Quando os 20 anos da Constituição brasileira cruzam
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Quando os 20 anos da Constituição brasileira cruzam
Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery http://re.granbery.edu.br - ISSN 1981 0377 Curso de Direito - N. 5, JUL/DEZ 2008 Quando os 20 anos da Constituição brasileira cruzam-se com os 50 anos do caso Lüth Joana de Souza Machado∗ RESUMO Este artigo propõe uma reflexão sobre as conexões que se estabelecem entre a Constituição brasileira de 1988 e o Caso Lüth, no ano em que completam, respectivamente, 20 e 50 anos. O artigo trabalha com a hipótese de que há uma influência tardia e pouco deliberada dos parâmetros fixados no Caso Lüth sobre o Direito Constitucional brasileiro contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Constituição brasileira, Caso Lüth, (Neo) Constitucionalismo. ABSTRACT This article considers a reflection on the connections established between the Brazilian Constitution of 1988 and the Lüth Case, in the year in which they complete, respectively, 20 and 50 years. The article works with the hypothesis of that there is a delayed and little deliberate influence of the parameters settled in the Lüth Case on the contemporary Brazilian Constitutional Law. KEY-WORDS: Brazilian Constitution, Lüth Case, (New) Constitutionalism. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-RJ), Professora de Teoria da Constituição, Direito Constitucional e de Direito Financeiro da Faculdade Metodista Granbery (JF/MG). ∗ 2 1- INTRODUÇÃO “Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão” (Carlos Drummond). Aniversários, assim como as viradas de ano, acabam constituindo bons pretextos para balanços, reflexões, e outras espécies do gênero. Talvez haja uma dose de artificialidade nessa lógica. Dois amigos passam meses sem se falar, mas no dia do aniversário de um deles, o outro não economiza palavras de felicitações, demonstrações de cumplicidade, elogios. Esse processo é mesmo curioso, havendo até quem, empolgado com o contexto comemorativo, passe a invocar razões transcendentais para os laços de amizade. Da mesma forma, o aniversário de um documento do porte de uma Constituição parece estimular uma onda de otimismo, ou mesmo um olhar mais generoso sobre o texto que se torna mais velho. Possivelmente haverá aqui também aquele que, empolgado com o contexto comemorativo, passe a atribuir ao presente ano alguma especialidade na história constitucional brasileira. A tentação é grande. Este ano, de 2008, acomoda importantes marcos temporais, como o centenário de nascimento de João Guimarães Rosa (27/05/1908); e o de morte de Machado de Assis (29/09/1908); 30 anos de revogação do AI-5; 200 anos da vinda da Família Real ao Brasil; 50 anos da primeira vez em que este país ganhou uma Copa do Mundo; no plano jurídico, 20 anos da Constituição brasileira; 50 anos do célebre Caso Lüth na Alemanha, 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos; entre outros eventos que possam contribuir para a sensação de que se trata mesmo de um ano peculiar. Os chineses possivelmente responsabilizariam o número oito, contido neste ano de 2008, por toda a convergência de acontecimentos, já que, como divulgado ao mundo, pela ocasião da abertura dos jogos olímpicos – às 8h, do dia 8/8/2008 –, o número oito lhes desperta um significado especial, ligado à idéia de prosperidade, fortuna, alegria1. 1 Conforme divulgado pelos principais meios de comunicação do mundo. Conferir, a título de exemplo, artigo divulgado por meio do jornal Folha de São Paulo, no dia 07 de agosto de 2008, intitulado “Superstição, segurança e tecnologia se misturam na abertura de Pequim-2008”, no site: <<http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u430877.shtml>>. 3 Antes que um eventual leitor amante do esoterismo já se empolgue, ou que o mais cético desista do empreendimento da leitura, importante esclarecer que, apesar do título que leva, e da introdução feita até o momento, o presente ensaio não tem como objetivo identificar alguma relação cósmica entre o ano de 2008, a comemoração dos 20 anos da Constituição brasileira e a dos 50 anos de Caso Lüth. Não exatamente por objeção à tese chinesa da especialidade do número oito, conveniente a quem, como a autora desse ensaio, tenha nascido exatamente no dia 08/08; mas porque outra investigação, em que o elemento temporal adquire também algum relevo, apresentou-se mais palpável à proposta desse trabalho. Entre tantos eventos comemorados no ano de 2008, a escolha de se refletir conjuntamente sobre os 20 anos de Constituição brasileira e os 50 anos de Caso Lüth não é propriamente aleatória. Pretende-se, com o ensaio, sinalizar a incorporação – tardia e pouco discutida – dos parâmetros fixados no Caso Lüth pelo Constitucionalismo brasileiro moldado sob a vigência da Constituição de 1988, mais especificamente, à época do seu aniversário de 20 anos. 2 – HÁ 50 ANOS ATRÁS, O CASO LÜTH No dia 15 de janeiro de 1958, a Corte Constitucional alemã, Bundesverfassungsgericht, proferiu uma decisão acerca de um caso que se tornaria mundialmente conhecido como o “Caso Lüth”2. Tratava-se de atribuir solução jurídica definitiva a uma longa disputa na Alemanha entre dois atores privados: (1) Erich Lüth, Diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo; e (2) Veit Harlan, famoso cineasta alemão. A disputa teve início em 1950, quando Erich Lüth, na condição de crítico de cinema e diretor do Clube de Imprensa na cidade de Hamburgo, resolveu fazer manifestações públicas incentivando a realização de um boicote ao filme “Unsterbliche Geliebte” (A Amante Imortal), dirigido naquele ano por Veit Harlan. Em verdade, as manifestações não atacavam propriamente o filme, um romance inofensivo; mas, sim, o histórico do cineasta, intimamente ligado ao movimento nazista3. 2 O inteiro teor da decisão pode ser conferido, em português, na obra: SCHWAB, Jürgen. Cinqüenta anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Trad: Leonardo Martins e outros. Montevideo: Konrad Adenauer Stiftung, 2006 - BVERFGE 7, 198 (LÜTH-URTEIL) – p. 381-395. 3 SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 383. 4 Veit Harlan havia produzido, durante o 3º Reich, o filme “Jud Süβ” (1941), que ficou conhecido como aquele que mais teria contribuído, na Alemanha, para a difusão do ideal nazista, do ódio ao povo judeu. Em razão desse fato, quando foi sinalizado o retorno do Harlan às telas do cinema alemão, por meio do já referido romance, houve reação enfurecida de alguns alemães, que passaram, então, a articular, em fóruns públicos, a necessidade de se promover um boicote a esse filme, ou, mais exatamente, à tentativa de retorno do cineasta. O movimento encontrou liderança em Erich Lüth que, na Semana do Filme Alemão, na condição de presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, disparou duras críticas ao cineasta. Depois que a cinematografia alemã no terceiro Reich perdeu sua reputação moral, um certo homem é com certeza o menos apto de todos a recuperar esta reputação: trata-se do roteirista do filme “Jud Süβ” [...] sua absolvição em Hamburgo foi tão somente uma absolvição formal. A fundamentação daquela decisão (já) foi uma condenação moral. Neste momento, exigimos dos distribuidores e proprietários de salas de cinema uma conduta que não é tão barata assim, mas cujos custos deveriam ser assumidos: caráter [...]4 Após essa polêmica manifestação, a firma que estava a cargo da produção do novo filme de Harlan contestou a autoridade de Lüth para proferir aquelas declarações, exigindo explicações do crítico de cinema. A iniciativa alimentou ainda mais a fúria de Lüth, que, em carta aberta entregue à imprensa no dia 27 de outubro de 1950, deixou mais clara a sua motivação, bem como o seu propósito. “[...] com efeito, a volta de Harlan irá abrir feridas que ainda não puderam sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível desconfiança de que se reverterá em prejuízo da reconstrução da Alemanha. Por causa de todos esses motivos, não corresponde somente ao direito do alemão honesto, mas até mesmo à sua obrigação, na luta contra este representante indigno do filme alemão, além do protesto, mostrar-se disposto também ao debate”5. Em seguida a este episódio, produtores e distribuidores do filme “Unsterbliche Geliebte” (A Amante Imortal), com base em dispositivo do Código Civil alemão, § 826 4 5 SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2., p. 383. Ibid., p. 384. 5 BGB6, acionaram o Tribunal Estadual de Hamburgo, por meio de uma ação cautelar, com pedido de liminar, a fim de que Erich Lüth fosse obrigado a se abster imediatamente de conclamar o boicote ao filme. O pedido foi deferido. Erich Lüth recorreu da decisão para o Superior Tribunal Estadual de Hamburgo, que negou provimento à apelação, mantendo assim a decisão favorável a Veit Harlan e demais interessados na exibição de “A Amante Imortal”7. Finalizada a discussão em sede da ação cautelar, houve o ajuizamento da ação principal também perante o Tribunal Estadual de Hamburgo, que proferiu, no dia 22 de novembro de 1951, decisão novamente desfavorável a Erich Lüth, condenando-o à abstenção de manifestações daquela natureza, ao argumento de que feriam os bons costumes, tal como alegado pelos autores da ação. Inconformado, Lüth atacou a decisão por duas frentes: a um só tempo apelou para o Superior Tribunal Estadual de Hamburgo e impetrou uma Reclamação Constitucional perante o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht), argüindo que a decisão contestada violava seu direito fundamental à livre expressão do pensamento, previsto na Constituição alemã (art. 5 I 1 GG). Aduziu o reclamante que “os direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos com dignidade constitucional, seriam para o direito civil ‘causas [normativas] superiores de justificação’”8. O que até o momento não passava de uma disputa entre atores privados, a ser ou não encaixada em tipo previsto na legislação civil alemã, transformou-se, com a compreensão que lhe conferiu o Tribunal Constitucional Federal, no paradigmático “Caso Lüth”, no qual, como sugerido pelo apelido, foram acolhidas as alegações de Erich Lüth de ofensa a seu direito fundamental. A importância do caso, porém, não se deve às partes envolvidas; mas à linha de argumentação desenvolvida pela Corte Constitucional alemã para atribuir razão a Erich Lüth. De acordo com a Corte, para se afirmar que uma decisão judicial ofende um direito sediado na Constituição, é necessário antes afirmar a existência de um dever de observância desse direito quando da formação da convicção judicial. Como, no caso, a 6 § 826 BGB – “Quem, de forma atentatória aos bons costumes, infligir dano a outrem, está obrigado a reparar os danos causados” (tradução colhida na obra de SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2004, p. 141). 7 SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 384. 8 SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 386. 6 decisão judicial amparou-se em norma do direito civil, seria necessário, ainda, considerar que a norma de direito fundamental em alguma medida determinasse uma compreensão diferente do dispositivo do Código Civil alemão, de tal forma que este não mais servisse de justificativa para a decisão judicial questionada9. Contra essa lógica, há o entendimento comum, fundado na construção histórica dos direitos fundamentais, de que os direitos previstos em uma Constituição constituem instrumentos de resistência do cidadão contra o Estado, a serem, portanto, invocados exclusivamente na hipótese de um conflito envolvendo o poder público. Nesta esteira, lembrou a Corte, a própria Reclamação Constitucional foi moldada pela legislação alemã como um remédio jurídico de proteção dos direitos fundamentais tão somente contra atos do poder público10. No Caso Lüth, entretanto, a Corte Constitucional alemã, sem propriamente afastar essa concepção tradicional dos direitos fundamentais, construiu outra dimensão para esses direitos, fundada, sobretudo, na idéia de que a Constituição alemã, não tendo a pretensão de se fazer neutra, “estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo”11. Em outras palavras, ao lado da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, a qual tradicionalmente ilumina a posição jurídica do titular do direito frente ao poder público; a Corte Constitucional alemã situou uma nova perspectiva, uma dimensão objetiva, que, por sua vez, transparece a carga axiológica do direito, o sistema de valores que influencia na formação de todo o sistema jurídico e que, portanto, constitui parâmetro para todos os ramos do Direito, entre os quais se inclui o Direito Civil. Segundo a argumentação do Tribunal Constitucional alemão, a irradiação dessa carga axiológica dos direitos fundamentais para o direito privado é tanto mais visível na presença de normas de linguagem mais aberta no direito civil, ou “cláusulas gerais”, espécies de “porta de entrada” desses valores no direito privado, as quais “remetem para o julgamento do comportamento humano a critérios extra-cíveis ou até critérios extrajurídicos, como os ‘bons costumes’”12. Nessas hipóteses, para que o aplicador da norma identifique o que é exigível, a partir das cláusulas gerais, em um caso concreto, faz-se necessário que tome por parâmetro o “conjunto de concepções axiológicas, as quais um povo alcançou numa 9 Ibid., p. 387. SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 387. 11 Ibid., p. 387-388. 12 Ibid., p. 388. 10 7 certa época de seu desenvolvimento cultural e que foram fixadas em sua Constituição”13. No Caso Lüth, portanto, consagrou-se o entendimento de que se um juiz, em sua decisão, deixa de observar a influência da Constituição sobre as normas de direito privado, ofende, a um só tempo, a dimensão objetiva do direito fundamental e, porquanto manifestação do poder público, a dimensão subjetiva do direito. A dimensão objetiva não substitui, mas, sim, reforça a dimensão subjetiva14. Por conseguinte, fixou-se a idéia de que compete a uma Corte Constitucional avaliar se o “conteúdo axiológico” das prescrições constitucionais sé observado nos mais diversos ramos jurídicos; de que uma Reclamação Constitucional pode levar à discussão de um Tribunal Constitucional uma decisão que não tenha, no caso concreto, ponderado corretamente o significado de um direito fundamental em face do valor do bem jurídico protegido pela lei geral aplicada15. Aplicando essas premissas ao próprio caso em que foram elaboradas, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha entendeu que a decisão da instância ordinária que enquadrou as manifestações de Lüth como ofensivas aos bons costumes desconheceu o especial significado do direito fundamental à livre expressão do pensamento, também aplicável na situação em que entra em conflito com interesse privado, posicionando-se, derradeiramente, pela procedência da Reclamação impetrada por Erich Lüth16. Neste ano de 2008, comemoram-se exatos 50 anos do caso em que basicamente três importantes parâmetros, relativos à Constituição e forma de tratá-la, foram fixados pela jurisprudência alemã: (1) a necessidade de conceber a Constituição como uma ordem objetiva de valores; (2) a decorrente dimensão objetiva dos direitos fundamentais por meio da qual pode-se chegar a uma eficácia desses direitos nas relações privadas; (3) necessidade de ponderação de direitos, tomados em seu aspecto axiológico ou como princípios, na hipótese de colisão. 3– NEOCONSTITUCIONALISMO E O CASO LÜTH 13 Ibid., p. 388. Daniel Sarmento fornece uma boa justificativa para essa relação complementar – e não sucessiva ou substitutiva – entre as dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais, articulada no Caso Lüth: “se a pessoa humana não se identifica com o indivíduo isolado do liberalismo burguês, mas também não se deixa absorver completamente pelo grupo social, mantendo seu reduto inexpurgável de individualidade – a sua zona de exclusividade –, torna-se flagrante que não é a qualidade pública ou privada de um interesse que o fará prevalecer incondicionalmente sobre o que com ele concorrer” (op. cit., nota 6). 15 SCHWAB, Jürgen. op. cit., nota 2, p. 393. 16 Ibid., p. 395. 14 8 Nesta terceira parte, como já anunciado, busca-se compreender a proposta de um novo constitucionalismo, de conexões estreitas com os parâmetros fixados pelo Caso Lüth, uma proposta anunciada por diversos e renomados autores no mundo e incorporada pelo Direito Constitucional brasileiro, ao tempo em que se completam os 20 anos da Constituição de 1988. O constitucionalismo, sem o prefixo “neo”, é comumente associado à idéia de liberalismo moderno, de uma teoria que se coloca na trilha da limitação do poder do Estado. John Locke, considerado, por muitos, como pai do liberalismo político, é, por esta razão, também identificado por alguns autores, a exemplo de Celso Lafer17, como o principal percussor do constitucionalismo18. Essa perspectiva de Constitucionalismo, próxima ao liberalismo da Idade Moderna, funda-se na suposição da capacidade de autopromoção da sociedade, em decorrência da qual reservam-se ao Estado tão-somente as tarefas que a sociedade não seja capaz de realizar por si só, isto é, a segurança externa e interna, como forma de garantir a liberdade individual. A liberdade, dentro desse modelo, adquire uma perspectiva negativa, que compreende a ausência de interferência na esfera de decisão do indivíduo19. Dentro dessa lógica, preservada a autonomia individual, as eventuais desigualdades sociais que surjam serão frutos do exclusivo fracasso individual, e, assim, não poderão ser qualificadas como injustas. A função estatal restrita a atividades de defesa frente às ameaças à liberdade individual forja a separação entre Estado e sociedade20. Como aponta Dieter Grimm21, a Constituição assume especial significado neste modelo, pois cabe-lhe exatamente a tarefa de delimitar o âmbito dentro do qual a sociedade desfruta de sua autonomia, através da fixação de direitos fundamentais como elementos limitadores da atuação estatal. 17 “Existe uma relação direta entre a teoria política de Locke e os princípios que inspiraram a tutela dos direitos fundamentais do homem no constitucionalismo” (LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia de Letras, 1998, p. 122). 18 Em outro trabalho, analisamos mais detidamente essa associação. Cf. MACHADO, Joana de Souza. Constitucionalismo e Soberania Popular: influxos do pensamento moderno nas democracias contemporâneas. In.: Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery, Curso de Direito, nº. 04, jan/jun 2008. 19 Cf. leitura feita de Isaiah Berlin por PETIT, Philip. Republicanismo: una teoría sobre la libertad y el gobierno. Barcelona: Paidós, 1999, p. 40. 20 GRIMM, Dieter. El futuro de la Constitución. In: Constitucionalismo y derechos fundamentales. Trad. de José Muñoz de Baena Simón. Madrid: Editorial Trota, 2006; p. 180. 21 Ibid., p. 183. 9 É possível, porém, falar de vários constitucionalismos, ou de movimentos constitucionais, como prefere J.J. Gomes Canotilho22, que diferencia o constitucionalismo inglês, do francês e do americano; assim como admite a possibilidade de se contrapor, em uma perspectiva histórico-descritiva, o constitucionalismo antigo, baseado em costumes e tradições, ao constitucionalismo moderno, já mencionado, inaugurado a partir do século XVII e em curso até os dias atuais com as Constituições contemporâneas. Afinal, se é possível falar de tantas maneiras em constitucionalismo, extraindose sempre, como denominador, a idéia de limitação do poder do Estado, em que consiste a proposta hoje tão divulgada de um “Neoconstitucionalismo”? Os estudos que procuram sistematizar o discurso neoconstitucionalista reconhecem que ainda se trata de um rótulo impreciso, eclético23 ou em fase de construção. Começam a convergir, contudo, para a compreensão de que a novidade sugerida pelo título e a própria unidade do movimento está na adoção conjunta de pelo menos três fatores, a seguir explicitados. a) Objeto de estudo diferenciado - textos constitucionais contemporâneos O neoconstitucionalismo toma como objeto de estudo as Constituições surgidas depois da Segunda Guerra Mundial, marcadas por uma grande e detalhada pauta material, de que é exemplo a Constituição brasileira de 198824. El neoconstitucionalismo pretende explicar un conjunto de textos constitucionales que comienzam a surgir después de la segunda guerra mundial y sobre todo a partir de los años setenta del siglo XX. Se trata de Constituciones que no se limitan a establecer competencias o a separar a los poderes públicos, sino que contienen altos niveles de normas <<materiales> o substantivas que condicionan la actuación del 22 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.Coimbra: Almedina, 2003, p. 183 23 “Pretender conjugar estas dos perspectivas desde las que es posible afrontar o Derecho creo que resulta un objetivo que explica el núcleo del eclecticismo de las teorias que se agrupan en el movimiento neoconstitucionalista y también muchas de las críticas que se lê formulan”. (CARBONELL, Miguel, El neoconstitucionalismo en su laberinto.In: Teoría del neoconstitucionalismo. Madrid: Editorial Trotta, 2007, p. 258). 24 Os adeptos do movimento neoconstitucionalista no Brasil costumam tomar a Constituição de 1988 como marco histórico de um novo Direito Constitucional, cf. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, nº33, 2006, p. 45. 10 Estado por médio de la ordenación de ciertos fines y objetivos. Ejemplos representativos de este tipo de Constituciones lo son la española de 1978, la brasileña de 1988 y la colombiana de 199125. A pauta substantiva não chega a constituir propriamente uma inovação das Constituições mais recentes, pois já era verificada na Constituição Mexicana, de 1917, e na da República de Weimar, de 1919, como admite o próprio Carbonell, um dos principais difusores do movimento neoconstitucionalista26. b) Prática jurisprudencial O neoconstitucionalismo pressupõe, em decorrência dos novos textos constitucionais, uma prática jurisdicional fundada em parâmetros interpretativos de ordens distintas, como os valores ou princípios, mediante um raciocínio jurídico mais complexo. Compõem esse raciocínio específicos métodos de interpretação, como a ponderação, a proporcionalidade, a razoabilidade, a máxima efetividade, a Constitucionalização do Direito, a eficácia dos direitos fundamentais em relações privadas, etc27. c) Desenvolvimentos teóricos Como terceira e última exigência mais geral do movimento, encontra-se a assunção de um papel menos contemplativo pela Ciência do Direito, de tal forma que constitua, em si mesma, uma meta garantia 28. De acordo com Carnonell, as propostas de Dworkin, Alexy, Nino, Ferrajoli, Sanchís e Zagrebelsky têm cumprido esta missão epistemológica do neoconstitucionalismo, não se limitando à mera contemplação das novas Constituições ou práticas constitucionais, mas verdadeiramente instigando a própria existência dessa prática diferenciada29. 25 CARBONELL, Miguel. op. cit., nota 23, p. 9-10. Ibid.,, p. 11. 27 CARBONELL, Miguel. op. cit., nota 23, p. 10. No Brasil, fator semelhante é invocado sob o rótulo de uma nova interpretação constitucional, composta por princípios específicos como o da supremacia da Constituição; o da presunção de constitucionalidade das normas e atos do Poder Público; o da interpretação conforme a Constituição; o da unidade; o da razoabilidade e o da efetividade. (BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24, p. 52). 28 FERRAJOLI, Luigi.. Derechos e garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 2006, p.33. 29 “Aportaciones como lãs que han hecho en diferentes ámbitos culturales Ronald Dworkin, Robert Alexy, Gustavo Zagrebelsky, Carlos Nino, Luis Prieto Sanchís o el mismo Luigi Ferrajoli han servido no 26 11 Como visto, os próprios neoconstitucionalistas explicam que para a invocação do rótulo que vestem não basta tomar os textos constitucionais mais recentes como objeto de estudo, em valorização do seu conteúdo. De outro lado, o desenvolvimento teórico menos contemplativo está presente em diversas áreas de produção do saber, não sendo nem de longe característica exclusiva do movimento em estudo. Entre os três fatores apontados como componentes do discurso neoconstitucionalista30, parece mais determinante para a sua identificação a idéia de que, em face dos textos constitucionais contemporâneos, como a Constituição brasileira de 1988, seja necessária uma prática jurisprudencial diferenciada, fundada em parâmetros interpretativos de ordens distintas, orientada por valores extraídos a partir dos textos constitucionais, a serem ponderados em casos concretos31. Nesse exato fator, determinante para a identificação do discurso neoconstitucionalista, reside a notória zona de contato com os argumentos fixados há 50 anos atrás pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no já analisado Caso Lüth. O Neoconstitucionalismo propõe que a Constituição seja concebida como fonte de parâmetros interpretativos de ordens distintas, a exemplo dos valores e dos princípios, tal como originariamente proposto no Caso Lüth32. Para lidar com esses novos parâmetros, o Neoconstitucionalismo propõe algumas técnicas mais sofisticadas de aplicação do Direito, entre elas, a ponderação, a incidência de direitos fundamentais em relações privadas, interpretação das leis conforme a Constituição – todas utilizadas para a decisão do Caso Lüth, em 1958. Antes de se aprofundar a análise sobre a proposta neoconstitucionalista, cujas bases fundaram-se a partir do Caso Lüth, vejamos, neste momento, como esse discurso vem se difundindo no Brasil à época dos 20 anos da Constituição de 1988. solamente para comprender las nuevas prácticas jurisprudenciales sino también para ayudar a crearlas” (CARBONELL, Miguel., op. cit , nota 23, p. 11). 30 Ibid., p. 9. 31 Ibid., p.10. 32 “La concepción de la constitución como orden de valores u orden objetivo axiológico, que conforma la vida social y demanda su aplicación em todos los âmbitos del Derecho, tiene su ponto de partida em La primera jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal alemán. El punto culminante lo constituye la sentencia Lüth, de 1958, donde se establecen los conceptos centrales de valor, de ordenamiento valorativo [...]” (CRUZ, Luiz M. La Constitución como orden de valores: problemas jurídicos y políticos – um estúdio sobre los orígenes nel neoconstitucionalismo. Granada: Editorial Comares – Coleción filosofia, derecho y sociedade, 2005, p. 9). 12 4 – AOS 20 ANOS DA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA, ENCONTRO MARCADO COM O CASO LÜTH (?) No dia 05 de outubro deste ano de 2008, serão comemorados 20 anos da data em que se promulgou, depois de 584 dias de funcionamento da Assembléia Constituinte de 1987-88, a Constituição brasileira em vigor33. O texto constitucional brasileiro, que atualmente se compõe de 250 artigos, não computados os 95 especialmente produzidos para orientar a etapa transitória na ordem constitucional (ADCT), sempre taxado de prolixo quando classificado em relação à sua extensão, é paradoxalmente fruto de um imenso esforço de síntese. Após o trabalho concomitante de oito comissões temáticas, isoladas entre si, dividas em 24 subcomissões, foi entregue um anteprojeto da Constituição composto por 501 artigos à Comissão de Sistematização34. A votação do texto final foi precedida de um período muito crítico de filtragem das contribuições mais extravagantes para a formação da nova Constituição brasileira. Narram-se propostas de emendas realmente bizarras ao anteprojeto, a exemplo da tentativa de se prescrever a igualdade entre homens e mulheres, “exceto na gravidez, no parto e no aleitamento”; bem como a de se inserir no texto um artigo segundo o qual todos os carros oficiais seriam pintados de uma cor só, cabendo à lei complementar a definição dessa cor35. De todo modo, a Constituição brasileira de 1988, com os seus atuais 250 artigos, ainda que possa ter discutida a sua prolixidade, se comparada ao seu inusitado anteprojeto; é comumente tomada como exemplo de pauta constitucional alargada, por ter tratado de modo minucioso de assuntos antes regulados apenas pela legislação infraconstitucional. Essa pauta alargada, para alguns, seria possivelmente reflexo da euforia em se romper com uma etapa escura da história constitucional brasileira, transpor aquele estado de exceção permanente à democracia. A Constituição certamente não é perfeita. Ela próprio o confessa, ao admitir reforma. Quanto a ela, discordar sim. Divergir, sim. 33 OLIVEIRA, Mauro Márcio. Fontes de Informações sobre a Assembléia Nacional Constituinte de 1987: quais são, onde buscá-las e como usá-las. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1993, p. 13 34 OLIVEIRA, Mauro Márcio. op. cit., nota 33, p. 12. 35 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2008, p. 461-462. 13 Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca [...] a persistência da Constitução é a sobrevivência da democracia. Quando, após tantos anos de luta e sacrifícios, promulgamos o Estatuto do homem, da Liberadde e da Democracia, brandamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Almodiçoamos a tirania onde quer que ela desgrace homens e nações, principalmente na América Latina36. Para o discurso que vem ganhando força no país, trata-se de uma característica a ensejar verdadeira revolução no Direito Constitucional brasileiro37. Em outras palavras, a Constituição de 1988 constitui o marco histórico do Neoconstitucionalismo no Brasil. O discurso neoconstitucionalista, cujas linhas principais já foram explicadas nesse trabalho, recebeu, portanto, uma versão brasileira, que vem se difundindo a passos largos, com o trabalho de divulgação de seus adeptos. Nesse ponto, merece destaque o estudo do Prof. Luís Roberto Barroso, “Neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito”, pela ampla divulgação editorial que teve, determinante para a difusão do discurso neoconstitucionalista no Brasil38. Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional39. No que se refere ao “marco filosófico”, mais um eixo em trono do qual se constrói o neoconstitucionalismo brasileiro, Barroso afirma cuidar-se do “póspositivismo”. Para o autor, o marco constitui uma síntese entre o que chama de 36 Ibid., p. 913 – trecho do discurso de Ulysses Guimarães, como presidente da Constituinte, em 05 de outubro de 1988. 37 “Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração” (BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24, p. 46). 38 BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24. O texto foi reproduzido em sete revistas brasileiras entre 2005 e 2007, além de sua publicação em dois volumes coletivos e em vários sites da internet. Conferir, a título de exemplo: <http://biblioteca.senado.gov.br:8991/F/LI3XJGU261X1QHJ6PCL7X1RKNL6GPFYHBQRHKX1AN9 RXPI7Y74-01194?func=full-set- set&set_number=015629&set_entry=000030&format=999>. 39 ” (Ibid., p.57). 14 pensamento positivista e o jusnaturalismo, a qual formula nos seguintes termos: “o póspositivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas”40. Por fim, quanto ao “marco teórico”, Barroso aponta três grandes diferenciais do pensamento neoconstitucionalista, os quais podem receber a síntese: i- consolidação da idéia de força normativa da Constituição41; ii- superação da supremacia do Poder Legislativo em prol de uma supremacia da Constituição, via proteção da jurisdição constitucional42; iii – reconhecimento da necessidade de uma nova interpretação constitucional43. A leitura que Barroso oferece ao Neoconstitucionalismo encontra ecos na obra de outros autores e vai se colocando como uma espécie de voz uníssona no ambiente teórico brasileiro44. A circunstância se deve principalmente à inexistência de um contra-discurso sistematizado na doutrina brasileira. Os autores que por ventura se oponham às premissas do Neoconstitucionalismo ou estão silentes ou se manifestam de modo tão disperso que a aparente homogeneidade do discurso neoconstitucionalista não chega a se abalar. Virgílio Afonso da Silva, por exemplo, tece ácidas críticas à idéia de uma nova interpretação constitucional, uma das marcas do Neoconstitucionalismo brasileiro. Uma das certezas mais difundidas no direito constitucional brasileiro atual está ligada à forma de interpretação da constituição. Nesse campo há uma divisão facilmente perceptível entre o arcaico e o moderno. Arcaico é crer que a interpretação da constituição deve ser feita segundo os cânones sistematizados por Savigny ainda na metade do século XIX. Moderno é condenar os métodos tradicionais e dizer que eles, por terem caráter exclusivamente privatista, não são as 40 Ibid. p. 47. Barroso insere, assim, como característica do Neoconstitucionalismo, uma postura teórica que supera a positivista; mas há neoconstitucionalistas, como Carbonell, Ariza e Comanducci que se opõem apenas à postura positivista epistemológica. Essa observação se faz importante para comentários que virão após a exposição do estudo de Barroso. 41 “O debate acerca da força normativa da Constituição só chegou ao Brasil, de maneira consistente, ao longo da década de 80, tendo enfrentado as resistências previsíveis [...] coube à Constituição de 1988, bem como à doutrina e a jurisprudência que se produziram a partir de sua promulgação, o mérito elevado de romper com a posição retrógrada” (BARROSO, Luís Roberto. op. cit., nota 24, p. 49). 42 Ibid., p. 50. 43 Ibid. p.51 e ss. 44 A título indicativo: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008; BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: Revista Diálogo Jurídico. Disponível em: <<http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=ana%20paula%20de%20barcellos>>. 15 ferramentas adequadas para a interpretação da constituição. Ser moderno é, em suma, falar em métodos e princípios de interpretação 45 exclusivamente constitucional . A iniciativa do autor é relevante no sentido de contribuir para que se evite, no seio da Teoria Constitucional brasileira, a formação, no mínimo suspeita, de um “senso comum teórico” 46. Ademais despertou a necessidade de um incremento argumentativo do discurso neoconstitucionalista, até então não fomentada pela doutrina brasileira47. Virgílio, entretanto, ataca apenas o ponto da nova interpretação constitucional, que não cobre toda a proposta do Neoconstitucionalismo, em alta na Teoria Constitucional brasileira. O discurso neoconstitucionalista, na concepção que tem recebido no Brasil, pretende se individualizar a partir do seu objeto de estudo, ou “marco histórico” (as constituições oriundas do segundo pós-guerra); do seu “marco filosófico” (póspositivismo); e de suas propostas teóricas (valorização da Constituição enquanto norma, nova interpretação constitucional e papel alargado da jurisdição constitucional). No que tange ao objeto de estudo, já foi reconhecido, até mesmo por alguns neoconstitucionalistas48, que a adoção das Constituições oriundas do segundo pósguerra como objeto de estudo não é característica exclusiva dos autores que invocam para si o rótulo de neoconstitucionalistas. Quanto ao “marco filosófico” do Neoconstitucionalismo, o caminho seguido por Barroso para explicar a idéia de pós-positivismo mostra-se, por vezes, delicado. O autor não retrata a distinção importante que positivistas, como Kelsen, realizam entre Direito e Ciência do Direito49. Assim, ao articular frases como “em busca da objetividade científica, o positivismo equiparou o Direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões 45 SILVA, Virgílio Afonso da. Interpretação e sincretismo metodológico. In.: Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 116). 46 Sobre a idéia de “senso comum teórico”, cf. WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral ao Direito II. Epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1994, p. 57-100. 47 Ao descrever a sua proposta de uma nova interpretação constitucional, Barroso já sentiu a necessidade de justificar as constantes referências estrangeiras e a impossibilidade de construção de um modelo interpretativo puro, em resposta, exatamente, à crítica de Vírgilio sobre um certo “sincretismo metodológico” reinante no Brasil. “Nesse ambiente, não é possível utilizar modelos puros, concebidos alhures, e se esforçar para viver a vida dos outros. O sincretismo – desde que consciente e coerente – resulta sendo inevitável e desejável. Em visão aparentemente diversa, v. Virgílio Afonso da Silva, ‘Interpretação constitucional e sincretismo metodológico’ [...]” (BARROSO, Luís Roberto. Em nota de rodapé nº 19. op. cit., nota 24, p. 53). 48 Cf., por todos, CARBONELL, Miguel., op. cit., nota 23, p. 11. 49 “Se bem que a ciência jurídica tenha por objeto normas jurídicas e, portanto, os valores jurídicos através delas constituídos, as suas proposições são, no entanto – tal como as leis naturais da ciência da natureza – uma descrição do seu objeto alheia aos valores (wertfreie)” (KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Op. Cit., p.89). 16 como legitimidade e justiça [...]”50, dá ensejo a leituras caricatas do pensamento que pretende superar. O Neoconstitucionalismo de Carbonell, por exemplo, afasta-se de uma rejeição mais rápida ao deixar claro que a postura positivista que pretende superar é a metodológica, pretensamente neutra, contemplativa; e não a teórica, tendo em vista que os positivistas incorporam uma noção bem alargada de criação do Direito, da conexão entre Direito, Moral e Política. A despeito dos reparos acima efetuados, a preocupação que esse trabalho pretende compartilhar sobre a rápida e recente difusão do Neoconstitucionalismo no Brasil dirige-se menos a uma possível fraude em torno da construção do prefixo “neo”. Sobre a questão, basta o rápido lembrete que o “novo” discurso se difunde no Brasil à distância de 50 anos de suas fundações originárias (50 anos de Caso de Lüth). O fetiche pelo novo, pelo mais moderno, pode aprontar dessas armadilhas, além de acompanhar há longa data as trilhas da produção intelectual brasileira, do campo literário às ciências sociais, provocando a sensação de discussões desambientadas, impropriamente deslocadas, tardiamente importadas51. A sensação tem mesmo razão de ser, já que com os olhos voltados para o que há de mais recente, perde-se de vista, por vezes, a consistência ou da pertinência do que está sendo incorporado52. Na linha que tem sido difundido no Brasil, o discurso neoconstitucionalista propugna pela presença de uma nova “onda constitucional”, que, além de novas Constituições, trouxe um novo modelo, centrado na <<supremacia da Constituição>>, cuja proteção se atribui ao Judiciário. O adjetivo “novo” sugere contraposição a um modelo antigo, que, segundo Barroso, corresponde ao modelo de <<supremacia do Poder Legislativo>>53. O antagonismo articulado entre <<supremacia do Poder Legislativo>> e <<supremacia da Constituição>>, aliado ao estabelecimento de uma conexão íntima 50 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., nota 24, p. 47. “Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho e de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem” (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 15). 52 “Ao longo de sua reprodução social, incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio [...] partimos da observação comum, quase uma sensação, de que no Brasil as idéias estavam fora de seu centro, em relação ao seu uso europeu” (SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In.: Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades Editora 34, 2000, p. 29-30). 53 BARROSO, Luís Roberto. Op. Cit., nota 23, p. 50. 51 17 entre <<supremacia da Constituição>> e Poder Judiciário revela algumas premissas que precisam ser problematizadas. Inicialmente, deve-se destacar das relações acima uma visão depreciativa do Poder Legislativo, cuja supremacia é tida como antagônica à supremacia Constitucional. Por que atribuir a última palavra a uma Corte Constitucional é fazer imperar a supremacia constitucional e não a supremacia judicial? A tese de uma nova proposta para a compreensão e implementação do Direito (constitucional) tem ganhado cada vez mais espaço na discussão literária brasileira e mundial. Sob o rótulo de ‘neoconstitucionalismo’ se têm agrupado correntes e teorias [...] que conclamam o Judiciário a atuar como protagonista da idéia de Estado Constitucional Social de Direito [grifo nosso] 54. Há, subjacente a essa conexão, a idéia de que o Poder Legislativo está mais sujeito, em suas deliberações, a comprometer a Constituição do que o Poder Judiciário. O Brasil está importando de modo acrítico, justamente às voltas da comemoração dos 20 anos da Constituição Cidadã, um discurso que inspira e naturaliza uma vivência constitucional deferente à leitura realizada pelo órgão de cúpula do poder Judiciário. Até mesmo no contexto originário desse discurso, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, já não se verifica, há longa data, adesão incondicionada à idéia de que a Corte Constitucional deva proceder como principal guardiã de uma ordem objetiva de valores. Em 1975, por exemplo, antes da Constituição brasileira de 1988 sequer ser pensada, o Tribunal que fixou os parâmetros do discurso neconstitucionalista já questionava a lógica que viria a ser incorporada tão mais tarde no Brasil. La utilización del concepto de decisión objetiva valorativa por el Tribunal Constitucional, aplicado a los derechos fundamentales, se convierte, por tanto, em el médio por el que se transfiere al Tribunal Constitucional lãs funciones específicamente legislativas para el desarollo del orden social55. Não se trata de negar a importância da Jurisdição Constitucional, nem de negarlhe a possibilidade de realizar uma leitura valorativa da Constituição. Afinal de contas, 54 TAVARES, André Ramos. Prefácio. In.: MOREIRA, Eduardo Ribeiro. Neoconstitucionalismo: a invasão da Constituição. São Paulo: Método, 2008. 55 Posição firmada pelos juízes Rupp-von Brünneck e Simon, na sentença sobre a despenalização do aborto – BverfGE 39 1 (71-72), em 1975, referida por CRUZ, Luiz M., op. cit., nota 32, p. 45. 18 no caso brasileiro, a própria Constituição, com a sua larga pauta material, abre espaço para uma atuação mais ampla da Jurisdição Constitucional. Trata-se de sinalizar que essa ordem de circunstâncias não requer, como sugere o neconstitucionalismo, nem autoriza, a colonização da Constituição pelo código sofisticado de uma Jurisdição Constitucional. As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. Parece que tal fórum é considerado indigno das questões mais graves e mais sérias dos direitos humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter56. No Brasil, mesmo fora do contexto das súmulas vinculantes, inaugurado com a EC 45 de 2004, assiste-se a uma ampla subordinação da comunidade jurídica ao Supremo Tribunal Federal, por vezes, estimulada pela própria Corte. Cabe destacar, neste ponto, tendo presente o contexto em questão, que assume papel de fundamental importância a interpretação constitucional derivada das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função institucional, de “guarda da Constituição” (CF, art. 102, “caput”), confere-lhe o monopólio da última palavra em tema de exegese das normas positivadas no texto da Lei Fundamental, como tem sido assinalado, com particular ênfase, pela jurisprudência desta Corte Suprema: “(...) A não-observância da decisão desta Corte debilita a força normativa da Constituição (RE 203.498-AgR/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES )57 Sobretudo, constrói-se um ambiente teórico que naturaliza as investidas do STF em direção a uma espécie de exclusivismo moral58, supostamente necessário ao modelo de supremacia da Constituição, em detrimento de um malfadado modelo de supremacia do Poder Legislativo. 56 WALDRON, JEREMY. A dignidade da legislação. Trad.: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 5. 57 Citado na Reclamação (Rcl 2986 MC/SE), Rel. Celso Mello, 2005. 58 Análise mais aprofundada sobre a questão na dissertação de mestrado da autora, Ativismo Judicial no Supremo Tribunal Federal, defendida em 04 de junho de 2008, perante banca composta pela Professora Orientadora Gisele Cittadino e pelos Professores Francisco de Guimaraens e José Ricardo Cunha, no prelo. 19 Se a linguagem aberta ou substantiva da Constituição permite que um Tribunal realize uma leitura valorativa desse texto, como sugerido há 50 anos atrás no Caso Lüth, e, agora, pelo Neoconstitucionalismo fortemente presente nos 20 anos da Constituição de 1988, é o caso de se estender essa leitura a todos os atores políticos de uma sociedade e não de torná-la monopólio da Jurisdição Constitucional. 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Infelizmente, esse artigo, produzido especialmente para uma edição comemorativa aos 20 anos da Constituição brasileira, não consegue assumir o tom eufórico tão comum, como já abordado na introdução desse trabalho, aos eventos festivos. Principalmente porque a autora, na condição ainda incipiente de Professora de Direito Constitucional, nota, em seu contato com o meio acadêmico, como a lógica da deferência ao Poder Judiciário na compreensão de um documento tão popular como a Constituição vai se alimentando de novas energias – a dos estudantes. Os principais concursos públicos realizados no Brasil têm cobrado como “gabarito” das provas de Direito Constitucional o entendimento, não raro, polêmico, do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria cobrada, mesmo quando amplamente discutível. Em conseqüência, os estudantes, compreensivelmente preocupados com sua alocação no mercado de trabalho, rendem-se, por vezes, passivamente, ao pacto eterno de uma vivência constitucional irrefletida. Embora o artigo não assuma tom eufórico, carrega a pretensão de que, por meio das problematizações realizadas, possa contribuir para uma perspectiva constitucional otimista. Talvez, por não se colocar imune à industrialização da esperança, de que nos fala Drummond, o presente trabalho conte com a possibilidade de ter despertado alguma reflexão sobre a Constituição brasileira de 1988 que a tome como um documento em processo de construção aberto a todos os possíveis interessados. 6 – REFERÊNCIAS 20 ARIZA, Santiago Sastre. La Ciencia jurídica ante el neoconstitucionalismo. In.: CARBONELL, Miguel (org.). Neoconstitucionalismo (s). Madrid: Editorial Trotta, 2005, p. 258. BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle das políticas públicas. In: Revista Diálogo Jurídico. Disponível em: <<http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=ana%20paula%20de%20b arcellos>>. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Revista da EMERJ, v. 9, nº33, 2006. BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Trad. de Marco Aurélio Nogueira. 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