Untitled - Marcello Cerqueira
Transcrição
Untitled - Marcello Cerqueira
Marcello Cerqueira O Sapato de Humprey Bogart Contos, crdnicas, lembrangas a Edi tora Rev Copyright @ 2001 by Marcello Cerqueira Todos os direitos reservados no Brasil pela Editora Revan Ltda. Nenhuma parte desta publicagdo poderi{ ser reproduzida, seja por meios mecinicos, eletronicos ou via c6pia xerogrdfica, sem a autorizaEao pr6via da Editora' Revisdo Rogdrio Corrda Jr. Roberto teixeira Capa Cristina Rebello Impressdo (em papelOffSet 75g, apos paginagio eletrdnica em tipoTimes New Roman, c' l2114) Ebal CIP-Brasil. Catalogagdo na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI' C395s 2^ ed. Cerqueira, Marcello, 1939O sapato de Humprey Bogart: contos, crOnicas, lembrangas / Marcello Cerqueira. -2u ed. - Rio de Janeiro: Revan,200l. 160p. ISBN 85-7106-221-8 l. Contos brasileiros' I' Tftulo. 0l -0514. cDD - 869.93 cDU - 869.0(81)-3 050401 060401 010603 Para Aluizio Leite Sum6rio Nota do autor .......... Nota do autor para a segunda ...'...... t edigdo ..... 11 Bogart........ O sapato de Humprey ...... 19 O amigodeHemingway...........'... .'.......34 O leildo ...'..........'..... 49 A arte e a arte de empinar papagaios ........'.... 57 A metade exilada .."" 69 O agente internacional.................. .................... 75 A prontincia ..........""79 Serrar por baixo ..............'..'."' 86 Pras mogas .'......97 O batizado do navio '.....'..."' 111 Disfarga e chora ............. 116 A metade maior ...'............"" I25 O encontro. ....... l3g Mateus Ros6 .......... """ 143 O espido e o cigarro ...................... 9 O regime de banhos em Oak Park, Illinois..'....'................""' 147 Bibliografia do autor ""' I57 Nota do autor Este 6 um livro de contos. N6o foi M6rio de Andrade quem escreveu que conto 6 tudo que o autor diz que 6 conto? Achando-se Augusto Calheiros doente e sem recursos, Almirante, a maior patente do R6dio, recolheu, em um livro de ouro, um conto de rdis de cada artista para o amigo: intitulou-o "Livro de contos". W. Somerset Maugham, em suas autobiogr6ficas Confissdes (The Summing Up), deftne Serviddo Humana, n6o como uma autobiografia, mas um romance biogr6fico: fato e ficgio acham-se inextricavelmente misturados. Neste livro, fato e ficgdo vdo juntos compondo o enredo dos contos. Na medida em que as hist6rias v6o sendo narradas, elas se libertam do autor e n6o raro ganham vida pr6pria. Mesmo lembrangas que habitam sonhos, quando contadas, viram fic96o. A partir de um acontecimento real, seguidamente a fantasia comanda a narragdo, e o autor nadapode fazer. Nestes contos lembro nomes, cantores, cores, amigos, viagens, exilio; e os tempos duros da repressdo. 56o pedagos de vida. Vida vivida ou vida criada, nem sei. Marcello Cerqueira Santa Teresa, 16 de novembro de 1996 Nota do autor para a segunda edigdo "O Sapato..." sai em segunda edigdo pela Revan, mais uma contribuig6o de meu velho amigo e editor Renato Guimardes. Alguns personagens reclamaram presenga ("VocO se esqueceu de mim..."), outros queriam figurar melhor nas lembrangas ("Voc€ me bota em cada uma..."). Fazer o qu6? Pensam que o escritor tem controle sobre os personagens? Ledo engano. Como na vida, os personagens sdo enigmas a decifrar. Alguns, obra de pura ficAdo (existe ficgdo nas lembrangas?), insistem em que ndofizeram isso ou aquilo. Como contest6-los? n ficAao. 6 como disse.rn noiu i primeira edig6o: nada posso fazer! As vezes, por certo lamentar. Amigos que habitam nossas vidas atravessaram o rio. Aluizio Leite atravessou o rio e nos deixou lembrangas e saudade. A segunda ediEdo desse livrinho tamb6m a ele 6 dedicada. Vida que segue. Nova Friburgo, 1 6 9 #1:r:'::::;::;;;i "Prendam os suspeitos de sempre', dofilme Casablanca O sapato de HumpreJ Bogdrt O "ponto" no bairro da Consolagdo, em SZo paulo, atd que era seguro. 56 os dois companheiros que 16 se encontravam - sexta-feira sim, sexta-feira ndo _ 6 que dele sabiam, escolhido por ambos e desconhecido de terceiros. Al6m disso, as regras eram precisas: toler6ncia de apenas cinco minutos da hora aprazada, que era meio-dia em ponto. Eventual atraso implicava transferir para a segunda sexta o pr6ximo encontro. A repressdo n6o tinha como "levantar o ponto". por que ent6o Zd Raimundo ficava t6o aporrinhado quando tinha de "cobrir o ponto?" Era por causa do sapato. O "ponto" ficava bem em frente a uma sapataria que ostentava na vitrine um lindo sapato social de couro, duas cores (branco e vinho), cadargo malrom-escu- ro, com trabalhos em baixo relevo nos bicos. 26 Raimundo naniorava o sapato mas n6o tinha coragem de compr6-lo, era muito caro, a grana era curta e vinha toda da solidariedade de simpatizantes e amigos do partido. A colheita era magra. Recolher as contribuig6es e distribui-las aos aparelhos exigia paci€ncia e coragem do pessoal das "finangas". N6o, absolutamente. Era dinheiro da resistOncia, n6o se prestava a luxos. Mas como resistir ao apelo do sapato olhando-o sexta-feira sim, sexta-feira nlo? A solugdo era trocar de ,,ponto',. Tem- 1l po era o que ndo faltava para quem atuava na clandestiniduA. contra a ditadura militar nos anos setenta' Pouco havia afazer.O "milagre" econ6mico os isolara irremediavelmente. As pris6es se sucediam. As a96es desesperadas para conseguir fundos praticadas pelas organizagles radicais expunham indistintamente todos os advers6rios do regime, fossem da luta armada ou ndo' 26 Raimundo, comuna velho, sabia que era uma linha polftica suicida. Com ela jamais concordara. Mas n6o condenava os jovens que se aventuraram na luta armada. A responsabilidade de tudo era dos golpistas, dos militares que rasgaram a Constituigdo e botaram um ma- rechal no governo e depois outro, e ainda um terceiro' Mas o pior 6 que ele tamb6m pagava pela radicalizag5o embora para ela ndo tivesse contribuido e mesmo a ela tivesse se oposto. Logo depois do golpe, procurara convencer velhos camaradas como Marighela, M6rio Alves, Cdmara Ferreira e outros da inviabilidade daquele tipo de embate. Qual. Tudo inftil. Sacrificaramse em vdo. E com eles uma geragdo de jovens m6rtires' Deram tudo, at6 a vida parafazer um pais que habitava os sonhos. Como o sapato na vitrine. Bom, 'tava resolvido. No pr6ximo "ponto" comunicaria ao Azedinho sua inabal6vel decis6o. Era a linha justa. A posiglo correta. Trocar de "ponto". Fugir d teniaEdo. Afinal, Hemingway, na Paris dos anos 20, paru ser escritor n6o se contentara com apenas uma refeigdo diaria e at6 mesmo aprendera a evitar, na volta do estudio para casa, as ruas com restaurantes e padarias exatamente para fugir da tentaEio? E o "Pai-nosso" ndo se arremata com o "nIo nos deixeis cair em tenta96o...?" Depois do artigo do Luis Maranhdo, "Cristdos e Mar1.2 xistas de mSos dadas", nem ficaria mal citar o "Pai-nosso". Ou ficaria? Resolvidfssimo da silva. Trocar de "ponto". Baixar em outra freguesia. "Mas por qu6?" Quis saber o companheiro. 26 Raimundo n6o teve coragem de revelar o verdadeiro motivo. No 26 a coragem era demais at6 para pequenas mentiras. "Bom, quer, dizer, o 'ponto', voc6 sabe..." Ndo, Azedinho n6o sabia: "Sei o qu6, companheiro? Sei o qu6?" "A gente 't6 aqui hd muito tempo", escapuliu-se o'ZE. Argumento que o outro repeliu: "Mais uma raz6o para ficar. O 'ponto' t6 provado que 6 bom. Seguro. Ningu6m sabe. Ningudm viu a gente. Ou viu?" 26 Raimundo definitivamente n6o sabia mentir: "Nlo, ningudm viu", afirmou descorogoado. "Ent6o 6 o qu6? Desembucha, cara!", falou Azedinho jd irritado panfazerjus ao nome. "Tem coi26. Ou n6o tem?" Pronto. Olha o 26 encurralado. Apoia-se num p6. Apoia-se no outro. Coga o lombo. Assoa o nariz. Ajeita o n6 da gravata. Passa a m6o nos cabelos. Azedinho, m6os na cintura, olha que olha. Z€ desa ai, saba e desabafa: "E o sapato, companheiro", confessa. Agora, 6 o outro que n6o entende nada. "Sapato, Z€? Sapato? Que hist6ria 6 essa de sapato, hem 26?" "E aquele ali." O dedo apontao lindo sapato navitrine. Azedinho olha o sapato, olha o 26, olha o sapato e encara o companheiro: 13 "T0 vendo Z6.f,um sapato. Ali6s, sapataria vende sapatos, ou n6o vende Ze? O que 6 que tem, afinal, esse raio de sapato?" A resposta custa a sair. E quase uma confissdo que Z6 ananca do peito: "E que eu fico namorando o sapato, mas n6o tenho coragem de compr6-lo: 6 muito caro, nio v6?" "T6 certo, 26. Mas o que tem de especial esse sa- pato pra botar voc6 tdo ourigado, querendo at6 trocar um 'ponto' t6o seguro?" "E bonito, eu gosto, e pronto." Nada disso. ZE ndo sabia nem disfargar. Azedinho queria mais: "Nio pode ser s6 isso, Z!.Temmuitos sapatos bonitos por af. Que ser6 que justifica tanta gamaglo?" 26 ndo tem mais jeito, se rende, mesmo: "E que foi esse tipo de sapato que calgou o Humprey Bogart naquela cena do Casablanca." Pronto. 26 havia revelado sua fraqueza. Indigna de um militante, 6 certo. E com as responsabilidades de dirigente nacional do Partido. Curtido em todas as pelejas: das cadeias do Estado Novo aos campos de batalha da Guerra Civil espanhola quando lutou, com Roberto Morena, nas brigadas internacionais, ao lado das forgas republicanas, em Barcelona. Casablancaeta a sua fraqueza. Quanta vez j|tinha visto o filme. Vezes sem conta. Conhecia os didlogos de cor. E o que era mais incrfvel: embora soubesse com precisio o desenrolar do filme, ainda se sulpreendia com as cenas, como se fosse sempre a primeira vez, cada espet6culo uma revelagdo. Sua outra fraquezaera sua mulher,'Ierezinha. Mas ela sabia da sua paixio pela pel(cula. E tamb6m T4 adorava o filme. Eram as duas paixdes do 26. Numa viagem i Unilo Sovi6tica conseguiu, gragas d boa vontade do int6rprete, incluir Casablanca no roteiro da volta. Ndo existia o bar do Rick. Nem Sam tocava "As time goes by" para Ingrid Bergman. Sequer p6de cumprimentar o militante checo Lazslo ao lado de quem lutara contra Franco. Mas estavam todos 16. Inclusive presos ficaram os suspeitos de sempre. A luta continua. "Vem c6,26. Como 6 que voc6 sabe que o sapato 6 igual ao que Bogart usava: Casablanca 6 preto-e-branco, e o sapato da vitrine 6 bicolor." "Oh Azedinho, 6 simples e vocd mesmo respondeu a pergunta que fez. Se o filme fosse colorido voc6 nio faria a pergunta n6o 6 mesmo?" "Mas o filme n6o 6 colorido, 26. YocO nlo pode saber" "Posso, posso. Como 6 que eu nlo sei? Sei, sim. E justo no momento em que Bogart reencontra Bergman em Casablanca e esmaga com o sapato - com o sapato, ouviu bem, Azedinho, com o sapato -, esmaga o cigarro e a c6mera d6 um rdpido close no sapato. VocO nlo se lembra?" Ndo, Azedinho nflo lembrava. Mas tamb6m quem lembraria um pormenor desses? Quase derrotado, ainda arrisca: "Com relagdo ao tipo do sapato nlo discuto mais. id6nticos 56o e pronto. Mas a co4Z6, como 6 que voc6 pode saber da cor?" 26 ndo se d6 por vencido: "Eu sei." "Sabe como?" "Eu sinto, companheiro." 15 O argumento fora acachapante, Azedinho levou preciosos segundos para se recuperar. E falouj6 enternecido, era azedo mais no nome: "Entdo compra, companheiro, compra." E leva um n6o redondo. "Compro n6o, companheiro. E muito caro. De jeito nenhum. E contra a linha do Partido. Prefiro trocar de 'ponto'. Nio ver mais o sapato. Fugir da tentagdo. J6 resolvi." Mas Azedinho volta d carga. E persuasivo: "Compra, 26. Que mal pode fazer. Nessa vida que a gente leva... Olha, amanhd a repressdo pode pegar a gente e a gente 't6 mortinho da silva. Deixa de bobagem, compra,26, compra. Deixa de ser stalinista..." Soou como um insulto e um desafio. E, molrer podia morrer, estava preparado, mas stalinista era demais. Iria pensar no assunto. Despediram-se. Duas sextas-feiras mais tarde, Zlchegoumais cedo para experimentar o sapato. Ainda ndo bem decidido' j6 internamente resolvido. Ficou uma beleza no p6. Sairia calgado para surpreender o companheiro que j6 vinha chegando. Ia acenar para ele quando um calro d6 uma violenta freada e dele saltam t€s homens que imediatamente subjugam Azedinho, que n6o tem sequer tempo de esbogar reagdo de fuga. Algu6m caiu e entregara o companheiro. A repressdo o seguiu, sabia que iria encontrar caga mais grossa, embora n6o soubesse quem. "Fala, cachorro, comunista sem-vergonha, cad6 o outro?" Azedinho tenso, a metralhadora na cara' os bragos jd algemados nas costas, meio no ch6o, olhando para a sapataria, responde tranqi.iilo l6 : "Ndo vim encontrar ningudm. 56 estava passeando." Apanha ali mesmo. O sangue escorre-lhe no rosto. "Fala, filho da puta. Quer morrer aqui mesmo?" Azedinho repete: "N6o vim encontrar ningu6m...,' Uma violenta porrada na boca impede-o de terminar a frase. "Leva o filho da puta pro quartel. Vamos ver se 16 ele fala ou nio fala", comandou o chefe. Nio falou. 26 Raimundo, perdida sua principal ligagdo, acabou caindo ao tentar restabelecer contato com o partido. O "aparelho" estava podre e o Doi-Codi ndo teve dificuldades em prend€-lo. Tamb6m nlo falou. Sofreu toda sorte de tortura. Choque el6trico, caldo, pau-de-arara, cadeira do drag5o, e nada. Sequer informou seu verdadeiro nome. 56 falava o nome que inventara: "me chamo Rick Casablanca". E mais n6o disse. Sem receber o telefonema semanal, Terezinha desesperava-se: "Ele 't6 preso, Marcelo. Eu tenho certeza. A gente combinou: duas semanas sem telefonar e era pra te procurar que ele caiu." Despachei habeas corpus pra todas as autoridades de terra, mar e ar, como gostava de a elas se referir o dr. Sobral Pinto. O habeas corpus ndo soltava, abolido que fora pelo AI-5, mas a autoridade coatora ao responder que o preso n6o tinha direito i medida revelava sua prislo e muitos assim se salvavam. Coincidentemente, Azedinho e ZE Raimundo estavam presos no Barro Branco. E naturalmente n6o sabiam. A regra era a incomunicabilidade. Mas Azedinho. t7 preso h6 mais tempo, i6 saia para depor na Auditoria Militar e por isso j6 lhe dispensavam o capuz que cobria completamente a cabega dos presos. Numa dessas sa(das cruzou com uma turma de presos ainda encapuzados. Ndo reconheceu ningu6m, embora ficasse atento aos corpos, ao modo de caminhar. Quem sabe nio identificava algudm. No fim da fila reconheceu os sapatos do riltimo preso e munnurou entre dentes: "OiZe, deixa comigo." "26, ndo Rick Casablanca." Nessa mesma tarde, Azedinho me revela, na Auditoria, que Zd Raimundo estava no presidio de Barro Branco e atendia pelo codinome de Rick Casablanca. Dia seguinte, impetrei, no Superior Tribunal Milita\ habeas corpus em favor de Rick Casablanca e pouco tempo depois quebrava a incomunicabilidade do guerreiro. Ficou feliz ao ver-me, embora procurasse disfargar com um forte aperto de mlo e um solene: "Como vai o senhorr, doutorr?" cartegando em erres. E togo querendo saber noticias de Terezinha e das criangas. Algu6m mais cafra, como 6 que estavam as coisas? Terezinha estava bem, animosa, corajosa como sempre, as crianEas, tamb6m, muita gente caindo, abana pesada, mas a luta continuava. Z€ seacalma. A expressdo se torna menos tensa. A visita terminou. Ele se levanta e pergunta: - Tem algum cinema levando Casablanca? 18 Bajo el agua/ siguen las Palabras. Frederico Garcia Lorca O anigo de HemingwaY Quando Moacir Gato, algo solene como the era pr6prio, anunciou-me que o Editor tinha um trabalho para mim, senti o cheiro de solidariedade no ar. Estava meio clandestino no Rio naquele veranico de maio de 1965. Voltei parac6,de Sdo Paulo, trazendo o mesmo nome que 16 usara: Aymor6 Silva Rezende. Aymor6 com ypisilone, mesmo. Achava que conferia uma relativa autenticidade ao codinome. De resto, j6 me habituara com o novo batismo. No comeEo, n6o aten- dia quando me chamavam, percebia que alguma coisa dizia comigo, mas ainda um pouco longe, ficava atordoado, n6o me ligava naturalmente; depois, foi se tornando mais f6cil, habitual, costumeiro. Incorporei o nome como espirita incorpora "santo". O Editor marcou o "ponto" no afamado restaurante Cosmopolita, na Lapa. Pra mim vinha a calhar. Da pensio "para cavalheiros" na Gl6ria onde me acoitava at6 o restaurante era um pulo, dispensava at6 a mixaria do bonde sem falar na excelOncia da cozinha do dito. Antes mesmo do golpe militar j616 almogara, e mais de uma vez, com o Editor. E de uma feita com o Editor e o Poeta, o que rendeu conversa para uma tarde inteira. Papo ameno em que se devorou um cabrito que devidamente se fazia acompanhar de br6colis ao alho e 6leo, tudo regado a um saboroso Ddo Terras Altas, vinho tin19 to e generoso sugerido pelo pr6prio senhor Manoel, dono do estabelecimento. Versado nas artes da clandestinidade, o Editor j6 me esperava no fundo do restaurante e mesmo sem alarde serviu-me calorosa recepgdo, j6 me chamando pelo nome adotado. - Quando soube que tinha voltado, Aymor6, imediatamente coloquei o Moacir na sua captura. E que tenho precisdo de lhe confiar um trabalho muito importante: (Cheiro de solidariedade no ar.) - Mas, antes, vamos pedir. Que tal repetir aquele cabrito? - Com o vinho? - Com o vinho, certamente. - Cai do c6u, companheiro. - Ndo precisa cair de tdo longe. Estou a v0-los enfileirados logo ali naquela prateleira. Prestimoso, acorre o seu Manoel para colher o pedido do fregu6s ilustre. Mostra-se satisfeito com o repique. "Perfeitamente, perfeitamente. O mesmo da outra vez". Louvamos a mem6ria do propriet6rio, gabamoslhe a cozinha, elogiamos a dica do vinho, enfim, puxamos o saco do cara pra valer. Relagdes pessoais de emergOncia t6m dessas picardias. - Antes, seu Manoel,ilguamineral que estou seco. - Com g6s, ou sem gds? O Editor me consulta. Meus ombros respondem tanto faz como tanto fez. - Com g6s, comanda. - Com g6s, repelte mecanicamente seu Manoel. E se abala pra cozinha. O Editor retoma a conversa. 20 Bem, antes de entrar no trabalho, me d0 suas noticias. As que tenho s6o incompletas' VocO foi"' me man- Bom, fiquei uns tempos por aqui e logo comegou dei pra 56o Paulo porque o pessoal do Partido perto u .uit e eu senti que a repressdo 'tava chegando "tarefa" demais. Fiquei poi ta uns tempos e recebi uma fora do pais. Sa? pela fronteira com a Bolivia, peguei o "trem da morte" em Santa Cruze,sabe Deus como, cheguei a LaPaz,"la cumbre del mundo", como os pacefros se orgulham de dizer - Como 6 que se deu nas alturas? bom, neca de - No comego muito mal. Ar que 6Guarnieri 'tava pitibiribas. Mas, depois me acostumei. por 16 e me apresentou ao dono da boate Moulin Rouge' onde passei a defender uns trocados cantando uns sambinhai, coisa e lousa. A boate era estranhissima' Pra comegar n6o tinha qualquer iluminaEdo, a ndo ser o fundo doi copos que era florescente. E eventualmente as lanternas dos gargons pra servir ou apresentar a conta' dar o troco, essas bossas. Daf que a divisa da boate era: "Moulin Rouge: donde no se ve... pero se siente" Um - achado! - Veja voc€. E dePois? - Depois, fui cumprir minha "tarefa" e voltei a Slo Paulo, desta vez entrando pelo Rio Grande do sul atrav6s da fronteira com o Uruguai. Voei de Praga at6 Santiago, naturalmente com escala em Paris' De Santiago cruzeia fronteira com a Argentina. Fiquei uns dias em Mendonza esperando contato, depois Buenos Aires, em seguida Col6nia. Ndo passei em Montevid6u por quest6es de seguranqa; depois Taquaremb6, Livramento' Porto Alegre, Sdo Paulo. E 'tou aqui meio amoitado' 2l - Otimo. Chegou a prop6sito pois eu tenho uma oferta irresist(vel pra voc6 (Aumenta o cheiro de solidariedade no ar.) - Preciso de algudm com conhecimentos de litera_ tura e da obra de Hemingway. Jd comprei a preferdncia e agora estou negociando os direitos da biografia escrita pelo Hotchner... - Que era amigdo dele, cortei. - Pois 6. Mas o representante de Hotchner pede muito alto, e o contrato proibe a venda em portugal e nas coldnias portuguesas, onde j6 temos razo6vel dis_ tribuig6o. - Daf? - Dai que, al6m da revisdo da tradugdo, que j6 est6 pronta, preciso de uma opinido literi4ria. euer dizer. Al6m do valor biogr6fico que a obra possa ter, se o texto possui aquele tipo de perman€ncia liter6ria que me permita assumir os custos do contrato, percebeu? - Percebi. Mas, vem c6: n5to 6 muita responsabilidade para um mero leitor? Eu at6 posso gostar do texto mas nio saberia avaliar seu potencial de comercializagdo. Percebe? - Percebo. Mas ai o risco d meu. Editar livros 6 correr risco, voc6 sabe. Se o representante do autor n6o estivesse pedindo t6o alto eu nio teria drividas em comprar logo os direitos. Daf porque procuro outras opini6es. Tenho responsabilidades, outros acionistas, duplicatas em banco. E a ditadura ndo me d6 quartel... E ria, a bom rir, da piada que safra sem querer. - Ndo me dd quartel, n6o 6 boa? Meto minha colher de pau: 22 a pena' Quartel at6 que d6. Mas s6 que n6o vale O passadio n6o 6 dos melhores, e a liberdade 6 companheira insepar6vel do homem. foi - Oh;, na minha fltima prisdo o passadioden6o Guarde todo mal. Fiquei "hospedado" no Batalhdo consideradas. O coronel at6 que me tratou com muita rancho. Quem me atazanava era Edo. Compartia do seu o coronel Pitta, chefe do IPM. Eta homenzinho cacete. VocO ndo faznem id6ia. Tipo fisico apoucado"' (Imaginei a cena: o coronel baixinho contracenando com aquele belo gigante da fala macia e vasta cultura' Tolo, imaginava que prendera o Editor quando era ele o prisioneiro. Qual. A vftima era o Senhor da Guerra') ... Apoucado e chato a mais ndo poder' E querendo ser gentil. Ora, gentilezal qualidade quase inata' As pessoas podem esmerar-se em educa96o, mas gentircziediferente. E pr6pria. Uma certa coisa que vem de dentro e ilumina o relacionamento entre as pessoas' O sujeito pode ser educadfssimo, cort€s, at6 cordial, mas ndo alcangar ser gentil. (O Editor era educadissimo, cort6s, cordial e gentil como poucos. Al6m de generoso como Hemingway' sem ter o g6nio terrivel do escritor. J6 sentia pena do - coronelzinho). - ... Ranheta, ainda tratou com desd6m meu advogado... (Tamb6m, pudera! O advogado era Heleno Fragoso, um respeit6vel varapau, al6m de professor em6rito' Era demais. Pobre do coronel.) - ... Mas vamos deixar isso pra 16ettatat do nosso assunto. Quando 6 que vocO pode comegar? - Quando voc6 quiser. Nlo estou fazendo nada' 23 - Sd comprando feito? - Nem isso, 'td a perigo. - A prop6sito, o trabalho 6 importante. Posso pagar bem... (Cheirfssimo de solidariedade.) -... Trouxe algum por adiantamento, depois acer_ tamos o resto. 'TA certo? - Certo? Certfssimo, corag6o. Muito obrigado. A prop6sito, de quanto tempo disponho? - Nem muito depressa que parega medo, nem mui_ to devagar que parega provocagdo, respondeu parodi_ ando Pinheiro Machado. - Como 6 que eu fago quando terminar? - Telefona pra mim. A gente marca outro almogo. -'Te nos conformes. O Editor levanta-se para sair. Entrepara. Hesita. Sente falta de alguma coisa. - O almogo estava bom? - Otimo. - O vinho? - Excelente. - O papo? - O de sempre, melhor ndo poderia ser. - EntSo por que estou sentindo que est6 faltando alguma coisa? (Estava sentindo falta do poeta.) - Nada, companheiro. 'T6 tudo certo. A gente se vO nas quebradas. 24 il Alguns dias depois recebo, atrav6s do fiel Moacir, recado para encontrar-me, dia seguinte, com o Editor, no restaurante e na hora de costume. - Hoje, o cabrito vai ser com batatas coradas, anuncia. - Por mim, est6 mais que bem, concordo. - Como vai o trabalho? - Vai indo, mas ainda nlo est6 pronto. - Est6 gostando? - E. O texto 6 bom. Mas Hotchner abusa demasi- adamente dos adjetivos. Tudo para ele 6 esplOndido, estupendo, magn(fico: magnificamente, estupenda- mente, esplendidamente. Ora, faga-me o favor... Hemingway, segundo os di6logos com o autor, que Hot declara t€-los cuidadosamente anotado ao longo dos anos de conviv6ncia, tamb6m calTega nesses mesmos adjetivos: "tomamos um vinho espl6ndido". Uma linguagem tlo longe do seu estilo enxuto, agressivo, duro com seus personagens. Sei ndo, ds vezes me parece que Hotchner faz Hemingway falar como ele. O que n6o se encaixa no escritor. Com Machado de Assis, a lingua brasileira liberta-se da portuguesa. De alguma forma, Hemingway repete Machado. Claro que os momentos hist6ricos se diferenciam. Hemingway n6o escreve no ocaso de um regime, mas rompe com o que ainda resta da estrutura da l(ngua inglesa, e introduz uma nova linguagem, uma linguagem claramente americana. E precisa se distanciar de Michigan para poder escrever sobre Michigan. Vai para Paris... O Editor atalha. 25 E exatamente sobre paris que eu queria lhe falar. N6o v0 que a Scribner's enviou-me .,paris 6 uma Fes_ ta", o livro p6stumo de Hemingway. - - Eu sei. Hotchner 6 que sugeriu a Mary Hemingway o titulo que teria retirado de uma.onu.rri com o pr6prio autor quando ele falou da ventura que fora viver em Paris quando jovem: ,,pois paris 6 uma festa m6vel". - Pois 6. Mas tem um fato que n[o se encaixa. Fago cara de paisagem. O Editor ndo se conforma. - VocO n6o pergunta qual d? - Qual6? Bagageiros do Ritz teriam entregue a Hemingway quando voltava da Espanha, em 1957, uma mala contendo anotaE6es manuscritas h6 trinta anos, e que ele esquecera no Hotel. - _E? - Ora, trinta menos cinqUenta e sete d6o exatos vinte e sete. Em 1927, Hemingway ndo tinha dinheiro nem para passar pela porta do Ritz quanto mais 16 se hospedar. N6o faz sentido. Ou faz? - Nlo sei. N6o me lembro. - Como n6o se lembra? E claro que n6o pode se lembrar! Quer em 1927; quer em 1957, vocd absolutamente n6o poderia se lembrar. - Ent6o voc6 me ddrazdo. N6o podia me lembrar, mesmo. - Bom, mas do jeito que voc6 falou, parecia que voc6 estava 15 na ocasi6o. E pela sua idade isso n6o seria rigorosamente possfvel. -Pap6 n6o diria isso. 26 -Pap6? que n6s -PapdHemingway, caro Editor. Era assim o cham6vamos. - N6s? - Perfeitamente. Tamb6m Ernest. - Ernest? - Ou abreviadamente Ernie. - Ernie? - Ou Hem. Tamb6m abreviadamente. - Abreviadamente. - Abreviadamente. Hadley, sua primeira mulher, o chamava de Tatie. Creio que ningu6m mais o tratava dessa forma. - Dessa forma. E. Dessa forma. De uma maneira geral todos o trat6vamos de Pap6, is vezes Ernest ou Ernie. - Todos a que voc€ se refere... - Todos os amigos. Os artistas por exemplo. VocO sabe que ele sustentou por muitos anos um amor plat6nico com a Marlene Dietrich? Sabia que ele s6 a cha- - mava de a "Kraut"? - Repolho? Conheceram-se a bordo do lle de France, em 1934. e desde ent6o ficaram irresistivelmente apaixonados, mas sem jamais rcalizar fisicamente a paixio. - Ora... - E a Bergman? - Ingrid Bergman? - Perfeitamente. Ingrid Bergman, sim senhor! Sabia que sua esposa Mary Hemingway, tinha tanto citimes dela que Pap6 ndo the podia pendurar o retrato be- - 21 lamente autografado na parede de sua finca em Cuba sem que a mulher ficasse doente de cifmes? -ft - E, e tem mais. De uma feita quando est6vamos em Milio... - Est6vamos? - Sim, em Mil6o, quando Ernest comegou a falar da "sueca", como a chamava, e que 16 estava a filmar Joana d'Arc para o Rossellini, aquele idiota que morria de cirimes do Pap6. Fomos visitd-la, acertamos uma ceia, mas na fltima hora a Bergman cancelou alegando que Rossellini fazia questlo da sua presenga na palestra que iria proferir. Foi uma pena, mas ela deu um jeito de ir at6 os aposentos de Ernest tomar umdrinkem sua companhia. Alids, Miss Ingrid... - Miss Bergman, voc6 quer dizer.E mais pr6prio arriscou o Editor. - N6o. Miss Ingrid, mesmo. Era assim que Pap6 a chamava. Miss Ingrid, como eu ia falando, jamais aceitou chamar Hemingway de Pap6. "Ndo sinto por ele sentimentos filiais", dizia. Mas a Dietrich o chamava de Papd, assim tamb6m Ava Gardner. "Ava Gardner..." (Sonhava o Editor.) - Certa noite estava Hem descansando no Palace Hotel, em Madrid, isso 16 pelos idos de 1954, quando, recebe a inesperada visita de Lufs Miguel Dominguin, j6 esquecido dos coment6rios injustos que Ernest lhe fizera em um antigo artigo paraaLift.Luis Miguel era o toureiro mais famoso de Espanha e queria que Ernest fosse visitar sua garota que se internara por conta de um terrivel cdlculo biliar. 28 - A garota era Ava Gardner, eu presumo"' que - Certo. Ela havia aparecido em Os Bandidos em seus pap6 considerava o fnico filme bom baseado livros. Desde ent6o ficaram amigos. Ah! voce precisava ver a recepgio que Miss Ava tributou a Ernest"' - Tributou... - Depois dos beijos e abragos travaram um di6logoo sensacional quando Pap6lhe perguntou como estava romance com o toureiro.Ia otimamente, disse ela. Estavam juntos h6 dois meses' e ela ndo pescava uma palauru d. espanhol, e ele ndo falava nada de inglOs, e se entendiam Is mil maravilhas. - Talvez por isso, conclui, compreensivo, o Editor' - Por6m o mais sensacional ainda estava por vir' VocO nem imagina... - Nem imagino... - Quando nos aproxim6vamos de Madrid,deErnest Pablo mostrou o cimo da montanha em que o bando se ocultara em Por quem os Sinos Dobram' Os livros, voc6 sabe, relatam as coisas mais reais do que efetivamente aconteceram. A ponte foi dinamitada, Ernest confirmou. A exploslo do trem vai fielmente descrita' Mas os personagens, e o que se passava com eles, era por conta do escritor, embora o relato de Pilar sobre o que aconteceu em sua aldeia com a chegada dos fascistas tenha s6lida base em acontecimentos reais' Um dia, safmos do Hotel Felipe II, no alto do Escorial, e nos dirigimos para o cume de sua zona montanhosa' L6, Ernest n ostrou-nos o riacho em que Pilar lavara os p6s, a gruta na qual o bando de Pablo vivia e a ponte reconstrufda ap6s a gueffa, reunindo as pedras que haviam cafdo no rio depois que os republicanos a dinamitaram;entretan- 29 to, a casinhola de pedra que havia numa das extremidades da ponte e que fora destruida pelo fogo nacionalis_ ta, em 1933, permanecia em estado de ruina como a recordar quem vencera a guerra. (A lembranga da guerra civil espanhola deixava nosti{lgico o Editor. Sempre que lia sobre as batalhas torcia pela vit6ria dos republicanos, como se ele pudes_ se mudar o curso da hist6ria. Agora mesmo, lendo o livro de Hugh Thomas, The Spanish Civit War; ntro po_ dia abandonar a esperanga de uma virada nu gu".ru.1 - Para mim, eram revelagOes de uma parte da guerra da qual s6 tomara conhecimento por terceiros. Na ver_ dade, n6s n6o participamos da guerra em Madrid... - N6s...? - Sim. N6s. Ernest servia no Batalhio Lincoln, s6 de norte-americanos. J6 havia escrito A euinta coruna e organizado um congresso de Escritores com o objetivo de debater as posig6es dos intelectuais em facl da guerra. os brasileiros que serviam nas Brigadas Internacionais lutamos na batalha de Ebro. Roberto Morena, Apol6nio de Carvalho, Jos6 Raimundo da Silva. Vasco Bruno... - Vasco Bruno, personagem de Erico Verfssimo? - Perfeitamente. Ele, mesmo. - Mas o livro do Verfssimo ndo 6 ficgdo? - E, claro que 6, caro Editor. Mas o que 6 a vida senlo uma ficgdo piorada? (O Editor alga o queixo. Olha o teto. Chama o c6u por testemunha. Fecha-se em copas. Falar o qu6?) 30 ilI E Nem bem chegou e j6 o Poeta encontra o Editor' j6 o encontra atarantado. Que bicho te mordeu, homem? - Brifalo. - Brifalo? com - N6o. Ningudm me mordeu' Eu 6 que estava o pensamento longe. - Qu6o longe? - Em KeY West. West? - Que raios teu pensamento faziaem Key - Eu te contei o dia em que Hemingway telefonoume de KeY West? nada - N6o, nlo tinha contado. O Poeta n6o sabia do telefonema. de Maraj6' - Pois 6, queria caEar brifalos naa Ilha sobre cagada de brifaQuase falei do norso entrevero los na Africa. Haviam discutido horas. O Editor sustentado que Hemingw ay cartegara' com nativos, o bffalo que tinha abatido, a ele cabendo levar o bicho pela cabeEa porque pesava mais. O Poeta mantendo a versdo que o escritor uint u d frente tomando w drink enquanto os nativos dese esfalfavam levando a caEa. o Editor consultara zesseis compendios e afinal conclufra que assistia razdo ao Poeta. bffalos em nossas - Mas a feru desistiu de caqarsaberia como arran- praias. Felizmente, porque eu nem jar a tal cagada. Bffalos davam fome canina ao Poeta' - Afinal. vamos ou ndo vamos almoqar? 3l ... de um revds solo parti6 cinco gigantes por la cintura, como si fueram hechos de habas. Miguel de Cervantes O leilao Os Monteiro G6is e os Almeida Neves seriam para todo o sempre ineconcili6veis inimigos. Brigabrabique Jo6o G6is e Possid6nio Neves herdaram dos pais, qui u herdaram dos av6s, que jd a encontraram feita ,ef"itu por geraE6es anteriores. Para facilitar a contenda," os pais colocavam nos filhos os nomes dos av6s e assim suie.sivamente. Ent6o, nada a fazer sendo tocar acizdniapara adiante, desavenEa que animava a pacata Itaperuni no ocaso do Estado Novo. Com a redemocratizagdo, os G6is ingressaram na UDN e os Neves naturalmente no pSD, ampliando para o campo da politica a diverg6ncia secular. Se os Neves iam melhor na politica, tal n6o se dava nos neg6cios. O gado dos G6is se multiplicava enquanto a lavoura dos Neves minguava: uma sucessdo de safras ruins levouos d porta da bancarrota. Atrav6s de um preposto, Jo6o G6is tentou comprar as terras de possid6nio Neves; fe- lizmente para este, dona Odete Macedo, tambdm do PSD, escrevente do Cart6rio de Notas. alertou seu correligion6rio de que o pretenso comprador ndo era fazendeiro em Bom Jesus como apregoava e sim ,,homem de palha" dos G6is. O vardo dos Neves deu uma boa corrida no Justino, era assim que se chamava o ,.testa de ferro", arrendando as terras para um certo Diniz de 34 Lages do Muriad por dezr6is de mel coado e confinando-lse, com a familia, no Grande Hotel de Itaperuna, ainda de sua propriedade. Possidonio nunca havia ligaseu do muito p*u o hotel, empreendimento com o qual av6 objetivara incrementar o desenvolvimento da cifadade. N6o era, portanto, do ramo hoteleiro e com o lecimento do seu coutinho, gerente h6 mais de trinta anos do hotel, coube-lhe tocar o dito, o que fez mal e "As desgragas andam juntas", lamentava-se o po- mal. bre do Neves. Mas nem tanto. O PSD de Itaperuna havia apoiado fortemente o candidato do Partido em Campos, derrotando a UDN, que se empenhou na vit6ria do seu candidato, o Brigadeiro, que tamb6m perdera feio na regido para o marechal Dutra, candidato de Getrilio vargas, deposit6rio do 6dio dos G6is. O deputado Augusto Saturnino nem bem desembarcou do trem que o levou d capital da Repriblicae i6t cavou autonzaqdo para a instalaqdo de uma r6dio em Itaperuna, concessdo que saiu em nome de Possiddnio Neves, seu estimado coneligiondrio. Mas n6o era s6 na tradigdo e na politica que as familias se diferenciavam. No temperamento, tamb6m' Os G6is eram de natural reservados, retraidos mesmo' o que de certa forma justificava a fama de soberba que auorguuu-. Os Neves, por seu turno, eram extrovertidos, alegres, brincalh6es a mais ndo poder' Possiddnio ent6o era um ntimero, uma com6dia. Montada a r6dio a poder de empr6stimos que contraiu sem bem saber como iria honrar, o microfone da emissora expandiu os naturais pendores do seu dono' Propriet6ri o, sp eaker' conffa-re gta,faz-tudo PossidOnio, 35 ouvinte compulsivo, inspirava-se nos programas radiofdnicos da Capital para produzir os i.url nu.nu Itaperuna deslumbrada com a novidade. Mtisica, variedades, consult6rio sentimental, certames, brindes, pro_ gramas de utilidade pfblica, tudo possidOnio Neves introduziu na Ri{dio Itaperuna. Os grandes cantores se faziam ouvir na ri4dio. Possiddnio iniciava a apresentaEdo chamando-os pelo nome, como se eles estivessem na estaE6o: "Canta Francisco Alves.,' E Francisco Alves, o Rei dayoz,cantava,.Adeus, cinco letras que choram", valsa de silvino Neto que arrancava ldgrimas dos ouvintes; ou..Nervos de Ago", de Lupicfnio Rodrigues, que unia corag6es abandonados. "Canta Orlando Silva.,' E o Rei das Multid6es cantava o samba_cang6o de J. Cascata e Leonel Azevedo .,L6bios que beijei;. Afi_ nado, Possid6nio, por instantes, acompanhava o cantor parecendo ao ouvinte que estavam em dueto, o que con_ feria mais autenticidade i apresentaglo. Ao final, o lo_ cutor n6o se furtava de comentdrios como: "Meu Deus, que mulher ter6 inspirado tao bela melodia?" E deixava a pergunta no ar, a drivida pairando: "Teria sido voc6, minha cara ouvinte?', E todas se sentiam um pouco respons6veis pela inspiragdo do poeta. Parceiros na arte de compor. Mu, tambdm sofriam quando o locutor chamava: "Canta Dalva de Oliveira." E Dalva, a not6vel cantora, trinando sua voz in_ confundfvel, interpretava o samba-cangio .,Bom_dia,' de Herivelto Martins e Aldo Cabral. 36 E todas se sentiam um pouco traidas' Ou cfmplices quando ela cantava "segredo", tamb6m do Herivelto mas com Marino Pinto. Patri6ticos se sentiam todos quando novamente' atendendo ao comando do locutor, apresentava-se Francisco Alves, desta vez interpretando o samba-exaltaElo de Ari Barroso "Aquarela do Brasil". Melhor, s6 o Hino Nacional, que abria e fechava a programagdo' Aos ouvintes, Possiddnio ainda servia informagOes que recolhia do mens6rio "Parada Musical" de Auro Teixeira ou da revista "Brasil Musical". Inspirado no programa "Calouros em Desfile", que Ari Banoso apresentava na R6dio Cruzeiro do Sul, a R6dio Itaperuna passou a revelar os talentos musicais da regi6o. Dona Yaponira, professora de piano da cidade, nio sefaziade rogada e semanalmente oferecia uma audiElo; tamb6m seus alunos. Seresteiros, violeiros, sanfoneiros, cantores, todos tinham vez.Ecom uma sutil diferenga a separ6-lo do mestre Ari: ningu6m era gongado! Na programaEdo "variedades" compareciam as quituteiras da cidade ensinando as receitas que receberam por familiar tradigio oral. Algumas mais saidas chegavam mesmo attazer o resultado de suas habilidades: salgados e doces freqUentavam o estfdio, precariamente instalado em um antigo quarto de guardados do hotel. Possid6nio logo teve aiddia de ofertar os pratos aos carentes da cidade. No infcio, aos que paravam perto do hotel, que ficava em frente d estaEdo da Estrada de Ferro. Depois, a boa nova circulou e no dia do tal programa era um desfilar de pobres querendo salgados ou doces, n6o importava. Possid6nio ent6o organizou os )t fam6licos, distribuindo senhas e designando datas para elas. As senhoras se sentiam duplamente gratificaias: e3m ouvidas pelas ondas sonoras da Rddio Itaperuna e ainda praticavam a caridade tdo reclamada peio padre Telmo, logo-logo amigo da r6dio, do dono da r6dio e de sua programagdo. E, em seguida, ele mesmo, colabora_ dor, pois, religiosamente, ds seis horas da tarde, ap6s a execugdo da "Ave Maria" de Gunot, o padre.erauiumu oragIo e quando estava inspirado lascava uma pr6dica, ds vezes antecipando o que iria falar na missa de do_ mingo. Esmerava-se Possid6nio nas respostas hs cartas do "Consult6rio Sentimental". Cartas que podiam vir pelo correio ou entregues, i sorrelfa, na pr6pria portari; do hotel. Ndo deveriam vir assinadas sen6o por pseud6nimo, mas se viessem, o consultor se enciuregaria de ga_ rantir o anonimato da missivista. Sim, da missivista, pois os homens nio se prestavam a tais desfrutes, embora ndo perdessem as respostas logo ap6s a oragIo do dngelus. As esposas, ouvidos colados ao rddio; eles, aparentando indiferenga, simulavam ler o jornal, mas procurando descobrir nas consulentes suas pr6prias consortes ou mesmo alguma conhecida, o que se pres_ tar.a a futuras conversas na barbearia do Mota, nas tardes de s6bado, ap6s o almogo e antes do futebol. O ,,Consult6rio" era tamb6m um sucesso. No in(cio, possid6nio foi obrigado a inventar consultas, mas depois o programa pegou, e as cartas tinham que ser selecionadas. euan_ ta l6grima n6o enxugou, quanto ombro ndo ofereceu, quantos corag6es consolou. E lengo? Haja lengo! Estimulava competiE6es no grupo escolar. Oferecia pr6mios, divulgava resultados, entrevistava campe- 38 6es: os pr6prios e seus venturosos pais' A todos augurando um futuro maravilhoso' um porvir esplendoroso' Um espanto! Mingdo a parte merecia o programa de utilidade priblica. Fhta d?gua, buracos nas ruas' animais nas vias pribli"ut, problemas de saneamento, quest6es de safde pr'iUti"u, melhoria do ensino, fiscalizaglo rigorosa dos gu.tot da municipalidade que traziam o Intendente num cortado s6. Encerrava a programaqdo com uma "Hora da Saudade", em que era lembrado um vulto importante da cidade ou daregilo, ou registrados acontecimentos dignos de nota, especialmente aqueles que enlutaram o burgo e que ilrancavam furtiva l6grima do ouvinte que amose preparava para dormir. A proximidade do sono leci as pessoas e favorece as l6grimas, assim pensava Possiddnio, um fi16sofo. E a politica? Bom, foi af que a porca torceu o rabo' Embalado pelo sucesso da r6dio, Possiddnio avaliou que era chegada a hora de assestar baterias contra seus mortais inimigos, os ricos G6is. E n6o fez outra coisa, ainda que com prejuizo da programagdo j6 consagrada. Matreiros, os G6is reagiram como reagem os poderosos: encomendaram uma surTa no Possidonio e ameagaram os comerciantes com o corte no crddito do Banco Comercial de Campos' estabelecimento que servia d regi6o, al6m de retaliag6es diversas. Possid6nio, refeito da tunda, voltou ainda com mais virulOncia aos ataques, animado, agota' do sentimento de revanche pessoal: n6o era mais apenas a briga antiga e familiar a estimular o chefe dos Neves, que ent6o se 39 revelou eximio polemista. Chegou mesmo a chamar os homens da cli dos G6is de pristulas. O povo n6o enten_ deu bem o significado da expressdo, mas pristula soava como o maior dos xingamentos. Denunciava as condi_ E6es subumanas dos trabalhadores nas fazendas dos G6is. Escravos, era o que eram. Explorados, e ainda humilhados, obrigados a empregar seus filhos peque_ nos na lavoura impedindo-os de freqUentar o g*po colar, condenados d ignorancia. Em uma tarde de parti"r_ cular inspiragdo, chegou a langar forte diatribe cbntra seus inimigos: "Fascistas, s6o o que s6o.,' A briga crescia, e o com6rcio se encolhia. Os co_ merciantes, admiradores da r6dio e de seu proprietdrio, queriam ajudar, mas possid6nio, intransigente, nao co_ laborava. Que parasse os ataques, diziam, e ent6o tudo podia se arranjar. Qual, Possid6nio nao estava para acordos ou ajus_ tes, rejeitava cambalachos. Crescia na sua ira incontrol6vel. "Escolhi um caminho do qual n6o se recua sem perder a honra", repetia parodiando Rui no alvorecer da Repriblica. Colocados nesses precisos termos, a disputa n6o teria volta, e os anfncios iriam rarear, levandoo incansdvel lutador ds cordas do rinque do cart6rio de protestos. Sabidos, os G6is foram comprando as notas pro_ miss6rias que o Neves emitiu para montar a rddio e que n6o saldara. Eatdentao nemprecisava, pois o,u""iro da ri{dio garantiria a liquidez dos tftulos, muitos trocados por propaganda, inclusive pelo poderoso Banco 40 fortes Comercial de Campos' casa em que os G6is eram acionistas, como todos sabiam. Aos poucos, os G6is se fizeram detentores de tojudicidos os cr6ditos contra os Neves e os executaram almente. Possid6nio foi citado parupagar dentro de vinte e quatro horas, sob pena de penhora dos seus bens' Possidonio recorreu aos amigos, aos comerciantes e at6 aos fazendeiros do lugar. E certo que consegulu alguma coisa e o pouco que logrou veio com a recomlndagdo de sigilo absoluto: ningu6m queria enfrentar a ira dos G6is, que embargavam qualquer sentimento de solidariedade com o virulento ofensor. Desesperado, o radialista procurou seu amigo deputado Augusto Saturnino, e- -a-pos. Que o desanimou, definitivamente. E que ap6s sua posse' o general Dutra, que se elegera com os votos de Vargas, mudara parcialmente ut uliungut e se compusera com a UDN, partido de seus antigos adversdrios, que agora participava do governo de'TJni6o Nacional", e que dera, exatamente, o Ministro da Agricultura, ele mesmo usineiro e ligadfssimo aos seus colegas de Campos. Lamentava o deputado, mas nada poderia fazet pelo correligion6rio' Mas, pessedista matraqueado, dava-lhe um conselho: "Componha-se com os G6is, compadre' Agora, n6o somos mais advers6rios, por assim dizer Fale na r6dio sobre a,,uni60 Nacional". Todos v10 entender sua nova posiE6o, suas novas responsabilidades na politica nacional. Ora, se os grandes, que s6o grandes, est6o se entendendo, por que n6s pequenos' que somos pequenos' tamb6m nlo vamos nos entender?" - perguntava o polftico com uma l6gica de arrasar. 4L Arrasar qualquer um menos o intimorato polemista. Repetia, como bord6o, parafraseando o c6lebre Rui Barbosa: "Escolhi um caminho do qual n6o se recua sem perder a honra". Recusando mesmo a generosa ofer_ ta do deputado de ir, ele mesme, em toda a sua pessoa, ao microfone da R6dio Itaperuna para justifi"* u -u_ danga de posigdo. E taria mais: ainda.i., p"rroul e ci_ vicamente, procuraria os G6is propondo neo bem uma reconciliagdo, que sabia impossivel, mas pelo menos uma tr6gua at6 as coisas se acalmarem e o compadre salvar seus bens. Qual, nada demovia o impertdrrito Possid6nio: homem probo e de convica6es inabal6veis, cardter impoluto, vardo de plutarco. Mas, besta n6o. Feita a penhora a agdo seguiu o rito ordin6rio, como lhe orientou seu advogado Jos6 Antdnio Tavares, pri_ mo de sua mulher, vindo especialmente de Valenga para fazer sua defesa. "Ordindrio 6 o Jo6o G6is',, desabafou o inconsoldvel processado, que continuou em sua catilin6ria contra seus inimigos, inabalavelmente. Entretanto, apesar dos esforgos do dr. Thvares e da boa vontade do juiz de Direito, a agdo chegava ao seu termo e a praga afinal marcada. Boa vontade e conselhos o doutor juiz serviu ao intolerante Possid6nio: "Aceite o parecer do deputado, seu possiddnio. Nio vai lhe diminuir..." "E minha honra?" - cortou r6pido o outro. "E, o senhorprefere ahonra iriida? Summumcrede nefas animam p raefe r re p udo ri, e t p ro p t e r v it am v iv e ndi perdere causas" - sentenciou o magistrado, incomoda_ do em dobro com a desdita do amigo. Estimava o per_ 42 possuia' e sonagem, admirava-lhe a coragem que nlo lamentaria nlo poder mais ouvir seus conselhos ds ao "Consult6rio Sentimental" sob missivas qu. "nniuua o pseud6nimo de Anita e na qual liberava sua por96o ele, juiz de Direito, imensos bigodes' caprichadu, -Jl.nus, machfssimo, encontrava consolo -ulh"r, da nas palavras que lhe chegavam pelas ondas amigas R6dio Itaperuna, cujo equipamento tamb6m fora arrolado na penhora cruel. Crudelfssima' Mas o que mais podia fizer? Desafiar os G6is aceitando os agravos protelat6rios'argiiidos pelo advogado do r6u e incompatilibilizar-se com o autor, com ligag6es no Tribunal ie Justiga, e ficar mofando numa comarca do interior, n6o ser promovido e voltar para sua Niter6i' mais precisamente para a praia de Icaraf, com lindas mogas e Lelos rapazes? N1o, lamentava mas n6o podia' A cidade acorreu comovida d hasta pfblica' O com6rcio celrou suas portas. As pessoas mal falavam: murrnuravam como num vel6rio. E vel6rio era o que praera o malsinado leil6o. Anunciada pelo meirinho a ga, o exeqtente apressou-se em lanqar o valor da avaliigao. Imediatamente, dr. Tavares formulou, em nome do seu cliente, "protesto por prefer6ncia"' A cidade prendia a respiragdo' Melhor que Tribunal do Jfri. O que viria a seguir? Tergavam armas os causfdicos.EtudotransmitidoaovivopelaR6dio Itaperuna, pois o leildo tealizava-se no sagudo do hotel penhoradoi foi s6 puxar o fio do microfone atl ele' Empostando avoz, o advogado do autor, de nome Pergentino, exigiu: "Dr. Juiz (perorou), meu ilustre colega se esquece do dever de depositar o prego da licita96o, e todos sabem 43 que o r6u est6 exaurido. Assim, requeiro que V. Ex.u in_ defira o 'protesto de preferOncia' formulado pelo r6u.,, E olhava em torno para ver o efeito de sua contund6ncia, colhendo olhares de 6dio ou reprovag1o da assist€ncia e um pequeno assentimento do G6is, discreto como sempre. O juiz oferece a palavra: "Dr. Tavares?" Que piganeia e pondera: "Excel0ncia, nio vi, de sua parte, o autor formali_ zar o dep6sito como deveria; logo: lJbi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio.,, A plat6ia, n1o tendo mais respiragdo a prender, ar_ regala os olhos. O juiz, emdrito latinista, mal esconde o sorriso quando se dirige i parte contr6ria: "Ent6o, doutor pergentino?', Que se atrapalha todo. .,Bom Exceldncia. Bom... Quer dizer... N6o entendi bem a fltima parte do pedido do ilustre colega..." Diverte-se o magistrado: "Esclarega seu colega, doutor Tavares." Que entra no jogo dando as cartas: "Pois n6o, Excel6ncia. Eu disse: Ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio.,, F completou para divertimento do juiz: "Audiatur et altera pars, Excel0ncia.', O magistrado corta o baralho. Dirige_se ao advo_ gado do exeqtiente. "Ent6o?" Que se atrapalha ainda mais. Se n6o entendera a primeira parte, que dizer da segunda que parecia a ele 44 a lona ser diretamente dirigida? Entrega os pontos, beija da ignordncia. "Perddo, doutor juiz, mas j6 deixei os bancos da faculdade h6 muitos anos e meu latim est6 algo enfemr- jado..." "Algo?" - interrompe malevolamente o lutz' A populagdo delira; Jo6o G6is olha as pontas dos pr6prios saPatos. RecomP6e-se o advogado do algoz: "Mais uma vez, perddo, Excel0ncia' mas a lei nos obriga a expressarrno-nos apenas no vern6culo'" E olhou em torno para ver se recuperava alguma plaposig6o. Jodo G6is continuava a mirar a biqueira' A t6ia querendo ver sangue. iDoutor Tavares?" consulta o juiz' Quer esticar a corda ao m6ximo antes de dar seqtiOncia d praga' Que ndo se faz de rogado: "Lex iubeat, non disputet" - conclui' Lamentando intimamente ver-se obrigado a prosseguir com o leildo e amaldigoando o baixo nfvel do ensino dos cursos jurfdicos do pafs em geral e a caval- gaduradoadvogadodoautoremparticular,omagistrado sentenciou: "Segue o enterro." Danou-se. Pede perddo, mais uma vez o pobre Pergentino: "Perd6o. Excel6ncia, mas afinal acabei n6o sabendo qual a decisdo do Juizo com relaE6o ao meu embargo"' "Eu 6 que the devo desculpas" - responde pressuroso o 1uiz, que continua: "Com efeito, o senhor n6o temqualquerobrigagdodesaberlatim.Indeferioseu embargo 6 acolhi as raz6es do r6u porque o autor n6o 45 depositou o valor da avaliagdo; assim, o r6u. Logo, aequitatis ratione,perddo, por raz6es de eqUidad., u.-ri_ tei o "protesto de prefer6ncia", nos precisos termos do artigo 977 e do seu g l. do C6digo de processo Civil, baixado pelo Decreto-Lei n" r60b, de 1g de setembro de 1939;' (Eta mem6ria!) - ... Assim, se as partes nada mais t6m a requerer, vou dar por encenada a praga..." Dr. Pergentino interrompe o juiz. "Perddo Excel6ncia..." ("Esse neg6cio de perddo j6 est6 ficando cansati_ vo..." pensa o meritfssimo) "Mil perd6es..." ("Mil 6 demais...,') " ... Mas preciso consultar meu cliente.,, Jo6o G6is, carade amigos muito poucos, autoriza o lance. Dr. Pergentino cobre a avaliagdo, oferece mais. O juiz aceita e manda prosseguir. "Quem d6 mais?" - pergunta o meirinho. Possid6nio se desespera, abre_se em convulsivo choro. O valor da avaliagdo, porque muito baixo, repre_ sentava por certo o seu limite, era o que havia .onr._ guido com os amigos. Jo6o G6is permite-se uma pontinha de satisfagdo; seu advogado mostra um sorriso alvar; da plat6ia, .on._ ternada, eleva-se um coro de lamentag6eslogo contida, com-um simples gesto, pela autoridade do magistrado. Nesse instante, um velhinho de terno de sa4a que habitava, discreto, uma cadeira na primeira fila, .6UrL o lance do exeqiiente. 46 Dr. Pergentino confabula com seu cliente' que lhe d6 instrugOes: "Vai cobrindo o lance devagar enquanto vou assuntar quem 6 esse raio desse velho"- comandou' pequ:E lbgo soube que o velho era dono de uma quena na rede de hot6is no Sul do Estado e certamente expandir seus neg6cios. Malandro, Jo6o G6is' orienta seu advogado para desistir de langar: "Deixa ele comprar. Assim, eu n6o vou ter que gerir o hotel, nem a R6dio, e pelo menos recupero parte do que emPreguei." O idiota do Pergentino poderia perfeitamente omitir-se, calar a boca. Deixar sem cobertura o lance do velhoepronto. Mas qual, semostrador, dirigiu-se aojuiz: "Meritissimo, meu cliente desiste de lanqar""' Nem bem completou a frase e a assuada atroa no sagudo do hotel. Uh! Fora! O povo vaia' A cidade apupa' Indiferente a tudo, o juiz acolhe o pedido' O meirinho bate o martelo. O velho levanta-se e s6 ent6o a multiddo o v€ no seu avantajado tamanho. "Dr. Juiz, pego a palavra" - exclama solene' "Perfeitamente", o magistrado a concede' '"Tenho uma importante declaragfuo afazet'', comega' O silOncio substitui o murmtirio que se seguiu bvaia' N6o se sabe nem por qu6, muitos pressentem que est6o a presenciar um momento hist6rico, desses que as pessoas participam apenas uma vez na vida' Talvez as emog6es dia, a figura do velho, a gravidade da ocasi6o' "Quero depositar nas m6os de V' Ex'u a procuragdo que me outorgou o senhor Possiddnio Neves, neto do meu padrinho Possid6nio Neves. Representei o neto Oo 47 nesta hasta priblica em homenagem d mem6ria do av6 que me encaminhou na vida. O hotel e a r6dio, portan_ to, voltam ao seu dono.,' _ Manifestag6es de alegria ganham os c6us de Itaperuna. Possid6nio, entflo, ri-se da patranha que ur_ dira. Sai carregado em triunfo. Todos se abragavam, a populaEdo da cidade confraterniza-se.Tarde de sol, noite de lua cheia. Estava encerrado o leillo. 48 "A profissdo 6 de poeta/ ou de empinador de papagaio. O que vem a dar no mesmo." Thiago de Mello A arte e a arte de empinar papagaios Pequena histdria em dois rounds passada na pacata ltapentna, norte fluminense, contenda em que se enfrentaramtradicionais inimigos: de um lado, os Monteiro Gdis, fazendeiros ricos, somfticos e discretos; de outro, os Almeida Neves, alegres e de bem com a vida, perduldrios, fazendeiros arruinados mas ainda donos do hotel e da rddio da cidade. Os G6isfiliados d Unido Democrdtica Nacional, os Neves ao Partido Social Democrdtico. A disputa girando em torno das eleigdes municipais, a primeira e a segunda realizadas jd na vigAncia da Carta Magna de 1946 e logo apds a promulgagdo da Constituigdo estadual da Velha Provincia. Luta re- nhida entre o poder e a astrtcia. Peleja encarnigada em dois assaltos, como se verd: 49 A eleigdo do Prefeito O pleito parecia f6cil para Possid6nio Neves. Afinal, figura popular e estimada na cidade, ainda vinha escorado na forga que o PSD dispunha na regi6o, demonstrada na eleigdo do general Dutra e confirmada na expressiva vit6ria do deputado Augusto Saturnino, seu compadre e amigo que para ele cavara a concessdo "A Princesinha do Norte Fluminense", sucesso absoluto de audiOncia. E ndo era pra menos: a r6dio nada ficava a dever is suas coirmds de Niter6i, capital do Estado, ou mesmo do Rio de Janeiro, capital da Repfblica. Talvez mais, porque as outras, de alguma forma, especializavam-se. Umas dedicavam-se mais aos programas de estridio, com radionovelas, espet6culos de audit6rio e mfsicas de c0mera; outras, aos noticiosos e esportes; e ainda uma derradeira ocupada com a cultura e serviEos priblicos. Possid6nio fazia de um tudo na sua "Princesinha". Na mfsica, desfilavam os maiores compositores da 6poca em discos novinhos de 78 rotaq6es que o pr6prio Possid6nio abalava-se a comprar na afamada Casa Edson, no Rio de Janeiro, ocasiio que aproveitava para entabular dois dedos de prosa com o Matias, caixeiro do estabelecimento e versadfssimo na matdria, conhecendo tudo de mfsica e da vida das estrelas do r6dio e do disco, al6m de passar na Colombo para tomar sua cajuada e forrar-se dos saborosos pastdis de nata que na volta levava no embornal juntamente com os fltimos da R6dio de Itaperuna, 50 potins dos artistas. Os pasteis destinavam-se i dona Emerenciana, sua santamulher, e os mexericos aos seus ouvintes. Que o imaginavam intimo das atrizes e dos atores aos que se referia com comedida intimidade. Programa de audit6rio? Nem me fale. Ficava bravo quando algudm insinuava semelhanga do seu com o programa "Curiosidades Musicais", criado por Henrique For6is Domingues, o Almirante, a "Mais Alta Patente do R6dio". Injustiga da grossa quem procurasse analogias com outros programas do Almirante como "Caixa de Perguntas", "Programa de Reclama96es", "Campeonato de Calouros" e "Tribunal de Melodias", em que o pr6prio ouvinte julgava as mtisicas que se apresentavam. "O Almirante fazia isso"?, perguntava. A resposta invariavelmente negativa, respondia: "Ent1o, como 6 que eu imito, hem?" E saia vitorioso para apresentar o seu inigual6vel "Correio Sentimentd", o programa de maior audi€ncia da r6dio, no qual os aflitos eram consolados, dores mitigadas, os conselhos apropriadamente distribufdos: corag6es ao alto. E ai de quem procurasse parecengas ou similitudes com o programa de Renato Murce da R6dio Cruzeiro do Sul! "Invejosos", resumia o inventivo Possiddnio. Entretanto, Possid6nio n6o contava com a matreirice do Jodo G6is, embora devesse pois se ttatava de individuo magano, chegado a uma sacanice. Pois n6o 6 que o cabra consegue o apoio do doutor Durval, afamado m6dico da regi6o, conservador, respeitado, al6m de competente e caridoso? Caroldo, reacion6rio que a priltictde sua vida desmentia, o escul6pio atendia a todos pudcssem ou n6o pagar. Mas suas id6ias, n6o as que deveriam ser dele certamente, mas as que portava, 51 eram retr6gradas de doer. Antigetulista atd a medula decidiu-se a disputar as eleigOes quando Possid6nio fundou o Partido Trabalhista Brasileiro como linha auxiliar do seu PSD, colocando na presid6ncia do partido um certo Manuel Jo6o, antigo ferrovii{rio tido e havido como comunista. Era demais! "Aceito o desafio, seu Joio" - disse para o mais velho dos G6is, exatamente o mais sabido de todos. "Pois entio vamos ganhar, doutor"- respondeu-lhe na bucha o fin6rio. E ganharam. O dinheiro dos G6is e o prestigio do doutor operaram milagres. Combinagdo diab6lica que virou as eleig6es. Certo da vit6ria, Possiddnio antecipava comemorag6es, recebia abragos, formulava convites. As apurag6es comegaram pelo centro da cidade, o que aumentou a euforia do radialista. Mas quando vieram as urnas dos distritos, a coisa mudou. E urna quando comega a xingar n6o p6ra mais. 56 chovia na horta do doutor. Os burgos deram-lhe a almejada vit6ria. "Fui roubado"- bradava inutilmente Possid6nio pelas ondas sonoras da R6dio Itaperuna. Alinhava fatos, apontava desvios, provava por a + b que em tal segdo tinha votos, e eles sumiram. At6 o voto do Neco da Pharm6cia Popular, seu futuro Secretdrio de Saride cujo tftulo era inscrito na sede da fazendinha da familia e portanto num dos distritos da cidade, ndo aparecera. "Sumiu", vociferava o pobre do Neves. "Sumiu, nIo", emendava. "Foi roubado", afirmava. "E sabem por quem?", perguntava. E ele mesmo respondia: "Pelos cachorros da UDN". Ndo fazia por menos: era de 52 cachorro pra baixo: "Ladr6es de voto, lardpios, sicofantas." Doutor Durval n6o se conformava. Queria responder aos agravos do perdedor. Contratar advogado, process6-lo por difamaglo, injfria e cahinia: todas tr€s de uma s6 vez, n6o abriria mdo de uma sequer. E nessa ordem: difamagdo, injriria e calfnia. Seu Jo6o 6 que acalmava o correligion6rio justamente ferido nos brios e sem sequer desconfiar dos votos adulterados, das atas falsificadas. Teve de tudo, at6 morto que n6o votava h6 muito tempo votou. E mais de uma vez. Liberto do peso da sepultura, o defunto sentia-se livre para perambular pelos distritos depositando em cada urna que encontrava no caminho o seu sufr6gio ressuscitado. "Quem ganha n6o briga, doutor Durval. Vamos tratar de governar." E governaram. 53 II Arte de empinar papagaios O tempo passou mas n6o arrefeceu o dnimo de Possiddnio Neves, dos Almeida Neves de Itaperuna, dono de hotel e da R6dio Itaperuna, a "princesinha do Norte Fluminense". Continuou com seus programas e seguiu cozinhando a raiva em panela de 6gua fria. .,As eleig6es v€m ai e vamos ver Deus por quem ser6", ruminava o personagem. E nio 6 que elas se aproximaram, mesmo? Jodo G6is deixou a soberba tomar conta de sua pessoa. Dessa vezndo mandaria preposto, iria ele mesmo disputar as eleig6es com seu tradicional advers6rio. Queria vit6ria pessoal, anasar Possid6nio pessoalmente. A vit6ria sobe i cabega mais que cachaga. A vis6o da vit6ria 6 um porre antecipado. E assim, meio b6bado, o chefe do cl6 dos G6is foi d luta. Amontado na boa fama do doutor Durval e no razofvelgoverno que vinha fazendo,Jodo cunhou seus/ogan de campanha: "Votem em Jo6o G6is: o candidato do governo". Tartamudo, entaramelado, de natural ensimesmado, Jo6o s6 sabia repetir: "Votem em Joio G6is: o candidato do govenlo." E mais n6o disse e nem lhe foi perguntado. J6 Possid6nio Neves praticava um desparrame de campanha. Estava em todos os lugares. Visitava os eleitores, batizav amenino, abragava cidad6o, apertava m6os. Multiplicava-se: era um, eram dois, eram muitos, eram todos. E enfiava o cacete na UDN em geral e no governo 54 em particular. "Corja de safados, infteis", xingava. "A cidade est6 abandonada", exagerava o opositor. Foi por essa 6poca que arribou na cidade um mogo poeta versado na arte e na ciOncia de empinar papagaio. "A profissdo 6 de poeta ou de empinador de papagaio. O que vem a dar no mesmo", dizia. "Ou de politico", pensava Possiddnio cheio de astfcia. Montado nas id6ias do poeta, Possid6nio foi a Campos onde comprou papel de seda, tala e goma. Comprou tamb6m carret6is de boa linha. Comprou tanto que esgotou o comdrcio. Mas n6o comprou pano para a rabiola. L6 mesmo contratou gente para fabricar as pipas. Muita gente, muitos papagaios. E moita. Psiu. "SilOncio absoluto", pedia. Nas v6speras do pleito, Possiddnio inunda a cidade com seus lindos papagaios coloridos. N6o houve crianga que deixasse de ganhar o seu. No centro ou nos disrims mais distantes, todas as criangas ganharam, al6m do papagaio, carretel de boa linha. Jodo G6is continuava afazer a mesma campanha, repetir a mesm(ssima ladainha, tudo igual: "Votem em Jo6o G6is: o candidato do governo". Possid6nio crescia. Mais visitas, mais batizados, mais abragos e apertos de mdo. Estava aqui, estava ali, estava em toda parte. Embora satisfeitas com o presente, as criangas n6o podiam soltar os papagaios por falta das respectivas rabiolas. E foram cobrar do candidato Possiddnio. Que falou geral: - Todas as criangas, domingo (v6spera da eleig6o), no coreto da praga depois da missa que eu vou dar uma solugio, afirmava de p6s juntos. 55 A hist6ria correu, e os adultos se interessaram. ..eue serd que o Possid6nio vai aprontar?", perguntavam_se. A semana findou seu curso em um belo domingo de outubro. Desde muito cedo a cidade acompanh uri u faina de Possiddnio a emendar fios paratrazer o microfone de sua r6dio para o coreto da praga. Aumentava a curiosidade. Depois da missa, n6o apenas as criangas, mas toda a populagdo de Itaperuna acorreu i praga. Os habitantes dos distritos vieram como puderam: de carro, de ciuroga, de cavalo, de charrete, e a-p6. Ningu6m queria perder o que ndo sabia acontecer. At6 o padre veio espiar da porta da Igreja. Possid6nio saudou o povo: "Bom-dia, minha gente." Falou para o povo da praga e para seus ouvintes da querida "Princesinha do Norte Fluminense", a combativa Rddio Itaperuna. "Bom-dia", responderam. "Bom-dia criangada." "Bom-dia", a criangada respondeu. "Est6o satisfeitos com os presentes? Ti{ faltando o qu6?" "O rabo", gritam todas. "O rabo n6o 6 comigo", grita Possid6nio. "Quem d6 o rabo 6 o candidato do governo"! Ganhou a eleicdo. 56 "... Me sobra coraz6n." Miguel Hernandez A metade exilada Estava exilado em La Paz, io inverno de 1964, quando o professor Anfsio Teixeira me consegue uma bolsa de estudos na Universidade de Buenos Aires e tomo o trem para a Argentina. Quatro dias depois de muito sacolejo chego h fronteira dos dois pafses, as cidades de La Quiaca e Vi11az6n. Feita a Alfdndeg?, o trem lentamente se p6e em movimento mas em seguida p6ra abruptamente; carabineiros bolivianos o cercam e iniciam uma busca rigorosa em todos os vag6es. Quem seria o criminoso? Perguntava aos botOes do meu sobretudo. "Su passaporte, seflor." Era a mim que procuravam. E logo me encontro preso no quartel dos carabineiros. E sem conseguir qualquer explicaglo. A policia se refugia nas ordens que recebe. "Ordenes, ordenes." Gelo quando me p6em na cela em que iria passar a noite. A cela era gradeada como toda a cela, mas aberta para o p6tio. Eu iria gelar. O socorro me chega inesperadamente. E pela mio de uma fada. Naturalmente se chamava Socorro e se hospedava, quando em La Paz,no hotel em que os exilados moravam. O Gran Hotel era um casardo velho que teria conhecido seus tempos de fausto h6 muitos e muitos anos, mas que ainda conservava como lembranga de antigos tempos, lindas guarniE6es de cama em anoso metal dourado e fant6sticas banheiras, que eram cheias de 6gua quente trazida da cozinha por um 57 camareiro cholo em belas jruras, certamente um legado mouro vindo da Espanha colonizadora. Sem calefagio, ndo havia cobertor que desse conta do frio. E era no frio que eu pensava, quando tiritava dele na cela, e me entra Socorro, ap6s naturalmente, subornar o sentinela. Viu a prisdo e saltara do trem. Eu mal a conhecia. Troc6vamos cumprimentos formais quando nos encontr6vamos no corredor que levava ao restaurante onde era servido o magro desjejum. Habitava um quarto sem banheiro, o que demonsffava a condigdo modesta em que vivia. Junto com o irm6o, soube depois, comprava mercadorias em Slo Paulo ou Buenos Aires para revender em LaPaz; entregava-se a um honesto contrabando. Enfrentava o "trem da morte" para Santa Cruze aquele maldito trem para Buenos Aires, alternadamente. Para minha sorte, havia optado pela viagem i Argentina e agora entrava na cela trazendo "t6 con t6" numa ganafat6rmica, uma mistura de ch6 quente com pisco que me aliviou da friagem que me subia pelos p6s cansados de bater no ch6o, al6m do conforto de sua presenga. Trigueira, corpo bem formado, com suaves tragos indfgenas, aos trinta e poucos anos, Socorro era uma mulher atraente. O que facilitava sua comunicaglo com as autoridades carcer6ias, sem falar de sua pr6tica de com elas lidar na faina de livrar da Alfdndega as mercadorias que trazia. Nio sei como arranjou um pequeno fogareiro que me entregou com a recomendagdo de deix6-lo junto i grade da cela e dele ficar longe para evitar o perigo da intoxicagdo do carvdo em brasas. Reservada, econdmica de palavras, Socorro foi embora silenciosamente como entrara, ap6s apertar-me a m6o e prometer ver-me pela manhi. Nem pude agradecer-lhe. Passei a noite na imun- 58 da enxerga da cela aquecido pela infusdo milagrosa, pelo braseiro e pela incrfvel generosidade de uma quase des- conhecida mulher. Dia seguinte, enfiaram-me no trem quefaziao trajeto de volta. Passei quatro dias algemado. As algemas eram retiradas no vagdo restaurante para eufazet as tres refeig6es. No primeiro dia, causei espanto aos passageiros que almoEavam. Calmamente, no meu sofrfvel espanhol, expliquei-lhes que era exilado polftico e que protestava conffa a minha pris6o. A Bolivia que me abrigara, agora me prendia. Por qu6? - eu perguntava. E eu mesmo respondia. Ndo sei. A escolta apenas me repetia o que j6 ouvira no quartel: cumpriam ordens. Na hora de deitar, o policial livrava-me a algema de uma das mSos e a prendia na guarda da cama. J6 no segundo dia, a escolta baixou um pouco a guarda, mas nlo se rendeu aos meus argumentos de que poderia retirar as algemas. Iria para onde no trem em movimento? E fugir para qu6? Tinha certezaque iria esclarecer tudo quando chegasse. Nada. "Ordenes, ordenes". Quando chegamos na estagdo ferrovi6ria deLaPaz a pequena col6nia de exilados 16 estava a me esperar, prevenidos que foram por um telegrama da Socorro, que prosseguira sua viagem no primeiro trem que demandasse a Buenos Aires. Haviam procurado as autoridades para saber a razdo de minha prisSo e como fariam para soltar-me. A eles disseram que estavam examinando, mas que n6o se preocupassem. Ap6s algumas formalidades eu seria solto. Entre as formalidades figurava a de passar a noite na cadeia do "Control Pol(tico", famosa pelas torturas que invariavelmente praticava o general San Martin para qualquer governo que estives- 59 se no poder, aos quais servia com invari6vel lealdade. Baixo, careca, cara bexiguenta, a apar6ncia do general era aterradora e ele a cultivava cuidadosamente. Perguntou-me por que me prenderam e eu respondi que era exatamente o que eu vinha tentando saber desde La Quiaca, mas sem 6xito. Fixou-me seus olhos maus e, surpreendentemente para mim que j6 esperava algum tipo de represdlia, deu de ombros e foi provavelmente espantar outro preso, superintender alguma tortura particularmente atraente. Fiquei numa sala ampla entregue aos meus pr6prios pensamentos, que eram naturalmente sombrios. Dormi mal e mal e de manhizinha um tira fedorento, com uma capa de chuva que curiosamente parecia o uniforme dos membros do servigo secreto boliviano, abriu-me a porta da cadeia e fui devolvido d liberdade, tamb6m sem lograr qualquer informagdo sobre a prisdo, e logo abragado pelos companheiros. Precisava desesperadamente de um bom banho. O que consegui numa casa de banhos de propriedade de um chin6s tamb6m dono da lavanderia do hotel e marido de uma paraguaia famosa pelos escdndalos que fazia na hora de goza4 com o marido ou fora dele. O banho n6o era muito popular no inverno e, em fungdo disso, por uma pequenfssima importdncia, a16m do chuveiro quente, o freguOs tinha direito a um pedaEo de sabonete e a uma toalha da qual se desprendia o cheiro rangoso comum ds roupas pacefras. Limpo, de qualquer forma. E faminto. Os apertos por que passei justificaram o copioso caf6 da manh6 que me permiti tomar na "Confiteria Eli", localizada no Prado, o principal ponto de encontro da cidade. Como curiosidade, lembro-me perfeitamente que os doces mil-folhas da "Confiterfa" deveri- 60 am ter exatamente mil-folhas. N6o, continuava n6o sabendo as raz6es da viol€ncia policial mas podia servir aos amigos a incr(vel hist6ria da providencial Socorro, ouvida por todos como quem escuta reza nova. E i6acertada ficou uma "comida" em homenagem d salvadora quando ela voltasse aLaPaz, o que foi feito no pr6prio restaurante do hotel e dentro de nossas limitadas posses. Mas o que faltou em iguaria sobrou em afeiEdo. E uma Socorro constrangida por ser, provavelmente pela primeira vez, centro das ateng6es e alvo de homenagens que se multiplicavam nos discursos que a saudavam. Ficou satisfeita mas achou um tanto exagerados os elogios: era o jeito dela. Nunca mais a vi. Mas, assim que voltei ao quarto, vi a carta com a letra roxa que Ana Luiza usava para sobrescritar sua correspond6ncia. E assaltou-me o pressentimento de que ndo traziaboas novas. N6o deu outra. Comunicava-me seu pr6ximo casamento com Danilo, seu colega de turma na Faculdade de Medicina e namorado antigo, namoro que rompeu quando comegamos e reatara quando terminou comigo: "Voc0 namora a politica se j6 n6o est6 definitivamente casado com ela". Deixou-me plantado no mesmo banco da praia de Gragoat6 que testemunhara nosso romance. Ela, antes, havia bravamente enfrentado a famflia que se opusera ao namoro. Eramos militantes de'Juventude". Ela da JUC: Juventude Universitdria Cat6lica; e eu da UJC: Unido da Juventude Comunista. N6o podiam ser mais diferentes os mundos. O mundo da guerra fnal|fora e o mundo daradicalizagtro polftica aqui dentro. O pai n6o me tolerava, os irmdos idem. Um deles, meu colega de turma na Faculdade de Filosofia, cortou-me o cumprimento e, quando o procu- 6l rel para um entendimento franco, foi franco, tamb6m: "Voc€ ndo serve pra minha irmd". A mde, que me conhecera antes de suspeitar que a gente iria namorar, eta mais indulgente, mas n6o aconselhava o namoro: ,,Ele 6 um bom rapaz, 6 educado, sei que 6 de boa familia, mas esse namoro nf,o vai dar certo. E melhor voc6 obedecer ao seu pai." N6o obedeceu, e o namoro cresceu em labaredas. Deixei de cumprir algumas tarefas do partido e fui chamado a atengdo pela diregio. "Est6 com algum problema, companheiro?", perguntou-me o dirigente. Estava, sim. Com um problema grande, cabeludo, incontorndvel: paixdo das brabas, paixonite aguda. Adiantava contar? De natural acanhado, fechava-me na concha quando se tratava de quest6es pessoais. Apossava-se de mim um constrangimento de tal monta que me impedia at6 mesmo de uma confid6ncia a um amigo. Com o dirigente, ent6o, nem pensar. "Nada, companheiro", respondi. "Coisa mifda que eu mesmo resolvo. Pode deixar que vou botar tento nas tarefas". E botei, mesmo. Mal saberia ele que a causa de tanta aplica96o era o rompimento que me impusera Ana Luiza.El ent6o trabalhava como rep6rter plantonista no Dii{rio de Noticias, como redator da seglo literr{ria no Metropolitano, jornal da Uniio dos Estudantes, estudava i noite e ainda gravava um programa com o pretensioso nome de "Ouga a Verdade", levado pelas ondas da combativa R6dio Mayrink Veiga, tr6s vezes por semana, is onze da noite. Sobrava-me pouco tempo para amargar a separagio. Mas que dofa, do(a. Dobrei a car ta e devolvi ao envelope. Pela janela do hotel avistava o monte Illimani. A Cordilheira dos Andes se erguia em toda a sua majestade. Eu sentia frio e lamentava n6o ter 62 lutado por ela, com ela e comigo. Merda de politica' Um amlgo meu j6 me havia advertido: "VocO sofre de oligofrenia politica". Merda de polftica. Merda de golpe militar. Merda de exilio. J6 n6o queria mais a bolsa na Universidade argentina. O partido queria que eu fosse para a Unido Internacional dos Estudantes, em Praga; ndo aceitara. Quem sabe se a id6ia de estudar em Buenos Aires n6o era para ficar mais perto dela ou pelo menos nio cortar os lagos que fatalmente seriam rompidos se eu fosse morar em Praga, virar um quadro internacional do partido, dar outro rumo h vida? Quem sabe? Eu ndo sabia nada. Ou melhor, sabia que a partir daquele momento iria aceitar a tarefa. E pensava nela com um aperto no coragSo. Nem bem a vi e logo por ela me interessei. Ela, tamb6m. Mas custou a aceitar um singelo convite para um passeio na praia de Gragoat6. "Eu quero 'falar' com voc6", eu disse num dia em que tomara coragem animado por algumas "batidas" do Caneco Gelado do M6rio, "p6-sujo" localizado na parte velha de Niter6i, na rua Marqu€s de Caxias, do tempo em que o duque ainda era marqu6s; "falar" era o eufemismo que entio se usava para propor namoro. "Fomos feitos um para o outro, como o morango e o vinho", eu falei. "Eu sou comprometida". "Eu sei". "Ent5io"? "Ent6o, vocO se descomprometa e se comprometa comigo, ora". "Pensa que 6 f6cil assim?" "Penso." "Pensa?" "Penso. 56 penso em voc6." Ela olhou-me s6ria: "Eu tamb6m penso em voc6, embora nlo devesse." Exultei. Mas ainda levou um m6s para o passeio. Quando segurei sua mdo, senti que a amaria por toda a vida e mais cem anos. Quando ela me entregou o primeiro beijo pensei desfalecer mas a tive de segurar pois 63 sim. Falando para me agradar? N6o, ficava feliz com o meu sucesso como escritor. Pobre sucesso. N6o, deixe de mod6stia. Tanto que propunha celebrar nosso reencontro com um copo de vinho no Deux-Magots ou no La Closerie des Lilas, caf6s preferidos pelo grande escritor. O Closerie era o mais pr6ximo caf6 do apartamento de Hemingway quando ele morava na ruaNotreDame-des-Champs;mas, no Deux-Magotg Hemingway ouvia, encabulado, Fitzgerald, autor deO grande Gatsby, fazer-lhe altos elogios enquanto tomava quantidade industriais de bom champanhe. Pois entlo no DeuxMagots. Descemos a rue Bonaparte at1 o caf6. Acomodamo-nos nas cadeiras em frente a uma de suas pequeninas mesas e pedimos dois copos de vinho branco. Veio Chablis e eu lembrei que Hemingway talvez preferisse o seu Sancerre. Mais tarde, ela disse, vamos tom6-lo no jantar em um bistrozinho muito agrad6vel aqui perto, para os lados do Odeon. Eu iria gostar. eueria mais notfcias minhas, as que tinha no Brasil eram insuficientes. Contei que agora trabalhava na Uni6o Internacional de Escritores, e est6vamos convocando um congresso de todos os escritores comprometidos com a causa da democracia no mundo para prestigiar a abertura de Praga. Temfamos a reagdo sovi6tica e a oposigdo do Pacto de Vars6via, mas est6vamos, na verdade, muito animados. Agora, o socialismo iria triunfar, tinha absoluta certeza. Como eu vivia? Vivia bem. Os livros pagavam um razodvel direito autoral. NIo tinha queixas. Todo m6s viajava a Mildo para ajudar a fechar a "Voz Operdia", que depois envi6vamos ao Brasil. N6o tinha passaporte brasileiro, os consulados sempre me recusaram o documento. A Casa das Am6ricas me con- 66 seguira um, viajava com ele. Mas n6o tinha problemas nuF.unEu porque haviaconseguido residOncia como exilado. Ia vivendo. Esperando o tempo de voltar. A ditadura nio demoraria muito a cait. J6 dava sinais de exaustIo. CabeEa nas nuvens, p6s no ch6o, AnaLuiza desviou a conversa. "Sabe, liO Trapicheiro do seu amigo Marques Rebello. E noti{vel. Entendi a brincadeira que voc6 fazia com meu nome, ou parte dele. Chama-se Luiza a namorada. Linguodental, sibilante, sonoro..." "6, vocd guardou", achei de comentar. E falamos dos velhos amigos, recordamos os tempos de estudantes, mas, como se presa de secreta combinaE6o, evitamos falar de nossos sentimentos vividos. E falar pra qu6, se est6vamos juntos em Paris. "VocO precisa conhecer Praga", comentei quando acabamos de passar em revista os amigos, os conhecidos, nossa querida Niter6i. "Praga 6 amais bonita cidade da Europa, depois de Paris". AnaLuizando respondeu. Era como.se evitasse um convite que por certo viria com apenas uma ponta de interesse demonstrado. "Vamos jantar", ela disse. E caminhamos de braEos dados pelo bulevat Saint-Germain at6 a rue Casemir Delavigne, ao agrad6vel bistr6. Vamos provar a bouillabaise, voc6 vai gostar, o patron 6 de Marseitle. Pega seu vinho. E eu, no meu franc6s execr6vel, comandei ambos. Antes, champanhe demisec, depois, gdteu ao chocolat, conhaque e caf6. Os ponteiros se aproximavam perigosamente da meia-noite. "VocO me disse que se hospeda sempre no Esmeralda? "ondeftca?" "No Boul'Mich'. Narua Sait Julienle-Pouvre. E um hotelzinho lindo. A municipalidade quis interdit6-lo n6o sei bem o porqu6, mas os intelectuais, Sartre h frente, frzeramum movimento e mantiveram o 67 hotel. E uma gracinha. Voc€ abre a janela de manhd e vO em frente os jardins da Igreja de Saint Julien-lePouvre d esquerda a Catedral de Notre-Dame." AnaLiizaconsultou o rel6gio, pegou-me as mdos, olhou-me nos olhos: - Foi uma noite maravilhosa... Concordei com o coragdo e a cabega balangou concordando. - ... Mas preciso ir. Concordei novamente. Levantamo-nos. A noite estava agrad6vel 16 fora. A lua ficou espiando a gente. - Amanhi pego cedo no hospital. Tomamos o metr6 no Odeon, vocO fica no Saint-Michel, e eu fago minha c o rre sp ondanc e. Depois... Cortei. Eu vinha da Primavera de Praga tdo cheio de esperangas. Havia tanta delicadeza no ar da primavera de Paris. AnaLtizaera a primavera de Praga e o ar primaveril de Paris nela reunidos. O champanhe, o vinho, o conhaque - pensei na lua e tomei coragem: - VocO n6o quer ir comigo pro EsmeraldaT Ela estreitou-me ainda mais as m6os, beijou-me a face, senti seus olhos marejados: - N6o, meu amor. Iria estragar tudo. Voc€ 6 meu namorado. Vai ser sempre meu namorado. Rendi-me, mas lamentei: - N6s deveriamos ter casado. Ela abragou-me e sussurrou: - Voc0 ndo me pediu. 68 "As chamin6s sujavam o c6u, mas o vento limpava-o, Marques *:;:i::: ;,,, icheiro O agente internaciondl Marcello Cerqueira* Fiquei pau da vida quando o coronel do IPM da UNE mandou me prender mais uma vez. O inqu6rito foi um dos primeiros a ser aberto ap6s o golpe militar de 1964 e j6 rendia hd mais de um ano. Era a terceira vez que eu iria depor e a terceira prisdo decretada pelo idiota do coronel. Mas, dessa vez, era o exagero dos exageros. J6 estava formado e exercia meu oficio de advogado, inclusive defendendo processados pela Justiga Militar. Comegara me defendendo e daiparadefender outros foi um pulo. Estava preso no Pelotio de Investigag6es Criminais no quartel da Polfcia do Ex6rcito na rua Bardo de Mesquita, que, mais tarde, iria abrigar o DOI-CODI e seus terrores. No final dos anos cinqUenta, o coronel que comandava a Chefia de Policia do I Ex6rcito, a quem o PIC ficava subordinado, criou uma "equipe especial" para reprimir delitos de militares e naturalmente alcangava os civis que de al- guma forma se envolviam com os militares transgressores. Posteriormente, esse coronel foi nomeado chefe de policia do Distrito Federal e aplicou a experiOncia da "equipe" criando o Esquadrdo da Morte, * Marcello Cerqueira 6 critico de coron6is. 69 Mals tarde, tarcle, esse peflntssao para matar. Mais policiais com permiss6o policiais coronel, j6 general, seria um dos articuladores do golpe contra o presidente da Reptiblica de quem era amigo e compadre e a quem jurara fidelidade. Mas isso jd 6 outra hist6ria. Mofei uns dias na cela do PIC esperando ser convocado para o interrogat6rio. As celas ficavam no fundo do quartel e bem ao lado da lixeira. Est6vamos em pleno veranico de maio, e o calor vinha em ondas e trazia o fedor que acabava por me sufocar. As celas ficavam lado a lado ao longo de um estreito corredor. A incomunicabilidade dos presos era absolutamente rigorosa. As sentinelas eram os famosos "catarinas", praEas recrutados em Santa Catarina, alguns deles mal falando o portugu6s. Mas eram louros, altos, fortes e cumpriam ordens: essa palavra m6gica que d6 sentido i vida dos militares. Antes de ser ouvido pelo encarregado do IPM, vivi dois momentos que merecem registro. O primeiro, foi no chamado "banho de sol". Uma hora didria em que o preso tinha direito a sair da cela para tomar sol, o que fazia no p6tio do quartel ds doze horas, exatamente na hora em que o sol ficava tdo inclemente quanto a ditadura. Pois bem,16 pelo quarto ou quinto dia avisto na outra ponta do enorme p6tio o m6dico Valdrio Konder, alto dirigente do Patido Comunista e pai de Leandro Konder, meu fraternal amigo. Ao avistar-me, Val6rio baixou a cabega como a demonstrar que preferia que eu n6o o cumprimentasse. Comunista declarado, queria proteger o companheiro mais jovem evitando que uma demonstragdo de amizade o comprometesse. E assim foi. Passei pelo companheiro 70 fingindo ndo conhec€-lo, embora esboEasse um sorriso. Entretanto, nem bem o ultrapassei e i6 me voltei exclamando: "Me d6 um abrago, doutor Val6rio' Essa ditadura de merda nio pode impedir nosso abrago"' Val6rio abragou-me comovido. Dia seguinte, admirei-me ao v€-lo quando chegava para depor. Era incomum a presenEa de dois presos a ndo ser em caso de acareagdo o que nio era prov6vel pois eu nunca cruzaracom Val6rio na militflncia polfti,u, norro conhecimento derivava' como eu j6 disse, da amizade que eu tinha com um de seus filhos. Mas o fato 6 que Valdrio havia feito umas palestras na UNE a estu- dantes que militavam na 6rea dapolftica internacional, e ali estava para prestar alguns esclarecimentos' Ap6s a qualificaEdo do preso' o coronel iniciou o interrogat6rio perguntando : - Doutor Val6rio, o senhor 6 comunista? Val6rio surpreendeu-se com a pergunta do idiota do coronel. Olhou para mim meio espantado' encarou firme o coronel e respondeu singelamente: - Hiltrinta anos, coronel. Lembrei-me dessa hist6ria quase trinta anos depois quando, ao enfrentar a banca examinadora do concurso de professor titular de Direito Constitucional na minha Faculdade, fui surpreendido com a pergunta de um dos examinadores, tido e havido como pr6cer liberal, a pretexto de uma questdo que minha tese sustentava: - Qual 6 a sua ideologia, Professor? Contei-lhe, ent6o, a hist6ria que acima narrei e o examinador ficou com a mesma cara de bunda do coronel' O outro momento foi de aflig1o e teria um desdobrar pat6tico. Estava preso, na cela ao lado, um estu- 7I dante que eu n6o conhecia. Vi-o passar quando chegou e senti pdnico em seu olhar. Assim que se acomodbu, colei minha boca na grade e falei-lhe palavras de esti_ mulo. A sentinela advertiu-me e eu me calei. Jd tinha dado meu recado, que completei: ,.Tem drivida n6o, pra_ ga. Pode deixar. As coisas aqui s1o bem mansus " "u nio quero alterar nada". pronto, era mais um recado. agora falado claramente. N6o adiantou. Nio sei por que d'6gua permitiam aos presos comer com garfo e :argas faca, que o rapaz usou para se cortar. Comegou i gntar que morria. A sentinela n6o atinava com o que fazer. Limitava-se a repetir o que aprendera. eue os prisio_ neiros ndo podiam falar. Afinal, permitiu-me,o.orre, o rapaz. Mais de vinte anos depois, esse mesmo rapaz, j6 entio no meio da casa dos quarenta, atirade sua janela contra uma comemoragdo eleitoral e mata um motoris_ ta de praga. Em artiguete no Jornal do Brasil, de 2l de dezembro de 1989, sob o titulo ,,A lembranga de um ato de desespero", registrei o acontecimento. No veranico de maio de 1965,fui transferido da cadeia do DOPS para o xadrez da poltcia do Exdrcito, na Rua Bardo de Mesquite, naTijuca. Eram cubiculos em que mal cabiam enxerga, pia e privada. O regime, embora de rigorosa incomunicabilidade, eramelhor que o do DOpS, porque na PE ainda ndo havia violAncia flsica contra os presos politicos. Num domingo, sou despertado pelos gritos de socorro de um preso meu vizinho. Imediatamente, pedi d sentinela, um recruta catarinense, que chamasse o oficial de dia. Mas o atarantado praga ndo podia sair 72 do posto, recebera ordens estritas nesse sentido. E ordem militar como se sabe, estd acima da razdo. Mas ndo da bondade. Condoido com a situaEdo do preso, que sangrava abundantemente, acedeu em abrir nossas celas, permitindome prestar-Ihes os primeiros socorros. Atraido pelo alarido, um sargento passante afinal providenciou a remogdo do preso para um hospital. Hd presos que ndo agiientam a definitiva soliddo da incomunicabilidade; a terrivel incerteza que a prisdo acarceta leva-os a atentarem seriamente contra a pr6pria vida. Rbmulo foi um deles. Seu gesto de cortar os pulsosfoi ato de puro desespero. Seus gritos de socorco, de arrependimento. Agora, depois de tantos anos, vejo sua foto no Jornal do Brasil de ontem, sua lembranga da prisdo antiga, e a noticia terrivel de que de sua arrna saiu o tiro fatal para o motorista Carlos Alberto. Certamente R6mulo ndo queria o resultado, mes acabou matando um trabalhador que deixa virtva e dois filhos pequenos ao desamparo. Meu Deus, como 6 triste. Como tudo 6 tdo triste. Lembro-me que foi permitido a Rdmulo, na volta dos curativos, que ficasse com a porta da cela aberta. Acenou para mim quando sai para o que deveria ser o derradeiro depoimento. Atencioso, o coronel me pediu desculpas mais uma vez, mas era a rotina mandar prender. Rotina para ele, sufoco para os r6us. Fiz-lhe ver que n6o havia necessidade de me prender. Estava vivendo legalmente. Dando aulas na Faculdade CAndido 73 Mendes e advogando regularmente. Era s6 me chamar. Contei que no dia anterior i prisdo, exatamente no dia do jogo Brasil versus Inglaterra eu havia estado ali mesmo na PE na tentativa de entregar remddio para um preso meu cliente, e o sargento, um panaca de bigodes, supondo que eu nlo o ouvia, me haviareferido ao oficial de dia como "aquele advogado comunista que chama a gente de coraEdo!". E claro que a gaiatice do sargento eu omiti ao encuuregado do inqu6rito, que ouviu minha peroragdo atentamente, mas respondeu: "E a rotina." Entretanto, precisava da minha ajuda para finalmente concluir o inqudrito. "Pois ndo, se tiver ao meu alcance", falei polidamente. E falei por falar. Nlo iria ajudar filho da puta nenhum. Era s6 o que faltava. "Pois, doutor Marcelo, o que eu quero saber 6 quem era na verdade o representante da UNE na Unido Internacional dos Estudantes, em Praga. Os registros me forneceram o nome de Mario dos Santos, mas n6o bate com nenhuma lideranga estudantil." Gelei. O filho da puta me pegou. Mas fui frio: "Nem podia, coronel." "E por qu6, posso saber?" "Evidentemente, Mario dos Santos 6 nome suposto, 6 codinome para proteger a identidade do representante. Deve ter sido por precaugdo. A instabilidade politica da Amdrica Latina deve recomendar cuidados..." O coronel n6o se conteve e me interrompeu: "E o senhor pode me dizer quem 6?" A minha explicagdo fora tlo veraz e convincente que o coronel se conformou quando encerrei o interrogat6rio: "Nem desconfio." 74 "Quem 6 voc6 que ndo sabe o que diz...?" Noel Rosa A pronritncia No iniciozinho dos anos sessenta, o poeta Nicol6s Guill6n Batista veio ao Brasil fazer propaganda do regime cubano, j6 sob o bloqueio dos Estados Unidos ou do imperialismo norte-americano como diziamos aqui ou imperialismo yanque como 16 o chamavam. Nascido em Camagiiey, provfncia cubana, Guill6n, descendente de africanos e espanh6is, de ambos recolheu a sfntese de sua arte unindo o folclore, o ritmo e as dangas d'Africa is formas e tdcnicas da poesia de Espanha; e o espanhol, como todos sabem e a ningu6m 6 dado ignorar, llingua que bem se presta ao amor e d revolugdo. E a revolugdo foi companheira de sua vida. Membro ativo do Partido Comunista Cubano lutou nas brigadas Internacionais em defesa da Repriblica espanhola. Poeta famoso, seu primeiro livro, "Motivos de Som", publicado em 1930, j6era, ao tempo da guerra civil espanhola, considerado obra-prima; falava dos pobres ndo para lament6-los, mas para semear neles a chama da revolta e para denunciar as miser6veis condig6es em que viviam na Ilha, tdo bela e tlo explorada. Seu poema sobre os iorubas - povo altivo que habitava a Nig6ria, teria v6rias tribos escravizadas no Brasil e em Cuba, fltimos pafses do mundo a libertar os escravos - foi lido pelo comunicador da Tupi naquela tarde em que o levamos para ser entrevistado em um progra- 75 ma radiofdnico, ent6o o de maior audiOncia. E lido como quem entoa rcza fofie porque o comunicador era um negro que se orgulhava de sua nobre ascend6ncia ioruba, o que era reconhecido pelos candomblds no Rio ou em Salvador, onde passava religiosamente suas f6rias anuais a visitar os terreiros, salvar os santos e cumprir obrigaE6es rituais. O roteiro da entrevista estava perfeito, e o comunicador o lia como se ele mesmo o tivesse escrito. Texto, moddstia i parte, muito bem-feito e realEado pela portentosa voz do locutor. Por isso, ficamos perplexos quando o entrevistador passou a chamar Nicol6s de Aristides, confundindo-o com o Almirante Guilhem, antigo ministro do Estado Novo, e misturando com Aristides Spinola, ambos nomes de ruas no Leblon, bairro que habitava o comunicador, o que justificava o engano. "Justifica nada", censurou-me o poeta Thiago de Mello, cicerone de seu colega cubano e que me encarregara de, previamente, munir o entrevistador de dados sobre a vida e a obra do visitante ilustre. E a confusdo era injusta para ambos, admitia Thiago. O ponto de contato entre eles, t6nue embora, poderia at6 ser encontrado porque o Almirante, antes de ser Almirante, nos idos de 1911, foi o primeiro diretor da oficina tipogrdfica da Marinha, precursora da Imprensa Naval. Nicol6s tamb6m tinha uma pequena tipografia em Havana, mas ndo fez a carreira da outra empastelada que fora pelos esbirros de Fulg6ncio Batista. No mais, desacordo total. Nicol6s, comunista de carteirinha; o Almirante idem pelo lado oposto: anticomunista de carteirinha. O Almirante cumpriu uma bela carreira na Armada chesando a Ministro da Mari- 76 nha justo nas vdsperas da decretagdo do Estado Novo que ele ajudaria a implantar quando, ao lado do general Eurico Dutra, Ministro da Guerra, autenticou o Plano Cohen, farsa que instruiria o pedido de declaragIo do Estado de Guerra, feito pelo primeiro Vargas ao Congresso, e destinado a abrir passo ao golpe de 1937. Thiago, em parte, tinha ruzdo. Com efeito, no texto, eu havia omitido o prenome do poeta, fixando-me no sobrenome que o fizera conhecido. Mas tamb6m quando eu iria imaginar que o locutor, influenciado pelo bairro em que morava, iria chamar invariavelmente o poeta de Aristides? Falante, o locutor perguntava sobre a obra do poeta, "La palavra de vuelo popular", sobre a Unilo Nacional dos Escritores e Artistas de Cuba que ele fundara, sobre a revolugdo cubana, tudo numa curiosidade insaci6vel. E era Aristides pra c6; Aristides pral6. O constrangimento do Thiago j6 me contagiara e agora alcangava o poeta, que se mexia inconfort6vel na cadeira, o que fazia sua boca desviar-se do microfone e falhar a emissdo davoz, prejudicando a audigdo, o que provocava reclamag6es, por sua vez, da inconformada t6cnica. Diante de tanto desconforto, o entrevistador se mancou e percebeu afinal que tinha algo a ver com o nome, que nlo cansava de repetir, porque toda a vez que pronunciava Aristides eu abanava a cabega reprovadoramente. Tdo longe estava do nfcleo de nossas angtistias, que se fixou num ponnenor e logo procurou esclarec€-lo: - Poeta, ndo sei se estou pronunciando bem o seu nome. Sinto que nio combina... 77 E Guilldn atencioso: - No, no. Guill4n estd mui bien, perfecto, precioso; pero Aristides se pronuncia Nicolds. 78 "Ningu6m est6livre de dizer tolices. O imperdodvel6 diz6-las de modo solene." Montaigne Serrar por baixo Duas pequenas hist6rias em quefica cabalmente demonstrada a inutilidade da empdfia ou da emb6fia. Serrar por cima 6 iactAncia ou farroma que ndo resulta; ndo adianta o lado de ningudm. E ou ndo 6 melhor o cara ser maneiroso, ieitoso, tratdvel? Ndo, ndo se estd a sugerir zumbaias ou salamaleques. Nada dis- A vida ensina, pra quem quiser aprende4 que as pessoas devem ser adequadas e ffiveis, so. nunca hostis. Quem aprecia desabrimentos ou grosserias, hem? Ningudm que se saiba. Cidaddo social e urbano, na boa e iusta medida. Sem pabulagem ou chibanEa. O advogado Eleito presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Seg6o do Rio de Janeiro, o jurista H6lio Saboya disse logo ao que veio na festa mesma em que se comemorava sua retumbante vit6ria: - Convoco todos os colegas para colaborarem com a minha administraglo. E aviso logo que nio vou aceitar ndo de ningu6m. Palmas e etec6tera e tal. Tudo muito bem comemorado. Comidas, bebidas e muito falat6rio pois advo- 79 gado 6 dado a essas prdticas, al6m de naturalmente enxugar muito gelo. Mas ndo 6 que o presidente consumou a ameaga e comegou a convocar arupaziadapara ajudd-lo. O Estatuto da Ordem autorizava o advogado a reclamar quando preso em flagrante, por motivo de exercicio da profissdo, a presenga do presidente da Segdo local para a lavratura do competente auto. E claro que o presidente n6o podia, pessoalmente, acorrer a todos quantos reclamassem sua augusta presenga. Dai ele designou advogados para assistir colegas presos. E como prisdo ndo tem hora, montou um sistema de plantdo e de rodizio. "Inclusive, sdbados, domingos e feriados?" "Perfeitamente", respondeu. "A qualquer hora do dia ou da noite?" "Perfeitamente", tornou a responder. "De madrugada, tamb6m?" Foi cruel: "Evidentemente." Para mim era o bastante: "Td fora, coragdo." Qual. Fora nada. A escala de plant6es j6 estava pronta e a mim cumpria fazer a minha parte, sem mais delongas ou tergiversaE6es. Acatei. Pra deixar de ser besta, coube-me o primeiro feriado. E naturalmente de madrugada recebo o telefonema de uma delegacia 16 de Vig6rio Geral. Um advogado reclamava a presenga do representante da Ordem. Dizia-se preso no exercfcio da advocacia. Espantei o sono e toquei-me para 16, amaldigoando o Saboya em particular e as garantias da profisslo em geral. 80 O colega preso era um figurago. Aneldo de grau no dedo, terno preto, gravataidem e colete fantasia no t6rrido ver6o carioca. E de chap6u, ia me esquecendo. E tudo isso na madrugada de um feriado. E falante: "O colega chegou bem na hora, ndo vO que o delegado quer me autuar..." Cortei o papo do cara e fui falar com a autoridade, em particular. Que me recebeu muito bem, distinto o cara: "Pois n6o, estou ds suas ordens." Eu tamb6m estava hs ordens dele e assim ficava pr6tico: cada um ds ordens do outro. "Pois n6o vO o senhor que o colega acionou a Ordem, e eu estou aqui para verificar o que aconteceu e dar a ele a assist6ncia a que tem direito. De que ele 6 acusado?" "Porrada. Ele encheu a mulher de porrada. Ela deu queixa e eu j6 expedi a papelada para ela ir a corpo de delito amanhi. E nio 6 a primeira vez.Eladeu queixa de outra vez mas se reconciliaram e eu aliviei o cara. Mas desta vez foi a vizinha que acionou a gente. O cara moeu a mulher de porrada. Vai segurar um I29. AlEm disso, em vez de chegar calmo, procurar acomodar as coisas, aprontou o maior banz6. Disse que o estavam desrespeitando, que iria chamar a Ordem. Botou a maior banca. Af eu resolvi atend6-lo. Ndo que ele tenha direito. Nio tem. Mas preferi ouvir a Ordem e que a Ordem decida se ele tem direito. Vou chamar o investigador que o prendeu para ele lhe contar o que presenciou." O investigador confinnou toda a hist6ria. E falou mais. 8l "Esse cara sempre foi corno' doutor. Ano passado se formou numa dessas faculdades de fim de semana e quis mudar o sistema em casa. Ora, a mulher j6 estava aiostumada a pisar em galho verde e ndo ia mudar s6 porque o marido virou advogado e dizia n6o admitir o udutt"tio porque era contra a lei. Contra a lei, imagine o senhor..." "Antes admitia?" "Admitia." "Ent6o?" "Ent6o mudou o rumo das coisas, passou a encher a mulher de porrada toda vez que ela dava um belisco. E como ela escorregava toda semana, toda semana tinha ponada. Era a porrada semanal. Acontece que desta vez a mulher teria passado a noite inteira fora de casa e o corno bateu mais ainda. Deve ser porrada por rodagem' Tarde, tanto; noite, tanto; noite inteira, porrada pra valer. Foi isso. E botou a maior banca da par6quia aqui. Que ia fazer e acontecer. 56 o senhor vendo. Al6m de corno 6 babaca. Podia levar um papo. Apelar pro sentimento de solidariedade entre os homens. Afinal, ningu6m gostade levar chifre, n6? Prometer que n6o iria mais bater na mulher, se reconciliar com ela, sei 16! Mas do jeito que ele tratou a gente vai segurar o inqu6rito." Tive a impressdo de que o tira tamb6m tinha navegado nas 6guas da patroa do colega, mas n6o era problema meu. Meu problema era dizer ao colega que ele nlo tinha direito a assist6ncia da Ordem e voltar pros 1en96is. "Como nlo tenho, colega?" "Nio tem, colega. E les6o corporal. O senhor agtediu uma senhora. O senhor vai me desculpar mas a Ordem n6o..." 82 "Tenho sim, senhor. Estou me defendendo em causa pr6pria e, portanto,6 um advogado no exercfcio profissional que ir6 ser autuado. Sou advogado, conhego meus direitos, conhego a lei e os c6digos." Fiquei besta com o sofisma do cara. Devia ser ignordncia. N6o podia ser ouffa coisa. Ser6 que o idiota imaginava poder engambelar o delegado e o representante da Ordem com uma conversa t6o fora de prop6sito? Mas fui delicado: "Ndo, perdoe o colega mas meu entendimento n6o 6 esse. Caso contr6rio a prisdo de qualquer advogado mereceria a assist€ncia da Ordem, independentemente do ato que tivesse praticado. Sinto muito, mas o colega n6o tem direito i assist6ncia da Ordem." Al6m de corno era poltrdo, o colega. Sentiu que sem a protegio da Ordem ficaria a merc6 dos policiais que estavam por aqui com ele. Podia at6 tomar umas porradas. Nlo deu porrada na esposa? Ndo tratou mal a tiragem? Entio iria ver o que era bom pra tosse. Mandei bater na mulher? Quando ele viu que eu estava resolvido a ir-me, apelou: "Colega, por favor. Me d0 cobertura. Tenho passado momentos diffceis e talvez me tenha excedido aqui e vd sofrer as conseqiiOncias. Por favor." Fiquei com pena do corno. Acedi. Entretanto, falei com o delegado que iria assistir a autuagio mas ndo figuraria no termo que eu estava representando a Ordem, j6 que o acusado a tal ndo tinha direito. Ali6s, ndo figuraria no termo de forma alguma, n6o iria representar o cara. E o escrivlo comegou com as perguntas de costume: nome, filiagdo etc. 83 "Sabe ler e escrever?" O cara n6o se emendava. "Como se sei ler e escrever?" e se pavoneava todo. "Sou advogado... Ora se sei ler e escrever. Tinha graga..." O escrivdo ndo estava para conversas: "N6o perguntei sua profissIo. Perguntei se sabe ler e escrever." O deputado iamos tomar posse no dia seguinte, em Brasilia. Eramos v6rios deputados de primeiro mandato na fila da ponte a6rea. Alguns de n6s sem passagem marcada. Entre eles justamente o colega que estava na minha frente na fila e naturalmente eu. A moga que atendia no balcdo da ponte a€reade olhos fixos na tela do computador n6o encontrou a reserva. Sentia muito, mas n6o estava a passagem marcada e como o v6o estava lotado ele nio poderia viajar. O cara virou bicho: "A senhora sabe que sou deputado federal?" N6o, n6o sabia a pobre. Ou se sabia ndo delatou. Ficou muito na dela. "E como deputado federal tenho prefer6ncia. Prioridade, 't6 sabendo?" Perfeitamente, ele tinha prefer6ncia, tinha prioridade, isso e aquilo. Mas de nada adiantava jdque o v6o estava lotado. "Nio admito, absolutamente. Sou deputado federal e tenho prefer6ncia e vou viajar de qualquer maneira." 84 E falando alto, gesticulando, uma baba se esbogava na comissura dos l6bios apertados em raiva. A moga estava ali para trabalhar e ndo para ser humilhada. Uma pontinha de choro apareceu no seu rosto j6 vermelho. Mas soube se controlar. Queimava por dentro. "Desculpe, deputado. Mas n6o tem lugar, n6o posso fazer nada. O senhor, por favor n6o grite comigo." "Ndo tem gritar nem meio-gritar. Eu quero uma solug6o, e pronto". A moga entio disse que ele falasse com o supervisor da ponte adrea que por sinal j6 vinha chegando e o atendeu ao lado do balc6o. Quando o colega saiu eu fiquei navez para o atendimento. A moga sabia que eu tambdm era deputado e mal se controlando, perguntou: "E o senhor?" Desarmei espiritos e bombas: "Eu? Eu sou um advogado aflito." Sorriu-se. "Pro senhor tem lug*, dr. Marcelo." 85 "Todo vapor ao longe 6 um barco de vela perto" Fernando Pessoa Pras moEas Rog6rio Monteiro, chamado Senador me telefona anunciando, por via oblfqua, como 6 de seu costume, melhoras na vida. - Al0? - atendo. - Quem fala? - E Marcelo. - Oi Curi6. (No Chile, cham6vamos uns aos outros por nomes emprestados de a Morte e a Morte de Quincas Berro D'dgua, do Jorge. A mim coube Curi6.) - Queria te convidar pra cear... - Cear? - j6 pergunto eu. - Perfeitamente, cear. Falou com a naturalidade de quem nunca jantava, s6 ceava. Aceitei de pronto. - Claro, Senadox Com muito gosto. - 6timo. Ent6o, no Antiquarius is nove e meia... - Antiquarius, hem? - falei. - Ti4 abonado, corag6o? - Ndo me queixo. A prop6sito, vO se descola o Paulo Alberto... - Anda escasso? - Sabe, Paulinho n6o 6 f6cil encontrar; ndo retorna ligag6o, voc€ sabe... - Sei - concordo. - Pois 6. Al6m disso, estou hoje particularmente ocupado. - Particularmente? 86 - Panicularmente. Concordei. A argumentagdo era definitiva; particularmente ndo abre espago a controvdrsias. Sai na captura do Paulo Alberto. Fui desentoc6-lo na casa da m6e, dona Magdalena, minha madrinha. "N6o est6 pra ningudm", disse-me ela, mas "abriria uma exceglo pra mim", completou antes de passar o telefone pro filho. "E Marcelo, meu filho". Que nlo se surpreendeu com o convite. - Cear? Otimo. onde? No Antiquarius? Melhor ainda. Aceitou com naturalidade o invitamento para aceia e nem se admirou do restaurante caro e badalado. Fiquei bobando. Nove e trinta em ponto, rente que nem pdo quente, postei-me i porta do restaurante. Pouco depois chegou Paulo Alberto e uma hora mais tarde o convidador distribuindo sorrisos, abragos e desculpando-se pela demora: - Creiam-me nio foi intencional. E que hoje eu andei particularmente ocupado... - Particularmente? - perguntei. - Particularmente - ripostou o Senador Bom, se persistia o particularmente, nada a contesEntramos no empireo restaurante. tar. E logo verifiquei que o Senadorj6 estava intimo da casa. Manoel, o maitre, veio apertar-lhe a mdo, sinal de especial deferOncia, convidando-o a ficar no bar enquanto preparavam sua mesa. - Sente um pouquinho no bar, dr. Rog6rio, enquanto apronto a sua mesa. ("Sua"... pensei comigo mesmo. A figura 6habitu6, entdo me espantei. Paulo Alberto ndo se admirava de nada.) 87 O gargom, sem que fosse pedido, coloca uma garrafa de Logan na frente do Senador, allmde copos, gelo e tira-gostos, que, 16 em Grajari, chamdvamos de engasga-gato. 1f, naUttuA no duro, confirmei.) E pergunta para n6s: - Os cavalheiros vio beber o qu€? Sem personalidade, acompanho o Senadon - E o senhor, cavalheiro? O cavalheiro assim chamado era Paulo Alberto, que n6o bebia. - Guaran6 da Ant6rtica - pediu. Precisavam ver acarade decepgdo do gargom e de desprezo do Senador, que emendou: - Oh! Gomes: vO se tem guaran6 cagula. N6o tinha. Paulo Alberto tragou o guaran6 comum, mesmo. E entramos no papo amigo. A folhas tantas volta o ma?tre e nos convida para certa mesa muito bem-posta, sim senhor. A toalha de uma alvura de anrincio de televis6o e copos de cristal, al6m de talheres de prata, naturalmente. Senador comanda: - A pedida 6 bacalhau, escolham i vontade: i Gomes de Sd, e Portuguesa, i Espanhola, ao Br6s, ao Z€ do Pipo... Eu prefiro aoZd do Pipo. Mas escolham i vontade, repetiu-se. Agora, o vinho escolho eu - falou firme. E chamou o maitre, que acudiu em sorrisos: - Dr. Rog6rio? - Tem o "Jo6o Pires?" - Perfeitamente. J6lhe trago com o balde de gelo. Senador emenda o papo: 88 - Mas onde 6 que a gente estava? - No bar - arrisquei eu. - Deixa de ser gaiato, Curi6. No papo. Quero sa- ber onde parou o papo... - Naquela sacanagem que voc6 aprontou comigo no Chile, td lembrado? Fez que n6o entendeu. Paulo Alberto deu sinal de vida: - Eu estou vagamente lembrado. Mas como foi, mesmo? - Seguinte. O Senador e eu mor6vamos num pequeno apartamento na Calle Agustinas, no centro de Santiago. Ele namorava a Jaqueline, que eu chamava de Galga, e eu namorava a amiga dela de nome Lucfa' Senador havia marcado encontro, 16 no abatedouro." - Abatedouro modelo... - e Rog6rio 6 todo recordag6es. com a Galga no fim da tarde. Mas eis que aparece uma farmac6utica doidona que ele tamb6m vinha comendo... Dessa vez € Paulo Alberto quem interrompe: - Cheguei a catalogar dezoito namoradas do Senador. O indigitado namorador, sonso, limita-se a mur- -... murar: - Veja voc6... tem drivida e fala pra moqa: "Adelante no m6s". A dona entrou e falou aos costumes." - E a Jaqueline? - pergunta Paulo Alberto' - Calma. Escuta, cara. A( a Jaqueline chega e toca a campainha. Pelo olho m6gi co o Senador confirma que 6 a moEa. Que fazer? Nlo podia falar nada e menos - Senadornlo 89 ainda abrir a porra. Qual a solug6o? eual? O filho da puta vai d minha mdquina de escrever e comp6e a abo_ mindvel desculpa: "Estoy ocupado as. Marcelo". En_ fia o bilhete por baixo da porta, que ganha os olhos da Galga e depois a pr6pria bolsa, e a bolsa e a dona da bolsa ganham a rua e eu me estrepo... - Como assim? - quer saber paulo Alberto. - Trivial, Paulinho. Simplesmente, a Galga prefe_ riu acreditar na desculpa esfarrapada... - Esfanapada? - Claro, Paulo Alberto, p6. Se o Senador estivesse disponivel, e eu usando o apartamento, entio era s6 ele esperar a Galga na porta do edificio e sairem no ciuro dela. Ou n6o era? - Era - concorda paulo Alberto. E daf? - Daf que a Galga preferiu aceitar a mentira a de_ frontar-se com a traigdo do Senador. E contou tudo para a Lucfa, inclusive mostrando-lhe o bilhete. A piova material do crime. A prova material, seu paulo. - Ah, foi entdo af que a Lucia brigou contigo e sumiu de 16 de casa? - E ndo foi? Pior 6 que eu nio estava sabendo de nada. Naquela mesma noite fui pra casa dela como es_ tava combinado. J6 te contei paulinho, que a qualquer hora da noite na casa da Lucia ouvia-se Vivaldi ou ou_ tro barroco, n6o? - Contou sim. - Te contei que na primeira noite em que eu entrei na casa dela deslumbrei-me com tudo, especialmente com um sof6 que mal se entrevia no hail? - Contou, sim. 90 - Pois 6. Naquela vez eu perguntei: "O que mais h6 atr6s daquela porta"? "Hay un sillon," me disse' E foi ali mesmo que consumamos e nos consumimos. Pois bem, na tal noite, assim que cheguei encontrei a Lucia meio estranha e n6o vi o sof6. "Cad0 o sof6?", perguntei. E ela : "No hay m6s sitio para el, ni para usted"' E de repente me vi porta afora sem saber nem o porqu6' Despedido na maior, seu Paulo. - Bom, mas ai o Senador esclareceu tudo." - Esclareceu, Paulinho? Esclareceu? VocO parece que n6o conhece a peqa. Esclareceu porra nenhuma' -E - ai? A( que eu Perdi a namorada. Bom, mas antes de voc€s voltarem para o Brasil eu os vi juntos. Confirmei. - E fato, Paulinho, mas isso foi depois que a Galga se reconciliou com o Senador e limpou a minha barra com a Lucfa... - Contando a verdade? - Que contando a verdade, nada. Limpando a barra, apenas. convencendo quem queria ser convencida. creio qo. u Galga ficou com a consciOncia pesada da crocodilagem que sofri e voltando com o Senador ndo tinha como ndo patrocinar meu reatamento com a amiga' - E como 6 que vocO descobriu a trampa? a - Foi o seguinte: reatar 6 melhor quedacomegm volta' A namorar. Ningu6m se perde no caminho gente j6 sabe o jeito da gente, sabe como 6? - Sei. - Pois ent6o? - Entdo? 91 - Entdo, eu comecei a lamentar o tempo que a gen_ te se estranhou e que eu n6o entendera nada de nada. - Ai ela contou... - Contou. Relutou um pouco, mas contou. Inclusi_ ve foi ao quarto pegar o bilhete fatidico. Ao ler o bilhe_ te 6 que descobri a sacanagem do Senadon - E dai? Primeiro, chamei a Lucia d, razdo. Demonstrei com l6gica absolutamente irrecusdvel que nio poderia ter sido eu. Lucia conhecia o quarto-e-sala da Agustinas e foi f6cil demonstrar. "Fosse eu, coragdo, e tivesse no crime, era s6 colocar a moga no quarto, fechar a porta e atender a Jaqueline, convid6-la a entrar e v6-la recusar j6 chateada com o Senador". - Ela? Rendeu-se inteiramente. - Voc€? - Eu peguei o bilhete e cobrei do Senador.. - Ele? - Riu. - Riu-se? Porra, Paulinho, voc6 parece que n6o conhece mesmo a fera... - Paulo Alberto ia comentar alguma coisa com o personagem, quando o ma?tre e dois gargons o salvam pelo gongo e pela comida. E o Manoel pergunta: - Posso servir o vinho agora, dr. Rog6rio? Que se limita a fazer um sinal de assentimento quase impercept(vel. 56 maitres com pri{tica internacionul ,"_ riam capazes de entender a mensagem. 92 Senador prova e aprova o vinho tambdm com um sinal quase imperceptivel, que o maitre recebe como homenagem pessoal. Serve meu copo e quando vai servir o outro, Paulo Alberto tampa a boca do copo com a mdo, o que faz com que o Manoel recolha a ganafa e despertada fique a ira do Senadon 'Perai, Paulinho, n6o vai dispensar este n6ctar, vai? - e mostrava o Pr6Prio c6lice. - "IJm pfcaro com vinho refrescava/ Sobriamente - a sua sede." Pensando que o Senador era besta. - Oh! Paulo, n6o me venha de Fernando Pessoa para recusar o vinho. E deu de ombros. - Melhor, mais fica Para n6s. E para mim: - E vocO Curi6, o que achou dessa maravilha? - Uma maravilha - falei. Nlo me venha com conversa mole' quero sua opinido sincera. - Olha, Senador, um vinho com nome e sobrenome ndo pode deixar de ser bom... - escapuli. os espagos de fuga' Nada disso - - - -Senadorfechava Quero opinilo franca. Bom, voc6 sabe que eu n6o conhego muito de vinho, mas este, conquanto muito saboroso, sabe-me algo frutado, e eu creio que bacalhau pede vinho verde e gelado' Senador rebarbou a resposta. Queria a confirmadesprezfvel de um E6o do seu paladar e n6o a opinido leigo como eu. Cala a boca, Curi6, voc0 nlo entende nada de - - vinho. 93 II O tempo passa, "nos vamos poniendo viejos", como na canglo do Pablo Milanez. Estava na prefeitura quando Sdrgio Lacerda me telefona: - Senador vai fazer cinqiienta anos. Convidei-o para comemorar em Lisboa. VocO topa ir junto? Nem titubeei, topei na hora. - Que bom. Paulo Alberto disse que n6o poderia ir. Alegou urg6ncias. Bom, se alegou urg6ncias 6 porque as tinha. Ndo h6 como alegar urgOncias sem as ter, justifiquei para o at6nito ouvinte. Que aceitou bem a explicagdo. Tamb6m n6o havia como recus6-la tal a consistOncia da argumentagdo. E fomos para Lisboa com seu gosto de Brasil de antigamente, suas ruas e seus fados. Apresentamos a cidade ao Senador que nio a conhecia. Creio que ambos ficaram satisfeitos com a novidade. pelo menos n6o reclamaram. O jantar do cinqtienten6rio foi no Tavares Rico, assim chamado para diferencid-lo de outro Tavares, certamente pobre mas que jamais conheci. O Tavares Rico, diga-se 6 o melhor restaurante lusitano e um dos melhores do mundo no seu g6nero. Escolhemos a comida, mas a bebida ficou por conta do sommelier. Foi banquete digno de um senador. No dia seguinte, fomos a Cascais para conhecer a cidade e almogar no famoso restaurante ,,O pescador", freqUentado por importantes figuras brasileiras, inclusive por JK e Carlos Lacerda, e os retratos de ambos. 94 tirados no pr6prio restaurante e pendurados na parede, atestavam a freqiiOncia ilustre. Seu Ant6nio, propriet6rio de "O Pescador", portuguOs imenso e ventrudo, quase amassou Sdrgio com seu abraEo. Que, mal refeito do amplexo, nos apresentou ao dono da tasca, frisando que ali est6vamos a comemorar o cinqiienten6rio do ilustrissimo Rogdno Senador,imediatamente aceito como Pai da Pdtnapelo dono do estabelecimento, habituado a receber personalidades brasileiras, e logo acomodado no lugar de honra d cabeceira da mesa, sendo que na outraextremidade, bem em baixo do retrato do pai, sentou o S6rgio, na verdade o respons6vel pela efem6ride. Famoso restaurantg, "O Pescador" confirmou a excelOncia de sua cozinha, especialmente quando seu Antdnio em pessoa serviu-nos uma grelha com toda a variedade de frutos do mar. - Que bicho 6 esse, seu Ant6nio? - perguntei apontando-lhe um delicioso petisco. E um lavagante, um crust6ceo mais pequeno que - a lagosta. Parece que o di6logo que entabulei com o propriet6rio animou o homenageado. - Seu Ant6nio, eu queria pedir um vinho. - Pois n6o, senhor Senadon - O Senhor tetdum "Jodo Pires", ter6? - Como ndo, senhot Senador. Como nlo. J6 estou a ir peg6-lo. E, com toda apompa, trouxe o vinho: balde de gelo e finos c6lices. Foi quando eu perguntei ao seu Ant6nio, proprietdrio do afamado "O Pescador", um dos melhores res95 taurantes de pesca de Portugal, acostumado a receber personalidades e potentados, intimo de magistrados e de politicos: - Seu Ant6nio, esse "Jo6o pires" 6 bom. mesmo? - Pras mogas - respondeu. 96 "Brigam Espanha e Holanda/ pelos direitos do mar (...) Brigam Espanha e Holanda/ porque n6o sabem que o mar/ Ede quem sabe amar.,, Leila Diniz O badzado do ndcrio Onde finalmente aporece Nely, de alcandorada beleza, saida das pdginas do meu romance " Beco,das Garrafas : uma lembranga,' onde en_ trou depois de muita cabeEada ni via e onde peftnanecera esbanjando boniteza e simpatia. Nely "fazia" e noite, isto 6, se virava. Mas ndo se entregavaa qualqr4er um, ndo. 56 quando ela mesma escolhia, e estou pra ver mulher tdo se_ letiva. Ai a sutil diferenQa entre as damas da noite propriamente ditas e aquelas, pobres, que ficavam nas casas de prostituigdo d disposigdo dos homens e sem direito de recusa. As da.mas da noitefreqiientavam as boates damoda e tinham como rtnica obrigagdo fazer companhia aos cavalheiros que as convidavam para sues me_ sas e entreter com eles educada conversaEdo destinada a espaventar a soliddo que os acome_ tia. Ganhavam uma porcentagem da despesa do cavalheiro e quando substituiam o uisque pedi_ do por uma dose de chd que o imitava, recebi_ am valor integral dn bebida trocada, ndo logran_ do ningudm e apenas favorecendo o pr6prio bolso, al6m do figado. Fechada a boate, termi_ nado o expediente, entdo eram livres para sair 97 com quern quisessem, marcar proSram{l'-ac€r; tar o michA. NeIy era Qnxais requestada' SimpdMartica ando mais podetr boa como ela s6' Se perm Rocha perdira por duas polegadas' ela deria por quatro, ou mais"' dizia' Morena alta' de sorriso de dentes lindos que ndo se cansava do mostrar Seios? - tinha-os altos' na diregdo cdu. Comofeito de ctu era o seu regaQo' Cintura esteita, coxdes. E bunda? Ah que bunda! sua simples Quantos suspiros ndo arrancava d passagem. Atdm de bondosa, meiga' quente ,e 'safadinha, gostando por demais do esporte da cama. Quando se deu esta hist1ria' Nely arreque batava coragdes no Little Clube, boate em canse apresentava a adordvel Dolores Durdn' amiga tori notdvel, compositora inspirada' inigualdvel, mais infeliz pra chuchu' Nely tinha um desejo secreto, incontida dnsia: queria ser madrinha de navio. Via-se enchapelada no estafranleiro, os fogos estrugindo ,agarrafado champanha quilha da cOs, guiadu pot uma cordinha, estourando na embarcagdo- (Que desperdfcio, Santo Deus!) Os ionvidados ilustres, autoridades, gente rica' abradonos de navios, penetras, todos comemorando' gando-a, beijando-a. Outros, mais reservados' cumpnpontas mentando-a cerimoniosamente, beijando-lhe as dos dedos enluvados, sim, porque a ocasido requeria toalete comPleta. E o navio, solto das amarras, descendo rumo ds o es6guas, libertando-se dos seus criadores, deixando taleiro pronto para singrar os mares' 98 Atender ao pedido de Nely n6o seria f6cil nem mesmo para o capitdo-de-fragata Luis Magalhdes Noronha. Noronha dos Noronhas, familia de longa tra_ diglo naval. E Magalhdes dos Magalhdes, familia de tradig6es idem, idem, pelos sete lados. E o pobre do Comandante Noronha, gamadinho da silva, procuran_ do mostrar i inconformada deusa a dificuldade de atender seu desejo. "VocO n6o gosta de mim", reclamava dengosa. Desesperava-se o Comandante: "Gosto, Nely, gosto. Mas como 6 que eu vou fazet voc6 madrinha de navio?" "Fazendo, ora." Mulher bonita tem dessas coisas. Inda mais Nely a mais bonita mulher da noite de Copacabana. E al6m de bela, meiga e educada. E f6cil de relacionar-se com todo o povo da noite. E apreciadissima. Inclusive por Dolores Dur6n, chamada pela deusa para testemunhar a seu favor: "Diga Dolores, voc€ n6o acha justo o pedido que frz pro Luis?" Dolores ainda ndo sabia do que se tratava mas antecipadamente j6 davarazdo h amiga. "Claro, claro. Mas de que se ttata?',, pergunta i Nely. E ao inteirar-se do desejo da moga, repreende o marinheiro: "Que isso, seu Luis... Um desejozinho i-toa. E logo, voc6 filho e neto de almirantes. Faga-me o favor.,' E o pobre rupaz ndo tinha a quem apelar naquela noite em que as mulheres se uniram contra ele no iittt" Clube e logo ap6s Dolores interpretar, de sua autoria,A noite do meu bem, artasando corag6es. 99 Em seu socotro, Nely chamou trOs rapazes que freqtientavam o Beco e que eram alunos da Escola Naval: Lufs Matoso, chamado Kid; Roberto De Lorenzi e Si6berth Cerqueira, meu irmdo. "Voc6s que sdo da marinha' me digam: posso ou nio posso ser madrinha de navio?" Simples olhar do Comandante segurou a lingua dos rapazes 6vidos por agradar a deusa, mas De Lorenzi, o mais sacana, pulou em cima da hierarquia e a usou para dar raz6o d NelY: "O comandante, al6m de oficial influente, 6 ajudante de ordens do Chefe do 1o Distrito Naval, respons6vel pelas cerim6nias de batismo. Ndo posso dar opinilo porque sou mais moderno. O Comandante Noronha 6 quem sabe..." - destilou o aspirante. (Filho da puta, pensou o Noronha, Pego ele na curva, prometeu-se.) Vencido, o pobre marinheiro saiu-se pela tangente, entre o seno e o co-seno da merda em que se metera' Desistir de comer a moqa ou amrmar-lhe um madrinhamento' II Mas parecia-lhe que os ventos comeEaram a soprar a favor do Noronha quando o pr6prio Almirante o ionuo"u para a missdo de langamento do Navio-Patrulhaltaipu, inteiramente construfdo no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro. "Noronha, vou encarreg6-lo da cerim6nia de lanrecomenda Eamento do ltaipu. O Diretor do Arsenal que sejam convidados os membros do Corpo Consu100 lar sul-americano porque quer interessar seus pafses na compra de navio patrulha semelhantes ao itaipu. Escolha uma consulesa para madrinha e me submeta rapidamente uma ordem de servigo com normas e ins_ trugOes para o evento. euero uma festa de arromba, do balacobaco", concluiu, muito popular, a altaauto_ ridade, reconhecendo acima apenas o Ministro da Marinha, deus em pessoa, pois plesidente da Repribli_ ca quando 6 civil, 6 apenas para ser tolerado caso n6o saia dos trilhos ou n6o provoque a ira dos ventos; e sem drivida o Deus dos homens, pois era piedoso o dono dos mares do sul. - Noronha percebeu na atribuig6o um sinal do c6u favorecendo a ansiada conquista. Mas, espeto, como arranjar um c6nsul e como promover Nely iconsulesa? Foi a doce Dolores quem encontrou a solug6o, e o que n6o faria ela para aliviar coragdes aflitos? "Aquele Dom Rodrigues que vive aqui de porre n6o 6 vice-cdnsul da Bolivia?', - Pergunta daqui, pergunta dali, e a confirm agdo 6 batata: "E sim", confirma o le6o-de- ch6cata, cansado de arranjar t6xi que levasse Dom Rodrigues para o consula_ do, num porre m6e, noite sim e out itamb6m. ,.Mas n6o tem aparecido, deve ter ido de f6rias pra terra dele; ou ent6o est6 internado com cirrose hep6tica,,, confirmou. O que ndo tinha maior importdncia, pois a prepara_ g5o da festa demandava altos conhecimentos cerimoniais e alguns dias de preparagio, verifi car a agenda do Ministro da Marinha, sempre cheia de convltes para golpes militares e outras confabulagOes solifugur. Mu, o porrista era vice-c6nsul e ndo c6nsul. Como piomov6_ 101 lo a c6nsul e alEar a deusa d condiEdo de vice-consule- sa. "E nem fala espanhol," comentou com Dolores o pobre apaixonado. Que nlo se tocou: ^ "Deixa de lero, Noronha, esse 6 o menor dos nossos problemas..." ( Dolores era assim: o problema dos outros era dela' tamb6m.Nuncad\z\aoproblemadefulanaoudosicrano, mas os nossos problemas. Que mulher!) "... Ela pode aprender algumas palavras' o c6nsul... " (J6 promovera o cara. Dolores era demais') "... o c6nsul pode ter casado com uma brasileira' ou com uma muda, ou uma gaga' Ela pode ndo falar' Apenas sorrir. E com aquele sorriso ela arrasa'" Bom, Noronha foi cuidar de seus afazeres e deixou por conta dos deuses o rumo das coisas' m Civil ndo tem id6ia do trabalho que d6 o lanqamenmilito de um simples navio. Seguindo a boa tradiElo militares, tar, nosso her6i dividia o mundo entre civis e atribuindoqualidadesedefeitosaunseaoutros:defeino sotos apenas aos colegas que com ele competiam frido sistema r le promog6es que a carreira impunha' cada vez mais depen-dendo do apadrinhamento e menos do m6rito, o que tleixava os oficiais na m6o dos seus supe- rioresparamelhorcontrolarahierarquia;defeitosgerais aoi civis, com rarissimas exce96es, especialmente' valia a ressalva, para os membros do Clube da Lanter- t02 na, agremiagdo de escol, destinada a livrar a pdtria de indesejr4veis comunistas, sem falar dos melancias, que estavam para os comunistas como os submarinos fica_ vam nos mares - escondidinhos da silva. Noronha era reacioni{rio, sim, mas boa-praga pra valer. E j6 se viu algum bo6mio do contra? Inda mais de quatro por uma paixdo aguda? Comegou Noronha a redigir a ordem de servigo que organizaia a cerim6nia. 6 certo que copiou de uma ordem anterior, assim como esta, por sua vez, fora co_ piada de uma antecessora, e assim sucessivamente, at6 chegar ao nascedouro ingl6s e h primeira cerimOnia, h6 muito perdida no tempo. Copiar adaptando, o que n6o era tarefa f6cil. Fixado o prop6sito, que era o de estabe_ lecer normas e instrugdes, al6m de atribuir tarefas relativas h Cerim6nia de Langamento do Navio-patrulha Itaipu, o organizador teve de confeccionar: a) croquis da fuea da cerimdnia; b) croquis do dispositivo de ciri_ monial; c) organograma para o pessoal envolvido na flin_a;d) atribuigdo de tarefas; e) necessidade de pessoal; f) lista de material necess6rio na Carreira; g) lista do material a ser embarcado; h) providOncias para o langa_ mento; i) rotina para o langamento;j) trdnsito e estacio_ namento. Ufa! E d medida que o trabalho caminhava, o marujo dava conta a um audit6rio atento e que se reunia ap6s fechar a boate e que contava, al6m de Nely, de uma curiosa Dolores, interessada no mar e no amar. "Quanta coisa, Lufs. E mesmo necess6rio?" "Sim, Dolores", respondia catedrdtico. ..Estabele_ cer a rotina 6 fundamental para aorganizaqdo. Cada um tem de saber de suas atribuig6es..." 103 "E quem, como NelY..." (Doiores j6 dava como consumada a participagio da amiga.) "... n6o tem pr6tica dessas cerimdnias?" "H6 uma Comissdo de Recepgdo integrada por todos os oficiais lotados no Arsenal do posto de segundotenente at6 capit6o-de-fragata, que orientar6 as autoridades e os convidados nos seus deslocamentos durante a Cerim0nia, prestando-lhes as informag6es que se fizerem n"c"sri.ius. Temos um oficial exclusivamente encarregado de receber os paisanos." "E ndo tem mfsica nesta festa?", quis saber a cantora. "Tem", respondeu o marinheiro' "56o executadas pelaBandadeMfsicaoupelocorneteironasHonras do Portal6, prestadas na chegada e na partida das autoridades militares." "Tem discurseira?", quis saber a Vdnia' uma enxerida que estava na roda. "Tem. Discursam o Diretor do Arsenal e o Ministro da Marinha, a16m da... alocuEio da madrinha"' "Ent6o eu vou falat?", preocupava-se a deusa' "E, smadrinha tem de ler uma pequena alocugdo' "E ainda est6 na programaElo", revela o Comandante' recebe u*iiOiu presenteada pela Marinha", conclui' Uma ponta de preocupaElo no rosto lindo' "Ndo se preocupe", diz Dolores' "A gente d6 um jeito.oespanhol6f6cil,bastafalarsemptetesoromio.,, "Tesoro mio? ", Quis saber NelY' "Tesoro mio", confirmou Dolores' "Tbsoro mio", guardou NelY. "Tesoro mio", encerrou Dolores' 104 ry E n6o 6 que as coisas se encaminharam para con_ tentar Nely e aplacar a fome do Comandante? O c6nsul boliviano perdeu um parente na Bolivia, tio de sua mulher, Ministro do Supremo Tribunal ou coisa que o valha, parente importante que o ajudou na carreira e que ainda deixara uns cobres para asobrinha querida. Voou para La paz, recomendando que o seu substituto tomasse tenOncia na vida, n6o bebeise tanto. vigiasse o consulado. Foi f6cil f6cil convencer Dom Rodrigo. O medo 6 que a cerim6nia comegaria ds l3h 40 e temia_se j6 se encontrar de porre o diplomata. Dolores f€-lo pro.n.ter abstin6ncia. Em troca, uma semana de ufsque por conta da casa. Com a noticia de que se aproxim uiu u aventura, Nely apavorou-se: "Vem cd, Dolores, ndo 6 melhor eu desistir e Dom Rodrigo ir com alegitima?', N6o absolutamente nlo era. E nem casado era o c6nsul. E depois de tanta trabalheira n6o valia desistir. O Comandante Noronha, que de certa forma arriscava sua carreira, estava firme najogada, pois tesZo tem des_ sas reg6ncias. Jogo fora a carceira, mas como a Nely, pensava o intimorato marujo. E com carradas de razdo: Nely, como Paris, valia uma missa, ou um batizado. Noronha, protestante convertido, estava disposto a sa_ crificar-se no altar do amor. Ir hs riltimas conseqtiOncias: um porreta. "E roupa, Dolores, com que roupa que eu vou?,,, e cantarolava o sambinha de Noel. 105 se preocupasse, deixasse por conta dela' Iria com a toalete mais linda. Seria a mais bem vestida de Nlo todas.Milagre?Absolutamente.Jdtinhatelefonadopara sua amiga Cut-.n Mayrink Veiga. Uma das dez mais Mas uma elegantes do Ibrain? Ndo apenas do -Ibrahim' daJdez mais elegantes do mundo. "Como mundo 6 seu apartamento na elegante Avenida Rui Barbosa' para onde j6 estamos nos dirigindo." Donu Carmem, uma dama, atendeu-as solfcita' Adorava Dolores. Mas quem n6o a adorava? E colocada a par da patuscada, adorou a brincadeira' Emprestaria um vestido Chanel que s6 usara uma vez na recepem Nova Iorque' E' cla96o que o rei Faissal oferecera io, todot os complementos. Quanto calgava? 37? Mas que coincid6ncia. Mulheres altas mas os p6s nem tanto' como uma luva' Que beleza! Bom, o vestido nlo caiu teriam de ser feitos ajustes aqui e ali, pois a deusa era mais cadeiruda que a dama. A luva, entretanto, caiu-lhe como uma luva, assim o chap6u, um lindo modelo parisiense que realEava a beleza de Nely, conforme disse a pr6pria Carmen a uma aflita Dolores. "Ser6 que vai dar certo, Carmem?" "Claro,Dolores. Os militares ndo sdo por defini96o muito espertos e, afinal, s6o homens e homens' como voc6 sabi, sdo burros quando se ffata de mulher bonita." E n6o se preocupasse pois ela mesma fora convidada para a cerim6nia. "^Voc6?", espantou-se Dolores. "Festa de dia e de militares?" Nada de espanto, o marido da dama era fornecedor de armamento para as forgas armadas, muito bem relacionado no meio naval, ndo perdia cerimonia' Ficasse 106 tranqtiila, 16 estaria para oferecer cobertura fogo de barragem, se preciso. Mas n6o seria necess:{rio. A moga era linda e iria sair-se muito bem. O que ndo evitou uma apreensiva Nely de se pendurar no brago do cOnsul ao saltar do carro emprestado pelo Raphael de Almeida Magalhies, rapaz rico e amigo Oe Dolores, que socorreu o cdnsul, que nem autom6vel tinha. Deveriam chegar pontualmente is l4h 10 e ds 14: 10h chegaram. Todos jd formados. O oficial encarregado da recepgdo levou-a a seu lugar. Dez minutos depois chegaram o Diretor do Arsenal e o Comandante do 1o Distrito Naval; e mais dez minutos o Ministro da Marinha, anunciado por ensurdecedor toque de corneta. E logo o Dire- - tor do Arsenal e o Ministro da Marinha, Almirante Minimaxiano, leram os respectivos improvisos. As 15 horas em ponto, a madrinha leu sua pequena alocugZo num portunhol estropiado mas muito convincente: para os espanh6is parecia tentar falar o porhrgues; para os brasileiros, tamb6m: um retumbante sucesso. Na seqU6ncia, o Diretor do Arsenal convidou e acompanhou a madrinha atd o "Palanque de Batismo", onde ela quebrou o champanhe na quilha do navio e liberou o seu dispositivo de "langamento", durante o qual a banda tocou uma mrisica tipica boliviana, o que trouxe ldgrimas ao cOnsul e uma tremura ds suas mdos, de saudades da p6tria ou de delirio tremens, nlo se sabe. O navio ganhou o mar e os convidados o coquetel, ocasido em que o Ministro ofertou, como de praxe e sob palmas tamb6m de praxe, a j6ia da madrinha, uma dncora de ouro, o que provava a generosidade e a inventividade da Marinha. Nely sorria e agradecia. E a um deslumbrado Ministro sussurrou: r07 "Gracias, tesoro mio." Nem bem refeito do susto, e j6 o Ministro era envolvido pelo perfume e pelo charme de dona Carmem: "En16o, Ministro, o que achou da madrinha?" Achara uma beleza (Tesoro mio ainda soando aos seus ouvidos). Dona Carmem j6 a conhecia? Evidentemente, a madrinha era figura conhecida na sociedade, deslumbrando sal6es aqui, em Nova Iorque ou Paris' Divertia-se a dama com a inocente brincadeira' E quem, podendo, n6o gostaria de enganar a Marinha de Guerra, especialmente se representada por seu titular em pessoa. Era, no fundo, pacifista, a grande dama' Por mais de uma vez, o Ministro, extasiado, ouviu da deusa a expressdo "Tesouro mio" 'referindo-se a ele' "Que mulher", pensava o probo Ministro. E nlo compreendia como aquele merdinha do c6nsul ganhara semelhante d6diva dos deuses. Preocupado em tomar coquet6is uns atr6s dos outros, o diplomata nem prestava atengdo d mulher. Pior pra ele, melhor para os homens, que rodeavam a encantadora madrinha, sempre com sorrisos para todos. De poucas palavras, mas de muitos sorrisos. "Tesouro mio" guardava para o Ministro, a ponto de enlouquecer o dignit6rio dos mares' Mas a festa tinha hora para acabar e nem ele, Ministro, a suprema autoridade naval, podia modificar os costumes' E nlo foi sem muita pena que se despediu da deusa, beijando-lhe a ponta das luvas emprestadas e colhendo o derradeito "Tesouro mio". O mesmo cano que os levara, agora os trazia, agora com mais um passageiro, o aflito Comandante. Foi deixar Dom Rodrigo jd cambaleante no consulado e seguir para o apartamento no Hotel Quitandinha, em 108 Petr6polis, emprestado tambdm pelo generoso Raphael, a par de tudo e de tudo rindo, como bom sujbiio que era. Nely, feliz como uma crian ga e j6 apaixonadu p"to homem que lhe permitira tanta ventura. Seria um fim de semana do arromba. E foi. V O bravo capitIo-de-fragata Luis de Magalh6es Noronha teve o fim de semana a que fizera jus. O intr6_ pido marinheiro mereceu o gozodo mundo. inteiramente apaixonados, aproveitaram cada segundo dos minutos e das horas que desfrutavam numa petr6polis outonal. Ndo faltou o passeio de charrete e nem a viiita ao pal6cio Imperial. Sem o jogo, o euitandinha ndo oferecia mais o luxo que o mundo reserya aos cassinos e aos potentados orientais, mas ainda conservava belos sal6es e seu restaurante ainda servia maravilhosas refeig6es e vinhos de safras antigas dos bons tempos da jogatina desenfreada. Ah, o amor! Soubemos por Dolores, que recebera telefonema da amiga contando as maravilhas de petr6polis e os arroubos do marinheiro. E tamb6m comemo_ ramos, Ribamar ao piano. Senti uma pontada de cirime do namoro antigo e j6 prescrito. Mas logo passou e pude juntar-me i alegria geral consolado por Sarita, uma portenha que se fazia passar por pacefra nunca soube o porquO. Na segunda-feira, estava o Comandante Lufs Ma_ galhdes Noronha entregue aos seus afazeres no Distrito Naval, quando uma ordenanga do Almirante avisa_o que o chefe queria v6-lo. "parece bravo, Comandante,,. 109 Ser6 que a patranha fora descoberta? N6o importa' pelotdo O romance valeu. Enfrentaria galhardamente o que se aprede fuzilamento. E foi com essa disposiEdo sentou ao seu chefe: "Mandou me chamar, Almirante?" os 6culos de Que olhou para o subordinado' Tirou leitura e, sisudo, mandou-o sentar. Gostava do oficial' Fora colega de turma do pai Noronha, aluno na Escola Naval Ooiio Magalhdes. E ainda por cima, o Ministro ficara encantado com a madrinha que foi escolhida. Encantado ndo era bem o termo; enfeitigado cairia melhor. Mas Lufs merecia pelo menos uma repreensdo' Apreensivo com o sil€ncio do chefe, Noronha toma coragem e pergunta: "Alguma coisa errada, Almirante?" Que se digna a resPonder: "b convite para o Corpo Consular n6o objetivava a mostra da qualidade do navio para facilitar futuras vendas?" Noronha concordou' mas ainda nio sabia aonde a autoridade queria chegar. "A escolha da madrinha ndo era para distinguir um pais provavelmente comPrador?" Perfeitamente, Noronha concordou' mas ainda ndo sabia aonde o chefe chegaria, mas sua forma severa anunciava dificuldades presentes e futuras' - "E que a Bolivia n6o tem safda para o mar' Noronha." l l0 "Saudade 6 a primeira Estagdo depois de Bana Mansa.,, ouvi quando crianga DisfarEa e chora Que lugar mais encantador para acolher o lendi{rio Nelson Rocha que o buc6lico bairro de Grajari no final dos anos cinqiienta? Certa feita, contava, estando em Roma, n6o se sabe bem fazendo o qu6, teria tirado um retrato com o papa, com o que demonstrava, a um s6 tempo, seu prestitio no vaticano e sua not6vel fotogenia. c6pias di foto-teriam sido espalhadas no bairro para provar a influOncia do filho ilustre e para ajudar na campanha que ent6o faziaparadiretor de patrimOnio do Grajati renis clube na chapa do doutor Alberto Melleu, consagrado bene_ m6rito da agremiagdo. uma dessas fotos teria caido sob os olhos do Renato, chamado Renato Zoiudo,que teria exclamado: - Quem 6 esse cara de branco ao lado do Nelson Rocha? coisa teria parado por ai, debitada i miopia con_ g€nita do Zoiudo, se o pr6prio Nelson Rocha n6o a ti_ vesse usado para demonstrar mais popularidade que o Santo Padre. Foi demais quando somada a outras hist6rias do cavalheiro, que incluia cagadas, pescarias e ou_ tras do g6nero invengIo: peixes imensos, jaguatiricas maiores que ongas e vai bola. Os incriveis g6meos F6bio e Fabiano pellon, re_ c6m formados em medicina, diagnosticaram mitomania em alto grau. O que era extremamente severo na opi_ 111 nilo do doutor Newton Motta, conceituado m6dico do bairro, bonfssima alma, e tamb6m candidato a diretor m6dico na mesma chapa do Nelson Rocha: - Mitomania 6 fone.Talvezele exagere a6 verdade ao mesdas coisas. Pode-se supor que uma afirmaElo motempofalsaeverdadeiraeimaginarindefinidamente as duas situag6es para concluir que 6 verdadeira e a falsa - justificou dr. Newton dessa maneira fant6stica mania do outro de inventar as coisas' not6vel Estupefata, a platdia nlo pode contestar o nomvel do vezo escul6pio, mas pediu-lhe uma definigdo do Nelson de contar casos... digamos raros: - Mentirinhas cariocas - sentenciou o dr'oNewton' Bom, nada impediu a chapa de ganhar renhido pleito. E logo o lend6rio Nelson Rocha, diretor de pairim6nio do clube, encomendou ao Fl6vio Lustman' engenheiro rec6m-formado, uma boa reforma na antiga do faChada do Grajari T6nis Clube; a entrada era velha' tempo do barracdo que primeiro abrigou seus fundadores:- tratava-se de urn modesto portlo de madeira paencimado por um telhadinho. O desenvolvimento' lavra da moda, exigia algo novo, o gOnero Brasilia se impunha, NiemeYer fazia escola: - Oh Flavinho, fazumneg6cio moderno, pr6 frente - comandou o novo diretorE nem esperou a resposta do engenheiro, aguardava-o o Papa, altas calEadas, fabulosas pescarias' Ordens dadas, ordens cumpridas' Assim nasceu a marquise nova, uma meia barriga por cima do portlo' ugotu de lata, com borboleta para o Gil, funcion6rio aitigo e estimado, controlar os penetras e os sdcios de- t12 vedores. A dita era sustentada por dois tubos finos, parelhos, nas cores azul e amarela. Sucedeu que mudou a diretoriajusto no fim da obra. Outro pleito encarnigado teria levado a oposigdo ao man_ do do clube. A Milton Amaral, chamadi Chi*to,coube assumir as i{rduas fung6es antes confiadas ao lendi{rio Nelson Rocha. E logo implicou com a inovaglo dos tu_ bos que sustentavam a marquise. Chamou o fi"l Gil e imediatamente determinou a retirada dos dois canos: Oh Gil, tira esse merda! Falou mordendo o insepardvel charuto, o que fazia com que as palavras safssem por uma das bandas da boca, que o dificultava a compreensdo, mas n6o para o escolado Gil que de tudo entendia. - O senhor desculpe, seu Amaral, mas o projeto 6 do Flavinho e se eu tirar os tubos a traquitanuiai.uir. A voz de comando mascada peio charuto que empesteava o ambiente fez_se ouvir alto e bom som: Tira logo essa merda, Gil! Foi o Gil retirar os tubos e a marquise ameagar cair. - Amaral n6o se alterou. Charuto na boca, disparou a contra-ordem: - Oh Gil, bota esta merda! il E o mesmo Amaral, j6bem mais velho, que eu vejo na porta da Igreja, na praga Edmundo Rego, ao lado do Senador MSrio Martins, ap6s a missa de s6timo dia da morte de seu filho- Abatido, o rosto vincado pelo sorri- tt3 Mas' ao mesmo rcmmento que s6 ele sabe o tamanho' dor mais injusta po, .otug"m das coragens' resistindo d n6o 6 um ser humano: Pai n6o enterra Filho mundo' u ord"* natural das coisas deste traiAmaralzinho perdeu a vida numa emboscada noite da go.i.u, a covardia do assassino escondida na criminoso' Apenas .iOuO" de Mendes. A arma revela o como a um tiro de escopeta queima-roupa' certeiro um ente que Jamaldade dos homens maus' E 16 se foi Como todos' demais levantou a m6o contra algu6m' nio pufeitos tinha, mas nada que uma boa conversa i-b"t,"i i desse remediar. os amlE na porta da Matriz do Perp6tuo Socorro fiado' como gos pefinanecemos ap6s a missa a conversar como se a grupo alivi6ssemos a dor da perda' Era jogou para de amigos queridos que a vida i. ". pto*i#oide alegrias' menos cruel' refazerilusOes, o bairro ameno' a vida com A rodinha j6 estava feita quando me aproximei querido amigo Reynaldo Gayoso, chamado iurumelo' turma na Faculdade de Direito' L6 estavam diferentes cantos piO"tit recuperar antigas de "ll"gu "oAb,boraeoGato,ambosaposentadoseagora n6o vi o Gatiinsepardveis. (Vi o Gato na missa mas Pinto' nho', que vi no enterro)' Wanderley Noden que ndo.up*:t:1t' Manoelzinho, Ercflio irm6o do Jrilio O{lio Afrton Couto Ramos, Dauquir, Tido' Cabeleira' -Feijdo, Miguel Canavieira, os irmdos Pellon e o sobri- Pellon dos nho deles e meu querido amigo Sebastido Parafita' e Santos Moreira, Perrone, Paulinho Cabega' Dutrinha, firme como sempre' Na outra roda dona Matilde e Alberto Melleu' chamouLamparina e Damiio Teixeira Pinto' Algu6m tL4 nos a atengao para o velho Damido: - olha o Damido, cara, n6o muda, parece o mesmo, s6 falta u ,uquat"i_ lembrando o inveterado jogador de t6nis qu. Parafita, sem movimento nos bragos, iinOu "*.conva_ lescendo de uma queda quando tentava perigosa ater_ rissagem com sua asa-delta justamente na confluOncia das ruas Gurupi e Arax6. paulinho Cabega lembrou a hist6ria do incrfvel Morris Minor do falecid o Mde D, dgua. O chdo do banco traseiro do carro de t6o podre um dia rompeu com a sogra que 16 ia de carona. posterior_ mente, o cruro foi trocado, na rua do Livramento, por uma vitrola usada que tambdm se recusou a funcionar. J6 se ia fazendo tarde, mas a roda se mantinha. A tuma adiava a hora de enfrentar, sozinhos, cada um a sua dor. Mas, qual, a vida segue com suas regras e uns ap5s os outros todos acabaram se mandanOoleUrugo, apertados, promessas de encontro paua breve qu" nun_ ca se cumprem. A saudade do bairro da gente. Disfarga e chora: sou louco por ti, Grajari. I l5 "As Forgas Armadas s6o organizadas com base na hierarquia e na disciPlina'" das Constituig1es da RePrtblica A metade maior a ConstiJack, o Estripador, esfaqueou novamente de 9 tuigdo de 1946,iiprofanada pelo Ato Institucional militares sediciOe aUrit de t964,institu(do por chefes truculentos osos mais tarde sucedidos por colegas mais por deque ultrajaram definitivarnente a lei, baixando' iConstituiEdo" (epa!) de 1969, e por isso chacreto, a Guimamados de os "TrOs Patetas" pelo Dr' Ulisses desaprordes, o que contou com minha mais veemente frzver ao saudoso amigo, autor do epiteto' vag6o, pelo aprego que eu votava aos inofensivos e brincaos-tith6es comediantes norte-americanos que criaram gorilas os pos e que nio deveriam ser confundidos com "f-o daqui. um Daquela feita, os militares golpistas baixaram julgao segundo Ato transferindo para a Justiga Militar naciomento dos crimes previstos na lei de seguranqa mais nal, que, na sequOncia, iria tamb6m se modificar tr6s vezes, naturalmente para pior' Assim, os civis, enquadrados nos processos lnvenforay tados pelos militares pttunt" a justiga comum' mals esm transferidos para a justiga castrense' por ser confi6vel, j6 se v€. Daf, o processo a que respondiam ferrovi6rios de SeCampos foi distribufdo i 2" Auditoria de Marinha' Permanente riam, portanto, julgados por um Conselho 116 de Justiga constitufdo por um auditor (magistrado civir da Justiga Militar), um oficial superior cor"'" p.*iA""* e tr6s oficiais at6 o posto de capitao_bnente. Ate ai tudo muito bem. Mis eis que nopregdo dos r6us na audiOncia de instrugdo o meirint o ct urriu, - Almirante Soares. Ao ouvir a expressdo mftica ,,almirante,,, os ofici_ ais do Conselho se viram dominados pelo pdnico: o pre_ sidente do Conselho pulou no colo ao auditor; our- ," refugiou no banheiro das senhoras; o de bigod"r.r"on_ deu-se atr6s da bancada reservada ao Minist6rio pfblico; e o mais jovem tentou o suicfdio ateando fogois vestes. Exageros? N6o, absolutamente. Estavam a demonstrar o res_ peito que nutriam pela hierarquia e pelo absurdo da si_ tuagdo em que se viram metidos: -de julgar a um ulmi_ rante, ainda que de mentirinha. Almirante era apenas o prenome do Soares, negro imenso, ferrovidrio veterano e filho de um antigo #;; de conv6s que botara o prenome de Almirante-no filho porque o seu maior desejo era ver um almirante de ver_ dade e de perto, situagEo que nunca logrou mesmo ap6s cumprir mais de vinte anos "onquiriu, na Marinha. Com efeito, especialmente no seu tempo, os almi_ rantes eram poucos e dificilmente se deixavam ver pelo comum dos mortais. Ouvia_se dizer que tal ou quai al_ mirante passara em qual ou tal lugar. Mas ver qu" bom, jamais nenhum dos coleguJ Oo "ru hifeiro dour.r, mesmo os mais velhos, viram semelhante esp6cime, com o que justificava a homenagem dando uo filho o nome de um quase deus. tt7 n6o me admirei Conhecedor das tradiE6es navais' do Conselho e' do barata-voa que tocou nos oficiais passei o julgamento a uOnoguOo do Aimirante Soares, do meu oiu"riit-*. repetindo, sempre que podia' o nome emboConselho' cliente para desespero dos oficiais do de fantasia' ,u;a ,i"ntes de qo" .. tratava de um nome at6 poi assim dlzet, e n6o de um autOntico almirante' Triteria foro especial, o egr6gio Superior p"tq* img|an1a.da ""e bunal Militar, a primeira Corte de Justiga Joao,logo ap6s a inverslo hist6rica uquiptro astuto do reino de 1808, exammente porque a transferOncia ocupagEo para as nossas praias fora uma verdadeira um tribunal pr6prio par-a -ititur, e urgia a criaqdo de que garantisse a apropnsegurar as banas da disciplina habitantes e das casas ugEo ao lugar, das almas dos seus em que habitavam. no presidente do Conselho' confidenciou-me' Tamandar6' Patrono curso da instrugao, ter o Almirante Joaquim Marda Marinha de-Guerra' como seu fdolo' por servigos prestados ao [ues I-isUoa ganhou o tftulo Cristina' sua' Imperador e dquele bagulho da D' Teresa uma feita' quando levava 16 dele, augusta.onroi"' De ao norte d: n1t1i:l.o a imperiat-familia em naval visita n.a regrao diu licenga a D. Pedro para aportar onde recolheria os desf"rnu-bucana de Tamandard, de 1824' O pojos de um seu irm6o morto na Revolugdo da esquadra como imperador nlo s6 permitiu-o fundeio de bardo do lugar' depois outoro agraciou com o iit 'to marqu0s' al6m de guriOo-tt o de visconde, conde e ap6s o he" promov€-lo ao posto mais alto de almirante' Era veriOi coUrir-se de. gl6rias na guelra do Paraguai' na Passagem de dade, lembrei aJoficial qu-r r"u idolo, i. b 118 Humaiti{, em fevereiro de lg6g, demonstrou ser mais do.que corajoso, dele, se podendo dizet,na finguagem hoje corrente, ser um verdadeiro porra_louca: desem_ barcava da nau capitania e, a bordo A, urnu pr;;;;" chalupa hibrida de vela e vapor, ia provtcu, o, paraguaios, pouco se importando de ficar na linha de tiro da fortaleza e rindo das balas que passavam rente ao seu barco. Entretanto, ao paraguai, perdoasse o co_ mandante, o liberalismo econ6-i"o, ent6o dominante (que hoje talvezatenda por neoliberalismo), nao p.r_i_ tia que o progresso do mundo tomasse ouffo rumo que n6o o por ele apontado, e o presidente Solan o L6pez operava, iconoclasta, isolado caminho inverso. Mono_ polizava o comdrcio externo al6m do interno, fazia_se dono dos recursos naturais do pais;,al fabetizavlao pouo, construfa ferrovias e fundava empresas: imperdodvel! A casa bancdria inglesa Baring Biothers nao permitiria que seus interesses na dividida Argentina pudlssem ser prejudicados pelos guaranis, asiim os Rothschilds financiadores do governo brasileiro. Nada mais natu_ ral, portanto, que a jungio dos interesses dos banquei_ ros ingleses com o Imperador no Brasil, mas sfdito de_ les. Era nefasto exemplo a ser afastado, ora j6 se viu! Sem ofensas, sabia o digno oficial que a Coniederagao do Equador antecipava a RepriblicaL pretendia a forma federativa e o governo representativo que j6 vigorava na grande nagdo Americana? Sabia que, ialtindolo pri_ meiro Pedro elementos materiais para sufocu, u r"^br_ li6o, financiou a repressdo com emprdstimos e tropas mercen6rias estrangeiras, especialmente inglesas? ^Sa_ bia_que a esquadra .,South American Station,,, coman_ dada por Lorde Thomas Cochrane em pessoa, respon_ 119 patriotat? 9tt-u deu pela ofensiva maritima contra os 1955' qo" o Museu Naval da Grl-Bretanhaadquiriu' em ao uma coleElo de uniformes que teriam pertencido seLorde Cochrane, 10o conde de Dundonald? Sim' a16m de conhor. Casaca e dragonas de vice-almirante' Brother" lete, todos confecclonados pela famosa "Elder sobravam.inda Trinity House? E os comprou porque inglOs' dicios de terem realmente pertencido ao lorde de a saber: a casaca era a vestimenta de um almirante 1856; a etiqueta meio rasgada no forro das dragonas fiaziaa palavra "conde"; a casaca possuia tr6s ilhoses tr€s estrelas do lado esquerdo que serviam para prender de ordens honor(ficas' sem contar outras condecorag6es teria sido do lado direito; e que o conde de Dundonald o unio tinico - fnico, t"p*. bem - almirante trajando condeforme que apreseniuuu a mesma disposigdo nas procoraE6es? Oia, se tais indfcios viravam inefut6veis uu, 6 serviram para os sdbios do Museu britdnico' nlo servlnsabidamente versados em pirataria, por que Revoam para n6s, hem? Sabia ndo? E que a chamada social tuEdo Praieira de 1848, movimento de rebeldia que cultrouxe at6 nossas praias a onda revolucion6ria Ausria' minou com as revoluEO"s europ6ias da FranEa' E que Prussia e It6lia qu" tnt.ttaram o Velho Mundo? Tamandar6 sempre, com o dlvido respeito, o Almirante libertdrios? pegou em armas contra os movimentos 'Oiiu-t. em defesa do Patrono que deixou li96es de de quatro marcado pragmatismo: embora monarquista digna costados, aaeriu d Repfblica com uma sentenga reservas dos maiores encdmios, embora recebida com que o pelos que permaneceram fi6is ds velhas id6ias ul-irunt" jbgou ao mar: "O que est6 feito' est6 feito' t20 Cuidemos agora de ftabalhar e engrandecer a nossa pii_ tria"' Era tal seu justo prestigio q"ue escapou da lei de reforma compuls6ria promul[ada peio Mar".tat feldorg monarquista como ele, nias primeiro presiOente da Repriblica do Brasil, e viu-se at6 nomeado ministro do Supremo Tribunal Militar, cargo que ocupari a at6 poucos dias antes de falecer uor nou.nta anos de idade. Tinha razdo de orgulhar-se do seu patrono o inclito oficial,.agora presidente de um Conselho Oe fo.tiga lu" iria julgar ferrovidrios, quem sabe seguidores dos re_ volucion6rios de lg24 e 1g4g? euem sabe? O presi_ dente do Conselho n6o sabia. Mas voltando aos autos, eu at6 entendia a apreen_ s6o dos oficiais pela situagdo ins6lita de ouvir no pr"_ 96o o altissonante Almirante seguido pelo moderto soambos representados pelo negro bonachdo. T"r ? E isso durante toda a instrugdo todo o;ulgu*.nto. Era " de desesperar. Caprichei na prova de defesa. Ouvi to_ das as testemunhas que me facultava o C6digo de pro_ cesso Penal Militar e a elas invariavelmente se conheciam o Almirante Soares, caprichanio iupatu_ vra almirante, escandindo suas sflabas. Os militares nao conseguiram disfargar o constrangimento que os aco_ metia, motivo de divertimento para-todos os uOuoguJo, de defesa, inclusive para o audiior, que internu_"it. deliciava com a ex6tica situag6o. Eu estava me lixando para o desagrado do Conselho e estendi a sacanag"_ o quanto pude. Guerra 6 guerra. Foi ent6o qu" _""1.__ brei de um singular episodio que vivi quundo pr"ro* meu servigo militarobrigat6rio e que entdo _. d._onr_ trava a sacralidade da hierarquia militar. #rg*i; ,. 121 II aos O servigo militar obrigat6rio era uma ameaEa iiAuO" de dezoito anos' Al3ouen, qur.o-pletavam contingente"' guns davam sorte de cair no "excesso de felizardos que eventualmente irOmio que alcanEava os que n6o necessitavam se inscreviam em circunscriE6es conhecimentos mais de pessoal; outros, apelavam para livrassem do familiares com oficiais doEx6rcito que os ligaE6es abacaxi. Terceiros, j6 porque n6o possuiam escapar militares, j6 porque tinham um certo pudorde Aos do servigo, iam ientar praqa' divididos embora' j6 curo cienlffico (ou o cl6ssico)' ou qo, uma para "o-pletavam universidade, era facultado o exame *uude oficiais de reserva' Al6m do Cenpreparat6ria -Preparagao "t.ofu de Oficiais da Reserva do Ex6rcito tro de de criar o (CPOR), o -uit conhecido, a Marinha vinha da Marinha Centro de Instrugdo de Oficiais da Reserva (CIORM). A duiaqdo do curso e a-freqii€ncia de aulas os doeram semelhant.., drrunte o ano letivo' todos os dias' salvo aos -ingoq nas f6rias escolares, todos forma'.era doniingos. Era puxado. Mas, de qualquer d dura melhor do que servir na tropa, sujeitos os recrutas era ser vida da caserna - parecia que "servir d P6tria" de sujeitarinfernizado por uma rotina irracional' al6m dos sarse d ignorancia dos superiores' especialmente jovens: os gentos, como entdo se propalava entre os i?".ori'eram sujeitos abaixo da condigdo humana' Resreserya' mvam os cursos de preparagdo de oficiais de ducom um ffatamento-tubidu-"nte melhor' embora dois anos e rassem o dobro do tempo dos conscritos: a patente de mais o est6gio de seis meses para alcanqar t22 oficial. Entre os dois, dizia_se, a Marinha era mais ra_ zodve' o tratamento era melhor, o oficial -uir nJulgo. Al6m disso, propiciava viagens de instruEdo, como alu_ no ou como guarda_marinha, onde ainda se ganhava uns cobres. Menos funesto, de qualquer forma. Foi pensando assim qu", ap6s o concurso, encon_ trei-me na Ilhas das Enxadur, .u;o nome nunca soube que se referia i arte de capinar a-ter'raou aludia a uma esp6cie de peixe tele6steo da famflia dos efipideor, pro_ vavelmente a este fltimo pois se tratava de estabelecimento naval. Andei p"rguntando aqui e ali, mas a ex_ pressio de assombro dos oficiais inquiridos levou_me a desistir da empreitada:-uma definigdo ou outra o que mudaria? E logo aprendi uma ligio: quanto menos per_ guntas melhor, especialmente se a parte n6o sabe ui"._ posta. Os alunos eram identificados pela turma, que to_ mava o nome de uma das letras do alfabeto. qu. duuu rigorosa sequoncia is anteriores. Assim, a primeira turma fora Alfa; a minha era Nega, logo teriam existido dez turmas antes da minha. Al6m disso, os alunos portavam o nfmero com que eram classificados nas provas de admissEo. Fui o triie_ simo segundo colocado. Dessa forma, na..chamadai o encarregado dos alunos dizia a turma e o nfmero do aluno, que teria de responder, berrando, a bom berrar, o seu nome de guerra, isto 6, o nome que lhe haviam de_ signado entre os seus, n6o importuuu ,a prenome ou nome de famflia, e que servia para diferen.ia_to de ou_ tro, o que impediria a homonimia e facilitava o controle disciplinar. Na primeira cadeira da sala de aula sentava-se o nfmero um, ao seu lado o nfmero dois, e assim r23 e l6gica' sucessivamente: um sucesso de imaginagdo vdo acabar se Como em toda coletividade, os parecidos J6 coencontrando no terreno comum das afinidades' de Alencar e nhecia Leon Hirzman, Marcos Machado agregaram zel\toviana, e logo a esse pequeno grupo se -David 56rFinkielsztejn, Wilson Nogueira Rodrigues e gio Salem, e est6vamos levando um papo -*:]1::l?: lnstruEao' 6o o boca de ferro nos convoca para uma obrigaramMarchar, v0 se pode! Embora na Marinha' exercfcio devenos a aprender a marchar' Discordei' o 6 conria ser de nata96o. Inftil' Conversar com a rotina o muro 6 inoversar com o muro' com a diferenqa que em duas fensivo. Daf que o sargento dividiu os alunos ,u*u, iguais. Uma dJas seria treinada por um oficial defuzileiro chamado Herculano, QUe, por estar sempre colegas' o salinhado diferentemente de seus apurados Comchamavam de Herculacho, e pelo tal sargento' posta a formagdo, o sargento instruiu: coDividi a turma em duas rnetades' Uma sob meu Herculano"' mando e a outra sob o comando do capitdo prossegutr' Mas de repente, parou' N6o conseguia boca' Queria Parecia que algo the pregara a lingua na Mas falar e n6o conseguia. Sintiamos o seu esforgo' a ,"qu", balbuciaval E que o infeliz havia atropelado e assuhierarquia: como dividir ao meio uma formaglo mir a mesma importdncia de um superior? Entretanto, ts anjos que protegem os simples.viea ram em socorro do pobre-subalterno e sopraram-lhe soluEdo. O sargento rcfez a divis6o: A metade mai- Dividi a turma em duas metades' e a metade or sob o comando do capitIo Herculano menor comigo. r24 ..Do lado esquerdo canego meus mortos. por isso ando um pouco de banda.,, Carlos Drumond de Andrade O encontro Logo no inicio de janeiro de 1965, Rogdrio Mon_ teiro, chamado Senador,e eu deixamos o exilio chileno e iniciamos a jornada de retorno ao Brasil. Na v6spera da partida, altas despedidas em casa de Ad6o Pereira Nunes, com direito u dir.urro p.onun.i_ ado por Roberto Morena. o velho revolucion6rio servia conselhos como antes fornecera contatos e senhas em Mendoza e Buenos Aires. O pequeno dnibus venceu a duras penas o ingre_ me,.estreito e por vezes perigoso, caminho que leia a Portillo, centro de esportes de inverno e absolutamente hs moscas naquele verdo. Adiante, a fronteira com a Argentina e a dificuldade em transp6_la. E que Jir_ pfnhamos de passaporte, e a caftefuade identidade "a" n6o permitia o retorno ao Brasil porque o acordo diplom6ti_ co ent6o vigente s6 autorizava idas e vindas entre paf_ ses limitrofes. Entretanto, tfnhamos um trunfo. E que a moga que atendia aos passageiros em Santiago nos alertou iuru o problema mas se encarregou de antecipu. u ,oluiao uo nos colocar em contato telefonico com um certo sefior La Pefra, chefe da aduana na fronteira com Mendoza, que autorizou nossa viagem. Foi o que relatei d autoridade que nos negava a entrada e que mesmo assim se obstinava na recusa. o r25 um tipo de coreferido La Pefla era' segundo o guarda' pedidos' 56 que n6o raE6o mole e atendia alodos os devolver no estava no momento e por isso n6s teriamos o cara .,ir. Dirr. pto Senador pra ficar engabelando p"biu a ele indiiaEdo do urindrio pois estava povoa"nquun,o ,o- u bexiga a estourar. Escapuli e no pequeno que se lemdo n6o foi dificit encontrar o sefiorLaPefla' cuja viabrava perfeitamente dos jovenes brasileftos v6lido g.; uutti zua. Darta um permiso de trdnsitovoltei ao io, de, dias, sem dfvida. Em sua companhia teve outra saida seio*o e o guarda filho da puta ndo as portas para nao u de carimb ar atarieta que nos abria a Argentina. exianubela cidade de Mendoza' conhecida pela a penslo indicada celOncia de seus vinhos, procuramos contato' por Morena e 16 nos instalamos a espera do era um ativista que j6 io, nao demoraria. Dom Floresmesmo assim ainda traconhecera dias melhores' mas as coszia altivo o semblante e esmerava em endireitar Levou-nos a jantar tas que o tempo teimava em curvar' tamb6m de num modesto por6m excelente restaurante' despachou um companheiro, e na manhd seguinte nos .o- purrugens de segunda classe em um trem de ferro que demandava a caPital' Aires e nos Chegamos madrugadinha em Buenos no .ufe da estagdo ferrovi6ria de deixamos ficar do-advogaBelgrano at6 a hora do encontro na oftcina partido t:!1uu do Cemrti Costa, naCalle Esmeralda' O polftica na legalidade apenas formalmente' A situagdo dirigentes mais argentina comegava a encachorrar' e os delas natuiniportantes j6 tomavam precauE6es e uma ,ul-"nt" era a de n6o pisar na sede' que ficava perto do r26 escrit6rio de cemrti e cuja porta s6 se abria ap6s rigorosa identificaEdo do visitante. A senha que o tuorJnu nos dera funcionou e fomos atendidos. Rog6rio se hospedou em casa de uns judeus ricos, simpatizantes do partido, 16 pelos lados de palermo, e eu em casa de um estudante de medicina, natural da cidade de Rosi{rio, chamado Alberto, bem no centro da cidade. Estranhei quando entrei na casa porque me vi em um consult6rio dent6rio e logo recebi a explicagdo: os donos da casa, pai e mde do Alberto, membros antigos do partido, eram dentistas, e a sala servia de consult6rio a ambos. Apar_ tamento espagoso era tamb6m servido por outra entra_ da lateral que lhe dava privacidade e n6o prejudicava o atendimento aos clientes. o consult6rio nao interferia na rotina da casa a ndo ser pelo forte odor de eugenol que impregnava todos os ambientes e me dava as"nsu_ 96o de que a qualquer momento um meu dente seria inevitavelmente extraido. Alberto era uma companhia formiddvel. Amante do tango tradicional, n1o desprezava seus avangos. Foi em sua casa que pela primefua vez ouvi a mrisica de Astor Piazzola e fui apresentado ao seu incrfvel Adi6s nonino. O not6vel compositor era incompreendido em sua terra e s6 ap6s o 6xito que lhe veio do estrangeiro, especialmente de Paris e Nova Iorque, passou a ser mais bem-aceito pelas plat6ias portenhas, e mesmo assim em termos, pois resistdncia ainda era grande contra a novidade que oferecia. O argentino se aferrava ao tango estilo Gardel como se essa mfsica esplOndida nao pu_ desse competir com o tango novo qtrcpiazzola criava, mrisica tambdm da cidade de Buenos Aires, como ele mesmo fazia questdo de repetir, n6o tendo drividas em a t27 chegar hs fugas de algum recalcitrante nio inteiramente convencido, mesmo ap6s tantas e t6o belas explanag6es' pois o maestro tinha pavio curto a ele nlo custando compl"tut explicaE6es musicais com ponadas para valer' Melhor para Alberto que adorava Gardel ePiazzola e ganhava em dobro o ptazet de ouvir a boa mfsica de urnbot. Comparava o novo tango com a nossa bossanova, descobrindo semelhanqa e surpreendendo harmonias. Perdlo, a bossa-nova se aproximava do compasso do jazz americano, i6 o novo tango sofria a influencia da mrisica cl6ssica, argumentava eu inutilmente para um ouvinte mais preocupado em definir o novo tango como a bossa-nova argentina do que buscat origens mds Iejanas. DiferenEas conceituais que n6o nos impediu di viver a fant6stica noite portenha, suas casas de tango' - seus agrad6veis caf6s, suas garotas adordveis' Muita fana e pouca politica. Era muito reservado o Alberto. Melhor assim. E n6o foi sem muita pena que recebi instru96es para tomar um velho DC-3 que ent6o fazia a linha BuenosAires/Col6nia, j6 no Uruguai, onde nos esperava Batistinha, antigo ferrovi6rio e deputado cassado, que lise exilara em Monteviddu onde cumpria a tarefa de em gaEdo com Porto Alegre. Deu-nos o contato Taquaremb6. Um certo Ziggia, dono de uma livraria, que nos receberia e providenciaria nossa volta quando ouvisse a senha: "Trago couros para Livramento"' Lembro-me de que Rog6rio, incorrig(vel conquistador, acertou duas lindas mogas para dividir a noite conosco e marcou encontro em um caf6 perto da pensdo que nos alojava' Inutilmente esperamos. r28 Ainda sob o efeito do bolo, nos mandamos para Thquaremb6. O livreiro era um tipo alto, espadarido, grossos bigodes que lhe tomavam o rosto largo. Ao ou_ vira senha, abriu-se em sorrisos e indicou_nor"uauponu nos fundos da loja por onde entramos e logo no, u^i_o, na sala onde pendia um enorrne retrato Oo anntriao abra_ gado ao camarada prestes. Estdvamos em casa. Fez-nos chegar a Livramento por uma trilha e to_ mamos o trem que nos levaria a porto Alegre e a outro contato, que nos ligou a 56o paulo, onde uma empresa muito agraddvel nos seria reservada. E que ta nos tros_ pedou Geraldo Monteiro de Barros, tio de paulo Alberto e qyerido amigo nosso, extraordin6rio conversador e cozinheiro de m6o-cheia. Surpresa das su{presas, li{ es_ tava amoitado o Alufzio Leite, mais tarde ienomado livreiro na praga do Rio de Janeiro. Ficamos uns dias em Sdo paulo e finalmente, com o Alufzio, retornamos ao Rio. 56 voltaria a 56o puui; tempos depois para conversar com fndio, que me deu noticias de Alberto. ;; II em pouco mais de um ano. Mas se a cida_ .de eraVoltaria a mesma, os tempos eram outros. Hospedei_me novamente em casa do querido Geraldo. Conversamos conversas do passado, lembramos os amigos o p"Ou_ go do exflio comum em La paz, allmde " naturalmente passar em revista a chamada conjuntura, exercicio a que se dedicam exaustivamente os militantes como se a roda da vida dependesse de suas avaliag6es. 129 da glt:O contexto politico j6erade exacerbagdo revolucion6rio ra fria. A via pacffica para o processo na Am6rica golpes de far"cia cortada com a sucessAo Vietnd dramaLu,inu. O apelo de Cuba, que a guera do esperanEas' O tizava,comovia corag6es e iniendiava numa rmensa Sie rra Che prometia transformar os Andes aspiraMaestra,dando curso n6o apenas a uma antiga gue assumlra gdo mas tambdm honrando compromisso do antigo com os vietnamitas, em Han6i, ap6s se retirar impossibiC;;g; belga desiludido em face da absoluta latinoudaie de articular o movimento revolucion6rio com Ho americano com o africano' Comprometera-se segunda Chi Minh e com o general Giap em abrir uma Unidos' No Vietnd' os amenfrente contra os Estados na Am6rica canos combatiam longe do seu tenit6rio; 6rea de inLatina teriam de lutai diretamente em sua Segunda flu0ncia. Giap valia-se da experiOncia da lma segun' Guerra Mundial quando os aliados criaram alemlo' feridafrentecontra o entao poderoso ex6rcito mas esdo de morte ap6s o embarque na Normandia' no varejo' o que ensinava: a hist6ria s6 se repete [u..iu jamais no atacado oscubanosestavamconvenctdosdequeosEstalegftima defesa dos Unidos iriam invadir sua Ilha, e a o ex6rcito norteera conflagrar o Continente forqando de que americanol diversas intervenE6es, deslembrados a desastrada intervenqlo na Repfblica Dominicana de Estado' mudaria o comportamento do Departamento nos exerque passaria a apoiar sua politica diretamente milita.i.io, dos pafses vizinhoi, fomentando golpes jamais os inres, assessorando-os, financiando-os' mas pequenos vadindo com suas tropas para inaugurar 130 Vietnds pela Amdrica Latina a dentro. O comandante Ernesto Che Guevara voltara inc6gnito de Cuba viajando, desde Paris, no Ilushin que Fidel recebera de presente de Kruschev e que dispunha de tanques especiais que lhe permiti am fazer a travessia Moscou-Havana sem escalas. Al6m de Castro, poucos chefes militares cubanos esperavam o Che, cuja viagem fora cercada do maior sigilo. Fidel e Che, sozinhos, como de costume, conversam por quarenta horas seguidas. Acertaram seus ponteiros em defesa de Cuba e da revolugdo. No dia em que partiu, Fidel organizou uma despedida para o companheiro, mas disse aos demais convivas que se tratava de um dignitdrio estrangeiro. Ningu6m reconheceu o Che, o disfarce estava perfeito. A teoria do foco ganhava adeptos. Seriam instaladas trds frentes na Bolivia, de onde partiriam colunas e se encontrariam com outras que viriam do peru, da Argentina e do Brasil, esta organizada no Uruguai. O foco boliviano serviria como centro de adestramento militar e reenviariaparuos paises de origem os quadros j6 treinados. Os povos reviveriam suas lutas coloniais anticolonais, e um novo Simon Bolfvar estaria a caminho para resgatar soberanias perdidas. No inicio de 1966, seria aberta a lu Confer0ncia Tricontinental, em Havana, marcada pelo aprofundamento do j6 declarado conflito sino-sovi6tico. No riltimo dia do encontro, o Senador Salvador Allende prop6e a criagdo da Organizagtro Latino-Americana de Solidariedade (Olas), afinal aprovada pela unanimidade das vinte e sete delegag6es presentes, uma espdcie de c6pia do Komintem dos anos 30. t3l ilI Encontro o indio no Viaduto do Ch6 no final da tarde, hora de intenso movimento, o que protege a clandestinidade. E logo sou prisioneiro de seu forte abrago. Sua alegria era contagiante, esquentava a noitinha fria da garoa. Mas n6o impediu a chuva que de repente caiu pra valer. Refugiamo-nos num restaurante e botamos a conversa em dia. Preparava-se para viajar a Havana, via Praga, e participar da Confer€ncia de Solidariedade dos Povos da Amdrica Latina. Dava cumprimento d resoluEdo do Comit6 Central, que apoiara as decis6es da Confer€ncia Tricontinental de Havana. Se voltaram atr6s o problema n6o era dele. Amrmaram firulas jur(dicas para demrbar uma eleig6o em um partido clandestino. Pouco importava, a revoluglo prescindiria dos velhos partidos voltados exclusivamente para a URSS e para sua acomodada politica de superpot6ncia e por isso deformados. Os sovi6ticos querem preservar seu imenso parque industrial dos azares de um confronto com os americanos. A necessidade dos paises subdesenvolvidos 6 outra: s6 sairlo da depend6ncia econdmica do imperialismo atrav6s da luta armada. N6o serd assumindo posigio caudat6ria d polftica sovidtica que poderemos avangar o socialismo no mundo. Os sovi6ticos que cuidem dos seus interesses, n6s cuidaremos dos interesses do povo brasileiro. Pondero que a bruxa est6 solta e nada favor6vel aos revolucion6rios latino-americanos. Recordo o assassinato de Guillermo Lobat6n, no Peru; Camilo Torres na Col6mbia, nosso amigo comum apresentado que r32 foi por Thiago de Mello em praga, estaria lembrado? E os quase trinta dirigentes revolucion6rios guatemaltecos monos em uma mesma operagdo, al6m de Tfcios Lima trucidado em seguida? E Fabricio Ojeda na Venezuela? A guerrilha 6 apenas uma forma de luta, n6o pode ser transformada em estrat6gia do movimento. Se n6s apren_ demos com Cuba e o Vietn6, o inimigo tamb6m. g- inri_ til tentar reproduzir entreveros que seriam eliminados por simples helic6pteros. A populagEo ainda nio est6 mobilizada contra a ditadura. para que queimar etapas? A decisdo de declarar gueffa continental contra o, Er_ tados Unidos 6 uma rematada loucura. Fomos derrota_ dos politicamente pelos militares. precisamos derrot6los politicamente, ora. Iniciamos entendimentos com Jango, Juscelino Kubitschek, Lacerda e naturalmente Prestes. A id6ia 6 organizar uma ampla frente pela redemocratizagdo, anistia ampla, convocagio de uma Assembl6ia Constituinte... indio corta minha arenga. - VocO nlo quer jantar? ConheEo uma cantina ex_ celente aqui perto. E melhor do que ouvir esse seu papo furado. Voc6s vdro fazer alianga com nossos inimieoi e obrigar o regime a reagir contra vocOs. E de uocCs a escolha. Nossos caminhos se separam sem retorno. E ante o meu estupor. - Mas n6o a nossa amizade. Vamos jantar e tomar um bom vinho porque a vida vale o que vale. Caminhdvamos em diregdo h praga do patriarca quando ele se lembra de alguma coisa, p6ra e segura meu brago. - VocO conheceu na Argentina um m6dico chama_ do Alberto ndo sei o qu6? 133 sim. Hospedei-me na em casa dele quando passei por Buenos Aires, em 1965. Por qu6? Perguntou-me por voc6, em Havana. Ficaram amigos, n6o? - Ficamos. - Ent6o a notfcia ndo 6 boa. - Que notfcia? - Os pais dele morreram... - Morreram? Como? - Se mataram. Abriram o g6s e moreram juntos. - Conheci, - IV indio iria morrer numa cilada armada pela repressio. Os jornais noticiaram o crime e estamparam a foto do morto no carro ao lado de sua companheira, tamb6m assassinada. A versflo da policia 6 que ele teria resistido i ordem de prisdo e tombado no tiroteio. Mentira' Indio fora morto numa tocaia, i traigdo. Eu estava numa reunido quando chegou a not(cia; ficamos muito abalados' Diverg6ncias polfticas? Qual, todos morremos um pouco naquela noite. O delegado que o assassinou seria morto, mais tarde, por agentes da repressdo: acerto entre eles, queima de arquivo. V Tempos depois ao voltar para casa do batente a empregada me informa que uma pessoa' um homem, havia telefonado v6rias vezes. Falava diferente, como 134 se neo fosse brasileiro; mas portugu6s n6o era, tinha certeza. Falando no mal e o telefone toca novamente. Desta vez atendo e reconhego a voz do Alberto: ,,Como estds ? " Eu estava bem. E ele, onde estava? Na rodovi6ria. Precisava de um favor. Como n6o. Esperasse que eu j6 estava chegando. Nesse tempo eu morava no Grajari e foi s6 montar no fusquinha e num pulo chegar d Rodovi6ria Novo Rio. E ld estava o Alberto velho de guerra - mais velho eu vi; e mais guerreiro, presumi. precisava que eu o levasse a Slo Paulo. Perfeitamente, mas amanh6. Necessitava preparar o catro, fazet uns arranjos no escritdrio e avisar d secret6ria da Faculdade que n6o daria minha aula. Alberto ficaria em minha casa por uma noite e 16 pelo meio-dia poderiamos tomar o rumo de 56o Paulo. Na viagem contou-me um pouco de sua vida. Com a morte dos pais (n1o falou da trag6dia, mas verifiquei que apeftava nervosamente as mdos) e j6 formado, resolvera fazer resid6ncia num hospital de sua terra natal, Ros6rio, tomando o caminho inverso dos colegas de 16 que procuravam a capital para a primeira especializa96o. Trabalhava em um hospital priblico e mantinha consult6rio numa zonadaperiferia para atender os mais pobres. Ia tocando a vida. E os tangos? Cultivando sempre. E satisfeito porque o talento dePiazzola era agora reconhecido no mundo inteiro. E Gardel, como eu n6o deveria ignorar, cantava cadavez melhor. O mesmo se dava, disse eu, com o nosso Orlando Silva: cada dia que passa sua voz dos primeiros tempos ainda mais se apura. Sobre Cuba ndo falou nada. E nem perguntei. Nessa atividade perguntas n6o s6o bem-vindas. 135 A noitinha chegamos a 56o Paulo e nos dirigimos d rua que abrigava o bar onde iria encontrar quem procurava. A rua ficava no centro e n6o foi dificil encontr6la; nem o bar. Entramos. Uma porta de vaiv6m abria-se para uma sinuca. No fundo dela um grupo de homens jogava em mangas de camisa. Ndo conhecia qualquer deles, mas minha atengio foi despertada por um que me apertou as mdos como se j6 tivesse feito o gesto mais de uma vez. N6o era apenas um forte aperto de mdo, comum entre companheiros que sabem depender da solidariedade para viver e por isso d6o alto valor a pequenas coisas como um aperto de mdo, que no simples da vida n6o se repara. De altura mediana, nem jovem nem velho, nem gordo nem magro, cabega e barba raspados, apenas os olhos claros chamavam a atenElo' Pareciam febris e ao mesmo tempo calmos. Deixei-o com a sensagdo de que n6o sabia quem era' mas tinha certezade conhecO-lo. Abracei Alberto com o sentimento de que nio mais o veria. Retive na mem6ria seu gesto acenando na porta do bar enquanto eu me afastava' Nunca mais o vi. VI Como sempre, hospedei-me com Geraldo. Saboreei sua conversa e apreciei a carne assada com molho de femrgem acompanhada de uma farofa com pouca farinha, muita cebola, muito ovo e como arremate uma salsinha pra deixar na boca o gosto do c6u. Tamb6m como sempre passamos em revista a conjuntura polftica, al6m de recordarmos a in6spita, por6m 136 hospitaleiraLaPaz; os amigos que 16 deixamos, os que se espalharam pelo mundo na di6spora imposta pela ditadura. Comuna velho, Geraldo ndo faziaf6 naguerrilha, era aventura cabeluda. Tamb6m n6o dava ponto para o trabalho de frente ampla. eual, a ditadura ainda iria ficar por muito tempo; s6 a ruptura entre os militares e os grandes empresiirios sustent6culos do regime 6 que abriria caminho parc a redemocratizagdo. Americanos e sovi6ticos haviam acordado com relagdo ds res_ pectivas 6reas de infludncia. A posig6o cubana era de desespero. L0nin tambdm achava que a perman€ncia da revoluEio bolchevique dependia de outras revolug6es na Europa desenvolvida. N6o deu e St6lin teve de cavar trincheiras em seu pr6prio territ6rio. Cuba depende da solidariedade internacional e da ajuda sovi6tica. Essa posigdo guerrilheira em nada a ajuda. para sobreviver, Cuba ter6 de recuar e compor-se com a polftica das grandes pot6ncias. A conversa estava boa, a comida supimpa, mas eu permanecia inquieto. Desassossegado que nio passou desapercebido ao amigo. E que fiquei invocado com um cara que conheci hoje, ou que hoje revi, ndo sei. Contei por alto, como convinha e Geraldo sabia, a viagem e o encontro na sinuca; a impressIo que me ficara de um dos companheiros. E como se eu jamais tivesse visto o cara mas identificasse seu aperto de m6o e sobretudo seus olhos: - Febris e calmos, seu Geraldo, como 6 que pode? 137 VII Passam-se alguns meses e leio nos jornais a eclosio da guerrilha na Bolfvia. Uma luz se acende em minha mente. Como o flash de uma m6quina fotogr6fica que retardou seu clarlo. Foi o Che que eu vira no fundo do bar em Sdo Paulo. 138 "A nossa infdncia, 6 minha irm6, t6o longe de n6s!', Manoel Bandeira Mateus Rosd Em meados de 1966, quebrava pedra em um pequeno escrit6rio de advocacia que dividia com dois amigos do meu bairro de Grajari: Reynaldo Gayoso e Gilberto Cabral. O escrit6rio consistia em uma sala no Edificio Marqu€s de Herval, na Avenida Rio Branco. Reynaldo e eu vivfamos num pendura danado. De fixo, Reynaldo tinha o modesto sali4rio de funcion6rio do INPS e eu o magro vencimento de professor. Gilberto, entretanto, jd era procurador da Caixa Econ6mica Federal e ainda defendia um bom sal6rio. Digo que o sali{rio do Gilberto ainda era bom, porque o golpe militar de 1964 elegeu, entre os seus muitos inimigos, os tesoureiros e os procuradores da CaixaEcondmica, e comprimiu-lhes os saldrios. Lembro-me que um finissimo colega meu de turma na Faculdade de Direito, Heitor Guilmar da Silva, infelizmente j6 falecido, tesoureiro da Caixa, contava ter ouvido, antes do golpe, a reclamagdo furibunda de um coronel do Ex6rcito indignado, porque ganhava menos que um tesoureiro da Caixa. Heitor, de natural calmo, virava fera: ,.Eu trabalho, ora". Mdrio Nunes de Alencar, outro colega nosso de turma, indagou irdnico se o coronel achava que ele ganhava muito e se, em contrapartida, ele achava que o coronel ganhava demais. "Exatamente", respondeu Heitor. Mi4rio deu sentenga: "Ambos t€m razdo,,. O tempo iria concordar com Mi4rio: achatou o sali{rio de ambos. 139 Ao final do expediente no escrit6rio, 16 pelas seis da tarde, tomava um pequeno lanche naLeiteria Mineira e me encaminhava para a Faculdade onde ficava a dar aulas atd vinte e duas e quarenta, aulas que voltaria a dar, na turma da manhl, a partir de sete e quarenta. Nunca soube o porquO dos quarenta, mas as minhas aulas comegavam ou terminavam invariavelmente em tanto e quarenta. Pouco antes das seis, costumava aparecer, no escrit6rio, o mddico Paulo Gl6ucio, meu contempordneo de Universidade, dileto amigo que me acompanhava no lanche, onde, fatalmente, pedia um requeijdo de PoEos de Caldas, segundo ele saborosissimo. Por mais de uma vez provei o tal requeijlo sem jamais conseguir encontrar qualquer gosto. E insfpido, diziaeu ao Paulo Glaricio. Qual, retrucava, 6 que voc6 n6o sente o gosto de saudade que ele tem. E nem podia. Se o sabor ligava o queijo s6pido a acontecimentos que s6 ele vivera, como 6 que eu podia, nele, distinguir sabores? Nem distinguir e nem argumentar, pois o amigo era psiquiatra, e psiquiatra 6 naEdo, como todos sabem, de pessoas que explicam as coisas dos outros enquanto mant€m avaramente, em segredo, os pr6prios mist6rios. 56 mais tarde iria compreender Paulo Gl6ucio e o seu requeijio. Vivi, quando menino, uma vida tdo feliz que ndo me dava conta dos apertos porque passavam meus pais, para nos da4 a meus irmdos e a mim, o conforto que desfrutdvamos. Privavam-se de tudo para que nada faltasse aos filhos. Ir ao teatro, ou mesmo ao cinema, ou jantar fora, era para eles um acontecimento raro. Anivers6rio de mamde, aniversdrio de casamento, ou quando entrava alguma graninha extra de alguma contabilidade que papai arranjava. Ap6s fazermos quinze anos, r40 meu irmao e eu comemor6vamos nossos anivers6rios jantando fora e indo a um teatro de revista, em que nos delici6vamos com as piadas picantes e com as mulheres peladas, n6o me lembro em que ordem. Nessas efem6rides, papai costumava pedir um vinho que muito apreciava, o Mateus Ros6, e nos deixava prov6-lo. Ach6vamos uma delfcia. Tia Leonor, irmi de minha av6 por parte de pai, casara-se com um portugu6s abastado e morava em uma casa apalacetada 16para os lados do antigo Derby Clube.Yez por outra, nos convidava para o almogo de domingo onde era servido, no varanddo da casa, um farto cozido regado ao bom vinho portugu6s: ora o Casal Garcia, ora o Mateus Ros6. Tinhamos permissdo para provar os vinhos. Que delicia! Homem feito, devezem quando pedia, em mensal almogo no restaurante Cabaga Grande com um grupo de amigos, o tal Mateus Ros6. Agozagdoerageral. Nem todos os vinhedos de Portugal dariam para fabricar a quantidade de Mateus Ros6 que 6 colocada no mercado, diziam. Tem at6 propaganda na televisdo americana, implicavam. Riam-se. Mas eu gostava. Muitos anos depois procurei tirar a limpo essa hist6ria de vinhos. Estava com Lricia, minha mulher, em Lisboa, no Thvares, esplOndido restaurante com uma linda decora96o do final do s6culo XIX, e famoso pela excel6ncia da cozinha e da soberba lista de vinhos. Seu Fernando, um portugu€s educadissimo, era o propriet6rio e principal maitre da casa. Jd nos conhecia, porque toda vez que iamos a Lisboa n6o dispens6vamos o jantar do Tavares. Como o sobrenome de minha mulher 6 tam141 b6m Tavares, seu Fernando via na coincidOncia, quem sabe at6 um parentesco: "Pois ndo somos todos portugueses, pois?" Era t6o gentil que me animei a perguntar-lhe sobre vinhos. "Tintos, naturalmente" - foi a primeira resposta. Quis saber o porqu6. "Bom, vinho 6 s6 o tinto. O branco 6 apenas uma bebida agrad6vel, pois." Deixou espago. O Mateus erarosado, nem tinto nem branco. Dai a pergunta: "E o Mateus Ros6, seu Fernando, 6 bom vinho?" Seu Fernando percebeu que a pergunta pedia uma resposta positiva. "E bom, sim. Desde que Vossa Excel€ncia n6o o beba." r42 "O segredo d a alma do neg6cio." dito popular Oespidoeocigarro Outro dia sonhei que estava fumando no Muro de Berlim. Acordei cismado. Que sonho mais escalafob6tico! N6o fumo e o Muro de Berlim j6 foi demrbado. Tem gente que pensa ser a posigdo em cima do muro extremamente confort6vel. A pessoa ndo tem de dar palpite. Guarda para si sua opini6o. Quando acontece algo de bom ou de ruim, invariavelmente anuncia orgulhoso: "Eu n6o falei?" Falou o quO? Falou nada, mas como conferir se na verdade ndo falou? O sildncio n6o 6 de ouro? E o murista sempre pode dizer que falou para Sicrano com Fulano, para Fulano com Beltrano e para Beltrano com o ministro da Justiga ou com o senhor Cardeal: como conferir? Mas 6 um ledo engano pensar que a posigdo em cima do muro 6 sempre confort6vel. No meu sonho absolutamente n6o era. E n6o era porque fui hostilizado por ambos os lados. Os guardas sovi6ticos rangiam os dentes para mim; e os guardas americanos os dentes rangiam. O que era um absurdo. J6 que o sonho recriara a gueffa fria, ent6o um dos lados teria forgosamente de me dar guarida, fazer-se simpdtico. Agente de um lado ou de outro. E se fosse agente duplo? Devia ser isso, os comunistas pensando ser eu agente do imperialismo internacional e os americanos na certeza de que era eu enviado de Moscou. E eu ali fumando. Sinuca de bico! No momento em que ambos os lados comegaram a ati143 rar em mim, talvezpelo barulho das arrnas, acordei banhado em suor. Dia seguinte, no almogo com dois amigos, Lufs Matoso e Roberto Percinoto, contei o ins6lito sonho. Acharam graga. A guerra fria refugiada no sonho j6 que a vida deu-lhe fim. A conversa escoregou para casos de categ6rica espionagem e cenas de tabagismo explfcito, que n6o me furto de contar. A KGB (antes da queda do Muro, naturalmente) enviou um agente a Lisboa para entrar em contato com o correspondente local do servigo, um agente portuguOs de nome Manoel Gongalves. As instru96es eram precisas: nada de telefonemas, chegar e ir diretamente do aeroporto h casa do espi6o, dizer-lhe a senha (Rosas sdo vermelhas, gardAnias sdo azuis), conferir a contrasenha (Nossos jardins sdo iguais), colher as informa- E6eseretornardbase. Dimitrov, agente veterano, cumpriu i risca as recomendag6es. Do aeroporto de Sacav6m tomou um t6xi diretamente para o enderego de contato. A( uma surpresa, em vezdacasa que constava no relat6rio que o agente decorou e rasgara, havia um edificio de apartamentos com dez andares. Dimitrov cogou a cabeEa, porque o agente secreto tamb6m coEa a cabega, e pesquisou os nomes alinhados no interfone, cadaum correspondendo ao respectivo botlo de chamada. Ai outro problema: havia dois Manoel GonEalves, no quinto e no d6cimo andares. O manual do servigo secreto recomendavaprud6ncia aos agentes em casos de emerg6ncia. Ent6o era simples, bastava apertar o interfone do quinto andar. Foi o que fez. E uma voz de homem atendeu ao interfone: t44 - Esta 16? Dimitrov, agente escolado, lascou a senha: - Rosas s6o vermelhas, gard6nias s6o azuis. - Perd6o, aqui 6 o Manoel Gongalves o alfaiate. O Manoel Gongalves espido comunista 6 no d6cimo andar. II Na ditadura do general Medici, todo cuidado era pouco. As regras mdximas de seguranga foram rigoro_ samente observadas para a reunido da diregdo encarregada de elaborar a proposta de resolugdo politica a ser apresentada ao Comit6 Central. A casa do subfrbio era segurissima. O caseiro, membro antigo do partido e versado na prdtica da clandestinidade. Todos chegaram noite. Vieram numa Kombi fechada e com os olhos rigorosamente vendados. O respons6vel pela seguranga respirou aliviado: tudo azul. E comegaram a trabalhar no documento. Comunista, como ningu6m ignora, fuma muito, e a concentragdo no exaustivo trabalho de redagdo au_ mentou em muito o consumo de cigarro, QUe a certa altura acabou. Ap6s muita discussdo, deliberou-se que o caseiro iria ao botequim mais pr6ximo fazer a compra. Comegaram as encomendas e cada um pediu a sua marca. Nesse momento, interveio o',assistente" com a voz da experi€ncia: "- Peraf'. Se cada um pedir uma marca diferente, t6 na cara que tem muita gente aqui. Clgro. Todos concordaram. Depois de muita discusslo chegaram ao consenso sobre amatca. Abasteci_ i r45 do de dinheiro, foi o caseiro cumprir a tarefa no bar da esquina. - Seu Manoel, me d6 dois pacotes de Continental, por favor. O portugu€s entrega os dois pacotes pedidos e comenta: - Como fumam esses comunistas! 146 " Se vocA rcve a sorte de ir a paris quando jovem, sua presenga continuard a acompanhd_lo pelo resto da vida, onde quer que vocA esteja, porque Paris 6 umafesta m6vel.', Hemingway, 1950. O regime de banhos em Oak Park, Illinois Ningu6m ignora que sou bi6grafo de Hemingway. Ningu6m se resume a mim pr6prio e ao meu editor (temeroso de que eu leve adiante o projeto), al6m de um reduzido grupo de amigos, sem falar naquelas pes_ soas de boa vontade que lOem as notas bibliogr6ficas que publico ao final dos meus livros, onde anuncio, entre as obras "em prepafo", Hemingway, e os anos loucos. Hemingway de Ernesto Hemingway mesmo; e os anos loucos tirados do livro de William Wiser, que tem como subtitulo "Paris na d1cada de 20,,, exata_ mente d 6poca em que situo o meu trabalho (em pre_ paro). Wiser acreditava que a Belle Epoque terminou em janeiro de 1920 quando Amadeo Modigliani, que morreu de meningite tuberculosa no Hdspital de la Charit6, foi enterrado no pdre Lachaise; e que os anos loucos propriamente seriam inauguradoi por paul Deschanel, doido de pedra, elevado i curul presidencial francesa por uma manobra politica contra o temi_ vel Clemenceau, manobra que promovera o maluquinho ao mais alto cargo do pais, afinal interna_ do em Malmaison, instituigdo destinada ao tratamento de mol6stias nervosas. r47 Deschanel teria sido o precursor dessa era, o presidente biruta fora provavelmente a evid6ncia de que Paris iria viver a ddcada de20 como les annds folles. Marcaram encontro, na Paris dos anos 20, exilados da lei seca americana, russos brancos que se pirulitaram do regime sovi6tico, prfncipes e condes, alguns de araque, mfsicos, pintores, escritores; marcaram encontro com uma cidade que se transformava e que iria modificar suas vidas, carreiras, expectativas, criando esperangas, enterrando ilus6es. Ao chegarem, j6 encontraram outros jovens americanos que a primeira Guerra Mundial atrairapara o continente europeu. Por 16 viveram ou perambularam Samuel Beckett, Stravinski, E.E. Cummings, John Dos Passos, T.S. Eliot, Gurdjiel Zelda e ScottFitzgerald, James Joyce, Nijinski, Pablo Picasso, Cole Porter,Ezra Pounde, Gertrude Stein, Geraldine Ferrar e Isadora Duncan, Ford Madox Ford, e miles e miles de outros. E naturalmente Ernest Hemingway, antigo voluntdrio da Croix-Rouge, motorista de ambulincia na It6lia onde foi gravemente ferido e tratado no hospital americano de Milio. Como volunt6rios, tamb6m serviram John Dos Passos e Agnes Von Kurowsky, por quem o jovem Ernest se apaixonaria definitivamente, mas dela levaria uma tremenda lata quando a moEa se casou com um coronel italiano. Em Adeus ds armas (1929),Hemingway descreve a ess€ncia dessa relaEdo em duas curtas p6ginas; antes, em uma novela (Uma pequenina hist6ria), narra seu desesperado amor por Agnes. No final da guerra, Hemingway volta aos Estados Unidos. Refeito da paixdo descabelada por Agnes, casa-se com Hadley Richardson; o casal decide viver em Franga. r48 Chegam a Paris (1921), vindos de Le Havre, e se hospedam no barato H6tel Jacob, adequado, portanto, i penriria do jovem casal; e fazem refeigOes no restaurunte Pr6 aux Cleres (iantar para dois entre 12 e 74 francos e vinho Pinard a sessenta c6ntimos), na esquina da rue Jacob com a rue Bonaparte. E logo o casal muda-se para a rue Cardinal lzmoine, 74; a partir de entdo, pode o leitor acompanhar a vida dos Hemingways em: paris 6 uma festa, livro p6stumo que cobre o periodo de sua vida entre l92l e 1926, editadopela Civilizag6o Brasileira e traduzido pelo saudoso iinio Silveira. O apartamento ficava ao lado da place de la Contrescape, onde tamb6m se situava o Caf6 des Amateurs, preferido por clochardsbeben6es do bairro, e que Hemingway evitava por causa do cheiro dos corpos sujos e do azedo da embriaguez. Hemingway e sua mulher aceitaram as condig6es extremamente prec6rias de sua moradia e se adaptaram perfeitamente i rude vizinhanga. Na loj a B o i s - Charb on-Vn, Hadley comprava vin ordinaire e na feira da rue Mouffetard legumes mais baratos, especialmente opoireau,que preparava d francesa: cozido e servido frio com vinagre e azeite. Um pastor de cabras, com sev tropeaz, amanhecia na Place de la Contrescape e abastecia os moradores com o leite tirado na hora. Para escrever, Hemingway alugou um quarto narue Decartes n" 39, onde constava ter falecido Verlaine. Mudou-se posteriormente para o no113 da rue Notre-Dame-des-Champs. Depois, ao separar-se de Hadley, Hemingway foi morar em um ateliO na rue Froidevaux - informagdo que colho em Wiser, pois 149 Hemingway omite em Paris 6 umafesta sua separagio com Hadley, embora admita seu romance com \mapt quena por quem me apaixonara. Voltando de Nova Yorque, deteve-se em Paris para ficar com a pequena, mas retorna d estaEdo de inverno de Schruns, na regido austriaca do Voralberg, reencontra Hadley e se admira de seu interesse por outra mulher que n6o ela. Contudo, bastou voltar a Paris, no fim da primaver\ para que a outra coisarccomegasse. Com Pauline teria morado em dois lugares diferentes, pelo menos. A Hotcher (Papd Hemingway) Hemingway revelou que morara com Pauline nos arredores de Montmartre; em outro trecho da biografia, ao atravessarem a p6 a Pont Royale paru almogar no Closserie de Lilas, longe, portanto, de Montmartre, o escritor mostra ao amigo um edificio alto e estreito onde morara com Pauline no riltimo andar. EmParis 6 umafesta, Hemingway narra os caminhos que percorria em Paris. Certa feita, sob a chuva, Hemingway ultrapassa o Lyced Henri Quatre, a velha igreja de Saint Etienne du Mont e a Place du Panth1on, corta i direita chegando ao lado mais protegido doBoulevard Saint-Michel, continua a descer, passa pelo Cluny e pelo Boulevard SaintGermain, at6 chegar a um bom caf6 na Place SaintMichel. Costumava visitar o apartamento-estridio de Gertrude Stein, narue de Fleurus, no 27 , depois de passear pelo Jardin de Luxemburg e freqientar o Musde de Luxemburg. Atravds do parque, Ernest cortava caminho ao voltar para casa na rue Cardinal Lemoine. Fechado o parque, ele teria de caminhar ao longo dele pela rue Vaugirard. Tamb€m narra a maneira mais curta de chegar-se ao Sena a partir da rue Cardinal Lemoine, 150 que consistia em descer esta rua at6 o fim, enfrentando a sua parte mais ingreme e, ap6s atingir seu trecho pla_ no, cruzar o Boulevard Saint-Germain e chegar a um lugar que o escritor d 6poca achava triste e onde se localizava o Halle aux Vins, mercado que n6o guardava os encantos dos seus cong6neres parisienses, parecen_ do mais umdepdsito militar ou um campo de prisionei_ ros. Do outro lado desse brago do Senaficava (e fica) a IIe St. Louis; podia-se atravessar at6 elaou virar h esquerda e passear pelo cais, atd a Notre Dame e a Ile de la Cit6. Ao longo do cais, o escritor enconrava, nos balcOes de livros de segunda m6o, livros americanos por pregos muito em conta, vendidos pelo valet de chambre dos quartos que o Tour d'Argent ent6o alugava no andar de cima do restaurante, que ainda concedia descontos aos h6spedes do pequeno hotel. N6o havia outros sebos que vendessem livros americanos at6 o Quai des Grands Augustins, mas a partir dai e at6, al€m do QuaiVoltaire havia v6rios, adquiridos dos h6spedes do Hdtel Voltaire, que 6poca detinha clientela endinheirada. EmPapd Hemingway, o escritor conduz Hotchner ds vizinhanEas do lugar em que ele primeiro vivera em paris. 'Comegamos pela Rue Nofe-Dame-des-Champs, onde ele morava sobre uma serraria, e, lentamente, passamos por restaurantes, bares e lojas familiares, at6 chegarmos ao Jardim de Luxemburgo e ao seu museu, onde, disse-me ele, apaixonara-se por certas telas que o haviam ensinado a escrevef '(Hotchner). Af temos umainexatidiodo narrador ou a deliberada intengdo do escritor de pular a primeira morada narue Cardinal Lemoine,e iniciar a rememoragdo pelo segundo enderego. Ndo importa. O que vale 6 que i l5l esse registro deu-me aidl\apara o projetado ensaio, que chamei de biografia i falta de um nome mais preciso' Mas ndo ser6 propriamente uma biografia, como ver6 o leitor se persistir nestas linhas; meu modesto trabalho n6o ir6 se acotovelar com o excelente livro de Jeffrey Meyers considerado o melhor bi6grafo de Hemingway' e que langou, em 1994, Scon Fiugerald: a biography, o atormentado escritor que tinha em Hemingway o seu her6i; ou o j6 referido Papd Hemingway, registro de quatorze anos de convfvio enffe o escritor e A. E. Hotchner, que ainda publicou, pelaVendome Press, New York, Hemingway and his world. Illustrated Autobiography (1989), obra que tenho em cuidadosa versdo francesa e esmerada ediglo da Societ| Nouvelle des Editions du ChAne, que a ffaduziu por Hemingway et son univers (1990), e que comprei, no inue*o de 1993, na Shakespeare and Company, importante livraria que foi de Silvia Beach, fundamental na vida dos escritores da Paris dos anos vinte e que daqui a pouco vai aparecer por aqui; ou, de Carlos Baker, Ernest Hemiigway: Histoire d'une vie (Roberto Laffont, 1989); ot Papdde Gregory Hemingway (Danoel, 1976); ou ainda Hemingway de Jeffrey Meyers (Belfond, 1987)' Meu projeto n6o pretende tampouco ser uma recriaglo, a partir de documentos, de determinado momento da vida de um personagem. No pref6cio com que abre o autobiogr6ftcoParis 6 umafesta,Hemingway deixa ao leitor a decisdo sobre a natureza da obra: hist6rias da sua vida ou frcgdo' Se o leitor preferir considere este volume corno um traba' Iho de ficEdo. Seja como fo6 ficgdo ou ndo, hd sempre a possibilidade de que lance alguma luz sobre aquilo que foi escrito como matdria de fato. t52 Perfeitamente. proponho_me i criagdo, biografia fabulada, uma fantasia, por assim dizer. passeariicom Hemingway na paris dos anos dois mil e voltarfamos sobre seus pr6prios passos entre l92l e 1926. Como veria o escritor a paris atual? Comegaria pelo Au Clairon des Chausseurs, na -. colina de Montmertre, na place Du Tbrtre, no infcio da rue Norvins. Como veria Ernest, Au Clairon, hoje? E a Place Du Tbrtre? voltada inteiramente para o turismo, a regido tambdm abriga expatriados, mas ndo america_ nos artistas e russos exilados, mas 6rabes, africanos, indianos, paquistaneses, iranianos, latino_americanos, gregos' o que a transforma em um ponto temido de dia e perigoso i noite. O desemprego estrutural alimenta o preconceito de setores da populagdo contra o emigra_ O restaurante parece manter um bom servigo. O aten_ *. dimento 6 feito por gargons vestidos a carilter,seja 16 o. que se entenda por blusas com as cores da Franga, boi_ nas tipicas (v616) e umas folgadas calEas de marinheiro ou coisa que o valha. A praga 6 tomada por pintores que teimam retratar os turistas e outros que exp6e- ,uu, telas. O produto final, dos retratos e das pinturas, 6 so_ frivel. Mas oferece oportunidade de trabalho, afinal o que mais importa. E quem sabe um novo Modigliani, ainda an6nimo, ndo estar6 por ali a encerrar uma 6po_ ca?; e um novo Picasso, ainda ndo descoberto, a iniciar outra? Ser6 que Hemingway, t6o ligado i pintura, n6o saberia reconhecer um gOnio entre iantos artistas? Andei bispando quadros e encontrei alguns muito bons. Mas meus conhecimentos de pintura s6o modestos. ,,O que voc6 acha deste quadro, papd"? 153 inac6o peregrlna9 longa peregnnagau E assim comegariamos uma longa pela Paris dos anos vinte apreciada com o olhar do fi- nal do s6culo vinte. Andei locando Paris 6 umafesta no natal de 1993' o Mas, infelizmente, perdi as notas ou as ndo encontrei' que vem a dar no mesmo, esquecido que ando' 4:tit: hotel de mem6ria, n6o me lembro doHOteI Jacob, o tal abriteria barato na rua do mesmo nome que primeiro gado os Hemingways logo que aportaram em Paris' Na -rue Jacob, tenho o iegistro, no Gault Millau' do Hbtel proAngleterre, antiga embaixada da Grd-Bretanha que clama, em placa afixada d porta, o escritor como seu h6spede iluitre. O hotel foi remodelado, tem amplos jarquurto. e confort6veis banheiros, al6m de um belo di- um sal6o com piano. O restaurantePrd aux cleres' jacob e Bonaparte, ndo mais exis" na esquina das ruas te; assim como desapareceu o restaurante Michaud' antes situado entre u iu, des Saints PDres e a rue Jacob' jantar e onde os Hemingway viram a famflia de Joyce grano qual tamb6m comeram quando descolaram uma na nas corridas. de Gertrude Quem sabe uma visita ao antigo estridio Stein, tomando a Place de l'observatoire e atravessando os jardins do pequeno Luxembur7, para entSo ga- nhataruedeFleurus?MissSteinter6sidomaisuma personagem do que uma escritora consagrada' Ela e o escritor tornaram-se muito amigos, mas a amizade terminou quando Hemingway su{preende uma conversa entre ela e sua companheira Alice B' Toklas que o constrangera a ponto de perder a naturalidade em uma relagao antes muito forte. Como antes dedicara um capftu- lodoParis6umafestadescritora(MissSteinPontifi- r54 ca), _Hemingway vai dedicar outro ao modo pelo qual minhas relag1es com Gertrude Stein ,hegorim oo i* (Umfinal bastante estranho). parece que o dir{logo [ue entreouviu desgastou a ligagdo de am-bos. fopipoiu_ ria saciar minha curiosidad.l O qr" ouviu Oe iao gruu. a ponto de terminar uma amizade dessaforma tdo-estfi_ pida? De 16, atravessamos paris novamente para chegar ao Harry's Bar de New yorl6 na rue Dainou. quEm viaja com a imaginagZo ndo precisa de roteiros, issim como quem estd perdido n6o escolhe caminho. Hem pediu ufsque e meia lima fresca. E contou que *rr" bar, ap6s botar para fora um ledo que teimavaim defe_ car no sal6o e atirar na rua seu dono, um antigo pugilis_ ta de peso meio-m6dio,papdcomegou a escrever Adeus ds Armas: j6 que estava se tornand-o t6o agressivo com le6es, considerou sensatamente ser melhor canalizar suas energias em um novo livro. E assim o fez. No Boulevard des Capucines, do outro lado do Cafd de la Paix, ndo longe do Harryb, ficava o Le Trou dans le Mur, cuja entrada custava-se a achar, naturalmente para honrar o seu nome. Tomando conhecimento de que Haroul Loeb, o miser6vel Robert cohn de o sol tambam se revanta, gostaria de mat6-lo terminantemente, Hemingway telegrafou_lhe dizendo que estaria durante as t€s noites seguintes no Buraco di parede it espera do desafeto, que n6o apareceu. Ernest escolheu o Le Trou por ser a boite inteiramente espelhada, o que evitaria um ataque d traig6o. Mas se a casa tinha alsum encanto a perdeu inteiramente. Se os gregos to_iu_ de assalto os restaurantes do euartier Latin, os vietnamitas se fizeram donos de algumas das antigas 155 o clima boites da cidade - eles entraram e expulsaram parisiense. Qual seria a opinido de Papd? de E assim visitamos o-Closserie de Lilas' o CafE a Flore, o D6me(o mais antigo caf6 de Montparnasse)' a conRotonde, o Select, a Coupole, o Lipp' Botamos Ford' Ezra versa em dia com Jaym"t Joy"t, Ford Madox perdoava Pound, a bondade em pessoa a quem Ernest seu dester aderido ao fascism-o mas eu ndo perdoava F' pr""opor Dostoievsky. T. S' Elliot, John Dos Passos' 'icott iitzgerald. E visitamos a Shakespeare and na rue de Company, n6o mais na rue Dupuytrm ou l'Oieon', mas j6 en face de Notre-Dame' em SaintfrenMichel.Sylvia Beach, que habitava uma nuvem em livros, te d livraria, certamentl continuava a emprestar neg6cio' o -u, ugoru um microcomputador gerenciava Ent6o, PaPd? e Hemingway estava cansado' Tomamos o metrd ao barato saltamos em Saint-Germain' Dirigfamo-nos primeiro o abrigara, existisse ou n6o' H6tet Jacob, que -Papd mostrava-se-profundamente irritaque import a? o do. O ih"iro de corpos suados deixava insuport6vel metr6nessefinaldevereo.Disse-mequedefinitivamenem geral e te o incomodava a falta de banho do europeu em do parisiense em particular. Empenhou-se' ent6o' .*pli"- pormenorizadamente o regime de banhos em Oat part, Illinois, sua fria cidade natal' Bom, mas isso, quem sabe?, fica para outro livro' Vida que segue. 156 Bibliografia do autor ..CARTAS CONSTITUCIONAIS, TMPERTO, REPUNTTCE A AUTORITARISMO, Ensaio, Critica e Documentag6o,,, (Direito constitucional' Hist6ria constitucional. Direito comparado,' ili;;;" Iglo_utr, t9e7),,,A CoNSTrTUrqAo NA HrST6RrA, onicCira c. REFORMA" (Direito constitucional. Hist6ria constitucionur.-nir"it Comparado, novembro de 1993, Editora Revan). ,.MEMORIAi: QUASE UMA AUTOBrgSl{FrA,, (tss4, loit"i" n""""J; "coNTRoLE Do JUDICIARIO, Doutrina & controvd*ru" (oir"iio constitucional. poder Judicidrio, 1995, Editora Revan). -CIDADANiA PARTIDA - A M6culaj"_\i{l(Ensaio, 1966, Editoru n"uunl. ;;A CONSTITUIqAO E O DIREITO NNiEiUON, O FENOMENC' OE RECEPQAO'; lDireito Constitucional. Centro de Documentagio e Informagdo da cdmara dos Depurados, Brasflia, ress, oistriuuiJJ pera Editora Revan, Rio de Janeiro). "NovA LEI DE EsrRANGEIRos,,, PLG Editora, Rio de Janeiro, t98l; ..pENHOn Oe f.inenOeie,,, CPCD, Brasilia, l98l; ..CADAVBR BARATO,,, Editora paffain-io de Janeiro, 1982; "RU_DE TRABALHO", CPCD, n.asniu l-t8l;-;O P_Ey! FERIDO", Brasilia, Editora Escopo, l9g6; ;ife-_ PRESENTAqAo & CoNSTITUIQAo',, plitoia Timbre,'nio Je Janeiro, 1990; .,BATEAU MOUCHE: O NeUiiildrii"Xj PRocESSo", Edirora Timbre, 1990. "NorAs A aoNsiiiilrsA5 BRASILEIRA. COMO FORAM CONVOCADAS_-A' CONSTITUINTES", Rio de Janeiro, l9g6; ,.SISTEMA DE GOVERNO: PRESIDENCIALISMO oU PARLAMENTARISMO. ,.CHACINA Rio de Janeiro, 1990; NA SERRA,,, Rio de Janeir", lqgOi ..REFORMA -T CONSTITUCIONAL COM QUORUM REDUZiOC' GOLPE DE ESTADO", Rio de Janeiro, t9912; ,.REVisao sEOJpE DE ESTADo", Rio de janeiro, 1992; .;eUEM NAO S;B; n#Ail XINGA A DEUS'', Rio de Janeiro, 1993;.bNa nsFEsA DoS PRESOS PoLiTICos: PoR UMA eNrs.ira eupLa, GERAL E IRRESTRITA",-Coordenagdo da Cdmara dos Deputados, nrasitiu, I gSO."COMISSOES PARLAMENTARES ON TNqdNNITO _ AICANCC e extenslo dos poderes di:qp!r: (_pareceres),IAB/Ed. O"rtuqu", ieeb. ,,O Literatura: SApATO DE HUMpRfry sOCani;-a;;;;;j Timbre Livraria, Rio de Janeiro, 1996;2 ed., Editora Revan, Rio de Janeiro, 2001; "BECO DAS GARRAFAS; UMA LEMBilNC;; (romance), Editora Rey1n, Rio de Janeiro, 1994;.,ALMOAO'DE GANSo" (romance), philobiblion Livros de Arte, Rio de Janeiro. r57 do Rio de Janeiro)' 1985; "O JEITO DO RIO" (crdnicas da cidade No estrangeiro: 1985' p-t ifoUiUfion Livros de Arte, Rio de Janeiro' in ..cr6nicas Brasileiras", University Press of of Florida Center for fatin American Studies' University Concurso fioriOa, Fl6rida, 1994 (Antologia)'Obra coletiva: i'ioatte, Prefeitura da Cidade do Literario Stanislaw Pontg Preta,;o Rutco DE HEMINGwAY" Ri; e" Janeiro, 1996, conto de Contos e Poesias Poeta Nacional i;;";;.t honrosa).Concurso de Janeiro' 1996' conto Rio lugar), (primeiro iiuno Atnuro Pereira Teses: "A "O SAPATO DE ffUUppgney BOGART" DA FENoMENo o c6NiiTiurqEo E ootneno ANTERIoR' DA PRESIDENTE Do GCEpcAo.. o IMPEAcHMENT iiepusiicA' uu esruDo DE cASo"' (Tese com qu-e foi ;LsAixo A pICHAqAd': para Professor aorovado em Concurso Priblico de Provas e T(tulos Universidade ili;;;i"-;o oir"ito e Direito constirucional dedaDocumentagao Federal Fluminense, 1993. Publicada pelo centro da Cdmara dos Deputados, Brasilia' t!e!l; -f CONTROLES A CONTNOLE EXTERNO DO Livre de Concurso ;Oij;R JUO-rcfAnfO" (Tese aprovada no 1995); "A Docente da Universidade Gama Fittto, Rio de Janeiro' & AUToRITARISMo' REPUBLICA consrlfntSoo, rrrapEnro, concurso de ensaio, critica e documentaglo" (Tese aprovada no do Universidade da Professor Titular de Direito Constitucional Em prenlt-rg, , .'f Estado do Rio de Janeiro, 1995)' REFoRMA"' ciiNsrriurqAo NA HIST6RIA, oRIGEM &"VINTE ANOS Editora Revan, segunda edi96o revista e ampliada; G-\fLXU^l.' NXij'e-Neoil'-iro-un."); "s9u Loucb PoR 1I PAIXAO" DE UMA icroni"ar); "NITER6I:-CRoNICAS CARNAVAIS" (novelas SETE E i.iOni"url;:.OURS MANHAS E OS ANOS LOUCOS" (ensaio); ;rtaenqiies REBELO: A CHAVE Do RoMANCE" (ensaio); "urio.uri;'"HEMINGWAY ..ildi6-RIA p etronrrARlsMo No DIREITO BRASILEIRO'' "ONDE YQ\}EM AS ESTRELAS" trririOri" constitucional); ..coMBATENDO NAS TREVAS"(acontecidos nos ii"rnurunqur). "-f"f"rt""iao CONSTITUICAO: tempos da rePressdo) 158 Se procurar nas livrarias um livro da Revan e n6o encontrar encontre-o em nossa loja na Internet: www.revan.com.br Todos os nossos titulos estdo 16. Voc€ poder6 comprar escolhendo a forma de pagamento (cart6o, cheque ou dep6sito bancdrio) e receber6 a compra em sua casa. Estamos tornando nossa pdgina mais atraente. Cada dia mais, vocl poderd ler ld resenhas de imprensa, capitulos de livros e, em breve, poderd tambdm falar por e-mail com nossos autores e encontrar outras atraQdes. Atendemos tamb6m a livrarias. diretamente. Se preferir, podemos atendO-lo por telefone, fax ou carta. Editora Revan Avenida Paulo de Frontin, 163 20260-010 Rio de Janeiro, RI Nossos e-mails: Editorial: [email protected] Vendas: vendarev Tel:21-5027495 Fax:21-2736873 @ revan.com.br Divulgagdo: [email protected]
Documentos relacionados
Untitled - Marcello Cerqueira
Foucault a Agamben) descrevem - ou conceituam como a normalidade do estado de excegdo. O conceito de estado de excegdo 6 do jurista alem6o Carl Schmitt', que o justificava afirmando que a soberania...
Leia mais