Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de
Transcrição
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de
Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação Curso de Comunicação Social SOLON GODINHO BROCHADO DOIS OLHARES SOBRE UMA FÁBULA: O Iluminado de King e Kubrick Trabalho realizado como pré-requisito para conclusão do curso de Jornalismo. Orientadora: Marcia Benetti Machado Co-orientadora: Fatimarlei Lunardelli Porto Alegre, novembro de 2005 Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas 2.0 Brazil. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.0/br/ ou envie uma carta para Creative Commons, 559 Nathan Abbott Way, Stanford, California 94305, USA. AGRADECIMENTOS Agradeço à minha namorada, Mirella Leite Nascimento, pelo trabalho de revisão e incentivo moral para conclusão desta empreitada. Também não posso deixar de citar minhas orientadoras, Marcia Benetti Machado e Fatimarlei Lunardelli, que me salvaram quando fiquei sem orientador, e também no sentido de fornecer a este trabalho uma sólida base metodológica que não existiria em outro caso. Finalmente, reconheço meu débito para com o professor Giba Assis Brasil, pelas ótimas aulas, pela empolgação com o trabalho, e por ter mostrado que o estudo do cinema poderia ser matéria tão interessante. RESUMO Este trabalho tem como objetivo uma análise da adaptação cinematográfica de um romance, através do estudo do livro O Iluminado, de Stephen King, e do filme de mesmo nome de Stanley Kubrick. O trabalho é feito em dois momentos, um de análise fílmica, onde se aborda o filme através de uma noção de desconstrução e reconstrução para identificar como ele é criado enquanto obra. Depois, parte-se à comparação entre ele e o livro no qual foi baseado. Entendendo que ambas as linguagens têm na narrativa um ponto em comum, por fim, fazemos o trabalho comparativo através dos preceitos da narratologia. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................. 05 1 ANÁLISE, CRÍTICA E ADAPTAÇÃO................................................... 09 1.1 Breve revisão histórica................................................. 09 1.2 Análise e interpretação................................................ 10 1.3 A análise moderna e a adaptação............................ 12 2 OS ILUMINADOS................................................................................. 18 2.1 O Iluminado, de Stephen King................................... 18 2.1.1 Contextualização histórica............................................. 18 2.1.2. Quem é Stephen King.................................................... 19 2.1.3 Resumo do livro O Iluminado......................................... 21 2.1.3.1 Jack................................................................................ 21 2.1.3.2 Wendy.......................................................................... 22 2.1.3.3 Danny........................................................................... 23 2.1.3.4 A história..................................................................... 23 2.2 O Iluminado, de Stanley Kubrick............................... 28 2.2.1 Ficha técnica...................................................................... 28 2.2.2 Contextualização histórica.............................................. 29 2.2.3 Quem foi Stanley Kubrick................................................ 30 2.2.4 Resumo do filme O Iluminado........................................ 34 3 A ADAPTAÇÃO.................................................................................... 37 3.1 As oposições narrativas................................................ 37 3.1.1 Fábula/trama..................................................................... 37 3.1.2 Mostrar/contar................................................................... 39 3.1.3 Épico/dramático................................................................. 40 3.2 Descrição de cena............................................................ 41 3.2.1 Cena: Jack na despensa.................................................... 41 3.3 Análise comparativa....................................................... 42 3.3.1 A intriga.............................................................................. 43 3.3.2 A seqüência narrativa...................................................... 44 3.3.3 Personagens....................................................................... 45 3.3.4 Focalização......................................................................... 47 3.4 Breve análise fílmica...................................................... 48 3.4.1 A música............................................................................. 48 3.4.2 Temporalidade................................................................... 50 CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................... 52 REFERÊNCIAS......................................................................................... 54 ANEXOS................................................................................................... 56 INTRODUÇÃO “Nunca se deveria comparar um filme com uma peça de teatro ou com um romance”, dizia o diretor Alfred Hitchcock (1899-1980) (in TRUFFAUT, 2004, p. 75) a seu colega francês François Truffaut (19321984) em 1962. É assim que começa este trabalho: sentenciado ao fracasso por um dos maiores diretores e estudiosos da técnica cinematográfica de todos os tempos. No entanto, se indentificarmos o surgimento do cinema moderno com O nascimento de uma nação1, de D.W. Griffith (1875-1948), veremos que a adaptação de trabalhos literários é tão velha quanto o próprio cinema. Com isto em mente, o estudo da passagem de um romance ao filme que iremos propor parece um pouco mais justificável. Stanley Kubrick (1928-1979) (in FOIX, 1980), por sua vez, dizia que “todos os grandes filmes são grandes porque têm algo único e, por essa razão, cada um é incomparável”2. Dessa maneira, poderíamos propor que apenas o estudo de um filme, de maneira estanque, pode gerar conhecimento legítimo sobre a arte do cinema. Proposição que nos parece ainda mais fadada ao fracasso, porque nenhuma obra de arte é um fim em si mesma. Frente a tudo isso, cometeremos a audácia de sugerir que a proposta de trabalho que aqui desenvolvemos poderia ser aceita por ambos os diretores e quaisquer outros críticos que compartilhem de suas visões. Ao abordar a adaptação feita por Kubrick do romance O Iluminado, do autor norte-americano Stephen King, não queremos comparar seus méritos enquanto obras de arte. Do mesmo modo, não vamos tentar apoiar a análise de um sobre as qualidades do outro. Nossa proposta é, enfim, humilde. A literatura é uma arte quase tão velha quanto a escrita, enquanto o cinema só se tornou possível graças a avanços tecnológicos com pouco mais de cem anos de idade. Ainda assim, as duas artes compartilham de uma mesma alma ou sentido: contar histórias. Dado o histórico de adaptações datando ao surgimento do cinema moderno, esperamos apontar procedimentos e técnicas utilizados por Kubrick para contar a história de King e, assim, ajudar a fornecer instrumentos para o estudo desta área tão fértil da cinematografia. Dentro deste espírito, a escolha de alguma obra de Kubrick nos parece bastante acertada, já que o diretor jamais trabalhou com 1 The birth of a nation, 1915, EUA. Drama, com Lillian Gish. 2 “All great films are great because they have something unique about them and, for this reason, each one is incomparable”. (Tradução do autor) 6 roteiros originais: todos os filmes que dirigiu profissionalmente3 foram baseados em um conto, novela ou romance. Dentre suas obras, escolher a adaptação do romance de King é um pouco menos óbvio mas também acertado: trata-se de um dos livros mais renomados do mais popular escritor vivo de língua inglesa no mundo. Além disso, a familiaridade do autor deste trabalho com sua obra permite uma maior confiança na busca de substratos para a interpretação. A atualidade das obras também foi ponto importante na sua escolha, por permitir que o analista não precisasse perder muito tempo com considerações acerca da evolução do entendimento da história. Por último, levamos em conta o largo material disponível sobre ambos os autores, tanto em artigos escritos pelos próprios como em entrevistas, estudos e análises de seus trabalhos. Se o processo de definição do determinação de um quadro teórico conclusão. Por isso, este trabalho se estabelecer um caminho que parece estudo proposto. objeto de estudo foi fácil, a foi o maior obstáculo à sua apoia em quatro textos para o mais adequado ao tipo de Em um primeiro momento, nos aproveitamos dos métodos descritos por Francesco Casetti e Federico di Chio em seu manual Cómo analizar un film, de 1990. A partir dele, partirmos ao processo de desconstrução e reconstrução da narrativa fílmica de O Iluminado, em busca da maneira com que Stanley Kubrick criou seu mundo diegético4, i.e., como estabeleceu a hierarquia e a lógica de seu mundo ficcional para torná-lo crível e criar a identificação do espectador com seus personagens. No artigo Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema, que Ismail Xavier escreveu em 2003, encontramos uma primeira indicação de caminho a seguir no sentido de criar uma análise específica à adaptação. Foi a partir de sua separação da interpretação no nível dos estilos – tradução, através de técnicas exclusivas do cinema como a música e a fotografia, das técnicas exclusivas à literatura, como a linguagem e as descrições - e da narrativa – ponto de encontro das duas linguagens – que definimos 3 Mesmo Spartacus, único filme que dirigiu mas não participou do roteiro, era baseado no romance de Howard Fast. 4 A diegese é um conceito grego, recuperado na década de 50 pelo crítico Etienne Souriau para se referir ao mundo ficcional de uma narrativa. É graças ao estabelecimento da diegese, criando um distanciamento entre o espectador e o filme de maneira a fazê-lo enxergar a tela do cinema como uma janela para um outro mundo (diegético), que se estabelece as regras deste mundo ficcional. Assim, é possível que assistamos um filme em que uma babá pode voar usando um guarda-chuvas sem que isto nos cause estranhamento devido à impossibilidade de algo assim acontecer no nosso mundo cotidiano. 7 este como o caminho a seguir. A partir desta decisão, resolvemos buscar no estudo da narratologia as fundações sobre as quais criar nossa comparação final. Para isto, usamos as ferramentas elencadas no livro A análise da narrativa, de Jean-Michel Adam e Françoise Revaz, de 1996. Como nos propomos a estudar a narrativa como ponto de encontro entre a linguagem da literatura e do cinema, nos parece absolutamente inevitável apoiar a comparação final sobre o estudo da narrativa. Por último, este trabalho como está apresentado jamais seria possível sem o livro El significado del filme, que David Bordwell publicou em 1989. Sua crítica da interpretação baseada na autoria, e do estabelecimento das técnicas interpretativas como uma instituição acadêmica no estudo do cinema a partir da década de 70, foi fundamental para estabelecer uma tentativa de criar um trabalho crítico, mas ao mesmo tempo baseado em conceitos concretos e que parte daquilo que nosso objeto de estudo nos oferece, ao invés de ir ao objeto de estudo em busca de sinais que comprovem uma teoria préestabelecida. Por isso, a insistência, ao longo deste trabalho, em apontar sua não filiação a nenhuma escola de interpretação fílmica. Este processo de evolução crítica e como ele se aplica a este trabalho, especificamente, é o que explicamos com mais detalhe ao longo do primeiro capítulo. Nele, explicamos melhor os métodos desenvolvidos por Casetti e di Chio (1994), relativizando-os às críticas de Xavier (2003) e Bordwell (1995). No segundo capítulo, apresentamos nosso objeto de estudo, em ordem cronológica. Primeiro, situamos o romance O Iluminado na bibliografia de Stephen King, assim como o lugar do autor na literatura de língua inglesa atual. Apresentamos, então, um breve resumo descritivo da história do livro que iremos analisar. Passamos então a processo semelhante com o filme O Iluminado5, primeiro contextualizado dentro da historiografia de Kubrick, seguido de uma biografia do autor. O capítulo é concluído com um resumo um pouco interpretativo do filme, já relacionando-o à obra de King. O terceiro capítulo, por fim, é onde procedemos à comparação propriamente dita. Primeiro, fazemos uma diferenciação geral entre as duas obras a partir das oposições sugeridas por Xavier (2003). A partir daí, fazemos uma descrição comparativa entre uma cena do filme e seu equivalente literário [em anexo], para então proceder à comparação narratológica. Esta é feita por partes, na ordem que nos parece fazer mais sentido na hierarquia da construção da diegese das 5 The Shining, 1980, EUA. Terror, com Jack Nicholson. Baseado na obra de Stephen King. 8 duas obras. Por fim, nos arriscamos a apontar algumas possíveis utilizações de recursos exclusivos ao cinema por parte de Stanley Kubrick para retratar alguns dos aspectos mais literários da obra de King. Para este trabalho, o filme foi assistido pelo menos quatro vezes. As duas primeiras vezes, com alguns anos de intervalo, para fins explicitamente de entretenimento. Uma terceira vez após a leitura do romance, já buscando pontos de interesse para a comparação que iria ser feita. E uma quarta vez para desenvolver o processo de desconstrução e descrição necessário para seguir o método proposto por Casetti e di Chio (1994). O livro foi lido duas vezes, uma por entretenimento e a outra visando a comparação. É preciso notar que o filme de Kubrick possui três versões diferentes. A versão original que foi lançada nos cinemas dos Estados Unidos em 1980 tem 148 minutos de duração. Uma segunda versão, com 154 minutos, foi exibida para alguns críticos e jornalistas antes do lançamento oficial e acabou cortada por Kubrick para virar a versão original que foi aos cinemas. Por fim, uma terceira versão foi lançada internacionalmente, com 120 minutos de duração. Foi esta terceira versão que foi lançada no Brasil e foi esta versão que utilizamos na análise a seguir. No Anexo B deste trabalho, estão listadas as cenas que foram retiradas da versão internacional, a título de curiosidade. Estas cenas não foram consideradas em momento algum de nossa análise, devido à impossibilidade de ter acesso a elas senão por descrições conforme escritas por terceiros. 1 ANÁLISE, CRÍTICA E ADAPTAÇÃO 1.1 Breve revisão histórica Segundo a cronologia oficial, o cinema surgiu a 28 de dezembro de 1895, quando os irmãos franceses Auguste-Marie-Louis-Nicolas Lumière (1862-1954) e Louis-Jean Lumière (1864-1948) alugaram o salão Indiano do Gran Cafe, em Paris, para apresentar dez pequenos filmes de aproximadamente 45 segundos, mostrando situações cotidianas como o chegar de um trem à estação. No entanto, se formos buscar a origem do pensamento e da vontade que levaram ao surgimento da sétima arte, podemos ir tão longe quanto 400 a.C., quando o filósofo chinês Mozi [ou Micius, em sua forma latina] primeiro observou o fenômeno da projeção de uma imagem na parede de uma sala escura, através de um pequeno orifício em uma janela na parede oposta. O surgimento do cinema pode, portanto, ser identificado com sua primeira aparição pública no formato que viria a tornar-se popular6, bem como pode ser traçado a partir das indagações técnicas e científicas que levaram ao seu surgimento enquanto meio. Uma seria a historiografia do cinema enquanto fenômeno sócio-cultural ou mesmo artístico, enquanto a outra seria a historiografia do cinema enquanto realização técnica. Dada a finalidade deste trabalho, bem como seu lugar no âmbito acadêmico, não deve ser estranha a escolha pela primeira. No entanto, o que é realmente interessante nesta dicotomia historiográfica é que algo semelhante é evidenciado quando tomamos a história da análise do fenômeno fílmico. Embora a data da primeira apresentação dos irmãos Lumière seja boa para enciclopédias e almanaques para estudantes secundários, mais interessa à análise fílimica é identificar o processo de transformação do cinema em uma forma legítima de narrativa. Flávia Cesarino Costa, por exemplo, em seu livro O primeiro cinema: espetáculo, narração e domesticação, de 1995, irá apontar o trabalho do norte-americano David Wark Griffith como ponto de transição fundamental do primeiro cinema ao cinema clássico, com o uso da montagem encadeada e outros dispositivos para apresentar uma narrativa completa em si. 6. Dois anos antes o inventor norte-americano Thomas Edison já fazia experimentos com a apresentação de imagens em movimento no seu Cinetoscópio. Os irmãos Max e Emile Skladanowsky, na Alemanha, e Jean Acme Le Roy, nos Estados Unidos, também já haviam cobrado por apresentações bem rudimentares de imagens em movimento antes da notória estréia dos irmãos Lumière. 10 Não estranhamente, as primeiras pessoas a se preocuparem em pensar criticamente o cinema estavam mais preocupados com sua inteligibilidade ao espectador, que se maravilhava com as imagens em movimento mas pouco entendia da mensagem que porventura aquilo buscava lhes transmitir. Como fazer o público entendê-la foi o desafio tomado inicialmente por quem, então, se interessava pelas possibilidades daquela tecnologia. O trabalho de Griffith, em especial a obra O nascimento de uma nação, é apontado como o divisor de águas que, com o uso “da alternância de tempos e espaços, da técnica do campo/contracampo, da aproximação da câmera para definir psicologicamente e do ponto de vista subjetivo dos personagens” (COSTA, 1995, p.31), foi capaz de criar o filme como uma narrativa bem estruturada, aproximando-o da literatura e do teatro. Para Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété, em seu Ensaio sobre a análise fílmica, de 1994, é Griffith que atrela o cinema a princípios que o permitem criar um mundo ficcional próprio, formando uma unidade narrativa, a partir de uma linguagem própria. As técnicas cinematográficas empregadas na narrativa clássica serão, portanto, no conjunto, subordinadas à clareza, à homogeneidade, à linearidade, à coerência da narrativa, assim como, é claro, a seu impacto dramático. [...] O encadeamento das cenas e das seqüências se desenvolve de acordo com uma dinâmica de causas e efeitos clara e progressiva. [...] O desenvolvimento leva ao espectador as respostas às questões [...] colocadas pelo filme. (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 27) O cinema, portanto, mesmo enquanto fenômeno sócio-cultural, não é só arte. Por certo, toda forma de arte depende de um grupo de regras e técnicas, nem que seja para que estas possam ser desafiadas pelo artista. Mas o cinema (e sua irmã mais velha, a fotografia) é único no fato de que as definições de sua linguagem específica determinam o modo como uma tecnologia é utilizada para um fim artístico. Usando de uma analogia rasteira, é como se a literatura dependesse de um computador e uma impressora para existir. 1.2 Análise e interpretação Assim como o cinema precisou de uma série de avanços tecnológicos até passar da idéia à realidade, a análise de seu produto final também depende de se vencer alguns obstáculos físicos e tecnológicos. 11 Em seu livro El significado del filme, de 1989, David Bordwell chama atenção à diferença entre compreender e interpretar um filme. O primeiro é o papel do espectador, que assiste ao filme como este lhe é apresentado e tira dali pouco mais do que o que está na superfície da obra. O segundo seria o papel do analista ou crítico, que precisa atravessar a superfície para identificar os significados implícitos ou ocultos da película. Nos serve aqui a definição de Paul Ricoeur, que diz que a interpretação é “a tarefa do pensamento que consiste em decifrar o significado oculto no significado aparente, em revelar os níveis de significado implícitos no significado literal7” (RICOEUR, apud BORDWELL, 1995, p. 18). No entanto, para vencer esta barreira da superficialidade, o analista precisa ser capaz de manipular a obra como bem entender, podendo vê-la de trás pra frente, em câmera lenta, se atendo a pequenas partes ou dando saltos no tempo. Para tanto, a história da análise cinematográfica também pode ser contada através dos avanços das tecnologias que suportam sua prática, desde os tempos em que o analista precisava se trancar em um estúdio com uma moviola, analisando a película quadro por quadro, até os dias de hoje em que o vídeo-cassete e o DVD deixam os filmes ao alcance de praticamente qualquer um. Assim, como acontece com o cinema em si, a sua análise não é arte nem ciência, mas uma mistura de ambos. Bordwell (1995, p. 12) diz que a crítica deve ser considerada “uma arte prática, algo como tecer colchas ou fazer móveis”. E assim como o cinema teve o período pré-1915 apontado por Costa (1995) como de estabelecimento do meio, e de busca por sua fundação enquanto arte, a análise fílmica só irá se estabelecer como campo de estudo a partir do período pós-II Guerra, com a maior distribuição dos filmes em 16 mm em universidades e círculos de cinema. O início da crítica cinematográfica se dá na forma em que a maioria das pessoas ainda as conhece hoje em dia: a resenha jornalística. Seu papel é o de, por um lado, informar o leitor sobre o que esperar de um dado filme e, por outro, o de ajudar na publicidade da obra. O espaço é curto e, como em qualquer trabalho jornalístico, deve ser sucinto e direto. Os jornais, assim, não davam muito espaço para a interpretação minuciosa, ou a exegese como definida por Bordwell (1995). A oportunidade de intelectuais e mesmo jornalistas de apresentar uma 7. “La tarea del pensamiento que consiste en descifrar el significado oculto en el significado aparente, en revelar los niveles de significado implícitos en el significado literal”. (Tradução do autor) 12 apreciação um pouco mais profunda começou a surgir através de ensaios críticos em publicações semanais, como os suplementos do New York Times. Aos poucos também surgiram algumas publicações ligadas a associações profissionais, que eram voltadas ao público cinéfilo e ajudaram a estabelecer um pouco do estudo da técnica cinematográfica. Mas é depois da II Guerra Mundial que o cinema começa a ser reivindicado como área de estudo acadêmico por um público cada vez mais interessado em se dedicar à área. Com a legitimação acadêmica, surge também um mercado para a análise e interpretação neste nível. Assim, a união da entrada do cinema na academia e os avanços técnicos que permitem a maior difusão de filmes em 16 mm por universidades e núcleos de estudo mundo afora, levarão ao surgimento da crítica cinematográfica como a conhecemos hoje. Embora fuja ao escopo deste trabalho, é interessante apontar o estudo de Bordwell sobre a evolução da interpretação no estudo de cinema por sua preocupação em demonstrar não a evolução das diferentes teorias subjacentes à crítica ao longo dos anos, mas sim as técnicas e intenções dos estudiosos. Assim, ao invés de mostrar o jogo de combates interteóricos que vão impulsionando o estudo, ele busca a base motriz comum a todos estes estudos. Não muito diferente do trabalho de Christian Metz, nas décadas de 60 e 70, buscando a equivalência cinematográfica da semiótica desenvolvida pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure. Enquanto Metz buscava montar a gramática que subjazia à prática cinematográfica, Bordwell se propõe a encontrar as convenções estabelecidas pelo que chama de instituições interpretativas, através da qual todos os críticos [desde o resenhista de jornal ao teórico acadêmico] propagam seus trabalhos. 1.3 A análise moderna e a adaptação Para Bordwell (1995, p. 290), o crítico clássico se apresenta como um solucionador de problemas. Seu papel é usar o filme como uma oportunidade de considerar “como possibilidade imaginativa, a justaposição e o desenrolar de certos campos semânticos8”. O problema a ser resovido é o de trazer à luz os significados ocultos de que falava Ricoeur. Ao final de seu livro, Bordwell (1995) sugere que a interpretação textual do filme, baseada em suas semelhantes no estudo literário ou 8. “Como posibilidad imaginativa, la yuxtaposición y el desarrollo de ciertos campos semánticos”. (Tradução do autor) 13 do teatro, pode ter alcançado um ponto de estagnação. Ele propõe, então, uma crítica que abra mão da profunda abstração apoiada em teorias sociais que se tornou costumeira depois dos anos setenta, em troca de uma análise que tente compreender o filme a partir de suas partes concretas. Trata-se, aqui, de trazer à crítica os elementos da técnica, todas as questões da gramática fílmica disseminadas por Metz e alguns outros críticos franceses ligados à revista Cahiers du Cinéma durante as décadas de sessenta e setenta. Ainda que proponham um manual para a “leitura” de um filme, o tipo de análise proposta por Casetti e di Chio (1994) nos parece bastante adequada à empresa encarada por este trabalho. A análise fílmica, segundo eles, terá cinco momentos fundamentais: “por um lado, a pré-compreensão do texto e a hipótese explorativa; por outro a delimitação do campo, a eleição do método e a definição dos aspectos que se haverá de estudar9” (CASETTI e DI CHIO, 1994, p. 30). Os dois primeiros passos são anteriores à decisão pela análise. O primeiro se consegue através da leitura e de uma primeira impressão dos sentidos que ali existem. A segunda é a força motriz da análise, o que força à exploração. No caso deste trabalho, é a intenção de demonstrar como a passagem do texto literário ao cinema incorre em concessões narrativas ou mesmo em subverter o texto original a fim de apresentar uma mensagem que se preste ao meio. Obviamente, como sói acontecer em uma empreitada científica, esta hipótese não é assumida como certa, mas como algo a ser confrontado com as descobertas feitas ao longo da análise. Os três últimos momentos são os mais delicados, e aqueles em que a crítica de Bordwell (1995) nos parece poder ajudar a gerar uma análise mais concreta e desapegada de armadilhas teóricas. A delimitação do campo é decisão de pouca dúvida e facilmente reconhecível já no subtítulo do trabalho, e aqui recorremos a Umberto Eco, em seu manual Como se faz uma tese, de 1977, para explicar a escolha por algo tão pontual quanto um livro e apenas uma de suas adaptações cinematográficas. O tema Geologia, por exemplo, é muito amplo. Vulcanologia, como ramo daquela disciplina, é também bastante abrangente. Os Vulcões do México poderiam ser tratados num execício bom 9. “Por un lado, la precomprensión del texto y la hipótesis explorativa; por el otro, la delimitación del campo, la elección del método y la definición de los aspectos que se habrán de estudiar”. (Tradução do autor) 14 porém um tanto superficial. Limitando-se ainda mais o assunto, teríamos um estudo mais valioso: A História do Popocatepetl (que um dos companheiros de Cortez deve ter escalado em 1519 e que só teve uma erupção violenta em 1702). Tema mais restrito, que diz respeito a um menor número de anos, seria O Nascimento e a Morte Aparente do Paricutin (de 20 de fevereiro de 1943 a 4 de março de 1952). Aconselharia o último tema. Mas desde que, a esse ponto, o candidato diga tudo o que for possível sobre o maldito vulcão. (ECO, 2002, p. 8-9) Mas é na eleição do método e a conseqüente escolha dos aspectos a serem estudados que julgamos haver espaço para fugir da ortodoxia de Casetti e di Chio (1994), em nome de uma análise mais concreta. Para estes, há vários caminhos a se escolher, inúmeras teorias de onde devemos tirar material para abordar o filme criticamente. No entanto, ao propôr uma poética histórica no lugar de uma crítica baseada na interpretação, Bordwell defende que Fazer com que todas as películas signifiquem a mesma coisa por meio da aplicação dos mesmos procedimentos críticos é ignorar a fecunda variedade da história do cinema. Em uma determinada película, qualquer elemento pode ser portador de um significado abstrato, ou não sê-lo. [...] Considerado de forma individualizada, não se pode abandonar nenhum esquema interpretativo ou modelo heurístico, já que uma poética aberta do cinema mantém que qualquer elemento pode resultar apropriado para iluminar uma certa película em um contexto histórico particular. Do mesmo modo, contudo, nem toda película tem o mesmo nível de interpretabilidade, e em muitos casos as inferências interpretativas serão as menos adequadas10. (BORDWELL, 1995, p. 294) Ir de encontro às instituições da crítica baseada na interpretação, propondo uma abordagem de vanguarda, seria uma busca provavelmente infrutífera em um trabalho deste nível. Não é isso, portanto, que se está propondo. No entanto, toma-se a proposta de Bordwell (1995) como uma hipótese um pouco liberadora em relação à necessidade de encaixar-se em um quadro teórico, ou escola, na hora de desenvolver a análise em questão. 10. “Hacer que todas las películas signifiquen lo mismo por medio de la aplicación de los mismos procedimientos críticos es ignorar la fecunda variedad de la historia del cine. En una película determinada, cualquier elemento puede ser portador de un significado abstracto, o no serlo. [...] Considerado de forma individualizada, no se puede abandonar ningún esquema interpretativo o modelo heurístico, ya que una poética del cine abierta mantiene que culquier elemento puede resultar apropriado para iluminar una cierta película en un contexto histórico particular. Del mismo modo, sin embargo, no toda película tiene el mismo grado de interpretabilidad, y en muchos casos las inferencias interpretativas serán las menos adecuadas”. (Tradução do autor) 15 O que se propõe, então, é uma análise dentro dos moldes determinados por Casetti e di Chio (1994), de desconstrução e reconstrução. É, ainda, uma análise do filme enquanto texto, especialmente dado o aspecto de comparação a um texto literário original. Mas é uma análise voltada à questão narrativa e técnica, de como se dá a transição entre os meios. Ao discutir a adaptação cinematográfica em seu artigo Do texto ao filme, Ismail Xavier diz que o crítico que se propõe a tal tarefa comparativa pode escolher, em um primeiro momento, a seguir dois caminhos de análise. No primeiro, o crítico se atém às transições de aspectos únicos de um meio a outro: como o ritmo da escrita encontra uma analogia no ritmo da música; como a escrita árida e direta se traduz em uma fotografia empoeirada e de cores lavadas etc. O segundo caminho trata da análise no ponto de encontro dos meios: a narrativa. Não é, obviamente, o caso de apenas apontar a fidelidade do diretor em relação ao texto original, de maneira quase mecânica. A crítica e a análise não se tornam, só por isso, descritivas. Mas se apoiar no ponto de conjunção dos meios permite menor necessidade de apelar a subjetividades do crítico. Em todas essas formas de expressão [literatura, teatro e cinema], o fato de estar presente o ato de narrar permite o uso de categorias comuns na descrição dos elementos que organizam a obra em aspectos essenciais. A narrativa é uma forma do discurso que pode ser examinada num grau de generalidade que permite descrever o mundo narrado (esse espaço-tempo imaginário em que vivem as personagens) ou falar sobre muitas coisas que ocorrem no próprio ofício da narração sem que seja necessário considerar as particularidades de cada meio material (a comunicação oral, o texto escrito, o filme, a peça de teatro, os quadrinhos, a novela de TV) (XAVIER in CAMARGO, 2003, p. 64) Neste ponto é interessante reforçar o fato de que este é, acima de tudo, um trabalho de análise fílmica. Portanto, mesmo com a escolha pela comparação em nível narrativo, será impossível se furtar a fazer considerações acerca de questões técnicas e estilísticas. Mesmo Xavier (2003), quando mais adiante se coloca a explorar as adaptações cinematográficas de obras de Nélson Rodrigues, não consegue evitar de falar sobre decisões estilísticas dos diretores, como quando fala das diferentes maneiras com que Bruno Barreto e Flávio Tambellini filmam a cena que dá nome a O beijo no asfalto11. 11. O beijo no asfalto, de Bruno Barreto (1980), Brasil, drama com Tarcísio Meira e Lídia Brondi. O beijo, de Flávio Tambellin (1965), Brasil, drama com Xandó Batista e Norma Blum. 16 Conforme comentado na introdução, a escolha da obra de King e sua adaptação feita por Stanley Kubrick se dá, primeiro, pela legitimidade do estudo de dois autores consagrados em suas áreas, bem como pela freqüente escolha do diretor pela adaptação literária. Além disso, a atualidade da obra e o acesso a opiniões de ambos sobre seus trabalhos facilita a empreitada e dá chance a uma melhor interpretação de suas intenções e restrições quanto aos resultados que alcançaram. Neste ponto, é King quem nos aponta uma primeira abordagem à adaptação de Kubrick e as decisões que este tomou em relação ao conteúdo original. Em uma introdução adicionada em 2001 ao livro original, o escritor fala sobre sua definição da maneira com que a história seria conduzida e como isto acabou traduzido para o cinema. Um assassino motivado a seus crimes por forças sobrenaturais era, me parecia, quase consolador assim que você olhasse sob as emoções fornecidas por qualquer história de fantasmas meio competente. Um assassino que poderia estar fazendo isso devido a abusos na infância bem como por aquelas forças sobrenaturais... ah, isso parecia genuinamente perturbador. Além disso, oferecia a chance de borrar a linha entre o sobrenatural e o psicótico, para levar minha história àquele território do eu-espero-que-isso-seja-só-um-sonho onde o que é apenas amedontrador vira absolutamente aterrorizante. Minha única conversa com o falecido Stanley Kubrick, cerca de seis meses antes de ele começar a filmar sua versão de O Iluminado, sugere que foi esta qualidade da história que lhe atraiu: O que, exatamente, está empurrando Jack Torrance a cometer assassinato nas salas e corredores do Overlook Hotel isolado pelo inverno? São fantasmas de pessoas ou de memórias? O sr. Kubrick e eu chegamos a conclusões diferentes (eu sempre achei que haviam fantasmas maléficos no Overlook, levando Jack ao precipício), mas talvez aquelas conclusões diferentes sejam, na verdade, a mesma12. (KING, 2001, p. xvi) Por sua vez, entrevistas com o diretor dão a entender que ele 12. “A killer motivated to his crimes by supernatural forces was, it seemed to me, almost comforting once you got below the surface thrills provided by any halfway competent ghost story. A killer that might be doing it because of childhood abuse as well as those ghostly forces ... ah, that seemed genuinely disturbing. Furthermore, it offered a chance to blur the line between the supernatural and the psychotic, to take my story into that I-hope-this-is-only-a-dream territory where the merely scary becomes outright horrifying. My single conversation with the late Stanley Kubrick, about six months before he commenced his version of The Shining, suggested that it was this quality about the story that appealed to him: What, exactly, is impelling Jack Torrance toward murder in the winter-isolated rooms and hallways of the Overlook Hotel? Is it undead people, or undead memories? Mr. Kubrick and I came to different conclusions (I always thought there were malevolent ghosts in the Overlook, driving Jack to the precipice), but perhaps those different conclusions are, in fact, the same. (Tradução do autor) 17 concordava estar aí a força da história, mas achava desnecessária toda a preocupação de King em insistir com passagens mostrando cenas da infância de Jack e suas provações com um pai alcoólatra e abusivo. Afinal de contas, para Kubrick, o livro ”não é de maneira alguma um trabalho literário sério13” (KUBRICK, in CIMENT, 1982). Somos levados a crer, então, que o que temos em mãos é uma adaptação que se apóia na grande força do enredo do romance original [a ambigüidade em relação à existência de fantasmas a causar o ímpeto assassino de Jack], mas que não se preocupa em manter uma maior fidelidade aos personagens e aos detalhes da história. Como isso é feito mantendo suficiente ligação à fonte original a ponto de merecer o mesmo título e os créditos ao escritor é o que nos parece tão interessante e útil ao estudo das técnicas cinematográficas. 13. “(The novel) is by no means a serious literary work”. (Tradução do autor) 2 OS ILUMINADOS 2.1 O Iluminado, de Stephen King 2.1.1 Contextualização histórica Lançado em 1977, O Iluminado foi o terceiro romance de Stephen King a ser publicado em caráter nacional nos Estados Unidos. Escrito no final de 1974, o livro é um dos primeiros produtos do dinheiro que o autor havia ganhado com a venda dos direitos de publicação de Carrie, os quais lhe permitiram largar o trabalho de professor de inglês para se dedicar exclusivamente à vida de escritor. Ainda hoje, quaisquer tentativas de elencar os melhores trabalhos de ficção de King, como o livro de Stephen J. Spignesi, O Essencial de Stephen King, de 2001 colocam O Iluminado entre as três primeiras posições [quase sempre ao lado de It e The Stand14]. Michael Collings, professor de inglês na faculdade de Pepperdine, nos Estados Unidos, considera que a obra “provavelmente tem as melhores chances de seus livros até hoje de sobreviver no tempo. Ela conta uma boa história, e a conta em imagens fortes e memoráveis. Ela incorpora seu horror característico, mas de uma maneira contida. E é literária15" (COLLINGS, apud JEFFRIES, 2004). Igualmente interessantes são o aspecto autobiográfico do livro e a inspiração de King para escrevê-lo. Desde que tornou-se suficientemente famoso para que lhe pedissem opiniões sobre seu próprio trabalho, o escritor diz que ele não escreve as histórias, mas estas se escrevem. O Iluminado não foi diferente, e ele demorou quase um ano para se dar conta que havia escrito um livro, até certo ponto, sobre si mesmo. Assim como Jack Torrance, personagem principal de O Iluminado, Stephen King é um alcoólatra. Por volta de 1988, depois de uma intervenção familiar, ele conseguiu encarar o problema e deixar a bebida [e a cocaína que havia começado a usar em 1985] de lado. Mas em 1974, ele não só bebia muito, como sequer imaginava que tinha um problema. No começo dos anos oitenta, a legislatura do Maine instaurou uma lei sobre a devolução de garrafas e latinhas. Ao invés de irem para o lixo, minhas latinhas de Miller Lite começaram a ir para um contêiner plástico na garagem. Numa terça-feira à noite eu fui lá jogar fora alguns soldados mortos e vi que aquele contêiner, que estivera vazio na noite de segunda-feira, agora 14. Publicados no Brasil sob o nome de A Coisa e Dança da Morte, respectivamente. 15. “[...] probably has the best chance of his books to date of surviving the ages. It tells a good story, and tells it in strong, memorable images. It incorporates his trademark horror, but in a rather restrained way. And it is literary”. (Tradução do autor) 19 estava praticamente cheio. [...] Puta merda, eu sou um alcoólatra, pensei, e não houve opinião contrária dentro da minha cabeça – eu era, afinal de contas, o cara que havia escrito O Iluminado sem se dar conta (até aquela noite, pelo menos) que eu estava escrevendo sobre mim mesmo16. (KING, 2000, p. 94-95) A inspiração original para escrever o livro, no entanto, veio de uma visita de King e sua mulher Tabitha ao Stanley Hotel, no estado norte-americano do Colorado. Eles estiveram hospedados no local durante os últimos dias de funcionamento antes que o estabelecimento fosse fechado para o inverno. A confusão de toda a criadagem fazendo os preparativos finais, junto da sensação de isolamento por serem praticamente os únicos hóspedes, ignorados pelos funcionários, levou King a pensar na história da família Torrance, presa em um hotel no Colorado durante um rigoroso inverno. Não por acaso, o Stanley Hotel acabou sendo utilizado como locação para a adaptação televisiva de O Iluminado17 feita pelo próprio King. 2.1.2. Quem é Stephen King Stephen Edwin King nasceu em 1947, em Portland, no estado do Maine. Ele e seu irmão mais velho David foram criados apenas pela mãe depois que, quando Stephen ainda era um nenê, seus pais se separaram e o pai nunca mais foi visto. Ele nunca teve muitas habilidades sociais, e o fato de que sua família se mudava constantemente durante sua infância, conforme sua mãe, Nelly, arranjava novos empregos, ajudou bastante para que Stephen fosse uma criança de poucos amigos. Para se divertir, ele gostava de ler quadrinhos e se colocar como o super-herói em alguma das histórias que ficava imaginando. Aos onze anos, a família finalmente se estabeleceu na cidade de Durham, também no Maine, quando Nelly resolveu cuidar dos pais, debilitados devido à idade. No sótão da casa de um parente, Stephen descobriu alguns pertences que eram de seu pai, e entre eles uma coleção de livros de horror de H.P. Lovecraft que diz terem lhe 16. “In the early eighties, Maine's legislature enacted a returnable-bottle and -can law. Instead of going into the trash, my sixteen-ounce cans of Miller Lite started going into a plastic container in the garage. One Thursday night I went out there to toss in a few dead soldiers and saw that this container, which had been empty on Monday night, was now almost full. [...] Holy shit, I'm an alcoholic, I thought, and there was no dissenting opinion from inside my head – I was, after all, the guy who had written The Shining without even realizing (at least until that night) that I was writing about myself”. (Tradução do autor) 17. Stephen King's The Shining, 1997, EUA. Horror, com Steven Webber e Rebecca de Mornay. 20 mostrado que o mundo da ficção fantástica podia ir muito além do que ao que costumava assistir em filmes de terror de segunda linha. Em 1966, Stephen entrou na University of Maine at Orono. Em seu segundo ano lá, começou a escrever uma coluna semanal para o jornal da universidade, onde também se envolveu em questões políticas e participou do movimento contra a Guerra do Vietnã. Nesta época, em 1967, ele conseguiu vender sua primeira história, The Glass Floor, para uma revista de histórias de suspense. Até meados da década de 70, ele continuaria a vender histórias curtas para revistas masculinas. Casado em janeiro de 1971 com Tabitha Spruce, que havia conhecido quando ambos trabalhavam como ajudantes na biblioteca da universidade, Stephen teve logo que arranjar uma maneira de sustentar-se. Não conseguindo emprego como professor, acabou aceitando o trabalho em uma lavanderia industrial para completar o dinheiro das economias e empréstimos educacionais da mulher. No início de 1973, depois que Stephen já havia conseguido trabalho como professor de inglês em uma escola pública de segundo grau, a editora Doubleday & Co. aceitou publicar seu primeiro romance, Carrie. Em maio do mesmo ano, ele foi informado de que o livro seria publicado em paperback18, e que por isso receberia quantia suficiente para se sustentar apenas com a vida de escritor. Daí em diante, ele começou uma longa e próspera carreira, que conta com mais de 500 publicações, entre romances, coletâneas de contos, artigos para revistas e jornais, roteiros para cinema e TV. Não há uma estimativa exata de quantos livros ele já vendeu, mas se sabe que o número fica em algumas razoáveis dezenas de milhões. Sendo escritor de um gênero tão desprezado, e com o tremendo sucesso de público que conquistou, não é estranho que o nome de Stephen King não seja visto com bons olhos pelo establishment acadêmico. Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental e um dos mais respeitados críticos literários de língua inglesa, chegou a escrever um artigo de opinião para o jornal The Boston Globe, em 2003, dizendo que o fato de King ter sido agraciado com o prêmio anual da National Book Foundation por “destacadas conquistas” era “outro ponto baixo no chocante processo de estupidificação da nossa vida cultural”19 (BLOOM, 2003). 18. Edição barata, com capa em papel jornal, normalmente lançada alguns meses depois da edição original em capa dura. É feita para tornar mais acessíveis livros de grande público. 19. “Another low in the shocking process of dumbing down our cultural life”. (Tradução do autor) 21 Mesmo assim, King é provavelmente o autor vivo de língua inglesa sobre quem mais livros foram escritos até hoje, analisando desde seus trabalhos e sua biografia, até sua influência na cultura popular e as razões de sua popularidade. Aos poucos, diante de tamanho corpo de trabalhos e sucessos, alguns cursos acadêmicos têm aberto espaço para o estudo de sua obra, ainda que professores como Bloom sejam rápidos em apontar isso como mais uma prova da queda no nível de ensino no país. 2.1.3 Resumo do livro O Iluminado 2.1.3.1 Jack Jack Torrance é um escritor que teve um futuro promissor, tendo um conto publicado em uma revista de renome, mas que sofre com dois problemas sérios: o alcoolismo, que conseguiu vencer há cerca de três anos; e um problema de temperamento que lhe leva a dizer coisas que não queria, ou fazer coisas que não devia. O primeiro problema quase lhe custou o casamento, e o segundo lhe custou seu último emprego. Professor de inglês na escola preparatória de Stovington, Jack também era o técnico do time de debates do colégio. Um de seus alunos, George Hatfield, parecia um ótimo candidato para o time, mas que descobre sofrer de um grave caso de gagueira nervosa que o torna um peso para a equipe. Jack acaba por cortá-lo, depois que o garoto não consegue completar um argumento dentro do tempo previsto durante uma competição. Dizendo que o professor o estava perseguindo e que havia adiantado o relógio para que ele não tivesse tempo para apresentar seu ponto, George promete vingança. E acaba cumprindo: um dia, quando está saindo do trabalho, Jack vê o aluno com uma pequena faca na mão, cortando os pneus do velho Fusca que é o único meio de transporte da família. Enfurecido, parte para cima de George, jogando o garoto no chão e lhe aplicando uma surra. Somente quando outros professores conseguem segurar Jack é que ele se dá conta não só de que estava batendo em um aluno, como provavelmente tinha lhe garantido uma viagem ao hospital. A direção do colégio, que prevê um danoso processo por parte dos pais do garoto, decide que não pode manter em seu quadro um professor que mandou um aluno para o hospital, por mais que tivesse razão em fazê-lo ou que fosse bom no seu trabalho. Jack, então, é despedido e deixa sua família em maus lençóis, com um filho de cinco 22 anos e uma mulher que não trabalha. Sua salvação vem na oferta de um ex-colega de Stovington, Al Shockley, que lhe acena com a possibilidade de ser o zelador de um hotel nas montanhas do Colorado por cinco meses, tempo em que o local fica fechado devido às condições climáticas da região. A amizade entre Jack e Al havia surgido em balcões de bar e copos de uísque, devido ao alcoolismo de ambos, e se sedimentou depois de que decidiram vencer o vício juntos. A decisão fora tomada depois que, ao voltarem para a casa com Al completamente bêbada ao volante de seu carro, pensaram ter atropelado um garoto. Na verdade, eles tinham apenas passado por cima de uma bicicleta, mas a proximidade da compreensão do que teria significado atropelar alguém é o suficiente para que os dois decidam botar sua vida nos eixos. 2.1.3.2 Wendy Wendy Torrance é uma mulher bonita, de personalidade forte e que esteve muito próxima de pedir a separação de seu marido. Na época em que ele saía toda a noite com Al Shockley para encher a cara, só voltando no meio da noite tropeçando pela casa e assustando o filho pequeno, não havia um dia em que ela não se perguntasse por quê ainda suportava aquela situação. O fato de Jack ter quebrado o braço de seu filho Danny numa noite de bebedeira, depois que o garoto então com dois anos havia derrubado algumas folhas em que ele estava trabalhando, foi a gota d'água. Assim que Danny se recuperou do trauma e ela se convenceu que nem isso fora capaz de fazer o marido criar juízo, Wendy decidiu que iria pedir o divórcio. No entanto, o dia em que decide contar para Jack de sua decisão é o mesmo dia em que ele, depois do acidente com Al Shockley, informa que vai fazer o que for necessário para parar de beber. Ainda que não consiga descobrir o que, exatamente, causou tal mudança no marido, chegando a acompanhar as seções policiais dos jornais nos dias seguintes, Wendy percebe que ele está sendo sincero e resolve lhe dar uma segunda chance. Alguns meses depois, o episódio envolvendo George Hatfield volta a trazer preocupação para o coração de Wendy, mas a hombridade com que Jack reconhece seu erro e sua força de vontade em permanecer sóbrio acabam por lhe acalmar. 23 Ela encara com ambigüidade a idéia de passar cinco meses praticamente trancada em um hotel com Jack e Danny. Por um lado, acredita que pode ser esta a chance que precisavam para reerguer a família, mas por outro não sabe se as feridas que ainda têm que cicatrizar não podem ser pioradas neste tipo de ambiente. De qualquer jeito, não vendo outra opção para que a família se sustente economicamente, ela acaba aceitando. 2.1.3.3 Danny Danny Torrance é um garoto solitário, que sempre parece um pouco sabido demais para sua idade. Quando moravam em Stovington ele até tinha os filhos de outros professores com quem brincar, mas desde que se mudaram para Boulder, depois da demissão de seu pai, ele se viu em uma vizinhança de estudantes universitários e sem crianças de sua idade por perto. Extremamente ligado em seus pais, especialmente no pai Jack, ele aprendeu a gostar da solidão. Até porque, ele não é tão sozinho assim: Danny tem um amigo imaginário chamado Tony. Um amigo muito especial, que é capaz de lhe mostrar coisas que vão acontecer, como onde está guardada uma chave que o pai vai buscar dali alguns dias. Além disso, Danny não é exatamente um garoto qualquer: ele consegue enxergar o que se passa na cabeça daqueles à sua volta, mesmo que ainda não entenda direito alguns pensamentos. Danny está bastante hesitante quanto à ida da família para o hotel. Tony lhe disse mais de uma vez que coisas ruins irão acontecer se eles forem para lá, lhe mostrando visões extremamente desagradáveis envolvendo o barulho de algo forte batendo contra uma parede, alguém gritando pelo nome de Danny, e uma palavra que não consegue entender: redrum. Mas como nem sempre as previsões de Tony dão certo, Danny prefere acreditar na necessidade de seu pai de ir para o local. 2.1.3.4 A história Para Jack, a ida para o hotel Overlook é a chance de recomeçar sua vida. Há muito tempo ele cogita a hipótese de se dedicar a escrever uma narrativa longa, uma peça de teatro num formato clássico. Quando era professor em Stovington, ele chegou a começar alguns rascunhos mas o trabalho e o álcool acabaram drenando qualquer criatividade que ainda tivesse. Os cinco meses de isolamento em um remoto hotel vazio lhe parecem a oportunidade perfeita de 24 voltar a escrever a peça e tirar esse obstáculo de seu caminho. Além das visões que Tony mostra a Danny, outros presságios de que há algo de estranho em relação ao Overlook surgem durante a entrevista de emprego de Jack. Sete anos antes, um homem chamado Delbert Grady havia sido contratado para o mesmo emprego. Ele se mudou para o hotel com a mulher e duas filhas pequenas. Como Jack, Grady era um alcoólatra que, embora a equipe do hotel retirasse toda a bebida do local quando de seu fechamento, tinha levado consigo um estoque de uísque. Com o isolamento durante o inverno, ele começou a sofrer de algo que moradores da região costumam chamar “febre da cabine”, uma sensação de extrema paranóia que já teria sido a causa de assassinatos por coisas tão banais como a comida do jantar. Esta sensação associada a uma quantidade razoável de álcool levaram Grady a matar as filhas com um machado e a mulher com um tiro de espingarda, com a qual acabou se matando. Os Torrance chegam ao Overlook no dia do fechamento, em pleno frenesi para organizar tudo o possível. Neste dia, Danny conhece o cozinheiro Dick Halloran, que descobre compartilhar de seu dom para a telepatia e precognição, embora em escala bem menor. Halloran diz que sempre chamou àquilo de iluminação, graças à qual podia manter conversas inteiras com avó sem abrir a boca em nenhum momento, quando era criança. Quando o garoto lhe fala sobre as visões que Tony lhe mostrou, Halloran explica que como todo hotel, o Overlook já foi testemunha de coisas bastante desagradáveis, e que essas coisas podem deixar traços como o cheiro de algo queimado. Estes traços, no entanto, só podem ser percebido por pessoas como ele e Danny, por iluminados. Essas coisas, no entanto, seriam como fotos em um livro e, por mais assustadoras que pareçam, não podem fazer mal a ninguém. Por segurança, no entanto, ele faz o garoto prometer que, não importa o que acontecer, manterá distância do quarto 217. Halloran diz que não sabe ao certo o que houve por lá, mas que a única vez em que teve que entrar no local a sensação foi de que quem agora morava no local não era muito amigável. Coisas estranhas começam a acontecer assim que os Torrance ficam sozinhos no hotel. Primeiro, um ninho de vespas que Jack havia tirado do teto do Overlook, limpado e colocado no quarto de Danny, subitamente volta a ficar cheio dos insetos, que acabam por picar o garoto. As árvores cortadas em formas de animais no topiário parecem 25 ganhar vida no dia em que Jack vai podá-las. Enquanto isso, as visões de Danny ficam cada dia mais horríveis, chegando ao ponto de ele sonhar que seu pai vai tentar matar a ele e a sua mãe. Jack, por outro lado, está cada vez mais apegado ao hotel. Ele começou a escrever sua peça, mas perdeu o interesse na mesma quando descobriu um álbum de colagens no porão, quando foi fazer uma de suas três checagens diárias da pressão da caldeira. O álbum está repleto de reportagens sobre crimes e histórias sórdidas relacionadas ao Overlook, desde sua fundação até algumas décadas antes de os Torrance se mudarem para lá. Quanto mais tempo Jack passa no porão, lendo o álbum e se inteirando da história do Overlook, mais seus hábitos dos tempos de bebedeira começam a aflorar. A coisa chega a um ponto em que Wendy começa a achar que há bebida escondida em algum lugar do hotel, e a prestar atenção ao hálito do marido, no qual nunca encontra um traço de álcool sequer. Com o tempo, e em especial depois que a neve começa a cair e os Torrance não têm mais saída senão ficar no Overlook até a primavera, o hotel começa a ganhar vida e se tornar personagem fundamental do romance. Como não há muita ação entre os personagens, King usa e abusa dos monólogos interiores para mostrar seus confrontos internos, suas preocupações e vergonhas. Vemos, em especial, como Jack se torna obcecado pelo hotel, achando que tem um trabalho a cumprir no local, do qual depende sua vida. Wendy, pensa ele, está tentando encontrar uma maneira de fazer-lhe falhar neste trabalho, do mesmo jeito que o levou a falhar em tudo mais que fez durante sua vida adulta. Eventualmente, o Overlook, que parece se alimentar dos poderes de Danny, fica tão forte que os fantasmas começam a tomar forma. Jack enxerga um barman no salão de festasque lhe serve doses de martini e explica como o resto da equipe do hotel espera que ele chegue a postos bastante altos em sua hierarquia. Já Danny não resiste à curiosidade e faz, enfim, uma visita ao quarto 217, onde é recebido por uma mulher em avançado estado de putrefação bastante beligerante, que acaba lhe causando o maior susto de sua vida além de deixar algumas marcas no seu pescoço. Aos poucos, até Wendy, que não parece afetada pelos fantasmas, começa a enxergar coisas estranhas além dos hábitos do marido, como confetes pelo corredor, além da impressão de que ouve vozes distantes. Aos poucos, duas realidades estão se encontrando e sincronizando. Quando o relógio do salão de festas marcar a meia- 26 noite do dia 1° para o dia 2 de dezembro, toda a verdade será desmascarada, o mundo dos fantasmas do Overlook se tornará único com o mundo em que vivem os Torrance. E então acontecerá o que Danny tanto teme, embora continue sem conseguir decifrar seu verdadeiro significado: redrum. Enfim, decidida a deixar o hotel com Danny, Wendy confronta o marido. Ao encontrá-lo no bar do salão de festas, ela acredita que ele está bêbado, embora ele continue não tendo cheiro de álcool. Jack se irrita com a proposta de deixar o hotel para levar Danny a um médico e agarra a mulher pelo pescoço, lentamente sufocando-a. Wendy consegue pegar uma garrafa de vinho [que, obviamente, não deveria estar ali] e quebrá-la na cabeça de Jack, que cai desmaiado. Depois de aceitar o fato de que os mesmos fantasmas responsáveis por aquela garrafa estão embebedando seu marido para conseguir chegar até Danny, ela resolve trancar Jack na despensa, onde ele não corre risco de morrer mas também não poderá causar mal a mais ninguém. Infelizmente, os fantasmas do Overlook têm uma idéia diferente e, pouco mais tarde, Delbert Grady surge para abrir a porta e deixar Jack sair, depois que ele assume o compromisso de matar a família. Neste meio tempo, avisado telepaticamente num último momento de desespero de Danny, Halloran saiu do hotel em que estava trabalhando na Flórida e já está próximo ao Overlook para tentar salvá-los. Enquanto está preso na despensa, Jack faz sua transformação final em um veículo homicida a mando do hotel, processo que fica evidenciado em sua identificação com o pai, um alcoólatra que quase matou a mulher espancada. Também é neste momento que ele aceita, enfim, que de fato havia adiantado o relógio para George Hatfield falhar na competição de debates. Ele aceita o ódio que nutria pelo garoto, por este ter à frente todas as oportunidades que ele acredita ter deixado passar. Ao sair da despensa, Jack pega um taco de roque20 que Grady deixou ao lado da porta e parte para cima de Wendy, que tinha sido atraída pelo barulho no local. Depois de receber um golpe que lhe deixa algumas costelas quebradas, ela consegue, em um momento de 20. Jogo semelhante ao croquet, em que é necessário passar bolas de madeira por baixo de arcos metálicos, através de um curso pré-determinado. Antepassados do golfe, a principal diferença entre os dois é que o croquet usa um taco inteiramente de madeira, enquanto o roque possui um taco mais longo, com uma cabeça de madeira e outra de borracha dura. A pertinência do taco dentro da narrativa se dá pelo fato de que um dos atrativos do Overlook é uma das últimas quadras de roque dos Estados Unidos. 27 distração de Jack, enfiar uma faca nas suas costas. Ele cai morto no chão da cozinha, enquanto ela se arrasta de volta para o quarto, lutando para conseguir recuperar o fôlego. Pouco depois, no entanto, Jack se levanta ressuscitado pelas forças do hotel e promete que a mulher irá pagar pela agressão. Wendy consegue chegar ao quarto e se trancar no banheiro antes que Jack a alcance e, assim, passe à destruição da porta com golpes de taco. Danny, neste meio tempo, conseguiu fazer Tony surgir novamente [ele havia desaparecido pouco depois que eles chegaram ao hotel] e finalmente lhe explicar suas visões. Ao mergulhar no relógio do salão de festas e entender que à meia noite uma metafórica festa de máscaras chegará ao ponto em que todos deixarão cair suas fantasias, ele vê a palavra redrum refletida, de maneira invertida, no vidro do mostrador das horas: murder21. Ele também descobre que o barulho que ouvia era o de seu pai batendo um taco de roque nas paredes, enquanto chama por seu nome, dizendo que irá lhe matar. Quando acorda de seu transe, Danny está no terceiro andar do Overlook, ouvindo o barulho de um motor na parte de fora do hotel. É Halloran que, enfim, chegou para tentar salvá-los. Jack também ouve o barulho, desiste da porta do banheiro e vai lidar com o cozinheiro, permitindo que Wendy aproveite o momento para fugir. Halloran é recebido com um golpe certeiro na cabeça, que quebra sua mandíbula e um pedaço do crânio mas não o mata. Tendo lidado com o cozinheiro, Jack sai em busca de Danny, que está encurralado no terceiro andar. A esta altura, o hotel já ganhou vida em definitivo, e Danny vê os quartos tomados de convidados, pessoas andando pelos corredores com fantasias e uma animada festa ocorrendo no salão de baile. Jack alcança o garoto à meia-noite, quando devem ser retiradas as máscaras. Para não deixar dúvidas quanto à sua transformação final em mais um dos monstros do Overlook, ele destrói seu rosto com o taco de roque, deixando em seu lugar um emaranhado de sangue, ossos e pele rasgada. No entanto, na hora em que está pronto para pegar Danny, este lembra da última coisa que Tony havia lhe dito: “lembre do que seu pai 21. “Murder” quer dizer, literalmente, “assassinato”. Por analogia, a tradução de “redrum” seria, portanto, “otanissassa”, grafia que é utilizada nas legendas do filme assistido para a realização deste trabalho. No entanto, a sonoridade da palavra “redrum”, na língua inglesa, remete a duas construções frasais que possuem sentido: “red rum” (ou “rum vermelho”) e “red room” (“quarto vermelho”). Em português, por outro lado, “otanissassa” não remete a coisa alguma, e acreditamos que sua declaração direta tornaria bem mais provável a descoberta de seu verdadeiro significado antes do momento oportuno. 28 esqueceu”. Aquele dia todo, como estivera bêbado no salão de festas e, depois, trancado na despensa, Jack não havia conferido a pressão da caldeira. A esta altura, ela deveria estar pronta para explodir. Enquanto Jack sai correndo desesperado para o porão, Danny, Wendy e Halloran fogem do local para a frente do Overlook. Jack crê ter chegado a tempo, mas quando consegue apertar o botão que libera a pressão da caldeira esta explode, levando o hotel consigo. Danny, Wendy e Halloran vêem conforme o hotel dá seu último suspiro e morre definitivamente. 2.2 O Iluminado, de Stanley Kubrick 2.2.1 Ficha técnica Título original: The shining Ano: 1980 Duração: 120 min Gênero: terror Roteiro: Stanley Kubrick e Diane Johnson, baseado na obra de Stephen King Direção: Stanley Kubrick Atores: Jack Nicholson (Jack Torrance), Shelley Duvall (Wendy Torrance), Danny Lloyd (Danny Torrance), Scatman Crothers (Dick Halloran), Barry Nelson (Stuart Ullman), Philip Stone (Delbert Grady), Joe Turkel (Lloyd, o bartender). Direção de fotografia: John Alcott Cenários (Production designer): Roy Walker Edição: Ray Lovejoy Música original: Wendy Carlos e Rachel Elkind Gerente de produção: Douglas Twiddy Diretor assistente: Brian Cook Vestuário: Milena Canonero Operador de steadicam: Garrett Brown Fotografia de helicóptero: MacGillivray Freeman Films Assistente pessoal do diretor: Leon Vitali Assistente de produção: Andros Epaminondas Direção de arte: Les Tomkins Maquiagem: Tom Smith Edição de som: Wyn Ryder, Dino di Campo e Jack Knight Editores assistentes: Gill Smith e Gordon Stainforth Diretores assistentes: Terry Needham e Michael Stevenson Continuista: June Randall Assistente de produção: Emilio D'Alessandro 2.2.2 Contextualização histórica 29 Lançado em 1980, O Iluminado é um dos últimos trabalhos de Stanley Kubrick como diretor. A maioria dos críticos o considera um exemplo da filmografia de fim de carreira deste norte-americano, que teria atingido seu ápice com Laranja Mecânica22 e iniciado seu declínio com Barry Lyndon23, filme imediatamente anterior a O Iluminado. Quando chegou aos cinemas, O Iluminado recebeu duras críticas pela falta de desenvolvimento dos personagens, bem como pelo ritmo lento com que a história se desenrola. Mas, como costumava acontecer com obras de Kubrick destratadas pela crítica, atraiu muitos espectadores para o cinema e acabou sendo um razoável sucesso de bilheteria. O grande debate sobre o trabalho de Kubrick logo se desviou para a disputa entre ele e Stephen King, autor do livro em que havia baseado seu filme e roteiro. Ainda que os fãs do escritor não tivessem nenhuma antipatia específica por Kubrick, e mesmo que muitos tivessem gostado do filme, todos reclamavam da falta de fidelidade ao espírito da obra do escritor. Eventualmente, o próprio King manifestou sua insatisfação com a visão de Kubrick e, novamente, com a falta de desenvolvimento dos personagens. [O filme] não é de maneira nenhuma assustador. Jack Nicholson basicamente se apoiou em tiques de personagem que ele desenvolveu em filmes de motoqueiros 10 anos antes. O cara já é louco quando você o conhece, de tal maneira que não há um arco de desenvolvimento do personagem.24 (KING, apud JEFFRIES, 2004) Kubrick nunca foi um diretor de se preocupar muito com as opiniões de críticos e, como já vimos, também não tinha muito respeito pelo trabalho de King enquanto literatura. Não estranhamente, suas entrevistas sobre O Iluminado mostram que ele havia ficado bastante satisfeito com o resultado final e que achava que todas as concessões feitas em relação ao livro eram desculpáveis ou porque necessárias na transposição das linguagens, ou porque as idéias não eram boas para começo de conversa. 22. A Clocwork Orange, 1971, EUA. Drama, com Malcolm McDowell. Baseado na obra de Anthony Burgess. 23. Barry Lyndon, 1975, EUA. Drama, com Ryan O'Neal. Baseado na obra de William Makepeace Thackeray. 24. “It's not scary at all. Jack Nicholson basically fell back on character tics he developed on American international biker pictures 10 years before. The guy's crazy when you meet him so there's no arc of character development”. (Tradução do autor) 30 Com tudo isso, o legado final de O Iluminado parece ter sido técnico. Primeiro, no seu uso inovador da steadicam25, que permitiu ao diretor filmar longos takes pelos corredores e salas do hotel onde jamais seria possível filmar com uma dolly. Inclusive, é interessante notar que o operador da câmera, Garrett Brown, era também seu inventor e havia sido escolhido porque, àquela altura, pouquíssimas pessoas sabiam operá-la devidamente. Também digno de nota foi o fato de o filme ter sido filmado quase inteiramente em gigantescos sets construídos nos estúdios da Warner Bros. [as exceções são algumas cenas exteriores, no início do filme, como o carro de Jack subindo as montanhas durante os créditos ou a fachada do hotel26]. Segundo Kubrick, isso foi feito tanto por uma questão monetária como estética. Monetária porque, mesmo com o grande número de sets e seu enorme tamanho físico, era mais barato filmar em estúdio do que em uma locação, ainda mais que boa parte das cenas se passava em pleno inverno, o que faria com que a equipe tivesse que ficar isolada em um hotel da mesma maneira que seus personagens. E estética porque isso permitia que os sets fossem construídos exatamente como ele queria, levando em conta a questão visual bem como a movimentação das câmeras. Hoje em dia, O Iluminado é tido como um clássico de seu gênero, ainda que continue sendo considerado uma obra menor na carreira de Kubrick. E mesmo que os fãs mais ardorosos de Stephen King, assim como o próprio, continuem o considerado um bom filme por seus próprios méritos, mas uma adaptação que não faz justiça ao livro original. 2.2.3 Quem foi Stanley Kubrick Stanley Kubrick nasceu em 1928, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos. Foi um aluno medíocre durante o colégio, chegando ao ponto que seus pais decidiram, quando cursava o segundo grau, mandá-lo passar um ano com um tio que havia ficado milionário com uma cadeia de farmácias na Califórnia. Eles esperavam que o garoto 25. Câmera que é presa ao corpo do operador, permitindo a filmagem “na mão” com uma fluidez semelhante à da filmagem com uma câmera sobre trilhos (dolly). O aparato havia sido inventado pouco antes desta produção, e nunca havia sido usada de maneira tão extensão quanto esta. 26. Que, neste caso, é o Timberline Lodge, no estado do Oregon. É importante notar que apenas a tomada aérea da fachada do hotel é em locação. Para todas as outras foi construída uma reprodução em tamanho real de parte desta fachada, que depois foi soterrada em sal para simular a neve. 31 se interessasse pela maneira com que o tio havia vencido na vida. De volta a Nova York, ele demonstrava uma capacidade acima do normal em testes de inteligência e leitura aplicados pelo sistema de educação do estado de Nova York, mas suas notas continuavam baixas. Suas chances de entrar em uma faculdade foram definitivamente por água abaixo quando, com o fim da II Guerra Mundial, as universidades foram tomadas por um enorme contingente de ex-soldados. Durante o colégio, no entanto, ele descobriu sua primeira grande paixão: a fotografia. O interesse surgiu por volta dos 13 anos, depois que ganhou sua primeira máquina fotográfica do pai, Jacques, em mais uma de suas tentativa de fazer o filho descobrir algo que lhe interessasse. No segundo grau, enquanto ainda lutava com as notas baixas, Kubrick foi escolhido o fotógrafo oficial da William Howard Taft High School, onde estudava. Ao se formar, em 1945, já havia conseguido vender algumas fotos para a renomada revista Look. Depois de formado, dividia seu tempo entre a fotografia, cursos noturnos na City College para tentar melhorar suas notas, e em jogos de xadrez [esporte que também aprendera com o pai] por dinheiro na praça Washington e em clubes no bairro de Manhattan. Sua insistência com a fotografia acabou rendendo dividendos e, em 1946, Kubrick foi contratado como fotógrafo aprendiz pela Look, onde acabou efetivado e trabalhou até 1951. Em 1948, Kubrick se casou com Toba Metz e se mudou para o bairro de Greenwhich Village, um reduto de escritores, pintores e artistas em geral. Seu interesse por filmes, surgido ainda no segundo grau através das aulas do professor Herman Getter, cresceu ainda mais com a convivência entre pessoas ligadas ao cinema e em exibições no Museum of Modern Art. Ele ficou particularmente impressionado pelo trabalho do diretor alemão Max Ophüls, em especial por seu característico uso de panorâmicas e da câmera dolly. Em 1950, Kubrick acabou se afastando temporariamente do trabalho de fotógrafo, que achava cada dia mais entediante, e resolveu iniciar sua carreira no cinema, incentivado pelo amigo Alexander Singer, que conhecera nos tempos das aulas de arte na William Howard Taft High School. Arrecadando um total de U$ 3.900 entre amigos e familiares, acabou conseguindo financiar o documentário Day of Fight, sobre o boxeador Walter Cartier, o qual já havia fotografado para a Look. A produtora que iria publicar o filme originalmente acabou 32 fechando, mas Kubrick conseguiu vender seu documentário para a RKO-Pathe, por um lucro de U$ 100. Ele então largou em definitivo seu emprego de fotógrafo e produziu mais dois documentários até decidir, em 1953, que queria filmar um longa-metragem. Através dos jogos de xadrez e de pedidos a amigos e parentes, em especial seu tio milionário [que aceitou emprestar o dinheiro sob a condição de ser seu produtor assistente], Kubrick juntou U$ 10 mil para produzir, independentemente, Fear and Desire. O filme de 68 minutos sobre quatro soldados presos atrás das linhas inimigas durante uma guerra fictícia rendeu algumas críticas razoáveis e foi considerado um bom trabalho para um diretor iniciante. No entanto, o filme não rendeu muito dinheiro e, mais tarde, Kubrick teria considerado aquilo como o trabalho de um amador. Sua primeira produção profissional, em companhia do produtor James B. Harris, foi feita em 1956. O Grande Golpe27 foi o primeiro de três filmes produzidos por Kubrick e Harris e teve sucesso suficiente para atrair interesse do estúdio Metro-Goldwyn-Mayer. Com eles, realizou seu projeto seguinte, o filme de guerra Glória Feita de Sangue28, com o qual acabou ganhando renome mundial e a admiração do astro Kirk Douglas. Devido a esta admiração, Kubrick acabou convidado por Douglas para substituir Anthony Mann na direção do épico Spartacus29. Embora o filme tenha sido bem recebido pela crítica e angariado bastante sucesso nas billheterias, o diretor não ficou feliz com o resultado. O processo de filmagem foi marcado por brigas entre ele e Douglas, que além de estrela do filme era também o produtor. Kubrick viria a pedir que seu nome não fosse ligado à produção, dizendo que não havia nada de seu no produto final. Este filme marcaria o início de sua conflituosa relação com Hollywood. Kubrick se mudou para a Inglaterra e passou a demandar certa liberdade criativa em relação a suas obras que, embora o tenham estabelecido em definitivo como um autor de cinema, não encaixavam muito bem com as práticas hollywoodianas. A comédia de humor negro Dr. Fantástico30 seria um caso único em sua carreira: um sucesso de crítica e público. Esta visão pessimista e profundamente ridícula da guerra fria marcaria a primeira e única 27. The Killing, 1956, EUA. Policial, com Sterling Hayden. Baseado na obra de Lionel White. 28. Paths of Glory, 1957, EUA. Guerra, com Kirk Douglas. Baseado na obra de Humphrey Cobb. 29. Spartacus, 1960, EUA. Drama, com Kirk Douglas. Baseado na obra de Howard Fast. 30. Dr. Strangelove or: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb, 1964, EUA. Comédia, com Peter Sellers. Baseado na obra de Peter George. 33 vez em que um filme de Kubrick receberia críticas quase que unicamente favoráveis e refletiria esta boa recepção em números nas bilheterias. Tal sucesso se provou importantíssimo para o diretor, que pôde convencer o estúdio Warner Bros. de que era capaz de fazer filmes autorais mas ainda assim populares. Com carta branca da Warner Bros., Kubrick embarcou em um projeto de cinco anos para transformar em filme uma idéia tirada do conto de ficção-científica The Sentinel, de Arthur C. Clarke. O próprio autor foi convidado a participar da elaboração do roteiro com Kubrick e, posteriormente, o lançou como um livro. O resultado foi o que, para muitos, é a obra-prima do diretor: 2001, Uma odisséia no espaço31. Além de render ao diretor seu único prêmio Oscar, pela supervisão de seus revolucionários efeitos especiais, 2001 foi o primeiro filme de ficção-científica a ser visto como cinema de qualidade, além de ser cientificamente irrepreensível. Com uma narrativa pouco convencional, Kubrick fez seu filme mais experimental e o que mais perto chegou de suas tentativas de quebrar a narrativa fílmica convencional que, segundo ele, fazia com que filmes fossem apenas versões filmadas de uma peça de teatro. Por incrível que pareça, seu filme mais experimental foi um tremendo sucesso de público. Tendo custado pouco mais de U$ 10 milhões para ser produzido, 2001 arrecadou mais de U$ 50 milhões nos EUA e ultrapassou os U$ 190 milhões internacionalmente. Ainda assim, quando do seu lançamento, alguns críticos atacaram o filme como longo, entediante e burro. Para Stanley Kauffmann, por exemplo, o filme era “tão estúpido, que entorpece nosso interesse no engenho técnico pelo amor do qual Kubrick o deixou ficar tão estúpido” 32 (KAUFFMANN, 1968). Com o tempo, 2001 acabou sendo reconhecido quase universalmente como uma obra-prima e dificilmente não integra listas de melhores filmes de todos os tempos de críticos e publicações relacionadas ao cinema. Daí em diante, Kubrick começou a demorar cada vez mais a filmar cada nova produção, ao ponto que entre seus três últimos filmes se passaram 19 anos. Laranja Mecânica ainda é considerado um filme de seu auge, mas Barry Lyndon e seus três filmes seguintes são 31. 2001: A Space Odyssey, EUA, 1968. Ficção-científica, com Keir Dullea. Baseado na obra de Arthur C. Clarke 32. “so dull, it even dulls our interest in the technical ingenuity for the sake of which Kubrick has allowed it to become dull”. Obviamente, o autor faz um jogo com a palavra “dull”, significando estúpido, e o verbo “to dull”, que significa entorpecer. (Tradução do autor) 34 considerados trabalhos menores de um diretor que já tinha feito seu melhor. A idéia de um diretor cansado e sem o mesmo vigor para o trabalho também foi incentivada pela reclusão de Kubrick, que morava em um sítio no interior da Inglaterra e sempre foi avesso à imprensa. Stanley Kubrick morreu a 7 de Março de 1999, apenas alguns dias depois de fazer a primeira exibição de seu último filme, De olhos bem fechados33, para seu produtor, os atores principais e alguns amigos. 2.2.4 Resumo do filme O Iluminado O Iluminado de Kubrick, a despeito de todas as reclamações de King e seus fãs, mantém bastante do cerne da história original. Algumas das mudanças se deram por questões técnicas. Por exemplo, dado o nível dos efeitos especiais à época, filmar a cena dos animais do topiário ganhando vida era algo impensável. A transformação de Tony de um personagem de carne e osso em um ser que existe na boca de Danny também pode ser entendida dentro desta perspectiva. Outras escolhas foram, obviamente, por questão de estilo. No nível dos personagens, Wendy foi quem sofreu a maior mudança, deixando de ser uma mulher bonita e de personalidade forte e passando a ser uma mulher de aparência e personalidade frágeis. Segundo Kubrick, ele não achava razoável que alguém como a Wendy do livro pudesse suportar, por tanto tempo, um marido como Jack e, por isso, achou de bom grado torná-la mais dependente na versão cinematográfica. Outro personagem foi simplesmente desconsiderado. Embora ainda esteja no filme, e seria difícil imaginar a história sem ele, aqui o hotel Overlook é apenas uma locação. Esta é, usualmente, a maior bronca dos fãs do livro e, como vimos, uma das contendas entre os autores que é anterior à filmagem. Ao deixar de tratá-lo como um personagem, a decisão de Kubrick por não destruí-lo ao final parece quase inevitável. A última reclamação de fãs da obra original é em relação à falta de desenvolvimento dos personagens. Uma reclamação procedente, mas que também pode ser abstraída como parte do estilo do diretor. Enquanto King tem uma característica predileção pelo monólogo interior e por narrativas fraturadas, Kubrick sempre gostou de contar uma história de maneira linear, sem apelar a flashbacks ou narrativas exteriores à diegese. 33. Eyes Wide Shut, EUA, 1999. Drama, com Tom Cruise e Nicole Kidman. Baseado na obra de Arthur Schnitzler. 35 Kubrick também não gostava de ter que explicar situações através de diálogos, e dizia que em todos seus trabalhos tentou fugir dessa teatralização da ação. O caso mais óbvio desta tentativa é 2001, mas pode-se notar tal preocupação em O Iluminado, em cenas como o close no rosto de Jack, que permanece em um estado quase catatônico, sem piscar, enquanto Wendy e Danny brincam na neve que começou a cair. A maioria dos filmes é pouco mais do que uma peça com mais atmosfera e ação. Eu acho que o alcance e flexibilidade das histórias dos filmes poderia ser bastante acentuada tomando emprestado algo da estrutura dos filmes mudos, onde pontos que não requerem diálogos são apresentados por uma cena e um cartaz. [...] Eu sei que eu tentei me mover nessa direção em todos os meus filmes mas nunca em um nível que tenha me deixado satisfeito34. (KUBRICK, apud CIMENT, 1982). Uma última decisão digna de nota foi a de matar Halloran ao final da história. A opção foi, nitidamente, para causar uma reversão de expectativa no espectador. Afinal de contas, depois que explicou do que se trata o dom de Danny, a única razão aparente para seu personagem voltar à história é para que desempenhar algum papel no seu desenlace, talvez fazendo a diferença que significará a salvação de Danny e Wendy. Em última análise, ele ainda mantém esse papel por atrair a atenção de Jack por tempo suficiente para que Wendy possa fugir do banheiro. Sua morte, no entanto, é completamente inesperada e faz o espectador esperar o pior para a família Torrance. Feitas estas ressalvas, O Iluminado de Kubrick é um filme suficientemente fiel para merecer ser considerado uma adaptação da obra de King. A história ainda pode ser resumida da mesma maneira: escritor frustrado resolve ser zelador de um hotel durante o inverno, buscando resolver seu bloqueio através do isolamento, e acaba enlouquecendo e tentando matar sua família. Um ponto um pouco nebuloso é a questão do alcoolismo de Jack. No livro, isto fica claro já no primeiro capítulo, quando o assunto é levantado pelo gerente Stuart Ullman durante a entrevista de emprego. No filme, no entanto, o alcoolismo é apenas uma sugestão. 34. ”Most films are really little more than stage plays with more atmosphere and action. I think that the scope and flexibility of movie stories would be greatly enhanced by borrowing something from the structure of silent movies where points that didn't require dialog could be presented by a shot and a title card. (...) I know I've tried to move in this direction in all of my films but never to an extent which has satisfied me“. (Tradução do autor) 36 Na hipótese de considerarmos que os fantasmas do Overlook existem apenas na cabeça de seus moradores, é peculiar que os fantasmas de Jack lhe forneçam bebida em um hotel que retira todo o álcool no dia do fechamento. Caso aceitemos que o hotel possui fantasmas que estão tentando impelir Jack a cometer assassinato, a escolha pela bebida como maneira de torná-lo sugestionável também sugere a fraqueza de Jack em relação ao álcool. Ainda assim, é curioso que seu alcoolismo no filme seja aceito como fato por praticamente todos os críticos quando o assunto é tratado mais como uma reverência ao livro do que um ponto importante de seu desenvolvimento. Por fim, mesmo que não tenha matado o Overlook e tenha mudado sensivelmente a maneira com que Jack morre, Kubrick manteve viva a idéia geral da vitória da racionalidade sobre o animal. Quando Jack passa ao controle dos fantasmas do hotel, no livro de King, se tornando apenas uma espécie de besta com sede de sangue, ele acaba se esquecendo da caldeira. A vitória final, então, é de Danny que conseguiu distraí-lo por tempo suficiente para que a explosão não pudesse ser evitada35. No filme, a maneira com que Kubrick deixa clara a transformação de Jack em um ser bestial após sua saída da despensa é pelo fato de que tudo que ele fala passa a ser a repetição de conhecidas linhas retiradas de desenhos animados e programas populares de televisão. Depois, ao entrar no labirinto, ele começa gritando incessantemente pelo nome de Danny até só conseguir emitir grunhidos indiscerníveis. Novamente, a vitória final é da inteligência de Danny, que consegue ter a esperteza de esconder suas pegadas e fazer com que o pai se perca no labirinto, onde acaba morrendo de frio. Além da quase inevitável comparação com o mito do Minotauro, a besta presa no labirinto de Teseu, este final mostra a mesma vitória da razão sobre o instinto, do racional sobre o animalesco, tema tão caro ao judaicocristianismo e à psicanálise explicitado na resolução do livro. 35. Ainda que Danny esteja em transe quando foge para o terceiro andar, e possamos dizer que Tony é o grande responsável por distrair Jack, a esta altura já sabemos que o amigo imaginário do garoto é apenas mais uma de suas visões do futuro, na verdade dele mesmo dali alguns anos. Então, podemos dizer que é ele próprio o responsável pela vitória final sobre o hotel. 3 A ADAPTAÇÃO 3.1 As oposições narrativas O trabalho de confrontar a adaptação cinematográfica de um livro com sua fonte original pode ser feita a partir de duas abordagens iniciais. Como apontado por Xavier (2003), o crítico pode se ater à esfera da tradução, buscando em recursos particulares ao cinema a reprodução de convenções únicas à literatura. Esta forma é, ainda hoje, preferida por alguns críticos, em especial quando vêem no filme uma representação fiel do livro. A segunda abordagem, preferida pelo autor e seguida neste trabalho, é a que busca o ponto máximo de interseção entre as duas formas de contar uma história: a narrativa. Entende-se que enfrentar as obras no que elas possuem de comum permite que o analista imprima suas impressões pessoais e ponha sua assinatura na análise, ao mesmo tempo em que o obriga a apoiar seu trabalho em questões mais concretas. Se fôssemos nos ater à análise fílmica, apenas, haveria uma preocupação em buscar as unidades que estruturam a obra de Kubrick. Nossa atenção estaria voltada para ítens que dessem significado à narrativa e que pudessem esclarecer o processo de construção destes significados. No entanto, quando passamos à esfera da comparação com sua fonte original, nossa atenção passa à esfera da busca pelos encontros e desvios entre as duas narrativas. O trabalho de desconstrução descritiva do filme proposto por Casetti e di Chio (1994) continua sendo necessário, mas não é mais o ponto de apoio do trabalho. Estudar o filme e o livro enquanto narrativas estanques, dentro do possível, é um primeiro passo importante, pois seria inútil tentar comparar as duas narrativas se não entendemos como elas se estruturam. Mas o objetivo final é entender os pontos de contato dessas narrativas e, a partir disso, tratar das opções feitas pelo cineasta, como elas se relacionam ao trabalho original e quais suas implicações na obra final. Xavier (2003) propõe que se encare este confrontamento a partir de certas oposições: fábula/trama, mostrar/contar e épico/dramático. Estas questões amplas e gerais nos parecem um ponto de partida interessante para ver como Kubrick e King pretendem nos contar os infortúnios da família Torrance. 3.1.1 Fábula/trama Como sugerido no capítulo anterior, filme e livro são rigorosamente os mesmos no que se trata da fábula, i.e., da história 38 que é contada. Jack Torrance se muda com a mulher e o filho para um hotel nas montanhas do Colorado para ser seu zelador por cinco meses, período em que o local fica fechado devido ao rigoroso clima da região. Eventualmente, ele começa a interagir com fantasmas que acabam lhe convencendo que deve matar sua família. O nível da trama é onde se encontram as maiores diferenças, e de onde costumam surgir as críticas à visão de Kubrick. Xavier irá descrever a trama como ponto onde “a questão central não é a história em si, mas o modo como o filme tece a narrativa e nos traz os dados que nos permitem tomar consciência do que se trata” (XAVIER, in CAMARGO, 2003). A história como contada por King demora-se em monólogos interiores e flashbacks para melhor construir as personalidades de seus personagens. Jack teve um pai abusivo e alcoólatra, e tem, ele próprio, um passado de problemas envolvendo seu alcoolismo. Wendy odeia a mãe, que insiste em lhe mostrar como não tem capacidade de criar seu filho, assim como guarda certo medo de Jack. Danny consegue ver o que se passa na cabeça de outros, mas frustra-se por ainda não ser capaz de entender quase nada. O filme de Kubrick, por outro lado, conta uma história linear, com começo, meio e fim. Não há a preocupação de desenvolver motivações. Wendy e Danny, de uma maneira geral, apenas reagem aos acontecimentos, enquanto Jack já chega ao hotel em um estado mental que lhe torna capaz de cometer estas atrocidades [e como ele chegou a este estado não interessa à narrativa]. Como disse o diretor Jack chega ao hotel psicologicamente preparado para cometer seu ato homicida. Ele não precisa muito mais para que sua raiva e frustração se tornem completamente incontroláveis. Ele está amargurado por sua falha como escritor. Ele está casado com uma mulher por quem tem apenas desdém. Ele odeia seu filho. No hotel, à mercê de seu poderoso mal, ele rapidamente fica pronto para preencher seu sombrio papel. (KUBRICK, apud CIMENT, 1982)36. Isso dito, no entanto, a ordem dos acontecimentos como descrita por Kubrick é bastante fiel ao livro. Especialmente se desconsiderarmos os flashbacks por serem apenas artifícios literários para a construção do caráter dos personagens, a trama se desenrola 36. “Jack comes to the hotel psychologically prepared to do its murderous bidding. He doesn't have very much further to go for his anger and frustration to become completely uncontrollable. He is bitter about his failure as a writer. He is married to a woman for whom he has only contempt. He hates his son. In the hotel, at the mercy of its powerful evil, he is quickly ready to fulfill his dark role”. (Tradução do autor) 39 da mesma maneira e, até certo ponto, com o mesmo ritmo37 no livro e no filme. Assim, a grande diferença está no tratamento dos personagens, o que a esta altura já deve ter ficado bastante óbvio visto que é a este nível que costumam se restringir as críticas desfavoráveis de fãs do livro e do próprio autor quanto à adaptação de Kubrick. 3.1.2 Mostrar/contar Este é o ponto em que a comparação torna-se mais nebulosa, porque esta é uma diferenciação complicada no cinema. Na literatura, o que se aponta é a diferença entre a descrição de uma cena, onde muito tempo [no sentido do tempo gasto pelo leitor] é dedicado ao detalhamento de algo estático ou próximo disso, e o narrar os acontecimentos de maneira resumida [algo como “passaram-se dois anos, tempo em que João e Maria se casaram e tiveram dois filhos”]. No cinema, tal distinção é um pouco mais complicada. Certamente, pode-se apelar a vários artifícios para indicar a passagem de tempo, inclusive a inserção de letreiros e legendas que indiquem uma elipse temporal [algo que Kubrick utiliza em O Iluminado]. E, por outro lado, a câmera pode-se demorar em longas panorâmicas que servem praticamente como uma descrição do que se está vendo, como nos trabalhos do diretor russo Andrei Tarkovsky (1932-1986). No entanto, a descrição de uma cena na literatura pode ser vista como uma quebra na narrativa. Ainda que, obviamente, seja necessário um narrador para fazer essa descrição, a relação do leitor com o livro permite que ele enxergue essa descrição como um fato pontual e não relacionado à evolução da narrativa. Já no cinema, embora uma primeira apreciação possa dizer que a câmera mostra, na verdade tudo que se passa na tela será entendido como parte da narração. Assim, a decisão de um diretor de se demorar em mostrar cenas sem ação será vista como deliberada para tornar a narrativa lenta e, talvez, levar o espectador a alguma espécie de reflexão. Ou mesmo, ainda, para se maravilhar com locações muito bonitas. O editor Tom Rolf, ao falar de seu trabalho com o diretor Martin Scorsese em Taxi Driver38, fala sobre como aprendeu o efeito deste tipo de recurso. Uma coisa que [Scorsese] me ensinou, e que eu nunca tinha me dado conta antes [...] [é que] por se demorar em um 37. A questão do ritmo das duas narrativas será melhor discutida na última parte deste capítulo. 38. Taxi Driver, EUA, 1976. Drama, com Robert de Niro. 40 enquadramento por bastante tempo [...] o público olha para aquilo e se pergunta “por que eu estou olhando para essa imagem, por um tempo tão longo?”, e então ele começa a reinvestir na cena. É como uma segunda vez, como um atleta ganhando fôlego novamente, e você olha para isso com uma nova perspectiva39. Por estarmos tratando de uma adaptação, podemos aproveitar para supôr as razões por trás de algumas dessas decisões. No caso de O Iluminado, Kubrick usa bastante o close no rosto dos personagens, o que, em conjunção com a música, permite a interpretação de que ele busca passar ao espectador uma idéia da confusão e estresse por que está passando o personagem40. De qualquer jeito, podemos dizer que, ainda que muitos críticos reclamem da falta de ação e exagero de cenas apenas ambientais, o filme de Kubrick é muito mais sumário do que o livro de King, com suas longas descrições de pensamentos e fluxos de consciência. 3.1.3 Épico/dramático Neste ponto, novamente, o filme e o livro se encontram de maneira plenamente satisfatória. King apresenta um clássico narrador onisciente em terceira pessoa, capaz de entrar na cabeça de todos os personagens em um dado momento e supostamente detentor de uma visão dos acontecimentos desapegada de seus personagens. E o filme nos carrega por uma narrativa em que poderia-se dizer, até, que não há narrador. Como comentado anteriormente, é inegável o papel da câmera como narrador. Mas exceto pelas elipses temporais apontadas por legendas sobre um fundo preto [e quase sempre intensificadas pela repetição da imagem da fachada do Overlook cada vez mais soterrado na neve], esse narrador não se apresenta diretamente como um intermediário para o espectador. Assim, as duas obras recaem sobre o que Xavier denomina o modo dramático, ou aquele em que “somos colocados diante da cena, aparentemente sem mediações” (XAVIER, in CAMARGO, 2003, p. 73). A este, se opõe o modo épico, em que “a figura do narrador se põe 39. “One thing [Scorsese] taught me, something I'd never realized before [...] by hanging on a shot for a long time [...] the audience then looks at it, and they say 'what am I looking at this image for, for such a long time?'. And then they start reinvesting into the shot. It's like a second time around, like an athlete getting his breath again. And you look at it from a different perspective”. Trecho extraído do making of de cópia em DVD. (Transcrição e tradução do autor) 40. O papel da música é novamente abordado no ítem 3.4.1. 41 claramente entre nós e os acontecimentos como mediador cuja voz nos resume o ocorrido” (XAVIER, in CAMARGO, 2003, p. 73). E embora este seja mais comum à literatura, onde podemos ter um personagemnarrador, também ocorre no teatro e no cinema, através da narração escrita ou oral, da voz-over41. 3.2 Descrição de cena Um ponto repetido à exaustão neste trabalho é a utilização por parte de King dos monólogos interiores e fluxos de consciência para informar ao leitor o que se passa na cabeça dos seus personagens naquele momento. Na última parte deste capítulo iremos falar sobre algumas técnicas utilizadas por Kubrick para tentar passar um pouco dessas sensações a seus espectadores. A fim de melhor ilustrar a diferença entre as duas linguagens neste ponto, vamos descrever aqui a cena em que o antigo zelador, Grady, abre a porta de despensa para que Jack possa sair e matar sua família. No segundo anexo desta monografia, colocaremos a tradução da mesma cena como está no livro de King. A escolha desta cena em específico se dá pela sua brevidade, tanto no filme quanto no livro, o que facilita o trabalho de descrição. E também pelo papel crucial que este momento tem em ambas as narrativas, de confirmar que há fantasmas no Overlook, já que quando Grady abre a porta não há outra explicação possível para que Jack tenha saído da despensa. É interessante notar, no entanto, que em ambos os casos, é só a voz de Grady que aparece. Os dois autores escolheram por manter a possibilidade de ser tudo apenas a loucura de Jack ao não mostrar o antigo zelador quando ele abre a porta e sai da despensa. 3.2.1 Cena: Jack na despensa42 Duração: 195” Número de enquadramentos: 2 Enquadramento 1 (75”) – PM Zoom out Jack ronca enquanto dorme sobre sacos de mantimentos na despensa. Ouve-se batidas à porta e Jack acorda, aparentando desorientação. Novas batidas à porta. Jack começa a se levantar e, com uma cara de dor, leva a mão ao pé direito. 41. Aquela narração com uma voz fora de cena e fora da diegese, mesmo que seja de um personagem contando sua própria versão de uma história. 42. Cenas retiradas da cópia em DVD, lançada no Brasil pela Warner Bros. 42 Jack: Wendy? Com certo eco, ouve-se a resposta: (fora de cena) Grady: É Grady, sr. Torrance. Delbert Grady. Jack, com uma cara de surpresa, se apoia em algumas prateleiras e começa a se levantar. Jack: Grady? Eu... Grady? Eu... Grady, ããã, (caminhando até a porta) Travelling lateral para a esquerda Jack: Olá Grady. (chega à porta e se apóia nela) (fora de cena) Grady: Sr. Torrance, eu vejo que você não conseguiu dar conta do negócio ... Enquadramento 2 (120”) – PP Câmera fixa De perfil, Jack olha para a porta da despensa. (fora de cena) Grady: que discutimos. Jack fica ereto, dá um passo para trás e olha a porta com uma cara consternada. Jack: Não precisa jogar na cara, sr. Grady. Vou lidar com aquela situação assim que eu sair daqui. (fora de cena) Grady: Irá mesmo, sr. Torrance? Eu me pergunto. (Jack fica irritado) Eu tenho minhas dúvidas. Eu e outros estamos achando que você não está empenhado de verdade. Que você não tem o estômago para isso. (Jack sorri ironicamente) Jack: Só me dê mais uma chance para provar isso, sr. Grady. É tudo que peço. (Olha para a porta, esperando por uma reação. (fora de cena) Grady: Sua mulher parece ser mais forte do que imaginamos, sr. Torrance. Com algo mais de... recursos. Parece que ela levou a melhor sobre você. (Jack parece cansado) Jack: Por ora, sr. Grady. Apenas por ora. (fora de cena) Grady: Receio que você tenha que tomar conta deste problema da maneira mais severa possível, sr. Torrance. Receio que isto seja a única coisa a ser feita. Jack: Não há nada que eu espere com maior prazer, sr. Grady. (fora de cena) Grady: Você dá sua palavra quanto a isso, sr. Torrance? (Jack balança a cabeça afirmativamente, lambendo os lábios) (enfaticamente): Jack: Lhe dou minha palavra. (sorri) Ouve-se o barulho do trinco da porta sendo aberto. Jack sorri, satisfeito. 3.3 Análise comparativa Dada a escolha pela análise voltada primariamente à narrativa, e de essa escolha se dar pelo fato de a narrativa ser comum às duas mídias a serem enfrentadas, parece lógico que se escolha como ponto 43 de partida para esta análise o estudo específico daquela. Assim, iremos elencar pontos em que os encontros e divergências das duas histórias nos pareçam importantes, à luz do que a narratologia aponta como essencial à construção de uma narrativa. A ordem da análise não se dá na mesma ordem em que foi efetuada, mas sim na ordem que parece melhor servir ao entendimento da construção das duas narrativas. O propósito é que a análise se desenvolva como um texto único, apenas itemizado a fim organizacional e estético. 3.3.1 A intriga Uma narrativa será usualmente designada como a descrição de uma ação. Uma maior refinação pode ser feita no sentido de dizer que a ação precisa se desenrolar em um tempo único, e envolver um ator. No entanto, como bem notam Jean-Michel Adam e François Revaz, em seu A análise da narrativa, de 1996, ainda que essenciais, as duas coisas sozinhas não bastam para garantir a unidade da ação. A ação de uma narrativa precisa, por assim dizer, de uma razão de ser. Ela precisa existir a fim de evidenciar uma transformação de uma situação inicial em uma situação final. No entanto, para usar o exemplo de Adam e Revaz (1997), isso ainda não é o suficiente, pois uma receita de bolo descreve exatamente isto: um estado inicial [os ingredientes], um estado final [o bolo pronto], e a transformação que ocorre para se chegar de um ao outro. Assim, surge o formato clássico da intriga, separado em três estágios distintos que aqui trataremos como exposição, nó e desenlace, e que correspondem aos três atos com que se costuma identificar a narrativa teatral e cinematográfica. Temos, então, um começo, um meio e um fim: Pode-se interpretá-los em moldes mais precisos dizendo que as causas e as intenções são o princípio dessa ação; que os efeitos destas causas e as dificuldades que se encontram na execução das intenções são o seu meio; e que o desenlace e a resolução destas dificuldades são o fim da ação”. (LE BOSSU, apud ADAM e REVAZ, 1997, p. 77). Remetendo à questão da fábula e da trama citadas anteriormente, não será difícil supor que tanto o livro de King quanto a versão de Kubrick para o cinema mantém a mesma estruturação da intriga: a ida da família Torrance para o hotel Overlook (exposição), o surto homicida de Jack (nó) e sua morte, seguida da fuga da família (desenlace). 44 3.3.2 A seqüência narrativa No entanto, a maneira com que Kubrick resolveu apresentar o desenrolar da história é diferente à do livro. Podemos, então, remeter a diferença na maneira com que ambos desenvolvem a trama da história à questão da seqüência narrativa. Adam e Revaz (1997) irão nos apresentar o esquema canônico de construção de uma seqüência narrativa: – – – – – Pn1: Pn2: Pn3: Pn4: Pn5: situação inicial; nó desencadeador ação ou avaliação; desenlace; situação final; Se tomarmos ambas as narrativas no nível de suas intrigas, esta construção de seqüência poderia ser apontada como comum às duas. No entanto, um filme e um romance43 podem ser reduzidos a uma série dessas seqüências, combinadas de maneira a fazer a intriga se desenrolar. Encarando as duas obras a partir desta referência, suas semelhanças desaparecem. O esquema de combinação de seqüências narrativas utilizado por King pode, tranqüilamente, ser identificado com o que Adam e Revaz (1997) designam de encaixe-engaste: “uma nova ação seqüência inicia-se antes de a anterior terminar. A ação é interrompida por uma seqüência episódica. Depois do fim deste episódio, a primeira seqüência é retomada e concluída” (PROPP, apud ADAM e REVAZ, p. 87). King utiliza uma narrativa em que cria uma expectativa no leitor sobre o que irá acontecer e, quando a situação aproxima-se do desenlace, interrompe a narrativa começando a próxima ação. Em alguns casos, esta próxima ação resolverá a anterior (como quando descobrimos o que houve com Danny no quarto 217 apenas quando sua mãe o encontra, catatônico, em frente a uma escada), em outros casos ela será retomada depois desta quebra. A idéia desta superposição é, dentro do possível, tornar o desenlace algo presumido a partir da situação final. Já a narrativa de Kubrick é quase toda de encadeamento-adição, em que uma seqüência começa com o fim da outra. Embora haja casos em que ele use o recurso do encaixe-engaste para criar suspense 43. Ou qualquer outra forma de narrativa literária, em especial o conto, que é a forma do estudo acadêmico por excelência. 45 [como na sua versão da mesma resolução da visita de Danny ao quarto mal-assombrado], suas seqüências costumam ser solucionadas antes que a próxima ação comece. 3.3.3 Personagens Casetti e di Chio (1994), em seu guia para uma análise cinematográfica, propõem três esferas de interpretação dos personagens: enquanto pessoa, enquanto função e enquanto actante. À narratologia, interessa a terceira classificação, que permite uma análise ampla sobre a posição dos personagens dentro na narrativa e como eles participam de seu desenrolar. O modelo básico utilizado nos dias de hoje é aquele proposto por Algirdas Julien Greimas, conforme descrito por Adam e Revaz (1997), e que estabelece seis papéis fundamentais para os actantes44. Definir todas as possíveis esferas de aplicação destes papéis aos atores de uma fábula mereceria um trabalho inteiro, e de maior fôlego do que aquilo que aqui propomos. Melhor, nos parece, é apresentar os papéis já aplicados aos personagens da história em questão. Os dois primeiros papéis, sem os quais não existe a narrativa, são o sujeito e o objeto. Aqui podemos nos valer da definição de Casetti e di Chio (1994, p.184): “O Sujeito se apresenta como aquele que se move até o Objeto para conquistá-lo (dimensão do desejo), e por sua vez como aquele que, ao se mover na direção do Objeto, atua sobre ele e sobre o mundo que o rodei (dimensão da manipulação)”45. No caso de O Iluminado, o sujeito é, sem sombra de dúvida Jack. É ele quem faz a história acontecer e é sua transformação de pai de família em psicopata homicida que merece atenção narrativa. A definição do objeto é um pouco mais delicada e varia em certo ponto nas duas obras. Na obra de King, podemos dizer com razoável conforto que o objeto que Jack busca é Danny, já que são as capacidades extrasensoriais do garoto que o hotel está tentando conseguir através dele. No filme, no entanto, como a influência dos fantasmas não parece tão 44. Neste trabalho, trataremos de apenas quatro destes personagens, que se aplicam às histórias analisadas. Além deles, é importante destacar a existência de outros dois: o adjuvante, aquele que ajuda o sujeito a alcançar seu objeto, cujo papel costuma ser utilizado como apoio cômico à história; e o opositor, aquele que se opõe ao sujeito e sua busca pelo objeto. Quando estes personagens estão presentes, o tipo de relação que caracteriza a história é “de luta, ou poder” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 72). 45 “El Sujeto se presenta como aquel que se mueve hacia el Objeto para conquistarlo (dimensión del deseo), y a la vez como aquel que, moviéndose hacia el Objeto, actúa sobre él y sobre el mundo que lo rodea (dimensión de la manipulación)”. (Tradução do autor) 46 importante e, assim, Jack parece apenas estar sofrendo de um simples surto psicótico, o objeto de seu desejo se torna uma entidade um pouco mais abstrata, que é sua família. Numa esfera um pouco mais ampla do que a relação direta sujeito/objeto, passamos à idéia de destinador e destinatário. Como seu nome sugere, o destinador é aquele que imbui o sujeito do saber que lhe permite ir em busca do objeto que deseja. O sujeito existe, dentro da narrativa, a partir do que lhe passa o destinador. Já o destinatário é a quem o sujeito deve entregar o objeto, normalmente mediante uma recompensa. Voltando ao nosso objeto de estudo, em específico ao livro de King, temos o Overlook ocupando ambos os papéis. É o hotel que cria para Jack uma visão paranóica sobre a necessidade de disciplinar sua família, e portanto lhe fornece o conhecimento e até mesmo os meios para que consiga alcançar o objeto desejado (Grady não só abre a porta para que Jack saia da despensa, mas lhe deixa o taco de roque que irá utilizar para seus crimes). Ao mesmo tempo, é o hotel quem quer Danny morto para poder se fortalecer com seu dom. Em troca, oferece a Jack a sensação de que lhe fornecerá os dados de uma história que usará para escrever um clássico da literatura norte-americana. . O Overlook não queria que eles fossem embora e [o próprio Jack] não queria que eles fossem. Nem mesmo Danny. Talvez ele fosse uma parte disso, agora. Talvez o Overlook, como o grande e errante Samuel Johnson que era, tinha lhe escolhido para ser seu Boswell46. Você está dizendo que o novo zelador escreve? Muito bom, contrate ele. Já é tempo de contarmos nosso lado. Vamos nos livrar da mulher e do seu filho ranhento primeiro, no entanto. Não queremos que ele se distraia47. (KING, 2001, p. 425) Este ponto é bastante importante porque, mesmo que aceitemos que na versão cinematográfica de fato existem fantasmas no hotel a atuar sobre Jack, seria muita boa vontade de nossa parte propor tais papéis actanciais ao Overlook, ou mesmo considerá-lo como um 46. James Boswell foi um autor inglês do século XVIII cujo trabalho, em sua maioria, se focava em biografias de eminentes figuras do cena literária da época com quem convivia, de tal maneira que seu sobrenome sobreviveu na língua inglesa como um termo para um companheiro constante ou um observador. Seu último e mais conhecido trabalho foi a biografia The Life of Samuel Johnson, sobre um dos maiores nomes da literatura inglesa da época. 47. “The Overlook didn't want them to go and he didn't want them to go either. Not even Danny. Maybe he was a part of it, now. Perhaps the Overlook, large and rambling Samuel Johnson that it was, had picked him to be its Boswell. You say the new caretaker writes? Very good, sign him on. Time we told our side. Let's get rid of the woman and his snot-nosed kid first, however. We don't want him to be distracted”. (Tradução nossa) 47 personagem ativo da história. Dessa maneira, o esquema tangencial e o tipo de relações nas duas histórias é completamente diverso. Ainda dentro do esquema actancial como proposto por Adam e Revaz (1997), no caso do livro temos uma relação de comunicação [de saber]: um sujeito [Jack] busca alcançar um objeto [Danny], incitado pelo saber que lhe é conferido por um destinador [Overlook]. Seu objetivo é entregar este objeto a um destinatário [também o Overlook], em troca de uma recompensa [se tornar o biógrafo da história do hotel]. Já no filme temos a relação mais simples de todas, que é a de desejo ou de procura [de querer]: aqui temos apenas um sujeito [Jack] buscando alcançar um objeto [sua família]. No entanto, ainda no que tange os personagens e seus papéis dentro da narrativa, podemos apontar uma importante semelhança entre livro e filme no nível da intriga. Mais especificamente, no que tange a questão da tensão dramática, “noção puramente semântica que não deve se confundir com o nó desencadeador da construção da intriga” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 68) e que remete à existência de uma situação problemática nos diferente estágios do desenvolvimento narrativo, as duas versões são rigorosamente iguais. Os três estágios da narrativa se mantêm problemáticos, isto é, a tensão se faz presente em toda a narrativa. Na situação inicial, a relação familiar é bastante problemática. A transformação por que passa Jack é totalmente problemática e o grande ponto de criação de tensão da narrativa. Por fim, a situação final é, ainda, problemática, pois o que temos é uma família traumatizada e sem perspectivas econômicas muito boas devido à morte do pai psicopata. Para completar, podemos dizer que a transformação por que passa Jack é de ordem disjuntiva, ou seja, é uma transformação que “visa separar o sujeito de estado do objeto de valor (inicialmente reunidos)” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 75). 3.3.4 Focalização Por fim, julgamos interessante apontar as disparidades entre os tipos de focalização escolhidos pelos dois autores. Adam e Revaz (1997) apontam três possibilidades de focalização na hora de escolher a voz que narra a ação. Uma primeira leitura poderia identificar, na obra de King, uma focalização zero, ou neutra, dado que o “narrador não adota nenhum ponto de vista particular e dá ao leitor uma informação completa” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 100). 48 De fato, o narrador do livro O Iluminado é onisciente, com um ponto de vista não intrusivo e que varia de personagem para personagem. No entanto, não podemos dizer que o narrador e, por conseqüência, o leitor “sabem mais do que qualquer outro ator da diegese” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 100). Embora o narrador tenha a capacidade de nos mostrar o que se passa na cabeça de cada um dos personagens, em um dado momento, só ficamos sabendo da totalidade de certos fatos (como que Jack havia, de fato, adiantado o relógio durante um debate para prejudicar seu aluno gago; ou que Tony, na verdade, é uma visão do próprio Danny alguns anos mais velho) quando estes mesmos personagens os confrontam. A narrativa de King, portanto, será designada como de focalização interna variada, isto é, aquela em que “o narrador restringe [...] a informação ao ponto de vista [...] de vários atores” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 100). O caso da narrativa fílmica de Kubrick, por outro lado, não deixa dúvidas quanto a tratar-se de uma focalização externa. É indiscutível que “o leitor-expectador sabe menos coisas do que os atorespersonagens” (ADAM e REVAZ, 1997, p. 100) e que não pode saber o que se passa em suas cabeças, exceto através do exercício da mais absoluta suposição. 3.4 Breve análise fílmica Ainda que este trabalho se proponha, primeiro e principalmente, a analisar o trabalho de adaptação no ponto em que a linguagem fílmica e literária se encontram, e com plena consciência das advertências feitas por Bordwell, acreditamos que a interpretação é parte indelével do trabalho do analista. Seria, portanto, um pouco de covardia não dedicar algum tempo para debruçar-se sobre o filme numa tentativa de explicitar algumas de suas escolhas estilísticas e como estas se relacionam à fonte original. 3.4.1 A música Tendo em mente o grande tempo gasto por King com os monólogos interiores, descrições por vezes até excessivas das preocupações e obsessões de seus personagens, o uso que Kubrick faz da música nos parece extremamente peculiar. A cena que descrevemos é um bom exemplo disso. A ação imediatamente anterior ao diálogo é absolutamente banal, em que mostra Wendy chegando ao local de trabalho de seu marido para conversar com ele. No entanto, Kubrick utiliza uma música que provoca um crescente de tensão na 49 cena até o momento em que Jack arranca da máquina a página que estava escrevendo e volta sua atenção para a mulher. A música, então, volta a ser apenas ambiental, e a tensão se transfere para a esfera do diálogo, através do qual Jack deixa transparecer toda sua exasperação com a presença de Wendy. Mesmo sem o conhecimento do trabalho de King, mas em especial a partir desta referência, não seria demasiado arriscado oferecer a hipótese de que a música, nesta cena, estabelece uma relação direta com o estado mental de Jack. O próprio diretor nos permite fazer este tipo de interpretação quando fala sobre como passou ao filme dicas sobre o passado dos personagens. No que concerne coisas como o pai de Jack e a situação da família como um todo, no filme eu introduzi algumas dicas. Por exemplo, [...] quando o gerente do hotel pergunta para Jack, ao final da entrevista de emprego, "Você acha que sua mulher e filho vão gostar do hotel?" Jack lhe dá um olhar que parece dizer "Que pergunta desnecessária", então ele sorri e diz: "Eles vão ficar fascinados". Eu acho que existem muitas sugestões pequenas e sutis deste tipo, que tentam passar ao espectador, ainda que inconscientemente, as mesmas evidências que King passa tanto trabalho para tentar insinuar em seu romance48. (KUBRICK, in FOIX, 1980) Conforme Wendy se aproxima de sua mesa, e a música cresce em tensão, o que de fato está crescendo é a irritação de Jack com a presença da mulher. O sentimento é suportado até atingir um ponto máximo, em que precisa ser exteriorizado: Jack arranca a folha da máquina, ao mesmo tempo que a música chega em seu ponto máximo de tensão e pára. Daí em diante, a música passa ao nível ambiental e Jack expressa sua irritação verbalmente no diálogo. Outro papel importante da música é servir para chamar atenção dos espectadores para situações paranormais, em especial à iluminação de Danny e Halloran. Na cena em que o cozinheiro recebe o chamado mental do garoto e descobre que há algo de muito errado no Overlook, não há diálogo algum exceto pela fala do apresentador do telejornal. O momento em que o chamado mental de Danny chega a Halloran é evidenciado por um zoom in agudo, fechando a imagem em close no rosto assustado do cozinheiro, em conjunção com o surgimento súbito de um silvo agudo que ouviremos repetido em 48. “With regard to such things as Jack's father and the family situation on the whole, in the film we introduced a few clues. For example, [...] when the hotel manager asks Jack, at the end of the job interview, "Do you think your wife and son will like the hotel?" Jack gives him a look that apparently means "What an unnecessary question", then he smiles and says: "They'll be fascinated." I think there are a great many slight and subtle suggestions of this sort, which attempt to give the viewer, albeit unconsciously the same evidence that King attempts so laboriously to insinuate into his novel”. (Tradução do autor) 50 várias outras partes do filme. 3.4.2 Temporalidade Finalmente, um exercício que não se atém à narrativa em si, mas que ainda assim se apóia em um ponto de encontro das duas obras, é o de comparar suas estruturas em relação ao tempo que é gasto nas suas determinadas partes. Por uma questão puramente cronológica, nos propomos a ir do livro ao filme, encontrando no filme os pontos de quebra da narrativa literária49. King separa sua narrativa em cinco partes, todas terminadas em pontos bem definidos e que possuem representações no filme de Kubrick. Estas partes ainda podem, baseando-se apenas em questões de extensão temporal extra-diegética, ser separadas em três blocos. A primeira parte tem 7 capítulos ao longo de 80 páginas, seguida de uma segunda com 6 capítulos em 62 páginas. As duas partes também têm um ponto temático em comum: mostram a narrativa até o momento em que os Torrance, enfim, são deixados sozinhos no hotel. O segundo bloco engloba as próximas duas partes, ambas com 11 capítulos. A terceira com 175 páginas, a quarta com 134. Novamente, há um ponto temático em comum: pode-se dizer que estas duas partes mostram a narrativa até o momento em que os Torrance deixam de estar sozinhos no hotel. Na verdade, a quarta parte termina no momento em que Danny finalmente entende a gravidade da situação e entra em contato telepático com Halloran, implorando que o cozinheiro faça algo para lhes tirar de lá. A quinta e última parte é o desenvolvimento final da narrativa, até o epílogo em que Danny e Wendy vão passar o verão em um alegre resort onde Halloran arranjou emprego como cozinheiro-chefe. Esta última parte é a mais longa de todas, com 20 capítulos que se estendem por 214 páginas. Se buscarmos a equivalência desta separação na narrativa de Kubrick, veremos uma igual preocupação com o desenlace da história. As duas primeiras repartições do livro são repetidas na primeira duas partes do filme: a entrevista de Jack e as opiniões de Danny e Wendy sobre a mudança para o hotel; e o dia do fechamento, até o momento 49. Este aviso se faz necessário porque o filme, com suas elipses temporais apontadas textualmente, convida à desconstrução apoiada nessas indicações. Embora este exercício tenha sido feito como parte do processo de análise da obra, no entanto, consideramos que ela seria redundante e em nada adicionaria no trabalho de comparação proposto. 51 em que os Torrance são deixados sozinhos tomando conta do estabelecimento. A isso, Kubrick dedica, respectivamente, 7min30s e 13min00s50. A terceira e quarta partes, assim como no livro, tomam um pouco mais de tempo mas nada muito significativo em relação à duração total do filme: 18min00s e 11min00s, respectivamente. É curioso notar, neste ponto, que depois das duas primeiras partes as legendas que indicam as elipses temporais deixam de ser descritivas – A ENTREVISTA e DIA DO FECHAMENTO51 – e passam a ser puramente temporais – TERÇA-FEIRA, SÁBADO etc. A partir daqui, também acaba a coincidência entre as separações do livro e do filme: a terceira e quarta partes literárias ocupam pouco mais que quatro das separações temporais apontadas por Kubrick, indo desde UM MÊS DEPOIS até o início da QUARTA-FEIRA. Por fim, a última parte toma mais da metade dos 117 minutos totais do filme, até o início dos créditos finais. São 64min00s, que vão do início da QUARTA-FEIRA até o fim das QUATRO DA TARDE do mesmo dia. É interessante que, ainda que tenha que lidar com muito menos elementos do que o livro, Kubrick tenha dedicado tão mais tempo ao desenlace da história do que King. Decisão que, certamente, se encaixa com sua escolha por não perder tempo com o desenvolvimento do passado dos personagens. Se decidiu trazer os personagens do nível da relação de comunicação para o nível mais simples da relação de desejo, não devemos estranhar sua decisão por dedicar a maior parte do tempo ao desenlace desta relação, enquanto o livro dá maior atenção ao estabelecimento das relações de Jack com o Overlook. 50. O tempo é aproximado, contado a partir da edição lançada em DVD no Brasil pelo estúdio Warner Brothers, com uma margem de erro na casa dos décimos de minuto. 51. As legendas são oito, por ordem: THE INTERVIEW (“a entrevista”), CLOSING DAY (“dia do fechamento”), A MONTH LATER (“um mês depois”), TUESDAY (“terça-feira”), SATURDAY (“sábado”), MONDAY (“segunda-feira”), WEDNESDAY (“quarta-feira”) e, finalmente, 4 PM (“quatro da tarde”). (Tradução do autor). CONSIDERAÇÕES FINAIS É quase desnecessário dizer que, ao se transformar um romance em um filme de aproximadamente duas horas é preciso abrir mão de alguns elementos da narrativa original. Não há apenas a questão do tamanho para se levar em conta, mas também o tipo de relação do espectador com o meio: no caso do livro, pode-se largá-lo e voltar a ler algum tempo depois; no cinema, o diretor precisa conceber uma história que vá prender a atenção do espectador do começo ao fim. Usualmente, se dirá que esta transformação significará uma simplificação da história. Uma generalização que, como costuma acontecer nestes casos, tem ao menos um fundo de verdade. No caso em que estudamos, foi exatamente isto que aconteceu: ao deixar de usar o hotel como um personagem ativo da narrativa, Kubrick a transformou de uma relação baseada no saber para uma relação mais primitiva, baseada no querer. No entanto, estaríamos muito mais perto da verdade ao identificar esta transformação como uma decisão estilística alinhada às noções de cinema do diretor/autor do que a questões inerentes à passagem da linguagem literária à cinematográfica. Afinal de contas, Kubrick manteve todos os elementos mais básicos da história de King em sua versão final, mudando simplesmente a maneira com que um destes elementos é tratado. Esta foi, certamente, uma das descobertas mais interessantes da nossa investigação. Ainda que se mantenha o cerne da narrativa original, uma mudança na hierarquia que governa os elementos desta narrativa é o suficiente para que os fãs da história original sintam que o diretor traiu o material de onde tomou sua obra. O filme de Kubrick, afinal de contas, com todas suas falhas aos olhos dos fãs do romance de King e a despeito de todas as críticas desfavoráveis que recebeu à época do lançamento, se sustenta como uma das obras seminais do cinema de horror. É apenas quando o colocamos frente ao livro de King que as diferenças surgem, e podemos identificar a origem de tanta reclamação por parte do próprio autor e de seus fãs. Também nos parece inegável, depois desta análise, que Kubrick não desconsiderou os aspectos mais psicológicos da obra de King, mas sim que preferiu buscar novas maneiras de transmiti-la do que através do diálogo ou do susto barato. Os longos takes, o uso extensivo da steadicam para passar uma sensação de claustrofobia dentro do hotel, a música, foram alguns dos elementos puramente cinematográficos que o diretor escolheu para tentar fugir da teatralização da narrativa. 53 Acreditamos, ainda, que a análise, em especial considerando o fim a que se propõe, reforça a defesa de David Bordwell (1995) por uma prática da crítica cinematográfica mais calcada em fatores concretos e cabíveis de debate e revisão de colegas, como estudo em nível científico a que se propõe ser. Em especial, a aplicação da narratologia ao produto cinematográfico nos parece bastante adequada como opção metodológica para uma poética aberta do cinema. REFERÊNCIAS ADAM, Jean-Michel; REVAZ, Fronçoise. A Análise da Narrativa. Lisboa: Gradiva, 1997. BLOOM, Harold. Dumbing down American readers. The Boston Globe, 24 de set. 2003. Disponível em: http://www.boston.com/news/globe/editorial_opinion/oped/articles/200 3/09/24/dumbing_down_american_readers/. Acesso em 21 nov. 2005. BORDWELL, David. El Significado del Filme: Inferencia y retórica em la interpretación cinematográfica. Barcelona: Ediciones Paidós, 1995. CASETTI, Francesco; DI CHIO, Federico. Cómo Analizar un Film. Barcelona: Ediciones Paidós, 1994. CIMENT, Michel. Kubrick on The Shining.1982. Disponível em: http://www.visual-memory.co.uk/amk/doc/interview.ts.html. Acesso em 18 ago. 2005. COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: espetáculo, narração e domesticação. São Paulo: Scritta, 1995. ECO, Umberto. Como se Faz uma Tese. São Paulo: Perspectiva, 2002. FOIX, Vicente Molina. Mystery is more powerful in art than in life. 1980. Disponível em http://www.archiviokubrick.it/english/interviews/content/index.html?ma in=1980mystery. Acesso em 27 nov. 2005. JEFFRIES, Stuart. Dark rider. The Guardian, 18 de set. 2004. Disponível em http://books.guardian.co.uk/departments/crime/story/0,6000,1306991, 00.html. Acesso em 25 out. 2005. KAUFFMANN, Stanley. Lost in the Stars. 1968. Disponível em http://www.krusch.com/kubrick/Q16.html. Acesso em 30 de out. 2005. KING, Stephen. On Writing: A Memoir of the Craft. New York: Simon & Schuster, 2000. KING, Stephen. The Shining. New York: Simon & Schuster, 2001. SPIGNESI, Stephen J. O Essencial de Stephen King. São Paulo: Madras, 2003. STANLEY Kubrick Biography by FilmMakers Magazine. Disponível em http://www.filmmakers.com/artists/kubrick/biography/. 2002. Acesso em 18 nov. 2005. STANLEY Kubrick. Wikipedia. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Stanley_Kubrick. Acesso em 18 nov. 2005. TRUFFAUT, François; SCOTT, Helen. Hitchcock/Truffaut: entrevistas, edição definitiva. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 1994. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In CAMARGO, Luis (org.). Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Senac, 2003. ANEXOS ANEXO A: Capítulo 48 do livro O Iluminado (Tradução do autor) Capítulo 48 – Jack (p. 577-584) Ele estava sentado no chão da despensa com suas pernas à sua frente, uma caixa de bolachas Triscuit entre elas, olhando para a porta. Ele estava comendo as bolachas uma a uma, sem saboreá-las, apenas comendo porque tinha que comer algumas coisa. Quando ele saísse dali, ele ia precisar da sua força. Toda ela. Neste exato momento, ele pensou que nunca havia se sentido tão miserável em toda sua vida. Sua mente e corpo juntos criavam uma escritura de dor em letras grandes. Sua cabeça doía terrivelmente, o pulsar enjoativo de uma ressaca. Os sintomas de sempre estavam lá, também: o gosto em sua boca era como se um ancinho de esterco tivesse passado por ela, seus ouvidos zuniam, seu coração tinha uma batida extra profunda, como um tomtom. Somavase a isso uma dor feroz nos seus ombros de se jogar contra a porta e sua garganta parecia descascada devido à gritaria inútil. Ele tinha cortado sua mão direita no trinco da porta. E quando ele saísse daqui, ele ia botar pra quebrar. Ele mascou os Triscuits um por um, se recusando a ceder ao seu maldito estômago, que queria vomitar tudo. Ele pensou nas Excedrins1 em seu bolso e decidiu esperar até que seu estômago tivesse se acalmado um pouco. Não havia sentido em engolir um analgésico se você ia logo vomitar ele de volta. Precisa usar seu cérebro. O celebrado cérebro de Jack Torrance. Você não é o camarada que um dia ia viver da sua sabedoria? Jack Torrance, autor de sucesso. Jack Torrance, renomado dramaturgo e vencedor do New York Critics Circle Award. John Torrance, homem de letras, estimado pensador, vencedor do prêmio Nobel aos setenta por seu vigoroso livro de memórias, Minha Vida no Século Vinte. Tudo a que se resumia qualquer daquelas porcarias era viver de sua sabedoria. Viver de sua sabedoria é sempre saber onde estão as vespas. Ele botou outra Triscuit em sua boca e a mordeu. Tudo se resumia, ele supôs, à falta de confiança dos outros nele. Sua falha em acreditar que ele sabia o que era melhor para eles e como conseguir isso. Sua mulher tinha tentado usurpá-lo, primeiro por meios (quase) justos, então por injustos. Quando as pequenas objeções e insinuações dela tinham sido negadas por seus próprios argumentos bem arrazoados, ela tinha virado o garoto contra ele, 1. Analgésico em comprimidos. Mascá-los compulsivamente é um dos hábitos dos tempos de alcoolismo que Jack reativa depois de ir morar no Overlook. tentado matá-lo com uma garrafa, e então o tinha trancado, de todos os lugares, na porra da despensa. Ainda assim, uma pequena voz interior o importunava. (Sim mas de onde veio a bebida? Não é esse, realmente, o ponto central? Você sabe o que acontece quando bebe, você sabe de sua amarga experiência. Quando você bebe, você perde sua sabedoria). Ele arremesou a caixa de Triscuits até o outro lado da sala. Elas acertaram a prateleira de enlatados e caíram no chão. Ele olhou para a caixa, limpou os lábios com sua mão, e olhou para o relógio. Eram quase seis e meia. Ele tinha estado aqui por horas. Sua mulher o tinha trancado aqui e ele estava aqui por merda de horas. Ele era capaz de começar a simpatizar com o pai. A coisa que nunca havia se perguntado, Jack agora se dava conta, era exatamente o que havia levado o papai a beber pra começo de conversa. E sério... quando você chegava àquilo que seus alunos gostavam de chamar o grosso da merda... não havia sido a mulher com quem se casou? Uma esponja de mulher covarde, sempre se arrastando silenciosamente pela casa com uma expressão de martírio condenado na cara? Uma corrente em volta do pé de Papai? Não, não uma corrente. Ela nunca havia tentado ativamente transformar Papai em um prisioneiro, do jeito que Wendy havia feito com ele. Para o pai de Jack deve ter sido mais como o destino do dentista McTeague ao final do grande romance de Frank Norris: algemado a um homem morto no fim do mundo. Sim, isso era melhor. Mental e espiritualmente morta, sua mãe tinha sido algemada a seu pai pelo matrimônio. Ainda assim, Papai havia tentado agir direito conforme arrastava seu corpo pútrido através da vida. Ele tinha tentando criar as quatro crianças sabendo a diferença entre certo e errado, entendendo disciplina, e acima de tudo, respeitando seu pai. Bom, eles haviam sido ingratos, todos eles, incluindo ele próprio. E agora ele estava pagando o preço; seu próprio filho tinha virado um ingrato, também. Mas havia esperança. Ele iria sair dali de algum jeito. Ele iria castigar os dois, severamente. Ele iria estabelecer um exemplo para Danny, para que chegasse o dia em que Danny estivesse crescido, um dia em que Danny saberia o que fazer melhor do que ele próprio havia sabido. Ele se lembrou do jantar de domingo quando seu pai havia dado uma surra em sua mãe na mesa... o quão horrorizado ele e os outros haviam ficado. Agora ele podia ver o quão necessário aquilo havia sido, como seu pai tinha estado apenas fingindo a embriaguez, como seu raciocínio estava rápido e vivo o tempo todo, procurando pelo menor sinal de desrespeito. Jack engatinhou até as Triscuits e começou a comê-las de novo, sentado à porta que ela havia trancado traiçoeiramente. Ele imaginou exatamente o quê seu pai havia visto, e como havia pegado ela por sua atuação. Teria ela rido da sua cara por trás da mão? Mostrado a língua? Feito gestos obscenos com a mão? O que quer que tivesse sido, ele a tinha pegado, e tinha castigado ela severamente. E agora, vinte anos depois, ele podia finalmente apreciar a sabedoria de Papai. É claro que você poderia dizer que Papai havia sido bobo de casar com tal mulher, de ter-se algemado àquele corpo para começo de conversa... e um corpo desrespeitoso, por falar nisso. Mas quando o jovem casa apressado ele deve se arrepender com calma, e talvez o Papai do papai houvesse casado com o mesmo tipo de mulher, de maneira que o papai de Jack também tivesse casado com uma inconscientemente, assim como Jack havia feito. Exceto pelo fato que a sua esposa, ao invés de se satisfazer com o papel passivo de ter destruído uma carreira e aleijado a outra, tinha optado pela peçonhenta função ativa de tentar destruir sua última e melhor chance: se tornar um membro da equipe do Overlook, e talvez subir... todo o caminho até a posição de gerente, um dia. Ela estava tentando lhe negar Danny, e Danny era seu ingresso de admissão. Aquilo era idiota, é claro – por que eles iriam querer o filho quando podiam ter o pai? -- mas funcionários seguidamente têm idéias idiotas e aquela era a condição que havia sido feita. Ele não seria capaz de argumentar com ela, ele podia ver isso agora. Ele tinha tentado argumentar com ela no Salão Colorado, e ela tinha se recusado a ouvir, tinha lhe acertado a cabeça com uma garrafa por seu trabalho. Mas iria haver outra vez, em breve. Ele iria sair daqui. Ele subitamente segurou o fôlego e inclinou a cabeça. Em algum lugar um piano estava tocando boogie-woogie e pessoas estavam gargalhando e batendo palmas no ritmo. O som era abafado através da pesada porta de madeira, mas audível. A música era “There'll be a Hot Time in the Old Town Tonight”. Suas mãos se apertaram indefesas em um punho; ele teve que se conter para não atacar a porta com eles. A festa havia começado de novo. A bebida iria fluir livremente. Em algum lugar, dançando com algum outro, estaria a garota que tinha se sentido tão enlouquecidamente nua sob seu vestido de seda. “Você vai pagar por isso”, ele uivou. “Malditos sejam vocês dois, vocês vão pagar! Vocês vão receber seu maldito remédio por isso, eu prometo! Vocês-” “Ei, ei, agora”, uma voz calma disse no lado de fora da porta. “Não precisa gritar, velho camarada. Você parece estar preso”. Jack caiu sobre os pés. “Grady? É você?” “Sim, senhor. De fato, sou. Você parece estar trancado”. “Me deixe sair, Grady. Rápido”. “Eu vejo que o senhor mal conseguiu lidar com o problema que discutimos, senhor. A correção de sua mulher e filho”. “Foram eles que me trancaram. Puxe o trinco, pelo amor de Deus!” “Você os deixou trancá-lo?” A voz de Grady registrou uma surpresa bem criada. “Oh, oras. Uma mulher com a metade do seu tamanho e um pequeno garoto? Dificilmente demonstra que você é feito para nível de gerência, não é?” Um pulso começou a bater nas molas de veias da têmpora direita de Jack. “Deixe-me sair, Grady. Eu vou lidar com eles”. “Vai mesmo, senhor? Eu me pergunto”. A surpresa bem criada foi substituída por arrependimento bem criado. “Me dói dizer que eu duvido. Eu – e outros – chegamos à pensar mesmo que você não está nisso de coração, senhor. Que você não tem... o estômago para isso”. “Eu tenho!” gritou Jack. “Eu tenho, eu juro!” “Você nos traria seu filho?” “Sim! Sim!” “Sua mulher iria se opôr a isso de maneira forte, sr. Torrance. E ela parece ser... algo mais forte do que havíamos imaginado. Algo mais cheia de recursos. Ele certamente parece ter se dado melhor que você”. Grady soltou um riso nervoso. “Talvez, sr. Torrance, nós devêssemos ter lidado com ela este tempo todo”. “Eu vou trazê-lo, eu juro”, disse Jack. Seu rosto estava contra a porta, agora. Ele estava suando. “Ela não vai se opôr. Eu prometo que ela não vai. Ela não terá como”. “Você teria que matá-la, eu temo”, disse Grady friamente. “Eu vou fazer o que tiver que fazer. Só me deixe sair”. “Você dá a sua palavra nisso, senhor?” insistiu Grady. “Minha palavra, minha promessa, meu voto sagrado, o que diabos você quiser. Se você-” Ouve um estalo raso enquanto o trinco era puxado para trás. A porta tremeu e abriu um quarto de polegada. As palavras e o fôlego de Jack pararam. Por um momento ele sentiu que a própria morte estava do outro lado da porta. A sensação passou. Ele sussurrou: “Obrigado, Grady. Eu prometo que você não irá se arrepender. Eu prometo que não vai”. Não houve resposta. Ele se deu conta de que todos os sons haviam cessado exceto pelo frio assovio do vento lá fora. Ele empurrou a porta da despensa; as dobradiças guincharam de leve. A cozinha estava vazia. Grady tinha ido embora. Tudo estava quieto e congelado além do frio reflexo branco das luzes fluorescentes. Seus olhos se prenderam no grande pedaço de madeira para cortes onde os três haviam comido suas refeições. Apoiado nele estava um dos tacos de roque da cabana de equipamentos. Ele olhou para aquilo por um bom tempo. Então uma voz, muito mais profunda e poderosa que a de Grady, falou de algum lugar, todo lugar... de dentro dele. (Mantenha sua promessa, sr. Torrance) “Vou manter”, ele disse. Ele ouviou uma bajução servil em sua voz mas foi incapaz de controlá-la. “Vou manter”. Ele caminhou até o pedaço de madeira e colocou sua mão no cabo do taco. Ele levantou-o. Balançou-o. Ele assoviou vigorosamente pelo ar. Jack Torrance começou a sorrir. ANEXO B: Listagem de cenas retiradas na versão internacional Cenas cortadas da versão internacional de The Shining: Traduzido de http://www.visual-memory.co.uk/sk/films/cutshining.htm (1) Parte da entrevista de Jack no Overlook Hotel. (2) Exame de Jack por uma médica (Anne Jackson) (3) Parte do passeio pelo Overlook com Ullman, Jack e Wendy, inclusive o diálogo no Colorado Lounge e o começo da cena onde Ullman mostra a Jack e Wendy o local onde fica o hotel e a cena antes da primeira aparição de Dick Halloran, quando Ullman mostra o Gold Room. (4) Parte da conversa de Danny com Halloran. (5) O fim da primeira cena no hotel, quando Wendy leva o café para Jack. (6) Imediatamente após a cena em que Wendy e Danny exploram o labirinto, uma seqüência foi cortada na qual Wendy aparece trabalhando na cozinha enquanto um âncora de TV fala sobre uma busca nas montanhas por uma mulher desaparecida. (7) Letreiro de “Terça-Feira” (8) Wendy e Danny assistindo ao Verão de '42 na televisão. (9) Diálogo do meio da cena em que Jack vai ao Gold Room pela primeira vez. (10) Wendy aparece chorando e falando consigo mesma sobre a possibilidade de descer a montanha no trator de neve, e chamar os guardas florestais. (11) Dick Halloran mais uma vez tenta falar com o Overlook, chamando pelos guardas florestais. (12) Letreiro de “Oito da manhã” (13) Halloran pergunta a uma comissária que horas o vôo deve chegar em Denver, ela diz que as 8h20 e ele confere o relógio. Jack aparece escrevendo no salão do Overlook. O avião de Halloran pousa no aeroporto. Larry Durkin (Tony Burton), dono de uma garagem, responde seu telefones e fala com Halloran, que pede um trator de neve para ir ao Overlook. (14) Uma cena inteira em que Danny está assistindo a um desenho do PapaLéguas. Depois de falar com Danny, Wendy pega o taco de beisebol e sai do quarto para ir ao salão do Overlook. (15) O começo da cena em que Wendy encontra as páginas de Jack cobertas com a frase “Pouco riso e muito siso fazem de Jack um infeliz”. (16) Uma mesa em que aparecem esqueletos sentados com uma garrafa de champanhe e copos.