da Proclamação da República à Revolução de 1930
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da Proclamação da República à Revolução de 1930
ESCOLA DE COMANDO E ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO ESCOLA MARECHAL CASTELLO BRANCO Ten Cel Cav HUMBERTO SILVEIRA DE ALMEIDA A participação do Exército na evolução política do Brasil da Proclamação da República à Revolução de 1930 (INTENCIONALMENTE EM BRANCO) Rio de Janeiro 2014 Ten Cel Cav HUMBERTO SILVEIRA DE ALMEIDA A participação do Exército na evolução política do Brasil da Proclamação da República à Revolução de 1930 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, como requisito para a obtenção de certificado de pósgraduação lato sensu em Ciências Militares. Orientador: Ten Cel Art GUSTAVO JOSÉ BARACHO DE SOUSA Rio de Janeiro 2014 A 447p Almeida, Humberto Silveira de. A participação do Exército na evolução política do Brasil – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Humberto Silveira de Almeida. 2014. 169 f. 29,7 cm. Trabalho de Conclusão de Curso – Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, Rio de Janeiro, 2014. Bibliografia: f. 168-169. 1. Exército Brasileiro 2. Participação 3. Evolução 4. Política. CDD 355.033 Ten Cel Cav HUMBERTO SILVEIRA DE ALMEIDA A participação do Exército na evolução política do Brasil da Proclamação da República à Revolução de 1930 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, como requisito para a obtenção de certificado de pósgraduação lato sensu em Ciências Militares. Aprovado em 21 de julho de 2014. COMISSÃO AVALIADORA ___________________________________________ GUSTAVO JOSÉ BARACHO DE SOUSA - Ten Cel Presidente _____________________________ RICKMANN SCHMIDT – Ten Cel Membro ______________________________________ ANSELMO RANGEL DOS ANJOS – Ten Cel Membro Às minhas amadas Flores, esposa Ana Paula e filha Manuela, que tiveram compreensão, paciência e boa vontade de animar-me em todos os momentos deste trabalho. Agradeço ao meu orientador neste trabalho, tenente-coronel Gustavo José Baracho de Sousa, pela atenção e compreensão dispensada. Si vis pacem, para bellum. Se queres a paz, prepara-te para a guerra. Publius Flavius Vegetius Renatus RESUMO Este trabalho de conclusão de curso tem por objetivo conhecer a relevância da participação do Exército Brasileiro na evolução política do Brasil, entre a Proclamação da República e a Revolução de 1930. É comum referir-se ao Exército e aos militares como protagonistas dos vários eventos históricos do período. Questiona-se, porém, até que ponto a instituição e a classe militar tiveram condições de agir de acordo com suas convicções ou se foram arrastados pelos interesses e acontecimentos de então. Para atingir o objetivo, procurou-se apresentar os diversos atores e fatos históricos, com atenção especial aos militares que tiveram relevância. Também se abordou as dificuldades que esses militares tiveram para manter a nação coesa, modernizar o Exército e para implantar o serviço militar obrigatório. No contexto da República Velha, dominada pelas elites políticas e antigas oligarquias agrárias, este trabalho procura caracterizar a atuação das novas gerações de oficiais, “doutores”, Jovens Turcos, “Tenentes”, que buscariam confrontar o velho e o novo Brasil, a fim de mudar-lhe o futuro e colocá-lo de vez no século XX. Palavras-chave: Exército Brasileiro, Participação, Evolução, Política. ABSTRACT This course conclusion work aims to understand how the involvement of the Brazilian Army in the political evolution of Brazil, between the proclamation of the Republic and the 1930’s Revolution. It's common to refer to the Army and the military as protagonists of various historical events period. Wonders, however, how far the military institution and the class were able to act according to their convictions or were swept away by the interests and events of that time. To achieve the goal, we tried to present the various actors and historical facts, with special attention to the military that had relevance. Also addressed the difficulties that these military had to maintain a cohesive nation, modernize the Army and to deploy mandatory military service. In the context of the Old Republic, dominated by political elites and old agrarian oligarchies, this paper aims to characterize the performance of the new generations of officers, “doctors”, Young Turks , "lieutenants", who seek to confront the old and the new Brazil, in order to change it the future and put it again in the twentieth century. Keywords: Brazilian Army, Participation, Evolution, Politics. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 12 1.1 O PROBLEMA ............................................................................................................ 12 1.2 OBJETIVOS ................................................................................................................ 13 1.3 HIPÓTESE .................................................................................................................. 14 1.4 DELIMITAÇÃO DO ESTUDO .................................................................................... 14 1.5 RELEVÂNCIA DO ESTUDO ...................................................................................... 14 2 A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA ........................................................................ 15 3 O GOVERNO DO MARECHAL DEODORO DA FONSECA .................................... 20 4 O GOVERNO DO MARECHAL FLORIANO PEIXOTO ............................................ 24 4.1 A REVOLTA DA ARMADA E A REVOLTA FEDERALISTA ................................... 24 5 A GUERRA DOS CANUDOS ....................................................................................... 30 5.1 O GOVERNO DE PRUDENTE DE MORAIS E OS MILITARES ........................... 30 5.2 O CONFLITO NO SERTÃO ....................................................................................... 31 6 O EXÉRCITO E O BRASIL NOS PRIMEIROS ANOS DO SÉCULO XX ................ 36 6.1 A SITUAÇÃO CLAMA POR REFORMAS ................................................................ 36 6.2 A VIDA MILITAR NA NAQUELES TEMPOS ........................................................... 37 6.3 O MINISTÉRIO MALLET E OS ESFORÇO PARA REFORMAR O EXÉRCITO .. 39 7 A QUESTÃO DO ACRE ............................................................................................... 41 8 CRISE SOCIAL E REVOLTA NA ESCOLA MILITAR .............................................. 45 8.1 O MINISTRO ARGOLLO E A DEFESA DO BRASIL .............................................. 45 8.2 A REVOLTA NA ESCOLA MILITAR ......................................................................... 46 9 NOVAS TENTATIVAS DE REFORMAR O EXÉRCITO E O SERVIÇO MILITAR . 48 9.1 A EDUCAÇÃO DOS OFICIAIS.................................................................................. 48 9.2 O MINISTÉRIO HERMES DA FONSECA ................................................................ 48 9.3 INSTRUÇÃO MILITAR ESTRANGEIRA .................................................................. 52 10 O GOVERNO DO MARECHAL HERMES ................................................................ 54 10.1 O MOVIMENTO SALVACIONISTA ........................................................................ 58 11 A GUERRA DO CONTESTADO................................................................................ 66 12 A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL IMPÕE MUDANÇAS ....................................... 79 12.1 AS FORÇAS ARMADAS E A SOCIEDADE .......................................................... 79 12.2 O SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO .................................................................. 83 12.3 OS SARGENTOS SE REBELAM ........................................................................... 85 12.4 O ESFORÇO PELO SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO................................... 85 12.5 MATERIAL DE EMPREGO MILITAR E A INDÚSTRIA NACIONAL ................... 87 12.6 AS REFORMAS DO EXÉRCITO E DA NAÇÃO ................................................... 90 12.7 OS JOVENS TURCOS IMPÕEM SUA VISÃO ...................................................... 92 13 O EXÉRCITO E O PROFISSIONALISMO ................................................................ 94 13.1 A RETOMADA DE UMA MISSÃO MILITAR ESTRANGEIRA ............................. 94 13.2 O MINISTRO CARDOSO DE AGUIAR E OS FRANCESES ............................... 95 13.3 A MISSÃO FRANCESA E O GENERAL GAMELIN .............................................. 96 13.4 AS INICIATIVAS POR UMA INDÚSTRIA MILITAR .............................................. 98 14 AS AGITAÇÕES DA DÉCADA DE 1920................................................................ 100 14.1 OS TENENTES REVOLUCIONÁRIOS ................................................................ 100 14.2 O AMBIENTE APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL ................................... 101 14.3 O MINISTÉRIO CALÓGERAS E O GENERAL BENTO RIBEIRO .................... 102 14.4 A SITUAÇÃO DO EXÉRCITO ............................................................................... 104 14.5 O BRASIL NOS ANOS 20 ..................................................................................... 104 14.6 O SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO ................................................................ 106 14.7 LIDERANÇA E ORGANIZAÇÃO DO EXÉRCITO ............................................... 106 14.8 A OFICIALIDADE ................................................................................................... 110 14.9. AS ESCOLAS DE OFICIAIS ................................................................................ 111 14.9.1 A ESCOLA MILITAR DO REALENGO .............................................................. 111 14.9.2 A ESCOLA DE APERFEIÇOAMENTO DE OFICIAIS ..................................... 112 14.9.3 A ESCOLA DE ESTADO-MAIOR ...................................................................... 113 14.10 A MISSÃO FRANCESA ....................................................................................... 114 14.11 OS QUARTÉIS DE CALÓGERAS ...................................................................... 116 15 A REVOLUÇÃO DE 30 ............................................................................................. 119 15.1 AS REVOLTAS TENENTISTAS ........................................................................... 119 15.2 A REVOLTA DOS TENENTES EM SÃO PAULO ............................................... 123 15.3 A ASCENSÃO DE GÓES MONTEIRO ................................................................ 127 15.4 A REVOLUÇÃO AVANÇA ..................................................................................... 130 15.5 O GOLPE DOS GENERAIS NO RIO DE JANEIRO ........................................... 139 16 DISCUSSÃO DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA ..................................................... 146 17 CONCLUSÃO ............................................................................................................ 164 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 168 12 1. INTRODUÇÃO 1.1 O PROBLEMA O Exército Brasileiro, desde sua gênese no século XVII, participou com destaque da evolução política do Brasil, até o fim dos governos militares, em meados da década de 1980. Porém, no período entre os eventos da Proclamação da República e da Revolução de 1930, a Força Terrestre e muitos militares, de forma isolada ou agindo em conjunto, foram protagonistas em várias ocasiões e, em maior ou menor grau, influenciaram nos destinos políticos do Brasil. De modo geral, podem-se citar diversos eventos da evolução política brasileira, a partir do fim do século XIX. À Proclamação da República, em 1889, seguiram-se os governos militares, a “República da Espada”: do Marechal Deodoro da Fonseca, que renunciou em 1891, após enfrentar a Crise do Encilhamento e a falta de apoio do Poder Legislativo; e do Marechal Floriano Peixoto, entre 1891 e 1894, que enfrentou a Revolta da Armada (1891) e a Guerra Civil (Revolta Federalista). Esta teve início em 1893 e se prolongou até 1895, já no governo do civil Prudente de Morais, que negociou o seu fim. Além de parte da Guerra Civil dos Federalistas, o sucessor do Marechal Floriano também se deparou com a crise civil e militar de Canudos, entre 1896 e 1897. Após o fim da Guerra de Canudos, seguiu-se um período de relativa estabilidade, instaurando-se a “Política dos Governadores”, durante o governo de Campos Sales, que teve em seus dias a Questão Acreana, com a Bolívia. Seu sucessor – Rodrigues Alves, porém, enfrentou a Revolta da Escola Militar da Praia Vermelha, em novembro de 1904, no contexto da Revolta da Vacina. A sequência de presidentes civis foi interrompida pelo governo do Marechal Hermes da Fonseca, entre 1910 e 1914, que implantou a malograda Política de Salvações, pretendendo moralizar a política nacional, por meio de intervenções nas oligarquias estaduais. Entretanto, o Marechal enfrentou, já nos primeiros dias do seu governo, a Revolta da Chibata e, no meio do mandato, a grave crise do Contestado. O período seguinte teve o retorno dos presidentes civis das oligarquias agrárias, com Venceslau Brás, entre 1914 e 1918, vivendo ainda a Guerra do Contestado por quase dois anos e tendo a pequena participação militar do Brasil nos conflitos da Primeira Guerra Mundial. Os demais governos que se seguiram, com o 13 presidente interino Delfim Moreira (novembro de 1918 a julho de 1919), Epitácio Pessoa (1919 a 1922), Artur Bernardes (1922 a 1926) e Washington Luis (1926 a 1930), testemunharam o surgimento e a atuação do Tenentismo e seus movimentos: a Revolta no Rio de Janeiro (1922), a Revolta em São Paulo e a Comuna de Manaus, ambas de 1924, e a Coluna Miguel Costa – Prestes. Os movimentos tenentistas deram força à Revolução de 1930 que, com o apoio de militares, impediu a posse do presidente eleito – Júlio Prestes, pôs fim à República Velha das oligarquias e inaugurou a Era Vargas. Este trabalho se propõe a expor, por meio de uma revisão bibliográfica, as características da história e da participação do Exército na evolução política do Brasil, da Proclamação da República à Revolução de 1930. Além disso, pretende-se caracterizar o ambiente que antecedeu o processo que culminou com a queda da Monarquia e a participação das forças armadas e de militares nos seguintes eventos: a Proclamação e a Consolidação da República, os governos militares, a Revolta da Armada e a Guerra Civil Federalista, as rebeliões da 1ª República (Canudos, Contestado, Chibata), a Questão Acreana, a Revolta da Escola Militar, a Política de Salvação Nacional, a Primeira Guerra Mundial, o Tenentismo e as revoltas dos “Tenentes” no Rio de Janeiro, em 1922, e em São Paulo, em 1924, quando também se estabeleceu a Comuna de Manaus, a Coluna Miguel Costa – Prestes, e a Revolução de 1930. Feita sucinta apresentação dos eventos históricos que envolvem o período em estudo neste trabalho, pode-se inferir que houve participação intensa do Exército Brasileiro e de militares, individualmente, ou no âmbito da Força, na evolução política nacional. Entretanto, este estudo propõe o seguinte problema: a participação do Exército nessa evolução política foi relevante para provocar uma alteração nos rumos que se seguiram? 1.2 OBJETIVOS Objetivo Geral: Expor, por meio de uma revisão bibliográfica e documental, as características da participação militar na Evolução Política do Brasil, da Proclamação da República à Revolução de 1930, destacando sua relevância. Objetivos específicos: 14 a. Caracterizar o ambiente que antecedeu o processo que culminou com a Proclamação da República; b. Caracterizar a participação do Exército e de militares nos seguintes eventos: a Proclamação e a Consolidação da República, os governos militares, a Revolta da Armada e a Revolução Federalista, as rebeliões da 1ª República (Canudos, Contestado, Chibata), a Questão Acriana, a Revolta da Vacina, a Política de Salvação Nacional, a Primeira Guerra Mundial, o Tenentismo e a Revolta dos Dezoito do Forte de Copacabana, a Revolta Paulista, a Comuna de Manaus e a Coluna Miguel Costa – Prestes, e a Revolução de 1930. 1.3 HIPÓTESE A participação do Exército na evolução política do Brasil, da Proclamação da República à Revolução de 1930, foi relevante para os rumos tomados pelo país, no período? A instituição e os militares agiram de acordo com suas convicções ou foram instrumentos nas mãos de interesses políticos e sociais da época? 1.4 DELIMITAÇÃO DO ESTUDO Os eventos históricos já abordados neste trabalho serão estudados por meio de uma pesquisa qualitativa às fontes bibliográficas disponíveis tomando-se por foco a relevância da participação das forças armadas e de militares, dentro ou fora do contexto destas instituições, na evolução política do Brasil, entre 1889 e 1930. 1.5 RELEVÂNCIA DO ESTUDO O assunto é importante para a educação militar, uma vez que busca detalhar exposições das características da participação militar em período importante da História do Brasil. Pretende-se com o trabalho atingir pesquisa histórica de relevância que contribua para disseminar conhecimentos a respeito do tema. 15 2 A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA Koshiba e Pereira (2003, p. 323) observam que “a partir de 1850, com a abolição do tráfico [de escravos], começou no Brasil um processo de profunda transformação econômica e social”. Houve crescimento da população, a indústria têxtil cresceu, o transporte melhorou, aumentou a urbanização e, na produção agrícola, os escravos foram substituídos trabalhadores livres (imigrantes). De acordo com Sena (1995, p.19), “[...] a partir da década de 1870 começou o declínio do Império [...] a Guerra da Tríplice Aliança chegava ao fim, inaugurando-se nova fase do Exército Brasileiro, após cinco anos de contato de nossos oficiais com militares de repúblicas vizinhas.”. Nelas, os militares geralmente estavam no poder. Para agravar o sentimento de grande parte da oficialidade do Exército em relação à Monarquia, D. Pedro II tratava as questões da instituição com descaso. Depois da Guerra do Paraguai, os militares tomaram consciência de sua importância e gradativamente começaram a manifestar insatisfação pelo tratamento recebido do governo imperial. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 327). Arruda e Piletti (2004, p. 317) afirmam que “até hoje pairam dúvidas sobre as intenções do marechal Deodoro da Fonseca ao ocupar o Ministério da Guerra. Grande amigo do imperador, pretendia ele acabar com a Monarquia ou apenas forçar a mudança do Ministério?” Alguns historiadores especulam que Deodoro teria sido convencido a depor o gabinete do visconde de Ouro Preto (MCCANN, 2009, p. 28), de quem era desafeto, e que o “viva” dado à frente da tropa, no Campo de Santana, teria sido dirigido ao Monarca. Não há dúvida, porém, de que o gabinete imperial reunira-se durante toda a noite de 14-15 de novembro no Ministério da Marinha, buscando modos de salvar-se e, ao amanhecer, mudara-se para um refúgio supostamente mais seguro no quartel-general do Exército, sendo logo confrontado por unidades da guarnição do Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 28). Fato é que, no dia seguinte, publicava-se no Diário Oficial o texto da Proclamação da República (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 317). McCann (2009, p. 28) questiona: “Quem teve o papel mais importante, Deodoro ou o tenente-coronel Benjamin Constant, propagandista republicano nas escolas do Exército?” A passagem histórica do fim da Monarquia brasileira é cheia de incertezas. Prossegue McCann (2009, p. 28): “O comandante do Exército, [...] marechal-de-campo Floriano 16 Peixoto, estava sinceramente tentando defender o regime em seus últimos dias [...]?”. Essas incertezas geraram um espaço histórico que os criadores de mitos tratam alegremente de preencher. A lacuna historiográfica em torno de 1889 é mais do que curiosa; é um dos aspectos bizarros da história brasileira moderna e, ela própria, digna de estudo. (MCCANN, 2009, p. 28). Arruda e Pilleti (2004, p. 317) assinalam que o movimento de 15 de novembro resultou da iniciativa de uma nova elite que queria chegar ao poder implantando o novo regime. Segundo o autor, o Exército teria servido apenas como uma força capaz de concretizar o objetivo. Também destaca a falta de participação popular. O ministro do Governo provisório, Aristides Lobo, teria dito que “o povo assistiu bestializado” ao movimento que pôs fim à Monarquia. Na década de 1880, o governo imperial percebia uma queda na lealdade do Exército. Uma nova geração de oficiais, mais instruídos e mais urbanos, dava-lhe novo aspecto. Nos escalões superiores, havia muitos veteranos da Guerra do Paraguai, sentindo-se à margem do regime, da sociedade e do ambiente dos oficiais subalternos. O sistema de promoções, moroso e sujeito à influência política e ao apadrinhamento, refletia no orgulho profissional e na queda do poder aquisitivo baseado no soldo. (MCCANN, 2009, p. 28). McCann (2009, p. 29) destaca também a diminuição do número de altos oficiais em posições elevadas no gabinete imperial, que passaram a ser ocupadas por bacharéis das faculdades de direito, os “casacas”. Isto gerava um sentimento de distanciamento e desvinculação do governo monárquico. Outro aspecto que, segundo McCann (2009, p 29), na época, gerava grande frustração dentre a oficialidade e reflexos negativos para a imagem do Exército era o funcionamento do serviço militar. Apesar de ter sido aprovada uma lei, em 1874, proclamando o alistamento universal para um sorteio militar, o sistema era, na realidade, utilizado pelo Império como penitenciária. No campo político: Jovens oficiais, particularmente, sentiram-se atraídos pelo Partido Republicano após sua formação, em 1870, e um deles [...] ajudara a redigir o célebre manifesto republicano daquele ano e participara do jornal A República. A Escola Militar tornou-se um fértil campo de debates e conversões para a causa republicana. (MCCANN, 2009, p. 28). 17 O movimento abolicionista ganhou fôlego e associou-se à insatisfação militar. Joaquim Nabuco, na Câmara dos Deputados, declarou que o governo estava empregando o Exército “em um fim completamente estranho a tudo o que há de mais nobre para o soldado [...] como capitães-do-mato na pega de negros fugidos”. A esse debate, somou-se uma questão de segurança nacional a respeito da possibilidade de guerra contra a Argentina pela disputa de área de fronteira entre as Missões e Santa Catarina. O gabinete do Partido Conservador queria aumentar os gastos militares, mas o Exército, com apoio de parlamentares aliados, negava-se a ir à guerra com escravos, como foi contra o Paraguai. Assim, a abolição passou a ser vista como medida de defesa nacional. (MCCANN, 2009, p. 30). Oficiais, e até mesmo unidades inteiras, haviam se associado ao movimento abolicionista. Houve casos de militares negando-se a cumprir ordens de perseguir escravos fugidos e de um batalhão que, ao ser declarado sociedade abolicionista, foi transferido de sede. Quando o governo, por meio da princesa Isabel, aboliu a escravidão, a propaganda republicana associada à abolicionista já havia sido assimilada e se infiltravam nas escolas militares, como solução para fazer do Brasil uma pátria livre. (MCCANN, 2009, p. 31). O imperador generalíssimo estava cada vez mais enfermo e distante dos assuntos de Estado. Os altos oficiais não despachavam mais com o seu comandante, um soldado como eles, mas com políticos civis, maculados por alianças partidárias. (MCCANN, 2009, p. 33). A Questão Militar da Década de 1880, segundo McCann (2009, p. 33), agravou o distanciamento do Exército em relação ao sistema político vigente. Oficiais foram punidos por criticar publicamente o governo, fato que, em 1886 e 1887, uniu-os, provindos de diferentes afiliações políticas, em defesa dos interesses militares. Disto resultou o cancelamento das punições e a fundação do Clube Militar, em junho de 1887, totalmente independente da estrutura do Exército e destinado a debates que se alinhavam ao pensamento da classe média urbana e se afastavam de modo intuitivo das instituições imperiais, principalmente o Escravismo da oligarquia agrária. Em novembro de 1888, o estado de espírito da oficialidade e de Deodoro da Fonseca parece ter sido abalado por um acontecimento que feriu-lhes o brio: o descumprimento pelo ministério da Guerra de ordem do imperador para acatar decisão da Justiça Militar de limpar a ficha de oficiais que foram punidos por manifestar publicamente suas opiniões. Diante da desobediência institucional, 18 Deodoro, então ocupante do posto de quartel-mestre-general, escreveu a D. Pedro II por duas vezes pedindo-lhe para interceder, utilizando termos incisivos o bastante para resultar na sua demissão do segundo maior cargo da hierarquia do Exército. O general voltou a escrever ao imperador, de forma mais contundente e ameaçando renunciar à farda se não fosse atendido. O ministro da Guerra, então, queria reformar Deodoro, mas D. Pedro II não permitiu. Assim, o ministro pediu demissão e o seu substituto providenciou o atendimento ao pleito dos militares. (MCCANN, 2009, p. 33). Mas a recusa dos oficiais em fazer as petições de limpeza das fichas, por entenderem que não estavam errados, reacendeu os ânimos, que se agravaram quando o governo proibiu os oficiais de usar linhas telegráficas, a fim de impedir manifestações solidárias de colegas de outras províncias. Diante dessa situação, o marechal honorário José Antônio Corrêa da Câmara - o visconde de Pelotas escreveu a Deodoro que não era mais possível recuar sem comprometimento da honra e do moral. (MCCANN, 2009, p. 34). E para McCann (2009, p. 35) “a identidade individual e os sentimentos de autoestima e satisfação de um soldado estão vinculados a um senso de participação e integração em uma identidade coletiva maior”. Testemunhos apontam que a intenção inicial de Deodoro era substituir o gabinete imperial. Antes, porém, de encerrar o dia ele teria sido manipulado para proclamar a República, cujas ideias não aprovava para os brasileiros, que careciam de educação e respeito para viabilizá-la. Além disto, o general dedicara sua vida inteira à Monarquia. Ao proclamar a República, os oficiais estavam “reivindicando um status especial que lhes conferia uma ligação supragovernamental com a Pátria. [...] Talvez os oficiais houvessem adquirido uma nova perspectiva comum sobre o modo como a Pátria devia ser ordenada”. (MCCANN, 2009, p. 37). A República foi “produto de um corpo de oficiais que defendeu seus interesses particulares e se aliou a uma minoria política”. A parcela que participou diretamente foi motivada pelo temor por sua instituição ou pelo seu bem estar social, enquanto outros oficiais ansiavam por estar atualizados com a tendência internacional que a ideologia republicana representava. (MCCANN, 2009, p. 44). O fato que precipitou a ação de Deodoro, no dia 15 de novembro de 1889, foi menção feita por D. Pedro II de nomear o senador Gaspar da Silveira Martins, arquiinimigo do general, para formar um novo gabinete. Diante da pressão dos 19 republicanos e não vendo outro modo de impedir que seu adversário chegasse ao poder, mesmo enfermo e exausto, o ofendido “Deodoro, um monarquista, destinou o Império ao esquecimento e fez do Brasil uma República”. (MCCANN, 2009, p. 33). Entre os oficiais do Exército e da Marinha que não participaram do golpe, o elemento surpresa e o sucesso do movimento desencorajaram possíveis reações contrárias, se é que estas chegaram a ser pensadas. Não que houvesse um consenso na “classe militar”. (CASTRO, 1995, p. 192). Mas os primeiros anos do Brasil republicano não seriam tão pacíficos quanto o movimento que derrubou a Monarquia. O país viveria uma década sangrenta e sofrida, que resultaria na conservadora República Velha, resistente a mudanças políticas e sociais, pródiga em empregar o Exército em papel repressivo. (MCCANN, 2009, p. 38). A República, vinda por meio de um golpe, afirmar-se-ia pelo uso da Força, demorando a expor-se ao voto popular por não ter adquirido a legitimidade necessária para arriscar-se em eleições. O voto, que nos tempos monárquicos baseava-se na renda e era restrito aos homens, continuou longe do povo nos primeiros anos da República. A restrição imperial ao sufrágio limitou sua legalidade e deu valor desproporcionalmente maior à voz política dos militares. (MCCANN, 2009, p. 44). Para Castro (1995, p. 7), o ano de 1889 foi emblemático para a ascensão dos militares como atores na política brasileira. “Não apenas estiveram no governo durante os cinco anos seguintes, como também, no período republicano que se iniciava, o Brasil sofreria vários outros golpes militares”. A República foi obra, basicamente, dos partidos republicanos – notadamente o de São Paulo -, unidos os militares de tendência positivista. Tão logo o grande objetivo foi atingido, porém, ocorreu a cisão entre os “republicanos históricos” e os militares. As divergências giraram em torno da questão federalista: os civis defendiam o federalismo e os militares eram centralistas, partidários de um poder central forte. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 380). 20 3 O GOVERNO DO MARECHAL DEODORO DA FONSECA Proclamada um ano depois da abolição da escravatura, a República teve, como principais personagens, além dos grandes proprietários rurais (cafeicultores), os militares. Nos primeiros cinco anos da vida republicana, estes dominaram a cena política, razão pela qual o período foi chamado de “República da Espada”. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 337). Segundo Arruda e Piletti (2004, p. 317), “presidido por Deodoro, o governo provisório suspendeu a Constituição de 1824 e passou a governar por meio de decretos-leis”. Para McCann: A instabilidade política e militar e a violência da década de 1890 resultaram, em parte, da falta de consenso entre as elites civis quanto ao modo como o país devia ser governado; analogamente, os oficiais militares não conseguiram chegar a um consenso quanto a seu status, sua relação com o regime político ou seus objetivos institucionais. Além disso, estavam divididos por rivalidades pessoais e visões conflitantes do futuro do Exército e do país. Sua desunião e o desacordo entre as elites civis quanto ao papel das Forças Armadas na sociedade explicam, em parte, por que não se estabeleceu uma ditadura militar prolongada, como desejavam alguns oficiais positivistas (MCCANN, 2009, p. 45). A proclamação da República causou a deposição e substituição dos governadores das províncias por oficiais ou aliados republicanos. Com o tempo, tornaram-se comuns as lutas pelo controle dos estados, agravadas por rixas locais e pela ausência de uma estrutura política para a nova ordem vigente. O novo governo, que antes defendera a liberdade de expressão dos oficiais, agora tolhia a imprensa oposicionista com a “lei dos suspeitos”. Estava longe de ser a República que seus proponentes sonharam. (MCCANN, 2009, p. 45). A frágil unidade da “classe militar”, forjada pouco antes do golpe entre a “mocidade militar” liderada por Benjamin Constant e um pequeno grupo de oficiais troupiers, próximos a Deodoro, desfez-se em pouco tempo. Benjamin não permaneceu muito tempo no Ministério da Guerra [...], passando Floriano Peixoto a ocupar [o cargo]. (CASTRO, 1995, P. 197). Ao mesmo tempo, oficiais passaram a criticar Deodoro publicamente, comprometendo a hierarquia e a disciplina, tomados de presunção e ambições encorajadas pelo prestígio que lhes era dado. Houve promoções em massa e sem critérios e o aumento dos soldos no mês seguinte ao golpe. Nesse contexto, cedendo a uma conspiração palaciana, o novo presidente foi aclamado generalíssimo das Forças Armadas brasileiras, título antes pertencente ao imperador. O governo chegou a conceder títulos militares honorários a membros 21 civis do gabinete e figuras eminentes, no que pareceu a vontade de substituir a nobreza imperial por outra, republicana. (MCCANN, 2009, p. 45). O recém-promovido general-de-brigada Benjamin Constant, positivista e líder intelectual do movimento republicano, fora nomeado ministro da Guerra. Entretanto, devido à sua tolerância com a indisciplina de oficiais, em março de 1890, Deodoro substituiu-o pelo general Floriano Peixoto, que retomou a autoridade do governo sobre o Exército. Por seu desempenho, Floriano foi nomeado para substituir o vicepresidente demissionário Rui Barbosa. (MCCANN, 2009, p. 47). O motivo mais visível da disputa entre Benjamin e Deodoro – e os grupos de militares a eles ligados – são acusações recíprocas de favorecimento em promoções e nomeações. Por trás disso, no entanto, não é difícil perceber o afloramento de diferenças irredutíveis entre oficiais de orientação “científica” e troupiers. (CASTRO, 1995, p. 197). A situação nos estados ficou muito complicada. Das vinte unidades, metade era governada por oficiais. O governo central usava as Forças Armadas para expurgar monarquistas dos estados, obtendo êxito limitado em razão da inexperiência dos políticos republicanos, como em São Paulo. Em muitas províncias a proclamação da República foi uma surpresa. Houve ensaios de resistência em algumas delas. O irmão de Deodoro, general Hermes da Fonseca, comandante militar em Salvador, foi um exemplo. Porém, antes do fim do ano, ele já era o presidente do estado da Bahia. No Rio Grande do Sul a disputa entre ex-liberais do Império e republicanos foi tamanha que, no período de um ano, dezoito homens ocuparam o cargo de presidente estadual. Nesse contexto, Júlio de Castilhos ascendeu politicamente, mas a situação se complicou tanto que explodiu em uma guerra civil, entre 1894 e 1895. (MCCANN, 2009, p. 47). Também no Rio de Janeiro os desentendimentos eram agudos. As discordâncias sobre como governar o país fizeram surgir repetidas ameaças de renúncia pelo presidente e membros do gabinete, como Rui Barbosa e Benjamin Constant. Nesse ambiente, oficiais positivistas passaram a apelar para a Assembleia Constituinte, na redação de uma nova carta constitucional, a partir de novembro de 1890. Dentre eles, estava o jovem tenente Augusto Tasso Fragoso, que viria mais tarde a ter papel de destaque no Exército. Desejavam a concentração do poder nas mãos do presidente, um “governo forte e responsável”. (MCCANN, 2009, p. 47). Na Assembleia, os adeptos desse pensamento eram chamados Jacobinos e tinham como opositores os oficiais da Marinha – ressentidos da perda do prestígio 22 que tinham no Império – e civis – principalmente paulistas – que achavam que somente a soberania do Legislativo poderia preservar seus interesses. Mas os delegados da Assembleia Constituinte, que comporiam o Congresso Nacional após a promulgação, foram escolhidos por critérios nada democráticos e muitos sob a promessa de eleger Deodoro presidente. Um quarto deles era oficial militar e boa parte era desconhecida nos estados que representavam. (MCCANN, 2009, p. 48). A maior parte da guarnição do Rio de Janeiro estava disposta a aclamar Deodoro ditador caso não fosse eleito pela Assembleia. Mas havia a oposição do almirante Custódio de Mello e de oficiais da Marinha, que apoiaram o civil paulista Prudente de Morais e planejaram uma revolta da Armada para garantir sua posse, se fosse eleito. Entretanto, em 25 de fevereiro de 1891, Deodoro saiu vencedor, mas foi ofuscado pelo vice-presidente eleito, general Floriano Peixoto, que teve mais votos. Na cerimônia de posse, da mesma forma, enquanto Deodoro foi recebido em silêncio, Floriano foi aclamado, indicando que este logo eclipsaria o presidente. (MCCANN, 2009, p. 48). Arruda e Piletti (2004, p. 318) afirmam que “a primeira constituição da República [...] foi promulgada em 24 de fevereiro de 1891. Inspirada na [...] norteamericana, instituía a República Federativa [...], o presidencialismo [...] e o regime representativo”. A nova constituição foi redigida pelo gabinete do governo e submetida à aprovação pela Assembleia como um pacote. As Forças Armadas tiveram destaque. A carta declarava que eram instituições permanentes, responsáveis por manter a lei e a ordem e garantir os três poderes constitucionais. O corpo de oficiais foi o único grupo constitucionalmente determinado da elite nacional. Às Forças Armadas era determinada uma obediência, com ressalvas, ao presidente, “nos limites da lei”, termos que preocuparam Deodoro e alguns oficiais em relação à disciplina. Este detalhe da obediência militar passaria intacto pela carta de 1934, sendo modificado na Constituição do Estado Novo, que impôs aos militares a obediência inquestionável ao presidente. (MCCANN, 2009, p. 49). Deodoro teve dificuldades para se adaptar à nova situação de governar compartilhando o poder com o Congresso Nacional. Nos quinze meses anteriores governara sem restrições e agora se via diante de críticas a atos polêmicos do governo, no campo econômico, além de especulações, fraudes, inflação galopante. A oposição cresceu tanto quanto caiu sua popularidade. Frustrado, o idoso 23 generalíssimo dissolveu o Congresso, em novembro de 1891, o que causou a deposição do seu aliado no Rio Grande do Sul, Júlio de Castilhos, e uma rebelião com parte da frota da Armada na baía da Guanabara, liderada pelo almirante Custódio de Mello. (MCCANN, 2009, p. 51). De acordo com Arruda e Piletti: A reação dos oposicionistas não demorou muito. [...] Ferroviários desencadearam movimento grevista no Rio de Janeiro. O líder era o deputado José Augusto Vinhaes, militar ligado [...] a Floriano Peixoto, que apoiava veladamente a oposição. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 319). O Exército ficou dividido: alguns oficiais, como o coronel Fernando Setembrino de Carvalho, reprovaram o ataque de Deodoro à Constituição, cogitaram depô-lo e apoiaram a tomada de posse por Floriano. Outros, porém, como o general João Nepomuceno de Medeiros Mallet, haviam apoiado o presidente. (MCCANN, 2009, p. 51). Temendo uma guerra civil ou a derrota, Deodoro renunciou, deixando para o vice-presidente Floriano Peixoto o desafio de resolver a crise. Apesar de parecer, à primeira vista, que a sucessão respeitava a constituição recém-promulgada, nela se previam novas eleições no caso de o presidente não ter completado dois anos de mandato. (MCCANN, 2009, p. 49). 24 4 O GOVERNO DO MARECHAL FLORIANO PEIXOTO De acordo com Arruda e Piletti (2004, p. 319): No governo, Floriano premiou Custódio de Melo com o Ministério da Marinha e reabriu o Congresso. [...] Colocou políticos paulistas em altos postos. Com o apoio [...] paulista e da população carioca, governou de forma autoritária e atraiu contra si diversos setores políticos e militares. O primeiro e principal problema da presidência de Floriano Peixoto foi a carência de legalidade. Para manter-se no cargo, o vice-presidente manteve este título, apenas oficialmente. Nos estados em que se exigiram novas eleições, os governos foram derrubados por golpes locais, ocasionando várias lutas pelo poder. Nas Forças Armadas e fora delas muitos pediam eleições para legitimar o regime. Dentre eles, a maioria havia perdido seus cargos na renúncia de Deodoro. (MCCANN, 2009, p. 50). Floriano não convocou nova eleição e permaneceu no firme propósito de concluir o mandato do presidente renunciante. Alegava que a lei só se aplicava aos presidentes eleitos diretamente pelo povo. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 381). Chegou-se a planejar um golpe de Estado, a ocorrer em 1º de abril de 1892, o que não aconteceu. Mas treze oficiais-generais das duas Forças Armadas assinaram um manifesto pedindo a Floriano a realização das eleições. O vicepresidente acusou-os de incitar a desordem e descumprir seus deveres de “defender a honra da Pátria”, afastou-os da ativa e mandou prendê-los. Altos oficiais, congressistas, jornalistas e outros adversários também foram presos. Alguns foram desterrados em Tabatinga, na remota Amazônia. (MCCANN, 2009, p. 50). Desta forma, Floriano dava o tom do modo como manteria o novo regime, enfrentando rancor, ressentimentos e uma guerra civil que quase liquidou a frota da Armada e derramou muito sangue nos estados do Sul. (MCCANN, 2009, p. 51). 4.1 A REVOLTA DA ARMADA E A REVOLTA FERDERALISTA A insistência de Floriano em depor todos os presidentes de estados que apoiaram Deodoro na crise de novembro do ano anterior desencadeou uma onda de violência pelo Brasil. No Rio Grande do Sul, os ex-monarquistas – agora o Partido Federalista, liderados por Gaspar Silveira Martins, voltaram-se contra os 25 republicanos de Júlio de Castilhos. Nessa situação, unidades do Exército se posicionaram de ambos os lados, com a maioria apoiando os republicanos, aliados do vice-presidente. O conflito logo se espalhou pelos outros dois estados da região Sul. (MCCANN, 2009, p. 51). De acordo com Koshiba e Pereira (2003, p. 382), “a inabalável firmeza de Floriano frustrou os sonhos do contra-almirante Custódio de Melo, que ambicionava a presidência”. [...] Em setembro de 1893, o almirante Custódio de Melo, que havia se afastado do governo por se considerar injustiçado, encabeçou mais uma rebelião, a Revolta da Armada. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 319). E entre 1893 e 1895, partes do Exército e da Armada, no Rio de Janeiro, se enfrentaram em um conflito que se vinculou à guerra civil meridional. Apesar das forças que estiveram envolvidas, as lutas pareceram mais “rixas em grande escala do que uma guerra convencional”, em que os opositores se acusavam de traidores da Pátria e reservavam aos prisioneiros a degola. Alguns dos oficiais que apoiaram Deodoro na crise que culminou com sua renúncia, e não foram presos por Floriano, como o coronel Antônio Carlos da Silva Piragibe, lutaram ao lado dos rebeldes federalistas, uma vez que haviam sido expulsos do Exército. (MCCANN, 2009, p. 51). Quando Floriano declarou seu apoio a Júlio de Castilhos na disputa gaúcha pelo poder, a questão tomou proporções nacionais. Além disso, mesmo que os rebeldes estivessem contra Castilhos, e não contra Floriano ou a República, pegavam em armas contra unidades regulares do Exército. (MCCANN, 2009, p. 52). Os acontecimentos da guerra civil deixariam marcas no Exército, sentidas nas primeiras décadas do século XX. A coesão dos oficiais foi seriamente afetada em razão dos ressentimentos deixados pela guerra. “Os federalistas foram chamados de infames inimigos da República” em razão dos cercos a Bagé e à Lapa e da contratação de mercenários estrangeiros para invadir a Pátria, sob o pretexto de uma guerra civil. Mas os dois lados foram cruéis. A mutilação dos corpos de Gumercindo Saraiva e Saldanha da Gama e as execuções de prisioneiros comprovam a carnificina da “mais cruel guerra civil brasileira”. (MCCANN, 2009, p. 52). Floriano, o Marechal de Ferro, não foi generoso na vitória. Do mesmo modo agiram seus comandantes, “inebriados pela vitória”. Todos passaram a se 26 considerar “os monopolizadores do ideal republicano e do patriotismo”. Ao lutar com “unhas e dentes pela Pátria”, o vice-presidente, para os brasileiros, personificou o nacionalismo. Entretanto, sua sobrevivência no cargo se deveu, em parte, ao apoio dos Estados Unidos da América, conseguido pelo embaixador brasileiro em Washington – Salvador de Mendonça, e que forneceu “crucial apoio naval contra a Armada rebelde”. (MCCANN, 2009, p. 52). McCann (2009, p. 54) destaca a influência estrangeira dos comandantes de marinha presentes na baía da Guanabara, na ocasião da revolta da Armada. Apesar de terem dito ao almirante Custódio que não tolerariam qualquer ataque à capital e, com isso, terem convencido o governo brasileiro a retirar baterias de costa posicionadas contra os rebeldes, negaram a entrada de navios de suprimento para Floriano. O vice-presidente, por sua vez, rechaçou as intenções de desembarque de tropas estrangeiras para proteger seus cidadãos e considerou que os oficiais estrangeiros, principalmente os britânicos, estavam favoráveis a Custódio. Os estadunidenses, porém, agiram de forma diferente. Reconheceram imediatamente o regime republicano, apesar da consideração que o presidente Benjamin Harrison e aquela nação tinham por D. Pedro II. Consideravam que a inexistência de eleições comprometia a natureza democrática do regime. Mas, apesar das críticas, viam-no como mais vantajoso aos seus interesses do que o Império que o antecedeu. Ademais, um tratado de reciprocidade celebrado por Deodoro e aceito por Floriano, entre os dois países, fazia parte de uma estratégia de aproximação. Como nenhum outro estado sul-americano, o Brasil via o Panamericanismo e a Doutrina Monroe como gesto de boa vontade de uma ex-colônia congênere e não como ameaça imperialista. (MCCANN, 2009, p. 54). McCann (2009, p. 55) ressalta que Marinha e Exército estavam afastados. Os oficiais da Marinha desfrutavam de prestígio durante o Império e no novo regime sentiam-se em posição inferior quanto a promoções, remunerações e cargos políticos. A disputa pela vice-presidência, com o general Floriano de um lado e o almirante Eduardo Wandenkolk do outro, caracterizou a cisão. Além disso, Floriano devia, em parte, a renúncia de Deodoro à Revolta da Armada liderada pelo almirante Custódio de Mello. Mas este não foi recompensado com nenhuma parcela do poder que ambicionava. No aspecto material, porém, não havia motivo para frustrações pela Força Naval. O Brasil possuía bom número de belonaves de aço, sendo considerado um dos poucos países com armada moderna. 27 A Revolta da Armada teve início em 6 de setembro de 1893, com a tomada de quinze navios de guerra e nove embarcações comerciais e com a tentativa frustrada de cortar o acesso à cidade do Rio de Janeiro pela Estrada de Ferro Central do Brasil. O almirante Custódio de Mello obteve apoio dos financistas importantes da capital, uma vez que foram prejudicados por reformas florianistas no mercado acionário e nos bancos. Tanto Custódio quanto Wandenkolk tinham laços de amizade com esses financistas. Estes, por sua vez, possuíam laços com os capitalistas europeus, onde foram arrecadar fundos. (MCCANN, 2009, p. 56). Os revoltosos fizeram uma demonstração de fogos, sem causar muitos danos. Floriano, ao contrário da revolta de 1891, sentiu-se com os brios feridos pelo ataque e por ter perdido sua frota, um depósito de munição no interior da baía e a ilha do Governador. Mas o presidente não podia contar com tropas situadas em outras províncias, devido à falta de estradas e ferrovias. Observadores estrangeiros viam Custódio em vantagem. (MCCANN, 2009, p. 56). Custódio alegou defesa à Constituição e ao governo civil, contra o militarismo, para justificar sua rebelião. Também criticou o veto de Floriano a um projeto de lei que encerraria seu mandato em novembro de 1894, sem possibilidade de reeleição, que já era proibida pela Constituição, acusando-o de pretender instaurar uma ditadura. Se o intento de Custódio era impedir o governo autocrático, não teve êxito. Floriano decretou lei marcial, prendeu supostos opositores, censurou a imprensa e o telégrafo, restringiu as movimentações internas pelo território e suspendeu as eleições parlamentares de outubro. (MCCANN, 2009, p. 56). A partir de então, no Rio de Janeiro, oficiais do Exército recrutaram membros de clubes republicanos e treinaram batalhões patrióticos. Os republicanos mais exaltados - os Jacobinos - deram tom patriótico à luta contra os revoltosos e relacionaram-na aos imigrantes portugueses. A relação dos rebeldes com os capitalistas europeus serviu de material para propaganda de instigação da opinião pública contra o movimento rebelde e para obter maior apoio dos Estados Unidos, sempre atentos às investidas do Velho Continente na América. (MCCANN, 2009, p. 57). Apesar de a situação econômica ter sido agravada pelo aumento de impostos, dias depois de eclodir o movimento, o povo, depois de breve manifestação abafada pela polícia, pareceu ter associado tal situação à revolta. Teria identificado os rebeldes como gente da elite, apoiada por interesses estrangeiros. É possível, 28 também, que Floriano tenha conquistado a simpatia do povo carioca com seu jeito simples, postura nacionalista e por ter aumentado os empregos públicos. (MCCANN, 2009, p. 57). A vantagem inicial que Custódio aparentemente estabelecera, algum tempo depois, foi reduzida pela chegada à baía da Guanabara de uma flotilha estadunidense de doze navios. Washington levou em conta o favoritismo britânico pelos rebeldes e as tensões que vivia com Londres naquele momento. Mais uma vez a atuação do ministro Salvador de Mendonça foi crucial para a obtenção do apoio, desta vez reforçado pelo capitalista norte-americano Charles Flint, que foi determinante ao obter para sua frota crédito de investidor britânico, que também apoiou os revoltosos no Brasil. (MCCANN, 2009, p. 58). O autor destaca: O governo Cleveland foi além de facilitar a formação da frota de Flint para demonstrar seu apoio a Floriano. Despachou para o Rio, nas palavras do secretário adjunto da Marinha, William McAdoo, “a mais poderosa frota que já representou nossa bandeira no exterior”. Os cinco grandes cruzadores tinham mais poder de fogo e de manobra que os navios rebeldes e estrangeiros na baía de Guanabara. (MCCANN, 2009, p. 59). O comandante estadunidense na baía, almirante Andrew Benham, serviu de mediador do conflito. Os rebeldes impuseram, como condição para cessar a luta, a renúncia de Floriano e a eleição de um presidente civil. As frotas de Flint e da Marinha dos Estados Unidos arrefeceram o ímpeto revoltoso no Rio e em Santa Catarina. Diante disto, Floriano tornou o Quatro de Julho feriado nacional e o Congresso mandou cunhar moeda com as efígies de Floriano e Cleveland. Além disso, cidades de fronteira em Santa Catarina e na Amazônia foram batizadas de Clevelândia. “Os alicerces da aliança tácita da década seguinte estavam firmemente assentados”. Mas o marechal marcou eleições para 1º de março do ano seguinte, sendo eleito Prudente de Morais. (MCCANN, 2009, p. 58). A Revolta da Armada terminou em abril de 1894, mas a Revolução Federalista se prolongaria até agosto de 1895, quando, já sob a presidência de Prudente de Morais, um acordo colocaria fim ao conflito. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 319). Floriano, exausto, passou o cargo para Prudente de Morais e, pouco depois, em junho de 1895, faleceu. Antes, porém, influenciou grupos de jovens republicanos: “Dizem e repetem que a República está consolidada e não corre perigo. Não vos 29 fieis nisto nem deixeis apanhar de surpresa. O fermento da restauração agita-se em uma ação lenta, mas contínua e surda. Alerta, pois [...]”.(MCCANN, 2009, p. 60). Essas palavras exaltaram os alunos da Escola Militar no Rio de Janeiro, que passaram a manifestar publicamente, em arruaças, insultos ao seu comandante antiflorianista. Depois da morte de Floriano, estudantes militares, tanto oficiais quanto cadetes, passaram a se considerar os mais puros e patriotas veículos da salvação nacional. Esta postura contrastou com a divergência na eleição de Deodoro em 1891. Naquela ocasião, oficiais ocuparam as galerias do Congresso, para intimidar os parlamentares a votar no marechal, enquanto os alunos estavam dispostos a pegar em armas para que os congressistas tivessem liberdade de escolha. (MCCANN, 2009, p. 60). A mudança de postura dos alunos se explica pelas diferenças entre os dois generais. Se para Deodoro a República era uma vingança pelos ultrajes à honra do Exército, para Floriano era uma nova técnica de governo que deveria ser imposta ao Brasil. Então, para os estudantes militares, “Floriano Peixoto personificava a causa republicana”. Na Revolta da Armada, em 1893, a Escola Militar apoiou o governo com oficiais para treinar batalhões patrióticos, combatentes, mensageiros e escoltas. (MCCANN, 2009, p. 60). 30 5 A GUERRA DOS CANUDOS 5.1 O GOVERNO DE PRUDENTE DE MORAIS E O MILITARES Em novembro de 1894, o presidente eleito Prudente de Morais assumiu o cargo, caracterizando o retorno do poder à elite agrária e a perda gradual de influência da classe média urbana. (MCCANN, 2009, p. 61). Fazendeiro paulista, [Prudente de Morais] procurou atingir dois objetivos: recuperar a economia, que ainda sofria consequências do Encilhamento [de Deodoro da Fonseca] e pacificar o Sul, anistiando os revoltosos da Revolução Federalista. Teve pela frente, porém, a Guerra de Canudos. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 323). Nesse contexto, os alunos da Escola Militar da Praia Vermelha, que viveram os anos anteriores envolvidos em grande ativismo político, sentiam a frustração da rotina. Não demorou a haver episódios de indisciplina. Em janeiro de 1895, o comandante, general Mendes Ouriques, que era antiflorianista, precisou expulsar oficiais alunos diante de uma crescente onda de insubordinação. Mas diante disso, os estudantes manifestaram-se na imprensa, contra as autoridades, e nas janelas da escola, com vaias ao comandante e ao governo e vivas a Floriano. Houve novas expulsões e a ocupação do prédio por forças leais ao governo, para coibir as manifestações. A situação ficou tão grave que não houve aulas naquele ano, o corpo docente foi disperso, os alunos foram expulsos e os oficiais alunos foram presos. (MCCANN, 2009, p. 61). Apesar de a escola ter sido renovada no seu comando e nos corpos, novas revoltas ocorreriam, em 1897 e 1904. Isso indicava que os estudantes permaneciam com a tradição linha-dura florianista, que teve seu componente emocional exaltado com a morte do marechal, em junho de 1895. (MCCANN, 2009, p. 61). Prudente de Morais buscou conduzir a guerra civil no Sul a um fim negociado. Anistiou os rebeldes, readmitiu os oficiais, inclusive generais, que Floriano expulsara e, para enfraquecer os arquirrepublicanos do Exército, impulsionou as carreiras dos antiflorianistas. (MCCANN, 2009, p. 62). Com isso, o presidente queria diminuir o peso político do Exército, encontrando apoio de oficiais, como o ministro da Guerra, general Bernardo Vasques, que pensava ser necessário construir uma força profissional, capaz de manter a ordem e a soberania, com profissionais apolíticos. Mas, na visão do general florianista 31 Francisco de Paula Argollo, a missão do Exército era sustentar “as instituições conquistadas pelo movimento patriótico de 15 de novembro de 1889”. Por este pensamento, o general foi demitido do cargo de ministro da Guerra, por Prudente de Morais. (MCCANN, 2009, p. 62). Entretanto, os generais Vasques e Argollo concordavam que o Exército tinha de ser modernizado para ser eficaz. E a base dessa modernização seria um EstadoMaior do Exército inspirado no alemão, para conectar os vários setores de sua administração, e a criação de uma seção de quartel-mestre, cuja falta seria sentida nos conflitos em Canudos. O general Vasques alertou, ainda, para a necessidade de se convencer a população do dever de prestar à Pátria o serviço militar. Aludiu que um exército pequeno atendia ao país em tempo de paz. Mas tinha de ser bem organizado, treinado e equipado para que, com rápida mobilização, com base em uma reserva formada por meio de um serviço militar obrigatório, expandisse sua capacidade. (MCCANN, 2009, p. 62). Vasques também destacou a decadência da educação militar. As escolas eram numerosas, com programas copiados de outras, excessivamente teóricos e afastados da instrução militar e do convívio com a tropa. Para tentar iniciar a urgente reforma, o governo enviou à Europa o general-de-brigada João Vicente Leite de Castro, para inteirar-se das instalações e dos armamentos e manobras em uso. Resultaram modificações que incluíram novo fardamento e renovações no corpo de transporte. (MCCANN, 2009, p. 63). 5.2 O CONFLITO NO SERTÃO No final do século XIX e início do século XX, a expansão do capitalismo provocou importantes transformações em todo o mundo. Por toda parte, as antigas formas de convívio social sofreram o impacto da modernização. Como reação, em várias regiões do mundo eclodiram movimentos de resistência às mudanças nas sociedades rurais, nas quais as relações sociais continuavam baseadas nos laços de fidelidade pessoal. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 391). McCann (2009, p. 63), por sua vez, afirma que o tenso ambiente político que predominou na década de 1890 fez com que uma “inofensiva colônia religiosa” no interior da Bahia fosse considerada pelas autoridades federais “uma horda monarquista pronta para atacar”. 32 Naquele momento, o Exército vivia a desordem dos primeiros anos da República e tentava se reorganizar. Nos anos que se seguiram ao conflito, as lembranças de Canudos perturbariam muitos soldados que lá estiveram e deixariam “uma cicatriz na psique institucional”. Cinco mil soldados pereceram na guerra, em menos de um ano. (MCCANN, 2009, p. 63). As oligarquias da região foram [...] afetadas por [...] migração em massa de sertanejos para Canudos. Os latifundiários porque perdiam trabalhadores. Os coronéis porque, além de trabalhadores, perdiam eleitores e influência política sobre a população local. Além disso, os ataques de Antônio Conselheiro à República incomodavam as autoridades da Bahia e, sobretudo, do Rio de Janeiro. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 325). McCann destaca (2009, p. 64) que o conflito teve origem nos desentendimentos entre as autoridades políticas e religiosas da região e o líder do reduto religioso, Antônio Maciel, o Conselheiro. Tendo seus interesses contrariados pela existência de Canudos, os políticos locais “apelaram ao poder militar do Estado”. A intervenção federal contou, inicialmente, com três expedições “sucessivamente maiores”, que foram derrotadas pelos sertanejos. No Rio de Janeiro, os republicanos julgaram tratar-se de uma “grande conspiração monarquista”, cujo centro era Canudos. O governo enviou, então, uma quarta expedição, mais poderosa, que “pulverizou a cidadela do sertão”. Nas palavras de McCan: Foi um momento deplorável para o Exército brasileiro. Justamente quando a instituição estava prestes a passar por uma grande reestruturação, a diminuir seu papel ativo na política e a curar feridas da guerra civil, quase por acaso, e com certeza desnecessariamente, o mundo místico e o político travaram no Brasil uma luta mortal”. (MCCANN, 2009, p. 64). A derrota na terceira expedição causou grande repercussão e acusações do Clube Militar ao vice-presidente Manuel Vitoriano, que se defendeu responsabilizando o “herói morto” - o coronel Moreira César, comandante morto na terceira expedição - por não ter levado mais tropas, que lhes teriam sido disponibilizadas. Logo houve boatos na imprensa de que o movimento baiano de Conselheiro era restaurador, sendo um centro do movimento monarquista. Entretanto, “é possível que os florianistas tenham usado a ameaça monarquista como pretexto para ações destinadas a desmoralizar o governo, em prelúdio para imporem uma ditadura bonapartista”. (MCCANN, 2009, p. 77). 33 Dentre os conspiradores, havia o ajudante-general do Exército, general-dedivisão Bibiano S. Macedo de Fontoura Costallat, aliado ao barão de Jeremoabo. “Talvez os laços com os proprietários de terras da região, como o barão, tenham sido o que levou os florianistas a envolver a honra do Exército nessa luta [...]”, numa onda de individualismo e irracionalidade. (MCCANN, 2009, p. 77). Afastado da presidência até aquele momento, Prudente de Morais saiu-se bem da situação por poder afirmar que nada tivera com a “malsinada expedição”. Para acalmar seus críticos, convidou o florianista general Francisco de Paula Argollo para ser o ministro da Guerra. Aquiesceu também com a escolha de outro “ferrenho florianista” para o comando de uma quarta expedição a Canudos, o general Arthur Oscar de Andrade Guimarães. Mas os desentendimentos entre Prudente e Argollo não tardaram. O presidente reclamou de receber informes de assuntos do governo depois da imprensa e, com isso, aceitou a demissão do ministro. Para seu lugar, chamou um velho adversário do florianismo, o marechal Carlos Machado Bittencourt, que era ministro do Superior Tribunal Militar. (MCCANN, 2009, p. 78). Bittencourt garantiu o controle sobre a administração do Exército por meio de transferências. O florianista general Costallat foi substituído do importante cargo de ajudante-general pelo general João Thomaz Cantuária, que comandava a 3ª Região Militar, em Salvador. O novo ministro contou também com o general João Nepomuceno de Medeiros Mallet, que havia sido expulso por Floriano e anistiado por Prudente em 1895. “Prova da extrema turbulência de 1897 foi o fato de que, em onze meses, haveria quatro ministros da Guerra e três ajudantes-generais”. (MCCANN, 2009, p. 78). Bittencourt e Cantuária adotaram medidas para enfraquecer os florianistas. Desarmaram a Escola Militar, enviando 50 mil cartuchos de Mauser para os depósitos no Sul, sob o pretexto de proteger a fronteira de uma revolta que ocorria no Uruguai. Porém, em 27 de maio de 1897, os estudantes resistiram à ordem aprisionando seu comandante. O coronel Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro e muito respeitado por suas atitudes profissionais, demoveu a ideia de resistir dos estudantes. Treze oficiais e 321 praças de pré foram expulsos, além de 356 estudantes da escola de Fortaleza, que declararam solidariedade aos colegas, e 117 alunos da Escola de Sargentos, que foi fechada no final do ano, por supostamente não atender às expectativas do governo. (MCCANN, 2009, p. 79). 34 Para formar a tropa do general Arthur Oscar, o governo, contrariando a Constituição de 1891, realizou o recrutamento forçado. “Policiais [...] limpavam as ruas e praças dos vadios e desordeiros e os jogavam no Exército”. Foram, então, transformados em “voluntários”. Os civis que lutaram na guerra civil nos batalhões patrióticos, mesmo oferecendo seus préstimos, foram dispensados, pois o presidente não confiava neles. “E o Exército não queria parecer dependente [...] e preferia vingar a morte de Moreira César por conta própria e recorrer ao recrutamento compulsório [...]”. As unidades do Exército, então, tinham excesso de oficiais de baixa patente, alferes, que eram soldados na guerra civil e haviam sido promovidos. Para compensar o excesso de oficiais, havia 8125 soldados a menos que o número autorizado. Nessas circunstâncias, até presos da justiça foram recrutados. (MCCANN, 2009, p. 80). Não há dúvida que essa selvageria impiedosa manchou a honra do Exército com sangue e expôs ao escárnio a “santidade” da causa pela qual lutava. (MCCANN, 2009, p. 96). O próprio ministro da Guerra seguiu para Monte Santo, de onde providenciou a remessa regular de suprimentos para as tropas em Canudos. “Bittencourt transmudou um conflito enorme em uma campanha regular”. Antônio Conselheiro morreu de causas naturais, no altar da igreja, e, tempos depois, seu reduto foi destruído. (MCCANN, 2009, p. 97). “O Exército, vitorioso, estava em frangalhos”. 42% das praças e 32% dos oficiais estiveram na campanha. Estima-se que morreram 5000 militares. 4193 foram feridos. Considerando-se as perdas de ambos os lados, sem números exatos, não houve nada igual na história do Brasil, desde então. (MCCANN, 2009, p. 99). Em 5 de novembro, o presidente Prudente e o vice-presidente Manuel Vitoriano reuniram-se com várias autoridades militares e parlamentares, no Arsenal de Guerra do Rio, para a recepção das tropas vindas de Canudos, a comando do general Barbosa. Durante o evento, o soldado Marcelino Bispo dos Santos, ferido no conflito, lançou-se contra Prudente, empunhando um revólver. Foi contido pelos que o circundavam, mas sacou uma faca e feriu mortalmente o marechal Bittencourt. O soldado fora incitado por Jacobinos, que planejavam um golpe para implantar um governo radical. O editor do jornal O Jacobino aguardava o desfecho da ação, reunido com oficiais conspiradores no quartel do 1º Regimento de Cavalaria. (MCCANN, 2009, p. 100). 35 Prudente saiu com prestígio do episódio. A tentativa de assassiná-lo partira de uma conspiração na cúpula. O vice-presidente Manuel Vitorino e o ex-líder do governo no Congresso estavam envolvidos, além de um grupo de oficiais que participou da revolta na Escola Militar em maio de 1897 e outros dois que haviam conspirado no Clube Militar. “Congressistas e oficiais foram presos, o Clube Militar foi fechado, e políticos cerraram fileira em torno do presidente”. O atentado não teve êxito e serviu para fortalecer Prudente e terminar com qualquer possibilidade de os florianistas usarem a vitória em Canudos para enfraquecê-lo. Além disso, permitiu a realização de eleições em 1898 e a transmissão do cargo para Campos Sales, em novembro. (MCCANN, 2009, p. 100). Também os generais antiflorianistas, como João Nepomuceno de Medeiros Mallet, consolidaram seu poder no Alto-Comando do Exército e puderam retirar de cena oficiais inconvenientes. Mallet seria ministro da Guerra no governo seguinte, dando início à lenta reconstrução do Exército, enquanto o general Arthur Oscar aguardaria, em vão, ser recompensado pela República. (MCCANN, 2009, p. 101). Se alguns esperavam que Canudos ensejasse uma República dominada pelos militares, o resultado foi oposto. O desastre reforçou o controle dos oficiais que almejavam reformar e profissionalizar o corpo de oficiais e dos políticos civis que desejavam reduzir a influência militar sobre o governo. (MCCANN, 2009, P. 101). 36 6 O EXÉRCITO E O BRASIL NOS PRIMEIROS ANOS DO SÉCULO XX 6.1 A SITUAÇÃO CLAMA POR REFORMAS Com o Exército em ruínas depois do conflito em Canudos, os líderes militares ressentiam-se da falta de recursos, até para pequenos reparos. Percebia-se o desinteresse da sociedade civil brasileira pela questão. Mas alguns episódios como a crise do Acre, a ameaça intervencionista dos Estados Unidos, o incidente Panther [desembarque não autorizado de uma canhoneira alemã, em Itajaí, em 1905, à procura de um desertor alemão] e o crescente militarismo mundial “geraram demandas por reforma”. Mas a falta de continuidade nos trabalhos dos sucessivos ministros da Guerra, que em parte foi um reflexo da economia política brasileira, tornou o processo moroso durante a República Velha. (MCCANN, 2009, p. 102). A economia nacional não era integrada. Cada região possuía sua economia, exportando as produções para o exterior, em um contexto de sistema de transportes inter-regionais carente, que também dificultava “a coesão política e a atuação militar”. A relevância política estava diretamente condicionada pela economia local. O Nordeste declinara com a perda de mercados externos do açúcar para a concorrência caribenha. A Amazônia vivia o auge da extração da borracha, que colapsaria após 1912. O Sul começava a se destacar, principalmente o Rio Grande do Sul, orientando sua produção mais modesta, porém constante, para o mercado nacional. Paraná e Santa Catarina exportavam mate para a bacia do Prata e países andinos. A maior parte das exportações brasileiras provinha dos estados cafeeiros do Centro-Sul, que viveriam “o auge do controle do governo nacional pela elite cafeicultora paulista”. (MCCANN, 2009, p. 103). A guerra civil de 1893-95 e especialmente o desastre de Canudos, em 1897, extinguiram a capacidade das Forças Armadas para desempenhar um papel moderador que, segundo alguns, haviam herdado ao derrubar a Monarquia. (MCCANN, 2009, p. 103). Findo o mandato de Prudente de Morais, em 1898, as oligarquias agrárias dominavam o cenário político. Os grandes proprietários conseguiam até impedir que seus peões fossem convocados pela lei do serviço militar obrigatório. O Brasil abastecia 75% do mercado mundial de café. Mas o aumento da oferta mundial trouxe queda constante dos preços e crise ao setor. O governo desvalorizou a moeda para manter os preços competitivos. Com isso, a importação de manufaturas 37 ficou mais cara e diminuiu, junto com as receitas do governo, que dependia muito da arrecadação de impostos sobre importados. Havia também uma pesada dívida externa, posteriormente negociada, cujos juros oneravam as contas. Em 1900, metade dos bancos brasileiros faliu. (MCCANN, 2009, p. 103). Nesse contexto, a visão da oligarquia agrária, na defesa dos próprios interesses, era reduzir a indústria e infraestrutura nacionais ao mínimo necessário para atender a economia agrícola. A população era vista como fonte de trabalho de baixo custo. Não havia, pela elite agrária, interesse pelo ensino público. (MCCANN, 2009, p. 104). Os vários planos de reforma militar [...] seriam frustrados pela visão limitada das oligarquias estaduais, o que [...] acabou transformando os oficiais mais impacientes em reformistas revolucionários. (MCCANN, 2009, p. 104). Politicamente, “o que parecia uma democracia representativa constitucional era, na verdade, o governo por uma aliança oligárquica”. Nesse sistema de participação política limitada, cabia às Forças Armadas manter a lei e a ordem. Isso, porém, afastava-se dos “ideais de profissionalismo” trazidos da Europa por oficiais, o que viria a contribuir para a rebelião. Mas nos anos seguintes, o presidente Campos Sales estabeleceria a “Política dos Governadores”, com autonomia dos estados, e manteria o Exército leal, tendo Mallet à frente, com algumas pequenas revoltas. (MCCANN, 2009, p. 104). Campos Sales (1898-1902), paulista e [...] fazendeiro, acreditava que os problemas econômicos do Brasil estavam na moeda desvalorizada. Procurando valorizá-la, renegociou a dívida externa [...]. Mas acabou aceitando pesadas exigências dos banqueiros internacionais. Em seu governo ainda teve início a política dos governadores. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 323). 6.2 A VIDA MILITAR NAQUELES TEMPOS A lei do serviço militar obrigatório, de 1874, não surtira efeito. Nem as juntas de alistamentos nem os registros civis eram levados a sério pelos cidadãos. A burguesia detestava a vida na caserna e a oligarquia agrícola queria seus peões longe do Exército. O alistamento forçado que vigorara desde o século XIX deixara péssima impressão. Os “voluntários” provinham dos desempregados, dos 38 interessados em teto e comida e dos capturados pela polícia. Predominavam o analfabetismo e doenças, como malária, subnutrição. (MCCANN, 2009, p. 110). A disciplina, baseada nos costumes e num misto de regulamentos antigos, e não num código estabelecido, era “brutal”. Confundia-se o “dever de punir com o direito de castigar”. As surras com espadas ou varas flexíveis, diante da tropa, eram usuais. Aplicavam-se também o marche-marche (andar por horas sobre juncos de telhas), a solitária a pão e água por semanas, a palmatória, o estaqueamento com amarras ao solo, a surras. (MCCANN, 2009, p. 111). Eram comuns os suicídios e a rebelião da tropa contra o tratamento brutal. Mas “a brutalidade era o único modo que os oficiais concebiam para transformar em soldados aqueles deploráveis espécimes humanos”. Os alojamentos eram ruins, em quartéis improvisados, sem adequação sanitária. A alimentação também era precária e motivava reclamações e rebeliões. (MCCANN, 2009, p. 112). Os soldos e gratificações se prestavam apenas para as necessidades mais básicas. A variação excessiva de preços, decorrente de inflação e crises frequentes, depreciava os soldos, que se mantinham comparativamente constantes. “A inflação e a agitação resultantes sem dúvida afetaram o Exército e formaram um pano de fundo contra o qual devemos analisar as várias revoltas e conspirações militares”. (MCCANN, 2009, p. 114). O ensino público era subdesenvolvido. A prioridade dos oficiais era “ensinar aos soldados as habilidades básicas de leitura e matemática elementar”. A assistência à saúde dos dependentes não era prioritária. Ao menos estes recebiam remédios. (MCCANN, 2009, p. 117). McCann (2009, p. 118) ressalta que o Exército participou do esforço brasileiro para trazer modernos métodos de análise e pesquisa. Um laboratório de microscopia e bacteriologia, implantado no Rio de Janeiro em 1896, foi importante para entender a origem de um surto de peste bubônica, trazida por imigrantes. Uma equipe do laboratório, que também realizava exames de urina e radiológicos, conduziu pesquisas pioneiras sobre as doenças mais comuns da tropa. Porém, o Corpo de Saúde do Exército era pequeno e “deixava a desejar”. As classes média e alta, brancas e urbanas não queriam ver seus filhos no serviço militar como praças. “Mostravam mais entusiasmo pela carreira de oficial”. Além disso, a educação gratuita atraía jovens para o corpo de oficiais. 39 A disciplina dispensada aos estudantes candidatos a oficial foi mais branda que a empregada aos soldados. Eram comuns as anistias, após as expulsões, autorizando o reingresso nas escolas. Assim ocorreu em 1897 e 1904. Isso criou um corpo discente heterogêneo, com alunos contando entre 15 e 45 anos de idade. As anistias decorrentes da rebelião de 1904 contribuiriam para a disposição dos estudantes militares a participar de revoltas, como em 1922 e 1924, e para a agitação que culminou com a Revolução de 1930. (MCCANN, 2009, p. 121). Toda essa situação vigente no Exército na virada do século XX indicava a necessidade urgente de reformas. As atenções de uma parte de seus líderes estariam voltadas para “diversos projetos de remodelação”. (MCCANN, 2009, p. 121). 6.3 O MINISTÉRIO MALLET E OS ESFORÇOS PARA REFORMAR O EXÉRCITO O general gaúcho João Nepomuceno de Medeiros Mallet participou da Guerra do Paraguai, viu a queda da Monarquia e foi governador do Ceará. “Sua oposição a Floriano acarretou sua expulsão do Exército. Anistiado em 1895, participou da regulamentação do novo Estado-Maior do Exército (EME) e do serviço de quartelmestre”. Foi quartel-mestre-general, ajudante-general e, durante o governo de Campos Sales, ministro da Guerra, inaugurando uma era de “recomeço”, por não ter participado diretamente das guerras Civil e de Canudos. (MCCANN, 2009, p. 106). Segundo McCann, (2009, p. 107) Mallet nomeou para o recém-criado EME o seu antecessor na pasta da Guerra, o general João Thomaz Cantuária. Incumbiu-lhe de dar corpo a ideias de: Mudar a composição das unidades, centralizar nomeações, reorganizar a educação militar, enfatizar a importância do treinamento de tiro ao alvo, executar manobras rotineiramente, regularizar o planejamento, melhorar os critérios de promoção e elevar o nível intelectual do corpo de oficiais. Além disso, os quartéis e outras instalações do Exército precisavam ser remodelados e as unidades careciam de armamento moderno. (MCCANN, 2009, p. 107). Mas o governo de Campos Sales (1898-1902) impunha grandes restrições monetárias “em resposta à vultuosa dívida externa brasileira”. Assim, foi impossível implementar, de imediato, o que ficou conhecido como o “Projeto Mallet”, que seria 40 “a base intelectual para as iniciativas de reforma até a Primeira Guerra Mundial”. (MCCANN, 2009, p. 107). Provavelmente a maior contribuição de Mallet para o pensamento militar brasileiro tenha sido sua insistência na necessidade de constantes manobras de treinamento para criar um verdadeiro exército. (MCCANN, 2009, P. 110). 41 7 A QUESTÃO DO ACRE A crise que passou a “fermentar” na porção ocidental da Amazônia aumentou a crescente “sensação de insegurança” que marcava o início do século XX. A indústria automobilística fazia crescer a demanda por borracha para pneus. Os interesses se voltaram para a única fonte de borracha natural do mundo. Parte dela provinha do Acre boliviano, reconhecido pelos países fronteiriços em 1867 por meio de um tratado. Mas no documento pairavam dúvidas sobre a demarcação de uma região entre os rios Madeira e Javari, fato que gerou disputas. Em 1900 houvera a entrada no Acre de cerca de 60 mil brasileiros, em grande parte cearenses ávidos por trabalho e terra. (MCCANN, 2009, p. 121). Tardiamente, para garantir sua soberania na área, o governo boliviano estabeleceu uma alfândega em Puerto Alonso (Porto Acre) e passou a cobrar imposto de exportação de 30%. O governo do Amazonas e os barões da borracha brasileiros passaram a apoiar um espanhol, Luís Galvez Rodrigues, num movimento que culminou com a declaração da independência do Acre em 1899. Sua república tinha na bandeira as cores do Brasil, bem como a mesma moeda, códigos, tarifas e língua oficial, e englobava terras dos dois países. (MCCANN, 2009, p. 122). A intenção inicial do governo brasileiro era apoiar os bolivianos na recuperação do território. Galvez era malvisto pelas casas de comércio da borracha em Manaus. Inexistindo na área sistema de comunicações por telégrafo, boatos dos mais absurdos iam de barco em barco. Alguns diziam que os Estados Unidos apoiariam a Bolívia, com interesses alfandegários e territoriais. A viagem do navio estadunidense Wilmington, supostamente sem autorização, pelo rio Amazonas, ao Peru reforçou as suspeitas. A imprensa e a opinião pública se agitaram ao considerarem que o governo brasileiro estava abrindo mão de valioso território brasileiro, cedendo às reivindicações bolivianas. (MCCANN, 2009, p. 122). Em março, Galvez foi preso, agravando essa impressão. A expedição que o depôs foi criticada pela imprensa da região por ter ido de encontro aos interesses nacionais. Mas ao saber que forças bolivianas marchavam para o Acre, o governo brasileiro endureceu sua posição. (MCCANN, 2009, p. 122). O governo vizinho parecia titubear ao propor uma solução envolvendo troca de terras, reconhecendo tacitamente sua incapacidade de reaver o controle. Mas em setembro de 1899 uma expedição militar terrestre boliviana retomou sem 42 resistências Puerto Alonso. Havia cidadãos brasileiros sob o domínio boliviano. A seguir, o governo do Brasil negou à Bolívia permissão para que uma expedição naval armada subisse pelo Amazonas ao Acre. (MCCANN, 2009, p. 123). Nesse contexto, em 1900, o cônsul estadunidense em Belém aconselhou a um sindicato de seu país comprar terras na região para assegurar “a chave do problema [da borracha] e ditar as condições ao resto do mundo”. Corriam boatos do arrendamento de terras acreanas por um sindicado alemão e do interesse francês em construir uma ferrovia ligando a região à Bolívia para livrá-la da dependência da rota brasileira. Em meados de 1900, os bolivianos procuraram Estados Unidos e Inglaterra para obter proteção em troca da cessão de terras produtoras de borracha. Os governos não se envolveram diretamente, mas a Bolívia assinou um contrato com um sindicato anglo-estadunidense que lhe transferia, na prática, a soberania sobre uma região de 200 mil quilômetros quadrados. (MCCANN, 2009, p. 123). Segundo Arruda e Piletti (2004, p. 322), “a Bolívia havia arrendado a exploração do látex daquela área à empresa americana [estadunidense] Bolivian Syndicate”. Durante todo o ano de 1900, a imprensa brasileira criticou a falta de apoio do governo aos acreanos. Quando a notícia do arrendamento da área chegou ao Rio de Janeiro, as críticas viraram “clamor por ação” ante a ameaça das potências mundiais. (MCCANN, 2009, p. 123). Em fins de 1900, as autoridades amazonenses resolveram agir e organizaram uma expedição para atacar Puerto Alonso, que fracassou. Os amazonenses perceberam a necessidade de uma liderança militar. Confiaram o comando de uma nova insurreição a José Plácido de Castro, um agrimensor com treinamento militar. Plácido liderou a Polícia Militar do Amazonas e “voluntários” recrutados à força em Manaus e sublevou os acreanos. (MCCANN, 2009, p. 125). Nesse ínterim, o barão do Rio Branco assumira o ministério das Relações Exteriores. Era defensor da modificação do tratado de 1867, com ampliação das pretensões territoriais brasileiras. Notificou aos bolivianos o fechamento do Amazonas para o comércio e impôs limite à expedição que o presidente José Maria Pando enviara, que incluía a nova área pleiteada pelo Brasil. Para dar garantia ao aviso, o Exército reforçou Corumbá, na fronteira com a Bolívia, “e enviou quatro regimentos de Infantaria e três baterias de Artilharia para o Acre”. Rio Branco blefava para evitar derramamento de sangue e confessou a um amigo: “é preciso 43 que nos mostremos fortes e decididos a tudo. Deus nos livre de uma guerra, desmantelados, empobrecidos como estamos”. (MCCANN, 2009, p. 125). As finanças do governo impuseram redução do efetivo, quase à metade, e a mobilização de tropas era um problema. Muitos dos que já estavam no Norte padeciam com o endêmico beribéri. A Marinha estava despreparada para o transporte fluvial das tropas e foi preciso contratar companhias privadas. Os batalhões se ressentiam da falta de oficiais, muitos eleitos para mandatos legislativos e liberados das obrigações militares. (MCCANN, 2009, p. 125). Dentre os convocados figurava um jovem sargento de 21 anos, do 25º Batalhão de Infantaria, de Porto Alegre. Tratava-se de Getúlio Dornelles Vargas, filho de um cabo veterano da Guerra do Paraguai que chegou ao generalato. (MCCANN, 2009, p. 126). Vargas decidira-se pela carreira das armas. Tentou ingressar na Escola Militar. Ficando na lista de espera, em 1899, precisou alistar-se no 6º Batalhão de Infantaria, em São Borja, de onde seguiu, no ano seguinte, para a escola de Rio Pardo. Porém, em 1902, um incidente disciplinar resultaria na sua expulsão da escola, por ter sido solidário com a expulsão de outros alunos. Voltou às fileiras como soldado e, nessa condição, foi enviado a Corumbá. O sonho de seguir os passos do pai se esvaiu ao deparar-se com a “apatia, desordem e indisciplina” na fronteira. Mais tarde diria à filha: “foi lá que aprendi a conhecer os homens [...]. Nos momentos difíceis e de incerteza é que podemos conhecê-los melhor”. (MCCANN, 2009, p. 126). As negociações conduziriam à assinatura, em 1903, do Tratado de Petrópolis, que reconheceu a posse brasileira do Acre. Para atenuar a perda financeira, Rio Branco incluiu no documento o pagamento de 2 milhões de libras esterlinas à Bolívia e o compromisso de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré, no trecho não navegável do rio Madeira, a fim de escoar a produção boliviana de borracha. (MCCANN, 2009, p. 127). O Exército teve peso decisivo apenas porque os Estados Unidos e a Inglaterra preferiram cruzar os braços enquanto o Brasil comprava a concessão do sindicato anglo-americano e porque a Bolívia era fraca. (MCCANN, 2009, p. 127). A crise com a Bolívia e a ameaça estrangeira ressaltaram a necessidade de melhorar as comunicações com as fronteiras. Em 1890-91, a Engenharia do Exército 44 havia levado linhas telegráficas até Cuiabá. Em 1906 elas chegaram a partes da fronteira com Bolívia e Paraguai. (MCCANN, 2009, p. 127). Candido Mariano da Silva Rondon foi um personagem ativo desse processo, inclusive como chefe. O longevo marechal passaria a maior parte da sua extensa carreira de cinquenta anos “empenhado em projetos ligados a construção telegráfica, mapeamento, abertura de áreas de fronteira e pacificação de povos indígenas recém-contatados”. Os fios e caminhos chegaram a Porto Velho, nova cidade às margens do Madeira e terminal ferroviário. Foram 2250 quilômetros de linhas telegráficas, com 25 estações telegráficas. 51813 quilômetros quadrados tiveram os rios e as principais cabeceiras, cadeias de elevações e savanas mapeados. Pacificaram-se treze tribos indígenas. As equipes de Rondon filmaram e fotografaram as atividades, que eram exibidas nos cinemas das cidades brasileiras para despertar o interesse pela região e pelo Exército. Os filmes também “pautaram um debate entre as elites que contribuiu para a criação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais”, que viria a ser chefiado por Rondon. (MCCANN, 2009, p. 127). McCann, em 2009 (p. 128), afirma que, infelizmente, o telégrafo e a ferrovia somente foram introduzidos na área quando estavam quase obsoletos. O telégrafo logo foi superado pelo rádio e a ferrovia tornou-se inútil com o declínio da exploração da borracha. 45 8. CRISE SOCIAL E REVOLTA NA ESCOLA MILITAR 8.1 O MINISTRO ARGOLLO E A DEFESA DO BRASIL McCann (2009, p. 130) considera que, apesar do furor patriótico ocasionado pela “demonstração de força do Brasil na Amazônia”, os chefes militares mantiveram-se atentos à realidade. O general Argollo, novo ministro da Guerra, observou que “infelizmente, os brasileiros ainda não compreendiam o perigo a que estava exposto o seu território”. Não se podia confiar apenas na diplomacia, sem que esta tivesse força militar para fazer valer seus argumentos e ficasse dependente da “disposição das grandes potências para reconhecer os direitos brasileiros”. Para o Alto-Comando, o serviço militar obrigatório era indispensável. Isso era ressaltado em relatórios ministeriais, ano após ano desde a proclamação da República, em vão. A Constituição de 1891 previa tal condição, mas a lei que a viabilizaria ficaria engavetada até 1908. E isso só ocorreu “graças aos esforços conjuntos de militares e da classe média urbana”, cujos filhos ingressavam na carreira de oficial, emprestando-lhe a visão militar sobre os objetivos e segurança nacionais. (MCCANN, 2009, p. 131). Essa mesma classe média via o país ser controlado pelos coronéis produtores rurais. Suas forças militares limitavam o poder do governo central e, por meio de suas alianças regionais, controlavam-no. “Forças armadas fortes sob o controle da classe média talvez pudessem impor sua visão de Brasil”. A classe média, por sua vez, era pouco afeita à “ação política unificada” e “subordinava-se ao sistema prevalecente”. McCann cita Edgar Carone: “em vez de luta, colaboração; em lugar de ideologia própria, a vaga glorificação do civismo”. (MCCANN, 2009, p. 131). A malfadada revolta da Escola Militar em 1904, com seus débeis murmúrios pela restauração monárquica, também pode ter contribuído para o interesse da classe média em melhorar o Exército. (MCCANN, 2009, p. 131). A rebelião de 1904 preocupou o Alto-Comando com a “dissensão, insubordinação e sectarismo político”. Por isso os generais adotaram medidas para “proteger a coesão e a unidade da instituição” e buscaram “reforçar os laços do Exército com o povo”. (MCCANN, 2009, p. 132). Os líderes do Exército viam o serviço militar obrigatório como parte da reforma da educação militar. Seria parte importante da defesa, mas também um “agente 46 regenerador” que, se generalizado, “fortaleceria o povo física e moralmente; a virilidade, a disciplina e as virtudes cívicas seriam disseminadas”. 8.2 A REVOLTA NA ESCOLA MILITAR Em 1904 a população da capital federal vivia uma agitação decorrente da alta da inflação e do custo de vida, da crise do comércio e dos inconvenientes causados pelas obras de saneamento e modernização. A abertura da avenida Central e da rua da Carioca exigiam desalojar moradores, que eram obrigados a instalar-se em lugares mais distantes. Nesse contexto, a Escola Militar da Praia Vermelha também se fez foco de agitação. (MCCANN, 2009, p. 134). Nessa época, a capital federal passava por uma profunda remodelação. [...] Como resultado, milhares de pessoas ficaram desabrigadas. Era o auge do higienismo, conjunto de ideias que procurava pôr ordem no caos urbano. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 327). A gota d’água para a revolta popular foi a decretação pelo governo da lei da vacinação obrigatória. Em 10 de novembro iniciaram-se arruaças, que foram reprimidas pela polícia montada, durante quatro dias, prendendo manifestantes. Dentre os presos havia alunos militares. A situação se agravou com a multidão montando barricadas, ocupando duas delegacias e se espalhando para os subúrbios próximos. Com a situação descontrolada, o presidente Rodrigues Alves acionou o Exército. (MCCANN, 2009, p. 135). Por quase uma semana, agitações de rua tomaram conta da cidade e tiveram a participação e o apoio até de altos oficiais da Escola Militar da Praia Vermelha. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 399). “Uma aliança de fato formara-se entre positivistas, políticos Jacobinos, monarquistas, líderes sindicais, oficiais militares e alunos da Escola Militar”. Havia alguns meses que os generais Sylvestre Rodrigues da Silva Travassos e Antonio Olympio da Silveira, o tenente-coronel e senador Lauro Sodré e vários outros oficiais conspiravam contra o governo. Naqueles dias, reuniam-se no Clube Militar. A conspiração tinha, porém, ligações com as rebeliões de 1895 e 1897, na Escola Militar, pois vários alunos de então haviam sido anistiados e readmitidos em 1901, na Praia Vermelha. Eles já haviam tentado convencer os alunos, em 1902, a prender 47 o presidente Campos Sales, que visitava a escola. Provavelmente tencionavam instaurar uma ditadura militar, com apoio positivista. (MCCANN, 2009, p. 135). Com o governo em dificuldades diante dos tumultos, os conspiradores resolveram agir. A Escola Preparatória e Tática do Realengo, entretanto, não aderiu porque o agente conspirador foi detido a tempo pelo comandante daquele estabelecimento de ensino, general-de-brigada Hermes da Fonseca. O mesmo não ocorreu na Praia Vermelha. Lá aderiram ao movimento em torno de trezentos alunos que marcharam para o palácio do Catete, decididos a depor o presidente. Mas “estavam sozinhos na revolta”. A guarnição do Forte São João não fora persuadida. (MCCANN, 2009, p. 135). O caminho dos rebeldes foi bloqueado por tropas legalistas, a comando do general-de-brigada Antônio Carlos da Silva Piragibe. Era noite e o enfrentamento se deu na escuridão das ruas que tiveram a iluminação a gás depredada. “Após um tiroteio às cegas, os dois lados bateram em retirada”. Dois líderes rebeldes ficaram feridos: o senador Lauro Sodré e o general Travassos, que faleceu. Mais tarde, a Marinha disparou dois tiros no pátio da Escola Militar para dissuadir os revoltosos. Ao raiar do dia seguinte, tropas a comando do coronel José Caetano de Faria se depararam com os estudantes formados defronte à Escola, dispostos à rendição. (MCCANN, 2009, p. 135). A agitação nas ruas duraria mais um dia. Nas palavras do coronel Inocêncio Serzedelo Correia, um dos conspiradores, o levante visava “à completa renovação da nação [por meio da] destruição da presente ordem e da completa mudança do cenário político”. O propósito era destruir a oligarquia que havia voltado à cena política e implantara a “Política dos Governadores”. Nas palavras de Robert G. Nachman, foi “o primeiro sinal de oposição unida ao controle oligárquico do Brasil republicano”. (MCCANN, 2009, p. 136). [A revolta na Escola Militar foi] parte de uma série de comoções que levariam, através do movimento salvacionista e da revolta do Contestado, na década seguinte, e das revoltas tenentistas, da década de 1920, à Revolução de 30. (MCCANN, 2009, p. 136). 48 9 NOVAS TENTATIVAS DE REFORMAR O EXÉRCITO E O SERVIÇO MILITAR 9.1 A EDUCAÇÃO DOS OFICIAIS Imediatamente após a revolta, a Escola Militar da Praia Vermelha foi fechada, “marcando o fim de uma era na preparação de oficiais”. Os estudantes rebeldes foram expulsos do Exército, sem soldo ou farda, depois de passarem por unidades do Rio Grande do Sul. Os prisioneiros civis tiveram pior sorte: foram mandados de navio para o Acre. (MCCANN, 2009, p. 136). Milhares de pessoas foram presas. Centenas acabaram enviadas para o Acre; as que sobreviveram à viagem foram submetidas a trabalhos forçados nas obras de construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, que também consumiu centenas de vidas. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 327). É muito revelador sobre a sociedade brasileira e o problema da disciplina militar o fato de que em 1905 os estudantes rebeldes receberam anistia e foram autorizados a fazer os exames finais relacionados ao que fora ensinado em 1904. (MCCANN, 2009, p. 137). O fechamento das escolas na Praia Vermelha e em Realengo resultou na criação da Escola de Guerra em Porto Alegre, cuja instrução deveria ser baseada no novo regulamento da Escola Militar, inspirado nas ideias de Mallet. O ensino enfatizaria a prática, limitando os estudos teóricos, a fim de acabar com os “doutores tenentes e doutores coronéis”, ou seja, pondo fim ao bacharelismo militar. (MCCANN, 2009, p. 135). E, para preparar instrutores que implementariam a reforma projetada, o ministério da Guerra mandou seis oficiais de baixa patente servir arregimentados no Exército imperial alemão por dois anos como treinamento, iniciando assim uma prática que teria repercussões importantes no futuro. (MCCANN, 2009, p. 137) Infelizmente, mais uma vez a inércia travou a reforma e o novo regulamento da Escola Militar não foi posto em prática. Os oficiais de postos mais altos continuaram lecionando e treinando os discentes como sempre fizeram, ou seja, com ênfase na teoria. (MCCANN, 2009, p. 137). 9.2 O MINISTÉRIO HERMES DA FONSECA O papel do general Hermes da Fonseca na supressão do levante de 1904 rendeu-lhe como recompensa do presidente Rodrigues Alves o comando do 4º 49 Distrito Militar, que incluía a capital federal. Logo o general iniciou campanha para “robustecer as forças do distrito”, que compreendiam quase metade do Exército. (MCCANN, 2009, p. 137). [Hermes] organizou manobras anuais conjuntas com tanto aparato e cobertura pela imprensa que seriam lembradas por décadas. (MCCANN, 2009, p. 138). Hermes viveu o período entre a Guerra do Paraguai e a Primeira Guerra Mundial. Nascido de família de militares ilustres gaúchos, que participaram das guerras dos Farrapos e do Paraguai, concluiu, em 1878, a Escola da Praia Vermelha. Desde cedo serviu com autoridades do Império e lecionou na Escola Militar da Corte. (MCCANN, 2009, p. 138). Na conspiração republicana, foi figura importante ao servir de filtro para as pressões feitas sobre o tio, Deodoro. Foi beneficiado com as promoções do início da República, indo de capitão a tenente-coronel em menos de um ano. Distingui-se na defesa de Niterói, durante a Revolta da Armada em 1893, apoiando Floriano Peixoto, apesar de não simpatizar com ele. (MCCANN, 2009, p. 138). De 1894, quando foi promovido a coronel, até 1896, comandou o 2º Regimento de Artilharia Montada, transformando-o em unidade modelo. Ainda em 1896, foi chefe da Casa Militar do vice-presidente Manuel Vitoriano, durante o afastamento de Prudente de Morais. Hermes ganhou visibilidade política e nome no Exército por seus estudos sobre organização e treinamento. Ajudou a redigir o regulamento para o novo EstadoMaior, identificando-se com as ideias reformistas do ministro Mallet. Gozando da confiança do presidente Campos Sales, foi nomeado comandante da Brigada de Polícia do Distrito Federal em 1899, até assumir o comando da Escola Preparatória do Realengo, em agosto de 1904. (MCCANN, 2009, p. 138). Hermes foi o protótipo do oficial brasileiro do século XX. Como capitão, conspirou para derrubar a Monarquia, e como marechal reformado conspiraria contra o presidente Epitácio Pessoa. (MCCANN, 2009, p. 139). Seu comando no 4º Distrito Militar foi marcado pela grande manobra de dezoito dias, entre setembro e outubro de 1905, no Campo dos Cajueiros, em Santa Cruz, no Rio de Janeiro. Houve expectadores e imprensa em grande número. Mas em seu relatório, Hermes deixaria evidente sua insatisfação. Havia mais deficiências e 50 problemas do que feitos. Ficou claro que o Exército não estava preparado para uma campanha e que a reforma teria de ser completa. (MCCANN, 2009, p. 139). Derivando de um “senso de nacionalismo” que se intensificava na época, a empolgação civil com as exibições militares, particularmente as classes média e alta urbana, resultou na fundação dos Tiros e no alistamento de voluntários para as manobras anuais. No Congresso, legisladores passaram a apoiar a lei do serviço militar obrigatório. (MCCANN, 2009, p. 139). Os brasileiros, acostumados a ver-se como apêndices culturais da Europa, começavam a olhar para dentro e descobrir o verdadeiro Brasil. O desastre de Canudos teve um efeito positivo: forçou os habitantes das cidades costeiras a encarar a nação que, nas palavras de Euclides da Cunha, se compunha de “rijos caboclos”. (MCCANN, 2009, p. 140). O Congresso, entusiasmado pelo nacionalismo, aprovou a nova lei do serviço militar, em 1908, com o intuito de “fazer do Exército um corpo treinado que transformaria levas anuais de recrutas em soldados, os quais, por sua vez, formariam uma reseva em constante crescimento, a ser convocada em períodos de crise”. (MCCANN, 2009, p. 140). A primeira reserva organizada do Brasil se formou nessa época: os “Tiros”. Atiradores licenciados do Rio de Janeiro conseguiram com o general Hermes fuzis Mauser emprestados para treinar na “carreira de tiro” que Mallet mandara fazer, após o desastre de Canudos. Os atiradores cariocas, do “Tiro 7”, uniram-se a outros dez clubes e criaram um batalhão que evoluiu para um corpo de atiradores de elite. “Os Tiros eram a propaganda viva do Brasil armado preconizado por Hermes e pelo ministro do Exterior, Rio Branco”. Foram também propulsores da aprovação da lei do serviço militar obrigatório. Os tenentes que os assessoravam se empenharam numa campanha na imprensa, que publicava nos jornais fotos das manobras, corridas de sessenta quilômetros (raides), paradas e concursos de tiro. (MCCANN, 2009, p. 141). A aclamação não foi universal. Operários, desconfiados das exibições patrióticas da classe média, formaram a Liga Antimilitarista para opor-se ao projeto de lei do serviço militar. Também os positivistas se opuseram. Alguns jornais consideraram a medida belicosa e anti-individualista. Apesar da aprovação da lei, seriam necessários mais oito anos e a eclosão da Primeira Guerra Mundial para que se desse início ao serviço militar obrigatório. (MCCANN, 2009, p. 141). 51 O clima de entusiasmo girava em torno da figura de Hermes da Fonseca, que fora nomeado ministro da Guerra, no início do governo Afonso Pena, em novembro de 1906. No cargo, Hermes procurou estender ao Exército as reformas que perseguira como comandante da 4ª Região Militar. Preconizou a necessidade de novos quartéis para atender a lei do serviço militar; a construção de áreas de treinamento em todos os estados, que teriam como modelo a Vila Militar, que seria construída na fazenda Sapopemba, próxima ao Rio de Janeiro; e a renovação dos arsenais e fábricas de pólvora e projéteis. (MCCANN, 2009, p. 141). Hermes também asseverou que “os oficiais não sabiam comandar operações em campanha”; que “o Exército não estava aparelhado para a guerra”; e recomendou uma reforma administrativa no Exército, que era “desproporcionalmente grande no topo e deficiente”. (MCCANN, 2009, p. 142). As mudanças não seriam completas em função das restrições impostas pelo Congresso aos gastos militares. Mas talvez a mudança mais significativa que Hermes efetivou tenha ocorrido no Estado-Maior do Exército, que fora criado em 1899 para substituir a Ajudância-General e cujos oficiais, na maioria, eram burocratas, sem conhecimentos para conduzir atividades ligadas à tropa, à mobilização, às armas e à campanha. (MCCANN, 2009, p. 143). Para corrigir a situação, as tarefas administrativas foram abertas a oficiais de qualquer ramo e não apenas aos do “exclusivo corpo do Estado-Maior”, que foi extinto; livrou o Estado-Maior de muitas tarefas administrativas e as que permaneceram foram entregues a civis, para que os seus integrantes se dedicassem à educação dos oficiais e ao treinamento dos soldados. A reorganização de agosto de 1909 deu início a um verdadeiro Estado-Maior, inspirado nos exércitos alemão e japonês. (MCCANN, 2009, p. 143). A mais durável criação de Hermes foi a Vila Militar de Deodoro. Seguiu a recomendação de Mallet de concentrar unidades e projetou quartéis para bem acomodar as tropas. Sua intenção era dar a cada brigada sua própria base. A Vila Militar do Rio de Janeiro seria o modelo para as demais. (MCCANN, 2009, p. 144). Cada regimento teria seu próprio quartel, escritório, além de casas individuais para oficiais e sargentos. Infelizmente, a falta de verba governamental impossibilitou que o programa fosse implementado além do Rio de Janeiro até a Primeira Guerra Mundial. (MCCANN, 2009, p. 144). 52 9.3 INSTRUÇÃO MILITAR ESTRANGEIRA Hermes teve o apoio de Rio Branco nos seus projetos de reorganização porque este temia a hostilidade que o ministro do Exterior argentino demonstrava ao Brasil. O diplomata brasileiro conseguiu um convite do Kaiser alemão Guilherme II para Hermes e o comandante da 4ª Região Militar, general Mendes de Morais, assistissem a manobras do Exército alemão em 1908. As manobras na AlsáciaLorena impressionaram. O capitão Constantino Deschamps Cavalcante, treinando com os alemães desde 1906, a mando do ministro Argollo, auxiliou-os na visita. Na ocasião, Hermes negociou com os alemães “o envio de uma missão para supervisionar a reorganização do Exército”. (MCCANN, 2009, p. 145). Na disputa pela influência sobre o Exército brasileiro, os alemães ganhavam vantagem sobre os franceses. Naquele mesmo ano, 1909, um segundo grupo de seis oficiais brasileiros foi passar dois anos em regimentos alemães. Ademais, a Krupp passou a fornecer obuses para a Artilharia brasileira e, em 1910, um terceiro grupo de vinte e quatro oficiais partira para a Alemanha, que já havia selecionado os membros da missão no Brasil. Mas, para a perplexidade dos oficiais que foram para a Alemanha, como Estevão Leitão de Carvalho, esta não se concretizou. (MCCANN, 2009, p. 145). A influência francesa sobre as elites brasileiras e a hábil diplomacia dos francos minaria o acordo. Políticos paulistas, que já haviam contratado os franceses e eram a eles favoráveis, passaram a influenciar e pressionar Hermes para romper com Berlim. Hermes, por sua vez, eleito presidente em 1910, precisava do apoio político desses paulistas, que destoavam da maioria, que apoiara Rui Barbosa. Além disso, o sucesso alemão perturbava franceses, britânicos e estadunidenses, pois estava em jogo, também, a venda de armas. E para os franceses era importante ter o aval de Hermes para que se renovasse a missão na Força Pública paulista, que expiraria naquele ano. (MCCANN, 2009, p. 146). Nessa disputa, os franceses superaram os alemães no esforço de conquistar Hermes. Em agosto de 1910, foram organizadas visitas a escolas, quartéis e fábricas bélicas francesas e a participação de intelectuais, além da recepção pelo presidente daquele país. Até uma campanha na mídia francesa para afagar o ego do marechal foi feita, com a colaboração de um major da comitiva brasileira, Alfredo Oscar Fleury de Barros, que estendeu a campanha midiática aos periódicos 53 brasileiros, que publicaram elogios à França e ao seu exército. (MCCANN, 2009, p. 147). Hermes fora conquistado pelos franceses. Antes de partir, declarou nunca ter sido germanófilo e que sua formação pessoal era francesa. Também ressaltou semelhanças dos soldados e dos povos dos dois países. Para não romper subitamente com os alemães, prejudicando as relações, Hermes declarou que “o Brasil não receberia nenhuma missão estrangeira; seus oficiais eram bons o bastante para treinar suas forças”. (MCCANN, 2009, p. 147). Nilo Peçanha informara que era favorável à vinda de uma missão militar estrangeira, mais barata que o envio de oficiais para treinamento. Os franceses continuaram trabalhando intensamente para manter sua missão paulista e obter a missão militar no Exército brasileiro. Em outubro de 1911, em deliberação no Congresso, os franceses não conseguiram aprovar a missão, mas impediram a alemã. (MCCANN, 2009, p. 149). Mas a eclosão da Grande Guerra, em 1914, e a entrada do Brasil no conflito, em 1917, contra os alemães, encerrou a questão. A questão da missão militar estrangeira ficaria engavetada até o fim da Guerra. (MCCANN, 2009, p. 150). 54 10 O GOVERNO DO MARECHAL HERMES Para McCann (2009, p. 150), apesar de a questão da missão estrangeira ter sido deixada de lado, em 1911, o Exército passava por algumas mudanças. Havia indícios de que agradava a um núcleo de oficiais a ideia de que o Exército devia modernizar-se e ser uma força propulsora da modernização do Brasil. (MCCANN, 2009, p.150). A tentativa de reformar a educação militar em 1905 tinha dado poucos resultados. Mas os alunos da Escola de Guerra em Porto Alegre se convenceram de que somente melhorando os soldados se poderia melhorar o Exército. Para tanto, apoiavam o serviço militar obrigatório, o treinamento e o empenho de cada um deles. (MCCANN, 2009, p. 150). Enquanto Hermes visitava a França para discutir a respeito de uma missão de assessoria militar e o último grupo de oficiais estava na Alemanha, oficiais em Porto Alegre publicavam no primeiro número da Revista dos Militares a necessidade de todos se prepararem para receber instrutores estrangeiros. O orgulho pessoal estava estimulando os menos graduados. (MCCANN, 2009, p. 150). Com as reformas necessárias sendo proteladas pela inércia, foi difícil manter a disciplina interna. Facções políticas rondavam os portões dos quartéis e procuravam “atrair os oficiais para lutas partidárias”. Membros das elites intrometiam-se nos planos de profissionalização dos oficiais. O Exército não tinha “liberdade institucional” para adotar seus modelos próprios e nem autonomia mesmo em questões técnicas. (MCCANN, 2009, p. 151). Em consequência, alguns oficiais subalternos dessa década acabariam, mais adiante, em suas carreiras, por envolver-se em atividades revolucionárias. (MCCANN, 2009, p.151). McCann destaca (2009, p. 151) que, em 1911, o Exército passou a ter o seu representante na presidência: Infelizmente para sua profissionalização, [o Exército] enredou-se na luta da elite republicana com as ressurgentes oligarquias regionais pelo controle dos governos estaduais. Uma orgia de intervenções, chamada de movimento salvacionista, desacreditaria o Exército aos olhos de muitos brasileiros e retardaria a marcha em direção ao serviço militar obrigatório. (MCCANN, 2009, p.151). 55 O início da década de 1910 trazia novidades, como a nova Escola Militar do Realengo. Mas em breve, mais uma vez, o Exército seria empregado como “instrumento de repressão, agora no interior de Santa Catarina”. (MCCANN, 2009, p. 151). A “Política dos Governadores” vigente permitira a muitas famílias que eram proeminentes no Império voltar ao poder. Após a morte de Pedro II, em 1891, elas superaram a ânsia restauradora e se alinharam à República. As oligarquias estavam mais interessadas nas benesses do poder regional do que no governo nacional. Este aspecto preocupou oficiais a respeito da unidade da Pátria. (MCCANN, 2009, p. 152). O cenário político nacional era dominado por São Paulo e Minas Gerais. O senador gaúcho José Gomes Pinheiro Machado fazia a intermediação do poder político. (MCCANN, 2009, p. 153). Os estados maiores mantinham forças policiais militarizadas de bom tamanho, capazes de conter, se não desafiar diretamente o Exército nacional. [...] Ao menos no papel, cada estado possuía suas próprias unidades da Guarda Nacional, com oficiais extraídos da elite política local e soldados, quando existiam realmente, que estavam a mando dos figurões locais. (MCCANN, 2009, p.153). A Guarda Nacional, subordinada ao ministério da Justiça, e não ao da Guerra, que apenas a supervisionava, destinava-se a “alicerçar o controle da elite”. Além disso, nas crises essas elites convocavam seus peões e contratavam capangas, formando os “batalhões patrióticos”. Assim, os políticos dos estados podiam impor suas vontades nos seus redutos e defender-se do Exército nacional. (MCCANN, 2009, p. 153). O Exército, nesse sistema, ficava com papel secundário de apoio à segurança interna, ou defesa interna, como mencionava a Constituição de 1891. Sempre que as forças locais eram incapazes de resolver um problema, as elites passavam-no para o Exército. E foram muitos os conflitos com características de guerra civil que ocorreram pelo Brasil durante a República Velha, decorrentes de “querelas políticas locais”. Isto irritava oficiais idealistas, que se sentiam no desempenho de papéis indignos, enquanto outros com ambições políticas enxergavam oportunidades de ascensão. (MCCANN, 2009, p. 153). Com a chegada de Hermes à presidência, as Forças Armadas ocuparam primeiro plano, bem como a oficialidade em relação aos assuntos nacionais. Ficou 56 clara uma fraqueza da Política dos Governadores: a dependência do consenso entre políticos e oligarcas, sem haver um mecanismo para lidar com a dissensão. (MCCANN, 2009, p. 153). A eleição de Hermes surgiu da discordância entre São Paulo e Minas Gerais, na sucessão presidencial. Enquanto os paulistas apoiaram o senador Rui Barbosa, os mineiros se uniram aos gaúchos e aos oficiais do Exército para apoiar a candidatura do ministro da Guerra, Hermes da Fonseca. (MCCANN, 2009, p. 154). O discurso de Rui Barbosa foi antimilitarista, usando este argumento para gerar uma atmosfera de abalo do crédito internacional brasileiro, que seria assemelhado a outros países hispano-americanos dominados por militares. (MCCANN, 2009, p. 154). A tensão decorrente desses eventos da sucessão presidencial teria, junto a outros aspectos, contribuído para o falecimento do presidente Afonso Pena. Ele confiava que Hermes, seu ministro da Guerra, apoiaria o candidato que escolhera, o deputado mineiro David Campista. O substituto do presidente falecido, o vicepresidente carioca Nilo Peçanha “jogou todo o peso do Poder Executivo em favor de Hermes”. (MCCANN, 2009, p. 154). Rui Barbosa, que tinha imensa popularidade, republicano histórico, ministro das Finanças de Deodoro, porta-voz do Brasil na Conferência de Haia, em 1907, usou sua reputação “para projetar a imagem de um civil patriota que questionava a sabedoria de entregar a presidência a um general”. (MCCANN, 2009, p. 154). McCann (2009, p.154) cita José Murilo de Carvalho: “Rui levantou a questão errada, atacando o militarismo”. A candidatura de Hermes nasceu do fracasso da política dos governadores e não do desejo do Exército de intervir no sistema político. De fato, as oligarquias mineiras e gaúchas estavam usando Hermes como escudo para seus interesses. (MCCANN, 2009, p.154). É curioso o fato de que Hermes concordava mais com as ideias de seu adversário, Rui Barbosa, do que com as de Pinheiro Machado, um de seus patrocinadores. Estava de acordo com Rui quanto às críticas ao sistema político e às oligarquias estaduais. Também é surpreendente que, depois de eleito, o marechal tenha convidado Rui Barbosa a participar do governo. “Hermes foi o primeiro a citar os trabalhadores em seus discursos e, quando presidente, mandou construir casas 57 para operários no Rio de Janeiro e patrocinou o 4º Congresso Operário Brasileiro em 1912”. (MCCANN, 2009, p. 154). A vitória de Hermes devolveu os militares ao palco político e criou uma duradoura impressão de que as ações militares dos anos seguintes tiveram o apoio do presidente e do Exército como instituição, quando, na verdade, muitas foram iniciativas de comandantes locais sem consulta prévia ou mesmo sem consulta alguma às autoridades centrais. (MCCANN, 2009, p.154). Para McCann (2009, p. 155), as críticas de Rui Barbosa, em discursos condenando a intromissão militar na política, aumentaram a animosidade entre oficiais e os “líderes políticos aliados de Pinheiro Machado”. Hermes não era de natureza agressiva e é provável que não tenha previsto a violência que decorreria do seu mandato. Mas ao tempo em que ocupou o cargo, “foi arrebatado pelos acontecimentos”. Mal assumira a presidência e já se deparou com a repressão pelo Exército à Revolta dos Marinheiros. Seguiu-se a série de intervenções do Movimento Salvacionista e a eclosão e “supressão da revolta popular no Contestado”, área disputada entre Paraná e Santa Catarina. (MCCANN, 2009, p. 155). Hermes da Fonseca [...] promoveu em seu governo a derrubada de várias oligarquias estaduais (Pernambuco, Ceará, Alagoas e Bahia) por meio de intervenções militares [Salvações]. [...] Enfrentou a Revolta da Chibata [...] e a Guerra do Contestado [...]. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 323). Como presidente, entre 1910 e 1914, sempre andou fardado. “Sua carreira combinou a vida militar, a política e a reforma institucional e social. [...] E, como se pode dizer de todos os outros oficiais no século XX, exceto os que serviram na Segunda Guerra Mundial, sua experiência de combate foi contra os brasileiros”. (MCCANN, 2009, p. 139). Hermes não era obrigado pela Constituição a renunciar à comissão de oficial nem pedir reforma para ocupar a presidência. O marechal não se sentiu impelido a “projetar uma fachada civil”. Constou, enquanto cumpria o mandato, na lista de oficiais da ativa, como marechal, com a atribuição de “presidente da República”. Nessa condição, deslocava-se pelas ruas da capital trajando seu uniforme de gala. (MCCANN, 2009, p. 155). Esse procedimento “deu o tom” a outros militares: em 1912, havia sete senadores, seis deputados, três governadores e o prefeito do Distrito Federal, todos oficiais de alta patente, que não só mantiveram suas posições na fila de promoções 58 como foram beneficiados. Ressalta o fato de que muitos dos oficiais que foram preteridos em promoções eram contrários ao envolvimento militar com a política. “Ao que parece, esses homens eram duplamente remunerados [...]”. Essas situações dão razão às palavras de Afonso Arinos de Melo Franco: “o Exército tornou-se o novo partido político dominante”. (MCCANN, 2009, p. 156). Desde meados do século XIX, o tratamento humilhante e violento que a Marinha dispensou aos soldados vinha sendo questionado [...]. Foi necessária uma rebelião ameaçadora dos marinheiros [...] para que a Marinha adotasse medidas disciplinares menos brutais. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 400). Em 22 de novembro de 1910, uma semana depois da posse de Hermes, as tripulações dos couraçados São Paulo e Minas Gerais se rebelaram contra a chibata, ameaçando bombardear a capital federal. “A disciplina na Marinha era abominável”. A chibata, que havia sido abolida pela Constituição Imperial de 1824 e pelo terceiro decreto da República, no dia seguinte à sua proclamação, ainda era prática comum, prevista no Regulamento Naval. Considerando-se “que a maioria dos oficiais era branca e, dos marinheiros, era negra” vivificam-se imagens de senhores e escravos. A eclosão de motins em razão da chibata era constante. “Mas os oficiais da Marinha não atinavam com modos menos brutais e mais eficazes de manter suas tripulações na linha”. (MCCANN, 2009, p. 157). Nos primeiros dias de mandato, o governo sentiu ímpetos de ceder às forças rebeldes e ainda lhes conceder anistia. Apesar das boas intenções de Hermes, sua gestão nasceu em um clima de tensão e violência que caracterizaria os anos seguintes. (MCCANN, 2009, p. 158). 10.1 O MOVIMENTO SALVACIONISTA Para McCann (2009, p. 158), “o drama do movimento salvacionista deve ser visto contra o pano de fundo da ambição política, indisciplina e expansão da definição da profissão militar”. Enquanto a indisciplina no âmbito da oficialidade era tolerada, para as praças era implacável. Como exemplo, tem-se o caso de um tenente-coronel comandante de unidade que, em público e sem dar satisfações, descumpriu uma ordem do ministro da Guerra e nada lhe aconteceu naquele momento e nem no prosseguimento de sua carreira, chegando ao generalato. Mas “o sistema disciplinar era caprichoso”. Alguns marinheiros que se rebelaram contra a chibata em 1910 e participaram de uma segunda revolta, logo suprimida, na base 59 naval da ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, “foram despachados para o Acre nos porões do navio Satélite em companhia de vadios e prostitutas apanhados nas ruas da cidade. No caminho, onze marinheiros foram fuzilados e atirados ao mar”. Para Mccann (2009, p.159), a diversidade de tratamento era um incentivo à indisciplina. Se rebeldes podiam ter êxito e o fracasso era incerto, não havia motivos para intimidar-se. Ademais, a indisciplina podia ser decorrente de moral e autoestima baixos ou de fraqueza na estrutura de comando. Naquele momento, o Exército estava desfalcado em seu contingente e a regulamentação da lei do serviço militar era postergada pelo Congresso. Além disso, não havia voluntários em número suficiente para completar as fileiras. A combinação de frustração profissional e ambição política produziu “a complexa série de acontecimentos do movimento salvacionista”. Ademais, Hermes chegara à presidência com o apoio combinado e, muitas vezes, contraditório das oligarquias dominantes mineiras, gaúchas, pernambucanas, paraenses, dentre outras, e das oligarquias de oposição de vários estados. Houve também a participação de oficiais, com variados interesses e alguns com ambições políticas. Nesse cenário, alguns apoiadores queriam a manutenção do status quo e outros ansiavam por mudanças, que não eram estruturais: queriam o poder. Quase ninguém desejava métodos eleitorais honestos ou a abolição do poder dos “coronéis” rurais. (MCCANN, 2009, p. 159). As únicas reivindicações reais de mudança social viriam do povo do Contestado e seriam respondidas a fogo e aço. (MCCANN, 2009, p.160). Ao que parece, Hermes inicialmente não queria “usar o Exército como instrumento político”. Na virada de 1911-12, época das eleições estaduais, o presidente tentava cumprir seus compromissos. Mas já em 1910, antes de sua posse, alguns oficiais se juntavam a políticos para forçar mudanças no poder estadual. Em estados nordestinos, parentes de Hermes concorriam à sucessão. (MCCANN, 2009, p. 160). Entretanto: O desordenado processo de substituir uma aliança oligárquica por outra frequentemente envolveu o emprego direto de força militar. Em alguns casos, o choque entre as Forças Armadas e as oligarquias estaduais foi claramente delineado; em outros, foi confuso. O governo Hermes efetivamente patrocinou golpes contra os governos estaduais. (MCCANN, 2009, p. 160). 60 Pinheiro Machado, que havia colocado o Rio Grande do Sul no mesmo plano de São Paulo e Minas, tentou criar um partido nacional, o Partido Republicano Conservador (PRC), com a finalidade de aglutinar os aliados de Hermes da Fonseca. Mas o presidente atrapalhou o líder gaúcho ao trazer o Exército para o terreno da política. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 411). Em Pernambuco, tropas federais juntaram-se à oposição e a populares para atacar o quartel da polícia estadual. A ação causou a renúncia do governador em favor do general Emygdio Dantas Barreto, ministro da Guerra. (MCCANN, 2009, p. 160). Na Bahia, o comandante regional, general José Sotero de Menezes, com 882 homens diante de 5 mil policiais e jagunços, decidiu cumprir um habeas corpus em benefício da oposição e bombardeou o palácio do governo e o quartel da polícia, baseado num telegrama duvidoso do Rio de Janeiro. Por isso, foi felicitado pelo novo ministro da Guerra, general Antônio Adolpho de Fontoura Mena Barreto. (MCCANN, 2009, p. 160). Mas Hermes não gostou do ocorrido na Bahia, mandou investigar, ordenou a devolução do cargo ao deposto e chamou o general Sotero de Menezes ao Rio de Janeiro, onde foi recebido com festa por alguns oficiais, como o coronel Fernando Setembrino de Carvalho, chefe de gabinete do ministro da Guerra. Apesar da ação de Hermes, a oposição chegaria ao poder. (MCCANN, 2009, p. 160). O próprio ministro da Guerra, general Mena Barreto, passaria dos limites: tentou assegurar o governo gaúcho para si e criou uma crise de gabinete que o forçou a renunciar. Mas antes disso, outras convulsões abalariam a cena política. (MCCANN, 2009, p. 161). Em dezembro de 1911, tropas federais entraram em alerta no Rio de Janeiro e em São Paulo, para intervir na sucessão paulista. Cogitara-se Mena Barreto para ser o interventor. Os paulistas, porém, repeliram a ação federal acionando a poderosa força pública, treinada pelos franceses, e os batalhões patrióticos das principais cidades. Hermes, então, fez um acordo com o governador paulista que ficou com o controle da política do estado. (MCCANN, 2009, p. 161). Mas no Sul, Mena Barreto interferia com frequência na política gaúcha, onde o poder estava nas mãos do aliado de Hermes, senador Pinheiro Machado. As salvações já vinham depondo aliados no Nordeste e agora ameaçavam sua base política. Nessa situação, de um lado, Pinheiro e seus aliados exortaram Hermes a condenar qualquer intervenção militar e retirar das guarnições de todo o país os 61 oficiais leais a Mena Barreto e metidos na política. De outro lado, Mena Barreto reuniu os generais no ministério e aconselhou Hermes a manter o caudilho gaúcho à distância. (MCCANN, 2009, p. 161). Uma conturbada reunião de gabinete, em 29 de março de 1912, quando vários ministros acusaram o titular da Guerra de fomentar uma guerra civil, teve berros e pedidos de demissão. Quando a situação se acalmou, Hermes aceitou apenas o pedido de Mena Barreto. Assumiu a pasta o comandante da 9ª Região Militar, general-de-divisão Vespasiano Gonçalves de Albuquerque e Silva, o terceiro em menos de um ano. (MCCANN, 2009, p. 162). O afastamento de Mena Barreto deu início a uma virada nas salvações, favorecendo a neutralidade e a preservação do status quo. Porém, àquela altura, a maioria dos estados nortistas era governada por oficiais do Exército, tendo passado, porém, o auge do movimento. Dois casos se destacaram pela diferença dos demais: em Minas Gerais evitou-se a intervenção e no Ceará ela precipitou o fim das Salvações. (MCCANN, 2009, p. 162). Minas Gerais, o estado mais populoso naquele tempo, com a maior delegação no Congresso e com forte economia baseada na agricultura e mineração tinha alguma independência. Além, disso, o estado não é banhado por mar e tem relevo montanhoso. Gaúchos e paulistas já haviam evitado as salvações militares, no governo Hermes, por meio de manobras políticas. Minas Gerais logrou o mesmo feito, agindo de modo diferente. (MCCANN, 2009, p. 164). Um incidente envolvendo uma unidade do Exército em Minas, a 9ª Companhia Independente de Infantaria Ligeira, deu relevo à relação entre o estado mineiro e o Exército nacional. Depois de três anos de implantação e de bom relacionamento com a comunidade, a morte de um soldado num atrito com um guarda civil, em maio de 1912, deu fim à feliz convivência. Exaltados e armados, soldados foram à delegacia de polícia onde estava detido o acusado. Ao passar por guardas civis desarmados, mataram dois e feriram outros. Logo depois, foram presos por um tenente da 9ª Companhia e levados ao quartel. (MCCANN, 2009, p. 164). O fato gerou grave comoção na capital mineira. Civis, aos gritos, apedrejaram o quartel da 9ª Companhia. Os jornais culparam o Exército pelo ocorrido. O governador solicitou a Hermes a retirada da Companhia da cidade. Depois de um inquérito, os culpados foram expulsos e entregues à polícia estadual. A companhia embarcou para Niterói na madrugada de 4 de junho. (MCCANN, 2009, p. 165). 62 Só em 1915, com o mineiro Venceslau Brás na presidência, o Exército voltaria a ter uma unidade em Belo Horizonte. Minas conservara as rédeas de seu próprio destino e, ao lado de São Paulo e Rio Grande do Sul, continuaria a dominar a política nacional. (MCCANN, 2009, p.165). Além das consequências já apresentadas, o incidente “afetou negativamente o movimento pela obrigatoriedade do serviço militar”, que já envolvia, desde 1908, providências como a instalação de juntas de alistamento militar nos municípios. Ademais, o incidente ocorreu num estado onde a ideia do serviço militar não agradava e que já fora palco de manifestações. Essa tendência somente seria revertida com a campanha patriótica de 1916 e a entrada do Brasil na Primeira Guerra Mundial em 1917. (MCCANN, 2009, p. 165). No Ceará, o afastamento do movimento salvacionista ocorreria por meio de considerável violência. (MCCANN, 2009, p. 165). O Ceará foi o divisor de águas do movimento salvacionista, e um caso interessante, pois as forças em confronto eram bem distintas, e as linhas que as separavam, nitidamente traçadas. (MCCANN, 2009, p.166). No episódio destacou-se o coronel Fernando Setembrino de Carvalho, que viria a ser um destacado oficial do Alto-Comando do Exército, na década seguinte. Setembrino formou-se na Escola Militar da Praia Vermelha em 1882. Como oficial, viveu o alvorecer da República. Participou da guerra civil de 1893-95. Apesar do currículo, foi promovido a coronel em 1911, beirando os cinquenta anos. Nessa época, Setembrino destacou-se como chefe de gabinete do ministro da Guerra, entre 1911-14, e consolidou uma amizade com o chefe do Estado-Maior do Exército, no período, e futuro ministro da Guerra, general-de-divisão José Caetano de Faria. (MCCANN, 2009, p. 166). No Ceará, no movimento salvacionista, o Exército estava dividido. Oficiais estavam empenhados em derrubar a família Accioly e, na oposição, adotaram um líder “salvador” militar, o tenente-coronel Marcos Franco Rabelo, ex-docente da extinta Escola Militar de Fortaleza e genro de um ex-governador deposto pelos Accioly. Apoiado por comerciantes, marginalizados pela política oligárquica, Rabelo chegou ao poder em julho de 1912. Mas foi incapaz de controlar o domínio político do padre Cícero Romão Batista e perdeu força com a queda do ministro da Guerra, Mena Barreto, cujo adversário político, Pinheiro Machado, apoiado por oficiais, era 63 pró-acciolista. Além disso, outros oficiais apregoavam menor participação do Exército na política. (MCCANN, 2009, p. 166). Nesse ambiente, Hermes contava com o apoio do ministro da Guerra, do chefe do Estado-Maior do Exército, do comandante da 9ª Região Militar, além da maioria dos generais-de-divisão e brigada, que tinham sido promovidos pelo presidente, graças à campanha de reforma dos oficiais com ambições políticas, que abriu caminho para os “homens de Hermes”. (MCCANN, 2009, p. 166). Um desses homens foi Setembrino de Carvalho, que foi promovido general-debrigada e enviado a Fortaleza, em fevereiro de 1914, para “comandar conjuntamente” as 4ª, 5ª e 6ª Regiões Militares, que enquadravam Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, Hermes pretendia reforçar o controle sobre a região, com um único oficial de confiança, reduzindo a capacidade dos comandantes locais de engajar-se na política. (MCCANN, 2009, p. 167). O Ceará vivia uma situação extremamente violenta. Rabelo mandava sua força de policiais e capangas atacar o reduto de padre Cícero, mas lá ela sempre era rechaçada. A oposição marchava para Fortaleza, numa rebelião que contava com o apoio de Pinheiro Machado e de um deputado estadual dissidente, que tinha até uma fachada legal: um governador provisório eleito em Juazeiro. O governo federal não intervinha devido a protestos dos congressistas, oficiais salvacionistas e veículos da imprensa. (MCCANN, 2009, p. 167). Setembrino adotou postura anti-Rabelo, seguindo as orientações de Hermes e Pinheiro Machado, e denegriu a imagem do governador. Acusou-o de aterrorizar adversários com bandos de desordeiros, ataques, invasões e incêndios. Rabelo estava emaranhado em ilegalidades administrativas e, de acordo com Setembrino, era execrado pela opinião pública da capital e do interior, por seu governo nocivo. Insinuou que a situação justificava a rebelião, que ele qualificou como um “levante pela liberdade”. (MCCANN, 2009, p. 167). “Telegramas no arquivo de Setembrino revelam, no entanto, sua parcialidade”. Ele passou a intervir nos assuntos do estado, desarmando a polícia e interferindo nos negócios. Houve protestos de Rabelo e da imprensa carioca, que criticava a missão e os artifícios de Setembrino. Também muitos oficiais, inclusive alguns de seus comandados, protestaram contra sua recusa em apoiar Rabelo contra a iminente invasão da capital cearense por “uma horda de jagunços assassinos”. Em telegrama publicado na imprensa carioca, exortaram o Clube Militar a apoiar Rabelo. 64 Por isso, o ministro da Guerra ameaçou movimentá-los para outros estados, bem como expulsar os mais críticos. (MCCANN, 2009, p. 168). Rabelo também escreveu ao Clube Militar afirmando ter sido empossado pelo povo e dizendo não querer deixar-se “escravizar à política do senador Pinheiro Machado”. Os oficiais salvacionistas, inclusive generais da reserva, redigiram “moção exortando a guarnição de Fortaleza a receber os jagunços à bala” e passaram a pressionar o Clube Militar a realizar uma assembleia, que ocorreria em 4 de março sem a diretoria e sob a presidência do marechal reformado Mena Barreto, acabando com o Clube fechado por agentes do governo. (MCCANN, 2009, p. 168). O ministro da Justiça condenou os protestos, classificando-os como subversivos e contra a disciplina militar. O comandante da 9ª Região Militar, general Souza Aguiar, redigiu também uma moção pelo profissionalismo militar, pelo afastamento da política destrutiva e pela manutenção da ordem pública. Conclamou, também, ao Clube Militar aconselhar à guarnição em Fortaleza agir na legalidade. Rui Barbosa, no Senado, censurou a postura parcial do governo de Hermes. (MCCANN, 2009, p. 168). Hermes decretou estado de sítio parcial, no Distrito Federal, para controlar a situação. Oficiais foram presos, jornais e revistas foram fechados, deputados federais e jornalistas foram detidos e os signatários da petição em Fortaleza foram enviados à capital federal. Pinheiro Machado, membros do gabinete, altos oficiais das duas Forças Armadas e alguns deputados e senadores foram ao Catete solidarizar-se com Hermes. (McCann, 2009, p. 169). Mas houve aqueles que não quiseram curvar-se à violência. Rui Barbosa fugiu para São Paulo, fato que pode aquilatar o grau de poder presidencial e a natureza da federação, uma vez que, naquele estado, “os críticos de Hermes ficaram a salvo dele”. (MCCANN, 2009, p. 169). Hermes mudaria sua postura em relação a Fortaleza. Condicionara a ajuda na defesa da cidade à solicitação, por Rabelo, de intervenção federal. Este, porém, recusou-se por saber que seria o fim do seu governo. Preocupado, o presidente ordenou a Setembrino impedir a invasão pelas forças anti-Rabelo. Em 9 de março, Hermes decretou estado de sítio no Ceará. Rabelo, ainda com apoio da população de Fortaleza, não atendeu aos seus apelos para deixar o cargo, forçando-o a nomear Setembrino interventor. (MCCANN, 2009, p. 169). 65 Como interventor, Setembrino supervisionou o retorno do controle à oligarquia cearense e marcou novas eleições. Também conduziu a reorganização partidária nos municípios e a preparação das chapas para as eleições estaduais e até presidiu uma reunião dos deputados eleitos para formular novas regras políticas locais. Pinheiro Machado articulou para reafirmar os Accioly na política local. Depois de obter a vitória do Partido Conservador e gerir a posse do governador e da Assembleia, Setembrino deu por encerrada a intervenção e retornou para o Rio de Janeiro em junho de 1914. (MCCANN, 2009, p. 169). A intervenção no Ceará foi um caso clássico de atuação do Exército brasileiro na República Velha para manter o domínio de uma oligarquia local. Os debates internos no Exército revelaram a cisão, que se aprofundaria, entre os oficiais que defendiam o profissionalismo militar apolítico e os que viam o Exército como uma força política estabilizadora incumbida de manter a ordem social. (MCCANN, 2009; p.170). 66 11 A GUERRA DO CONTESTADO Enquanto Hermes buscava solução para os problemas no Ceará, nos últimos meses do seu governo, outra crise surgia no Sul. O mundo voltava as atenções, em agosto de 1914, para a eclosão da Primeira Guerra Mundial e “o Exército brasileiro estava sendo arrastado para a sua maior campanha desde Canudos”. Os acontecimentos se deram na região conhecida como Serra-Acima, em Santa Catarina, onde o novo século trouxe consigo uma rebelião contra o coronelismo. Os rebeldes, intuitivamente e sob a influência de crenças messiânicas, queriam mudar o sistema e sua participação na sociedade brasileira. O caso mesclou aspectos econômicos, políticos, sociais e religiosos, que foram articulados “pela brusca incorporação da região ao sistema capitalista internacional”. (MCCANN, 2009, p. 170). As lideranças da rebelião utilizaram-se do messianismo para unir a população em torno de sua reação. Mas as autoridades federais e estaduais reagiram com “violência esmagadora” e nesse episódio, outra vez, o Exército foi levado a guerrear contra brasileiros, desta vez em nome do progresso, no qual predominavam os interesses estrangeiros. (MCCANN, 2009, p. 170). A região do Contestado recebeu esse nome em razão de ter sido disputada em dois momentos: inicialmente entre Brasil e Argentina, sendo concedida ao Brasil por arbitragem estadunidense, no governo Groover Cleveland; num segundo momento pelos estados de Paraná e Santa Catarina, que reivindicavam a sua jurisdição. (MCCANN, 2009, p. 172). A região, situada na rota entre Rio Grande do Sul, São Paulo e Minas Gerais, foi uma das primeiras a serem exploradas pelos europeus, que desenvolviam a pecuária e a extração de erva-mate e madeira. Socialmente, poder e riqueza se concentravam nas mãos de alguns “coronéis”, rodeados de proprietários de terras menores. Para essas famílias, o direito de posse das terras, quando tinham, era incerto. Outras famílias subsistiam pela boa vontade dos proprietários. (MCCANN, 2009, p. 172). Mas essa questão de titularidade das propriedades foi muito complicada pela disputa entre os dois estados porque, em muitos casos, cartórios de ambos expediam títulos de propriedade da mesma terra. E isso frequentemente era 67 resolvido pelas armas. Ademais, a jurisdição duvidosa era um atrativo para fugitivos de toda parte. (MCCANN, 2009, p. 172). Paraná e Santa Catarina também contribuíam para a violência. Na concorrência pela exploração econômica, os governos e negociantes apoiaram, entre 1905-09, a organização de bandos armados para disputar territórios ou assegurar a construção ou destruição de postos fiscais. Apesar de os bandos terem sido desarmados em 1905, os estados se confrontaram livremente até 1914. (MCCANN, 2009, p. 172). A crise também teve influência externa. A construção da ferrovia Rio Grande do Sul - São Paulo empregou trabalhadores nordestinos e fluminenses que foram abandonados pela companhia estrangeira encarregada da obra, ao final da mesma. (MCCANN, 2009, p. 173). Quando a tensão exacerbada entre Argentina e Brasil beirou a guerra em 1910, o governo federal ordenou à companhia [Brazil Railway Company] que acelerasse as obras do trecho inacabado entre Porto União e o Rio Uruguai. Para isso, a ferrovia aumentou sua força de trabalho para aproximadamente 8 mil homens, os quais, sob tremenda pressão, conseguiram concluí-la em meados de dezembro de 1910. Muitos desses trabalhadores haviam sido recrutados à força em Santos, Rio, Salvador e Recife e, quando o trabalho terminou, receberam pagamento e foram abandonados à beira dos trilhos. (MCCANN, 2009, p.173). Além disso, havia investidores estadunidenses interessados na exploração madeireira e imigrantes estrangeiros, atraídos pelas concessões de terras, que foram parte do pagamento à Brazil Railway Company pela construção da ferrovia, que compreendiam uma faixa de dezesseis quilômetros ao longo de cada lado dos trilhos. (MCCANN, 2009, p. 173). Para aumentar a concessão de terras, a companhia de Percival Farquhar fez zigue-zagues e invadiu diversas áreas com títulos de propriedade, provocando a desapropriação, deixando brasileiros sem terras e buscando substituí-los por imigrantes europeus. Essas áreas se tornaram preocupação para oficiais nacionalistas, pois seus habitantes não se consideravam brasileiros e nem falavam a língua portuguesa. Mas somente a partir de 1938, o governo central forte de Getúlio Vargas tomou medidas para evitar um possível avanço nazista. (MCCANN, 2009, p. 173). Percival Farquhar também explorou madeira na região, com a Southern Brazil Lumber and Colonization. Adquiriu terras da área contestada, construiu uma 68 moderna serraria em Três Barras e uma ferrovia ligando União da Vitória a São Francisco, para escoar a produção. Em 1911, a Brazil Railway começou a expulsar os posseiros e a matar aqueles que resistiam. (MCCANN, 2009, p. 174). A procura de terras, especialmente por estrangeiros, ocasionou uma corrida especulativa com a qual autoridades dos dois estados contribuíram ao legalizar confiscos e vendas. Famílias estabelecidas havia mais de século nas terras eram expulsas, vendo anúncios de venda ou locação de suas propriedades. “Uma onda de horror varreu todo o território”. (MCCANN, 2009, p. 174). Segundo McCann (2009, p. 174), associou-se à pressão gerada por esses acontecimentos a desintegração social. Os coronéis abandonaram o velho paternalismo que regia suas relações com a população para atender seus interesses, no contexto da nova ordem vigente. Os coronéis pressionavam os agregados (trabalhador rural que mora em terreno cedido pelo dono da terra, prestando-lhe serviços em troca de pequeno salário) a saírem das fazendas e estabelecerem-se por conta própria, apesar de quase não existirem na região terras disponíveis. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 326). O sistema social perdeu suas formas de dominação toleráveis, tranquilizadoras e aprazíveis com a repentina e violenta incorporação à ordem capitalista mundial. A desorientação resultante gerou o que se poderia chamar de crise de identidade coletiva. (MCCANN, 2009, p.174). A rebelião teve início em agosto de 1912, quando o povo do Contestado se reuniu na festa do Bom Jesus, em Taquaruçu, onde o beato, ou monge, José Maria passou a conduzir o povo em oração e a passar-lhes ensinamentos. Sem saber, foi envolvido numa luta pelo poder entre dois coronéis. Um deles presenteou o monge com seu sabre da Guarda Nacional. O outro telegrafou para o governador catarinense denunciando a proclamação de uma monarquia em Taquaruçu, por fanáticos religiosos. (MCCANN, 2009, p. 174). O telegrama alarmou a capital catarinense, causou interesse em Curitiba e foi noticiado no Rio de Janeiro. O governador de Santa Catarina comparou o movimento a Canudos e decidiu empregar a Polícia Militar. Para evitar o conflito, o chefe de polícia convenceu José Maria a ir para o Paraná. Mas o monge e seus seguidores se reorganizaram em Irani. Com isso, as autoridades ordenaram um ataque, em 22 de outubro de 1912, no qual o monge José Maria foi morto. (MCCANN, 2009, p. 174). 69 [...] [Depois do ataque a Irani] começa a Guerra do Contestado. Os seguidores de José Maria voltaram para Taquaruçu envolvidos num clima de intenso misticismo: eles acreditavam na ressurreição de seu líder. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 395). Após a morte do monge, os desassistidos do Contestado passaram negar seu desaparecimento e a espalhar a ideia de que não morrera ou iria ressuscitar. Diziase também que o monge e outros mortos e desaparecidos de Irani juntaram-se ao “exército encantado de São Sebastião”, patrono do sertão e venerado na região. A crença atraiu famílias de todo o Contestado, formando-se um grupo coeso, disciplinado e praticante de rituais e costumes próprios. Armados toscamente, os seguidores de José Maria faziam exercícios militares e diziam estar ali por ordem de São Sebastião, à procura de liberdade. (MCCANN, 2009, p. 175). Preocupadas, as autoridades federais enviaram uma unidade do Exército, com 160 soldados, que se concentrou em Caçador e Campos Novos. Em Curitibanos, 50 policiais catarinenses fechavam um triângulo em torno da cidade dos fanáticos. (MCCANN, 2009, p. 175). Mas os dois ataques, em dezembro de 1913, fracassaram. As tropas, despreparadas, debandaram tomadas pelo pânico das histórias sobrenaturais. Deixaram fuzis, víveres e quepes para trás. (MCCANN, 2009, p. 177). Em janeiro de 1914, formou-se um novo reduto em Caraguatá. Em 8 de fevereiro, uma coluna mista com 700 homens atacou Taquaruçu com artilharia e metralhadoras. (MCCANN, 2009, p. 177). O capitão Nestor Sezefredo dos Passos, “dirigiu a barragem de artilharia e galgou mais um degrau em sua ascensão a general mais importante da década seguinte”. Oficiais do Exército reconheceram que, independentemente de suas causas básicas, foi o ataque a Taquaruçu que pôs fogo na guerra do Contestado. (MCCANN, 2009, p.178). Hermes, apesar de muito envolvido com a crise no Ceará, depois que os sertanejos em Caraguatá rechaçaram um novo ataque, concluiu que os esforços, se fragmentados, não surtiriam efeito. Assim, nomeou comandante das operações um veterano da Guerra do Paraguai, da guerra civil de 1893-95 e de Canudos, onde foi ferido. Tratava-se do general-de-brigada Carlos Frederico de Mesquita. Mas, apesar de sua experiência, o general viu que não podia fazer muito com os parcos recursos à sua disposição. (MCCANN, 2009, p. 179). 70 A população local, a maioria imigrantes europeus, não apoiava o Exército, o que tornava inviável as requisições, se estas fossem autorizadas por lei, e mesmo as locações. (MCCANN, 2009, p. 180). Com o preparo individual em nível baixo, as unidades eram adestradas em manobras fáceis o que resultava na incapacidade das armas de combate para executar as tarefas mais elementares. A mobilidade da Artilharia era prejudicada por animais fracos. As unidades de abastecimento não conseguiam cumprir suas tarefas. (MCCANN, 2009, p. 180). Diante desse cenário, o general Mesquita, sem perspectiva de ser apoiado pelo Rio de Janeiro, depois de marchar com as unidades e realizar alguns ataques isolados e sem muito efeito, deu a campanha por encerrada e declarou exterminados os “fanáticos”. Para proteger a ferrovia, o general deixou um efetivo de duzentos homens, a comando do capitão João Teixeira de Matos Costa. (MCCANN, 2009, p. 181). Apesar da sincera vontade de resolver o conflito, chegando a levar à capital federal representantes sertanejos, o capitão Matos Costa seria emboscado e morto com seus sargentos, quando fazia a segurança de uma verificação de linha férrea. Segundo McCann (2009, p. 182), Setembrino observou, querendo obviamente sugerir que ele era o mais apto para sanar o problema, que o levante do Contestado requeria: Um aparelhamento militar completo e inteligentemente dirigido [...] o que se impõe, no caso, é uma energia tranquila dos verdadeiramente fortes, a atividade consciente de verdadeiros profissionais, o conhecimento lúcido. (MCCANN, 2009, p. 182). Após a retirada da tropa pelo general Mesquita, o aumento do desemprego agravou a situação na região. Grupos rebeldes passaram a atacar e destruir registros de imóveis em cidades. Não se tratava mais de um movimento de fanáticos messiânicos. Passou a ser uma luta pela propriedade. (MCCANN, 2009, p. 182). Diante da pressão feita sobre o Exército para agir, o ministro da Guerra, general Vespasiano de Albuquerque, nomeou Setembrino de Carvalho para o cargo de inspetor-geral interino da 11ª Região Militar. Sua missão era debelar a insurreição. Setembrino partira com a promessa de receber os meios apropriados. Foram deslocadas tropas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, algumas recentemente formadas e inexperientes. (MCCANN, 2009, p. 184). 71 Para não repetir o erro de Canudos, Setembrino decidiu evitar as incursões mal planejadas, sujeitas a emboscadas desmoralizantes, e adotar o cerco da área rebelde e o bloqueio das vias rebeldes de suprimentos para que a fome tirasse deles a vontade de resistir. O comandante restabeleceu o tráfego ferroviário, utilizando as linhas e outros acidentes naturais como delimitadores da área a ser cercada. Na falta de lei de requisição, Setembrino providenciou a contratação de empresas para abastecer a tropa. Estabeleceu hospitais de campanha em Rio Negro e União. (MCCANN, 2009, p. 186). Inicialmente, Setembrino adotou conduta para buscar uma solução pacífica. Enviou aos rebeldes um manifesto exortando-os a depor as armas e entregar-se ao comando mais próximo. Prometeu alimentos e avisou que os que se negassem seriam considerados inimigos. Nos últimos dias de setembro de 1914, as unidades das forças federais foram ocupando posição nos quatro lados do cerco, totalizando 6408 homens. (MCCANN, 2009, p. 187). Segundo McCann (2009, p. 188), os oficiais de A Defesa Nacional criticaram o papel do Exército no Contestado, cujas causas estariam ligadas a interesses políticos locais, ao fanatismo religioso e à luta pela terra. Na opinião dos editores: A causa fundamental era a ignorância lastimável em que o abandono criminosamente deixou essa pobre gente [...] que reduzia aqueles humildes sertanejos patrícios à condição de nossos inimigos. [...] Se era ruim ter de lutar com compatriotas e irmãos, seria pior deixar, aos poucos morrer o nosso Exército, abatendo-se-lhe o moral, por considerações sentimentais inoportunas, que sem melhorarem a situação, antes a prolongam. Uma vez que o Exército seja comprometido, não pode haver mais lugar para paliativos nem para concessões, que só servirão para enfraquecer a ação da tropa e desprestigiar o Exército. Enquanto os fanáticos recorrerem às armas, só poderá existir o objetivo militar de destruir o inimigo. O Brasil precisa de homens, mas de homens que colaborem, dentro da ordem, na obra de seu engrandecimento. (MCCANN, 2009, p.188). No final de setembro de 1914, o cerco se fechara. Um fracasso inicial na linha Norte gerou críticas, pela imprensa, à ofensiva e à cautelosa e lenta preparação de Setembrino. Quando o general atribuiu a causa do conflito às disputas entre os estados e não ao fanatismo religioso, políticos pediram seu afastamento. Além disso, Setembrino escreveu ao governador catarinense Felipe Schmidt cobrando o fim do problema de limites. (MCCANN, 2009, p. 191). Diante da reação do governador catarinense e das críticas da imprensa aos seus preparativos morosos, Setembrino apresentou sua renúncia ao ministro da Guerra, que prontamente recusou-a. Em dezembro de 1914, depois de uma 2ª 72 proclamação prometendo garantia de vida, de liberdade e a possibilidade de voltar a trabalhar àqueles que depusessem as armas, Setembrino empregou a força. (MCCANN, 2009, p. 192). Na linha Leste, a rendição não custou muito a ser obtida. Nas outras três linhas, porém, as tropas estavam mais ocupadas. Na linha Norte, atuava “o mais espetacular líder em combate da campanha”, o capitão Tertuliano de Albuquerque Potiguara. Era um oficial “ousado e agressivo, que varreu o inimigo à sua frente”. Era adepto da rapidez e da surpresa, surpreendendo o inimigo em seu flanco. (MCCANN, 2009, p. 193). No Sudeste, as tropas do coronel Estillac Leal entraram em Curitibanos, arrasada pelo fogo, e na “malsinada Taquaruçu”. Após isso, juntaram-se às tropas do major Paiva, seguindo para o Norte em direção a Campos Novos. Conseguiram separar sertanejos leais de rebeldes, que fugiram para o Noroeste, após a intensificação das patrulhas. Com as partes Sul e Leste limpas, as linhas desses lados do cerco, junto à do Norte, iniciaram a pressão nas direções Oeste e Noroeste. (MCCANN, 2009, p. 194). Com a intensa pressão, cada vez mais rebeldes decidiram render-se, motivados mais pelas questões políticas e de posse da terra do que pela religião. Famílias que chegaram a Canoinhas foram entregues às autoridades catarinenses para “compensar com trabalho os danos” em colônias agrícolas. Em Rio Negro, o caudilho coronel da Guarda Nacional Bley Netto supervisionou os campos de concentração, despachando sucessivas levas de ex-rebeldes para colônias paranaenses. (MCCANN, 2009, p. 194). Mas o destino dos ex-rebeldes dependeu também, em grande medida, da atitude do comandante da unidade à qual se entregaram. Alguns oficiais confiavam na palavra dos sertanejos e forneciam-lhe salvos-condutos, outros foram contratados como vaqueanos. Mas também houve os que toleraram atrocidades, como degolas coletivas em Canoinhas, praticadas por vaqueanos a serviço do Exército. As queimadas em redutos rebeldes, Setembrino justificou como necessárias à eliminação dos recursos de sobrevivência do inimigo. (MCCANN, 2009, p. 194). Em alguns casos, os prisioneiros eram estrangeiros e os incidentes geraram problemas ao Exército, ante o protesto de diplomatas. O novo ministro da Guerra, general José Caetano de Faria, que assumiu o cargo em novembro de 1914, 73 recomendara a Setembrino cuidado ao referir-se a esses episódios em seus relatórios. (MCCANN, 2009, p. 195). Era meados de janeiro de 1915 e muitos rebeldes refugiaram-se na área do rio Timbó, estabelecendo-se o principal reduto num dos seus afluentes, o rio Santa Maria. Entretanto, os oficiais não conheciam a localização exata dos redutos. O tenente Kirk, pioneiro da Aviação do Exército, e o aviador italiano Ernesto Davioli, contratado para dirigir a Escola de Aviação, realizaram voo de reconhecimento sobre vasta região de pinheirais. Não viram nada além de uma bandeira branca presa a pinheiros num monte próximo à parte extrema do vale. (MCCANN, 2009, p. 196). Do posto de comando estabelecido em Canoinhas, Setembrino emitiu novas ordens de operações com novos objetivos às linhas. Os lados do quadrado, cada uma das linhas, deveriam se tocar, fechando o cerco. O que parecia fácil no mapa tornou-se complicado pela topografia, comunicações deficientes entre as unidades, resistência rebelde e diferença entre lideranças. As linhas do Sul e do Oeste emperraram, enquanto as do Leste e Norte avançaram. (MCCANN, 2009, p. 196). Nessa altura da guerra, o ministro Caetano de Faria pediu a Setembrino para abreviar as operações, devido à proximidade do inverno e à falta de recursos. Diante da grave situação financeira nacional, o governo não pagava a tropa em dia e até os soldados pagavam imposto de renda. (MCCANN, 2009, p. 196). Taquaruçu foi incendiada pela segunda vez, para se evitar sua ocupação. As linhas convergiam e rumavam para o povoado de Santa Maria, na esteira de rebeldes maltrapilhos e exaustos, que lá firmaram suas posições para resistir, apesar de muitos líderes terem morrido ou se entregado. (MCCANN, 2009, p. 197). No Leste, três redutos situados às margens do rio Areia foram atacados, no início de fevereiro. Alguns redutos foram abandonados e o pessoal sumira na mata. Tamanduá e Santa Maria passaram a ser os objetivos principais da força de Setembrino. (MCCANN, 2009, p. 198). Com o cerco se fechando, no início de fevereiro, sob forte chuva e escaramuças constantes, os rebeldes abandonavam os redutos e com suas famílias rumavam para Timbó. A coluna Sul incursionava reconhecendo a partir de Perdizes Grandes, a leste de Caçador. Os rebeldes fixaram-se em densas florestas às margens do Santa Maria. (MCCANN, 2009, p. 199). Em fevereiro, a coluna Sul seria detida, em progressão árdua pela mata, pela fuzilaria dos rebeldes e retrairia para Tapera. (MCCANN, 2009, p. 199). 74 Apesar do sucesso na defesa, sentindo a pressão de Norte e Sul, muitos rebeldes estavam rumando com suas famílias para o Leste com o intuito de renderse ao comandante da linha, coronel César, que teria ganhado a reputação de tratar bem os prisioneiros. Mas alguns seguiam para Santa Maria, onde a fome aumentava com a interrupção dos suprimentos e a chegada de mais sertanejos. (MCCANN, 2009, p. 200). O tempo estava do lado do Exército. Um aperto constante do cerco teria encerrado o episódio, lenta e dolorosamente para os rebeldes. Mas nas operações militares sem morte e destruição a glória é pouca e as promoções, mínimas. Os últimos e dramáticos dias sangrentos determinariam em parte quem chefiaria o Exército na década seguinte. (MCCANN, 2009, p.201). Setembrino determinou à sua aviação, de dois homens, que levantasse a posição precisa do reduto de Santa Maria. Porém, em 1º de março, pouco depois de decolar, o avião do tenente Ricardo Kirk foi atingido por uma viração do tempo, provocando sua morte. Sem querer depender de um estrangeiro, Setembrino determinou o retorno do italiano Darioli com o outro avião para o Rio de Janeiro. O futuro da aviação militar preocupava os oficiais de A Defesa Nacional. (MCCANN, 2009, p. 201). Desejoso de comemorar os 45 anos do término da Guerra do Paraguai, em 1º de março, com um ataque, Setembrino ordenou-o ao comandante da coluna Sul Estillac Leal, que estava em Tapera. Sem apoio aéreo ou fogos observados, o ataque, que só ocorreu no dia seguinte ao marcado, teve pouco efeito sobre o reduto de Santa Maria. (MCCANN, 2009, p. 201). Obtidos os fogos observados, foi possível ao obus atingir com precisão uma procissão que saía da capela dando graças ao milagre de não terem sido atingidos à noite. Muitos fiéis foram despedaçados, alguns foram queimados ou soterrados no desabamento da capela. Os fogos destruíram, queimaram e mataram no reduto até às 15 horas. Mas após a ação, sob fogos rebeldes, as tropas de Estillac repetiram por um mês a rotina diária de combates diurnos e de retirada ao entardecer. Não tardou e o moral da tropa declinou, o que foi agravado pela vinda das chuvas de março e da redução dos suprimentos. O frio se intensificou e a água potável escasseou, pois as tropas sujaram os cursos d’água. (MCCANN, 2009, p. 202). Setembrino resolveu desencadear a ação decisiva, que se deu ao Norte. Seguindo os conselhos de Clausewitz, o general pretendia cortar as vias de 75 comunicação e retirada rebeldes, realizar bombardeios e ataques frequentes e um assalto decisivo. Mas a execução mostrou-se mais difícil que o plano. As comunicações, necessárias ao êxito, falharam. Não havia unidade de esforços pelos elementos de combate, que também não se ligavam com os serviços auxiliares. (MCCANN, 2009, p. 203). Apesar de uma crise de comando, que Setembrino atribuiu ao despreparo dos oficiais para combater, o general encontrou na coluna Norte um soldado como ele sonhava: o capitão Tertuliano de Albuquerque Potyguara. (MCCANN, 2009, p. 204). Entre março e abril, Tertuliano e sua tropa progrediram envolvidos em combates constantes. Em 1º de abril, chegaram à orla de Santa Maria, nas margens do rio Caçador, onde houve feroz resistência rebelde. Mas com o uso de metralhadoras foi possível tomar o reduto, queimar 1181 casas e contar 109 corpos. Continuaram progredindo, mas receberam ataques pela frente e flancos. (MCCANN, 2009, p. 204). A tropa de Potyguara prosseguiu em encarniçados combates, matando e desalojando sertanejos entrincheirados. Ao final, seus vaqueanos e cerca de um quarto dos soldados estavam feridos. A maioria dos seus oficiais havia morrido. A Sexta-Feira Santa se prestou para o descanso, o cuidado aos feridos e a vigilância. (MCCANN, 2009, p. 205). Naquela tarde, ele [Potyguara] ordenou que os corneteiros tocassem repetidamente o “toque da vitória [...] o qual ecoava por dentro daquelas matas virgens como um protesto da civilização contra a barbaria”. Nem as cornetas nem os numerosos tiros de aviso despertaram, nas palavras sarcásticas de Potyguara, “a fantástica coluna sul” ou o “veloz destacamento da coluna leste”. Desiludido, sentia-se explorado. Onde estavam? (MCCANN, 2009, p.205). O Sábado de Aleluia foi de luta para tomar Santa Maria. O reduto foi arrasado com apoio de fogos de metralhadora. Ouviam agora cornetas da coluna Sul, acampada em Tapera, a seis quilômetros. Tentavam se comunicar, em vão. A comida estava acabando. À noite, os rebeldes atacaram a posição, que era usada como “hospital”, com fogo cerrado. (MCCANN, 2009, p. 206). Ao amanhecer do Domingo de Páscoa, Potyguara ouviu o toque de alvorada da coluna, no outro lado da serra. Esperançoso, o capitão escreveu uma súplica ao comandante de Sul: 76 “Caro amigo Estillac – Estou aqui neste inferno depois de dez dias de marchas horrorosas sendo oito de combate dia e noite, peço-te que avances com a máxima urgência a fim de me auxiliar no resto da nossa espinhosa missão”. (MCCANN, 2009, p.206). Com o abrandamento da pressão rebelde, o capitão pôde observar melhor a situação da tropa. Restavam cinco projéteis por homem. O chefe dos vaqueanos morrera baleado na testa. Os gemidos da soldadesca ferida se misturavam ao barulho dos cavalos e mulas moribundos. Ao entardecer, os tiros rebeldes foram cessando. Logo ficou claro o motivo: aproximara-se rapidamente a vanguarda do 14º Batalhão, composta por vaqueanos. (MCCANN, 2009, p. 206). A mensagem de Potyguara a Estillac, na manhã de Páscoa, para sorte de sua tropa, “galvanizou a determinação” do coronel, que ordenou às unidades: “avancem até encontrar o capitão Potyguara, qualquer que seja a resistência oposta pelo inimigo (...)”. Mas os rebeldes não resistiram e o encontro foi possível. (MCCANN, 2009, p. 207). O encontro dos dois foi uma das cenas mais acrimoniosas da história militar brasileira. Esfarrapado, imundo, com um esgar no rosto irado e o muito usado facão na bainha, Potyguara avançou com passadas duras e vigorosas. Atrás dele, arrastavam-se exaustos seus homens, as roupas em tiras, cobertos de arranhões e feridas. [...] Sob os vivas do 51º de Infantaria Ligeira, os dois oficiais ficaram frente a frente. Potyguara perguntou secamente por que a “grande coluna” de Estillac não os encontrara muito antes. Estillac respondeu que durante semanas não tinham conseguido descer o vale devido à “grande resistência dos bandidos”. Não foi convincente nem naquele momento nem depois. (MCCANN, 2009, p.208). Apesar de rebeldes terem se reagrupado ao longo do rio São Miguel e em Pedra Branca, Estillac declarou “destruído o último reduto do banditismo. [...] A missão confiada ao Exército está cumprida”. Chegara o momento de encerrar a campanha. Setembrino destacou a atuação das tropas e declarou vitoriosa a campanha. As unidades retornaram para seus quartéis. Discursando em União da Vitória, o general “apontou para Potyguara e declarou que o capitão salvara a honra do Exército Nacional”. (MCCANN, 2009, p. 209). Uma pequena força permaneceu na área para eliminar rebeldes remanescentes. Prisioneiros sobreviventes foram inseridos em projetos de ocupação da região. A limpeza da área coube a forças mistas. Porém, em julho de 1917 surgiu nova ameaça, com a revolta de insurgentes contra o acordo de divisas entre Paraná e Santa Catarina. Mas o Exército, sem demora, debelou-os, tornando o Contestado “seguro para o progresso”. (MCCANN, 2009, p. 209). 77 Segundo McCann (2009, p. 210), a campanha deixaria marcas por gerações. Setembrino asseverou que “ela confirmou que o Exército necessitava de verdadeira organização e treinamento”. Com franqueza, o general escreveu: A feição irregularíssima da luta de modo nenhum invalida ou desmente os regulamentos do Exército baseados na magnífica doutrina alemã; tampouco ensinou algo novo, mas mostrou-nos com a sinceridade nua dos fatos que precisamos melhorar intelectualmente, praticamente. (MCCANN, 2009, p.210). O general criticou o desconhecimento dos oficiais sobre teoria militar e aconselhou melhorar o treinamento. E destacou, sem querer ser profético, que poderia haver uma crise disciplinar porque os oficiais de patente mais baixa eram mais bem treinados e mais críticos em relação aos superiores. (MCCANN, 2009, p. 210). Alguns veteranos do Contestado se juntariam ao “notável grupo de oficiais” que retornara do treinamento no Exército alemão, em 1913, e produziria a centelha reformadora que buscaria dar à oficialidade os atributos desejados por Setembrino. Ademais, a campanha havia despertado o interesse dos reformistas que, por meio de A Defesa Nacional publicariam artigos. (MCCANN, 2009, p. 211). De acordo com McCann (2009, p. 211), em 1917, os editores da revista resumiram o relatório de Setembrino e criticaram a “falta de previsão e de ação decisiva” e, de maneira severa, a República, pela ausência de normas políticas elevadas, o abandono de brasileiros segregados pela falta de vias de comunicações eficientes, de energia e de iniciativa. E alertaram: Aos nossos chefes militares, especialmente [...] a lição do Contestado não deverá impressionar tão somente pelo lado técnico [...] ela revelará ainda que a passividade com que o Exército vai recebendo as medidas mal inspiradas de origem política ou de caráter puramente administrativo, só lhe acarretará prejuízos morais e as mais funestas consequências ao país que não tem confiança no seu Exército. (MCCANN, 2009, p.212). Muitos oficiais que participaram da luta tiveram importante papel na década de 1920 e posteriormente. Três foram ministros da Guerra: o general Setembrino, o capitão Nestor Sezefredo dos Passos e o aspirante Henrique Batista Duffles Teixeira Lott, formado na primeira turma da nova Escola Militar do Realengo. Pelo menos dois foram Tenentes rebeldes na década de 1920: os segundos-tenentes Euclydes Hermes da Fonseca, filho do ex-presidente Hermes da Fonseca e comandante do Forte de Copacabana no levante de 1922, e Heitor Mendes Gonçalves. Na época da 78 Revolução de 1930, havia 109 oficiais veteranos do Contestado, tendo 26 deles chegado ao generalato. (MCCANN, 2009, p. 212). 79 12 A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL IMPÕE MUDANÇAS Segundo Arruda e Piletti (2004, p. 334): Em abril de 1917, os alemães afundaram no Canal da Mancha o navio mercante brasileiro Paraná: três pessoas morreram. Em represália, o Brasil rompeu relações com os agressores. Em outubro, outro navio brasileiro, o Macau, foi atacado. A indignação tomou conta do país. Em diversas regiões, os alemães foram alvo de agressões e o governo brasileiro decide declarar guerra aos alemães. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 334). A Primeira Guerra Mundial eclodiu quando o Exército brasileiro estava envolvido com o conflito no Contestado. Fascinava oficiais brasileiros observar os exércitos alemão e francês – modelos na época – testando-se um contra o outro em suas doutrinas, táticas, estratégias, tropas e equipamentos. Ao tempo em que focavam suas atenções no conflito europeu, as elites brasileiras guardavam silêncio sobre o Contestado, apesar da cobertura dada pela imprensa. (MCCANN, 2009, p. 214). No fim de 1917, o Brasil enviou à Europa uma equipe médica e soldados para [...] missões de patrulhamento. A Marinha colocou à disposição dos Aliados barcos de guerra [...]. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 334). Foi a guerra na Europa, e não no Contestado, o pano de fundo contra o qual os planos de reforma e reorganização elaborados nos anos anteriores foram postos em prática. O serviço militar obrigatório tornou-se realidade e alguns oficiais ansiavam por ver seu Exército ampliado juntar-se à luta na Europa. (MCCANN, 2009, p.215). Esse desejo foi frustrado. Entretanto, a implantação do serviço militar obrigatório permitiu ao Exército alcançar todo o território nacional e, consequentemente, o governo federal ganhou capacidade de intervir nos estados. (MCCANN, 2009, p. 215). 12.1 AS FORÇAS ARMADAS E A SOCIEDADE A eclosão da Primeira Guerra Mundial despertou a consciência das elites brasileiras, inclusive antimilitaristas tradicionais como Rui Barbosa, a respeito das fraquezas do país, sem, entretanto, haver consenso inicial sobre o que fazer. A Alemanha passara dos limites invadindo a Bélgica, que era neutra. Mas havia os que considerassem o conflito comercial e que o bloqueio britânico aos alemães traria 80 prejuízos ao Brasil ou que consideravam que os britânicos agiam com a Irlanda do mesmo modo que os alemães em relação aos belgas. (MCCANN, 2009, p. 215). O debate sobre o papel das Forças Armadas fez surgir três interpretações do papel do Exército na sociedade: a da revista A Defesa Nacional, a do poeta Olavo Bilac e a do político e escritor Alberto Torres. (MCCANN, 2009, p. 216). Os oficiais da revista eram um fenômeno militar, pois eram instruídos e bons comandantes de tropa. Visavam a tornarem-se modelos para as futuras gerações. Mas chocaram-se com dois outros grupos: os “doutores”, produtos da febre reformista de 1890 que deu à Escola Militar molde positivista, e os “tarimbeiros”, que ascenderam com pouca educação formal, alguns mal sabiam ler e decerto incomodavam-se com o ar superior evidenciado pelos “doutores”. Apesar de em 1914 os dois grupos estarem em declínio, muitos oficiais resistiam às mudanças por temê-las ou porque eram efetivadas por subalternos. (MCCANN, 2009, p. 216). O grupo de A Defesa Nacional baseava-se num grupo de 34 oficiais de baixa patente, chegado de uma missão de treinamento na Alemanha, além de outros, entusiasmados com suas ideias e com a possibilidade de aprender. A maioria era oriunda de Porto Alegre, da Escola de Guerra e da Revista dos Militares. Os reformistas acolheram o pejorativo apelido de “jovens turcos”, que lhes foi dado por detratores, porque os alemães haviam treinado oficiais turcos que, profissionalizados, tomaram o poder e conduziram a reforma em seu país. (MCCANN, 2009, p. 216). Além de fundarem a importante revista A Defesa Nacional, eles [os jovens turcos] e seus associados integraram a chamada Missão Indígena, que instruiu os cadetes da Escola Militar entre 1919 e 1923, influenciando, assim, os oficiais que liderariam o Exército na segunda metade do século. (MCCANN, 2009, p.216). McCann (2009, p. 217) afirma que, apesar de ressaltarem a defesa externa como principal função do Exército, os reformistas não o propunham alheio à sociedade, mas que oficiais fossem apolíticos, mantendo-se longe da política partidária e de atividades estranhas à instituição. Porém, consideravam papel do Exército a intervenção militar na sociedade e publicaram na revista: [...] As sociedades nascentes têm necessidade dos elementos militares para assistirem à sua formação e desenvolvimento. Quando a sociedade atingir um nível elevado de civilização poderá livrar-se da tutela militar e só então as Forças Armadas poderão se limitar à sua verdadeira função. (MCCANN, 2009, p.217). 81 Também defenderam a ideia de que o Exército deveria estar aparelhado para desempenhar sua “função conservadora e estabilizante na sociedade em mudança”. Viam-no também como o “primeiro fator de transformação político-social”. Nesse contexto, seu objetivo seria passar à sociedade “as virtudes de um bom exército: disciplina hierárquica e social”, a abdicação ao individual em prol do coletivo e “o senso do dever e sacrifício pela Pátria”. Além disso, não aceitavam cruzar os braços e deixar a defesa do Brasil, um dos mais opulentos dos países, confiada à própria sorte. Estavam convictos de que “o progresso é obra dos discentes”. (MCCANN, 2009, p. 217). Na ideia de criticar para corrigir erros, no final de 1914, os reformistas passaram às mãos do ministro da Guerra, general José Caetano de Faria, um programa vasto de reformas. Nele havia sugestões práticas, que visavam ao aumento da eficiência, como procedimentos do serviço militar obrigatório, a organização do Exército e da conduta da oficialidade, dentre outras. (MCCANN, 2009, p. 218). Pondo em prática suas ideias reformistas, os jovens turcos passaram a treinar cabos e sargentos para que ficassem aptos a treinar os recrutas. Essa providência revolucionária talvez tenha contribuído para agitações posteriores entre os subalternos, pois os tiravam da marginalidade. (MCCANN, 2009, p. 218). A concepção de Olavo Bilac a respeito do Exército na sociedade não se baseava em seu papel defensivo. Considerava mais importante a função de ensinar, educando os cidadãos no civismo. Para tanto os quartéis deveriam absorver todas as classes sociais, nivelando-as e “ensinando disciplina, patriotismo e ordem”. Ao mesmo tempo evitar-se-ia formar uma casta militar, pois o Exército seria o povo e vice-versa. (MCCANN, 2009, p. 219). Bilac apontava o serviço militar obrigatório como “uma promessa de salvação” para o Brasil. Refletindo a ideia dominante na classe média de que o Brasil não era uma nação coesa e unificada, para ele as classes privilegiadas da elite queriam apenas seu próprio prazer e prosperidade, as classes inferiores eram mantidas “na mais bruta ignorância”, mostrando “só inércia, apatia, superstição [e] absoluta privação de consciência”, enquanto os imigrantes estrangeiros viviam isolados pela língua e costumes. A “militarização de todos os civis” daria à sociedade as virtudes da classe média, dotando-a da coesão necessária para preservar-se. O serviço militar elevaria os da classe baixa e nivelaria os da alta. (MCCANN, 2009, p. 219). 82 Segundo McCann (2009, p. 219), a visão de Bilac sobre os sertanejos e os ociosos das cidades era radicalmente negativa. Considerava que a classe média, para ele os verdadeiros brasileiros, deveria ser aperfeiçoada antes de querer fazê-lo com o povo. Nesse contexto, atribuiu às oligarquias rurais a culpa pela miséria do povo. Para Bilac: Só a classe média possui a completa cultura intelectual e moral, a elevação de espírito e a capacidade de colocar-se acima dos interesses pessoais, de classe ou partidários, sendo, pois destinada à sagrada missão de governar e dirigir a multidão. (MCCANN, 2009, p.220). O poeta também ressaltou que os militares já eram possuidores de qualidades superiores e tinham condições de auxiliar a classe média a chegar pacificamente ao poder. E via no Exército o povo remodelado e liderado pela classe média e, nesse contexto, os oficiais como patriotas, sem ambições políticas, fanáticos por sua profissão. (MCCANN, 2009, p. 220). E assim Bilac fez uma campanha para levar essas mensagens ao coração do Brasil moderno, com discursos patrióticos, particularmente nas cidades mais dinâmicas do centro-sul e, principalmente a São Paulo, que vivera a campanha antimilitarista de Rui Barbosa, em 1910. (MCCANN, 2009, p. 220). Para solucionar a falta de espírito nacional, o regionalismo extremado e a exagerada influência estrangeira, Bilac via a necessidade de “fundir o Exército com o povo em uma mentalidade democrática comum”. Ressalta-se que Bilac era antimilitarista, chegando a ser brevemente preso por Floriano Peixoto, em 1893, por condenar seu avanço militarista. Apesar de sonhar com uma era sem guerras ou exércitos, considerava que o perigo de elas ocorrerem impunha aos países preparação, sob o risco de humilhação e ruína. (MCCANN, 2009, p. 220). O escritor e político fluminense Alberto Torres fora deputado estadual e federal, ministro da Justiça e Negócios Interiores, presidente do estado do Rio de Janeiro e juiz do Supremo Tribunal Federal. Em 1914, publicou dois livros muitos debatidos: A organização nacional e O problema nacional brasileiro. Sua visão era coincidente com a de Olavo Bilac sobre a necessidade de organizar o país. Mas não aceitava o modo como queria fazê-lo. Considerava que os soldados seriam apenas treinados nos quartéis e que as demais qualidades de cidadão as trariam de casa. Ou seja, Alberto não cria na educação pela caserna. (MCCANN, 2009, p. 221). 83 E [Alberto Torres] propôs, em vez de uma solução militar, em vez do modelo turco, que seguissem o modelo do Japão, Nova Zelândia e Austrália, construindo a unidade e a infraestrutura nacional. Alertou que, devido à “anarquia da organização” no Brasil, o serviço militar obrigatório malograria antes de começar. (MCCANN, 2009, p.222). Alberto também criticava o fato de o Exército e o corpo de oficiais serem permanentes, o que, segundo ele, fazia surgir uma hierarquia privilegiada e tendia a “evoluir para uma casta autocrática”. Asseverava que fazer um corpo de oficiais proveniente das classes mais baixas não resolveria e que a guerra na Europa mostrava impositiva a criação de um “exército de cidadãos, uma milícia civil semelhante à da Suíça ou à Guarda Nacional dos Estados Unidos”. (MCCANN, 2009, p. 222). Na verdade, Torres não considerava importante a defesa militar, e sim a defesa nacional, com base no governo constitucional, na educação pública, num organizado sistema jurídico, numa economia forte, crédito externo comedido, propaganda pacifista e, por último, numa força militar. (MCCANN, 2009, p. 222). Tanto Bilac quanto Torres queriam limitar o papel das Forças Armadas às suas funções específicas. Mas, para o Exército, era mais fácil aceitar as ideias do poeta, principalmente pelo caráter reformador da sociedade, que lhe foi atribuído, por meio do papel educativo do serviço militar obrigatório. Mas a morte dos dois pensadores, em pouco tempo, entre 1917 e 1918, deu ao Exército a possibilidade de se servir das ideias de ambos, sem embaraços. (MCCANN, 2009, p. 223). 12.2 O SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO Para que as reformas propostas pelo general Faria fossem implementadas, o Exército não mais poderia ser o braço forte dos dirigentes. Para “tornar-se uma força qualificada”, seus oficiais teriam de afastar-se da política partidária e uma reserva mobilizável deveria ser formada por meio do treinamento de soldados. Para tal, o ministro acatou a sugestão do seu ajudante-de-ordens e jovem turco, tenente Leitão de Carvalho, e dirigiu-se aos oficiais no discurso de ano-novo, exortando-os a focar na carreira e afastar-se das refregas políticas. Era 2 de janeiro de 1915 e as palavras idealistas, que surpreenderam os oficiais da guarnição do Rio de Janeiro, tornaram-se inspiração para os que rezavam pelo profissionalismo. (MCCANN, 2009, p. 229). 84 O principal problema do Exército em meados da década de 1910 implementar, finalmente, o serviço militar obrigatório. [...] Aprovada 1908, a lei permanecera engavetada porque o Congresso cortara drasticamente o efetivo do Exército que o pequeno efetivo autorizado preenchido por voluntários. (2009; p. 229). era em tão era Houve esforços de comunicação social, baseados nos discursos de Olavo Bilac, que resultaram na fundação da Liga de Defesa Nacional, em 7 de setembro de 1916. A liga buscava construir uma mentalidade de defesa nacional e era presidida de forma honorária pelo mandatário da nação, Venceslau Brás, e secundada pelo ministro da guerra, general Faria. Essa disposição e de outros líderes nacionais conquistou líderes estaduais, que ingressaram em diretórios regionais. As atividades que se seguiram criaram um crescente clima de nacionalismo. A campanha surgiu do Alto-Comando, com os esforços de Faria e do Chefe do Estado-Maior do Exército, general Bento Ribeiro, cujo ajudante-de-ordens era amigo do poeta, que passou a ser prestigiado pelos generais e muitos oficiais. O Clube Militar ofereceu um banquete em sua homenagem. (MCCANN, 2009, p. 230). O Congresso, porém, estava dividido. Uns louvaram o serviço militar obrigatório, por seu papel na unidade nacional, mas outros achavam que o Exército não moldava o caráter dos homens. Houve críticas de Alberto Torres, é claro, mas também da imprensa, ao sorteio para preencher claros, e até de um general, Gabino Besouro, fez oposição e foi afastado das funções por opor-se publicamente à mudança, que dizia ilegal e porque o Exército não estaria preparado para a “avalanche de sorteados”. A discussão acontecia quando a guerra grassava na Europa e o Contestado abalava o Exército e o sertão da região Sul. (MCCANN, 2009, p. 230). Aproveitando o ânimo do momento, Leitão de Carvalho redigiu telegramas, que foram assinados pelo general Faria e enviados aos governadores dos estados, solicitando a instalação das juntas de alistamento e seleção. A Liga de Defesa Nacional se empenhou em debates e publicidade na imprensa e o comando do Exército fez lobby no Congresso por verbas e efetivos. E com cerimônia nos principais centros urbanos, o sorteio entrou em operação, entre 10 e 17 de dezembro de 1916. Apesar de alguns recursos contra o sorteio, o Supremo Tribunal Federal considerou-o constitucional. Assim, quarenta e dois anos depois da lei que o criou, em 1874, a primeira incorporação de recrutas sorteados dava início à história do Exército “como força qualificada”. (MCCANN, 2009, p. 231). 85 12.3 OS SARGENTOS SE REBELAM Apesar dos progressos, o sistema teve problemas após sua implantação. Houve conspirações nas duas Forças Armadas e nas Forças Auxiliares do Rio de Janeiro, por razões socioeconômicas e reformistas. Pleiteavam a criação da graduação correspondente ao suboficial existente na hierarquia estadunidense e o fim do “favoritismo inerente às nomeações ministeriais para a categoria de oficial administrativo”. (MCCANN, 2009, p. 232). O Alto-Comando se opunha às reivindicações considerando-as inviáveis pela pouca instrução que tinham os sargentos. Os chefes militares consideravam também inviável a nação assumir o encargo de proteger as famílias dos sargentos da tropa, porque não haveria um que não se casasse. (MCCANN, 2009, p. 232). Os sargentos também conspiravam pelo parlamentarismo, pela reforma política e territorial dos estados, pela educação primária, pela livre navegação, pelo serviço militar obrigatório, pela instrução religiosa, pelos direitos políticos dos estrangeiros e contra a corrupção. (MCCANN, 2009, p. 232). Segundo o general encarregado do inquérito, Abílio de Noronha, teria havido incitação dos sargentos por políticos civis, para que assassinassem oficiais, com a promessa de promoções a altos postos. (MCCANN, 2009, p. 232). Em 1915, quando 256 sargentos foram presos, expulsos do Exército e levados para locais do Norte, Nordeste e Rio Grande do Sul, seu exílio despertou a simpatia da soldadesca, dos oficiais inferiores e de alguns superiores [...] Para Edgard Carone, “a ideologia tenentista é, em grande parte, continuação da dos sargentos”. (MCCANN, 2009, p.233). Como consequência, houve grave desfalque ao efetivo na guarnição do Rio de Janeiro. Rompeu-se também a cadeia de comando, pois oficiais descobriram que sargentos considerados de confiança estavam envolvidos. O ministro Faria buscou amenizar uma das causas da rebelião acabando com a nomeação ministerial e implantando um exame competitivo. Não era tudo o que queriam, mas deu novo ânimo aos sargentos a possibilidade de tornar-se oficial e sonhar com um futuro melhor. (MCCANN, 2009, p. 233). 12.4 O ESFORÇO PELO SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO 86 Os últimos acontecimentos em 1915 tornavam o serviço militar pouco atraente para ”os filhos da classe média urbana e dos proprietários rurais”. O Exército acabara de encerrar a campanha do Contestado, houvera a rebelião dos sargentos e a situação política exigira muitos movimentos de tropa. Estava difícil completar as vagas, pois quase a metade dos sorteados não se apresentava para o exame médico e muitos que iam estavam fisicamente inaptos. (MCCANN, 2009, p. 234). O Alto-Comando buscou amenizar a situação com uma campanha exaltando as maneiras de como ficar rapidamente em dia com as obrigações militares. Os Tiros foram uma delas. Mas a sua proliferação acarretou em falta de oficiais de baixa patente para atuar como instrutores. Para sanar o problema, o general Faria criou uma escola na Vila Militar do Rio de Janeiro que instruiria oficiais e sargentos reformados para a função e seria a precursora da Escola de Sargentos das Armas. (MCCANN, 2009, p. 234). O sorteio, porém, não conseguiu atingir seu fim principal: a criação de uma reserva que contribuísse para a coesão nacional e igualdade social. Isto porque as incorporações, geralmente, vieram das classes pobres e analfabetas. As classes média e alta ficaram de fora. A condição socioeconômica das praças, na Segunda Guerra, seria muito parecida com a de 1905. Segundo diria o general Eurico Dutra, os brasileiros mostravam “uma rebeldia visceral contra a carreira das armas”. (MCCANN, 2009, p. 234). Mas havia várias razões que dificultavam a convocação, além do comportamento restringente dos jovens: as grandes distâncias brasileiras; os registros civis municipais deficientes; e a complacência das polícias e juntas militares com os insubmissos. (MCCANN, 2009, p. 234). Para amenizar a situação, o ministério da Guerra tentou convencer o governo a tornar exigência estar em dia com o serviço militar para a posse em cargos públicos federais e estaduais. Mas essa medida demoraria a estar vigente. (MCCANN, 2009, p. 235). Apesar dos problemas, o sistema possibilitava a expansão física do Exército e contribuiu para o maior envolvimento da Força Terrestre na sociedade e na política. E mantendo os recrutas próximos às suas regiões, era possível dar uma imagem do Exército no local, além de permitir economia com os transportes que seriam necessários no caso de se centralizar o treinamento em poucos campos. (MCCANN, 2009, p. 235). 87 A partir de outubro de 1917, quando o Brasil entrou na Primeira Guerra Mundial, o efetivo do Exército mais do que dobrou, chegando a 52 mil. A guerra justificou a expansão imediata do efetivo. Se vestir, alojar e alimentar o efetivo já era difícil, mais ainda seria armá-lo e treiná-lo. (MCCANN, 2009, p. 236). Em meados de 1918, já havia uma unidade por estado. O crescimento iniciado nesse momento seria mantido nas décadas seguintes, o que coincidiu com o seu maior envolvimento político, como braço forte do Estado Novo e dos governos militares de 1964-85. Essa expansão também aumentaria a influência do Exército sobre as polícias estaduais e a Guarda Nacional, que passaram a ser forças auxiliares, em janeiro de 1917. (MCCANN, 2009, p. 236). A Guarda Nacional tornara-se a segunda linha do Exército. Em 1918, um decreto determinou sua remodelação que, por pressão de oficiais, resultou na sua extinção. A influência e o poder sempre aumentam quando há o monopólio do poder de fogo. Satisfeito, o general Faria comentou: “ficarão, assim, organizadas, pela primeira vez entre nós, todas as forças que devem constituir o poder militar da nação”. (MCCANN, 2009, p. 237). 12.5 MATERIAL DE EMPREGO MILITAR E A INDÚSTRIA NACIONAL Iniciada no Brasil pouco antes de 1880, a industrialização ganhou impulso entre 1886 e 1894. Depois da crise de 1929, a agroexportação foi desbancada pela indústria, que passou a ocupar o centro vital da economia. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 404). McCann (2009, p. 237) afirma que o aumento do efetivo do Exército exigia mais armas. Pouco antes de eclodir a guerra na Europa, foram compradas armas da Alemanha. Mas o bloqueio britânico àquele país impedira o material de chegar ao Brasil. Os oficiais reformistas ficaram convencidos de que o Brasil deveria ser capaz de produzir seu armamento. Para tanto, A Defesa Nacional dizia ser impositivo o desenvolvimento industrial e, como os oficiais florianistas da década de 1890, afirmava: Proteger indústrias parasitárias, fictícias, que importam matéria prima e até já confeccionados como produção nacional, é roubar o povo para enriquecer meia dúzia [...] beneficiando a produção estrangeira e esfolando a economia nacional. (MCCANN, 2009, p.237). 88 Em 1919, o sucessor do ministro Faria, general Alberto Cardoso de Aguiar, afirmava serem o serviço militar obrigatório (homens) e a autonomia em relação a recursos materiais do exterior (armas) a garantia aos meios de defesa militar do país. Mas, desde o fim da Guerra do Paraguai, a política era comprar armas no exterior e os arsenais e as oficinas de reparos do Exército estavam em más condições. A fábrica de cartuchos e projéteis do Realengo, reconstruída depois da explosão de 1898, funcionou com metal e pólvora alemã. O próprio fisco facilitava a importação desses materiais. (MCCANN, 2009, p. 237). A Primeira Guerra, porém, convencera os oficiais da necessidade de produzir a própria munição. Os ministros da Guerra tentavam convencer o Congresso a esse respeito desde a virada do século. Em 1909, o Exército instalou na cidade paulista de Piquete uma fábrica de pólvora sem fumo, com base em indústrias similares no exterior. Mas descobriu-se que o algodão e álcool estadunidenses tinham preço mais baixo que no Brasil, o que tirou competitividade da produção da fábrica. Mas também a política e a corrupção atrapalharam. Muitas vezes produtores nacionais eram estranhamente contratados para entregar fardas e equipamentos piores e mais caros que similares estrangeiros. (MCCANN, 2009, p. 238). Os oficiais de A Defesa Nacional, em 1914, criticavam essas situações, como na Fábrica de Realengo, que fora modernizada e expandida e, no entanto, perdera sua seção de artilharia e produzia menos cartuchos que antes. A crítica se estendia ao operariado, que, segundo a revista, estava habituado a ser pago para pouco fazer. Aludiam também à necessidade de autonomia em relação ao estrangeiro para as nossas fábricas munições. Acenavam com a ameaça platina, ressaltando que a Argentina estava em melhor condição nesse aspecto e que um conflito sulamericano poderia deixar o Brasil isolado da Europa. (MCCANN, 2009, p. 238). Também foram marcantes na década de 1910 os difíceis passos do início da aviação do Exército. O tenente Kirk, piloto formado por iniciativa própria, morrera no Contestado. A Escola de Aviação seria dirigida por um italiano, que teria de basear os treinamentos dos pilotos no apoio do Aeroclube Brasileiro e da Marinha, que treinava seus oficiais em hidroplanos. Em 1918, o Exército tinha meia dúzia de pilotos e um avião, o primeiro feito no Brasil, na Fábrica de Realengo, mas ao qual faltou o motor nacional. (MCCANN, 2009, p. 239). O primeiro efeito da guerra foi a drástica redução dos investimentos industriais. A produção expandiu-se em 1915 e 1916 com a utilização plena 89 da capacidade instalada. Começou a declinar em 1917, e seu crescimento tornou-se negativo no ano seguinte, pela falta – gerada pela guerra – de matérias primas, máquinas e equipamentos importados. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 405). A Primeira Guerra mostrou o perigo de o país depender de materiais estrangeiros, ainda que mais baratos. A perda de uma encomenda de canhões e metralhadoras alemãs, parte já paga, indicava isso. Porém, se era difícil importar, pior era depender de fornecedores domésticos que não tinham capacidade de atender as demandas militares. Diante da questão, o Exército criou a Diretoria do Material Bélico e adotou política de livrar-se da dependência estrangeira. (MCCANN, 2009, p. 240). A velha Fundição de São João de Ipanema, São Paulo, de 1808, foi reformada em 1918, mas sua produção era modesta para atender a necessidade militar de novas fontes de ferro e aço. Portanto, o diretor foi mandando pelo ministro da Guerra aos Estados Unidos, para aprender métodos modernos. (MCCANN, 2009, p. 240). Segundo McCann (2009, p. 240), muitos oficiais concordavam com a discussão presente no meio civil de que o país, para ser senhor do seu destino, precisava de indústria siderúrgica. Mas a empresários e políticos paulistas, isso não interessava. Em São Paulo, as fundições de sucata prosperavam e não queriam a concorrência do rico ferro de Minas Gerais. Ademais, os editores da revista A Defesa Nacional sentiam-se frustrados diante do argumento de alguns que, refutando a implantação da indústria siderúrgica, achavam que ela demandaria despesas improdutivas. Para convencer as opiniões mais resistentes, os reformadores do Exército expunham o exemplo da siderurgia estadunidense, que era produtiva nos tempos de guerra e paz. Para eles, se o aço brasileiro não fosse competitivo no exterior, seria ao menos útil à produção interna e à defesa nacional. E declararam: “Acreditamos que o governo [...] não pode alhear-se à solução definitiva que exige a magna questão da siderurgia nacional. [...] É preciso fundar a indústria nacional do aço”. (MCCANN, 2009, p.241). Para aprimorar a situação militar brasileira, o ministro Faria enviou duas missões de estudo ao exterior, durante a guerra. Uma para a França, a fim de observar aspectos da “arte da guerra” no conflito e outra aos Estados Unidos, para aquisição de material bélico. Também foi enviado um hospital militar que se instalou próximo a Paris. (MCCANN, 2009, p. 242). 90 A missão que foi aos Estados Unidos reuniu-se com industriais e visitou fábricas e arsenais militares, além de ter contratado um químico metalúrgico e um superintendente para a seção de projéteis do Arsenal do Rio de Janeiro. Mas os resultados da visita foram limitados pela pequena participação do Brasil junto aos aliados da Primeira Guerra, por não ter mandado tropas. O general Faria considerava o Exército despreparado para tal. (MCCANN, 2009, p. 242). 12.6 AS REFORMAS DO EXÉRCITO E DA NAÇÃO Os reformistas defendiam que “o distanciamento da política e a lealdade ao governo federal” marcavam o profissionalismo. Eles pensavam que com argumentos coerentes poderiam convencer os líderes políticos a respeito da importância da defesa nacional. Mas a política não era neutra e nem priorizava o bem da nação. Além disso, após a Primeira Guerra, os reformistas militares viram que o sistema político não queria a reforma do Exército, porque isso colocaria o sistema em perigo. (MCCANN, 2009, p. 243). Esse sistema vigente à época, a “Política dos Governadores”, consolidara-se após o governo Floriano, nos mandatos de Prudente de Morais e Campos Sales, entre 1894 e 1902. Caracterizava-se pelo partido único, o Republicano Federal, pelo voto exclusivo às oligarquias e aos governadores e pelo “toma lá, dá cá” entre governadores que, em troca de autonomia, apoiavam os projetos do presidente no Congresso, com suas delegações. Nesse contexto, São Paulo e Minas Gerais, com seu poderio econômico, dominavam a cena. (MCCANN, 2009, p. 243). Não foi nos primeiros momentos, mas os reformistas militares perceberam que a sua visão do Exército era incompatível tanto com a sociedade como com o sistema político vigente. Esses oficiais amparavam suas constatações no profundo conhecimento do Exército alemão, nas experiências do Contestado e nas tentativas de efetivar-se o serviço militar obrigatório, após 1916. Queriam a germanização do Exército, por meio de uma missão militar alemã. E, a partir de 1914, empenharam-se pelo convite brasileiro aos militares germânicos. (MCCANN, 2009, p. 243). Mas sofriam oposição ferrenha dos francófilos, que tinham como argumentos a compatibilidade latina, a experiência francesa com tropas mistas e nativas e o idioma, no qual os oficiais brasileiros eram fluentes. (MCCANN, 2009, p. 243). 91 Em 1916, os editores de A Defesa Nacional concentraram sua análise crítica no país e começaram a adotar um tom quase revolucionário. [...] Os editores ecoaram a declaração de Alberto Torres de que o Brasil não era um país, nação ou pátria, mas “uma exploração”. [...] Apontaram como exploradores políticos, juízes, congressistas, funcionários públicos e bacharéis cujos cargos [...] multiplicavam-se com o aumento de sua prole, e que protestavam todos contra “a humilhação do serviço militar”. Os explorados eram [...] “o povo que trabalha, que moureja, que paga impostos de suor e sangue. Só ele tem o dever de dar a vida pela pátria; os outros reservam-se apenas o direito de desfrutá-la. [...] Não há dúvida – o Brasil é uma exploração [...] Nós somos uma nação improvisada, sem raízes no passado, de formação étnica indefinida e fácil, portanto, de esboroar-se (demolir-se)”. (2009; p.245) A visão dos editores da revista era de necessidade de preparar-se para um possível inimigo externo, estando, porém, alerta a um interno e mais provável: “a falta de coesão nacional”. Além disso, viam que o povo deveria deixar de iludir-se por uma imprensa imodesta, que ressaltava demais algumas figuras brasileiras, e “trabalhar para elevar-se ao nível dos povos mais avançados”. Os editores se indignavam com as elites, que não olhavam para o Brasil. Elas preferiam ajudar os desabrigados belgas e franceses a auxiliar vítimas do Contestado. E afirmavam que o país atravessava um período histórico decisivo, estando muito próximo de constituir em definitivo uma “nacionalidade imperecível”, mas estando muito próximo do “abismo da dissolução e da ruína”. Segundo os editores, tudo dependia da ação das classes dirigentes. (MCCANN, 2009, p. 246). Mas muitos oficiais teriam de ser convencidos a apoiar a campanha por um exército nacional. Achavam que um exército deveria ser predominantemente profissional e exemplificavam os que as potências europeias mantinham em suas colônias. Os editores da revista destacaram que essas potências tinham tropas profissionais nas colônias por temer o despertar de sentimentos nacionalistas por nativos, caso integrassem uma tropa. Diziam eles, porém, que as mesmas nações europeias possuíam em seus territórios exércitos nacionais, para manter a coesão. (MCCANN, 2009, p. 247). O tenente Mário Travassos, veterano do Contestado, escrevera que as escolas militares estavam mais eficientes. Os aspirantes saíam sabendo equitação, tiro, exercícios de simulação e não mais teorias abstratas. Para ele, o gigante despertara. Havia um número reduzido de oficiais de todas as patentes que havia feito o Exército acordar. E concitou os demais a juntar-se a eles, deixando de lado a inércia e a indiferença impatriótica. Apesar de os editoriais terem motivado os oficiais 92 a pensar o Brasil e as soluções dos seus problemas, estas viriam em longo prazo e os objetivos reformistas eram mais imediatos. (MCCANN, 2009, p. 248). 12.7 OS JOVENS TURCOS IMPÕEM SUA VISÃO Os jovens turcos e o general Faria agora corriam contra o relógio para fazer valer suas visões a respeito do Exército, pois o governo Venceslau Brás, em 1918, estava terminando. Com a guerra na Europa chegando ao fim, a pressão por uma missão militar francesa aumentou. Com estadunidenses e britânicos mais interessados nas vendas à Marinha, Faria possibilitou a compra de material de artilharia e aviação dos franceses, mas manteve a doutrina alemã, defendida nas páginas de A Defesa Nacional. (MCCANN, 2009, p. 248). Havia também preocupação em consolidar a escola formadora de oficiais. Desde o fechamento da Praia Vermelha, em 1904, buscava-se atingir um equilíbrio entre instrução militar e educação formal. Além disso, o regulamento de 1913 ratificou a proibição do ingresso de oficiais para cursar a escola e que foi fator contribuinte para as revoltas escolares de 1897 e 1904. O documento também limitou a idade máxima para ingressar, além de exigir que os candidatos fossem oriundos de colégios militares preparatórios ou da tropa, no caso dos soldados. Mas em 1919, ainda haveria oficiais no corpo discente. Eles teriam papel de destaque nas revoltas da década de 1920. (MCCANN, 2009, p. 249). O ministro Faria também levou o Estado-Maior do Exército à condição de núcleo do Exército, pois lá esteve como chefe, entre 1910-14 e facilitou a relação com a pasta da Guerra, como ministro entre 1914-18. Aos generais Faria e Bento Ribeiro atribui-se o “desenvolvimento nativo” do órgão, antes que os franceses chegassem, em 1919. Foi nele que se planejou a reestruturação do Exército, que fora concretizada em 1915. (MCCANN, 2009, p. 249). Bento Ribeiro introduziu o processo seletivo à Escola de Estado-Maior, em detrimento da seleção aleatória. Visava com isso a melhorar a qualidade dos oficiais e, por conseguinte, do próprio Estado-Maior. (MCCANN, 2009, p. 250). Bento discordou de Faria a respeito da reforma do ensino, cuja prática era deficiente, por falta de experiência dos instrutores. Faria achava que os jovens turcos teriam condições de sanar o problema enquanto Bento pensava ser mais eficaz contratar uma missão estrangeira, o que foi sugerido pelo Estado-Maior do 93 Exército em 1917, sem especificar a nacionalidade, mas descartando-se, naturalmente, a opção alemã dos jovens turcos e muito do trabalho de inspiração germânica que já haviam feito. (MCCANN, 2009, p. 250). Os dois generais preferiram uma solução intermediária. Bento considerou a antipatia de Faria pela missão estrangeira e deu início à revitalização da Escola Militar, com uma equipe selecionada de oficiais de inspiração alemã. (MCCANN, 2009, p. 250). A Defesa Nacional, no início de 1918, publicou análise da educação militar, argumentando que a preparação de um oficial deveria ser um processo continuado ao longo da carreira. O treinamento adicional ocorreria em uma série de escolas a frequentar durante a carreira. Os editores continuaram a admirar os germânicos mesmo após a declaração de guerra pelo Brasil. (MCCANN, 2009, p. 250). Visou também a melhorar o ensino a elaboração de um exame a ser aplicado para selecionar os novos instrutores, baseado no método e não mais no favoritismo. Os oficiais selecionados, ao chegarem à escola, em dezembro de 1918, logo ganharam o apelido de “Missão Indígena”. A geração de instrutores viria a romper o atraso e o comodismo que grassava a rotina do Exército, adaptando ao meio militar brasileiro os ensinamentos do Exército alemão. (MCCANN, 2009, p. 251). Para aproveitar o novo sistema e garantir a familiaridade com os novos métodos, os aspirantes [...] de 1918 foram retidos na escola por mais um ano a fim de ser treinados pelos novos instrutores. O resultado inesperado seria uma turma combinada em 1919 que conteria os rebeldes mais tecnicamente profissionais que o Exército já enfrentou: os famosos tenentes (tenentismo) [...]. (MCCANN, 2009, p.252). Encerrava-se o governo de Venceslau Brás, em novembro de 1918, e o ministro Faria sentia-se satisfeito por ter colocado o Exército num caminho diferente da década passada, rumo à modernização. (MCCANN, 2009, p. 252). Agora haveria continuidade, pois o general Bento Ribeiro permaneceria no cargo de chefe do Estado-Maior. Mas, nos anos seguintes, haveria mais mudanças, influenciadas pelos franceses e motivadas pelo abalo que o ciclo revolucionário de 1922 causaria. Ademais, Leitão de Carvalho e seus camaradas de A Defesa Nacional sabiam que o trabalho ainda estava incompleto. Faltava “reformar o Exército de baixo para cima”. 94 13 O EXÉRCITO E O PROFISSIONALISMO Em 1918, as ruas da capital estavam desertas. Os cadáveres se acumulavam. A gripe espanhola acometia todas as classes e idades. Em outubro e novembro, moldava-se o novo governo do ex-conselheiro do Império e ex-presidente do Brasil, entre 1902-06, Francisco de Paula Rodrigues Alves, que lutava contra a doença na paulista Guaratinguetá, onde morava. (MCCANN, 2009, p. 254). A gripe desembarcara no Brasil, trazida por um navio do correio britânico, o Demerara, cujos doentes contaminaram-se em Dacar. A moléstia se alastrou, acometeu metade da população carioca (500 mil pessoas) e “mil corpos jaziam insepultos” no cemitério do Caju. (MCCANN, 2009, p. 254). Duas semanas depois da notícia da epidemia, as Forças Armadas intervieram, assumindo o controle e instalando quatro hospitais temporários. Ao fim do surto, 16997 pessoas haviam morrido, segundo dados oficiais. Podem ter sido 28 mil mortos. (MCCANN, 2009, p. 255). Com o presidente eleito enfermo, o seu vice, o mineiro Delfim Moreira da Costa Ribeiro, assumiu o cargo interinamente, no dia 15 de novembro. Mesmo com limitações na saúde, o vice-presidente se empenhou em governar. Para o Exército, constituía numa significativa mudança de direção. (MCCANN, 2009, p. 255). Terminada a Primeira Guerra Mundial, [...] os Estados Unidos passavam à liderança [...] do mundo. A Revolução Russa tentava edificar a primeira sociedade socialista [...]. O Brasil também passou por mudanças. Durante a guerra, a indústria cresceu e as cidades mantiveram [...] ritmo de expansão. [...] Cresceram em número e em importância social os operários e as camadas médias urbanas. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 355). 13.1 A RETOMADA DE UMA MISSÃO MILITAR ESTRANGEIRA O ministro Faria dizia, jactando-se de ter evitado uma missão militar europeia: “o Exército só pode ser nacional em suas doutrinas, teorias, no seu espírito e mesmo em sua tática”. Considerava útil enviar à Europa observadores e trazer alguns instrutores de lá, mas duvidava que a guerra de trincheiras ocorresse na América do Sul. Também achava que os oficiais brasileiros, ciosos de seus direitos, não se sujeitariam a um comando estrangeiro. Além disso, a tentativa de trazer uma missão já ocorrera durante o governo de Hermes e não vigara. (MCCANN, 2009, p. 255). 95 Quando o Brasil declarou guerra aos germânicos, surgiram rumores de que o país enviaria soldados à Europa. O adido militar em Paris, major Alfredo Malan d’Angrogne, comunicou ao ministro Faria a disposição dos franceses de treinar as forças brasileiras, mas lamentou que a notícia da entrada do Brasil na guerra foi recebida com indiferença, devido à sua fraqueza militar. Opinou que uma “grande missão para remodelar o Exército, as escolas militares, o Estado-Maior e a administração militar ajudaria o país a conquistar respeito no exterior”. (MCCANN, 2009, p. 255). 13.2 O MINISTRO CARDOSO DE AGUIAR E OS FRANCESES Com o fim do governo do mineiro Venceslau Brás (1918) e a eleição de um paulista para a presidência, na pessoa de Rodrigues Alves, os laços da elite paulista com a França resultaram, inicialmente, na escolha de um pró-francês para a pasta da Guerra. E desde 1906 os franceses estavam engajados em assinar o contrato para a missão no Brasil. Haviam logrado impedir que os alemães obtivessem a missão, quando o quadro lhes era favorável. (MCCANN, 2009, p. 257). Antes mesmo de encerrar-se a Grande Guerra e definir-se o próximo presidente, em 1918, o adido militar francês retomava as ações para obter a missão, que resultariam nas ações do ministro Faria de enviar a missão de observação do general Aché e de encomendar material de artilharia e aviação. (MCCANN, 2009, p. 257). Foi curioso o fato de o general-de-brigada Alberto Cardoso de Aguiar ter sido nomeado ministro da Guerra. Era general havia apenas onze meses e superara outros candidatos experientes, como Tasso Fragoso, Luís Barbedo e Setembrino de Carvalho. Tinha apenas 54 anos quando assumiu o ministério. (MCCANN, 2009, p. 257). Cardoso de Aguiar ingressara no Exército em 1880 e fora alferes no último ano do Império. Oficial de artilharia com treinamento em engenharia, passou de segundo a primeiro-tenente em três dias. Depois seguiu a normalidade das promoções, sendo coronel em 1915. Depois de três anos ascendia ao generalato. Trabalhou nas linhas telegráficas no Mato Grosso, na estratégica ferrovia de Palma, no Paraná, e na comissão que mapeou o país. (MCCANN, 2009, p. 258). 96 Fora presidente do Clube Militar, o que indica sua popularidade no meio militar, onde era conhecido por ter boas qualidades, e por ser reformista. Além de competente, tinha bons contatos, tendo trabalhado com Faria e Bento Ribeiro. Comandara o Corpo de Bombeiros do Distrito Federal, em 1914, quando Bento Ribeiro era prefeito. Ademais, era conhecido de políticos paulistas e era francófilo declarado. Sua nomeação despertou confiança em oficiais progressistas. (MCCANN, 2009, p. 258). Iniciado o novo governo, o Congresso discutia a aprovação de uma missão estrangeira. Cardoso de Aguiar já estava empenhado em favor dos franceses. Em dezembro de 1918, o ministro telegrafou para o adido militar em Paris, major Malan, informando que a decisão estava tomada e pedindo a indicação de um general francês para chefiar a missão. E em janeiro de 1919, o Congresso aprovou os créditos para a missão, sem indicar a nacionalidade da mesma. Mas o relatório do Exército e da Marinha deixava clara a opção brasileira pelos franceses. (MCCANN, 2009, p. 259). Houve diversas reações dos jovens turcos, algumas negativas. Vários oficiais da revista A Defesa Nacional usariam suas influências para apoiar a missão, tais como Bertoldo Klinger, Mascarenhas de Morais, dentre outros. (MCCANN, 2009, p. 260). 13.3 A MISSÃO FRANCESESA E O GENERAL GAMELIN O adido militar em Paris, Malan, seguia à procura do general francês para comandar a missão. Era difícil para ele convidar homens que haviam comandado milhares de soldados na guerra e iriam deparar-se no Brasil com tropas desfalcadas e esqueléticas. O chefe deveria ter tato e diplomacia para lidar com os melindres, as ignorâncias e arrogâncias de alguns Jacobinos. Acertadamente, Malan e o embaixador brasileiro pediram conselho a um marechal francês, que recomendou o general-de-brigada Maurice Gustave Gamelin, que fora seu chefe de estado-maior e possuía os atributos. Ao conhecê-lo, Malan confirmou que encontrara “o homem”. Não era um intelectual. Era um general, disse. (MCCANN, 2009, p. 261). Porém, antes de assinar o contrato da missão, Cardoso de Aguiar quis conhecer Gamelin, para assegurar-se do acerto da escolha. E em fevereiro de 1919, Gamelin veio ao Brasil. Encontrou um Exército muito melhor que o do início do 97 século XX, mas o general francês deve ter percebido o trabalho duro que teria pela frente. (MCCANN, 2009, p. 261). O ministro tinha vários desafios decorrentes da organização do Exército pelo Brasil. O efetivo real era muito inferior ao autorizado, o que ocasionava desfalque em várias unidades. Havia cinco divisões no papel, mas somente duas estavam em seus postos, prontas para funcionar. “A distribuição das forças refletia a dupla missão de defesa externa e interna dada ao Exército”. (MCCANN, 2009, p. 263). A distribuição espacial das unidades era resultado da percepção pelos militares do risco constante que o país corria de se fragmentar. Segundo Cardoso, a fragmentação era o maior perigo a que o Brasil estava exposto, sendo o Exército o único instrumento que podia mantê-lo unido. (MCCANN, 2009, p. 263). Mas o ministro também se preocupava com o ônus desigual que o serviço militar obrigatório impunha a algumas regiões militares, particularmente a 5ª, do Distrito Federal e a 7ª, do Rio Grande do Sul, cujas populações não tinham o tamanho suficiente para fornecer o efetivo de soldados que lhes era destinado. Assim, foi inevitável o envio de recrutas de uma região para outra, o que ocasionou gastos e ia contra os interesses destes e de suas famílias. (MCCANN, 2009, p. 263). Gamelin desembarcou no Brasil em janeiro de 1919. O general francês se esforçou para deixar claro que não pretendia “virar tudo de cabeça para baixo nem destituir o Exército de seu caráter brasileiro”. O comando continuaria com os brasileiros, ficando o treinamento e a instrução com a missão. Por cinco semanas, Gamelin visitou guarnições do Exército. Admirou-se com “a diligência e devoção dos oficiais brasileiros”. (MCCANN, 2009, p. 267). Irritou os oficiais brasileiros a cadeia de comando da missão, que era separada. Os membros reportavam-se apenas ao chefe, general Gamelin. Este, por sua vez, só devia satisfação ao ministro da Guerra. O Estado-Maior do Exército, nesse contexto, ficava submetido a uma relação triangular. Além disso, o Estado-Maior não participara da contratação. (MCCANN, 2009, p. 268). McCann (2009, p. 269) cita que, no início de 1920, cerca de vinte franceses integrantes da missão estavam no Rio de Janeiro. Sua tarefa: Criar os alicerces de um exército moderno, organizando escolas para treinar oficiais profissionais, melhorando a capacidade do Estado-Maior para dirigir o Exército, reformulando os regulamentos sobre treinamentos e táticas, elaborando um sistema de promoções que assegurasse a ascensão dos 98 oficiais mais capazes aos postos de liderança [...] e criando verdadeiras unidades táticas. (MCCANN, 2009, p.269). Oficiais franceses foram designados para a Escola de Estado-Maior, que receberia o curso de revisão em 1921, e outros receberam a missão de fundar a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, que prepararia capitães para ser comandantes de subunidade. E os formandos teriam a missão de impor ao Exército a unidade doutrinária, principalmente os capitães. Para o ministro da Guerra, “era o início de fase nova para o apuro profissional do Exército”. (MCCANN, 2009, p. 270). Apesar dos esforços do grupo de A Defesa Nacional, houve resistência e insatisfação de alguns, quer seja pelo idioma que se obrigavam a falar, pelo choque entre culturas diferentes ou pela intrínseca admissão de inferioridade em aceitar os ensinamentos de estrangeiros. Havia também a preocupação, pelos editores da revista, que o abismo de conhecimento entre a nova geração de oficiais e os seus superiores comprometesse a estrutura de autoridade do Exército. E alguns oficiais reformistas temiam que os seus esforços de mudança, até então, fossem creditados aos franceses. (MCCANN, 2009, p. 271). 13.4 AS INICIATIVAS POR UMA INDÚSTRIA MILITAR Apesar da opção estrangeira para aperfeiçoar o pessoal, os chefes militares e o governo brasileiro ainda sonhavam em obter independência das fontes estrangeiras de material bélico. E isso era associado ao desenvolvimento de indústrias siderúrgica e de carvão. Para Cardoso de Aguiar, a independência brasileira dessas fontes era um “baluarte da defesa”, pois depender do fornecimento externo seria ficar suscetível a interrupções. E, ao contrário de outros países que já produziam o aço sendo pobres em recursos naturais, o Brasil os tinha em fartura. (MCCANN, 2009, p. 273). Cardoso de Aguiar também afirmava que a defesa requeria, além de armas, o desenvolvimento industrial de toda economia. Para iniciar esse desenvolvimento, mesmo que timidamente, o ministro da Guerra adotou uma iniciativa que seria a precursora do aço no país: despachou um oficial, o capitão Antônio Mendes Teixeira, aos Estados Unidos a fim de especializar-se na produção de aço, com os minérios brasileiros. Aliou-se a isso a compra de maquinário mais moderno, feita por ordem do general Faria, em 1917, por comissão que foi ao mesmo país. O 99 presidente em exercício Delfim Moreira reforçou, em 1919, em mensagem ao Congresso, a necessidade que a Grande Guerra trouxera de libertar o país da indústria militar estrangeira. (MCCANN, 2009, p. 274). A nomeação do general-de-brigada Augusto Tasso Fragoso, no final de 1918, para o cargo de chefe da Diretoria de Material colocou-a para funcionar. Com seu trabalho, Tasso foi dos principais responsáveis pela mudança do pensamento dos militares em relação ao desenvolvimento industrial. O novo chefe providenciou o treinamento técnico de oficiais, na Bélgica, para supervisionar a produção de armas nacional. Trouxe técnicos estrangeiros para um programa de instrução que cresceria e, na década de 1930, resultaria na Escola Técnica do Exército, precursora do Instituto Militar de Engenharia. (MCCANN, 2009, p. 275). Mas a implantação dessas políticas, geralmente custosa no Brasil, seria prejudicada pelas agitações das décadas de 1920 e 1930 e a resultante desorganização do Exército. Mas convém ressaltar que o impressionante desenvolvimento industrial brasileiro, iniciado no final da década de 1930, começou naquelas iniciativas. (MCCANN, 2009, p. 275). 100 14 AS AGITAÇÕES DA DÉCADA DE 1920 14.1 OS TENENTES REVOLUCIONÁRIOS No início da década de 1920, os oficiais brasileiros viviam muito próximos da sociedade civil. Metade vivia no Distrito Federal. Os quartéis estavam nas áreas urbanas e as moradias eram espalhadas pela cidade. A família militar usava o transporte público – bonde – e frequentava os mesmos locais que a sociedade – lojas, igrejas, escolas – e lia os mesmos jornais. A remuneração era relativamente baixa e a categoria sentia, como outras, as flutuações econômicas. Os oficiais também tinham estreita ligação com as classes mais privilegiadas, na organização do Tiro, de alcance nacional, assim como o serviço militar obrigatório. (MCCANN, 2009, p. 276). Em 1920, grande parte dos oficiais era de baixa patente – 86,4%. Os mais velhos eram oriundos da Escola da Praia Vermelha e os mais novos, das efêmeras escolas de Porto Alegre e de Rio Pardo ou da nova Escola do Realengo. A ausência de uma “bagagem educacional comum” tornava frágil o espírito de corpo e união, imprescindíveis à coesão da instituição. (MCCANN, 2009, p. 276). A ideologia da época era pródiga em pensadores civis, como Alberto Torres, que defendia ideias de mudança ante a “auto-ignorância, falso otimismo, regionalismo, além de carecer de nacionalidade e nacionalismo”. Para Torres, “o Brasil precisava de organização e de governo central forte para dirigir as energias nacionais e proteger o país da exploração estrangeira”. (MCCANN, 2009, p. 277). A própria revista A Defesa Nacional comungava com muitas ideias do escritor Alberto Torres e citava-o com frequência. A publicação de suas ideias nesse veículo que formava a opinião de oficiais pode ter contribuído para as agitações da década de 1920, o que não significa que os editores eram partidários da revolução. Na verdade, o conselho editorial e os colaboradores de 1920 eram legalistas, pelo menos até o final da década, e apenas queriam que o sistema vigente funcionasse. Por isso, ao eclodir a revolta, a retórica da revista foi atenuada, pois servira de justificativa pelos rebeldes. (MCCANN, 2009, p. 277). Os revolucionários viam o regionalismo e a corrupção política como impedimentos para o Exército desempenhar seu papel educador. Tinham como objetivos organizar a nação, dando-lhe autoconsciência, promover a industrialização, 101 o ensino primário gratuito e compulsório, o serviço militar obrigatório, a intervenção na economia, tudo por meio de um governo central forte. Mas não sabiam como atingir tais objetivos e nem tinham um plano pós-vitória. As ideias eram semelhantes às dos demais oficiais, mas os rebeldes eram mais impacientes e foram movidos pela ocasião. (MCCANN, 2009, p. 278). Além da deposição do presidente Artur Bernardes, os tenentes reivindicavam o voto secreto, eleições honestas, castigo para os políticos corruptos e liberdade para os oficiais presos em 1922. [...] Ideologicamente, os tenentes eram conservadores: não propunham mudanças significativas para a estrutura social brasileira. Defendiam um reformismo social ingênuo, misturado com nacionalismo e centralização política. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 405). 14.2 O AMBIENTE APÓS A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL Em 1918, terminara a Grande Guerra e o Brasil não enviara soldados para ser recebidos com honras. Em vez disso, a paz trouxe greves e a mortífera gripe espanhola. Também surgiam as ameaças do bolchevismo e do anarquismo que já ameaçavam o Exército. Uma conspiração para tomar o depósito militar do Rio de Janeiro e o palácio do Catete foi abortada. (MCCANN, 2009, p. 279). Em 1919, passeatas e greves nas principais capitais brasileiras, às vezes violentas, tumultuaram Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. O governo proibira a publicação de um jornal maximalista (facção do Socialismo que exigia a aplicação integral do programa socialista) - Spartacus – por incitar a deslealdade nas Forças Armadas. (MCCANN, 2009, p. 279). É possível que nessa época tenha-se formado uma aliança entre oficiais, que não viam com bons olhos o operariado que consideravam indisciplinado, e os empresários civis interessados em lucrar com o desenvolvimento da defesa nacional. Seus contatos se davam, principalmente, por meio da Liga de Defesa Nacional, fundada em 1916. (MCCANN, 2009, p. 280). Para os oficiais, a situação era agravada pelo alto nível de frustração no corpo, em geral. A população tinha baixo apreço pelo Exército e ojeriza pelo serviço militar. Além disso, havia a tensão decorrente da pressão francesa pelo enquadramento do Exército brasileiro aos seus moldes. (MCCANN, 2009, p. 280). E pairava a suspeita de que os militares brasileiros estavam sendo ludibriados pelos franceses, que apresentavam doutrina e material inferiores aos alemães, que 102 os antecederam. Havia um descontentamento geral a esse respeito e pelas suspeitas de corrupção que pairavam sobre a Missão Francesa, nas vendas ao Exército. (MCCANN, 2009, p. 281). 14.3 O MINISTÉRIO CALÓGERAS E O GENERAL BENTO RIBEIRO O paraibano Epitácio Pessoa assumira a presidência, como candidato conciliador, no lugar do interino Delfim Moreira. Antes de assumir o cargo, nomeou um civil para o ministério da Guerra: o deputado federal mineiro João Pandiá Calógeras, que tinha reputação de ser interessado pela defesa nacional. Alguns oficiais consideraram que sua indicação para o cargo refletiu uma redução do prestígio militar que remontava aos tempos do Império, presentes na memória coletiva dos oficiais pela falta de entusiasmo do imperador pelas Forças Armadas. (MCCANN, 2009, p. 282). Calógeras, apesar de ser carioca, tinha estabelecido muitas ligações com os mineiros. Por isso, sua escolha estava relacionada ao apoio de Minas Gerais ao governo Pessoa. Devia sua reputação de especialista em defesa ao apoio dado a Rio Branco para elevar a imagem do Brasil e a Hermes da Fonseca em seu programa de modernização de profissionalização das Forças Armadas. (MCCANN, 2009, p. 283). Calógeras também propunha a Rodrigues Alves, em relatório sigiloso e encomendado, o envio de uma força expedicionária brasileira à Grande Guerra. Pensava que era preciso reincorporar as Forças Armadas à vida nacional. Propôs o serviço militar universal e a profissionalização do corpo de oficiais sob orientação francesa. (MCCANN, 2009, p. 283). Com Calógeras na pasta da Guerra, o principal general do Exército de então, Bento Ribeiro Carneiro Monteiro, era o chefe do Estado-Maior do Exército. O general logo se mostrou insatisfeito com a intervenção francesa em seus assuntos, pois estes queriam que as nomeações e promoções fossem baseadas no mérito. Calógeras, entretanto, apoiou Gamelin. Mas muitos oficiais nacionalistas ficaram incomodados, apesar de os franceses terem certa razão. (MCCANN, 2009, p. 284). Alguns fatos levariam o general Bento Ribeiro a renunciar ao cargo. Calógeras afastou do general um de seus auxiliares mais leais. Mas o que precipitou a demissão foi um incidente ocorrido na Escola Militar. O ministro nomeou um francês 103 para ministrar equitação. Vendo a luta perdida, o general apresentou sua renúncia e foi substituído sem pompas. (MCCANN, 2009, p. 284). McCann (2009, p. 285) afirma que Bento Ribeiro, indignado, foi à imprensa explicar o ocorrido. No dia seguinte foi visitado pelo comandante da 3ª Região Militar, general Barbedo, e uma comitiva de oficiais, para exprimirem seu apreço pelo ex-chefe. Poucas horas depois, os comandantes regionais e o diretor de Material Bélico expediam aviso vetando qualquer manifestação de solidariedade a Bento Ribeiro. O general Barbedo foi prontamente substituído. Em atitude de desafio, Bento Ribeiro declarou pela imprensa que receberia com honra um a um os oficiais que quisessem visitá-lo, o que foi feito por mais de uma centena deles, até oficiais de alta patente. Em quatro meses, o general morreria adoentado. Apesar de livres de Bento, Epitácio Pessoa e Calógeras, com a administração desacreditada, contavam com a insatisfação dos militares. Os soldos estavam atrasados havia meses e as rações foram reduzidas. Apesar disso, o governo resolveu, em meio a essa carestia, assinar um vultoso contrato com a Companhia Construtora de Santos, de Roberto Simonsen, para a construção de quartéis em 36 localidades brasileiras. Havia necessidade de construir instalações, mas o momento de penúria de vencimentos e rações fez muitos oficiais se exaltarem com a ideia de haver corrupção no contrato. (MCCANN, 2009, p. 286). Segundo McCann (2009, p. 286), as promoções corriam muito lentamente e também geravam insatisfação. Calógeras apelou para as condecorações. Havia também os oficiais descontentes por não terem ido à Primeira Guerra e, não tendo a chance de lutar na Europa, muitos teriam canalizado suas frustrações para a conspiração. No entanto, seria a geração de oficiais subalternos dessa época que, como oficiais superiores e altos oficiais, lideraria a campanha por um papel ativo no campo de batalha na guerra seguinte. (MCCANN, 2009, p. 287). Para McCann (2009, p. 287), nesse ambiente, o ex-presidente, marechal Hermes da Fonseca foi eleito para presidir o Clube Militar, em maio de 1921. E em outubro o jornal carioca Correio da Manhã agravaria a já tensa situação ao publicar “infames cartas falsas” com supostos insultos de Artur Bernardes ao marechal Hermes. Seguir-se-ia até junho de 1922 um debate entre o clube e a imprensa sobre a veracidade das cartas, em reedição de uma “questão militar”, como no fim do Império, que mexia com os nervos dos oficiais. 104 Os tenentes rebeldes cerravam fileiras em torno de Hermes da Fonseca e deixaram clara sua francofobia quando tomaram o forte de Copacabana na noite de 4-5 de julho de 1922, jogando no mar um novo canhão leve de 75 mm que a St. Charmond enviara para teste. Em 5 de julho, quando marcharam pela avenida Atlântica, dividiram a oficialidade e puseram o Brasil em um ciclo revolucionário que acabaria por demolir a República. (MCCANN, 2009, p.288). 14.4 A SITUAÇÃO DO EXÉRCITO Em julho de 1922, Hermes da Fonseca voltara de várias viagens para fazer contatos com unidades que se rebelassem, mas não as encontrou. O governo descobriu a conspiração e atacou primeiro. Oficiais que prometeram sublevar soldados na Vila Militar foram presos. O marechal Hermes estava sob a custódia do comandante da Vila Militar, na casa de seu filho. Os estudantes de Realengo estavam detidos e eram interrogados. (MCCANN, 2009, p. 290). O coronel Sezefredo dos Passos, com sua tropa, dominava as ruas próximas ao forte de Copacabana, onde “o capitão Euclídes, filho de Hermes, comandava o único reduto rebelde do Rio de Janeiro”, de onde sairiam os remanescentes da guarnição do forte, na tarde do dia seguinte, ao encontro dos seus destinos. (MCCANN, 2009, p. 290). Para McCann (2009, p. 290), as revoltas tenentistas seriam o cerne da história do Exército na década de 1920. As facções da luta interna que se travaria no Exército, por sua relação com os sistemas políticos, enfrentar-se-iam de armas na mão. Apesar disso, os Tenentes foram minoria. Representaram 13% dos que se formaram entre 1913-27. E nas vésperas da Revolução de 30, seriam apenas 11%. Apesar da importância das rebeliões, há mais na história do Exército na década de 1920. (MCCANN, 2009, p. 290). 14.5 O BRASIL NOS ANOS 20 Nos anos 20, o novo e o velho Brasil entrariam em luta para definir um novo futuro. Enquanto as cidades iam tomando aspectos de modernidade, as áreas rurais ainda estavam no século XIX. No interior, os “coronéis” dominavam a vida dos pobres. Apesar de ser considerado um caso de polícia, ainda por muitos anos seguintes, o sindicalismo já se fazia presente. Em trinta anos, a população brasileira 105 dobrara e chegava aos 30 milhões, concentrando-se mais nas cidades. (MCCANN, 2009, p. 291). Como em todo o mundo, a vitoriosa Revolução Russa de 1917 teve um impacto sobre o Brasil. Antes de 1917, o cenário das lutas operárias no país era dominado pelo anarquismo, cuja tática era o enfrentamento direto com os patrões. Essa prática foi abandonada em favor de uma organização hierarquizada e disciplinada, de inspiração comunista [...].(KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 414). Mas o Brasil ainda tinha muito do aspecto rural. Fora das cidades, poucas eram as estradas pavimentadas. As ferrovias passavam apenas pelas áreas cafeeiras e canavieiras. À exceção da estreita faixa litorânea, as demais áreas eram subdesenvolvidas. A ausência de estradas e a configuração das ferrovias impunha a ênfase nas viagens marítimas. As dimensões do território não condiziam com os meios de ligação e comunicação existentes. (MCCANN, 2009, p. 291). A composição racial era uma mistura dos índios, negros e europeus. Mas a vinda dos imigrantes já produzia maior impacto, principalmente os japoneses. (MCCANN, 2009, p. 292). São Paulo era, então, uma cidade predominantemente branca e desenvolvida; suas ruas eram pavimentadas e por elas circulavam bondes, automóveis e caminhões; tinha uma aparência moderna e era o centro financeiro da atividade agropecuária. O rápido crescimento industrial exigia racionamento de energia elétrica. (MCCANN, 2009, p. 292). Às elites não interessava educar, pois a força de trabalho era braçal e a educação, para elas, traria greves e agitação. Felizmente, outros segmentos da sociedade brasileira veriam a impossibilidade de desenvolver o país com uma taxa de analfabetismo de 80%. Assim como a educação, a assistência à saúde era muito precária e doenças como malária, tracoma, lepra, chagas, ancilostomose, sífilis e venéreas eram comuns. (MCCANN, 2009, p. 293). Segundo McCann (2009, p. 293), politicamente, predominavam as dissensões internas: Não havia coesão e consciência nacional; os gaúchos, paulistas e mineiros tinham mais orgulho de suas identidades estaduais do que de ser brasileiros. [...] Em 1926 [...] no Rio Grande do Sul se fazia propaganda secessionista pela formação de uma república separada. (MCCANN, 2009, p. 293). 106 Os estados mantinham forças policiais equipadas, para manter relativa liberdade de intervenções federais. A Força Pública paulista, por exemplo, era um pequeno exército de mais de 14 mil homens, que possuía aviação própria. Também mineiros, gaúchos e baianos tinham forças menores, mas respeitáveis. (MCCANN, 2009, p. 294). 14.6 O SERVIÇO MILITAR OBRIGATÓRIO O serviço militar obrigatório, duramente conquistado, revelara-se bem diverso do que propuseram seus idealizadores. A maioria dos sorteados não se apresentava. O sonho da reserva qualificada foi abalado pelas realidades do Brasil. Considerado uma calamidade para os mais abastados, o serviço militar cabia aos pobres ou ignorantes. Ainda na década de 1920, as autoridades militares tinham de recorrer às batidas policiais para arregimentar malandros e vadios nas ruas. (MCCANN, 2009, p. 295). O recrutamento passava por frequentes desmoralizações, com a ocorrência de erros médicos grosseiros e do constante apelo à influência e ao favorecimento para livrar-se da obrigação de servir. Além disso, no interior, os chefes políticos prejudicavam adversários ao mandar convocar seus filhos. (MCCANN, 2009, p. 296). Além de revelar dados de cor da pele, estatura, situação social, o serviço militar também descortinava a situação sanitária dos inspecionados. Predominavam as doenças venéreas, os problemas respiratórios, as doenças nos olhos, nariz, garganta e ouvidos e a baixa estatura (abaixo de 1,52 m). (MCCANN, 2009, p. 296). Eram poucos os soldados que sabiam ler e escrever. Diante disso, o Exército estabeleceu as escolas regimentais para combater o analfabetismo. (MCCANN, 2009, p. 298). A década de 1920 terminaria com o Exército completando seus claros de recrutas com soldados engajados. Em 1928, eles eram aproximadamente a metade do total. E o serviço militar obrigatório estava muito longe do que sonhou Olavo Bilac. “A nação armada e o povo fardado eram frases retóricas e não descrição da realidade”. (MCCANN, 2009, p. 300). 14.7 LIDERANÇA E ORGANIZAÇÃO DO EXÉRCITO 107 Apesar de toda a conversa sobre profissionalismo e das mudanças estruturais resultantes da influência francesa e do estilo de liderança dos altos oficiais, continuaram a luta entre o ministro e o chefe do Estado-Maior e os problemas de recrutamento e treinamento. (MCCANN, 2009, p. 300). O ministro da Guerra tinha o poder nas mãos, mas faltava-lhe conhecer os detalhes administrativos, o que o impossibilitava de levá-los à assinatura do presidente. Depois de três anos com o civil Pandiá Calógeras, o ministério voltava às mãos dos militares. Mas os dois generais que ocupariam o cargo nos anos finais da República Velha não eram reformistas, estando arraigados ao velho Exército. Apesar de apoiarem a modernização, viam na instituição um instrumento nas mãos do governo e da sociedade, alicerçados na Política dos Governadores. Os generais Fernando Setembrino de Carvalho e Nestor Sezefredo dos Passos eram chamados de situacionistas, pois se consagraram defendendo a ordem estabelecida. (MCCANN, 2009, p. 300). Setembrino foi chefe de gabinete do ministro da Guerra durante o governo de Hermes da Fonseca, destacando-se como mediador. Interveio com sucesso no Ceará no período salvacionista e, já general, comandou as tropas no Contestado. Em 1916, elegeu-se para a prestigiosa presidência do Clube Militar. Ao organizar a 4ª Região Militar, em Belo Horizonte, Setembrino criou laços com Artur Bernardes, a quem, mais tarde, apoiou na sucessão presidencial e no episódio das cartas falsas a Hermes em 1921. No auge dessa crise, em julho de 1922, o presidente Epitácio Pessoa escolheu-o para chefiar o Estado-Maior do Exército. Apesar de não ter assumido oficialmente o cargo, atuou com decisão para suprimir o movimento que ameaçava as pretensões de Bernardes de chegar à presidência. Quando assumiu, Bernardes recompensou-o com a pasta da Guerra. (MCCANN, 2009, p. 301). O general Sezefredo dos Passos, que sucedeu Setembrino, já no governo de Washington Luís, também tivera carreira ligada à defesa da República Velha. Depois de formado na escola de Rio Pardo, foi arrastado para a Revolta Federalista com o regimento de cavalaria onde servia. Foi expulso do Exército e, dois anos depois, anistiado. Aos 27 anos retornou à Escola Militar, bacharelando-se. Participou com Rondon da construção de linha telegráficas no Mato Grosso. Combateu no Contestado, quando chegou a major. De volta à capital federal, destacou-se no comando e foi para o gabinete do ministro Cardoso de Aguiar. Em 1921, frequentou o curso de revisão da Escola de Estado-Maior. (MCCANN, 2009, p. 301). 108 Segundo McCann (2009, p. 302), no levante de julho de 1922, à frente do 1º Regimento de Infantaria, Sezefredo desarmou um tenente rebelde e seus soldados que, na madrugada do dia 5, cercaram o cassino do quartel. Também conseguiu interceptar um trem com oficiais que se juntariam a rebeldes da Vila Militar. O papel de Sezefredo dos Passos na noite de 4-5 de julho e, novamente, no dia seguinte, comandando tropas que confrontaram os rebeldes em Copacabana, levou o presidente Epitácio Pessoa a promovê-lo a generalde-brigada em agosto de 1922 e ajudou a assegurar-lhe um cargo no Estado-Maior do Exército. (MCCANN, 2009, p.302). Sezefredo também combateu os Tenentes no oeste do Paraná, com o general Rondon, em março de 1925. Epitácio Pessoa, antes de transmitir a presidência, promoveu-o a general-de-divisão. (MCCANN, 2009, p. 302). Um oficial que deixou uma marca no Exército que não pode ser apagada é Augusto Tasso Fragoso. Chefiou o Estado-Maior do Exército entre 1922 e 1929 e entre 1931 e 1932. O general maranhense iniciou a carreira sob a influência de Benjamin Constant, participando, ainda alferes, da derrubada do Império, chegando a tenente. Oficial florianista, Tasso Fragoso combateu a Revolta da Armada em 1894, sendo gravemente ferido. Por isso, foi a capitão por bravura. Participou de várias comissões: locação da capital no centro do país; compras militares na Europa; demarcação da fronteira com a Bolívia, já no Estado-Maior. Comandou o 8º Regimento de Cavalaria, na fronteira com a Argentina e foi adido militar em Buenos Aires, moldando suas convicções sobre o país vizinho. (MCCANN, 2009, p. 303). Já coronel, foi nomeado chefe da Casa Militar de Venceslau Brás, trabalhando com o presidente e o ministro Faria, na reativação das reformas de 1908. Em janeiro de 1918, chegou a general. Organizou o 4º Regimento de Cavalaria, no Rio de Janeiro e, no fim do ano, assumiu a Diretoria do Material. Em fevereiro de 1922 foi promovido a general-de-divisão e, em novembro, nomeado por Artur Bernardes chefe do Estado-Maior do Exército, onde permaneceria por sete anos e cinco meses. Como historiador, produziu estudos sobre a guerra contra os argentinos em 1820 e sobre a guerra da Tríplice Aliança. Sua influência no pensamento da instituição foi enorme. Setembrino não era a opção de Calógeras para assumir o Estado-Maior em 1922. Foi a pressão de Artur Bernardes sobre o presidente Epitácio Pessoa que pesou na decisão. E no cargo o general recebeu a missão de manter o Exército leal ao presidente, o que foi feito por ele de bom grado. Entretanto, nos desdobramentos 109 da crise de 1922, Setembrino, profeticamente, aconselhou Bernardes a não tratar com excessivo rigor os que haviam se rebelado, dentre eles, muitos com méritos. Mas o presidente desconsiderou o alerta, não foi clemente, o que resultou em muita agitação. (MCCANN, 2009, p. 304). Quando Artur Bernardes assumiu o governo, em novembro de 1922, promoveu Setembrino a ministro da Guerra e este convidou Tasso Fragoso para a chefia do Estado-Maior. Mas Tasso teve que conviver com a constante interferência de Setembrino no seu pessoal e assuntos, situação que tolerou em vista do cordial tratamento dispensado pelo ministro. (MCCANN, 2009, p. 305). Porém, a convivência com Sezefredo seria ainda pior. Tasso escolhera-o para ser o seu vice-chefe sem conhecê-lo, baseado na sua atuação à frente de seu regimento, no levante de 1922. Mas foi surpreendido por um desempenho irregular do seu auxiliar na função, o que este atribuiu a um caso de doença na família. Tasso se compadeceu da situação. (MCCANN, 2009, p. 305). Na transição do governo de Bernardes, em 1926, num rompante de insensatez, Tasso sugeriu a Washington Luís nomear Sezefredo ministro da Guerra, por nutrir grandes esperanças em sua cooperação, com base em conversas a respeito das necessidades de reformas e das relações entre o ministro da Guerra e o chefe do Estado-Maior, não havendo divergências entre ambos. E Sezefredo havia convidado Tasso a continuar na função. Tudo indicava para o início de uma nova fase no ministério. (MCCANN, 2009, p. 305). Segundo McCann (2009, p.306), Tasso enganara-se. No cargo, Sezefredo distanciou-se dos generais, tratando-os como inferiores e com rigores formais. “As relações com o Estado-Maior não só não melhoraram, mas se deterioraram”. Sentindo-se alijado do processo de decisões sobre o Exército, Tasso entregou sua carta de renúncia ao presidente em dezembro de 1928. A incapacidade de altos oficiais para o trabalho conjunto era uma grave fraqueza institucional. No entanto, servia para retardar a emergência do Exército como força política relativamente independente, o que talvez explique por que os políticos civis deliberadamente evitavam resolver o problema. (MCCANN, 2009, p. 306). Apesar de não fazer tudo o que queria, Tasso fez aumentar o padrão intelectual do Estado-Maior, “consolidou [...] as manobras sobre a carta, promoveu a causa da aviação [...], manteve os franceses [...] fora do planejamento da defesa brasileira. [...] Tornou visões estratégicas [...] sobre a Argentina parte do 110 pensamento do Exército”. Também promoveu um maior contato do Estado-Maior com os soldados. Em relação às promoções, Tasso estabeleceu critérios mais rigorosos com base no mérito. Para incentivar os oficiais a cursar a revisão da Escola de Estado-Maior, condicionou a promoção ao generalato à sua realização. (MCCANN, 2009, p. 306). Apesar de o plano ser esplêndido, colocá-lo em prática foi muito complicado. “Os problemas de liderança continuaram a afligir o Exército, tanto quanto os critérios não profissionais usados para a seleção: laços de família, parentela e amizade”. (MCCANN, 2009, p. 307). 14.8 A OFICIALIDADE Os oficiais na década de 1920 provinham em sua maioria do Nordeste e Sudeste do Brasil, 78% do total, e da pequena parcela da população masculina que era educada. Muitos vinham de famílias de militares ou de civis mais pobres. Muitos buscavam a educação e a carreira militar como oportunidade de ascensão durante a República Velha e pelo desejo de dirigir politicamente o país. (MCCANN, 2009, p. 308). [...] Uma das formas de um jovem de origem modesta melhorar sua condição social era ingressar em uma escola militar e tornar-se oficial do Exército. [...] Entre as classes médias baixas e as classes populares era grande a insatisfação contra o governo oligárquico [...]. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 355). Nesses tempos, era usual o Exército manter efetivo inferior ao autorizado pelo Congresso. Algumas unidades existiam apenas nos planos. Isso também se refletia no corpo de oficiais de baixa patente, cuja escassez tinha se agravado com a expulsão de alunos que se rebelaram em 1922. Reflexo disso era a falta de oficiais na tropa. (MCCANN, 2009, p. 310). Os oficiais negros eram numerosos no Exército. Mas na Marinha eram raros, apesar de haver nas duas forças muitos mestiços. Mas era fato que “os prérequisitos educacionais necessários para a admissão nessa escola [Escola Militar] excluíam do corpo de oficiais a grande maioria de brasileiros de pele escura”. (MCCANN, 2009, p. 311). Os soldos dos oficiais eram baixos e, por isso, a maioria residia em casas modestas, muitos em hotéis simples. Aqueles que serviam na Vila Militar do Rio de 111 Janeiro podiam morar à custa de aluguel barato. As gratificações eram uma maneira de melhorar os rendimentos. Como elas eram controladas pelo ministro da Guerra, tornava-se interessante servir em postos de visibilidade na capital da República. (MCCANN, 2009, p. 312). Segundo McCann (2009, p. 313), havia também um sistema que incentivava a lealdade e a longa permanência de oficiais superiores no serviço ativo, mas talvez fosse uma maneira de “amenizar as agruras do plano de pensão”: A lei [de remunerações] dava aos oficiais com trinta anos de serviço o direito de aposentar-se com graduação acima da sua, recebendo os vencimentos da patente imediatamente superior. Os que tinham 35 anos de serviço recebiam uma promoção real e, além disso, eram remunerados segundo a graduação acima da sua. (MCCANN, 2009; p.313). No fim de 1928, o Congresso aprovou a mudança dessa lei das aposentadorias, retirando os benefícios. A consequência imediata foi a evasão de oficiais, especialmente coronéis, com mais de trinta anos de serviço, que solicitaram reforma antes de a lei vigorar. Diante da insuficiência de coronéis, em abril de 1929, os majores foram designados para os claros abertos. Nesse contexto, Tasso Fragoso pediu reforma. A lei enfraqueceu a estrutura de comando do Exército, justamente quando a República Velha deparar-se-ia com o ambiente revolucionário de 1930. (MCCANN, 2009, p. 313). É curioso que a mesma lei garantia vencimentos básicos à família dos militares que se afastavam temporariamente do serviço ativo (agregados), inclusive para os que o faziam sem licença. Também as famílias dos que cumpriam penas restritivas da liberdade recebiam metade dos vencimentos. Isso era um incentivo à indisciplina. (MCCANN, 2009, p. 313). 14.9 AS ESCOLAS DE OFICIAIS 14.9.1 A ESCOLA MILITAR DO REALENGO A educação era a chave da disciplina e do desempenho dos oficiais. Por toda a década de 1920, o Exército continuou a procurar uma fórmula para produzir o oficial ideal. O viveiro da oficialidade era, naturalmente, a Escola Militar do Realengo [...]. (MCCANN, 2009, p.314). A escola ficava próxima à estação de trem do bairro, sendo fácil o acesso ao centro da capital. Os alojamentos eram ruins e havia pouco espaço para estudo. A 112 biblioteca era acanhada. Não havia espaço para recreação, o que incentivava as caminhadas no bairro. As instalações mais pareciam um vasto quartel. Nessa época, Tasso Fragoso recomendou que se construísse uma academia militar, como a estadunidense de West Point. (MCCANN, 2009, p. 314). As fardas de baixa qualidade e de cores com tons variados não caíam bem nos alunos, que as trajavam quando iam ao centro do Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 315). O ensino ministrado na escola era desligado de objetivos e comentava-se que nem os comandantes nem os professores conseguiam seguir as diretrizes fornecidas e as regras eram baseadas nos costumes. “Alguns professores compraziam-se com o ambiente de medo, e até de terror”. Segundo Tasso Fragoso, poucos eram os competentes e dispostos ao trabalho. Havia matérias inúteis e sem aplicação prática. (MCCANN, 2009, p. 315). Amenizava a situação a presença de capitães e tenentes enérgicos e com ambição, que estavam no universo dos instrutores. Eles tiveram contato com a Missão Francesa no curso de aperfeiçoamento e ansiavam por um Exército moderno e eficiente. (MCCANN, 2009, p. 315). Algo que deixou cicatrizes no Realengo foi a rebelião de 1922, particularmente em relação à readmissão de alunos expulsos. As revoltas de 1924, no Rio Grande do Sul e em São Paulo, relacionaram-se também aos pleitos de anistia e readmissão desses revoltosos de 1922. Ademais, o combate à Coluna Miguel Costa/Prestes deixaria escassos os recursos para a educação militar. (MCCANN, 2009, p. 316). Para McCann (2009, p. 317), “a presença da missão militar francesa provavelmente salvou o sistema do Exército da total desmoralização”. Inicialmente, os franceses estiveram na Escola de Estado-Maior e na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Mas após os acontecimentos de 1922, o ministro considerou que a atuação da missão no Realengo seria benéfica à disciplina. A presença francesa aumentou e, em 1929, chegava à direção de instrução militar da escola. 14.9.2 A ESCOLA DE APERFEIÇOAMENTO DE OFICIAIS A Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais foi inaugurada em 8 de abril de 1920, em um belo e novo prédio na Vila Militar, e tinha por destinação instruir oficiais de baixa patente que difundiriam a doutrina aprendida com a Missão Francesa, como 113 instrutores nas unidades do Exército, unificando os regulamentos e métodos. Mas a escola também foi lugar para consolidar amizades ou desavenças. Sabiamente, a equipe francesa acolheu os jovens turcos, nomeando um deles, o capitão Joaquim Souza Reis Netto, que também era colaborador da revista A Defesa Nacional, para ser assistente do comandante, o elogiado coronel francês Albert Barat. (MCCANN, 2009, p. 317). O destaque da primeira turma foi o capitão João Batista Mascarenhas de Morais. Na Segunda Guerra Mundial, como general, ele comandaria a Força Expedicionária Brasileira na Itália e atribuiria seu sucesso como comandante naquela ocasião às lições recebidas dos jovens turcos na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. E afirmaria que aquela escola fora “o mais eficiente órgão de ensino” da Missão Francesa. (MCCANN, 2009, p. 318). Tasso Fragoso não se preocupou muito com as conspirações que poderia haver naquele ambiente de reunião de oficiais. Ele receava o tempo que a escola demoraria em aperfeiçoar todos os oficiais subalternos. No ritmo de 1923, por exemplo, seriam necessários 22 anos. (MCCANN, 2009, p. 318). 14.9.3 A ESCOLA DE ESTADO-MAIOR A Escola de Estado-Maior destinava-se a ser o estabelecimento de ensino de mais alto nível do Exército. Com a chegada dos franceses, instituiu-se um curso de revisão de um ano para que os altos oficiais fossem assimilados pelo novo sistema ou dele eliminados. Durante a década de 1920, o curso teve grande importância e atraiu mais alunos do que o curso regular de três anos. (MCCANN, 2009, p. 318). A procura pelo curso era pequena devido ao concurso de admissão. Para sanar o problema, Tasso decidiu que os oficiais com melhores notas na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais poderiam ingressar sem exames, que o general pensava não precisar ser um “requisito apavorante” e encomendou a Gamelin um curso preparatório por correspondência. Além do exame, os altos níveis de reprovação nos cursos também amedrontavam os candidatos. Naquela época, pouco mais de um terço dos alunos era aprovado. (MCCANN, 2009, p. 319). A aviação passou por momentos difíceis, particularmente durante o governo de Artur Bernardes. O presidente ficou desconfiado de que as aeronaves poderiam ser utilizadas pelos Tenentes rebeldes. Assim, o governo cortou os recursos financeiros 114 e mandou imobilizar os aviões. A situação só melhoraria no governo seguinte, com a retomada das aquisições de equipamentos e treinamento de pilotos. Além disso, em 1929, Tasso Fragoso informava que os alunos da Escola de Estado-Maior passaram dez semanas na Escola de Aviação Militar aprendendo a respeito da arma. (MCCANN, 2009, p. 319). 14.10 A MISSÃO FRANCESA No decorrer da década de 1920, a atitude dos brasileiros em relação à Missão Francesa misturava admiração e irritação. Havia, entre franceses e brasileiros, grandes discordâncias entre as concepções de emprego para as armas de combate. Mas Tasso Fragoso via a missão como solução temporária e confiava que deveria haver uma futura adaptação do curso de Estado-Maior à realidade nacional. O general insinuava uma falta de entrosamento entre o Exército e a Missão Francesa. Os paulistas, que inspiraram os militares a contratar os franceses já haviam partido para uma solução nacional e, em fins de 1924, dispensaram a sua missão. (MCCANN, 2009, p. 320). Entretanto, apesar das discordâncias, Tasso elogiou o desempenho dos oficiais formados no curso de Estado-Maior, na atuação contra os Tenentes rebeldes. E ressaltou que as operações teriam resultados melhores se a tropa estivesse à altura desses oficiais e os equipamentos fossem adequados. Mas é verdade que eles tinham dificuldades em passar suas táticas da teoria à prática. (MCCANN, 2009, p. 320). Os franceses, no início da missão, elaboraram um plano de reorganização para o Exército. O plano foi aprovado em 1922, mas não foi posto em prática porque o Congresso não autorizou verbas suficientes e os brasileiros não se curvaram ao serviço militar obrigatório. Além disso, os generais brasileiros não pretendiam concretizar “um plano que consideravam insuficientemente adequado às condições climáticas e geográficas do país”, que os franceses, com arrogância, queriam impor. (MCCANN, 2009, p. 321). Em 1925, o general Gamelin foi substituído pelo general Frederic Coffec. Para os brasileiros, ele não estava à altura de seu antecessor, apesar de ser inteligente. Tasso desentendeu-se com ele por querer impor a visão francesa na situação estratégica brasileira. Mas os desentendimentos de Coffec com seus subordinados 115 na missão logo resultariam no seu repatriamento. O general Joseph Spire, experiente chefe de outras missões, chegou para chefiar a missão, mas esta já não era como no tempo de Gamelin. Os jovens oficiais brasileiros designados para auxiliar a missão eram postos de lado. (MCCANN, 2009, p. 322). Também incomodava Tasso o fato de o Brasil estar isolado de outras doutrinas da Europa, o que era imposto pelos franceses. Gamelin pedira para que não fossem mandados oficiais para o exterior em nome da unidade doutrinária. Mas Tasso via que era tempo de prevalecer o interesse brasileiro. O novo chefe do Estado-Maior, general Alexandre Henrique Vieira Leal, em 1929, sugeriu que a missão estava com os dias contados. (MCCANN, 2009, p. 323). Ao mesmo tempo em que se notava o aumento das críticas à Missão Francesa, o novo chefe do Estado-Maior destacava que os franceses não respeitavam as durações das licenças. E afirmou já estar na hora de terminar o contrato. (MCCANN, 2009, p. 324). Para McCann (2009, p. 324), além disso, a aproximação com os Estados Unidos estava cada vez maior. Os estadunidenses direcionaram suas investidas para as áreas dos serviços. Em 1925, o diretor do Serviço Médico brasileiro organizou uma visita para conhecer os serviços e instalações médicas daquele país. Visitas semelhantes foram feitas por outros especialistas, como os do fabrico de pólvora sem fumo. Em 1928, houve uma demonstração de um piloto estadunidense no Campo dos Afonsos. O tenente convenceu os brasileiros de que os pilotos treinados pelo seu Exército não tinham rivais, assim como os caças que usavam, Curtis Hawk. O estímulo ao estreitamento de laços entre os exércitos brasileiro e americano [estadunidense] parece ter provindo dos oficiais brasileiros interessados em treinamento especializado e insatisfeitos com o armamento francês, e também da convicção dos oficiais americanos quanto à importância do Brasil para a defesa do hemisfério e ao potencial do país como mercado americano. (MCCANN, 2009, p. 325). Segundo McCann (2009, p. 326), apesar das queixas em relatórios, em público as autoridades brasileiras mostravam-se geralmente satisfeitas com a Missão Francesa. Mas em meados de 1930, alguns oficiais expressaram publicamente a insatisfação com a instrução militar. Uma combinação de aspectos fiscais, comerciais e políticos manteriam a Missão Francesa no Brasil, até que seus 116 integrantes fossem chamados à França devido à Segunda Guerra Mundial. Mas os brasileiros alcançaram parte dos seus objetivos com a missão: A sensação de serem modernos e o endosso às suas inclinações para intervir na sociedade a fim de moldar melhores filhos para a pátria. [...] [A inspiração aos] oficiais brasileiros a pensar politicamente [...] acima da política partidária – tinham de ser sacerdotes da pátria. [...] A convicção de que poder militar e desenvolvimento nacional eram intimamente ligados. (MCCANN, 2009, p. 326). De acordo com Frederick Nunn, citado por McCann (2009, p. 326), “a ênfase em serem parte da nação, e não apartados dela, direcionou oficiais do Estado-Maior para a aplicação de soluções militares para os problemas nacionais”. As ideias dos franceses sobre “o papel das Forças Armadas na sociedade como uma força civilizadora e estabilizadora” provavelmente deram coragem à empreitada tenentista e inspiraram o personagem do Exército de maior destaque na década seguinte: Pedro Aurélio de Góes Monteiro. Ele e os Tenentes, que iniciaram a década de 1920 em lados opostos, ao fim dela estariam juntos, derrubando a República Velha. (MCCANN, 2009, p. 326). 14.11 OS QUARTÉIS DE CALÓGERAS O programa de construção que o ministro Calógeras iniciou e que foi concluído pelo ministro Setembrino de Carvalho fora, até aquele momento, o maior já realizado pelo governo brasileiro. Apesar das suspeitas de corrupção que rondaram a contratação da empresa responsável, a melhora às condições de vida dos soldados foi inegável e o Exército foi contemplado com a planta básica que iria utilizar nas próximas décadas. (MCCANN, 2009, p. 329). Ao assumir o ministério, sensível à necessidade de alojar os efetivos convocados, Calógeras visitou quartéis e constatou que muitos se comparavam a “senzalas imundas”. Além disso, em caso de mobilização, não haveria condições de alojar os milhares do efetivo adicional. E nisso, o ministro foi apoiado até pela crítica A Defesa Nacional. (MCCANN, 2009, p. 330). O modelo das obras seria a Vila Militar, no Distrito Federal, que Hermes da Fonseca mandara construir. Como duvidava da capacidade da Engenharia do Exército em dar conta de tão vultoso projeto, providenciou a contratação de empresas civis, em especial, a Companhia Construtora de Santos. A opção feriu os 117 brios dos engenheiros militares, mas sem dúvida teve bons resultados. (MCCANN, 2009, p. 330). Foram mais de cem projetos espalhados pelo Brasil, o que já era impressionante na época. Mas a empreitada também marcou a quebra do costume de confiar obras públicas a firmas estrangeiras. As obrigações foram pagas com título da dívida pública, o que diluiu o pagamento em anos, mas elevou o endividamento do governo. Epitácio Pessoa foi criticado, mas pagou o preço para solucionar uma situação desesperadora. (MCCANN, 2009, p. 331). O programa também estabeleceu definitivamente o Exército nos estados de Minas Gerais e São Paulo. Uma região militar foi criada e destinada totalmente para Minas Gerais, que ganhou quinze novas unidades. Pode ter parecido que o mineiro Calógeras queria beneficiar seu estado, mas a decisão também foi fruto da preocupação do Exército em se posicionar melhor ante uma das forças da República Velha. São Paulo também foi bem contemplado com doze novas unidades. Diante disso, ambos os estados providenciaram o aumento de suas forças de segurança. (MCCANN, 2009, p. 331). Calógeras queria concluir o programa a tempo de comemorar o centenário da Independência do Brasil. Mas também queria evitar deixar projetos inacabados para próximos governos. “É espantoso que 70% do programa estivessem concluídos no final do governo de Epitácio Pessoa”, em um ano e oito meses. Os atrasos se deveram à precariedade dos transportes de algumas ermas áreas e ao levante de 1922, que tornou tudo mais complicado. No Rio Grande do Sul, a empresa de Simonsen concordou em interromper ou adiar as obras, em razão da rebelião tenentista de 1924. (MCCANN, 2009, p. 332). Além dos problemas técnicos, a construção precisou enfrentar entraves políticos causados pelas disputas entre municípios para ser selecionados pelo Exército. Haveria contribuição para as economias locais. Em alguns lugares, como em Campo Grande, no Mato Grosso, a rede de abastecimento de água construída para o quartel foi levada até a cidade, que não a possuía. (MCCANN, 2009, p. 333). No final, faltando 15 obras das 53 contratadas, com a suspensão de todos os projetos de construção federal por Artur Bernardes, a companhia de Simonsen passou o que restava a fazer para ser completado pela Engenharia do Exército. Depois dos levantes tenentistas, o que restava seria concluído, encerrando o maior 118 programa de construção da República Velha: os “quartéis de Calógeras”. (MCCANN, 2009, p. 334). 119 15 A REVOLUÇÃO DE 30 15.1 AS REVOLTAS TENENTISTAS A insatisfação das fileiras subalternas do Exército marcara os últimos anos do Império e inquietara os primeiros anos da República que nascia, até 1904. Depois disso, as atenções dos Tenentes se voltaram para a ânsia de profissionalizar a instituição. Entretanto uma nova questão militar, assim como na derrocada do Império, surgia em 1921, ameaçando a estabilidade da República Velha. O episódio das cartas falsas em que supostamente o candidato à sucessão presidencial Artur Bernardes teria ofendido o ex-presidente Hermes da Fonseca, revoltou os oficiais. A maioria, porém, aceitara as explicações de Bernardes. Mas alguns capitães e tenentes tiveram reacesa a chama da revolta, diante do insulto às Forças Armadas. (MCCANN, 2009, p. 336). Dentre os poucos superiores que se aliaram aos insurgentes, estava a figura até então legalista do ex-presidente Hermes da Fonseca. Talvez tenha aderido para recuperar sua reputação, desgastada no seu governo, ou pelo fato de ter sido influenciado pelos filhos militares. (MCCANN, 2009, p. 337). É provável que a campanha pelo profissionalismo tenha contribuído para desencadear o protesto dos Tenentes. A reorganização da Escola Militar, enfatizando a prática, sob a energia dos oficiais da Missão Indígena, visando a modernizar e estimular o tradicional Exército, passou esses ensinamentos aos alunos. As turmas de 1918 e 1919 tiveram programa especial de treinamento e foram as principais fornecedoras de tenentes rebeldes. Devido ao treinamento pesado, formou-se uma família, uma união indissolúvel. Ademais, esses tenentes julgavam-se mais preparados que os outros e essa convicção dava-lhes sentimento de superioridade e era prejudicial à disciplina. (MCCANN, 2009, p. 337). Segundo McCann (2009, p. 338), a insatisfação dos Tenentes ganhou um componente político quando estes perceberam que muitos oficiais superiores estavam cooptados pela estrutura política e permitiam que o Exército fosse tratado como uma escora do governo. Além disso, as áreas vizinhas à escola, no Realengo, foram alvo, nos dois anos em que os oficiais estiveram lá, de greves e manifestações da classe operária, nas quais por vezes os alunos fizeram patrulhas. A emergência do catolicismo entre os alunos, sob a inspiração do pároco local, 120 Padre Miguel, colocou muitos alunos em contato coma as mazelas cotidianas da vizinhança da escola. A presença da Missão Francesa era outro motivo de tensão entre a oficialidade. É paradoxal que o desejo de reforma, que fora a causa do envio de oficiais à Alemanha, da criação da Missão Indígena na escola militar e do convite aos franceses, também tenha impelido oficiais para a ação política. [...] Os corpos de oficiais alemães e franceses eram altamente politizados, com ideias claras sobre a importância de um Exército forte para a saúde política do Estado. (MCCANN, 2009, p. 339). Entretanto, apesar de a reforma militar ter importância para os Tenentes, é fato que eles também queriam mudar a sociedade brasileira. Pensavam que as duas coisas estavam ligadas e que um Estado mais autoritário, menos liberal, teria capacidade para intervir na economia e distribuir a riqueza de forma mais justa. (MCCANN, 2009, p. 339). Críticos das oligarquias, os tenentes queriam moralizar a vida política brasileira, pôr fim à corrupção eleitoral. Pregavam o voto secreto e a reforma do ensino. Ao mesmo tempo, achavam que os militares eram os únicos capazes de “salvar a pátria”, pois a população era despreparada e inculta. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 355). Uma rebelião quixotesca, que teve seu epicentro no forte de Copacabana, marcou a aparição do movimento tenentista no cenário nacional, em julho de 1922. “O catalisador foi a punição que o presidente Epitácio Pessoa impôs ao marechal Hermes da Fonseca” quando este aconselhou às guarnições de Pernambuco resistir pacificamente à intervenção federal que fora ordenada naquele estado. A sentença indignou os Tenentes que viam no Exército o criador da República e nos políticos, os seus traidores. Além disso, incomodara os oficiais descontentes a escolha de Artur Bernardes, suposto autor das cartas falsas, como sucessor de Epitácio Pessoa na presidência. (MCCANN, 2009, p. 339). Muito dessa insatisfação foi manifestada no âmbito do Clube Militar, o qual oficialmente repudiaria o levante, que foi fechado por Pessoa no primeiro dia de julho de 1922. Quatro dias depois, a revolta eclodia sob esses pretextos. (MCCANN, 2009, p. 340). Várias unidades situadas no Rio de Janeiro levantaram-se, mas a maior parte da 1ª Divisão de Exército permaneceu leal ao governo e as tropas legalistas, supervisionadas pelo chefe do Estado-Maior, Setembrino de Carvalho, esmagaram o movimento. Fogo conduzido pelo capitão Mascarenhas de Morais, da 2ª Bateria do 121 1º Regimento de Artilharia Montada, convenceu os alunos da Escola do Realengo a não aderir à revolta. (MCCANN, 2009, p. 340). A revolta pôde ser suprimida a tempo porque houve antecipação dos legalistas ao desencadeamento pelos Tenentes. Os sargentos de Mascarenhas de Morais, por exemplo, informaram-no da eclosão do movimento. Além disso, muitos oficiais receberam informes de adesões e os comandantes puderam prender os envolvidos antes que estes agissem. No regimento de Mascarenhas, dos tenentes, apenas dois não se manifestaram contra o governo Pessoa. Os descontentes já saíram da reunião de oficiais como prisioneiros. (MCCANN, 2009, p. 341). Esse tipo de drama desenrolou-se em unidades de todo o Exército, e mostra que já de longa data a “conspiração” estivera presente nas conversas dos envolvidos, mas não se tivera a precaução de assegurar que na hora H o pessoal, o equipamento e as unidades necessárias estivessem a postos. (MCCANN, 2009, p.341). Além disso, os Tenentes se equivocaram ao achar que não haveria oposição no Exército. As palavras do tenente Delso Mendes da Fonseca, em reunião dos conspiradores em 4 de julho, no forte de Copacabana, deixa claro o engano: “Bom, não vai haver guerra. Não tem combatentes contrários, todo mundo é nosso”. A sequência dos acontecimentos mostraria que muitos que eram a favor do levante desapareceram ao primeiro tiro. (MCCANN, 2009, p. 342). Apesar da supressão ao movimento, a convicção de que mudanças eram necessárias não arrefeceu. Ademais, as punições aplicadas aos rebeldes aumentaram as animosidades em vez de cessar os conflitos. E a recusa de anistia aos envolvidos, por Epitácio Pessoa foi o fator que mais contribuiu para a continuidade do movimento. E em vez de anistia, no novo governo de Artur Bernardes, o poder Judiciário enquadrava os rebeldes no código penal, o que poderia resultar na prisão dos condenados por cinco a vinte anos. (MCCANN, 2009, p. 342). Mas no fim de 1922, os Tenentes faziam sondagens da possibilidade de obter adesões a um movimento mais amplo, aproveitando agitações civis no Rio Grande do Sul. (MCCANN, 2009, p. 343). Os indiciamentos pela justiça forçaram os envolvidos a fazer uma escolha. Dos cinquenta indiciados, havia 22 presos e outros 17 se entregaram. Coube a 11 resolutos homens a deserção e o prosseguimento do levante na clandestinidade. 122 Agora, cabia-lhes apenas a luta armada para chegar ao poder pela derrubada do governo e dos líderes do Exército. (MCCANN, 2009, p. 344). Os Tenentes precisavam naquele momento, nas palavras de Eduardo Gomes, de “algo que reacendesse as paixões e de uma certa segurança, no sentido de saber com quem contar”. Mas precisavam também de um líder, algum oficial com liberdade para se deslocar. E isso excluía qualquer envolvido de 1922. Teria de ser reconhecido e respeitado, tanto por rebeldes quanto por civis, de quem deveria obter apoio. Foram encontrar o coronel Isidoro Dias Lopes, que fora reformado como general-de-brigada. Gaúcho, ele lutara a Revolta Federalista de 1893, deixando o Exército e sendo chefe do estado-maior do caudilho Gumercindo Saraiva. Os Tenentes consideraram que ele mostrara seu valor na revolta e recentemente inclinara-se a conspirar com Nilo Peçanha, contra o presidente Bernardes. (MCCANN, 2009, p. 344). O desejo dos tenentes de ter como líder um oficial superior ia além do respeito pela hierarquia. Havia [...] um importante raciocínio realista, prático e operacional. Um líder respeitado atrairia, seja por subordinação seja por camaradagem, seja pelo mero exemplo, outros oficiais para a causa. (MCCANN, 2009, p.345). Os Tenentes buscavam transformar seu isolamento no Exército em uma causa coletiva e institucional. Assim, eles tentariam, em vão, trazer para o movimento o comandante da 2ª Região Militar, general Abílio de Noronha, em 1924. Essa busca também explica porque aceitariam a liderança do tenente-coronel Pedro Aurélio de Góes Monteiro, em 1930, que até então, era legalista. (MCCANN, 2009, p. 345). Isidoro Dias Lopes deixou de lado a hesitação e aderiu à causa, em 1924, ao visitar quartéis no Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo e constatar o ânimo dos oficiais para a revolta. Enquanto isso, o movimento se articulava. Os irmãos Távora, incógnitos, passaram por unidades nos estados do Sul e Sudeste. Mensagens eram trocadas entre os presos e os que trabalhavam. Feita a sondagem, os rebeldes levantaram as unidades que adeririam, as que apoiariam, as que ficariam neutras e as que se oporiam. Visavam a desencadear rebeliões simultâneas para dificultar a reação do governo. (MCCANN, 2009, p. 345). O mais conhecido oficial de médio escalão da época por sua atuação na revista A Defesa Nacional, o major Bertoldo Klinger, não aderiu à revolta, com o seu regimento de artilharia em Itu, porque estava convicto de que não havia material bélico e pessoal suficiente para a vitória. Apesar da negativa, Klinger era um 123 contumaz crítico das políticas militares do governo e foi constantemente procurado pelos Tenentes. “De fato, em determinado momento, ele concordou em assumir um papel de liderança na organização do estado-maior rebelde”. (MCCANN, 2009, p. 346). Para que o movimento tomasse o poder, seria necessário controlar o Rio de Janeiro. Mas a constante vigilância da polícia sobre greves trabalhistas e manifestações tornava a conspiração mais perigosa naquela cidade. Como não teriam um número de unidades suficientes para dominar o Exército, os líderes tenentistas passaram a ver São Paulo como alvo útil. Lá havia rebeldes escondidos no anonimato e São Paulo apoiara, com seu braço forte, a reação do governo contra o movimento de 1922 e a intenção era acabar com esse apoio, no início do levante. As lideranças rebeldes pensavam que, dominando São Paulo e com as unidades que apoiaram rebeladas, dominariam os acessos ao Rio de Janeiro pelo vale do Paraíba e isolariam a capital federal. (MCCANN, 2009, p. 346). Mas as lideranças tiveram dificuldade em marcar a data do levante. Várias foram marcadas, entre março e junho de 1924, mas passavam sem que algo ocorresse, na espera de obter adesões de unidades que não estavam garantidas. A morte do ex-presidente e aliado civil Nilo Peçanha entristeceu os rebeldes. E a retirada de Klinger do movimento desencorajou a participação de oficiais de São Paulo e de estados do Sul. (MCCANN, 2009, p. 347). A atuação do comandante da 2ª Região Militar, general Noronha, foi decisiva para conter a rebelião. Ao ouvir rumores, o general exigiu compromisso de lealdade de seus comandantes de unidade e, em 26 de junho, pediu a Setembrino o afastamento de dois comandantes, do 2º Grupo de Artilharia e do 5º Batalhão de Cavalaria, pelos indícios de envolvimento. Isso alertou as autoridades estaduais do Rio de Janeiro e São Paulo. “Em desespero, no final de junho, escolheu-se o 5 de julho, tão rico do simbolismo da revolta do forte de Copacabana dois anos antes. Eles tinham de agir enquanto ainda pudessem”. (MCCANN, 2009, p. 347). 15.2 A REVOLTA DOS TENENTES EM SÃO PAULO Koshiba e Pereira (2003, p. 413) afirmam que a revolta em São Paulo “era a continuação dos 18 do Forte, agora em maior escala [junto com o levante do Rio Grande do Sul]: o tenentismo entrava em fase ascendente”. 124 Segundo Segatto (1996): Nesses 23 dias de guerra, São Paulo praticamente parou. Os bondes deixaram de circular, o comércio fechou, as fábricas não funcionaram, a energia elétrica foi interrompida, a população escondeu-se ou fugiu. O medo e a confusão espalharam-se por toda parte. Começaram as invasões de armazéns e depósitos. [...] Chegou-se a criar uma milícia para evitar as pilhagens. (apud ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 356). A revolta começou em São Paulo, como planejado, no dia 5 de julho de 1924. Cinco capitães, dentre eles os irmãos Joaquim e Juarez Távora e Newton Estillac Leal, tomaram o 4º Batalhão de Cavalaria, na capital paulista. Com oitenta soldados armados, mais os da Força Pública, liderados pelo major Miguel Costa, fizeram do quartel da Polícia o posto de comando revolucionário do general Isidoro Dias Lopes. Tentaram em vão tomar o palácio do governo do estado. Os rebeldes também tomaram delegacias, o prédio dos telégrafos e as estações ferroviárias. Mas precisavam controlar a cidade, conseguir adesões de unidades indecisas e depois seguir em direção ao Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 348). Diante do impasse, Isidoro decidiu que a força rebelde abandonaria a cidade antes de ficar cercada. Depois de resistir, Miguel Lopes concordou com o chefe do movimento e escreveu ao governador oferecendo rendição em troca de anistia. Mas o outro lado estava mais nervoso e, amanhecendo o dia 9 de julho, as forças do governador abandonaram a cidade e a carta não lhe foi entregue. A ordem de Isidoro foi, então, revogada. (MCCANN, 2009, p. 348). Mas para os rebeldes foi difícil lidar com uma cidade tão grande e logo os problemas começaram. Houve saques, insegurança pública, desemprego pelo fechamento de fábricas e a inevitável perda de popularidade da causa rebelde. A Associação Comercial protestou e o general Isidoro procurou restabelecer a ordem com a formação de uma força civil. (MCCANN, 2009, p. 348). Ao saber do levante em São Paulo, o ministro Setembrino dera ordem ao comandante da 1ª Região Militar, general Eduardo Sócrates, para bloquear os acessos ao Rio de Janeiro. Mas o general Sócrates fez mais. Avançou até Mogi das Cruzes, vizinha à cidade de São Paulo e instalou seu posto de comando na cidade fluminense de Barra do Piraí. Assim, os rebeldes estavam impedidos de ir para o Leste. Ao mesmo tempo, o couraçado Minas Gerais fechou o porto de Santos. O veterano do Contestado, agora coronel Tertuliano Potyguara recebeu a missão de tomar a ferrovia de São Paulo, cortando o acesso rebelde a Campinas. Batalhões 125 patrióticos civis, que incluíam nos líderes o próximo presidente, Washington Luís, e o futuro candidato Júlio Prestes, barraram o acesso para Curitiba. Os revoltosos estavam cercados. (MCCANN, 2009, p. 349). No dia 12 de julho, o general Sócrates ordenou o bombardeio a São Paulo. Houve centenas de baixas civis e a população pôs-se em fuga. O arcebispo e líderes civis de São Paulo tentaram convencer o presidente Bernardes e o general Isidoro a não empregar a artilharia, o que foi negado pelo presidente. Setembrino sugeriu que os rebeldes saíssem da cidade e fossem a campo combater. Além da Artilharia, em 22 de julho, aviões do Exército também bombardearam a castigada cidade. (MCCANN, 2009, p. 349). As vítimas civis chegavam a quinhentas. A Santa Casa estava cheia de feridos e nos cemitérios grassavam cadáveres. Poucas eram as perdas do lado rebelde. Mas uma foi muito significativa: o capitão Joaquim Távora, “a cabeça e o coração do movimento tenentista”. (MCCANN, 2009, p. 350). Outras revoltas eclodiram, no dia 12, em Aracaju e Bela Vista e no dia 23 em Manaus, e foram rapidamente reprimidas pela determinação do governo e dos batalhões patrióticos liderados por caudilhos locais. Mas não chegaram ao conhecimento dos Tenentes em São Paulo, pois as linhas de comunicação foram cortadas de início. (MCCANN, 2009, p. 350). Em Manaus, tentou-se estabelecer uma comuna, ou seja, uma cidade emancipada. As lideranças, que incluíam civis, tentaram assegura a posse do forte de Óbidos, rio abaixo, e adotaram medidas socioeconômicas, como cobranças de impostos dos mais ricos para distribuir aos pobres. Quebraram o monopólio de alimentos e o abatedouro e o mercado, que pertenciam a ingleses que tiveram de pagar impostos que as empresas tinham em atraso. (MCCANN, 2009, p. 351). Em Sergipe, a reação do governo veio por terra e pôs fim ao domínio tenentista que durou três semanas. Em Manaus a resistência durou trinta dias, após os quais os rebeldes da comuna abandonaram a cidade, com a eminente chegada de uma expedição comandada pelo general João de Deus Mena Barreto. (MCCANN, 2009, p. 351). Em São Paulo, em 26 de julho, aviões federais lançaram panfletos incentivando a população a abandonar a cidade para liberar o ataque às forças rebeldes. Em pânico, a população encheu as estradas em busca de refúgio. Outros 200 mil civis 126 evadiram-se nas três semanas anteriores, mas a cidade ainda tinha mais de 400 mil. (MCCANN, 2009, p. 351). Em determinado momento pareceu que Setembrino e Sócrates deixavam de lado o treinamento francês e queriam usar os velhos métodos de Canudos e do Contestado. Mas antes que isso acontecesse, os rebeldes perceberam que seriam aniquilados e retiraram-se muito discretamente para o Mato Grosso, de trem, em 27 de julho. Deixaram a artilharia atirando até que o último trem partisse, ludibriando as forças federais. (MCCANN, 2009, p. 351). Mas os rebelados em fuga encontraram a rota para o Mato Grosso bloqueada e, em batalha sangrenta, perderam Três Lagoas, no Mato Grosso, cuja posse era capital para controla o lado oeste do rio Paraná. Com isso, desceram o rio até Foz do Iguaçu e lá montaram sua resistência. (MCCANN, 2009, p. 352). Essas forças seriam reforçadas por outras vindas do Rio Grande do Sul, formando a Coluna Miguel Costa – Prestes, que vagaria por 25 mil quilômetros e treze estados brasileiros, até o início de 1927. (MCCANN, 2009, p. 352). No Rio Grande do Sul, em outubro de 1924, quatro guarnições se rebelaram: Santo Ângelo, São Borja, São Luís e Uruguaiana. Juntaram-se às forças do “general” Honório Lemes, insatisfeitas com os desdobramentos da guerra civil de 1923 naquele estado. (MCCANN, 2009, p. 352). A tropa gaúcha, muito pitoresca em suas vistosas fardas regionais e armas antiquadas, foi, porém, pouco eficaz no combate às forças federais, estaduais e provisórias enviadas para combatê-la. (MCCANN, 2009, p.352). No início de 1925, a coluna de 2 mil homens comandada pelo capitão Luís Carlos Prestes, que marchava para juntar-se aos rebeldes de Isidoro, estava minguando pelas deserções. Mas as tropas federais a comando do general Rondon, que a esperava no Paraná e em Santa Catarina, tinha 12 mil homens. Ao chegar a Foz do Iguaçu, depois de muito esforço, com 800 homens, Prestes soube que Isidoro havia desistido, assim como muitos rebeldes, e exilara-se na Argentina. (MCCANN, 2009, p. 352). Miguel Costa e Prestes dominaram o que restou dos rebeldes e surpreenderam Rondon atravessando o rio e entrando no Paraguai para chegar ao Mato Grosso. A partir daí, a coluna se autodeterminou como uma “manifestação de protesto armada” que, itinerante, serviria para chamar à ação contra o “abominado Bernardes”. A nova 127 proposta era continuar vivos e passar a impressão de invencibilidade. (MCCANN, 2009, p. 353). O Exército demonstrou pouca disposição para combater a coluna que era integrada por alguns de seus melhores oficiais, apesar dos muitos soldados empregados para tal. A conduta era “deixar passar”, porque muitos oficiais, em especial os de baixa e média patente, concordavam com os rebeldes. Mas um episódio contrariou essa regra: o major Joaquim de Souza Reis, considerado um dos maiores pensadores do Estado-Maior e fundador de A Defesa Nacional, suicidou-se por sentir-se humilhado quando retirado do seu posto, por não ter conseguido suprimir a rebelião. (MCCANN, 2009, p. 353). O Exército Brasileiro estava desmoronando lentamente como instituição e como força combatente. Seria necessária grande parte da década de 1930 para reconstruí-lo. O elenco de combatentes de ambos os lados incluiu muitos dos principais atores da política militar que moldou o Brasil entre a Revolução de 30 e o golpe militar de 1964. (MCCANN, 2009, p.353). A repressão pelo país foi forte. Houve detenções, espancamentos e torturas, principalmente em São Paulo. Alguns desapareceram, outros foram executados abertamente. Policiais paulistas lucraram com a extorsão de pessoas abastadas que eram presas. Quem tinha influência ou dinheiro conseguia a liberdade. A revolta afastou ainda mais os brasileiros do serviço militar e levou muitos a questionar a manutenção de um Exército composto por rebeldes. (MCCANN, 2009, p. 354). O prestígio perdido pelo Exército se transferia para as forças estaduais e civis, que agora eram pagas pelo governo. A resistência da sociedade ao serviço militar era passiva, mas tinha êxito. “As revoltas tenentistas solaparam o Exército e a autoridade moral do governo central”. Tasso Fragoso tentava manter as aparências ao destacar “a experiência de campanha obtida na supressão da rebelião como um bom preparo contra uma guerra com estrangeiros”. (MCCANN, 2009, p. 355). 15.3 A ASCENSÃO DE GÓES MONTEIRO A fraqueza das relações do Exército brasileiro com o sistema político seria mais uma vez revelada com a adesão de alguns oficiais que combateram a Coluna à causa tenentista. Em pouco tempo, esses homens fariam a Revolução de 1930. Dentre eles destacava-se Pedro Aurélio de Góes Monteiro. (MCCANN, 2009, p. 356). 128 A ascensão de Góes Monteiro na carreira foi rápida. Passou de tenente em 1923 a tenente-coronel em 1928. Seria o chefe do estado-maior dos revolucionários de 1930 e chegaria a ministro da Guerra em 1934. “Mais do que qualquer outro, reconstruiria o Exército no fim dos anos 30 e poria a instituição no rumo cada vez mais intervencionista trilhado nas décadas seguintes”. (MCCANN, 2009, p. 356). Góes era alagoano, mas sua longa permanência no Rio Grande do Sul identificou-o com os gaúchos. Nasceu no mês seguinte à proclamação da República. Em busca de ensino gratuito, cursou o Realengo a partir de 1903. Foi impedido, em 1904, pelo general Hermes, comandante da escola, de participar da revolta de 1904. Assim, ele foi cursar a Escola de Guerra de Porto Alegre. Na capital gaúcha, cruzou o caminho de pessoas que teriam papéis importantes na sua vida e na do país. (MCCANN, 2009, p. 356). Nas explosivas eleições do governo gaúcho, em 1906, juntou a estudantes de direito liderados por Getúlio Vargas e escreveu artigos militares para o jornal do grupo. Teve nesse período amigos comuns com o futuro presidente e, apesar de não terem se conhecido antes, suas vidas seguiriam entrelaçadas, sendo Góes o comandante das forças revolucionárias de 1930 e tendo papel decisivo no estabelecimento da ditadura do Estado Novo em 1937, na deposição de Vargas em 1945 e chefiando o Estado-Maior das Forças Armadas no governo de Vargas na década de 1950. (MCCANN, 2009, p. 356). Como aspirante, em 1910, foi comandado por Setembrino de Carvalho num batalhão ferroviário. Serviu em unidades de cavalaria no Rio Grande do Sul, até 1916, casando-se com uma gaúcha do Alegrete. Nos dois anos seguintes, frequentou um curso de engenharia no Rio de Janeiro, ocasião na qual absorveu ideias que os jovens turcos publicavam em A Defesa Nacional. Em 1918 retornou para o Rio Grande do Sul. A família de sua esposa apresentou-lhe a um jovem advogado que tinha escritório no Alegrete e era sócio e amigo de Getúlio Vargas. Era Osvaldo Aranha, futuro coordenador civil da Revolução de 30. (MCCANN, 2009, p. 357). Em 1921, Góes Monteiro retornou ao Rio de Janeiro para cursar a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, criada no contexto da Missão Francesa. Logo depois, frequentou a Escola de Estado-Maior, onde estava quando eclodiu a revolta de 1922, na qual apoiou o governo, apesar de estar à margem dos fatos, na situação de aluno. Góes impressionou os franceses com seu desempenho. Por isso, durante a 129 guerra civil no Rio Grande do Sul, em 1923, foi incumbido de elaborar um plano de defesa do governo estadual. Promovido a capitão, foi mandado para Santos, em 1924, a fim de colaborar na organização das forças federais, depois que os Tenentes tomaram São Paulo. Deixou clara sua contrariedade na decisão do comando de bombardear a cidade. Terminada a crise, foi lecionar na Escola de Estado-Maior. (MCCANN, 2009, p. 357). Em 1925, quando viajava de férias no Rio Grande do Sul, foi incumbido de chefiar o estado-maior do destacamento do coronel Álvaro Guilherme Mariante, no contexto das forças que, no Paraná, sob o comando de Rondon, atuariam contra a Coluna Miguel Costa – Prestes. Depois de breve tempo no Mato Grosso, no estadomaior do general Malan d’Angrogne, esteve por dois meses lecionando no Rio de Janeiro e foi mandado para o Triângulo Mineiro, para compor as forças que tentavam bloquear o avanço rebelde. (MCCANN, 2009, p. 358). O agora general Mariante levou Góes para a Bahia, novamente como chefe do estado-maior, buscando encurralar a coluna rebelde. Góes organizou grupos de caça com fazendeiros e jagunços que perseguiram os rebeldes por vários estados, não conseguindo detê-los. Quando, em março de 1927, a Coluna pôs-se a salvo na Bolívia, o então major Góes Monteiro voltou a lecionar no Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 358). Ainda em 1927, o general Mariante, novo diretor de Aviação do Exército, chamou Góes para chefiar seu estado-maior. Em outubro do ano seguinte, depois de dois anos como major, foi promovido a tenente-coronel. Com essa rápida ascensão entre oficial intermediário e superior, Góes ganhou possibilidades reais de exercer influência. (MCCANN, 2009, p. 358). A influência francesa reforçara sua autoconfiança e fornecera uma doutrina que o inspirava a pensar, escrever e falar sobre o Exército e suas mazelas. Para ele, o Exército estava no cerne dos problemas e das soluções nacionais. Atribuía à conjuntura política a condição do Exército naquele momento. Criticava a vida na caserna e irritava os oficiais mais antigos. Com o governo, em suas atitudes para com o Exército, era mais contundente, afirmando que o presidente, deliberadamente, mantinha a instituição ineficiente. (MCCANN, 2009, p. 358). Nesse contexto, transparecia a observadores que ao Exército não interessava destruir a Coluna Prestes porque isso acarretaria no fim do duplo soldo pago a quem estava em campanha. Mas as elites não mais acreditavam que o Exército poderia 130 defender a República Velha e reforçaram suas forças de segurança visando à sobrevivência do sistema. Para Góes, essas forças estaduais e os seus batalhões patrióticos compensavam a “força que faltava ao Exército” que, junto com a Marinha, não conseguia cumprir a sua missão constitucional. (MCCANN, 2009, p. 358). Góes também se preocupava com a hipótese de uma invasão argentina e não acreditava que o sistema vigente seria capaz de prover a defesa ante o inimigo externo. E afirmava serem necessários planos para confrontar esse inimigo mais provável, que envolvessem toda a nação, da qual o Exército era uma parte de um todo. Ele temia que, se não fossem tomadas providências, o Brasil se desintegraria e avisou que a ”revolta era um aviso do que poderia acontecer se o país fosse invadido”. E criticou seus colegas do destacamento Mariante, que se mostravam desinteressados pela doutrina militar e pelo autoaperfeiçoamento. (MCCANN, 2009, p. 359). Góes preconizava um novo sistema de promoções que estimulasse os oficiais a aperfeiçoar-se continuamente. Ele considerava uma “voz clamante fora do deserto” a mensagem de que as Forças Armadas brasileiras “pouco significam como valor militar”. (MCCANN, 2009, p. 360). 15.4 A REVOLUÇÃO AVANÇA Com o crash da Bolsa de Nova York em 1929 veio a derrocada [do café]: os Estados Unidos diminuíram as importações e o preço do café caiu em mais de 30%; o crédito externo foi suspenso; as dívidas tiveram de ser liquidadas. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 356). Habituados à velha política de valorização do café, os fazendeiros exigiram do governo central medidas imediatas para solucionar a crise. O presidente Washington Luís [...] recusou-se a atendê-los. Por isso, muitos cafeicultores passaram a lhe fazer oposição. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 357). Havia uma crítica nos veículos de imprensa de que o governo Washington Luís estaria entregando o país nas mãos de nações imperialistas. Falavam dos Estados Unidos e da Europa, a quem não culpavam por acharem que faziam o que qualquer país faria. E atribuíam o principal inimigo aos maus governos. Tachavam o presidente de “maior inimigo”. Os jornais também criticavam o Exército e a Missão Francesa, que não teria trazido resultados. “Coletivamente, editoriais e matérias nessa linha apontavam para a revolução como solução”. (MCCANN, 2009, p. 360). Aos insatisfeitos, somaram-se os mineiros. Estavam descontentes com a escolha de um candidato paulista para suceder Washington Luís – era Júlio Prestes. 131 Para eles, de acordo com a “Política dos Governadores”, o próximo presidente deveria ser de Minas Gerais. E no início de 1929, os mineiros se juntaram aos seus congêneres gaúchos e nasceu a Aliança Liberal. Nela, debateram sobre contestar a escolha paulista. Para consolidar o apoio dos gaúchos, os mineiros propuseram-lhes que o candidato da Aliança fosse o presidente do seu estado, Getúlio Vargas. E também se aventou a possibilidade de uma rebelião no caso de derrota, que era muito provável, pois a contagem dos votos cabia ao governo. (MCCANN, 2009, p. 361). A frase de Antônio Carlos “Façamos a revolução antes que o povo a faça” ajuda a explicar a Revolução de 1930. Foi um movimento das oligarquias que não se beneficiavam com a política do café-com-leite, como a do Rio Grande do Sul, com o apoio de setores sociais cansados da velha e corrupta República, tal como os tenentes e as classes médias urbanas. Essa parcela da oligarquia que se revoltava queria acabar com o domínio da elite paulista, mas temia que a mobilização popular levasse ao poder grupos mais radicais. (ARRUDA; PILETTI, 2004, p. 357). Os oficiais do Exército, por sua vez, não aderiram em grande número essa ideia, pois o governo atual apenas mantinha a recusa de anistia aos rebeldes, como fizera o anterior. Mas “os acontecimentos subsequentes revelariam que poucos oficiais importavam-se suficientemente com o governo para defendê-lo com a vida”. (MCCANN, 2009, p. 361). Mesmo os Tenentes mostraram-se resistentes em aderir. Alguns hostilizaram a ideia de conspirar com civis, alguns contra os quais tinham lutado antes. Coube a Osvaldo Aranha persuadi-los de que seria melhor do que ficar isolados. Uma geração mais nova de tenentes, em sua minoria, porém, aderiu prontamente. E o próprio governo se incumbiu de espalhar esses oficiais pelas guarnições, onde difundiriam a conspiração. E oficiais em grande número foram convencidos ou neutralizados, tornando o movimento irresistível. (MCCANN, 2009, p. 361). Mas os oficiais do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, desencantados com o governo e o sistema vigente, apoiaram e atuaram abertamente pela candidatura de Vargas. Muitos oficiais foram movidos pela opinião da maioria ou pela amizade. E quando o governo procurou controlar essas atividades, as tensões aumentaram. (MCCANN, 2009, p. 361). O comando do Exército considerava que uma rebelião teria suas origens no Rio Grande do Sul. Passou a enviar para lá oficiais de confiança. Porém, quando Góes Monteiro foi nomeado pelo ministro Nestor Sezefredo dos Passos para 132 comandar o 3º Regimento de Cavalaria Independente, em São Luís das Missões, sentiu-se desprestigiado, por se tratar, no seu ver, da pior guarnição gaúcha e naquele estado estavam muitos dos seus inimigos, incluindo o comandante regional, general Gil Antônio Dias de Almeida. Talvez estivesse sendo testado em sua lealdade ou estavam tirando-o do capital federal onde havia muitos apoiadores da candidatura de Vargas. E o próprio Góes já fora fotografado com políticos da oposição. O mais provável, porém, é que Nestor tivesse em Góes um oficial competente e leal, que combatera a Coluna Miguel Costa – Prestes, além de conhecer o Rio Grande do Sul e ter capacidade de controlar os arredores da terra natal de Vargas. (MCCANN, 2009, p. 362). Mas Góes irritou-se e comentou com um amigo: “Não me importa. Mas eles pagarão caro!” A caminho de São Luís, esteve com seu irmão em Rio Grande, o capitão Cícero Augusto, conspirador que lhe passou o resumo da situação. Em Porto Alegre, Osvaldo Aranha arquitetou uma pressão familiar para convencer Góes a aderir à conspiração. Ao sondá-lo a respeito, Aranha ouviu uma resposta legalista. Mas Góes estava em dúvida entre a lealdade ao Exército e ao regime ou arriscar a vida e a carreira e acabaria cedendo. (MCCANN, 2009, p. 362). A criação do comando da revolução foi complicada, pois reuniu oficiais que antes estiveram em lados opostos. Em certa medida à revelia, Góes encabeçou o comando à revelia. Fora tratado que o comando seria oferecido ao coronel Estevão Leitão de Carvalho, de Passo Fundo, e ao coronel Euclídes Figueiredo, do Alegrete. Seria dito a Leitão de Carvalho que Figueiredo e Góes aceitariam sua liderança. (MCCANN, 2009, p. 363). Aos Tenentes devia ser complicado subordinar-se a um oficial que lutara contra eles. Mas já estavam comprometidos com a Aliança Liberal, com políticos contra os quais se haviam insurgido. Mas era fundamental unir-se aos civis para não repetir os insucessos anteriores. Para amenizar as diferenças, a Aliança Liberal incluiu em seu programa algumas reivindicações dos Tenentes: voto secreto, melhores leis eleitorais, atenção a problemas sociais e, especialmente, suas anistias. Os civis queriam absorver a aura tenentista. Prestes, por sua vez, exilado em Buenos Aires, chegou a conversar com Aranha, mas já havia enveredado para o socialismo e, em maio de 1930, rompeu com a Aliança Liberal, taxando-a de burguesa. A saída de Prestes deixou os Tenentes sem rumo e sem força na Aliança, cujo controle pendeu totalmente para os políticos. (MCCANN, 2009, p. 363). 133 Como se esperava, Júlio Prestes venceu as eleições e o projeto da Aliança Liberal foi dissipado. Mas um fato o reviveria: o assassinato de João Pessoa, presidente da Paraíba e candidato à vice-presidência na chapa de Vargas. (MCCANN, 2009, p. 364). No intervalo entre a eleição de Júlio Prestes e o assassinato de Pessoa, Góes mantivera o ardor revolucionário. Declarou a Aranha que tinha um projeto de regeneração do Brasil, que esperaria o tempo que fosse preciso e que prosseguiria mesmo sem o seu apoio, fundando uma sociedade secreta no Exército. (MCCANN, 2009, p. 364). Mas o quartel de Góes, no interior, não era um bom lugar para manter os contatos com os conspiradores da capital gaúcha. E o comandante da região suspeitava que ele estivesse tramando algo. Portanto, era preciso encobrir os movimentos, com cautela. (MCCANN, 2009, p. 364). O líder mineiro, Antônio Carlos, vacilava em assumir a responsabilidade de uma revolta. Assim, os conspiradores só poderiam agir depois que o novo governador, Olegário Maciel, tomasse posse, em 7 de setembro e, como chefe do governo tivesse poder para empregar as forças estaduais. (MCCANN, 2009, p. 364). Era início de setembro. No Sul, Góes permanecera em seu posto no interior desde seu último encontro com Aranha, em junho. Mas era preciso ir a Porto Alegre. Para não despertar suspeitas do comandante regional, Góes e seu cunhado, que era médico passaram a comunicar-se por telegrama simulando uma moléstia de sua esposa Conceição, que se prestou ao papel. O governo interceptou os telegramas, mas não os decifrou. Ao mesmo tempo, a inteligência revolucionária conseguia interceptar as ligações radiofônicas e telegramas entre o comando em Porto Alegre e o Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 364). Já na viagem de trem à capital, Góes encontrou conspiradores civis e militares em diversas estações. Apesar disso, preservava uma fachada legalista, o lhe dava um tom irônico em muitas conversas. Em almoço oferecido por seu amigo legalista, major Eduardo Guedes Alcoforado, na estação ferroviária de Crua Alta, Góes perguntou ao comandante do posto, tenente-coronel Mascarenhas de Morais, se tinha alguma mensagem para o comandante regional. Mascarenhas ingenuamente respondeu-lhe que na guarnição tinha tudo sob controle, a respeito de conspirações. Já em Porto Alegre, Góes podia reunir-se com os conspiradores sem despertar 134 suspeitas e repassar os detalhes das operações militares que envolveriam a insurreição programada. (MCCANN, 2009, p. 365). Os legalistas a essa altura viam vários sinais de rebelião no ar. Movimentos estranhos ocorriam nas unidades da Brigada Militar, da Guarda Nacional e em batalhões provisórios. No interior, armas e munições desapareciam dos depósitos do Exército sem esclarecimentos. Com os rumores, as guarnições estavam em alerta. Sentindo a proximidade do levante, o general Gil solicitou ao ministro da Guerra autorização para concentrar suas tropas no interior, diminuindo sua exposição e vedando o acesso a oficiais e sargentos simpatizantes. Mas o general Nestor achou que não era preciso e disse que a paz reinava em todo o Brasil e que o perigo da revolução passara. (MCCANN, 2009, p. 365). O manifesto destinado ao “Soldado Rio-grandense” e distribuído em 23 de setembro deixou todos com os nervos à flor da pele. Os soldados por sua vez estavam cada vez mais dispostos a atender aos apelos revolucionários. (MCCANN, 2009, p. 366). No Rio de Janeiro, o ministro da Guerra, general Nestor, concentrara tantas atribuições em seu gabinete que ficara à margem de muitas informações que o Estado-Maior normalmente processava. Para piorar sua situação, Nestor indispusera-se com generais que contavam com muitos seguidores na oficialidade: Tasso Fragoso, Mena Barreto, Andrade Neves e Malan d’Angrogne, a quem os conspiradores normalmente apelavam. (MCCANN, 2009, p. 366). Em 12 de setembro, o deputado federal gaúcho Lindolpho Collor foi à capital federal para pedir apoio aos generais. E o fez com muito tato. Escolheu Tasso Fragoso, a quem apelou à consideração pelo estado gaúcho, e evitando convidá-lo a juntar-se à causa revolucionária, disse-lhe estar informando-lhe e alertando dos planos em curso. Diante dessa mostra de confiança, Tasso manteve postura legalista, mas respondeu que se a revolução tivesse alcance nacional, romperia com a neutralidade e agiria com patriotismo, na hora certa. (MCCANN, 2009, p. 367). Enquanto isso, na capital federal, a polícia tinha dificuldades em impedir encontros conspiradores. Não podia usar a violência que aplicava ao povo contra a elite. Além disso, Washington Luís não cria ser possível a revolução e rejeitava os informes que lhes traziam. E com tudo isso, a balança pendeu favoravelmente para o lado revolucionário. (MCCANN, 2009, p. 367). 135 Para os oficiais que aderiram à revolução, havia consenso com os tenentistas de que a panelinha paulista controlava a política em benefício próprio. Havia também o temor de que a crise econômica estivesse tornando o comunismo uma opção para as massas ignorantes. A situação militar deprimia muitos e a frágil estrutura disciplinar facilmente seria rompida. A revolução, para essa parcela do corpo de oficiais, seria “o veículo da regeneração nacional” e o Exército teria papel importante. Mas os oficiais também viam que era importante manter a instituição longe da política partidária. Para os oficiais, havia três opções: aderir à causa revolucionária, permanecer na neutralidade ou simular alguma resistência. O fato é que ninguém estava disposto a dar a vida pelo governo de Washington Luís. (MCCANN, 2009, p. 367). No final de agosto, Góes redigira planos para uma reforma política destinada a criar um estado autoritário que “regenerasse” o Brasil. Em vez de aceitar a fragmentação e o colapso do país, ele propunha a unificação pela força. (MCCANN, 2009, p. 367). Os Tenentes e os políticos da Aliança estavam recebendo de Góes Monteiro mais do haviam pedido daquele oficial que, antes do fim da década que se iniciava, teria remodelado o Exército e sua doutrina política. (MCCANN, 2009, p. 368). Góes possuía um talento natural para expressar ideias que estivessem latentes no pensamento da oficialidade que queria mudar o país, mas era contrária a levantes populares e não acreditava na capacidade das elites de fazê-la. A ideia era fazer uma revolução militar na qual houvesse pouco ou nenhum envolvimento do povo. (MCCANN, 2009, p. 368). É notável que Góes tenha conseguido fazer com que as coisas ocorressem como havia planejado. Manteve seu papel de chefe do estado-maior revolucionário oculto de seus superiores e de não simpatizantes. Nos momentos que antecedeu a Revolução, chegou a Porto Alegre simulando uma necessidade familiar e montou um posto de comando secreto, que funcionava nas madrugadas. Tudo foi muito facilitado pela rede de informantes de Osvaldo Aranha. (MCCANN, 2009, p. 368). O levante deveria ocorrer ao mesmo tempo em todo o Brasil, em 3 de outubro de 1930. Mas as deficiências nas comunicações, já conhecidas de outros levantes, retardaram a ação para 4 de outubro no Nordeste. Mas a chave do sucesso estava no êxito no Rio Grande do Sul. (MCCANN, 2009, p. 368). 136 Mas era necessária a adesão ou neutralização dos 14 mil soldados federais lotados naquele estado. Sem isso, os rebeldes não poderiam sair do Rio Grande do Sul. O ataque foi marcado para a hora do jantar de sexta-feira, 3 de outubro. Terminada a semana a maioria dos oficiais já teria ido para casa e os soldados aquartelados estariam jantando. Por vários dias que antecederam o ataque, a polícia da Guarda Civil gaúcha vinha fazendo a troca de seus efetivos no centro da cidade com marchas em fila dupla, para acostumar a tropa federal a ver aquele movimento e não despertar suspeita de uma mudança de ação para um ataque surpresa. (MCCANN, 2009, p. 369). Em 3 de outubro de 1930, toda a oposição se uniu e um movimento militar teve início no Rio Grande do Sul, enquanto a rebelião começava no Nordeste, sob a liderança de Juarez Távora. Washington Luís nada pôde fazer em virtude de seu isolamento. O próprio estado de São Paulo não estava coeso em torno dele. [...] A perspectiva de resistência contra as tropas do Sul, sob o comando do tenente-coronel Góes Monteiro, era nula. (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 416). Na data marcada, às 17:30 horas, a tropa atacante da polícia mudou subitamente o deslocamento em direção à entrada do quartel-general. Havia trincheiras dissimuladas em valas de reparos hidráulicos. As torres dos principais prédios ao redor – igreja, convento, hotel, quartel da Brigada Militar – haviam sido ocupadas por atiradores. Tiros de canhão foram disparados de vários pontos. A força atacante contava com cerca de trezentos homens. Os conspiradores espalharam um alerta e naquele momento o comércio e as escolas da região já estavam fechados. Havia muitos curiosos observando na rua. “A revolta era segredo só para os distraídos”. (MCCANN, 2009, p. 369). É curioso que o general Gil tenha sido alertado, por volta das 13:00 horas, de que Osvaldo Aranha faria a leitura de um manifesto revolucionário naquele mesmo dia e sobre telefonemas anônimos avisando sobre a revolta iminente. Informes chegavam ao comandante regional de várias guarnições. Por rádio, de Passo Fundo, o coronel Leitão de Carvalho informou que homens armados tomaram os correios; de Bagé, chegou a informação de que uma revolta iniciaria naquele dia em Porto Alegre; Do Alegrete, noticiou-se o roubo de cavalos do Exército, à noite. (MCCANN, 2009, p. 369). Às 15:00 horas, o general Gil deu ordem de prontidão às unidades da capital, mas os soldados já haviam sido dispensados. Em algumas, oficiais ocultaram a ordem. O general mandou mensagem alertando Vargas - o qual não acreditava estar 137 envolvido - a respeito dos acontecimentos, obtendo a seguinte resposta: “diga ao general que serão tomadas precauções”. Uma dessas precauções seria a retirada, pelos conspiradores, dos percussores das metralhadoras e o trancamento do depósito de munição dos seus próprios quartéis. (MCCANN, 2009, p. 370). Na guarda do quartel-general de Gil havia oito homens, nos três andares, que não puderam fazer frente aos trezentos que investiram contra o prédio. O general Gil e um oficial médico, major João Cavalcanti Ferreira de Mello, refugiaram-se nos aposentos do general. O doutor foi ferido. Uma das filhas do general pegou o revólver do major, que caíra, e com o pai ao seu lado, postada em uma dispensa, manteve os atacantes à distância. Osvaldo Aranha negociou a rendição do comandante regional, que exigiu garantias de Vargas a altura de sua patente. (MCCANN, 2009, p. 370). Terminada a ação, resultaram onze mortos e catorze feridos. Um soldado, Vicente, que varria o chão, morreu atingido por um tiro. O major Otávio Cardoso, comandante do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva de Porto Alegre também tombou. O colapso de comando gerado pela ação pode ter prejudicado o registro dos demais mortos e feridos. (MCCANN, 2009, p. 370). Na maioria dos lugares, a resistência foi débil e os rebeldes surpreenderam as unidades leais. Os soldados estavam cansados da rotina e das semanas de alerta sem que algo acontecesse, que não fossem alarmes falsos. Em três dias tudo estava sob o controle rebelde. (MCCANN, 2009, p. 371). Em Santo Ângelo, a resistência foi maior, mas cedeu depois que os rebelados ameaçaram com a degola os seus familiares, na frente do quartel. Em São Borja, terra de Vargas, havia um parente seu dentre os oficiais, que resistiu. Dias depois, porém, os legalistas abandonaram o quartel e foram para a Argentina. O parente de Vargas aderiu ao movimento revolucionário. (MCCANN, 2009, p. 371). Góes aparentemente não se arriscou a conspirar em seu próprio regimento, comandado por um capitão que, após declarar-se legalista, esperou até 7 de outubro por ordens que nunca chegaram. A unidade nada fez; a maioria de seus oficiais acabou por refugiar-se na Argentina. (MCCANN, 2009, p. 371). Em Passo Fundo, prometera-se a Leitão de Carvalho que seu regimento não seria atacado se mantivesse a neutralidade. Mas alguns rebeldes de outras regiões saíram de controle e atacaram o quartel, restando dois soldados mortos. Leitão 138 liberou o regimento e entregou suas instalações. Ele e alguns oficiais foram mandados para um navio-prisão em Porto Alegre. (MCCANN, 2009, p. 371). No Alegrete, Euclídes Figueiredo não estava na guarnição quando eclodiu a rebelião. Participava de manobras em Livramento, onde foi atacado por civis na porta de seu hotel. Foi deixado ao lado de seu ajudante e ordenança, feridos. Naquela cidade, os dois quartéis foram tomados de surpresa pela Brigada Militar. (MCCANN, 2009, p. 371). A dispersão de unidades que resultou da construção dos “quartéis de Calógeras”, para melhora a defesa contra ameaças externas, mostrou-se um desastre contra o inimigo interno. Os 14 mil soldados das tropas federais ficavam distribuídos por 21 guarnições, com efetivos de duzentos a mil homens. (MCCANN, 2009, p. 371). O Exército foi derrotado pela revolução no Rio Grande do Sul, apesar de contar com efetivo, treinamento e armamento superiores. Somente em Porto Alegre as tropas revolucionárias estavam em vantagem numérica. Mas as unidades federais estavam espalhadas, tinham as comunicações prejudicadas, havia nelas oficiais e sargentos rebeldes e os soldados, sendo da própria região, resistiriam em atiram contra seus conterrâneos, amigos e parentes. (MCCANN, 2009, p. 373). A tendência de adesão dos oficiais variou de acordo com os postos. Os capitães e tenentes tenderam a aderir à revolução; os majores e superiores apoiaram a legalidade; e os oficiais subalternos que permaneceram com seus superiores por lealdade e resistiram aos rebeldes, mesmo que por pouco tempo. (MCCANN, 2009, p. 373). É possível que os oficiais superiores tenham lutado contra o movimento porque eram legalistas e não viam nos militares o direito de se rebelar contra a autoridade constituída. Mas até os legalistas estavam numa situação peculiar, porque não prenderam os que conspiraram discretamente e os que foram sondados, por vezes, não o revelaram aos comandantes. (MCCANN, 2009, p. 373). O fato de que os oficiais, naquela época, não juravam obediência à Constituição, mas aos seus superiores, mostra como os laços eram importantes na manutenção da disciplina. Era um sistema paternalista baseado em amizades e ligações pessoais. Um exemplo disso é que Góes aconselhou, na manhã de 3 de outubro, o ajudante do general Gil, tenente Afonso Henrique de Miranda Correia, 139 desejoso de aderir à revolução, a permanecer leal ao seu general porque este tinhalhe confiança e dele precisava. (MCCANN, 2009, p. 373). No código tácito do corpo de oficiais, ser o homem de confiança de um superior implicava o dever recíproco de lealdade. (MCCANN, 2009, p. 373). Os registros de detenção do pessoal em Porto Alegre, feitos pelo general Gil, evidenciam que poucos oficiais fizeram oposição ao movimento ou se recusaram a aderir. Houve, portanto, “tendência à passividade ou aceitação da revolução”. Dos registros disponíveis, vê-se que dos 920 oficiais, exceto os coronéis, que serviam no Rio Grande Sul, 758 aderiram à revolução. (MCCANN, 2009, p. 373). A rebelião teve sucesso porque “a estrutura de comando do Exército fora totalmente solapada”. 82% dos oficiais e muitos sargentos nas unidades foram persuadidos pelos conspiradores de que o futuro de cada um, do Exército e do país seria melhor com a mudança dos líderes da nação. (MCCANN, 2009, p. 373). Também facilitou o rápido sucesso o esforço dos rebeldes para minimizar as baixas de ambos os lados. Góes Monteiro respeitou, também, os comandantes que resistiam à rebelião. Negociou, por exemplo, a rendição formal documentada do 7º Batalhão de Infantaria Ligeira, em Porto Alegre, em que constava que a unidade cumprira seu dever militar. E ao comandante preso foi permitido realizar a cerimônia usual, inclusive com discurso de despedida, na transmissão do comando para um rebelde. Ademais, todos os soldados do batalhão aceitaram unir-se aos rebeldes contra os quais haviam lutado. (MCCANN, 2009, p. 374). 15.5 O GOLPE DOS GENERAIS NO RIO DE JANEIRO Bem sucedidos no Rio Grande do Sul, os revolucionários tomaram o caminho para o Norte, por trilhos na ferrovia São Paulo – Rio Grande do Sul. A Cavalaria seguiu por rota litorânea. No Paraná, unidades federais se uniram à revolução e depuseram o governo do Estado. (MCCANN, 2009, p. 374). Havia preocupação com Minas Gerais, onde o veterano primeiro-tenente Cordeiro de Farias coordenava as atividades rebeldes. Por ser moderno, o comando era exercido pelo tenente-coronel Aristarcho Pessoa, irmão do falecido João Pessoa. Mas naquele estado, não houve adesão de tropas federais. Os 140 revolucionários contavam com a Força Pública do estado e com civis liderados por políticos. (MCCANN, 2009, p. 374). A execução do plano revolucionário em Minas se deu pela prisão do general José Joaquim de Andrade e, dez minutos depois, pelos ataques às unidades federais. Na capital mineira, o 12º Regimento de Infantaria resistiu por cinco dias, mas não deteve um batalhão da Polícia Militar. Em Juiz de Fora e Três Corações, as unidades foram imobilizadas dentro de seus quartéis. No 10º Batalhão de Infantaria Ligeira, em Ouro Preto, ao primeiro encontro com os rebeldes, os soldados fugiram para as montanhas ou aderiram à causa revolucionária. Em São João Del Rei, o 11º Regimento de Infantaria “capitulou após breve troteio”. E assim, em pouco tempo, as forças mineiras estavam em posição nas divisas com São Paulo e Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 376). No Nordeste, a resistência cedeu em três dias. As guarnições federais e as unidades de Tiro aderiram à revolta. Somente no estado da Paraíba houve maior resistência. Os principais conspiradores eram auxiliares do governador e do comandante da região militar e nenhum deles estava envolvido. O ataque teve início na madrugada de 4 de outubro e ceifou a vida do general Lavenère Wanderley, comandante regional, e de cinco oficiais do seus estado-maior. O comandante do 23º Batalhão de Infantaria, coronel Pedro Ângelo Correia, também foi morto quando resistia. (MCCANN, 2009, p. 376). No Sul, em 12 de outubro, as forças haviam chegado à divisa de Paraná com São Paulo, próximo de Itararé, onde a estrada de ferro São Paulo – Rio Grande do Sul cruzava com a linha Nordeste. A captura desse cruzamento abriria caminho para São Paulo e Rio de Janeiro. (MCCANN, 2009, p. 376). Mas as tropas se depararam com impasse: chuvas torrenciais caíram na região, entre 5 e 24 de outubro, o que restringiu ou impediu a execução de operações militares. Tropas federais legalistas e a Força Pública paulista ocuparam posições defensivas na cidade. Os dois lados trocaram fogos de artilharia, mas não demonstraram interesse em um grande enfrentamento, enquanto esperavam as chuvas passarem e, mais importante, “o clima político revelar-se”. Não havia interesse de Góes, e de nenhum dos demais revolucionários, em destruir o Exército federal. O objetivo era controlá-lo, pois dele precisariam para impedir a revolução das massas. (MCCANN, 2009, p. 376). 141 O fervor revolucionário crescia. Portanto, o tempo estava do lado da revolução. Nesse ínterim, as forças rebeldes de Minas e do Nordeste progrediam para o Rio de Janeiro. Na capital federal, a situação era complicada por “rumores e tramas”. Nos quartéis da Vila Militar, nos corredores do ministério da Guerra e na praça da República generais e coronéis discutiam e repensavam seu apoio e lealdade a Washington Luís. A partir de 10 de outubro, o número de legalistas foi diminuindo. A falta de resposta à convocação dos reservistas da 1ª Região Militar sinalizou que o presidente carecia de apoio popular. (MCCANN, 2009, p. 377). Alguns apontavam o presidente como responsável por provocar a revolução. O general Tasso Fragoso classificava-o como “autoritário e sem a menor visão política”. Com a queda do entusiasmo legalista, conspirar entrou na ordem do dia. (MCCANN, 2009, p. 377). Era tempo de os generais agirem antes que houvesse um embate e o Exército fosse derrotado, subvertido ou se esvaísse. Já era dado como improvável que algo pudesse impedir Getúlio Vargas de chegar ao poder. O ambiente era totalmente favorável ao sucesso revolucionário. Nas palavras do general Malan d’Angrogne, “isto deve acabar o mais depressa possível para poupar o país e nosso amado Rio Grande de uma carnificina prolongada”. Tasso Fragoso constatara que cabia aos generais liderar “uma ação pacificadora” tornando mais fácil manter a tropa disciplinada e a ordem social, bem como coibir abusos. (MCCANN, 2009, p. 377). Em 19 de outubro, o coronel Bertoldo Klinger e o tenente-coronel José Antônio Correia Neto estiveram com vários generais, a pedido do general João de Deus Mena Barreto, pedindo assinaturas para uma ordem de renúncia do presidente. (MCCANN, 2009, p. 377). De acordo com Koshiba e Pereira (2003, p. 416), “Quando o êxito da rebelião se tornou uma certeza, as altas patentes militares do Rio de Janeiro aderiram à revolução”. Na manhã de 23 de outubro, Mena Barreto foi à casa de Tasso Fragoso para dizer que tudo estava pronto e que chegara a hora de juntar-se a eles. Passaram a discutir o texto do manifesto de exortação à renuncia do presidente em nome do patriotismo. Tasso concordou em consultar outros generais e foi ao ministério onde seu amigo chefe do Estado-Maior, general Leal, deixou claro estar do lado do governo, por compromisso e não por concordar com ele, e que não lhe deviam confidenciar nada. A maioria dos oficiais generais procurados por Tasso considerou 142 justa a rebelião. Uns se comprometeram de imediato, mas outros se mantiveram nos postos por lealdade a seus superiores. (MCCANN, 2009, p. 378). Naquela tarde, o ministro da Guerra mandou, sem sucesso, agentes prenderem o coronel Klinger em casa. Ele estava alojado em seu escritório, guardado por pessoal de confiança. O general Leal, com agentes à paisana, foi encarregado por Sezefredo de buscar o general Mena Barreto. Foi informado de que Mena Barreto estava no forte de Copacabana. Para evitar confronto, Leal conduziu a comitiva para outro lado. Mas as ordens de Sezefredo deixavam claro aos generais: era preciso agir. (MCCANN, 2009, p. 378). Era tarde da noite e Mena Barreto mandou um carro conduzir Tasso ao forte de Copacabana. O cenário da revolta tenentista era agora “palco de uma revolta de generais”. No outro lado da cidade, próximo à praça da República, na madrugada de 24 de outubro, o ministro Sezefredo e o general Leal convocaram os generais da guarnição para uma reunião de emergência. Discutiram a ordem de renúncia formulada por Mena Barreto. O general Malan disse que deixou de assinar porque não tinha tropa sob seu comando e, sem soldados, seu apoio não teria utilidade. E afirmou: “É preciso superpor à rude obrigação militar o dever de brasileiro que exige estancar a sangueira e impedir a ruína do país”. Mas o ministro respondeu que os problemas do país não decorriam das ações do governo, mas da luta política pelo poder. (MCCANN, 2009, p. 378). Nessa reunião, vários generais acusaram Nestor Sezefredo e Leal de esconderem do presidente a gravidade da situação. Ao final, o ministro declarou que já ouvira o suficiente e pediu ao palácio da Guanabara uma conferência com o presidente. (MCCANN, 2009, p. 380). Às seis horas de 24 de outubro, Tasso Fragoso e Mena Barreto puseram-se a telefonar para exortar os generais João Gomes Ribeiro, comandante da Vila Militar, e João Álvares de Azevedo Costa, comandante da 4ª Região Militar a se juntarem a eles. Pouco depois o ministro Nestor ligou para Mena Barreto para falar-lhe a respeito da ordem de renúncia e apelar-lhe à legalidade. Mas Mena respondeu-lhe que a ordem já estava em vias de ser executada, para restaurar a legalidade. E covidou o ministro a juntar-se aos camaradas e libertar-se de seus compromissos políticos. A resposta do ministro: “vocês vão levar o Brasil para o comunismo”. Mena Barreto afirmou que enquanto vivo, tal não se sucederia. (MCCANN, 2009, p. 380). 143 Seguiram-se os acontecimentos, com o general Tasso aconselhando os comandantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal a não entrarem na briga. Pouco depois chegou a Copacabana a notícia de que o general Malan juntara-se a eles e foi então designado para comandar o 3º Regimento de Infantaria da Praia Vermelha e o Forte São João. Mais quatro generais aderiram: José Fernandes Leite de Castro, Firmino Antônio Borba, Álvaro Mariante e Pantaleão Telles Ferreira. O movimento de oficiais no forte era constante e algumas ruas estavam tomadas pela multidão. Houve saques e o jornal situacionista O País foi incendiado. (MCCANN, 2009, p. 380). Em Botafogo, o 3º Regimento de Infantaria, acompanhado de civis que havia armado, saiu em marcha em direção ao palácio Guanabara. Tasso e Mena Barreto juntaram-se ao comandante do regimento, o coronel José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, sobrinho do ex-presidente Epitácio Pessoa, à frente da coluna. Abrindo caminho pela multidão, chegaram ao jardim do palácio. A guarda presidencial não ofereceu resistência. Recebeu-os com vivas. Os fortes de Copacabana, Vigia e São João dispararam, então, salvas de quinze tiros que simbolizava o número de estados que aderiram à revolução até aquele momento. (MCCANN, 2009, p. 380). Os generais Tasso, Mena e Malan, guardando respeito pela posição e autoridade do presidente, “considerando as circunstâncias, aguardaram um pouco nervosos” para ser recebidos por Washington Luís. Após alguma espera, foram ter com ele. Tasso cumprimentou-o com a saudação militar e demonstrou preocupação com a vida do presidente, que respondeu que naquele momento era a vida o que mais desprezava. Parecia aos generais que o governante deposto queria intimidálos ao negar-se a aceitar o golpe. E os generais temiam ter de usar a força e com isso incitar a multidão à violência incontrolável. (MCCANN, 2009, p. 381). Washington Luís cedeu horas depois e concordou em deixar o palácio em companhia do cardeal Leme e do general Tasso, que o levaram de carro até o forte de Copacabana, de onde ele partiria do Brasil para o exílio. (MCCANN, 2009, p. 381). Foi digno o final ter ocorrido no Forte de Copacabana, local onde todo o processo tivera início em 5 de julho de 1922. (MCCANN, 2009, p. 381). A disposição dos oficiais no Rio de Janeiro para negociar a deposição do presidente foi um movimento de pacificação que, se não afastou as forças vitoriosas 144 de 3 de outubro, deu-lhes algum poder de barganha e evitou o derramamento de sangue e a eclosão de uma guerra civil. Naquele mesmo dia Góes Monteiro estudava a possibilidade de realizar um ataque a Itararé. Com os revolucionários comprometidos em levar a diante sua luta, os generais não tiveram outra solução e entregaram o poder a Vargas em 3 de novembro. (MCCANN, 2009, p. 381). Embora Tasso possa, em grande medida, ter personificado a alma do Exército em 1930, a rebelião que ele e seus colegas levaram a cabo não foi o mesmo tipo de golpe institucional que se veria no Brasil em 1937, 1945 e 1964. O golpe de 24 de outubro foi, sobretudo, um golpe de altos oficiais contra a própria estrutura de comando do Exército, contra o presidente, o ministro e o chefe do Estado-Maior. Foi um indicador da desintegração do Exército brasileiro. (MCCANN, 2009, p. 382). Ocorrera a cisão do corpo de oficiais e sargentos em seis grupos: I. os Tenentes, veteranos de 1922, 1924, da Coluna Prestes e a segunda geração, formada pela Escola Militar no final da década; II. os moderados, que se agruparam em torno de Góes Monteiro, e eram os ex-legalistas ligados às oligarquias regionais e os capitães e tenentes que permaneceram fiéis aos seus superiores em 1930, sem simpatizar com os Tenentes; III. os oportunistas, que aderiram ao movimento após um ataque ou após ser presos; IV. os que resistiram, fugiram do país ou foram mortos na rebelião; V. os pacificadores que derrubaram o presidente e, sem opção, passaram o poder a Vargas; e VI. os pacifistas que não definiram sua posição e aguardaram o resultado da luta. (MCCANN, 2009, p. 382). Quanto aos sargentos, é difícil categorizá-los, pois faltam estudos sobre seu papel. Muito provavelmente, estiveram distribuídos pelos grupos acima. Tanto os rebeldes como as forças do governo deram comissão de tenente a sargentos para preencher lacunas na cadeia de comando. (MCCANN, 2009, p. 382). A Revolução de 30 expôs a derrocada do Exército. Os revolucionários viam a instituição como o principal inimigo militar a ser eliminado ou neutralizado para assegurar a vitória. Não era, pois, visto como “o povo em armas”. Nas palavras de Leitão de Carvalho: “o Exército brasileiro foi a principal vítima da revolução”. Não era o agente de um novo Brasil, como sonhavam os reformistas. Era o baluarte do velho regime. Por isso, no movimento de 3 de outubro, os quartéis-generais e comandos regionais foram os primeiros atacados pelos rebeldes. O objetivo era privar o Exército de sua capacidade operacional, por meio do desmantelamento da cadeia de comando, para que não pudesse ser usado pelo governo para defender-se. E 145 nisso, também, os revolucionários saíram-se muito bem. “Seria necessária boa parte da década vindoura para reerguer o Exército”. (MCCANN, 2009, p. 383). Em 1889 oficiais do Exército haviam emprestado seus sabres para a criação da República; o breve período de governo por generais na década de 1890 deu lugar ao governo oligárquico e ao posicionamento do Exército como principal instrumento para estender a autoridade do governo nacional a todo o mapa do Brasil. Quando os alicerces da República Velha foram minados pelas mudanças socioeconômicas do início do século XX, também as contradições entre os objetivos modernizadores do corpo de oficiais e o papel de instrumento da força que ele desempenhou para manter a ordem estabelecida minaram sua autoconfiança e autoestima até incapacitá-lo para resistir à revolução. (MCCANN, 2009, p.383). 146 16 DISCUSSÃO DA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA O estudo dos acontecimentos políticos do Brasil, no período compreendido entre a Proclamação da República e a Revolução de 1930, aponta para uma participação sem par do Exército Brasileiro, no contexto das demais instituições nacionais. Entretanto, convém atentar para o fato de que, na maioria das vezes, a Força Terrestre foi um instrumento nas mãos dos mandatários da Nação. É nesse escopo que se pretende discutir a pesquisa bibliográfica feita neste trabalho. O fim da Guerra do Paraguai apresentou aos oficiais brasileiros o convívio com militares de nações que viviam regimes republicanos e nas quais, geralmente, os militares estavam no poder. A isso, juntaram-se fatores que colaboraram para o enfraquecimento do Império e o aumento da insatisfação de oficiais com D. Pedro II, que tinha, especialmente pelo Exército, um descaso peculiar. A Questão Militar, com a punição de oficiais pelo governo, indicava o afastamento dos militares do sistema político vigente. O escravismo também já era inaceitável para as novas gerações de oficiais, influenciadas pelo Positivismo, o que era agravado pelo emprego de tropas para perseguir escravos fugidos. Havia, portanto, não apenas por parte da classe militar, mas também por uma nova elite, um movimento em prol da adoção da República. E o Exército era a única força capaz de fazer essa mudança. E nesse contexto, o principal líder militar, o marechal Deodoro da Fonseca, foi pressionado pela oficialidade republicana a depor o gabinete do seu desafeto, o visconde de Ouro Preto. Entretanto, a notícia de que D. Pedro II nomearia o gaúcho Gaspar Silveira Martins, arqui-inimigo de Deodoro, para comandar o novo gabinete fez com que o marechal se convencesse de proclamar a República. O povo assistiu passivo à mudança política, ocorrida de forma pacífica. Mas o período seguinte seria conturbado, em função da difícil adaptação das elites políticas regionais ao rearranjo de poder decorrente. A ascensão dos militares como atores da política brasileira resultou na chegada de Deodoro à presidência, tendo como vice o marechal Floriano Peixoto. Já na posse, Floriano ofuscou o presidente com sua popularidade, deixando latentes diferenças entre ambos que teriam desdobramentos futuros. Deodoro teve um governo conturbado pela falta de consenso entre as elites e por atritos decorrentes das deposições e substituições dos governos das províncias 147 por oficiais ou políticos aliados. As rixas locais e a ausência de estrutura política para a nova ordem resultaram numa década sangrenta. Deodoro governou sem limites até que a Constituição de 1891 foi sancionada. A partir daí, o marechal não soube lidar com os limites impostos pelo Poder Legislativo e teve de conviver com críticas, inclusive de oficiais. Diante disso, em novembro, Deodoro dissolveu o Congresso, o que resultou na Revolta da Armada na baía da Guanabara, liderada pelo almirante Custódio de Mello, e na deposição do governador do Rio Grande do Sul. Temendo uma guerra civil, o presidente renunciou. O vice-presidente, marechal Floriano, assumiu e enfrentou o questionamento à legalidade de seu governo. Nos estados onde se exigiram novas eleições os governadores foram derrubados. Nas Forças Armadas, muitos consideravam a situação ilegal e cogitou-se um golpe. O Manifesto dos Generais, pelas eleições, resultou em prisões e desterro de oficiais e repressão a jornalistas e congressistas. A deposição dos governadores que apoiavam Deodoro gerou onda de violência. No Rio Grande do Sul, houve unidades federais em lados opostos, federalistas e republicanos, em luta que se espalhou pelos estados do Sul, a Guerra Civil que duraria até 1895. Nesse mesmo tempo, parte da Armada, liderada mais uma vez pelo almirante Custódio de Mello, que alegava intenções ditatoriais do vice-presidente, enfrentou o Exército na baía da Guanabara e se aliou ao conflito no Sul. Floriano declarou seu apoio aos republicanos e o conflito sangrento se tornou nacional. Com o apoio de uma poderosa flotilha estadunidense, Floriano conseguiu vencer Custódio, mas a cisão nas Forças Armadas estava evidente. O povo carioca e os republicanos radicais (Jacobinos), porém, apoiaram Floriano que, apesar da vitória no conflito, marcou eleições para 1894. Meses depois de passar o cargo, faleceu. Mas, antes, alertou os militares sobre a ameaça de restauração da Monarquia e, mesmo post mortem, inspirou muitos oficiais e alunos que, no decorrer da conturbada década, sentiam-se veículos da salvação nacional. Os alunos, que em 1891 estavam contra Deodoro, naquele momento juntaram-se a muitos oficiais, a favor de Floriano. Em novembro de 1894, o poder voltava às elites agrárias, com a assunção do presidente Prudente de Morais. Os militares e a classe média urbana perdiam influência. A rotina levou indisciplina à Escola Militar, onde os alunos se levantaram contra o comandante, antiflorianista. Houve expulsões e a escola somente voltou a 148 funcionar em 1896, renovada em seus corpos. Prudente negociou o fim da Guerra Civil e deu impulso às carreiras de oficiais antiflorianistas, enfraquecendo os arquirrepublicanos e diminuindo o peso político do Exército. Mas a década de 1890 reservava mais episódios sangrentos. O tenso ambiente político fez com que um reduto religioso no meio do sertão baiano fosse considerado uma grave ameaça à República. Canudos reunia sertanejos liderados pelo religioso Antônio Maciel, o Conselheiro. O crescimento do arraial decorrera da ausência do Estado naquela região, dominada por “coronéis” da elite agrária. Como a existência de Canudos estava contrariando a ordem oligárquica, o Poder Militar do Estado foi empregado na defesa de interesses locais. Além de ser envolvido em carnificina contra brasileiros, o Exército teve de amargar três derrotas, decorrentes do seu despreparo, antes de varrer Canudos do mapa. Se, por um lado os políticos locais pleitearam o emprego da Força Federal para resolver querelas regionais, por outro, oficiais florianistas visualizavam que uma vitória no conflito poderia lhes restituir o prestígio perdido na nova ordem política. Mas a vitória teria custos muito altos: 5 mil militares mortos e outros mais de 4 mil feridos. Além disso, a campanha teve o final abreviado pela atuação do antiflorianista marechal Bittencourt, que seria vítima fatal de um atentado contra o presidente da República, incitado por Jacobinos ligados ao vice-presidente e a oficiais descontentes com o governo. Prudente se fortaleceu com o episódio e elegeu seu sucessor, Campos Sales. O Clube Militar foi fechado e os Florianistas não puderam tirar proveito esperado do conflito de Canudos: voltar a dominar a República. Após Canudos, o Exército estava em ruínas. Extinguira-se a sua capacidade de exercer o Poder Moderador, herdado da Monarquia. Faltavam recursos e a sociedade civil não mostrava nenhum interesse. Mas alguns acontecimentos deixariam evidente a necessidade de reformar a instituição: o incidente Panther, a Questão do Acre, a ameaça intervencionista dos Estados Unidos da América e o crescente militarismo mundial. Entretanto, a situação política e econômica do país não era favorável. A economia nacional, baseada no café, não era integrada; as ligações inter-regionais eram carentes; e a prioridade das economias locais era exportar. Em um governo por uma aliança oligárquica, cabia às Forças Armadas manter a lei e a ordem. Esta destinação afastava os militares dos ideais de profissionalismo 149 e contribuía para a insatisfação e rebelião. A Política dos Governadores estabelecida no governo de Campos Sales (1898 a 1902) mantinha os estados com autonomia desde que apoiassem as decisões do governo central. Nesse contexto, o Exército foi mantido em postura de lealdade, tendo, no comando, oficiais situacionistas e sujeitando-se a pequenas revoltas. Para agravar a situação na caserna, o serviço militar obrigatório (lei de 1874) não surtia efeito; a disciplina aplicada às praças era brutal, e muitas vezes, resultava em rebeliões; os soldos eram baixos; o ensino público era subdesenvolvido; e a assistência à saúde da família militar se limitava ao fornecimento de remédios. Com tudo isso, as classes Média e Alta urbanas não queriam ver seus filhos servir como praças. Apesar de o general João Nepomuceno Mallet, nomeado por Campos Sales ministro da Guerra, ter inaugurado uma era de recomeço após o desastre de Canudos, as restrições financeiras do governo impossibilitaram a concretização do seu projeto de reformas. A demonstração de força do Brasil, na questão do Acre, contra a Bolívia foi um blefe da diplomacia do Barão do Rio Branco que contou com a fraqueza do oponente e o desinteresse dos estadunidenses em intervir. Ficara mais uma vez evidente o despreparo do Exército para lidar com ameaças à integridade territorial. Apesar do furor patriótico, os chefes militares não se iludiram. O general Argollo, novo ministro da Guerra do presidente Rodrigues Alves (1902 a 1906), declarou que os brasileiros não tinham ideia dos riscos a que estava submetido o território nacional. O ministro asseverava que o serviço militar obrigatório era indispensável. Mas somente em 1908 os militares e a Classe Média, cujos filhos eram oficiais, preocupados com a Defesa Nacional, conseguiriam efetivá-lo. Em novembro de 1904, mais uma vez, a Escola Militar da Praia Vermelha seria palco de uma revolta. Desta vez, os militares insurgentes aproveitaram-se do caos social que a capital federal vivia em função da inflação, custo de vida, desapropriações decorrentes da reurbanização e da lei da vacinação obrigatória, que foi a gota d’água para os protestos populares. Uma aliança (Positivistas, Jacobinos, Monarquistas, líderes sindicais, oficiais e alunos militares) marchou para o palácio do Catete para depor o presidente e impor uma ditadura militar com o propósito de mudar a ordem vigente e o cenário político, no qual as oligarquias 150 dominavam a “Política dos Governadores”. Mas foram confrontados por tropas do governo, às escuras, e se renderam. A revolta na Escola Militar resultou no seu fechamento, que marcou o fim do Bacharelismo Militar. Decorrente disso criou-se a Escola de Guerra de Porto Alegre, que viria a ter grande influência nas próximas gerações de oficiais. Era uma nova tentativa de reformar o Exército. Assim, o ministro da Guerra, general Argollo, enviou seis oficiais à Alemanha para servir no Exército. Apesar da implantação de um novo regulamento escolar, a inércia institucional o deixaria sem ser praticado. Como era de costume na época, os alunos expulsos na revolta foram anistiados no ano seguinte. O general Hermes da Fonseca, por seu destaque na supressão da revolta da Escola Militar (1904), foi nomeado comandante do 4º Distrito Militar, por Rodrigues Alves. Identificou-se com as ideias reformadoras de Mallet. Realizou manobras com exibições militares que empolgaram os civis e resultaram na criação dos “Tiros”, que formaram a primeira reserva organizada e serviram de propaganda viva do Brasil armado, e na aprovação da lei do serviço militar obrigatório, em 1908. Além disso, a figura de Hermes entusiasmou a sociedade e, por isso, foi nomeado ministro da Guerra no governo de Afonso Pena. No cargo, Hermes estendeu suas ideias reformistas ao Exército: construção de novos quartéis, áreas de treinamento e renovação de arsenais e fábricas de pólvoras e projéteis. Entretanto, mais uma vez, o Congresso Nacional impôs restrições aos gastos militares. Mas modificações no Estado-Maior do Exército e a construção da Vila Militar (atual bairro de Deodoro) no Rio de Janeiro foram realizações importantes de sua gestão. A instrução militar estrangeira no Brasil se intensificou com o ministro Hermes da Fonseca. Em 1909, mais um grupo de seis oficiais foi estagiar na Alemanha e houve a compra de canhões krupp. No ano seguinte, outros vinte e quatro oficiais foram enviados. Chegou-se a cogitar uma missão militar alemã no Brasil. Mas interesses políticos, particularmente paulistas, forçariam o então presidente Hermes (1910 a 1914) a aproximar-se dos franceses. Com isso, a decisão em 1911 seria que o Brasil não receberia missão estrangeira. E a eclosão da 1ª Guerra Mundial, em 1914, e a entrada do Brasil no conflito, em 1917, encerrou a questão temporariamente. Durante o governo de Hermes da Fonseca, o Exército passava por algumas mudanças. Para alguns oficiais, a Força Terrestre deveria ser o propulsor da 151 modernização do Brasil. Pensavam que somente melhorando os soldados, por meio do serviço militar, de treinamentos e equipamentos, seria possível melhorar o Exército. Por outro lado, a inércia das reformas se unia ao assédio de facções políticas a oficiais e prejudicava a disciplina. As elites intervinham nos planos do Exército, que carecia de liberdade até para decisões técnicas. Diante disso, alguns oficiais direcionariam, no futuro, suas frustrações para o viés revolucionário. Infelizmente para suas aspirações de profissionalismo, o Exército, então, foi desviado para as lutas entre as elites da República e as oligarquias regionais, pelo controle político nos estados. Assim, surgiu o malogrado Movimento Salvacionista, que colocaria, outra vez, o Exército em descrédito e retardaria os planos de reformas e a implantação do serviço militar obrigatório. A “Política dos Governadores” fizera ressurgir várias famílias proeminentes no Império, alinhadas à República, interessadas no poder regional. Alguns oficiais preocupavam-se com a unidade da Pátria. No contexto das “Salvações”, os estados de Minas Gerais e São Paulo dominavam o cenário nacional, com forças de segurança militarizadas. O político gaúcho Pinheiro Machado intermediava o jogo político. Além de forças de segurança, muitos estados possuíam unidades da Guarda Nacional – subordinada ao ministério da Justiça – e batalhões patrióticos de peões e capangas. Ao Exército restava um papel secundário na segurança interna. Mas quando as elites não podiam resolver os problemas – muitos deles, querelas políticas locais – acionavam as tropas federais. Os oficiais idealistas viam essas situações com irritação, enquanto os oportunistas enxergavam oportunidades de ascensão. A vitória de Hermes nas eleições presidenciais de 1910 decorreu de uma conjunção de fatores: a “Política dos Governadores” não soube lidar com a dissensão entre as oligarquias e as elites políticas; seu adversário Rui Barbosa adotou discurso antimilitarista e perdeu prestígio; o substituto interino do falecido presidente Afonso Pena – o vice-presidente carioca Nilo Peçanha – jogou todo seu prestígio na candidatura de Hermes, que tinha apoio da coligação entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e oficiais. A eleição do general deixou a falsa impressão de que o presidente e Exército apoiariam as ações militares dos anos seguintes. Porém, muitas delas decorreram de iniciativas de comandantes locais, até mesmo à revelia do marechal. 152 Além das diversas intervenções militares em estados cujas forças de segurança não eram fortes o bastante para evitá-las, como Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, o presidente Hermes enfrentou, nos primeiros dias de governo, a Revolta da Chibata. O levante se relacionava exclusivamente com o tratamento dispensados pelos oficiais da Marinha aos marinheiros. Apesar do temperamento pacífico, o general foi arrebatado pelos acontecimentos do seu governo, que muitas vezes envolveu o uso da força e da violência. Enquanto o mundo rumava para a eclosão da 1ª Guerra Mundial, o Exército era mais uma vez envolvido em uma campanha para resolver problemas políticos locais. O cenário de então era uma região disputada por Paraná e Santa Catarina – o Contestado. O conflito eclodiu com uma rebelião contra o “Coronelismo” e mesclou aspectos econômicos, políticos, sociais e religiosos. Como em Canudos, a guerra era contra brasileiros, mas desta vez, em defesa do progresso que envolvia, inclusive, interesses estrangeiros (construção da ferrovia São Paulo - Rio Grande do Sul, imigração, exploração madeireira). Os dois estados em disputa colaboraram para a violência apoiando bandos armados que disputavam terras e atacavam ou defendiam postos fiscais. Depois de algumas ações de forças mistas (federais e estaduais) e da morte do líder religioso, o monge José Maria, em 1912, os conflitos se intensificaram até que, pressionado, o presidente ordenou o envio de uma força de vulto que atuaria nos primeiros meses de 1914, a comando do general Setembrino de Carvalho. Em críticas, os editores de A Defesa Nacional ressaltaram como causas do conflito os interesses políticos locais, o fanatismo religioso e a luta pela terra. Mas alertaram que, se era ruim lutar contra compatriotas, pior seria deixar aos poucos morrer o Exército. A supressão do levante dos rebeldes do Contestado envolveu alguma negociação e muita violência. As marcas decorrentes durariam por gerações e alertaram para a real necessidade de organizar e treinar o Exército. Alguns veteranos do Contestado viriam a juntar-se aos “Jovens Turcos” na produção da centelha reformadora do Exército. O interesse dos reformistas se refletiu em diversos artigos em A Defesa Nacional, que resumiu o relatório do general Setembrino e criticou severamente a República pelo abandono de brasileiros segregados pela falta de vias de comunicação e pela falta de iniciativa e de políticas elevadas. A revista também chamou a atenção dos chefes militares para a 153 passividade com que medidas de origem política eram recebidas pelo Exército e causavam-lhe prejuízos e a falta de confiança do povo. Mas a eclosão da 1ª Guerra Mundial novamente poria em voga a necessidade de se conduzir planos de reforma e reorganização, como os dos ex-ministros Mallet e Hermes. O serviço militar finalmente se tornou realidade e alcançou todo o território nacional. Muitos oficiais queriam ver o Exército combater na Europa. Mesmo os antimilitaristas despertaram. As ideias de A Defesa Nacional, do poeta Olavo Bilac e do escritor Alberto Torres buscavam interpretar o papel do Exército na sociedade. Ao contrário de Bilac, Torres não acreditava na função educadora do Exército e considerava a Força Militar apenas um integrante, o último, na Defesa Nacional. Para o ministro da Guerra do presidente Venceslau Brás (1914 a 1918), general Caetano de Faria, o Exército não poderia constituir-se no braço forte dos dirigentes. Era necessário o afastamento dos oficiais da política partidária. O serviço militar obrigatório deveria sair da gaveta (lei de 1908) para possibilitar a formação de uma reserva mobilizável. Apesar de a imprensa criticar a Lei do Sorteio, Faria, assessorado pelo tenente Leitão de Carvalho, iniciou forte campanha para a implantação das juntas do serviço militar pelos governadores. A Liga de Defesa Nacional, formada em 1916, contribuiu para a construção de uma mentalidade de Defesa Nacional, para o surgimento de um clima de nacionalismo e para o debate e propaganda do serviço militar. Apesar de algumas dissensões no Congresso Nacional, finalmente foi possível fazer o primeiro sorteio em dezembro de 1916. Em 1915, o Exército viveu mais uma rebelião. Dessa vez foram os sargentos que se sublevaram por reformas na carreira das praças, pelo Parlamentarismo, pela reforma política e territorial dos estados, pela educação primária e contra a corrupção. Os sargentos teriam sido incitados por políticos civis a assassinar oficiais. Os envolvidos foram presos e desterrados. Mas o movimento contou com a simpatia dos soldados e de alguns oficiais. Apesar da resistência dos jovens em participar dos sorteios do serviço militar, das grandes distâncias brasileiras, da carência dos registros civis e da complacência dos políticos e das juntas com insubmissos, o Exército mais que dobrou seu efetivo. Chegou, então, a ter uma organização militar por estado e aumentou sua influência sobre as polícias estaduais e unidades da Guarda Nacional, que, em janeiro de 154 1917, passaram a ser forças auxiliares. Rebaixada à 2ª linha do Exército, a Guarda Nacional seria extinta em 1918, por pressão de oficiais. Após a 1ª Guerra, a questão dos materiais militares também preocupava os interessados na Defesa Nacional. Com o bloqueio britânico à Alemanha, o Brasil deixou de receber armamentos já comprados. Via-se como necessário o país produzir seu armamento. Mas era imprescindível desenvolver a indústria nacional. Havia, porém, vários óbices: a facilidade de importar; a dependência de compras no exterior; a baixa produtividade da classe operária. A ameaça platina tornava mais necessária uma autonomia em material bélico. Oficiais concordavam com o debate no meio civil de que, para ser dono do seu destino, o país precisava de indústria siderúrgica. O ministro Faria adotou medidas práticas que contribuíram para os primeiros passos: enviou uma missão de estudo de aquisição de material bélico aos Estados Unidos da América. Outras duas missões foram à França para estudar Doutrina Militar e instalar um hospital militar em Paris. Mas o fato de o Brasil não ter mandado tropas para combater na 1ª Guerra Mundial limitou os resultados dessas visitas devido ao descrédito na sua relevância militar. A “Política dos Governadores” mantinha o sistema com partido único, na prática do “toma lá, dá cá” entre os governadores, que trocavam com o presidente apoio por autonomia. Mas a visão de Exército dos oficiais reformadores era incompatível com a sociedade e com o sistema político vigente. Para eles, os políticos não queriam a reforma do Exército porque isso colocaria o status quo em perigo. Esses oficiais, os “Jovens Turcos”, baseavam seus projetos nos ideais de Germanização aprendidos no Exército alemão e que seriam absorvidos pelos militares brasileiros por meio de uma missão militar. Mas pensadores civis também criticavam o sistema em vigor no cenário nacional. Alberto Torres, que influenciou a equipe de A Defesa Nacional, afirmou que o Brasil não era um país, nação ou pátria, mas uma exploração, uma nação improvisada. A preocupação dos editores e colaboradores da revista era com a defesa externa e com um inimigo interno e mais provável: a falta de coesão nacional. Eles também criticavam o povo brasileiro que acreditava numa imprensa imodesta e que deveria trabalhar para elevar-se ao nível dos povos mais avançados. Mas os oficiais expunham indignação com as elites que não olhavam para o Brasil. 155 Com a oposição dos franceses, não foi possível trazer ao Brasil a missão militar alemã ao Brasil. Além disso, o ministro Faria considerava que os “Jovens Turcos” tinham condições de conduzir as reformas necessárias no Exército. A solução intermediária adotada pelo general Bento Ribeiro, chefe do Estado-Maior do Exército, ficou conhecida como “Missão Indígena”. Esses instrutores formaram uma turma combinada por aspirantes de 1918 (retidos na escola) e alunos de 1919, da qual sairiam os rebeldes mais tecnicamente profissionais que o Exército precisou enfrentar: os “Tenentes”. Mas ao encerrar-se o governo Venceslau Brás, o ministro Faria sentia-se satisfeito em ver a instituição no rumo da modernização. O fim da 1ª Guerra Mundial, em 1918, era o prelúdio de tempos mais tranquilos. Em vez disso, eclodiram greves, surgiu a ameaça do Bolchevismo e do Anarquismo e a capital federal foi assolada pela gripe espanhola, que ceifou a vida de milhares de cariocas e do presidente eleito Rodrigues Alves. As Forças Armadas intervieram para controlar a grave situação sanitária e instalaram quatro hospitais militares. O vice-presidente Delfim Moreira assumiu a presidência interinamente, empenhado em governar. A nomeação do general Alberto Cardoso de Aguiar, conhecido francófilo, para o ministério da Guerra e a atuação do adido militar em Paris, major Malan D’Angrogne resultaram na contração dos franceses para remodelar o Exército e conquistar o respeito ao país no exterior. Os novos rumos do Exército apontavam para a necessidade de o país desenvolver uma indústria militar. O ministro Cardoso de Aguiar apregoava que a Defesa requeria, além de armas, o desenvolvimento industrial de toda economia. Nesse sentido, o general tomou uma iniciativa que foi precursora do aço no país: o envio de um capitão aos Estados Unidos da América para especializar-se na produção do aço. Além disso, providenciou a compra de maquinário mais moderno. O chefe da recém-criada Diretoria de Material, general Tasso Fragoso, colocou-a para funcionar, enviou pessoal para especializar-se na Bélgica e trouxe técnicos estrangeiros para conduzir um programa de instrução que resultaria, na década de 1930, na Escola Técnica do Exército, precursora do Instituto Militar de Engenharia. Entretanto, as agitações da década de 1920 prejudicariam essas medidas e tornariam a desorganizar a instituição. Naquele tempo, os oficiais estavam mais próximos da sociedade civil. Essa relação se dava nos locais onde moravam, nos transportes públicos, no lazer, na religião, nos estudos e no acesso às notícias veiculadas na imprensa. A remuneração, relativamente baixa, era prejudicada pelas 156 flutuações econômicas. Mas também havia ligações com as classes mais privilegiadas, nos “Tiros”, e com os cidadãos de classes menos favorecidas que prestavam o serviço militar. A maior parte dos oficiais (86%) era de baixa patente e possuía uma formação militar heterogênea que prejudicava o espírito de corpo. As principais influências desses oficiais de baixa patente provinham das ideias da revista A Defesa Nacional, cujos editores eram legalistas, e do escritor Alberto Torres, já falecido. Os revolucionários viam o regionalismo e a corrupção política como impeditivos para o papel educador do Exército. Seus objetivos eram organizar a nação, desenvolver a autoconsciência nacional, industrializar a economia, implantar o ensino primário gratuito e compulsório, a consolidação do serviço militar obrigatório e a intervenção na economia por um governo central forte. Entretanto, os Tenentes revolucionários não sabiam como atingir esses objetivos e não possuíam um plano pós-vitória. Suas ideias coincidiam com as da maioria dos demais oficiais. Mas eles eram mais impacientes. Após o breve governo do presidente interino Delfim Moreira, o civil João Pandiá Calógeras foi nomeado pelo presidente Epitácio Pessoa para a pasta da Guerra. Apesar da reputação de Pandiá Calógeras na área de Defesa, o ato foi visto como desprestígio pelos oficiais. A essa insatisfação somava-se a tensão da missão militar francesa, envolvida em suspeitas de corrupção nas vendas de armas e a frustração da oficialidade com o baixo apreço da população e a repulsa pelo serviço militar. A recém-chegada missão também irritava o chefe do Estado-Maior, general Bento Ribeiro, particularmente pela interferência em seus assuntos e pela sua subordinação direta ao ministro da Guerra. A tensão militar aumentaria com a nomeação, à revelia, de um oficial francês como instrutor da Escola Militar, fato que resultou no pedido de demissão por Bento Ribeiro e em manifestações de indisciplina de vários oficiais com o ministro. Epitácio Pessoa e Calógeras se livraram de Bento Ribeiro, mas a insatisfação militar era grande e se agravava com atrasos no pagamento dos soldos e na redução de rações para a tropa. Apesar na situação de penúria, o presidente e o ministro celebraram um contrato com a Companhia de Construção de Santos, para a construção de mais de cem quartéis por todo o Brasil. A medida controversa, porém, teve bons resultados: quebrou o costume nacional de confiar apenas em empresas estrangeiras; estabeleceu definitivamente o Exército em Minas Gerais e São Paulo; contribuiu para as economias locais. Em alguns locais, como Campo Grande (então 157 pertencente ao estado do Mato Grosso), a rede de água construída para atender o quartel foi levada até a cidade. A empreitada foi o maior programa de construção da República Velha. O clima de descontentamento levou muitos oficiais a conspirar. E um fato exaltaria os ânimos desses oficiais: o episódio das Cartas Falsas, publicadas no jornal carioca Correio da Manhã, com cartas ofensivas a Hermes da Fonseca, presidente do Clube Militar, atribuídas a Artur Bernardes. Iniciou-se um debate a respeito da veracidade das cartas, uma nova Questão Militar, como no fim do Império, com os rebeldes se juntando em torno de Hermes. A punição deste, por críticas à intervenção do governo central em Pernambuco, deflagrou as revoltas de 4 para 5 de julho de 1922, que tiveram seu epicentro no Forte de Copacabana. Apesar da fraca adesão à causa e da repressão eficaz pelo governo, conduzida nas ruas pelo coronel Nestor Sezefredo dos Passos, o levante colocou o Brasil num ciclo revolucionário que acabaria por demolir a República Velha, num enfrentamento entre o novo e o velho Brasil, em luta para definir um novo futuro. Enquanto as cidades apresentavam aspectos de modernidade, as áreas rurais pareciam viver no século XIX, sob o domínio dos “coronéis”. O Sindicalismo se fazia presente, mesmo sendo proibido. A população dobrara desde o início do século e chegara a trinta milhões. Mas poucas estradas eram movimentadas, as ferrovias atendiam apenas as áreas cafeeiras e açucareiras. Apenas as áreas litorâneas eram desenvolvidas e os transportes se baseavam no modal marítimo. Às elites não interessava educar as massas, que, pensavam, poderiam se agitar e promover greves. Assim, o analfabetismo era de 80%. A assistência à saúde era precária. Na política, havia dissensões internas e predominava o regionalismo. Paulistas, mineiros e gaúchos dominavam o sistema político. O Rio Grande do Sul era palco de ameaças secessionistas. Os dois generais que ocuparam a pasta da Guerra, nos últimos anos da República Velha (1922 a 1930) não eram reformistas. Setembrino de Carvalho e Sezefredo dos Passos, situacionistas, atuavam na defesa da ordem estabelecida. Ambos viam o Exército como instrumento nas mãos do governo e da sociedade, que se baseavam na “Política dos Governadores”. Destacou-se naqueles anos o general Tasso Fragoso, que exerceu a função de chefe do Estado-Maior do Exército entre 1922 e 1929. Na função, Tasso aumentou o padrão intelectual do Estado-Maior do Exército; introduziu manobras na carta; incentivou a Aviação Militar, que foi mantida 158 “no chão” por Artur Bernardes, temeroso de seu uso por rebeldes; manteve os franceses afastados do planejamento da defesa do país; difundiu visões estratégicas sobre a Argentina; proporcionou maior contato entre o Estado-Maior e os soldados; e adotou as orientações francesas quantos ao mérito nas promoções. No fim de 1928, o Congresso Nacional aprovou uma mudança na lei das aposentadorias dos militares que causou grande evasão de oficiais e enfraqueceu a estrutura de comando do Exército, quando a República Velha deparar-se-ia com o ambiente revolucionário de 1930. Também favoreceu a conspiração o fato de que os oficiais que se afastavam da Força, inclusive os desertores e os presos, tinham garantido por lei o pagamento de vencimentos às suas famílias. A Missão Francesa, apesar das críticas e relatórios, satisfazia as autoridades brasileiras, no fim da década de 1930. O plano francês de reorganização do Exército não foi colocado em prática por falta de verbas, pela aversão brasileira ao serviço militar e pelo orgulho dos generais. No campo da Educação Militar, houve progressos, apesar da diminuição de recursos decorrente da necessidade de combater a Coluna Miguel Costa – Prestes e as revoltas de 1924 no Rio Grande do Sul e em São Paulo. No entanto, a presença dos franceses nas escolas militares salvou o Exército da desmoralização total. A despeito da insatisfação que causava aos militares, a Missão Francesa, que por motivos políticos e fiscais ficaria no Brasil até a eclosão da 2ª Guerra Mundial, atingiu alguns objetivos: inspirou oficiais a pensar politicamente, acima da política partidária, a ser sacerdotes da Pátria e a ter a convicção de que poder militar e defesa nacional eram intimamente ligados; enfatizou que os oficiais do Estado-Maior eram parte, e não apartados, da nação e deveriam aplicar soluções militares a problemas nacionais; destacou o papel civilizador das Forças Armadas na sociedade, o que teria encorajado à ação os “Tenentes” e personalidades do Exército que se destacariam na década seguinte, como o tenente-coronel Pedro Aurélio de Góes Monteiro. A geração de Tenentes formada pela “mão pesada” da Missão Indígena, unida como uma família e com sentimento de superioridade em relação aos demais oficiais, tivera contato com muitas realidades nacionais: vivendo no Realengo, os alunos vizinharam com greves e manifestações da classe operária; a emergência do Catolicismo, sob a influência do padre Miguel, colocou os alunos em contato com as mazelas do povo. Ademais, a Missão Francesa imprimiu-lhe a politização. Esses 159 oficiais viam o Exército como o criador da República e os políticos como seus traidores. A indignação dessa geração aumentou quando o inimigo de Hermes, Artur Bernardes, foi escolhido para suceder o presidente Epitácio Pessoa. Outra questão que exaltou o ânimo revolucionário dos “Tenentes” foi a punição e recusa de anistia aos rebeldes de 1922, que foram enquadrados no código penal. Dos cinquenta envolvidos, onze não se entregaram ou não foram presos. Restou-lhes a deserção, a clandestinidade e a luta armada. Sob o comando do general da reserva Isidoro Dias Lopes, os irmãos capitães Joaquim e Juarez Távora e Newton Estillac Leal se juntaram ao major da Força Paulista Miguel Costa e, em 1924, tomaram o poder na cidade de São Paulo, tencionando rumar ao Rio de Janeiro para depor o presidente Artur Bernardes. Mas a repressão do governo federal foi rápida e violenta. O ministro Setembrino nomeou o general Sócrates comandante da força incumbida de debelar o movimento. A cidade foi bombardeada, havendo centenas de baixas civis, e cercada. Com a falência dos serviços públicos e o cerco, restou aos rebeldes fugir de trem, na direção do Mato Grosso. Foram, porém, obrigados pelas forças do cerco a descer pelo rio Iguaçu e estabeleceram a resistência na cidade de Foz do Iguaçu. No Rio Grande do Sul, guarnições rebeldes se juntaram às forças do “general” Honório Lemes, formando uma tropa pitoresca e pouco eficaz, que logo foi derrotada. Parte delas fugiria para o Paraná, a comando do capitão Luís Carlos Prestes. O reforço vindo de cidades do Rio Grande do Sul formaria, em Foz do Iguaçu, a coluna Miguel Costa – Prestes, pois o general Dias Lopes se exilara na Argentina. A Coluna vagaria 25 mil quilômetros, por treze estados, até o início de 1927, com o ideal de manifestação de protesto armada contra o presidente Artur Bernardes. Perseguir e derrotar a Coluna passou a ser objetivo do governo. Mas o Exército, que desmoronava lentamente, demonstrava, excetuando-se alguns oficiais, pouca disposição para combatê-la. Porque muitos concordavam com as ideias da Coluna e lá estavam alguns dos mais destacados oficiais, muitas vezes a ordem era deixar passar. Enquanto isso, a sociedade se afastava mais de seu Exército e questionava a validade de manter uma força armada composta por rebeldes. As revoltas tenentistas solaparam o Exército e a autoridade do governo central. 160 A fraqueza da relação do Exército com o sistema político levou muitos oficiais legalistas a aderir à causa tenentista. O tenente-coronel Góes Monteiro foi um deles. Era natural de Alagoas, mas estabelecera vínculos com o Rio Grande do Sul, onde estudou e se casou. Lá teve amigos comuns com o jovem Getúlio Vargas e com Osvaldo Aranha. Mais tarde, no Rio de Janeiro, absorveu ideias dos Jovens Turcos e de A Defesa Nacional. Durante o levante tenentista de 1922, fazia o curso de Estado-Maior e apoiou o governo. Em 1924, quando foi mandado para Santos, a serviço, contra os rebeldes de São Paulo, Góes deixou clara sua contrariedade ao bombardeio da capital paulista. Em 1925, combateu a coluna Miguel Costa – Prestes no Paraná e na Bahia. Góes Monteiro foi influenciado pelos franceses e considerava que o Exército estava no cerne dos problemas e soluções nacionais. Criticava abertamente o governo por manter a Força Terrestre ineficiente. Reprovava também muitos colegas dos destacamentos que combateram a Coluna pelo desinteresse em relação à doutrina militar e ao autoaperfeiçoamento. Também na imprensa as críticas ao presidente Artur Bernardes se intensificaram. Acusavam-no de entregar o país a nações imperialistas. Editoriais e matérias jornalísticas viam a revolução como única solução. E diante da escolha de Júlio Prestes para suceder Artur Bernardes, ambos paulistas, na presidência, os mineiros se somaram aos insatisfeitos, por considerar que se burlava a “Política dos Governadores”. No início de 1929, os gaúchos se uniram aos mineiros e formaram a Aliança Liberal, para contestar a escolha paulista. Para consolidar o apoio gaúcho, os mineiros indicaram o governador do Rio Grande do Sul, Getúlio Vargas, como candidato da Aliança à disputa presidencial. O paraibano João Pessoa seria o candidato a vice-presidente. No caso de derrota, provável devido a fraudes eleitorais, a Aliança Liberal aventou a possibilidade de fazer uma revolução. Poucos oficiais do Exército apoiaram a Aliança, inicialmente. Mas também poucos estariam dispostos a dar a vida para salvar o governo. Os Tenentes foram convidados a juntar-se à chapa de Vargas, mas resistiram à ideia de conspirar com civis contra os quais haviam lutado. Foram convencidos por Osvaldo Aranha. A nova geração de tenentes aderiu de imediato, assim como os oficiais das guarnições fluminenses e gaúchas. Para agradar os “Tenentes”, a Aliança Liberal incluiu no programa de reformas algumas de suas reivindicações: voto secreto; atenção a problemas sociais; e, mais 161 importante, a anistia aos condenados de 1922. A aura tenentista interessava à Aliança. Mas Luís Carlos Prestes, que a essa altura já se exilara em Buenos Aires, enveredara para o Comunismo e considerava a Aliança Liberal burguesa. O governo central achava que uma rebelião teria sua origem no Sul. Por isso, mandou para lá oficiais de sua confiança. Dentre eles, o tenente-coronel Góes Monteiro foi nomeado para comandar o quartel de São Luís das Missões. Sentiu-se desprestigiado e mais disposto a conspirar. Osvaldo Aranha obteve o apoio de Góes, que, à revelia, tornou-se o comandante da revolução. Como já era previsto, Júlio Prestes venceu as eleições e o projeto da Aliança Liberal se dissipou. Apesar disso, Góes manteve o ardor revolucionário e tinha pronto um projeto de regeneração para o Brasil. Mas o assassinato do presidente da Paraíba e ex-candidato a vice-presidente junto com Getúlio Vargas, João Pessoa, reviveu os planos da Aliança Liberal. As lideranças revolucionárias queriam agir, mas era preciso esperar a sucessão do governo mineiro, quando o vacilante Antônio Carlos seria sucedido pelo revolucionário Olegário Maciel, em 7 de setembro de 1930. No Rio Grande do Sul, havia vários indícios de rebelião: movimentos estranhos da Brigada Militar, da Guarda Nacional e do Batalhão Patriótico; e sumiços sem explicação de armamentos, munições e cavalos em guarnições do interior. No dia 23 de setembro, o comando rebelde expediu o Manifesto ao Soldado Rio-grandense, deixando os nervos à flor da pele e as praças cada vez mais dispostas a atender ao chamado dos revolucionários. Ao mesmo tempo, na capital federal, o ministro Sezefredo estava isolado dos generais que lideravam a oficialidade e alheio aos indícios, mergulhado em atribuições que puxara para seu gabinete. O presidente Washington Luís não acreditava na possibilidade de uma revolução e rejeitava os informes que chegavam. Diante desse quadro, a balança pendeu para o lado revolucionário. O deputado federal gaúcho Lindolpho Collor buscou, então, um apoio que seria decisivo para o sucesso da Revolução: os generais. Escolheu o ex-chefe do EstadoMaior, Tasso Fragoso. O deputado teve tato para fazer parecer a Tasso que aquela conversa era uma deferência, uma satisfação. E deu certo. O general sentiu-se lisonjeado e, apesar da postura legalista, prometeu romper com a neutralidade, em nome do patriotismo, se a Revolução obtivesse alcance nacional. 162 A essa altura, os oficiais revolucionários temiam que a crise econômica tornasse o Comunismo uma opção viável para as massas. Era preciso agir. A frágil disciplina militar logo seria rompida, em nome da regeneração nacional. A revolução seria o veículo desse processo, no qual o Exército tinha papel importante. E Góes Monteiro havia planejado uma reforma política, pretendendo criar um estado autoritário que regenerasse o Brasil e evitasse sua fragmentação e colapso. Somente os distraídos se surpreenderam com o estouro da revolução. Dentre eles, o general Gil, comandante regional em Porto Alegre, recebera informes de comandantes de guarnições que indicavam a eclosão do movimento. Mas o general e sua guarda de oito militares foram surpreendidos com o ataque ao Quartel General. Osvaldo Aranha negociou a rendição. Na maioria dos quartéis, quase todos dispersos pelo solo gaúcho, a resistência foi fraca. Com a estrutura de comando do Exército desmontada, foi fácil para os revolucionários chegar à vitória no Rio Grande do Sul. Vitoriosos no Sul, os revolucionários seguiram para o Norte, em direção ao Rio de Janeiro. Após alguma resistência, as tropas federais em Minas Gerais foram dominadas. No Nordeste, os quartéis cederam em três dias. Mas tropas do governo dirigiram-se para o Sul e o enfrentamento com os revolucionários parecia questão de tempo. O encontro se deu em Itararé, na divisa de Paraná e São Paulo. Mas as tropas foram detidas por chuvas torrenciais e criou-se um impasse. Não havia, porém, interesse revolucionário em enfrentar e destruir o Exército, que seria útil para conter as massas, no caso de rebeliões futuras. Com o tempo a favor da Revolução, tropas mineiras e nordestinas se aproximavam do Rio de Janeiro, onde a conspiração contra Washington Luís se intensificava. O governo parecia isolado. A população não atendera ao chamado da mobilização dos reservistas da 1ª Região Militar. Em 19 de outubro, o general Mena Barreto vira chegado o momento de salvar o Exército e evitar derramamento de sangue em Itararé. Cabia aos generais uma ação pacificadora. Tasso Fragoso foi então convidado a juntar-se ao movimento. O emblemático Forte de Copacabana transformou-se no palco de uma rebelião de generais. Tentou-se obter o apoio do ministro da Guerra e do chefe do EstadoMaior do Exército. Entretanto, ambos não cederam: o primeiro por discordar da Revolução e o segundo por lealdade ao cargo. As constantes movimentações fizeram o povo ir para a rua. E no meio da multidão, o 3º Regimento de Infantaria, a 163 comando do coronel José Pessoa, marchou em direção ao palácio do Catete. À frente juntaram-se os generais Tasso Fragoso, Mena Barreto e Malan. No Catete, os três generais, não sendo recebidos pelo presidente, tiveram de procurá-lo para convencê-lo a renunciar. Depois de breve resistência, Washington Luís reconheceu a derrota e partiu para o exílio. Com a determinação revolucionária, não houve aos generais como não entregar o cargo a Getúlio Vargas, em 3 de novembro. Mas a ação dos oficiais no Rio de Janeiro deu-lhes poder de barganha nos momentos seguintes. A Revolução de 1930 deixou clara a situação crítica do Exército que, naquele momento, não era o “povo em armas”. A Força Terrestre era a principal vítima dos eventos revolucionários, pois acabara de ser dividido por dois lados em disputa: os agentes de um novo Brasil e os defensores do velho regime. A recuperação institucional demandaria grande parte da década de 1930. 164 17 CONCLUSÃO A participação do Exército na evolução política do Brasil, no período compreendido entre a Proclamação da República e a Revolução de 1930 foi marcante. Evidencia-se, porém, que na maioria das vezes essa participação foi motivada por interesses políticos e/ou econômicos, individuais ou de um grupo, das elites nacionais ou de militares. Nesse contexto, a instituição militar quase sempre saía prejudicada, pois deixava de atender os anseios do povo que defende. A Proclamação da República não foi um movimento nascido no Exército. As elites e parte da classe militar, influenciadas pelo Positivismo, queriam acabar com a Monarquia brasileira por entenderem que não atendia às necessidades de evolução que o mundo vivia. A única instituição nacional que tinha condições de fazê-lo era o Exército, liderado por Deodoro da Fonseca. A partir do momento que o velho general e os militares, por diversas questões, se viram sem compromissos de defender o imperador, a República foi feita. Mas a mudança não atendia a um anseio da Nação como um todo. E a queda da Monarquia e instauração da República não foi bem recebida em muitos lugares do Brasil. O governo de Deodoro da Fonseca, depois assumido por seu vicepresidente Floriano Peixoto, precisou enfrentar diversos conflitos para evitar a fragmentação nacional. E o Exército foi o instrumento de repressão de revoltas como a da Armada, que se juntou aos restauradores federalistas da Guerra Civil no Sul. O início conturbado e sangrento da República brasileira resultou no fim dos governos militares, em 1895, e o início da Política do Café com Leite, no governo civil de Prudente de Morais, que seria aperfeiçoada com a Política dos Governadores, a partir do mandato de Campos Sales. Durante esse período, que se estendeu até 1930, o Exército foi instrumento para a manutenção do poder pelas oligarquias cafeeiras que dominavam o cenário nacional. Nesses trinta e cinco anos, sucessivas crises econômicas mantiveram o Exército com menos recursos do que era necessário para colocar em prática as reformas que generais como Mallet, Argollo, Hermes da Fonseca, Caetano de Faria e Tasso Fragoso se empenharam em fazer. Além disso, alguns governantes deliberadamente mantiveram a Força Terrestre enfraquecida para que não pudesse se opor à Política dos Governadores. 165 Mas houve ocasiões em que os partícipes do jogo entre políticos e oligarquias não conseguiam resolver suas diferenças políticas locais, com o emprego de suas forças de segurança, unidades da Guarda Nacional e batalhões patrióticos. Nesses momentos, os governadores apelavam ao presidente, que não vacilava em empregar o Exército na solução de simples querelas que haviam se tornado conflitos com contornos de guerra civil. Assim foi em Canudos e no Contestado. Até mesmo o governo do marechal Hermes da Fonseca, que para muitos significou a ascensão do Exército e dos militares ao poder, foi envolvido em disputas e rixas locais. A eleição de Hermes nasceu da incapacidade dos partícipes da Política dos Governadores de resolver suas dissensões. Mas para chegar ao cargo, o marechal precisou aliar-se a membros das elites republicanas, que travaram uma luta com oligarquias regionais, ex-monarquistas que ressurgiam, após adaptarem-se ao novo cenário político. Uma orgia de intervenções nos estados, o Movimento Salvacionista, desacreditou o Exército perante os brasileiros e retardou ainda mais a efetivação do serviço militar. Em algumas situações de crise, os políticos e o povo brasileiros viram a necessidade de possuir Forças Armadas prontas e capazes e de implantar o serviço militar obrigatório. Assim ocorreu na virada do século XX, com a Questão do Acre e o crescente militarismo mundial, também durante a onda nacionalista iniciada pelo marechal Hermes da Fonseca e com a eclosão da 1ª Guerra Mundial. Mas essas preocupações eram deixadas de lado, pelos brasileiros, quando a situação se resolvia. Não se pode, porém, abordar a política brasileira nas primeiras décadas do século XX sem mencionar as novas gerações de oficiais que se sucederam após a Guerra do Paraguai. Dentre esses militares, os doutores oficiais se uniram às elites e à classe média e pressionaram pela Abolição da Escravatura e pela Proclamação da República. Os “Jovens Turcos”, que treinaram com militares alemães, a partir de 1909, iniciaram uma campanha de profissionalização e germanização do Exército, além de terem fundado a revista A Defesa Nacional e integrado a “Missão Indígena”. Estas foram decisivas para a formação de uma nova geração de oficiais que mudaria os rumos políticos do Brasil: os “Tenentes”. Mas a participação do Exército na vida nacional não se limitou às intervenções no campo político. É importante ressaltar a atuação das Forças Armadas na terrível epidemia de gripe espanhola que assolou o Rio de Janeiro em 1918. Diante da 166 incapacidade dos órgãos de saúde governamentais o trabalho dos corpos médicos e dos hospitais de campanha foi decisivo. Também no campo econômico, os militares se destacaram ao adotar medidas pioneiras, como a compra de maquinários, a importação de tecnologia, o treinamento de profissionais e, mais importante, a conscientização dos brasileiros a respeito de que possuir indústria siderúrgica era fundamental para o desenvolvimento econômico e, por consequência, de uma indústria nacional, inclusive militar, tão necessária à segurança do Brasil. Nos anos 1920, quando o velho e o novo Brasil se confrontaram, a atuação de oficiais reformadores e do Movimento Tenentista foi decisiva para conduzir o país a um novo futuro. Os “Tenentes”, que se diferenciavam dos demais oficiais por serem impacientes, revoltaram-se em 1922, no Rio de Janeiro, e 1924, em São Paulo, contra a política vigente e sua maneira de cuidar dos problemas nacionais. Foram vencidos naqueles momentos e muitos seguiram em suas ações na clandestinidade, como fizeram os integrantes da Coluna Miguel Costa – Prestes. As revoltas tenentistas solaparam o Exército e a autoridade do governo central. No final da década de 1920, a fraqueza das relações do Exército com o sistema político levou oficiais antes legalistas a aderir à causa tenentista. Dentre eles, o tenente-coronel Góes Monteiro foi o protagonista militar num movimento que encerraria de vez a República Velha e inauguraria a Era Vargas. Góes Monteiro foi atraído pelo projeto de poder idealizado pela Aliança Liberal, de gaúchos como Getúlio Vargas e Osvaldo Aranha, mineiros e “Tenentes”. Além da insatisfação política, os oficiais temiam que o caos econômico do país tornasse o Comunismo uma opção viável às massas ignorantes. Mas na Revolução de 30, o Exército seria a maior vítima porque, naquele momento, não representava o agente de um novo país, mas era usado em defesa dos interesses de políticos que queriam se perpetuar no poder, num velho regime. No evento da deposição do presidente Washington Luís, um levante de generais – Tasso Fragoso, Mena Barreto, Malan, dentre outros – abreviou o desfecho da Revolução, evitou uma guerra civil, o derramamento de sangue e a destruição do Exército. Assim, fica claro que a participação do Exército na vida política nacional foi intensa e relevante, no período estudado. Não houve outra instituição nacional que tenha sido tão decisiva para as mudanças e os principais eventos ocorridos. Porém, o preço disso para a Força Terrestre foi ter sido completamente desestruturada em 167 sua organização e cadeia de comando. Somente com o trabalho de oficiais como os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra seria possível reerguê-lo, na década de 1930. 168 REFERÊNCIAS ABNT. Associação Brasileira de Normas Técnicas. Informação e documentação – numeração progressiva das seções de um documento escrito – apresentação (ABNT NBR 6024:2003). Rio de Janeiro: ABNT, 2003. 3 p. ______. 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