1 FIM DE JOGO NO ESTREITO DE TAIWAN ? (Publicado na Política
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1 FIM DE JOGO NO ESTREITO DE TAIWAN ? (Publicado na Política
FIM DE JOGO NO ESTREITO DE TAIWAN ? (Publicado na Política Externa, vol 19 nº 4 Mar/Abril 2011) Amaury Porto de Oliveira A 29 de junho de 2010, delegações da República Popular da China (RPC) e da República da China (nome do regime nacionalista criado no continente no início do século XX) assinaram, na cidade chinesa de Chunquing, um Acordo Quadro de Cooperação Econômica (ECFA, na sigla inglesa), que com algum otimismo pode ser visto como o início da etapa que levará à solução final da Questão de Taiwan. A assinatura marcou o fim de dois anos de negociações entre a chinesa Associação para as Relações através do Estreito de Taiwan (ARATS, na sigla inglesa) e a taiwanesa Fundação para Intercâmbios no Estreito (SEF, na sigla inglesa). As entidades em causa, formalmente não oficiais, foram criadas há quinze anos, mas estiveram paralisadas entre 1997 e 2008, quando predominaram em Taipé tendências independentistas. Foram os presidentes delas que assinaram o acordo de agora, e Chungking foi escolhida para a cerimônia de assinatura por ter sido lá que se desenrolaram na década dos 1940, com intermediação dos EUA, os últimos esforços de conciliação entre o Kuomintang (KMT), de Chiang Kai-shek, e as forças de Mao Zedong, antes da fuga dos nacionalistas para a Ilha de Formosa. O clima para as negociações entre a ARATS e a SEF foi criado no plano governamental, depois que a expressiva vitória eleitoral do candidato do KMT, em março de 2008, pôs fim a oito anos da presidência independentista de Chen Shui-bian. Respaldadas por seus respectivos governos, a ARATS e a SEF lançaram-se ao trabalho. Duas rodadas de conversações foram realizadas ainda em 2008 e, em abril de 2009, os presidentes das duas associações encontraram-se na cidade chinesa de Nanquim para assinar ajustes, como o da conversão em vôos rotineiros dos vôos charter, que já vinham sendo permitidos entre cidades dos dois lados do Estreito. A freqüência dos vôos foi aumentada de 108 para 270 por semana e seis novos destinos no continente foram abertos. Assinaram-se ainda ajustes sobre serviços financeiros e para a cooperação no combate a ações criminosas. No mês de julho, o Ministério de Assuntos Econômicos de Taiwan passou a aceitar requerimentos de investidores do continente, e começaram a ser concluídos, entre repartições governamentais da China e de Taiwan, memorandos de entendimento nos terrenos financeiro e bancário. Paralelamente aos avanços nessas diversas frentes de trabalho, ia-se perseguindo o objetivo-maior do Acordo Quadro, que foi afinal delineado em dezembro de 2009, num importante encontro dos presidentes da ARATS e da SEF, na cidade taiwanesa de Taichung. Assinaram-se ali três novos acordos: sobre a estandardização de produtos industriais, quarentena de alimentos e pesca. 1 Meu propósito neste trabalho é reconstituir, em linhas gerais, a evolução da velha Formosa, de colônia japonesa a importante centro da indústria global da informação. Especular, em seguida, sobre as perspectivas de fim de jogo para a Questão de Taiwan, que possam estar sendo abertas pelo Acordo Quadro assinado em 2010. Antes, porém, de enveredar por esses terrenos, descreverei desenvolvimentos do último lustro, que tornaram viável a própria conclusão do Acordo. 2. Um Divisor de Águas1 Tem-se tornado usual assinalar 2008 como momento de virada nas relações políticas entre os dois lados do Estreito de Taiwan, em conseqüência das expressivas vitórias do KMT, tanto na eleição legislativa do mês de janeiro quanto na eleição presidencial de março, na Ilha. É fora de dúvida que o afastamento do poder do Partido Democrático Progressista (PDP) e de Chen ShuI-bian ampliou as possibilidades de trabalho entre Pequim e Taipé. Mas eu tendo a datar de 2005 o divisor de águas, opção também feita, entre outros, pelo pesquisador britânico Dafydd Fell, em artigo na Asian Survey. Paradoxalmente, o desenvolvimento que eu vejo como o acicate dos novos tempos costuma ser citado, pela mídia ocidental, como evidência da beligerância empedernida dos chineses continentais: a Lei Anti-Secessão, promulgada em Pequim pelo Congresso Nacional do Povo (14.03.05). Essa lei tornou obrigatória a intervenção armada do Governo de Pequim, se e quando os governantes de Taipé cruzarem umas quantas linhas de comportamento, dando passos interpretáveis como o lançamento do processo de independência da Ilha. Em meados de 2005 eu passei dois meses na China, buscando melhorar meu entendimento dos processos em marcha, através de entrevistas e conversas com intelectuais chineses, correspondentes estrangeiros e diplomatas lá em posto. Dentre os documentos que pude coletar, sem autorização para identificar a fonte, destaco o texto de uma conferência feita para público seleto pelo Professor Yan Xuetong, que era na época o Diretor do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade Qinghua, em Pequim. O Professor Yan é também um dos líderes da chamada Nova Esquerda, combativa tendência dentro do Partido Comunista Chinês (PCC), a qual esteve muito por trás da elaboração e aprovação da Lei Anti-Secessão. Na conferência mencionada, de que farei um resumo, Yan expôs com clareza os raciocínios que explicam a Lei AntiSecessão, na ótica do seu grupo. Ele começou distinguindo duas fases no desdobramento da Questão de Taiwan. De 1949 (criação da RPC e fuga dos nacionalistas para Taiwan) até 1992, duas autoridades políticas separadas pelo Estreito porfiavam pelo governo de todo o território da China. Nos anos 1990, quando tomaram corpo as idéias de uma identidade taiwanesa propaladas pelo Presidente Lee Teng Hua, a disputa deixou de ser pelo governo da China para ir-se fixando na pretensão de soberania sobre uma parcela do território chinês. Para os governantes de Pequim, nas palavras do Professor 2 Yan, é aceitável que as autoridades constituídas em Taipé reivindiquem o poder sobre a parcela de território que são capazes de governar. Nega-se-lhes, porém, o direito de contestar que Taiwan é parte da China. Ninguém tem o direito de estabelecer um novo país sobre parte do território da China. Pequim tem consciência de que existe aí uma situação anômala, mas vê sua permanência como resultado da sustentação militar dada pelos EUA ao regime de Taiwan. Em outras palavras, a mudança de uma disputa entre partidos pelo governo da China para a reivindicação de soberania sobre parcela do território chinês resultou da interferência de potência externa nos assuntos internos da China. Interferência que não teve ligação direta com a Guerra Fria. Ao contrário, os fornecimentos de armas americanas ao regime de Taipé aumentaram bastante após o colapso da URSS, na medida em que a China perdeu interesse para os EUA como auxiliar na contenção aos soviéticos. Os dirigentes de Pequim vêem a Questão de Taiwan como um remanescente da guerra civil chinesa, dando azo à política oficial do “Direito à Recuperação por Via Militar”. Foi só a partir das remodelações de Deng Xiaoping, em 1979, que se passou a falar de “Recuperação Pacífica”. Com a ressalva, sempre, de que essa outra posição foi elaborada na defrontação com um adversário que disputava o direito a governar a China. Não como resposta a um adversário que pretende assumir a soberania sobre parcela dó território nacional chinês. Diante deste, a via pacífica só é mantida em virtude da preocupação de Pequim com a estabilidade da região, mas o Professor Yan insiste em que a possibilidade do recurso à via militar tem de ser preservada, até a solução definitiva da Questão. Para Yan, a premissa que guia os dirigentes de Pequim é a de que o tempo corre a favor da solução pacífica. A China pode esperar até que surjam as condições necessárias para uma solução negociada. O aumento dos contatos comerciais e pessoais através do Estreito e o fortalecimento econômico da China continental levarão, inexoravelmente, ao aparecimento de tais condições. Os membros da “Nova Esquerda” começavam, contudo, a inquietar-se com essa tranqüilidade da parte dos dirigentes de Pequim. O fato era, enfatizou Yan, que o tempo não estava correndo a favor da solução pacífica; tampouco era certo que o desenvolvimento econômico da China fosse garantir a solução negociada da Questão. O movimento separatista surgira e crescera em Taiwan paralelamente com a política de abertura e desenvolvimento econômico da RPC, e as “forças básicas” aglutinadas nos partidos taiwaneses favoráveis à independência vinham crescendo, a cada eleição. A atitude de “espera indefinida” dos dirigentes de Pequim aproximava-se do seu limite, diante das evidências de que a clique de Chen Shui-bian preparava-se para acelerar o processo de separação, inclusive com algum feito de impacto sob a proteção dos Jogos Olímpicos que se aproximavam. EUA e Japão tinham todo interesse na separação da Ilha, apesar do apoio formal de Washington ao status quo no Estreito. Na verdade, “manter ou alterar o status quo” reduzia-se a apoiar a independência gradual ou imediata. Em última análise, a política 3 da reunificação pacífica transmitia aos independentistas de Taiwan e seus aliados uma imagem de imobilismo de Pequim, e até de aceitação de passos mais ousados. Para manter sua credibilidade internacional, o governo de Pequim precisava adotar com urgência posições mais firmes. Tal foi a gênese da Lei Anti-Secessão, e a principal conclusão que se tira da conferência do Professor Yan é a de que os promotores desse texto legal estavam, talvez, mais preocupados em pressionar os dirigentes de Pequim do que propriamente os separatistas de Taipé. Hu Jintao, nomeado Secretário-Geral do PCC em outubro de 2002 (XVI Congresso do PCC) e elevado à Presidência da República na sessão de março de 2003 do Congresso Nacional do Povo, viu ali a oportunidade de obter a posição que lhe faltava, de Presidente da Comissão Militar Central, o Chefe Supremo das Forças Armadas Chinesas. No dia 13 de março de 2005, ele endossou vivamente a Lei AntiSecessão, em discurso claramente dirigido às “forças patrióticas” do regime, pronunciado no CNP, onde havia sido depositado o Projeto de Lei2. Horas depois do discurso, Hu foi designado para a presidência da CMC, por 2.886 votos a favor, 6 votos contra e 6 abstenções. A Lei seria aprovada no dia seguinte. Tendo tomado em mãos a situação, Hu contra-atacou com habilidade, convidando o líder do KMT em Taiwan, Lien Chan, a visitá-lo em Pequim. A visita ocorreu logo em abril, com grande impacto midiático nos dois lados do Estreito, e a Questão de Taiwan acabou recolocada no seu antigo contexto de problema entre partidos. A imagem televisionada do Presidente da China recebendo em Pequim o líder do KMT, vindo direto de Taipé para esse encontro, sacudiu o ambiente político nos dois lados do Estreito. Era a primeira reunião pública da liderança do PCC e do KMT, desde os idos dos 1940. Vários ajustes foram assinados, no nível partidário, com relevo para um esquema de reuniões e consultas seguido ainda hoje. Ainda em 2005, outras personalidades políticas da Ilha fizeram a peregrinação a Pequim, e foi-se tornando inviável o plano de um referendo de cunho independentista, acalentado pelo governo de Chen Shui-bian. Foram essas novidades no plano de partidos que forneceram a base para os entendimentos de governo a governo, iniciados quando o KMT voltou ao poder em Taiwan, no ano de 2008. 3. O Quadro Histórico – Guiando-me pela periodização adotada por Edwin A. Winckler3, cabe aqui dar uma idéia de como Formosa (Taiwan) evoluiu na Idade Moderna. Até o início do século XVI, a Ilha foi terra de ninguém, entregue à sua população aborígene de origem pouco precisa. Winckler cita, a partir daí, três grandes eras: imperial chinesa (1500-1895); colonial japonesa (1895-1945); e republicana (nacionalista) chinesa (1945-presente). Na verdade, o poder imperial chinês só se fez sentir com força em meados do século XVII, no contexto da derrota da dinastia Ming pelos mandchus Ching. Curiosamente, remanescentes do poder Ming fugiram para a Ilha, onde um deles, Koxinga, governou 4 durante algum tempo. Nessa era, Taiwan viveu por longos períodos na interface do mundo tradicional chinês com o nascente capitalismo europeu, representado no caso por navegadores de grande distância portugueses, espanhóis e holandeses. Em 1855, navegadores americanos hastearam a bandeira dos EUA numa praça-forte em Kaohsiung e, pouco depois, a coligação anglo-francesa que derrotara a China na Segunda Guerra do Ópio declarava aberto o porto de Tainan. A esta altura, alemães e japoneses mobilizavam-se para também obter posições coloniais no Leste Asiático. O Japão visou desde o início a Península Coreana, onde o Rei Kojong acabou pedindo a ajuda da China. Antes mesmo de os chineses conseguirem acudir os coreanos, o Japão atacou e destruiu o destacamento naval da China, impondo a esta o Tratado de Shimonoseki (1895), que entregou Formosa e as Ilhas Pescadores aos japoneses. O Japão buscava integrar-se na Primeira Revolução Industrial, quando já se tinham esgotado as condições para o caminho liberal adotado por países pioneiros, como a Inglaterra ou a França. Os japoneses precisaram recorrer às lições que estava dando a Alemanha, de industrialização sob o comando do Estado. E tiveram também de negociar com os imperialistas ocidentais sua aceitação entre eles, como um imperialista-tardio. Na expressão sugestiva de Bruce Cumings: “O Japão montou o Império que os anglo-americanos deixaram ele montar.” De todo modo, eram parcas na Ásia as terras ainda disponíveis para serem colonizadas, e os exíguos recursos do Estado japonês não lhe permitiam grandes aventuras. Tóquio foi tendo de contentarse com a anexação de países vizinhos, tratados como extensões do território nacional. Vale dizer, ampliando a eles o sistema administrativo e a infraestrutura material já existentes no país central, com o cuidado de excluir os locais das camadas superiores de gerenciamento. Em Taiwan, por exemplo, a autoridade colonial arcou com 60% dos custos dos novos sistemas de controle da água e de irrigação. Investiu na educação, e a taxa de alfabetização cresceu de 1%, em 1905, para 27%, em 1940, enquanto o número de matrículas no ensino elementar subia de 8,7% da população total, em 1905, para 57% em 1935. Graças a cuidados de saúde pública, a população de Taiwan cresceu de três para mais de cinco milhões de pessoas durante a era colonial. Não se formou uma classe comercial e industrial taiwanesa, mas no campo os japoneses deixaram prosperar um estamento de grandes agricultores nativos, a fim de manter girando a produção de arroz e açúcar, mercadorias que vieram a representar 70% das exportações da Ilha, maciçamente destinadas ao Japão. Em 1945, a rendição incondicional do Japão deixou os EUA com o controle de todos os territórios insulares ocupados no Pacífico pelo Império japonês. O retorno de Taiwan, as Pescadores e outras ilhas chinesas à República da China (o regime de Chiang Kai-shek) já havia sido estabelecido nos arranjos dos Aliados da Segunda Guerra Mundial, nas Conferências do Cairo e Potsdam. Um Governador delegado pelo KMT logo assumiu em Taipé, começando a tratar a Ilha como território conquistado. Juncos partiam diariamente para o continente, levando máquinas e outros bens saqueados de 5 empresas da Ilha. Em 1947, os desmandos dos nacionalistas provocaram uma revolta dos ilhéus, na qual se diz que foram trucidadas entre 10 mil e 20 mil pessoas, incluindo praticamente toda a elite da era japonesa. Estavam, por outro lado, começando a chegar as levas de continentais que fugiam diante do avanço de Mao Zedong. Estimase em dois milhões de indivíduos esses recém-chegados, que ocuparam a cúpula política e militar do novo regime. De 1949 a 1987, Taiwan viveria sob a Lei Marcial. E de 1951 a 1965 foi tomada em mãos, para efeitos práticos, pelos EUA. Burocratas da USAID foram dando forma, política e economicamente, a um novo país.4 A fase de dependência direta dos EUA merece um registro especial, para o qual vou apoiar-me num conhecido texto de Bruce Cumings5 e em dois artigos inseridos na coletânea editada por Edwin Winckler, já citada neste trabalho. Antes mesmo de terminar a guerra, uma poderosa coalizão de interesses domésticos passou a mobilizar-se, nos EUA, contra a decisão da Conferência de Potsdam de destruir o poderio industrial e militar do Japão, decisão que começou a ser implementada pelo Comandante da ocupação, General MacArthur. A vitória dos comunistas na China abriu caminho para o triunfo da coalizão em causa, na chamada “inversão de curso”. O Japão foi mantido numa posição de vassalagem, mas como a peça-chave do dispositivo estratégico de contenção da RPC, montado por Washington no Pacífico Norte. Uma economia regional do Nordeste Asiático foi sendo também desenvolvida, atribuindo-se ao Japão o papel de cabeça industrial, com a metade sul da Península coreana e Taiwan como sucedâneos da velha hinterlândia colonial japonesa, e os países do Sudeste Asiático, na medida em que se liberavam dos colonizadores europeus, transformados em fornecedores das matérias primas industriais e energéticas requeridas pela novel indústria japonesa, e em absorvedores das manufaturas de baixa tecnologia que o Japão iria poder produzir. A Guerra da Coréia, em 1950, consolidaria tudo isso. O dinheiro americano nela derramado funcionaria como um Plano Marshall para o Japão, e a intervenção de centenas de milhares de “voluntários” chineses, se de um lado levou ao armistício de 1953 (até hoje não superado), deu azo à decisão do Presidente Truman de isolar militarmente Taiwan. No primeiro dos dois artigos acima mencionados6, Richard Barret apóia-se em documentos oficiais americanos tornados públicos em diferentes momentos para estabelecer uma diversidade de posicionamentos em relação a Taiwan, da parte das autoridades dos EUA. Os militares eram favoráveis à manutenção na Ilha de um regime politicamente estável e pró-americano, embora não se mostrassem dispostos (até a Guerra da Coréia pelo menos) a empenhar muitos recursos nesse objetivo. No Departamento de Estado, prevalecia a tese de que um apoio limitado a Taiwan poderia trazer benefícios de curto prazo para os EUA, mas havia o risco de prejudicar as relações com a RPC, se esse apoio fosse sendo prolongado. Em contraste com a cautela dos militares e diplomatas, os mais entusiasmados com o progresso de Taiwan eram os burocratas da USAID. Eles viam na Ilha a oportunidade única de promover o 6 desenvolvimento econômico e social de uma grande área rural, experiência distinta da reconstrução de zonas industriais pela simples adição de capitais e tecnologia. Pareceu até, por momentos, que os promotores da ajuda americana gostariam de ver a derrocada do governo nacionalista, a fim de substituí-lo por um mandato das Nações Unidas. Típica dessa linha de pensamento foi a criação pelo Congresso americano, em 1948, da Comissão Conjunta Sino-Americana para a Reconstrução Rural (JCRR, na sigla inglesa), que faria as vezes de Ministério da Agricultura de Taiwan até 1979, com orçamento anual votado pelo Congresso dos EUA. Graças à JCRR, o Governo de Taipé pôde levar adiante programas de ajuda técnica agrícola a muitos países africanos, com efeitos práticos na disputa pelo reconhecimento diplomático sustentada com Pequim. Como de esperar, ao promoverem a formação de uma economia regional do Pacífico Norte no quadro da reorganização estratégica da área, no pós-Segunda Guerra Mundial, os EUA buscaram incentivar o desenvolvimento de economias nacionais de tipo capitalista. Um dos primeiros cuidados foi, então, efetuar reformas agrárias radicais nos países destinados a liderar a “Esfera Comercial do Oriente”: Japão, Coréia do Sul e Taiwan. As reformas foram levadas adiante quase que simultaneamente, na virada dos 1940 para os 1950, e o mesmo técnico americano, Wolf Ladejinsky, esteve nos três países para os retoques finais. No segundo dos artigos acima evocados, Denis Fred Simon7 amplia o exame da obra de state-building posta em marcha pelos EUA em Taiwan. Na verdade, a grande responsável por esse trabalho foi a Mutual Security Agency (MAS), que atuava na Ilha através de dois braços: a missão da AID e a missão do Military Assistance Advisory Group (MAAG). Esta última encarregada de assistir no levantamento das estruturas defensivas necessárias e no treinamento do pessoal adequado. Quanto à USAID, como mostra Simon, sua contribuição foi muito além da mercantilização do ambiente rural. Os conselheiros americanos empenharam-se em promover o fortalecimento do setor privado, diante das tendências estatizantes do governo de Taipé, e é possível colher, em outras fontes, relatos de como a USAID usava sua influência para profissionalizar burocratas e técnicos taiwaneses segundo as normas americanas, frustrando a carreira de quem não parecia útil à consolidação de uma economia capitalista8. Em 1965, os EUA suspenderam a ajuda financeira direta a Taiwan. Calcula-se que, nos quinze anos de sua duração, 1 bilhão e meio de dólares (de 1950) hajam sido doados a fundo perdido: 40% em média da formação anual de capital. Os conselheiros da USAID haviam ensinado aos taiwaneses os segredos do desenvolvimento puxado pelas exportações; haviam aberto o mercado doméstico americano às manufaturas de baixa tecnologia que a novel indústria taiwanesa começara a produzir; e haviam também estimulado os investimentos diretos estrangeiros na economia local. O Governo de Taipé dava mostras de que poderia continuar a caminhar com as próprias pernas. Contudo, tal como estivera acontecendo com a Coréia do Sul, Taiwan recebera a missão de funcionar como bastião do dispositivo estratégico americano de 7 contenção da China, e precisava manter um estabelecimento militar adequado, com a maior autonomia possível em termos de auto-financiamento e de abastecimento de armas. Nos anos 1970, sobretudo depois da retirada militar dos EUA do Sudeste Asiático e do lançamento da Doutrina Nixon, Coréia do Sul e Taiwan ainda precisaram ser ajudados pelos EUA a levantar indústrias para a fabricação de armamentos, recebendo inclusive licenças de produção que eram negadas a países da OTAN9. 4. O Estado Desenvolvimentista Chalmers Johnson, da Universidade de Berkeley, foi o grande teorizador do Estado Desenvolvimentista, num livro que marcou época: MITI and the Japanese Miracle (Stanford, 1982). Ele centralizou sua análise no Estado que a “reversão de curso” dos EUA permitira renascer no Japão do pós-Segunda Guerra Mundial, mas o modelo desenvolvimentista surgira na virada do século XIX para o século XX, quando os japoneses efetuaram sua primeira industrialização, guiados pelos ensinamentos colhidos na Alemanha. Na sua nova versão, o Estado Desenvolvimentista japonês foi também adotado pela Coréia do Sul e Taiwan. Há toda uma corrente de pensamento que contesta esta última observação e procura explicar o surto de modernização de Taiwan pela via do liberalismo econômico pregado pelos anglo-americanos. É possível levantar uma grande bibliografia de livros e artigos em defesa de cada uma das duas posições, mas eu não terei espaço para entrar nesse debate. Levarei adiante a reconstrução que estou fazendo, apoiado na aceitação das teses desenvolvimentistas. Para Chalmers Johnson, são quatro os fatores que compõem o Estado Desenvolvimentista: (1) a autonomia do Estado diante da sociedade civil, ou seja, a razão econômica prima sobre interesses particularistas; (2) a elite do país ou parte decisiva dela chega a um consenso sobre a imperiosidade do desenvolvimento; (3) há uma efetiva participação do aparelho do Estado na condução dos negócios públicos; (4) o Estado conduz uma política industrial em consonância com as exigências do mercado mundial. Nos anos 1960 a 1980, Taiwan satisfez essas quatro condições10, mostrando-se apto a conquistar nichos no mercado internacional para o escoamento de suas manufaturas intensivas em trabalho, a princípio, e intensivas em capital e conhecimento a seguir. Na fase avançada, a indústria dos componentes semicondutores, base de todas as múltiplas aplicações da eletrônica, foi o setor que maior atenção recebeu em Taiwan, tanto do governo quanto do empresariado. Em 1973, foi criada a estatal Electronics Research and Services Organisation (ERSO), com a missão de encontrar um parceiro transnacional para a instalação da indústria taiwanesa dos semicondutores, o que veio a acontecer em 1977. Em associação com a RCA, o Governo de Taipé investiu mais de três milhões de dólares na aquisição de conhecimentos teóricos e formação de pessoal, até fundar a United Microelectronics Corporation (UMC) e a Taiwan Semiconductors Manufacturing Company (TSMC), em 1987. A evolução dessa indústria merece atenção, tanto pelo papel de liderança que 8 ela adquiriu no progresso de Taiwan, quanto por se ter tornado a grande arena de resistência à China continental11. Numa iniciativa claramente voltada para estimular o desenvolvimento econômico apoiado no conhecimento, o Governo de Taipé fundou em 1980 o Hsinchu Science-based Industrial Park (HSIP), numa área a 70 quilômetros da capital, onde atuavam instituições acadêmicas e de pesquisas. Uma delas, o Industrial Technology Research Institute (ITRI), estava ativa desde 1973, preparando o terreno para as tecnologias da informação (TI) e a indústria dos circuitos integrados (CI). O Hsinchu veio a ser o grande catalisador da ascensão mundial de Taiwan nas TI e CI, graças inclusive a seu papel na atração de chineses que estivessem estudando ou trabalhando no exterior, nesses setores. Em 1994, o número dos retornados alcançaria o pico de 6.500 indivíduos, responsáveis pela fundação de algumas centenas de firmas especializadas, na Ilha. A essa altura, Taiwan ocupava o terceiro lugar mundial na produção de material microeletrônico, atrás apenas dos EUA e do Japão. Uma de suas inovações mais bem sucedidas fora a separação de sub-setores no interior da grande indústria dos CI. Firmas taiwanesas especializaram-se em fundições para o fabrico das bolachas de silício (wafers), sem preocupar-se com o desenho do circuito integrado a ser nelas implantado. Essa separação entre dois tipos de atividades complexas e caras permitiu avanços tecnológicos em cada um deles, e a proliferação de companhias, ditas “fabless”, concentradas nos desenhos dos circuitos. As “fabless” multiplicaram-se nos EUA, enquanto Taiwan liderava nas fundições. Mas em 1988 ganhou contundência um elemento perturbador dos êxitos de Taiwan: o fator RPC. No mês de julho, o Governo de Pequim promulgou um “Regulamento para o Incentivo de Investimentos dos Compatriotas Taiwaneses”. Ao pôr em marcha, em 1979, seu grande esforço de aggiornamento da RPC, Deng Xiaoping dera desde o início destaque ao trabalho com Taiwan. Além da criação da ZEE de Xiamen, fazendo face à Ilha, Pequim suspendeu o bombardeio das ilhotas de Quemoi e Matsu, em execução desde 1950, e o Congresso Nacional do Povo emitiu uma “Carta aos Compatriotas de Taiwan”, conclamando-os ao estabelecimento de relações diretas – comerciais, marítimas e postais - entre os dois lados do Estreito. O Governo de Taipé respondeu com frieza, mas o empresariado mostrou-se crescentemente interessado no aprofundamento de tais relações. Em meados dos anos 1980, depois da assinatura do acordo sino-britânico para o retorno de Hong Kong à soberania chinesa, Pequim intensificou sua campanha de “um país dois sistemas” em direção a Taiwan, e também os esforços diplomáticos pelo “desreconhecimento” do governo taiwanês. Particularmente dolorosa para Taipé havia sido a decisão de Washington de transferir para Pequim o seu reconhecimento. E quando os americanos interferiram em todo o quadro financeiro do Leste Asiático, na famosa reunião do Hotel Plaza em Nova York (1985), Chiang Ching-kuo, filho e sucessor de Chiang Kaishek no comando do partido único KMT, concluiu ser oportuno democratizar o sistema 9 político de Taiwan. Numa entrevista dada à proprietária do Washington Post (07.10.86), ele anunciou sua determinação de suspender a Lei Marcial e a proibição à formação de partidos políticos.12 A suspensão da Lei Marcial flexibilizou a posição de Taipé em relação aos investimentos na RPC, desde que feitos de forma indireta, em geral através de Hong Kong. No continente, enquanto isso, tomava impulso a política de estimular firmas estrangeiras a virem produzir na China, trazendo os insumos e a tecnologia, e com a obrigação de exportar o produzido. Condições especiais foram dadas aos taiwaneses, que podiam vender no mercado doméstico chinês até 30% dos seus produtos. As indústrias de baixa tecnologia (a dos calçados, v.g.) começaram a cruzar em massa o Estreito, levando o Governo de Taipé a introduzir medidas administrativas, como limites para as somas que investidores taiwaneses podiam investir no continente , ou cotas para o volume de exportações permitido. Apesar dessas medidas, o fluxo de investimentos e exportações da Ilha não parava de crescer, e em 2001 deu um salto, em virtude do ingresso das “duas Chinas” na OMC. É consenso, entre os economistas, que Taiwan beneficiou-se mais do que qualquer outro país do ingresso da RPC na OMC. Se se incluem as exportações para Hong Kong, as vendas de Taiwan para a “Grande China” atingiram, na primeira metade de 2002, quase 19 bilhões de dólares, ou 30% das exportações totais do país; dez pontos percentuais a mais do que a parcela das exportações taiwanesas para os EUA, no mesmo período. Três tipos de explicações costumam ser usados para explicar esse salto: (1) a grande experiência das firmas taiwanesas em exportar para a China e seu bom conhecimento dos sistemas de contingenciamento e licenciamento chineses; (2) o crescente valor dos componentes e peças taiwaneses para os produtores do continente; (3) o nível cada vez maior dos investimentos de firmas de Taiwan na indústria continental. Aspecto central do relacionamento sino-taiwanês é a convergência que se desenvolve entre as trajetórias tecnológicas das duas economias, à medida que ambas se instalam na globalização. Nos dois lados do Estreito, o Estado foi o iniciador, facilitador e suporte de programas de P&D; de educação; e de reestruturação tecnológica. Foi, também, o grande interlocutor das corporações transnacionais, no que concernia aos aspectos tecnológicos das respectivas economias, e à integração delas nas redes produtivas globais. Em Taiwan, o governo chegou a acalentar a idéia de fazer do país um Centro de Operação Regional da Ásia-Pacífico, servindo de base para companhias transnacionais interessadas em trabalhar nos mercados do Leste Asiático: Sudeste Asiático e China, em particular. O plano não marchou, basicamente porque a China também foi-se empenhando em atrair as transnacionais para trabalhar diretamente no mercado chinês, mudando por exemplo sua abordagem industrial de áreas territoriais para setores técnicos. Não demorou que as firmas taiwanesas das TI e CI tivessem elas próprias de transferir suas atividades de ponta para o continente, a fim de enfrentar a concorrência das transnacionais. Foi um choque para Taipé quando, 10 em 2000, dois grupos empresariais da Ilha anunciaram que iam instalar no continente fundições de bolachas de silício, do tipo liderado por Taiwan. Em 2002, em reação a essa perda de vigor diante da RPC, o Estado desenvolvimentista taiwanês lançou um programa para novo salto industrial, com a criação de uma economia baseada na inovação tecnológica. Dez áreas-chaves para atividades com maior valor agregado 111foram identificadas, e atenção especial passou a ser dada à P&D em todas elas. Cerca de 70 firmas locais foram estimuladas a criar seus próprios centros inovadores13. 5. A Interdependência Sino-Taiwanesa – Recapitulando. A abertura do mercado continental às firmas de Taiwan esteve na raiz do chamado “Milagre Taiwanês”: um longo período (1951-1987) de crescimento médio em torno de 8,8% anuais. Inicialmente, foram empresas pequenas e médias que reduziram seus custos de produção e melhoraram sua competitividade internacional, ao se instalarem no continente. O Estado desenvolvimentista reagiu ao esvaziamento industrial, promovendo o surgimento de empresas mais intensas em tecnologia e com maior valor agregado, as quais, por sua vez, acabaram deslocando produção para o continente, a fim de poderem aumentar as exportações para os EUA e o Japão. No final dos anos 1980, pressões protecionistas dos EUA, inclusive no terreno financeiro com o Acordo do Hotel Plaza (1985), forçaram o reajuste violento da economia taiwanesa, dando origem a uma onda de investimentos diretos no exterior, nos EUA e China continental, em particular. Em direção à China, um novo salto de investimentos aconteceria no novo século, com a entrada dos dois países na OMC. O Estado taiwanês estivera impulsionando as TI e CI, mas elas cresceram em ligação cada vez mais estreita com o mercado chinês. Na altura de 2006, a China continental se transformara no maior importador e maior exportador em relação a Taiwan. Na década dos 1970, com a aproximação estratégica entre Washington e Pequim, paralelamente à substituição de Taipé por Pequim nas Nações Unidas, teve início um período de esgarçamento nas relações de Taiwan com seu grande patrono, que acabou levando, no entanto, à decisão de Chiang Ching-kuo, filho e sucessor de Chiang Kai-shek, de democratizar seu regime, em parte para revitalizar a legitimidade internacional do mesmo. No início de 1986 tornara-se evidente que Chiang Ching-kuo tinha pouco tempo mais de vida. O problema da sua sucessão ganhava premência, e surgiam sinais de descontentamento político que punham em dúvida a possibilidade de uma transição palaciana do poder. O velho ditador vinha dando mostras, porém, de notável senso da História, tomando a iniciativa, nos seus dois últimos anos de vida, de uma série de reformas liberalizadoras, apesar da recalcitrância da velha guarda do KMT e das lideranças militares. Graças a isso, a chefia do Estado pôde ser assumida, após a morte de Chiang, pelo Vice-Presidente Lee Teng-hui, um agrônomo nascido na Ilha e educado no Japão e EUA (Universidade de Cornell). No XIII Congresso do KMT, em outubro de 1988, Lee foi também conduzido à presidência do KMT. Usando sua 11 dupla liderança, do Estado e do partido, Lee Teng-hui iria promover a reivindicação dos ilhéus a uma identidade nacional taiwanesa, oposta à identidade chinesa. Muito se tem discutido e escrito em torno dessa reivindicação, que embora bastante popular na Ilha, ainda não obtém maioria nos sucessivos recenseamentos lá realizados. E é importante verificar que os chineses continentais convivem bem com a idéia. Haja vista os mais de dois milhões de taiwaneses, entre empresários, técnicos e respectivas famílias, que vivem hoje no continente em comunidades urbanas concebidas segundo seus usos e preferências. Inclusive com escolas para os filhos, nas quais se adota o currículo vigente na Ilha, um dos principais veículos de difusão da idéia da identidade taiwanesa. A Questão de Taiwan nasceu junto com a fundação da RPC, como um aspecto ainda não resolvido do próprio processo de surgimento do novo regime. Tornou-se de praxe, assim, que o problema seja tratado em Pequim diretamente pelo líder supremo. No tempo de Mao Zedong, nem o Primeiro Ministro Zhou En-lai tinha autoridade para tomar decisões autônomas. Na era reformista de Deng Xiaoping criou-se uma comissão, conhecida sob a sigla CLGTA, confiada a um alto dirigente (Yang Shangkun, inicialmente), que atuava como uma espécie de vice-czar nos assuntos de Taiwan. Quando a Terceira Geração, com Jiang Zemin como seu núcleo, sentiu-se plenamente instalada no poder, Jiang apressou-se a substituir ele próprio o velho Yang Shangkun, na presidência da CLGTA (novembro de 1993). Ele redigiu em seguida um documento vazado em termos fortes, conhecido como “os oito pontos de Jiang Zemin”, que veio a ser aprovado pelo Birô Político do PCC, em janeiro de 1995. Hu Jintao, núcleo da Quarta Geração de dirigentes, também assumiu a presidência da CLGTA. Ele tivera, porém, pouco contato com a Questão de Taiwan, ao longo de sua carreira, e seguiu adotando cautelosamente os “oito pontos de Jiang”. Hu repetiu a prática iniciada por seu antecessor de nomear um membro do Comitê Permanente do Birô Político para a vice-presidência da CLGTA, atribuindo-lhe a responsabilidade por eventuais contatos diretos com o lado taiwanês. O vice de Jiang, o poderoso Zeng Qinghong, conduziu em julho de 2000 uma série de conversações secretas com o chefe da Casa Civil do Presidente Lee Teng-hui. Um jornal de Pequim revelou a ocorrência dessas conversas, em Hong Kong e Macau, sem desvendar o conteúdo. Esses antecedentes mostram a importância institucional da intervenção de Hu Jintao, em 2005, neutralizando o ataque esquerdista da Lei Anti-Secessão para recolocar o problema no nível das relações entre partidos. Diferentemente da imagem de agressiva intransigência diante de Taiwan, que observadores mal-dispostos em relação à China costumam apresentar, é possível encontrar na evolução institucional acima descrita um contínuo movimento de adequação às realidades políticas e estratégicas que cercam a Questão de Taiwan. Num artigo em The China Quarterly14, o professor taiwanês Yun-han Chu fez precisamente isso. Ele acentua cinco desdobramentos positivos, que vêm ocorrendo 12 na abordagem da problemática taiwanesa pelos dirigentes de Pequim: (1) os membros da CLGTA demonstram estar aprendendo a conviver com o pluralismo caótico da democracia em Taiwan e vêm exibindo maior compreensão dos anseios do grande público da Ilha, o qual por sua vez tem mostrado crescente receptividade às propostas do continente; (2) Pequim parece ter compreendido que muito tempo ainda passará até soluções mais abrangentes se tornarem possíveis, e deixou de exigir o reconhecimento prévio do princípio de “uma China única” para a negociação de problemas práticos, como os vôos diretos e o turismo; (3) Pequim diversificou seus contatos políticos na Ilha, cultivando relações com dirigentes dos diversos partidos taiwaneses; (4) Pequim deixou cair de vez a idéia de impor prazos a Taiwan para tal ou qual acordo; (5) Pequim tem revelado grande flexibilidade no tocante às relações triangulares Washington-Pequim-Taipé, parecendo ter concluído que precisará da ajuda dos EUA para conter estratégias de marcha ardilosa (“creeping strategy”) para a independência, que possam estar sendo seguidas em Taiwan. Um ângulo pouco adotado nas análises da Questão de Taiwan é o do papel da presença taiwanesa nos avanços políticos na China continental. Avanços bem reais, embora pouco reconhecidos. Vale a pena citar, a respeito, um artigo recente do reputado sinologista David Shambaugh: “O ambiente político na China torna-se gradualmente mais plural e liberal. Grande parte das reformas políticas (inclusive no interior do PCC) são difíceis de ver do exterior do país, mas é fato que o sistema político vem adquirindo maior transparência, responsabilidade, respeito ao mérito, abertura, eficiência e sintonização com o público. Apesar disso (ou talvez por causa disso), o PCC mantém-se firme no controle, com ampla legitimidade popular.” O ponto aqui é reconhecer a influência taiwanesa nessa evolução. Dois ex-funcionários graduados do Departamento de Estado americano exploraram o tema, em artigo de 200815. Acentuam eles que os investimentos e implantações industriais dos taiwaneses têm ajudado substancialmente a estabilização e modernização da RPC. À medida que se intensificam os laços entre os dois lados do Estreito, a interdependência econômica não só desencoraja a idéia da independência de jure de Taiwan, como tem também impulsionado a liberalização pacífica da China. Schriver e Stokes, os autores que estou invocando, chamam a atenção para a contribuição que a infusão maciça de capitais e perícia taiwanesa terá dado para a melhoria das condições de vida, o aumento da escolaridade e da liberdade pessoal na RPC. Empresários taiwaneses operam cerca de 100 mil empresas mistas ou subsidiárias no continente; 63 das 500 maiores companhias da RPC são propriedade de taiwaneses. Os empresários da Ilha dão emprego a algo em torno de dez milhões de operários, no continente, e estima-se que outros 40 milhões dependam de empregos ancilares. Os gerentes taiwaneses têm tido uma ação inestimável na formação dos seus correspondentes chineses, habilitando-os a produzir bens competitivos no mercado global. Há, pois, em ação um “poder brando”, cujo peso tenderá a aumentar, em função dos desenvolvimentos posteriores ao quadro descrito pelos autores americanos. Avoluma-se o fluxo de turistas do 13 continente, cada vez mais interessados nos debates da televisão da Ilha e no modo de vida ali. Cresce, por outro lado, o número de jovens diplomados taiwaneses que buscam no continente o seu primeiro emprego. 6. Fim de Jogo? O grau de interdependência econômica e de interação das populações, já atingido no entorno do Estreito de Taiwan, permite que se considere remoto o perigo de choque armado entre chineses dos dois lados do Estreito. É certo que a RPC segue montando um poderoso dispositivo bélico na sua costa, mas a desproporção desse dispositivo diante das possibilidades de Taiwan e o próprio tipo do armamento que se acumula sugerem que o adversário mirado não é o regime taiwanês. A RPC busca, na verdade, dotar-se de um poderio militar assimétrico que lhe dê condições de não fazer feio, se tiver de enfrentar a potência hegemônica do presente, os EUA. Este outro perigo não pode ser descartado por Pequim. Ainda a 15.11.10, o Conselho de Relações Exteriores, editores da Foreign Affairs, circulou um texto do Capitão Raul Pedrozo, professor no U.S. Naval War College, afirmando o direito dos EUA de manterem “um programa vigoroso e ostensivo de vigilância e reconhecimento” nas águas próximas da China, inclusive no interior da sua Zona Econômica Exclusiva. A RPC tem contestado tal pretensão, desde a famosa interceptação do avião-espião U.S. EP-3 (abril de 2001) até casos recentes, como a abordagem do U.S.S. Impeccable (março de 2009), quando o mesmo evoluía próximo a base de submarinos na Ilha de Hainan. A eventualidade de uma derrapada que leve a choque armado é teoricamente mais realista nessas gesticulações estratégicas, do que na Questão de Taiwan. É também pouco provável, pois o Birô Político dificilmente autorizaria o ELP a atacar Taiwan, sem estar totalmente certo da perspectiva de triunfo. E o Presidente Ma Ying-jeou, em maio de 2010, fez uma proclamação retumbante: “Jamais pediremos aos EUA que venham lutar por Taiwan.” A Questão de Taiwan parece, pois, ter entrado numa fase de ajustamentos, na qual se entremearão todos os múltiplos antecedentes históricos, políticos e econômicos que eu procurei alinhar neste trabalho. E na qual, além dos antecedentes locais, vão entrar em cena considerações do equilíbrio global. Por maiores que sejam as divergências entre EUA e RPC, os dois países coincidem em não desejar uma guerra que ninguém sabe como acabará16. A dinâmica da agitação democrática em Taiwan tem levado, na verdade, a uma aproximação entre as duas grandes potências. No plano local, o jogo concreto será conduzido até 2012 pelos dois presidentes em posto. Hu Jintao já deu forma à sua própria visão do processo, num discurso de 31.12.08 em que enunciou “Seis Pontos”: (1) um acordo pondo fim às hostilidades e instalando a paz, com base no princípio da “China única”; (2) reforço dos laços comerciais, inclusive com a negociação de um minucioso acordo de cooperação; (3) aprofundamento das comunicações e do intercâmbio entre os dois lados do Estreito; (4) desenvolvimento 14 das trocas culturais e pedagógicas; (5) busca de “ajustes apropriados e razoáveis” para a participação de Taiwan em instâncias internacionais”; (6) intensificação de trocas e contatos no campo militar, e abertura de um debate em torno de medidas para a construção de confiança. Ma Ying-jeou, do seu lado, está trabalhando sob o lema: “Não à reunificação; não à independência; não a um conflito.” Vale dizer, buscando uma solução mediana ainda por ser inventada: Confederação? Estado associado à maneira de Porto Rico? Na sua condição de presidente do KMT, Ma influiu na conclusão do ECFA e está agora empenhado em dar substância a esse acordo quadro, através da negociação de uma zona de livre-comércio com a China que evite a marginalização de Taiwan, diante da multiplicação de acordos desse tipo no âmbito da ANSEA (Associação das Nações do Sudeste Asiático)17. A economia taiwanesa, apesar das suas realizações tecnológicas, padece de fraquezas estruturais como o peso excessivo do comércio externo ou a grande concentração, regional e setorial, das exportações. Ou ainda a dependência de empresas americanas, japonesas e até sul-coreanas para obter tecnologias de ponta. Diante do crescente peso mundial da RPC, buscar uma composição com o colosso, preferentemente no quadro do chamado “Círculo Chinês”, impõe-se como uma tendência forte aos governantes de Taiwan. Notas Bibliográficas: 1 Fell, Dafydd. “Was 2005 a Critical Election in Taiwan?” Asian Survey - Vol. 50, nº 5 (Sept/Oct 2010) O Estado de São Paulo (14.03.05) “Antes de votar lei contra Taiwan, Hu fala em guerra” 3 Winckler, Edwin A & Susan Greenhalgh Contending Approaches to the Economy of Taiwan Armonk: M.E. Sharpe, 1988. Há muitos outros livros sobre a história de Taiwan, registrarei dois, de que também me servi para este trabalho: (1) Clark, Cal. Taiwan’s Development. New York: Greenwood Press, 1989. (2) Klintworth, Gary. New Taiwan, New China. Melbourne: Longman Australia, 1995. 4 A Revista The China Quarterly, da Universidade de Londres, publicou em março de 2001 um número especial com intenção de dar um retrato abrangente de Taiwan, no século XX. Sobre a evolução econômica, destacaram-se dois artigos: (1) Cheng Tun-jen. “Transforming Taiwan’s Economic Structure th in the 20th Century”, (2) Howe, Christopher. “ Taiwan in the 20 Century: Model or Victim? Development Problems in a Small Asian Economy”. O Professor Howe tem um outro artigo, muito útil publicado na mesma revista em 1996: “The Taiwan Economy: The transition to Maturity and the Political Economy of its Changing International Status” 5 Cumings, Bruce. “The Origins and Development of the Northeast Asian Political Economy” in Deyo, Frederic C. The Political Economy of the New Asian Industrialism. Ithaca: Cornell University Press, 1987 6 Barret, Richard E. “ Autonomy and Diversity in the American State on Taiwan”, in Winckler, Edwin A. Contending Approaches to the Economy of Taiwan Armonk: M.E. Sharpe, 1988. 7 Simon, Denis Fred. “External Incorporation and Internal Reform”, in Winckler, Edwin A. Contending Approaches to the Economy of Taiwan Armonk: M.E. Sharpe, 1988. 8 V. por Exemplo: Haggard, Stephan Pathways from the Periphery Ithaca: Cornell University Press, 1987, passim 9 Cf. Nolan, Janne E. Military Industry in Taiwan and South Korea, London: The Macmillan Press, 1986 2 15 10 Cf. Amsden, Alice H. “O Estado e o Desenvolvimento Econômicos de Formosa” in Revista de Economia Política, São Paulo - Vol. 7, nº 4 (Out/Dez 1987); Yu-Shan Wu. “Taiwan’s Developmental State”, in Asian Survey - Vol. 47, nº 6 (Nov/Dec 2007) 11 A história da indústria eletrônica em Taiwan está contada em muitos livros e artigos. Destaco uma obra recente e de boa qualidade: Rowen, Henry S. et allia (Eds). Making IT: The Rise of Asia in High Tech Stanford: Stanford University Press, 2007. Mais antigo, mas igualmente válido, há um estudo de Ernst, Dieter. New Opportunities and Challenges for Taiwan Electronics Industry – The Role of International Cooperation University of California Berkeley: Berkeley Roundtable on the International Economy (BRIE), nº 78, July/1995 12 Num importante artigo em The China Journal, revista da Universidade Nacional da Austrália: “Taiwan’s Domestic Politics and Cross-Strait Relations” (nº 53, Jan/2005), Yu-Shan Wu sugere que a escolha de Chiang Ching-Kuo fazendo seu anúncio no jornal americano mostra que o gesto democratizante era dirigido à audiência dos EUA mais do que ao público doméstico. (pg. 35, n. 1) 13 A revista The China Quarterly, da Universidade de Londres é um farto repositório de artigos analisando a marcha dos investimentos taiwaneses na China Continental, Registro uns quantos aqui: Ping Deng. “Taiwan’s Restriction of Investment in China in the 1990s” Vol. 40, nº 6 (Nov/Dec 2000); TseKang Leng. “Economic Globalization and it Talent Flows Across the Taiwan Strait” Vol. 42, nº 2 (Mar/Apr 2002); Sutter, Karen M. “Business Dynamism Across the Taiwan Strait” Vol. 42, nº 3 (May/Jun 2002); Fuller, Douglas B. “The Cross-Strait Economic Relationship’s Impact on Development in Taiwan and China” Vol. 48, nº 2 (Mar/Apr 2008). Úteis, são também: Tse-Kang Leng. “State and Business in the Era of Globalization: The Case of Cross-Strait Linkages in the Computer Industry”, in The China Journal, Canberra nº 53, January 2005; Ming-Chin Monique Chu. “Contrôler l’incontrôlable: La delocalisation de l’indrustrie taiwanaise des semi-conducteurs vers La Chine Et sés implications pour la sécurité”, in Perspectives Chinoises, Hong Kong (2008 nº 1) 14 Yun-han Chu. “Power Transition and the Making of Beijing’s Policy towards Taiwan”, in The China Quarterly (2003) 15 Schriver, Randall & Mark Stokes. “Taiwan’s Liberation of China”, in Current History (September 2008). V. Também: Tain-Jy Chen. “Will Taiwan Be Marginalized by China?” New York, Columbia University (Asian Economic Papers 2:2), 2003; Smith, Heather & Stuart Harris. Economic Relations Across the Strait: Interdependence or Dependence? Canberra: ANU Australia-Japan Research Centre (Pacific Economic Papers nº 264) 16 Em artigo na Current History (September 2010), o renomado sinólogo David Shambaugh mostrou-se bem mais otimista: “...cross-strait relations have now developed to such an extent that the “Taiwan Issue” has essentially been resolved. Game over.” (pg. 224) 17 Perspectives Chinoises, revista do Centre d’études français sur La Chine Contemporaine publicou, no seu número 112 (2010/3) todo um dossiê sobre as opções de Ma Ying-jean diante do ECFA, que ele ajudou a negociar 16
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