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INTEGRAÇÃO ACADÊMICA E FORMAÇÃO ÉTICO-SOCIAL COM
BASE NA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA:
O CASO DO PROGRAMA COMUNIDADES URBANAS
Célia Elizabete Caregnato1
Leonardo Hortencio2
Líria Romero Dutra3
Maria José do Canto4
Resumo
A extensão universitária é uma atividade que pode contribuir para formação de
estudantes; qualificação do trabalho docente de ensino; avanço de conhecimentos
acadêmicos originados em atividade de pesquisa e integrados a problemas da
realidade; pode colaborar também para aprimoramentos político-institucionais. O
artigo registra o trabalho desenvolvido com base no Programa Comunidades
Urbanas, programa temático de extensão comunitária desenvolvido por iniciativa de
um coletivo de docentes e estudantes extensionistas do UniRitter - Centro
Universitário Ritter dos Reis/ Porto Alegre - e em parceria com comunidades locais.
Após quatro anos de atividades, é possível reconhecer avanços e interpretar
dificuldades a partir do propósito de trabalho interdisciplinar e intercultural proposto
desde sua origem. Entre as contribuições para o meio acadêmico verifica-se que o
processo de desenvolvimento e afirmação do programa provocou também
aprimoramentos na política institucional de extensão, bem como maior integração
entre áreas no interior da academia e desta com a comunidade. Um importante
ganho ocorreu no campo da formação de estudantes balizada por uma postura e
uma atuação ético-social diferenciada.
Palavras-chave: extensão comunitária - institucionalização da extensão - extensão
interdisciplinar
Abstract
The University extension program is an activity which can contribute to the student’s
formation, the qualification of Education teachers, and the improvement of the
academic knowledge based on research activities and related to actual problems; it
may also contribute to political and institutional improvements. This is a report on the
developed actions based on the Urban Communities Program, a thematic extension
program originated as an initiative of a group of teachers and students from the
Extension Program of UniRitter - Centro Universitário Ritter dos Reis/ Porto Alegre and in partnership with local communities. After four years of activities, it is possible
to acknowledge the progress and interpret difficulties arising from the interdisciplinary
1
Doutor, atualmente professora da UFRGS, foi Pró-Reitora de pesquisa e extensão do UniRitter até 2008. Email: [email protected]
2
Mestre em Arquitetura, professor do UniRitter e assessor da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-graduação e
Extensão do UniRitter. E-mail: [email protected]
3
Mestre em Letras, atual é coordenadora do Programa Interdiscilinar Comunidades Urbanas. ProPEx/UniRitter.
Rua Orfanotrófio, 555 - Bairro Alto Teresópolis/ Porto Alegre CEP 90840-440 Fone: 3230-3323. E-mail:
[email protected].
4
Doutor em Sociologia, professora do UniRitter e coordenadora do Programa de Relações Comunitárias do
UniRitter até 2008. E-mail: [email protected].
1
and intercultural purpose proposed since its origin. Among the contributions to the
academic field it is clear that the process of development and affirmation of the
program also led to improvements in the institutional policy of extension, as well as
greater integration among areas within the academy and with the community. Among
the profits, the formation of students, marked by a distinct socio-ethical attitude,
stands out.
Key words: communitarian
interdisciplinary extension
extension
-
institutionalization
of
extension
-
Da concepção do projeto ao programa: Comunidades Urbanas
O Programa Interdisciplinar Comunidades Urbanas nasceu, em 2005, como
projeto extensionista formulado por docentes e estudantes com formação em
diversas áreas e com o objetivo modesto e, ao mesmo tempo pretensioso, de
contribuir para a construção coletiva da cidadania e das condições para seu
exercício nas dimensões civil, social e política.
A experiência com o projeto em processo de montagem foi singular e mostrou
que havia muito mais um desejo de trabalho conjunto e de integração do que
capacidade de entender, desde um primeiro momento, as linguagens dos parceiros
e de projetar o sentido das ações em comum. As áreas do conhecimento
representadas pelos vinte e dois participantes do grupo eram informática,
administração, design e arquitetura, direito, sociologia, literatura, língua e educação.
Foi instigante o esforço pelo diálogo e isso pode ser visto por meio de posições
defendidas em sentido diverso e até oposto, como necessidade de ‘conscientizar’,
de ‘gerar renda’, de ‘denunciar’ ou ainda de ‘assistir’ - dar assistência - a
comunidades do entorno do campus.
O empenho dirigiu-se à realização de ações planejadas e integradoras entre
as referidas áreas organizadas institucionalmente e já com alguma relação
constituída com grupos comunitários. Objetivava-se promover vínculos capazes de
impulsionar transformações comunitárias e também a produção de conhecimento no
meio acadêmico. No primeiro ano, trabalhou-se em torno da elaboração de um
projeto que registrasse os pontos de partida, objetivos e fundamentos. Isso exigiu
estudos, leituras, debate, aproximação entre linguagens e consideração aos
aspectos comunitários conhecidos até o momento. Havia ações extensionistas
2
realizadas até aquele momento, mas sem um debate amplo que procurasse
aproximar diferentes visões e práticas. Mais de um grupo de pessoas ia a campo,
muitas vezes para trabalhar junto a uma mesma comunidade, com propostas
diferenciadas e sem comunicação entre si.
Assim, o grande desafio constituía-se em construir pensamento e atuação
conjunta entre pessoas e áreas do conhecimento e, portanto, conviver com óticas
sobre realidades que são complexas e exigem interpretações com base em pontos
de vista variados. Tais compreensões e as ações que delas derivam, entretanto,
necessitaram do despojamento e da disposição para integração entre áreas
disciplinares. O diálogo entre os sujeitos mostrou-se uma característica importante e,
ao mesmo tempo, uma condição indispensável para realização do projeto.
O debate e o trabalho de integração definiram que a extensão universitária
praticada deveria buscar a auto-identificação de comunidades urbanas e o
conhecimento dos mecanismos de organização e significação do espaço, da cultura,
da história, da economia, da informação, das normas e das relações nos grupos
sociais. O trabalho proposto buscaria a integração ou intermediação, sem imposição,
instigando o acesso das comunidades a saberes e tecnologias ainda não
apropriados, mas partindo de seus próprios saberes.
Partíamos do sentido positivo sugerido pela palavra comunidade, já que,
independentemente do seu significado, ela traduz que é bom “estar numa
comunidade”, diferentemente da sociedade, que traduz situações de sofrimento e de
privação (BAUMAN, 2003, p. 7). Se as comunidades são capazes de criar valores e
sentidos próprios para manterem-se unidas e protegendo seus indivíduos, inspiram
coisas boas: de outra parte, é certo que a ideia de comunidade, hoje, é muito menos
romântica e mais a de um espaço no interior de relações de poder.
A expressão ‘comunidades urbanas’ encerra em si contradições ainda mais
intensas do que a palavra/ideia de comunidade, seja por a comunidade inserir-se no
meio urbano, protótipo do mundo capitalista e impessoal, seja por indicar a
necessidade de os indivíduos, apesar disso, constituírem pertencimento ao grupo
para estarem ‘protegidos’, participando de sistemas de valores e rituais que geram
identidade e sentido às suas existências no cotidiano.
No espaço comunitário, a vida é partilhada e interesses comuns são
defendidos. Essas comunidades poderiam ser de moradia, étnicas, culturais, enfim,
não havia restrição, a não ser o espaço geográfico que deveria ser aquele do
3
entorno do campus universitário. A região da Vila Cruzeiro do Sul caracteriza-se
como o que normalmente é designado favela. Situa-se em um vale profundo, entre
os morros Santa Teresa e Primavera. (VARGAS, 2006). Essa região é formada, de
um lado, por várias comunidades com características comuns, como a presença de
sub-habitação, combinada com moradias bem acabadas, típicas de um segmento
social ascendente e, de outro lado, convivendo com grande precariedade, pobreza e
exclusão da possibilidade da cidadania em vários locais. Isso se verificava pela
dificuldade que muitas pessoas da região têm de fornecer seu endereço.
Étnica e culturalmente aparece a miscigenação típica da sociedade brasileira
com presença significativa de afrodescendentes. A população da região é formada,
em grande parte pela segunda e terceira geração de descendentes de imigrantes
oriundos do interior do Rio Grande do Sul, especialmente filhos dos que foram
trabalhadores rurais no passado. Portanto, há descentes de italianos e alemães,
bem como de populações oriundas de regiões de fronteira da unidade da federação.
As pessoas que compõem esse complexo urbano, formado no espaço
geográfico
e
sociocultural
descrito,
expressam
dilemas
e
contentamentos
compreensíveis apenas se formos capazes de nos colocar junto delas. A ideia de
que a vida é difícil nessas condições, porém é melhor do que em outras condições já
experimentadas, justifica a satisfação obtida por habitar aquele espaço social.
Zygmunt Baumann nos ajuda a entender a relação entre comunidade e
individualidade, considerando o conteúdo humano inerente a esse elo.
A tensão entre a segurança e a liberdade e, portanto, entre a comunidade e
a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará
por muito tempo, [mas] sendo humanos, não podemos realizar a esperança,
nem deixar de tê-la. (BAUMAN, 2003, p. 11).
Justamente compreendendo que a elaboração do trabalho extensionista conta
com elementos concebidos a partir de opções humanas, não só entre sujeitos da
comunidade, mas também entre os propositores oriundos da academia, é que se
definiu a concepção sobre a forma de ação. Optou-se por consolidar o trabalho em
campo por meio da presença de agentes mediadores que fomentassem e
estabelecessem vínculos entre âmbitos da vida social e comunitária com a vida
universitária. Tais agentes são responsáveis pela criação dos espaços híbridos e
pela comunicação entre os meios em interação, articulando pessoas, interesses,
visões de mundo com outras pessoas, áreas, disciplinas, cursos. Buscava-se o
4
resulta em práticas, linguagens e registros, voltados para o desenvolvimento local e
regional, que evidenciassem a capacidade de comunicação e de construção de
saberes, não limitados à lógica da reprodução de conhecimentos acadêmicos,
tampouco reduzidos a sínteses de saberes comunitários.
Para a construção e o desenvolvimento do projeto, partiu-se da compreensão
de que raça, etnia, faixa etária, gênero, condição sócio-econômica, região de
origem, escolarização e credo são alguns elementos que geram diferenças entre as
pessoas, mas, na base, é preciso haver dignidade e igualdade de oportunidade para
todos os sujeitos. Assim é que o Projeto Comunidades Urbanas optou pela definição
da cidadania como a consciência acerca dos direitos civis, políticos e sociais de
cada indivíduo e o respeito a esses direitos dentro de um Estado (SOUZA, 2003;
CARVALHO, 2001). Desse modo, a necessária formação para a cidadania surgiria
da vivência educacional e cultural na família, na escola e na comunidade.
Os primeiros subprojetos para atuação junto com as comunidades tratavam
de temas como inclusão digital, incentivo à leitura e contação de histórias,
mapeamento de territórios, produção de vídeo, divulgação e promoção de acesso a
direitos, grafite na rua, memória local, empreendedorismo.
Em termos operacionais, em boa parte dos planos de ação, e sempre na
análise, havia participação do coletivo de docentes e estudantes que se debruçavam
sobre problemas práticos e conceituais, procurando aprimorar aquilo que tinha
constituído o grupo desde o propósito inicial. De um lado, havia reuniões frequentes
entre esses sujeitos oriundos do meio acadêmico; de outro, em campo, o trabalho
contava com encontros para análise, por parte dos membros e líderes comunitários
e, semestralmente, realizávamos seminários e encontros mais amplos para
avaliação e planejamento das linhas gerais do trabalho.
Apesar de percalços no cotidiano de indivíduos, comunidades, instituição e
movimentos, o conjunto desse trabalho e a sua presença na política institucional
permitiram que o chamado Projeto Comunidades Urbanas fosse transformado, em
agosto de 2006, em Programa Interdisciplinar Comunidades Urbanas, tendo como
prioridade as áreas de educação, direitos e trabalho. Assim, o trabalho extensionista
voltado ao Comunidades Urbanas mostrava sua tendência à perenidade, sua
possibilidade de aprimoramento e sua capacidade de repercussão.
5
Uma contribuição para a política institucional
Embora, na Instituição, houvesse estabelecida certa compreensão sobre
atividades de extensão, a proposta do projeto Comunidades Urbanas constituiu
avanços para a polícia institucional de extensão. A Instituição elegeu como uma de
suas prioridades em extensão universitária as atividades que privilegiam o
envolvimento comunitário e social de estudantes, professores e colaboradores. A
Política Institucional de Extensão definiu, como critério para o desenvolvimento
dessas atividades, a construção de conhecimento acadêmico e a inserção social,
com vistas ao encontro de alternativas conjuntas entre o saber acadêmico e o saber
popular.
O compromisso de contribuir para a construção da cidadania por meio da
atividade extensionista - entendendo que, na sociedade brasileira, trata-se de uma
cidadania precária, com indivíduos com limitado acesso a direitos sociais, políticos e
civis
-
permitiu
estabelecer,
prioritariamente,
condições
institucionais
para
reconhecimento e promoção da diversidade social e sociocultural por meio da
atividade acadêmica extensionista. A política institucional passou a adotar a
concepção debatida no âmbito do projeto e depois Programa Comunidades
Urbanas. Assim,
as atividades de extensão comunitária têm condição especial, para uma
perspectiva institucional de atuação interdisciplinar. Diante disso, foram
eleitos três elementos básicos integrantes das atividades extensionistas:
integração, hibridismo e mediação. (UNIRITTER, PDI, 2007-2011, p. 64).
Desde o projeto inicial, o Programa Interdisciplinar Comunidades Urbanas
empenhar-se-ia para a criação de metodologia de investigação e ação extensionista,
visando a reaplicar técnicas e a estimular a formação de multiplicadores. Havia a
convicção sobre a importância do trabalho metódico, registrado e aplicado a
realidades variáveis, a fim de que fosse um aprendizado perene e renovável.
O objetivo de realização de diagnósticos das comunidades e/ou organizações
parceiras foi colocado desde a primeira hora, entendendo-se que, para o início de
projetos planejados e com chance de êxito, seria preciso um conhecimento
/aproximação com a realidade social, cultural e principalmente com as pessoas. De
fato, os estudos e as trocas cotidianas que resultaram do contato de professores e
estudantes mostraram que os projetos de ação deveriam ser elaborados
6
considerando-se as demandas comunitárias e em diálogo com aquilo que tínhamos
no espaço acadêmico.
Esses estudos contribuíram para o estabelecimento de um caminho
metodológico próprio para o diagnóstico e para a atuação integrada entre diversas
áreas do conhecimento, com a participação de docentes e estudantes de todas as
áreas; contribuíram, também, para consideração de elementos culturais e das
problemáticas sociais de cada grupo social ou comunidade com a qual se interage.
Na perspectiva dessa metodologia, estabeleceu-se que a ação deveria ser
baseada na concepção de projetos sociais, o que significa afirmar a necessidade de
planejamento com base em visões políticas (ARMANI, 2002); em avaliação e em
aprimoramentos
coletivos
contínuos,
ressaltando-se
a
restrição
a
óticas
etnocentristas. Em segundo lugar, houve a opção pela integração disciplinar,
visando à interpretação e à atuação multi ou interdisciplinar diante de problemas
complexos. Deveríamos agir conjuntamente e com abordagens ou pontos de vista
que tivessem origens diversas e que contribuísse para análise e atuação sobre
problemas que se apresentavam ao desenvolvimento das atividades compartilhadas.
A noção de interdisciplinaridade com a qual se trabalhou não tinha uma
elaboração bem acabada, nem do ponto de vista teórico, nem do ponto de vista
prático. Tínhamos, antes de tudo, um interesse por trocas disciplinares, afinal
nossas linguagens tinham essa origem. Entretanto, sabíamos que, se quiséssemos
avançar em nosso propósito de trabalho conjunto, devíamos buscar um nível de
integração entre as diversas formações para atuar sobre questões concretas de
forma que não fosse apenas uma soma de visões. Mais ainda, entendíamos que,
para tratar de problemas concretos junto com comunidades, não bastaria uma visão
especializada do problema, mas seriam necessárias formas adequadas para nos
relacionarmos com a realidade complexa vinculada ao problema.
A ideia de interdisciplinaridade expressa por Jaime Paviani contribui para situar a
condição na qual nos encontrávamos em torno do trabalho extensionista. Ele afirma
que o inter e o transdisciplinar, antes de surgir de uma vontade externa, “surge por
exigência natural, numa primeira ordem, no próprio processo de conhecer [...]
nascem da necessidade de apreensão do objeto ou do problema de pesquisa”
(PAVIANI, 2006, p. 109).
7
Paviani apresenta uma preocupação com a dimensão educacional do ensino e
aprendizagem e, com base nisso, afirma que o ensino deve ser capaz de solucionar
problemas e para tanto precisa de
diversas áreas do conhecimento e não apenas numa única disciplina. Dito
de outro modo, a sistematização dos conhecimentos em torno de um objeto
de estudo, tendo em vista a aprendizagem, é naturalmente inter e
transdiciplinar por exigência científica e pedagógica (PAVIANI, 2006, p.
111).
O lugar da extensão é, por excelência, um lócus para aprendizagem a partir de
problemas concretos e objetos elaborados intelectualmente. Por meio dessa
atividade, os estudantes têm condições de multiplicar suas capacidades individuais e
coletivas, pois precisam trabalhar com conflitos e superar dificuldades e, imbricado
nisso, precisam integrar conhecimentos, saberes e ser metódicos. A experiência a
partir do Programa Comunidade Urbanas mostra que os estudantes trabalham com
compromissos ético-sociais diferenciados e que desenvolvem ação autônoma no
sentido da iniciativa para tomadas de decisões urgentes diante de dilemas na
comunidade ou no grupo de trabalho oriundo do meio universitário.
Vinculada à necessidade de práticas interdisciplinares e à aprendizagem
propícia, aparece também a necessidade de combinação da investigação da
realidade com metodologias de pesquisa a partir da elaboração de problemas
intelectuais, não apenas oriundos da realidade cotidiana. Em certo sentido, a
atividade de extensão se origina, mas também de utiliza, da atividade de pesquisa.
Pedro Demo (2004) adequadamente afirma que, conceber-se a extensão como o
modo de realizar a cidadania universitária é confirmar-se que está fora do currículo,
pois o ensino ainda é concebido como uma forma de treinar para a profissão. O
autor critica a trilogia ensino/pesquisa/extensão na medida em que representam
atividades desenvolvidas de forma independente e de maneira instrucionista, ao
invés de contribuir, por meio da relação entre conhecimento e aprendizagem, para a
função formativa que a universidade deve exercer.
Com base na ótica da integração entre extensão e pesquisa, contou-se com uma
pesquisa etnográfica na comunidade Tronco I (CAREGNATO, HASSEN; MAGGI,
2007), realizada alguns anos antes por docentes e estudantes que compunham o
Programa Comunidades Urbanas. Procedeu-se estudo diagnóstico da comunidade
Orfanotrófio I (DUTRA; SALDANHA, 2007) e também do conjunto de iniciativas de
empreendedores na Vila Cruzeiro do Sul (AMARO, 2006), este último com o objetivo
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de compreender questões relativas ao trabalho e geração de renda. Os resultados
foram de grande importância para que docentes e estudantes pudessem colocar-se
no ponto de vista cultural e cotidiano do outro: os personagens das comunidades.
Esse aprendizado não tem a pretensão de estar pronto, pois é concebido como
processo, dinâmico e com alto grau de subjetividade o que permite avanços mais do
que resultados acabados.
Desejávamos também obter a formação de multiplicadores nas comunidades
para as iniciativas desenvolvidas e, para isso, seria necessária a avaliação dos
projetos e das atividades para reformulações no andamento dos processos, bem
como nos resultados. Ainda nas comunidades, tendo em vista a premência para
obter recursos no cotidiano, entendia-se que a perspectiva da ação conjunta para a
transformação de realidades deveria vir junto com a geração de renda, nos casos
em que houvesse viabilidade. Na academia, projetava-se a produção de
conhecimento, registrado e publicado, a fim de contribuir para autoavaliação do
Centro Universitário.
Nesse contexto, deu-se início ao projeto “Costurar a Própria Vida”, junto a
uma organização da sociedade civil que dá assistência a mulheres em situação de
violência doméstica na Vila Cruzeiro do Sul, com a qual já era desenvolvido trabalho
na área jurídica. Pretendia-se, inicialmente, contribuir para que aquele público
desenvolvesse uma atividade rentável, sem, necessariamente, ausentar-se de casa.
Alunos do curso de Design de Moda, que recém iniciava, sensibilizaram-se com a
proposta, percebendo nela uma possibilidade de ampliar o caráter social da
habilitação. Alunos e docentes do curso de Administração e de Direito juntaram-se à
equipe, pois considerávamos que, além de costurar para gerar renda, era importante
que as mulheres aprendessem a negociar sua produção; o curso de Informática
colocou-se à disposição para assessorá-las em relação a pesquisas na Internet e
desenvolvimento de software para gerenciamento dos negócios. Nos encontros
iniciais com a comunidade, houve oficinas de costura manual, constituiu-se o vínculo
e, pela prática da escuta, soube-se que a expectativa das mulheres excedia a
perspectiva de trabalho manual e de customização. Elas desejavam construir nova
identidade, produzir industrialmente, superar sua condição de domésticas “fazendo
bico” e de mulheres que ficavam à mercê da violência dos homens. Iniciavam o
processo de empoderamento, acompanhadas pela assistente social e pela psicóloga
da organização da sociedade civil em que ocorriam os encontros.
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O “Costurar a Própria Vida”, agregou mulheres, reuniu docentes e estudantes
e produziu resultados em termos de mudanças, tanto na comunidade quanto na
Instituição, que, inclusive, tornou-se cliente do grupo de costureiras. Mas também
mudanças de outra ordem ocorreram: uma das profissionais da organização
constituiu-se gestora e multiplicadora do projeto.
Concomitantemente, desenvolviam-se projetos de qualificação de mão-deobra da construção civil, uma vez que os diagnósticos realizados evidenciaram que,
na grande Cruzeiro do Sul, grande parte da população ativa desempenha suas
atividades nesse segmento. Na Vila Tronco, então, realizaram-se encontros
semanais
com
trabalhadores
interessados
em
saber
interpretar
plantas
arquitetônicas, enquanto, na Vila Orfanatrófio, construía-se um aquecedor solar de
água feito com garrafas pet, atualmente instalado sobre o prédio da Creche Meninos
e Meninas São José. A iniciativa da Vila Orfanatrófio despertou o interesse de
inúmeras famílias, que pretendem reproduzir o equipamento em suas residências,
assessoradas por estudantes do curso de Arquitetura.
Com o resultado de informações sistematizadas e do convívio entre os
sujeitos, foi possível o avanço na qualidade e viabilidade dos projetos elaborados,
mas também na compreensão sobre a natureza da extensão universitária em seu
viés comunitário. Não é sem percalços a construção de propostas desse gênero,
como também não é com certezas, mas com elaborações e reelaborações
constantes que se pode programar e aprimorar esse tipo de atividade. Há, não só a
convivência com o imponderável, mas também com a incerteza sobre a forma como
serão realizados os objetivos estabelecidos e mesmo há a exigência de lidar sempre
com a possibilidade de mudanças naquilo que foi estabelecido inicialmente.
Paralelamente a essa necessária abertura, agiu-se no sentido do registro do
trabalho realizado e, entre outras iniciativas, deu-se origem à Revista Comuni de
Extensão Universitária, publicada eletronicamente pela editora da Instituição. De
outra parte, docentes e estudantes passaram a submeter seus escritos a meios
externos de publicação.
O papel formador da extensão comunitária
A situação posta para a vida universitária permite a constituição de um
ambiente de crítica e produção de conhecimento relativamente distanciado de
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demandas cotidianas, mas, ao mesmo tempo, coloca em xeque permanentemente
essa condição de autonomia. O desenvolvimento econômico e tecnológico demanda
adaptação do ensino superior à produção no mercado, às camadas de trabalhadores
que buscam formação superior para oportunidades profissionais, à cultura utilitarista
no comando dos processos sociais, entre outros. De fato, a atividade extensionista,
e não somente a de pesquisa, pode contribuir para garantir o conteúdo crítico, mas
também propositivo necessário a instituições que com ela trabalham.
A atividade de extensão tem sido um meio importante para a formação éticosocial, além da acadêmico-profissional e, por isso mesmo, não tem se restringido à
valorização apenas de cursos ou outros eventos que disseminem conhecimentos
acumulados e/ou desenvolvidos em cada área do saber em que atua. Essa atividade
pode promover trabalho intelectual com elaboração metodológica, além de fomentar,
na comunidade acadêmica e também fora dela, noções e compreensões a respeito
de direitos na diversidade humana e também naquilo que pode haver de universal
na humanidade. Assim, na formação dos estudantes, trata-se de uma atividade que
proporciona o estudo e a interação com problemas complexos: abordagens
multidisciplinares; relação teoria/prática e coloca o desafio do desenvolvimento de
visões sociais integradoras e transformadoras da realidade tendo em vista a
dignidade humana.
Considerando a compreensão exposta acima, o Programa Comunidades
Urbanas trabalhou com o lugar que docentes e estudantes extensionistas ocupam
como mediadores entre saberes e realidades. Nesse aspecto, é fundamental
considerar o empenho de professores e estudantes a partir de um perfil particular,
considerado por nós como próprio dos extensionistas comunitários. Trata-se de
pessoas com sensibilidade para as questões concretas do cotidiano e capazes de
transformar essa sensibilidade em problematização intelectual e em ação produtiva
e transformadora. Isso, entretanto, não ocorre sem que haja esforços, crítica e
contradições, às vezes geradoras de angústias administráveis por meio das
concepções e trocas coletivas.
A extensão, então, supõe predisposição, visão de mundo sensível, diálogo
com a prática, reflexão teórica e também registro, especialmente de caráter
qualitativo, pois as transformações, em várias ocasiões, não são facilmente
quantificáveis. De um modo geral, a realidade próxima aos campi é ignorada por
docentes e estudantes dedicados a atividades de ensino e aprendizagem que têm a
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sala de aula como principal instrumento. Essa situação torna-se agravada pela
impossibilidade de muitos estudantes disporem de tempo para outras atividades que
não aquelas de trabalho para a sobrevivência e manutenção dos estudos. Esse
aspecto está presente na maciça maioria dos casos em instituições particulares.
Assim, as conquistas do Programa Comunidades Urbanas precisam ser registradas
e tornadas públicas.
Para que o esforço e as concepções até então debatidas ganhassem força, o
grupo de idealizadores, em grande parte, manteve-se através do tempo,
especialmente entre os docentes, mas também os estudantes tenderam a manter o
vínculo ao longo dos anos na graduação. Isso resultou em um aprendizado sobre a
forma de organização e gestão do trabalho. Eles foram sintetizados, no ano de 2007,
como sendo: “a necessidade de institucionalização, autonomia e planejamento;
coordenação; interdisciplinaridade; transformação; avaliação; e produção ou
necessidade de registro sistemático dos processos e dos resultados das atividades”
(CAREGNATO, HORTENCIO, CANTO, 2006).
Docentes e estudantes dedicados aos cerca de quinze projetos de extensão
que compuseram o Programa Comunidades Urbanas a cada ano, puderam
participar ativamente na implementação dos elementos balizadores da gestão
extensionista realizada na Instituição. A liberdade frente a programações de trabalho
fechadas e a possibilidades de construir criativamente e de reconstruir são
características da atividade extensionista comunitária e se fizeram presente até este
momento.
Um dos aspectos importantes que exige aprimoramento é a sua capacidade
de repercussão junto ao ensino que domina os currículos dos cursos. A integração
entre extensão e ensino, ou ainda pesquisa, existe na medida em que os agentes
convivem, criam interlocução e problematizam ou questionam o que fazem. Essa
não é a situação da maioria, seja por condições de infraestrutura, como tempo e
espaço físico de convivência, seja por questões de interesses e concepção sobre o
papel da universidade e da formação universitária.
O fato é que, desde a constituição do grupo para o trabalho inicial com o
Comunidades Urbanas, houve a participação de inúmeros estudantes ao longo do
tempo e o interesses por parte de vários docentes, fazendo com que o número de
pessoas abrangido institucionalmente pelas discussões, concepções e ações fosse
expressivo a ponto de conquistar um espaço institucional de relevo.
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A sensibilidade dos alunos para as causas sociais foi uma inspiração para as
atividades extensionistas. No período seguinte, a extensão passou a ser procurada
por outros estudantes, igualmente determinados a dar sua contribuição para a
construção de cidadania das comunidades do entorno. Com o apoio dos grupos de
discussão que idealizavam o Comunidades Urbanas, passaram a formar-se equipes
de estudantes oriundos de diferentes cursos de graduação: Direito e Psicologia;
Direito, Letras e Pedagogia; Arquitetura, Direito e Pedagogia; Design e Letras.
Inicialmente, cada estudante contribuía com o saber próprio de sua formação;
depois, por força da complexidade das comunidades, foi se constituindo a
intersecção desses saberes com os saberes das comunidades e se criando um
novo, que, compartilhado pelos estudantes, vem criando um novo universo
conceitual, em que os saberes deixam de ser próprios, exclusivos e tornam-se
novos, mais amplos, mais democráticos, enriquecidos que são pelas múltiplas
visões que se entrecruzam nos contatos entre estudantes, docentes e comunidades.
A atuação dos alunos nos projetos que hoje constituem o Programa
Interdisciplinar Comunidades Urbanas requer disposição para assumir uma parcela
da responsabilidade social em relação aos menos favorecidos, o que lhes define um
perfil especial. Mas não se trata apenas de doação de tempo ou conhecimento
acadêmico. No âmbito dos projetos do Programa, há espaço para diálogo e trocas
para, por exemplo, estimular a formação de uma comunidade de costureiras,
apoiando mulheres vítimas de violência no que tange à técnica e estética na
produção de peças do vestuário e também para, a partir do trabalho com a literatura
africana, resgatar estampas étnicas para a produção de capulanas, trazendo de
volta para a Instituição esse saber, que se torna objeto de discussão nas disciplinas
dos cursos de Letras e de Design, articulando pesquisa, extensão e ensino. Alunos
atuantes nesses projetos têm sua visão sobre a sua área de conhecimento, sobre si
mesmos e sobre as comunidades transformadas, assim como se transforma a
perspectiva da Instituição em relação às comunidades: não são mais um receptáculo
do saber acadêmico, mas uma fonte de saberes tradicionais e populares, que
podem constituir novos inícios, novos pontos de vista sobre o ensino e o papel da
universidade na sociedade.
O aluno de graduação que se envolve com a extensão comunitária é tocado:
não será um profissional apenas voltado para si ou para o mercado; o docente que
trabalha em extensão nunca mais será apenas mais um professor. A capacidade
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formativa da extensão tem efeitos para além do período universitário, tem
consequências sobre a vida, desde que exercida com disciplina e método.
Finalizando
Na universidade, a clássica produção de conhecimento pela pesquisa se
mantém brigando pela sua relativa independência em relação a interesses
imediatistas. Ao lado disso, aparecem novas exigências na função universitária de
ensinar. As aceleradas transformações econômicas, sociais e culturais na
contemporaneidade alteram as tradicionais categorias de interpretação da realidade,
exigindo uma reavaliação dos princípios e métodos envolvidos na produção e
reprodução/renovação do conhecimento.
O princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão supõe que
o conhecimento só pode ser produzido por meio da investigação da realidade, o que
exige pontos de vistas aguçados para questionar com efetividade e método, a fim de
produzir respostas pertinentes e úteis às realidades e a seus sujeitos. Esta situação
remete ao compromisso e interesse da pesquisa, conectando-a com a extensão. Por
sua vez, o conhecimento produzido pela academia precisa ser colocado frente à
realidade social e comunitária e, nesse sentido, as atividades de extensão
constituem um nível de autocrítica necessário ao trabalho universitário na pesquisa e
no ensino.
O conceito da indissociabilidade entre as três atividades fins parece mais
viável quando trabalhado com base em grupos na graduação, sendo fundamental
para a formação dos estudantes e ao processo de aprendizagem. Os estudantes
precisam ser desafiados a trabalhar com a criação e resolução de problemas e se,
na atividade de pesquisa, esses problemas podem ter um caráter intensamente
analítico e não propositivo, é na extensão que essas variáveis precisam se
complementar, produzindo aprendizagem.
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