Untitled - Marcello Cerqueira

Transcrição

Untitled - Marcello Cerqueira
Marcello Cerqueira
O Sapato de
Humprey Bogart
Contos, crdnicas, lembrangas
a
Edi tora Rev
Copyright
@ 2001
by Marcello Cerqueira
Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta
publicagdo poderi{ ser reproduzida, seja por meios mecinicos, eletronicos ou via c6pia
xerogrdfica, sem a autorizaEao pr6via da Editora'
Revisdo
Rogdrio Corrda Jr.
Roberto teixeira
Capa
Cristina Rebello
Impressdo
(em papelOffSet 75g, apos paginagio eletrdnica em tipoTimes New Roman, c' l2114)
Ebal
CIP-Brasil. Catalogagdo na Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI'
C395s
2^ ed.
Cerqueira, Marcello, 1939O sapato de Humprey Bogart: contos, crOnicas,
lembrangas / Marcello Cerqueira. -2u ed. - Rio de
Janeiro: Revan,200l.
160p.
ISBN 85-7106-221-8
l.
Contos brasileiros'
I'
Tftulo.
0l -0514.
cDD - 869.93
cDU - 869.0(81)-3
050401
060401
010603
Para Aluizio Leite
Sum6rio
Nota do autor ..........
Nota do autor para a segunda
...'...... t
edigdo
..... 11
Bogart........
O sapato de Humprey
...... 19
O amigodeHemingway...........'...
.'.......34
O leildo
...'..........'..... 49
A arte e a arte de empinar papagaios
........'.... 57
A metade exilada
.."" 69
O agente internacional..................
.................... 75
A prontincia
..........""79
Serrar por baixo
..............'..'."' 86
Pras mogas
.'......97
O batizado do navio
'.....'..."' 111
Disfarga e chora
............. 116
A metade maior
...'............"" I25
O encontro.
....... l3g
Mateus Ros6 ..........
""" 143
O espido e o cigarro
...................... 9
O regime de banhos em Oak Park, Illinois..'....'................""' 147
Bibliografia do autor
""'
I57
Nota do autor
Este 6 um livro de contos. N6o foi M6rio de Andrade quem escreveu que conto 6 tudo que o autor diz
que 6 conto?
Achando-se Augusto Calheiros doente e sem recursos, Almirante, a maior patente do R6dio, recolheu,
em um livro de ouro, um conto de rdis de cada artista
para o amigo: intitulou-o "Livro de contos".
W. Somerset Maugham, em suas autobiogr6ficas
Confissdes (The Summing Up), deftne Serviddo Humana, n6o como uma autobiografia, mas um romance
biogr6fico: fato e ficgio acham-se inextricavelmente
misturados.
Neste livro, fato e ficgdo vdo juntos compondo o
enredo dos contos. Na medida em que as hist6rias v6o
sendo narradas, elas se libertam do autor e n6o raro ganham vida pr6pria. Mesmo lembrangas que habitam
sonhos, quando contadas, viram fic96o. A partir de um
acontecimento real, seguidamente a fantasia comanda
a narragdo, e o autor nadapode fazer.
Nestes contos lembro nomes, cantores, cores, amigos, viagens, exilio; e os tempos duros da repressdo. 56o
pedagos de vida. Vida vivida ou vida criada, nem sei.
Marcello Cerqueira
Santa Teresa, 16 de novembro de 1996
Nota do autor para a segunda edigdo
"O Sapato..." sai em segunda edigdo pela Revan,
mais uma contribuig6o de meu velho amigo e editor
Renato Guimardes. Alguns personagens reclamaram
presenga ("VocO se esqueceu de mim..."), outros queriam
figurar melhor nas lembrangas ("Voc€ me bota em cada
uma..."). Fazer o qu6? Pensam que o escritor tem controle sobre os personagens? Ledo engano. Como na vida,
os personagens sdo enigmas a decifrar. Alguns, obra de
pura ficAdo (existe ficgdo nas lembrangas?), insistem
em que ndofizeram isso ou aquilo. Como contest6-los?
n ficAao. 6 como disse.rn noiu i primeira edig6o: nada
posso fazer! As vezes, por certo lamentar. Amigos que
habitam nossas vidas atravessaram o rio. Aluizio Leite
atravessou o rio e nos deixou lembrangas e saudade. A
segunda ediEdo desse livrinho tamb6m a ele 6 dedicada. Vida que segue.
Nova Friburgo, 1 6
9
#1:r:'::::;::;;;i
"Prendam os suspeitos de sempre',
dofilme Casablanca
O sapato de HumpreJ Bogdrt
O "ponto" no bairro da Consolagdo, em SZo paulo,
atd que era seguro. 56 os dois companheiros que 16 se
encontravam - sexta-feira sim, sexta-feira ndo _ 6 que
dele sabiam, escolhido por ambos e desconhecido de
terceiros. Al6m disso, as regras eram precisas: toler6ncia de apenas cinco minutos da hora aprazada, que era
meio-dia em ponto. Eventual atraso implicava transferir para a segunda sexta o pr6ximo encontro. A repressdo n6o tinha como "levantar o ponto". por que ent6o
Zd Raimundo ficava t6o aporrinhado quando tinha de
"cobrir o ponto?"
Era por causa do sapato.
O "ponto" ficava bem em frente a uma sapataria
que ostentava na vitrine um lindo sapato social de couro, duas cores (branco e vinho), cadargo malrom-escu-
ro, com trabalhos em baixo relevo nos bicos. 26
Raimundo naniorava o sapato mas n6o tinha coragem
de compr6-lo, era muito caro, a grana era curta e vinha
toda da solidariedade de simpatizantes e amigos do partido. A colheita era magra. Recolher as contribuig6es e
distribui-las aos aparelhos exigia paci€ncia e coragem
do pessoal das "finangas". N6o, absolutamente. Era dinheiro da resistOncia, n6o se prestava a luxos. Mas como
resistir ao apelo do sapato olhando-o sexta-feira sim,
sexta-feira nlo? A solugdo era trocar de ,,ponto',. Tem-
1l
po era o que ndo faltava para quem atuava na clandestiniduA. contra a ditadura militar nos anos setenta' Pouco havia afazer.O "milagre" econ6mico os isolara irremediavelmente. As pris6es se sucediam. As a96es desesperadas para conseguir fundos praticadas pelas organizagles radicais expunham indistintamente todos os
advers6rios do regime, fossem da luta armada ou ndo'
26 Raimundo, comuna velho, sabia que era uma linha
polftica suicida. Com ela jamais concordara. Mas n6o
condenava os jovens que se aventuraram na luta armada. A responsabilidade de tudo era dos golpistas, dos
militares que rasgaram a Constituigdo e botaram um ma-
rechal no governo e depois outro, e ainda um terceiro'
Mas o pior 6 que ele tamb6m pagava pela radicalizag5o
embora para ela ndo tivesse contribuido e mesmo a ela
tivesse se oposto. Logo depois do golpe, procurara
convencer velhos camaradas como Marighela, M6rio
Alves, Cdmara Ferreira e outros da inviabilidade daquele tipo de embate. Qual. Tudo inftil. Sacrificaramse em vdo. E com eles uma geragdo de jovens m6rtires'
Deram tudo, at6 a vida parafazer um pais que habitava
os sonhos. Como o sapato na vitrine.
Bom, 'tava resolvido. No pr6ximo "ponto" comunicaria ao Azedinho sua inabal6vel decis6o. Era a linha
justa. A posiglo correta. Trocar de "ponto". Fugir d teniaEdo. Afinal, Hemingway, na Paris dos anos 20, paru
ser escritor n6o se contentara com apenas uma refeigdo
diaria e at6 mesmo aprendera a evitar, na volta do estudio
para casa, as ruas com restaurantes e padarias exatamente para fugir da tentaEio? E o "Pai-nosso" ndo se
arremata com o "nIo nos deixeis cair em tenta96o...?"
Depois do artigo do Luis Maranhdo, "Cristdos e Mar1.2
xistas de mSos dadas", nem ficaria mal citar o "Pai-nosso". Ou ficaria? Resolvidfssimo da silva. Trocar de "ponto". Baixar em outra freguesia.
"Mas por qu6?" Quis saber o companheiro.
26 Raimundo n6o teve coragem de revelar o verdadeiro motivo. No 26 a coragem era demais at6 para
pequenas mentiras.
"Bom, quer, dizer, o 'ponto', voc6 sabe..."
Ndo, Azedinho n6o sabia:
"Sei o qu6, companheiro? Sei o qu6?"
"A gente 't6 aqui hd muito tempo", escapuliu-se o'ZE.
Argumento que o outro repeliu:
"Mais uma raz6o para ficar. O 'ponto' t6 provado
que 6 bom. Seguro. Ningu6m sabe. Ningudm viu a gente. Ou viu?"
26 Raimundo definitivamente n6o sabia mentir:
"Nlo, ningudm viu", afirmou descorogoado.
"Ent6o 6 o qu6? Desembucha, cara!", falou
Azedinho jd irritado panfazerjus ao nome. "Tem coi26. Ou n6o tem?"
Pronto. Olha o 26 encurralado. Apoia-se num p6.
Apoia-se no outro. Coga o lombo. Assoa o nariz. Ajeita
o n6 da gravata. Passa a m6o nos cabelos.
Azedinho, m6os na cintura, olha que olha. Z€ desa ai,
saba e desabafa:
"E o sapato, companheiro", confessa.
Agora, 6 o outro que n6o entende nada.
"Sapato, Z€? Sapato? Que hist6ria 6 essa de sapato, hem 26?"
"E aquele ali." O dedo apontao lindo sapato navitrine.
Azedinho olha o sapato, olha o 26, olha o sapato e
encara o companheiro:
13
"T0 vendo Z6.f,um sapato. Ali6s, sapataria vende
sapatos, ou n6o vende Ze? O que 6 que tem, afinal, esse
raio de sapato?"
A resposta custa a sair. E quase uma confissdo que
Z6 ananca do peito:
"E que eu fico namorando o sapato, mas n6o tenho
coragem de compr6-lo: 6 muito caro, nio v6?"
"T6 certo, 26. Mas o que tem de especial esse sa-
pato pra botar voc6 tdo ourigado, querendo at6 trocar
um 'ponto' t6o seguro?"
"E bonito, eu gosto, e pronto."
Nada disso. ZE ndo sabia nem disfargar.
Azedinho queria mais:
"Nio pode ser s6 isso, Z!.Temmuitos sapatos bonitos por af. Que ser6 que justifica tanta gamaglo?"
26 ndo tem mais jeito, se rende, mesmo:
"E que foi esse tipo de sapato que calgou o Humprey
Bogart naquela cena do Casablanca."
Pronto. 26 havia revelado sua fraqueza. Indigna
de um militante, 6 certo. E com as responsabilidades de
dirigente nacional do Partido. Curtido em todas as pelejas: das cadeias do Estado Novo aos campos de batalha da Guerra Civil espanhola quando lutou, com
Roberto Morena, nas brigadas internacionais, ao lado
das forgas republicanas, em Barcelona. Casablancaeta
a sua fraqueza. Quanta vez j|tinha visto o filme. Vezes
sem conta. Conhecia os didlogos de cor. E o que era
mais incrfvel: embora soubesse com precisio o desenrolar do filme, ainda se sulpreendia com as cenas, como
se fosse sempre a primeira vez, cada espet6culo uma
revelagdo. Sua outra fraquezaera sua mulher,'Ierezinha.
Mas ela sabia da sua paixio pela pel(cula. E tamb6m
T4
adorava o filme. Eram as duas paixdes do 26. Numa
viagem i Unilo Sovi6tica conseguiu, gragas d boa vontade do int6rprete, incluir Casablanca no roteiro da volta. Ndo existia o bar do Rick. Nem Sam tocava "As
time goes by" para Ingrid Bergman. Sequer p6de cumprimentar o militante checo Lazslo ao lado de quem
lutara contra Franco. Mas estavam todos 16. Inclusive
presos ficaram os suspeitos de sempre. A luta continua.
"Vem c6,26. Como 6 que voc6 sabe que o sapato 6
igual ao que Bogart usava: Casablanca 6 preto-e-branco, e o sapato da vitrine 6 bicolor."
"Oh Azedinho, 6 simples e vocd mesmo respondeu a pergunta que fez. Se o filme fosse colorido voc6
nio faria a pergunta n6o 6 mesmo?"
"Mas o filme n6o 6 colorido, 26. YocO nlo pode
saber"
"Posso, posso. Como 6 que eu nlo sei? Sei, sim. E
justo no momento em que Bogart reencontra Bergman
em Casablanca e esmaga com o sapato - com o sapato,
ouviu bem, Azedinho, com o sapato -, esmaga o cigarro e a c6mera d6 um rdpido close no sapato. VocO nlo se
lembra?"
Ndo, Azedinho nflo lembrava. Mas tamb6m quem
lembraria um pormenor desses?
Quase derrotado, ainda arrisca:
"Com relagdo ao tipo do sapato nlo discuto mais.
id6nticos
56o
e pronto. Mas a co4Z6, como 6 que voc6
pode saber da cor?"
26 ndo se d6 por vencido:
"Eu sei."
"Sabe como?"
"Eu sinto, companheiro."
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O argumento fora acachapante, Azedinho levou
preciosos segundos para se recuperar. E falouj6 enternecido, era azedo mais no nome:
"Entdo compra, companheiro, compra."
E leva um n6o redondo.
"Compro n6o, companheiro. E muito caro. De jeito nenhum. E contra a linha do Partido. Prefiro trocar
de 'ponto'. Nio ver mais o sapato. Fugir da tentagdo. J6
resolvi."
Mas Azedinho volta d carga. E persuasivo:
"Compra, 26. Que mal pode fazer. Nessa vida que
a gente leva... Olha, amanhd a repressdo pode pegar a
gente e a gente 't6 mortinho da silva. Deixa de bobagem, compra,26, compra. Deixa de ser stalinista..."
Soou como um insulto e um desafio. E, molrer podia morrer, estava preparado, mas stalinista era demais.
Iria pensar no assunto. Despediram-se.
Duas sextas-feiras mais tarde, Zlchegoumais cedo
para experimentar o sapato. Ainda ndo bem decidido' j6
internamente resolvido. Ficou uma beleza no p6. Sairia
calgado para surpreender o companheiro que j6 vinha
chegando. Ia acenar para ele quando um calro d6 uma
violenta freada e dele saltam t€s homens que imediatamente subjugam Azedinho, que n6o tem sequer tempo
de esbogar reagdo de fuga. Algu6m caiu e entregara o
companheiro. A repressdo o seguiu, sabia que iria encontrar caga mais grossa, embora n6o soubesse quem.
"Fala, cachorro, comunista sem-vergonha, cad6 o
outro?"
Azedinho tenso, a metralhadora na cara' os bragos
jd algemados nas costas, meio no ch6o, olhando para a
sapataria, responde tranqi.iilo
l6
:
"Ndo vim encontrar ningudm. 56 estava passeando."
Apanha ali mesmo. O sangue escorre-lhe no rosto.
"Fala, filho da puta. Quer morrer aqui mesmo?"
Azedinho repete: "N6o vim encontrar ningu6m...,'
Uma violenta porrada na boca impede-o de terminar a
frase.
"Leva o filho da puta pro quartel. Vamos ver se 16
ele fala ou nio fala", comandou o chefe.
Nio falou.
26 Raimundo, perdida sua principal ligagdo, acabou caindo ao tentar restabelecer contato com o partido. O "aparelho" estava podre e o Doi-Codi ndo teve
dificuldades em prend€-lo.
Tamb6m nlo falou. Sofreu toda sorte de tortura.
Choque el6trico, caldo, pau-de-arara, cadeira do drag5o, e nada. Sequer informou seu verdadeiro nome. 56
falava o nome que inventara: "me chamo Rick
Casablanca". E mais n6o disse.
Sem receber o telefonema semanal, Terezinha desesperava-se:
"Ele 't6 preso, Marcelo. Eu tenho certeza. A gente
combinou: duas semanas sem telefonar e era pra te procurar que ele caiu."
Despachei habeas corpus pra todas as autoridades
de terra, mar e ar, como gostava de a elas se referir o dr.
Sobral Pinto. O habeas corpus ndo soltava, abolido que
fora pelo AI-5, mas a autoridade coatora ao responder
que o preso n6o tinha direito i medida revelava sua prislo e muitos assim se salvavam.
Coincidentemente, Azedinho e ZE Raimundo estavam presos no Barro Branco. E naturalmente n6o sabiam. A regra era a incomunicabilidade. Mas Azedinho.
t7
preso h6 mais tempo, i6 saia para depor na Auditoria
Militar e por isso j6 lhe dispensavam o capuz que cobria completamente a cabega dos presos. Numa dessas
sa(das cruzou com uma turma de presos ainda
encapuzados. Ndo reconheceu ningu6m, embora ficasse atento aos corpos, ao modo de caminhar. Quem sabe
nio identificava algudm. No fim da fila reconheceu os
sapatos do riltimo preso e munnurou entre dentes:
"OiZe, deixa comigo."
"26, ndo Rick Casablanca."
Nessa mesma tarde, Azedinho me revela, na Auditoria, que Zd Raimundo estava no presidio de Barro
Branco e atendia pelo codinome de Rick Casablanca.
Dia seguinte, impetrei, no Superior Tribunal Milita\ habeas corpus em favor de Rick Casablanca e pouco tempo depois quebrava a incomunicabilidade do
guerreiro.
Ficou feliz ao ver-me, embora procurasse disfargar com um forte aperto de mlo e um solene: "Como
vai o senhorr, doutorr?" cartegando em erres.
E togo querendo saber noticias de Terezinha e das
criangas. Algu6m mais cafra, como 6 que estavam as
coisas? Terezinha estava bem, animosa, corajosa como
sempre, as crianEas, tamb6m, muita gente caindo, abana
pesada, mas a luta continuava.
Z€ seacalma. A expressdo se torna menos tensa. A
visita terminou. Ele se levanta e pergunta:
- Tem algum cinema levando Casablanca?
18
Bajo el agua/ siguen las Palabras.
Frederico Garcia Lorca
O anigo de HemingwaY
Quando Moacir Gato, algo solene como the era
pr6prio, anunciou-me que o Editor tinha um trabalho
para mim, senti o cheiro de solidariedade no ar.
Estava meio clandestino no Rio naquele veranico
de maio de 1965. Voltei parac6,de Sdo Paulo, trazendo
o mesmo nome que 16 usara: Aymor6 Silva Rezende.
Aymor6 com ypisilone, mesmo. Achava que conferia
uma relativa autenticidade ao codinome. De resto, j6
me habituara com o novo batismo. No comeEo, n6o aten-
dia quando me chamavam, percebia que alguma coisa
dizia comigo, mas ainda um pouco longe, ficava atordoado, n6o me ligava naturalmente; depois, foi se tornando mais f6cil, habitual, costumeiro. Incorporei o
nome como espirita incorpora "santo".
O Editor marcou o "ponto" no afamado restaurante Cosmopolita, na Lapa. Pra mim vinha a calhar. Da
pensio "para cavalheiros" na Gl6ria onde me acoitava
at6 o restaurante era um pulo, dispensava at6 a mixaria
do bonde sem falar na excelOncia da cozinha do dito.
Antes mesmo do golpe militar j616 almogara, e mais de
uma vez, com o Editor. E de uma feita com o Editor e o
Poeta, o que rendeu conversa para uma tarde inteira.
Papo ameno em que se devorou um cabrito que devidamente se fazia acompanhar de br6colis ao alho e 6leo,
tudo regado a um saboroso Ddo Terras Altas, vinho tin19
to e generoso sugerido pelo pr6prio senhor Manoel, dono
do estabelecimento.
Versado nas artes da clandestinidade, o Editor j6
me esperava no fundo do restaurante e mesmo sem alarde serviu-me calorosa recepgdo, j6 me chamando pelo
nome adotado.
- Quando soube que tinha voltado, Aymor6, imediatamente coloquei o Moacir na sua captura. E que tenho
precisdo de lhe confiar um trabalho muito importante:
(Cheiro de solidariedade no ar.)
- Mas, antes, vamos pedir. Que tal repetir aquele
cabrito?
- Com o vinho?
- Com o vinho, certamente.
- Cai do c6u, companheiro.
- Ndo precisa cair de tdo longe. Estou a v0-los
enfileirados logo ali naquela prateleira.
Prestimoso, acorre o seu Manoel para colher o pedido do fregu6s ilustre. Mostra-se satisfeito com o repique. "Perfeitamente, perfeitamente. O mesmo da outra
vez". Louvamos a mem6ria do propriet6rio, gabamoslhe a cozinha, elogiamos a dica do vinho, enfim, puxamos o saco do cara pra valer. Relagdes pessoais de emergOncia t6m dessas picardias.
- Antes, seu Manoel,ilguamineral que estou seco.
- Com g6s, ou sem gds?
O Editor me consulta. Meus ombros respondem
tanto faz como tanto fez.
- Com g6s, comanda.
- Com g6s, repelte mecanicamente seu Manoel. E
se abala pra cozinha.
O Editor retoma a conversa.
20
Bem, antes de entrar no trabalho, me d0 suas noticias. As que tenho s6o incompletas' VocO foi"'
me man- Bom, fiquei uns tempos por aqui e logo comegou
dei pra 56o Paulo porque o pessoal do Partido
perto
u .uit e eu senti que a repressdo 'tava chegando
"tarefa"
demais. Fiquei poi ta uns tempos e recebi uma
fora do pais. Sa? pela fronteira com a Bolivia, peguei o
"trem da morte" em Santa Cruze,sabe Deus como, cheguei a LaPaz,"la cumbre del mundo", como os pacefros
se orgulham de dizer
- Como 6 que se deu nas alturas?
bom, neca de
- No comego muito mal. Ar que 6Guarnieri
'tava
pitibiribas. Mas, depois me acostumei.
por 16 e me apresentou ao dono da boate Moulin Rouge'
onde passei a defender uns trocados cantando uns sambinhai, coisa e lousa. A boate era estranhissima' Pra
comegar n6o tinha qualquer iluminaEdo, a ndo ser o fundo doi copos que era florescente. E eventualmente as
lanternas dos gargons pra servir ou apresentar a conta'
dar o troco, essas bossas. Daf que a divisa da boate era:
"Moulin Rouge: donde no se ve... pero se siente" Um
-
achado!
- Veja voc€. E dePois?
- Depois, fui cumprir minha "tarefa" e voltei a Slo
Paulo, desta vez entrando pelo Rio Grande do sul atrav6s da fronteira com o Uruguai. Voei de Praga at6 Santiago, naturalmente com escala em Paris' De Santiago
cruzeia fronteira com a Argentina. Fiquei uns dias em
Mendonza esperando contato, depois Buenos Aires, em
seguida Col6nia. Ndo passei em Montevid6u por quest6es de seguranqa; depois Taquaremb6, Livramento'
Porto Alegre, Sdo Paulo. E 'tou aqui meio amoitado'
2l
-
Otimo. Chegou a prop6sito pois eu tenho uma
oferta irresist(vel pra voc6
(Aumenta o cheiro de solidariedade no ar.)
- Preciso de algudm com conhecimentos de litera_
tura e da obra de Hemingway. Jd comprei a preferdncia
e agora estou negociando os direitos da biografia escrita pelo Hotchner...
- Que era amigdo dele, cortei.
- Pois 6. Mas o representante de Hotchner pede
muito alto, e o contrato proibe a venda em portugal e
nas coldnias portuguesas, onde j6 temos razo6vel dis_
tribuig6o.
- Daf?
- Dai que, al6m da revisdo da tradugdo, que j6 est6
pronta, preciso de uma opinido literi4ria. euer dizer.
Al6m do valor biogr6fico que a obra possa ter, se o texto possui aquele tipo de perman€ncia liter6ria que me
permita assumir os custos do contrato, percebeu?
- Percebi. Mas, vem c6: n5to 6 muita responsabilidade para um mero leitor? Eu at6 posso gostar do texto
mas nio saberia avaliar seu potencial de comercializagdo.
Percebe?
- Percebo. Mas ai o risco d meu. Editar livros 6
correr risco, voc6 sabe. Se o representante do autor n6o
estivesse pedindo t6o alto eu nio teria drividas em comprar logo os direitos. Daf porque procuro outras opini6es. Tenho responsabilidades, outros acionistas, duplicatas em banco. E a ditadura ndo me d6 quartel...
E ria, a bom rir, da piada que safra sem querer.
- Ndo me dd quartel, n6o 6 boa?
Meto minha colher de pau:
22
a pena'
Quartel at6 que d6. Mas s6 que n6o vale
O passadio n6o 6 dos melhores, e a liberdade 6 companheira insepar6vel do homem.
foi
- Oh;, na minha fltima prisdo o passadioden6o
Guarde todo mal. Fiquei "hospedado" no Batalhdo
consideradas. O coronel at6 que me tratou com muita
rancho. Quem me atazanava era
Edo. Compartia do seu
o coronel Pitta, chefe do IPM. Eta homenzinho cacete.
VocO ndo faznem id6ia. Tipo fisico apoucado"'
(Imaginei a cena: o coronel baixinho contracenando
com aquele belo gigante da fala macia e vasta cultura'
Tolo, imaginava que prendera o Editor quando era ele o
prisioneiro. Qual. A vftima era o Senhor da Guerra')
... Apoucado e chato a mais ndo poder' E querendo ser gentil. Ora, gentilezal qualidade quase inata'
As pessoas podem esmerar-se em educa96o, mas gentircziediferente. E pr6pria. Uma certa coisa que vem de
dentro e ilumina o relacionamento entre as pessoas' O
sujeito pode ser educadfssimo, cort€s, at6 cordial, mas
ndo alcangar ser gentil.
(O Editor era educadissimo, cort6s, cordial e gentil
como poucos. Al6m de generoso como Hemingway' sem
ter o g6nio terrivel do escritor. J6 sentia pena do
-
coronelzinho).
- ... Ranheta, ainda tratou com desd6m meu advogado...
(Tamb6m, pudera! O advogado era Heleno Fragoso,
um respeit6vel varapau, al6m de professor em6rito' Era
demais. Pobre do coronel.)
- ... Mas vamos deixar isso pra 16ettatat do nosso
assunto. Quando 6 que vocO pode comegar?
- Quando voc6 quiser. Nlo estou fazendo nada'
23
- Sd comprando feito?
- Nem isso, 'td a perigo.
- A prop6sito, o trabalho 6 importante.
Posso pagar bem...
(Cheirfssimo de solidariedade.)
-... Trouxe algum por adiantamento, depois acer_
tamos o resto. 'TA certo?
- Certo? Certfssimo, corag6o. Muito obrigado. A
prop6sito, de quanto tempo disponho?
- Nem muito depressa que parega medo, nem mui_
to devagar que parega provocagdo, respondeu parodi_
ando Pinheiro Machado.
- Como 6 que eu fago quando terminar?
- Telefona pra mim. A gente marca outro almogo.
-'Te nos conformes.
O Editor levanta-se para sair. Entrepara. Hesita.
Sente falta de alguma coisa.
- O almogo estava bom?
- Otimo.
- O vinho?
- Excelente.
- O papo?
- O de sempre, melhor ndo poderia ser.
- EntSo por que estou sentindo que est6 faltando
alguma coisa?
(Estava sentindo falta do poeta.)
- Nada, companheiro. 'T6 tudo certo. A gente se
vO nas quebradas.
24
il
Alguns dias depois recebo, atrav6s do fiel Moacir,
recado para encontrar-me, dia seguinte, com o Editor,
no restaurante e na hora de costume.
- Hoje, o cabrito vai ser com batatas coradas,
anuncia.
- Por mim, est6 mais que bem, concordo.
- Como vai o trabalho?
- Vai indo, mas ainda nlo est6 pronto.
- Est6 gostando?
- E. O texto 6 bom. Mas Hotchner abusa demasi-
adamente dos adjetivos. Tudo para ele 6 esplOndido,
estupendo, magn(fico: magnificamente, estupenda-
mente, esplendidamente. Ora, faga-me o favor...
Hemingway, segundo os di6logos com o autor, que Hot
declara t€-los cuidadosamente anotado ao longo dos
anos de conviv6ncia, tamb6m calTega nesses mesmos
adjetivos: "tomamos um vinho espl6ndido". Uma linguagem tlo longe do seu estilo enxuto, agressivo, duro
com seus personagens. Sei ndo, ds vezes me parece
que Hotchner faz Hemingway falar como ele. O que
n6o se encaixa no escritor. Com Machado de Assis, a
lingua brasileira liberta-se da portuguesa. De alguma
forma, Hemingway repete Machado. Claro que os
momentos hist6ricos se diferenciam. Hemingway n6o
escreve no ocaso de um regime, mas rompe com o que
ainda resta da estrutura da l(ngua inglesa, e introduz
uma nova linguagem, uma linguagem claramente americana. E precisa se distanciar de Michigan para poder
escrever sobre Michigan. Vai para Paris...
O Editor atalha.
25
E exatamente sobre paris que eu queria lhe falar.
N6o v0 que a Scribner's enviou-me .,paris 6 uma Fes_
ta", o livro p6stumo de Hemingway.
-
- Eu sei. Hotchner 6 que sugeriu a Mary
Hemingway o titulo que teria retirado de uma.onu.rri
com o pr6prio autor quando ele falou da ventura que
fora viver em Paris quando jovem: ,,pois paris 6 uma
festa m6vel".
- Pois 6. Mas tem um fato que n[o se encaixa.
Fago cara de paisagem.
O Editor ndo se conforma.
- VocO n6o pergunta qual d?
- Qual6?
Bagageiros do Ritz teriam entregue a Hemingway
quando voltava da Espanha, em 1957, uma mala contendo anotaE6es manuscritas h6 trinta anos, e que ele
esquecera no Hotel.
-
_E?
-
Ora, trinta menos cinqUenta e sete d6o exatos
vinte e sete. Em 1927, Hemingway ndo tinha dinheiro
nem para passar pela porta do Ritz quanto mais 16 se
hospedar. N6o faz sentido. Ou faz?
- Nlo sei. N6o me lembro.
- Como n6o se lembra? E claro que n6o pode se
lembrar! Quer em 1927; quer em 1957, vocd absolutamente n6o poderia se lembrar.
- Ent6o voc6 me ddrazdo. N6o podia me lembrar,
mesmo.
- Bom, mas do jeito que voc6 falou, parecia que
voc6 estava 15 na ocasi6o. E pela sua idade isso n6o
seria rigorosamente possfvel.
-Pap6 n6o diria isso.
26
-Pap6?
que n6s
-PapdHemingway, caro Editor. Era assim
o cham6vamos.
- N6s?
- Perfeitamente. Tamb6m Ernest.
- Ernest?
- Ou abreviadamente Ernie.
- Ernie?
- Ou Hem. Tamb6m abreviadamente.
- Abreviadamente.
- Abreviadamente. Hadley, sua primeira mulher, o
chamava de Tatie. Creio que ningu6m mais o tratava
dessa forma.
- Dessa forma.
E. Dessa forma. De uma maneira geral todos o
trat6vamos de Pap6, is vezes Ernest ou Ernie.
- Todos a que voc€ se refere...
- Todos os amigos. Os artistas por exemplo. VocO
sabe que ele sustentou por muitos anos um amor plat6nico com a Marlene Dietrich? Sabia que ele s6 a cha-
-
mava de a "Kraut"?
- Repolho?
Conheceram-se a bordo do lle de France, em
1934. e desde ent6o ficaram irresistivelmente apaixonados, mas sem jamais rcalizar fisicamente a paixio.
- Ora...
- E a Bergman?
- Ingrid Bergman?
- Perfeitamente. Ingrid Bergman, sim senhor! Sabia que sua esposa Mary Hemingway, tinha tanto citimes dela que Pap6 ndo the podia pendurar o retrato be-
-
21
lamente autografado na parede de sua finca em Cuba
sem que a mulher ficasse doente de cifmes?
-ft
-
E, e tem mais. De uma feita quando est6vamos
em Milio...
- Est6vamos?
- Sim, em Mil6o, quando Ernest comegou a falar
da "sueca", como a chamava, e que 16 estava a filmar
Joana d'Arc para o Rossellini, aquele idiota que morria
de cirimes do Pap6. Fomos visitd-la, acertamos uma ceia,
mas na fltima hora a Bergman cancelou alegando que
Rossellini fazia questlo da sua presenga na palestra que
iria proferir. Foi uma pena, mas ela deu um jeito de ir
at6 os aposentos de Ernest tomar umdrinkem sua companhia. Alids, Miss Ingrid...
- Miss Bergman, voc6 quer dizer.E mais pr6prio arriscou o Editor.
- N6o. Miss Ingrid, mesmo. Era assim que Pap6 a
chamava. Miss Ingrid, como eu ia falando, jamais aceitou chamar Hemingway de Pap6. "Ndo sinto por ele
sentimentos filiais", dizia. Mas a Dietrich o chamava
de Papd, assim tamb6m Ava Gardner.
"Ava Gardner..."
(Sonhava o Editor.)
- Certa noite estava Hem descansando no Palace
Hotel, em Madrid, isso 16 pelos idos de 1954, quando,
recebe a inesperada visita de Lufs Miguel Dominguin,
j6 esquecido dos coment6rios injustos que Ernest lhe
fizera em um antigo artigo paraaLift.Luis Miguel era
o toureiro mais famoso de Espanha e queria que Ernest
fosse visitar sua garota que se internara por conta de
um terrivel cdlculo biliar.
28
- A garota era Ava Gardner, eu presumo"' que
- Certo. Ela havia aparecido em Os Bandidos
em seus
pap6 considerava o fnico filme bom baseado
livros. Desde ent6o ficaram amigos. Ah! voce precisava ver a recepgio que Miss Ava tributou a Ernest"'
- Tributou...
- Depois dos beijos e abragos travaram um di6logoo
sensacional quando Pap6lhe perguntou como estava
romance com o toureiro.Ia otimamente, disse ela. Estavam juntos h6 dois meses' e ela ndo pescava uma palauru d. espanhol, e ele ndo falava nada de inglOs, e se
entendiam Is mil maravilhas.
- Talvez por isso, conclui, compreensivo, o Editor'
- Por6m o mais sensacional ainda estava por vir'
VocO nem imagina...
- Nem imagino...
- Quando nos aproxim6vamos de Madrid,deErnest
Pablo
mostrou o cimo da montanha em que o bando
se ocultara em Por quem os Sinos Dobram' Os livros,
voc6 sabe, relatam as coisas mais reais do que efetivamente aconteceram. A ponte foi dinamitada, Ernest confirmou. A exploslo do trem vai fielmente descrita' Mas
os personagens, e o que se passava com eles, era por
conta do escritor, embora o relato de Pilar sobre o que
aconteceu em sua aldeia com a chegada dos fascistas
tenha s6lida base em acontecimentos reais' Um dia, safmos do Hotel Felipe II, no alto do Escorial, e nos dirigimos para o cume de sua zona montanhosa' L6, Ernest
n ostrou-nos o riacho em que Pilar lavara os p6s, a gruta
na qual o bando de Pablo vivia e a ponte reconstrufda
ap6s a gueffa, reunindo as pedras que haviam cafdo no
rio depois que os republicanos a dinamitaram;entretan-
29
to, a casinhola de pedra que havia numa das extremidades da ponte e que fora destruida pelo fogo nacionalis_
ta, em 1933, permanecia em estado de ruina como
a
recordar quem vencera a guerra.
(A lembranga da guerra civil espanhola deixava
nosti{lgico o Editor. Sempre que lia sobre as batalhas
torcia pela vit6ria dos republicanos, como se ele pudes_
se mudar o curso da hist6ria. Agora mesmo, lendo
o
livro de Hugh Thomas, The Spanish Civit War; ntro po_
dia abandonar a esperanga de uma virada nu gu".ru.1
- Para mim, eram revelagOes de uma parte da guerra
da qual s6 tomara conhecimento por terceiros. Na
ver_
dade, n6s n6o participamos da guerra em Madrid...
- N6s...?
- Sim. N6s. Ernest servia no Batalhio Lincoln, s6
de norte-americanos. J6 havia escrito A
euinta coruna
e organizado um congresso de Escritores com o objetivo de debater as posig6es dos intelectuais em facl da
guerra. os brasileiros que serviam nas Brigadas Internacionais lutamos na batalha de Ebro. Roberto Morena, Apol6nio de Carvalho, Jos6 Raimundo da Silva.
Vasco Bruno...
- Vasco Bruno, personagem de Erico Verfssimo?
- Perfeitamente. Ele, mesmo.
- Mas o livro do Verfssimo ndo 6 ficgdo?
- E, claro que 6, caro Editor. Mas o que 6 a vida
senlo uma ficgdo piorada?
(O Editor alga o queixo. Olha o teto. Chama o c6u
por testemunha. Fecha-se em copas. Falar o qu6?)
30
ilI
E
Nem bem chegou e j6 o Poeta encontra o Editor'
j6 o encontra atarantado.
Que bicho te mordeu, homem?
- Brifalo.
- Brifalo?
com
- N6o. Ningudm me mordeu' Eu 6 que estava
o pensamento longe.
- Qu6o longe?
- Em KeY West.
West?
- Que raios teu pensamento faziaem Key
- Eu te contei o dia em que Hemingway telefonoume de KeY West?
nada
- N6o, nlo tinha contado. O Poeta n6o sabia
do telefonema.
de Maraj6'
- Pois 6, queria caEar brifalos naa Ilha
sobre cagada de brifaQuase falei do norso entrevero
los na Africa.
Haviam discutido horas. O Editor sustentado que
Hemingw ay cartegara' com nativos, o bffalo que tinha
abatido, a ele cabendo levar o bicho pela cabeEa porque
pesava mais. O Poeta mantendo a versdo que o escritor
uint u d frente tomando w drink enquanto os nativos
dese esfalfavam levando a caEa. o Editor consultara
zesseis compendios e afinal conclufra que assistia razdo ao Poeta.
bffalos em nossas
- Mas a feru desistiu de caqarsaberia
como arran-
praias. Felizmente, porque eu nem
jar a tal cagada.
Bffalos davam fome canina ao Poeta'
- Afinal. vamos ou ndo vamos almoqar?
3l
... de um revds solo parti6 cinco gigantes por la cintura,
como si fueram hechos de habas.
Miguel de Cervantes
O leilao
Os Monteiro G6is e os Almeida Neves seriam para
todo o sempre ineconcili6veis inimigos. Brigabrabique
Jo6o G6is e Possid6nio Neves herdaram dos pais, qui u
herdaram dos av6s, que jd a encontraram feita ,ef"itu
por geraE6es anteriores. Para facilitar a contenda," os pais
colocavam nos filhos os nomes dos av6s e assim suie.sivamente. Ent6o, nada a fazer sendo tocar acizdniapara
adiante, desavenEa que animava a pacata Itaperuni no
ocaso do Estado Novo.
Com a redemocratizagdo, os G6is ingressaram na
UDN e os Neves naturalmente no pSD, ampliando para
o campo da politica a diverg6ncia secular. Se os Neves
iam melhor na politica, tal n6o se dava nos neg6cios. O
gado dos G6is se multiplicava enquanto a lavoura dos
Neves minguava: uma sucessdo de safras ruins levouos d porta da bancarrota. Atrav6s de um preposto, Jo6o
G6is tentou comprar as terras de possid6nio Neves; fe-
lizmente para este, dona Odete Macedo, tambdm do
PSD, escrevente do Cart6rio de Notas. alertou seu correligion6rio de que o pretenso comprador ndo era fazendeiro em Bom Jesus como apregoava e sim ,,homem
de palha" dos G6is. O vardo dos Neves deu uma boa
corrida no Justino, era assim que se chamava o ,.testa
de ferro", arrendando as terras para um certo Diniz de
34
Lages do Muriad por dezr6is de mel coado e confinando-lse, com a familia, no Grande Hotel de Itaperuna,
ainda de sua propriedade. Possidonio nunca havia ligaseu
do muito p*u o hotel, empreendimento com o qual
av6 objetivara incrementar o desenvolvimento da cifadade. N6o era, portanto, do ramo hoteleiro e com o
lecimento do seu coutinho, gerente h6 mais de trinta
anos do hotel, coube-lhe tocar o dito, o que fez mal e
"As desgragas andam juntas", lamentava-se o po-
mal.
bre do Neves.
Mas nem tanto. O PSD de Itaperuna havia apoiado
fortemente o candidato do Partido em Campos, derrotando a UDN, que se empenhou na vit6ria do seu candidato, o Brigadeiro, que tamb6m perdera feio na regido para o marechal Dutra, candidato de Getrilio vargas, deposit6rio do 6dio dos G6is.
O deputado Augusto Saturnino nem bem desembarcou do trem que o levou d capital da Repriblicae i6t
cavou autonzaqdo para a instalaqdo de uma r6dio em
Itaperuna, concessdo que saiu em nome de Possiddnio
Neves, seu estimado coneligiondrio.
Mas n6o era s6 na tradigdo e na politica que as
familias se diferenciavam. No temperamento, tamb6m'
Os G6is eram de natural reservados, retraidos mesmo'
o que de certa forma justificava a fama de soberba que
auorguuu-. Os Neves, por seu turno, eram extrovertidos, alegres, brincalh6es a mais ndo poder' Possiddnio
ent6o era um ntimero, uma com6dia.
Montada a r6dio a poder de empr6stimos que contraiu sem bem saber como iria honrar, o microfone da
emissora expandiu os naturais pendores do seu dono'
Propriet6ri o, sp eaker' conffa-re gta,faz-tudo PossidOnio,
35
ouvinte compulsivo, inspirava-se nos programas
radiofdnicos da Capital para produzir os i.url nu.nu
Itaperuna deslumbrada com a novidade. Mtisica, variedades, consult6rio sentimental, certames, brindes, pro_
gramas de utilidade pfblica, tudo possidOnio Neves
introduziu na Ri{dio Itaperuna.
Os grandes cantores se faziam ouvir na ri4dio.
Possiddnio iniciava a apresentaEdo chamando-os pelo
nome, como se eles estivessem na estaE6o:
"Canta Francisco Alves.,'
E Francisco Alves, o Rei dayoz,cantava,.Adeus,
cinco letras que choram", valsa de silvino Neto que arrancava ldgrimas dos ouvintes; ou..Nervos de Ago", de
Lupicfnio Rodrigues, que unia corag6es abandonados.
"Canta Orlando Silva.,'
E o Rei das Multid6es cantava o samba_cang6o de
J. Cascata e Leonel Azevedo .,L6bios que beijei;. Afi_
nado, Possid6nio, por instantes, acompanhava o cantor
parecendo ao ouvinte que estavam em dueto, o que con_
feria mais autenticidade i apresentaglo. Ao final, o lo_
cutor n6o se furtava de comentdrios como:
"Meu Deus, que mulher ter6 inspirado tao bela
melodia?"
E deixava a pergunta no ar, a drivida pairando:
"Teria sido voc6, minha cara ouvinte?',
E todas se sentiam um pouco respons6veis pela
inspiragdo do poeta. Parceiros na arte de compor. Mu,
tambdm sofriam quando o locutor chamava:
"Canta Dalva de Oliveira."
E Dalva, a not6vel cantora, trinando sua voz in_
confundfvel, interpretava o samba-cangio .,Bom_dia,'
de Herivelto Martins e Aldo Cabral.
36
E todas se sentiam um pouco traidas' Ou cfmplices quando ela cantava "segredo", tamb6m do Herivelto
mas com Marino Pinto.
Patri6ticos se sentiam todos quando novamente'
atendendo ao comando do locutor, apresentava-se Francisco Alves, desta vez interpretando o samba-exaltaElo
de Ari Barroso "Aquarela do Brasil". Melhor, s6 o Hino
Nacional, que abria e fechava a programagdo'
Aos ouvintes, Possiddnio ainda servia informagOes
que recolhia do mens6rio "Parada Musical" de Auro
Teixeira ou da revista "Brasil Musical".
Inspirado no programa "Calouros em Desfile", que
Ari Banoso apresentava na R6dio Cruzeiro do Sul, a
R6dio Itaperuna passou a revelar os talentos musicais
da regi6o. Dona Yaponira, professora de piano da cidade, nio sefaziade rogada e semanalmente oferecia uma
audiElo; tamb6m seus alunos. Seresteiros, violeiros,
sanfoneiros, cantores, todos tinham vez.Ecom uma sutil
diferenga a separ6-lo do mestre Ari: ningu6m era
gongado!
Na programaEdo "variedades" compareciam as
quituteiras da cidade ensinando as receitas que receberam por familiar tradigio oral. Algumas mais saidas
chegavam mesmo attazer o resultado de suas habilidades: salgados e doces freqUentavam o estfdio, precariamente instalado em um antigo quarto de guardados do
hotel. Possid6nio logo teve aiddia de ofertar os pratos
aos carentes da cidade. No infcio, aos que paravam perto do hotel, que ficava em frente d estaEdo da Estrada de
Ferro. Depois, a boa nova circulou e no dia do tal programa era um desfilar de pobres querendo salgados ou
doces, n6o importava. Possid6nio ent6o organizou os
)t
fam6licos, distribuindo senhas e designando datas para
elas. As senhoras se sentiam duplamente gratificaias:
e3m ouvidas pelas ondas sonoras da Rddio Itaperuna e
ainda praticavam a caridade tdo reclamada peio padre
Telmo, logo-logo amigo da r6dio, do dono da r6dio e de
sua programagdo. E, em seguida, ele mesmo, colabora_
dor, pois, religiosamente, ds seis horas da tarde, ap6s a
execugdo da "Ave Maria" de Gunot, o padre.erauiumu
oragIo e quando estava inspirado lascava uma pr6dica,
ds vezes antecipando o que iria falar na missa de do_
mingo.
Esmerava-se Possid6nio nas respostas hs cartas do
"Consult6rio Sentimental". Cartas que podiam vir pelo
correio ou entregues, i sorrelfa, na pr6pria portari; do
hotel. Ndo deveriam vir assinadas sen6o por pseud6nimo, mas se viessem, o consultor se enciuregaria de ga_
rantir o anonimato da missivista. Sim, da missivista, pois
os homens nio se prestavam a tais desfrutes, embora
ndo perdessem as respostas logo ap6s a oragIo do
dngelus. As esposas, ouvidos colados ao rddio; eles,
aparentando indiferenga, simulavam ler o jornal, mas
procurando descobrir nas consulentes suas pr6prias
consortes ou mesmo alguma conhecida, o que se pres_
tar.a a futuras conversas na barbearia do Mota, nas tardes de s6bado, ap6s o almogo e antes do futebol. O ,,Consult6rio" era tamb6m um sucesso. No in(cio, possid6nio
foi obrigado a inventar consultas, mas depois o programa pegou, e as cartas tinham que ser selecionadas.
euan_
ta l6grima n6o enxugou, quanto ombro ndo ofereceu,
quantos corag6es consolou. E lengo? Haja lengo!
Estimulava competiE6es no grupo escolar. Oferecia pr6mios, divulgava resultados, entrevistava campe-
38
6es: os pr6prios e seus venturosos pais' A todos augurando um futuro maravilhoso' um porvir esplendoroso'
Um espanto!
Mingdo a parte merecia o programa de utilidade
priblica. Fhta d?gua, buracos nas ruas' animais nas vias
pribli"ut, problemas de saneamento, quest6es de safde
pr'iUti"u, melhoria do ensino, fiscalizaglo rigorosa dos
gu.tot da municipalidade que traziam o Intendente num
cortado s6.
Encerrava a programaqdo com uma "Hora da Saudade", em que era lembrado um vulto importante da
cidade ou daregilo, ou registrados acontecimentos dignos de nota, especialmente aqueles que enlutaram o
burgo e que ilrancavam furtiva l6grima do ouvinte que
amose preparava para dormir. A proximidade do sono
leci as pessoas e favorece as l6grimas, assim pensava
Possiddnio, um fi16sofo.
E a politica? Bom, foi af que a porca torceu o rabo'
Embalado pelo sucesso da r6dio, Possiddnio avaliou que era chegada a hora de assestar baterias contra
seus mortais inimigos, os ricos G6is.
E n6o fez outra coisa, ainda que com prejuizo da
programagdo j6 consagrada. Matreiros, os G6is reagiram como reagem os poderosos: encomendaram uma
surTa no Possidonio e ameagaram os comerciantes com
o corte no crddito do Banco Comercial de Campos' estabelecimento que servia d regi6o, al6m de retaliag6es
diversas.
Possid6nio, refeito da tunda, voltou ainda com mais
virulOncia aos ataques, animado, agota' do sentimento
de revanche pessoal: n6o era mais apenas a briga antiga
e familiar a estimular o chefe dos Neves, que ent6o se
39
revelou eximio polemista. Chegou mesmo a chamar
os
homens da cli dos G6is de pristulas. O povo n6o
enten_
deu bem o significado da expressdo, mas pristula
soava
como o maior dos xingamentos. Denunciava as
condi_
E6es subumanas dos trabalhadores nas fazendas dos
G6is. Escravos, era o que eram. Explorados, e ainda
humilhados, obrigados a empregar seus filhos peque_
nos na lavoura impedindo-os de freqUentar o g*po
colar, condenados d ignorancia. Em uma tarde de parti"r_
cular inspiragdo, chegou a langar forte diatribe cbntra
seus inimigos:
"Fascistas, s6o o que s6o.,'
A briga crescia, e o com6rcio se encolhia. Os co_
merciantes, admiradores da r6dio e de seu proprietdrio,
queriam ajudar, mas possid6nio, intransigente, nao
co_
laborava. Que parasse os ataques, diziam, e ent6o tudo
podia se arranjar.
Qual, Possid6nio nao estava para acordos ou ajus_
tes, rejeitava cambalachos. Crescia na sua ira
incontrol6vel.
"Escolhi um caminho do qual n6o se recua sem
perder a honra", repetia parodiando Rui no alvorecer
da Repriblica.
Colocados nesses precisos termos, a disputa n6o
teria volta, e os anfncios iriam rarear, levandoo incansdvel lutador ds cordas do rinque do cart6rio de protestos. Sabidos, os G6is foram comprando as notas pro_
miss6rias que o Neves emitiu para montar a rddio e que
n6o saldara. Eatdentao nemprecisava, pois o,u""iro
da ri{dio garantiria a liquidez dos tftulos, muitos trocados por propaganda, inclusive pelo poderoso Banco
40
fortes
Comercial de Campos' casa em que os G6is eram
acionistas, como todos sabiam.
Aos poucos, os G6is se fizeram detentores de tojudicidos os cr6ditos contra os Neves e os executaram
almente. Possid6nio foi citado parupagar dentro de vinte
e quatro horas, sob pena de penhora dos seus bens'
Possidonio recorreu aos amigos, aos comerciantes
e at6 aos fazendeiros do lugar. E certo que consegulu
alguma coisa e o pouco que logrou veio com a recomlndagdo de sigilo absoluto: ningu6m queria enfrentar
a ira dos G6is, que embargavam qualquer sentimento
de solidariedade com o virulento ofensor. Desesperado, o radialista procurou seu amigo deputado Augusto
Saturnino, e- -a-pos. Que o desanimou, definitivamente. E que ap6s sua posse' o general Dutra, que se
elegera com os votos de Vargas, mudara parcialmente
ut uliungut e se compusera com a UDN, partido de seus
antigos adversdrios, que agora participava do governo
de'TJni6o Nacional", e que dera, exatamente, o Ministro da Agricultura, ele mesmo usineiro e ligadfssimo
aos seus colegas de Campos. Lamentava o deputado,
mas nada poderia fazet pelo correligion6rio' Mas,
pessedista matraqueado, dava-lhe um conselho:
"Componha-se com os G6is, compadre' Agora, n6o
somos mais advers6rios, por assim dizer Fale na r6dio
sobre a,,uni60 Nacional". Todos v10 entender sua nova
posiE6o, suas novas responsabilidades na politica nacional. Ora, se os grandes, que s6o grandes, est6o se entendendo, por que n6s pequenos' que somos pequenos'
tamb6m nlo vamos nos entender?" - perguntava o polftico com uma l6gica de arrasar.
4L
Arrasar qualquer um menos o intimorato polemista.
Repetia, como bord6o, parafraseando o c6lebre Rui
Barbosa: "Escolhi um caminho do qual n6o se recua
sem perder a honra". Recusando mesmo a generosa
ofer_
ta do deputado de ir, ele mesme, em toda a sua pessoa,
ao microfone da R6dio Itaperuna para justifi"* u
-u_
danga de posigdo. E taria mais: ainda.i., p"rroul
e ci_
vicamente, procuraria os G6is propondo neo bem uma
reconciliagdo, que sabia impossivel, mas pelo menos
uma tr6gua at6 as coisas se acalmarem e o compadre
salvar seus bens. Qual, nada demovia o impertdrrito
Possid6nio: homem probo e de convica6es inabal6veis,
cardter impoluto, vardo de plutarco. Mas, besta n6o.
Feita a penhora a agdo seguiu o rito ordin6rio, como
lhe orientou seu advogado Jos6 Antdnio Tavares, pri_
mo de sua mulher, vindo especialmente de Valenga para
fazer sua defesa.
"Ordindrio 6 o Jo6o G6is',, desabafou
o
inconsoldvel processado, que continuou em sua
catilin6ria contra seus inimigos, inabalavelmente.
Entretanto, apesar dos esforgos do dr. Thvares e da
boa vontade do juiz de Direito, a agdo chegava ao seu
termo e a praga afinal marcada.
Boa vontade e conselhos o doutor juiz serviu ao
intolerante Possid6nio:
"Aceite o parecer do deputado, seu possiddnio. Nio
vai lhe diminuir..."
"E minha honra?" - cortou r6pido o outro.
"E, o senhorprefere ahonra iriida? Summumcrede
nefas animam p raefe r re p udo ri, e t p ro p t e r v it am v iv e ndi
perdere causas" - sentenciou o magistrado, incomoda_
do em dobro com a desdita do amigo. Estimava o per_
42
possuia' e
sonagem, admirava-lhe a coragem que nlo
lamentaria nlo poder mais ouvir seus conselhos ds
ao "Consult6rio Sentimental" sob
missivas qu.
"nniuua
o pseud6nimo de Anita e na qual liberava sua por96o
ele, juiz de Direito, imensos bigodes'
caprichadu, -Jl.nus, machfssimo, encontrava consolo
-ulh"r,
da
nas palavras que lhe chegavam pelas ondas amigas
R6dio Itaperuna, cujo equipamento tamb6m fora arrolado na penhora cruel. Crudelfssima' Mas o que mais
podia fizer? Desafiar os G6is aceitando os agravos
protelat6rios'argiiidos pelo advogado do r6u e
incompatilibilizar-se com o autor, com ligag6es no Tribunal ie Justiga, e ficar mofando numa comarca do interior, n6o ser promovido e voltar para sua Niter6i' mais
precisamente para a praia de Icaraf, com lindas mogas e
Lelos rapazes? N1o, lamentava mas n6o podia'
A cidade acorreu comovida d hasta pfblica' O com6rcio celrou suas portas. As pessoas mal falavam:
murrnuravam como num vel6rio. E vel6rio era o que
praera o malsinado leil6o. Anunciada pelo meirinho a
ga, o exeqtente apressou-se em lanqar o valor da avaliigao. Imediatamente, dr. Tavares formulou, em nome
do seu cliente, "protesto por prefer6ncia"'
A cidade prendia a respiragdo' Melhor que Tribunal do Jfri. O que viria a seguir? Tergavam armas os
causfdicos.EtudotransmitidoaovivopelaR6dio
Itaperuna, pois o leildo tealizava-se no sagudo do hotel
penhoradoi foi s6 puxar o fio do microfone atl ele'
Empostando avoz, o advogado do autor, de nome
Pergentino, exigiu:
"Dr. Juiz (perorou), meu ilustre colega se esquece
do dever de depositar o prego da licita96o, e todos sabem
43
que o r6u est6 exaurido. Assim, requeiro que
V. Ex.u in_
defira o 'protesto de preferOncia' formulado pelo
r6u.,,
E olhava em torno para ver o efeito de sua
contund6ncia, colhendo olhares de 6dio ou reprovag1o
da assist€ncia e um pequeno assentimento
do G6is, discreto como sempre.
O juiz oferece a palavra:
"Dr. Tavares?"
Que piganeia e pondera:
"Excel0ncia, nio vi, de sua parte, o autor
formali_
zar o dep6sito como deveria; logo: lJbi eadem
ratio, ibi
eadem legis dispositio.,,
A plat6ia, n1o tendo mais respiragdo a prender, ar_
regala os olhos.
O juiz, emdrito latinista, mal esconde o sorriso
quando se dirige i parte contr6ria:
"Ent6o, doutor pergentino?',
Que se atrapalha todo. .,Bom Exceldncia. Bom...
Quer dizer... N6o entendi bem a fltima parte do pedido
do ilustre colega..."
Diverte-se o magistrado:
"Esclarega seu colega, doutor Tavares."
Que entra no jogo dando as cartas:
"Pois n6o, Excel6ncia. Eu disse: Ubi eadem ratio,
ibi eadem legis dispositio.,,
F completou para divertimento do juiz:
"Audiatur et altera pars, Excel0ncia.',
O magistrado corta o baralho. Dirige_se ao advo_
gado do exeqtiente.
"Ent6o?"
Que se atrapalha ainda mais. Se n6o entendera a
primeira parte, que dizer da segunda que parecia a ele
44
a lona
ser diretamente dirigida? Entrega os pontos, beija
da ignordncia.
"Perddo, doutor juiz, mas j6 deixei os bancos da
faculdade h6 muitos anos e meu latim est6 algo enfemr-
jado..."
"Algo?" - interrompe malevolamente o lutz'
A populagdo delira; Jo6o G6is olha as pontas dos
pr6prios saPatos.
RecomP6e-se o advogado do algoz:
"Mais uma vez, perddo, Excel0ncia' mas a lei nos
obriga a expressarrno-nos apenas no vern6culo'"
E olhou em torno para ver se recuperava alguma
plaposig6o. Jodo G6is continuava a mirar a biqueira' A
t6ia querendo ver sangue.
iDoutor Tavares?" consulta o juiz' Quer esticar a
corda ao m6ximo antes de dar seqtiOncia d praga'
Que ndo se faz de rogado:
"Lex iubeat, non disputet" - conclui'
Lamentando intimamente ver-se obrigado a prosseguir com o leildo e amaldigoando o baixo nfvel do
ensino dos cursos jurfdicos do pafs em geral e a caval-
gaduradoadvogadodoautoremparticular,omagistrado sentenciou:
"Segue o enterro."
Danou-se. Pede perddo, mais uma vez o pobre
Pergentino:
"Perd6o. Excel6ncia, mas afinal acabei n6o sabendo
qual a decisdo do Juizo com relaE6o ao meu embargo"'
"Eu 6 que the devo desculpas" - responde pressuroso o 1uiz, que continua: "Com efeito, o senhor n6o
temqualquerobrigagdodesaberlatim.Indeferioseu
embargo 6 acolhi as raz6es do r6u porque o autor n6o
45
depositou o valor da avaliagdo; assim, o r6u. Logo,
aequitatis ratione,perddo, por raz6es de eqUidad.,
u.-ri_
tei o "protesto de prefer6ncia", nos precisos termos
do
artigo 977 e do seu g l. do C6digo de processo Civil,
baixado pelo Decreto-Lei n" r60b, de 1g de setembro
de 1939;'
(Eta mem6ria!)
- ... Assim, se as partes nada mais t6m a requerer,
vou dar por encenada a praga..."
Dr. Pergentino interrompe o juiz.
"Perddo Excel6ncia..."
("Esse neg6cio de perddo j6 est6 ficando
cansati_
vo..." pensa o meritfssimo)
"Mil perd6es..."
("Mil 6 demais...,')
" ... Mas preciso consultar meu cliente.,,
Jo6o G6is, carade amigos muito poucos, autoriza
o lance.
Dr. Pergentino cobre a avaliagdo, oferece mais. O
juiz aceita e manda prosseguir.
"Quem d6 mais?" - pergunta o meirinho.
Possid6nio se desespera, abre_se em convulsivo
choro. O valor da avaliagdo, porque muito baixo, repre_
sentava por certo o seu limite, era o que havia .onr._
guido com os amigos.
Jo6o G6is permite-se uma pontinha de satisfagdo;
seu advogado mostra um sorriso alvar; da plat6ia,
.on._
ternada, eleva-se um coro de lamentag6eslogo contida,
com-um simples gesto, pela autoridade do magistrado.
Nesse instante, um velhinho de terno de sa4a que
habitava, discreto, uma cadeira na primeira fila, .6UrL
o
lance do exeqiiente.
46
Dr. Pergentino confabula com seu cliente' que lhe
d6 instrugOes:
"Vai cobrindo o lance devagar enquanto vou assuntar quem 6 esse raio desse velho"- comandou'
pequ:E lbgo soube que o velho era dono de uma
quena
na rede de hot6is no Sul do Estado e certamente
expandir seus neg6cios. Malandro, Jo6o G6is' orienta
seu advogado para desistir de langar:
"Deixa ele comprar. Assim, eu n6o vou ter que gerir o hotel, nem a R6dio, e pelo menos recupero parte
do que emPreguei."
O idiota do Pergentino poderia perfeitamente omitir-se, calar a boca. Deixar sem cobertura o lance do
velhoepronto. Mas qual, semostrador, dirigiu-se aojuiz:
"Meritissimo, meu cliente desiste de lanqar""'
Nem bem completou a frase e a assuada atroa no
sagudo do hotel. Uh! Fora! O povo vaia' A cidade apupa'
Indiferente a tudo, o juiz acolhe o pedido' O
meirinho bate o martelo.
O velho levanta-se e s6 ent6o a multiddo o v€ no
seu avantajado tamanho.
"Dr. Juiz, pego a palavra" - exclama solene'
"Perfeitamente", o magistrado a concede'
'"Tenho uma importante declaragfuo afazet'', comega'
O silOncio substitui o murmtirio que se seguiu bvaia'
N6o se sabe nem por qu6, muitos pressentem que est6o a
presenciar um momento hist6rico, desses que as pessoas
participam apenas uma vez na vida' Talvez as emog6es
dia, a figura do velho, a gravidade da ocasi6o'
"Quero depositar nas m6os de V' Ex'u a procuragdo
que me outorgou o senhor Possiddnio Neves, neto do
meu padrinho Possid6nio Neves. Representei o neto
Oo
47
nesta hasta priblica em homenagem d mem6ria
do av6
que me encaminhou na vida. O hotel e a r6dio,
portan_
to, voltam ao seu dono.,'
_ Manifestag6es de alegria ganham os c6us de
Itaperuna. Possid6nio, entflo, ri-se da patranha que
ur_
dira. Sai carregado em triunfo. Todos se abragavam,
a
populaEdo da cidade confraterniza-se.Tarde
de sol, noite
de lua cheia.
Estava encerrado o leillo.
48
"A profissdo
6 de poeta/ ou de empinador de papagaio.
O que vem a dar no mesmo."
Thiago de Mello
A arte e a arte de empinar papagaios
Pequena histdria em dois rounds passada na pacata ltapentna, norte fluminense, contenda em
que se enfrentaramtradicionais inimigos: de um
lado, os Monteiro Gdis, fazendeiros ricos,
somfticos e discretos; de outro, os Almeida Neves, alegres e de bem com a vida, perduldrios,
fazendeiros arruinados mas ainda donos do hotel e da rddio da cidade. Os G6isfiliados d Unido
Democrdtica Nacional, os Neves ao Partido
Social Democrdtico. A disputa girando em torno das eleigdes municipais, a primeira e a segunda realizadas jd na vigAncia da Carta Magna de 1946 e logo apds a promulgagdo da Constituigdo estadual da Velha Provincia. Luta re-
nhida entre o poder e a astrtcia. Peleja
encarnigada em dois assaltos, como se verd:
49
A eleigdo
do Prefeito
O pleito parecia f6cil para Possid6nio Neves. Afinal, figura popular e estimada na cidade, ainda vinha
escorado na forga que o PSD dispunha na regi6o, demonstrada na eleigdo do general Dutra e confirmada
na expressiva vit6ria do deputado Augusto Saturnino,
seu compadre e amigo que para ele cavara a concessdo
"A Princesinha do Norte
Fluminense", sucesso absoluto de audiOncia.
E ndo era pra menos: a r6dio nada ficava a dever is
suas coirmds de Niter6i, capital do Estado, ou mesmo
do Rio de Janeiro, capital da Repfblica. Talvez mais,
porque as outras, de alguma forma, especializavam-se.
Umas dedicavam-se mais aos programas de estridio, com
radionovelas, espet6culos de audit6rio e mfsicas de
c0mera; outras, aos noticiosos e esportes; e ainda uma
derradeira ocupada com a cultura e serviEos priblicos.
Possid6nio fazia de um tudo na sua "Princesinha".
Na mfsica, desfilavam os maiores compositores da
6poca em discos novinhos de 78 rotaq6es que o pr6prio
Possid6nio abalava-se a comprar na afamada Casa Edson, no Rio de Janeiro, ocasiio que aproveitava para
entabular dois dedos de prosa com o Matias, caixeiro
do estabelecimento e versadfssimo na matdria, conhecendo tudo de mfsica e da vida das estrelas do r6dio e
do disco, al6m de passar na Colombo para tomar sua
cajuada e forrar-se dos saborosos pastdis de nata que na
volta levava no embornal juntamente com os fltimos
da R6dio de Itaperuna,
50
potins dos artistas. Os pasteis destinavam-se
i
dona
Emerenciana, sua santamulher, e os mexericos aos seus
ouvintes. Que o imaginavam intimo das atrizes e dos
atores aos que se referia com comedida intimidade.
Programa de audit6rio? Nem me fale. Ficava bravo
quando algudm insinuava semelhanga do seu com o programa "Curiosidades Musicais", criado por Henrique
For6is Domingues, o Almirante, a "Mais Alta Patente
do R6dio". Injustiga da grossa quem procurasse analogias com outros programas do Almirante como "Caixa
de Perguntas", "Programa de Reclama96es", "Campeonato de Calouros" e "Tribunal de Melodias", em que o
pr6prio ouvinte julgava as mtisicas que se apresentavam. "O Almirante fazia isso"?, perguntava. A resposta
invariavelmente negativa, respondia: "Ent1o, como 6 que
eu imito, hem?" E saia vitorioso para apresentar o seu
inigual6vel "Correio Sentimentd", o programa de maior
audi€ncia da r6dio, no qual os aflitos eram consolados,
dores mitigadas, os conselhos apropriadamente distribufdos: corag6es ao alto. E ai de quem procurasse
parecengas ou similitudes com o programa de Renato
Murce da R6dio Cruzeiro do Sul! "Invejosos", resumia
o inventivo Possiddnio.
Entretanto, Possid6nio n6o contava com
a
matreirice do Jodo G6is, embora devesse pois se ttatava de individuo magano, chegado a uma sacanice. Pois
n6o 6 que o cabra consegue o apoio do doutor Durval,
afamado m6dico da regi6o, conservador, respeitado,
al6m de competente e caridoso? Caroldo, reacion6rio
que a priltictde sua vida desmentia, o escul6pio atendia
a todos pudcssem ou n6o pagar. Mas suas id6ias, n6o as
que deveriam ser dele certamente, mas as que portava,
51
eram retr6gradas de doer. Antigetulista atd a medula
decidiu-se a disputar as eleigOes quando Possid6nio fundou o Partido Trabalhista Brasileiro como linha auxiliar do seu PSD, colocando na presid6ncia do partido um
certo Manuel Jo6o, antigo ferrovii{rio tido e havido como
comunista. Era demais!
"Aceito o desafio, seu Joio" - disse para o mais
velho dos G6is, exatamente o mais sabido de todos.
"Pois entio vamos ganhar, doutor"- respondeu-lhe
na bucha o fin6rio.
E ganharam.
O dinheiro dos G6is e o prestigio do doutor operaram milagres. Combinagdo diab6lica que virou as eleig6es. Certo da vit6ria, Possiddnio antecipava comemorag6es, recebia abragos, formulava convites. As apurag6es comegaram pelo centro da cidade, o que aumentou a euforia do radialista. Mas quando vieram as urnas
dos distritos, a coisa mudou. E urna quando comega a
xingar n6o p6ra mais. 56 chovia na horta do doutor. Os
burgos deram-lhe a almejada vit6ria.
"Fui roubado"- bradava inutilmente Possid6nio
pelas ondas sonoras da R6dio Itaperuna. Alinhava fatos, apontava desvios, provava por a + b que em tal
segdo tinha votos, e eles sumiram. At6 o voto do Neco
da Pharm6cia Popular, seu futuro Secretdrio de Saride
cujo tftulo era inscrito na sede da fazendinha da familia
e portanto num dos distritos da cidade, ndo aparecera.
"Sumiu", vociferava o pobre do Neves. "Sumiu,
nIo", emendava. "Foi roubado", afirmava. "E sabem
por quem?", perguntava. E ele mesmo respondia: "Pelos cachorros da UDN". Ndo fazia por menos: era de
52
cachorro pra baixo: "Ladr6es de voto, lardpios,
sicofantas."
Doutor Durval n6o se conformava. Queria responder aos agravos do perdedor. Contratar advogado,
process6-lo por difamaglo, injfria e cahinia: todas tr€s
de uma s6 vez, n6o abriria mdo de uma sequer. E nessa
ordem: difamagdo, injriria e calfnia.
Seu Jo6o 6 que acalmava o correligion6rio justamente ferido nos brios e sem sequer desconfiar dos votos adulterados, das atas falsificadas. Teve de tudo, at6
morto que n6o votava h6 muito tempo votou. E mais de
uma vez. Liberto do peso da sepultura, o defunto sentia-se livre para perambular pelos distritos depositando
em cada urna que encontrava no caminho o seu sufr6gio ressuscitado.
"Quem ganha n6o briga, doutor Durval. Vamos tratar de governar."
E governaram.
53
II
Arte de empinar papagaios
O tempo passou mas n6o arrefeceu o dnimo de
Possiddnio Neves, dos Almeida Neves de Itaperuna,
dono de hotel e da R6dio Itaperuna, a "princesinha do
Norte Fluminense". Continuou com seus programas e
seguiu cozinhando a raiva em panela de 6gua fria. .,As
eleig6es v€m ai e vamos ver Deus por quem ser6", ruminava o personagem.
E nio 6 que elas se aproximaram, mesmo?
Jodo G6is deixou a soberba tomar conta de sua
pessoa. Dessa vezndo mandaria preposto, iria ele mesmo disputar as eleig6es com seu tradicional advers6rio.
Queria vit6ria pessoal, anasar Possid6nio pessoalmente. A vit6ria sobe i cabega mais que cachaga. A vis6o
da vit6ria 6 um porre antecipado. E assim, meio b6bado, o chefe do cl6 dos G6is foi d luta.
Amontado na boa fama do doutor Durval e no razofvelgoverno que vinha fazendo,Jodo cunhou seus/ogan de campanha: "Votem em Jo6o G6is: o candidato
do governo". Tartamudo, entaramelado, de natural ensimesmado, Jo6o s6 sabia repetir: "Votem em Joio G6is:
o candidato do govenlo." E mais n6o disse e nem lhe
foi perguntado.
J6 Possid6nio Neves praticava um desparrame de
campanha. Estava em todos os lugares. Visitava os eleitores, batizav amenino, abragava cidad6o, apertava m6os.
Multiplicava-se: era um, eram dois, eram muitos, eram
todos. E enfiava o cacete na UDN em geral e no governo
54
em particular. "Corja de safados, infteis", xingava. "A
cidade est6 abandonada", exagerava o opositor.
Foi por essa 6poca que arribou na cidade um mogo
poeta versado na arte e na ciOncia de empinar papagaio.
"A profissdo 6 de poeta ou de empinador de papagaio.
O que vem a dar no mesmo", dizia. "Ou de politico",
pensava Possiddnio cheio de astfcia.
Montado nas id6ias do poeta, Possid6nio foi a Campos onde comprou papel de seda, tala e goma. Comprou tamb6m carret6is de boa linha. Comprou tanto que
esgotou o comdrcio. Mas n6o comprou pano para a
rabiola. L6 mesmo contratou gente para fabricar as pipas. Muita gente, muitos papagaios. E moita. Psiu. "SilOncio absoluto", pedia.
Nas v6speras do pleito, Possiddnio inunda a cidade com seus lindos papagaios coloridos. N6o houve crianga que deixasse de ganhar o seu. No centro ou nos
disrims mais distantes, todas as criangas ganharam, al6m
do papagaio, carretel de boa linha.
Jodo G6is continuava afazer a mesma campanha,
repetir a mesm(ssima ladainha, tudo igual: "Votem em
Jo6o G6is: o candidato do governo".
Possid6nio crescia. Mais visitas, mais batizados,
mais abragos e apertos de mdo. Estava aqui, estava ali,
estava em toda parte.
Embora satisfeitas com o presente, as criangas n6o
podiam soltar os papagaios por falta das respectivas
rabiolas. E foram cobrar do candidato Possiddnio. Que
falou geral:
- Todas as criangas, domingo (v6spera da eleig6o),
no coreto da praga depois da missa que eu vou dar uma
solugio, afirmava de p6s juntos.
55
A hist6ria correu, e os adultos se interessaram. ..eue
serd que o Possid6nio vai aprontar?", perguntavam_se.
A semana findou seu curso em um belo domingo
de outubro. Desde muito cedo a cidade acompanh uri u
faina de Possiddnio a emendar fios paratrazer o microfone de sua r6dio para o coreto da praga. Aumentava a
curiosidade. Depois da missa, n6o apenas as criangas,
mas toda a populagdo de Itaperuna acorreu i praga. Os
habitantes dos distritos vieram como puderam: de carro, de ciuroga, de cavalo, de charrete, e a-p6. Ningu6m
queria perder o que ndo sabia acontecer. At6 o padre
veio espiar da porta da Igreja.
Possid6nio saudou o povo:
"Bom-dia, minha gente." Falou para o povo da praga
e para seus ouvintes da querida "Princesinha do Norte
Fluminense", a combativa Rddio Itaperuna.
"Bom-dia", responderam.
"Bom-dia criangada."
"Bom-dia", a criangada respondeu.
"Est6o satisfeitos com os presentes? Ti{ faltando o
qu6?"
"O rabo", gritam todas.
"O rabo n6o 6 comigo", grita Possid6nio. "Quem
d6 o rabo 6 o candidato do governo"!
Ganhou a eleicdo.
56
"... Me sobra coraz6n."
Miguel Hernandez
A metade exilada
Estava exilado em La Paz, io inverno de 1964,
quando o professor Anfsio Teixeira me consegue uma
bolsa de estudos na Universidade de Buenos Aires e
tomo o trem para a Argentina. Quatro dias depois de
muito sacolejo chego h fronteira dos dois pafses, as cidades de La Quiaca e Vi11az6n. Feita a Alfdndeg?, o
trem lentamente se p6e em movimento mas em seguida
p6ra abruptamente; carabineiros bolivianos o cercam e
iniciam uma busca rigorosa em todos os vag6es. Quem
seria o criminoso? Perguntava aos botOes do meu sobretudo. "Su passaporte, seflor." Era a mim que procuravam.
E logo me encontro preso no quartel dos carabineiros. E sem conseguir qualquer explicaglo. A policia se
refugia nas ordens que recebe. "Ordenes, ordenes." Gelo
quando me p6em na cela em que iria passar a noite. A
cela era gradeada como toda a cela, mas aberta para o
p6tio. Eu iria gelar.
O socorro me chega inesperadamente. E pela mio
de uma fada. Naturalmente se chamava Socorro e se
hospedava, quando em La Paz,no hotel em que os exilados moravam. O Gran Hotel era um casardo velho
que teria conhecido seus tempos de fausto h6 muitos e
muitos anos, mas que ainda conservava como lembranga de antigos tempos, lindas guarniE6es de cama em
anoso metal dourado e fant6sticas banheiras, que eram
cheias de 6gua quente trazida da cozinha por um
57
camareiro cholo em belas jruras, certamente um legado
mouro vindo da Espanha colonizadora. Sem calefagio,
ndo havia cobertor que desse conta do frio. E era no frio
que eu pensava, quando tiritava dele na cela, e me entra
Socorro, ap6s naturalmente, subornar o sentinela. Viu a
prisdo e saltara do trem. Eu mal a conhecia. Troc6vamos cumprimentos formais quando nos encontr6vamos
no corredor que levava ao restaurante onde era servido
o magro desjejum. Habitava um quarto sem banheiro, o
que demonsffava a condigdo modesta em que vivia. Junto
com o irm6o, soube depois, comprava mercadorias em
Slo Paulo ou Buenos Aires para revender em LaPaz;
entregava-se a um honesto contrabando. Enfrentava o
"trem da morte" para Santa Cruze aquele maldito trem
para Buenos Aires, alternadamente. Para minha sorte,
havia optado pela viagem i Argentina e agora entrava
na cela trazendo "t6 con t6" numa ganafat6rmica, uma
mistura de ch6 quente com pisco que me aliviou da
friagem que me subia pelos p6s cansados de bater no
ch6o, al6m do conforto de sua presenga. Trigueira, corpo bem formado, com suaves tragos indfgenas, aos trinta e poucos anos, Socorro era uma mulher atraente. O
que facilitava sua comunicaglo com as autoridades
carcer6ias, sem falar de sua pr6tica de com elas lidar
na faina de livrar da Alfdndega as mercadorias que trazia. Nio sei como arranjou um pequeno fogareiro que
me entregou com a recomendagdo de deix6-lo junto i
grade da cela e dele ficar longe para evitar o perigo da
intoxicagdo do carvdo em brasas. Reservada, econdmica de palavras, Socorro foi embora silenciosamente como
entrara, ap6s apertar-me a m6o e prometer ver-me pela
manhi. Nem pude agradecer-lhe. Passei a noite na imun-
58
da enxerga da cela aquecido pela infusdo milagrosa, pelo
braseiro e pela incrfvel generosidade de uma quase des-
conhecida mulher.
Dia seguinte, enfiaram-me no trem quefaziao trajeto de volta. Passei quatro dias algemado. As algemas
eram retiradas no vagdo restaurante para eufazet as tres
refeig6es. No primeiro dia, causei espanto aos passageiros que almoEavam. Calmamente, no meu sofrfvel
espanhol, expliquei-lhes que era exilado polftico e que
protestava conffa a minha pris6o. A Bolivia que me abrigara, agora me prendia. Por qu6? - eu perguntava. E eu
mesmo respondia. Ndo sei. A escolta apenas me repetia
o que j6 ouvira no quartel: cumpriam ordens. Na hora
de deitar, o policial livrava-me a algema de uma das
mSos e a prendia na guarda da cama. J6 no segundo dia,
a escolta baixou um pouco a guarda, mas nlo se rendeu
aos meus argumentos de que poderia retirar as algemas.
Iria para onde no trem em movimento? E fugir para qu6?
Tinha certezaque iria esclarecer tudo quando chegasse.
Nada. "Ordenes, ordenes".
Quando chegamos na estagdo ferrovi6ria deLaPaz
a pequena col6nia de exilados 16 estava a me esperar,
prevenidos que foram por um telegrama da Socorro, que
prosseguira sua viagem no primeiro trem que demandasse a Buenos Aires. Haviam procurado as autoridades para saber a razdo de minha prisSo e como fariam
para soltar-me. A eles disseram que estavam examinando, mas que n6o se preocupassem. Ap6s algumas formalidades eu seria solto. Entre as formalidades figurava a de passar a noite na cadeia do "Control Pol(tico",
famosa pelas torturas que invariavelmente praticava o
general San Martin para qualquer governo que estives-
59
se no poder, aos quais servia com invari6vel lealdade.
Baixo, careca, cara bexiguenta, a apar6ncia do general
era aterradora e ele a cultivava cuidadosamente. Perguntou-me por que me prenderam e eu respondi que
era exatamente o que eu vinha tentando saber desde La
Quiaca, mas sem 6xito. Fixou-me seus olhos maus e,
surpreendentemente para mim que j6 esperava algum
tipo de represdlia, deu de ombros e foi provavelmente
espantar outro preso, superintender alguma tortura particularmente atraente. Fiquei numa sala ampla entregue
aos meus pr6prios pensamentos, que eram naturalmente sombrios. Dormi mal e mal e de manhizinha um tira
fedorento, com uma capa de chuva que curiosamente
parecia o uniforme dos membros do servigo secreto
boliviano, abriu-me a porta da cadeia e fui devolvido d
liberdade, tamb6m sem lograr qualquer informagdo sobre a prisdo, e logo abragado pelos companheiros. Precisava desesperadamente de um bom banho. O que consegui numa casa de banhos de propriedade de um chin6s tamb6m dono da lavanderia do hotel e marido de
uma paraguaia famosa pelos escdndalos que fazia na
hora de goza4 com o marido ou fora dele. O banho n6o
era muito popular no inverno e, em fungdo disso, por
uma pequenfssima importdncia, a16m do chuveiro quente, o freguOs tinha direito a um pedaEo de sabonete e a
uma toalha da qual se desprendia o cheiro rangoso comum ds roupas pacefras. Limpo, de qualquer forma. E
faminto. Os apertos por que passei justificaram o copioso caf6 da manh6 que me permiti tomar na "Confiteria
Eli", localizada no Prado, o principal ponto de encontro da cidade. Como curiosidade, lembro-me perfeitamente que os doces mil-folhas da "Confiterfa" deveri-
60
am ter exatamente mil-folhas. N6o, continuava n6o sabendo as raz6es da viol€ncia policial mas podia servir
aos amigos a incr(vel hist6ria da providencial Socorro,
ouvida por todos como quem escuta reza nova. E i6acertada ficou uma "comida" em homenagem d salvadora
quando ela voltasse aLaPaz, o que foi feito no pr6prio
restaurante do hotel e dentro de nossas limitadas posses. Mas o que faltou em iguaria sobrou em afeiEdo. E
uma Socorro constrangida por ser, provavelmente pela
primeira vez, centro das ateng6es e alvo de homenagens que se multiplicavam nos discursos que a saudavam. Ficou satisfeita mas achou um tanto exagerados
os elogios: era o jeito dela. Nunca mais a vi.
Mas, assim que voltei ao quarto, vi a carta com a
letra roxa que Ana Luiza usava para sobrescritar sua
correspond6ncia. E assaltou-me o pressentimento de que
ndo traziaboas novas. N6o deu outra. Comunicava-me
seu pr6ximo casamento com Danilo, seu colega de turma na Faculdade de Medicina e namorado antigo, namoro que rompeu quando comegamos e reatara quando
terminou comigo: "Voc0 namora a politica se j6 n6o est6
definitivamente casado com ela". Deixou-me plantado
no mesmo banco da praia de Gragoat6 que testemunhara nosso romance. Ela, antes, havia bravamente enfrentado a famflia que se opusera ao namoro. Eramos militantes de'Juventude". Ela da JUC: Juventude Universitdria Cat6lica; e eu da UJC: Unido da Juventude Comunista. N6o podiam ser mais diferentes os mundos. O
mundo da guerra fnal|fora e o mundo daradicalizagtro
polftica aqui dentro. O pai n6o me tolerava, os irmdos
idem. Um deles, meu colega de turma na Faculdade de
Filosofia, cortou-me o cumprimento e, quando o procu-
6l
rel para um entendimento franco, foi franco, tamb6m:
"Voc€ ndo serve pra minha irmd". A mde, que me conhecera antes de suspeitar que a gente iria namorar, eta
mais indulgente, mas n6o aconselhava o namoro: ,,Ele
6 um bom rapaz, 6 educado, sei que 6 de boa familia,
mas esse namoro nf,o vai dar certo. E melhor voc6 obedecer ao seu pai." N6o obedeceu, e o namoro cresceu
em labaredas. Deixei de cumprir algumas tarefas do
partido e fui chamado a atengdo pela diregio. "Est6 com
algum problema, companheiro?", perguntou-me o dirigente. Estava, sim. Com um problema grande, cabeludo, incontorndvel: paixdo das brabas, paixonite aguda.
Adiantava contar? De natural acanhado, fechava-me na
concha quando se tratava de quest6es pessoais. Apossava-se de mim um constrangimento de tal monta que
me impedia at6 mesmo de uma confid6ncia a um amigo. Com o dirigente, ent6o, nem pensar. "Nada, companheiro", respondi. "Coisa mifda que eu mesmo resolvo. Pode deixar que vou botar tento nas tarefas". E botei, mesmo. Mal saberia ele que a causa de tanta aplica96o era o rompimento que me impusera Ana Luiza.El
ent6o trabalhava como rep6rter plantonista no Dii{rio
de Noticias, como redator da seglo literr{ria no Metropolitano, jornal da Uniio dos Estudantes, estudava i
noite e ainda gravava um programa com o pretensioso
nome de "Ouga a Verdade", levado pelas ondas da
combativa R6dio Mayrink Veiga, tr6s vezes por semana, is onze da noite. Sobrava-me pouco tempo para
amargar a separagio. Mas que dofa, do(a. Dobrei a car
ta e devolvi ao envelope. Pela janela do hotel avistava o
monte Illimani. A Cordilheira dos Andes se erguia em
toda a sua majestade. Eu sentia frio e lamentava n6o ter
62
lutado por ela, com ela e comigo. Merda de politica'
Um amlgo meu j6 me havia advertido: "VocO sofre de
oligofrenia politica". Merda de polftica. Merda de golpe militar. Merda de exilio. J6 n6o queria mais a bolsa
na Universidade argentina. O partido queria que eu fosse para a Unido Internacional dos Estudantes, em Praga; ndo aceitara. Quem sabe se a id6ia de estudar em
Buenos Aires n6o era para ficar mais perto dela ou pelo
menos nio cortar os lagos que fatalmente seriam rompidos se eu fosse morar em Praga, virar um quadro internacional do partido, dar outro rumo h vida? Quem
sabe? Eu ndo sabia nada. Ou melhor, sabia que a partir
daquele momento iria aceitar a tarefa. E pensava nela
com um aperto no coragSo. Nem bem a vi e logo por ela
me interessei. Ela, tamb6m. Mas custou a aceitar um
singelo convite para um passeio na praia de Gragoat6.
"Eu quero 'falar' com voc6", eu disse num dia em que
tomara coragem animado por algumas "batidas" do
Caneco Gelado do M6rio, "p6-sujo" localizado na parte velha de Niter6i, na rua Marqu€s de Caxias, do tempo em que o duque ainda era marqu6s; "falar" era o
eufemismo que entio se usava para propor namoro.
"Fomos feitos um para o outro, como o morango e o
vinho", eu falei. "Eu sou comprometida". "Eu sei". "Ent5io"? "Ent6o, vocO se descomprometa e se comprometa
comigo, ora". "Pensa que 6 f6cil assim?" "Penso."
"Pensa?" "Penso. 56 penso em voc6." Ela olhou-me
s6ria: "Eu tamb6m penso em voc6, embora nlo devesse." Exultei. Mas ainda levou um m6s para o passeio.
Quando segurei sua mdo, senti que a amaria por toda a
vida e mais cem anos. Quando ela me entregou o primeiro beijo pensei desfalecer mas a tive de segurar pois
63
sim. Falando para me agradar? N6o, ficava feliz com o
meu sucesso como escritor. Pobre sucesso. N6o, deixe
de mod6stia. Tanto que propunha celebrar nosso reencontro com um copo de vinho no Deux-Magots ou no
La Closerie des Lilas, caf6s preferidos pelo grande escritor. O Closerie era o mais pr6ximo caf6 do apartamento de Hemingway quando ele morava na ruaNotreDame-des-Champs;mas, no Deux-Magotg Hemingway
ouvia, encabulado, Fitzgerald, autor deO grande Gatsby,
fazer-lhe altos elogios enquanto tomava quantidade industriais de bom champanhe. Pois entlo no DeuxMagots. Descemos a rue Bonaparte at1 o caf6.
Acomodamo-nos nas cadeiras em frente a uma de suas
pequeninas mesas e pedimos dois copos de vinho branco. Veio Chablis e eu lembrei que Hemingway talvez
preferisse o seu Sancerre. Mais tarde, ela disse, vamos
tom6-lo no jantar em um bistrozinho muito agrad6vel
aqui perto, para os lados do Odeon. Eu iria gostar. eueria mais notfcias minhas, as que tinha no Brasil eram
insuficientes. Contei que agora trabalhava na Uni6o Internacional de Escritores, e est6vamos convocando um
congresso de todos os escritores comprometidos com a
causa da democracia no mundo para prestigiar a abertura de Praga. Temfamos a reagdo sovi6tica e a oposigdo
do Pacto de Vars6via, mas est6vamos, na verdade, muito animados. Agora, o socialismo iria triunfar, tinha
absoluta certeza. Como eu vivia? Vivia bem. Os livros
pagavam um razodvel direito autoral. NIo tinha queixas. Todo m6s viajava a Mildo para ajudar a fechar a
"Voz Operdia", que depois envi6vamos ao Brasil. N6o
tinha passaporte brasileiro, os consulados sempre me
recusaram o documento. A Casa das Am6ricas me con-
66
seguira um, viajava com ele. Mas n6o tinha problemas
nuF.unEu porque haviaconseguido residOncia como exilado. Ia vivendo. Esperando o tempo de voltar. A ditadura nio demoraria muito a cait. J6 dava sinais de
exaustIo. CabeEa nas nuvens, p6s no ch6o, AnaLuiza
desviou a conversa. "Sabe, liO Trapicheiro do seu amigo Marques Rebello. E noti{vel. Entendi a brincadeira
que voc6 fazia com meu nome, ou parte dele. Chama-se
Luiza a namorada. Linguodental, sibilante, sonoro..."
"6, vocd guardou", achei de comentar. E falamos dos
velhos amigos, recordamos os tempos de estudantes,
mas, como se presa de secreta combinaE6o, evitamos
falar de nossos sentimentos vividos. E falar pra qu6, se
est6vamos juntos em Paris. "VocO precisa conhecer Praga", comentei quando acabamos de passar em revista
os amigos, os conhecidos, nossa querida Niter6i. "Praga 6 amais bonita cidade da Europa, depois de Paris".
AnaLuizando respondeu. Era como.se evitasse um convite que por certo viria com apenas uma ponta de interesse demonstrado. "Vamos jantar", ela disse. E caminhamos de braEos dados pelo bulevat Saint-Germain
at6 a rue Casemir Delavigne, ao agrad6vel bistr6. Vamos provar a bouillabaise, voc6 vai gostar, o patron 6
de Marseitle. Pega seu vinho. E eu, no meu franc6s
execr6vel, comandei ambos. Antes, champanhe demisec, depois, gdteu ao chocolat, conhaque e caf6. Os
ponteiros se aproximavam perigosamente da meia-noite. "VocO me disse que se hospeda sempre no Esmeralda? "ondeftca?" "No Boul'Mich'. Narua Sait Julienle-Pouvre. E um hotelzinho lindo. A municipalidade quis
interdit6-lo n6o sei bem o porqu6, mas os intelectuais,
Sartre h frente, frzeramum movimento e mantiveram o
67
hotel. E uma gracinha. Voc€ abre
a
janela de manhd
e
vO em frente os jardins da Igreja de Saint Julien-lePouvre d esquerda a Catedral de Notre-Dame."
AnaLiizaconsultou o rel6gio, pegou-me as mdos,
olhou-me nos olhos:
- Foi uma noite maravilhosa...
Concordei com o coragdo e a cabega balangou concordando.
- ... Mas preciso ir.
Concordei novamente. Levantamo-nos. A noite
estava agrad6vel 16 fora. A lua ficou espiando a gente.
- Amanhi pego cedo no hospital. Tomamos o metr6 no Odeon, vocO fica no Saint-Michel, e eu fago minha c o rre sp ondanc e. Depois...
Cortei. Eu vinha da Primavera de Praga tdo cheio
de esperangas. Havia tanta delicadeza no ar da primavera de Paris. AnaLtizaera a primavera de Praga e o ar
primaveril de Paris nela reunidos. O champanhe, o vinho, o conhaque - pensei na lua e tomei coragem:
- VocO n6o quer ir comigo pro EsmeraldaT
Ela estreitou-me ainda mais as m6os, beijou-me a
face, senti seus olhos marejados:
- N6o, meu amor. Iria estragar tudo. Voc€ 6 meu
namorado. Vai ser sempre meu namorado.
Rendi-me, mas lamentei:
- N6s deveriamos ter casado.
Ela abragou-me e sussurrou:
- Voc0 ndo me pediu.
68
"As chamin6s sujavam o c6u, mas o vento limpava-o,
Marques
*:;:i::: ;,,,
icheiro
O agente internaciondl
Marcello Cerqueira*
Fiquei pau da vida quando o coronel do IPM da
UNE mandou me prender mais uma vez. O inqu6rito
foi um dos primeiros a ser aberto ap6s o golpe militar
de 1964 e j6 rendia hd mais de um ano. Era a terceira
vez que eu iria depor e a terceira prisdo decretada pelo
idiota do coronel. Mas, dessa vez, era o exagero dos
exageros. J6 estava formado e exercia meu oficio de
advogado, inclusive defendendo processados pela Justiga Militar. Comegara me defendendo e daiparadefender outros foi um pulo. Estava preso no Pelotio de Investigag6es Criminais no quartel da Polfcia do Ex6rcito
na rua Bardo de Mesquita, que, mais tarde, iria abrigar
o DOI-CODI e seus terrores. No final dos anos
cinqUenta, o coronel que comandava a Chefia de Policia do I Ex6rcito, a quem o PIC ficava subordinado,
criou uma "equipe especial" para reprimir delitos de
militares e naturalmente alcangava os civis que de al-
guma forma se envolviam com os militares
transgressores. Posteriormente, esse coronel foi nomeado chefe de policia do Distrito Federal e aplicou a experiOncia da "equipe" criando o Esquadrdo da Morte,
* Marcello Cerqueira 6 critico de coron6is.
69
Mals tarde,
tarcle, esse
peflntssao para matar. Mais
policiais com permiss6o
policiais
coronel, j6 general, seria um dos articuladores do golpe
contra o presidente da Reptiblica de quem era amigo e
compadre e a quem jurara fidelidade. Mas isso jd 6 outra hist6ria.
Mofei uns dias na cela do PIC esperando ser convocado para o interrogat6rio. As celas ficavam no fundo do quartel e bem ao lado da lixeira. Est6vamos em
pleno veranico de maio, e o calor vinha em ondas e
trazia o fedor que acabava por me sufocar. As celas ficavam lado a lado ao longo de um estreito corredor. A
incomunicabilidade dos presos era absolutamente rigorosa. As sentinelas eram os famosos "catarinas", praEas
recrutados em Santa Catarina, alguns deles mal falando
o portugu6s. Mas eram louros, altos, fortes e cumpriam
ordens: essa palavra m6gica que d6 sentido i vida dos
militares.
Antes de ser ouvido pelo encarregado do IPM, vivi
dois momentos que merecem registro.
O primeiro, foi no chamado "banho de sol". Uma
hora didria em que o preso tinha direito a sair da cela
para tomar sol, o que fazia no p6tio do quartel ds doze
horas, exatamente na hora em que o sol ficava tdo inclemente quanto a ditadura. Pois bem,16 pelo quarto ou
quinto dia avisto na outra ponta do enorme p6tio o m6dico Valdrio Konder, alto dirigente do Patido Comunista e pai de Leandro Konder, meu fraternal amigo.
Ao avistar-me, Val6rio baixou a cabega como a demonstrar que preferia que eu n6o o cumprimentasse. Comunista declarado, queria proteger o companheiro mais
jovem evitando que uma demonstragdo de amizade o
comprometesse. E assim foi. Passei pelo companheiro
70
fingindo ndo conhec€-lo, embora esboEasse um sorriso. Entretanto, nem bem o ultrapassei e i6 me voltei
exclamando: "Me d6 um abrago, doutor Val6rio' Essa
ditadura de merda nio pode impedir nosso abrago"'
Val6rio abragou-me comovido.
Dia seguinte, admirei-me ao v€-lo quando chegava para depor. Era incomum a presenEa de dois presos a
ndo ser em caso de acareagdo o que nio era prov6vel
pois eu nunca cruzaracom Val6rio na militflncia polfti,u, norro conhecimento derivava' como eu j6 disse, da
amizade que eu tinha com um de seus filhos. Mas o fato
6 que Valdrio havia feito umas palestras na UNE a estu-
dantes que militavam na 6rea dapolftica internacional,
e ali estava para prestar alguns esclarecimentos'
Ap6s a qualificaEdo do preso' o coronel iniciou o
interrogat6rio perguntando :
- Doutor Val6rio, o senhor 6 comunista?
Val6rio surpreendeu-se com a pergunta do idiota
do coronel. Olhou para mim meio espantado' encarou
firme o coronel e respondeu singelamente:
- Hiltrinta anos, coronel.
Lembrei-me dessa hist6ria quase trinta anos depois
quando, ao enfrentar a banca examinadora do concurso
de professor titular de Direito Constitucional na minha
Faculdade, fui surpreendido com a pergunta de um dos
examinadores, tido e havido como pr6cer liberal, a pretexto de uma questdo que minha tese sustentava:
- Qual 6 a sua ideologia, Professor?
Contei-lhe, ent6o, a hist6ria que acima narrei e o examinador ficou com a mesma cara de bunda do coronel'
O outro momento foi de aflig1o e teria um desdobrar pat6tico. Estava preso, na cela ao lado, um estu-
7I
dante que eu n6o conhecia. Vi-o passar quando chegou
e senti pdnico em seu olhar. Assim que se acomodbu,
colei minha boca na grade e falei-lhe palavras de esti_
mulo. A sentinela advertiu-me e eu me calei. Jd tinha
dado meu recado, que completei: ,.Tem drivida n6o, pra_
ga. Pode deixar. As coisas aqui s1o bem mansus
" "u
nio quero alterar nada". pronto, era mais um recado.
agora falado claramente. N6o adiantou. Nio sei por que
d'6gua permitiam aos presos comer com garfo e
:argas
faca, que o rapaz usou para se cortar. Comegou i gntar
que morria. A sentinela n6o atinava com o que fazer.
Limitava-se a repetir o que aprendera. eue os prisio_
neiros ndo podiam falar. Afinal, permitiu-me,o.orre, o
rapaz. Mais de vinte anos depois, esse mesmo rapaz, j6
entio no meio da casa dos quarenta, atirade sua janela
contra uma comemoragdo eleitoral e mata um motoris_
ta de praga. Em artiguete no Jornal do Brasil, de 2l de
dezembro de 1989, sob o titulo ,,A lembranga de um
ato de desespero", registrei o acontecimento.
No veranico de maio de 1965,fui transferido da
cadeia do DOPS para o xadrez da poltcia do
Exdrcito, na Rua Bardo de Mesquite, naTijuca.
Eram cubiculos em que mal cabiam enxerga, pia
e privada. O regime, embora de rigorosa
incomunicabilidade, eramelhor que o do DOpS,
porque na PE ainda ndo havia violAncia
flsica
contra os presos politicos. Num domingo, sou
despertado pelos gritos de socorro de um preso
meu vizinho. Imediatamente, pedi d sentinela,
um recruta catarinense, que chamasse o oficial
de dia. Mas o atarantado praga ndo podia sair
72
do posto, recebera ordens estritas nesse sentido.
E ordem militar como se sabe, estd acima da
razdo. Mas ndo da bondade. Condoido com a
situaEdo do preso, que sangrava abundantemente, acedeu em abrir nossas celas, permitindome prestar-Ihes os primeiros socorros. Atraido
pelo alarido, um sargento passante afinal providenciou a remogdo do preso para um hospital.
Hd presos que ndo agiientam a definitiva soliddo da incomunicabilidade; a terrivel incerteza
que a prisdo acarceta leva-os a atentarem seriamente contra a pr6pria vida. Rbmulo foi um deles. Seu gesto de cortar os pulsosfoi ato de puro
desespero. Seus gritos de socorco, de arrependimento. Agora, depois de tantos anos, vejo sua
foto no Jornal do Brasil de ontem, sua lembranga da prisdo antiga, e a noticia terrivel de que
de sua arrna saiu o tiro fatal para o motorista
Carlos Alberto. Certamente R6mulo ndo queria
o resultado, mes acabou matando um trabalhador que deixa virtva e dois filhos pequenos ao
desamparo. Meu Deus, como 6 triste. Como tudo
6 tdo triste.
Lembro-me que foi permitido a Rdmulo, na volta
dos curativos, que ficasse com a porta da cela aberta.
Acenou para mim quando sai para o que deveria ser o
derradeiro depoimento. Atencioso, o coronel me pediu
desculpas mais uma vez, mas era a rotina mandar prender. Rotina para ele, sufoco para os r6us. Fiz-lhe ver
que n6o havia necessidade de me prender. Estava vivendo legalmente. Dando aulas na Faculdade CAndido
73
Mendes e advogando regularmente. Era s6 me chamar.
Contei que no dia anterior i prisdo, exatamente no dia
do jogo Brasil versus Inglaterra eu havia estado ali mesmo na PE na tentativa de entregar remddio para um preso meu cliente, e o sargento, um panaca de bigodes,
supondo que eu nlo o ouvia, me haviareferido ao oficial de dia como "aquele advogado comunista que chama
a gente de coraEdo!". E claro que a gaiatice do sargento
eu omiti ao encuuregado do inqu6rito, que ouviu minha
peroragdo atentamente, mas respondeu: "E a rotina."
Entretanto, precisava da minha ajuda para finalmente concluir o inqudrito. "Pois ndo, se tiver ao meu
alcance", falei polidamente. E falei por falar. Nlo iria
ajudar filho da puta nenhum. Era s6 o que faltava.
"Pois, doutor Marcelo, o que eu quero saber 6 quem
era na verdade o representante da UNE na Unido Internacional dos Estudantes, em Praga. Os registros me forneceram o nome de Mario dos Santos, mas n6o bate
com nenhuma lideranga estudantil."
Gelei. O filho da puta me pegou. Mas fui frio:
"Nem podia, coronel."
"E por qu6, posso saber?"
"Evidentemente, Mario dos Santos 6 nome suposto, 6 codinome para proteger a identidade do representante. Deve ter sido por precaugdo. A instabilidade politica da Amdrica Latina deve recomendar cuidados..."
O coronel n6o se conteve e me interrompeu:
"E o senhor pode me dizer quem 6?"
A minha explicagdo fora tlo veraz e convincente
que o coronel se conformou quando encerrei o interrogat6rio:
"Nem desconfio."
74
"Quem 6 voc6 que ndo sabe o que diz...?"
Noel Rosa
A pronritncia
No iniciozinho dos anos sessenta, o poeta Nicol6s
Guill6n Batista veio ao Brasil fazer propaganda do regime cubano, j6 sob o bloqueio dos Estados Unidos ou
do imperialismo norte-americano como diziamos aqui
ou imperialismo yanque como 16 o chamavam.
Nascido em Camagiiey, provfncia cubana, Guill6n,
descendente de africanos e espanh6is, de ambos recolheu a sfntese de sua arte unindo o folclore, o ritmo e as
dangas d'Africa is formas e tdcnicas da poesia de Espanha; e o espanhol, como todos sabem e a ningu6m 6
dado ignorar, llingua que bem se presta ao amor e d
revolugdo.
E a revolugdo foi companheira de sua vida. Membro ativo do Partido Comunista Cubano lutou nas brigadas Internacionais em defesa da Repriblica espanhola. Poeta famoso, seu primeiro livro, "Motivos de Som",
publicado em 1930, j6era, ao tempo da guerra civil espanhola, considerado obra-prima; falava dos pobres ndo
para lament6-los, mas para semear neles a chama da
revolta e para denunciar as miser6veis condig6es em
que viviam na Ilha, tdo bela e tlo explorada.
Seu poema sobre os iorubas - povo altivo que habitava a Nig6ria, teria v6rias tribos escravizadas no Brasil
e em Cuba, fltimos pafses do mundo a libertar os escravos - foi lido pelo comunicador da Tupi naquela tarde
em que o levamos para ser entrevistado em um progra-
75
ma radiofdnico, ent6o o de maior audiOncia. E lido como
quem entoa rcza fofie porque o comunicador era um
negro que se orgulhava de sua nobre ascend6ncia ioruba,
o que era reconhecido pelos candomblds no Rio ou em
Salvador, onde passava religiosamente suas f6rias anuais a visitar os terreiros, salvar os santos e cumprir obrigaE6es rituais.
O roteiro da entrevista estava perfeito, e o comunicador o lia como se ele mesmo o tivesse escrito. Texto,
moddstia i parte, muito bem-feito e realEado pela portentosa voz do locutor. Por isso, ficamos perplexos quando o entrevistador passou a chamar Nicol6s de Aristides,
confundindo-o com o Almirante Guilhem, antigo ministro do Estado Novo, e misturando com Aristides
Spinola, ambos nomes de ruas no Leblon, bairro que
habitava o comunicador, o que justificava o engano.
"Justifica nada", censurou-me o poeta Thiago de
Mello, cicerone de seu colega cubano e que me encarregara de, previamente, munir o entrevistador de dados
sobre a vida e a obra do visitante ilustre.
E a confusdo era injusta para ambos, admitia
Thiago. O ponto de contato entre eles, t6nue embora,
poderia at6 ser encontrado porque o Almirante, antes
de ser Almirante, nos idos de 1911, foi o primeiro diretor da oficina tipogrdfica da Marinha, precursora da
Imprensa Naval. Nicol6s tamb6m tinha uma pequena
tipografia em Havana, mas ndo fez a carreira da outra
empastelada que fora pelos esbirros de Fulg6ncio Batista. No mais, desacordo total. Nicol6s, comunista de
carteirinha; o Almirante idem pelo lado oposto:
anticomunista de carteirinha. O Almirante cumpriu uma
bela carreira na Armada chesando a Ministro da Mari-
76
nha justo nas vdsperas da decretagdo do Estado Novo
que ele ajudaria a implantar quando, ao lado do general
Eurico Dutra, Ministro da Guerra, autenticou o Plano
Cohen, farsa que instruiria o pedido de declaragIo do
Estado de Guerra, feito pelo primeiro Vargas ao Congresso, e destinado a abrir passo ao golpe de 1937.
Thiago, em parte, tinha ruzdo. Com efeito, no texto, eu havia omitido o prenome do poeta, fixando-me
no sobrenome que o fizera conhecido. Mas tamb6m
quando eu iria imaginar que o locutor, influenciado pelo
bairro em que morava, iria chamar invariavelmente o
poeta de Aristides? Falante, o locutor perguntava sobre
a obra do poeta, "La palavra de vuelo popular", sobre a
Unilo Nacional dos Escritores e Artistas de Cuba que
ele fundara, sobre a revolugdo cubana, tudo numa curiosidade insaci6vel.
E era Aristides pra c6; Aristides pral6.
O constrangimento do Thiago j6 me contagiara e
agora alcangava o poeta, que se mexia inconfort6vel na
cadeira, o que fazia sua boca desviar-se do microfone e
falhar a emissdo davoz, prejudicando a audigdo, o que
provocava reclamag6es, por sua vez, da inconformada
t6cnica.
Diante de tanto desconforto, o entrevistador se
mancou e percebeu afinal que tinha algo a ver com o
nome, que nlo cansava de repetir, porque toda a vez
que pronunciava Aristides eu abanava a cabega reprovadoramente.
Tdo longe estava do nfcleo de nossas angtistias, que
se fixou num ponnenor e logo procurou esclarec€-lo:
- Poeta, ndo sei se estou pronunciando bem o seu
nome. Sinto que nio combina...
77
E Guilldn atencioso:
- No, no. Guill4n estd mui bien, perfecto, precioso; pero Aristides se pronuncia Nicolds.
78
"Ningu6m est6livre de dizer tolices.
O imperdodvel6 diz6-las de modo solene."
Montaigne
Serrar por baixo
Duas pequenas hist6rias em quefica cabalmente demonstrada a inutilidade da empdfia ou da
emb6fia. Serrar por cima 6 iactAncia ou
farroma que ndo resulta; ndo adianta o lado
de ningudm. E ou ndo 6 melhor o cara ser
maneiroso, ieitoso, tratdvel? Ndo, ndo se estd
a sugerir zumbaias ou salamaleques. Nada dis-
A vida ensina, pra quem quiser aprende4
que as pessoas devem ser adequadas e ffiveis,
so.
nunca hostis. Quem aprecia desabrimentos ou
grosserias, hem? Ningudm que se saiba. Cidaddo social e urbano, na boa e iusta medida.
Sem pabulagem ou chibanEa.
O advogado
Eleito presidente da Ordem dos Advogados do
Brasil, Seg6o do Rio de Janeiro, o jurista H6lio Saboya
disse logo ao que veio na festa mesma em que se comemorava sua retumbante vit6ria:
- Convoco todos os colegas para colaborarem com
a minha administraglo. E aviso logo que nio vou aceitar ndo de ningu6m.
Palmas e etec6tera e tal. Tudo muito bem comemorado. Comidas, bebidas e muito falat6rio pois advo-
79
gado 6 dado a essas prdticas, al6m de naturalmente enxugar muito gelo.
Mas ndo 6 que o presidente consumou a ameaga e
comegou a convocar arupaziadapara ajudd-lo. O Estatuto da Ordem autorizava o advogado a reclamar quando
preso em flagrante, por motivo de exercicio da profissdo,
a presenga do presidente da Segdo local para a lavratura
do competente auto. E claro que o presidente n6o podia,
pessoalmente, acorrer a todos quantos reclamassem sua
augusta presenga. Dai ele designou advogados para assistir colegas presos. E como prisdo ndo tem hora, montou um sistema de plantdo e de rodizio.
"Inclusive, sdbados, domingos e feriados?"
"Perfeitamente", respondeu.
"A qualquer hora do dia ou da noite?"
"Perfeitamente", tornou a responder.
"De madrugada, tamb6m?"
Foi cruel:
"Evidentemente."
Para mim era o bastante:
"Td fora, coragdo."
Qual. Fora nada. A escala de plant6es j6 estava
pronta e a mim cumpria fazer a minha parte, sem mais
delongas ou tergiversaE6es. Acatei.
Pra deixar de ser besta, coube-me o primeiro feriado. E naturalmente de madrugada recebo o telefonema
de uma delegacia 16 de Vig6rio Geral. Um advogado
reclamava a presenga do representante da Ordem. Dizia-se preso no exercfcio da advocacia. Espantei o sono
e toquei-me para 16, amaldigoando o Saboya em particular e as garantias da profisslo em geral.
80
O colega preso era um figurago. Aneldo de grau no
dedo, terno preto, gravataidem e colete fantasia no t6rrido ver6o carioca. E de chap6u, ia me esquecendo. E
tudo isso na madrugada de um feriado.
E falante:
"O colega chegou bem na hora, ndo vO que o delegado quer me autuar..."
Cortei o papo do cara e fui falar com a autoridade,
em particular. Que me recebeu muito bem, distinto o
cara:
"Pois n6o, estou ds suas ordens."
Eu tamb6m estava hs ordens dele e assim ficava
pr6tico: cada um ds ordens do outro.
"Pois n6o vO o senhor que o colega acionou a Ordem, e eu estou aqui para verificar o que aconteceu e
dar a ele a assist6ncia a que tem direito. De que ele 6
acusado?"
"Porrada. Ele encheu a mulher de porrada. Ela deu
queixa e eu j6 expedi a papelada para ela ir a corpo de
delito amanhi. E nio 6 a primeira vez.Eladeu queixa de
outra vez mas se reconciliaram e eu aliviei o cara. Mas
desta vez foi a vizinha que acionou a gente. O cara moeu
a mulher de porrada. Vai segurar um I29. AlEm disso,
em vez de chegar calmo, procurar acomodar as coisas,
aprontou o maior banz6. Disse que o estavam desrespeitando, que iria chamar a Ordem. Botou a maior banca.
Af eu resolvi atend6-lo. Ndo que ele tenha direito. Nio
tem. Mas preferi ouvir a Ordem e que a Ordem decida se
ele tem direito. Vou chamar o investigador que o prendeu para ele lhe contar o que presenciou."
O investigador confinnou toda a hist6ria. E falou
mais.
8l
"Esse cara sempre foi corno' doutor. Ano passado
se formou numa dessas faculdades de fim de semana e
quis mudar o sistema em casa. Ora, a mulher j6 estava
aiostumada a pisar em galho verde e ndo ia mudar s6
porque o marido virou advogado e dizia n6o admitir o
udutt"tio porque era contra a lei. Contra a lei, imagine o
senhor..."
"Antes admitia?"
"Admitia."
"Ent6o?"
"Ent6o mudou o rumo das coisas, passou a encher a
mulher de porrada toda vez que ela dava um belisco. E
como ela escorregava toda semana, toda semana tinha
ponada. Era a porrada semanal. Acontece que desta vez
a mulher teria passado a noite inteira fora de casa e o
corno bateu mais ainda. Deve ser porrada por rodagem'
Tarde, tanto; noite, tanto; noite inteira, porrada pra valer.
Foi isso. E botou a maior banca da par6quia aqui. Que ia
fazer e acontecer. 56 o senhor vendo. Al6m de corno 6
babaca. Podia levar um papo. Apelar pro sentimento de
solidariedade entre os homens. Afinal, ningu6m gostade
levar chifre, n6? Prometer que n6o iria mais bater na
mulher, se reconciliar com ela, sei 16! Mas do jeito que
ele tratou a gente vai segurar o inqu6rito."
Tive a impressdo de que o tira tamb6m tinha navegado nas 6guas da patroa do colega, mas n6o era problema meu. Meu problema era dizer ao colega que ele nlo
tinha direito a assist6ncia da Ordem e voltar pros 1en96is.
"Como nlo tenho, colega?"
"Nio tem, colega. E les6o corporal. O senhor agtediu uma senhora. O senhor vai me desculpar mas a Ordem n6o..."
82
"Tenho sim, senhor. Estou me defendendo em causa pr6pria e, portanto,6 um advogado no exercfcio profissional que ir6 ser autuado. Sou advogado, conhego
meus direitos, conhego a lei e os c6digos."
Fiquei besta com o sofisma do cara. Devia ser ignordncia. N6o podia ser ouffa coisa. Ser6 que o idiota imaginava poder engambelar o delegado e o representante da
Ordem com uma conversa t6o fora de prop6sito?
Mas fui delicado:
"Ndo, perdoe o colega mas meu entendimento n6o
6 esse. Caso contr6rio a prisdo de qualquer advogado
mereceria a assist€ncia da Ordem, independentemente
do ato que tivesse praticado. Sinto muito, mas o colega
n6o tem direito i assist6ncia da Ordem."
Al6m de corno era poltrdo, o colega. Sentiu que
sem a protegio da Ordem ficaria a merc6 dos policiais
que estavam por aqui com ele. Podia at6 tomar umas
porradas. Nlo deu porrada na esposa? Ndo tratou mal a
tiragem? Entio iria ver o que era bom pra tosse. Mandei bater na mulher?
Quando ele viu que eu estava resolvido a ir-me,
apelou:
"Colega, por favor. Me d0 cobertura. Tenho passado momentos diffceis e talvez me tenha excedido aqui
e vd sofrer as conseqiiOncias. Por favor."
Fiquei com pena do corno. Acedi. Entretanto, falei
com o delegado que iria assistir a autuagio mas ndo figuraria no termo que eu estava representando a Ordem, j6
que o acusado a tal ndo tinha direito. Ali6s, ndo figuraria
no termo de forma alguma, n6o iria representar o cara.
E o escrivlo comegou com as perguntas de costume: nome, filiagdo etc.
83
"Sabe ler e escrever?"
O cara n6o se emendava.
"Como se sei ler e escrever?" e se pavoneava todo.
"Sou advogado... Ora se sei ler e escrever. Tinha graga..."
O escrivdo ndo estava para conversas:
"N6o perguntei sua profissIo. Perguntei se sabe ler
e escrever."
O deputado
iamos tomar posse no dia seguinte, em Brasilia.
Eramos v6rios deputados de primeiro mandato na fila
da ponte a6rea. Alguns de n6s sem passagem marcada.
Entre eles justamente o colega que estava na minha frente na fila e naturalmente eu. A moga que atendia no
balcdo da ponte a€reade olhos fixos na tela do computador n6o encontrou a reserva. Sentia muito, mas n6o
estava a passagem marcada e como o v6o estava lotado
ele nio poderia viajar.
O cara virou bicho:
"A senhora sabe que sou deputado federal?"
N6o, n6o sabia a pobre. Ou se sabia ndo delatou.
Ficou muito na dela.
"E como deputado federal tenho prefer6ncia. Prioridade, 't6 sabendo?"
Perfeitamente, ele tinha prefer6ncia, tinha prioridade, isso e aquilo. Mas de nada adiantava jdque o v6o
estava lotado.
"Nio admito, absolutamente. Sou deputado federal
e tenho prefer6ncia e vou viajar de qualquer maneira."
84
E falando alto, gesticulando, uma baba se esbogava na comissura dos l6bios apertados em raiva.
A moga estava ali para trabalhar e ndo para ser humilhada. Uma pontinha de choro apareceu no seu rosto
j6 vermelho. Mas soube se controlar. Queimava por
dentro.
"Desculpe, deputado. Mas n6o tem lugar, n6o posso fazer nada. O senhor, por favor n6o grite comigo."
"Ndo tem gritar nem meio-gritar. Eu quero uma
solug6o, e pronto".
A moga entio disse que ele falasse com o supervisor
da ponte adrea que por sinal j6 vinha chegando e o atendeu ao lado do balc6o. Quando o colega saiu eu fiquei
navez para o atendimento.
A moga sabia que eu tambdm era deputado e mal
se controlando, perguntou:
"E o senhor?"
Desarmei espiritos e bombas:
"Eu? Eu sou um advogado aflito."
Sorriu-se.
"Pro senhor tem lug*, dr. Marcelo."
85
"Todo vapor ao longe 6 um barco de vela perto"
Fernando Pessoa
Pras moEas
Rog6rio Monteiro, chamado Senador me telefona
anunciando, por via oblfqua, como 6 de seu costume,
melhoras na vida.
- Al0? - atendo.
- Quem fala?
- E Marcelo.
- Oi Curi6. (No Chile, cham6vamos uns aos outros por nomes emprestados de a Morte e a Morte de
Quincas Berro D'dgua, do Jorge. A mim coube Curi6.)
- Queria te convidar pra cear...
- Cear? - j6 pergunto eu.
- Perfeitamente, cear.
Falou com a naturalidade de quem nunca jantava,
s6 ceava. Aceitei de pronto.
- Claro, Senadox Com muito gosto.
- 6timo. Ent6o, no Antiquarius is nove e meia...
- Antiquarius, hem? - falei. - Ti4 abonado, corag6o?
- Ndo me queixo. A prop6sito, vO se descola o Paulo Alberto...
- Anda escasso?
- Sabe, Paulinho n6o 6 f6cil encontrar; ndo retorna
ligag6o, voc€ sabe...
- Sei - concordo.
- Pois 6. Al6m disso, estou hoje particularmente
ocupado.
- Particularmente?
86
- Panicularmente.
Concordei. A argumentagdo era definitiva; particularmente ndo abre espago a controvdrsias. Sai na captura do Paulo Alberto. Fui desentoc6-lo na casa da m6e,
dona Magdalena, minha madrinha. "N6o est6 pra ningudm", disse-me ela, mas "abriria uma exceglo pra
mim", completou antes de passar o telefone pro filho.
"E Marcelo, meu filho". Que nlo se surpreendeu com
o convite.
- Cear? Otimo. onde? No Antiquarius? Melhor ainda.
Aceitou com naturalidade o invitamento para aceia
e nem se admirou do restaurante caro e badalado. Fiquei bobando.
Nove e trinta em ponto, rente que nem pdo quente,
postei-me i porta do restaurante. Pouco depois chegou
Paulo Alberto e uma hora mais tarde o convidador distribuindo sorrisos, abragos e desculpando-se pela demora:
- Creiam-me nio foi intencional. E que hoje eu
andei particularmente ocupado...
- Particularmente? - perguntei.
- Particularmente - ripostou o Senador
Bom, se persistia o particularmente, nada a contesEntramos
no empireo restaurante.
tar.
E logo verifiquei que o Senadorj6 estava intimo
da casa. Manoel, o maitre, veio apertar-lhe a mdo, sinal
de especial deferOncia, convidando-o a ficar no bar
enquanto preparavam sua mesa.
- Sente um pouquinho no bar, dr. Rog6rio, enquanto apronto a sua mesa.
("Sua"... pensei comigo mesmo. A figura 6habitu6,
entdo me espantei. Paulo Alberto ndo se admirava de
nada.)
87
O gargom, sem que fosse pedido, coloca uma garrafa de Logan na frente do Senador, allmde copos, gelo
e tira-gostos, que, 16 em Grajari, chamdvamos de engasga-gato.
1f, naUttuA no duro, confirmei.)
E pergunta para n6s:
- Os cavalheiros vio beber o qu€?
Sem personalidade, acompanho o Senadon
- E o senhor, cavalheiro?
O cavalheiro assim chamado era Paulo Alberto, que
n6o bebia.
- Guaran6 da Ant6rtica - pediu.
Precisavam ver acarade decepgdo do gargom e de
desprezo do Senador, que emendou:
- Oh! Gomes: vO se tem guaran6 cagula.
N6o tinha. Paulo Alberto tragou o guaran6 comum,
mesmo.
E entramos no papo amigo. A folhas tantas volta o
ma?tre e nos convida para certa mesa muito bem-posta,
sim senhor. A toalha de uma alvura de anrincio de televis6o e copos de cristal, al6m de talheres de prata, naturalmente.
Senador comanda:
- A pedida 6 bacalhau, escolham i vontade: i Gomes de Sd, e Portuguesa, i Espanhola, ao Br6s, ao Z€
do Pipo... Eu prefiro aoZd do Pipo. Mas escolham i
vontade, repetiu-se. Agora, o vinho escolho eu - falou
firme. E chamou o maitre, que acudiu em sorrisos:
- Dr. Rog6rio?
- Tem o "Jo6o Pires?"
- Perfeitamente. J6lhe trago com o balde de gelo.
Senador emenda o papo:
88
- Mas onde 6 que a gente estava?
- No bar - arrisquei eu.
- Deixa de ser gaiato, Curi6. No papo. Quero sa-
ber onde parou o papo...
- Naquela sacanagem que voc6 aprontou comigo
no Chile, td lembrado?
Fez que n6o entendeu.
Paulo Alberto deu sinal de vida:
- Eu estou vagamente lembrado. Mas como foi,
mesmo?
- Seguinte. O Senador e eu mor6vamos num pequeno apartamento na Calle Agustinas, no centro de
Santiago. Ele namorava a Jaqueline, que eu chamava
de Galga, e eu namorava a amiga dela de nome Lucfa'
Senador havia marcado encontro, 16 no abatedouro."
- Abatedouro modelo... - e Rog6rio 6 todo recordag6es.
com a Galga no fim da tarde. Mas eis que aparece uma farmac6utica doidona que ele tamb6m vinha
comendo...
Dessa vez € Paulo Alberto quem interrompe:
- Cheguei a catalogar dezoito namoradas do Senador.
O indigitado namorador, sonso, limita-se a mur-
-...
murar:
- Veja voc6...
tem drivida e fala pra moqa: "Adelante
no m6s". A dona entrou e falou aos costumes."
- E a Jaqueline? - pergunta Paulo Alberto'
- Calma. Escuta, cara. A( a Jaqueline chega e toca
a campainha. Pelo olho m6gi co o Senador confirma que
6 a moEa. Que fazer? Nlo podia falar nada e menos
- Senadornlo
89
ainda abrir a porra. Qual a solug6o? eual? O filho da
puta vai d minha mdquina de escrever e comp6e a abo_
mindvel desculpa: "Estoy ocupado as. Marcelo". En_
fia o bilhete por baixo da porta, que ganha os olhos da
Galga e depois a pr6pria bolsa, e a bolsa e a dona da
bolsa ganham a rua e eu me estrepo...
- Como assim? - quer saber paulo Alberto.
- Trivial, Paulinho. Simplesmente, a Galga prefe_
riu acreditar na desculpa esfarrapada...
- Esfanapada?
- Claro, Paulo Alberto, p6. Se o Senador estivesse
disponivel, e eu usando o apartamento, entio era s6 ele
esperar a Galga na porta do edificio e sairem no ciuro
dela. Ou n6o era?
- Era - concorda paulo Alberto. E daf?
- Daf que a Galga preferiu aceitar a mentira a de_
frontar-se com a traigdo do Senador. E contou tudo para
a Lucfa, inclusive mostrando-lhe o bilhete. A piova
material do crime. A prova material, seu paulo.
- Ah, foi entdo af que a Lucia brigou contigo e
sumiu de 16 de casa?
- E ndo foi? Pior 6 que eu nio estava sabendo de
nada. Naquela mesma noite fui pra casa dela como es_
tava combinado. J6 te contei paulinho, que a qualquer
hora da noite na casa da Lucia ouvia-se Vivaldi ou ou_
tro barroco, n6o?
- Contou sim.
- Te contei que na primeira noite em que eu entrei
na casa dela deslumbrei-me com tudo, especialmente
com um sof6 que mal se entrevia no hail?
- Contou, sim.
90
- Pois 6. Naquela vez eu perguntei: "O que mais
h6 atr6s daquela porta"? "Hay un sillon," me disse' E
foi ali mesmo que consumamos e nos consumimos. Pois
bem, na tal noite, assim que cheguei encontrei a Lucia
meio estranha e n6o vi o sof6. "Cad0 o sof6?", perguntei. E ela : "No hay m6s sitio para el, ni para usted"' E
de repente me vi porta afora sem saber nem o porqu6'
Despedido na maior, seu Paulo.
- Bom, mas ai o Senador esclareceu tudo."
- Esclareceu, Paulinho? Esclareceu? VocO parece
que n6o conhece a peqa. Esclareceu porra nenhuma'
-E
-
ai?
A( que eu Perdi a namorada.
Bom, mas antes de voc€s voltarem para o Brasil
eu os vi juntos.
Confirmei.
- E fato, Paulinho, mas isso foi depois que a Galga se reconciliou com o Senador e limpou a minha barra com a Lucfa...
- Contando a verdade?
- Que contando a verdade, nada. Limpando a barra,
apenas. convencendo quem queria ser convencida. creio
qo. u Galga ficou com a consciOncia pesada da
crocodilagem que sofri e voltando com o Senador ndo
tinha como ndo patrocinar meu reatamento com a amiga'
- E como 6 que vocO descobriu a trampa?
a
- Foi o seguinte: reatar 6 melhor quedacomegm
volta' A
namorar. Ningu6m se perde no caminho
gente j6 sabe o jeito da gente, sabe como 6?
- Sei.
- Pois ent6o?
- Entdo?
91
- Entdo, eu comecei a lamentar o tempo que a gen_
te se estranhou e que eu n6o entendera nada de nada.
- Ai ela contou...
- Contou. Relutou um pouco, mas contou. Inclusi_
ve foi ao quarto pegar o bilhete fatidico. Ao ler o bilhe_
te 6 que descobri a sacanagem do Senadon
- E dai?
Primeiro, chamei a Lucia d, razdo. Demonstrei
com l6gica absolutamente irrecusdvel que nio poderia
ter sido eu. Lucia conhecia o quarto-e-sala da Agustinas
e foi f6cil demonstrar. "Fosse eu, coragdo, e tivesse no
crime, era s6 colocar a moga no quarto, fechar a porta e
atender a Jaqueline, convid6-la a entrar e v6-la recusar
j6 chateada com o Senador".
- Ela?
Rendeu-se inteiramente.
- Voc€?
- Eu peguei o bilhete e cobrei do Senador..
- Ele?
- Riu.
- Riu-se?
Porra, Paulinho, voc6 parece que n6o conhece
mesmo a fera...
-
Paulo Alberto ia comentar alguma coisa com o
personagem, quando o ma?tre e dois gargons o salvam
pelo gongo e pela comida.
E o Manoel pergunta:
- Posso servir o vinho agora, dr. Rog6rio?
Que se limita a fazer um sinal de assentimento quase
impercept(vel. 56 maitres com pri{tica internacionul ,"_
riam capazes de entender a mensagem.
92
Senador prova e aprova o vinho tambdm com um
sinal quase imperceptivel, que o maitre recebe como
homenagem pessoal. Serve meu copo e quando vai servir o outro, Paulo Alberto tampa a boca do copo com a
mdo, o que faz com que o Manoel recolha a ganafa e
despertada fique a ira do Senadon
'Perai, Paulinho, n6o vai dispensar este n6ctar,
vai? - e mostrava o Pr6Prio c6lice.
- "IJm pfcaro com vinho refrescava/ Sobriamente
-
a sua sede."
Pensando que o Senador era besta.
-
Oh! Paulo, n6o me venha de Fernando Pessoa
para recusar o vinho.
E deu de ombros.
- Melhor, mais fica Para n6s.
E para mim:
- E vocO Curi6, o que achou dessa maravilha?
- Uma maravilha - falei.
Nlo me venha com conversa mole' quero sua
opinido sincera.
- Olha, Senador, um vinho com nome e sobrenome ndo pode deixar de ser bom... - escapuli.
os espagos de fuga'
Nada disso
-
-
-
-Senadorfechava
Quero opinilo franca.
Bom, voc6 sabe que eu n6o conhego muito de vinho,
mas este, conquanto muito saboroso, sabe-me algo frutado,
e eu creio que bacalhau pede vinho verde e gelado'
Senador rebarbou a resposta. Queria a confirmadesprezfvel de um
E6o do seu paladar e n6o a opinido
leigo como eu.
Cala a boca, Curi6, voc0 nlo entende nada de
-
-
vinho.
93
II
O tempo passa, "nos vamos poniendo viejos",
como na canglo do Pablo Milanez. Estava na prefeitura quando Sdrgio Lacerda me telefona:
- Senador vai fazer cinqiienta anos. Convidei-o
para comemorar em Lisboa. VocO topa ir junto?
Nem titubeei, topei na hora.
- Que bom. Paulo Alberto disse que n6o poderia
ir. Alegou urg6ncias.
Bom, se alegou urg6ncias 6 porque as tinha. Ndo
h6 como alegar urgOncias sem as ter, justifiquei para o
at6nito ouvinte. Que aceitou bem a explicagdo. Tamb6m n6o havia como recus6-la tal a consistOncia da argumentagdo.
E fomos para Lisboa com seu gosto de Brasil de
antigamente, suas ruas e seus fados. Apresentamos a
cidade ao Senador que nio a conhecia. Creio que ambos ficaram satisfeitos com a novidade. pelo menos n6o
reclamaram.
O jantar do cinqtienten6rio foi no Tavares Rico,
assim chamado para diferencid-lo de outro Tavares, certamente pobre mas que jamais conheci. O Tavares Rico,
diga-se 6 o melhor restaurante lusitano e um dos melhores do mundo no seu g6nero. Escolhemos a comida,
mas a bebida ficou por conta do sommelier. Foi banquete digno de um senador.
No dia seguinte, fomos a Cascais para conhecer a
cidade e almogar no famoso restaurante ,,O pescador",
freqUentado por importantes figuras brasileiras, inclusive por JK e Carlos Lacerda, e os retratos de ambos.
94
tirados no pr6prio restaurante e pendurados na parede,
atestavam a freqiiOncia ilustre.
Seu Ant6nio, propriet6rio de "O Pescador", portuguOs imenso e ventrudo, quase amassou Sdrgio com seu
abraEo. Que, mal refeito do amplexo, nos apresentou
ao dono da tasca, frisando que ali est6vamos a comemorar o cinqiienten6rio do ilustrissimo Rogdno Senador,imediatamente aceito como Pai da Pdtnapelo dono
do estabelecimento, habituado a receber personalidades brasileiras, e logo acomodado no lugar de honra d
cabeceira da mesa, sendo que na outraextremidade, bem
em baixo do retrato do pai, sentou o S6rgio, na verdade
o respons6vel pela efem6ride.
Famoso restaurantg, "O Pescador" confirmou a
excelOncia de sua cozinha, especialmente quando seu
Antdnio em pessoa serviu-nos uma grelha com toda a
variedade de frutos do mar.
- Que bicho 6 esse, seu Ant6nio? - perguntei apontando-lhe um delicioso petisco.
E um lavagante, um crust6ceo mais pequeno que
-
a lagosta.
Parece que o di6logo que entabulei com o propriet6rio animou o homenageado.
- Seu Ant6nio, eu queria pedir um vinho.
- Pois n6o, senhor Senadon
- O Senhor tetdum "Jodo Pires", ter6?
- Como ndo, senhot Senador. Como nlo. J6 estou
a ir peg6-lo.
E, com toda apompa, trouxe o vinho: balde de gelo
e finos c6lices.
Foi quando eu perguntei ao seu Ant6nio, proprietdrio do afamado "O Pescador", um dos melhores res95
taurantes de pesca de Portugal, acostumado a receber
personalidades e potentados, intimo de magistrados e
de politicos:
- Seu Ant6nio, esse "Jo6o pires" 6 bom. mesmo?
- Pras mogas - respondeu.
96
"Brigam Espanha e Holanda/ pelos
direitos do mar (...)
Brigam Espanha e Holanda/ porque n6o
sabem que o
mar/ Ede quem sabe amar.,,
Leila Diniz
O badzado do ndcrio
Onde finalmente aporece Nely, de alcandorada
beleza, saida das pdginas do meu romance
" Beco,das Garrafas
: uma lembranga,' onde en_
trou depois de muita cabeEada ni via e onde
peftnanecera esbanjando boniteza e simpatia.
Nely "fazia" e noite, isto 6, se virava. Mas ndo
se entregavaa qualqr4er um, ndo. 56 quando
ela
mesma escolhia, e estou pra ver mulher tdo se_
letiva. Ai a sutil diferenQa entre as damas da noite
propriamente ditas e aquelas, pobres, que
ficavam nas casas de prostituigdo d disposigdo dos
homens e sem direito de recusa. As da.mas da
noitefreqiientavam as boates damoda e tinham
como rtnica obrigagdo fazer companhia aos
cavalheiros que as convidavam para sues me_
sas e entreter com eles educada conversaEdo
destinada a espaventar a soliddo que os acome_
tia. Ganhavam uma porcentagem da despesa do
cavalheiro e quando substituiam o uisque pedi_
do por uma dose de chd que o imitava, recebi_
am valor integral dn bebida trocada, ndo logran_
do ningudm e apenas favorecendo o pr6prio
bolso, al6m do figado. Fechada a boate, termi_
nado o expediente, entdo eram livres para sair
97
com quern quisessem, marcar proSram{l'-ac€r;
tar o michA. NeIy era Qnxais requestada' SimpdMartica ando mais podetr boa como ela s6' Se
perm Rocha perdira por duas polegadas' ela
deria por quatro, ou mais"' dizia' Morena alta'
de
sorriso de dentes lindos que ndo se cansava
do
mostrar Seios? - tinha-os altos' na diregdo
cdu. Comofeito de ctu era o seu regaQo' Cintura esteita, coxdes. E bunda? Ah que bunda!
sua simples
Quantos suspiros ndo arrancava d
passagem. Atdm de bondosa, meiga' quente ,e
'safadinha,
gostando por demais do esporte da
cama. Quando se deu esta hist1ria' Nely arreque
batava coragdes no Little Clube, boate em
canse apresentava a adordvel Dolores Durdn'
amiga
tori notdvel, compositora inspirada'
inigualdvel, mais infeliz pra chuchu'
Nely tinha um desejo secreto, incontida dnsia: queria ser madrinha de navio. Via-se enchapelada no estafranleiro, os fogos estrugindo ,agarrafado champanha
quilha da
cOs, guiadu pot uma cordinha, estourando na
embarcagdo- (Que desperdfcio, Santo Deus!)
Os ionvidados ilustres, autoridades, gente rica'
abradonos de navios, penetras, todos comemorando'
gando-a, beijando-a. Outros, mais reservados' cumpnpontas
mentando-a cerimoniosamente, beijando-lhe as
dos dedos enluvados, sim, porque a ocasido requeria
toalete comPleta.
E o navio, solto das amarras, descendo rumo ds
o es6guas, libertando-se dos seus criadores, deixando
taleiro pronto para singrar os mares'
98
Atender ao pedido de Nely n6o seria f6cil nem
mesmo para o capitdo-de-fragata Luis Magalhdes
Noronha. Noronha dos Noronhas, familia de longa tra_
diglo naval. E Magalhdes dos Magalhdes, familia de
tradig6es idem, idem, pelos sete lados. E o pobre do
Comandante Noronha, gamadinho da silva, procuran_
do mostrar i inconformada deusa a dificuldade de atender seu desejo.
"VocO n6o gosta de mim", reclamava dengosa.
Desesperava-se o Comandante:
"Gosto, Nely, gosto. Mas como 6 que eu vou fazet
voc6 madrinha de navio?"
"Fazendo, ora."
Mulher bonita tem dessas coisas. Inda mais Nely
a mais bonita mulher da noite de Copacabana. E al6m
de bela, meiga e educada. E f6cil de relacionar-se com
todo o povo da noite. E apreciadissima. Inclusive por
Dolores Dur6n, chamada pela deusa para testemunhar
a seu favor:
"Diga Dolores, voc€ n6o acha justo o pedido que
frz pro Luis?"
Dolores ainda ndo sabia do que se tratava mas antecipadamente j6 davarazdo h amiga.
"Claro, claro. Mas de que se ttata?',, pergunta i
Nely. E ao inteirar-se do desejo da moga, repreende o
marinheiro:
"Que isso, seu Luis... Um desejozinho i-toa. E logo,
voc6 filho e neto de almirantes. Faga-me o favor.,'
E o pobre rupaz ndo tinha a quem apelar naquela
noite em que as mulheres se uniram contra ele no iittt"
Clube e logo ap6s Dolores interpretar, de sua autoria,A
noite do meu bem, artasando corag6es.
99
Em seu socotro, Nely chamou trOs rapazes que freqtientavam o Beco e que eram alunos da Escola Naval:
Lufs Matoso, chamado Kid; Roberto De Lorenzi e
Si6berth Cerqueira, meu irmdo.
"Voc6s que sdo da marinha' me digam: posso ou
nio posso ser madrinha de navio?"
Simples olhar do Comandante segurou a lingua dos
rapazes 6vidos por agradar a deusa, mas De Lorenzi, o
mais sacana, pulou em cima da hierarquia e a usou para
dar raz6o d NelY:
"O comandante, al6m de oficial influente, 6 ajudante de ordens do Chefe do 1o Distrito Naval, respons6vel pelas cerim6nias de batismo. Ndo posso dar opinilo porque sou mais moderno. O Comandante Noronha
6 quem sabe..." - destilou o aspirante.
(Filho da puta, pensou o Noronha, Pego ele na curva, prometeu-se.)
Vencido, o pobre marinheiro saiu-se pela tangente,
entre o seno e o co-seno da merda em que se metera' Desistir de comer a moqa ou amrmar-lhe um madrinhamento'
II
Mas parecia-lhe que os ventos comeEaram a soprar a favor do Noronha quando o pr6prio Almirante o
ionuo"u para a missdo de langamento do Navio-Patrulhaltaipu, inteiramente construfdo no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro.
"Noronha, vou encarreg6-lo da cerim6nia de lanrecomenda
Eamento do ltaipu. O Diretor do Arsenal
que sejam convidados os membros do Corpo Consu100
lar sul-americano porque quer interessar seus pafses
na compra de navio patrulha semelhantes ao itaipu.
Escolha uma consulesa para madrinha e me submeta
rapidamente uma ordem de servigo com normas e ins_
trugOes para o evento. euero uma festa de arromba,
do balacobaco", concluiu, muito popular, a altaauto_
ridade, reconhecendo acima apenas o Ministro da
Marinha, deus em pessoa, pois plesidente da Repribli_
ca quando 6 civil, 6 apenas para ser tolerado caso n6o
saia dos trilhos ou n6o provoque a ira dos ventos; e
sem drivida o Deus dos homens, pois era piedoso o
dono dos mares do sul.
- Noronha percebeu na atribuig6o um sinal do c6u
favorecendo a ansiada conquista. Mas, espeto, como
arranjar um c6nsul e como promover Nely iconsulesa?
Foi a doce Dolores quem encontrou a solug6o, e o
que n6o faria ela para aliviar coragdes aflitos?
"Aquele Dom Rodrigues que vive aqui de porre
n6o 6 vice-cdnsul da Bolivia?',
- Pergunta daqui, pergunta dali, e a confirm agdo 6
batata:
"E sim", confirma o le6o-de- ch6cata, cansado de
arranjar t6xi que levasse Dom Rodrigues para o consula_
do, num porre m6e, noite sim e out itamb6m. ,.Mas n6o
tem aparecido, deve ter ido de f6rias pra terra dele; ou
ent6o est6 internado com cirrose hep6tica,,, confirmou.
O que ndo tinha maior importdncia, pois a prepara_
g5o da festa demandava altos conhecimentos cerimoniais e alguns dias de preparagio, verifi car a agenda do
Ministro da Marinha, sempre cheia de convltes para
golpes militares e outras confabulagOes solifugur. Mu,
o porrista era vice-c6nsul e ndo c6nsul. Como piomov6_
101
lo a c6nsul e alEar
a deusa d condiEdo de vice-consule-
sa.
"E nem fala espanhol," comentou com Dolores o
pobre apaixonado. Que nlo se tocou:
^ "Deixa de lero, Noronha, esse 6 o menor dos nossos problemas..."
( Dolores era assim: o problema dos outros era dela'
tamb6m.Nuncad\z\aoproblemadefulanaoudosicrano, mas os nossos problemas. Que mulher!)
"... Ela pode aprender algumas palavras' o c6nsul...
"
(J6 promovera o cara. Dolores era demais')
"... o c6nsul pode ter casado com uma brasileira'
ou com uma muda, ou uma gaga' Ela pode ndo falar'
Apenas sorrir. E com aquele sorriso ela arrasa'"
Bom, Noronha foi cuidar de seus afazeres e deixou
por conta dos deuses o rumo das coisas'
m
Civil ndo tem id6ia do trabalho que d6 o lanqamenmilito de um simples navio. Seguindo a boa tradiElo
militares,
tar, nosso her6i dividia o mundo entre civis e
atribuindoqualidadesedefeitosaunseaoutros:defeino sotos apenas aos colegas que com ele competiam
frido sistema r le promog6es que a carreira impunha' cada
vez mais depen-dendo do apadrinhamento e menos do
m6rito, o que tleixava os oficiais na m6o dos seus supe-
rioresparamelhorcontrolarahierarquia;defeitosgerais aoi civis, com rarissimas exce96es, especialmente'
valia a ressalva, para os membros do Clube da Lanter-
t02
na, agremiagdo de escol, destinada a livrar a pdtria de
indesejr4veis comunistas, sem falar dos melancias, que
estavam para os comunistas como os submarinos fica_
vam nos mares - escondidinhos da silva. Noronha era
reacioni{rio, sim, mas boa-praga pra valer. E j6 se viu
algum bo6mio do contra? Inda mais de quatro por uma
paixdo aguda?
Comegou Noronha a redigir a ordem de servigo que
organizaia a cerim6nia. 6 certo que copiou de uma
ordem anterior, assim como esta, por sua vez, fora co_
piada de uma antecessora, e assim sucessivamente, at6
chegar ao nascedouro ingl6s e h primeira cerimOnia, h6
muito perdida no tempo. Copiar adaptando, o que n6o
era tarefa f6cil. Fixado o prop6sito, que era o de estabe_
lecer normas e instrugdes, al6m de atribuir tarefas relativas h Cerim6nia de Langamento do Navio-patrulha
Itaipu, o organizador teve de confeccionar: a) croquis
da fuea da cerimdnia; b) croquis do dispositivo de ciri_
monial; c) organograma para o pessoal envolvido na
flin_a;d) atribuigdo de tarefas; e) necessidade de pessoal; f) lista de material necess6rio na Carreira; g) lista do
material a ser embarcado; h) providOncias para o langa_
mento; i) rotina para o langamento;j) trdnsito e estacio_
namento. Ufa!
E d medida que o trabalho caminhava, o marujo
dava conta a um audit6rio atento e que se reunia ap6s
fechar a boate e que contava, al6m de Nely, de uma
curiosa Dolores, interessada no mar e no amar.
"Quanta coisa, Lufs. E mesmo necess6rio?"
"Sim, Dolores", respondia catedrdtico. ..Estabele_
cer a rotina 6 fundamental para aorganizaqdo. Cada um
tem de saber de suas atribuig6es..."
103
"E quem, como NelY..."
(Doiores j6 dava como consumada a participagio
da amiga.)
"... n6o tem pr6tica dessas cerimdnias?"
"H6 uma Comissdo de Recepgdo integrada por todos os oficiais lotados no Arsenal do posto de segundotenente at6 capit6o-de-fragata, que orientar6 as autoridades e os convidados nos seus deslocamentos durante
a Cerim0nia, prestando-lhes as informag6es que se fizerem n"c"sri.ius. Temos um oficial exclusivamente
encarregado de receber os paisanos."
"E ndo tem mfsica nesta festa?", quis saber a cantora.
"Tem", respondeu o marinheiro' "56o executadas
pelaBandadeMfsicaoupelocorneteironasHonras
do Portal6, prestadas na chegada e na partida das autoridades militares."
"Tem discurseira?", quis saber a Vdnia' uma
enxerida que estava na roda.
"Tem. Discursam o Diretor do Arsenal e o Ministro da Marinha, a16m da... alocuEio da madrinha"'
"Ent6o eu vou falat?", preocupava-se a deusa'
"E, smadrinha tem de ler uma pequena alocugdo'
"E ainda
est6 na programaElo", revela o Comandante'
recebe u*iiOiu presenteada pela Marinha", conclui'
Uma ponta de preocupaElo no rosto lindo'
"Ndo se preocupe", diz Dolores' "A gente d6 um
jeito.oespanhol6f6cil,bastafalarsemptetesoromio.,,
"Tesoro mio? ", Quis saber NelY'
"Tesoro mio", confirmou Dolores'
"Tbsoro mio", guardou NelY.
"Tesoro mio", encerrou Dolores'
104
ry
E n6o 6 que as coisas se encaminharam para con_
tentar Nely e aplacar a fome do Comandante?
O c6nsul boliviano perdeu um parente na Bolivia,
tio de sua mulher, Ministro do Supremo Tribunal ou
coisa que o valha, parente importante que o ajudou
na
carreira e que ainda deixara uns cobres para asobrinha
querida. Voou para La paz, recomendando que o seu
substituto tomasse tenOncia na vida, n6o bebeise tanto.
vigiasse o consulado.
Foi f6cil f6cil convencer Dom Rodrigo. O medo 6
que a cerim6nia comegaria ds l3h 40 e temia_se j6
se
encontrar de porre o diplomata. Dolores f€-lo pro.n.ter abstin6ncia. Em troca, uma semana de ufsque por
conta da casa. Com a noticia de que se aproxim uiu
u
aventura, Nely apavorou-se:
"Vem cd, Dolores, ndo 6 melhor eu desistir e Dom
Rodrigo ir com alegitima?',
N6o absolutamente nlo era. E nem casado era o
c6nsul. E depois de tanta trabalheira n6o valia desistir.
O Comandante Noronha, que de certa forma arriscava
sua carreira, estava firme najogada, pois tesZo tem
des_
sas reg6ncias. Jogo fora a carceira, mas como a Nely,
pensava o intimorato marujo. E com carradas de razdo:
Nely, como Paris, valia uma missa, ou um batizado.
Noronha, protestante convertido, estava disposto a sa_
crificar-se no altar do amor. Ir hs riltimas conseqtiOncias: um porreta.
"E roupa, Dolores, com que roupa que eu vou?,,, e
cantarolava o sambinha de Noel.
105
se preocupasse, deixasse por conta dela' Iria
com a toalete mais linda. Seria a mais bem vestida de
Nlo
todas.Milagre?Absolutamente.Jdtinhatelefonadopara
sua amiga Cut-.n Mayrink Veiga. Uma das dez mais
Mas uma
elegantes do Ibrain? Ndo apenas do
-Ibrahim'
daJdez mais elegantes do mundo. "Como mundo 6 seu
apartamento na elegante Avenida Rui Barbosa' para
onde j6 estamos nos dirigindo."
Donu Carmem, uma dama, atendeu-as solfcita'
Adorava Dolores. Mas quem n6o a adorava? E colocada a par da patuscada, adorou a brincadeira' Emprestaria um vestido Chanel que s6 usara uma vez na recepem Nova Iorque' E' cla96o que o rei Faissal oferecera
io, todot os complementos. Quanto calgava? 37? Mas
que coincid6ncia. Mulheres altas mas os p6s nem tanto'
como uma luva'
Que beleza! Bom, o vestido nlo caiu
teriam de ser feitos ajustes aqui e ali, pois a deusa era
mais cadeiruda que a dama. A luva, entretanto, caiu-lhe
como uma luva, assim o chap6u, um lindo modelo parisiense que realEava a beleza de Nely, conforme disse a
pr6pria Carmen a uma aflita Dolores.
"Ser6 que vai dar certo, Carmem?"
"Claro,Dolores. Os militares ndo sdo por defini96o
muito espertos e, afinal, s6o homens e homens' como
voc6 sabi, sdo burros quando se ffata de mulher bonita."
E n6o se preocupasse pois ela mesma fora convidada para a cerim6nia.
"^Voc6?", espantou-se Dolores. "Festa de dia e de
militares?"
Nada de espanto, o marido da dama era fornecedor
de armamento para as forgas armadas, muito bem relacionado no meio naval, ndo perdia cerimonia' Ficasse
106
tranqtiila, 16 estaria para oferecer cobertura fogo de
barragem, se preciso. Mas n6o seria necess:{rio. A moga
era linda e iria sair-se muito bem.
O que ndo evitou uma apreensiva Nely de se pendurar no brago do cOnsul ao saltar do carro emprestado pelo
Raphael de Almeida Magalhies, rapaz rico e amigo Oe
Dolores, que socorreu o cdnsul, que nem autom6vel tinha. Deveriam chegar pontualmente is l4h 10 e ds 14: 10h
chegaram. Todos jd formados. O oficial encarregado da
recepgdo levou-a a seu lugar. Dez minutos depois chegaram o Diretor do Arsenal e o Comandante do 1o Distrito
Naval; e mais dez minutos o Ministro da Marinha, anunciado por ensurdecedor toque de corneta. E logo o Dire-
-
tor do Arsenal e o Ministro da Marinha, Almirante
Minimaxiano, leram os respectivos improvisos. As 15
horas em ponto, a madrinha leu sua pequena alocugZo
num portunhol estropiado mas muito convincente: para
os espanh6is parecia tentar falar o porhrgues; para os brasileiros, tamb6m: um retumbante sucesso. Na seqU6ncia,
o Diretor do Arsenal convidou e acompanhou a madrinha atd o "Palanque de Batismo", onde ela quebrou o
champanhe na quilha do navio e liberou o seu dispositivo de "langamento", durante o qual a banda tocou uma
mrisica tipica boliviana, o que trouxe ldgrimas ao cOnsul
e uma tremura ds suas mdos, de saudades da p6tria ou de
delirio tremens, nlo
se sabe.
O navio ganhou o mar e os convidados o coquetel,
ocasido em que o Ministro ofertou, como de praxe e
sob palmas tamb6m de praxe, a j6ia da madrinha, uma
dncora de ouro, o que provava a generosidade e a
inventividade da Marinha. Nely sorria e agradecia. E a
um deslumbrado Ministro sussurrou:
r07
"Gracias, tesoro mio."
Nem bem refeito do susto, e j6 o Ministro era envolvido pelo perfume e pelo charme de dona Carmem:
"En16o, Ministro, o que achou da madrinha?"
Achara uma beleza (Tesoro mio ainda soando aos
seus ouvidos). Dona Carmem j6 a conhecia? Evidentemente, a madrinha era figura conhecida na sociedade,
deslumbrando sal6es aqui, em Nova Iorque ou Paris'
Divertia-se a dama com a inocente brincadeira' E quem,
podendo, n6o gostaria de enganar a Marinha de Guerra,
especialmente se representada por seu titular em pessoa. Era, no fundo, pacifista, a grande dama'
Por mais de uma vez, o Ministro, extasiado, ouviu
da deusa a expressdo "Tesouro mio" 'referindo-se a ele'
"Que mulher", pensava o probo Ministro. E nlo compreendia como aquele merdinha do c6nsul ganhara semelhante d6diva dos deuses. Preocupado em tomar
coquet6is uns atr6s dos outros, o diplomata nem prestava atengdo d mulher. Pior pra ele, melhor para os homens, que rodeavam a encantadora madrinha, sempre
com sorrisos para todos. De poucas palavras, mas de
muitos sorrisos. "Tesouro mio" guardava para o Ministro, a ponto de enlouquecer o dignit6rio dos mares' Mas
a festa tinha hora para acabar e nem ele, Ministro, a
suprema autoridade naval, podia modificar os costumes'
E nlo foi sem muita pena que se despediu da deusa,
beijando-lhe a ponta das luvas emprestadas e colhendo
o derradeito "Tesouro mio".
O mesmo cano que os levara, agora os trazia, agora com mais um passageiro, o aflito Comandante. Foi
deixar Dom Rodrigo jd cambaleante no consulado e
seguir para o apartamento no Hotel Quitandinha, em
108
Petr6polis, emprestado tambdm pelo generoso Raphael,
a par de tudo e de tudo rindo, como bom sujbiio que
era. Nely, feliz como uma crian ga e j6 apaixonadu p"to
homem que lhe permitira tanta ventura. Seria um fim
de semana do arromba. E foi.
V
O bravo capitIo-de-fragata Luis de Magalh6es
Noronha teve o fim de semana a que fizera jus. O intr6_
pido marinheiro mereceu o gozodo mundo. inteiramente
apaixonados, aproveitaram cada segundo dos minutos
e das horas que desfrutavam numa petr6polis outonal.
Ndo faltou o passeio de charrete e nem a viiita ao pal6cio
Imperial. Sem o jogo, o euitandinha ndo oferecia mais o
luxo que o mundo reserya aos cassinos e aos potentados
orientais, mas ainda conservava belos sal6es e seu restaurante ainda servia maravilhosas refeig6es e vinhos de
safras antigas dos bons tempos da jogatina desenfreada.
Ah, o amor! Soubemos por Dolores, que recebera
telefonema da amiga contando as maravilhas de petr6polis e os arroubos do marinheiro. E tamb6m comemo_
ramos, Ribamar ao piano. Senti uma pontada de cirime
do namoro antigo e j6 prescrito. Mas logo passou e pude
juntar-me i alegria geral consolado por Sarita, uma
portenha que se fazia passar por pacefra nunca soube o
porquO.
Na segunda-feira, estava o Comandante Lufs Ma_
galhdes Noronha entregue aos seus afazeres no Distrito
Naval, quando uma ordenanga do Almirante avisa_o que
o chefe queria v6-lo. "parece bravo, Comandante,,.
109
Ser6 que a patranha fora descoberta? N6o importa'
pelotdo
O romance valeu. Enfrentaria galhardamente o
que se aprede fuzilamento. E foi com essa disposiEdo
sentou ao seu chefe:
"Mandou me chamar, Almirante?"
os 6culos de
Que olhou para o subordinado' Tirou
leitura e, sisudo, mandou-o sentar. Gostava do oficial'
Fora colega de turma do pai Noronha, aluno na Escola
Naval Ooiio Magalhdes. E ainda por cima, o Ministro
ficara encantado com a madrinha que foi escolhida.
Encantado ndo era bem o termo; enfeitigado cairia melhor. Mas Lufs merecia pelo menos uma repreensdo'
Apreensivo com o sil€ncio do chefe, Noronha toma
coragem e pergunta:
"Alguma coisa errada, Almirante?"
Que se digna a resPonder:
"b convite para o Corpo Consular n6o objetivava
a mostra da qualidade do navio para facilitar futuras
vendas?"
Noronha concordou' mas ainda nio sabia aonde a
autoridade queria chegar.
"A escolha da madrinha ndo era para distinguir um
pais provavelmente comPrador?"
Perfeitamente, Noronha concordou' mas ainda ndo
sabia aonde o chefe chegaria, mas sua forma severa
anunciava dificuldades presentes e futuras'
-
"E que a Bolivia n6o tem safda para o mar'
Noronha."
l l0
"Saudade 6 a primeira Estagdo depois de Bana
Mansa.,,
ouvi quando crianga
DisfarEa e chora
Que lugar mais encantador para acolher o lendi{rio
Nelson Rocha que o buc6lico bairro de Grajari no final
dos anos cinqiienta?
Certa feita, contava, estando em Roma, n6o se sabe
bem fazendo o qu6, teria tirado um retrato com o papa,
com o que demonstrava, a um s6 tempo, seu prestitio
no vaticano e sua not6vel fotogenia. c6pias di foto-teriam sido espalhadas no bairro para provar a influOncia
do filho ilustre e para ajudar na campanha que ent6o
faziaparadiretor de patrimOnio do Grajati renis clube
na chapa do doutor Alberto Melleu, consagrado bene_
m6rito da agremiagdo. uma dessas fotos teria caido sob
os olhos do Renato, chamado Renato Zoiudo,que teria
exclamado:
- Quem 6 esse cara de branco ao lado do Nelson
Rocha?
coisa teria parado por ai, debitada i miopia con_
g€nita do Zoiudo, se o pr6prio Nelson Rocha n6o a
ti_
vesse usado para demonstrar mais popularidade que o
Santo Padre. Foi demais quando somada a outras hist6rias do cavalheiro, que incluia cagadas, pescarias e ou_
tras do g6nero invengIo: peixes imensos, jaguatiricas
maiores que ongas e vai bola.
Os incriveis g6meos F6bio e Fabiano pellon, re_
c6m formados em medicina, diagnosticaram mitomania
em alto grau. O que era extremamente severo na opi_
111
nilo do doutor Newton Motta, conceituado m6dico
do
bairro, bonfssima alma, e tamb6m candidato a diretor
m6dico na mesma chapa do Nelson Rocha:
- Mitomania 6 fone.Talvezele exagere a6 verdade
ao mesdas coisas. Pode-se supor que uma afirmaElo
motempofalsaeverdadeiraeimaginarindefinidamente as duas situag6es para concluir que 6 verdadeira e
a
falsa - justificou dr. Newton dessa maneira fant6stica
mania do outro de inventar as coisas'
not6vel
Estupefata, a platdia nlo pode contestar o nomvel
do
vezo
escul6pio, mas pediu-lhe uma definigdo do
Nelson de contar casos... digamos raros:
- Mentirinhas cariocas - sentenciou o dr'oNewton'
Bom, nada impediu a chapa de ganhar renhido
pleito. E logo o lend6rio Nelson Rocha, diretor de pairim6nio do clube, encomendou ao Fl6vio Lustman'
engenheiro rec6m-formado, uma boa reforma na antiga
do
faChada do Grajari T6nis Clube; a entrada era velha'
tempo do barracdo que primeiro abrigou seus fundadores:- tratava-se de urn modesto portlo de madeira
paencimado por um telhadinho. O desenvolvimento'
lavra da moda, exigia algo novo, o gOnero Brasilia se
impunha, NiemeYer fazia escola:
- Oh Flavinho, fazumneg6cio moderno, pr6 frente - comandou o novo diretorE nem esperou a resposta do engenheiro, aguardava-o o Papa, altas calEadas, fabulosas pescarias'
Ordens dadas, ordens cumpridas' Assim nasceu a
marquise nova, uma meia barriga por cima do portlo'
ugotu de lata, com borboleta para o Gil, funcion6rio
aitigo e estimado, controlar os penetras e os sdcios de-
t12
vedores. A dita era sustentada por dois
tubos finos,
parelhos, nas cores azul e amarela.
Sucedeu que mudou a diretoriajusto no
fim da obra.
Outro pleito encarnigado teria levado a oposigdo
ao man_
do do clube. A Milton Amaral, chamadi
Chi*to,coube
assumir as i{rduas fung6es antes confiadas
ao lendi{rio
Nelson Rocha. E logo implicou com a inovaglo
dos tu_
bos que sustentavam a marquise. Chamou
o fi"l Gil e
imediatamente determinou a retirada dos
dois canos:
Oh Gil, tira esse merda! Falou mordendo o
insepardvel charuto, o que fazia com que
as palavras
safssem por uma das bandas da boca, que
o
dificultava
a compreensdo, mas n6o para o escolado
Gil que de
tudo entendia.
- O senhor desculpe, seu Amaral, mas o projeto 6
do Flavinho e se eu tirar os tubos a traquitanuiai.uir.
A voz de comando mascada peio charuto que
empesteava o ambiente fez_se ouvir alto
e bom som:
Tira
logo
essa
merda,
Gil!
Foi o Gil retirar os tubos e a marquise ameagar
cair.
-
Amaral n6o se alterou. Charuto na boca, disparou
a contra-ordem:
- Oh Gil, bota esta merda!
il
E o mesmo Amaral, j6bem mais velho, que
eu vejo
na porta da Igreja, na praga Edmundo
Rego, ao lado do
Senador MSrio Martins, ap6s a missa de s6timo
dia da
morte de seu filho- Abatido, o rosto vincado
pelo sorri-
tt3
Mas' ao mesmo rcmmento que s6 ele sabe o tamanho'
dor mais injusta
po, .otug"m das coragens' resistindo d
n6o 6
um ser humano: Pai n6o enterra Filho mundo'
u ord"* natural das coisas deste
traiAmaralzinho perdeu a vida numa emboscada
noite da
go.i.u, a covardia do assassino escondida na
criminoso' Apenas
.iOuO" de Mendes. A arma revela o
como a
um tiro de escopeta queima-roupa' certeiro
um ente que Jamaldade dos homens maus' E 16 se foi
Como todos' demais levantou a m6o contra algu6m'
nio pufeitos tinha, mas nada que uma boa conversa
i-b"t,"i
i
desse remediar.
os amlE na porta da Matriz do Perp6tuo Socorro
fiado' como
gos pefinanecemos ap6s a missa a conversar
como se a
grupo alivi6ssemos a dor da perda' Era
jogou para
de amigos queridos que a vida
i.
".
pto*i#oide
alegrias'
menos cruel'
refazerilusOes, o bairro ameno' a vida
com
A rodinha j6 estava feita quando me aproximei
querido
amigo
Reynaldo Gayoso, chamado iurumelo'
turma na Faculdade de Direito' L6 estavam
diferentes cantos
piO"tit recuperar antigas
de
"ll"gu
"oAb,boraeoGato,ambosaposentadoseagora
n6o vi o Gatiinsepardveis. (Vi o Gato na missa mas
Pinto'
nho', que vi no enterro)' Wanderley Noden
que ndo.up*:t:1t'
Manoelzinho, Ercflio irm6o do Jrilio
O{lio
Afrton Couto Ramos, Dauquir, Tido' Cabeleira'
-Feijdo,
Miguel Canavieira, os irmdos Pellon e o sobri-
Pellon dos
nho deles e meu querido amigo Sebastido
Parafita' e
Santos Moreira, Perrone, Paulinho Cabega'
Dutrinha, firme como sempre'
Na outra roda dona Matilde e Alberto Melleu'
chamouLamparina e Damiio Teixeira Pinto' Algu6m
tL4
nos a atengao para o velho Damido:
- olha o Damido,
cara, n6o muda, parece o mesmo, s6 falta
u ,uquat"i_
lembrando o inveterado jogador de t6nis
qu.
Parafita, sem movimento nos bragos, iinOu
"*.conva_
lescendo de uma queda quando tentava perigosa
ater_
rissagem com sua asa-delta justamente
na confluOncia
das ruas Gurupi e Arax6. paulinho Cabega
lembrou a
hist6ria do incrfvel Morris Minor do falecid
o Mde D,
dgua. O chdo do banco traseiro do carro de
t6o podre um
dia rompeu com a sogra que 16 ia de carona. posterior_
mente, o cruro foi trocado, na rua do Livramento,
por
uma vitrola usada que tambdm se recusou
a funcionar.
J6 se ia fazendo tarde, mas a roda se mantinha.
A
tuma adiava a hora de enfrentar, sozinhos, cada um
a
sua dor. Mas, qual, a vida segue com suas
regras e uns
ap5s os outros todos acabaram se mandanOoleUrugo,
apertados, promessas de encontro paua breve
qu" nun_
ca se cumprem. A saudade do bairro da gente.
Disfarga
e chora: sou louco por ti, Grajari.
I l5
"As Forgas Armadas
s6o organizadas com base
na hierarquia e na disciPlina'"
das Constituig1es da RePrtblica
A
metade maior
a ConstiJack, o Estripador, esfaqueou novamente
de 9
tuigdo de 1946,iiprofanada pelo Ato Institucional
militares sediciOe aUrit de t964,institu(do por chefes
truculentos
osos mais tarde sucedidos por colegas mais
por deque ultrajaram definitivarnente a lei, baixando'
iConstituiEdo" (epa!) de 1969, e por isso chacreto, a
Guimamados de os "TrOs Patetas" pelo Dr' Ulisses
desaprordes, o que contou com minha mais veemente
frzver ao saudoso amigo, autor do epiteto'
vag6o,
pelo aprego que eu votava aos inofensivos e brincaos-tith6es comediantes norte-americanos que criaram
gorilas
os
pos e que nio deveriam ser confundidos com
"f-o
daqui.
um
Daquela feita, os militares golpistas baixaram
julgao
segundo Ato transferindo para a Justiga Militar
naciomento dos crimes previstos na lei de seguranqa
mais
nal, que, na sequOncia, iria tamb6m se modificar
tr6s vezes, naturalmente para pior'
Assim, os civis, enquadrados nos processos lnvenforay
tados pelos militares pttunt" a justiga comum'
mals
esm
transferidos para a justiga castrense' por ser
confi6vel, j6 se v€.
Daf, o processo a que respondiam ferrovi6rios de
SeCampos foi distribufdo i 2" Auditoria de Marinha'
Permanente
riam, portanto, julgados por um Conselho
116
de Justiga constitufdo por um
auditor (magistrado civir
da Justiga Militar), um oficial
superior cor"'" p.*iA""*
e tr6s oficiais at6 o posto de capitao_bnente.
Ate ai tudo muito bem. Mis eis que
nopregdo dos
r6us na audiOncia de instrugdo o
meirint o ct urriu,
- Almirante Soares.
Ao ouvir a expressdo mftica ,,almirante,,,
os ofici_
ais do Conselho se viram dominados
pelo pdnico: o pre_
sidente do Conselho pulou no colo
ao auditor; our- ,"
refugiou no banheiro das senhoras; o de
bigod"r.r"on_
deu-se atr6s da bancada reservada
ao Minist6rio pfblico; e o mais jovem tentou o suicfdio ateando
fogois
vestes.
Exageros?
N6o, absolutamente. Estavam a demonstrar
o res_
peito que nutriam pela hierarquia e pelo
absurdo
da si_
tuagdo em que se viram metidos: -de julgar
a
um ulmi_
rante, ainda que de mentirinha.
Almirante era apenas o prenome do Soares,
negro
imenso, ferrovidrio veterano e filho
de um antigo #;;
de conv6s que botara o prenome de
Almirante-no filho
porque o seu maior desejo era ver
um almirante de ver_
dade e de perto, situagEo que nunca
logrou
mesmo ap6s cumprir mais de vinte anos
"onquiriu,
na Marinha.
Com efeito, especialmente no seu tempo,
os almi_
rantes eram poucos e dificilmente
se deixavam ver pelo
comum dos mortais. Ouvia_se dizer que
tal ou quai al_
mirante passara em qual ou tal lugar.
Mas ver qu"
bom, jamais nenhum dos coleguJ Oo
"ru
hifeiro dour.r,
mesmo os mais velhos, viram semelhante
esp6cime,
com o que justificava a homenagem
dando uo filho o
nome de um quase deus.
tt7
n6o me admirei
Conhecedor das tradiE6es navais'
do Conselho e'
do barata-voa que tocou nos oficiais
passei o julgamento a
uOnoguOo do Aimirante Soares,
do meu
oiu"riit-*. repetindo, sempre que podia' o nome emboConselho'
cliente para desespero dos oficiais do
de fantasia'
,u;a ,i"ntes de qo" .. tratava de um nome
at6
poi assim dlzet, e n6o de um autOntico almirante'
Triteria foro especial, o egr6gio Superior
p"tq*
img|an1a.da
""e
bunal Militar, a primeira Corte de Justiga
Joao,logo ap6s a inverslo hist6rica
uquiptro astuto
do reino
de 1808, exammente porque a transferOncia
ocupagEo
para as nossas praias fora uma verdadeira
um tribunal pr6prio par-a
-ititur, e urgia a criaqdo de que garantisse a apropnsegurar as banas da disciplina
habitantes e das casas
ugEo ao lugar, das almas dos seus
em que habitavam.
no
presidente do Conselho' confidenciou-me'
Tamandar6' Patrono
curso da instrugao, ter o Almirante
Joaquim Marda Marinha de-Guerra' como seu fdolo'
por servigos prestados ao
[ues I-isUoa ganhou o tftulo
Cristina' sua'
Imperador e dquele bagulho da D' Teresa
uma feita' quando levava
16 dele, augusta.onroi"' De
ao norte d: n1t1i:l.o
a imperiat-familia em naval visita
n.a regrao
diu licenga a D. Pedro para aportar
onde recolheria os desf"rnu-bucana de Tamandard,
de 1824' O
pojos de um seu irm6o morto na Revolugdo
da esquadra como
imperador nlo s6 permitiu-o fundeio
de bardo do lugar' depois outoro agraciou com o iit
'to
marqu0s' al6m de
guriOo-tt o de visconde, conde e
ap6s o he"
promov€-lo ao posto mais alto de almirante'
Era veriOi coUrir-se de. gl6rias na guelra do Paraguai'
na Passagem de
dade, lembrei aJoficial qu-r r"u idolo,
i.
b
118
Humaiti{, em fevereiro de lg6g, demonstrou
ser mais
do.que corajoso, dele, se podendo dizet,na
finguagem
hoje corrente, ser um verdadeiro porra_louca:
desem_
barcava da nau capitania e, a bordo A,
urnu pr;;;;"
chalupa hibrida de vela e vapor, ia provtcu,
o,
paraguaios, pouco se importando
de ficar na linha de
tiro da fortaleza e rindo das balas que passavam
rente
ao seu barco. Entretanto, ao paraguai, perdoasse
o co_
mandante, o liberalismo econ6-i"o, ent6o
dominante
(que hoje talvezatenda por neoliberalismo),
nao p.r_i_
tia que o progresso do mundo tomasse ouffo
rumo que
n6o o por ele apontado, e o presidente
Solan o L6pez
operava, iconoclasta, isolado caminho inverso.
Mono_
polizava o comdrcio externo al6m do interno,
fazia_se
dono dos recursos naturais do pais;,al fabetizavlao
pouo,
construfa ferrovias e fundava empresas: imperdodvel!
A casa bancdria inglesa Baring Biothers nao permitiria
que seus interesses na dividida Argentina
pudlssem ser
prejudicados pelos guaranis, asiim os Rothschilds
financiadores do governo brasileiro. Nada
mais natu_
ral, portanto, que a jungio dos interesses
dos banquei_
ros ingleses com o Imperador no Brasil,
mas sfdito de_
les. Era nefasto exemplo a ser afastado, ora j6
se viu!
Sem ofensas, sabia o digno oficial que a Coniederagao
do Equador antecipava a RepriblicaL pretendia
a forma
federativa e o governo representativo que j6
vigorava
na grande nagdo Americana? Sabia que,
ialtindolo
pri_
meiro Pedro elementos materiais para sufocu,
u r"^br_
li6o, financiou a repressdo com emprdstimos e
tropas
mercen6rias estrangeiras, especialmente inglesas? ^Sa_
bia_que a esquadra .,South American Station,,,
coman_
dada por Lorde Thomas Cochrane em pessoa,
respon_
119
patriotat? 9tt-u
deu pela ofensiva maritima contra os
1955'
qo" o Museu Naval da Grl-Bretanhaadquiriu' em
ao
uma coleElo de uniformes que teriam pertencido
seLorde Cochrane, 10o conde de Dundonald? Sim'
a16m de conhor. Casaca e dragonas de vice-almirante'
Brother"
lete, todos confecclonados pela famosa "Elder
sobravam.inda Trinity House? E os comprou porque
inglOs'
dicios de terem realmente pertencido ao lorde
de
a saber: a casaca era a vestimenta de um almirante
1856; a etiqueta meio rasgada no forro das dragonas
fiaziaa palavra "conde"; a casaca possuia tr6s ilhoses
tr€s estrelas
do lado esquerdo que serviam para prender
de ordens honor(ficas' sem contar outras condecorag6es
teria sido
do lado direito; e que o conde de Dundonald
o unio tinico - fnico, t"p*. bem - almirante trajando
condeforme que apreseniuuu a mesma disposigdo nas
procoraE6es? Oia, se tais indfcios viravam inefut6veis
uu, 6 serviram para os sdbios do Museu britdnico'
nlo servlnsabidamente versados em pirataria, por que
Revoam para n6s, hem? Sabia ndo? E que a chamada
social
tuEdo Praieira de 1848, movimento de rebeldia
que cultrouxe at6 nossas praias a onda revolucion6ria
Ausria'
minou com as revoluEO"s europ6ias da FranEa'
E que
Prussia e It6lia qu" tnt.ttaram o Velho Mundo?
Tamandar6
sempre, com o dlvido respeito, o Almirante
libertdrios?
pegou em armas contra os movimentos
'Oiiu-t. em defesa do Patrono que deixou li96es de
de quatro
marcado pragmatismo: embora monarquista
digna
costados, aaeriu d Repfblica com uma sentenga
reservas
dos maiores encdmios, embora recebida com
que o
pelos que permaneceram fi6is ds velhas id6ias
ul-irunt" jbgou ao mar: "O que est6 feito' est6 feito'
t20
Cuidemos agora de ftabalhar e engrandecer
a nossa pii_
tria"' Era tal seu justo prestigio q"ue escapou
da lei de
reforma compuls6ria promul[ada peio
Mar".tat
feldorg monarquista como ele, nias primeiro presiOente
da Repriblica do Brasil, e viu-se at6
nomeado ministro
do Supremo Tribunal Militar, cargo que
ocupari a at6
poucos dias antes de falecer uor
nou.nta anos de idade.
Tinha razdo de orgulhar-se do seu patrono
o inclito oficial,.agora presidente de um Conselho
Oe fo.tiga
lu"
iria julgar ferrovidrios, quem sabe seguidores
dos re_
volucion6rios de lg24 e 1g4g?
euem sabe? O presi_
dente do Conselho n6o sabia.
Mas voltando aos autos, eu at6 entendia
a apreen_
s6o dos oficiais pela situagdo ins6lita
de ouvir no pr"_
96o o altissonante Almirante seguido pelo moderto
soambos representados pelo negro bonachdo.
T"r
?
E
isso durante toda a instrugdo todo
o;ulgu*.nto. Era
"
de desesperar. Caprichei na prova
de defesa. Ouvi to_
das as testemunhas que me facultava
o C6digo de pro_
cesso Penal Militar e a elas invariavelmente
se conheciam o Almirante Soares,
caprichanio iupatu_
vra almirante, escandindo suas sflabas.
Os militares nao
conseguiram disfargar o constrangimento
que os aco_
metia, motivo de divertimento para-todos
os uOuoguJo,
de defesa, inclusive para o audiior, que
internu_"it.
deliciava com a ex6tica situag6o. Eu estava
me lixando
para o desagrado do Conselho e estendi
a sacanag"_ o
quanto pude. Guerra 6 guerra. Foi ent6o
qu" _""1.__
brei de um singular episodio que vivi quundo
pr"ro*
meu servigo militarobrigat6rio e que entdo
_. d._onr_
trava a sacralidade da hierarquia militar.
#rg*i;
,.
121
II
aos
O servigo militar obrigat6rio era uma ameaEa
iiAuO" de dezoito anos' Al3ouen, qur.o-pletavam
contingente"'
guns davam sorte de cair no "excesso de
felizardos que eventualmente
irOmio que alcanEava os
que n6o necessitavam
se inscreviam em circunscriE6es
conhecimentos
mais de pessoal; outros, apelavam para
livrassem do
familiares com oficiais doEx6rcito que os
ligaE6es
abacaxi. Terceiros, j6 porque n6o possuiam
escapar
militares, j6 porque tinham um certo pudorde
Aos
do servigo, iam ientar praqa' divididos embora'
j6
curo cienlffico (ou o cl6ssico)' ou
qo,
uma
para
"o-pletavam
universidade, era facultado o exame
*uude oficiais de reserva' Al6m do Cenpreparat6ria
-Preparagao
"t.ofu
de Oficiais da Reserva do Ex6rcito
tro de
de criar o
(CPOR), o -uit conhecido, a Marinha vinha
da Marinha
Centro de Instrugdo de Oficiais da Reserva
(CIORM). A duiaqdo do curso e a-freqii€ncia de aulas
os doeram semelhant.., drrunte o ano letivo' todos
os dias' salvo aos
-ingoq nas f6rias escolares, todos
forma'.era
doniingos. Era puxado. Mas, de qualquer
d dura
melhor do que servir na tropa, sujeitos os recrutas
era ser
vida da caserna - parecia que "servir d P6tria"
de sujeitarinfernizado por uma rotina irracional' al6m
dos sarse d ignorancia dos superiores' especialmente
jovens: os
gentos, como entdo se propalava entre os
i?".ori'eram sujeitos abaixo da condigdo humana' Resreserya'
mvam os cursos de preparagdo de oficiais de
ducom um ffatamento-tubidu-"nte melhor' embora
dois anos e
rassem o dobro do tempo dos conscritos:
a patente de
mais o est6gio de seis meses para alcanqar
t22
oficial. Entre os dois, dizia_se, a Marinha
era mais ra_
zodve' o tratamento era melhor, o oficial
-uir nJulgo.
Al6m disso, propiciava viagens de instruEdo,
como alu_
no ou como guarda_marinha, onde ainda
se ganhava uns
cobres. Menos funesto, de qualquer forma.
Foi pensando assim qu", ap6s o concurso,
encon_
trei-me na Ilhas das Enxadur, .u;o nome nunca
soube
que se referia i arte de capinar a-ter'raou
aludia a uma
esp6cie de peixe tele6steo da famflia dos
efipideor, pro_
vavelmente a este fltimo pois se tratava
de estabelecimento naval. Andei p"rguntando aqui e
ali, mas a ex_
pressio de assombro dos oficiais inquiridos
levou_me a
desistir da empreitada:-uma definigdo ou outra
o que
mudaria? E logo aprendi uma ligio: quanto
menos per_
guntas melhor, especialmente se a parte
n6o sabe ui"._
posta.
Os alunos eram identificados pela turma, que
to_
mava o nome de uma das letras do alfabeto.
qu. duuu
rigorosa sequoncia is anteriores. Assim, a primeira
turma fora Alfa; a minha era Nega, logo teriam
existido
dez turmas antes da minha.
Al6m disso, os alunos portavam o nfmero com que
eram classificados nas provas de admissEo. Fui
o triie_
simo segundo colocado. Dessa forma, na..chamadai
o
encarregado dos alunos dizia a turma e o nfmero
do
aluno, que teria de responder, berrando, a bom
berrar, o
seu nome de guerra, isto 6, o nome que lhe
haviam de_
signado entre os seus, n6o importuuu ,a prenome
ou
nome de famflia, e que servia para diferen.ia_to
de ou_
tro, o que impediria a homonimia e facilitava
o controle disciplinar. Na primeira cadeira da sala
de aula sentava-se o nfmero um, ao seu lado o nfmero
dois, e assim
r23
e l6gica'
sucessivamente: um sucesso de imaginagdo
vdo acabar se
Como em toda coletividade, os parecidos
J6 coencontrando no terreno comum das afinidades'
de Alencar e
nhecia Leon Hirzman, Marcos Machado
agregaram
zel\toviana, e logo a esse pequeno grupo se
-David
56rFinkielsztejn, Wilson Nogueira Rodrigues e
gio Salem, e est6vamos levando um papo -*:]1::l?:
lnstruEao'
6o o boca de ferro nos convoca para uma
obrigaramMarchar, v0 se pode! Embora na Marinha'
exercfcio devenos a aprender a marchar' Discordei' o
6 conria ser de nata96o. Inftil' Conversar com a rotina
o muro 6 inoversar com o muro' com a diferenqa que
em duas
fensivo. Daf que o sargento dividiu os alunos
,u*u, iguais. Uma dJas seria treinada por um oficial
defuzileiro chamado Herculano, QUe, por estar sempre
colegas' o
salinhado diferentemente de seus apurados
Comchamavam de Herculacho, e pelo tal sargento'
posta a formagdo, o sargento instruiu:
coDividi a turma em duas rnetades' Uma sob meu
Herculano"'
mando e a outra sob o comando do capitdo
prossegutr'
Mas de repente, parou' N6o conseguia
boca' Queria
Parecia que algo the pregara a lingua na
Mas
falar e n6o conseguia. Sintiamos o seu esforgo'
a
,"qu", balbuciaval E que o infeliz havia atropelado
e assuhierarquia: como dividir ao meio uma formaglo
mir a mesma importdncia de um superior?
Entretanto, ts anjos que protegem os simples.viea
ram em socorro do pobre-subalterno e sopraram-lhe
soluEdo. O sargento rcfez a divis6o:
A metade mai- Dividi a turma em duas metades' e a metade
or sob o comando do capitIo Herculano
menor comigo.
r24
..Do
lado esquerdo canego meus mortos.
por isso ando um
pouco de banda.,,
Carlos Drumond de Andrade
O encontro
Logo no inicio de janeiro de 1965, Rogdrio
Mon_
teiro, chamado Senador,e eu deixamos o
exilio chileno
e iniciamos a jornada de retorno ao Brasil.
Na v6spera da partida, altas despedidas em
casa de
Ad6o Pereira Nunes, com direito u dir.urro p.onun.i_
ado por Roberto Morena. o velho revolucion6rio
servia conselhos como antes fornecera contatos
e senhas
em Mendoza e Buenos Aires.
O pequeno dnibus venceu a duras penas o ingre_
me,.estreito e por vezes perigoso, caminho
que leia a
Portillo, centro de esportes de inverno e absolutamente
hs moscas naquele verdo. Adiante, a fronteira
com a
Argentina e a dificuldade em transp6_la. E que
Jir_
pfnhamos de passaporte, e a caftefuade identidade
"a" n6o
permitia o retorno ao Brasil porque o acordo
diplom6ti_
co ent6o vigente s6 autorizava idas e vindas
entre paf_
ses limitrofes.
Entretanto, tfnhamos um trunfo. E que a moga
que
atendia aos passageiros em Santiago nos
alertou iuru o
problema mas se encarregou de antecipu.
u ,oluiao uo
nos colocar em contato telefonico com um
certo sefior
La Pefra, chefe da aduana na fronteira com Mendoza,
que autorizou nossa viagem.
Foi o que relatei d autoridade que nos negava
a
entrada e que mesmo assim se obstinava
na recusa. o
r25
um tipo de coreferido La Pefla era' segundo o guarda'
pedidos' 56 que n6o
raE6o mole e atendia alodos os
devolver no
estava no momento e por isso n6s teriamos
o cara
.,ir. Dirr. pto Senador pra ficar engabelando
p"biu a ele indiiaEdo do urindrio pois estava
povoa"nquun,o
,o- u bexiga a estourar. Escapuli e no pequeno
que se lemdo n6o foi dificit encontrar o sefiorLaPefla'
cuja viabrava perfeitamente dos jovenes brasileftos
v6lido
g.; uutti zua. Darta um permiso de trdnsitovoltei
ao
io, de, dias, sem dfvida. Em sua companhia
teve outra saida seio*o e o guarda filho da puta ndo
as portas para
nao u de carimb ar atarieta que nos abria
a Argentina.
exianubela cidade de Mendoza' conhecida pela
a penslo indicada
celOncia de seus vinhos, procuramos
contato'
por Morena e 16 nos instalamos a espera do
era um ativista que j6
io, nao demoraria. Dom Floresmesmo
assim ainda traconhecera dias melhores' mas
as coszia altivo o semblante e esmerava em endireitar
Levou-nos a jantar
tas que o tempo teimava em curvar'
tamb6m de
num modesto por6m excelente restaurante'
despachou
um companheiro, e na manhd seguinte nos
.o- purrugens de segunda classe em um trem de ferro
que demandava a caPital'
Aires e nos
Chegamos madrugadinha em Buenos
no .ufe da estagdo ferrovi6ria de
deixamos ficar
do-advogaBelgrano at6 a hora do encontro na oftcina
partido t:!1uu
do Cemrti Costa, naCalle Esmeralda' O
polftica
na legalidade apenas formalmente' A situagdo
dirigentes mais
argentina comegava a encachorrar' e os
delas natuiniportantes j6 tomavam precauE6es e uma
,ul-"nt" era a de n6o pisar na sede' que ficava perto do
r26
escrit6rio de cemrti e cuja porta s6 se abria ap6s rigorosa identificaEdo do visitante. A senha que o tuorJnu
nos dera funcionou e fomos atendidos. Rog6rio se hospedou em casa de uns judeus ricos, simpatizantes do
partido, 16 pelos lados de palermo, e eu em casa de um
estudante de medicina, natural da cidade de Rosi{rio,
chamado Alberto, bem no centro da cidade. Estranhei
quando entrei na casa porque me vi em um consult6rio
dent6rio e logo recebi a explicagdo: os donos da casa,
pai e mde do Alberto, membros antigos do partido, eram
dentistas, e a sala servia de consult6rio a ambos. Apar_
tamento espagoso era tamb6m servido por outra entra_
da lateral que lhe dava privacidade e n6o prejudicava o
atendimento aos clientes. o consult6rio nao interferia
na rotina da casa a ndo ser pelo forte odor de eugenol
que impregnava todos os ambientes e me dava as"nsu_
96o de que a qualquer momento um meu dente seria
inevitavelmente extraido.
Alberto era uma companhia formiddvel. Amante
do tango tradicional, n1o desprezava seus avangos. Foi
em sua casa que pela primefua vez ouvi a mrisica de
Astor Piazzola e fui apresentado ao seu incrfvel Adi6s
nonino. O not6vel compositor era incompreendido em
sua terra e s6 ap6s o 6xito que lhe veio do estrangeiro,
especialmente de Paris e Nova Iorque, passou a ser mais
bem-aceito pelas plat6ias portenhas, e mesmo assim em
termos, pois
resistdncia ainda era grande contra a
novidade que oferecia. O argentino se aferrava ao tango
estilo Gardel como se essa mfsica esplOndida nao pu_
desse competir com o tango novo qtrcpiazzola criava,
mrisica tambdm da cidade de Buenos Aires, como ele
mesmo fazia questdo de repetir, n6o tendo drividas em
a
t27
chegar hs fugas de algum recalcitrante nio inteiramente
convencido, mesmo ap6s tantas e t6o belas explanag6es'
pois o maestro tinha pavio curto a ele nlo custando compl"tut explicaE6es musicais com ponadas para valer'
Melhor para Alberto que adorava Gardel ePiazzola
e ganhava em dobro o ptazet de ouvir a boa mfsica de
urnbot. Comparava o novo tango com a nossa bossanova, descobrindo semelhanqa e surpreendendo harmonias. Perdlo, a bossa-nova se aproximava do compasso
do jazz americano, i6 o novo tango sofria a influencia
da mrisica cl6ssica, argumentava eu inutilmente para um
ouvinte mais preocupado em definir o novo tango como
a bossa-nova argentina do que buscat origens mds
Iejanas. DiferenEas conceituais que n6o nos impediu
di viver a fant6stica noite portenha, suas casas de tango'
-
seus agrad6veis caf6s, suas garotas adordveis' Muita
fana e pouca politica. Era muito reservado o Alberto.
Melhor assim.
E n6o foi sem muita pena que recebi instru96es para
tomar um velho DC-3 que ent6o fazia a linha BuenosAires/Col6nia, j6 no Uruguai, onde nos esperava
Batistinha, antigo ferrovi6rio e deputado cassado, que
lise exilara em Monteviddu onde cumpria a tarefa de
em
gaEdo com Porto Alegre. Deu-nos o contato
Taquaremb6.
Um certo Ziggia, dono de uma livraria, que nos
receberia e providenciaria nossa volta quando ouvisse
a senha: "Trago couros para Livramento"' Lembro-me
de que Rog6rio, incorrig(vel conquistador, acertou duas
lindas mogas para dividir a noite conosco e marcou encontro em um caf6 perto da pensdo que nos alojava'
Inutilmente esperamos.
r28
Ainda sob o efeito do bolo, nos mandamos
para
Thquaremb6. O livreiro era um tipo
alto, espadarido,
grossos bigodes que lhe tomavam
o rosto largo. Ao ou_
vira senha, abriu-se em sorrisos e indicou_nor"uauponu
nos fundos da loja por onde entramos
e logo no, u^i_o,
na sala onde pendia um enorrne retrato
Oo anntriao abra_
gado ao camarada prestes. Estdvamos
em casa.
Fez-nos chegar a Livramento por
uma trilha e to_
mamos o trem que nos levaria a porto
Alegre e a outro
contato, que nos ligou a 56o paulo, onde
uma empresa
muito agraddvel nos seria reservada. E que
ta nos tros_
pedou Geraldo Monteiro de Barros,
tio de paulo Alberto
e qyerido amigo nosso, extraordin6rio conversador
e
cozinheiro de m6o-cheia. Surpresa das
su{presas, li{ es_
tava amoitado o Alufzio Leite, mais
tarde ienomado livreiro na praga do Rio de Janeiro.
Ficamos uns dias em Sdo paulo e finalmente,
com
o Alufzio, retornamos ao Rio. 56 voltaria
a 56o puui;
tempos depois para conversar com fndio,
que me deu
noticias de Alberto.
;;
II
em pouco mais de um ano. Mas se a
cida_
.de eraVoltaria
a mesma,
os tempos eram outros. Hospedei_me
novamente em casa do querido Geraldo.
Conversamos
conversas do passado, lembramos os
amigos o p"Ou_
go do exflio comum em La paz, allmde
"
naturalmente
passar em revista a chamada conjuntura,
exercicio a que
se dedicam exaustivamente os militantes
como se a roda
da vida dependesse de suas avaliag6es.
129
da glt:O contexto politico j6erade exacerbagdo
revolucion6rio
ra fria. A via pacffica para o processo
na Am6rica
golpes
de
far"cia cortada com a sucessAo
Vietnd dramaLu,inu. O apelo de Cuba, que a guera do
esperanEas' O
tizava,comovia corag6es e iniendiava
numa rmensa Sie rra
Che prometia transformar os Andes
aspiraMaestra,dando curso n6o apenas a uma antiga
gue assumlra
gdo mas tambdm honrando compromisso
do antigo
com os vietnamitas, em Han6i, ap6s se retirar
impossibiC;;g; belga desiludido em face da absoluta
latinoudaie de articular o movimento revolucion6rio
com Ho
americano com o africano' Comprometera-se
segunda
Chi Minh e com o general Giap em abrir uma
Unidos' No Vietnd' os amenfrente contra os Estados
na Am6rica
canos combatiam longe do seu tenit6rio;
6rea de inLatina teriam de lutai diretamente em sua
Segunda
flu0ncia. Giap valia-se da experiOncia da
lma segun'
Guerra Mundial quando os aliados criaram
alemlo' feridafrentecontra o entao poderoso ex6rcito
mas esdo de morte ap6s o embarque na Normandia'
no varejo'
o que ensinava: a hist6ria s6 se repete
[u..iu
jamais no atacado
oscubanosestavamconvenctdosdequeosEstalegftima defesa
dos Unidos iriam invadir sua Ilha, e a
o ex6rcito norteera conflagrar o Continente forqando
de que
americanol diversas intervenE6es, deslembrados
a desastrada intervenqlo na Repfblica Dominicana
de Estado'
mudaria o comportamento do Departamento
nos exerque passaria a apoiar sua politica diretamente
milita.i.io, dos pafses vizinhoi, fomentando golpes
jamais
os inres, assessorando-os, financiando-os' mas
pequenos
vadindo com suas tropas para inaugurar
130
Vietnds pela Amdrica Latina a dentro. O comandante
Ernesto Che Guevara voltara inc6gnito de Cuba viajando, desde Paris, no Ilushin que Fidel recebera de presente de Kruschev e que dispunha de tanques especiais
que lhe permiti am fazer a travessia Moscou-Havana sem
escalas. Al6m de Castro, poucos chefes militares cubanos esperavam o Che, cuja viagem fora cercada do maior
sigilo. Fidel e Che, sozinhos, como de costume, conversam por quarenta horas seguidas. Acertaram seus
ponteiros em defesa de Cuba e da revolugdo. No dia em
que partiu, Fidel organizou uma despedida para o companheiro, mas disse aos demais convivas que se tratava
de um dignitdrio estrangeiro. Ningu6m reconheceu o
Che, o disfarce estava perfeito.
A teoria do foco ganhava adeptos. Seriam instaladas trds frentes na Bolivia, de onde partiriam colunas e
se encontrariam com outras que viriam do peru, da Argentina e do Brasil, esta organizada no Uruguai. O
foco boliviano serviria como centro de adestramento
militar e reenviariaparuos paises de origem os quadros
j6 treinados. Os povos reviveriam suas lutas coloniais
anticolonais, e um novo Simon Bolfvar estaria a caminho para resgatar soberanias perdidas.
No inicio de 1966, seria aberta a lu Confer0ncia
Tricontinental, em Havana, marcada pelo aprofundamento
do j6 declarado conflito sino-sovi6tico. No riltimo dia do
encontro, o Senador Salvador Allende prop6e a criagdo da
Organizagtro Latino-Americana de Solidariedade (Olas),
afinal aprovada pela unanimidade das vinte e sete delegag6es presentes, uma espdcie de c6pia do Komintem dos
anos 30.
t3l
ilI
Encontro o indio no Viaduto do Ch6 no final da
tarde, hora de intenso movimento, o que protege a clandestinidade. E logo sou prisioneiro de seu forte abrago.
Sua alegria era contagiante, esquentava a noitinha fria
da garoa. Mas n6o impediu a chuva que de repente caiu
pra valer. Refugiamo-nos num restaurante e botamos a
conversa em dia.
Preparava-se para viajar a Havana, via Praga, e
participar da Confer€ncia de Solidariedade dos Povos
da Amdrica Latina. Dava cumprimento d resoluEdo do
Comit6 Central, que apoiara as decis6es da Confer€ncia Tricontinental de Havana. Se voltaram atr6s o problema n6o era dele. Amrmaram firulas jur(dicas para
demrbar uma eleig6o em um partido clandestino. Pouco importava, a revoluglo prescindiria dos velhos partidos voltados exclusivamente para a URSS e para sua
acomodada politica de superpot6ncia e por isso deformados. Os sovi6ticos querem preservar seu imenso parque industrial dos azares de um confronto com os americanos. A necessidade dos paises subdesenvolvidos 6
outra: s6 sairlo da depend6ncia econdmica do imperialismo atrav6s da luta armada. N6o serd assumindo posigio caudat6ria d polftica sovidtica que poderemos avangar o socialismo no mundo. Os sovi6ticos que cuidem
dos seus interesses, n6s cuidaremos dos interesses do
povo brasileiro.
Pondero que a bruxa est6 solta e nada favor6vel
aos revolucion6rios latino-americanos. Recordo o assassinato de Guillermo Lobat6n, no Peru; Camilo Torres na Col6mbia, nosso amigo comum apresentado que
r32
foi por Thiago de Mello em praga, estaria lembrado? E
os quase trinta dirigentes revolucion6rios guatemaltecos
monos em uma mesma operagdo, al6m de Tfcios Lima
trucidado em seguida? E Fabricio Ojeda na Venezuela?
A guerrilha 6 apenas uma forma de luta, n6o pode ser
transformada em estrat6gia do movimento. Se n6s apren_
demos com Cuba e o Vietn6, o inimigo tamb6m. g- inri_
til tentar reproduzir entreveros que seriam eliminados
por simples helic6pteros. A populagEo ainda nio est6
mobilizada contra a ditadura. para que queimar etapas?
A decisdo de declarar gueffa continental contra o, Er_
tados Unidos 6 uma rematada loucura. Fomos derrota_
dos politicamente pelos militares. precisamos derrot6los politicamente, ora. Iniciamos entendimentos com
Jango, Juscelino Kubitschek, Lacerda e naturalmente
Prestes. A id6ia 6 organizar uma ampla frente pela
redemocratizagdo, anistia ampla, convocagio de uma
Assembl6ia Constituinte...
indio corta minha arenga.
- VocO nlo quer jantar? ConheEo uma cantina ex_
celente aqui perto. E melhor do que ouvir esse seu papo
furado. Voc6s vdro fazer alianga com nossos inimieoi e
obrigar o regime a reagir contra vocOs. E de uocCs a
escolha. Nossos caminhos se separam sem retorno.
E ante o meu estupor.
- Mas n6o a nossa amizade. Vamos jantar e tomar
um bom vinho porque a vida vale o que vale.
Caminhdvamos em diregdo h praga do patriarca
quando ele se lembra de alguma coisa, p6ra e segura
meu brago.
- VocO conheceu na Argentina um m6dico chama_
do Alberto ndo sei o qu6?
133
sim. Hospedei-me na em casa dele quando passei por Buenos Aires, em 1965. Por qu6?
Perguntou-me por voc6, em Havana. Ficaram
amigos, n6o?
- Ficamos.
- Ent6o a notfcia ndo 6 boa.
- Que notfcia?
- Os pais dele morreram...
- Morreram? Como?
- Se mataram. Abriram o g6s e moreram juntos.
- Conheci,
-
IV
indio iria morrer numa cilada armada pela repressio. Os jornais noticiaram o crime e estamparam a foto
do morto no carro ao lado de sua companheira, tamb6m
assassinada. A versflo da policia 6 que ele teria resistido
i ordem de prisdo e tombado no tiroteio. Mentira' Indio
fora morto numa tocaia, i traigdo. Eu estava numa reunido quando chegou a not(cia; ficamos muito abalados'
Diverg6ncias polfticas? Qual, todos morremos um pouco naquela noite. O delegado que o assassinou seria
morto, mais tarde, por agentes da repressdo: acerto entre eles, queima de arquivo.
V
Tempos depois ao voltar para casa do batente a
empregada me informa que uma pessoa' um homem,
havia telefonado v6rias vezes. Falava diferente, como
134
se neo fosse brasileiro; mas portugu6s n6o era, tinha
certeza. Falando no mal e o telefone toca novamente.
Desta vez atendo e reconhego a voz do Alberto: ,,Como
estds
?
"
Eu estava bem. E ele, onde estava? Na rodovi6ria.
Precisava de um favor. Como n6o. Esperasse que eu j6
estava chegando. Nesse tempo eu morava no Grajari e
foi s6 montar no fusquinha e num pulo chegar d Rodovi6ria Novo Rio. E ld estava o Alberto velho de guerra
- mais velho eu vi; e mais guerreiro, presumi. precisava que eu o levasse a Slo Paulo. Perfeitamente, mas
amanh6. Necessitava preparar o catro, fazet uns arranjos no escritdrio e avisar d secret6ria da Faculdade que
n6o daria minha aula. Alberto ficaria em minha casa
por uma noite e 16 pelo meio-dia poderiamos tomar o
rumo de 56o Paulo.
Na viagem contou-me um pouco de sua vida. Com
a morte dos pais (n1o falou da trag6dia, mas verifiquei
que apeftava nervosamente as mdos) e j6 formado, resolvera fazer resid6ncia num hospital de sua terra natal,
Ros6rio, tomando o caminho inverso dos colegas de 16
que procuravam a capital para a primeira especializa96o. Trabalhava em um hospital priblico e mantinha
consult6rio numa zonadaperiferia para atender os mais
pobres. Ia tocando a vida. E os tangos? Cultivando sempre. E satisfeito porque o talento dePiazzola era agora
reconhecido no mundo inteiro. E Gardel, como eu n6o
deveria ignorar, cantava cadavez melhor. O mesmo se
dava, disse eu, com o nosso Orlando Silva: cada dia
que passa sua voz dos primeiros tempos ainda mais se
apura. Sobre Cuba ndo falou nada. E nem perguntei.
Nessa atividade perguntas n6o s6o bem-vindas.
135
A noitinha chegamos a 56o Paulo e nos dirigimos
d rua que abrigava o bar onde iria encontrar quem procurava. A rua ficava no centro e n6o foi dificil encontr6la; nem o bar. Entramos. Uma porta de vaiv6m abria-se
para uma sinuca. No fundo dela um grupo de homens
jogava em mangas de camisa. Ndo conhecia qualquer
deles, mas minha atengio foi despertada por um que
me apertou as mdos como se j6 tivesse feito o gesto
mais de uma vez. N6o era apenas um forte aperto de
mdo, comum entre companheiros que sabem depender
da solidariedade para viver e por isso d6o alto valor a
pequenas coisas como um aperto de mdo, que no simples da vida n6o se repara. De altura mediana, nem jovem nem velho, nem gordo nem magro, cabega e barba
raspados, apenas os olhos claros chamavam a atenElo'
Pareciam febris e ao mesmo tempo calmos. Deixei-o
com a sensagdo de que n6o sabia quem era' mas tinha
certezade conhecO-lo. Abracei Alberto com o sentimento de que nio mais o veria. Retive na mem6ria seu gesto acenando na porta do bar enquanto eu me afastava'
Nunca mais o vi.
VI
Como sempre, hospedei-me com Geraldo. Saboreei sua conversa e apreciei a carne assada com molho
de femrgem acompanhada de uma farofa com pouca
farinha, muita cebola, muito ovo e como arremate uma
salsinha pra deixar na boca o gosto do c6u.
Tamb6m como sempre passamos em revista a conjuntura polftica, al6m de recordarmos a in6spita, por6m
136
hospitaleiraLaPaz; os amigos que 16 deixamos, os que
se espalharam pelo mundo na di6spora imposta pela
ditadura. Comuna velho, Geraldo ndo faziaf6 naguerrilha, era aventura cabeluda. Tamb6m n6o dava ponto
para o trabalho de frente ampla. eual, a ditadura ainda
iria ficar por muito tempo; s6 a ruptura entre os militares e os grandes empresiirios sustent6culos do regime 6
que abriria caminho parc a redemocratizagdo. Americanos e sovi6ticos haviam acordado com relagdo ds res_
pectivas 6reas de infludncia. A posig6o cubana era de
desespero. L0nin tambdm achava que a perman€ncia da
revoluEio bolchevique dependia de outras revolug6es
na Europa desenvolvida. N6o deu e St6lin teve de cavar
trincheiras em seu pr6prio territ6rio. Cuba depende da
solidariedade internacional e da ajuda sovi6tica. Essa
posigdo guerrilheira em nada a ajuda. para sobreviver,
Cuba ter6 de recuar e compor-se com a polftica das grandes pot6ncias.
A conversa estava boa, a comida supimpa, mas eu
permanecia inquieto. Desassossegado que nio passou
desapercebido ao amigo. E que fiquei invocado com
um cara que conheci hoje, ou que hoje revi, ndo sei.
Contei por alto, como convinha e Geraldo sabia, a viagem e o encontro na sinuca; a impressIo que me ficara
de um dos companheiros. E como se eu jamais tivesse
visto o cara mas identificasse seu aperto de m6o e sobretudo seus olhos:
- Febris e calmos, seu Geraldo, como 6 que pode?
137
VII
Passam-se alguns meses e leio nos jornais a eclosio
da guerrilha na Bolfvia. Uma luz se acende em minha
mente. Como o flash de uma m6quina fotogr6fica que
retardou seu clarlo.
Foi o Che que eu vira no fundo do bar em Sdo
Paulo.
138
"A
nossa infdncia, 6 minha irm6, t6o longe de n6s!',
Manoel Bandeira
Mateus Rosd
Em meados de 1966, quebrava pedra em um pequeno escrit6rio de advocacia que dividia com dois
amigos do meu bairro de Grajari: Reynaldo Gayoso e
Gilberto Cabral.
O escrit6rio consistia em uma sala no Edificio Marqu€s de Herval, na Avenida Rio Branco. Reynaldo e eu
vivfamos num pendura danado. De fixo, Reynaldo tinha
o modesto sali4rio de funcion6rio do INPS e eu o magro
vencimento de professor. Gilberto, entretanto, jd era procurador da Caixa Econ6mica Federal e ainda defendia
um bom sal6rio. Digo que o sali{rio do Gilberto ainda
era bom, porque o golpe militar de 1964 elegeu, entre os
seus muitos inimigos, os tesoureiros e os procuradores
da CaixaEcondmica, e comprimiu-lhes os saldrios. Lembro-me que um finissimo colega meu de turma na Faculdade de Direito, Heitor Guilmar da Silva, infelizmente j6
falecido, tesoureiro da Caixa, contava ter ouvido, antes
do golpe, a reclamagdo furibunda de um coronel do Ex6rcito indignado, porque ganhava menos que um tesoureiro da Caixa. Heitor, de natural calmo, virava fera: ,.Eu
trabalho, ora". Mdrio Nunes de Alencar, outro colega
nosso de turma, indagou irdnico se o coronel achava que
ele ganhava muito e se, em contrapartida, ele achava que
o coronel ganhava demais. "Exatamente", respondeu Heitor. Mi4rio deu sentenga: "Ambos t€m razdo,,. O tempo
iria concordar com Mi4rio: achatou o sali{rio de ambos.
139
Ao final do expediente no escrit6rio,
16
pelas seis
da tarde, tomava um pequeno lanche naLeiteria Mineira e me encaminhava para a Faculdade onde ficava a
dar aulas atd vinte e duas e quarenta, aulas que voltaria
a dar, na turma da manhl, a partir de sete e quarenta.
Nunca soube o porquO dos quarenta, mas as minhas aulas
comegavam ou terminavam invariavelmente em tanto e
quarenta. Pouco antes das seis, costumava aparecer, no
escrit6rio, o mddico Paulo Gl6ucio, meu contempordneo de Universidade, dileto amigo que me acompanhava no lanche, onde, fatalmente, pedia um requeijdo de
PoEos de Caldas, segundo ele saborosissimo. Por mais
de uma vez provei o tal requeijlo sem jamais conseguir
encontrar qualquer gosto. E insfpido, diziaeu ao Paulo
Glaricio. Qual, retrucava, 6 que voc6 n6o sente o gosto
de saudade que ele tem. E nem podia. Se o sabor ligava
o queijo s6pido a acontecimentos que s6 ele vivera, como
6 que eu podia, nele, distinguir sabores? Nem distinguir e nem argumentar, pois o amigo era psiquiatra, e
psiquiatra 6 naEdo, como todos sabem, de pessoas que
explicam as coisas dos outros enquanto mant€m avaramente, em segredo, os pr6prios mist6rios. 56 mais tarde iria compreender Paulo Gl6ucio e o seu requeijio.
Vivi, quando menino, uma vida tdo feliz que ndo
me dava conta dos apertos porque passavam meus pais,
para nos da4 a meus irmdos e a mim, o conforto que
desfrutdvamos. Privavam-se de tudo para que nada faltasse aos filhos. Ir ao teatro, ou mesmo ao cinema, ou
jantar fora, era para eles um acontecimento raro. Anivers6rio de mamde, aniversdrio de casamento, ou quando entrava alguma graninha extra de alguma contabilidade que papai arranjava. Ap6s fazermos quinze anos,
r40
meu irmao e eu comemor6vamos nossos anivers6rios
jantando fora e indo a um teatro de revista, em que nos
delici6vamos com as piadas picantes e com as mulheres peladas, n6o me lembro em que ordem. Nessas
efem6rides, papai costumava pedir um vinho que muito apreciava, o Mateus Ros6, e nos deixava prov6-lo.
Ach6vamos uma delfcia.
Tia Leonor, irmi de minha av6 por parte de pai,
casara-se com um portugu6s abastado e morava em uma
casa apalacetada 16para os lados do antigo Derby Clube.Yez por outra, nos convidava para o almogo de domingo onde era servido, no varanddo da casa, um farto
cozido regado ao bom vinho portugu6s: ora o Casal
Garcia, ora o Mateus Ros6. Tinhamos permissdo para
provar os vinhos. Que delicia!
Homem feito, devezem quando pedia, em mensal
almogo no restaurante Cabaga Grande com um grupo
de amigos, o tal Mateus Ros6. Agozagdoerageral. Nem
todos os vinhedos de Portugal dariam para fabricar a
quantidade de Mateus Ros6 que 6 colocada no mercado, diziam. Tem at6 propaganda na televisdo americana, implicavam. Riam-se. Mas eu gostava.
Muitos anos depois procurei tirar a limpo essa hist6ria de vinhos.
Estava com Lricia, minha mulher, em Lisboa, no
Thvares, esplOndido restaurante com uma linda decora96o do final do s6culo XIX, e famoso pela excel6ncia
da cozinha e da soberba lista de vinhos. Seu Fernando,
um portugu€s educadissimo, era o propriet6rio e principal maitre da casa. Jd nos conhecia, porque toda vez
que iamos a Lisboa n6o dispens6vamos o jantar do
Tavares. Como o sobrenome de minha mulher 6 tam141
b6m Tavares, seu Fernando via na coincidOncia, quem
sabe at6 um parentesco: "Pois ndo somos todos portugueses, pois?"
Era t6o gentil que me animei a perguntar-lhe sobre
vinhos.
"Tintos, naturalmente" - foi a primeira resposta.
Quis saber o porqu6.
"Bom, vinho 6 s6 o tinto. O branco 6 apenas uma
bebida agrad6vel, pois."
Deixou espago. O Mateus erarosado, nem tinto nem
branco. Dai a pergunta:
"E o Mateus Ros6, seu Fernando, 6 bom vinho?"
Seu Fernando percebeu que a pergunta pedia uma
resposta positiva.
"E bom, sim. Desde que Vossa Excel€ncia n6o o
beba."
r42
"O segredo d a alma do neg6cio."
dito popular
Oespidoeocigarro
Outro dia sonhei que estava fumando no Muro de
Berlim. Acordei cismado. Que sonho mais
escalafob6tico! N6o fumo e o Muro de Berlim j6 foi
demrbado. Tem gente que pensa ser a posigdo em cima
do muro extremamente confort6vel. A pessoa ndo tem
de dar palpite. Guarda para si sua opini6o. Quando acontece algo de bom ou de ruim, invariavelmente anuncia
orgulhoso: "Eu n6o falei?" Falou o quO? Falou nada,
mas como conferir se na verdade ndo falou? O sildncio
n6o 6 de ouro? E o murista sempre pode dizer que falou
para Sicrano com Fulano, para Fulano com Beltrano e
para Beltrano com o ministro da Justiga ou com o senhor Cardeal: como conferir?
Mas 6 um ledo engano pensar que a posigdo em
cima do muro 6 sempre confort6vel. No meu sonho absolutamente n6o era. E n6o era porque fui hostilizado
por ambos os lados. Os guardas sovi6ticos rangiam os
dentes para mim; e os guardas americanos os dentes
rangiam. O que era um absurdo. J6 que o sonho recriara
a gueffa fria, ent6o um dos lados teria forgosamente de
me dar guarida, fazer-se simpdtico. Agente de um lado
ou de outro. E se fosse agente duplo? Devia ser isso, os
comunistas pensando ser eu agente do imperialismo
internacional e os americanos na certeza de que era eu
enviado de Moscou. E eu ali fumando. Sinuca de bico!
No momento em que ambos os lados comegaram a ati143
rar em mim, talvezpelo barulho das arrnas, acordei banhado em suor.
Dia seguinte, no almogo com dois amigos, Lufs
Matoso e Roberto Percinoto, contei o ins6lito sonho.
Acharam graga. A guerra fria refugiada no sonho j6 que
a vida deu-lhe fim. A conversa escoregou para casos
de categ6rica espionagem e cenas de tabagismo explfcito, que n6o me furto de contar.
A KGB (antes da queda do Muro, naturalmente)
enviou um agente a Lisboa para entrar em contato com
o correspondente local do servigo, um agente portuguOs
de nome Manoel Gongalves. As instru96es eram precisas: nada de telefonemas, chegar e ir diretamente do
aeroporto h casa do espi6o, dizer-lhe a senha (Rosas
sdo vermelhas, gardAnias sdo azuis), conferir a contrasenha (Nossos jardins sdo iguais), colher as informa-
E6eseretornardbase.
Dimitrov, agente veterano, cumpriu i risca as recomendag6es. Do aeroporto de Sacav6m tomou um t6xi
diretamente para o enderego de contato. A( uma surpresa, em vezdacasa que constava no relat6rio que o agente
decorou e rasgara, havia um edificio de apartamentos
com dez andares. Dimitrov cogou a cabeEa, porque o
agente secreto tamb6m coEa a cabega, e pesquisou os
nomes alinhados no interfone, cadaum correspondendo
ao respectivo botlo de chamada. Ai outro problema:
havia dois Manoel GonEalves, no quinto e no d6cimo
andares. O manual do servigo secreto recomendavaprud6ncia aos agentes em casos de emerg6ncia. Ent6o era
simples, bastava apertar o interfone do quinto andar.
Foi o que fez. E uma voz de homem atendeu ao
interfone:
t44
- Esta 16?
Dimitrov, agente escolado, lascou a senha:
- Rosas s6o vermelhas, gard6nias s6o azuis.
- Perd6o, aqui 6 o Manoel Gongalves o alfaiate. O
Manoel Gongalves espido comunista 6 no d6cimo andar.
II
Na ditadura do general Medici, todo cuidado era
pouco. As regras mdximas de seguranga foram rigoro_
samente observadas para a reunido da diregdo encarregada de elaborar a proposta de resolugdo politica a ser
apresentada ao Comit6 Central.
A casa do subfrbio era segurissima. O caseiro,
membro antigo do partido e versado na prdtica da clandestinidade. Todos chegaram noite. Vieram numa
Kombi fechada e com os olhos rigorosamente vendados. O respons6vel pela seguranga respirou aliviado:
tudo azul. E comegaram a trabalhar no documento.
Comunista, como ningu6m ignora, fuma muito, e
a concentragdo no exaustivo trabalho de redagdo au_
mentou em muito o consumo de cigarro, QUe a certa
altura acabou. Ap6s muita discussdo, deliberou-se que
o caseiro iria ao botequim mais pr6ximo fazer a compra. Comegaram as encomendas e cada um pediu a sua
marca. Nesse momento, interveio o',assistente" com a
voz da experi€ncia:
"- Peraf'. Se cada um pedir uma marca diferente,
t6 na cara que tem muita gente aqui.
Clgro. Todos concordaram. Depois de muita discusslo chegaram ao consenso sobre amatca. Abasteci_
i
r45
do de dinheiro, foi o caseiro cumprir a tarefa no bar da
esquina.
- Seu Manoel, me d6 dois pacotes de Continental,
por favor.
O portugu€s entrega os dois pacotes pedidos e comenta:
- Como fumam esses comunistas!
146
"
Se vocA rcve a sorte de
ir a paris quando jovem,
sua presenga continuard a acompanhd_lo
pelo resto da vida, onde quer que vocA esteja,
porque Paris 6 umafesta m6vel.',
Hemingway, 1950.
O regime de banhos em Oak Park, Illinois
Ningu6m ignora que sou bi6grafo de Hemingway.
Ningu6m se resume a mim pr6prio e ao meu editor
(temeroso de que eu leve adiante o projeto), al6m de
um reduzido grupo de amigos, sem falar naquelas pes_
soas de boa vontade que lOem as notas bibliogr6ficas
que publico ao final dos meus livros, onde anuncio,
entre as obras "em prepafo", Hemingway, e os anos
loucos.
Hemingway de Ernesto Hemingway mesmo; e os
anos loucos tirados do livro de William Wiser, que
tem como subtitulo "Paris na d1cada de 20,,, exata_
mente d 6poca em que situo o meu trabalho (em pre_
paro). Wiser acreditava que a Belle Epoque terminou
em janeiro de 1920 quando Amadeo Modigliani, que
morreu de meningite tuberculosa no Hdspital de la
Charit6, foi enterrado no pdre Lachaise; e que os anos
loucos propriamente seriam inauguradoi por paul
Deschanel, doido de pedra, elevado i curul presidencial francesa por uma manobra politica contra o temi_
vel Clemenceau, manobra que promovera
o
maluquinho ao mais alto cargo do pais, afinal interna_
do em Malmaison, instituigdo destinada ao tratamento
de mol6stias nervosas.
r47
Deschanel teria sido o precursor dessa era, o presidente biruta fora provavelmente a evid6ncia de que Paris iria viver a ddcada de20 como les annds folles.
Marcaram encontro, na Paris dos anos 20, exilados
da lei seca americana, russos brancos que se pirulitaram
do regime sovi6tico, prfncipes e condes, alguns de
araque, mfsicos, pintores, escritores; marcaram encontro com uma cidade que se transformava e que iria modificar suas vidas, carreiras, expectativas, criando esperangas, enterrando ilus6es. Ao chegarem, j6 encontraram outros jovens americanos que a primeira Guerra
Mundial atrairapara o continente europeu. Por 16 viveram ou perambularam Samuel Beckett, Stravinski, E.E.
Cummings, John Dos Passos, T.S. Eliot, Gurdjiel Zelda
e ScottFitzgerald, James Joyce, Nijinski, Pablo Picasso,
Cole Porter,Ezra Pounde, Gertrude Stein, Geraldine
Ferrar e Isadora Duncan, Ford Madox Ford, e miles e
miles de outros. E naturalmente Ernest Hemingway,
antigo voluntdrio da Croix-Rouge, motorista de ambulincia na It6lia onde foi gravemente ferido e tratado no
hospital americano de Milio. Como volunt6rios, tamb6m serviram John Dos Passos e Agnes Von Kurowsky,
por quem o jovem Ernest se apaixonaria definitivamente,
mas dela levaria uma tremenda lata quando a moEa se
casou com um coronel italiano. Em Adeus ds armas
(1929),Hemingway descreve a ess€ncia dessa relaEdo
em duas curtas p6ginas; antes, em uma novela (Uma
pequenina hist6ria), narra seu desesperado amor por
Agnes. No final da guerra, Hemingway volta aos Estados Unidos. Refeito da paixdo descabelada por Agnes,
casa-se com Hadley Richardson; o casal decide viver
em Franga.
r48
Chegam a Paris (1921), vindos de Le Havre, e se
hospedam no barato H6tel Jacob, adequado, portanto,
i penriria do jovem casal; e fazem refeigOes no restaurunte Pr6 aux Cleres (iantar para dois entre 12 e 74 francos e vinho Pinard a sessenta c6ntimos), na esquina da
rue Jacob com a rue Bonaparte.
E logo o casal muda-se para a rue Cardinal
lzmoine, 74; a partir de entdo, pode o leitor acompanhar a vida dos Hemingways em: paris 6 uma festa,
livro p6stumo que cobre o periodo de sua vida entre
l92l e 1926, editadopela Civilizag6o Brasileira e traduzido pelo saudoso iinio Silveira.
O apartamento ficava ao lado da place de la
Contrescape, onde tamb6m se situava o Caf6 des
Amateurs, preferido por clochardsbeben6es do bairro,
e que Hemingway evitava por causa do cheiro dos corpos sujos e do azedo da embriaguez. Hemingway e sua
mulher aceitaram as condig6es extremamente prec6rias
de sua moradia e se adaptaram perfeitamente i rude
vizinhanga. Na loj a B o i s - Charb on-Vn, Hadley comprava vin ordinaire e na feira da rue Mouffetard legumes
mais baratos, especialmente opoireau,que preparava d
francesa: cozido e servido frio com vinagre e azeite.
Um pastor de cabras, com sev tropeaz, amanhecia na
Place de la Contrescape e abastecia os moradores com
o leite tirado na hora. Para escrever, Hemingway alugou um quarto narue Decartes n" 39, onde constava ter
falecido Verlaine.
Mudou-se posteriormente para o no113 da rue
Notre-Dame-des-Champs. Depois, ao separar-se de
Hadley, Hemingway foi morar em um ateliO na rue
Froidevaux - informagdo que colho em Wiser, pois
149
Hemingway omite em Paris 6 umafesta sua separagio
com Hadley, embora admita seu romance com \mapt
quena por quem me apaixonara. Voltando de Nova
Yorque, deteve-se em Paris para ficar com a pequena,
mas retorna d estaEdo de inverno de Schruns, na regido
austriaca do Voralberg, reencontra Hadley e se admira
de seu interesse por outra mulher que n6o ela. Contudo,
bastou voltar a Paris, no fim da primaver\ para que a
outra coisarccomegasse. Com Pauline teria morado em
dois lugares diferentes, pelo menos. A Hotcher (Papd
Hemingway) Hemingway revelou que morara com
Pauline nos arredores de Montmartre; em outro trecho
da biografia, ao atravessarem a p6 a Pont Royale paru
almogar no Closserie de Lilas, longe, portanto, de
Montmartre, o escritor mostra ao amigo um edificio alto
e estreito onde morara com Pauline no riltimo andar.
EmParis 6 umafesta, Hemingway narra os caminhos que percorria em Paris.
Certa feita, sob a chuva, Hemingway ultrapassa o
Lyced Henri Quatre, a velha igreja de Saint Etienne du
Mont e a Place du Panth1on, corta i direita chegando
ao lado mais protegido doBoulevard Saint-Michel, continua a descer, passa pelo Cluny e pelo Boulevard SaintGermain, at6 chegar a um bom caf6 na Place SaintMichel. Costumava visitar o apartamento-estridio de
Gertrude Stein, narue de Fleurus, no 27 , depois de passear pelo Jardin de Luxemburg e freqientar o Musde de
Luxemburg. Atravds do parque, Ernest cortava caminho ao voltar para casa na rue Cardinal Lemoine. Fechado o parque, ele teria de caminhar ao longo dele pela
rue Vaugirard. Tamb€m narra a maneira mais curta de
chegar-se ao Sena a partir da rue Cardinal Lemoine,
150
que consistia em descer esta rua at6 o fim, enfrentando
a sua parte mais ingreme e, ap6s atingir seu trecho pla_
no, cruzar o Boulevard Saint-Germain e chegar a um
lugar que o escritor d 6poca achava triste e onde se localizava o Halle aux Vins, mercado que n6o guardava
os encantos dos seus cong6neres parisienses, parecen_
do mais umdepdsito militar ou um campo de prisionei_
ros. Do outro lado desse brago do Senaficava (e fica) a
IIe St. Louis; podia-se atravessar at6 elaou virar h esquerda e passear pelo cais, atd a Notre Dame e a Ile de
la Cit6. Ao longo do cais, o escritor enconrava, nos
balcOes de livros de segunda m6o, livros americanos
por pregos muito em conta, vendidos pelo valet de
chambre dos quartos que o Tour d'Argent ent6o alugava no andar de cima do restaurante, que ainda concedia
descontos aos h6spedes do pequeno hotel. N6o havia
outros sebos que vendessem livros americanos at6 o
Quai des Grands Augustins, mas a partir dai e at6, al€m
do QuaiVoltaire havia v6rios, adquiridos dos h6spedes
do Hdtel Voltaire, que 6poca detinha clientela endinheirada.
EmPapd Hemingway, o escritor conduz Hotchner ds
vizinhanEas do lugar em que ele primeiro vivera em paris.
'Comegamos pela Rue Nofe-Dame-des-Champs, onde ele
morava sobre uma serraria, e, lentamente, passamos por
restaurantes, bares e lojas familiares, at6 chegarmos ao Jardim de Luxemburgo e ao seu museu, onde, disse-me ele,
apaixonara-se por certas telas que o haviam ensinado a
escrevef '(Hotchner). Af temos umainexatidiodo narrador
ou a deliberada intengdo do escritor de pular a primeira
morada narue Cardinal Lemoine,e iniciar a rememoragdo
pelo segundo enderego. Ndo importa. O que vale 6 que
i
l5l
esse registro deu-me aidl\apara o projetado ensaio, que
chamei de biografia i falta de um nome mais preciso' Mas
ndo ser6 propriamente uma biografia, como ver6 o leitor
se persistir nestas linhas; meu modesto trabalho n6o ir6 se
acotovelar com o excelente livro de Jeffrey Meyers considerado o melhor bi6grafo de Hemingway' e que langou,
em 1994, Scon Fiugerald: a biography, o atormentado
escritor que tinha em Hemingway o seu her6i; ou o j6
referido Papd Hemingway, registro de quatorze anos de
convfvio enffe o escritor e A. E. Hotchner, que ainda publicou, pelaVendome Press, New York, Hemingway and
his world. Illustrated Autobiography (1989), obra que tenho em cuidadosa versdo francesa e esmerada ediglo da
Societ| Nouvelle des Editions du ChAne, que a ffaduziu
por Hemingway et son univers (1990), e que comprei, no
inue*o de 1993, na Shakespeare and Company, importante livraria que foi de Silvia Beach, fundamental na vida
dos escritores da Paris dos anos vinte e que daqui a pouco
vai aparecer por aqui; ou, de Carlos Baker, Ernest
Hemiigway: Histoire d'une vie (Roberto Laffont, 1989);
ot Papdde Gregory Hemingway (Danoel, 1976); ou ainda Hemingway de Jeffrey Meyers (Belfond, 1987)' Meu
projeto n6o pretende tampouco ser uma recriaglo, a partir
de documentos, de determinado momento da vida de um
personagem.
No pref6cio com que abre o autobiogr6ftcoParis 6
umafesta,Hemingway deixa ao leitor a decisdo sobre a
natureza da obra: hist6rias da sua vida ou frcgdo' Se o
leitor preferir considere este volume corno um traba'
Iho de ficEdo. Seja como fo6 ficgdo ou ndo, hd sempre a
possibilidade de que lance alguma luz sobre aquilo que
foi escrito como matdria de fato.
t52
Perfeitamente. proponho_me i criagdo, biografia
fabulada, uma fantasia, por assim dizer. passeariicom
Hemingway na paris dos anos dois mil e voltarfamos
sobre seus pr6prios passos entre l92l e 1926.
Como
veria o escritor a paris atual?
Comegaria pelo Au Clairon des Chausseurs, na
-.
colina de Montmertre, na place Du Tbrtre, no infcio da
rue Norvins. Como veria Ernest, Au Clairon,
hoje? E a
Place Du Tbrtre? voltada inteiramente para o turismo,
a regido tambdm abriga expatriados, mas ndo
america_
nos artistas e russos exilados, mas 6rabes, africanos,
indianos, paquistaneses, iranianos, latino_americanos,
gregos' o que a transforma em um ponto temido
de dia
e perigoso i noite. O desemprego estrutural
alimenta o
preconceito de setores da populagdo contra
o emigra_
O restaurante parece manter um bom servigo.
O aten_
*.
dimento 6 feito por gargons vestidos a carilter,seja 16
o.
que se entenda por blusas com as cores da Franga,
boi_
nas tipicas (v616) e umas folgadas calEas de marinheiro
ou coisa que o valha. A praga 6 tomada por pintores que
teimam retratar os turistas e outros que exp6e- ,uu,
telas. O produto final, dos retratos e das pinturas,
6 so_
frivel. Mas oferece oportunidade de trabalho, afinal o
que mais importa. E quem sabe um novo Modigliani,
ainda an6nimo, ndo estar6 por ali a encerrar uma 6po_
ca?; e um novo Picasso, ainda ndo descoberto, a iniciar
outra? Ser6 que Hemingway, t6o ligado i pintura, n6o
saberia reconhecer um gOnio entre iantos artistas? Andei bispando quadros e encontrei alguns muito bons.
Mas meus conhecimentos de pintura s6o modestos. ,,O
que voc6 acha deste quadro, papd"?
153
inac6o
peregrlna9
longa peregnnagau
E assim comegariamos uma longa
pela Paris dos anos vinte apreciada com o olhar do fi-
nal do s6culo vinte.
Andei locando Paris 6 umafesta no natal de 1993'
o
Mas, infelizmente, perdi as notas ou as ndo encontrei'
que vem a dar no mesmo, esquecido que ando' 4:tit:
hotel
de mem6ria, n6o me lembro doHOteI Jacob, o tal
abriteria
barato na rua do mesmo nome que primeiro
gado os Hemingways logo que aportaram em Paris' Na
-rue
Jacob, tenho o iegistro, no Gault Millau' do Hbtel
proAngleterre, antiga embaixada da Grd-Bretanha que
clama, em placa afixada d porta, o escritor como seu
h6spede iluitre. O hotel foi remodelado, tem amplos
jarquurto. e confort6veis banheiros, al6m de um belo
di- um sal6o com piano. O restaurantePrd aux cleres'
jacob e Bonaparte, ndo mais exis"
na esquina das ruas
te; assim como desapareceu o restaurante Michaud' antes situado entre u iu, des Saints PDres e a rue Jacob'
jantar e
onde os Hemingway viram a famflia de Joyce
grano qual tamb6m comeram quando descolaram uma
na nas corridas.
de Gertrude
Quem sabe uma visita ao antigo estridio
Stein, tomando a Place de l'observatoire e atravessando os jardins do pequeno Luxembur7, para entSo ga-
nhataruedeFleurus?MissSteinter6sidomaisuma
personagem do que uma escritora consagrada' Ela e o
escritor tornaram-se muito amigos, mas a amizade terminou quando Hemingway su{preende uma conversa
entre ela e sua companheira Alice B' Toklas que o constrangera a ponto de perder a naturalidade em uma relagao antes muito forte. Como antes dedicara um capftu-
lodoParis6umafestadescritora(MissSteinPontifi-
r54
ca),
_Hemingway vai dedicar outro ao modo pelo qual
minhas relag1es com Gertrude Stein ,hegorim
oo i*
(Umfinal bastante estranho). parece que
o dir{logo [ue
entreouviu desgastou a ligagdo de am-bos. fopipoiu_
ria saciar minha curiosidad.l O qr" ouviu Oe
iao gruu.
a ponto de terminar uma amizade
dessaforma tdo-estfi_
pida?
De 16, atravessamos paris novamente para chegar
ao Harry's Bar de New yorl6 na rue Dainou. quEm
viaja com a imaginagZo ndo precisa de roteiros,
issim
como quem estd perdido n6o escolhe caminho.
Hem
pediu ufsque e meia lima fresca. E contou que
*rr"
bar, ap6s botar para fora um ledo que teimavaim
defe_
car no sal6o e atirar na rua seu dono, um antigo
pugilis_
ta de peso meio-m6dio,papdcomegou
a escrever Adeus
ds Armas: j6 que estava se tornand-o t6o
agressivo com
le6es, considerou sensatamente ser melhor
canalizar suas
energias em um novo livro. E assim o fez.
No Boulevard des Capucines, do outro lado do
Cafd de la Paix, ndo longe do Harryb, ficava
o Le Trou
dans le Mur, cuja entrada custava-se a achar,
naturalmente para honrar o seu nome. Tomando conhecimento de que Haroul Loeb, o miser6vel Robert
cohn de o
sol tambam se revanta, gostaria de mat6-lo terminantemente, Hemingway telegrafou_lhe dizendo que
estaria
durante as t€s noites seguintes no Buraco di parede
it
espera do desafeto, que n6o apareceu. Ernest
escolheu
o Le Trou por ser a boite inteiramente espelhada,
o que
evitaria um ataque d traig6o. Mas se a casa tinha
alsum
encanto a perdeu inteiramente. Se os gregos
to_iu_
de assalto os restaurantes do
euartier Latin, os
vietnamitas se fizeram donos de algumas das
antigas
155
o clima
boites da cidade - eles entraram e expulsaram
parisiense. Qual seria a opinido de Papd?
de
E assim visitamos o-Closserie de Lilas' o CafE
a
Flore, o D6me(o mais antigo caf6 de Montparnasse)'
a conRotonde, o Select, a Coupole, o Lipp' Botamos
Ford' Ezra
versa em dia com Jaym"t Joy"t, Ford Madox
perdoava
Pound, a bondade em pessoa a quem Ernest
seu dester aderido ao fascism-o mas eu ndo perdoava
F'
pr""opor Dostoievsky. T. S' Elliot, John Dos Passos'
'icott iitzgerald. E visitamos a Shakespeare and
na rue de
Company, n6o mais na rue Dupuytrm ou
l'Oieon', mas j6 en face de Notre-Dame' em SaintfrenMichel.Sylvia Beach, que habitava uma nuvem em
livros,
te d livraria, certamentl continuava a emprestar
neg6cio'
o
-u, ugoru um microcomputador gerenciava
Ent6o, PaPd?
e
Hemingway estava cansado' Tomamos o metrd
ao barato
saltamos em Saint-Germain' Dirigfamo-nos
primeiro o abrigara, existisse ou n6o'
H6tet Jacob, que
-Papd
mostrava-se-profundamente irritaque import a?
o
do. O ih"iro de corpos suados deixava insuport6vel
metr6nessefinaldevereo.Disse-mequedefinitivamenem geral e
te o incomodava a falta de banho do europeu
em
do parisiense em particular. Empenhou-se' ent6o'
.*pli"- pormenorizadamente o regime de banhos em
Oat part, Illinois, sua fria cidade natal'
Bom, mas isso, quem sabe?, fica para outro livro'
Vida que segue.
156
Bibliografia do autor
..CARTAS
CONSTITUCIONAIS, TMPERTO, REPUNTTCE
A
AUTORITARISMO, Ensaio, Critica e Documentag6o,,, (Direito
constitucional' Hist6ria constitucional. Direito comparado,'
ili;;;"
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REFORMA" (Direito constitucional. Hist6ria constitucionur.-nir"it
Comparado, novembro de 1993, Editora Revan). ,.MEMORIAi:
QUASE UMA AUTOBrgSl{FrA,, (tss4, loit"i" n""""J;
"coNTRoLE Do JUDICIARIO, Doutrina & controvd*ru" (oir"iio
constitucional. poder Judicidrio, 1995, Editora Revan). -CIDADANiA
PARTIDA - A M6culaj"_\i{l(Ensaio, 1966, Editoru
n"uunl. ;;A
CONSTITUIqAO E O DIREITO NNiEiUON, O FENOMENC'
OE
RECEPQAO'; lDireito Constitucional. Centro de Documentagio
e
Informagdo da cdmara dos Depurados, Brasflia, ress,
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n.asniu l-t8l;-;O
P_Ey! FERIDO", Brasilia, Editora Escopo, l9g6; ;ife-_
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Janeiro, 1990; .,BATEAU MOUCHE: O NeUiiildrii"Xj
PRocESSo", Edirora Timbre, 1990. "NorAs A aoNsiiiilrsA5
BRASILEIRA. COMO FORAM CONVOCADAS_-A'
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-T
CONSTITUCIONAL COM QUORUM REDUZiOC'
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DE ESTADo", Rio de janeiro, 1992; .;eUEM NAO
S;B; n#Ail
XINGA A DEUS'', Rio de Janeiro, 1993;.bNa nsFEsA DoS
PRESOS
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IRRESTRITA",-Coordenagdo da Cdmara dos Deputados,
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ON TNqdNNITO _ AICANCC
e extenslo dos poderes di:qp!r: (_pareceres),IAB/Ed.
O"rtuqu", ieeb.
,,O
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SApATO DE HUMpRfry
sOCani;-a;;;;;j
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Revan, Rio
de Janeiro, 2001; "BECO DAS GARRAFAS; UMA
LEMBilNC;;
(romance), Editora Rey1n, Rio de Janeiro, 1994;.,ALMOAO'DE
GANSo" (romance), philobiblion Livros de Arte, Rio
de Janeiro.
r57
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1985'
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i'ioatte, Prefeitura da Cidade do
Literario Stanislaw Pontg Preta,;o
Rutco DE HEMINGwAY"
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de Contos e Poesias Poeta
Nacional
i;;";;.t honrosa).Concurso
de Janeiro' 1996' conto
Rio
lugar),
(primeiro
iiuno Atnuro Pereira
Teses: "A
"O SAPATO DE ffUUppgney BOGART"
DA
FENoMENo
o
c6NiiTiurqEo E ootneno ANTERIoR'
DA
PRESIDENTE
Do
GCEpcAo.. o IMPEAcHMENT
iiepusiicA' uu esruDo DE cASo"' (Tese com qu-e foi
;LsAixo A pICHAqAd':
para Professor
aorovado em Concurso Priblico de Provas e T(tulos
Universidade
ili;;;i"-;o oir"ito e Direito constirucional dedaDocumentagao
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da Cdmara dos Deputados, Brasilia' t!e!l;
-f
CONTROLES A CONTNOLE EXTERNO DO
Livre
de
Concurso
;Oij;R JUO-rcfAnfO" (Tese aprovada no
1995); "A
Docente da Universidade Gama Fittto, Rio de Janeiro'
&
AUToRITARISMo'
REPUBLICA
consrlfntSoo, rrrapEnro,
concurso de
ensaio, critica e documentaglo" (Tese aprovada no
do
Universidade
da
Professor Titular de Direito Constitucional
Em
prenlt-rg,
, .'f
Estado do Rio de Janeiro, 1995)'
REFoRMA"'
ciiNsrriurqAo NA HIST6RIA, oRIGEM &"VINTE
ANOS
Editora Revan, segunda edi96o revista e ampliada;
G-\fLXU^l.'
NXij'e-Neoil'-iro-un."); "s9u Loucb PoR 1I PAIXAO"
DE UMA
icroni"ar); "NITER6I:-CRoNICAS CARNAVAIS"
(novelas
SETE
E
i.iOni"url;:.OURS MANHAS
E OS ANOS LOUCOS" (ensaio);
;rtaenqiies REBELO: A CHAVE Do RoMANCE" (ensaio);
"urio.uri;'"HEMINGWAY
..ildi6-RIA p etronrrARlsMo No DIREITO BRASILEIRO''
"ONDE YQ\}EM AS ESTRELAS"
trririOri" constitucional);
..coMBATENDO NAS
TREVAS"(acontecidos nos
ii"rnurunqur).
"-f"f"rt""iao
CONSTITUICAO:
tempos da rePressdo)
158
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