Abertura conceitual da obra musical

Transcrição

Abertura conceitual da obra musical
ABERTURA CONCEITUAL DA OBRA MUSICAL
En musique, il ne s'agit plus d'une oreille absolue, mais d'une oreille
impossible qui peut se poser sur quelqu'un, survenir brièvement à
quelqu'un. Em philosophie, il ne s'agit plus d'une pensée absolue telle que
la philosophie classique voulu l'incarner, mais d'une pensée impossible,
c'est à dire de l'élaboration d'um matériau qui rend pensables des forces
qui ne le sont pás par elles-mêmes.1
Gilles Deleuze2
Existe uma vasta discussão sobre a escrita musical e a natureza do signo musical.
No nosso trabalho composicional o signo musical é um meio que possibilita a
representação de uma idéia sonora que tenta transcender o sistema notacional tradicional.
Nesse sentido, a escrita funciona como a representação do gesto sonoro e tem uma
participação importante no processo criativo da obra. Esta maneira de conceber a notação
musical é fruto de uma transformação estética e surgiu a partir de duas propostas. A
primeira está relacionada à criação de obras que ao usarem um conteúdo sígnico menos
tradicional produzem um resultado sonoro menos previsível, isto é, com uma estrutura
sonora mais aberta. A segunda proposta é uma pesquisa sobre o gesto sonoro, e se refere à
criação de conjuntos de signos que formam uma gestualidade, cuja interpretação pode ser
suficientemente ampla (pelo menos mais ampla que a da escrita tradicional) obrigando o
interprete a participar, em parte, da criação do resultado sonoro. Ao pensar neste tipo de
escrita musical, concordamos com Michael Nyman quando diz que existe uma nova relação
entre compositores e intérpretes, e que “a música experimental envolve a ação do
2
Deleuze, Gilles Conférence sur le temps musical, Paris, IRCAM. 1978
"Em música, não se trata mais de um ouvido absoluto, mas de um ouvido impossível que pode recair sobre
qualquer um, a qualquer instante. Em filosofia, não se trata mais de um pensamento absoluto tal qual a
filosofia clássica quis encarnar, mas de um pensamento impossível, em outras palavras, da elaboração de uma
matéria-prima que torna pensáveis forças que por si sós não o são".
32
intérprete, em muitos níveis que vão além daqueles aos que os expõe a música tradicional
ocidental. A música experimental compromete sua inteligência, sua iniciativa, sua opinião,
seu gosto3”. Poderíamos acrescentar que este tipo de escrita musical compromete o
interprete a participar da criação da obra a partir da interpretação de um universo sígnico
“incompleto”, que será preenchido pelo por ele.
Esta maneira de conceber a criação musical reinventa a relação
compositor/obra/intérprete, já que existe uma aceitação por parte do compositor de algo que
vai ser completado pela criatividade do performer. Esta questão não é nova, mas a nossa
proposta é ultrapassar o conceito tradicional de notação musical, permitindo abrir um
campo de possibilidades mais amplo de interpretação e aceitando os possíveis resultados
obtidos por diferentes intérpretes.
Cada performance é um ato único e irrepetível e apresenta certa margem de
imprevisibilidade; no entanto na interpretação de obras cuja escrita possui um grau menor
de especificidade a imprevisibilidade é ainda maior. Historicamente, a aceitação deste tipo
de criação abriu uma brecha que possibilitou outras maneiras de conceber as obras de arte,
questionando o rigor de determinados tipos de linguagem. A premissa frente a uma escrita
ambígua ou indeterminada é que o intérprete complete o signo com sua leitura particular.
Desta maneira, a música experimental, questiona permanentemente o rigor da escrita
musical tradicional4.
Quanto à determinação do compositor frente à obra, cabe esclarecer que, de maneira
geral, os “Compositores experimentais estão na expectativa de esboçar certas situações,
nas quais os sons geram processos, ações, dentro de um campo delimitado por algumas
3
NYMAN, Michael. (1981) Experimental Music, Cage and Beyond. New York. Schirmer Books. Macmillan
Press. Pág. 13.
4
É valido esclarecer que não só a musica experimental questiona a escrita tradicional.
33
regras5”. É por esta razão que muitos compositores também realizam um plano de ação, em
forma de texto, expondo quais são as ações musicais e/ou performáticas que os intérpretes
devem realizar. Um exemplo desse tipo de obra é Voicepiece (1967) de Christopher Hobbs,
na qual os intérpretes devem ler a lista telefônica, seguindo um roteiro ou plano de ações.
Também podemos mencionar a obra Onomatopéias (2003) de Luiz Eduardo Castelões que
propõe um roteiro escrito de metáforas onomatopéicas para serem interpretadas por
qualquer instrumento de cordas. Todos os eventos determinados pelo compositor referemse a diferentes seqüências de ações através de uma escrita que não utiliza nenhum signo
musical.
A interpretação destas instruções é evidentemente subjetiva. John Cage diz a este
respeito: “Deixar que a notação se refira ao que deve ser feito não ao que deve ser ouvido”
(in Nyman 1981, pág 19).
Para pensar a escrita musical como a representação de uma gestualidade,
deveríamos primeiro definir ou delimitar este termo, para depois observar de que maneira
este conceito se projeta na nossa composição, porque ao observar a escrita musical como
uma gestualidade, renovamos o nosso próprio paradigma semântico e sintáxico da
linguagem sonora.
Pensar o signo gráfico como a representação do som, de uma gestualidade imitativa
do ato de tocar, ou do movimento do corpo, produz uma mudança dos pressupostos
criativos mais comuns da composição musical. Em principio, existe uma origem diferente
de idéia geradora da obra, que não as relações harmônicas, de alturas, de ritmos ou do
espectro do som (elementos que em geral oferecem subsídios à composição). A idéia surge
5
Idem Ibidem. (1981) Pág. 3
34
da metáfora6 do movimento, da direção do corpo em movimento, da queda de um volume
qualquer ou da configuração de uma textura. Criar signos gráficos que surjam da
representação metafórica de uma gestualidade impõe (em alguns casos) uma renovação dos
códigos lingüísticos da música.
A palavra gesto é polissêmica tanto no campo da música quanto na sua acepção
corriqueira, e pode ser utilizado para determinar um movimento do corpo, um rictus da
face, do semblante ou da fisionomia. Também serve para determinar um ato ou reação,
como, por exemplo, “um gesto de maldade”. Na criação musical, a palavra gesto é utilizada
tanto no que se refere à movimentação do instrumentista ou cantor, quanto para descrever o
movimento de uma linha melódica ou de uma seqüência harmônica.
Podemos determinar, então, que existe uma gestualidade no campo sonoro, mas a
sua representação escrita na partitura “não é imediatamente a música, mas seus traços
numa folha de papel que apontam para alguma coisa”; a “partitura aparece como a
primeira redução de uma superfície atual, uma virtualidade” 7. Se aceitarmos essa
virtualidade, a partitura é uma representação virtual do som, mas a questão é observar na
escrita um universo de representação que, mesmo “não sendo” aquilo que representa,
possibilita o estabelecimento de um diálogo criativo entre o compositor, que estabelece o
signo, e o intérprete, que o decodifica. A passagem entre o universo sonoro e a sua
representação escrita é um dos problemas que enfrenta o compositor de música
instrumental no ato da criação.
6
Metáfora é o conjunto de procedimentos relacionados com a representação indireta de um conceito através
de uma retórica do desvio. KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. (1983) La Connotación. Buenos Aires, Ed.
Hachette, Pág. 12
7
GUBERNIKOFF, Carole. Música e permanência e situação de escuta. OPUS 11, v. 1, 2005
35
É possível observar um desenvolvimento histórico na concepção de signo musical,
mas, existe um momento no qual as mudanças foram mais radicais. Este momento foi em
meados do século XX, com a aparição da música aleatória, que propôs uma abertura do
signo musical, (e da escrita em geral), e com o serialismo integral, que propôs um
fechamento do signo através de uma escrita rigorosa e estrita.
O nosso interesse é encontrar uma maneira particular de escritura musical que se
adeque ao tipo de obra que estamos interessados em produzir. Isto não significa negar os
elementos básicos da tradição da escrita musical, mas estabelecer uma abertura que forme
parte da proposta estética da obra. Isso nos instiga a observar algumas considerações sobre
este assunto para aprofundar o nosso ponto de vista sobre a criação musical, que é o objeto
do nosso estudo.
Na semiótica contemporânea existem diversas correntes teóricas herdeiras dos
pioneiros da lingüística. Na França, Ferdinand de Saussure, no final do século XIX, definiu
o signo como a relação diádica entre significante e significado. Este conceito foi retomado,
pelo estruturalismo e pós-estruturalismo e desenvolvendo a suas teorias. Nos Estados
Unidos, também no final do século XIX, Charles Peirce determinou a relação triádica do
signo no processo de semiose que envolve a cooperação entre três elementos: o signo, o
objeto e o interprete. Esta teoria foi desenvolvida posteriormente pela filosofia da
linguagem e a teoria do conhecimento8.
8
BORGE, Javier http://www.antroposmoderno.com/antro-articulo.php?id_articulo=127 Consultado em
10/08/2006
36
Uma concepção unívoca e denotativa9 do signo musical resulta inoperante no
contexto de músicas com certos conteúdos de aleatoriedade ou de estruturas abertas. As
peculiaridades sígnicas propostas por estas opções composicionais não são “válidas” dentro
da linguagem corriqueira do mundo da música, e precisam, para sua interpretação
apropriada, de uma concepção aberta e conotativa que outorgue ao performer
(performer/ouvinte) uma função ativa. O intérprete é sempre um mediador ativo entre signo
e objeto, “porque o signo não existe enquanto entidade independente e estável, já que ele é
o próprio processo dinâmico de representação10”, mas no caso de estruturas musicais
abertas isto se dá de maneira mais evidente.
Começaremos com algumas definições extraídas de diversos autores que servem aos
nossos objetivos estéticos.
Definimos o código musical como um sistema de signos e convenções através das
quais criamos mensagens sonoras. O signo musical como a representação escrita de um
objeto sonoro através da relação entre um significante e um significado, interpretada ou
decodificada por um intérprete.
9
Denotação: é a designação de um valor informativo à palavra, com a intenção de reduzir ao mínimo as
possíveis ambigüidades. A denotação é o significado (ou significados) objetivo que tem as palavras e que são
comuns a todas as pessoas. É o significado básico ou primário que aparece nos dicionários. Por exemplo, a
palavra ‘morte’ tem o significado denotativo de “fim de vida”. Conotação: é a característica que uma palavra
tem para ser usada, não só de acordo com seu significado original, (denotativo) mas também com outros
significados secundários. Os significados associados ao significado básico conceitual (a palavra citada
anteriormente, ‘morte’, a seu significado básico, denotativo, leva associados os significados conotativos de
‘dor’, ‘angustia’, ‘rejeição’, etc.) podem ser objetivos e de validez comum ou evocações do tipo subjetivo, ou
seja, algo muito pessoal. Estas são evocações que as palavras despertam na nossa imaginação; por exemplo, a
palavra ‘barco’ não tem para um marinheiro as mesmas conotações que para uma pessoa que mora numa
cidade sem mar. A conotação é uma das causas essenciais das mudanças de significação. Isto é, as palavras
perdem seu significado original e se transformam em outras significações. Opus Cit. KERBRATORECCHIONI. C. (1983). Pág. 18-25.
10
ZAMPRONHA, Edson. Notação, Representação e Composição. Anablume, Ed. São Paulo. 2000. Pág: 153
37
O Signo mais que um tipo especial de objeto, são funções. Um signo é um objeto de
pensamento, uma percepção tangível ou intangível, um sentimento, algo real ou sonhado,
um movimento ou um gesto, etc.; em definitiva, qualquer coisa que nos permite
compreender algo distinto a si mesmo. O signo nos remete de uma percepção ou
pensamento efetivo, a um estado mental ou de compreensão distinto dele. Por meio de um
signo escrito evocamos coisas que não estão frente a nossa percepção, mas por complexas
motivações culturais, nos parecem estreitamente vinculadas aos objetos que nos
convocam11.
O significante que é a imagem escrita representativa de um evento musical. O
significado que é a representação mental de um significante e o objeto sonoro12 que
poderíamos definir como uma “ação acústica que, a partir de intenção de escuta”,13 pode
vir a ser representado por um signo, em função de um código musical comum.
O problema parece surgir ao analisarem-se códigos lingüísticos utilizados dentro de
um universo de obras construídas a partir de elementos aleatórios. A criação de novos
signos, ou a reformulação daqueles conhecidos pela tradição da escrita, amplia o conteúdo
representativo dos mesmos. A utilização de certos signos musicais pode colocar a escrita no
limite da compreensão e decodificação sígnica. Por outro lado, criar novos signos e
atribuir-lhes um significado, fora da tradição da escrita, é estabelecer um universo maior
para sua interpretação, procurando uma abertura tanto das possibilidades interpretativas
quanto das possibilidades criativas.
A concepção tradicional do signo musical é binária, porque os signos gráficos são
considerados como entidades independentes e estáveis, já que a notação é tratada como um
código no qual a relação entre o signo gráfico (significante) e aquilo que representa
11
http://www.geocities.com/lopezcano/articulos/semiomusica.html Consultado em 08-08-2006
objeto sonoro, na definição de Didier Guigue é considerado como "uma estrutura complexa descrita pela
interação de vários componentes da escrita musical e cuja articulação é capaz de conter a forma como um
todo ou em parte". http://www.rem.ufpr.br/REMv5.2/vol5.2/guiguetrajano/guiguetrajano.htm
13
SCHAEFFER, Pierre. Tratado dos Objetos Musicais. Brasília, Ed. Universidade de Brasília. 1993. Pág. 88
12
38
(significado) varia muito pouco14. Desta maneira, para cada significante é atribuído um
significado, eliminando assim a indeterminação do signo e diminuindo a variação
interpretativa por parte do performer.
Jean Jacques Nattiez propõe que existe “significação sempre que um objeto seja
colocado em relação a um horizonte”15. Ou seja, o horizonte aqui é o da interpretação do
receptor (no nosso caso é o intérprete), a partir de uma contextualização do signo musical
estabelecido ou pela tradição ou pelo compositor. Então, mesmo que a notação seja aberta,
o intérprete preciso de elementos para decodificá-lo e entender o contexto dessa escrita, por
isso, na concepção de Nattiez a notação é considerada como um processo dinâmico entre
compositor e intérprete à luz de um horizonte de interpretação.
Se pensarmos o significado do signo musical vinculado apenas às respostas reflexa
(na decodificação) e esquecemos a relação que ele tem com o som, que é a essência do
signo musical, estamos perdendo uma porção importante de representação desse objeto. Por
isso não podemos tratar o signo musical com os mesmos parâmetros com os quais
estudamos os signos verbais, já que o primeiro é um tipo particular e, como tal, precisa de
uma reflexão pertinente a este campo, especialmente quando a nossa intenção é utilizar
signos musicais que apresentam uma abertura de significância que o intérprete precisa
preencher com a sua criatividade.
A música ocidental se organizou em um sistema semiótico sintático, já que se
estruturou a partir de uma gramática que codifica as regularidades da sua estrutura. Porém,
é discutível afirmar que o sistema musical carece de valor semântico. Por conseguinte, se
todo signo musical tivesse pouco conteúdo semântico, não encontraríamos dificuldades
14
ZAMPRONHA, Edson. (2000) Pág. 153
NATTIEZ, Jean Jackes. De la Sémiologie à la Sémantique Musicale, em Musique em Jeu. Volume 17,
Janvier. 1975, pág.3-9.
15
39
para diferenciar códigos musicais, e teríamos representações únicas do universo sonoro
através dos signos musicais. Para exemplificar esta questão, observemos a seguir dois tipos
de signos gráficos musicais que comunicam objetos bem diferentes.
Exemplo 1.
Exemplo 2.
]
Nos exemplos acima temos dois signos bem diferentes. No primeiro apresentamos
um signo único e diferenciado de qualquer outra imagem acústica, indicando o instrumento
(Clarineta), a dinâmica (piano, crescendo e chegando a um forte), o compasso e a duração
das figuras (duas mínimas ligadas em um andamento moderato cuja semínima é igual a
180), a freqüência (Mi = 329,64 Hz) e a qualidade do som emitido (Vibrato).
40
A indicação de dinâmica e qualidade sonora é menos precisa que a indicação de
freqüência. A interpretação deste signo é estereotipada dentro do universo dos signos
musicais, já que “a relação com aquilo que supostamente significa é maior”16, se
comparado com o segundo exemplo. Este, o signo apresentado é menos específico que o
primeiro, já que poderia corresponder a muitos objetos sonoros diferentes, então,
comprovamos que este signo possui uma grande indiferenciação semântica. Aqui não estão
especificados nem o timbre (qualquer instrumento) nem a freqüência (altura mais aguda
possível), nem o tempo, e a dinâmica poderia ser interpretada entre margens bastante
amplas de significação.
Portanto, no primeiro exemplo encontramos que o signo utilizado é mais
estereotipado que no segundo; por conseguinte, a margem de variação interpretativa do
primeiro é muito menor que no segundo exemplo. Zampronha define esta questão da
seguinte maneira: “o estereotipo é o resultado de uma margem de variação interpretativa
muito estreita entre signos. Quanto mais estreita a margem, maior a configuração do
estereotipo”17.
Observando esses dois exemplos, podemos afirmar que quanto mais aberto o signo,
maior o conteúdo de significação, porque é capaz de representar múltiplos objetos sonoros
que tendem a diluir a diferenciação semântica e se transformam em signos de significados
altamente indiferenciados. Os signos abertos obrigam o intérprete a escolher entre diversas
possibilidades de interpretação justamente porque o signo não é unívoco. Isto transforma o
papel do performer, que é obrigado a assumir uma atitude na qual é “cúmplice” do
compositor no que se refere ao resultado final da obra. Ora, a utilização deste tipo de escrita
16
17
ZAMPRONHA, Edson. (2000) Pág. 154.
Idem Ibidem. Pág 154
41
é uma opção estética do compositor que decide “perder” um pouco do controle da obra,
permitindo uma maior participação do intérprete no resultado final da mesma. Nesse
sentido Umberto Eco acrescenta que:
“As poéticas contemporâneas, ao propor estruturas artísticas que exigem do fruidor, no nosso caso
seria o intérprete, um empenho autônomo especial, frequentemente uma reconstrução, sempre
variável, do material proposto, refletem uma tendência geral da nossa cultura em direção aqueles
processos em que, ao invés de uma seqüência unívoca e necessária de eventos, se estabelece um
campo de probabilidades, uma “ambigüidade” de situação, capaz de estimular escolhas operativas ou
interpretativas sempre diferentes”18 (GRIFO NOSSO).
Então a questão é se a partitura expressa claramente o tipo de execução que
representa. No caso das partituras de notação gráfica, como algumas obras da música
aleatória, a falta de especificidade é justamente o objetivo do compositor, que utiliza uma
escrita ambígua para estimular o interprete a realizar escolhas operativas ou interpretativas
sempre diferentes.
Edson Zampronha o seu livro Notação, Representação e Composição comenta que
a partir de 1980 a representação passa ser a tônica da discussão no que se refere a escrita
musical, e apresenta três pontos de vista sobre este aspectos descritos a seguir.
1) Notação (representação) como exteriorização da idéia do compositor;
2) Notação (representação) como um processo dinâmico e interativo entre
compositor e os signos no suporte de representação;
3) Notação (representação) como distancia entre a idéia composicional e sua
realização sonora. 19
18
19
ECO, Umberto. (2005) Obra Aberta. São Paulo Ed Perspectiva. Pág. 93.
ZAMPRONHA, Edson. 2000. Pág: 135
42
No primeiro tópico a notação “se desdobra no estereótipo do signo”20 e dentro de
um contexto de representação na qual o signo tem um significado a priori. Deste ponto de
vista o “signo é tratado como uma entidade estável e estática manipulada por regras como
se pudesse ser destacado do processo de representação”21.
No segundo tópico é o próprio processo de representação, no seu dinamismo, que
possibilita que algo seja signo. Ou seja, este ponto de vista considera a visão particular do
intérprete (na leitura da obra, por exemplo) como um fator fundamental para completar a
idéia do compositor, já que o resultado sonoro é a conjugação da escrita (dos signos
gráficos utilizados pelo compositor) e da leitura (a interpretação dos signos) do intérprete.
O terceiro tópico refere-se à distancia entre a idéia composicional e a sua realização
sonora. Este é o que mais nos interessa para o nosso trabalho, porque ao compor
procuramos que a escrita seja suficientemente aberta para comprometer o interprete no
processo criativo e sonoro da obra. Ou seja, a escrita abandona de alguma forma a
representação “fiel” das nossas idéias, para permitir a interferência do intérprete na
decodificação dos signos e que assim influencie o resultado sonoro, que em alguns casos
pode acabar em transformações radicais. Nesse sentido nunca duas performances serão
iguais, pois a interpretação desses signos dependerá de alguns fatores individuais de cada
intérprete e de seus horizontes particulares de interpretação. A opção por este tipo de escrita
mais indeterminada apresenta permanentemente formas novas (do ponto de vista da
tradição da escrita) e “possibilita o desenvolvimento de novas idéias musicais”22.
Se abandonarmos a idéia de representar fielmente uma idéia sonora, o que significa
que o intérprete não necessita decodificar exatamente a intenção do compositor, estamos
20
Idem Ibidem. Pág 135
Idem. Pág. 136
22
Idem. Pág. 137
21
43
também aceitando que o signo musical não existe como entidade independente, mas que se
constrói na diferença entre o estereótipo do compositor e o estereótipo do intérprete, porque
“o estereótipo não passa do compositor ao interprete. Os estereótipos que o compositor
possui e reconhece na notação são individuais. O mesmo ocorre com o intérprete. Trata-se
de construções individuais”23.
No caso de obras cuja escrita tem como objetivo a representação “estrita” do
resultado sonoro, na qual o compositor especifica até os mínimos detalhes (como acontece
no serialismo integral), a margem de variação do signo é muito pequena porque esse tipo de
escrita tem como objetivo criar uma correspondência “total” entre os estereótipos
construídos por diferentes indivíduos (compositor/intérprete). Ao contrário, quanto mais
ampla a margem de variação do signo, menor a correlação e menor a impressão de que algo
é transmitido24. Assim, existe uma relação inversamente proporcional, já que quanto menor
a margem de indeterminação do signo, maior a determinação, e quanto maior a margem de
variação, maior a indeterminação.
Partindo desta premissa podemos afirmar que existe sempre um grau de
indeterminação na representação escrita de signos, mas, como foi mencionado
anteriormente, dependerá do grau de estereótipo do signo utilizado.
Observemos a obra T. V. Köln, de John Cage. Nela fica bastante claro até que ponto
a indeterminação dos signos apresenta um universo sonoro imprevisível. Ou seja, os signos
não representam em si uma idéia sonora única, mas uma intenção sonora. O compositor
utilizou signos de conteúdos semânticos tão abertos e indiferenciados que não é possível,
por exemplo, solfejar essa obra, já que as possibilidades sonoras são praticamente infinitas.
23
24
Idem . Pág. 140
Idem. Pág 140
44
O caso extremo deste tipo de obras talvez seja 4´:33´,´ de John Cage, na qual o intérprete
não pode predizer de maneira alguma qual será o resultado sonoro da mesma.
A obra T. V. Köln consta de uma folha de instruções à maneira de bula com quatro
sistemas determinados com colchetes. Nela não está definida a duração da obra. O
compositor colocou notas ou por cima ou por baixo de uma linha, sugerindo altura,
durações ou amplitudes, mas não existe um parâmetro determinado para saber qual altura,
duração ou amplitude, cabendo a cada intérprete a possibilidade de entender à sua maneira.
Aqui, os signos possuem um conteúdo semântico extremamente aberto e indiferenciado, já
que o compositor sugere uma seqüência de ações musicais pouco específicas, dando grande
importância ao silêncio.
Vejamos na partitura os signos e as ações musicais propostas na obra. Em cada
sistema aparecem letras que representam as ações a seguir.
P:
ruído em qualquer lugar do piano (interior o exterior);
I:
ruído no interior do instrumento;
O:
ruído na superfície externa do instrumento;
K:
o som nas teclas do instrumento, e o número que acompanha o
signo significam a quantidade de teclas que devem ser tocadas
simultaneamente;
A:
ruído livre proveniente de qualquer fonte sonora
45
46
Sobre a questão do estereótipo e falando especificamente sobre determinadas obras
de John Cage, Zampronha diz:
“Seus métodos consistiam em uma especificação incompleta dos signos, seja omitindo, ou indicando
como realizar um trecho, mas não dizendo o que deve ser realizado. Através da ampliação da
margem de variação interpretativa do signo gráfico, menor a parecença do estereotipo, menor a
impressão de que algo esteja sendo transmitido”25.
Voltando à questão do significado do código notacional lingüístico, poderíamos
afirmar que, desse ponto de vista, as partituras que utilizam gráficos, ou que são totalmente
gráficas, não poderiam ser consideradas obras cujo meio de transmissão se dá através de
um código notacional lingüístico, uma vez que não apresentam articulações semânticas e
sintáticas bem definidas. Por outro lado, se consideramos a abertura semântica do signo,
aceitando a possibilidade de uma ampliação dos limites de organização sintática,
reformulada a cada nova interpretação, então essa “falta” de especificidade, ou essa
especificidade incompleta, poderia ser considerada como parte de um código notacional
lingüístico com diferentes graus de abertura.
Uma partitura que apresenta uma notação tradicional é especifica (no sentido de
especificidade como nos lembra Zampronha) pode ser sonoramente previsível à primeira
vista por qualquer músico minimamente treinado em solfejo, mas isto não é possível na
leitura da partitura de T.V. Köln, porque os signos não representam sonoridades previsíveis.
O universo de sons possíveis que esses signos representam é praticamente infinito. Por
outro lado, aceitar uma multiplicidade dentro da normativa da linguagem musical abre o
campo da expressão artística e criativa, possibilitando novas formas de expressão e uma resignificação do conceito de obra de arte.
25
Idem Pág. 143
47
A abertura do campo de significação nas obras de arte foi (e continua sendo) um
gesto essencial dentro das vanguardas, apesar de entendermos que isso não deve ser um
empecilho para considerá-las como código lingüístico.
Para Pierre Boulez26 a notação gráfica pode ser pensada de duas maneiras.
1) Como um pensamento neumático;
2) Como um pensamento matemático determinado de acordo com as coordenadas
da geometria plana.
Para Boulez a notação neumática ou desenhada é um “retrocesso em relação à
notação simbólica que exprime os sinais sonoros por meio de símbolos convencionais”27.
Esta idéia evolutiva do autor é francamente discutível, já que a opção do compositor em
escrever com signos neumáticos (gráficos, ou signos que estão fora do paradigma
tradicional) está relacionada muito mais a uma opção estética do que a uma preocupação
evolutiva. Mas resulta curioso que tanto o serialismo integral (como um pensamento
determinado pelo rigor matemático) quanto a aleatoriedade (como um pensamento
determinado pelo acaso) apresentam uma multiplicidade de orientações que foram o ponto
de partida para a abertura de novos horizontes no campo da arte, embora devamos admitir
que em termos de formulação e estruturação da linguagem e princípios estéticos, as duas
correntes são verdadeiramente antagônicas28. Enquanto primeira defende uma férrea
sistematização do emprego dos signos (de baixo conteúdo semântico), organizados por uma
26
BOULEZ, Pierre. A Música Hoje 2 São Paulo. Ed Perspectiva. 1992. Pág. 107
Idem Ibidem. Pág. 108
28
A pesar da crítica de Boulez, a música aleatória continuou se desenvolvendo e foi John Cage seu máximo
expoente. Cage ampliou o seu horizonte estético por meio dos resultados obtidos ao acaso, transitando por
caminhos que, provavelmente, nunca teria achado através de um controle dos procedimentos.
27
48
rigorosa sintaxe, a segunda propicia a imprevisibilidade do acaso e a utilização de signos
ambíguos, apresentados, muitas vezes, sem o aval de uma gramática bem definida nem
consagrada pela tradição da escrita (como língua institucionalizada). É fundamental para
nós ressaltar a importância do significado de uma escolha que está relacionada a uma opção
estética e ideológica já que a nossa preocupação é compreender a gênese da obra de arte,
dentro do contexto gramatical no qual ela se expressa.
No caso da música que apresenta um alto conteúdo de aleatoriedade, Umberto Eco
diz:
“O problema que então se levanta é o de uma mensagem rica de informação enquanto ambígua e, por
isso mesmo, difícil de decodificar. É um problema que já individuamos: ao visar ao máximo de
imprevisibilidade visa-se ao máximo de desordem, na qual não só os mais comuns, mas todos os
significados possíveis resultam inorganizáveis. Evidentemente este é o problema básico de uma
música que visa a absorver todos os sons possíveis, alargar a escala utilizável, permitir a intervenção
do acaso no processo de composição. A polêmica entre os defensores da música de vanguarda e seus
críticos desenvolve-se justamente em torno da maior ou menor compreensibilidade como línguas
institucionalizadas. E para nós o problema é sempre o da dialética entre forma e abertura, entre livre
multipolaridade e permanência, na variedade dos possíveis, de uma obra”29.
No outro extremo, a escrita do serialismo integral tenta criar uma coincidência entre
escritura e performance. Já a ou da nova complexidade30 coloca em xeque a rigorosidade da
performance frente a uma partitura que apresenta níveis extremos de complexidade para a
excussão. O tipo de escrita que utiliza elementos de aleatoriedade reduz o número de
elementos prescritivos procurando performances que denotem em uma pequena parte o
objeto físico que tentam representar, ou seja, a partitura. Em alguns casos existe também a
abolição da partitura, como nos casos da música improvisada ou da que trabalha com
29
ECO, Umberto. 2005. Pág: 128
A nova complexidade é uma corrente cujo maior expoente é o compositor britânico nascido em 1943, Brian
Ferneyhough.
30
49
elementos alheios à escrita musical tradicional. A redução de elementos prescritivos31 que
encontramos em uma obra como 4´33´32´de John Cage é quase total, ou seja, o único
elemento que encontramos é a duração (4´33´´) e pode ser executada por qualquer
instrumento ou número de intérpretes, e cada um dos três movimentos da obra consta de
silêncio.
Vejamos a partitura:
O resultado sonoro desta obra poderá ser qualquer som ouvido que esteja soando ao
acaso dentro de uma sala de concerto, reduzindo ao máximo a intervenção tanto do
31
No conceito de Charles Seeger, a escrita prescritiva é definida como “
um esquema de como um trecho
musical específico deve ser realizado para soar”. SEEGER, Charles (1977) Studies in Musicology. Berkeley,
University of Califórnia. Pág. 168.
32
4'33" composta em 1951 Questionando o paradigma da música ocidental, e a noção de som e silencio.
50
compositor quanto do intérprete, porque a infinitude de leituras possíveis quebra a
correspondência entre a denotação e a “execução”. Esta obra, apesar de constar de
“silêncios” apresenta, justamente, uma discussão sobre o significado do silêncio, que neste
caso é cheio de conteúdos intencionais por parte do compositor. Esta obra põe em discussão
a relação som/silêncio, tanto dentro da história da música quanto da vida quotidiana.
Na história da música podemos encontrar muitos exemplos que demonstram uma
maior ou menor abertura da precisão denotativa e, por conseguinte, uma maior ou menor
abertura na interpretação performática; no entanto as vanguardas do século XX propuseram
ao extremo esse duplo jogo entre a imprecisão/limitação e a precisão denotativa /abertura
interpretativa. São justamente estas questões que nos instigam a pensar um tipo de escrita
que se adequa a uma opção estética escolhida.
Esses elementos teóricos foram aplicados para compor e analisar as diferentes obras
que formam parte desta tese.
51