comum a todos eles é o simples fato de serem,
cada um, igualmente parte da humanidade. Daí o “culto ao indivíduo”, o
culto ao homem que caracteriza as sociedades modernas.
Esse indivíduo que é cultuado não é, de modo algum, o indivíduo tal
como ele se apresenta com todas as suas particularidades concretas. É, sim,
o indivíduo abstrato, entidade universal, que faz com que um indivíduo conRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
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creto possa reconhecer o sofrimento de outras pessoas com as quais ele não
precisa ter qualquer ligação pessoal, logo, que permite que nos importemos
com o destino de outros indivíduos e mesmo de outros povos.
Sem dúvida, Giddens tem razão em insistir na distinção teórica
entre egoísmo e individualismo. Mas, do ponto de vista da oposição entre
natureza e sociedade, a diferença entre egoísmo e individualismo não é
muito radical: são, sim, aspectos de um mesmo fenômeno, o fenômeno
da integração na vida social.
Dizer – como o faço – que egoísmo é um fenômeno de integração
social objetiva parece chocante, à primeira vista, se lembrarmos que toda a
explicação sobre o suicídio egoísta é assentada no argumento de que é por
falta de integração que o egoísta se mata.
Pois bem, vejamos. O argumento dele sobre o porquê as mulheres, as
crianças e os velhos seriam mais imunes ao suicídio é o de que esses tipos
individuais estão menos integrados na vida social, e que essa integração é condição para o suicídio egoísta. Esta é a mesma razão apresentada para explicar,
inversamente, o aumento regular dos suicídios em épocas mais quentes do
ano: o aumento de intensidade da vida social, uma maior integração social.
O “adulto civilizado” seria o tipo mais suscetível de “sofrer um suicídio” porque
ele é já integrado, mais do que aqueles. Mas, Durkheim, surpreendentemente,
explica a maior incidência do suicídio destes como uma falta de integração
social. Isso porque o adulto homem espera mais para si da sociedade, enquanto
o velho, a criança e a mulher esperam menos.
Assim, a falta de integração seria, ao mesmo tempo e contraditoriamente, causadora de suicídios (no caso do homem adulto) e fator de imunidade
aos suicídios (no caso das mulheres, crianças e idosos). Focando a situação
dos homens adultos, reconhecer teoricamente tais expectativas individuais
implica reconhecermos que o conceito de integração pode se referir, de modo
ambíguo, tanto a um fenômeno objetivo identificável nos grupos sociais
quanto a um fenômeno subjetivo da ordem da experiência individual. É nesse
sentido que se faz necessário operar uma intervenção lógica e inserir uma
distinção conceitual, ausente no esquema explicativo durkheimiano original:
uma distinção entre integração objetiva e integração subjetiva, assim como
suas contrapartes, a desintegração objetiva e a desintegração subjetiva, para
que possamos ultrapassar a contradição teórica da noção de integração social.
O sintoma característico do egoísmo anormal é um enfraquecimento do sentimento individual de pertencimento a algo que esteja além dele
mesmo e, por consequência, um enfraquecimento geral de seus desejos.
Ou seja, é o indivíduo que se representa a si mesmo como fazendo, cada vez
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menos, parte de grupos sociais9, e isso o levaria a um enfraquecimento dos
desejos, inclusive do desejo de viver: já que ser-para-si é muito pouco, de
acordo com Durkheim, é preciso restar qualquer coisa no indivíduo que o
faça ser-para-outrem. O ser-para-si – apesar de ser da ordem da experiência
individual – tem sempre causas sociais: divisão do trabalho social, a mais
comum; maior liberdade de consciência, como em determinadas religiões;
tipo de educação recebida (maior grau de instrução), e, ainda, especificidades
das instituições matrimoniais e domésticas.
Se dizemos que o egoísmo – logo, o suicídio egoísta – é um efeito que
tem como condição de possibilidade a integração social, é no sentido de se
tratar de uma integração objetiva já realizada, da qual decorrem, diretamente,
maiores oportunidades de desenvolvimento de uma consciência individual
que a sociedade moderna oferece ao indivíduo, através da divisão do trabalho
e da evolução dos tipos sociais. Em outras palavras, a sociedade ofereceu ao
indivíduo bem integrado mais ferramentas para formar uma consciência
para-si e assim se emancipar de instituições tradicionais e de suas formas
correspondentes de recompensa por sua integração. O individualismo
advindo do desenvolvimento da sociedade na divisão do trabalho faz com
que o indivíduo não se perceba como parte de algo maior que ele mesmo.
A imagem típica do suicida egoísta traçada por Durkheim é aquela em que
o indivíduo adquiriu plena consciência de si em detrimento da sociedade;
logo, seus representantes típicos estarão nas profissões que envolvem maior
grau de instrução, particularmente as carreiras intelectuais (distintamente,
o típico suicida anômico pertencerá às classes industriais e comerciais).
(DURKHEIM, 1897/2004a, p. 329).
Se há desintegração no egoísmo, como afirma Durkheim, se podemos
ainda falar de desintegração nos casos de suicídio egoísta, ela se dá em um
segundo momento, no momento subjetivo desse processo10. Assim, há uma
integração objetiva para que seja possível haver uma desintegração subjetiva. Que o indivíduo não aja “para-outrem”, ele só pôde não agir assim
porque estava bem integrado. Nesse sentido, um modo de vida egoísta não
é contraditório com uma moral individualista, como enfatizado na oposição
conceitual operada por Giddens (1998); o individualismo moral moderno é
uma condição para o egoísmo. Durkheim não se contradiz quando se refere
ao egoísmo como “individualismo exacerbado”:
Foi a ação da sociedade que suscitou em nós os sentimentos de simpatia e de
solidariedade que nos inclinam aos outros; foi ela que, moldando-nos à sua
imagem, nos imbuiu de crenças religiosas, políticas e morais que governam a
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nossa conduta; foi para poder desempenhar nosso papel social que trabalhamos
nossa inteligência, e foi também a sociedade que, transmitindo-nos a ciência
de que é depositária, nos forneceu os instrumentos desse desenvolvimento.
/ Pelo próprio fato de terem uma origem coletiva, essas formas superiores da
atividade humana têm um fim de mesma natureza. Como derivam da sociedade,
é também a ela que se referem; ou melhor, são a própria sociedade encarnada
e individualizada em cada um de nós. Mas então, para que elas tenham uma
razão de ser a nossos olhos, é preciso que o objeto que visam não nos seja
indiferente. Só podemos, portanto, ter apego às primeiras na medida em que
temos apego à outra, ou seja, à sociedade. Ao contrário, quanto mais nos sentimos desligados dessa última, mais nos desligamos também da vida de que
ela é ao mesmo tempo fonte e objetivo (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 262-3).
Fonte e objetivo: talvez Durkheim precisasse de outra explicação
para o suicídio egoísta que não fosse simples falta de integração; uma que
esclarecesse melhor porque exatamente um indivíduo integrado não se sente
realmente integrado. Tal distinção lógica e, em alguma medida, psicológica,
resolveria os impasses mais comuns impostos à leitura de sua teorização das
correntes suicidógenas. Podemos dizer que o egoísmo diz respeito a processos
de desintegração apenas em um segundo momento, o da auto-representação
do indivíduo objetivamente integrado.
Anomia e as sociedades industriais modernas
Em contraste ao egoísmo, a anomia diz respeito à preocupação essencial
com a ascendência da sociedade sobre o indivíduo. A desintegração objetiva – é este o caso da anomia – acontece no ponto chave da subjetividade
individual e de toda a vida social: na desregulação dos apetites naturais
do homem11. Como vimos, no caso do suicídio egoísta, há uma integração
objetiva, na medida em que o indivíduo tem uma posição determinada na
divisão do trabalho e, em consequência, forma-se nele uma consciência
individual exacerbada, bem como seus apetites podem estar ainda dentro
do escopo de fins atingíveis e alcançáveis; mas há desintegração subjetiva
porque, a despeito dessa integração objetiva, ele não se reconhece como
pertencente a grupos sociais mais amplos. Por outro lado, o indivíduo
anômico teoricamente poderia, a despeito de sua desintegração objetiva,
sentir-se parte de grupos sociais. No caso do egoísmo, há um enfraquecimento dos desejos e apetites do indivíduo – enquanto no caso da anomia,
ao contrário, ocorre um aumento descontrolado desses desejos e apetites
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
por objetos que se tornam cada vez mais próximos do inatingível. É preciso, para a boa compreensão desse problema teórico, que seja enfatizada
essa diferença – entre a diminuição dos desejos, no caso do egoísmo, e sua
potencialização, no caso da anomia – que é decisiva na identificação dos
fenômenos que cada conceito pretende explicar.
A anomia é a forma primeira de desintegração social, por ser, nos termos
que foram aqui usados, uma desintegração do indivíduo. Uma desintegração
objetiva, porque o estado de anomia corresponde a um fracasso da sociedade
que não consegue impor aos seus indivíduos um freio moral que contenha seus
apetites e desejos (que, apesar de poderem ter objetos sociais, são pré-sociais,
como dissemos antes). Um “freio moral”, uma “regulação moral” significam,
principalmente, o fato de não ser uma coerção física o que conseguiria conter
efetivamente tais apetites. Na experiência individual, o fenômeno se manifesta
no sofrimento da infinitude dos desejos que não podem ser saciados. Mas, na
perspectiva mais ampla da vida social, a desintegração objetiva se manifesta
no fracasso da sociedade em impor uma regulação moral às atividades econômicas do mundo moderno e industrializado12.
Nessa interpretação, a teorização do suicídio egoísta está subordinada
– do ponto de vista ético e da grandeza do problema na realidade social – à do
suicídio anômico13. A tese de O suicídio herda diretamente de Divisão do trabalho social a ideia de que o avanço da civilização não é acompanhado de um
aumento da felicidade geral das sociedades. O argumento, ao final da Divisão,
é o de que não é a divisão do trabalho social, por si mesma, a responsável por
essa infelicidade generalizada da sociedade, mas são as formas patológicas
da divisão do trabalho que exigem coerção física e uso de violência direta,
quando a estrutura social não corresponde à natureza dessa sociedade. Nas
sociedades avançadas – que têm no individualismo seu mais alto ideal moral –,
a desigualdade de oportunidades dos indivíduos impede que uma grande parte
dos talentos naturais de cada um encontre seu lugar nessa estrutura. E esta é
a origem dos conflitos sociais (e essa é a razão primordial porque Durkheim
sempre foi um defensor da abolição da instituição da herança). A “guerra de
classes” das sociedades industriais é o principal sintoma dessa desigualdade
de origem. Logo, Durkheim não via, como Marx, o mal do sistema econômico na separação entre capital, de um lado, e trabalho, do outro, mas sim na
desigualdade das oportunidades de acesso dos indivíduos às posições sociais
(cf. DURKHEIM, 1893/2004, livro III, capítulo II).
Isso quer dizer que, se a identificação que a tradicional leitura positivista
sobre Durkheim realiza acerca da anomia como uma ausência (temporária ou
não) de normas (“normlessness”) não estiver totalmente errada, ela precisa
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ser muito bem “recalibrada” para incluir o problema que está no coração
da anomia: o da justiça, não o da execução de normas; não é a regra nem a
lei, mas a equidade e o sentimento do direito. É sobre o que é a proporção
justa entre o que cada um merece em relação ao que a cada um é oferecido
pela sociedade, e não o adensamento das normas sociais ou jurídicas que
envolvem o indivíduo. Nas palavras finais da Divisão do trabalho social,
Durkheim deixa clara a prevalência do valor da justiça em relação ao mero
enquadramento jurídico-normativo:
(...) Mas não basta haver regras; além disso, elas têm de ser justas e, para tanto,
é necessário que as condições externas da concorrência sejam iguais. Se, por
outro lado, recordarmos que a consciência coletiva se reduz cada vez mais
ao culto do indivíduo, veremos que o que caracteriza a moral das sociedades
organizadas, comparadas com a das sociedades segmentárias, é que ela tem
algo mais humano, portanto, mais racional. Ela não prende nossa atividade
a finalidades que não nos concernem diretamente; ela não faz de nós os servidores de forças ideais e de natureza diferente da nossa, que seguem seus
caminhos próprios sem se preocupar com os interesses dos homens. Ela nos
pede apenas que sejamos ternos com nossos semelhantes e que sejamos justos,
que cumpramos nossa tarefa, trabalhemos para que cada um seja convocado
para a função que pode desempenhar melhor e receba o justo preço de seus
esforços (DURKHEIM, 1893/2004, p. 430).
É possível, ainda, colocar o problema da anomia em outros termos,
através de outra problematização teórica do sociólogo. É conhecida a insistência de Durkheim – nos seus últimos trabalhos especialmente, mas de
modo nenhum ausentes nos primeiros – na categoria do sagrado. Sua teoria
se desenvolveu cada vez mais no sentido de ver nela a origem social de todo
valor – sejam valores morais, econômicos ou estéticos. Compreender a origem
religiosa de todo valor significa identificar na operação de separação entre
coisas sagradas e coisas profanas a operação primeira, mais radical e bem
definida de estabelecimento de heterogeneidades entre as coisas classificáveis. Uma se define em relação à outra; as coisas sagradas serão destacadas
e protegidas do resto do mundo profano.
Pois bem, a vida econômica é o mundo profano por excelência. Diz
respeito ao que o homem tem de mais próximo da natureza e das necessidades
que o prendem ao seu ciclo biológico. Nas sociedades primitivas australianas,
Durkheim identificou a separação nítida entre as duas ordens, biológica e
social, na separação em duas fases temporais distintas para as atividades que
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
correspondem a uma e outra (DURKHEIM, 1912/2000, p. 325). Uma fase
em que cada um se ocupa de seus afazeres ordinários: alimentação, higiene e cuidados com a saúde. E outra, em que os indivíduos se reúnem para
suas celebrações religiosas, que atestam e reforçam a unidade do clã. Para
o autor, o trabalho, como atividade marcada pelo ritmo da vida biológica, é
essencialmente profano:
[É] que o trabalho é a forma eminente da atividade profana, não tem outra
finalidade aparente a não ser prover às necessidades temporais da vida; ele só
nos põe em contato com coisas profanas. Ao contrário, nos dias de festa, a vida
religiosa atinge um grau de excepcional intensidade. Portanto, o contraste entre
as duas formas de existência, nesse momento, é particularmente acentuado; por
conseguinte, elas não podem ser vizinhas (DURKHEIM, 1912/2000, p. 325-6).
É a inversão entre o caráter sacro da sociedade e o caráter profano da
economia – na medida em que é a sociedade que se submete à economia, e
não o contrário – a mais grave “doença moral” da modernidade. O que horrorizava Durkheim nas sociedades industriais modernas era a ausência de
qualquer regulação do mundo econômico. Enquanto a maioria das classes
de profissões liberais tem seus códigos regulamentares e uma ética mais ou
menos bem estabelecida, tal como médicos e jornalistas, já as classes profissionais ligadas ao mundo da indústria e do comércio (que englobam a grande
maioria da população) se caracterizam pela ausência de quaisquer regras e
moralidades bem definidas, unicamente movidas pelo fim de enriquecer (cf.
DURKHEIM, 1893/2004, p. VI-IX e 1897/2004b).
É a anomia o traço distintivo das sociedades industriais. A modernidade é uma espécie de caixa de pandora que libertou os apetites e desejos do
jugo da sociedade, que fez do desenvolvimento econômico seu maior ideal.
Esse desejo desenfreado de acumular riquezas se torna a finalidade de todas
as nações civilizadas; o egoísmo utilitário torna-se a norma, o que existe de
valioso na vida social – a comunhão sagrada do indivíduo com a sociedade
– é rebaixado. Uma vida econômica desregulada significa uma despotencialização do ser social, um retorno insidioso dos grilhões da natureza que se
manifesta nesses apetites viciosos:
(...) Com efeito, a religião perdeu a maior parte do seu Império. O poder
governamental, em vez de ser o regulador da vida econômica, tornou-se
seu instrumento e servidor. As escolas mais opostas, economistas ortodoxos e socialistas extremados, associam-se para reduzi-lo ao papel de
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intermediário, mais ou menos passivo, entre as diferentes funções sociais.
Uns querem torná-lo simplesmente o guardião dos contratos individuais;
outros deixam-lhe a tarefa de manter a contabilidade coletiva, ou seja, de
registrar as demandas dos consumidores, de transmiti-las aos produtores, de inventariar a renda total e de distribuí-la segundo uma fórmula
estabelecida. Mas uns e outros lhe recusam qualquer atribuição para que
subordine o resto dos órgãos socais e os faça convergir para um objetivo que
os domine. De ambas as partes, declara-se que as nações devem ter como
único ou principal objetivo prosperar industrialmente; é isso que implica
o dogma do materialismo econômico, que serve igualmente de base a esses
sistemas, aparentemente opostos. E, como essas teorias só fazem exprimir
a situação da opinião, a indústria, em vez de continuar sendo considerada
como um meio com vistas a um fim que a ultrapassa, tornou-se o fim supremo dos indivíduos e das sociedades. Mas então os apetites que ela põe
em jogo viram-se livres de toda autoridade que os limitasse. Essa apoteose
do bem-estar, santificando-os, por assim dizer, colocou-os acima de toda lei
humana. É como se retê-los fosse uma espécie de sacrilégio (DURKHEIM,
1893/2004a, p. 324-5).
O estado de anomia tem em seu centro o ideal do progresso ilimitado,
toda a moral desenvolvimentista típica da modernidade. Esse ideal implica
uma profanação da sacralidade da sociedade, uma sacralização da vida profana
da economia. O que é, em primeiro lugar, a sociedade senão uma superação
da espécie humana de sua condição biológica que, sem ela, faria dos homens
apenas uma poeira dispersiva de indivíduos? O homem biológico pré-social
está preso ao mundo sensível, é refém de seus instintos, flutua de um lado
para o outro por causas externas imediatas, e a consciência possibilitada pela
ascensão da sociedade é, neste sentido, um salto para além do imediato. Nada
logra aniquilar a animalidade do homem em prol do tipo civilizado – isso
porque a sociedade é incapaz de esmagar a potência infinita da natureza – e
é por isso também que todo esforço feito no sentido de domá-la é legítimo
na ética durkheimiana.
O inconsciente histórico-social
Para esclarecer o problema da liberdade humana e do valor moral da civilização, precisamos encarar a ótica durkheimiana sobre a história e seus
movimentos, o que inclui sua problematização das mudanças sociais. É o
que faremos a partir de agora, na segunda parte desta revisão conceitual.
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
Durkheim costuma ser imaginado como um sociólogo que não dá a
devida importância para o movimento histórico, preocupado demais com
uma estática social, que entenderia a sociedade como um sistema sincrônico
de normas que operam em torno do indivíduo. Foi no conflito entre uma
leitura funcionalista da obra durkheimiana (por Parsons e pelas gerações que
se seguiram) e seus opositores no campo acadêmico (nos EUA e em outros
países) que, de algum modo, se obscureceu a preocupação durkheimiana em
mostrar que a sociologia é indubitavelmente uma ciência histórica.
Há uma coleção extensa de afirmações de Durkheim sobre a relevância
do material histórico (cf. BELLAH, 1959). No entanto, mais importante do que
assinalarmos tais afirmações é relembrarmos sua concepção da moral como
produto social e histórico14. Em As regras do método sociológico (1895/1978),
uma das mais importantes asserções de Durkheim é a de que a história não
pode ser entendida por causas finais, mas sempre por causas eficientes. Esta
é uma acepção que o autor aciona contra a ideia de Comte segundo a qual
a evolução da humanidade seria a realização de uma natureza humana de
aperfeiçoamento progressivo. Se a compreensão histórica é submetida à
realização de uma natureza humana, diz Durkheim, qualquer que ela seja,
não pode existir a menor relação de causalidade entre os elementos do real
que compõem a explicação (1895/1978, p. 102). Nas suas palavras:
(...) Pois, a menos que postulemos uma harmonia pré-estabelecida verdadeiramente providencial, não se há de admitir que o homem, desde sua origem,
traga em si, em estado virtual mas prontas para despertar ao apelo das circunstâncias, todas as tendências cuja oportunidade se foi fazendo sentir no
começo da evolução (DURKHEIM, 1895/1978, p. 81).
Esta compreensão de Durkheim é uma grave investida contra a ideia
de um horizonte teleológico no movimento histórico; uma crítica que, se
se anuncia inicialmente contra Comte, também serve como crítica ao materialismo histórico. Neste caso, estaria posta no horizonte histórico a ideia
de uma ligação vital do homem com a natureza, que se realizaria através do
trabalho social, mas que seria rompida com a alienação deste homem pela
propriedade privada. Sob esta ótica, o movimento histórico ganha inteligibilidade na medida em que é em relação à revolução – que emancipará
este homem fraturado – que aferir-se-á a relevância dos acontecimentos e
separar-se-ão os elementos estruturantes de possibilidades históricas futuras. Assim, o problema desta forma de teorização seria o de que toda sorte
de acontecimentos que não se vinculam diretamente ao esquema da luta de
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classes se perderia em uma insignificância histórica proporcional à distância
desse núcleo filosófico-histórico.
Durkheim compartilha com Marx a ideia – famosa em seu 18 Brumário
de Luis Bonaparte – segundo a qual são os homens que fazem a história; não
como querem, mas sob condições históricas pré-determinadas. Debatendose com uma perspectiva marxista no terreno da filosofia da história, apesar
de suas divergências com um determinismo econômico do marxismo vulgar,
Durkheim mostra sua simpatia por uma concepção da história que pressuponha desconfiança das percepções individuais dos agentes históricos, e que
encontre o substrato social das representações que povoam as épocas:
Acreditamos ser uma ideia fértil explicar a vida social não pela concepção que
fazem dela os que nela participam, mas por aquelas causas mais profundas
que iludem a consciência. Pensamos, também, que essas causas devem ser
procuradas principalmente na maneira em que os indivíduos, associando-se
juntos, são agrupados. Parece-nos mesmo que é sob esta condição, e por esta
condição somente, que a história pode ser uma ciência, e que deste modo a
sociologia pode existir. Porque, para que as representações coletivas poderem
ser inteligíveis, elas devem de fato advir de algo. Como elas não podem constituir um círculo fechado, a fonte da qual elas derivam deve ser encontrada
fora deles mesmos. Ou a consciência coletiva está flutuando em um vácuo,
uma espécie de absoluto irrepresentável, ou então faz parte do resto do mundo
por um substrato intermediário do qual, conseqüentemente, ela depende.
Por outro lado, do que pode ser feito este substrato senão dos membros da
sociedade, combinados socialmente? Esta proposição nos parece cristalina
(DURKHEIM, 1986, p. 132-3. Tradução minha).
As representações individuais não podem informar sobre a realidade
social senão secundariamente, quando matizadas e depuradas pelo olhar do
investigador. As teses de O suicídio (1897/2004a) partem deste princípio de
desconfiança do informante para que o suicídio se torne um objeto sociológico. As razões que o suicida acredita e (quando possível) apresenta para
justificar seu ato podem ser as mais sinceras, mas nem por isso serão as mais
verdadeiras no que diz respeito às suas causas objetivas (cf. DURKHEIM,
1897/2004a, p. 166-7).
A desconfiança do informante é um dos mais discretos (e não
obstante fundamental) legados dos autores clássicos, e está assentada em
outro princípio vital: o de que a sociologia, como atividade científica, deve
ter como primado e meta libertar-se do senso comum para explicá-lo (cf.
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
DURKHEIM, 1895/1978). O senso comum (as representações individuais,
em geral) é opaco, complexo em sua natureza, e deve ser decifrado15.
A consciência individual está longe de ser um “livro aberto”, já que há,
em cada um, profundezas que raramente chegam à claridade dos pensamentos inteligíveis (cf. DURKHEIM, 1897/2004a, p. 400-1). A concepção
de um inconsciente histórico-social, todo o conjunto de determinações
inconscientes sobre a consciência, está ligada visceralmente aos axiomas
de sua sociologia.
A intensidade das mudanças sociais será tanto maior quanto mais
complexa uma sociedade, pois se torna possível cada vez mais formas diferentes de combinação entre seus elementos. O uso recorrente do termo
“evolução” por Durkheim não pode ser confundido com a ideia de uma
evolução unilinear16, que vê as diferentes sociedades humanas compondose, umas ao lado das outras, como pontos de escala de uma mesma linha
evolucionária. Diz-nos Durkheim:
(...) Ora, não é nada impossível que sociedades de espécies diferentes, situadas em nível desigual na árvore genealógica dos tipos sociais, se reúnam de
maneira a formar uma espécie nova. Pelo menos um caso é conhecido: o do
Império Romano, compreendendo em seu seio os povos de natureza a mais
diversa (1895/1978: 73-4).
Na análise que se segue, assinalamos três grandes fontes de explicação
das mudanças sociais e históricas na teoria sociológica de Durkheim. Uma (1)
que decorre diretamente das individuações, uma força histórico-natural em
essência. Outra (2) que decorre das interações sociais. Essas duas primeiras
são movimentos típicos das forças do inconsciente histórico-social e em
nenhuma delas se pressupõe uma ação consciente e coordenada em vista
de seus efeitos globais na vida social. É em sentido oposto às duas primeiras
que se faz visível uma terceira (3), decorrente da ação consciente do Estado;
teorização que será realizada nos últimos passos de seu percurso intelectual.
A força natural das individuações
Para a questão de saber como as individuações são promotoras diretas de mudanças sociais, tomo como exemplo a figura do criminoso invocada em algumas
passagens de Durkheim17. Isso porque o criminoso é uma das figuras extremadas
de uma individuação de tal modo realizada que o coloca em contradição com
os preceitos mais fundamentais da sociedade a que pertence.
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O ato criminoso ofende a consciência coletiva no que ela tem de mais
unitário e sólido. Em reação, a punição do criminoso tem o caráter religioso
de uma separação radical (simbólica e física) entre ele e o restante da sociedade – há um caráter expiatório na vingança pública que a pena realiza.
A punição dos crimes é reclamada pela coletividade por sua ofensa “a algo
sagrado que sentimos de maneira mais ou menos confusa, fora e acima de
nós” (DURKHEIM, 1893/2004, p. 72); o caráter expiatório da pena serve para
reequilibrar o universo de valores sagrados e coisas profanas e restaura a
consciência coletiva. O criminoso se individua em formas inaceitáveis para
a consciência coletiva e faz com que toda a sociedade se invista contra ele.
Assim, toda a sociedade participa da punição. Por outro lado, na medida
em que o crime e o criminoso cometem essa ofensa à consciência coletiva,
produzem efeitos benéficos para a vida social. Impedem que a moralidade
e o direito se cristalizem e se fixem numa forma determinada: os mantêm
maleáveis que é condição para sua evolução em novas formas:
(...) Além dessa utilidade indireta, acontece que o crime desempenha ele
próprio um papel útil nesta evolução. Não apenas mostra que o caminho está
aberto para as mudanças necessárias, como ainda, em certos casos, prepara
diretamente essas mudanças. Onde existe, é porque os sentimentos coletivos
estão no estado de maleabilidade necessária para tomar nova forma; e, ainda mais, contribui também às vezes para tomar nova forma; e, ainda mais,
contribui também às vezes para predeterminar a forma que tomarão. Com
efeito, quantas vezes não é ele uma antecipação da moral que está para vir,
um encaminhamento para o que tem que ser (DURKHEIM, 1895/1978, p. 61).
Há, portanto, na individuação uma força histórica própria que, às
vezes, esbarra no sistema jurídico-normativo, constituindo-se como um
crime. Entre crime e história, há, assim, uma tensão conceitual peculiar, na
medida em que dificilmente as grandes mudanças sociais não esbarrarão
nas leis e regulamentos estabelecidos. Entre um ato criminoso e um acontecimento histórico reconhecido há somente a diferença no resultado final
dessa tensão entre o indivíduo e a moralidade comum, porque o efeito de
desestabilização moral é da mesma natureza, apesar de poder variar quanto
aos preceitos morais ofendidos.
O crime é uma ação individual em oposição à totalidade social; a
responsabilidade penal é individual e o sistema penal se fecha sempre sobre
indivíduos – e mesmo o efeito que se procura realizar, a punição realiza, para
além da violência física, a separação simbólica do condenado para com o
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resto da sociedade, ao representar o ato julgado como ofensa de um contra
todos. É este o limiar que separa, conceitualmente, o crime do que compreenderíamos como um conflito político: a realização ou não da situação penal
de todos contra um. Com efeito, a teoria sociológica de Durkheim enfrenta
com muita dificuldade a análise de grupos sociais constituídos em relações
de conflito menos pautadas por uma verticalidade tão radical18 quanto a de
toda a sociedade contra um indivíduo.
A teorização do crime proposta para explicar a solidariedade mecânica
tem a vantagem de fundamentar o problema na consciência coletiva, nos
estados objetivados dessa consciência na legislação penal, que, em princípio,
coloca no segundo plano da explicação a especulação sobre as disposições
individuais do criminoso. O crime é fenômeno normal e toda sociedade produz
seus criminosos; o ponto de partida para a compreensão não é o criminoso
e, sim, o que a sociedade considera ofensivo aos seus preceitos mais valiosos.
E, na sociedade moderna, o homicídio é crime absolutamente intolerável para
a consciência moral coletiva, na medida em que há um individualismo moral
bem desenvolvido, de modo distinto de outras épocas em que a intolerância,
no mais das vezes, se referia à confrontação de prescrições religiosas.
Para o problema que nos ocupa agora, as individuações criminosas
ainda têm em suas causas elementos pré-sociais; são, também, expressões
do enfraquecimento integrativo da sociedade e o reaparecimento dos apetites
naturais do indivíduo. Não há, na explicação de Durkheim sobre o crime,
uma causalidade positiva de origem social que possa explicar as disposições
subjetivas individuais do criminoso. Essa explicação não pode ser oferecida
senão no reaparecimento de uma natureza mal contida; assim, não raro,
encontrar-se-á uma razão extra-social para compor sua etiologia. É por
isso que na explicação do homicídio, ao comparar esse fenômeno com o
do suicídio (no penúltimo capítulo de O suicídio), em busca de correlações
precisa se fundar em uma caracterização tão frágil do homicídio, que permanecerá sendo um retorno da natureza reprimida do indivíduo e fará de
todo homicídio um crime meramente passional.
Outro exemplo, ainda, da força histórico-natural das individuações, é o
elogio do neurastênico que Durkheim apresenta incidentalmente em O suicídio.
Não se trata de um louco propriamente dito. A loucura, para Durkheim, é um
fenômeno puramente biológico, em suas causas e seus efeitos, como um “problema nos nervos”, por assim dizer. Nesse sentido, o neurastênico não chega a
ser um louco completo, mas alguém a meio caminho da loucura. Trata-se de
um indivíduo com uma constituição biológica frágil e, por conseguinte, uma
sensibilidade e uma consciência egoísta bem desenvolvidas:
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(...) Sua debilidade muscular, sua sensibilidade excessiva, que o tornam impróprio para a ação, designam-no, pelo contrário, ás funções intelectuais, que,
também elas, requerem órgãos apropriados. Do mesmo modo, se um meio social
por demais imutável só pode entrar em choque com seus instintos naturais, na
medida em que a própria sociedade é móvel e só pode se manter sob condição
de progredir, ele tem um papel útil a ser desempenhado, pois é, por excelência,
o instrumento do progresso. Justamente por ser refratário à tradição e ao jugo do
hábito, ele é fonte eminentemente fecunda de novidades. E, como as sociedades
mais cultivadas são também aquelas em que as funções representativas são as
mais necessárias e as mais desenvolvidas, e como, ao mesmo tempo, por causa
de sua grande complexidade, uma mudança quase incessante é condição de sua
existência, no momento preciso em que os neurastênicos são mais numerosos é
que eles têm, também, mais razões de ser (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 59-60).
(...) Ora, hoje a neurastenia é considerada antes uma marca de distinção do que
uma tara. Em nossas sociedades refinadas, afeitas às coisas da inteligência, os
nervosos constituem quase uma nobreza (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 220).
O neurastênico – “instrumento do progresso” – distingue-se do
criminoso por ser um ator intelectual e consciente, enquanto o criminoso,
particularmente o homicida, é essencialmente um ser passional. O neurastênico, conforme Durkheim, encarna bem as funções intelectuais e criativas
requeridas pela sociedade, e é um protótipo individual do terceiro tipo de
mudança social que veremos: a ação social consciente do Estado. Mas, a ação
individual é sempre (com ilustres exceções19) ação de baixa potência, que, no
mais das vezes, atrai, por parte da sociedade, a ira coletiva que o neutraliza
ou o simples desprezo displicente.
O poder das interações
Em contraste com essa relativamente baixa potência de mudança históricosocial que é a força natural da individuação, a segunda modalidade decorre
diretamente das interações sociais, potencialmente mais promissoras na
explicação histórica. Trata-se do fenômeno social da efervescência coletiva, na
formulação de As formas elementares da vida religiosa (1912/2000, capítulo
VII do livro II), seu livro mais vibrante, em minha opinião.
Ressalte-se que a elaboração teórica dessa força histórica só foi possível
na medida em que Durkheim realizou um redirecionamento teórico em
direção a uma explicação que confere às representações sociais um peso
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muito maior do que tinha antes. As representações sociais compartilhadas
promoverão a estimulação geral dos sentimentos sociais, mobilizados pelo
mundo simbólico.
Na formulação sobre a efervescência social, Durkheim explica que
a experiência dos indivíduos dentro da vida social é sempre acompanhada
por um acréscimo da vontade e da energia psíquica, especialmente quando
estão em “harmonia moral” com a sociedade (DURKHEIM, 1912, p. 216), na
medida em que recebem “a simpatia, a estima, a afeição que seus semelhantes
têm por eles”. A interação mais próxima entre os indivíduos multiplica suas
disposições subjetivas. Em determinadas circunstâncias, essa “energia social”
veiculada pela intensa vitalidade da coletividade transborda a experiência
ordinária do indivíduo:
Há períodos históricos em que, sob a influência de uma grande comoção coletiva,
as interações sociais tornam-se bem mais freqüentes e ativas. Os indivíduos se
procuram, se reúnem mais. Disso resulta uma efervescência geral, característica
das épocas revolucionárias ou criativas. Ora, essa superatividade tem por efeito
uma estimulação geral das forças individuais. Vive-se mais e de outra forma do
que em tempos normais. As mudanças não são apenas de nuanças e de graus; o
homem torna-se outro. As paixões que o agitam são de tal intensidade que não
podem se satisfazer senão por atos violentos, desmesurados: atos de heroísmo
sobre-humano ou de barbárie sanguinária. É o que explica, por exemplo, as
Cruzadas e tantas cenas, sublimes ou selvagens, da Revolução Francesa. Sob a
influência da exaltação geral, vemos o burguês mais medíocre ou mais inofensivo
transformar-se ou em herói, ou em carrasco (DURKHEIM, 1912/2000, p. 216).
A efervescência é um aumento das vontades humanas que tem como
causa geradora a própria relação direta entre os indivíduos, e não os apetites
naturais (pelo menos não de modo direto e imediato). Mas em que medida
há uma diferença de natureza entre os sentimentos movidos pela interação
social dos indivíduos e aqueles experimentados unicamente pela natureza
biológica do homem? A resposta mais coerente a essa pergunta seria: entre
sentimentos sociais e sensibilidades individuais há um segundo salto de
complexidade, tal como o que havia entre conjuntos de indivíduos biológicos
dispersos em direção à vida social organizada. Haveria, portanto, segundo
Durkheim, uma relação complexa entre representações e sentimentos, tanto
no âmbito individual quanto no coletivo.
O problema ético torna-se mais complicado a partir desse ponto. É que a
vida social, em formulação anterior, se encontrava em um jogo de soma zero com
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o mundo natural. Maior integração na vida social significava um maior controle
das paixões naturais, de onde surgiam as mais altas potencialidades humanas,
os símbolos da superioridade da civilização. É este o postulado ético-moral de
Durkheim. Na oposição entre sociedade e natureza, constitutiva não apenas do
pensamento deste autor – pois é uma das questões cruciais de toda a filosofia
ocidental –, ser civilizado não podia significar outra coisa. Quando Durkheim
encontra o problema da efervescência social, das explosões apaixonadas em
movimentos intestinos da sociedade, acaba por inserir uma complicação
radical no problema teórico da soma zero entre civilização e natureza sobre o
qual suas próprias posições éticas e morais estavam assentadas. Prenuncia-se
a insustentabilidade da oposição simples entre natureza e sociedade.
A análise da efervescência social coloca o problema de encontrar
as paixões humanas, a irracionalidade, os desejos e emoções se movendo
nas fibras mesmas da ordem social. Essa problematização se, por um lado,
pode resolver alguns impasses de uma concepção puramente normativa
da vida social, tradicional de seus posteriores leitores funcionalistas, por
outro lado, apresenta dificuldades teóricas. A análise da mudança social
ganha instrumentos novos para explicar grandes mudanças históricas,
especialmente o problema das revoluções sociais, dá um primeiro passo
para tornar possível uma nova explicação de mutações no âmbito das representações sociais – colocada agora nos termos das grandes transferências
do Sagrado (cf. HUNT, 1990).
Durkheim tornou mais complexo o sistema explicativo assentado na
oposição entre natureza e sociedade. As representações sociais deixaram de
ser meras expressões de um substrato social anterior e com uma realidade
mais vigorosa na explicação. É verdade que as representações sociais não deixam de ter como condição de existência esse substrato, mas, por outro lado,
elas se tornaram também determinantes da associação entre os indivíduos.
A autonomia relativa das representações é uma novidade não anunciada pelo
próprio autor como tal, apresentada como se fosse uma simples continuação
de suas formulações anteriores.
Essa novidade foi desenvolvida, progressiva e rigorosamente, no correr
de suas obras20. Seu estudo das religiões australianas (Formas elementares
da vida religiosa) é fundamental para essa virada, mostrando a importância
das representações totêmicas, em particular, e das representações religiosas,
em geral, para a reprodução da unidade essencial da sociedade:
Ao mostrar na religião uma coisa essencialmente social, de maneira nenhuma
queremos dizer que ela se limita a traduzir, numa outra linguagem, as formas
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materiais da sociedade e suas necessidades vitais imediatas. Certamente, consideramos uma evidência que a vida social depende de seu substrato e traz sua
marca, assim como a vida mental do indivíduo depende do encéfalo e mesmo
do organismo inteiro. Mas a consciência coletiva é algo mais que um simples
epifenômeno de sua base morfológica, da mesma forma que a consciência
individual é algo mais do que uma simples eflorescência do sistema nervoso.
Para que a primeira se manifeste, é preciso que se produza uma síntese sui
generis das consciências particulares. Ora, essa síntese tem por efeito criar
todo um mundo de sentimentos, de ideias, de imagens que, uma vez nascidos,
obedecem a leis que são próprias. Elas se atraem, se repelem, se fundem, se
segmentam e proliferam sem que essas combinações todas sejam diretamente
comandadas e requeridas pelo estado da realidade subjacente (DURKHEIM,
1912/2000, p. 468).
Ao estabelecer articulações entre representações sociais e sentimentos
sociais experimentados pelo indivíduo, Durkheim opera uma mudança sutil
na problematização da natureza dos fenômenos emocionais, os desejos, as
paixões e de tudo o que tradicionalmente se reconhece como irracional.
É que se, como vimos na problematização da anomia, esses desejos humanos eram compreendidos ainda em sua natureza biológica individual
(desejos naturais por objetos naturais ou sociais), agora os sentimentos
são entendidos a partir de uma origem propriamente coletiva – e por isso
mesmo seus efeitos serão mais intensos nas mudanças sociais, como com
as efervescências revolucionárias e criativas. Eles ainda têm como matéria a
constituição orgânica do indivíduo, mas apenas da mesma forma que a vida
social precisa ter indivíduos vivos. É nesta formulação da efervescência social
que as paixões humanas podem, em pleno direito, ser consideradas sociais.
Assim, põe-se uma inquietação: como o problema da origem – natural
ou social – das emoções impacta o posicionamento ético de Durkheim, comprometido com a civilização e seus altos valores? Na análise da anomia nas
sociedades industriais, o problema do desenfreamento das paixões individuais
se resolve sempre no sentido do fortalecimento da disciplina: a regulação
das vontades do indivíduo e o reforço da autoridade moral da sociedade.
É uma contenção das emoções do indivíduo pela sociedade. Os fenômenos
de sentimentos sociais não podem se enquadrar nesse esquema ético; em
primeiro lugar, pelo seu caráter social. Mas, principalmente, a consequência
teórica que podemos prever é que uma alta intensidade da vida social pode
não ser necessariamente saudável, pois as efervescências sociais contêm uma
ambiguidade básica, uma ambivalência essencial que não podemos perder de
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vista: elas podem tanto conduzir as sociedades a uma benéfica solidariedade
quanto a barbáries sanguinárias, como o Terror em meio à Revolução Francesa
(SCHILLING & MELLOR, 1998, p. 195). Durkheim assinala a ambivalência
do acionamento das paixões pela intensificação efervescente da vida social:
A efervescência chega muitas vezes a provocar atos inusitados. As paixões
desencadeadas são de tal impetuosidade que não se deixam conter por nada.
As pessoas se sentem fora das condições ordinárias da vida e têm tanta consciência disso que experimentam como que uma necessidade de colocar-se
fora e acima da moral ordinária. Os sexos se juntam contrariamente às regras
que presidem ao comércio sexual. Os homens trocam suas mulheres. Às vezes
até uniões incestuosas, que em tempos normais são julgadas abomináveis e
severamente condenadas, se realizam ostensiva e impunemente (DURKHEIM,
1912/2000, p. 222).
A anomia sexual, tanto no sentido da desregulação das paixões quanto no
sentido de uma “normlessness” (uma carência localizada de normas que operam
ao redor do indivíduo), emerge justamente no momento em que a vida social
se encontra em sua mais alta intensidade. Como poderia isso ser compatível
com todas as considerações anteriores sobre a integração social e sua oposição
elementar à realidade natural? É um avanço teórico na trajetória do autor, sem
dúvida. Mas, como pode a irracionalidade dos sentimentos e sensibilidades enraizar-se nas fibras mesmas da sociedade e, ainda assim, o ideal da civilização,
fundado em sua oposição à natureza, permanecer intacto no horizonte moral
da modernidade? Nessa perspectiva dos sentimentos sociais, depois de tudo o
que vimos de sua postura sobre a anomia, como poderia essa anomia, alojada
no coração mesmo da civilização moderna, seguir sendo indesejável? Eis como
podemos ver o problema ético que sua virada teórica implica.
A ação racional do Estado
Na sua teorização sobre a relação entre natureza e sociedade, Durkheim
oferece mais alternativas à explicação sociológica, ainda que, ao mesmo
tempo, ameaçando a solidez de suas proposições éticas. Mesmo assim, era
ainda possível salvar a perspectiva ética que se fundava na oposição entre
natureza e sociedade: através de uma formulação renovada do Estado ele
poderia fazer esse resgate ético-teórico.
Na complexidade do sistema de forças históricas, os movimentos
internos da sociedade estão todos no nível de um inconsciente históricoRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
social que, se olharmos do ponto de vista da totalidade social, se move com
a mesma espontaneidade dos sistemas ecológicos. E as forças históricas
promovidas pelas duas modalidades que vimos até agora – a força históriconatural da individuação e a força histórico-social que decorre da interação
dos indivíduos – são, no essencial, forças históricas inconscientes. Mas, se há
um inconsciente histórico-social, é necessário que haja mais níveis de consciência teorizáveis. Surge na arquitetura teórica de Durkheim uma teoria da
opinião pública. Ele formula essa teoria a partir da percepção da sociedade
como uma estrutura que tem em sua base os pensamentos sociais difusos
da massa; esse plano da opinião pública é constituído “dos sentimentos,
das aspirações, das crenças que a sociedade elaborou coletivamente e que
estão disseminados em todas as consciências” (DURKHEIM, 1897/2004b,
p. 111) – enquanto, que, na extremidade superior dessa estrutura, estaria o
Estado, entendido como um órgão do pensamento social21. E esse Estado se
define, não por ter o monopólio do uso legítimo da violência física – como
na formulação weberiana clássica –, mas por ser um órgão cognitivo, cuja
função primeira não é agir, e sim pensar.
Eis o que define o Estado. É um grupo de funcionários sui generis, no seio
do qual se elaboram representações e volições que envolvem a coletividade,
embora não sejam obra da coletividade. Não é correto dizer que o Estado
encarna a consciência coletiva, pois esta o transborda por todos os lados.
É em grande parte difusa; a cada instante há uma infinidade de sentimentos
sociais, de estados sociais de todo tipo de que o Estado só percebe o eco
enfraquecido. Ele só é a sede de uma consciência especial, restrita, porém
mais elevada, mais clara, que tem de si mesma um sentimento mais vivo.
Nada de obscuro e vago como as representações coletivas que se espalham
em todas as sociedades: mitos, lendas religiosas ou morais, etc. Não sabemos
de onde vêm, nem para onde vão; não as deliberamos. As representações
que vêm do Estado são sempre mais conscientes de si mesmas, de suas
causas e seus objetivos. Foram concertadas de maneira menos subterrânea
(DURKHEIM, 1897/2004b, p. 70).
Ao tratar, teoricamente, o Estado como órgão consciente do pensamento social, Durkheim insere uma contradição inesperada para o leitor
que fixou demasiada atenção na Divisão do trabalho social (1893/2004).
Em sua obra inaugural, ele chega a fazer menção ao Estado como sujeito
social autônomo: quando trata do aparecimento dos chefes políticos em
meio à massa indistinta de indivíduos nas sociedades onde predomina
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André Oda
175
a solidariedade mecânica22. Mas é apenas uma caracterização parcial,
na medida em que ele está conjecturando sobre as origens primevas (ou
primitivas) do Estado, enquanto em sua expressão moderna, dentro do
esquema da solidariedade orgânica, o Estado é essencialmente o conjunto
de subsistemas administrativos que se decompõem na medida em que se
especializam em órgãos próprios – da justiça, da educação, da saúde, de
assistência, de transportes, de comunicações, de serviços estatísticos, de
diplomacia (1893/2004, p. 207-211). Em vista dessa primeira formulação, é
surpreendente que o Estado seja reformulado como sujeito social consciente
e autônomo em relação ao corpo social, que não está preso ao esquema
funcionalista anterior.
A teoria durkheimiana da opinião pública vislumbra um sistema de
comunicação entre os diferentes níveis de consciência da sociedade: de um
lado, os pensamentos difusos que percorrem o corpo social e que compõem
o inconsciente social; do outro lado, a consciência plenamente individuada
do Estado. “Assim, entre a vida psicológica difusa na sociedade e a que se
concentra e se elabora especialmente nos órgãos governamentais, há a mesma
oposição que entre a vida psicológica difusa do indivíduo e sua consciência
clara” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 112). E essas comunicações poderão ter
mais ou menos obstáculos, podem ser bem ou mal organizadas, mais ou
menos numerosas; podem ter barreiras estanques ou permeáveis, podem
ser mais contínuas ou intermitentes.
Uma democracia será tanto mais efetiva quanto essas comunicações
bipolares estiverem próximas e sincronizadas sob a ascendência do Estado.
A democracia não se define pelo governo da maioria, não se define pelo ideal
de um governo de todos sobre todos. Ao contrário da concepção liberal de
democracia, em que o Estado se apresenta como antítese do indivíduo e suas
liberdades, Durkheim enfatiza que o individualismo, a proteção das liberdades
individuais, será tanto mais forte quanto mais desenvolvido e mais complexo
for o Estado23. Nas comunicações bipolares entre a consciência estatal e o
inconsciente social, quanto mais o pensamento social de modo geral estiver
consciente de si, através do poder estatal de organizar as ideias e sentimentos difusos na sociedade, tanto mais avançada, tanto mais democrática será
essa sociedade. E, nesse sentido, quanto mais uma sociedade é consciente
de si mesma, mais apta estará às mudanças sociais efetivas; maior será sua
plasticidade, realizada através da ação racional do Estadoxxiii. Essa sociedade
terá o poder de enfrentar as tradições mais arraigadas e as profundidades
mais obscuras dos hábitos e sentimentos coletivos:
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
Não se deve dizer que a democracia é a forma política de uma sociedade que
governa a si mesma, em que o governo se difunde no meio da nação. Uma tal
definição é contraditória em seus termos. É quase dizer que a democracia é
uma sociedade política sem Estado. Com efeito, o Estado ou não é nada ou é
um órgão distinto do resto da sociedade. Se o Estado está em toda parte, ele
não está em lugar nenhum. Resulta de uma concentração que destaca da massa
coletiva um grupo de indivíduos determinado, em que o pensamento social é
submetido a uma elaboração de um tipo particular e chega a um grau de clareza
excepcional. Se essa concentração não existe, se o pensamento social permanece inteiramente difuso, ele permanece obscuro, e a característica distintiva
das sociedades políticas inexiste. Apenas, as comunicações entre esse órgão
especial e os outros órgãos sociais podem ser mais estreitas ou menos estreitas,
mais contínuas ou mais intermitentes (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 115-6).
Ao sistematizar suas concepções de democracia e de Estado, o autor
aponta conclusões “desconfortáveis”, a começar pelo desprezo pela instituição
do sufrágio universal e pela democracia direta, cujo resultado seria a expressão
de uma sociedade feita de indivíduos atomizados, em que “é quase impossível
que esses votos sejam inspirados por algo que não preocupações pessoais e
egoístas: pelo menos estas serão preponderantes, e assim um particularismo
individualista estará na base de toda a organização” (DURKHEIM, 1897/2004b,
p. 147). Além disso, longe da tradicional concepção liberal de democracia,
Durkheim reafirma suas teses políticas sobre as virtudes de uma democracia
corporativa, isto é, um Estado corporativo. Suas proposições políticas mais
específicas fogem do escopo deste texto. Ressalte-se, ainda, que, na perspectiva, do autor, os agrupamentos profissionais se constituiriam corpos sociais
permanentes na estrutura estatal, ao contrário dos representantes políticos
das democracias liberais, de modo que a participação do indivíduo na vida
política não se esgotaria no momento fugaz do voto (DURKHEIM, 1897/2004b,
p. 148). As corporações, como órgãos secundários do corpo social, seriam
a mediação necessária para contrapesar-se ao poder do Estado sobre as liberdades individuais e para promover a integração social onde há um vazio
esquecido na anarquia moral moderna. Por meio desses órgãos secundários,
poder-se-ia facilitar a comunicação bipolar entre a consciência aprimorada
do Estado e a consciência coletiva difusa das massas.
Através de uma concepção renovada de Estado dentro de uma teoria
da opinião pública, ultrapassando a formulação funcionalista anterior em
direção à perspectiva de um sujeito autônomo e em relação de comunicação
com a sociedade, Durkheim pôde afirmar novamente o domínio da razão
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177
humana sobre o irracional. Vimos que o movimento histórico era, em sua
teorização até então, composto por forças históricas inconscientes: umas histórico-naturais, outras interacionais. Sendo inadmissível, para um civilizado
como Durkheim, um governo das paixões, assim como a “anarquia moral” das
sociedades industriais, o problema ético e teórico era saber em que medida
haveria tantos sentimentos sociais e, ainda assim, uma civilização conservar
seus mais altos valores, fundados na oposição entre natureza e sociedade.
A resposta não pode ser outra: nessa sua formulação particular do conceito,
a democracia se torna o fim supremo de toda a história.
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179
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NOTAS
“Esse símbolo visível [através do qual podemos aceder ao estudo da solidariedade social] é o direito. (...) Quanto mais os membros de uma sociedade
são solidários, mais mantêm relações diversas seja uns com os outros, seja
com o grupo tomado coletivamente, pois, se seus encontros fossem raros,
só dependeriam uns dos outros de maneira intermitente e fraca. Por outro
lado, o número dessas relações é necessariamente proporcional ao das regras
jurídicas que as determinam. De fato, a vida social, onde quer que exista de
maneira duradoura, tende inevitavelmente a tomar uma forma definida e
a se organizar, e o direito nada mais é que essa mesma organização no que
ela tem de mais estável e mais preciso. A vida geral da sociedade não pode
se estender num ponto sem que a vida jurídica nele se estenda ao mesmo
tempo e na mesma proporção. Portanto, podemos estar certos de encontrar
refletidas no direito todas as variedades essenciais da solidariedade social”
(DURKHEIM, 1893/2004, p.31-2).
1
“A publicação da última das grandes obras de Durkheim, As formas elementares de vida religiosa, em 1912, cristaliza um movimento de inflexão em sua
obra que, entre outros aspectos, caracteriza-se pela passagem da consciência
coletiva para as representações coletivas como conceito-chave da análise
sociológica. A ênfase se desloca da morfologia social, cujo mecanismo é o
principal fundamento explicativo dos fatos sociais na Divisão do trabalho
social, para a valorização do simbolismo coletivo como princípio fundante
da realidade social” (PINHEIRO FILHO, 2004, p. 139).
2
Cf., p. ex., Pinheiro Filho (2004, p. 142): “Ou, precisando melhor, a sociedade é a única fonte da humanidade do homem; é através dela que se
transcende a pura vida orgânica que é a condição do homem tomado em
sua individualidade. Apenas a vida coletiva faz do indivíduo uma personalidade, dando forma à consciência moral e pensamento lógico que têm
origem e destinação social. O indivíduo não é ainda realidade humana, mas
apenas abstração que só se perfaz no meio social. Antes de sua constituição
na e pela força coletiva, não se pode falar propriamente de homem, mas
de um ser que se reduz ao organismo animal. A humanidade do homem
é coisa social, que se cristaliza por mecanismos de coerção. A sociedade
“(...) externa e transcendente ao indivíduo enquanto indivíduo, é interna
e imanente ao indivíduo enquanto homem” (VIALATOUX, J. De Durkheim
a Bergson. 1939, Paris: Bloud & Gay, p. 18).
3
Desde seus primeiros livros, não há distinção entre fatos sociais e fatos
morais. Não há – em separado – para os fatos morais, uma espécie de fato
social de outra substância e da qual a moralidade seria o produto. Fatos morais são os próprios fatos sociais, e estes são todas as prescrições de conduta
dos indivíduos, “modos de pensar, agir e sentir” impostos pela sociedade.
4
5
A sociedade é um reino natural que não difere dos outros, a não ser por sua
maior complexidade”. (DURKHEIM, 1912/2000, p. XXVI).
“Acrescentemos, para evitar qualquer interpretação inexata, que [quando
afirmamos a heterogeneidade do social e do individual] nem por isso admitimos que haja um ponto preciso em que termina o individual e começa o
reino social. A associação não se estabelece de uma só vez e não produz seus
efeitos de uma só vez; para isso ela precisa de tempo e, por conseguinte, há
momentos em que a realidade fica indefinida. Assim, passa-se sem hiato de
6
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ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
uma ordem de fatos a outra; mas isso não é razão para não as distinguir. Caso
contrário, não haveria nada de distinto no mundo, se é que há quem pense
que existem gêneros separados e que a evolução é contínua.” (DURKHEIM,
1897/2004a, p. 403, nota 11).
“Mas, no que toca nosso pensamento, seria laborar em erro se, a partir do
que se explicou atrás, se concluísse que, de acordo com nossa opinião, a sociologia deve ou mesmo pode fazer abstração do homem e suas faculdades. Está
claro, ao contrário, que os caracteres gerais da natureza humana entram no
trabalho de elaboração de que resulta a vida social. Somente, não a suscitam
nem lhe dão sua forma especial; não fazem mais do que torná-la possível.
As representações, as emoções, as tendências coletivas não têm por causas
geradoras determinados estados da consciência dos indivíduos, mas sim as
condições em que se encontra o corpo social em seu conjunto. Sem dúvida,
não podem alcançar realização senão quando as naturezas individuais não se
mostrarem refratárias; mas não constituem senão a matéria indeterminada
que o fator social determina e transforma.” (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 92).
7
“(...) Em si mesma, abstraindo-se todo poder exterior que a regula, nossa
sensibilidade é um abismo sem fundo que nada é capaz de preencher. / Mas
então, se nada vem contê-la de fora, ela só pode ser uma fonte de tormentos
para si mesma. Pois desejos ilimitados são insaciáveis por definição e não
é sem razão que se considera a insaciabilidade como sinal de morbidez. Já
que nada os limita, eles sempre ultrapassam, e infinitamente, os meios de
que dispõem; nada portanto pode acalmá-los. Uma sede inextinguível é um
suplício perpetuamente renovado” (DURKHEIM, 1897/2004a, p. 313)
8
É possível entrever de que maneira O suicídio é a obra em que sua teoria
começa a conferir maior peso às representações na explicação sociológica.
No caso do suicídio egoísta, a explicação seria desenvolvida nos termos
de uma representação individual que seria apenas a refração de uma
representação coletiva.
9
Poder-se-ia argumentar que o suicídio como fenômeno sociológico tem
como objeto as taxas estatísticas de suicídios, não o suicida individual com
suas motivações pessoais. Estaria correto, a princípio. Mas o problema é ainda
mais complicado, porque os tipos de “correntes suicidógenas” decompostas na
explicação do suicídio não são, para Durkheim, meros construtos analíticos,
“típico-ideais”. São correspondentes, em sua ótica, a realidades sociais muito
bem distinguíveis – estão nas coisas sociais, não nos olhos do sociólogo – as
taxas estatísticas rebatem-se na experiência individual e cada corrente social
produzirá sintomas próprios. “As tendências coletivas têm uma existência
que lhes é própria; são forças tão reais quanto as forças cósmicas, embora
sejam de outra natureza; também agem de fora do indivíduo, embora por
outros meios” (1897/2004a, p. 398). Por isso, não há paradoxo em falar de
uma desintegração subjetiva em sua teorização do egoísmo, assim como não
há paradoxo em sua abordagem das formas individuais dos diferentes tipos
de suicídio, no capítulo VI do livro II d’O suicídio (1897/2004a).
10
Inspiro-me aqui em Mestrovic (1985) quando ele estabelece Anomia e Pecado
como conceitos similares. A interpretação da anomia como “normlessness”
somente pode compreender a anomia como se sua expressão objetiva fosse
a ruptura individual com o sistema legal-normativo – um crime. Enquanto
11
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
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que, argumenta Mestrovic, a anomia diz respeito às intenções individuais,
é independente de qualquer comportamento realmente objetivado. O indivíduo pode sofrer sua gula e sua cobiça e sua luxúria sem que haja de fato
uma ação externalizada.
12
“O que proporciona, particularmente nos dias de hoje, excepcional gravidade a esse estado é o desenvolvimento, até então desconhecido, que as
funções econômicas adquiriram nos últimos dois séculos, aproximadamente.
Enquanto, outrora, desempenhavam apenas um papel secundário, hoje
estão em primeiro plano. Estamos longe do tempo em que eram desdenhosamente abandonadas às classes inferiores. Diante delas, vemos as funções
militares, administrativas, religiosas recuarem cada vez mais. Somente as
funções científicas estão em condições de disputar-lhes o lugar – e, ainda
assim, a ciência atualmente só tem prestígio na medida em que pode servir
á prática, isto é, em grande parte, às profissões econômicas. Uma forma
de atividade que tomou tal lugar na vida social não pode, evidentemente,
permanecer tão desregulamentada, sem que disso resultem as mais profundas perturbações. É, em particular, uma fonte de desmoralização geral”
(DURKHEIM, 1893/2004, p. VIII).
Essa interpretação que apresento tem algumas semelhanças e diferenças
importantes em relação à instrutiva leitura de Phillipe Besnard (2008) sobre
o tema da anomia em Durkheim. Em vários pontos minha leitura coincide
com a dele. Em primeiro lugar, na caracterização da anomia como um
problema essencialmente da ordem do desejo e dos apetites humanos, distinguindo-nos, ambos, das leituras tradicionais que reduzem anomia a uma
carência localizada de normas ao redor do indivíduo (“normlessness”). Em
segundo lugar, ambos reconhecemos determinadas imprecisões do texto de
Durkheim que o levam a contradições teóricas que devem ser sanadas. Mas
uma diferença importante entre sua reflexão e a minha é a de que, apesar de
ele reconhecer que “não é demais enfatizar que o conceito de anomia [por
parte de Durkheim] implica uma vigorosa e quase veemente condenação
da ideologia da sociedade industrial” (BESNARD, 2008, p. 173, tradução
minha), o tema da anomia é, em sua leitura de Durkheim, apenas “um tema
menor e passageiro” em sua obra, além de “escassamente elaborado” (idem,
p. 164). Esta é uma tese muito distinta da minha e que refuto neste texto, já
que elaboro minha leitura sobre o tema da anomia identificando-a em sua
qualidade de orientação ética transversal à obra de Durkheim.
13
“(...) É possível que a moral tenha algum fim transcendental, que a experiência não é capaz de alcançar; cabe ao metafísico ocupar-se deste. Mas o que é
certo, antes de mais nada, é que ela se desenvolve na história, sob o império de
causas históricas, e tem uma função em nossa vida temporal. Se ela é esta ou
aquela num fenômeno dado, é porque as condições em que vivem os homens
não permitem que ela seja outra, e a prova disso é que ela muda quando essas
condições mudam, e somente nesse caso” (DURKHEIM, 1893/2004, p. XLIV).
14
“(...) a ação social segue caminhos muito indiretos e obscuros, emprega
mecanismos psíquicos complexos demais para que o observador vulgar
possa perceber de onde ela vem. Enquanto a análise científica não vier
ensinar-lhe isto, ele perceberá que é agido, mas não por quem é agido”
(DURKHEIM, 1912/2000, p. 214).
15
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
182
ÉTICA CIVILIZACIONAL E TEORIA SOCIOLÓGICA
“O que existe, a única coisa que realmente é oferecida à observação, são
sociedades particulares que nascem, se desenvolvem, morrem independentemente umas das outras. Se as mais recentes fossem ainda continuação
daquelas que as precederam, cada tipo superior poderia ser considerado
como a simples repetição do tipo imediatamente inferior, acrescido de
alguma coisa; seria possível, então, alinhá-las, por assim dizer, umas após
as outras, confundindo as que se encontram no mesmo grau de desenvolvimento, e a série assim formada seria encarada como representativa
da humanidade. Mas os fatos não se apresentam com esta simplicidade
extrema. Um povo que substitui outro não é um simples prolongamento
do anterior com o acréscimo de alguns caracteres novos; é diferente, ora
tem propriedades a mais, ora a menos; constitui uma nova individualidade
e todas estas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não podem
se fundir numa mesma série contínua, nem sobretudo numa série única.
Pois a sequência de sociedades não poderia ser figurada por uma linha
geométrica; ela se parece antes com uma árvore cujos ramos se dirigem
em direções divergentes” (DURKHEIM, 1895/1978, p. 17-8).
16
Os problemas do crime e da punição podem ser encontrados, entre outros,
no capítulo em que descreve o funcionamento da solidariedade mecânica, na
Divisão do trabalho social (1893/2004) e no capítulo sobre a distinção entre
fatos sociais normais e patológicos, em as Regras do método (1895/1978).
17
18
Randall Collins (1990) dirá que a teoria de Durkheim, se não compreende
diretamente os conflitos horizontais, por assim dizer, entre grupos sociais
constituídos, por outro lado, é bastante útil para determinar as condições de
solidariedade interna a esses grupos – responde tanto ao problema marxista
da consciência de classe quanto à noção de grupos de status de Weber.
Após explicar como o crime mantém a moralidade em um estado maleável
e permite sua evolução, Durkheim prossegue a análise, citando o exemplo de
como personagens históricos se tornam promotores diretos das mudanças
sociais: “Segundo o direito ateniense, Sócrates era criminoso e sua condenação
não deixou de ser justa. Todavia, seu crime, isto é, a independência de seu
pensamento, não foi útil apenas à humanidade como também à sua pátria.
Pois servia para preparar uma moral e uma fé novas de que os atenienses
tinham necessidade então, porque as tradições nas quais tinham vivido até
aquela época não estavam mais em harmonia com suas condições de existência. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; reproduz-se periodicamente
na história. A liberdade de pensamento de que gozamos atualmente jamais
teria podido ser proclamada se as regras que a proibiam não tivessem sido
violadas antes de serem solenemente repudiadas. Naquele momento, porém, a
violação constituía crime, pois tratava-se de ofensa contra sentimentos ainda
muito vivos na generalidade das consciências, A liberdade filosófica teve
por precursores toda a espécie de heréticos que o braço secular justamente
castigou durante todo o curso da Idade Média, até a véspera dos tempos
contemporâneos” (DURKHEIM, 1895/1978, p. 61-2).
19
20
Cf. o capítulo Representações individuais e representações coletivas
(DURKHEIM, 1924/1970). Esta é sua formulação mais rigorosa da autonomia
relativa das representações sociais.
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“Organizam idéias, sentimentos, depreendem resoluções, transmitem essas
resoluções a outros órgãos que as executam; mas seu papel limita-se a isso.
(...) O Estado, pelo menos em geral, não pensa por pensar, para construir
sistemas de doutrinas, mas para dirigir a conduta coletiva. Nem por isso
sua função essencial deixa de ser pensar” (DURKHEIM, 1897/2004b, p. 72).
21
“Longe de poder datar da instituição de um poder despótico a anulação
do indivíduo, deve-se, ao contrário, ver nesse poder o primeiro passo na
direção do individualismo. De fato, os chefes são as primeiras personalidades
individuais que se diferenciaram da massa social. Sua situação excepcional,
fazendo-os sem igual, cria para eles uma fisionomia distinta e lhes confere,
em consequência, uma individualidade. Dominando a sociedade, não são
mais obrigados a seguir todos os movimentos desta. Sem dúvida, é do grupo
que eles extraem sua força; porém, uma vez que esta é organizada, ela se
torna autônoma e torna-os capazes de uma atividade pessoal. Assim, acha-se
aberta uma fonte de iniciativa que até então não existia. A partir de então, há
alguém que pode produzir algo de novo e, até, em certa medida, subtrair-se
aos usos coletivos. O equilíbrio está rompido” (DURKHEIM, 1893/2004, p. 181).
22
“Essa é uma outra característica das sociedades democráticas. Elas são mais
maleáveis, mais flexíveis, e devem esse privilégio ao fato de a consciência
governamental ter se ampliado passando a abranger cada vez mais objetos”
(DURKHEIM, 1897/2004b, p. 118).
23
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
184
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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
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André Oda
Palavras-chave:
Durkheim, ética,
natureza, sociedade.
Keywords:
Durkheim, ethics,
nature, society.
RESUMO
Neste artigo, faço revisão de alguns dos conceitos acionados por Durkheim em vista de um postulado ético-moral que
atravessa as diferentes fases de sua obra: este postulado é o do
valor moral da civilização, expresso na dicotomia entre natureza
e sociedade. A partir disso, revisei o problema sociológico da
anomia e o de sua distinção teórica em relação ao do egoísmo.
Em seguida, mostro de que modo as determinações naturais e
as figuras simbólicas do irracional aparecem na compreensão
histórica e sociológica de Durkheim. Fiz isso através da análise
de três categorias de forças históricas: (1) forças histórico-naturais de individuação, (2) forças históricas de tipo interacional
e (3) a ação racional do Estado como sujeito social autônomo
e privilegiado. Concluo mostrando de que modo, em vista do
postulado ético-moral de prevalência da sociedade sobre a
natureza, a democracia se apresenta para ele como o sentido
histórico da civilização.
ABSTRACT
In the present article, I intend to revise some of the
concepts used by Durkheim regarding an ethical and moral
postulate that permeates different stages of his work: this postulate refers to the moral value of civilization, expressed on the
dichotomy between nature and society. From this starting point,
I revise the sociological problem of anomie and its distinction
to that of egoism. Furthermore, it will be demonstrated the way
by which natural determinations and the simbolic figures of the
irracional appear in his historical-sociological comprehension.
That will be done through the analysis of three categories of
historical forces: (1) natural-historical forces of individuation,
(2) historical forces of interaction, and (3) the rational action
of the State as an autonomous and privileged social subject. I
conclude demonstrating how, by the prism of the ethical-moral
postulate of prevalence of society above nature, democracy
is perceived by him as the historical purpose of civilization.
Recebido para publicação em janeiro/2014. Aceito em maio/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 149-185
As barracas de praia e a “civilização”
do lazer: espaço urbano, poder e
sociabilidade na Praia do Futuro
Wellington Ricardo Nogueira Maciel
Doutor em sociologia pela Universidade Federal do Ceará/
Professor substituto de sociologia da UFC e da Faculdade
RATIO/Fortaleza-Ce. Autor do livro O aeroporto e a cidade:
usos e significados do espaço urbano na Fortaleza turística.
Fortaleza: Editora da Universidade Estadual do Ceará, 2010.
Endereço eletrônico: [email protected] .
introdução
A localização de grande número de barracas de praia (espécies
de bares, restaurantes e casas de show à beira-mar) na Praia do
Futuro1 e a maneira como seu limite é demarcado são aspectos
importantes para compreender o lugar que esses espaços ocupam
atualmente na dinâmica urbana de Fortaleza. Por um lado, sabese que ali é o lugar do lazer praiano mais divulgado e utilizado na
Cidade. Por outro, esse lazer passou por uma diferenciação dos
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
188
AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
seus usos que resulta num fenômeno sociológico fundamental: a associação
de sentido mais comum entre praia e barraca. A concentração e contiguidade
de pontos de lazer num mesmo lugar lembra a ideia de mancha (MAGNANI,
2008). A “mancha de lazer” da Praia do Futuro compreende um conjunto de
estabelecimentos comerciais que concorrem para marcar essa região, com a
reunião de alguns elementos espaciais demarcadores, capazes de lhe conferir
um “lugar próprio” (CERTEAU, 2003) no contexto de Fortaleza.
No que diz respeito ao entendimento do conjunto de barracas de
praia como um tipo de “mancha de lazer”, alguns de seus traços singulares
merecem ser assinalados. É lá onde se reúnem as barracas de praia mais
representativas e procuradas do gênero. Seus elementos arquitetônicos e
de inovação de serviços ocupam hoje lugar privilegiado nas matérias jornalísticas e nos guias de praia2. Além disso, os símbolos que elas mobilizam
são o aspecto mais eficiente de estabelecimento e sedimentação dos seus
usos os quais não comportam ambiguidades. Sabe-se exatamente de que
barraca se trata, quem as frequenta, as regras que as presidem, o que se
pode ou não fazer no seu interior.
Atribuir às barracas de praia a qualidade de espaços urbanos centrais
do lazer de Fortaleza significa destacar dois traços fundamentais: os socioespaciais e simbólicos de organização do lazer praiano. O presente artigo se
propõe a alcançar esse objetivo. O questionamento que o orienta é este: quais
são as características dessas barracas-complexos, estruturas mais consistentes,
que passaram a representar, sob a óptica da Associação dos Empresários da
Praia do Futuro-AEPF, melhorias nas instalações e na prestação dos serviços
associados ao lazer praiano? Como essas mudanças foram operadas por meio
do acúmulo desigual de propriedades materiais e simbólicas?
Do ponto de vista dos estudos urbanos, não são poucos os trabalhos
voltados para processos sociais de redefinição e marcação de lugares durante as práticas de lazer (BAUMAN, 2009, 2008b, 1999; FEATERSTHONE,
2007, 2001, 1997; CANCLINI, 2008, 2003; CERTEAU, 2003; ZUKIN, 2000).
A temática central desses estudos é o lugar ocupado pelo lazer no consumo
dos chamados bens simbólicos nas experiências das divisões sociais de hoje.
A grande variedade de bens produzida e mobilizada na sociedade contemporânea, associada ao deslocamento dos conflitos do “mundo da produção”
às práticas de consumo, consiste noutro aspecto ressaltado.
Por conta da nova centralidade urbana representada atualmente pelos
espaços urbanos de usos liminares (ZUKIN, 2000), o tema do lazer aufere
destaque nas pesquisas acadêmicas em ciências sociais, não só em razão da
sua importância socioeconômica e cultural para as cidades contemporâneas,
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mas também e principalmente pelo fato de estar associado, em grande parte,
à emergência da chamada sociedade de consumo e dos aspectos políticos
dos desafios ao planejamento dos usos turísticos do litoral.
Da praia à barraca / da barraca à praia
Em relação à Praia do Futuro, foram várias as tentativas de planejamento
dos usos do lazer organizados pelas barracas de praia. Cabe lembrá-las:
projeto turístico Atlântico Sul (1985), durante a gestão municipal de César
Cals Neto (1983-1985), interrompida por falta de verbas; Operação Praia
do Futuro (1987), posta em execução na administração de Maria Luiza Fontenele (1986-1989). Também foi interrompida. Operação Praia do Futuro
(1988), intervenção proposta por barraqueiros, Ministério Público Federal,
Procuradoria Geral do Estado, Delegacia do Patrimônio da União e Prefeitura
Municipal de Fortaleza. Apenas 1.600m de faixa de praia foram ordenados;
gestão do prefeito Ciro Gomes (1989), continuação do ordenamento da faixa
de praia da gestão anterior. Interrompida em 1990; gestão do prefeito Juraci
Magalhães (1990-1992). O projeto foi paralisado por apresentar problemas
ambientais (1992). Na segunda gestão de Juraci (1997-2000), foi dado início
às obras do calçadão, concluídas em 2000; e por fim o projeto Esta praia
tem Futuro (1999), um conjunto de ações realizado pela AEPF e Secretaria
de Turismo do Estado do Ceará-SETUR.
À revelia ou em sintonia com essas tentativas de planejamento, algumas barracas passaram, nas últimas décadas, por uma diferenciação que tem
resultado na redefinição do sentido jurídico comumente atribuído ao que se
entende por praia (“bem público de uso comum do povo”, “espaço público”).
Tal redefinição semântica é realizada mais intensamente nas barracas vinculadas à Associação dos Empresários da Praia do Futuro (AEPF), denominadas
aqui de barracas-complexo. Estas, comparadas às barracas-artesanais da
“praia velha” – sua principal contraposição – delas se diferenciam, tanto do
ponto de vista arquitetônico quanto no que se refere aos traços de estilização
estética, aspectos valorizados atualmente pelas “cidades mercadorias” e pelo
city marketing (HARVEY, 2004, ARANTES, 2000).
Na Praia do Futuro “nova”, que tem início no trecho entre a Praça 31 de
Março e a Rua Renato Braga, estão os complexos turísticos maiores e mais caros
representados pelas barracas-complexo temáticas, mais sofisticadas (Chico
do Caranguejo, Itapariká, CrocoBeach, Marulhos, Vira Verão, Vila Galé, Coco
Beach e América do Sol), e que compõem espaços restritos a frequentadores
dispostos a consumir os serviços diferenciados ali oferecidos.
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
Cabe fazer referência ao papel exercido pelos barraqueiros que passaram
a ser reconhecidos, desde a implantação do projeto turístico Esta praia tem
Futuro, em 1999, como empresários. Diferentemente dos barraqueiros da
“praia velha”, com posse de menor capital econômico, cultural e simbólico,
aqueles empresários passaram a emprestar à barraca de praia a qualidade
de “paisagem” (ZUKIN, 2000), incitando, assim, a ambiguidade típica de um
espaço urbano liminar. É possível também encontrar nas dependências dos
principais complexos de barracas a “citação cultural” de lugares distantes,
associadas ao que Featherstone (2007; 2001; 1997), na esteira das reflexões
de Baudrillard (1991), chamou de “espaço simulacional”.
A função assumida por esses empresários assemelha-se àquela que os
chamados “novos intermediários culturais” incorporaram no contexto das
mudanças da estrutura social nos Estados Unidos na década de 1960. Aqueles
“jovens profissionais urbanos”, como foram chamados, reuniam diversos
tipos de “animadores culturais” provenientes da participação em atividades
de jornalismo, artes plásticas, marketing, publicidade, entre outras.
De modo geral, os “intermediários” dedicam-se à oferta de bens e
serviços simbólicos bastante valorizados na cidade contemporânea, sobretudo
para o consumo distinto e seleto de turistas e setores sociais que, a despeito
do lugar, tendem a apresentar gostos e práticas culturais semelhantes. Historicamente, tais profissionais foram recrutados nos setores de classe média
diante da crise econômica que abalou a sociedade norte-americana durante
as transformações associadas à chamada “acumulação flexível”, atingindo
o “mundo da produção”. O “consumo cultural” revelou-se estratégico para
reverter esse quadro e passou a ocupar, ao lado da “produção”, importante
lugar na reprodução do capital (HARVEY, 2005; 2004).
Pode-se dizer que o papel dos empresários associados à AEPF na
sedimentação da divisão entre “praia nova” e “praia velha” incorpora algumas práticas desses “intermediários”. É o caso de recursos simbólicos
utilizados nas suas barracas que servem de ornamentação e obstáculos
arquitetônicos (cercas, muros, cordas, tapumes, instalações) com efeitos
de demarcação de lugares (LEITE, 2001; ARANTES NETO, 2000) capazes
de reforçar fronteiras e distinções na Praia.
Para ilustrar esse aspecto de expansão e diferenciação das barracas de
praia, é oportuno o recurso à trajetória de um dos “intermediários” do lazer
praiano na sedimentação de novos usos do litoral de Fortaleza. O relato de
“Seu” Marinho, proprietário da barraca Marinho’s, na “praia nova”, é ideal
típico da transformação do barraqueiro em empresário, além de mostrar
elementos da dinâmica de movimentos que as barracas passaram a emprestar
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à configuração do referido lazer. A diferenciação em relação aos restaurantes
foi o primeiro traço a ser levado em conta para a demarcação do espaço das
barracas. Nas palavras do entrevistado:
A Praia do Futuro... ali no antigo Chez Pierre... ali é o começo da Praia do
Futuro velha e ela vinha até o Casarão. Pra cá não tinha nada. Era só mato.
Isso nos anos 60. Eu ainda não tava na praia [Grifo meu], mas era isso aí (...)
Na Praia do Futuro velha tinha os restaurantes e as barracas deles lá. Tinha
o Bola Branca, tinha o Balanço do Mar, o Bariloche, o Ruínas, o Mandacaru,
o Bacaninha. Aí o último que tinha era o Albatroz, onde é o Eudinho. É um
restaurante todo de madeira. Muito chique (...). Hoje é ocupado por uma
barraca. A barraca dele é a Barcelona, era como se fosse hoje a Croco Beach.
Era top de linha. Era toda feita de madeira. Ela colocou lonas de listras, com
varanda, rede... Isso era coisa de outro mundo porque na verdade as barracas
eram todas de saco de açúcar. Todas as barracas (...). Isso na Praia toda. Surgem
a Barcelona e o Kabuletê, que hoje é o Rebu. Então, são barracas de madeira
arrumadinha. Elas se diferenciavam das outras. Naquele tempo, as barracas
não podiam ficar na praia não. Você armava hoje e no final do dia desmontava
e ia pro outro lado da rua. A gente pagava as pessoas que moravam do outro
lado da rua para guardar nossas barracas. Tinha um depósito. A gente guardava
as mesas, as cadeiras e as varas, que eram curtas. Tudo muito pouco. No outro
dia, na segunda-feira, vinha a Capitania dos Portos...Nessa época não tinha
o Patrimônio da União não... Recolhia tudo. Quem ficasse na praia perdia a
barraca. No dia seguinte, tudo de novo: montava a barraca e depois tirava. Isso
já na praia, na areia. Do outro lado tinha os restaurantes. Tinha restaurante
muito famoso. Esse Balanço do Mar... Vinha muita gente famosa. Eu tinha
mais ou menos uns quinze anos.3
A classificação como barraca ou restaurante, por outro lado, dependia
de alguns aspectos fundamentais, como tipos de materiais de construção
utilizados e a localização desses equipamentos. Como diz “Seu” Marinho,
É o seguinte. Meu pai começou primeiro que eu, lá. O nome da barraca dele era
Minibar e a do meu irmão era Edílson praia bar, que hoje ainda existe. Ainda
tá lá. Ele ficou lá. Eu vim embora pra cá. Lá eu não tinha barraca. Eu tava no
meio, mas não tinha barraca. Então começou. A barraca que começava a Praia
velha se chamava Chez Pierre. Era uma barraca muito grande. Tinha música ao
vivo e tudo. Era a única que era de alvenaria. Toda pronta. E era a única fixa,
que ficava, as outras não. Ela não era estilo da gente. Porque ela, como era uma
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
coisa muito antiga, ela tinha uma coisa diferente (...). Aí começou com o Chez
Pierre. Ele ficava todo dia e a gente tinha que botar e tirar, botar e tirar...Tinha
um monte de barraca que eu não lembro o nome agora. Eu sei de todas, mas
não lembro agora (...). Aqui na parte nova existia apenas uma barraca que se
chamava Saporiu. Ela é a barraca mais velha da Praia do Futuro. O Chez Pierre
era barraca, mas a gente já considerava restaurante por conta de tá na praia,
mas era terreno próprio. Tava dentro da praia e não era barraca. A gente tinha
que recolher o material e ela não. Agora aqui, de barraca, tinha a Saporiu, né?
Ela ficava ali por trás onde hoje está a América do Sol. Do outro lado, tinha um
restaurante antigo que se chamava Karlu’x. Acabou. A Saporiu era sozinha.
Do outro lado, era só restaurante. Vinha gente famosa. Jogador de futebol...
Rivelino, o Pelé... Tinha cantores famosos... Agepê, Pinduca, Alípio Martins...
O fechamento dos primeiros restaurantes na Praia é apontado por ele
como responsável pela nova posição que as barracas ocuparam nas dinâmicas
do lazer praiano. Conforme o entrevistado, a transformação de restaurante
em barraca obedece a dinâmica fixo/móvel:
(...) Teve um período... muito menino de ‘menor’ saindo no jornal freqüentando
esses restaurantes. Aí o Juizado de Menores fechou tudo. Até hoje. Nunca mais
abriu nenhum lá na praia velha. Aí as barracas de cá começaram a engordar
o pescoço, a crescer, a fazer coisa melhor, porque acabou o lado de lá. Antes
era restaurantes e as barracas. As barracas não tinham tanto... eram móveis,
não tinham tanta bagagem como tem hoje. Aí o Kabuletê caiu na praia e
virou Rebu. Existe lá em cima. Ele era restaurante, aí veio pra praia e virou a
barraca Rebu. Chegou a ser barraca Kabuletê ainda. Começou como barraca.
Depois que ficou fixo virou restaurante. Depois voltou como barraca Rebu.
E até hoje existe... Rebu.
Dentro dessa dinâmica restaurante/barraca, barraca/restaurante,
e fixo/móvel, “Seu” Marinho revela o momento em que “caiu na praia”
como barraqueiro:
Eu, no caso, quando cai na praia...Eu já tenho uma faixa de trinta e cinco anos
na praia. Quando em entrei, eu entrei menor. O meu pai tinha um barzinho
do lado de lá, que se chamava Minibar. Ele já tinha acabado com a barraca,
entendeu? Aí eu comprei uma barraca escondida dele. Eu ajudava meu pai no
bar, que era também restaurante, entendeu? (...). A minha barraca tinha só
quatro mesas. Só que eu não podia ir pra lá porque era de menor. Eu contratei
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um cara pra tomar conta (...). E era daquele jeito tirando e botando...a barraca.
Todo mundo que tava ali era que nem ambulante. Ele num bota também uma
barraquinha? Do mesmo jeito. Eu sou filho dum comerciante. Ele começou
como um ambulante. Colocou uma mesinha e aí foi aumentando. Eu tinha
quatro mesas, já era uma barraca razoável. A maior barraca tinha vinte mesas. Era uma Croco Beach da vida, entendeu? (...). Eu fui um dos primeiros a
colocar palhoça na barraca. Aí eu juntei um dinheiro e comprei umas mesas,
bandejas, garçon. Foi uma revolução na praia. Com pouco tempo vinha todo
mundo. Descobriram que tinha uma barraquinha legal na praia. Peguei uma
clientela fora de sério.
Segundo “Seu” Marinho, pelo fato de estar se diferenciando das barracas de lona ou à base de saco de açúcar, que constituíam a maioria, passou
a enfrentar conflitos em torno dos usos que estava incentivando:
(...) Aí começou a dar problema pros vizinhos. Os outros começaram a construir também. A gente ficava por teimosia. A gente começou a crescer. A gente
começou a ter mais coisa. As barracas começaram a inchar. A gente descobriu
que a Capitania dos Portos só tinha dois caminhões. Não dava para colocar
todas as barracas. As que não eram tiradas ficavam lá mesmo. E foi ficando
e crescendo. Aí começou a cansar eles, né? Eu, o meu irmão e o Kabuletê
começou a fazer uma barraca legal, a crescer. Aí começou a aparecer o cara
com uma batinha, a aparecer uma clientela legal, de alto nível. E aí os outros
começaram a reclamar que a gente tava crescendo demais. Ficaram pra trás.
Me denunciaram pra Capitania, entendeu? Porque eu tava crescendo demais,
entendeu? Era pra eles me acompanhar, né? Pra ficar tudo bonitinho também.
Eles diziam que eu tava botando barraca pra barão e queria matar os pobres.
Aí eu criei um outro nível. Comecei a pegar amizade com gente grande. Comecei
a ser conhecido. Mas resolveram derrubar minha barraca (...). Eu fiz isso pra
valorizar a praia. Pra mostrar que a gente é organizado. Com nenhuma intenção
de passar por cima de ninguém (...) Na época os restaurantes vinham pra cá
pra ver que cara é esse organizado que tá na praia. Vinha o pessoal do Peixado,
Panela de Barro e Toca do Coelho. Minha barraca era referência. O cara que
veio da Capitania pra derrubar a barraca me deu uma dica: ele pediu que eu
criasse uma associação pra dar força, pra gente brigar por isso aqui, porque
do jeito que tava as barracas não podiam ficar, entendeu?
A criação de uma Associação tinha por objetivo reunir os barraqueiros
em torno da defesa de sua permanência. Apesar dessa intenção, apenas aqueRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
les que estavam se diferenciando dos demais optaram por assim proceder.
Esse fato resultou, gradualmente, numa divisão da Praia. Uma configuração
de barraqueiros ao redor da Associação foi se estabelecendo. A “praia nova”,
também chamada de “praia das barracas urbanizadas”, de “calçadão” ou
ainda “praia do meio”, já que se encontrava entre a “praia velha” e a praia
do Caça e Pesca, passava a ser vista como promissora entre os barraqueiros
associados. Algumas conquistas já haviam sido realizadas por eles. Embora
pudessem representar ônus para os barraqueiros, sinalizavam a sua legalização perante o poder público. Segundo o entrevistado,
(...) Aqui surgiu outra praia que é a praia das barracas urbanizadas. Aqui é onde
foi feito a urbanização. Foi feito o calçadão. O calçadão não tinha documento
da União, não. Foi coisa da Prefeitura. Quem conseguiu esse documento da
União foram as barracas que começaram primeiro. Com a associação as barracas conseguiram a RIP. O Patrimônio não modificou nada. Ele considerava
o que já estava, a área existente. Inclusive se você quisesse colocar uma área
maior, podia, só que ia pagar mais caro. Aí essa parte do meio aqui...Apareceu o prefeito César Neto, né? Ele fez a urbanização da [rua] Renato Braga,
do antigo Casarão, perto da barraca Porto Beach. O Casarão não faz parte da
velha. O calçadão vem de lá até a barraca América do Sol. Aí nesse meio foi
feito barracas pequenininhas pra venda de coco. Só pra coco (...) Aí só podia
colocar vinte mesas e era dentro dum buraco. Era uma barraca enterrada,
entendeu? Isso foi com a Prefeitura.
A urbanização parecia, aos olhos de “Seu” Marinho, concretizar a
promessa da “praia do futuro”. A opção de se deslocar para esse “meio” que
despontava era alimentada por essa imagem:
Eu parti pra ela. Eu sai da praia velha pra ir pra urbanização. Porque eu senti
que era o futuro, sabe? Eu tava numa barraca grande lá. Depois que fizeram
esse calçadão pra cá essa praia aqui deu uma crescida. E a gente ficou mais
velho lá, ficou esquecida. Aí eu senti que o futuro era aqui. O que é que fiz? Eu
troquei a minha barraca, que não era urbanizada por uma urbanizada. Lá na
velha, eu não cheguei a ter RIP porque na hora que a gente criou a Associação
e ela começou a andar foi no momento que chegou o calçadão. Aí virou um
problema. Eu tinha uma barraca minha, sem RIP e eu parti, pensando no
futuro (...). Eu fui ser permissionário. Aí, foi uma coisa bem bolada. Surgiu
o calçadão novo. Todo mundo com aquela sensação. Só que eu deixei de ter
uma coisa minha pra ser permissionário. Porque nessa barraca de permisRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
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sionário quem manda é a Prefeitura. É sua, mas até na cor da roupa era a
Prefeitura quem mandava. Na época, era uma bata verde com o nome Emlurb.
A barraca não podia ter nome. Era barraca ‘A”, ‘B”... Aí ficou o calçadão da
Praia do Futuro, a praia velha e o Caça e Pesca. Aqui era chamado o calçadão
das arapucas porque era dentro de um buraco, pequena (...). Aí eu vim de lá
porque começou a aparecer favela e aqui começou a aparecer mansão nas
dunas. Como eu já tinha uma visão, eu disse: ‘a tendência é isso aqui encher
de favela. O negócio é pra lá.’ Aí tinha o Caça e Pesca e o ‘meio’. Eu optei pelo
calçadão. O calçadão naquele tempo era coisa de outro mundo. E realmente
deu certo. Eu passei uma fase ruim, mas deu certo porque eu tô no melhor
lugar da praia hoje. O lugar mais valorizado da praia é o ‘meio’.
Ao se referir à “praia nova”, o empresário fornece valiosas pistas para
o entendimento das dinâmicas entre essas “praias”. Enquanto a “praia do
meio” ou do “calçadão” parecia ter uma referência espacial mais ou menos
circunscrita, “a praia urbanizada”, a “praia nova”, era uma forma de classificar
barracas que possuíam entre si as características de ter crescido e possuir
uma estrutura diferenciada. Nesse sentido, até trechos da “praia” do Caça e
Pesca já despontavam como “praia nova”.
A saída apontada pelo entrevistado para reverter o abandono da
“praia do meio” era fazer com que essas barracas urbanizadas crescessem.
A urbanização havia construído cerca de 22 “arapucas”, todas sob controle
da Prefeitura Municipal de Fortaleza, em termos de expansão. O lado bom,
apontado por ele, desse cenário estava no fato de, a essa altura, a Prefeitura
já haver deixado de realizar fiscalização e renovar os contratos anuais dos
permissionários. Isso facilitou a venda das “arapucas”, possibilitando com
que essa “praia” voltasse a crescer:
(...) A gente se perguntava: quem é que vai comprar uma permissão de uso?
Só tinha uma saída (...) Se colocar um cara grande, um grande arrasta o outro,
entendeu? Aí um dia chegou o Argemiro [proprietário da barraca CrocoBeach].
Na época [no ano de 2000] a barraca era uma arapuca. Só que a dele era um
arapuca diferente. Todas essas barracas grande daqui hoje foram arapucas.
Tinha dois tipos. Tinha a arapuca e tinha a ‘bandinha’. Aquela barraca atual
dele, da CrocoBeach, é lugar de cinco ‘bandinha’ (...). A gente precisava de
um cara que botasse grana e comprasse a briga pra chamar outras pessoas.
Então, era eu, o Saturnino, o Valdinei e o Aldair. A gente era diferenciado.
A gente começou a valorizar essa área aqui. De que forma? A gente já começou a colocar a faixa. Esses quatro barraqueiros...a gente criou uma maneira
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
diferente de levantar nossa área. Como não deu certo a urbanização...deu
certo, mas ninguém ia segurar turista com arapuca. Esses barraqueiros não
pensam em crescer. Fui eu que convenci o Argemiro a comprar nessa ‘praia’.
Eu precisava de um doido pra comprar uma barraca. Porque você sabe, aqui
não podia fazer nada, era controlado. Tinha que ser um doido porque o cara
que tem dinheiro ele só pensa em crescer. Aqui não tinha chance pra gente
crescer. Aí nasceu a CrocoBeach, na praia. Aí começou a mudar tudo. Com
a mudança na barraca dele começou a atrair o público que a gente queria.
A Prefeitura abandonou. A gente começou a melhorar. Tudo começou com a
minha barraca. Com a CrocoBeach apareceu a Vira Verão dentro dessa área
ainda que era das arapucas. Depois da Vira Verão, a Marulho cresceu. Várias
barracas mudaram depois disso. De repente nós transformamos uma área
que tava ruim na melhor. Hoje é a melhor área de barraca de praia do Brasil.
Esse aspecto da dinâmica das barracas no início da ocupação da Praia
é importante por assinalar o contraste nas redes de interdependência entre
as barracas que estavam crescendo e os “excedentes”. Se, como relata “Seu”
Marinho, os restaurantes eram fixos e os barraqueiros pioneiros eram móveis, atualmente, com a transformação destes em empresários, passaram a
se estabelecer como fixos (barracas-complexo) e os vendedores ambulantes
a assumirem a posição de móveis, revelando disputas e conflitos em torno
dos usos e limites da Praia. Por outro lado, a dinâmica entre as divisões da
Praia do Futuro narrada e vivenciada por “Seu” Marinho, a partir dos seus
movimentos, revela a forma como a urbanização da Praia foi produzindo
um conjunto de barracas distintas em relação às demais. Isso favoreceu certa
posição de poder daqueles barraqueiros associados, que, gradativamente,
assumiam funções fundamentais como empresários nas dinâmicas do lazer
da Praia. Aos poucos, entre essas barracas urbanizadas, algumas foram se
autonomizando em relação às demais.
Dilemas da urbanização da Praia do Futuro
O avanço e o crescimento físico das barracas ocorreram paralelamente
ao acúmulo de propostas de urbanização para a Praia. Um desses marcos
sucedeu a propósito da construção da Praça 31 de Março. Edificada durante
a gestão municipal do prefeito Evandro Ayres de Moura (1975-1978), ela
fora apresentada como o principal espaço aberto para uso do lazer praiano,
sendo apontadas como principais qualidades “equipamentos de lazer, como
restaurantes, lanchonetes, playgrounds e uma área para camping”, para
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dar “condições de lazer” aos seus usuários, até então inéditas em espaços
abertos na Praia.
A proposta de construção desta praça incorporava, além de barracas,
“campo de pelada, parque para crianças, local para pic-nics e sombrinhas
de praia”. Esses dados demonstram a tensão que se tornará cada vez mais
presente nos usos da Praia: aquela que envolve o aumento vertiginoso de
barracas e sua expansão para áreas consideradas públicas e as propostas de
controle do lazer praiano por parte do poder público.4
É possível inferir, a partir daí, que o lazer da Praia do Futuro estava
se estruturando em função de interesses que norteavam discussões sobre a
demarcação dos seus limites físicos e simbólicos, embora já se constatasse
certa confusão entre os “territórios”. Apesar desses limites ainda não serem
questionados como problemas, era dada como fato notório a presença de
contradições entre os usos de sua faixa de praia (jornal O Povo, de 07 de
março de 1979).
Um aspecto fundamental que perpassa as primeiras medidas que
buscavam conter o crescimento das barracas diz respeito à espacialização
das propostas de urbanização. Ou seja, apesar de tais propostas, em grande
parte, terem como pano de fundo toda a extensão da Praia, apenas alguns
trechos foram recebendo, ao longo dos anos, intervenções com vistas à sua
organização como espaço de lazer. Os órgãos fiscalizadores tiveram papel
importante nas dinâmicas de ocupação e usos efetuados pelas barracas.
A seletividade das intervenções com vistas à urbanização é demonstrada pela construção da Praça 31 de Março e das obras de prolongamento
da Avenida Santos Dumont – planejada para ser a principal via de acesso à
Praia e em cuja extremidade se instalou a Praça –, ambas símbolos da “praia
do presente”. Além de “Seu” Marinho, outros barraqueiros me relataram
nas entrevistas e em conversas informais que tais intervenções favoreceram
uma espécie de migração, para aquela área da Praia, de barraqueiros mais
antigos já instalados em outras áreas – como no trecho Chez Pierre-Clube dos
Engenheiros, nas imediações do bairro Serviluz – uma vez que, em virtude
da crescente atenção dada pelo Poder Público, a área da Praça passou a ser
vista como de expansão urbana.
A matéria “Urbanização da Praia do Futuro vai começar”, veiculada pelo
jornal O povo, em 02 de janeiro de 1984, anunciava “a urbanização do trecho
que vai da Avenida Perimetral à Praça 31 de Março”, compreendendo 2.680
metros. Afirmava-se que esse modelo de urbanização seguia o adotado para a
Avenida Beira-Mar; ou seja, no lugar de barracas isoladas, seriam construídos
conjuntos padronizados, reunindo seis barracas cada. E acrescentava, ainda,
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
que o número total dependeria de quantos barraqueiros se apresentassem para
arrendá-las. A prioridade no arrendamento seria dada aos “barraqueiros que
já trabalham naquela parte da orla marítima de Fortaleza”.
Ficaria a cargo da Empresa de Urbanização de Fortaleza (EMURF) –
mais tarde, Empresa Municipal de Limpeza e Urbanização (EMLURB) – a
realização e fiscalização das obras. Uma das primeiras medidas adotadas
por esse órgão foi a cobrança, aos permissionários das barracas, de uma taxa
cujo valor era mais alto do que aquele praticado na Beira-Mar. A taxa tinha
por função, segundo palavras do presidente do órgão citadas na matéria,
complementar as obras realizadas pela Prefeitura no trecho.
Analisamos, agora, outros elementos referenciados por reforçarem
argumentos aqui levantados acerca das interdependências e coerções que
foram circunscrevendo as relações entre Poder Público e barraqueiros dos
trechos que passaram a ser objeto de intervenções. Merece destaque o fato de
a taxa cobrada àqueles barraqueiros que permaneceram no trecho da Praça
ser a mais alta da Cidade, uma espécie de moeda de troca. O terreno pertencia à própria Prefeitura Municipal, não havendo, portanto, necessidade de
desapropriações. Ressalte-se também a obra de urbanização era apresentada
como a mais cara da gestão do prefeito Evandro Ayres de Moura. O arquiteto
contratado foi o mesmo que realizou a urbanização da Avenida Beira-Mar.
Dentre as principais mudanças, estava a construção de quadras de esportes,
bancos de concreto, iluminação pública, posto médico e banheiros públicos.
Cabe lembrar que, alguns anos antes da proposta de urbanização de 1984,
outras medidas foram cogitadas para a Praia, como as de junho e dezembro
de 1981, na gestão municipal de Lúcio Alcântara (1979-1982), alegando-se,
porém, falta de recursos para realizá-las. Lê-se ainda, na matéria jornalística de
02/01/1984, que a proposta era digna de aplausos por favorecer a “higienização
daquele recanto da orla marítima, principalmente as áreas utilizadas para o
lazer de amplas camadas da população”, sendo as principais as de “classe
média, sem maiores opções para a necessária higiene mental”.
Uma “praia sem futuro”: a construção da “praia
do presente” e “do caos urbano”
Durante toda a década de 1980, o crescimento do número de barracas
na Praia resultou em várias medidas visando ao seu controle ou retirada.
A EMLURB assumiu a função de fiscalizadora desse tipo de uso da praia.
As primeiras medidas adotadas se resumiam à retirada das estruturas de
barracas, utilizando-se, inclusive, da força. Logo em seguida, a intervenção
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se estendeu à proposta de estabelecimento de convênios e concessões de
usos a alguns barraqueiros.
Como a delimitação das áreas de praia no estado e restante do País
ainda não havia sido estabelecida do ponto de vista jurídico – o que só ocorreu em 1989, com a Lei de Gerenciamento Costeiro –, em Fortaleza, coube à
EMLURB estabelecer parâmetros para o disciplinamento dos usos das suas
praias. Foi na gestão da prefeita Maria Luiza Fontenele (1986-1989), durante
sua “administração popular”, que se intensificaram tais medidas.
O trecho da Praça 31 de Março – também conhecido como “praia do
meio”, “praia do calçadão” ou “praia nova” – que havia recebido barracas
padronizadas, já reunia também “barracas e cadeiras excedentes”. Para
executar a redução do número de barracas desse trecho, foi criada uma
grande equipe, composta de: quatro coordenadores, 20 fiscais, 72 garis, um
operador de pá mecânica e um auxiliar. Foram utilizadas ainda “10 caçambas,
quatro carros lastro, dez chibancas e dez pés de bode”. A Polícia Federal, a
Polícia Militar e o Batalhão de Polícia de Trânsito atuaram como “grupo de
apoio”. Uma consulta a cerca de 382 pessoas – supostamente “usuárias de
toda a faixa já urbanizada” – revelou insatisfação destas com o “estado de
conservação dos equipamentos e serviços existentes na praia”. (jornal Diário
do Nordeste, de 19/10/87).
No trecho inicial previsto pelo projeto de urbanização, havia cerca de
96 barracas, distribuídas entre apenas 33 proprietários. Cada barraqueiro
“trabalhava numa matriz, além de duas ou três filiais”. “A nossa intenção
é deixar o barraqueiro em apenas uma barraca”, afirmava o presidente da
EMLURB. De toda forma, os barraqueiros permaneceriam, até o término do
projeto, nas barracas existentes até a posterior “delimitação do [novo] espaço
de trabalho”. Era prevista a construção de 28 barracas no lugar das 96, sendo
que aquelas, pelo Projeto, seriam “ampliadas, duplicando o tamanho das
antigas barracas-padrão”.
Em toda a extensão da Praia – isto é, do antigo restaurante e barraca
Chez Pierre ao Clube do Caça e Pesca –, funcionavam 336 barracas, sob o
comando de 155 barraqueiros, dos quais apenas 13 possuíam autorização
de uso do cada vez mais atuante Serviço do Patrimônio da União (jornal
Diário do Nordeste, de 20/10/87), órgão que passou a concentrar as funções
de fiscalização e controle dos usos da praia até então a cargo da EMLURB.
Na negociação de novos critérios alusivos às regras de funcionamento
das barracas e à ocupação das áreas, no trecho, a Associação dos barraqueiros
ficou encarregada de definir juntamente com a empresa municipal, os novos
limites. Àquela altura, os barraqueiros do trecho da Praça 31 de Março passaram
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
a apresentar contrapropostas de urbanização, tentando estabelecer distinções
entre seus estabelecimentos e as barracas-padrão instaladas pela Prefeitura.
Em 1989 – mesmo ano de criação da Lei de Gerenciamento Costeiro
–, a difusão de imagem associando barracas de Praia e lugar desordenado e
caótico parecia se consolidar junto à opinião pública. Nessa ocasião, por conta
do crescente número de barracas, foram intensificadas tais representações,
em particular a de “praia do caos urbano”, e o avanço das barracas passou
a resultar em mais iniciativas dos barraqueiros em torno da elaboração de
propostas alternativas de ordenamento da Praia.
Matéria divulgada no jornal O Povo de 14/05/1989, intitulada “Caos
urbano ameaça o bairro do futuro”, revelava que o próprio “projeto alternativo” dos barraqueiros estava ensejando conflitos de usos e definições dos
espaços entre os “estabelecidos” na Associação e os barraqueiros “excedentes”,
outsiders (ELIAS, 2000). Lê-se no periódico:
O bairro do futuro, sonho de muitos e da classe imobiliária que investiu na praia
com esse nome como uma nova fonte de renda, ainda é obscuro e distante.
Mesmo depois de iniciado o projeto de urbanização envolvendo a Procuradoria
Geral da República, a Prefeitura de Fortaleza, Governo do Estado e Associação
dos Barraqueiros, que desenha um novo contorno para as barracas à beira-mar,
o local continua sendo alvo de grupos de sem-teto. Aleatoriamente, eles armam as suas barracas tanto na orla marítima, com fins comerciais – venda de
bebidas, peixes e caranguejos, somando já um total de 400 – de acordo com os
dados da Procuradoria Geral da República, como fora da faixa de praia, onde
os casebres já formam pequenas favelas (...). O projeto que prevê alinhamento
das barracas, da Praça 31 de Março ao Clube de Engenharia, que foi idealizado
pelos barraqueiros (...). está sendo desrespeitado por eles próprios. As barracas continuam, em sua maioria, com grande parte construída em alvenaria,
ignorando o projeto que prevê a construção em tijolos apenas para cozinhas e
banheiros e a conservação de boa área para a preservação do verde. As cadeiras,
que deveriam ficar apenas na faixa sob a barraca de palha, espalham-se sem
nenhum alinhamento em grande faixa fora das barracas.
Esses barraqueiros excedentes, situados às margens dos projetos oficiais
e alternativos de urbanização do lazer – referidos pela matéria como “barracas”,
“eles próprios”, “grupos de sem tetos” e “pequenas favelas”, não possuíam
representação junto à associação de barraqueiros, configuração tecida entre
os barraqueiros das áreas já urbanizadas, organizada principalmente com
base naqueles instalados no trecho da Praça 31 de Março.
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Os barraqueiros associados à ABPF haviam conseguido, na ocasião,
ampliar em 10 metros a área de suas barracas, além do espaço previsto no
projeto inicial, com o objetivo de pôr mais mesas, cadeiras e empanadas.
Eles passariam a contar, a partir de então, com 42m X 55m na dimensão
de suas barracas. Para o então presidente da Associação dos Barraqueiros,
Raimundo “Quente”, a “regularização” por parte da Prefeitura daria mais
segurança a eles, pois poderiam trabalhar “dentro da lei”. Mesmo assim,
a medida não agradou a todos os associados à ABPF. Para o proprietário
da barraca Itapariká, Fernando Ramos, a ampliação – prevista ainda pelo
Presidente da ABPF – representava área ainda menor do que a estabelecida
pelos barraqueiros antes da urbanização, não aceitando, portanto, “reduzir
o espaço ocupado”.
Os barraqueiros agrupados na AEPF foram construindo posições de
poder nos embates anteriores em torno de propostas de urbanização para a
Praia. Mais à frente, discorro sobre a centralidade da Associação nas vigentes
redefinições de usos e classificações da Praia, ora em consonância com os
agentes públicos, ora de forma independente, dando ênfase ao projeto turístico
Esta praia tem Futuro. Nesse momento, registraram-se maior autonomia e
centralização das medidas e decisões da Associação e dos seus associados no
interior da “mancha” do lazer praiano. Em todo caso, apesar de deixar à margem
a maioria dos barraqueiros instalados na Praia, o projeto “alternativo” passou a
ser incorporado pelos agentes públicos. A legitimidade das novas construções
passou a ser disputada principalmente entre esses atores.
O aspecto rude e simples das barracas-artesanais da “praia velha” passou
a ser o item mais combatido, quando se buscava justificar o crescimento das
barracas-complexo. No próximo segmento, trato da propriedade das barracas
de praia e suas transformações de usos. São analisados documentos, relatórios
e propostas de organização do lazer praiano por instituições como o Serviço
Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), que tem contribuído para intensificar, ao longo dos anos, os aspectos de diferenciação,
racionalização operacional e econômica de alguns desses estabelecimentos.
As barracas da “praia mais badalada da cidade”
Em meio a essa dinâmica – abrangendo desde as primeiras barracas
-artesanais construídas de forma improvisada, com lona, na década de 1970,
às barracas-complexo atuais –, as propriedades dos empresários vinculados
à AEPF foram se tornando marcas características de um lazer praiano – reconhecido dentro e fora da Cidade – e também alvo de conflitos; estes, enRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
volvendo, de um lado, empresários da “praia nova” e, de outro, barraqueiros
da “praia velha”, agentes públicos e vendedores ambulantes.
Aos poucos, as posições no interior dessa “mancha de lazer” foram
estabelecidas com base no acúmulo desigual de propriedades econômicas e
simbólicas, resultando em conflitos de usos, na modificação das estruturas
das barracas e no incremento de aspectos de ornamentação, estilização e
design, tão valorizados nos espaços típicos do chamado “urbanismo pós-moderno” (ARANTES, 2001, 2000b; HARVEY, 2005, 2004). Essas modificações
se intensificaram com a internacionalização da Praia do Futuro, desde a
vinda de investidores estrangeiros, que passaram a adquirir barracas e outros
empreendimentos turísticos, como pousadas e hotéis de luxo.
Não por acaso, os conflitos envolvendo a Secretaria do Patrimônio da
União e empresários se intensificaram, sobremaneira, durante o período em
que o projeto turístico Esta praia tem Futuro realizou intervenções no lazer
organizado pelas barracas, sendo a última delas a implementação do projeto
Guardiões da Praia, em 2006, em cujas torres constam as logomarcas da
AEPF e da Secretaria de Turismo do Estado do Ceará (SETUR). Por ora, cabe
descrever as modificações nas propriedades dos barraqueiros e sua relação
com as posições ocupada, interiormente, nas barracas.
O primeiro convênio firmado entre agentes públicos – Procuradoria
Geral da República, Prefeitura de Fortaleza, por meio da EMLURB, e Patrimônio da União – e barraqueiros previa uma série de restrições aos usos
da Praia, que iam desde a delimitação do tamanho da área a ser ocupada
por parte de cada barraca à quantificação do número de cadeiras e mesas.
Um “termo de permissão de uso”, de 12 de fevereiro de 1990, concedido pela
EMLURB a uma barraqueira, pode ser tratado como referência para captar
algumas dimensões das propriedades, em uso por ocasião das redefinições
de espaço das barracas.
Nesse convênio, a praia era considerada “bem de uso municipal”,
segundo classificação da Prefeitura de Fortaleza, cabendo à permissionária
atender às condições contratuais estabelecidas. Além de questões alusivas
à duração do contrato e valores, outras cláusulas impunham os seguintes
parâmetros: utilizar quantidade máxima de 35 mesas e 140 cadeiras “dentro
do espaço delimitado pela EMLURB”; o objeto do contrato só poderia ser
utilizado com fins comerciais; a transferência do uso da barraca deveria ser
autorizada antecipadamente pela Empresa Municipal; era vedada qualquer
comercialização do espaço publicitário da barraca, por serem as barracas
padronizadas. A barraca do referido Termo, por exemplo, era de tipo D, n°
15, da urbanização da Praia do Futuro.
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Essa tentativa de controle da expansão das propriedades das barracas,
efetuada pela EMLURB, é um marco significativo no processo de mudanças
então ocorrentes, na dinâmica de “integração” e “diferenciação” (ELIAS, 2008;
1994) do seu lazer praiano. Além da AEPF, o SEBRAE ocupou uma função
importante no redimensionamento das barracas, mediante o incentivo ao
empresariamento dos seus serviços e estruturas, que, diferentemente da
Empresa Municipal, propôs seu crescimento físico e econômico.
Um diagnóstico realizado pelo SEBRAE em setembro de 1993, intitulado
Pesquisa setor turismo – barracas de praia, fornece dados complementares
para o entendimento dessas mudanças. O objetivo do diagnóstico era definir
e propor medidas para organizar, do ponto de vista operacional, as barracas
de praia de Fortaleza. Ao todo, foram identificadas 574 “unidades de turismo”
em toda a orla, incluindo hotéis, pousadas e barracas. Destas últimas, 151 se
localizavam na Praia do Futuro, que concentrava 70% do total de barracas
de praia da Cidadev.
Para a Empresa, aspectos como seleção do público, distância, competição
e infraestrutura de lazer justificam-se com base em uma explicação lógica:
sendo mais isolada do que as demais praias – o que remetia à ausência de pouca
infraestrutura urbana –, a Praia do Futuro favorecia a sua utilização apenas
por segmentos mais seletivos do ponto de vista social e de renda. Essa seletividade era apontada como variável responsável pelas mudanças nas estruturas
de barracas da Praia, levando a uma maior concorrência entre barraqueiros.
Até meados da década de 1990, quando essa pesquisa em análise foi
realizada, era comum, além da concentração da propriedade de barracas nas
mãos de poucos barraqueiros, como visto antes, o emprego de familiares
nelas, inclusive muitas das quais servindo também de moradia, denotando
a ausência de uma espécie de racionalização dos seus processos produtivos,
por meio da divisão entre local de trabalho e de moradia, algo que se intensificou com o empresariamento inaugurado pelas barracas-complexos, em
cujo processo o SEBRAE cumpriu papel importante.
Em geral, as barracas das praias de Fortaleza possuíam propriedades
que justificavam sua classificação, por parte do SEBRAE, como microempresas; não poderiam ser designadas como empresas por constituírem “firmas
individuais”. Em média, havia três sócios por barraca, todos pertencentes,
ou não, à mesma família. Cerca de 73% delas possuíam membros familiares
na sua administração. Do total das barracas, 56% empregavam entre 04 e 09
pessoas, enquanto 42% tinham entre 10 e 20 empregados.
A definição do perfil operacional das barracas de praia, por parte do
SEBRAE, se insere em um conjunto de mudanças de usos previstos para tais
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
estabelecimentos. A divisão mais racional se aplicou também sobre o trabalho
e o próprio espaço da barraca, o que intensificou a diferenciação espacial de
algumas delas no interior da “mancha de lazer”. Esse aspecto está presente,
também, em outros espaços urbanos da Cidade – por exemplo: Maciel (2010),
ao tratar do aeroporto de Fortaleza; Bezerra (2009), a respeito da Praia de
Iracema, e Gondim (2007), em análise do Centro Cultural Dragão do Mar – e
também fora da cidade (ZUKIN, 2000). Nesses “espaços urbanos pós-modernos”
predominam a mistura de usos e a estilização dos ambientes.
A ausência de racionalização poderia ser melhor observada, segundo
a Empresa, na gestão administrativa das barracas da Praia. Apenas 62% delas
tinham a prática de “traçar suas metas com regularidade”, o que se refletia
diretamente nos baixos índices de: controle de caixa (57,8% das barracas), fluxo
de caixa (51,17%) e controle de despesas (51,1%). Esses aspectos de “ausência de
controles formais” constatados eram mais característicos, quando se levava em
conta “o porte micro da grande maioria das empresas que ainda se caracteriza
como unidade familiar, onde a presença de parentes ocorre em alto percentual”.
Do total de barracas da Praia, 98% dos proprietários “dirigem eles
próprios seus negócios há mais de 2 anos”; 52% estão há mais de 6 anos, “o
que revela uma estabilidade no ramo”, sendo a propriedade de barracas a
“atividade principal” para 87% dos barraqueiros. O tempo de permanência
na Praia não era apontado pelo SEBRAE como fator preponderante para o seu
“associativismo”. Senão vejamos: apenas 9% estavam registrados no antigo
SINDETUR (Sindicato de Empresas de Turismo) e 24% possuíam registro na
Empresa Brasileira de Turismo (EMBRATUR). Das 151 barracas da Praia do
Futuro, apenas 6,67% dos seus proprietários eram filiados à Associação dos
Barraqueiros da Praia do Futuro, contra 93,33% de não-associados.
No que diz respeito à oferta de produtos pelas barracas, todas comercializavam bebidas alcoólicas, refrigerantes e tira-gostos; 78% trabalhavam
com cardápio impresso; 78% serviam suco ou água; 40% contavam com
som ambiente; 20% apresentavam som ao vivo e 02% possuíam material
para jogos. Esses elementos já constituiriam fatores para diferenciação das
barracas da Praia do Futuro, quando comparadas às existentes nas demais
praias da Cidade. Ainda de acordo com a pesquisa, examinando-se o interior
das barracas da Praia, era notório que aquelas “com maior grau de capitalização procuram elevar seu nível de desempenho e resultados buscando a
oferta de serviços e lazer diferenciados”. Dentre os fatores de diferenciação,
constava que apenas 16% delas ofereciam mais de dez variedades de tiragostos e 07% disponibilizavam mais de 10 tipos diferentes de refeições e
bebidas, excluindo-se a cerveja.
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Em toda a extensão das praias de Fortaleza, a pesquisa assinala o
seguinte padrão de infraestrutura operacional das barracas: 96% possuíam
fogão comum; 91%, instalações elétricas; 80%, instalações hidráulicas; 62%,
geladeiras; 58%, freezers; 24%, transporte próprio e 02%, fogão industrial.
Esse quadro era apontado como revelador da “fragilidade e precariedade
das barracas para uma qualificação para o atendimento turístico”. O fato de
todas as barracas não possuírem instalações elétricas e hidráulicas, cerca de
13% delas, significava que ainda estavam em “estágio de total artesanalidade”.
Conforme a pesquisa, por conta desses elementos comparativos de
diferenciação das propriedades das barracas, a Praia do Futuro já era responsável por atrair certa corrente turística, de maior poder aquisitivo, enquanto
as “barracas instaladas nas demais praias, naturalmente, recebem uma outra
fatia do mercado, formada por clientes nativos e de menor poder aquisitivo”.
No geral, a avaliação da Empresa acerca do “perfil operacional das
barracas de praia” de Fortaleza concluía, em relação à Praia do Futuro, que
a maior concentração espacial delas nesta praia se devia ao fato de ali se
localizarem “as unidades de melhor categorização e com condições de bem
atender ao turista ou visitante da cidade”; que algumas barracas já eram
classificadas como “empresas” e apresentavam “alto grau de consolidação
de propriedades das instalações e experiência gerencial”. Por outro lado,
ainda persistiam alguns traços que a aproximavam das demais praias de
Fortaleza, como “baixo nível de ações de natureza coletiva ou associativa” e
precariedade das instalações higiênicas.
Em 1995, dois anos após o diagnóstico do SEBRAE, era possível assinalar outras classificações oficiais similares das barracas de praia de Fortaleza,
tomando como parâmetro a presença de aspectos de higiene e limpeza.
A Secretaria Estadual do Meio Ambiente (SEMACE), órgão responsável pela
chamada balneabilidade das praias do Estado, lançou nesse ano o projeto
Praia Limpa, com o intuito de intervir nos trechos de praia mais poluídos.
Duas áreas-piloto foram planejadas para a intervenção: a primeira,
compreendendo a Praça 31 de Março, nos limites entre as barracas Água Viva
e Alves, onde havia a presença de 23 unidades; a segunda área, na praia da
Barra do Ceará, nos limites entre o antigo Clube de Regatas e o píer que fazia
divisa com a praia das Goiabeiras. Nesse trecho, havia 144 barracas.
Além dessas áreas iniciais, estava prevista a expansão do Projeto para
outros trechos das praias, abrangendo: na Praia do Futuro, entre a Praça 31
de Março e o clube Caça e Pesca, 42 barracas; da Praça 31 de Março ao início
do Calçadão, onde finalizava o trecho das barracas padronizadas – nos limites
entre as barracas Verde e Branco e Karlux’s –, 45 barracas. Do Calçadão ao
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
antigo Chez Pierre, entre as barracas Esquina do Futuro e Casarão, havia
41 barracas. Por fim, a Beira-Mar, nos limites das barracas Portal do Sol e
Iracema, existiam 66 barracas.
O projeto Praia Limpa tinha como objetivo modificar “o comportamento dos freqüentadores, dos vendedores ambulantes e dos proprietários
de estabelecimentos comerciais (barraqueiros)”. Sua proposta de mudar
comportamento assemelha-se, em menor escala, ao que Elias entende por
“processo civilizador”. Para ele, “as boas maneiras continuam em processo
de formação. O novo padrão não surge da noite para o dia. Algumas formas
de comportamento são proibidas não porque sejam anti-higiênicas, mas
por que são feias à vista e geram associações desagradáveis” (1994, p. 134).
Como parâmetro de classificação das praias – como “limpas”, intermediárias” e “sujas” –, a pesquisa adotou a diferenciação nos aspectos
de higiene e outros, conforme se observa nos dois trechos citados a seguir:
(...) Relacionando-se esta classificação com sua localização na cidade e com o
nível de renda das pessoas que as habitam e/ou freqüentam, pode-se admitir
que o referido serviço prestado pela Prefeitura se orienta nitidamente por um
atendimento diferenciado (...). Com efeito, segundo os dados da pesquisa,
observa-se que as praias esteticamente limpas de Fortaleza são as localizadas
no trecho Praia de Iracema – Beira-Mar. Nesta área, onde estão localizados a
grande maioria de hotéis de luxo, os flat’s mais suntuosos e os condomínios
fechados das pessoas de alto poder aquisitivo, observa-se uma elevado padrão
de eficiência do serviço de limpeza pública, consubstanciado na oferta de um
espaço comparativamente mais limpo.
A pesquisa identificou também “praias de periferia” (“situadas em
bairros de população de baixa renda, tais como, Kartódromo, Barra do Ceará e Goiabeiras”), caracterizadas por apresentarem “configuração inversa
àquela identificada nas praias do trecho Iracema-Beira-Mar”. E ressaltava:
nas imediações da praia do Kartódromo, a situação urbana se agravara, pois
havia se transformado em “lixão”. Quanto à Praia do Futuro, classificou como
“praia intermediária”:
(...) freqüentada principalmente pela classe média de Fortaleza, notabilizou-se
pela oferta de um mar despoluído e de caranguejos que podem ser degustados
em praticamente todas as barracas da orla. Na escala adotada no relatório poder
ser considerada como de situação intermediária entre as praias limpas e as
praias sujas e apresenta trechos mais ou menos limpos em função das ações
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dos comerciantes estabelecidos na área (barraqueiros), dada a insuficiente
capacidade de atendimento da Prefeitura.
A expansão e o crescimento das barracas foram ocorrendo nos embates
entre os agentes envolvidos e revelando disputas simbólicas em torno dos
espaços e significados de praia. O lançamento e a implementação, em 1999,
do projeto turístico Esta praia tem Futuro – uma ação conjunta entre AEPF e
SETUR – são considerados, sob dois aspectos, marco na reviravolta das posições dos barraqueiros acerca dos usos e representações semânticas da Praia.
Em primeiro lugar, essa dinâmica consolidou e legitimou a posição de poder
da AEPF e de seus associados; a entidade concentrava em suas mãos as funções de planejamento do lazer praiano, já que passava a atuar diretamente na
redefinição dos seus novos limites, e outras mais relacionadas com o controle
sobre as armações de outros barraqueiros excedentes. Em segundo lugar, favoreceu, por conta disso, uma sobreposição semântica entre barracas-complexo
e praia, resultando no fenômeno sociológico que pode ser sintetizado no que
Dagnino (2004, 2000) designa como “deslizamento semântico”.
Esta praia tem Futuro: a praia da AEPF
A posição de poder alcançada pela AEPF na configuração de lazer manifestase mais diretamente nos aspectos apontados como negativos que passavam a
caracterizar a Praia do Futuro. A autonomia da entidade e de seus associados,
em relação a outros barraqueiros e ao poder público – em andamento em fins
dos anos 1980 e início da década de 1990 –, foi significativa nas redefinições
do lazer praiano. Durante a vigência do projeto turístico Esta praia tem
Futuro, os aspectos de centralidade da AEPF e de deslizamento semântico
(praia/barraca) foram mais acentuados. Por meio da maior ligação e atuação
dos associados reunidos na AEPF teve curso uma espécie de “processo civilizador” (ELIAS, 1994) do espaço das barracas de praia. Segue-se a análise
de como se deu tal processo.
Em ofício encaminhado em 10 de março de 2000 aos agentes envolvidos6 com o projeto Esta praia em Futuro, a então ABPF relatou algumas
atividades desenvolvidas segundo o “interesse coletivo da Associação”.
Dentre essas ações, mencionavam: o concurso para a confecção da logomarca da Praia do Futuro – lançada esta, oficialmente, no dia 23/03/2000,
na barraca Tropicália, localizada, hoje, na “praia nova”; um mutirão de
limpeza e “campanhas educativas” do SEBRAE/SEMACE/EMLURB; início
da execução do projeto de Urbanização e ordenamento de faixas de praia da
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AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
AEPF, a cargo do arquiteto Inácio Montenegro, contratado pela Associação,
e sob a orientação da Delegacia do Patrimônio da União; florestamento da
Praia, além de um acordo entre a Associação dos Barraqueiros e Órgãos
Públicos com o objetivo de “disciplinar a área de atuação dos vendedores
ambulantes na Praia do Futuro”. Nesse acordo, se havia estabelecido que
nenhum ambulante poderia comercializar seus produtos nos salões das
barracas. Além dessa medida, outra determinava os produtos que poderiam ser vendidos.
O lançamento da logomarca representava, de modo particular, um ato
simbólico fundamental para os barraqueiros reunidos na Associação, uma
vez que passaram a buscar reconhecimento como empresários e não mais
como barraqueiros. A ABPF passava agora a ser divulgada com a sigla AEPF.
É recorrente nas entrevistas que realizei e nas conversas informais mantidas
com os associados à AEPF lembrarem essa distinção, um dos aspectos que
ressaltam a divisão entre “praia nova” e “praia velha”.
A logomarca da AEPF está afixada nas torres do projeto Guardiões da
Praia (ao lado da identificação da SETUR). Nela, além das letras, uma representação de duas mãos cerrando união é retratada, o que remete, segundo a
presidente da Associação, tanto à nova união firmada entre os empresários
quanto à parceria destes com a SETUR. Antes de tratar do “reordenamento
da praia” pela AEPF, cabe lembrar as condições e a estrutura do projeto Esta
praia tem Futuro no qual essa proposta de reordenamento se insere.
Por ocasião do lançamento do Esta praia tem Futuro, algumas condições eram lembradas, pela então ABPF, para a eficácia das medidas a serem
adotadas: ela dependeria da “organização dos agentes, conciliação de interesses e da vontade política para resolver os problemas da Praia do Futuro”; “o
projeto deverá resolver os problemas do presente, no entanto, já preparando
as condições para concretizar ações portadoras de futuro” e a identificação de
prioridades para a Praia, dentre as quais questões de infraestrutura, limpeza
e higiene, profissionalização dos barraqueiros e segurança.
O Projeto foi, assim, a ser subdividido entre cinco grupos de trabalho,
com vistas a atender suas prioridades de modo mais autônomo. Foram eles:
Grupos de urbanização e infraestrutura; segurança; equipamentos; capacitação/qualidade e imagem/comunicação. Conforme a proposta, trabalhariam
“pontos prioritários, objetivando promover e consolidar a Praia do Futuro
como Centro Turístico, tornando-a competitiva, melhorando sua habitabilidade, conservando e resgatando sua imagem”.
Nos vários ofícios aos quais tive acesso, encaminhados pela SETUR
e pela AEPF a outros agentes públicos e privados, era-lhes cobrada partiRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
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cipação em um desses grupos, ao mesmo tempo em que era lembrada a
urgência da concretização das ações previstas. Aos olhos desses dois agentes,
só com o engajamento de todos os empresários associados se poderia alcançar o objetivo principal do Projeto, que era “transformar a praia em um
modelo de serviços”. Para isso, algumas estratégias foram encaminhadas
de modo prioritário, com o intuito de dar mais visibilidade às ações. Atuar
diretamente sobre as armações de outros barraqueiros que impediam,
para a AEPF, a construção de uma “nova” Praia do Futuro parecia ser a
medida mais urgente a ser tomada: “Nós que fazemos a Praia do Futuro
somos conscientes de que as mudanças que necessitam ser implantadas
nesta praia, não são simples, sabemos que é um projeto de médio e longo
prazo” – lembrava a AEPF.
Em ofício de 06 de novembro de 2001, o Secretário de Turismo do
Estado, Sr. Raimundo Viana, lembrava:
(...) estamos trabalhando em ações concentradas na melhoria geral da praia
[Grifo meu] e que solicitamos à Prefeitura, em reunião conjunta, ações de
limpeza pública, trabalho com ambulantes, iluminação e sinalização (...)
Ressaltamos que este mês entrou em funcionamento o Hotel Vila Galé, que é
voltado para um público nacional e internacional, cuja captação do investimento, bem como do Hotel Lisboa foi ação da SETUR, colocando a Praia do
Futuro no mapa do turismo internacional.
Àquela altura, a AEPF, então assumindo uma posição mais determinante,
reunia cerca de 108 empresários associados, responsáveis por empregar mais
de 3.000 funcionários diretos e por abrigar nas áreas de praia próximas às
barracas em torno de 9.000 empregos indiretos (Ofício à SETUR, de 07 de
dezembro de 2000). Nem todos os barraqueiros, todavia, estavam associados
à AEPF, em particular, os do trecho da “praia velha”.
As discussões levadas a efeito nas reuniões organizadas para elaboração
e implementação do Projeto – que ocorriam nas dependências das barracas
da “praia nova”, (por exemplo: Chico do Caranguejo, Crocodilo, Itapariká,
América do Sol e Marulho, principalmente); ou na própria sede da SETUR
– eram sempre acaloradas, já que envolviam debates sobre intervenções de
grande vulto. Elas podem ser consideradas aqui como espaços de produção
do consenso que se buscava estabelecer acerca da praia. Durante essas reuniões, se tecia uma rede de informação e comunicação entre empresários
ligados à AEPF – responsável por circular significados de praia em jogo mais
ou menos comuns entre esses agentes.
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210
AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
O consenso foi estabelecido em torno dos seguintes aspectos prioritários: infraestrutura e serviços públicos, tais como “segurança, higiene,
saneamento básico, preços cobrados e assédio de vendedores ambulantes no
interior de barracas e na praia, bem como a regulamentação da atividade de
‘barraqueiros’. Essa relação de prioridades além de se basear nas constatações
dos barraqueiros, é fruto de pesquisa realizada junto aos freqüentadores da
praia” (AEPF, “SETUR divulgará plano de ação para a Praia do Futuro”, de
22 de novembro de 1999).
Em novembro de 1999, poucos meses após o lançamento oficial do
Projeto, a AEPF já realizava, por conta própria, e sob fiscalização da DPU,
o “ordenamento das faixas de praia, delimitando a área de ocupação das
barracas e a retirada de estabelecimentos abandonados em áreas da União”.
Nesse período, eram contabilizadas seis barracas abandonadas, retiradas,
sendo que outras oito tinham demolição prevista.
Analisando o “relatório de vistoria das barracas do trecho 1” (produzido pelo Projeto, de dezembro do mesmo ano), onde se situam as barracas
da “praia velha”, é possível inferir que um número maior de barracas era
objeto de remoção. Dos cinco trechos classificados para intervenção, o de
número 01 apresentava “problemas mais urgentes”. Ao todo, foram identificadas 38 barracas nesse trecho, considerado pelos empresários reunidos
na AEPF como o principal referencial de contraste para a construção da
“nova Praia do Futuro”.
Além de propor mudanças nos aspectos arquitetônicos e externos das
barracas, as regras de atendimento e manuseio de alimentos constituíam
também fatores fundamentais para a constituição de uma “nova praia”. Nos
anos que se seguiram ao Projeto, várias medidas de mudança nas práticas
apontadas como tradicionais no interior das barracas passaram a ser propostas. O SEBRAE foi responsável por orientar todos os cursos e seminários
com essa finalidade. O intuito era transformar a qualidade dos serviços oferecidos nas barracas, seja daqueles realizados na cozinha, seja no trabalho
de atendimento dos garçons.
A referência a um dos documentos utilizados nesses cursos, tomado
aqui como espécie de “manual de etiqueta e de bons modos” (ELIAS, 1994),
fornece pistas instigantes acerca das novas regras de comportamento incentivadas desde então. A centralidade alcançada pelas barracas-complexo
deve-se, em grande parte, às mudanças de usos da praia. Além das medidas
impostas pelos empresários aos garçons, os clientes passaram também a
exercer pressões a favor de novos padrões de comportamento, da qualidade
dos serviços e dos produtos ofertados durante o lazer.
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Wellington Ricardo Nogueira Maciel
211
No mesmo ano de lançamento do projeto Esta praia em Futuro, um
seminário intitulado “Qualidade no atendimento”, realizado na barraca Marulho – então sede da AEPF e propriedade de sua presidente –, prescrevia regras
de comportamento e habilidades requeridas ao “garçom de praia”. Embora
considerasse que algumas regras poderiam ser transpostas de espaços mais
tradicionais de atuação do garçom, como os restaurantes, o seminário estabelecia um atendimento diferenciado e específico para as barracas de praia.
Algumas qualidades deveriam assim ser atendidas. O primeiro e mais
importante aspecto a ser observado se referia ao comportamento:
As regras de atendimento não são muito diferentes de restaurante para restaurante. Estando num restaurante de hotel ou em uma barraca praiana, o
cliente espera sempre de quem o atende, atitudes comportamentais básicas.
Garçons fumando ou mascando chicletes, por exemplo, choca tanto quem está
num restaurante à la carte quanto numa barraca de praia. Garçons trocando
informações entre si aos gritos também passam a idéia de desrespeito.
O garçom deveria seguir regras básicas, como boa postura e apresentar-se:
(...) sem bigodes, de cabelos penteados, unhas limpas e sem esmalte, sem perfume, sem desodorantes fortes, sem jóia (abrindo-se exceção para alianças e
relógios discretos) com uniformes impecáveis e levando no bolso só o material
necessário para o trabalho: abridor, caneta, talão de comanda, fósforos e um
guardanapo, de preferência branco.
Conforme as orientações do Seminário, o “garçom de praia” deveria
reunir ainda outros traços comportamentais:
(...) Ter sensibilidade diante das diversas situações; ser pontual; ser cortês no
atendimento de clientes internos e externos; ter tato para lidar com problemas
e pessoas; ter firmeza de caráter (as pessoas de comportamento dúbio não são
respeitadas entre os colegas e nem aceitas pelos empregadores); estar atento à
linguagem corporal utilizada; ter habilidade de uso do tom de voz; ser capaz
de apresentar atendimento personalizado.
As condições de trabalho, em se tratando de praia, impunham exigências que se distanciariam dos preceitos morais acerca do caráter ou
personalidade do garçom, embora deles não prescindissem. A areia da praia
obrigaria o garçom a “deslocar-se de forma mais discreta”. Este deveria ser
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212
AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
“elegante no transitar entre clientes”. O fato de se tratar de local ventilado e
próximo ao mar exige habilidades na comunicação: “a falta de acústica da
praia exige tom de voz acima do normal”.
Outras “boas maneiras” (ELIAS, 1994) deveriam ser atendidas na
realização do trabalho do garçom:
(...) durante o período de trabalho não é permitido aos garçons postura desleixada, tais como: ficar encostado nos coqueiros, balaústres ou toldos das
mesas”; o fato do serviço ser realizado na descontração de uma praia não é
motivo para que o garçom deixe de atentar para a seriedade do seu trabalho;
o garçom de praia deve estar preparado para situações adversas, como, por
exemplo, jogos nas areias de frescobol, voleibol ou pipa, que possam causar
incômodo ou mesmo acidentes.
O manual concluía expondo outras exigências consideradas fundamentais ao bom trabalho dos “garçons de praia”. Dentre estas, as características
físicas e intelectuais. Em relação às primeiras, as condições impostas ao “garçom
de praia” pela topografia do local envolviam aspectos de agilidade e destreza:
(...) destreza manual [sic] (o garçom de barraca deve ser hábil na condução
de bandejas, garrafas e demais materiais de praia); equilíbrio (deslocar-se na
areia requer preparo acima do normal. O garçom de barraca deve ter físico
apropriado para exercer essa função. Embora não seja exigência, os profissionais
que não fumam e não bebem levam vantagem em relação a estes); fonação e
audição normais (um garçom gago ou fanhoso pode causar embaraços tanto
aos clientes quanto a si mesmo); visão (trabalhar exposto ao sol e à claridade
excessiva de uma praia requer dos profissionais uma visão acostumada ao ambiente. O uso de óculos escuros não é aconselhável); olfato e paladar apurados
(praticamente todos os frutos do mar exalam fortes odores. Desta forma, os
utensílios utilizados no serviço de barraca merecem atenção redobrada, pois
podem deixar cheiros desagradáveis de um cliente para outro. Isso requer do
garçom olfato aguçado para perceber possíveis odores indesejáveis. O paladar
evita que comidas estragadas cheguem à mesa do cliente); por último, sensibilidade (ser capaz de distinguir se uma cerveja está na temperatura adequada ou
se o prato não esfriou é de fundamental importância. Ser capaz de reconhecer
diferenças nas cores ou odores dos produtos também é importante).
As regras para o “bom atendimento” incluíam ainda aptidões “intelectuais” e de “personalidade” com vistas a satisfazer o “cliente de barraca”,
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considerado distinto daqueles que comumente frequentam restaurantes.
O manual prescrevia como exigência intelectual ter: “boa memória”, “capacidade de compreensão oral”, “facilidade para o domínio de línguas estrangeiras”, “memória de nomes, números, objetos e fisionomia”. No que se
refere à “personalidade” do garçom, esperava-se que ele revelasse durante
seu trabalho “honestidade, simpatia, sociabilidade, vivacidade, persistência,
estabilidade emocional e discrição”.
Além da consulta a esses manuais, por diversas vezes, pude registrar
nas entrevistas e em conversas informais com empresários ligados à AEPF o
relato, em tom negativo, do trabalho realizado pelos garçons antes do Projeto
e da atuação positiva do SEBRAE. Frequentemente, eles eram acusados de
se apresentarem mal vestidos, de realizarem roubos a clientes e de estarem
despreparados para atender turistas e fortalezenses.
Atento a essas observações, o SEBRAE passava a incentivar mudanças
nas práticas de atendimento no interior das barracas, resultando, ao lado de
outras similares, no cerceamento do sentido de praia que a dinâmica desses
equipamentos parece ter favorecido. Essas regras de comportamento impostas mais recentemente aos garçons pela Empresa surgiram paralelamente às
mudanças nos padrões das barracas e aos novos hábitos que os clientes que
passaram a frequentá-las puderam praticar. Nesses complexos há espaços
mais restritos para a realização de refeições e cuidados com a higiene pessoal.
Sem falar que os novos padrões de cozinha internacional desses complexos
retiram da vida pública (ELIAS, 1994) a armazenagem, o tratamento e o
preparo dos alimentos. Nas palavras de N. Elias:
Este isolamento das funções naturais da vida pública, e a correspondente
regulação ou moldagem das necessidades instintivas, porém, só se tornaram
possíveis porque, juntamente com a sensibilidade crescente, surgiu um aparelhamento técnico que solucionou de maneira muito satisfatória o problema
da eliminação dessas funções na vida social e seu deslocamento para locais
mais discretos. A situação não foi diferente no tocante à mesa. O processo de
mudança social e o avanço das fronteiras da vergonha e do patamar de repugnância não podem ser explicados por qualquer condição isolada e, decerto, não
pelo desenvolvimento da tecnologia ou pelas descobertas científicas. Muito ao
contrário, não seria difícil demonstrar as bases sociogenéticas e psicogenéticas
dessas invenções e descobertas. (ELIAS, 1994, p. 144).
À mesa, na “quinta do caranguejo”, são marcantes os modos como o
consumo do crustáceo se tornou algo ritualizado e pacientemente realizado.
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214
AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
Apesar de o prato exalar forte cheiro por comportar bastante molho e condimentos, nas barracas-complexo a forma como o caranguejo é preparado
e consumido revela distanciamento de usos e costumes encontrados nas
barracas-artesanais ou mesmo antes delas, quando os alimentos eram preparados à vista de todos, sem grandes requintes ou sofisticação.
A grande procura pelos serviços diferenciados de atendimento das
barracas-complexo, hoje, por parte de turistas e visitantes que se dirigem à Praia do Futuro, é um indício dessas transformações operadas nas
barracas de praia.
Nas avaliações de clientes e frequentadores, dos serviços do lazer praiano, a alusão ao trabalho de garçons configura-se como um dos aspectos mais
ressaltados. Outros, porém, são lembrados atuando nas classificações da Praia
do Futuro em “praia nova” e “velha”. É digno de nota, nesse sentido, o texto
intitulado “Avaliação da Praia do Futuro segundo seus freqüentadores”, produzido pela SETUR no ano de lançamento do projeto Esta praia tem Futuro.
Segundo essa Secretaria, os dados referentes aos frequentadores da
Praia, em 1999, revelavam o seguinte: 52,7% residiam fora de Fortaleza, dos
quais 5,9%, em diferentes cidades do estado e 46,8% em outros estados.
Os residentes em Fortaleza somavam 47,3%. A Praia possuía um público
assíduo em torno de 29,3%, dos quais 5,8% frequentavam todos os dias, e
os demais 70,7% são frequentadores eventuais. Entre os frequentadores que
eventualmente visitaram a Praia do Futuro, 74,6% eram turistas, dos quais
66,2% residiam fora do Ceará e 8,4% no restante do estado. Os residentes em
Fortaleza representavam 25,4%.
Esses dados alusivos à concentração eventual do público em alguns
dias são reveladores do fato de o lazer da Praia haver caminhado, após o
Projeto e as ações do SEBRAE, para uma certa temporalidade socioespacial,
transformando-a fisicamente e, em consequência, os significados semânticos
comumente atribuídos à praia (“bem público de uso comum do povo”). Essa
temporalidade elegeu “o domingo na praia”, “a quinta do caranguejo” e os
dias de shows e eventos como os mais significativos na sedimentação de sua
imagem atual de lugar praiano.
Considerações finais
Este artigo analisou os traços de redefinição dos usos emprestados pelos
complexos de lazer à Praia do Futuro, associados por empresários, moradores
e visitantes como os espaços mais representativos da “praia mais badalada
da cidade”. As redefinições que as barracas-complexo imprimem aos usos
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
Wellington Ricardo Nogueira Maciel
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do lazer da Praia do Futuro parecem revelar mudanças significativas do
planejamento público e privado de praias, em curso no Brasil. Conforme
Ferreira de Paula (2005), é comum nas propostas de planejamento de praias
no Brasil definir pelo menos três zonas, cada qual possuindo uma funcionalidade objetiva: uma zona ativa, dedicada ao banho e aos esportes; uma
zona de descanso, onde há presença de guarda-sóis e cadeiras; e uma zona
de reserva, contando com vestiários e restaurantes usualmente localizados
em uma avenida à beira-mar ou em calçadão, quando esse existe. É o caso
da famosa Copacabana e sua Avenida Atlântica.
Como visto, a constatação, por parte da AEPF e do SEBRAE, do caráter
precário e artesanal das barracas da “praia velha” – seja do ponto de vista das
estruturas, seja quanto aos aspectos de higiene e limpeza – resultou, em fins
dos anos 1990, numa tentativa de gestão compartilhada entre a Associação
e a Secretaria de Turismo do Estado. O projeto Esta praia tem Futuro é considerado, nesse sentido, aquele que pôs em prática várias ações e propostas
de reorganização do lazer praiano, com suporte nos quais se intensificou
a divisão entre “praia nova” e “praia velha” e as posições ocupadas pelas
barracas-complexo no seu interior.
É comum, no discurso dos barraqueiros associados e nos registros
documentais levantados neste artigo junto à AEPF, se justificar a existência
dos grandes complexos de lazer pela necessidade de superar a improvisação
das primeiras barracas e para atender ao público, que, por volta das décadas
de 1960/1970, se dirigia à Praia do Futuro em busca do seu lazer praiano:
um público, na avaliação da Associação, “simples, descontraído, informal e
desprogramado”. Os significados de palavras como “barraquinhas”, “organização”, “público”, entre outras, revelam outras apropriações semânticas,
realizadas pela AEPF, das transformações dos usos do lazer praiano, em
referência às qualidades atribuídas às barracas-artesanais.
A posição ocupada pela AEPF no interior dessa transformação resultou
em algumas mudanças fundamentais na sua atual classificação como lugar
praiano. O crescimento das barracas-complexo pode ser avaliado como parte
de um processo de profissionalização e fechamento do sentido atribuído à
praia. O exemplo da Praia do Futuro ensina que as formas de organização do
lazer praiano não apenas se modificam ao longo dos anos, bem como redefinem as fronteiras simbólicas do que se entende por praia, proporcionado
apropriações físicas e simbólicas que obedecem às várias temporalidades
socioespaciais mais comuns.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
216
NOTAS
AS BARRACAS DE PRAIA E A “CIVILIZAÇÃO” DO LAZER
A Praia do Futuro se encontra ao leste de Fortaleza, Capital do Estado do
Ceará. Divide-se, do ponto de vista da administração municipal, em duas
grandes áreas: Praia do Futuro I, que tem início nas proximidades dos bairros
Mucuripe e Cais do Porto, indo até a rua Renato Braga, nas imediações do
Clube dos Engenheiros; e a Praia do Futuro II, que segue desse trecho até o rio
Cocó, na divisa com a Praia da Sabiaguaba, último trecho de orla da Cidade.
Segundo dados do censo do IBGE, de 2010, a Praia do Futuro I possui 6.630
habitantes, enquanto a Praia do Futuro II reúne 11.957, totalizando em conjunto 18.587 moradores. Em dez anos, a Praia do Futuro I. teve crescimento
populacional de 127,29%.
1
No guia de praias de Freire (2008), encontram-se descrições e avaliações das
“megabarracas da Praia do Futuro”: “a CrocoBeach é a mais incrementada,
com um deck sob o coqueiral; a Atlantidz, a mais bem decorada; a Vila Galé,
a mais calminha; a Vira Verão, o point da geração saúde, a única que mantém
as cadeirinhas de madeira e as cabaninhas de palha de antigamente. Porém é
a Cabumba, a preferida dos alternativos e do pessoal GLS. Quinta-feira acontece um fenômeno: meia cidade vai à praia à noite para comer caranguejo”.
2
3
Os trechos de depoimentos que se seguem foram extraídos de entrevista
que me foi concedida, em março de 2010, por “Seu” Marinho, empresário
associado à AEPF.
Na ação civil pública, de 2005, do Ministério Público, ainda em vigor, estão
previstas a demolição de todas as barracas da Praia do Futuro e sua reorganização em barracas padronizadas. Essa medida foi dada como definitiva em
outubro de 2010 por meio de uma sentença. É constatado que, do total das
barracas, 101 impedem o livre acesso à praia por meio de obstáculos como
cercas, muros e tendas; 43 realizam “apropriação clandestina de trechos de
praia”, enquanto 98 ocupam área que excedem o limite de ocupação permitida. Nos últimos anos, o complexo CrocoBeach cresceu mais que cada
uma das barracas da Praia do Futuro. Segundo consta na Ação de 2005, o
complexo excede atualmente em 6.318,15 m2 a área de uso permitida pelo
Patrimônio da União. Apenas seis barracas-complexo se aproximam dessa
marca: Estação do Sol (4.281, 39 m2), Marinho’s Beach (4.929,23 m2), Itapariká (4.075,58 m2), Castelo Beach (5.155,35 m2), Arpão (5.267,25 m2) e
Paraíso Ecológico (4.568,80 m2).
4
5
Além das barracas da Praia do Futuro, foram pesquisadas as das praias da
Beira-Mar (66), Iracema (02) e Mirante (07).
6
Empresários e representantes do Patrimônio da União.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
Wellington Ricardo Nogueira Maciel
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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
Wellington Ricardo Nogueira Maciel
Palavras-chave:
usos, lazer praiano,
espaço urbano, Praia do
Futuro.
Keywords:
uses, seaside leisure,
urban space, Praia do Futuro.
219
RESUMO
A presença de grande número de barracas de praia (espécies de bares, restaurantes e casas de shows à beira-mar) na
Praia do Futuro é um aspecto importante para compreender o
seu lugar na dinâmica urbana contemporânea. Nos últimos anos,
algumas barracas cresceram e passaram por uma diferenciação
que tem resultado na modificação do sentido jurídico de praia
(“bem público de uso comum do povo”) consagrado em leis
brasileiras específicas. Em contraposição aos barraqueiros
outsiders da “praia velha”, essa redefinição é realizada mais
intensamente por parte das barracas-complexo de propriedade
dos empresários estabelecidas na Associação dos Empresários
da Praia do Futuro (AEPF). As barracas-complexo se diferenciam das barracas-artesanais quanto à arquitetura e no que
se refere aos traços de estilização estética, aspectos bastante
valorizados atualmente pelo city marketing.
ABSTRACT
The presence of a large number of beach tents (kinds of
pubs, restaurants, show establishment by the sea) in Praia do
Futuro is an important aspect in order it can be understood
within the contemporary urban dynamics. In recent years some
tents expanded and passed through a change that resulted
in a modification of the juridical meaning of the word beach
(“public goods of people common use”) anointed in the specific
Brazilian laws. In contrast to the outsiders of “old beach”, this
redefinition is achieved more intensely by the owners of the
tents-complexes established in the Association of Businessmen
of Praia do Futuro (AEPF). The tents-complexes differ from
the craft-tents concerning to architecture and regarding to
stylish esthetic features, aspects that are well valued currently
by the city marketing.
Recebido para publicação em fevereiro/2013. Aceito em abril/2013.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 187-219
Pequena empresa inovadora
e desenvolvimento: indústria
naval em Rio Grande
1
Sandro Ruduit Garcia
Doutor em Sociologia pela UFRGS. Professor do Departamento
de Sociologia e do PPG Sociologia/ IFCH/UFRGS. Autor de
Global e Local: o pólo automobilístico de Gravataí, São Paulo:
Editora Annablume, 2009.
E-mail: [email protected] .
introdução
O recente desenvolvimento das chamadas “economias emergentes”2 tem ensejado uma frutífera produção científica sobre
a situação e a trajetória de setores, regiões, organizações e
profissões, suscitando questionamentos sobre a relação entre
produção de alta tecnologia no centro e fabricação de baixo custo
na periferia do sistema capitalista, que levaria à importação de
pacotes tecnológicos como estratégia de acesso à inovação na
periferia do sistema. O ímpeto transformador da expansão global
de um novo paradigma de desenvolvimento econômico3 tem se
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
222
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
desdobrado em uma variedade de arranjos sociais concretos entre agentes
econômicos cujas trajetórias podem ser cientificamente particularizadas4.
O presente artigo analisa a questão dos processos de desenvolvimento econômico, indagando sobre as implicações socioeconômicas decorrentes da
implantação de unidades industriais que constituem redes entre atores produtivos diversos, enfocando o desempenho de pequenas empresas inovadoras.
O argumento em discussão para a análise do fenômeno sustenta
que a expansão global de um novo paradigma de desenvolvimento tende a
propagar novas lógicas organizacionais que favorecem a formação de redes
entre agentes produtivos diversos, abrindo-se novos espaços de ação para a
pequena empresa. O desenvolvimento econômico e industrial sustenta-se,
hoje, pela lógica de redes, diferentemente da empresa verticalmente integrada do passado. Nessa nova lógica, o desempenho de pequenas empresas é,
pois, condicionado pelas chances de interação com atores organizacionais,
em especial universidades, possibilitando o acesso a recursos relevantes, a
identificação de complementaridades e o estabelecimento de ações conjuntas. Isso significa que segmentos das pequenas empresas podem ocupar um
novo lugar nessa lógica organizacional e nos processos de desenvolvimento
econômico e social, envolvendo atividades de inovação, inserção em novos
mercados e uso de mão-de-obra altamente qualificada. O desabrochar de
pequenas empresas inovadoras representaria uma novidade no contexto do
país que se habituou não apenas a perceber a pequena empresa na periferia
de “cadeias de fornecimento”, mas também a acessar inovações pela compra
de tecnologia e pelo investimento estrangeiro.
Essa discussão é realizada com apoio na observação da experiência
de formação e expansão – desde meados desta primeira década do século XXI – de um cluster5 de construção naval localizado na cidade de Rio
Grande, no Sul do estado do Rio Grande do Sul6. O caso em estudo torna-se
sociologicamente interessante porque os investimentos nas novas unidades
industriais – montagem de plataformas e sondas marítimas para extração e
processamento de petróleo e construção de navios – realizam-se numa região
econômica e socialmente deprimida e, em especial, sem tradição nesse tipo
de indústria. Porém, a construção naval do país tem sido ativada pelas descobertas de petróleo e gás natural na camada geológica do pré-sal, na costa
marítima brasileira, e pelos desafios científicos e tecnológicos envolvidos
na sua exploração, demandando conhecimentos e tecnologias distintas das
atualmente disponíveis: trata-se de águas mais profundas e frias, de solo
mais salinizado e corrosivo, de condições de luminosidade e pressão mais
adversas, de localização mais distante do continente, e de petróleo mais peRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
Sandro Ruduit Garcia
223
sado e ácido. Isso requer inovações em produtos, em processos, em logística
e em comercialização, desde a reconstrução da indústria de construção naval
até o redirecionamento de refinarias de óleo cru, passando pela adaptação
de diversos setores relacionados, como o siderúrgico, o metalmecânico e
o eletroeletrônico. Ademais, a recente experiência de Rio Grande ocorre
em meio a novas perspectivas de desenvolvimento no país: em lugar da
importação de tecnologia, de mercado fechado e protegido e do incentivo à
grande empresa isolada, opta-se, respectivamente, pelo esforço em inovar,
pela orientação para a inserção internacional e pelo incentivo a redes de
interação entre agentes diversos.
Com suporte nessas justificativas, o objetivo deste artigo é analisar
o processo de implantação e expansão do cluster de construção naval de
Rio Grande (estaleiros, fornecedores de sistemas, prestadores de serviços,
comissionamento e engenharia) e suas implicações socioeconômicas na
constituição de redes de colaboração entre agentes organizacionais (empresas, universidades, associações e governos) e, especialmente, nas atividades
de pequenas empresas (criação de inovação, inserção nos mercados, uso de
recursos humanos, formas de interação com outros agentes), tendo em vista
discutir aspectos do curso do desenvolvimento de “economias emergentes”.
O approach teórico-metodológico orienta-se pela compreensão relacional desse experimento industrial, mediante a identificação de sua imersão
no contexto de redes de colaboração que perpassam o curso de ação dos
agentes em estudo, enfatizando-se a situação das pequenas empresas. Neste
sentido, tenta-se evitar o apelo a causas únicas e determinísticas que levariam
a simplificações redutoras ou à simples expressão da realidade pelo ponto
de vista dos atores. Os procedimentos de investigação empírica envolveram
pesquisa de campo conjugada com ampla pesquisa em fontes secundárias
(jornais locais, documentos e bases estatísticas)7. A pesquisa de campo foi
efetivada no período entre agosto/2011 e julho/2012, realizando-se ao todo 18
entrevistas semi-estruturadas em Rio Grande, Pelotas e Porto Alegre. Foram
visitadas oito pequenas empresas: quatro em Rio Grande e quatro em Porto
Alegre. As empresas integram a Rede Petro, sendo produtoras de bens e serviços envolvidos na aglomeração de produção naval de Rio Grande8. Ademais,
foram visitadas três universidades federais (em Rio Grande, Pelotas e Porto
Alegre), selecionadas por desenvolverem ações relevantes de interação com
a aglomeração estudada9, assim como o Sindicato dos Metalúrgicos de Rio
Grande, o Conselho Regional de Desenvolvimento (Corede Sul), o Sindicato
dos Operadores Portuários (Sindop/RS), o Serviço Brasileiro de Apoio à Micro
e Pequena Empresa (SEBRAE/RS), a Prefeitura de Rio Grande e um Estaleiro.
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224
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
Após esta introdução, o texto organiza-se em três seções, seguindose considerações finais. A seguir, é apresentada a argumentação teórica que
sustenta a análise, abordando aspectos da literatura relativa ao paradigma
informacional global, à dinâmica dos atores e organizações imbricadas em
processos de desenvolvimento econômico e ao espaço de ação e estratégias
das pequenas empresas no novo contexto. Mencionam-se ainda aspectos da
literatura sobre indústria de construção naval no país. Após, são apresentados
e analisados os dados relativos à constituição do cluster industrial de Rio
Grande e às respostas das organizações ligadas ao novo empreendimento,
destacando-se a formação de redes entre atores produtivos diversos. Em seguida, são expostos os resultados sobre as pequenas empresas investigadas,
considerando-se suas interações com outras empresas, com universidades
e com governos, os esforços e atividades de inovação, a inserção em novos
mercados e as práticas de gestão de recursos humanos. Finalmente, são apresentadas as principais conclusões e questionamentos resultantes da análise.
Desenvolvimento, redes e pequena empresa
A argumentação proposta neste artigo parte do reconhecimento da expansão
global do paradigma informacional de desenvolvimento e da recente ascensão
de “economias emergentes” (AMSDEN, 2009; CASTELLS, 1999; FLORIDA,
2011; O’NEILL, 2012; SHAPIRO, 2010). A tese do paradigma informacional
sustenta-se em estudos que consideram fatores não apenas de ordem macroeconômica e político-institucional, mas também avançam na direção de
variáveis socioculturais situadas num plano micro (como, empreendedorismo,
cálculo estratégico, sistemas de símbolos e disposições envolvidos na ação) e
num plano meso-social (por exemplo, características das organizações, capital
social, formas de governança e coordenação de interesses entre os atores).
O paradigma informacional assentar-se-ia no desenvolvimento de uma
nova lógica organizacional (redes) relacionada com a transformação tecnológica
(TIC’s), mas “essa lógica organizacional manifesta-se sob diferentes formas
em vários contextos culturais e institucionais” (CASTELLS, 1999, p. 174).
Essa nova lógica organizacional envolveria, entre outros aspectos, diferentes
padrões de conexão entre grandes e pequenas empresas, destacando-se as
“redes de subcontratação” e as “redes multidirecionais” (mais próximas deste
estudo). No primeiro caso, as pequenas empresas ficariam sob o domínio
financeiro ou tecnológico da grande empresa, ao passo que, no segundo caso,
a pequena empresa tomaria a iniciativa de estabelecer relações em várias
redes com diferentes grandes empresas e mesmo com pequenas empresas,
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Sandro Ruduit Garcia
225
encontrando nichos de mercado e empreendimentos colaborativos (CASTELLS,
1999). Como lembra Florida (2011), a economia atual vive da complementaridade entre grande e pequena empresa e entre essas e uma pluralidade de
outras organizações com diferentes papéis a desempenhar e contribuir para
a vitalidade econômica. Outra dicotomia a ser superada refere-se à oposição
entre indústria e serviços no empuxe ao desenvolvimento. Mais importante
do que o setor econômico, seria distinguir níveis de intensidade e uso de
conhecimento e de aplicação tecnológica envolvidos na atividade produtiva
(POWELL & SNELLMAN, 2004).
Nestes termos, a expansão do paradigma informacional tem propiciado
oportunidades de desenvolvimento tecnológico e de criação e comercialização
de produtos inovadores aos países emergentes, superando-se os modelos de
substituição de importações, a estrita importação de pacotes tecnológicos
como acesso à inovação, e a simples exportação de commodities (SHAPIRO, 2010). O novo contexto instiga o Estado brasileiro a superar um “déficit
institucional” com relação às políticas de inovação que se guiaram, desde a
década de 1950 até início dos anos 1990, pela substituição de importações
(ARBIX, 2010). O registro de experiências de ascensão de economias de
industrialização tardia tem mostrado a importância da mudança no papel e
nas estratégias do Estado, fazendo conhecer as diferenças nos resultados de
países que buscaram a criação independente de tecnologias (por exemplo,
China, Índia e Coréia) e países que foram recalcitrantes a esse respeito, optando pela aquisição de tecnologia, como Brasil, Argentina, Chile, México e
Turquia (AMSDEN, 2009).
Numa dimensão organizacional, Powell, Packalen e Whittington
(2010) afirmam que a formação de redes inter-organizacionais (organizações públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos) animaria clusters de
alta tecnologia, desde que essas redes envolvessem diversidade organizacional assim como organizações catalisadoras de normas e promotoras de
relações densas entre as partes. Isso expressaria a constituição de novos
campos institucionais capazes de aproveitar e sustentar relações de complementaridade entre interesses diversos no cluster. Nesse sentido, Manzo
(2011) assevera que o estudo sobre inovação precisa confrontar diferentes
perspectivas de análise, considerando-se não somente as relações entre
empresas, mas também as relações das empresas com outras organizações
e com políticas públicas, permitindo apreender o papel das organizações
na captação de recursos que seriam inacessíveis a empresas isoladas.
A difusão de inovações dependeria, assim, de estruturas reticulares de
relações e dos tipos dessas relações entre empresas e demais organizações,
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PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
envolvendo operação de tradução entre redes sobrepostas de agentes e
recursos heterogêneos (URTEAGA, 2012).
Para Etzkowitz (2009), mais especificamente, seria a interação universidade-empresa-governo a chave para a inovação e para a transformação
de pesquisa acadêmica em riqueza econômica, falando em uma segunda
revolução acadêmica em que a universidade avocaria novas responsabilidades diretas no desenvolvimento econômico e social. A universidade
teria maior fluxo de capital humano e de idéias do que outras instituições,
tornando-se um recurso diferencial para empresas inovadoras. Governos
viriam, em diferentes contextos e experiências, desempenhando papel
chave no estabelecimento do “palco” para as interações entre universidade
e indústria, com vistas à constituição de espaços de inovação. Entretanto,
o autor adverte: “o fenômeno básico do crescimento econômico baseado
em ciência é generalizável, mas simplesmente utilizar um mecanismo
que foi muito bem-sucedido em uma área e recriá-lo em outra pode não
funcionar” (ETZKOWITZ, 2009, p. 113). Essas interações estariam na origem de novos arranjos organizacionais, como os parques tecnológicos e
as incubadoras empresariais.
O comportamento de pequenas empresas tem sido explorado por
diversos estudos que chamam a atenção para a influência das interações
entre os agentes/organizações sobre as chances de inovação nas empresas,
demonstrando o seu caráter relacional. Segundo Albizu et al. (2011), as inovações em pequenas empresas industriais tenderiam a ser de tipo incremental,
traduzindo-se na integração de novos componentes técnicos aos produtos,
na melhora gradual de processos e produtos e em novas combinações de
conhecimentos já existentes. As redes formais e informais de colaboração
entre os agentes (empresas, governos, agentes de inovação e desenvolvimento,
entre outros) seriam importantes estímulos para as atividades inovadoras,
em razão de facilitarem o intercâmbio de conhecimentos diversos. Ramella &
Trigilia (2009) argumentam, com base na observação de empresas italianas,
que, nas atuais condições de desenvolvimento econômico, as firmas tenderiam a assumir uma posição ativa com relação à identificação e mobilização
de recursos relevantes para atividades inovadoras, envolvendo capacidades
e habilidades desses agentes no sentido de explorar oportunidades. Neste
caso, as empresas valer-se-iam não apenas de seus recursos internos (em
geral, insuficientes para inovar), mas também buscariam complementaridades no ambiente, a fim de realizar seu interesse em inovar. Isso ocorreria
mediante a tecedura de redes de colaboração com outros agentes presentes
tanto no território quanto fora dele. As parcerias com vistas à inovação não
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se limitariam às fronteiras locais/regionais (“laços fortes” que propiciariam
o compartilhamento de conhecimento tácito), mas constituiriam também
redes de longo alcance (“laços fracos” que permitiriam o acesso a novo conhecimento codificado). Contudo, isso dependeria da existência de recursos
humanos nas próprias empresas, com vistas a interagir em redes tecnológica
e economicamente mais dinâmicas.
Guimarães (2011) identifica, no caso do Brasil, o crescimento de micro, pequenas e médias empresas intensivas em conhecimento, a despeito
das dificuldades de integração do país ao paradigma informacional quando
comparado a outros “emergentes” (por exemplo, escassez de recursos humanos qualificados, cultura acadêmica e empresarial, e deficiências nas
regras formais de tributação/financiamento/proteção da inovação). Segundo
a autora, essa expansão expressaria uma importante mudança econômicocultural na realidade brasileira, aliando-se elementos do ambiente externo
com as capacidades das empresas e de seus empreendedores.
Caberia referir, brevemente, resultados de recentes investigações sobre
o que ocorre na indústria naval no país10. Há relativo consenso entre estudiosos desse setor de que sua capacidade de inovação é, ainda, baixa (COSTA,
BOEIRA & AZEVEDO, 2010; NEGRI, KUBOTA e TURCHI, 2009; NEGRI et al.,
2010; FARIA & RIBEIRO, 2012; SILVA, 2012). A despeito disso, seria possível
identificar esforços e mudanças recentes no sentido de criarem-se novas
capacidades de inovação nessa indústria, como será examinado adiante em
relação ao caso de Rio Grande. Os estaleiros dependeriam de inovações de
processo para aperfeiçoar seus custos e preços e seus prazos de entrega, refletindo-se na melhoria de sua produtividade e competitividade. As atividades
dos estaleiros requereriam, também, alto grau de atividades de engenharia
e planejamento para operação em tempos paralelos. Diferentemente, o setor de “navipeças” dependeria mais de inovações de produto, com vistas a
oferecer sistemas e componentes ajustados aos novos produtos demandados
ao setor. Negri et al. (2010) apontam que os gastos em P&D nessa indústria
são ainda inexpressivos, embora tenham encontrado algumas empresas de
pequeno porte, focalizadas em atividades especializadas, que realizam gastos
expressivos em P&D. Esse dado parece relativizar a ideia de que a inovação
poderia surgir estritamente de atividades de P&D nas grandes empresas.
O potencial de inovação tenderia a deslocar-se para a disponibilização e uso
de profissionais altamente qualificados (como, engenheiros e geólogos), para
as interações entre agentes diversos (especialmente universidade-empresa)
e para o financiamento e estímulo à pequena empresa inovadora, constituindo-se como alternativa à importação de pacotes tecnológicos.
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228
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
Adquire relevância, desse modo, outro aspecto destacado pela literatura, isto é, o surgimento de redes de colaboração entre agentes produtivos,
no contexto dos desafios científicos e tecnológicos da exploração do Pré-Sal.
Estudos recentes (FARIA & RIBEIRO, 2012; GITAHY & SILVA, 2012; LIMA &
SILVA, 2012) constatam o fortalecimento e a formação de redes de atores e
instituições, permitindo processos de aprendizagem significativos, ampliação
de capacidades, bem como, acesso a recursos financeiros. A presença de
universidades (USP, UFRJ, entre outras) e o aporte governamental (Fundos
Setoriais, Petrobrás, outros) têm contribuído para o atual estágio tecnológico
alcançado pelo país em termos da exploração de petróleo e gás em águas
profundas e para a difusão de tecnologias. Entre as principais dificuldades
dessas experiências, são destacadas as regras burocráticas nas relações setor
produtivo-academia, a ausência de cultura de relações mais horizontais entre
atores diversos e a falta de clareza e continuidade de financiamentos. Apesar
disso, os estudos mostram tendência à avaliação positiva dessas experiências,
na percepção dos atores envolvidos.
Estas considerações aqui apresentadas – extraídas de produção científica
especializada – oferecem indicações para o argumento a ser demonstrado
na análise. A seguir, apresentam-se os dados empíricos coletados sobre
implicações socioeconômicas decorrentes da implantação de unidades de
construção naval na cidade de Rio Grande.
Construção naval em Rio Grande
Após um período de estagnação econômica na região, a implantação de estaleiros na cidade de Rio Grande reanima a atividade industrial e de serviços
não apenas no município, mas também em cidades vizinhas e mesmo em
setores produtivos relacionados a essa indústria no estado do Rio Grande do
Sul. Ao mesmo tempo, é possível identificar um conjunto de iniciativas no
esforço de criação de conhecimentos específicos e de tecnologias necessários
ao desenvolvimento dessa nova indústria, destacando-se a formação de redes
entre agentes diversos, como é o caso da Rede Petro que se discute adiante.
As universidades já existentes mostram-se cruciais nessas novas dinâmicas
socioeconômicas.
O cluster de Rio Grande inicia suas atividades em 2005 com a construção de uma plataforma marítima para extração de petróleo: P-53. Após,
seguem-se as construções da P-55, da P-63 e da P-58, além de outras embarcações, sondas de perfuração do subsolo marinho e novas encomendas
para a construção de plataformas. Essas construções são realizadas, em 2012,
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Sandro Ruduit Garcia
229
no Estaleiro Rio Grande (utilizado pela Ecovix/Engevix) e no Estaleiro QUIP
(consórcio formado pela Queiroz Galvão, Ultratec e Iesa), situados junto ao
Superporto e ao Porto Novo de Rio Grande, estando já em implantação dois
novos estaleiros no complexo (Wilson, Sons, em Rio Grande; Estaleiro Brasil S/A, no município vizinho de São José do Norte). Especialistas (NEGRI,
KUBOTA & TURCHI, 2009) chamam a atenção para o fato de o estaleiro
tornar-se tanto mais produtivo quanto menor for o tempo de montagem de
um navio. A velocidade da manufatura está associada à gestão do processo
de montagem e coordenação no fornecimento de sistemas, operando em
tempos paralelos. A capacidade da engenharia e de planejamento e a qualidade dos componentes abrem espaço significativo para o desenvolvimento
de competências em lugar da simples compra de tecnologia.
No período entre 2003 e 2005, houve, em Rio Grande, um primeiro
esforço de constituição de um polo naval voltado para a construção de
embarcações. Porém, a expansão mais significativa dessa indústria ocorre
a partir de 2008, com encomendas da Petrobrás de plataformas para a
exploração petrolífera. Segundo os depoimentos colhidos em pesquisa de
campo, as decisões sobre a realização desses investimentos decorrem de
um complexo conjunto de fatores condicionantes, destacando-se a nova
política de desenvolvimento dessa indústria implementada pelo governo
federal11, os recursos sociais já acumulados na região pela presença do porto
e de universidades, as peculiaridades geográficas e ambientais existentes
na cidade12, e a mobilização de lideranças políticas da região e do governo
estadual no sentido de criar alternativas de desenvolvimento no eixo Rio
Grande-Pelotas, tendo em vista enfrentar a estagnação econômica experimentada na região.
Constata-se, na cidade, um claro aquecimento da atividade econômica,
elevação geral do emprego, alteração na distribuição setorial das atividades
produtivas (ascensão do emprego industrial e nos serviços), circulação de
uma nova massa salarial, novas demandas de consumo e diversas obras
de infra-estrutura que beneficiam a região. Ao mesmo tempo, surgem ou
agravam-se demandas sobre políticas públicas locais e sobre o curso do desenvolvimento urbano (formação de mão-de-obra, transporte e mobilidade
urbana, segurança pública, serviços de saúde, preço do solo). Os resultados
são endossados por estudos sobre realidades industriais similares (GARCIA,
2009; RODRIGUES & RAMALHO, 2007).
As organizações e instituições visitadas têm respondido ao novo ambiente, marcado pelo ingresso de novos recursos e pelos desafios do novo
paradigma industrial. Chama a atenção o prestígio e a centralidade que uniRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
230
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
versidades adquirem nesse contexto de mudanças. Por exemplo, o Serviço
de Apoio à Micro e Pequena Empresa (SEBRAE) em conjunto com a Universidade Federal de Rio Grande (FURG), o Instituto Federal Sul-Riograndense
(IFSul) e o Serviço Nacional da Indústria (SENAI) firmaram convênio com
a Petrobrás, no âmbito do Programa Nacional de Mobilização da Indústria
do Petróleo (Prominp), resultando na formação da Rede Petro (em âmbito
estadual), na “Rodada de Negócios do Sebrae” (que aproxima grandes e pequenas empresas) e em ações de formação profissional. A Prefeitura Municipal
de Rio Grande tenta responder às demandas sociais (em saúde, habitação,
trânsito e segurança pública) e produtivas na cidade (formação profissional,
agilização de alvarás, plano diretor, inovação e tecnologia), destacando-se a
parceria com a FURG para a criação de um parque científico e tecnológico
na cidade13. O Sindicato dos Operadores Portuários (Sindop/RS), com sede
em Rio Grande, tem mobilizado lideranças da cidade e região no sentido de
ampliar as condições das hidrovias regionais, recorrendo a estudos e serviços
da universidade no ajuste das atividades no Porto às normas ambientais.
A Superintendência do Porto firmou, em 2012, uma parceria com a FURG
para realizar o georeferenciamento da área portuária, resultando em novo
laboratório. O Sindicato dos Metalúrgicos de Rio Grande firmou parceria
com o governo municipal para a formação e qualificação de mão-de-obra
para a indústria naval (recursos Prominp), demandando estudos e cálculos
à FURG sobre estrutura e desempenho econômico na cidade. Há nisso algo
similar a um papel catalizador e a um posicionamento chave assumido pela
FURG, mediante relações reticulares com organizações diversas (POWELL,
PACKALEN & WHITTINGTON, 2010; MANZO, 2011).
As universidades visitadas apresentam vivo envolvimento com as novas
necessidades e oportunidades desencadeadas pela indústria naval, aproximando-se, sob certo aspecto, do protagonismo que essa organização viria
assumindo hoje em processos de desenvolvimento regional, em diferentes
contextos (ETZKOWITZ, 2009). Entretanto, podem-se identificar diferentes
capacidades das universidades em responder às demandas do setor produtivo, em razão de uma combinação entre expertise científica nas áreas de
conhecimento envolvidas (casos da UFRGS e da FURG) e proximidade social
e espacial com o polo industrial (caso da FURG). Como mostra o Quadro 1, a
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) criou dois novos cursos de graduação
aplicados às indústrias naval e petrolífera, percebendo-se ainda esforços da
Agência Científica e Tecnológica da UFPel no sentido de promover estudos
e parcerias com setor empresarial aplicados ao polo naval. As iniciativas e
resultados obtidos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
Sandro Ruduit Garcia
231
e pela Universidade Federal de Rio Grande (FURG) mostram maiores capacidades de responder e interagir com o setor produtivo em estudo. A UFRGS
criou novos cursos, avançando para a constituição de laboratórios e parcerias
internacionais, entre outras iniciativas. Há um laboratório credenciado pela
Petrobrás (um dos três existentes no país), resultante de parceria entre a empresa e o Instituto de Geociências (IG-UFRGS). Há empresas de alta tecnologia
na área em incubadoras da universidade. Caberia sublinhar, o contrato de
parceria no valor de 3,5 milhões de reais, firmado entre IG-UFRGS e British
Gas (BG), em 2012, envolvendo cientistas e estudantes brasileiros e ingleses.
No caso da FURG, há, igualmente, não apenas novos cursos de graduação,
mas também diferentes empreendimentos de produção de conhecimentos
específicos, como o Parque Científico e Tecnológico do Mar (Oceantec) e o
parque turístico e de estudos e pesquisas sobre oceanos (Oceanário Brasil).
Essas credenciais são atestadas pela inserção da FURG em várias redes e
consórcios de PD&I. A universidade sedia também um núcleo da Rede de
Inovação para a Competitividade da Indústria Naval e Offshore (RICINO)14.
Neste sentido, constata-se que a UFPel expande-se com o Reuni;
porém, sua trajetória anterior não se vinculou às áreas tecnológicas e às
engenharias. A universidade constituiu-se voltada para áreas de conhecimento ligadas à produção rural, às artes e às ciências sociais aplicadas.
As áreas de conhecimento requeridas pelo novo ambiente são ainda recentes na instituição, sem infra-estrutura desenvolvida e sem disponibilidade
de recursos humanos suficientes para o estabelecimento de parcerias ou
prestação de serviços especializados. A UFRGS oferece um tipo de resposta
distinto, relacionado à sua expertise na área de geologia e ao seu propósito
de internacionalização das práticas acadêmicas. A FURG assume posição
de destaque no desenvolvimento da cidade e região, em razão não apenas
de uma trajetória intimamente relacionada aos interesses da comunidade
rio-grandina15 e ao Porto, mas também de sua expertise na área de mares e
oceanos e na área ambiental.
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232
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
Quadro 1 – Iniciativas e motivos de universidades selecionadas
Universidade
Principais Iniciativas e
Resultados
Condicionantes e
Motivos
Universidade Federal
do Rio Grande do Sul
(UFRGS)
- Novo curso de
Engenharia de Energia;
- Parcerias com
Petrobrás (Laboratórios e
consultorias);
- Contrato de colaboração
com BG.
Expertise em Geologia;
infra-estrutura e recursos
pré-existentes; acúmulos
institucionais; área
metropolitana.
Universidade Federal de
Pelotas (UFPel)
- Novos cursos de
Engenharia de Petróleo e
de Engenharia Geológica.
Expansão ensino
e pesquisa/ Reuni;
desenvolver novas áreas
tecnológicas.
Universidade Federal de
Rio Grande (FURG)
- Novos cursos de
Engenharia de Automação
e de Engenharia Mecânica
Naval;
- Consultorias e serviços
especializados;
- Centro de Formação em
Tecnologias de Solda;
- Centro Avançado em TI
na Construção Naval;
- Núcleo regional da
RICINO;
- Parque Tecnológico:
Oceantec;
- Complexo turístico e de
pesquisa: Oceanário Brasil.
Proximidade com o pólo
naval; expertise e vocação
áreas ambiental e de mares e oceanos; acúmulos
de relações com o Porto e
a cidade/comunidade.
Fonte: Pesquisa de campo e documental, Porto Alegre/ Rio Grande/ Pelotas, 2011 e 2012.
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233
Têm-se, assim, respostas, mais ou menos agressivas, das universidades,
no sentido de produzir novo conhecimento e inovação, no contexto de um
novo paradigma de desenvolvimento econômico e social. Como sugerem
Ramella & Trigilia (2009), o fator localização pode tornar-se pertinente,
em razão de criar condições para a mobilização de relações informais que
permitam o uso e a circulação de conhecimentos tácitos; o fator expertise
pode tornar-se importante, em razão de favorecer relações formais entre os
agentes produtivos que possibilitem a troca de conhecimento codificado.
Conforme referido antes, a Rede Petro tem foco no desenvolvimento
de empreendimentos nos setores de petróleo, gás e energia, envolvendo
ainda a construção naval. Os objetivos da rede são: a) desenvolver tecnologias voltadas para as empresas do setor no Rio Grande do Sul; b) aproximar
empresas gaúchas dos centros de pesquisa locais e das agências de fomento;
c) equipar os centros de pesquisa; d) ampliar as possibilidades de mercado
das empresas gaúchas envolvidas; e e) desenvolver recursos humanos para
atender demandas tecnológicas do setor. As ações da rede envolvem iniciativas e esforços de interação entre governo-universidades-empresas, tendo
em vista a formação de instrumentos e mecanismos de apoio a pesquisa e
desenvolvimento, traduzindo-se em seminários técnicos, participação e promoção de feiras setoriais, busca de informações sobre demandas do setor, e
parcerias para cooperação nacional e internacional. Neste caso, procedeu-se
uma investigação sobre as características gerais das empresas envolvidas na
rede, a partir dos dados disponíveis em documentos informativos e no site da
mesma. Constatou-se que as empresas da rede estão concentradas em Porto
Alegre e sua Região Metropolitana (212 unidades), sendo ainda pequena a
quantidade de empresas de Rio Grande e Pelotas (13 unidades). Chama a
atenção o expressivo número de empresas pertencentes à rede, perfazendo
um total de 475 casos. Isso é significativo porque revela não apenas a pujança,
mas também o interesse desses empresários em desenvolver bens e serviços
nesse segmento produtivo. As atividades já realizadas envolvem seminários,
feiras e colaborações para o acesso a recursos em pesquisa e infraestrutura
científica e tecnológica.
Assim, as informações gerais aqui apresentadas sobre a constituição e
consolidação de redes entre agentes produtivos diversos sugerem o potencial
e as dificuldades envolvidas na promoção de conhecimentos, tecnologias e
inovações no setor em estudo. As universidades cumprem papel destacado
nesse processo, seja integrando-se a iniciativas de outras organizações, seja
propondo novas estratégias e espaços de ação. Em qualquer caso, o conhecimento das universidades torna-se um ativo valorizado no novo momento
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PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
industrial (ETZKOWITZ 2009; GUIMARÃES, 2011). Ademais, o papel de organizações pré-existentes, como o Sebrae, mostra-se importante na captura
e amarração de expectativas e interesses dos agentes produtivos (POWELL,
PACKALEN & WHITTINGTON, 2010). Cabe saber sobre as contribuições da
presença de novas unidades industriais, que acionam essas novas redes de
interação e colaboração entre organizações diversas, no desempenho das
pequenas empresas investigadas.
Pequenas empresas inovadoras
O estudo realizado junto a oito empresas (em Rio Grande e em Porto Alegre)
indica esforços de inovação, em meio às novas dinâmicas organizacionais e
redes multidirecionais (CASTELLS, 1999) ligadas ao cluster de Rio Grande,
caracterizando-se diferentes trajetórias dessas empresas em que se associam
atividades de inovação, inserção nos mercados e gestão de pessoal. Trata-se
de empresas de pequeno porte, de capital nacional e recentemente fundadas. As empresas são vinculadas à Rede Petro e, muitas vezes, constituídas
em razão das recentes demandas da indústria, experimentando importante
crescimento, com novos projetos de expansão de pessoal, instalações e/ou
de linhas de produtos. No entanto, esses esforços dos agentes empresariais
não são iguais. Ao contrário, é possível identificar diferenças no comportamento e nos resultados obtidos pelas empresas, apontando-se dois tipos de
estratégias e desempenhos.
Um tipo de empresas oferece inovações de produtos em resposta às
demandas da indústria – casos da Empresa A, da Empresa B, Empresa H –,
combinando interações com outras empresas e organizações, atuação em
mercados regionais e/ou nacionais e utilização de pessoal de nível técnico.
Esse tipo de empresa nasceu sem interações mais estreitas com universidades,
tendendo a um padrão de acomodação à tecnologia do setor. Outro tipo de
empresas – casos da empresa C, empresa D, empresa E, empresa F e empresa
G – mostra-se capaz de identificar problemas na indústria e, a partir disso,
gerar inovações que desafiam a trajetória tecnológica do setor e criam mercados, combinando interações com outras empresas e organizações, atuação
em mercados nacionais e internacionais, e utilização de pessoal altamente
qualificado (pesquisadores com pós-graduação). Esse tipo de empresa vincula-se estreitamente às universidades (ver Quadro 2).
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Sandro Ruduit Garcia
Quadro 2 – Dimensões investigadas nas pequenas empresas inovadoras
Mercado
Gestão
Pessoal
Engenharia
e execução
estruturas de
grande porte.
Início regional;
hoje eventualmente
nacional.
Técnicos,
homens e
mulheres.
Treinamento e
formação. Uso
de migrantes.
Serviços
customizados
para setor
naval (criação
mercado).
Regional.
Jovens,
nível médio.
Treinamento
e salários
atraentes.
Carência
pessoal.
Parque
Tecnológico.
(ComissionamenClientes.
to de plantas,
Capital de
Porto Alegre,
risco.
Patente
software
informações
campo por radiofreqüência
Início regional;
hoje nacional;
perspectiva
internacional.
Foco satisfação e QVT.
Crescimento
profissional.
Elevação
salários.
Empresa D
Sistema
informações
geológicas.
Nacional; hoje
internacional.
Todos mestrado ou doutorado. Trabalho
com pesquisa.
Carência
pessoal.
Empresa
Empresa A
(Fabricação de
estruturas metálicas, Rio Grande,
Interações
Inovação
Empresas
complementares. Sebrae.
BNDES. CEF.
Empresas
complementares. ABAV.
desde 2007)
Empresa B
(Turismo
corporativo, Rio
Grande, desde
1999)
Empresa C
desde 2006)
(Gestão conhecimento, Porto
Alegre, 2007)
Incubadora
e incubadas.
Universidade
e empresas
canadenses.
Sebrae. CNPq/
FAPERGS.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
236
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
Quadro 2 – Dimensões investigadas nas pequenas empresas inovadoras (cont.)
Empresa
Inovação
Incubadora
e incubadas. Sebrae/
Fiergs. Finep/
Fapergs.
Patente linha
reparo de
dutos.
Nacional;
perspectiva
internacional.
Engenheiros
e estudantes
engenharia.
Carência
pessoal.
Incubadora
e incubadas.
Clientes e
fornecedores.
Sebrae. Finep.
BNDES.
Robôs
inspeção e
montagem
tanques e
tubulações
submarinas.
Nacional;
perspectiva
internacional.
Engenharia
(graduação,
mestrado, doutorado). Sólida
formação
teórica.
Fornecedores.
Sebrae. Feiras
software livre.
Finep. Capital
risco.
Redes com
uso de
software livre.
Nacional; esforço ingresso
EUA.
Capacidade
pesquisa em
software livre.
Programa estágio/ desenvolvimento.
Clientes e
fornecedores.
customizadas, Rio Sebrae/ Senai.
Máquinas
e sistemas
automação
customizados.
Regional;
começa a exportar Índia.
Engenheiros
e graduandos.
Estímulo à
graduação.
Empresa E
(Engenharia e
instrumentação,
Porto Alegre,
desde 2007)
Empresa F
(Robotização e
automação, Porto
Alegre, desde
2008)
Empresa G
(Redes corporativas, Rio Grande,
desde 2003)
Empresa H
(Máquinas
Grande, desde
Mercado
Gestão
Pessoal
Interações
2004)
Fonte: Pesquisa de campo, Rio Grande/ Pelotas/ Porto Alegre, agosto/2011 a julho/2012.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
Sandro Ruduit Garcia
237
O primeiro tipo de empresas mencionado parece evoluir segundo uma
trajetória de acomodação ao padrão competitivo vigente no segmento de
atuação, revelando relativa dependência em relação ao mercado propiciado
por grandes empresas. As inovações são desenvolvidas desde as demandas
apresentadas pelo grande cliente. Essas pequenas empresas acompanham o
percurso da trajetória tecnológica, contribuindo com a solução de problemas e
a agregação de valor ao sistema produtivo. Com uma performance mais tímida
vis-à-vis as demais empresas, as inovações nas empresas A, B e H tendem
a ser menos robustas: a empresa A desenvolveu capacidades de engenharia
e de execução de estruturas metálicas de grande porte, indispensáveis para
a construção de plataformas marítimas; a Empresa B construiu um novo
mercado, customizando seus serviços de turismo para o setor naval e o cluster
de Rio Grande; a Empresa H desenvolve máquinas-ferramenta e sistemas de
automação customizados aos seus clientes, ajustando-se às especificidades
do setor naval (dimensões, durabilidade, segurança).
Neste caso, esse conjunto de empresas mantém relações de complementaridade com outras empresas, tendo em vista acessar competências
e recursos indisponíveis internamente (capacidade instalada, máquinas e
ferramentas, pessoal, funções complementares), deixando de estabelecer interações significativas com universidades. Com exceção da empresa B, acessam
financiamentos (BNDES) e programas de capacitação, como os oferecidos pelo
Sebrae e pelo Senai. Quanto aos mercados, observa-se que as empresas A, B e
H têm seu foco de atuação no âmbito estadual. Esse conjunto de empresas tem
atuação regional e, episodicamente, nacional (caso A) ou, internacional (caso
H). A gestão de pessoal nessas empresas envolve a preocupação com formação
e treinamento, uma vez que os recursos humanos especializados são, hoje,
escassos no mercado. Essas empresas tendem à utilização de mão-de-obra
técnica (A e B) ou com nível de graduação (empresa H).
O segundo tipo de empresas acima referido desenvolve-se pela capacidade de antecipar problemas, buscando inovações que lhes permitam alcançar
novo patamar competitivo e, com isso, transitar entre diferentes mercados
e segmentos produtivos. A relação com a grande empresa não significa dependência, mas importante oportunidade de mercado, sendo a universidade
parceiro estratégico para a aquisição de competências. Essas empresas têm
criado inovações aplicadas ao setor naval e de petróleo: a empresa C desenvolveu software para integração de informações sobre comissionamento de
plantas por radiofrequência, gerando patente; a empresa D criou novo sistema
de gerenciamento de informações geológicas; a empresa E desenvolveu nova
linha técnica para reparo de dutos, gerando patente; a empresa F desenvolveu
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
238
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
robôs para inspeção e montagem de tanques e tubulações submarinas; e a
empresa G cria redes customizadas com uso de software livre.
Tais empresas estabelecem relações de colaboração tecnológica com
outras empresas (clientes, fornecedores ou outras incubadas); têm relativa
facilidade para acessar fontes de financiamento e subvenções (Finep, CNPq,
FAPERGS, BNDES). Esse conjunto de empresas teve, em sua origem, uma atuação regional (exceto empresa D que nasce prestando serviços para grandes
corporações nacionais). Hoje, todas atuam em âmbito nacional (setor naval e do
petróleo, entre outros), sendo algumas já ingressantes no mercado internacional
(D e G) e as que ainda não ingressaram, manifestam a perspectiva de fazê-lo
(C, E e F). O dado sugere que a inovação alcançada cria oportunidades para a
competição em novos patamares de mercado. Valem-se de pessoal altamente
qualificado: engenheiros e outros graduados, além de mestres, doutores e estudantes de pós-graduação. É recorrente a preocupação com sólida formação
teórica e condições adequadas para a capacidade de pesquisa dos seus recursos
humanos, reconhecendo-se a necessidade de jornadas flexíveis e de criação
de fatores de atração / retenção desses pesquisadores. Observa-se também
o uso de estratégias mais próximas de uma cultura acadêmica de pesquisa e
mais flexíveis em termos de gestão do trabalho nas empresas que interagem
com universidades do que nas demais empresas.
As empresas C, D, E, F e G acham-se em outro raio de ação comparativamente ao primeiro tipo identificado, revelando-se uma estratégia competitiva
mais agressiva no sentido de aspirar a ruptura com a trajetória tecnológica do
setor. Com exceção da empresa G, as demais empresas desse tipo se hospedam
em incubadoras ou parques tecnológicos. A empresa G é participante assídua
de feiras e eventos de software livre realizados em universidades do país,
especialmente a PUCRS, tornando-se um caso interessante que aponta para
as possibilidades de redes informais do empreendedor e demais profissionais
com universidades para a capacidade de inovação (URTEAGA, 2012). Essas
interações das empresas com universidades lhes permite acesso/prospecção
de recursos humanos qualificados e de conhecimento científico atualizado,
participação em grupos de pesquisa e, quando formalizadas, uso e laboratórios
e infra-estrutura; e, em alguns casos, cooperação para obtenção de financiamentos e depósito de patentes (empresas E e F).
No seu conjunto, os dados colhidos na pesquisa de campo mostram
que as empresas investigadas encontram, em geral, apoio financeiro ao
desenvolvimento de suas atividades de expansão ou de inovação, embora
apresentem formas distintas de interação com governos, com universidades
e com outras empresas (clientes, fornecedores e concorrentes). A Rede Petro
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
Sandro Ruduit Garcia
239
e o Sebrae fazem-se, em geral, presentes na mediação dessas interações. Com
exceção da empresa B (turismo corporativo), as demais contam com recursos financeiros externos: capital de risco, programas de subvenção, bolsas
de pesquisa e financiamento público aos seus investimentos e atividades
produtivas. Outra convergência identificada refere-se à carência de recursos humanos qualificados: soldadores, atendentes, engenheiros, geólogos,
profissionais de TI.
Caberia chamar a atenção para o fato de as empresas visitadas terem
conseguido inovar, distanciando-se da idéia de importação de pacotes tecnológicos. Como sugere a produção científica especializada (ALBIZU et al., 2011;
RAMELLA & TRIGILIA, 2009), essa posição ativa das empresas lhes permite
o acesso a conhecimentos, financiamentos e complementaridades externos,
habilitando-as não apenas a responder às demandas das grandes empresas,
mas, em muitos casos, a identificar problemas e a propor alternativas em
produtos e processos, o que contribui para a expansão, a produtividade e a
competitividade da indústria em estudo.
Portanto, têm-se novos esforços e iniciativas dos agentes empresariais
que se empenham, mediante diferentes estratégias e percursos, no acesso e na
combinação entre recursos internos e externos para ampliar capacidades de
inovação (GUIMARÃES, 2011; RAMELLA & TRIGILIA, 2009). Sob certo aspecto,
as atividades de inovação autorizam essas empresas a se emanciparem de
possível dependência da grande empresa, mobilizando redes e alcançando
uma inserção diversa nos mercados.
Considerações finais
O presente artigo enfoca o processo de desenvolvimento econômico, discutindo a implantação e expansão de um novo polo de construção naval e
suas implicações socioeconômicas na constituição de redes entre agentes
produtivos e no desempenho de pequenas empresas inovadoras. O argumento
central é que o atual paradigma de desenvolvimento sustenta-se em lógicas
organizacionais que favorecem a formação de redes entre agentes produtivos diversos, abrindo-se não apenas novos espaços de ação para a pequena
empresa, mas também novas demandas de colaboração e interação com
universidades. De fato, o caso em estudo permitiu constatar a constituição e
consolidação de redes entre agentes produtivos diversos, com destacado papel
de universidades nesse processo, seja integrando-se a iniciativas de outras
organizações, seja propondo novas estratégias e espaços de ação. Quanto às
pequenas empresas, verificou-se que as mesmas têm criado inovações, seja
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
240
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
reagindo a demandas apresentadas pela trajetória tecnológica do setor em
estudo, seja tentando avançar em relação aos padrões tecnológicos vigentes,
tendo em vista alcançar novos patamares competitivos.
Essa dinâmica expressaria a capacidade de criação autônoma de
tecnologias no contexto de países em desenvolvimento (AMSDEN, 2009;
CASTELLS, 1999; O’NEILL, 2012; SHAPIRO, 2010), relativizando as teses sobre
a necessária importação de pacotes tecnológicos mediante relações de troca
entre o centro e a periferia do sistema capitalista mundial. Ademais, cabe
chamar a atenção para o fato de a análise do desenvolvimento econômico
requerer tanto a sua explicação por fatores macroeconômicos e político-institucionais, quanto a sua compreensão por condicionantes socioculturais,
exigindo do pesquisador uma perspectiva relacional e o diálogo com diferentes
contribuições interpretativas.
Neste sentido, a pesquisa mostrou que os estaleiros são empreendimentos produtivos complexos, achando-se, no caso em estudo, em fase
experimental. Há avidez pela captura de inovações que contribuam para a
elevação da produtividade e competitividade. Os consórcios entre grandes
grupos empresariais (nacionais e estrangeiros) aportam tecnologias e conhecimentos cruciais no desenho das plataformas, sondas e navios, aproximando-se dos “pacotes tecnológicos” (COSTA, BOEIRA e AZEVEDO, 2010).
No entanto, há um imenso espaço para desenvolvimento e introdução de
inovações na logística e no processo de construção dessas embarcações cuja
produtividade é baixa se comparada àquela dos líderes mundiais (estaleiros
chineses e coreanos) (NEGRI et al., 2010).
Como antes indicado, os estímulos institucionais à demanda tecnológica (com destaque ao BNDES), à oferta tecnológica (em especial, Fundos
Setoriais) e à indução da construção naval (como, Prominp) mostram-se
relevantes no curso do desenvolvimento. Igualmente importantes, são
as redes de interação e colaboração cujo adensamento se faz pelo papel
catalisador de universidades. A existência prévia e o papel ativo de universidades e organizações como o Sebrae parecem contribuir decisivamente
para os resultados alcançados (ETZKOWITZ, 2009; POWELL, PACKALEN &
WHITTINGTON, 2010). Essa particularidade do contexto não é desprezível.
As pequenas empresas estudadas, sob os albores da Rede Petro, têm sido
capazes de criar inovações que contribuem para o desenvolvimento da indústria naval. Essas empresas estão buscando novos mercados, em outros
setores produtivos e em outras escalas (nacional e mesmo internacional).
Em muitos casos, mantêm equipes de pesquisadores nas suas fileiras.
Trata-se de empresas que se posicionam ativamente na busca de recursos
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
Sandro Ruduit Garcia
241
e complementaridades, e na situação de mercado (RAMELLA & TRIGILIA,
2009). A indústria colhe proveito disso.
O que se tem na experiência em discussão é algo que se aproxima,
com alguma liberdade conceitual, do que Castells (1999) denomina de “redes
multidirecionais”. As pequenas empresas visitadas estabelecem, em cada caso,
interações e relações reticulares com outros agentes (MANZO, 2011; URTEAGA,
2012), atuando em mercados diversos, deixando de depender de uma grande
empresa (FLORIDA, 2011). Essa nova lógica organizacional relacionada ao
paradigma de desenvolvimento envolve uma série de complementaridades
entre grande e pequena empresa, indústria e serviços, e entre empresas e
organizações diversas (POWELL & SNELLMAN, 2004), pois “organizações de
todos os tipos e portes têm papéis diferentes a desempenhar numa economia
criativa (...) essa divisão do trabalho inovador foi a grande responsável pela
recente produção criativa” (FLORIDA, 2011, p. 28). Esses são condicionantes
sociais que modelam a pequena empresa inovadora.
Portanto, o desenvolvimento de “economias emergentes” não se
faz estritamente pela importação ou aquisição de tecnologias, pelos transbordamentos gerados por empresas estrangeiras ou pela tecnologia criada
pela grande empresa nacional. Tudo isso é relevante a uma economia em
desenvolvimento. Porém, igualmente importantes, podem ser as pequenas
empresas inovadoras na criação autônoma de conhecimentos e tecnologias
para o desenvolvimento econômico, no contexto da lógica de redes que
acompanha o paradigma informacional. Essa é uma constatação que acha
endosso no registro de literatura especializada (ALBIZU et al., 2011; ARBIX,
2010; GUIMARÃES, 2011; MANZO, 2011; POWELL, PACKALEN & WHITTINGTON, 2010). À luz dos dados mais recentes, as pequenas empresas não
estariam condenadas a fornecer componentes e serviços de baixo conteúdo
tecnológico e valor agregado, nem a valer-se de mão de obra não-qualificada,
na periferia das “cadeias de fornecimento”. É preciso continuidade de pesquisas sociológicas sobre o tema, a partir de diferentes abordagens teóricas
e metodológicas, tendo em vista fazer progredir esse conhecimento.
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242
NOTAS
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
O artigo baseia-se em resultados da pesquisa intitulada “Aglomerações
industriais, tecnologia e trabalho: efeitos sociais do pólo naval de Rio Grande”, financiada pelo CNPq. O autor é grato a Sônia Guimarães (UFRGS), pela
leitura e considerações ao texto, e a Raphael Jonathas da Costa Lima (UFF) e
a Odil Matheus Fontella (PUCRS) pelas contribuições no workshop “Clusters
Empresariais e Desenvolvimento: dimensões sociológicas”, realizado no IFCH/
UFRGS, em junho, 2012.
1
Os chamados países emergentes, diferentemente da idéia de países periféricos, caracterizar-se-iam pelo alcance de estabilidade macroeconômica,
pelo crescimento persistente na produção e nos ganhos de produtividade,
e pelo amplo potencial de consumo – que envolve populações numerosas e
jovens –, consolidando-se como grandes e atraentes mercados no sistema
global, em especial no momento em que mercados maduros se deparam com
os abalos de uma importante crise financeira e monetária (O’NEILL, 2012).
2
Na formulação de Amsden (2009, p. 29), “desenvolvimento econômico é um
processo em que se passa de um conjunto de ativos baseados em produtos
primários, explorados por mão-de-obra não especializada, para um conjunto de
ativos baseados no conhecimento, explorados por mão-de-obra especializada”.
3
No Brasil, uma recente literatura tem explorado aspectos desses diferentes
arranjos sociais entre agentes econômicos. Ver, por exemplo, Comin & Freire
(2009), Garcia (2009), Guimarães (2011) e Rodrigues & Ramalho (2007). Os
pressupostos relacionais e a recusa às explicações determinísticas pela Nova
Sociologia Econômica têm sido particularmente úteis nesse tipo de abordagem.
4
Clusters poderiam ser definidos como uma concentração espacial de atividades
econômicas setorialmente especializadas (DEPRET & HAMDOUCH, 2009).
5
Rio Grande situa-se no litoral sul do estado do Rio Grande do Sul, junto à
Lagoa dos Patos. Localiza-se a 320 Km de Porto Alegre, a 140 Km da fronteira
com o Uruguai e a 550 Km de Montevidéu. A cidade conta com o primeiro
porto do Rio Grande do Sul, sendo, hoje, um dos principais do país. A cidade é
vizinha do município de Pelotas (cerca de 50 Km), polo regional de comércio
e de serviços. Rio Grande conta com cerca de 200 mil habitantes, e Pelotas,
com cerca de 400 mil habitantes, em 2011.
6
A pesquisa documental resultou na elaboração de um Banco de Dados Secundários sobre a Indústria Naval e do Petróleo no Brasil (GARCIA, ROCHA
e WOLFFENBÜTTEL, 2012).
7
A coleta de dados foi procedida mediante entrevistas com roteiro semiestruturado com diretores/gestores, explorando-se características e histórico
das empresas, relações com o cluster e o mercado, relações com governos/
universidades/associações, e relações de trabalho; adicionalmente, podese, em alguns casos, observar as instalações e demonstrações de produtos
ou processos inovadores, bem como acessar documentos com informações
gerais das empresas.
8
Visitaram-se grupos e departamentos da Fundação Universidade de Rio
Grande (FURG), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); foram realizadas entrevistas
com roteiro semiestruturado com professores-pesquisadores relativamente
9
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
Sandro Ruduit Garcia
243
às características e motivações da proposta de interação com a indústria,
incentivos e redes de colaboração, e resultados alcançados nas interações.
Cabe referir a discussão que se faz hoje – e que mereceria maior aprofundamento em novos estudos – sobre os efeitos, para o país, da exploração das
riquezas da camada geológica do pré-sal. Os argumentos mais otimistas
sublinham as possibilidades criadas pelo fato de que o petróleo não apenas
constitui recurso escasso e valioso no ambiente internacional, mas também
carrega consigo uma grande “cadeia” de fornecedores, propiciando resultados
econômicos e industriais significativos. Nesse caso, além da possível autonomia
energética, chama-se a atenção para o impulso ao crescimento econômico e
industrial do país (AZEVEDO, 2009). Outros, ao contrário, manifestam diversos tipos de preocupação com efeitos perversos dessas riquezas, chamando a
atenção para os limites das instituições e da cultura política do país no sentido
de orientarem-se pela exploração imediata dos recursos. Nessa perspectiva
mais pessimista, pondera-se que o desenvolvimento ou aquisição da tecnologia
necessária ao empreendimento exige volumes de investimentos que podem
pressionar as contas do país. Outra dificuldade seria a especialização da estrutura produtiva em torno dessa indústria, deslocando-se recursos escassos.
Ademais, levanta-se a inquietação em relação ao ritmo e volume dos gastos
públicos (contratação de funcionários, realização de obras questionáveis e
“favelização” das cidades envolvidas) (GIAMBIAGI & PINHEIRO, 2012). Essas
perspectivas parecem limitadas pela demasiada importância atribuída às
instituições e regras formais na vida econômica.
10
Sobre isso, ver o banco de dados documentais alusivos à indústria naval no
Brasil (GARCIA, ROCHA e WOLFFENBÜTTEL, 2012).
11
12
O porto de Rio Grande é o segundo maior do país, detendo maior calado
do Mercosul. Movimenta 30 milhões de toneladas de carga ao ano. Assim, a
infra-estrutura pré-existente combina-se com condições naturais favoráveis
às peculiaridades desse tipo de empreendimento, destacando-se a existência
de águas profundas e calmas e a ampla área plana disponível no entorno do
porto de Rio Grande.
Está, também, em fase de criação o Tecnosul, na cidade de Pelotas (Parque
Tecnológico da Universidade Católica de Pelotas – UCPel), que hospedará empresas voltadas para a indústria naval fina, entre outros setores de alta tecnologia.
13
A RICINO é uma rede de colaboração entre indústria, instituições de ensino
e pesquisa e governo; foi criada no ano de 2009, com o propósito de contribuir
para o desenvolvimento tecnológico da indústria de construção naval do país
e sua sustentabilidade ambiental e inserção internacional. Essa rede conta
com um núcleo regional em Rio Grande, sediado na FURG.
14
O município de Rio Grande revelava, em meados do século XX, a carência
de escolas de nível superior, refletindo-se na evasão de significativo número
de jovens que se dirigiam a outros centros, em busca de continuidade para
seus estudos. Isso resultou no esforço de criação, em 1953, de uma Escola de
Engenharia em Rio Grande, justificada pelo elevado número de profissionais
na área e pelo parque industrial já existente. As indústrias eram não apenas
utilizadas como laboratórios experimentais, como também deram origem aos
professores do curso. Em 1969, foi aprovado o Estatuto da Fundação Universidade do Rio Grande, como entidade mantenedora da nova universidade.
15
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
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Palavras-chave:
pequenas empresas;
inovação; desenvolvimento
econômico; indústria naval.
Keywords:
small businesses,
innovation, economic
development, shipbuilding.
PEQUENA EMPRESA INOVADORA E DESENVOLVIMENTO
RESUMO
O artigo aborda a questão do desenvolvimento econômico,
enfocando o recente processo de implantação do cluster de
construção naval na cidade de Rio Grande e suas implicações
socioeconômicas na constituição de redes de colaboração
entre agentes produtivos e, especialmente, nas atividades de
pequenas empresas. Os procedimentos de investigação empírica envolveram pesquisa de campo conjugada com pesquisa
em fontes secundárias. Visitaram-se oito pequenas empresas,
três universidades e organizações diversas, relacionadas com o
cluster em estudo. O argumento central é que o atual paradigma
de desenvolvimento sustenta-se em lógicas organizacionais
que favorecem a formação de redes entre agentes produtivos
diversos, abrindo-se não apenas novos espaços de ação para
a pequena empresa inovadora, mas também novas demandas
de interação com universidades.
ABSTRACT
The paper addresses the issue of economic development, focusing on the recent process of implementation of
the shipbuilding cluster in Rio Grande and its socioeconomic
implications in establishing collaborative networks of productive
agents, and especially in small business activities. The procedures of empirical research involving field research coupled
with research in secondary sources. Were visited eight small
companies, three universities and various organizations, which
are related to the cluster under study. The central argument is
that the current development paradigm is sustained in organizational logics that favor the formation of networks among
various productive agents, not only opening up new spaces
of action for small innovative company, but also new demands
for interaction with universities.
Recebido para publicação em julho/2013. Aceito em março/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 221-246
A expansão da Jurema
na Península Ibérica
Ismael Pordeus Júnior
Antropólogo e professor Titular da Universidade Federal do Ceará.
Na Mata tem um caboclo / Todo coberto
de penas / Este caboclo é Malunguinho
/ Ele é rei lá na Jurema / Na mata tem
um caboclo / Com uma peaca na mão /
É o caboclo Malunguinho / Não brinque
com ele não.
Depois da Umbanda e do Candomblé, a Jurema é a mais recente
religião brasileira a cruzar o Atlântico e a entrar no complexo de
transnacional da Península Ibérica, particularmente, em Portugal,
onde dá sinais de expansão. Cada vez mais se instala um debate
antropológico sobre as consequências culturais da globalização,
que coloca a religião em um lugar de destaque. As religiões se
apresentam hoje como transnacionais, conforme Appadurai
(2001). É o que será tratado neste artigo, a partir de tópicos de
um estudo em realização, em uma Jurema – o Centro Espírita
Vila Alhandra –, situada em São Lourenço, Azeitão, Portugal.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 247-262
248
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
O domínio religioso é, por excelência, adepto do transnacional. A transferência entre comunidades, seja qual for a relação de dominação, não ocorre
em um único sentido, e as próprias relações sociais se modificam pela ação da
diluição de fronteiras. Os elementos passam de uma a outra cultura, podendo
existir nas duas, e se estender, amplamente, como que a designar as vias de
passagem e a permitir o fenômeno de uma terceira via, uma hibridização da
produção de componentes culturais: uma terceira entidade, em constante
recomposição, aparecendo, frequentemente, nas culturas das sociedades coloniais e pós-coloniais. Tudo isso faz emergir uma nova categoria de modelo
ideal, o peregrino carismático, na modernidade religiosa.
As religiões luso-afro-brasileiras começaram a instalar os primeiros
terreiros após a Revolução dos Cravos, em 1974, e hoje já são mais de quarenta
unidades entre Umbanda e Candomblé. Pode-se pensar a adesão de portugueses a essas novas religiões se dever a vários fatores. Penso, pela minha
experiência de campo, que essa conversão decorreria, dentre outros fatores, da
permanência da visão de mundo mágica, manifesta na prática do catolicismo
tradicional e da feitiçaria portuguesa, onde as pessoas pensam em intervir no
seu destino. Outro motivo seria a proximidade do diálogo entre os convertidos
e as personagens do panteão religioso, facilitando, assim, as comunicações de
questões relativas ao cotidiano, sem intermediação, como mostrei em outros
ensaios (PORDEUS, JR. 2000; 2001; 2009). Essas comunidades são lideradas
por pais e mães de santo, em sua maioria portuguesa, embora mantendo, em
maior ou menor grau, relações com terreiros e federações brasileiras. Essas
relações com o Brasil poderiam ser classificadas em quatro grandes grupos
– como constatei em pesquisa anterior (PORDEUS JR, 2009; SARAIVA, C.,
2010) –, que, simultaneamente, definem também relações de migração e
trânsito de pessoas e de panteão entre Portugal, África e Brasil, bem como
as diversas formas de estabelecimento de redes transnacionais. Ultrapassam
o paradigma da migração, e se situam em outro: o da diluição de fronteiras,
isto é, da aproximação de diferentes grupos socioculturais. Essa situação
leva, em muitos casos, toda estrutura social a se diluir, em decorrência da
aproximação e do confronto de visões de mundo diferenciadas.
O primeiro desses grupos coloca o Brasil como referência primordial,
como foi o caso de Virgínia Albuquerque, que, havendo migrado para o Brasil,
em 1950, converteu-se à Umbanda e, em 1974, ao retornar a Portugal, fundou
o primeiro terreiro de Umbanda na Calçada Salvador Sá, nº 1, em Lisboa.
Ocorrem as primeiras conversões e iniciações e, aí, portugueses começam
a viajar para o Brasil, em busca do Candomblé, formando o segundo grupo.
Deste, é exemplo a conversão de Tina e Ema – uma na Bahia e a outra no
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 247-262
Ismael Pordeus Júnior
249
Rio de Janeiro, ainda na década de 1980 – que abriram, posteriormente,
seus próprios terreiros. Um terceiro grupo começa a trazer, pontualmente,
mães e pais de santo brasileiros para fazerem trabalhos e atenderem a uma
clientela angariada através de anúncios nos jornais, particularmente no
Correio da Manhã, Rio de Janeiro, propondo serviços de caráter mágico,
o que designei de “anti-comunitas” em oposição à communitas, na perspectiva de Victor Turner (PORDEUS JR. 2009). E ainda um quarto grupo,
relacionado aos serviços de caráter mágico, se constitui de portugueses que
tendo se submetido a alguns rituais de iniciação deixam a comunidade e
passam a atender em casa, com jogos de búzios ou cartas, e a realizar trabalhos pontuais, também com as mesmas características anti-comunitas.
O campo das religiões luso-afro-brasileiras, ao longo das últimas décadas,
se diversificou com a instalação de vários terreiros de Candomblé, liderados,
preponderantemente, por brasileiros.
Nos livros Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigração e
metamorfose da Umbanda em Portugal (PORDEUS JÚNIOR, 2000) e Portugal em transe: transnacionalização das religiões afro-brasileiras, conversão
e performance (idem, 2009, 2ª edição), procurei compreender, através das
histórias de vida dos convertidos, o nomadismo religioso e a adoção de visões
de mundo, pautados por essa perspectiva religiosa, de acordo com a qual a
possessão exerce papel central. Em ambos, como aqui neste ensaio, optei
por uma abordagem situacional (AGIER, 2013), que me permite seguir a
complexidade social, e ao mesmo tempo, sem reter somente o fenômeno da
religião artificialmente separada do seu contexto. A reflexividade etnográfica possibilitou, neste quadro, um instrumento teórico centrado na relação
entre o antropólogo e o seu objeto; em outras palavras, no dialogismo, na
perspectiva de Bakhtin.
A partir da primeira década do século XXI, este campo religioso é ampliado por uma nova religião procedente do Nordeste do Brasil, a Jurema, para
se instalar na Península Ibérica, em Madri e, mais recentemente em Portugal,
Cadaval (2006) e, agora, em São Lourenço, Azeitão (2011). Esse fenômeno não
pode ser visto como um fato isolado, mas relacionado com as outras religiões
luso-afro-brasileiras já instaladas em Portugal, conforme mencionei antes.
A Jurema, a religião de encantados, fumaça e verso
A palavra Jurema possui designações múltiplas, associadas ou inter-relacionadas, em um complexo imaginário. O primeiro significado é botânico,
Mimosa hostilis Benth, pertencente à família Fabaceae. Designa, também,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 247-262
250
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
uma prática de caráter religioso, em torno de uma “árvore sagrada” conhecida
regionalmente como Jurema Preta. Desta, tudo se utiliza para fins de cultos e
curativos. As folhas são usadas para banhos de desenvolvimento espiritual (dizse não haver nada mais eficaz para a aproximação dos mentores espirituais);
a casca é utilizada para a elaboração de chás e beberagens com fins purgativos
e cicatrizantes; e ainda do ponto de vista religioso, para a elaboração de um
“licor sagrado”, que tem como principal objetivo garantir melhor e mais fácil
sintonia entre o mundo material e o espiritual, por aqueles que dela fazem
uso. A sua raiz é um potente antisséptico e cicatrizante, adotado sob mais de
cem formas diferentes, a depender da finalidade desejada. A jurema é, ainda,
uma personagem espiritual, uma “cabocla”, ou divindade invocada – tanto
pelos indígenas, como por seus remanescentes diretos – nas cerimônias da
Jurema, instituída como religião, e, também, no Espiritismo de Umbanda.
José de Alencar, em sua obra mais difundida voltada para o indianismo
– o romance Iracema: lenda do Ceará, editado em 1865 –, mostra a tradição
e o mistério do rito sagrado da Jurema, e do fumo, utilizados em rituais por
diversas etnias indígenas no Nordeste. A descrição romanesca de Alencar se
aproxima das matrizes do complexo ritual relacionadas à Jurema. A coleta para
elaboração do vinho da Jurema, a utilização do cachimbo com tabaco para a
emissão da fumaça, e a ingestão do vinho e o seu efeito de “fazer sonhar” são
freqüentes nos rituais, tanto quanto nas páginas deste romance1.
Em sua viagem de turista aprendiz, Mário de Andrade, em Natal (RN),
no dia 31 de dezembro de 1928, foi a um Terreiro e ali se submeteu a um ritual
de “fechar o corpo”. Ele escreveu:
A cada invocação, a cada reza, seguia um gesto cabalístico com o maracá
e o refrão sendo gritado com ritmo pelos dois mestres... Os dois mestres
enchiam os cachimbos de fumo... acendiam o fumo bem, e cachimbando
às avessas, sopravam o fumo pelo bocal, ritualmente de cima para baixo
(ANDRADE, 1983: 252).
A performance ritual na Jurema se concretiza pela utilização da fumaça.
A referência às práticas religiosas relacionadas à Jurema é feita na
historiografia colonial, como mostra Luís da Câmara Cascudo: “(...) em um
registro de óbito (Natal, 2-6-1758) Índio Antônio, sabe-se que estava preso por
razão do sumário que se fez contra os índios de Mopibú, os quais fizeram
Adjunto de Jurema, que se diz supertícios” (1959: 62).
Foi em Cadaval, Portugal, que meu interesse pela Jurema ganhou força.
Formou-se uma comunidade de brasileiros, angolanos, e espanhóis, das mais
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Ismael Pordeus Júnior
251
diversas categorias profissionais, como médicos, psicólogos, professores e outros profissionais liberais. Esse terreiro se constituiu, assim, como um espaço
sem fronteiras, onde as categorias de trabalho e de nacionalidade se diluíam.
Na Jurema, um dos aspectos fascinantes para mim, dentre outros,
são os pequenos versos, as orações cantadas pelos personagens do panteão,
ocasião em que são narrados feitos, exaltadas personalidades, feitas referências à fauna e à flora, evidenciadas qualidades mágicas e relatadas ações do
cotidiano. Essas orações performativas, não sendo falsas nem verdadeiras, são
enunciações que objetivam desencadear os bons augúrios, afastar a aflição
cotidiana, invocar as personagens do panteão, e fazer algo para que o bem
-estar permaneça sob sua proteção. É no ritual que se encontra o contexto da
enunciação e é nele que se realizam os atos ilocucionários de expressão de
desejo, sugestão, advertência, agradecimento, crítica, acusação, afirmação,
súplica, promessa, desculpa, jura, autorização, declaração (PORDEUS JÚNIOR,
2009). Esses versos, no mais das vezes, se aproximam do cotidiano, da visão de
mundo tradicional, e lembram as rimas dos versos encontrados na literatura
de folhetos, tão comum nas feiras do Nordeste brasileiro.
Estas observações sobre os versos são válidas para as melodias, repetitivas, e sem maior complexidade musical. Penso ser essa música – como
encontramos na Umbanda, no Candomblé e em outras religiões, nas quais é
utilizada a possessão para a comunicação com o sagrado – um auxílio valioso
dos processos mnemônicos, servindo, ainda, para auxiliar o desencadeamento do transe e da possessão. Há muito se sabe sobre o papel da música
nesse processo, como mostrou Gilbert Rouget, no clássico La musique et
la transe (1980).
Outros aspectos da práxis religiosa mais complexa foram me fascinando, à medida que participava dos rituais. Além da feição festiva em si da
religião, esse entusiasmo é muito provocado pelo ritmo do tambor e pelas
marcações do maracá. Não vi nos terreiros de Umbanda e Candomblé, em
Portugal, tamanho entusiasmo.
Em nossas conversas, o pai-de-santo e juremeiro Arnaldo Burgos
mostrou sempre a preocupação com esses pontos cantados, declarando
a vontade de registrá-los, pois, em suas viagens ao Recife, depois de sua
instalação na Península Ibérica, percebia a modificação e o esquecimento
de muitos deles, e me dizia do medo de estar se perdendo um patrimônio
religioso. Então, resolveu escrever e assim organizei, fiz uma introdução e
cuidei da edição do livro Jurema sagrada: do Nordeste brasileiro à Península Ibérica, editado pelo selo do LEO da UFC, em 2012. O ineditismo dessa
abordagem é ser escrito por um juremeiro, líder do grupo religioso, passível,
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252
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
assim, de proporcionar uma pluralidade de estranhamentos, não somente
a mim, mas a outros pesquisadores dessa área.
Uma tentativa de explicação desse tipo de literatura é a sua produção
de forma autônoma, e designada por mim, como literatura orgânica, porque
o autor pertence à própria religião, e, nas palavras de Antônio Gramsci, se
trata do intelectual orgânico, pois cada grupo social, com papel decisivo na
produção, engendra seus próprios porta-vozes e intérpretes. Jurema sagrada
foi escrito como um manual teológico, organizado de forma a possibilitar a
consulta dos rituais de iniciação, dos mitos e seus pontos estruturantes da
práxis religiosa, como pode ser percebido por quem o manuseia.
Os pontos – expressos na forma cantada –, como manifestações e evocações das personagens do panteão, e a utilização do cachimbo, têm um papel
fundamental nos rituais, pois a emissão da fumaça é desencadeadora dos processos de comunicação com as entidades, e dos trabalhos a serem desenvolvidos.
Esses cantos são importantes porque existem no decorrer das performances
rituais mais variadas, tanto aquelas relacionadas às cerimônias coletivas, como
as relacionadas com algumas pessoas. Podem ser listados os rituais de limpeza;
as oferendas às entidades; a elevação do grau do juremado; os rituais fúnebres;
por motivos de iniciação; descontentamento das entidades com alguma situação ou com algum dos participantes; advertência de interferências de energias
negativas no culto, dentre outros. Os cânticos, em uma casa de Jurema, são para
que as entidades possam advertir e aconselhar os indivíduos presentes, ou seja,
esclarecer qual é a situação daquela reunião através de uma visão espiritual e,
desta forma, advertir para que haja mais concentração, chamando atenção em
relação às inúmeras situações que possam vir a ocorrer.
A Jurema em Azeitão
Conheci o juremeiro Josenildo ainda em 2007. Ele havia chegado há pouco
de Madrid, onde tinha vivido por dois anos, e estava com a intenção de abrir
uma casa de Jurema em Portugal, pois na Espanha, dentre outras questões,
sentira dificuldade por não ter domínio da língua. Em Portugal, as pessoas
já detinham muitas informações, pois haviam peregrinado por outras casas
de Umbanda e Candomblé. Quando da pesquisa, cujo resultado foi o livro
de minha autoria anteriormente citado – Portugal em transe – eu o havia
entrevistado. Posteriormente, o reencontrei com sua casa instalada, e esta é
objeto de minha pesquisa atual.
Optei pela utilização da história de vida como técnica de pesquisa,
aplicada aos fenômenos relacionados às fronteiras de locais incertos (AGIER,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 247-262
Ismael Pordeus Júnior
253
2013), de tempos incertos, ambíguos, incompletos, as situações entre dois,
pondo em relação, um aqui e um acolá, um mesmo e um outro, um fato
local e um contexto global. A Jurema – desde a matriz pernambucana, no
Recife, até o processo de migração para a Península Ibérica, em Madrid, em
um primeiro momento, e depois para Portugal – veio a se tornar mais uma
religião a compor o complexo do universo luso-afro-brasileiro, com a abertura do centro espírita Vila Alhandra. Por meio da história de Josenildo, se
tem a possibilidade de acompanhar toda uma carreira voltada para a prática
religiosa. É o que ofereço ao leitor no texto que se segue.
A Jurema numa história de vida
“Meu nome é Josenildo. Nasci no Recife, Pernambuco, em 1970; sou filho de
pais pertencentes ao Candomblé e à Umbanda e minha mãe já cultuava a
Jurema. Comecei a frequentar os terreiros com a idade de oito anos, acompanhando minha mãe. Adolescente, já sentia a proximidade dessas entidades,
auxiliando nas festas e nos outros trabalhos relacionados ao culto e, a partir
dos meus quinze anos, comecei a frequentar terreiros de Jurema, escondido
da família, em Goiana. Mais tarde, vim a se iniciar em um terreiro em Igaraçu,
onde fui batizado – uma das etapas dos rituais de iniciação –, tendo como
Mestre Zé da Risada, o qual passei a incorporar.
Durante um tempo, fiquei nessa Casa, trabalhando na Jurema. A vida
material foi mantida pelo trabalho em loja de venda de tecidos, mas tudo
dava errado em minha vida econômica. Tomei conhecimento de outra Casa
e lá fui; e através de um jogo de búzios me foi cobrada uma obrigação: o
ritual de sete anos na casa de Mãe Elza de Agunté. Fiz as obrigações e me
tornei juremeiro na casa dela. Fui ficando e renovei a Jurema em 1998. Passei
sete dias recolhido, foram lavadas as guias, arriados Príncipes e Princesas,
arriadas as folhas no chão. Depois, toda a jurema foi recolhida e levada para
a mata. Lá, escolhi uma árvore na entrada, pra Malunguinho; depois, mais
adiante, uma para o Caboclo, outra para o Mestre, outra para o Preto Velho
e Preta Velha, para a Pomba Gira e cada uma arriei uma obrigação. Foram
sacrificados pássaros, galinhas, cabras, bodes, preás e coelhos. Depois, o
banho de ervas tomado dentro do rio, onde se deu o ritual do peixe para
ninguém atrapalhar quando for trabalhar.
Jurema se aprende:
A Jurema é encantada
Todo mundo quer saber
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254
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
Trabalha como casa de abelha
Trabalha que ninguém vê.
É um aprendizado grande; através da prática, cada entidade vai te
ensinando. Recebi no ritual um saco contendo o cachimbo, a maraca, a faca,
a semente da jurema e do angico, os instrumentos do trabalho do juremeiro.
Fiquei na Casa e comecei a ter filhos e afilhados. Dava consulta com seu Zé da
Navalha. Cada vez mais, fui assumindo maiores responsabilidades. Um dia,
resolvi sair e abrir minha Casa. Levei a minha Jurema para a casa dos meus
pais carnais. Dava consulta na casa de um afilhado ou em casa. Afinal, meu
cunhado me cedeu uma casa e levei a Jurema pra lá e trabalhava nos dias de
sábado e domingo, no Centro, o dia inteiro; era fila a não acabar, de gente a
querer consulta com Seu Zé da Risada. Foi seu Zé quem mandou chamar a
Casa de Vila Alhandra. Trabalhei nela durante três anos.
Antes de abrir a Casa, eu já tinha um projeto de morar na Europa
e amigos na Espanha já haviam me convidado; queria conhecer outra
cultura. E aí, cansado do trabalho na loja de tecidos, pedi minhas contas.
Deixei a Casa na mão de uma pessoa, não deu certo. Depois já instalado
aqui, voltei e não fiquei satisfeito com o que vi e levei minha Jurema de
volta à casa de minha mãe...
Na Espanha, já existia Casa de Candomblé, e lojas especializadas na
venda de material para as práticas dessas religiões. Não vim com intenção de
abrir Casa. Fiquei lá dois anos e vim para Portugal, onde também conhecia
pessoas e elas começaram a me estimular, a cobrar a abertura de minha
Jurema. A pedra da casa foi Helena, que havia conhecido seu Zé da Risada e
tinha muita admiração, fé e respeito por ele. A terra necessitava, espiritualmente, disso, e eu trouxe a cultura da Jurema. Comecei a dar consultas em
minha casa, não tinha Exu sentado. Trabalhava em uma empresa de painel
solar, montava as peças; depois fui para a DHL, mas continuava com a Jurema
(...). Quando precisava, Helena e Beta me ajudavam, trabalhavam comigo.
Depois, fui morar em uma casa e tirei um quarto só para a Jurema; isso em
2010. Lá, fiz a renovação de um filho.
Um dia, Maria Navalha, minha mestra, pediu um endereço ao Jorge
e foi aí que apareceu essa mini quinta. Era um galpão velho e ficou assim
durante um ano. Decidi vir morar e instalar a Jurema, como é para ser.
No portão de entrada, coloquei duas quartinhas; uma delas a do meu Orixá, Iansã, e a outra de Exu. Sentei Seu Malunguinho em uma cabana no
terreno do lado esquerdo, com a estátua dele, e suas cuias. Aqui tem muita
laranjeira. Fiz um local para o Exu e o assentei. Eu, eu mesmo fiz a estátua,
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255
metade homem, metade mulher onde também tem o Cruzeiro das Almas.
Nesse espaço é onde são feitas as oferendas para Exu, Pomba Gira e as Almas. Construí o salão da Jurema, uma primeira sala ainda aberta aonde se
realiza a Jurema de Chão. Na sala fechada, está instalada, o altar e a mesa
de consagração contendo vários objetos ligados à natureza e ao mundo dos
encantados para fazer as invocações. São os príncipes, copos, bacias, água,
cachimbos, maracas, tronco de árvores sagradas e várias imagens dos meus
encantados, do meu preto velho, índios e santos católicos. Nessa sala é onde
realizo Jurema de Mesa, e Maria Navalhada dá suas consultas. Ainda vou
fechar a outra sala, pois no inverno fica muito frio. Tem ainda muito a fazer,
pois ainda vou abrir um espaço para fazer a iniciação, onde a pessoa possa
ficar recolhida. Seu Zé da Risada quis o nome do terreiro o mesmo de Recife,
Casa de Vila Alhandra, e me autorizou a morar na metade do galpão, onde
construí um quarto, uma sala, a cozinha o banheiro (...). Tenho hoje umas
trinta pessoas que vêm regularmente.
Aqui em Portugal, a maioria das pessoas a me procurar se relaciona
a questão sentimental, de solidão, à procura de uma companhia. No Brasil,
me procuravam mais por questão de trabalho, questão financeira, e também
de amor. Não é feitiçaria, de amarração. Maria Navalhada é muito querida
e muito procurada. Digo assim, sessenta por cento das pessoas vêm por
questão sentimental; o restante é saúde e trabalho. Aqui, muita gente
sofre de depressão. Tem muita superstição da maldade, do olho grande,
acreditam em bruxo...
Tenho culto de Exu e Pomba Gira e consulto com mestres na parte
de amor. Trabalho mais com mestre e mestra; foram espíritos que tiveram
uma vida e compreendem melhor os problemas. Para fazer e desmanchar
é com eles. Seu Zé da Risada é da cidade de Acais, onde está o fundamento
de Alhandra. Maria Navalhada é uma mestra da pesada. Vem na magia, é
gente do lado do feitiço...”.
O Panteão
O panteão – com a incorporação de homens e mulheres, personagens com
histórias extraordinárias sendo absorvidas – evidencia o seu destaque social
durante a trajetória desse culto. Além dos mestres e mestras, o panteão é
composto ainda por ciganos, pajés, encantados, botos, caravelas, marinheiros, sereias, e ondinas. Através do contato com o Candomblé, com o Xangô;
e com a Umbanda, foram incorporados ao panteão: pombas giras, exus e
pretos velhos, além de santos cultuados no catolicismo tradicional.
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256
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
O imaginário reconstrói e transforma o real, e, ao se liberar, pode
inverter, fingir, improvisar, criar correlações entre as coisas, de uma maneira imponderável, e condensar fundindo essa imagem. O imaginário é
uma fábrica de deuses: os homens constroem, no processo do imaginário,
os deuses que passam a existir no cotidiano de suas experiências sociais,
transformando e reorganizando a sociedade. Na Jurema em estudo, pode
ser vista, nesse sentido, a presença de Malunguinho. Trata-se de um rebelde
afro-americano que, no período da libertação dos negros escravos, destacouse em Itapissuma, zona norte do litoral pernambucano, tal como Zumbi nos
Palmares, pelo enaltecimento da liberdade dos negros e seu apoio a todo
aquele que se rebelava contra a escravatura. Malunguinho, talvez, por este
motivo, tenha se tornado, tal como Exu no Candomblé, o grande protetor
das portas das casas de Jurema.
Os trabalhos mágicos religiosos atendem – através da mobilização
dos personagens do panteão, como em outras religiões luso-afro-brasileiras
– aos estados de aflição das pessoas no seu cotidiano. Na busca de respostas
ao desejo de prosperidade, estão os trabalhos com plantas, voltados para a
saúde; as misturas de folhas e ervas para a utilização pelo cachimbo ritual;
a renovação espiritual; a transformação e o equilíbrio do juremado; disputas
e conflitos nos quais o trabalho utiliza as “forças de esquerda”, onde são
transformadas as energias, inclusive as magias curativas.
O mundo da Jurema
Para os juremeiros, o mundo espiritual é composto por reinos e cidades:
Jurema, Angico, Jucá, Açucena, Gameleira, Vacujá, Canindé, Acais. Há uma
variação no nome dessas cidades encantadas, dependendo de uma ou
outra tradição.
Cada reino ou cidade tem seus protetores. Alhandra, no estado da
Paraíba, por exemplo, é berço de Maria do Acais. Esta se tornou mestra
depois da morte; o jardim de sua antiga casa conservava, até pouco tempo,
árvores de jurema, no tronco das quais podiam ser encontrados indicadores
de culto, como fitas, restos de velas, cachimbos, chapéus. É de Alhandra,
também, Malunguinho, um guardião, como Exu. Toda gira começa pedindo
a sua proteção. Ele vem como Mestre e como Caboclo. Como muitas outras
entidades, teve uma vida material, foi guerreiro na floresta de Catucá.
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Os Caboclos
Os caboclos – como também os mestres – são assentados nas mesas de Jurema. As entidades dos caboclos são consideradas como entidades indígenas.
Tal como na Umbanda, índio é caboclo, caboclo é índio. Nas giras, quando
incorporados, dão passes, realizam descarregos, e são relacionados a uma
categoria geral de espíritos mais elevados e trabalham para a realização de
atos considerados positivos, para o bem. Nas mesas, se encontram representados por estátuas de índios. Suas oferendas são frutas, flores, peixes, carne
e mel. Também são oferecidos pequenos animais como preás, porquinhos
da índia, coelhos, pois são associados à caça. Recebem, ainda, oferendas de
batata doce, mandioca, bolos, vinhos, refrigerantes, e as velas. A utilização
do fumo é constante, seja por meio do cachimbo, onde o fumo é preparado
com incenso, benjoim, mirra e erva-doce; seja por meio do cigarro, pois a
fumaça é um dos componentes do complexo mágico religioso. A fumaça sobe
se espalha e “leva a mensagem ao mundo sagrado”, “tanto cura como mata”.
Os caboclos são do gênero masculino e feminino e as crianças também dos
dois gêneros, como os Êres no Candomblé.
Os Mestres
Os mestres usam ervas em seus trabalhos e são conhecedores dos poderes
curativos das plantas. Além disso, atendem de modo geral às aflições do cotidiano, como questões relacionadas ao trabalho, ao amor, além de desfazer as
demandas dos inimigos. O mestre do juremeiro doutrina os juremados da Casa,
ensinando-lhes os segredos da jurema. Cada um deles está associado a uma
das cidades e a uma planta determinada; entre as plantas, a própria jurema é
a principal. Dessas plantas, o mestre tira sua força para realizar os trabalhos.
Da casca e das raízes da jurema e de outras ervas, juntando-se com aguardente,
se faz a bebida da Jurema, utilizada nos rituais, e também como medicação.
Os juremeiros (mestres e mestras) recebem oferendas de aves e animais
e até mesmo de novilhos, como Gavião, que ganhou o sacrifício na sua festa
em Cadaval. Apresentam-se jocosos e são muito respeitados. As mestras, como
os mestres, têm suas especialidades no que se refere às questões espirituais,
quer nas questões de esquerda, quer nas questões de direita. Maria Navalhada,
por exemplo, era prostituta no cais do Recife, teve a casa na Rua da Guia, uma
zona de meretrício recifense. Mestres e mestras são especialistas em assuntos
sentimentais, fazem “amarrações” e desfazem casamentos.
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A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
Os mestres, no geral, foram pessoas que viveram em determinadas
localidades, tiveram uma vida ali e se tornaram heróis em suas comunidades.
Segundo a tradição, podem ter sido escravos ou fazer parte da população
mestiça do Nordeste. E, ao morrerem, se encantaram, a exemplo da mestra
Maria de Açaís; e moram em cidades encantadas. Essas cidades são ainda
invocadas, em relação ao personagem e ao papel a ser exercido durante o
ritual, isto é, nos trabalhos a serem desenvolvidos.
Personagem importante no panteão é, assim, a mestra Maria de Acais,
cujo nome era Maria Gonçalves de Barros. Nasceu e residiu, durante a vida
inteira, no município de Alhandra, na Paraíba, considerada pelos juremeiros
como a mais sagrada de todas as cidades. Trata-se de um centro de romaria,
onde milhares de pessoas praticam rituais nas juremas no entorno da Casa
de Maria de Acais, local também de outros mestres famosos, como Damiana
Guimarães e Zezinho de Acais.
Fiquei fascinado por essas “cidades encantadas” e, retornando a
Fortaleza, depois de uma temporada de pesquisa em Portugal, resolvi ir
a Alhandra, nas proximidades da fronteira da Paraíba com Pernambuco.
Queria saber de Maria de Acais e da Cidade Encantada. Quando lá cheguei,
um rapaz me explicou não haver mais a prática da Jurema na cidade, pois
a última juremeira havia falecido. Um pouco distante do centro da cidade,
à beira de uma estrada asfaltada, se encontravam algumas paredes, ruínas
de uma antiga casa de duas janelas, onde estava afixada uma placa escrita
“Acais”. Rodeamos a casa e, nos fundos do terreno, junto a vários grandes pés
de jurema, se viam quartinhas, fitas amarradas nos galhos; em outro tronco,
uns chapéus, ali deixados pelos mestres da Jurema. Tratava-se de um local de
peregrinação nacional, como posteriormente constatei no “Youtube” , onde
são armazenados registros de festas ali realizadas.
Outras entidades fazem parte do panteão da Jurema, em papéis secundários, como Preto Velho e Preta Velha. Como na Umbanda, são espíritos de
velhos escravos africanos, e realizam bênçãos voltadas para cura. Há ainda
os exus e pombas giras no panteão. Aparecem como submetidos ao poder
dos mestres e vinculados aos trabalhos ditos “pesados”.
Em Portugal, conforme constatei nesta pesquisa, troncos de plantas
assentados em jarros de barro simbolizam os mestres dos juremeiros da
Casa; e aí estaria o “segredo da Jurema”. Ficam próximos à mesa ou embaixo
dela, um pouco escondidos. No altar – designado de Mesa de Jurema –, estão
príncipes e princesas assentados em taças ou louça cheias de água, junto
com santos católicos e imagens de índios. Junto a essas mesas, se realizam
as oferendas ou bebidas aos encantados. A disposição desse altar lembra
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Ismael Pordeus Júnior
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muito o altar da Umbanda, com três degraus; e a profusão de objetos como
cachimbos e maracas remete a uma composição barroca.
A não-fronteira e sua performance
Parto da reflexão de Hervieu-Léger (2005), sobre a modernidade religiosa,
baseada em dois modelos descritivos ideais, a saber: o peregrino, que trilha
um caminho espiritual individual, e o convertido, que escolhe a sua própria
família e pertença religiosas. Tomando como base essas categorias, em se
tratando das religiões luso-afro-brasileiras, chamei a atenção, anteriormente, em Portugal em transe, para a junção desses dois modelos, e propus
um terceiro, o de peregrino-convertido, o qual, vindo “de outras práticas
religiosas, passa por experiências em outros credos, deambula no campo
religioso, e se converte a uma religião onde encontraria uma resposta para
os seus problemas” (PORDEUS JR, 2009: 69).
Agora, ampliando essas categorias da modernidade religiosa, chamo a
atenção para uma quarta categoria, a de peregrino carismático, líder religioso que se desloca e cria um novo grupo de peregrinos-convertidos, institui
uma comunitas e se torna seu líder carismático, como se pode perceber pela
história de vida de Josenildo Ferreira da Silva. Penso ser esta uma categoria
explicativa possível de ser utilizada para se analisar o processo contemporâneo
das religiões, concebido como uma situação de fronteira, onde as dimensões
sociais e espaciais realizam suas performances e cada um faz sua própria
experiência de mundo e dos outros.
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NOTA
bibliografia
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
Foi consultada a edição da Imprensa Universitária do Ceará (1965), comemorativa do centenário de publicação do romance Iracema: lenda do Ceará,
de José de Alencar. Pesquisa realizada gentilmente por Gilmar de Carvalho.
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Palavras-chave:
transnacionalização,
religiões lusoafrobrasileiras,
Jurema, transe, possessão,
árvore encantada.
Keywords:
transnationalization,
Luso-Afro-Brazilian
religions, trance, possession,
enchanted tree.
A EXPANSÃO DA JUREMA NA PENÍNSULA IBÉRICA
RESUMO
Depois da Umbanda e do Candomblé, a Jurema Encantada é a mais recente religião brasileira a cruzar o Atlântico e
a entrar no complexo de transnacional da Península Ibérica,
particularmente, de Portugal, onde dá sinais de expansão.
As religiões são por excelência, adeptas do transnacional. A
transferência entre comunidades passa de uma a outra cultura, podendo existir nas duas, e se estender, em um sentido
bem mais amplo, como que a designar as vias de passagem e
a permitir o fenômeno de uma terceira via, uma hibridização
da produção de componentes culturais: em constante recomposição, aparecendo, frequentemente, nas culturas das
sociedades coloniais e pós-coloniais. Tudo isso faz emergir
uma nova categoria de modelo ideal, o peregrino carismático,
fundador de novas comunidades na modernidade religiosa. É o
que será tratado neste ensaio a partir de tópicos de um estudo
em uma Jurema, o Centro Espírita Vila Alhandra, situada em
São Lourenço, Azeitão, Portugal.
ABSTRACT
Following Umbanda and Candomblé, the Jurema Encantada is the most recent Brazilian religion to cross the Atlantic
and to penetrate the transnational complex of the Iberian
Peninsula, notably Portugal, from where it shows signs of expansion. Religions are, in essence, adept of the transnational.
They will transfer from one community to another, despite the
cultural differences, and may exist within both, and expand, in
a broader sense, as if to designate the passage ways and to
allow the phenomenon of a third way, a hybridization of the
production of cultural elements: in constant rearrangement,
often showing in colonial and post-colonial societies. All this
contributes to the emergence of a new category of ideal model – the charismatic peregrine, founder of new communities
of modern religiosity. This is the object of our essay, based
on topics of a study of one Jurema, the Centro Espírita Vila
Alhandra, in S. Lourenço, Azeitão, Portugal.
Recebido para publicação em julho/2013. Aceito em setembro/2013.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 247-262
Questões culturais no Ceará
Gilmar de Carvalho
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica (PUC de São Paulo). Professor
aposentado do Instituto de Cultura e Arte da UFC.
Falar de cultura implica adentrar um cipoal de teorizações, em
buscar aplicabilidade de alguns conceitos e definir uma visão de
mundo e de pesquisa como ponto de partida para as reflexões feitas.
Compreendendo, de forma bem rasa e próxima ao senso
comum, a cultura como tudo o que tem a marca do humano,
podemos ver que a abrangência que temos diante de nós, mais
que desafiadora é inibidora e pode levar tanto à megalomania
das visadas panorâmicas como à perda de foco pela rejeição de
um escopo melhor recortado e definido.
Norteado por tais referências, escolhi alguns temas para
pensar e falar, levando em conta as especificidades de uma condição
cearense, da ideia de cultura que parte da tradição e se atualiza
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QUESTÕES CULTURAIS NO CEARÁ
com novas tecnologias e mídias, e do contexto da chamada Indústria Cultural,
sob a égide da definição de políticas culturais.
O Ceará existe de fato. O que foi no início uma mera convenção para
atender a uma questão geopolítica – a definição de capitanias hereditárias no
quadro de um “descobrimento” deste continente por parte de portugueses
e espanhóis – ganhou, ao longo do tempo, um caráter que possibilita uma
discussão sob o ponto de vista da construção, reforço e desmontagem dos estereótipos como guarda-chuva como base para uma definição identitária, tão
difícil quanto complicada de ser resolvida assim, com pouco tempo, em um
texto que pretende trazer mais inquietações que respostas prontas e acabadas.
Vale ressaltar a pouca importância inicial das terras cearenses, a
meio caminho entre os engenhos pernambucanos e a exuberância pré
-amazônica do Maranhão. O Ceará instalava um areal, de difícil acesso por
via marítima, pro conta das correntes, das dunas semoventes e dos ventos
que dificultavam a navegação.
O donatário da Capitania, Antonio Cardoso de Barros, sequer se dignou a atravessar o Atlântico para tomar posse da terra que ganhou no novo
mundo. E ganhamos assim, a rejeição paterna, em uma proposta que dialoga
com o “não” do pai, no pensamento do psicanalista francês Jacques Lacan,
atualizando, com forte base linguística, o legado do austríaco Sigmund Freud.
Certo é que não tivemos pai e ganhamos um mito fundante na
figura de Iracema, ficção, com base em lendas indígenas, contribuição do
romancista José de Alencar, desterrado aos dez anos de idade, na busca de
compreender e de estabelecer laços com a terra que o viu nascer.
Iracema, anagrama de América, seria a mulher virgem que era a
guardiã dos segredos da jurema, um vegetal que provoca estados alterados
de consciência, e que teria se apaixonado pelo homem branco, que aportou
na costa. O casal multiétnico e multicultural gerou o primeiro cearense,
Moacir, o filho do sofrimento. O homem se afasta, a mulher morre depois
de dar à luz o filho e começa aí um processo de errância, um mal-estar que
não conhece tréguas, diante da aridez e infertilidade do solo, da escassez de
água, da pobreza atávica e da fome ancestral que nos marca até hoje.
Cearenses?
Diante de um quadro tão desfavorável, por que somos e continuamos
a ser cearenses?
A configuração do nosso território ajuda a explicar algumas questões.
Além das dificuldades de um porto natural (ainda hoje, passados mais de
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Gilmar de Carvalho
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cinco séculos, investimos milhões e importamos tecnologia de ponta para
termos um porto no Pecém) e das complicações para a navegação, estivemos
protegidos, desde sempre, por contrafortes de serras. A Ibiapaba nos limita
com o Piauí. O Apodi faz fronteira com o Rio Grande do Norte. A Chapada
do Araripe nos separou e depois nos uniu a Pernambuco. E assim, protegidos, podemos desenvolver hábitos, reforçar valores, desenvolver práticas e
constituir um repertório comum, que nos dá esta liga, que nos faz irmãos,
parecidos e, ao mesmo tempo, tão diferentes.
Mas nem tudo foi tão simples como parece ser a alguns nesses tempos
de valorização da diversidade, da compreensão das tensões, da valorização
das etnias indígenas, da aceitação da herança africana e da arqueologia em
busca de traços mouros, judeus, ciganos. Somos feitos de todo este amálgama,
numa receita que não consta de manuais, ao sabor de um sol causticante,
diante de dificuldades de tirar da terra o próprio sustento. Isso nos faz únicos
e nos faz iguais a tantos povos, a tantas etnias, que sabem o que significa a
luta, a migração e o genocídio.
Iracema, nosso mito fundante, foi o resultado do que Alencar ouviu,
pressentiu e inventou como forma de justificar nosso berço. E veio como
provocação, no momento em que as autoridades do Império decidiam, por
decreto, em 1861, que não existiam mais índios no Ceará. Vivíamos este apagamento da contribuição indígena, os primeiros donos da terra. Em relação
aos africanos, fazíamos a festa porque fomos a Província que primeiro decretou a Abolição da Escravatura, quatro anos da luta que levaria a conquista
ao plano nacional, e tínhamos as vozes dissonantes a esta algaravia festeira
que dizia que a emancipação se dera em razão do número insignificante de
cativos entre nós.
Certo é que temos muito forte uma herança indígena, que nos plasma, que nos molda e que nos dá parâmetros de uma ancestralidade, e que
vem sendo reconhecida aos poucos, com mais ênfase desde 1980, com os
Tapeba, passando pelos Tremembé, pelos Potiguara, pelo Pitaguari, pelos
Jenipapo-Canindé, etnias que foram ganhando reconhecimento, ainda que
não tenhamos resolvido de todo as questões fundiárias, tão incômodas, ainda
hoje, para parte das elites oligárquicas cearenses.
Indígenas que trouxeram para nossa cena cultural o toré, uma mitologia rica e vida, pinturas das paredes com o barro ou toá, artesanato de
contas e penas, o mocororó... Como antes tinham trazido a tecnologia de
retirar o veneno da mandioca para possibilitar a fabricação e o consumo da
farinha de pau, item essencial de nossa gastronomia, da mesma forma que o
subproduto do polvilho ou goma, ingrediente para a tapioca, nosso disco de
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QUESTÕES CULTURAIS NO CEARÁ
pizza, que vem ganhando as mais inusitadas coberturas ou recheios, fazendo
a festa dos nativos e dos turistas.
Indígenas que deixaram vestígios de machadinhas de sílex, cachimbos, inscrições rupestres e que contribuíram para a excelência da
nossa performance no barro, na modelagem da cerâmica, técnica e arte
que se espalha por todo o território cearense, com “ilhas de excelência”
em Cascavel, Viçosa do Ceará, Ipu, Limoeiro do Norte ou Missão Velha,
por exemplo, com seus fornos que substituíram a queima das peças nas
chamadas “coivaras”, quando a lenha reveste as peças e o fogo é ateado
até o ponto da queima.
Ancestrais que também nos deixaram a tecnologia da cajuína, quando
o suco do caju é decantado e filtrado, com ajuda de enzimas que estão ou
estavam nas resinas das árvores e depois são cozidas, obtendo-se um líquido
dourado, cujo açúcar vem da própria fruta, o que o torna ainda mais valorizado e charmoso nestes tempos de valorização do bem-estar e da rejeição
aos excessos de açúcares adicionados.
Herança maior, talvez, em termos de construção de uma simbologia
heróica, pela entrada em cena das jangadas, embarcações aparentemente
frágeis, sofisticadíssimas sob o ponto de vista da construção naval, que riscavam os mares com sua jangada de vela e levando a bordo nossos intrépidos
pescadores, com seus “corações guerreiros”, como diz a letra do nosso Hino,
de autoria de Tomás Lopes, com melodia de Alberto Nepomuceno.
Ganhamos um legado africano que se perfaz no maracatu, este cortejo
que marca com sua batida solene, um tempo ancestral, de rainhas africanas
sendo coroadas nas festas e procissões das irmandades religiosas do Icó, do
Aracati, do Crato e de Fortaleza, por exemplo.
O maracatu cearense tem um traço comum e diferenciador dos outros
maracatus. Ele faz a integração dos negros com os índios no mesmo cortejo.
Faz na prática o que os teóricos levaram anos para propor e o que a sociedade civil ainda hoje, apesar de todo o avanço da legislação, ainda vê com
dificuldade: o encontro entre os diferentes, a riqueza que se obtém a partir
de várias contribuições no caldeamento cultural.
Os portugueses trouxeram missões jesuíticas que criaram reduções,
onde os índios eram educados sob o ponto de vista cristão e aprendiam a fazer
a renda com o ponto no ar, a partir dos jogos de bilros e das almofadas cheias
de palha. Nascia nossa habilidade, do ponto de vista do contexto dos valores
das civilizações ocidentais. Estas rendas vinham de Portugal e dos Açores, mas
dialogavam com a Espanha, com Bruges e outras cidades de Flandres (hoje
Bélgica) e incorporavam influências de culturas outras, distantes e perdidas.
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Gilmar de Carvalho
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Os portugueses trouxeram tantas coisas, mais visíveis ou prevalecentes
porque se tratava da cultura oficial, ainda que tenha se mesclado ou caldeado, ao
longo do tempo, com a alegria indígena ou com o banzo africano, com a liberdade
e com a submissão, com o torém e com o batuque, com Tupã e com Yemanjá.
A religião não é um traço característico nosso, ainda que tenhamos
desenvolvido uma fé sem amarras e sem condições, e que o Ceará tenha
sido berço de três figuras referenciais do catolicismo sertanejo: Ibiapina,
Conselheiro e Padre Cícero.
Ibiapina era o bacharel em Direito, com expectativa de carreira brilhante, quadro das elites e que largou tudo para de dedicar aos desamparados
de sempre. Antonio Mendes Maciel, o Conselheiro de Quixeramobim, tentou
implantar a utopia de uma sociedade socialista e igualitária no sertão da Bahia,
até ser massacrado pelo Exército Brasileiro. Padre Cícero protagonizou um
milagre, da hóstia que teria se transformado em sangue quando da comunhão
de uma beata, em março de 1889, em Juazeiro do Norte. A ousadia foi um
milagre ter acontecido aqui, quando o cenário ideal teria sido, de acordo com
o então Reitor do Seminário de Fortaleza, Padre Chevalier, as terras da Europa.
Autores falam em ciclos econômicos. Pode-se pensar nas charqueadas
como a possibilidade de fazer com que carne, desidratada e salgada resistisse
ao tempo e pudesse ser embarcada para Pernambuco, por exemplo.
Assim, ganhamos um dos pratos principais de nossa mesa: a paçoca,
esta mesma carne do sol frita, socada no pilão de pedra ou de madeira de lei,
com farinha de mandioca e com a cebola dando a liga e fazendo com que o
acepipe ficasse ligeiramente úmido, pronto para ser colocado nos embornais
dos vaqueiros, dos retirantes e dos romeiros.
O algodão vem desde sempre. Os índios juntavam os fios em novelos,
os nimbós, que funcionavam como moeda de troca nos escambos de então.
Os fios eram tecidos nos teares manuais e davam forma às redes de dormir, as
velhas “inis” da tradição. Nunca um apetrecho se adaptou tão bem à cultura
cearense, e as redes são talvez a mais perfeita tradução dessas apropriações,
servindo para dormir, para a sesta, para fazer amor e para levar muitos sertanejos à última morada, como no poema “Morte e Vida Severina”, de João
Cabral de Melo Neto.
A etnia Tremembé desenvolveu uma rede que eles chamam de travessa,
feita em uma grade ou bastidor, colocada contra uma parede, trabalho realizado
pela família, por um grupo, onde se mistura habilidade e brincadeira. Mais que
uma tecelagem, um bordado com agulhas grandes, esculpidas em madeira.
Reunindo a rede da tradição indígena, com a renda de bilros trazida pelos
portugueses, dona Zefinha, de Potengi, faz uma das peças mais espetaculares
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QUESTÕES CULTURAIS NO CEARÁ
da cultura cearense: uma rede na almofada de um metro e vinte centímetros
de largura, tocada por cento e vinte pares de bilros. Impensável a “engenharia”
envolvida, a dança onomatopáica dos bilros e a renda ganhando forma a partir
do papelão furado, como um antigo programa de computador, e os espinhos
de mandacaru segurando a linha para o ponto no ar.
O algodão passou a ser valioso no mercado internacional, com a Guerra
de Secessão que complicava as exportações norte-americanas. O Ceará ganha
importância, pode assegurar a formação de riquezas, permite o aformoseamento de Fortaleza e se interliga à Europa por meio da navegação; e com o
algodão ganhamos nossas primeiras indústrias pesadas, as têxteis, além da
concretização do caminho de ferro que se interiorizava a passos lentos e só
chegou ao Juazeiro do Norte em 1926.
A travessia das boiadas resultou na constituição das fazendas, interiorizando o Ceará. Surgiu a figura épica do vaqueiro, encourado, com gibão,
perneiras e chapéu, guiando as boiadas ou procurando a rês perdida. Este
vaqueiro foi um dos autores e/ou protagonista de uma das primeiras histórias
de nossa tradição oral: “O Rabicho da Geralda”, boi de “fama conhecido” que
teria vivido nos sertões de Quixeramobim e cujo relato das peripécias foi
transcrito por muita gente, inclusive pelo jovem Capistrano de Abreu, atendendo a uma solicitação de José de Alencar. Estamos diante de dois grandes
nomes da inteligência cearense: o pai do romance brasileiro e o historiador
que deu novas bases à pesquisa e à escrita da História entre nós.
Mas o boi saiu dos relatos orais, ganhou a forma de performance e temos
a dança dramática do bumba-meu-boi, onde a rês preferida do fazendeiro
é sacrificada para satisfazer o desejo da mulher grávida do vaqueiro. Depois
de danças, competições, personagens que entram e saem, o boi morre, no
final, e ressuscita. É uma manifestação das mais difundidas da cultura brasileira. Aqui no Ceará, faz parte do ciclo natalino. Em outros estados, como
o Maranhão, integra as festas juninas.
Vale uma reflexão sobre o tempo da apresentação, dilatado, que ocupava
a noite inteira; hoje, no entanto, os grupos e os artistas têm quinze minutos
para a performance ou o show.
O couro curtido em pequenas oficinas se transformou em selas,
arreios, armaduras para os vaqueiros, sandálias de “currulepe” e tudo isso
é atualizado pela competência, habilidade e invenção de um dos maiores
“designers” brasileiros, o Mestre Expedito Seleiro, de Nova Olinda.
O ciclo do boi ou a civilização do couro, no dizer de Capistrano de
Abreu, nos deu o aboio, canto plangente para reunir o gado, que pode ter
letra ou ser apenas gutural. Esse canto tem afinidades com os muhezins dos
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árabes, da mesma forma que os benditos do catolicismo sertanejo atualizam
e adaptam para o nosso contexto o cantochão medieval.
Com os portugueses vieram os cordéis ou uma parte do nosso repertório porque a necessidade de fabular está presente em todas as culturas
e civilizações, de todos os tempos e lugares. Nosso cordel é uma poesia da
voz regada pela cantoria, pelo improviso da viola ou da rabeca que afina
com trovadores, jograis, menestréis, com a gesta trovadoresca. Da mesma
forma que o cordel nunca foi exposto pendurado em cordões, mas no chão
do mercado, nas calçadas das feiras, nos patamares das igrejas, onde quer
que tivesse gente disposta a ouvir um trecho da história, interrompido pela
advertência cínica ou pragmática de que quem quisesse saber o final do relato
teria de adquirir um exemplar.
Tudo isso amplifica voz e letra, mostra resistência e conformismo,
acomodação e luta, alegria que deve ter vindo dos índios, saudade e tristeza
lusas e banzo africano. Tudo isso serve de pano de fundo para histórias de
valentia e de traições. Não tem como simplificar mais ou não tem como
reduzir tudo a um pressuposto.
Estávamos tão longe dos centros de decisão que a notícia da Independência levou mais de três meses para chegar aqui. A imprensa só veio por
conta da Confederação do Equador que rompeu o marasmo provinciano com
a morte dos nossos primeiros mártires ou heróis no Passeio Público. E essas
mesmas máquinas que imprimiam jornais políticos e pouco atraentes, do
ponto de vista gráfico-visual depois imprimiram os primeiros folhetos com
rima, métrica e melodia, contando histórias que começaram pela adaptação
dos clássicos que vinham na bagagem do colonizador, mas depois ganharam
cor local e falaram de cangaceiros, Padre Cícero, secas, tanta coisa mais que
cabe entre o céu que nos protege e a terra que nos fixa.
Outras influências chegaram com a sofisticação da comunicação.
As fotografias eram caras e os daguerréotipos fixavam em caixas de vidro
e nitrato de prata imagens para o registro e consumo das elites. O som mecânico veio a partir do início do século XX, com a Casa Edison, do Rio de
Janeiro. O cinema é invenção do final do século XIX e as primeiras emissões
de rádio são do centenário da Independência, em 1922, ano da Semana de
Arte Moderna, dos rebeldes do Forte de Copacabana que pretendiam uma
outra ordem, da formação do Partido Comunista. Enfim, 1922 é um ano
para não ser esquecido.
A cultura cearense sofreu influências disso tudo, mesmo estando na
periferia da periferia de um capitalismo que se mostrava tímido diante do
que se passou a ter depois.
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QUESTÕES CULTURAIS NO CEARÁ
Nossas elites consumiam o melhor que o mercado colocava nas
prateleiras e nos anúncios dos jornais: salmões, bacalhaus, vinho do Porto,
queijos do reino, nunca fomos tão gourmets...
Vivíamos uma macaqueação de “belle-époque”, com clones do francês Barão de Haussmann, responsável pelo redesenho de Paris, abrindo os
“boulevards” Duque de Caxias, Dom Manuel e do Imperador. Nossa gente
já frequentava o Passeio Público que fazia na prática a segmentação social,
levando os ricos a uma avenida (ou passeio), as camadas médias a outra e o
“zé povinho” a uma terceira via de uma pesada e imaginária pirâmide. Tudo
isso tendo como trilha as composições de Ramos Cotôco, boêmio, portador
de uma deficiência física que lhe rendeu este apelido depreciativo, desenhista e pintor, apesar de tudo, e crítico ferino de nossas hipocrisias e do nosso
faz-de-contas. Em Cantares Bohêmios, publicado em 1892, contemporâneo
da Padaria Espiritual, Cotôco “tirava sarro” do prazer de bolinar as criadas,
falava em jogo do bicho, no matapasto, no excesso de maquilagem, e fazia uma
crônica sonora de uma Fortaleza mais “fuleiragem” que “metida a francesa”.
Talvez nunca tenhamos conseguido um lugar onde colocar as tradições
sertanejas. Tudo isso era visto como atraso, para uma concepção de modernidade
que convivia, pacificamente, com o predomínio das oligarquias. As secas nos
marcavam de vez, desde sempre. Os primeiros registros são do século XVII.
E já eclodiam mesmo antes de desmatamento, de intervenções criminosas
que vieram depois, em função da ganância, da especulação imobiliária e da
pressa de fazer fortuna. Diga-se de passagem que alguns conseguem amealhar
riquezas em pouco tempo, quatro anos, por exemplo.
As secas foram catastróficas. Uma delas, que durou de 1877 a 1879,
matou um quarto da população da Província. Vale o exercício mórbido
de imaginar a morte de dois milhões de cearenses hoje e teremos uma
ideia do que nos dizimou. A seca foi reeditada em 1888 / 1889 e vem se
repetindo, levando à terminologia equivocada e militar do combate e não
do convívio com o semi-árido.
A crônica das secas é um pouco da história do Ceará envolvendo
ecologia, política, cultura. Tivemos campos de concentração, inchaço de
Fortaleza e exemplares de romance social, além de folhetos de cordel com
este mesmo tema.
Não soubemos o que fazer com o que vinha do interior. Nem com as
pessoas, nem com seus valores, crenças, práticas, manifestações, folguedos.
Eram índices do atraso. Estas populações de baixa renda foram expulsas
para a periferia da cidade e nunca foram ouvidas de verdade, nas práticas
populistas que permanecem até os dias de hoje.
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Gilmar de Carvalho
271
Assim, nos arrabaldes, os sambas terminavam com facadas e muita cachaça; os bois eram ridicularizados pelas elites pretensiosas; lapinhas resistiam
no interior das igrejas; os cantadores souberam passar da rejeição à estética do
espetáculo e alugaram espaços, montaram cenários, equipamentos de sons,
bancadas de jurados, distribuíram motes e deram a volta por cima.
Da mesma forma, as quadrilhas juninas superaram a chita e passaram
a usar tecidos com brilhos, uma estética mais próxima das escolas de samba, passos marcados, alegorias de mão, enredos, trilhas sonoras compostas
especialmente para elas.
O que seria essa tal de espetacularização? O processamento de outras
estéticas, de outras ideias de gosto e um diálogo com o que mostra a cultura de
massas, agora não apenas a televisão, mas a rede mundial de computadores,
mostrando a vida em tempo real, a loucura das câmeras fotográficas, que
estão nos celulares e registram tudo, mesmo que depois a gente não saiba o
que fazer com tanta informação, a não ser jogar a maior parte no lixo virtual.
A espetacularização não pode ser considerada como índice da pouca
importância das tradições. Ela funciona como uma catalização, uma propulsão de manifestação que, de outro modo, estariam fadadas ao esquecimento.
Algumas delas entraram em baixa ou caíram no desuso pela inadequação aos
dias de hoje. A dança de São Gonçalo, por exemplo, com suas jornadas que
duram uma hora cada uma delas, e que varava a noite, em cumprimento a
uma promessa feita, com seus cordões de fiéis, fazendo o trancelim, sob um
arco de frutas e a imagem do santo violeiro sobre um altar.
Como compatibilizar as tradições com a cultura de massas? Não
existe receita para isso. Cada caso é um caso e cada comunidade resolve do
seu jeito, com suas negociações, suas trocas, seus ganhos e suas barganhas.
No Ceará não tem sido diferente. O Boi tanto pode ter o aparato tecnológico
de Parintins, na Amazônia, como estar coberto de palha seca de bananeira,
como visto em algumas localidades do interior cearense.
A vaquejada deixou de ser a corrida dos vaqueiros, brincadeira depois
de levar as reses aos currais, e se tornou competição séria, negócio envolvendo
patrocínio de multinacionais, moda, revistas, discos, comida, vários itens de
um cardápio vasto e diversificado.
Mas, as discussões sobre as questões culturais no Ceará não se reduzem nem se esgotam na crítica das mídias, mais que veículos ou meios,
um lugar privilegiado onde a sociedade se vê e se discute; o tal espelho de
Narciso, a constatação de que diante da urbanização crescente, da explosão
demográfica e de tantas complexidades dos dias de hoje, não seria possível
o funcionamento da estrutura social sem esse aparato de mediações.
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272
QUESTÕES CULTURAIS NO CEARÁ
As discussões sobre cultura envolvem os estereótipos. Bom saber o
que pensamos e o que os outros pensam de nós; importante refletir sobre
como construímos ou idealizamos essa imagem nem sempre concreta, muitas
vezes difusa e borrada.
Falam em caráter guerreiro, em disposição para enfrentar adversidades,
mas isso, longe de ser uma prerrogativa cearense, é uma característica de todos
os povos. Todos têm seus heróis, mártires, libertadores. Os que lutaram nos
ajudaram a fazer as travessias. Tampouco é apenas cearense a determinação
ou a ideia de se espalhar pelo mundo como estratégia se sobrevivência.
Também não é apenas nossa a capacidade de não desistir, de ir em
frente e alcançar os objetivos. Lutamos contra o sol, a terra, a falta d’água.
Mas essa luta não é única, é de todos.
E o que dizer do Ceará que acrescente alguma coisa, que não seja
óbvio ou redundante? Talvez o humor seja um viés interessante, uma porta de entrada para um universo rico e multifacetado que se chama Ceará.
A irreverência, a verve do cearense é a capacidade que o cearense tem de rir
de si mesmo. Talvez este riso não seja apenas o reforço de um estereótipo,
mas uma construção histórica; e tem como um de seus marcos a Padaria
Espiritual, que está sendo homenageada hoje por nós, aqui neste Festival
UFC, cento e vinte anos depois.
Não se trata de listar situações risíveis, mostrar o escárnio ou o constrangimento que a vaia provoca, mas de compreender o humor como estratégia não apenas discursiva, mas como vivência, como atitude e como marca
identitária forte de um povo que é rico o bastante para não caber em uma
gavetinha com rótulo afixado do lado de fora, prontos para serem retirados
dos escaninhos e consumidos ao bel prazer do mercado.
Nosso riso que se confunde com a vaia não é apenas um estereótipo,
figura maior da ideologia, no dizer do pensador francês Roland Barthes.
Nosso riso é uma atitude, reflete uma visão de mundo, não retira de nós a
capacidade do trabalho árduo.
A Padaria Espiritual era uma explosão de mal-estar diante da morrinha provinciana e um instante fundante de nossa irreverência. Na vaia, nos
chistes, em um nacionalismo que fazia sentido naquele instante, da rejeição à
fauna e à flora estrangeira, aos clichês de um romantismo já datado, no culto
às personagens que mereciam culto e no descarte dos alfaiatas, do clero e da
polícia, as marcas do que seríamos daí para a frente.
A Padaria Espiritual deu a este riso um Programa de Instalação, um
cânon. Depois, tivemos a Academia Polimática, o Bode Yoyô, Quintino Cunha,
a vaia ao sol, as Coca-Colas que namoravam os norte-americanos, o apupo
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273
aos excêntricos: Levi, Chagas dos Carneiros, Ferrugem, Zé Tatá, Burra Preta.
Um riso politicamente incorreto que afetava os diferentes, os especiais, os
excluídos. Valia tudo.
Claro que as questões culturais não se reduzem, nem se resolvem pelo
riso, num passe de mágica. Como não se resolvem, também, pela crítica às
mídias. Passam pelas discussões sobre o que somos, para saber o que queremos
ser. As práticas culturais se desenvolvem ao sabor do mercado, na satisfação das
expectativas de lucro. Passam pelas descontinuidades das políticas culturais,
onde os gestores ouvem a sociedade civil, para depois fazer o que bem querem,
o que cobram seus compromissos ou receitam seus caprichos.
Temos uma atávica rejeição ao passado e um apego não ao novo, mas
à novidade, que pode ser o velho travestido, a diluição do contemporâneo,
do que vem dos chamados grandes centros.
Este foi um passeio pelos bosques da cultura, um momento para o
desencadear das múltiplas reflexões que poderão nos dar um rumo.
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274
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QUESTÕES CULTURAIS NO CEARÁ
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275
Gilmar de Carvalho
Palavras-chave:
mito, Ceará, cultura,
tradição, mercado.
Keywords:
mith, Ceará, culture,
tradition, market.
RESUMO
O artigo discute questões pertinentes à história cultural
do Ceará, numa perspectiva da aceitação da multiculturalidade
como um dos traços de nossa formação. Pretende, também,
na medida em que isso cabe a um artigo, desmontar estereótipos e mostrar várias angulações para episódios e fatos da
vida política, econômica e cultural do Ceará, na medida em
que estes fatos do passado projetam luz sobre o presente e
ajudam à formulação de projetos de futuro.
ABSTRACT
The article discusses pressing issues to the cultural history
of Ceará, drawing from the perspective of multiculturalism as
one of the State’s identifying traits of formation. It seeks to
dismantle stereotypes and to present several angles to the
framing of episodes and facts of Ceará’s cultural, political, and
economic life, insofar as these facts of the past project their light
into the present and help us formulate projects for the future.
Recebido para publicação em abril/2014. Aceito em julho/2014.
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Entrevista
A sociologia de volta à escola:
um balanço provisório
Entrevista com Ileizi Fiorelli
Por: Danyelle Nilin Gonçalves
Ileizi Luciana Fiorelli Silva
Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual
de Londrina (1991), Especialização, com a monografia A
Educação pública como Política; Mestrado em Educação pela
FE-USP (1998) com a dissertação Reforma ou contra-reforma
no Sistema de Ensino Público do Estado do Paraná? Uma
análise da meta da igualdade social nas políticas educacionais
dos anos 90 e Doutorado em Sociologia pela FFLCH- USP
(2006) com a tese Das fronteiras entre ciência e educação
escolar - as configurações do ensino das Ciências Sociais,
no estado do Paraná (1970-2002). Atualmente é professora
efetiva no curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual
de Londrina. É coordenadora do Mestrado em Ciências Sociais
e docente da Especialização em Ensino de Sociologia da
mesma universidade. Coordena o Grupo de Pesquisa do CNPq
Laboratório de Ensino, Pesquisa e Extensão de SociologiaLENPES e o Observatório da Educação (CAPES-Ciências
Sociais da UEL). Tem experiência na área de Sociologia
da Educação e Sociologia do Conhecimento, atuando
principalmente nos seguintes temas: educação, política e
currículos, sociologia no ensino médio. Desenvolve os projetos
de pesquisa “O Ensino Médio no Brasil: análise comparativa das
múltiplas desigualdades socioeducacionais nas microrregiões
do Paraná”, “Por uma Sociologia das “Novas” e “Velhas” Formas
de Evasão nas escolas públicas: estudo exploratório em três
colégios do norte paranaense” e “As pesquisas sobre políticas
educacionais e as Ciências Sociais: metodologias recorrentes
no Brasil, no período de 1990 a 2000”.
Danyelle Nilin Gonçalves
Doutora em Sociologia e professora do Departamento de
Ciências Sociais, Univerdade Federal do Ceará (UFC). Ao lado
de Ileizi, participa da Comissão de Ensino de Sociologia da
Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS).
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278
A SOCIOLOGIA DE VOLTA À ESCOLA
Danyelle Nilin Gonçalves - Fale-nos sobre sua trajetória profissional, pesquisas
e participações institucionais.
Ileizi - Sou filha de uma professora de Português e Inglês da Educação Básica
(denominada até 1996 de 1º. e 2º. Graus), a querida Margaret Fiorelli. Em
termos de trajetória, não resta dúvida de que tenho uma herança de classe,
gênero e profissão que orientaram minhas escolhas. Só fui saber disso no
curso de Ciências Sociais, aprendendo sobre reprodução social com os pensadores clássicos e contemporâneos. Em 1985, iniciei o curso de Direito na
UEL e em 1988 o curso de Ciências Sociais. Conclui em 1991 a licenciatura em
Ciências Sociais. Ainda na graduação comecei a lecionar História, Geografia
e OSPB-Organização Social e Política do Brasil como professora temporária
em duas escolas públicas, uma em Cambé e outra em Londrina. Devo dizer
que duas coisas me pegaram de jeito: as Ciências Sociais (que conheci nas
aulas de Sociologia, ciência política e filosofia ainda no curso de Direito) e
pesquisar e ensinar. Logo desenvolvi uma ambição de ser professora universitária. Mas, queria também ensinar no Ensino Médio, pois tenho até hoje
uma empatia com os adolescentes e jovens. Gosto dessa faixa etária. Acho os
jovens desafiantes com suas risadas, conversas, às vezes uma falsa indiferença,
os esforços para entrar e para ficar de fora do “mundo adulto” e assim por
diante. Para resumir entrei na rede pública do Estado do Paraná em 1991,
passei em um concurso público para História no 1º. Grau e Sociologia no 2º.
Grau. Tinha, então, 40 horas aulas semanais, sem hora-atividade, ou seja,
eram 40 aulas em sala de aula e mais todo o tempo fora para preparar tudo.
Realizei coisas incríveis com essa condição de trabalho, coisas que só aos 22
anos conseguimos mesmo fazer. A energia juvenil faz diferença. Querendo
cursar mestrado pensei em tentar algum concurso para ministrar aulas em
universidades, que em 1994 ainda admitiam professoras sem mestrado.
Abriu, então, um edital de concurso para Metodologia e Prática de Ensino
em Ciências Sociais na UEL. Considerei a oportunidade perfeita para unir
duas paixões ensinar/pesquisar e continuar em contato com as escolas. Em
1995, conclui a Especialização em Ensino de Sociologia, na UEL, a primeira
turma do curso existente até hoje. Em 1998, conclui o Mestrado na Faculdade
de Educação da USP e em 2006 conclui o Doutorado em Sociologia na USP.
Equilibrei-me nos diferentes mundos, acadêmico, escolar, militância em
movimentos sociais e sindicais, educação de minha filha Yolanda e durante
o doutorado comecei a me inserir, também, em associações científicas, no
caso, a Sociedade Brasileira de Sociologia, através do convite da minha orientadora profa. Heloisa Helena Teixeira de Souza Martins e da parceria com os
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professores Amaury Cesar de Moraes (USP) e Nelson Tomazi (UEL\UFPR),
entre outros colegas que foram surgindo também nesse espaço.
Entre 1990 e 1992, participei como bolsista de iniciação científica do
CNPq em uma pesquisa sobre Partidos Políticos no Paraná, sob orientação
da profa. Dra. Luiza Hermmann de Oliveira. Com ela aprendi fazer pesquisa
quantitativa e qualitativa em várias tradições da ciência política, sobretudo na
linha das instituições. Nesse mesmo período ministrava aulas no então 1º e 2º
graus. Em 1996 conclui uma monografia de 150 páginas sobre os Currículos do
estado do Paraná de 1983 a 1991, para fechamento da Especialização em Ensino
de Sociologia. Aqui me apropriei da Sociologia da educação e especificamente
da Sociologia do currículo tanto em termos teóricos como empíricos. Como
desdobramento da monografia, fiz um projeto de mestrado sobre as Políticas
Educacionais do Paraná de 1990 a 1998, ampliando as discussões da monografia
que se restringiram aos currículos, incluindo a gestão, recursos humanos, ensino médio evidenciando as propostas sobre a meta da igualdade social. Entre
1998 e 2002 participei ativamente dos debates sobre políticas educacionais,
implantação da nova LDB de 1996, eu diria que tudo me encaminhava para ser
uma especialista em Políticas Educacionais. Observando de longe, reconheço
que no mestrado e na especialização eu uni a formação de ciência política da
iniciação científica e a questão da educação. E fiquei satisfeita. Contudo, em
1998 e 1999, ministrando aulas de Metodologia de Ensino de Sociologia, percebi
que tinha que estudar outras frentes de pesquisas e teorias da Sociologia, da
psicologia e da educação de modo geral. Nesse momento decidi investigar o
que existia de produção sobre o ensino de Sociologia, e começo duas pesquisas:
a) uma sobre o estado da arte de 1940 a 2002; b) outra sobre a Sociologia no
currículo do Estado do Paraná de 1970 a 1999. Delas nasceu meu projeto de
doutorado aceito em 2002, com a conclusão em 2006, com uma tese sobre o
Ensino de Ciências Sociais/Sociologia no Paraná de 1970 a 2002. Desde então,
atuo e pesquiso sobre ensino de Sociologia no Laboratório de Ensino, Pesquisa
e Extensão de Sociologia-LENPES da UEL, no Programa de Pós-graduação lato
sensu e stricto sensu. Agora, mais recentemente, retomei estudos sobre políticas educacionais para o ensino médio e criei o Observatório da Educação em
nosso Programa de Mestrado. Conclui uma pesquisa sobre evasão nas escolas
de três municípios do Paraná junto com mais dois colegas e apresentamos
na ANPOCS de 2013, artigo ainda em fase de acabamento para publicação.
Estou ultimando um relatório de pesquisa sobre metodologias de pesquisa
em Políticas Educacionais e iniciando uma pesquisa sobre metodologias de
ensino desenvolvidas pelos PIBIDs no Paraná.
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A SOCIOLOGIA DE VOLTA À ESCOLA
Danyelle - Como estudiosa da temática, qual é o balanço que você faz sobre as
pesquisas na área?
Ileizi - Um balanço provisório sem muita sistematização indica um crescimento no número de artigos, teses, dissertações, coletâneas, textos técnicos
e orientações curriculares. Quando comparo o balanço que fiz em 2001 e
apresentei em 2002 no Congresso dos Sociólogos em Curitiba, vejo que já
perdemos a conta dos trabalhos. Anita Handfas e Julia Polessa Maçaira publicaram um artigo “O estado da arte da produção científica sobre o ensino
de Sociologia na educação básica (Revista BIB da ANPOCS, no. 74, 2012,
pp.43-59)”, em que apontam 43 dissertações e teses entre 2007 e 2012, sendo que 23 foram realizadas em Programas de Pós-graduação em Educação
e 19 em Programas de Pós-graduação em Sociologia ou Ciências Sociais. Há
sem dúvida uma dinamização das pesquisas. Agora, precisamos começar a
avaliar a qualidade e os termos do conhecimento que está sendo produzido.
Essa é uma tarefa importante para as próximas pesquisas. Os estudiosos que
forem começar a estudar essa temática terão um volume bem maior para
avaliarem e incorporarem na construção do objeto “ensino de Sociologia”.
Danyelle - Qual é o papel da UEL na formação de professores para o Ensino
Médio, na difusão da temática e na produção de pesquisadores?
Ileizi - A UEL ganhou um protagonismo no Paraná e depois em nível nacional por uma série de fatores e especificidades da história da educação e das
Ciências Sociais locais. No caso da UEL há um dado importante que data
de 1982, quando a instituição decidiu alocar o estágio supervisionado das
licenciaturas nos respectivos departamentos de cada ciência de referência,
tirando do Centro de educação essa tarefa. Isso é um diferencial que fez
com que os cientistas sociais convivessem, desde a criação da Licenciatura
em Ciências Sociais, em 1973 e até os dias atuais, com as demandas da formação de professores para a educação básica. Não sem conflitos, rejeições,
lutas, disputas, divisões. Mas, juntos, reunidos no mesmo espaço. Assim,
eu trabalho desde 1994 no departamento de Ciências Sociais, convivendo e
contando com a colaboração de alguns e com a oposição de outros tantos
antropólogos, cientistas políticos e sociólogos. Mas, nesse ambiente criamos
os laboratórios e grupos de apoio à formação de professores. O nosso curso
de Especialização completa neste ano, 20 anos de existência. A Licenciatura, 42 anos e o Mestrado 14 anos. Isso permitiu um acúmulo de pesquisas
e experiências variadas de trabalho com as escolas e professores do ensino
médio, criando um modo (que inspira muitas outras IES) de articular tudo
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ILEIZI LUCIANA FIORELLI SILVA
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isso. A criação de uma linha de pesquisa “Ensino de Sociologia” no Mestrado
e a proposta de criação de Doutorado, que contempla essa linha, ajudará a
consolidar nosso trabalho e esperamos inspirar outros programas de pósgraduação em Ciências Sociais ou em educação.
O LES - Laboratório de Ensino de Sociologia - começou em 2000,
e o estruturamos em “Ações Diferenciadas”, tendo a adesão de sociólogos,
antropólogos e cientistas políticos do departamento de Ciências Sociais.
Congregamos professores do ensino médio e estudantes da graduação. Ele já
funcionava como uma espécie de PIBID – Programa de Iniciação à Docência – pois produzíamos materiais didáticos, coletâneas de textos de autores
clássicos e contemporâneos, textos didáticos, semanas de Sociologia nas
escolas, visitas dos estudantes do ensino médio na UEL, enfim, praticávamos
o ensino de Sociologia em regime de colaboração com todos esses agentes.
Sem bolsas, sem verba de custeio e sem livros didáticos nas escolas. Dessa
forma, a única política de apoio que os professores de Sociologia tinham entre
1998 e 2006/2007 era o nosso Laboratório de Ensino, aqui em nossa região.
A primeira ação que antecedeu o Laboratório foi a de convencer as escolas
de Londrina a incluírem a Sociologia entre 1993 e 1998. Em 1996 antes da
promulgação da LDB, Londrina tinha 19 escolas com Sociologia, dentre as 64
existentes. Nossa maior conquista foi essa: incluir a Sociologia por convencimento. Quando a LDB saiu e depois todas as outras regulamentações favoráveis
e as desfavoráveis, nós só ampliávamos o número de escolas. Nos períodos
desfavoráveis, como o período de 1999 a 2002, as escolas da região de Londrina resistiam às ações de retirada da disciplina. Diminuíam a carga horária,
sofriam alguma mudança, mas não retiravam a Sociologia dos currículos.
As pedagogas eram nossas parceiras desde os anos de 1990 e nos ajudavam
muito nesses momentos. Isso fez com que a UEL e a região do norte do Paraná
acumulassem mais experiência de ensino e, talvez, por isso hoje podemos ter
uma linha de pesquisa no Mestrado e no Doutorado (caso ele seja aceito na
CAPES) em Ciências Sociais. A chegada dos programas da CAPES, tais como
PRODOCENCIA, PIBID e OBEDUC potencializaram muito os trabalhos que
começaram sem financiamento nos anos de 1990 e hoje contam com bolsas
para docentes do ensino médio, graduandos, mestrandos, coordenadores,
estudantes do ensino médio e mais verbas de custeio para equipamentos,
viagens a congressos, etc. Temos hoje cinco salas de laboratórios de ensino
no CCH para aulas da licenciatura, com mais de 20 computadores, lousas
digitais, TVs, Datashow, som, filmadora enfim, um ambiente para produção
de aulas e materiais didáticos.
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282
A SOCIOLOGIA DE VOLTA À ESCOLA
Diria que o nosso trabalho começou sem condições materiais, mas
com resultados visíveis dos esforços e, hoje, conta com condições materiais
que jamais imaginamos ter algum dia.
Danyelle - Conte-nos sobre a criação da área de Ensino de Sociologia no Mestrado da UEL.
Ileizi - A Metodologia de Ensino de Ciências Sociais sempre existiu no departamento, contudo, no Regimento modificado em 1998, deixaram apenas
três áreas: Antropologia, Ciência Política e Sociologia. Do ponto de vista da
PROGRAD e das horas do curso de graduação em Ciências Sociais, da especialização e dos estágios, isso estava muito claro, mas na hora de distribuir
vagas de concurso para contratar docentes que se dedicassem a essas tarefas,
de 1998 em diante perdemos todas as vagas, ou seja, eram quatro vagas que
em 2006 se resumia a duas vagas e dois docentes, eu e o prof. Cesar. Depois
de muita luta conseguimos algumas vagas de concurso e também mudar o
Regimento do departamento, incluindo a Metodologia de Ensino como área
de conhecimento que congrega as práticas transversais e interdisciplinares
das Ciências Sociais. O resultado disso foi que restabelecemos a área com
seis docentes e a partir daí criamos as condições para ter uma linha de pesquisa no Mestrado. Quero registrar que a linha foi sugerida em reunião de
visita do comitê de Sociologia da CAPES ao PPGSOC, em novembro de 2011,
Jacob Lima (coordenador da área) mencionou isso explicitamente para os
docentes, dizendo que nós estávamos perdendo uma grande oportunidade
de firmar o nosso programa com algum diferencial no cenário nacional.
Em 2012, nosso grupo propôs a criação da área, e com o “aval da CAPES” as
negociações ficaram mais fáceis.
Danyelle - Qual sua análise sobre o material didático de Sociologia para o
Ensino Médio?
Ileizi - Todo esse envolvimento, mais agentes, mais IES, sujeitos novos e há
mais tempo nessas atividades, tem como resultado um crescimento numérico
na produção de materiais didáticos em forma de livros, portais na internet,
Objetos Educacionais Digitais, vídeos, Blogs, entre outros meios de comunicação para além de livros impressos.
A qualidade dos materiais tem sido objeto de estudos nos artigos,
dissertações, teses, entre outros. Mas, precisamos de mais avaliações, sobretudo, dos Portais e Blogs. São veículos muito potentes, mas que podem ter
problemas na fidedignidade científica de nossas disciplinas.
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283
No caso dos Livros Didáticos, a Sociologia pôde participar de duas
versões do Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio, em
2012 e 2015. Participei da primeira versão como parecerista e da segunda
como coordenadora pedagógica. Os Guias publicados on-line demonstram
o esforço de escrutínio dos livros inscritos. Não podemos esquecer os livros
que não são inscritos, ou seja, o resultado dos dois PNLDs é de uma amostra
do que existe no mercado editorial. No PNLD-2012 tivemos 14 obras inscritas e apenas 02 recomendadas pelos pareceristas. No PNLD-2015, tivemos
13 obras inscritas e 06 recomendadas. Note-se que há uma melhoria da
qualidade dessas obras, pois se triplicaram os livros com alguma qualidade teórica e didática. Entretanto, ao analisarmos esses livros percebemos
alguns desafios que apontamos no Guia do Livro Didático-PNLD-2015. O
processo de mediação pedagógica produz alguns riscos, o mais frequente
é o reducionismo das teorias, a não operação com os conceitos e a falta de
diálogo entre nossas disciplinas Antropologia, Ciência Política e Sociologia.
O uso de imagens, fotos, pinturas, grafites, desenhos também padece de
contextualização e são usados como ilustrações muito mais do que como
provocações, problematizações dos conteúdos.
Entretanto, os Livros melhoraram muito em termos de enriquecimento
de temas e teorias. Os seis Livros recomendados demonstram que a Sociologia
como disciplina escolar poderá oxigenar as Ciências Sociais no Brasil.
Danyelle - Quais os desafios para as Licenciaturas e Pós-Graduações nos próximos anos?
Ileizi - Vou enumerá-los:
a) avaliação das pesquisas produzidas até 2014
b) avaliação do PIBID – impactos desse programa nas Ciências Sociais;
c) estudo e avaliação da produção de livros do PIBID, PRODOCENCIA, Laboratórios, licenciaturas;
d) Inserção nos debates sobre os rumos do Ensino Médio para acompanhar todas
as políticas curriculares e garantir a manutenção da Sociologia nos currículos;
e) Consolidação dos eventos nacionais, estaduais e regionais, particularmente
do ENESEB;
f) Fortalecimento da formação nas licenciaturas;
g) Criação do MESTRADO Profissional em rede, o PROF-SOCIO;
h) criação de mais linhas de pesquisa nos programas de pós-graduação em
Ciências Sociais para receber os egressos do PIBID e das licenciaturas que
desejem pesquisa sobre ensino de Sociologia;
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 277-284
284
A SOCIOLOGIA DE VOLTA À ESCOLA
i) Fortalecer as ações com os Professores do Ensino Médio, apoiando-os nas
lutas pela melhoria de suas condições de trabalho nas escolas e oferecendo
as políticas possíveis através da IES que formam cientistas sociais.
E principalmente, continuar firme na utopia da educação e das Ciências
Sociais como ferramentas úteis na invenção de sociedade democráticas e justas.
Questões enviadas por e-mail no dia 11 de agosto, e respondidas, pela mesma via eletrônica, no dia 3 de setembro de 2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 277-284
Resenhas
Da educação à política: Mário
Palmério, um mito no interior mineiro
De: André Azevedo da Fonseca
A construção do mito Mário Palmério:
um estudo sobre a ascensão social e
política do autor de Vila dos Confins.
São Paulo: Editora da UNESP, 2012.
Por: Fábio Dias de Souza
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação
Visual pela Universidade Estadual de Londrina, como aluno
especial. É professor de fotografia no Centro Universitário
Cesumar e Faculdade Metropolitana de Maringá. E-mail:
[email protected].
Uberaba, cidade do interior de Minas Gerais, foi palco de curiosas
transformações na década de 1920. Centro político da região do
Triângulo Mineiro, perdeu prestígio e influência pela interrupção do processo de modernização. A partir de 1940, uma ideia
propagou-se entre alguns cidadãos: a recuperação da cidade
como centro promissor.
Com o apoio da mídia e dos principais personagens da
cidade mineira, iniciou-se então, uma encenação, com o intuito
de seduzir a população, obtendo apoio ao mesmo tempo em
que apresentavam quem seriam os líderes daquele “projeto”
que transformaria Uberaba, novamente, em uma “cidade prósRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 287-292
288
RESENHA
pera, dinâmica e civilizada”, povoando, assim, o imaginário das pessoas
com o que havia de mais chique e elegante à época e, beneficiando-se de
mútuos elogios publicados na imprensa local, firmavam, dessa maneira,
os símbolos de suas posições sociais.
Em meio a esse cenário, Mário Palmério – professor, futuro político e
escritor, membro de estimada família da cidade – destaca-se por sua capacidade profissional e, principalmente, pelo domínio no manejo dos símbolos
que o ajudaram a engrandecer seu status social, conduzindo-o a eleger-se
deputado federal, mais tarde reconhecido nacionalmente como autor do
romance Vila dos Confins (1956).
O livro é estruturado em duas partes. Na primeira, investiga-se o prestígio da família Palmério, os estudos e trajetórias profissionais de Mário, e seu
status social sob a influência do pai e dos irmãos, chamando-se a atenção
para o fato de Mário Palmério haver conseguido criar diversos estabelecimentos de ensino em menos de dez anos. Também mostram-se os artifícios
utilizados na busca por prestígio social. A segunda parte procura apresentar o
contexto histórico na época do pós-guerra e o crescimento político de Mário
Palmério, que se apropriou de elementos da cultura regional para efetuar
sua campanha política.
O pai de Mário Palmério era um imigrante italiano detentor de grande
prestígio na região do Triângulo Mineiro. Engenheiro, Francesco Palmério
procurou emprego no Brasil e foi em Uberaba que se instalou definitivamente
com a família. A essa altura, já havia também atuado como advogado, diretor
e redator de jornal, tornando-se, mais tarde, juiz de direito. Com todo esse
histórico, os próprios familiares também gozavam de certo prestígio nos círculos
sociais de Uberaba e, apesar de estarem, inicialmente, à sombra do pai, conquistaram sua reputação às custas de seus próprios esforços. Não foi diferente
com Mário Palmério, o filho caçula. Após concluir seus estudos secundários,
trabalhou como escriturário, estudou Matemática na Faculdade de Filosofia
de São Paulo e foi nomeado, em 1939, professor no Colégio Universitário da
Escola Politécnica da Universidade de São Paulo.
Uberaba vivia, nessa época, um processo de revitalização que contagiava a população. Mário Palmério, convencido pelas possibilidades oferecidas
pela próspera cidade, voltou de São Paulo após cinco anos, com experiência
e bagagem intelectual suficientes para vencer a resistência que ainda atravancava a modernização da cidade.
Já em Uberaba, Mário Palmério, vislumbrando a possibilidade de uma
grande procura da população pela conclusão dos estudos, naquele contexto
de progresso e desenvolvimento, montou, em 1940, em um cômodo na casa
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 287-292
Fábio Dias de Souza
289
dos pais, o Curso de Madureza Triângulo Mineiro. Naquele mesmo ano, também anunciava o Liceu Triângulo Mineiro, oferecendo, além do preparatório
para os ginásios, cursos para as escolas normais e comerciais e a instalação
da Faculdade de Comércio Triângulo Mineiro. Nesse contexto, observe-se a
ambição e sagaz percepção de Mário Palmério, ante o fechamento da escola
secundária particular Ginásio Brasil, em 1941: aproveitando a oportunidade,
incorporou os alunos e os professores do ginásio ao Liceu Triângulo Mineiro,
que passou a funcionar no mesmo prédio onde, anteriormente, funcionava
o Ginásio Brasil.
Mesmo sem um satisfatório rendimento financeiro e gozando ainda
de pequena influência nos principais círculos da cidade, Mário Palmério
trabalhava para o crescimento do Liceu, quando, ainda em 1941, anunciou o
Curso Ginasial do Triângulo Mineiro. Sob intensa “campanha publicitária”
através de anúncios no jornal e muitas manifestações de apoio e solidariedade,
por pessoas reconhecidas no meio social e político, o professor conquistou
a simpatia da cidade e angariou recursos financeiros e filantrópicos que
garantiram o bem-sucedido funcionamento do ginásio.
Em 1942, um novo anúncio informa que o Liceu Triângulo Mineiro
ofereceria os cursos propedêutico e de contador. Em 1943, o curso ginasial já
funcionava sob “inspeção preliminar”, ou seja, um quase reconhecimento oficial
definitivo. A rápida ascensão de Mário Palmério o levou a dar andamento à ideia
da construção de uma sede própria da escola, concluída em 1945, contando
com 539 estudantes, contra 639 do quase cinquentenário Colégio Diocesano,
que também oferecia cursos ainda não disponíveis no Liceu.
As situações expostas deixam bem visível a capacidade empreendedora
de Mário Palmério; e o domínio dos jogos teatrais e simbólicos que permeiam
as relações sociais contribui para a ampliação do prestígio, facilitando a concretização de negociatas. Dessa maneira, em 1946, o Ginásio Triângulo Mineiro
finalmente conseguiu o reconhecimento oficial e, mais adiante, a permissão
para o funcionamento dos cursos clássico e propedêutico, tornando-se o terceiro maior estabelecimento de ensino secundário de Uberaba.
Não satisfeito, Mário Palmério anuncia, em 1947, a criação da Faculdade de Odontologia do Triângulo Mineiro. Em sua percepção, a ideia
inicial de abrir uma Faculdade de Comércio não seria viável, pois a cidade
não possuía um perfil industrial. Necessitava, sim, de um curso de Odontologia, pois havia poucos dentistas para uma grande quantidade de cidadãos.
O jornal Lavoura e Comércio se encarregou de enaltecer as qualidades do
novo empreendimento, induzindo a cidade a prestigiar as iniciativas de
Mário Palmério. Vale lembrar que a instalação do curso simbolizaria mais
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 287-292
290
RESENHA
um avanço na modernização da cidade, como visto, um ideal imaginário das
elites, o que faz entender o apoio da imprensa, simpatizando e valorizando
as iniciativas do jovem professor. No fim do ano de 1947, estava aprovado
o funcionamento da Faculdade de Odontologia do Triângulo Mineiro, em
Uberaba, conforme notícia veiculada no mesmo jornal.
Iniciando com um curso de madureza, Mário Palmério implantou,
em menos de dez anos, seis estabelecimentos educacionais, segundo ele,
a “’maior organização de sentido educacional de todo o interior do país’”
(Lavoura e Comércio, 6.7.1949, p. 6, apud FONSECA, 2012, p. 123). E, apesar
dos esforços profissionais, o reconhecimento nos círculos dominantes da
região firmou-se mais por seu domínio no quesito da visibilidade social, na
sua atuação consciente para consolidar-se como uma pessoa de prestígio.
Ninguém melhor que a imprensa local para supervalorizar as ações dos
conterrâneos, naquela busca pela prosperidade e civilidade imaginada pelos
círculos sociais e políticos da cidade.
Mário Palmério procurava meios para consolidar a imagem da escola e
de si próprio no imaginário de Uberaba e era através do jornal, nos anúncios,
colunas sociais e esportivas, que ganhava visibilidade, expondo seus gloriosos
feitos e qualidades, com as bênçãos do Lavoura e Comércio. Nesse contexto,
os desfiles não foram ignorados e, a partir de 1943, o professor passou a realizá-los em variadas ocasiões, causando um grande impacto no imaginário
das massas populares, pela sua organização e disciplina.
O cuidado com as palavras utilizadas para descrever suas atividades,
com as fotografias produzidas para o jornal, a troca de elogios com os mais
proeminentes personagens da sociedade uberabense, a preocupação com a
própria aparência e com o estilo arquitetônico da nova sede do Ginásio Triângulo Mineiro demostram um domínio consciente e articulado da imagem
e do que ela simbolizaria no imaginário de uma cidade.
O lado caridoso, misericordioso e o envolvimento com a cultura católica
também não foram esquecidos. Mário Palmério estava ciente de que seriam
valorosos recursos para ampliar sua distinção social. Assim, a ascensão do
professor revelou-se uma escalada heróica, representada pela combinação
dos sacrifícios – aos quais se entregou em prol da população uberabense –
com a sua missionária devoção cristã; indo, desse modo, ao encontro dos
desejos da população, desolada com as condições precárias da região, que
sofria com crise econômica, pobreza, racionamentos, falta de oportunidades,
falta de vagas na escola. A imagem desse herói regional, construiu-se, assim,
na medida em que Palmério procurava atender anseios de uma população
assombrada antevendo possíveis malefícios da guerra.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 287-292
Fábio Dias de Souza
291
Em 1950, em meio a acirradas disputas políticas separatistas, o professor Mário Palmério publicou um extenso manifesto político esclarecedor
e racional revelando, nas entrelinhas, um inédito papel a desempenhar, que
o transformaria em “um novo mito: o messias esclarecido que, em meio aos
desequilíbrios e incertezas de sua sociedade, enxerga o caminho e chama o
povo à razão” (FONSECA, 2012, p. 238). Nas graças das lideranças petebistas,
conseguiu impor-se, lançando-se como candidato a deputado federal. Em um
breve encontro com Getúlio Vargas, o mentor, líder do partido e candidato à
presidência, foi ‘abençoado’e assim pode se sentir preparado (e munido de
imagens) para as disputas eleitorais.
A representação heróica de Mário Palmério, veiculada pelo constante
parceiro Lavoura e Comércio, corroborou para firmar, no imaginário da
população uberabense, o perfil de um homem comprometido, confiante,
empreendedor, visionário, guerreiro. Totalmente envolvido com a política,
usou toda sua energia e prestígio em maciças propagandas na imprensa, panfletagens e em viagens pela região, mobilizando todos que podia. Elegeu-se,
sendo o segundo candidato mais votado do PTB mineiro, não apenas por sua
capacidade política, mas principalmente pelo domínio da cultura regional e
sábio uso desse valioso conhecimento em sua trajetória.
O autor explica em detalhes – apoiando-se em extensa pesquisa e
vasta documentação – a trajetória profissional e política de uma das figuras
mais emblemáticas de Uberaba. Dentro de um crítico contexto social, político
e econômico, que castigava a população, ressaltou a capacidade de Mário
Palmério em interpretar os desejos da época, dominando e operando os
símbolos que o ajudaram a consagrar-se como um verdadeiro mito da política
regional; mostrou como o professor alcançou prestígio social, teatralizando
sua imagem como uma distinta figura pública, beneficiando-se das trocas
de elogios com as elites e do uso intenso da autopropaganda.
O livro é um perspicaz passeio pelos temas sobre o imaginário social,
a simbologia e a mitologia.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 287-292
292
bibliografia
RESENHA
FONSECA, André Azevedo da. A construção do mito Mário Palmério: um
estudo sobre a ascensão social e política do autor de Vila dos Confins. São
Paulo: Editora da UNESP, 2012.
Recebida para publicação em maio/2014. Aceita em julho/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 287-292
A esquerda que não
teme dizer seu nome
De: Vladimir Safatle
A esquerda que não teme dizer seu nome.
1. Ed. São Paulo: Três Estrelas, 2013. 87 p.
Por: Sidnei Ferreira de Vares
Doutor e Mestre em Educação pela USP e professor do Centro
Universitário Assunção - UNIFAI, em São Paulo. Também
é autor de dois livros, Reprodução e Resistência na Escola
Capitalista (Editora Multifoco, 2010) e Durkheim: o legado de
um fundador (Editora In House, 2012). São Paulo, Brasil.
[email protected].
Vladimir Pinheiro Safatle é Doutor em Filosofia pela Universidade de Paris VIII, França. É também professor do Departamento
de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e colunista da
Folha de São Paulo. Possui uma vasta produção acadêmica,
abarcando temas variados como a filosofia de Hegel e de Marx,
além de alguns estudos sobre psicanálise e, também, sobre música. Entre os trabalhos publicados pelo autor, destacam-se A
paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006), Cinismo
e falência da crítica (Boitempo, 2008) e Grande Hotel Abismo
(Martins Fontes, 2012).
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 293-297
294
A ESQUERDA QUE NÃO TEME DIZER SEU
RESENHA
NOME
Seu trabalho A esquerda que não teme dizer seu nome, publicado pela
Editora Três Estrelas, tem 87 páginas, divididas em três capítulos, além, é claro,
da introdução e da conclusão. Trata-se, portanto, de um opúsculo, que toma a
forma de uma reflexão sobre os rumos da esquerda, em especial da esquerda
brasileira, em face das artimanhas ideológicas do capitalismo contemporâneo.
Logo na “Introdução”, o filósofo chama a atenção para o fato de que,
nos últimos anos, tem-se presenciado certo discurso fatalista que, em nome
de um conservadorismo cada vez mais eloqüente e desnudo, defende o
“esgotamento do pensamento de esquerda”. Esse discurso, calcado no fracasso dos partidos comunistas no Ocidente, atua em duas frentes, a saber:
(a) aquela que alega que a esquerda encarna uma espécie de “autoritarismo
mal-disfarçado”, nutrida por uma ânsia de proteção dos mais carentes;
(b) aquela, presente entre alguns representantes ressentidos da própria
esquerda, que aponta para a necessidade de uma leitura crítica e realista
mediante as experiências fracassadas da esquerda e do Estado de Bem-Estar
Social. Segundo Safatle, essas duas perspectivas analíticas encontraram no
Brasil um campo bastante fértil para sua proliferação e, sobretudo durante
os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Luís Inácio Lula da Silva,
deram vazão à ideia segundo a qual “a divisão esquerda/direita não faz mais
sentido”. Visando superar esse tipo de análise, Safatle apresenta, por meio de
uma reflexão refinada, as posições que a esquerda, a seu ver, não pode nem
deve negociar sob o risco de se perder. Com vistas a alargar as possibilidades
da esquerda, o filósofo aponta os dilemas com os quais ela tem que lidar se
quiser manter-se firme frente à lógica do capital. Contudo, o autor aposta na
força do pensamento e institui a crítica como instrumento eficaz para aquela
esquerda que não teme dizer seu nome.
No primeiro capítulo, “Igualdade e a equação da indiferença”, Safatle
afirma que a defesa do igualitarismo constitui o pressuposto fundamental
do pensamento de esquerda. Este termo refere-se tanto à luta contra as desigualdades sócio-econômicas, que por seu caráter primacial está na base
de todas as outras lutas, quanto a uma “demanda de reconhecimento”, que
toma a forma de uma “política da indiferença” frente às diferenças. Segundo
o filósofo, o modelo liberal e o desmonte do Estado de Bem-Estar Social,
ambos iniciados nos idos dos anos de 1980, resultaram na maximização dos
lucros e, concomitantemente, no aviltamento dos salários dos trabalhadores,
estimulando ainda mais as desigualdades sociais. Para o autor, esse processo
só pode ser evitado caso o Estado se faça presente no sentido de regular os
desmandos da economia, impedindo, por exemplo, que a diferença entre os
salários mais altos e os mais baixos torne-se intransponível.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 293-297
Sidnei Ferreira de Vares
295
Na visão de Safatle, um dos trunfos do discurso liberal-conservador
é exatamente nos fazer acreditar que o conflito de classes não passa de uma
invenção da esquerda, desmobilizando quaisquer ações articuladas de resistência. Isso, porém, não isenta a esquerda que, após os anos 60, abriu mão
de seus valores fundamentais, adotando a “diferença” como valor da crítica
social e da ação política. Esse deslocamento resultou tanto no alargamento
na possibilidade social do reconhecimento, contribuindo para a projeção de
grupos sociais minoritários, até então sem voz na sociedade (negros, homosexuais, feministas etc.), quanto num “multiculturalismo” que secundarizou
noções caras ao pensamento de esquerda, como, por exemplo, a noção de
“classe social”. Ademais, o culturalismo não superou completamente a lógica
da exclusão, visto que, para seus defensores mais ardorosos, aqueles que
não se adaptam ao “campo das diferenças” são “irrepresentáveis”. Destarte,
caberia à esquerda ser “indiferente às diferenças”, atribuindo centralidade
tanto à igualdade quanto à universalidade, bandeiras que, historicamente,
sempre caracterizaram o discurso da esquerda.
O segundo capítulo, intitulado “Soberania popular ou a democracia
para além do direito”, aborda a relação entre justiça e direito. Nele, Safatle
procura demonstrar que o chamado “Estado de Direito” se impõe como
uma noção inquestionável, tratando todo e qualquer ponto de excesso em
relação aos limites da lei como uma ação criminosa ou como uma ação
autoritária. Ancorado nos trabalhos filosóficos de Jacques Derrida, Claude
Lefort e Giorgio Agamben, o autor observa que nem sempre “Direito” e
“Justiça” estão em sintonia.
É essa, aliás, a condição dos chamados “Estados Ilegais”. Segundo
o autor, todas as vezes que o Estado, e consequentemente o sistema jurídico, não corresponde àquilo que a sociedade civil dele espera, é possível
questioná-lo e até mesmo suprimi-lo. O próprio pensamento liberal, desde
João Calvino, passando por autores como John Locke, não deixa dúvida a
esse respeito: a vontade popular está acima das leis, e, deste modo, se estas
não representam os anseios da população, devem ser modificadas. Assim
sendo, a tese segundo a qual o direito é inquebrantável, cai por terra, pois,
em última instância, a vontade do povo é inalienável. Numa situação como
esta, até mesmo a violência torna-se legítima. Como reitera o autor, “toda a
ação contra um governo ilegal é uma ação legal” (p. 42). No caso da sociedade brasileira, Safatle aponta as contradições inerentes à constituição de
1988, que ainda comporta dispositivos da constituição autoritária de 1967,
mostrando-se incapaz de representar, em muitos aspectos, as demandas da
sociedade civil. Com efeito, indaga o autor: pode-se falar num Estado verdaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 293-297
296
A ESQUERDA QUE NÃO TEME DIZER SEU
RESENHA
NOME
deiramente democrático quando o ordenamento jurídico não representa o
povo? Ora, tal circunstância não seria o mesmo que negar a democracia? E
se esse mesmo povo, por meio do exercício da política, decidisse modificar
as leis com vistas a adequá-las as suas necessidades, isso configuraria um
ato de justiça ou uma violação ao Estado de Direito? Para Safatle não há
qualquer dúvida: um regime verdadeiramente democrático não é estático,
muito pelo contrário: tem por característica o fato de ser dinâmico. Isso
porque a democracia “não é medida pela estabilidade de suas instituições e
suas regras”, mas “(...) pela possibilidade dada ao poder instituinte popular
de manifestar-se e criar novas regras e instituições” (p.55).
O terceiro e último capítulo, “Do tempo das ideias”, comporta uma
análise histórica da trajetória da esquerda. Trata-se não apenas de um balanço de seus erros e acertos, mas, sobretudo, de uma avaliação sobre o modo
como seus representantes têm lidado com o passado recente. Safatle procura
desconstruir as críticas encabeçadas pelos conservadores, segundo as quais
a esquerda, durante o século XX, impôs-se pela brutalidade. Não que o autor
ignore as atrocidades cometidas, mundo afora, por muitos líderes socialistas.
Todavia, argumenta, a violência empreendida pela esquerda não foi maior do
que aquela cometida por seus antagonistas. Ademais, não existe uma relação
fatalista, como querem os defensores de uma “estratégia da resignação”, entre
os erros que a esquerda cometeu e o desejo de um mundo que está por ser
construído. Se a esquerda errou em muitas ocasiões – fato que o autor não
ignora – isso não significa que ela não possa aprender com os seus erros para,
na medida em que compreendê-los, modificar suas estratégias de ação em
prol de uma sociedade menos desigual.
Entretanto, para o pensamento liberal-conservador, que entende a
sociedade como o resultado da livre associação entre os indivíduos, qualquer
forma de ação que tenha como meta superar os sistemas particulares e egoístas de interesses está a um passo do totalitarismo. E assim, sob a hipóstase
do indivíduo, os liberais-conservadores impedem “o desejo de nos livramos
de nós mesmos”, isto é, de gerarmos um “homem novo” (p. 66).
O filósofo ainda denuncia o que, para ele, constitui uma dicotomia
empobrecedora: aquela entre reforma e revolução. Dela decorrem dois
equívocos, a saber, elevar a revolução como único acontecimento dotado de
verdade; e recusar todo e qualquer processo revolucionário, entendendo-o
como um desvario da história. Na ótica do filósofo, a esquerda não deve tomar
a revolução como um objetivo político – até porque ninguém sabe ao certo
como produzi-la –, mas como uma experiência incalculável e imprevisível.
Entretanto, se historicamente a esquerda produziu uma refinada “teoria
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 293-297
Sidnei Ferreira de Vares
297
do poder”, todas as vezes que conseguiu alcançá-lo não obteve um grande
desempenho, exatamente por não dispor de uma “teoria do governo”. Essa
incapacidade de lidar com o poder quando o tem em mãos muitas vezes se
explica em virtude da tentativa, indubitavelmente condenável, de mimetizar
as fórmulas liberais. Como destaca Safatle: “Quando isso acontece, vemos
ou o patético espetáculo de um lento processo de degradação da governabilidade, com a famosa transformação dos governantes de esquerda em
figuras que mimetizam as práticas da corrupção e os valores da direita, ou
a guinada em direção ao centralismo totalitário – única forma de conservar
o governo quando não se sabe governar” (p. 80). Com efeito, para Safatle, a
esquerda, a despeito de seus temores ordinários, deve primar pela ousadia e
pelo entusiasmo, confiando em si mesma, inclusive em relação à formulação
de um programa de governo autêntico.
Na “Conclusão”, Safatle argumenta que a esquerda deve assumir os
seus erros e a sua falibilidade, porém, não deve abrir mão de alguns preceitos
centrais para ela, tais como o igualitarismo, o universalismo, a soberania
popular e o direito à resistência, sob o risco de se perder. O autor também
enfatiza a necessidade da esquerda se afastar dos fatalismos imobilistas, visto
que a história é um campo sempre aberto e, portanto, profícuo a mudanças
e transformações. Cabe a esquerda recolocar no debate político tudo aquilo
que, para ela, é “inegociável”, pois, só assim, uma nova esquerda, que não
teme dizer seu nome, despontará forte no cenário político.
O referido trabalho é bastante instigante, sobretudo por conta das
críticas construtivas que o autor dirige à própria esquerda, apontando suas
fragilidades, mas, também, as possibilidades de superar a inanição política
em que se encontra. Sem adotar uma linguagem pedante, habitual na academia, Safatle prima pela simplicidade das palavras, e, sem ser simplista do
ponto de vista analítico, tem o mérito de desmistificar os empecilhos que a
esquerda enfrenta atualmente. Ancorado na imprevisibilidade da história e
na ousadia típica dos que desejam transformar a realidade, Safatle provoca
o leitor a pensar sobre a força das utopias, estimulando a resistência em um
mundo há muito desencantado, marcado pela resignação e pelo fatalismo.
Recebida para publicação em abril/2014. Aceita em julho/2014.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014, p. 293-297
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dentro do texto, sem utilização de formatação especial para destacá-los.
As notas (numeradas) e a bibliografia, em ordem alfabética, deverão
aparecer no final do texto.
O autor deve compatibilizar as citações com as referências bibliográficas.
Palavras em outros idiomas, nomes de partidos, empresas etc deverão
ser escritos em itálico.
Formas de citação
As citações que não ultrapassarem 3 linhas devem permanecer no corpo do
texto. As citações de mais de 3 linhas devem apresentar recuo da margem
esquerda de 4cm, espaçamento simples, sem a utilização de aspas, justificado
e com fonte menor que a do corpo do texto.
As referências bibliográficas no interior do texto deverão seguir a forma
(Autor, ano) ou (Autor, ano, página) quando a citação for literal (neste caso,
usam-se aspas): (BARBOSA, 1964) ou (BARBOSA, 1963, p. 35-36).
Quando a citação imediatamente posterior se referir ao mesmo autor
e/ou obra, devem-se utilizar entre parênteses as fórmulas (Idem, p. tal) ou
(Idem, ibidem quando a página for a mesma).
Se houver mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, deve- se
diferenciar por uma letra após a data: (CORREIA, 1993a), (CORREIA, 1993b).
Caso o autor citado faça parte da oração, a referência bibliográfica deve
ser feita da seguinte maneira: Wolf (1959, p. 33-37) afirma que...
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014
Instruções aos autores
Citações que venham acompanhadas de comentários e informações
complementares devem ser colocadas como nota.
Formato das referências bibliográficas
As referências bibliográficas (ou bibliografia) seguem a ordem alfabética
pelo sobrenome do autor. Devem conter todas as obras citadas, obedecer às
normas da ABNT (NBR 6023/ 2002), orientando-se pelos seguintes critérios:
Livro: sobrenome em maiúsculas, nome. Título da obra em itálico. Local da
publicação: Editora, ano.
Exemplo: HABERMAS, Jüngen. Dialética e hermenêutica de Gadamer. Porto
Alegre: L&PM Editores, 1987.
Livro de vários autores (acima de 3): sobrenome em maiúsculas, nome et al.
Título da obra em itálico. Local da publicação: Editora, ano.
Exemplo: QUINTANEIRO, Tania et al. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim
e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1990.
Obs: até três autores deve-se fazer a referência com os nomes dos três.
Artigo em coletânea organizada por outro autor: sobrenome do autor do artigo
em maiúsculas, nome. Título do artigo, seguido da expressão In: e da
referência completa da coletânea, após o nome do organizador, ao final da
mesma deve-se informar o número das páginas do artigo.
Exemplo: MATOS, Olgária. Desejos de evidência, desejo de vidência: Walter
Benjamin, in: NOVAES, A. (org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990. p. 157-287.
Artigo em periódico: sobrenome do autor em maiúsculas, nome. Título do
artigo sem destaque. Nome do periódico em negrito, local de publicação,
número da edição (volume da edição e /ou ano), 1a e última numeração
das páginas, mês abreviado, seguido de ponto final e do ano em que o
exemplar foi publicado.
Exemplo: VILHENA, Luís Rodolfo. Os intelectuais regionais. Os estudos de
folclore e o campo das Ciências Sociais nos anos 50. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, n. 32, ano 2, p.125-149, jun.1996.
Obras online: sobrenome do autor (se houver) em maiúsculas, seguido de
Nome. Título da obra (reportagem, artigo) destacado. Logo após virá o
endereço eletrônico entre os sinais < >, precedido pela expressão “Disponível
em”. Após o endereço eletrônico (site) deverá vir a expressão “Acesso em”:
dia do acesso, mês abreviado. Ano.
Exemplos: Livro
BALZAC, Honoré. A mulher de trinta anos. Disponível em: <http:// www.
terra.com.br.htm>. Acesso em: 20 ago. 2009.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014
Periódico em meio eletrônico
GUIMARÃES, Nadeja. Por uma sociologia do desemprego. Rev. Bras. Ci.
Soc*., São Paulo, v. 25, n. 74, out. 2010. Disponível em: <http://www. Scielo.
br/scielo.php?script>. Acesso em: 11 mar. 2011.
Jornal em meio eletrônico
* Sem o nome do autor. Quando a matéria não informa o autor,
iniciamos pelo título.
TSUNAMI no Japão. O Povo online, Fortaleza, 11mar. 2011. Disponível em:
<http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011.
* Com o autor
BRÁS, Janaína. Fraternidade: campanha discute proteção à natureza. O
povo online, 11mar.2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.
br>. Acesso em: 11mar. 2011.
1. Nomes de periódicos podem ser abreviados na referência.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 1, 2014
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
// DOSSIÊ: SOCIOLOGIA
NO ENSINO MÉDIO
APRESENTAÇÃO
Danyelle Nilin Gonçalves
Educação e pensamento social
brasileiro: alguns apontamentos
a partir de Florestan Fernandes
e Gilberto Freyre
Amurabi Oliveira
Viver e interpretar o mundo
social: para que serve o ensino
da Sociologia?
Bernard Lahire
O ofício de ensinar para
iniciantes: contribuições ao
modo sociológico de pensar
Irlys Alencar Firmo Barreira
Sociologia e educação básica:
hipóteses sobre a dinâmica de
produção de currículo
Simone Meucci e Rafael Ginane
Bezerra
Culturas juvenis e agrupamentos
na escola: entre adesões e
conflitos
Irapuan Peixoto Lima Filho
// artigos
Os relatórios do
desenvolvimento humano
(RDHS/PNUD/ONU) da década
de 1990 e as propostas para
enfrentar as múltiplas formas
de desigualdades
Maria José de Rezende
Ética civilizacional e teoria
sociológica: uma revisão
conceitual de Durkheim
André Oda
As barracas de praia e a
“civilização” do lazer: espaço
urbano, poder e sociabilidade
na Praia do Futuro
Wellington Ricardo Nogueira
Maciel
Pequena empresa inovadora e
desenvolvimento: indústria naval
em Rio Grande
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A expansão da Jurema na
Península Ibérica
Ismael Pordeus Júnior
Questões culturais
no Ceará
Gilmar de Carvalho
// ENTREVISTA
A sociologia de volta à escola:
um balanço provisório
Ileizi Fiorelli e Danyelle Nilin
Gonçalves
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Fonseca, André Azevedo da.
A construção do mito Mário
Palmério
Fábio Dias de Souza
Safatle, Vladimir de. A esquerda
que não teme dizer seu nome
Sidnei Ferreira de Vares