Do Velho ao Novo Mundo - Festival Terras sem Sombra
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Do Velho ao Novo Mundo - Festival Terras sem Sombra
5.º festival de música sacra do baixo alentejo 2009 J J Do Velho ao Novo Mundo 5.º festival de música sacra do baixo alentejo 2009 J J Do Velho ao Novo Mundo 7 7 7 PRODUÇÃO 7 7 7 PROJECTO FINANCIADO POR DGARTES (DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES) / MC (MINISTÉRIO DA CULTURA) PATROCÍNIO APOIOS MEDIA PARTNERS arte das musas Rua da Páscoa, 87 1250-178 Lisboa PORTUGAL Tel: +351 210995674 [email protected] www.artedasmusas.com departamento do património histórico e artístico da diocese de beja Largo dos Prazeres, 4 7800-420 Beja PORTUGAL Tel: +351 284320918 Fax: +351 284824500 [email protected] www.diocese-beja.pt festival terras sem sombra de música sacra do baixo alentejo [email protected] www.terrassemsombra.com direcção Filipe Faria José António Falcão produção António Gonçalves Avelino Veloso João Diogo Pratas Patrícia Pereira Rita Santos Sara Fonseca textos Fernando Miguel Jalôto José António Falcão José Bruto da Costa fotografia* Carlos Cristóvão (n.os III e IV) Francisco Borba (n.os 5, 8 e 9) José António Falcão (n.os 1, 4 e 6) Rita Santos (n.o 7) Sara Fonseca (n.os 2 e 3) Sofia Perestrello (n.os I, II, IV, V e VI) design & paginação Arte das Musas impressão M-2 Artes Gráficas, L.da depósito legal 288005/09 capa Salva | Trabalho português | Século XVIII (inícios) Beja, Museu Episcopal (igreja de Nossa Senhora dos Prazeres) * As demais fotografias são da responsabilidade dos artistas e grupos convidados © Arte das Musas | Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2009 ÍNDICE abertura Jorge Barreto Xavier Director-Geral das Artes 11 inovação e excelência António Cartageno Secretariado de Liturgia e Música Sacra da Diocese de Beja 13 vinte e cinco anos depois José António Falcão Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja 15 elogio do efémero Filipe Faria Director Artístico do Festival Terras sem Sombra 27 programa geral 5.º Festival Terras sem Sombra 29 concerto de abertura . castro verde Sete Lágrimas Pedra Irregular: O Nascimento do Barroco em Portugal 35 concerto ii . almodôvar Ludovice Ensemble La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV 57 concerto iii . alvito Concerto Campestre Sileti Venti: As Paixões da Alma 73 masterclass/workshop . santiago do cacém Flávia Almeida e Maria José Barriga Cravo 87 concerto iv . santiago do cacém Flávia Almeida e Maria José Barriga Frente a Frente: A Música Barroca em Duo de Teclas 87 conferência . beja Manuel Pedro Ferreira Do Velho ao Novo Mundo 97 concerto de encerramento . beja Coro Gulbenkian O Esplendor Luso-Brasileiro nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX I. Martírio de São Crispim e São Crispiniano 103 | Júlio Diniz de Carvo e António de Oliveira | Ca. 1600 Beja, Museu Episcopal. “Os prazeres do ouvido enredaram-me e subjugaram-me mais tenazmente, mas Vós soltastes-me e libertastes-me. Agora, confesso-o, encontro um pouco de repouso nas melodias a que as vossas palavras dão vida, quando são cantadas com uma voz suave e bem trabalhada [...]. Às vezes, parece-me que lhes atribuo mais honra do que convém, quando sinto que o meu espírito se move mais religiosa e ardentemente para a chama da piedade com aquelas letras sacras, quando assim são cantadas, do que se não fossem cantadas assim, e que todos os afectos do meu espírito, cada um segundo a sua diversidade, têm na voz e no canto as suas próprias melodias que os desperta. [...] Às vezes [...] gostaria de afastar dos meus ouvidos e dos da própria Igreja toda a melodia das músicas suaves que acompanham o saltério de David; e parece-me mais seguro o que recordo ter ouvido dizer a respeito de Atanásio, bispo de Alexandria, o qual levava o leitor do salmo a entoá-lo com uma inflexão de voz tão pequena, que parecia mais própria de quem recita do que de quem canta. Contudo, quando me lembro das minhas lágrimas, que derramei ao ouvir os cânticos da Igreja, nos primórdios da recuperação da minha fé, e quando mesmo agora me comovo, não com o canto, mas com as coisas que se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma modulação perfeitamente adequada, reconheço de novo a utilidade desta prática. Assim, flutuo entre o perigo do prazer e a experiência do efeito salutar e inclino-me, apesar de não pronunciar uma opinião irrevogável, a aprovar o costume de cantar na igreja, a fim de que, por meio do prazer dos ouvidos, um espírito mais fraco se eleve ao afecto da piedade. Todavia, quando me acontece que a música me comova mais do que as palavras, confesso que peco de forma a merecer castigo e, então, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro!” Santo Agostinho de Hipona, Confissões 9 1. Pia de água benta | Vila Ruiva (Cuba), igreja matriz de Nossa Senhora da Expectação. abertura Jorge Barreto Xavier Director-Geral das Artes ! Honrado pelo convite que me foi dirigido no sentido de escrever algumas palavras introdutórias relativas ao Festival Terras Sem Sombra, aproveito o ensejo para me congratular pela capacidade de organização e competência dos responsáveis que têm vindo a assegurar, desde há cinco anos, a qualidade de uma iniciativa já consolidada em terras do Baixo Alentejo. Sabendo rodear-se de colaboradores de reconhecido mérito nas áreas artísticas investigadas e abordadas, nomeadamente as do riquíssimo património musical religioso, estes responsáveis têm logrado divulgar o acervo da produção musical portuguesa do passado, a par dos cruzamentos com outras culturas, em particular da região mediterrânica e dos encontros registados historicamente entre tradições diversas, tais como a cristã, a árabe e a judaica. De salientar igualmente a selecção criteriosa dos espaços históricos e patrimoniais onde decorrem os concertos programados, invariavelmente os mais apropriados à apresentação pública de obras de um repertório específico de carácter religioso numa vasta região de confluência de inspirações e tradições culturais. Faço, assim, votos por mais um êxito desta iniciativa ímpar no panorama musical português, esperando que constitua de novo um êxito perante as comunidades que a ele têm acorrido, fidelizando a sua presença e um interesse manifesto pelos repertórios revelados ao longo dos últimos anos. 11 Árvore de Jessé (capela de Nossa Senhora do Rosário) | Manuel João da Fonseca | 1676 Beja, igreja de Santa Maria da Feira. 2. inovação e excelência António Cartageno Secretariado de Liturgia e Música Sacra da Diocese de Beja ! Sobre os programas dos concertos da 5.ª edição do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo, que este Secretariado analisou, todos eles – quer os meramente instrumentais, quer os vocais – podem perfeitamente ser apresentados nas igrejas. Não vemos, portanto, qualquer inconveniente na sua execução dentro dos vários espaços sagrados propostos. Pelo contrário, regozijamo-nos por ver que música sacra de alto nível, porventura nunca ouvida na nossa região (e mesmo raramente ouvida em Portugal) e interpretada por agrupamentos musicais de excelência, poderá ser apreciada nas várias localidades escolhidas para este prestigiado Festival. 13 Banco da Irmandade do Santíssimo Sacramento | Alfundão (Ferreira do Alentejo), igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição. 3. vinte e cinco anos depois José António Falcão Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja ! O Senhor consolará Sião, e reparará todas as suas ruínas. Transformará o seu deserto num lugar de delícias, a sua solidão num paraíso do Senhor, onde haverá gozo e alegria, cânticos de louvor e melodias de música. Isaías, 51, 3 1. NO ÂMAGO DO PAÍS O traço que melhor permite distinguir o Alentejo é, indubitavelmente, o seu carácter. Este elemento diferenciador sente-se tanto na paisagem, nas pessoas e nos monumentos como nas pequenas coisas do quotidiano, mesmo nas palavras e nos gestos simples. Fruto de uma longa sequência de acções recíprocas entre a natureza e a história, ele acabou por moldar uma personalidade facilmente identificável (embora nem sempre facilmente inteligível, sobretudo quando contemplada por olhos alheios) dentro do tecido da identidade nacional. Talvez seja em solo alentejano, mais do que em qualquer outro sítio de Portugal, que se pode contemplar o frémito profundo da alma colectiva. Não é só por obra do acaso que a região permanece, de entre todas, a mais íntegra do ponto de vista do património ambiental e cultural. Num mundo em transformação acelerada, o antigo “celeiro do país” tem-se mantido aferrado aos seus valores. A metamorfose, todavia, parece inexorável. Hoje em dia ela não representa, como aconteceu frequentemente até agora, uma simples cedência da periferia ao primado dos centros decisores. Após décadas de quase paralisia, o desenvolvimento está a bater com força – para o bem e para o mal – à porta deste território repleto de potencialidades. É importante saber acolhê-lo e orientá-lo de forma sustentável, principalmente quando o que está em causa pode representar a saída para a sobrevivência demográfica, ameaçada 15 16 por uma hemorragia que os recursos endógenos não lograram suster. Precisamos de tornar viável o futuro do Alentejo, algo difícil se rarearem as condições indispensáveis à fixação de novos activos. Este fenómeno ocorre, porém, dentro de uma conjuntura na qual emerge com voracidade um outro paradigma civilizacional que se subordina ao diktat de factores ainda pouco tipificados em Portugal. Mercado global, cultura de massas, novas tecnologias, capitais voláteis, subjectivismo ético, redução ontológica do ser humano à esfera de consumidor/objecto de consumo são alguns dos altares em que a sociedade actual queima, muitas vezes em vão, o seu incenso. Tão penetrantes realidades ameaçam a permanência de um modus vivendi plurissecular, repercutindo-se implacavelmente no tecido social e económico, mas não deixam de condicionar também, de forma notória, as práticas e as manifestações culturais, sem esquecer a própria vivência da espiritualidade cristã, que em terras do Sul possui características muito próprias. Parte fundamental da personalidade alentejana, o património religioso desempenhou – e continua a desempenhar – um papel decisivo no universo afectivo e simbólico da nossa idiossincrasia. Muito extenso e muito variado, disperso por toda a geografia meridional e apresentando fragilidades em diversas frentes, este conjunto de valores encontra-se sujeito a graves perigos. São já poucas as comunidades com capacidade para se ocuparem, de maneira eficaz, da sua preservação. Inúmeros locais de culto permanecem sistematicamente encerrados por falta de uso, tanto no meio rural como nas cidades e nas vilas. Todos os anos há a lamentar, devido à míngua de condições elementares de conservação, a perda de dezenas e dezenas de espécimes patrimoniais. Furtos e actos de vandalismo, intensificados pela crise da autoridade pública, acentuam um quadro já de si difícil. A inexistência de uma estratégia para a salvaguarda dos valores culturais religiosos, ao nível da região, tem obrigado as entidades responsáveis a navegarem à bolina, sem rumo definido, acudindo a casos pontuais e esquecendo a leitura do conjunto. O panorama nacional não se afigura, infelizmente, mais animador. Se é certo que existe uma vaga de sensibilização patrimonial cujos efeitos, alargados a toda a sociedade, começaram a manifestar-se também no âmbito das dioceses, a gestão dos monumentos e dos acervos da Igreja dá ainda passos balbuciantes, sucumbindo amiúde a critérios imediatistas, de escassa qualificação técnica. Em diversas zonas a herança religiosa continua a ser vista como um mero pretexto, não como uma causa. De um sistema baseado no funcionamento nefelibata das comissões de Arte Sacra transitou-se ultimamente para a pseudo-tecnocracia dos secretariados dos “Bens Culturais”, cuja motivação assenta recorrentemente mais num voluntarismo pouco esclarecido do que em opções sólidas, de garantida sustentabilidade a média e a longo prazo. Observada à distância, a situação do país afigura-se, nesta perspectiva, uma manta de retalhos, quando não uma triste feira de vaidades, regida pelas leis da emulação, que incentiva a rivalidade onde devia sobressair a afinidade. Num período em que a abertura à cultura constitui porventura o maior dos desafios enfrentados pela Igreja, a memória histórica aguarda ainda o reconhecimento efectivo da sua dimensão pastoral. Pior ainda: corre o risco de transformar-se no reduto de um poder egoísta, ansioso de protagonismo, quando não entregue aos interesses de certos grupos, mas já sem efectiva capacidade para se afirmar, dentro e fora das muralhas eclesiásticas, em termos científicos, técnicos e artísticos. Para umas poucas dezenas de clérigos e uma mão-cheia de leigos, ser dirigente ou membro dos “Bens Culturais” pode constituir, enquanto é moda, o subir de mais um degrau no cursus honorum de carreiras acalentadas pela ambição. Durará isto? Seguramente não. À semelhança de todas as modas, logo que o Sol brilhar noutras paragens, os amigos da oportunidade segui-lo-ão. 2. A FIDELIDADE ÀS RAÍZES Há que ter a coragem de admitir que muito do que acontece na cidadela dos Bonia Culturalia se revela demasiado superficial e passageiro, para não dizer estéril. Em certas ocasiões termina até por semear a cizânia onde devia prevalecer o respeito pelo trabalho próprio e alheio, sem o qual parece impossível conseguir o fomento de sinergias que tanto se impõe. Para a cultura contemporânea é trágico, por exemplo, que a Igreja não só enfrente as maiores dificuldades para conservar adequadamente o seu património (afinal, o sector com maior expressão no universo cultural da Europa do Sul) como permaneça alheada da dimensão evangelizadora e pedagógica que representa a verdadeira razão de ser desse conjunto de manifestações. Um património cuja voz emudeceu ou soa histriónica no momento em que se torna mais necessário escutá-la. Conhecem-se, felizmente, algumas excepções, mas são ainda poucas, muito poucas, até porque não basta fazer. É preciso saber bem o que se quer fazer e como fazê-lo. Quando a poeira, trazida pelos ventos agrestes que sopram de cima, parece cobrir a visão do horizonte, importa deixá-la assentar e ler os sinais dos tempos. Por outras palavras, devemos ser capazes de distinguir o trigo do joio. Cumpre não esquecer, a este propósito, uma lição tornada realidade por grandes investigadores alentejanos, como António Tomás Pires, João Gualberto da Cruz e Silva, Abel Viana e Túlio Espanca, para citarmos alguns nomes que se impuseram pelo esforço próprio, inteligente e sensível, em tempos ainda mais árduos do que os nossos: para quantos actuam ao serviço do património cultural, o trabalho mais significativo é o que tem lugar directamente in situ, nas trincheiras da “província”, longe das luzes da ribalta, aí onde o apego ao território e às gentes que lhe dão vida representam ainda algo firme, estável e digno de crédito. Dentro das suas peculiares circunstâncias, a experiência do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja ao atingir um quarto de século de actividade ininterrupta, constitui um testemunho dessa entrega aos valores permanentes, que brotam da tradição mas não rejeitam a aproximação à contemporaneidade e aos seus reptos. Experiência, é importante assinalá-lo, de uma pequena equipa, constituída no essencial por voluntários, mas que se singulariza por ter cumprido, sem rupturas nem 17 4. Local de implantação da ermida de São Miguel (São Teotónio, Odemira), após a demolição ilegal desta em 2004. desvios, o rumo traçado aquando da sua fundação, em 1984. Ponderando não só o que foi feito mas também o que ficou por realizar, com o distanciamento que a maturidade de vinte e cinco anos de presença no terreno, vêm-nos à lembrança as palavras de São Paulo na II Epístola a Timóteo (4, 7): “Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel”. Efectivamente, se há algo que identifica a intervenção do “Património de Beja” isso é a fidelidade aos grandes princípios da missão definida, naquela data já longínqua, pelo bispo D. Manuel Franco Falcão – estudar, proteger e valorizar a memoria ecclesiæ do Baixo Alentejo. Embora partindo do seio de uma diocese católica, a sua acção procurou sempre fixar o epicentro no próprio território, vislumbrando os bens culturais religiosos numa perspectiva unitária e ecuménica, capaz de suscitar o diálogo e de criar empatias independentemente das tutelas, das confissões ou mesmo dos credos. Como já salientámos noutras ocasiões, isso levou-o a dar grande atenção aos vestígios do Judaísmo e do Islão e a ter igualmente em conta o magma primordial do Paganismo. Não se pode escamotear, ainda, a adesão firme a uma estratégia de desenvolvimento de uma região que, em especial nos meios rurais, tem sido condenada a uma certa marginalidade. Na luta contra o desconhecimento, a indiferença, o preconceito, a negligência e a cupidez – sem dúvida os grandes inimigos da herança cultural religiosa – algumas batalhas acabaram por ser perdidas, apesar de todo o empenho dos técnicos diocesanos. Uma delas teve lugar em 2000 e redundou na inútil destruição do belo tecto pintado, do tempo de D. Maria I, da igreja de Santa Margarida da Serra, em Grândola, substituído por um forro comum de pinho e depois queimado, às ordens de um pároco ignaro que não soube escutar quem o aconselhava. Outra, ainda mais severa, consistiu na demolição da capela tardo-medieval de São Miguel, localidade do termo de São Teotónio, no concelho de Odemira, intervenção levada a cabo ilegalmente, em 2004, pela Junta de Freguesia. Como o imóvel se erguia num sítio ocupado já em tempos remotos e onde abundavam os vestígios da época romana, o seu arrasamento implicou também o fim das estruturas arqueológicas aí existentes. Crime quase perfeito, pois ficou sem castigo, graças à passividade das autoridades competentes, a história julgá-lo-á um dia como lamentável epifenómeno de um longo ciclo de malfeitorias cometidas por mandaretes sem rei nem roque. Embora não se esqueçam estes dossiers insepultos, cabe referir que, na maioria dos processos abertos ao longo de cinco lustros, a causa do património logrou gerar entre nós os consensos necessários para sair vitoriosa. O recurso a fundos nacionais e comunitários, através da colaboração com o Estado, os municípios e a sociedade civil, permitiu recuperar, sob a égide directa ou indirecta do Departamento, mais de uma centena de imóveis e cerca de um milhar e meio de espécimes integrados e móveis (obras de arte, fundos dos arquivos e das bibliotecas, materiais arqueológicos, etc.), incluindo as principais referências do património diocesano. As exposições efectuadas regularmente no país1 e no estrangeiro,2 a Rede de Museus, com sete unidades em 1 Santiago do Cacém (1990-1991 e 2007), Mértola (1997), Beja (1998-1999, 2002 e 2008), Sines (1998), Lisboa (2000-2001 e 2004) e Faro (2005-2006). 2 Regensburg (1999-2000), Roma (2003) e Borja – Saragoça (2008). 19 Um aspecto da exposição No Caminho sob as Estrelas – Santiago e a Peregrinação a Compostela Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior, 2007. 5. funcionamento,3 a abertura ao público da Biblioteca e do Arquivo do Seminário de Beja, o programa de acções de formação, a mobilização de congressos internacionais e de encontros nacionais, a comemoração das Jornadas Europeias do Património e de dias temáticos, a criação da Pedra Angular – Associação dos Amigos dos Museus, Monumentos e Obras de Arte da Diocese de Beja e da Associação de Desenvolvimento Regional Portas do Território foram outros passos decisivos no caminho iniciado em 1984. 3. MARTA E MARIA Tudo isto repousa num labor discreto, quase silencioso, mas indispensável, distribuído por três frentes que o actual bispo de Beja, D. António Vitalino Dantas, tem vindo a impulsionar: a revisão e a actualização do inventário dos bens históricos, artísticos e antropológicos da Diocese; a emissão de pareceres, tornados vinculativos pelo Regulamento para as Intervenções no Património Cultural da Diocese de Beja (1993); e o apoio técnico às paróquias e às outras entidades sob a tutela dos serviços episcopais. Unir a reflexão à acção é a estratégia mais adequada à nossa realidade. O estudo, a salvaguarda e a divulgação representam os vértices do triângulo que caracteriza a vivência quotidiana do Departamento. Mesmo com tantos cuidados, nada se teria conseguido, é de justiça lembrá-lo, sem o apoio dos dezassete concelhos do distrito de Beja e do sector meridional do distrito de Setúbal (Grândola, Santiago do Cacém e Sines), sem o envolvimento de mais de duas centenas de colaboradores e sem um conjunto de parcerias estratégicas, formais ou informais, que vai do Ministério da Cultura até às comissões de moradores de aldeias do Alentejo profundo. A Diocese reconhece hoje, com o discreto orgulho que é próprio dos alentejanos, a forma eficiente como as preocupações relacionadas com a salvaguarda e a valorização da herança religiosa vieram a assumir, na maioria das paróquias, lugar de relevo entre as prioridades pastorais. Concluídas algumas das intervenções mais pesadas do ponto de vista material, a estratégia diocesana passou a orientar-se crescentemente para a qualificação das tarefas de acolhimento dos visitantes e de desenvolvimento dos recursos locais, o que implica o assumir de novas responsabilidades em áreas como a sensibilização, a interpretação e a animação do património cultural e ambiental. Se não existir um conjunto de actividades devidamente articuladas que radique no âmago das comunidades e possa contribuir para torná-los acessíveis a um público generalizado e insuflar-lhes vida, os nossos monumentos estarão sempre no fio da navalha. 3 Tesouro da Colegiada de Santiago do Cacém (2002), Tesouro da Igreja Matriz de São Vicente de Cuba (2003), Tesouro da Basílica Real de Castro Verde (2004), Museu de Arte Sacra de Moura (2005), Tesouro da Igreja de Nossa Senhora das Salas (2005), Museu Episcopal de Beja (2006) e Museu do Seminário de Beja (2006). 21 Acção de formação de voluntários no âmbito da conservação preventiva de paramentos | Beja, catedral, 2008. 6. Uma iniciativa que cala fundo no espírito de quantos cooperam com o Departamento nestes domínios consiste na celebração anual, a partir de 2003, do Festival Terras sem Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo. Levado a efeito contra ventos e marés, numa etapa em que, por muitos outros pontos do país, uma visão demasiado redutora do espaço litúrgico está a erradicar pura e simplesmente os concertos das igrejas, truncando um veículo essencial de empatia com os artistas, sejam eles criadores ou intérpretes, e de abertura a legítimos anseios da sociedade, este projecto tem-se sabido afirmar. Uma boa prova disto reside no facto de contar sistematicamente, entre naturais e forasteiros, com a “casa cheia”. A chave do Festival reside, outra vez, no apego à sua directriz de base: marcar a temporada de música clássica da região através de um ciclo coerente de concertos, de elevado nível artístico, obedecendo em cada ano a um tema-reitor, o que permite traçar, pouco a pouco uma pequena mas fecunda “história da Música”. Conferências, palestras e visitas guiadas completam, em ambiente descontraído, a programação musical. Estas acções assumem enorme peso numa região que, embora relegada a posição secundária nos circuitos da cultura oficial, não esconde o fascínio pela música. No entanto, poder levá-las a cabo de maneira itinerante em igrejas históricas que foram alvo de trabalhos de beneficiação e fazem parte de um sistema de abertura regular ao público assume um significado ainda mais especial, permitindo juntar à fruição de espaços com notáveis condições estéticas e acústicas uma proposta de reflexão acerca do sentido da Ars Sacra na vida hodierna, precisamente aí onde o espírito do lugar melhor o permite. No momento em que chega à sua quinta edição, o Festival Terras sem Sombra, realizado em parceria com a Arte das Musas, tornou-se já, de certo modo, um dos eixos fundamentais da acção do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja. É de sublinhar a empatia alcançada com o organismo responsável pela área das artes no Ministério da Cultura, os municípios e as diversas entidades cujo apoio tem permitido concretizar uma programação de grande qualidade. A adesão generosa do público, a começar pelas populações dos nossos concelhos e a acabar nos muitos participantes vindos de longe, sem esquecer a vizinha Espanha, representa a melhor recompensa para os esforços dispendidos. Ela vem corroborar, de resto, a convicção de que este e outros aspectos do trabalho no âmbito do património religioso, constituindo uma “marca” de Beja e da sua Diocese, acabam por sê-lo igualmente do Alentejo. Desejamos veementemente que o Festival, como grande festa da música da nossa região, aberta a todos, assim continue por muitos e bons anos. Uma boa maneira de fazer o nosso voto ainda mais firme é lembrar o comentário de Santo Agostinho, bispo de Hipona, ao Salmo 99: “Este salmo é de confissão ou de louvor, pois o seu título diz: Salmo de louvor ou de confissão. Os versículos são poucos mas cheios de grandes mistérios. Germinem as sementes nos vossos corações e delas nasça o trigo da seara de Deus. Este salmo de louvor exorta-nos a alegrarmo-nos no Senhor. Mas não exorta apenas uma parte da terra a cantar, ou só determinada casa ou assembleia de homens. Como sabe que a bênção foi semeada em todo o mundo, a todo ele pede que se alegre. 23 Concerto do Coro Gulbenkian | Castro Verde, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, 2006. 7. Toda a terra ouviu esta voz, pois toda ela já canta ao Senhor. E aquela que ainda não canta, há-de cantar-Lhe, [...] estendendo-se a bênção a todas as nações, desde o início da Igreja, a começar por Jerusalém [...]. Cantar cânticos de júbilo quer dizer alegrar-se. Feliz o povo que sabe aclamar-Vos. [...] Corramos para esta felicidade, entendamos esta alegria, não a expressemos sem a entender. Não cantemos só com a voz mas com o coração. A voz do coração é o entendimento.” 25 Ruínas do convento de Nossa Senhora das Necessidades, em Tomina | Santo Aleixo da Restauração. 8. elogio do efémero Filipe Faria Director Artístico do Festival Terras sem Sombra ! A História do Homem e da sua criação artística é definida pelo binómio composição/interpretação. Tirando o momento de composição, mais erudito ou mais popular, mais intelectualizado ou mais improvisado, a interpretação de uma página musical escrita em códigos e gramáticas com a sua própria história é um momento único de criação artística e, no caso da arte musical, de construção de um edifício sonoro, elogio máximo do efémero, em qualquer geografia ou tempo. Elogiando o efémero desde 2003, o Festival Terras sem Sombra promove a programação de um conjunto de concertos e actividades pedagógicas descentralizadas que se tem vindo a afirmar como central na temporada cultural do Alentejo e do país. Produzido pela Arte das Musas em parceria com o Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, conta, desde a primeira hora, com o fundamental apoio da Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura e das Câmaras Municipais dos concelhos visitados. Em 2009 o Festival conta ainda com o patrocínio da Delta Cafés e o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, da Associação Portas do Território, do Governo Civil de Setúbal e dos Media Partners: rádios Antena 2, Renascença, Voz da Planície e Telefonia do Alentejo e jornais Diário do Alentejo, Diário do Sul e Notícias de Beja. Sob o tema Do Velho ao Novo Mundo, esta edição programa cinco concertos, uma masterclass e uma conferência proferida pelo Prof. Doutor Manuel Pedro Ferreira, dedicados às memórias sonoras do Barroco e do Classicismo Europeu e a sua influência e/ou fusão com as linguagens do Novo Mundo (aqui representado pelo esplendor da composição brasileira dos séculos XVIII/XIX, interpretado pelo Coro Gulbenkian, na que é já a quarta visita ao Festival). Procurando oferecer palco de carácter internacional aos projectos profissionais de jovens artistas nacionais, com excepcional curricula, contamos ainda com concertos de Sete Lágrimas, Ludovice Ensemble, Concerto Campestre e Flávia Almeida Castro e Maria José Barriga cujo talento é garantia de excepcionais momentos musicais pelas terras sem sombra. Termino com um vivo agradecimento ao público pela excepcional entrega ao Festival, desde a primeira hora, e aos músicos e apoiantes pela motivação e pelo interesse revelados, com grande generosidade, em tempos difíceis. 27 9. Tangedor de cabaça | Século XIV (inícios) | Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior. PROGRAMA GERAL 24 DE JANEIRO DE 2009 . 21H30 . CASTRO VERDE SETE LÁGRIMAS Pedra Irregular: O Nascimento do Barroco em Portugal 7 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 . ALMODÔVAR LUDOVICE ENSEMBLE La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV 28 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 . ALVITO CONCERTO CAMPESTRE Sileti Venti: As Paixões da Alma 14 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 . SANTIAGO DO CACÉM FLÁVIA ALMEIDA E MARIA JOSÉ BARRIGA MASTERCLASS/WORKSHOP Cravo 14 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 . SANTIAGO DO CACÉM FLÁVIA ALMEIDA E MARIA JOSÉ BARRIGA Frente a Frente: A Música Barroca em Duo de Teclas 21 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 . BEJA CONFERÊNCIA POR MANUEL PEDRO FERREIRA Do Velho ao Novo Mundo 29 28 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 . BEJA CORO GULBENKIAN O Esplendor Luso-Brasileiro nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX ! programa basílica real de nossa senhora da conceição castro verde Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro ( Diário da República n.º 280, de 30 de Novembro de 1993) 32 Após a “Reconquista”, Castro Verde foi confiada à Ordem de Santiago, que estabeleceu aqui uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, situada numa colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores da vila. Teve ao seu serviço uma colegiada, presidida por um prior com as funções de pároco. Em 1573, D. Sebastião mandou reerguer esse edifício, em lembrança de um facto decisivo para que Portugal se tornasse uma nação independente: a batalha de Ourique, travada nas elevações de São Pedro das Cabeças, a pouca distância de Castro Verde, em 25 de Julho de 1139, correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus Cristo, na véspera da peleja, ao nosso primeiro rei. O edifício actual, que ocupa sensivelmente o mesmo local dos anteriores, ficou a dever-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível ao significado patriótico e escatológico do milagre de Ourique. Iniciados ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram sem delonga. A sua traça segue um modelo derivado da arquitectura chã da época da Restauração e que João Antunes aplicou na concepção de vários imóveis para a milícia espatária, como a igreja de Santiago, de Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a igreja matriz de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou a planta longitudinal composta, formada por uma nave rectangular em que se inscrevem duas torres sineiras quadradas e a capela-mor, mais estreita, ladeada por dependências. Na frontaria, com três corpos delimitados por pilastras e empena rectilínea, avulta o portal, sobrepujado por um frontão curvo quebrado, com a insígnia da Ordem. Se a estrutura arquitectónica é tributária da tradição seiscentista, a decoração interior corresponde já à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo uma notável visão integradora das artes da época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a Aparição de Cristo a D. Afonso Henriques. Este conjunto foi levado a cabo em 1728-1731 mediante uma parceria entre o lisboeta António Pimenta Rolim, outro artista da capital, Manuel Pinto, e os pintores bejenses Manuel e José Pereira Gavião - parceria que também se terá ocupado do | Escola aragonesa | Século XIII (finais) – Século XIV (inícios) Castro Verde, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição. II. Cabeça-relicário de São Fabião revestimento mural de outros sectores. As paredes encontram-se revestidas de painéis azulejares, com destaque para os alusivos à vida do nosso primeiro rei e ao milagre de Ourique, enquadrados por composições características das oficinas lisboetas de ca. 1730. José Meco atribuiu a feitura do conjunto ao pintor P. M. P. - talvez o oratoriano P.e Manuel Pereira -, uma das principais figuras do ciclo dos “Grandes Mestres”. O recurso aos artistas de Lisboa revela-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas referentes à monarquia e à Ordem de Santiago. O interesse de D. João V pela matriz de Castro Verde levou a conseguir para ela, em Roma, a dignidade de basílica, depois completada pelo título de real. Mas o soberano empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as quais sobressai a custódia de aparato, realizada em Lisboa, ao redor de 1715. O Tesouro instalado na antiga sacristia em 2003 dá a conhecer este acervo, além de outras obrasprimas provenientes de igrejas do concelho, cabendo um lugar especial à cabeça-relicário de São Fabião, peça de origem aragonesa, oferecida pela princesa D. Vataça a Panóias (e transferida no século XVI para Casével). josé antónio falcão bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; J[oão] J[osé] Alves da Costa, O Termo de Castro Verde – Um Contributo para a sua História, I-II, Castro Verde, Câmara Municipal de Castro Verde, 1996-1998; Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Barroco, Lisboa, Editorial Presença, 2003; José António Falcão, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde, Beja, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004. 33 ! 24 DE JANEIRO DE 2009 . 21H30 basílica real de nossa senhora da conceição castro verde sete lágrimas ! pedra irregular O Nascimento do Barroco em Portugal DIOGO DIAS MELGAZ (1638-1700) Salve Regina Adjuva nos (instrumental) In jejunio et fletu CARLOS SEIXAS (1704-1742) Sicut cedrus exaltata sum Responsorium II in festo assumptionis B.M.V. ANTÓNIO TEIXEIRA (1707-1774) Sacram beati Vicentii Responsorium I in festo S. Vicentii Tanta grassabatur crudelitas Responsorium III in festo S. Vicentii (instrumental) Si jubes pater sancte Responsorium II in festo S. Vicentii FRANCISCO ANTÓNIO DE ALMEIDA (1702-1755?) Lamentatio prima in Sabbato Sancto a 4 concertata O quam suavis Si quæris miracula Responsorio a 4 concertato per la Festa de St.o Antonio Justus ut palma florebit Motetto a 4 concertato in commune unius martyres 35 CARLOS SEIXAS (1704-1742) Hodie nobis cælorum Rex Responsório a 5 para o Natal notas biográficas sete lágrimas Grupo Residente do Festival Terras sem Sombra Filipe Faria, tenor e direcção artística Sérgio Peixoto, tenor e direcção artística Mónica Monteiro, soprano Andreia Carvalho, oboé barroco e flauta barroca Denys Stetsenko, violino barroco Diana Vinagre, violoncelo barroco Hugo Sanches, tiorba Tiago Matias, tiorba e guitarra barroca Sérgio Silva, cravo* * instrumento gentilmente cedido por Sintra Estúdio de Ópera 36 O Sete Lágrimas (fundado em 2000 em Lisboa sob o nome L’Antica Musica) é um consort de músicos especializados em música antiga e contemporânea que explora em cada programa a ténue fronteira entre a música erudita e as tradições seculares. É dirigido por Filipe Faria e Sérgio Peixoto. Em 2007 o grupo editou o seu primeiro CD pela etiqueta MU (murecords.com) com um projecto intitulado Lachrimæ #1. Este CD alcançou enorme sucesso na crítica da especialidade e na recepção do público. Em 2008 editou o segundo CD pela mesma notas biográficas etiqueta, intitulado Kleine Musik [ver Notas de Imprensa abaixo], um projecto de música antiga e contemporânea dedicado a Heinrich Schütz que contemplou a encomenda de nove peças ao famoso compositor inglês Ivan Moody sobre os mesmos textos musicados por Schütz no século XVII. Em Dezembro de 2008 o grupo editou o terceiro projecto de edição discográfica intitulado Diaspora.pt em que explora as relações estéticas, conceptuais e linguísticas da música dos países do cinco continentes visitados pelos Descobrimentos, pela secular diáspora cultural portuguesa e pela lusofonia. Estes projectos discográficos têm o apoio da Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura. Desde 2006 o grupo desenvolve ainda projectos de composição de música original e arranjos de música antiga para o cinema, o teatro e a televisão. A este propósito efectuou já a banda sonora original, baseada em música dos séculos XVI a XVIII, de uma série de 13 programas da estação televisiva SIC, em 2006. Sete Lágrimas estreou-se em 2000 em Lisboa, fruto de uma intensa pesquisa de cerca de um ano, com a estreia nacional e integral do Primeiro Livro de Madrigais para Duas Vozes, de Thomas Morley (1595). Este repertório encerra em si a magia do Renascimento europeu, que fazia da música e dos paradigmas clássicos uma forma de arte nova apta a comunicar com o público de um modo ainda não experimentado, e lançou o mote para os projectos futuros do grupo. Na temporada 2009/2010, este tem já agendados doze concertos e um novo projecto de edição discográfica intitulado Silêncio, com a parceria do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e o apoio do Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura. Este projecto contempla a encomenda de seis obras (60 minutos de música) aos compositores João Madureira, Ivan Moody e Christopher Bochmann, a sua estreia mundial, uma pequena tournée nacional e internacional e a edição discográfica destas obras especialmente escritas para Sete Lágrimas. Tal como os anteriores projectos discográficos, Silêncio é produzido pela MU/Arte das Musas. O grupo é também, desde 2006, grupo residente do Festival Terras sem Sombra, sendo agenciado pela Arte das Musas. Para 2009 ultima a preparação de um concerto no Festival Internacional de Música de Macau e uma digressão, composta por concertos e masterclasses, pela América Latina (Uruguai, Chile e Argentina), a convite da Embaixada Portuguesa no Uruguai, do Instituto Camões e do Festival Barroco do Uruguai. ! 37 ! notas de imprensa NOTAS DE IMPRENSA CRISTINA FERNANDES Público,14.11.2008 “Revelações do Barroco em Portugal Ciclo Música em São Roque Sete Lágrimas Consort Pedra Irregular – O Nascimento do Barroco em Portugal Lisboa, Igreja de São Pedro de Alcântara, 9 de Novembro, às 17 h. Igreja cheia Vocacionado para a música antiga e contemporânea, o Sete Lágrimas Consort constitui um dos mais interessantes projectos surgidos em Portugal, nos últimos tempos, conforme se pode comprovar através de dois CD já editados (Lachrimæ #1 e Kleine Musik), aos quais se seguirá, em breve, Diaspora. pt. Dirigidos pelos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, o grupo apresentou no ciclo Música em São Roque um criterioso programa intitulado “Pedra Irregular – O Nascimento do Barroco em Portugal”. De Diogo Dias de Melgaz, um dos últimos vultos da Escola de Évora, a António Teixeira e Francisco António de Almeida (bolseiros em Roma a expensas de D. João V), passando por Henrique Correia, Carlos Seixas e Scarlatti, foi traçado um percurso com algumas das mais belas obras escritas entre os finais do século XVII e os meados do século XVIII. O repertório sacro apresentado foi concebido para coro (com ou sem solistas) e baixo contínuo, mas o Sete Lágrimas interpretou-o apenas com três cantores, atribuindo algumas das restantes partes a instrumentos (oboé e violino barroco) e contando com um grupo de baixo contínuo generoso (violoncelo, duas tiorbas e cravo). Algumas obras vocais (de Melgaz, Teixeira e Almeida) foram tocadas apenas em versão instrumental e as restantes foram objecto de combinações vocais e instrumentais variadas, que permitiram acentuar os contrastes da textura musical e obter ambientes tão diversos como o intimismo contemplativo da Lamentação, de Almeida, ou a exuberância italianizante dos Responsórios, de Carlos Seixas, do Responsório Si quæris miracula ou do Motete Justus ut palma florebit, de Almeida. O colorido que se ganhou desta forma mostrou facetas que outras interpretações deixam na sombra. Mas se o resultado foi revelador, esta atitude é susceptível de algumas reflexões musicológicas. Várias destas peças foram certamente cantadas na Patriarcal de D. João V, que contava com um coro de italianos de alto nível e cultivava um cerimonial monumental, mas também não é impossível que tivessem sido feitas com uma voz por parte noutros locais (prática documentada em Portugal nas décadas seguintes). O uso de um conjunto vocal mais amplo seria talvez mais fidedigno, mas os Sete Lágrimas não se definem como um grupo filiado nas “interpretações historicamente informadas” no sentido convencional, embora tenham formação nessa área. Preferem apostar na experimentação e na recriação do repertório, de resto uma tendência cada vez mais comum também a nível internacional. Com timbres de cores suaves, as vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto combinaram-se com elegância e bom gosto e a soprano Mónica Monteiro teve uma prestação de crescente eloquência que culminou nas páginas de Almeida, precisando apenas de aperfeiçoar alguns detalhes nas passagens mais virtuosísticas. 39 notas de imprensa A clareza de fraseados do oboé de Andreia Carvalho, num sugestivo diálogo com o violino de Denys Stetsenko, e um grupo de contínuo que nunca incorreu na monotonia completaram um trabalho de conjunto de grande consistência técnica e artística.” CRISTINA FERNANDES Público, Ípsilon, 20.06.2008 “Fazer voar a Música O que têm em comum um compositor luterano do Barroco alemão e um ortodoxo grego do século XXI? No seu segundo CD o grupo Sete Lágrimas quis mostrar como as músicas de Schütz e de Ivan Moody se iluminam mutuamente. Desde que começaram a cantar juntos, há dez anos, a música de Henrich Schütz (1585-1672) tornou-se companhia para Filipe Faria e Sérgio Peixoto. Estes dois tenores do Coro Gulbenkian tinham como ambição fazer um projecto livre de algumas convenções decorrentes da formação musical clássica do conservatório. Queriam abordar a música antiga, a contemporânea e repertórios de fronteira (entre o erudito e o popular) e emancipar-se da página escrita, pois a partitura é apenas o suporte. Criaram em 2000 o grupo L’Antica Música, que tomou o nome de Sete Lágrimas em homenagem ao ciclo de sete danças Lachrimæ (Lágrimas) de Jonh Dowland (c. 1563-1626) e ao espírito que percorre a sua música. No início, o percurso parecia semelhante ao de outros grupos de música antiga. Havia receio de arriscar num meio fechado como o português, confessam ao Ípsilon Filipe Faria e Sérgio Peixoto. Tinhamos ideias, mas quando chegava a altura de as mostrar acabávamos a fazer a oratória de Carissimi ou outro repertório instituído. Foi há três anos que as coisas começaram a mudar. Em Março de 2007 lançaram o primeiro CD (Lachrimæ #1), na etiqueta Murecords criada pela Arte das Musas (empresa com actividade nas áreas da Cultura, Arte e Comunicação dirigida por Filipe Faria), e há semanas colocaram no mercado o seu último trabalho (Kleine Musik), onde prestam homenagem a Schütz através do olhar contemporâneo de Ivan Moody (n. 1964), compositor britânico residente em Portugal, que convidaram a compor sobre os mesmos textos usados pelo grande compositor alemão. Schütz era o compositor que melhor se adaptava à nossa maneira de cantar e de ver a música, conta Sérgio Peixoto. Estudámos os Pequenos Concertos Espirituais e descobrimos sempre coisas maravilhosas, não só a nível musical mas também interpretativo. A ilustração musical do texto não é tão imediata como em Monteverdi ou nos italianos da mesma época, mas depois de a trabalharmos em profundidade está lá tudo, é impressionante, explica Filipe Faria. Dizemos muitas vezes: Schütz nunca nos enganou. 40 O Italiano Extrovertido e o Intimismo Alemão Os dois tenores já tinham cantado várias obras de Ivan Moody e a ideia de o convidar a participar foi consensual. O projecto começou a ser delineado há dois anos e foi posto em prática com o apoio do Ministério da Cultura, que elogiou a sua originalidade conceptual. Também a visão de Schütz de Ivan Moody se encontra próxima da dos directores musicais do Sete Lágrimas. A música de Schütz é uma belíssima mistura do italiano extrovertido com o notas de imprensa intimismo alemão, que tem a ver com a escala mais reduzida dos meios que ele tinha à disposição depois da guerra dos 30 anos», diz o compositor. «Trata o texto com uma abordagem muito pessoal. Há uma profundidade teológica no pensamento de Schütz que concilia ao mesmo tempo a seriedade e o fascínio perante a criação e a alegria, coisa que só se percebe depois de entrar a fundo na sua música. Isto diz-me muito porque são coisas que também sinto – uma alegria teológica.» Ivan Moody é membro da igreja ortodoxa grega e identifica essa atitude com a sua fé. Além dos textos, a proposta tinha outras condicionantes como o uso de instrumentação semelhante à escolhida para as obras de Shutz, que se destinam a vozes e baixo contínuo. «Tal como Stravinsky, acredito que as limitações podem fazer uma peça florir, se alguém nos dá o dinheiro e uma folha de papel em branco, sem nada de onde partir, caímos no vazio», diz Moody. «Olhei para as partituras de Schütz para absorver o ambiente e depois usei a minha linguagem.» A natureza dos meios também não foi um problema pois Moody está habituado a escrever para grupos que se dedicam à música antiga e contemporânea, como o Hilliard Ensemble ou o Taverner Consort, e também tem usado instrumentos antigos. «Já fiz peças para consort de violas da gamba, mas nunca tinha escrito para tiorba ou oboé barroco. O som destes instrumentos é fantástico. A maneira como a tiorba pode preencher o espaço harmónico como faz na música barroca foi para mim uma coisa delirante.» Abordagem Contemporânea O projecto teve ainda outra convidada: a soprano Ana Quintans. «Estávamos a actuar com o Coro Gulbenkian e de repente entra uma jovem soprano portuguesa para cantar a Missa em Dó menor, de Mozart», conta Filipe Faria. «Fizemos-lhe o convite para colaborar com o Sete Lágrimas logo nessa noite e foi aceite. Ana Quintans já não está só limitada às nossas fronteiras, é um assombro de musicalidade e de seriedade. Nunca tinha abordado este repertório, mas deixou-nos sem palavras durante a gravação.» Do ponto de vista interpretativo Filipe e Sérgio tiveram com a música de Schütz e de Ivan Moody uma atitude semelhante: uma aproximação à partitura que parte da recriação. Por exemplo: duas das peças do compositor britânico são interpretadas no cravo embora tenham sido escritas para vozes adoptando um processo similar ao que se fazia com a música do século XVII. «A formação musical clássica incita-nos a ter respeito pela partitura mas fomos aprendendo a libertar-nos. A partitura é apenas um suporte, serve para tentar perceber o que o compositor diz mas também para descobrir o que queremos fazer com a música», refere Sérgio Peixoto. O Sete Lágrimas pretende uma abordagem contemporânea e uma ligação à identidade sonora do grupo. «Uma dúvida essencial desde o princípio era: será que isto passa como som do grupo? Mas a verdade é que isso tem vindo a ser reconhecido.» A criatividade para além da partitura e a combinação de repertórios de fronteira fervilhava há muito nas mentes dos dois cantores, mas só há poucos anos começaram a arriscar. Agrupamentos que admiram, como L’Arpeggiata de Christina Pluhar, Accordone de Marco Beasley e Guido Morini ou Les Fin’Amoureuses, serviram de incentivo. «Não é uma questão de os imitar, mas sentimos uma atitude semelhante perante a música», explica Filipe Faria. «Convidámos, por exemplo, para o Festival Terras sem Sombra (que a Arte das Musas organiza) um coro para interpretar música sacra de carácter popular do eixo latino-mediterrânico e em Novembro vamos lançar um novo CD, Diaspora.pt. Aí a loucura será total.” 41 notas de imprensa Novos Projectos Sérgio e Filipe gostavam que esse novo projecto «viesse mudar a mentalidade fechada que existe em Portugal». «Temos intérpretes muito bons que fazem música antiga de acordo com as práticas de execução históricas e gostamos muito de ouvir, mas não é essa a nossa intenção», diz Filipe. Em Diaspora.pt evocam-se repertórios influenciados pela música portuguesa no mundo. «Começamos em Portugal com Vilancicos de Negro (género coral que utiliza várias línguas e dialectos de influência mestiça), passamos por Cabo Verde com a morna, por Goa, Macau, Timor, o México e o Brasil. A ideia da diáspora tem ramificações: o português que saiu para a América do Sul no século XVI e que compôs baseado nas tradições orais que recolheu, mas também os músicos que em Portugal se inspiraram em fórmulas novas que ouviam interpretar aos escravos africanos», explica Sérgio. «Teremos também músicos convidados, como o fadista António Zambujo.» Filipe acrescenta que «não é um projecto musicológico, mas totalmente estético e conceptual» que implicou meses de trabalho sobre as partituras: «recriámos do primeiro ao último compasso todas as peças.» O objectivo foi criar uma abordagem pessoal do Sete Lágrimas e não uma aproximação idiomática a cada um dos géneros. «Não queríamos imitar, mas recriar. Nos ensaios usámos adjectivos e metáforas para transmitir as nossas ideias aos músicos. Lembro-me sempre do Maestro Frans Bruggen que nos dirigiu tantas vezes no Coro Gulbenkian. Ele faz poucos gestos quando dirige, mas quando ensaia usa adjectivos que fazem voar a música de Bach, nós tentámos fazer voar estas músicas», diz Filipe Faria. À Diaspora.pt vai seguir-se outro CD em 2009, Silêncio. «São três olhares de compositores sobre a Bíblia: o de Ivan Moody que é ortodoxo grego, o de [ João Madureira] que é católico e o de Christopher Bochmann que é anglicano protestante. Cada compositor fará música sobre a herança erudita e popular da sua própria linguagem e experiência», conta Filipe Faria. «Será mais uma aventura que promete quebrar fronteiras».” M. A. G. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13-26.08.2008 42 “A Grande Música O maior compositor alemão do Barroco intermédio, Heinrich Schütz, os seus Pequenos Concertos Espirituais (Kleine Geistliche Konzerte), a revisitação dessas peças por um compositor britânico contemporâneo há muito fixado em Portugal, Ivan Moody, e o projecto, bem amadurecido, dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, Sete Lágrimas. O conjunto dá origem a um dos mais belos discos de edição nacional, surgidos nos últimos anos. O grupo Sete Lágrimas nasceu há cerca de uma década como o nome L’Antica Musica. Formado por dois cantores do Coro Gulbenkian, surgiu com o objectivo de ultrapassar barreiras mais ou menos convencionadas entre diferentes repertórios, fossem de música antiga ou contemporânea, ou mesmo testemunho de diferentes “diásporas”, como futuros projectos discográficos o atestam. Sucederam-se assim anos de trabalho e de concertos, até ao momento em que editaram o primeiro disco, Lachrimæ # 1. Foi em 2007, quando Filipe Faria e Sérgio Peixoto já tinham adoptado a designação Sete Lágrimas, a partir das sete variações Lachrimæ, de John Downland, sobre Flow my Tears. O programa do primeiro disco demonstrava a atitude III. Trânsito de São José | Corrado Giaquinto | Século XVIII (meados) Santiago do Cacém, colecção particular (em depósito no Museu de Arte Sacra). notas de imprensa única do agrupamento. Obras de Giovanni Martini, Corelli e Schütz, a par de salmos protestantes franceses, com quase dois séculos de distância entre si, cruzavam universos e modos de vida, cuja soma parecia revelar um sentir comum – uma dor que não podia deixar de ser comum –, no confronto que dividia a Europa entre os diferentes credos. O novo disco impõe mais uma vez o «desassossego». Dos cerca de 50 Pequenos Concertos Espirituais de Heinrich Schütz, incluídos nos volumes de 1636 e 1639, nove deles são revisitados pelo compositor contemporâneo Ivan Moody, que não só conhece as características muito próprias da música antiga, como sabe da convicção necessária para compr música sacra - nenhuma simulação é possível, perante si mesmo e muito menos perante a verdade de Schütz. Os Pequenos Concertos Espirituais surgiram em plena Guerra dos 30 anos. Usam várias fontes, do Antigo Testamento a Santo Agostinho. Os textos (e os instrumentos de época) são retomados por Ivan Moody, como num «jogo de espelhos», conforme confessa na apresentação do CD: «reflectir como num espelho era ideia central deste projecto, devendo estar presente que todos os espelhos distorcem». E essa é a grande lição deste disco, o que o transforma em algo único e magnifíco. O idioma do britânico ortodoxo - facto bem patente na sua obra sacra - em tudo difere, como é óbvio, da expressão do genial compositor luterano seiscentista. No entanto, parafraseando Moody e a sua citação de São Paulo aos Coríntios, que «ponto de chegada» poderá ser mais rico «do que o esforço de reflectir e complementar um Mestre, como através de um espelho, em enigma?» As vozes de Sérgio Peixoto, Filipe Faria e, em particular, da soprano Ana Quintans materializam as melhores respostas, acompanhadas por Inês Moz Caldas (flauta de bisel), Pedro Castro (flauta e oboé barroco), Kenneth Frazer (viola da gamba), Duncan Fox (violone) e Hugo Sanchez (tiorba). Juntos fazem com que a música corra, expressiva, exigente, atenta ao pormenor, à eloquência imposta pelo mestre e pelo próprio enigma.” CRISTINA FERNANDES Público, Ípsilon, 20.06.2008 “Jogo de Espelhos O segundo CD do agrupamento Sete Lágrimas combina a espiritualidade do barroco alemão com o olhar contemporâneo. Kleine Musik, Sete Lágrimas Consort, Filipe Faria e Sérgio Peixoto (tenores, cravo e direcção), Ana Quintans (soprano), Murecords MU0102 Depois de uma estreia discográfica auspiciosa com Lachrimæ #1, o agrupamento Sete Lágrimas acaba de lançar mais uma gravação de grande consistência artística e conceptual. Kleine Musik combina uma selecção de peças extraídas dos Pequenos Concertos Espirituais, de Henrich Schütz (1575-1672), com obras compostas para o grupo sobre os mesmos textos por Ivan Moody (n. 1964), num deliberado jogo de espelhos. A combinação entre música antiga e contemporânea pode encontrar-se em vários projectos discográficos internacionais, mas tem sido bastante rara no contexto português. Kleine Musik não é apenas uma conjugação de universos cuidadosamente estudada, onde a música de Schütz serve de inspiração ao olhar contemporâneo de Ivan Moody através de um reflexo de processos criativos que usam diferentes linguagens. É também uma justa homenagem a Schütz, um dos maiores compositores da história da música, que tem estado quase sempre ausente 43 notas de imprensa dos programas de concerto em Portugal, mas que faz parte do repertório do Sete Lágrimas desde o início da sua actividade. Se os pequenos trechos do compositor alemão incluídos no primeiro CD se encontravam entre as interpretações mais conseguidas dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, neste segundo trabalho confirma-se a sua afinidade com a estética do compositor alemão e com a sua expressividade profunda e intimista. As suas vozes fundem-se bem ao nível do timbre e nota-se uma sintonia cuidada dos fraseados e das intenções retóricas, bem como uma cumplicidade eficaz com a componente instrumental, a cargo de intérpretes experientes no âmbito da música antiga. As faixas mais impressionantes do disco devem-se, porém, à interpretação de Ana Quintans, pelo seu elevado nível técnico, pelo brilho vocal e pela força emocional. A soprano, que tem feito carreira internacional no repertório barroco, soube também adaptar-se ao universo menos familiar de Ivan Moody – ouça-se, por exemplo, O Misericordissime Jesu, na faixa 12. Este compositor britânico, a residir em Portugal há vários anos, tem escrito outras obras com instrumentos antigos, conhecendo bem os seus recursos e especificidades. A sua estética não procura o radicalismo, nem tem a obsessão da vanguarda. Mostra antes um certo despojamento, mesmo quando os processos de composição são mais intrincados, e a captação de uma atmosfera onde a espiritualidade é um elemento bem presente. A transição entre o antigo e o novo pode ser uma tarefa arriscada mas neste caso é conseguida de forma convincente, tanto pelo conteúdo musical como pela coerência interpretativa.” BERNARDO MARIANO Diário de Notícias, 14.07.2008 “O Sete Lágrimas, do[s] tenor[es] Filipe Faria e [...] Sérgio Peixoto, editou o CD Kleine Musik, projecto que cruza Heinrich Schütz (1585-1672) e Ivan Moody (n. 1964), compositor britânico residente em Portugal e que consistiu em cantar nove Kleine Geistliche Konzerte de Schütz e pedir a Moody que musicasse os mesmos textos (encomenda do Sete Lágrimas), procurando intersecções (reflexos em espelhos deformantes) de passado e presente e abrindo-se às confluências entre o Luteranismo temperado pela Itália de Schütz e do Modernismo eivado da música das igrejas orientais do próprio Moody. O resultado aí está, com a estreia absoluta das noves pequenas obras de Moody, sendo que duas delas são para cravo solo. O Sete Lágrimas conta, para lá do par de vozes citadas, com o concurso do soprano Ana Quintans e de um quinteto instrumental de bisel, oboé, gamba, violone e tiorba. Desafio ganho, na medida em que o acerto, beleza e propriedade das vozes, o ambiente das linhas instrumentais por trás e o contraste estabelecido entre as linguagens barroca e moderna funciona muito bem. Boa dicção do alemão [...]. Som excelente.” 44 CRISTINA FERNANDES Público, 21.12.2007 “Movimentos da Música Antiga O panorama começa a movimentar-se em Portugal, multiplicando-se com novas iniciativas. [...] o panorama da música antiga em Portugal começa a movimentar-se e a multiplicar-se em novas notas de imprensa iniciativas. A maior parte deve-se à existência de uma nova geração de jovens intérpretes que se têm especializado no estrangeiro [...] mas não só. [...] O Sete Lágrimas Consort lançou o seu primeiro disco (Lachrimæ #1) na sua própria editora e tem sido responsável pela direcção artística do Festival Terras sem Sombra no Baixo Alentejo, importante foco de divulgação de jovens intérpretes portugueses nesta área [...].” JEAN-LUC BRESSON Le Jouer de Luth - Société Française de Luth, 2007 “Le titre annonce d’emblée un climat poétique sans équivoque: Larmes. Cet enregistrement regroupe en effet des pièces vocales et instrumentales présentant un lien direct avec ce théme. La composition de l’ensemble fait alterner de lentes polyphonies aux profondeurs abyssales et quelques pièces plus enjouées que l’on trouve en particulier dans deux suites de Corelli (Sonata da Chiesa n.º 7 et Sonata da Chiesa n.º 6). Les œuvres réunies ici sont issues des répertoires français, italien et allemand. On y trouve des pièces de Giovanni Battista Martini (1706-1784), d’Archangello Corelli (1653-1713) et d’Heinrich Schütz (1585-1672). L’atmosphére qui domine évoque une poignante méditation déclinée selon différents modes, d’une œuvre à l’autre. Dès les primières secondes, l’auditeur est saisi apr le climat emprunt de spiritualité qui domine l’ensemble. Il est invité à emprunter les voies d’une temporalité tournée vers l’interieur. Le temps s’écoule en longues plages sensibles. La pochette de ce disque montre la photographie d’un visage, surexposée au point de confiner à la plus parfaite blancheur. L’image conduit vers le blanc comme la méditation conduit vers le silence, ce silence qui émane des limbes insondés de la tristesse selon l’expression chére à Baudelaire. Si dans cet enregistrement la voix joue un rôle essentiel comme céhicule de l’émotion diffusée, elle est sotenue par de beaux accompagnements.” PEDRO BOLÉO Público, 01.06.2007 “De chorar por mais Duas boas notícias: a primeira é a estreia em disco de um projecto musical já com alguns anos actividade chamado Sete Lágrimas, um grupo que deu os primeiros passos em 2000, ainda com o nome L’Antica Musica. a segunda boa notícia é que, no mesmo gesto, surgiu uma nova editora a Mu Records. Este disco é sinal de uma capacidade de iniciativa de jovens músicos (neste caso dois tenores do Coro Gulbenkian) que deve ser saudada. Ainda por cima quando o disco Lachrimæ #1 é resultado de um trabalho musical cuidado, com algumas boas escolhas entre o repertório da música renascentista e barroca. As vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto seguram com muita sensibilidade as linhas das polifonias de autores anónimos do século XVI e de peças de Giovanni Battista Martini (1706-1784). O conjunto instrumental cumpre bem a sua função, acompanhando as vozes, participando activamente na polifonia ou interpretando Sonatas e Corelli de finais do século XVII. Fica a sensação de que podia ir ainda mais longe na exploração tímbrica dos instrumentos e 45 notas de imprensa dar mais energia ao conjunto (mesmo se é um tom melancólico o que se procura em certas peças). Mas o resultado final é, sem dúvida, de muita qualidade.” BERNARDO MARIANO Diário de Notícias, 06.04.2007 “O disco é o primeiro da portuguesa Mu Records. Nele, o ensemble Sete Lágrimas [...] interpreta três motetes do católico Martini, quatro Kleine geistliche Konzerte, do luterano Schütz, duas Sonate da Chiesa do op. 3 de Corelli e três cânticos protestantes franceses (dois da calvinista Genebra). Combinação interessante de obras [...] e interpretações de bom nível, sobretudo nas peças francesas e nos motetes.” IVAN MOODY COMPOSITOR E MAESTRO “Melancholy, as Dowland knew, may include an element of joy – a secular counterpart to the Greek word harmolipi, describing a spiritual state that consists precisely in experiencing joy in sorrow. Tears, therefore, able to betray both sadness and joy, are a natural expression of this state; and seven of them (Sete Lágrimas – Seven Tears) recall the seven sorrows and seven joys of the Virgin, the seven last words from the Cross, and – why not? – the seven hills upon which both Rome and Lisbon are said to be founded. The tears encapsulated in the music recorded by this ensemble, centred around two young Portuguese tenors, were real enough, and reflect not only the tragic aspects of the life of Christ on earth, but also years of religious persecution. In other words, the tears are human. The beauty and refinement of the performances and the elegance of the recorded sound, as well as, most importantly, the sense of an internal tempo, paradoxically serve to record human weakness with something very close to perfection.” MANUEL PEDRO FERREIRA 46 MUSICÓLOGO E CRÍTICO MUSICAL “Neste seu primeiro CD, o grupo Sete Lágrimas oferece-nos uma confirmação da maturidade artística que a interpretação de música antiga alcançou em Portugal. Exemplo de sensibilidade e bom gosto, faz-nos esquecer que na sua base estão raras competências técnicas, adquiridas durante anos de esforçada aprendizagem. De facto, a música flui, judiciosamente equilibrada e fraseada, sem que os detalhes deixem de ser transparentes, oferecendo-se à degustação do ouvinte. As vozes fundem-se admiravelmente e os instrumentos revelam um entendimento plenamente partilhado. A proposta de repertório é, de alguma forma, ousada, não apenas por justapor melodias sobre traduções francesas dos Salmos, de Marot, cantadas em estilo de discante, a peças de Heinrich Schütz e belos, embora pouco conhecidos, responsórios do célebre padre Martini, mas também notas de imprensa porque os tempos distendidos, convidando à contemplação, contrariam a pressa inconsequente dos tempos que correm. No livrete que acompanha o disco, lê-se que Dowland reivindica as Lágrimas como expressão não só de tristeza, mas também de alegria interior. É esta alegria que, lentamente, vai escorrendo deste disco, para ouvidos que a saibam recolher e ecoar.” JORGE MATTA MUSICÓLOGO E MAESTRO ”Afinação, fusão, sensibilidade contida, um hino ao bom gosto, um belo trabalho do grupo Sete Lágrimas. Apetece sentar, baixar a luz e, simplesmente, ouvir! Bravo!” FERNANDO ELDORO MAESTRO “Gratificante revelação de dois jovens cantores portugueses que decidiram apaixonar-se pela música vocal dos séculos XVI e XVII e transformá-la num acto milagroso.” CRISTINA FERNANDES MUSICÓLOGA E CRÍTICA MUSICAL “Sob o sugestivo título Lachrimæ #1, o programa do primeiro CD do Sete Lágrimas Consort percorre um período temporal que se estende dos finais do século XVI ao século XVIII onde se cruzam várias tradições e estilos musicais (francês, italiano, germânico) e a expressão ritual de vários credos religiosos (catolicismo, protestantismo) unidos por fios condutores evidentes ou subtis. O tema das lágrimas como expressão da dor, do sofrimento íntimo ou colectivo, da melancolia, da fé ou da intolerância religiosa estão implícitos em quase todas as épocas no contexto de criação de várias peças musicais ou no seu próprio conteúdo, atingindo uma expressão particularmente rica e tocante no período barroco. Por outro lado, a voz que canta (mas também chora) é um elemento primordial intrínseco à própria natureza da música, que é aqui entendida de forma abrangente estendendo-se à aspiração que conduziu compositores e intérpretes da época barroca a tentar igualar a eloquência da voz humana na música instrumental.” ! 47 notas ao programa pedra irregular O Nascimento do Barroco em Portugal 48 A utilização da palavra “barroco” e a sua aplicação a determinadas formas culturais correspondem a um fenómeno recente. Os artistas dos séculos XVII e XVIII ignoravam-na, o que vale por dizer que, a título de exemplo, nenhum escritor da época fazia prosa para que ela fosse “barroca”. A noção de estilo, e de estilo barroco, tal como hoje a entendemos, era-lhes totalmente desconhecida. É sobejamente conhecida a origem portuguesa desta palavra. O termo “barroco” surge, pela primeira vez, no insigne Colóquios dos Simples (1563), de Garcia da Orta [1501-1568], referenciando “huns barrocos mal afeiçoados e não redondos”. O mesmo termo seria retomado por Rafael Bluteau [1638-1734], no seu Vocabulario (1712), para designar “pérola tosca, e desigual, que nem he comprida, nem redonda”. Contudo, enquanto conceito, na acepção historicista, o termo “Barroco” foi inventado pela historiografia alemã oitocentista, num momento em que se procurava introduzir paradigmas explicativos nas caóticas narrativas sobre arte. Embora tendo no seu horizonte a arte italiana, Heinrich Wölfflin [1864-1945], com a obra Renaissance und Barock (1888), opôs as qualidades da arte do Renascimento – primado da linha, do desenho, do plano, da forma fechada, da unidade, da claridade absoluta – às do Barroco – primado da cor, da profundidade, da forma aberta, da pluralidade, da claridade relativa. Curiosamente, o historiador alemão falava, sobretudo, de Maneirismo, detendo-se em Gian Lorenzo Bernini [1598-1680], artista “escabroso”, não avançando para além dele. Na historiografia portuguesa, a designação “Barroco” para classificar determinada época e determinado estilo tornou-se quase ambígua, em virtude das muitas e, dir-se-ia, desvairadas acepções que à palavra foram atribuídas. De “barroco”, sinónimo de bizarro, de “barroco” esquema escolástico de silogismo falso, de “barroco”, termo corrente na crítica de artes plásticas, sinal de mau gosto e coisa absurda, passou-se a “Barroco”, etiqueta histórica e estética, que se dava como equivalente ou substituto de “Seiscentismo”. Importa abordarmos o Barroco tendo em conta as circunstâncias em que os seus criadores actuaram, no conhecimento das convicções teóricas da época e dentro dos variados domínios, o estabelecimento dos conceitos essenciais que norteavam as actividades criativas, fazendo uma arqueologia das teorias que orientavam as múltiplas expressões artísticas. O Barroco português pode ser contextualizado segundo determinados vectores: o pensamento e os valores tridentinos, as referências do classicismo (mais mitigadas no século XVII, mais actuantes no XVIII), a restauração da independência depois de 1640 e a riqueza trazida ao reino pelo ouro e pelos diamantes brasileiros. Sob estas grandes referências históricas, a cultura barroca legou-nos um espólio multifacetado, ora concordante, ora notas ao programa contrastante, que pode ser equacionado segundo alguns valores comuns: a manutenção do primado da estética da imitação; a reafirmação da existência de cânones a regerem as várias expressões artísticas; a valorização do gosto pelo lúdico e burlesco, patente em muita da poesia da época; a explosão duma espiritualidade que parece rejeitar o mundo, como na pintura de Josefa de Óbidos [1630-1684] ou na prosa de Fr. António da Chagas [1631-1682]; o aproveitamento das potencialidades da Retórica, seja na construção literária, no sermão ou na própria arquitectura, que aproximam os sermões do P.e António Vieira [1608-1697] do significado icónico do convento de Mafra; o interesse pela matéria e a necessidade de a mascarar com texturas sedutoras; a polifonia das várias artes, de que são exemplos maiores as igrejas forradas a talha e azulejo, artes destinadas a enquadrar a música e a palavra do pregador; uma moralização permanente, seja na vigilância dispensada aos temas de pintura ou na moralizante prosa do P.e Manuel Bernardes [1644-1710]. No que diz respeito à música, e seguindo a terminologia avançada por Rui Vieira Nery, o período barroco deverá ser dividido em dois momentos assaz diferentes: um primeiro, autóctone, na segunda metade do século XVII; e um outro, joanino, marcadamente romanizante, ao longo da primeira metade do século XVIII. Nascido em Cuba, no coração do Alentejo, em 1638, Diogo Dias Melgaz é um digno representante deste primeiro período, contendo a sua literatura musical os princípios compositivos que nortearam a generalidade da produção musical portuguesa da segunda metade do século XVII. Tendo sido admitido no Colégio dos Moços do Coro da Sé de Évora, em 1647, Melgaz teve uma carreira fulgurante nesta instituição. Nomeado reitor em 1662, tornou-se mestre da claustra em 1664 e ascendeu ao lugar de mestre de capela em 1680, cargo que ocupou durante dezanove anos. A sua música é marcada, no dizer de Gerhard Doderer, por um colorido tonal “moderno”, em oposição ao modelo modal tradicional, numa sequência dos efeitos expressivos do discurso melódico, mais por razões de natureza textual do que por considerações de ordem puramente musical. Das obras de Dias Melgaz hoje em concerto merece particular referência Salve Regina. Alternando entre uma lógica de construção tendencialmente vertical (afastando-se da dualidade tenor/soprano de quinhentos para uma nova dualidade, baixo/soprano) e um universo diferente, mais contrapontístico, com entradas sucessivas das vozes, Melgaz recorre a um cromatismo intenso das linhas melódicas, resultando numa paleta variada de harmonias expressivas tão apropriadas ao pathos contido no texto sacro. O segundo período do barroco musical português corresponde, grosso modo, à primeira metade do século XVIII. Marcado pelo esforço continuado de modernização estruturante das artes, encetado por D. João V [1689-1750], não pode ser dissociado de três medidas régias que iriam influenciar a vida musical portuguesa até ao dealbar do século XIX: a criação de uma estrutura de ensino da mais alta qualidade, adequada à competente formação de músicos portugueses, o Seminário da Patriarcal, fundado por Alvará Régio de 9 de Abril de 1713; e o envio de bolseiros régios para Roma, a fim de se aperfeiçoarem na sua arte; e a incorporação maciça de cantores e instrumentistas estrangeiros. A contratação de Domenico Scarlatti [1685-1757] para o cargo de compositor régio, em 1719, deve ser entendida no contexto anteriormente descrito. Por um lado, o prestígio 49 notas ao programa 50 internacional do soberano estava em causa (Scarlatti era o mestre da Cappella Giullia, a Capela Pontifícia), mas, por outro, assegurava-se a colaboração de um jovem compositor, conhecedor da linguagem musical italiana e, concretamente, romana, inserindo-se, assim, nos desígnios joaninos. Sobre a permanência de Scarlatti em Portugal, envolta numa certa penumbra, mas parcialmente descortinada com sagacidade por João Pedro d’Alvarenga, sabemos que chegou a Lisboa em Novembro de 1719, para ser “il Capo, e direttore di tutta la […] musica della Patriarcale”. Como compositor régio, e controlando o aparelho da produção musical da corte joanina, Scarlatti foi, se não o responsável pela introdução na Patriarcal do repertório polifónico romano e de obras exclusivas da Cappella Giulia (o Miserere de Allegri, por exemplo), o garante da sua correcta interpretação. A adopção de modelos composicionais e práticas musicais de origem italiana pela Capela Real permitiram o afastamento de modelos eminentemente ibéricos (como o vilancico religioso, banido do culto em todas as igrejas do país por ordem régia de 1723). É no seio desta mudança, no contexto da música sacra em Portugal, que se detectam dois modelos dominantes: o stile pieno, que seguia o idioma contrapontístico de Palestrina, embora a combinação das linhas polifónicas de igual peso cedesse o lugar a um processo gradual de escrita baseado em progressões harmónicas, valorizando o movimento melódico e texturas homofónicas, em detrimento do contraponto; e o stile concertato, que absorvera o virtuosismo vocal da música dramática. Foi ainda neste peculiar contexto que emergiu a obra de dois bolseiros do Magnânimo, Francisco António de Almeida e António Teixeira, os quais, tal como Carlos Seixas, se mostraram dignos ilustradores do universo musical joanino. Nascido em Lisboa, em 1707, António Teixeira seguiu para Itália, na qualidade de bolseiro, com apenas 10 anos, tendo permanecido em Roma até Junho de 1728. Ao regressar a Lisboa foi apontado como cantor da Capela Real e examinador oficial de cantochão da diocese de Lisboa. Presume-se que tenha morrido ca. 1759. Os seus responsórios do Ofício de Matinas para a festividade de São Vicente, escritos para 4 vozes e baixo contínuo, apresentam a mesma estrutura formal, dividida em quatro partes (à excepção do terceiro, com cinco partes): uma secção inicial, de carácter introdutório, de escrita fundamentalmente vertical, na relativa menor, conduz à presa, a segunda secção, um fugato, de discurso musical imitativo, na tónica, modelando à relativa maior, que funciona como um refrão; segue-se o verso, para duas vozes solistas, na relativa maior, que conduz à repetição da presa. José António Carlos de Seixas foi um dos mais notáveis compositores portugueses da primeira metade do século XVIII. Apesar de nunca ter saído de Portugal, ao contrário de alguns dos seus contemporâneos, como Francisco de Almeida ou António Teixeira, teve oportunidade de familiarizar-se com as novas correntes musicais, essencialmente, através do contacto com os diversos músicos da Capela Real. Nascido em Coimbra em 1704, desempenhou as funções de organista da Sé de Coimbra, por morte do pai, antigo titular, entre 1718 e ca. 1722, ano em que se mudou para Lisboa, onde viria ocupar cargo semelhante, desta feita, na Capela Real. Professor de cravo, ficou famoso pelas sonatas para instrumento de tecla que, a acreditar nos testemunhos da época, notas ao programa ultrapassavam as 700. Nobilitado com a Ordem de Cristo, honra inaudita entre músicos deste período, morreu em Lisboa em 1742. Infelizmente, a sua obra musical é inconstante. Se, por um lado, temos a graciosidade do responsório Hodie Nobis, num virtuosismo musical que acentua a prosódia do texto, por outro deparamo-nos com a simplicidade do discurso de outras obras como, por exemplo, a antífona Verbum Carum. Quanto a Francisco António de Almeida, José Mazza, no Diccionario Biographico de Musicos (ca. 1780), chama-lhe “organista da Patriarcal e famoso compositor”. Por outras fontes da época é tratado apenas por Francisco António e citado como compositor de música para as populares representações de Presépios que se faziam na Mouraria. Sabe-se que, tendo nascido ca. 1702, foi enviado para Roma em 1716/1717, onde permaneceu por alguns anos. Da sua passagem por Roma ficou um retrato caricatural do famoso Pier Leone Ghezzi [1674-1755], que se encontra na Biblioteca Apostólica Vaticana com a seguinte legenda: “Signor Francesco Portoghese il quale è venuto in Roma per studiare, e presentemente è un bravissimo compositore di Concerti, e di musica da Chiesa “. Deduz-se que tenha regressado a Lisboa dois meses antes de António Teixeira, em Abril de 1728, pois a 22 do dito mês executou-se no palácio do cardeal D. João da Mota [1691-1747], Secretário de Estado do Reino, a serenata Il Trionfo della Virtù, com libreto de D. Luca Giovine e música de sua autoria. Seguiu-se o scherzo pastorale Il Trionfo d’Amore, a 27 de Dezembro de 1729, no Paço da Ribeira. Nos anos ulteriores compôs Gl’incanti d’Alcina, cantada a 27 de Dezembro de 1730, no Paço da Ribeira (27 de Dezembro era a festa onomástica de D. João V), La Spinalba ovvero il Vecchio Mato, no Carnaval de 1739, e L’Ippolito, uma serenata, cantada no Teatro do Forte do Paço da Ribeira a 4 de Dezembro de 1752. Presume-se que tenha morrido no terramoto de 1755. Almeida foi, sem margem de dúvidas, o maior compositor português da primeira metade do século XVIII, pela fluidez e requinte do discurso musical, e aquele que melhor incorporou na sua obra o idioma musical romano em todo o seu esplendor. A harmonia do contraponto, bem como a beleza das linhas vocais apontam, em certa medida, para além do Barroco, num exercício de genialidade musical, raro entre nós. josé bruto da costa 51 textos salve regina in festo s. vincentii. responsorium ii Salve, Regina, Mater misericordiæ, vita, dulcedo, et spes nostra, salve. ad te clamamus exsules filii Evæ, ad te suspiramus, gementes et flentes in hac lacrimarum valle. Eia, ergo, advocata nostra, illos tuos misericordes oculos ad nos converte; et Iesum, benedictum fructum ventris tui, nobis post hoc exsilium ostende. O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria. Si jubes Pater sancte, responsis judicem æggrediar: jam tibi fili, divini verbi curam commiseram. Nunc quoque profide qua astamus, responsa committo. Magnam jam pridem cum laude, et crediti mihi populi utilitate, meo munere fungebatis. in jejunio et fletu In jejunio et fletu orabant sacerdotes: Parce, Domine, parce populo tuo, et ne des hereditatem tuam in perditionem. in festo assumptionis b.m.v responsorium ii Sicut cedrus exaltata sumi n Líbano, et sicut cypressus in monte Sion, quasi myrrha electa. Dedit suavitatem odoris. Et sicut cinnamomum et balasamum aromzans. in festo s. vincentii. responsorium i 52 Sacram beati Vincentii martyris solemnitatem devote celebremus, cum invictus Christi athleta insignem victoriæ palmam intulit cælo. Et bravium salutis æternæ comprehendens corona justitiæ recepit. Bonum certamen certavit, cursum consummavit fidem servavit. lamentatio prima in sabbato sancto. a 4 concertata De lamentatione Jeremiæ Prophetæ. Heth. Misericordiæ Domini quia non sumus consupti; quia non defecerunt miserationes ejus. Heth. Non vidiluculo, multa est fides tua. Heth. Pars mea Dominus, dixit anima mea: propterea exspectabo eum. Teth. Bonus est Dominus sperantibus in eum, animæ querenti ilum. Teth. Bonum est præstolari cum silentio salutare Dei. Teth. Bonum est viro cum portaverit jugum ab adolescentia sua. Jod. Sedebit solitarius, et tacebit: quia levavit super se. Jod. Ponet in pulvere ossum, si forte spes. Jod. Dabit percutienti se maxilam, saturabitur opprobriis. Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum. textos o quam suavis O quam suavis est, Domine, Spiritus tuus, qui ut dulcedinem tuam in filios demonstrares, pane suavissimo de caelo praestito, esurientes reples bonis, fastidiosos divites dimittens inanes responsorio a 4 concertato per la festa de st.º antonio Si quæris miracula, mors, error, calamitas, dæmon lepra fugiunt: ægri surgunt sani. Cedunt mare vincula membra, resque perditas, petunt et accipiunt juvenes et cani. Pereunt pericula, sessat et necessitas: narrent hi qui sentiunt, dicant paduani. Gloria Patri et Filio, et Spiritui Sancto. motetto a 4 concertato in commune unius martyris Justus ut palma florebit, sicut cedrus quæ in Libano est, multiplicabitur. responsório a 5 para o natal Hodie nobis cælorum Rex de Virgine nasci dignatus est. Ut hominem perditum ad celestia regna revocaret: Gaudet exercitus angelorum: quia salus æterna humano generi apparuit. Glória in excelsis Deo, et in terra pax hominibus, bonæ voluntatis. Glória Patri, et Filio et Spiritui Sancto. 53 igreja matriz de santo ildefonso almodôvar 54 A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo, e depois bispo da mesma cidade, que viveu no século VII) como orago da paróquia de Almodôvar constitui um interessante reflexo da presença, no Baixo Alentejo, da espiritualidade monástico-militar, difundida pelos freires da Ordem de Avis, que seguia a Regra de São Bento. Porém, a primitiva igreja matriz da vila, pertencente em tempos ao padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Esta teve aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três beneficiados. Embora seguindo outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários preservaram a devoção a Santo Ildefonso. O edifício actual, traçado em 1592 pelo arquitecto Nicolau de Frias, constitui um exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (hallenkirche), com três naves de quatro tramos cobertas por abóbadas, revelando grande sentido de unidade espacial e excelente acústica. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo da composição dos alçados e o destaque outorgado ao tratamento dos pormenores, como as seis colunas toscanas em que assentam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do sentido de depuração classicizante atingida, em finais do século XVI, por este modelo, fiel à austeridade preconizada pela Contra-Reforma. D. João V determinou uma remodelação parcial do monumento, obra descrita pelo P.e Luís Cardoso no Diccionario Geografico (1747): “porque a capela-mor se achava arruinada, e por sua pequenhez fica imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo desta comarca, foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência, e Ordens, se derrubasse, e fizesse regular ao restante da igreja, e se acrescentasse tribuna, que de presente se anda fazendo”. Estas obras vieram a ser completadas com a encomenda, à oficina do mestre eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das diversas confrarias e irmandades da matriz. Nos séculos XIX e XX realizaram-se outras intervenções de vulto que modificaram substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de (pormenor) | Escola portuguesa | Ca. 1720 Almodôvar, igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição. IV. Nossa Senhora da Conceição 1950. Data de então o painel mural do pintor Severo Portela Jr. [1898-1985], artista profundamente ligado a Almodôvar, figurando o Baptismo de Cristo no Jordão, que ornamenta o baptistério renovado. A paróquia de Santo Ildefonso conserva na sua igreja um importante acervo de alfaias litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição da mesma vila, que pertenceu à Ordem Terceira de São Francisco. josé antónio falcão bibliografia fundamental: Luiz Cardoso, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de todas as Cidades, Villas, Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as Cousas Raras, que nelles se encontraõ, assim Antigas, como Modernas, I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia Real, 1747; José Maria Afonso Coelho, Foral de Almodôvar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de Almodôvar, 2004; Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620), Lisboa, Editorial Presença, 2002. 55 ! 7 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 igreja matriz de santo ildefonso almodôvar ludovice ensemble ! la dévotion du grand siècle Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV FRANÇOIS COUPERIN (1668-1733) 5ème couplet du Gloria in Excelsis [accommodé pour une flûte allemande, un violon, la basse de viole et la basse continue] MARC-ANTOINE CHARPENTIER (1643-1704) Troisième Leçon de Ténèbres du mercredi saint pour une basse, H. 141 FRANÇOIS COUPERIN 6ème couplet du Gloria in Excelsis MARC-ANTOINE CHARPENTIER Troisième Leçon de Ténèbres du mercredi saint pour une basse, H. 142 FRANÇOIS COUPERIN 7ème couplet du Gloria in Excelsis MARC-ANTOINE CHARPENTIER Troisième Leçon de Ténèbres du vendredi saint pour une basse, H. 143 LOUIS COUPERIN (ca. 1626-1661) Fantasie de Violes – Simphonie – Simphonie 57 NICOLAS BERNIER (1665-1734) Motet pour tous les Temps à voix veule avec symphonie “Venite, exultemus domino” (Psaume 94) MARC-ANTOINE CHARPENTIER Prélude, Menuet & Passepied devant l’Ouverture H.520 – Sarabande pour la Paix H.487– Simphonie à 3 flutes ou violons H.529 – Trio de Mr. Charpentier H.548b ANDRÉ CAMPRA (1660-1744) III Motet a voix seule et deux dessus […] “Laudate Dominum de Cælis” (Psaume 148) ! 58 notas biográficas ludovice ensemble Hugo Oliveira, basse-taille Joana Amorim, flûte traversière Bojan Cicic, dessus de violon Romina Lischka, basse de viole Fernando Miguel Jalôto, orgue O Ludovice Ensemble é um grupo de Música de Câmara especializado na interpretação de Música Antiga. Sedeado em Portugal, conta com a colaboração de artistas de várias nacionalidades, dotados de formação específica em “Práticas Históricas de Interpretação”. O nome do ensemble é uma homenagem ao arquitecto e ourives alemão Johann Friedrich Ludwig [1673-1752], arquitecto-mor d’el-rei D. João V, um dos elementos centrais na reforma artística, cultural e social efectuada por este monarca para a “europeização” da corte portuguesa. Criado em 2004 por Fernando Miguel Jalôto e Joana Amorim, o Ludovice Ensemble tem como objectivo interpretar e divulgar repertório de câmara dos séculos XVII e XVIII. PRINCIPAIS CONCERTOS E ESPECTÁCULOS. 2008: “L’Apothéose de Corelli: A influência de Corelli na Música Europeia do Início do Século XVIII” – Festival Música em Leiria; “La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Louis XIV”, Solista: Hugo Oliveira (barítono) – Festival Internacional de Música de Alcobaça “Cistermúsica”. 2007: “Sonates et Concerts, et Autres Airs à Danser et à Jouer, pour les Flûtes, Violes et Violons”, Solista: Akiko Veaux (Dança Barroca) – Festival “Encontros do Espírito Santo” (Universidade de Évora); “Musica Lætitiæ Comes Medicina Dolorum: Música e Medicina no Antigo Regime” – Auditório do Hospital Geral de Santo António, Porto; Cantatas e Concerts de J.-Ph. Rameau, Solista: Hugo Oliveira 59 notas biográficas (barítono) – Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) e Universidade de Évora. 2006: Suites, Concerts e Sonatas do Barroco Francês – Encontros de Música Antiga de Loulé; Cantatas e Concerts de J. B. Stuck e de J.-Ph. Rameau; Solista: Orlanda Velez Isidro (soprano) – Folle-Journée/Festa da Música, Centro Cultural de Belém. 2005: “À la Venue de Noël… Advento e Natal na França do século XVIII”, Solista: Hugo Oliveira (barítono) – Ciclo de Música Sacra de Viana do Castelo; Cantatas de A. Campra e K. Van Blankenburg, Solista: Hugo Oliveira (barítono) – Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa). “Une Fête Galante”, inspirado na obra de Antoine Watteau, Solista: Orlanda Velez Isidro (soprano) – Festival Internacional de Música de Mafra. HUGO OLIVEIRA Barítono 60 Nascido em Lisboa (1977), Hugo Oliveira iniciou a sua formação musical com seis anos no Instituto Gregoriano de Lisboa. É licenciado em Canto pela Escola Superior de Música de Lisboa, tendo estudado com Helena Pina Manique e Luís Madureira. Enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian prosseguiu os estudos no Real Conservatório de Haia (Holanda), onde foi aluno de Jill Feldman e Michael Chance. Para além da especialização no repertório barroco, estende a sua flexibilidade como cantor ao repertório clássico/romântico e contemporâneo. A convite do grupo inglês Hilliard Ensemble estreou-se como solista, em 1997, na obra Passio, de Arvo Pärt ( Jesus). Tem colaborado com a Orquestra Sinfónica de Londres, a Orquestra Filarmónica da Radio (Holanda), a Orquestra Gulbenkian, Les Concerts des Nations, o Schöenberg Ensemble, a Orquestra Sinfónica de Düsseldorf, a Ebony Band, o Remix Ensemble e o Ricercar Consort, entre outras formações. Apresentou-se em algumas das mais importantes salas nacionais e europeias (Amesterdão, Londres, Paris, Madrid, Barcelona) e em vários festivais em Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Bélgica e Alemanha. Entre outros maestros, cantou sob a direcção de Michel Corboz, Jordi Saval, Jaap van Zweden, Marcus Creed, Gennadi Rozhdestvensky, Laurence Cummings, Christina Pluhar, Stefan Asbury, Reinbert de Leeuw, François Xavier Roth, Martin Andrè, Pierre-André Valade, Werner Herbers, Nigel North e Richard Gwilt. Dentro do vasto repertório interpretado destacam-se obras como Paixão segundo São Mateus, Paixão segundo São João, Paixão segundo São Marcos e Oratória de Natal, de J. S. Bach, Vespro della Beata Vergine, de C. Monteverdi, Invitatórios e Responsórios de Natal, de Casanoves, Paixão segundo São Mateus, de Schütz, Messias, Nisi Dominus e Dixit Dominus, de Händel, Christus e Lauda Sion, de Mendelssohn-Bartholdy, Missa Nelson, de Haydn, Requiem, Missa em Dó maior e Missa da Coroação, de W. A. Mozart, Requiem, de Duruflé e Fauré, Requiem, de Brahms, Petite Messe Solennelle, de Rossini, Pulcinella, de Igor Stravinsky, Die Legende von der Heiligen Elisabeth, de Liszt, Missa das Crianças, de J. Rutter, e Jetzt immer Schnee, de Gubaidulina. Interpretou também, em estreia absoluta, a Cantata Verbum Caro, de Nuno Corte-Real. No domínio da Ópera interpretou As Bodas de Fígaro (Fígaro), de Mozart, The Triumph of Time and Truth (Tempo), de Händel, Venus e Adonis (Adónis), de John Blow (Adónis), notas biográficas Les Malheurs d’Orphée, de D. Milhaud (Orphée), Melodias Estranhas, de António Chagas Rosa (Damião de Góis) e comédia madrigalesca La barca di Venetia per Padova, de A. Banchieri, sob a direcção de Gabriel Garrido. Enquanto membro do Estúdio de Ópera do Porto – Casa da Música participou em produções como Joaz (Azaria e Jojada), de Benedetto Marcello, L’Ivrogne Corrigé (Lucas), de Gluck, e Frankenstein!, de Heinz-Karl Gruber (coreografia de Paulo Ribeiro). No âmbito do projecto Académie Baroque Européenne de Ambronay (2004) colaborou na ópera Les Arts Florissants (La Discorde), de Marc-Antoine Charpentier, dirigida por Christophe Rousset. FERNANDO MIGUEL JALÔTO Cravo e Direcção Musical Fernando Miguel Jalôto estudou Cravo no Conservatório de Música do Porto e no Departamento de Música Antiga e Práticas Históricas de Interpretação do Conservatório Real da Haia (Países Baixos). Completou a Licenciatura (2002) e o Master Degree (2005) sob a orientação de Jacques Ogg. Frequentou Master-Classes com Gustav Leonhardt, Ilton Wjuniski, Laurence Cummings e Ketil Haugsand. Estudou órgão barroco e clavicórdio. Foi bolseiro do Centro Nacional de Cultura. É Mestre em Música pela Universidade de Aveiro (2006). Enquanto aluno do Conservatório Real tocou sob a direcção de J. ter Linden, E. Wallfish, T. Koopman, Ch. Pluhar. É membro da Orquestra Barroca Divino Sospiro desde 2005. Com este agrupamento apresenta-se regularmente sob a direcção de E. Onofri, R. Alessandrini, Ch. Pluhar, A. Bernardini e V. Ghielmi. É frequentemente convidado por esta orquestra para se apresentar como solista – Concertos de Carlos Seixas; J. S. Bach; J. Ch. Bach/W. A. Mozart – nomeadamente nos festivais de Île-de-France, Ambronay e “La Folle Journée” (França); no Festival Internacional de Varna (Bulgária); no “Febrero Lírico” do Real Coliseo de San Lorenzo del Escorial (Espanha); nos festivais internacionais de Mafra e Leiria; na Festa da Música no Centro Cultural de Belém; nos Encontros de Música Antiga de Loulé; e em várias residências no Centro Cultural de Belém. Apresentou-se com a Lyra Baroque Orchestra (Minnesota) e a Real Escolania de San Lourenço d’El Escorial, sob a direcção de Jacques Ogg, tendo gravado com estes agrupamentos um CD para a editora espanhola Glossa; e com a Orquestra da Radiotelevisão Norueguesa, sob a direcção de R. Goodman. Participou, sob a direcção de C. Rousset, numa produção de duas óperas de Marc-Antoine Charpentier pela Académie Baroque Européenne de Ambronay, incluindo 12 récitas em alguns dos principais teatros de ópera de França e Espanha, a gravação de um DVD para a editora Armide e gravações integrais ao vivo para os canais de televisão ARTE e Mezzo. Sob a direcção de Wim Becu tocou em 2006 as Musikalische Exequien, de Schütz, em três concertos na Bélgica e, em 2008, as Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, em concertos na Bélgica e na Holanda. Em 2007 e 2008 apresentou-se como solista com a Orquestra Barroca da Casa da Música (Porto), dirigida por L. Cummings, trabalhando ainda com este agrupamento 61 notas biográficas sob a direcção de F. Biondi e H. Christophers. Participou recentemente numa produção da ópera As Bodas de Fígaro com a Orquestra Camerata Academica Salzburg, sob a direcção de M. Brabbins. É co-fundador do Ludovice Ensemble, desempenhando as funções de director artístico. Este agrupamento apresentou-se na Festa da Música (CCB), nos Festivais Internacionais de Mafra, Leiria, Alcobaça e Loulé, e concertos em Évora (Universidade e Biblioteca), Museu Calouste Gulbenkian (Lisboa), Porto e Viana do Castelo. ! 62 notas ao programa la dévotion du grand siècle Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV O Petit Motet é uma forma musical francesa que conheceu o seu apogeu entre 1670 e 1730, aproximadamente. Desenvolveu-se a partir do Motetto Concertato italiano seiscentista e da aplicação à música sacra dos princípios da monodia acompanhada e da Seconda Prattica, praticados no Norte de Itália ao redor de 1600. Os grandes cultores do Petit Motet foram os compositores mais progressistas, que procuravam revitalizar com a música francesa, sem no entanto a desvirtuar das suas qualidades. Para conseguir tal renovação, acreditavam que se devia procurar atingir um subtil equilíbrio entre as novas tendências assimiladas a partir da música italiana – tendo como modelos as obras de Rossi, Carissimi, Stradela e Corelli – e o estilo francês, tal como este fora codificado por Jean-Baptiste Lully em meados do século XVII. Todos os compositores representados no programa que comentamos participaram activamente neste movimento de “reunião dos gostos” (Goûtes-Réunis): Marc-Antoine Charpentier estudou em Roma; Bernier e Campra dedicaram-se sobretudo à reforma da música vocal – dramática, sacra e de câmara; François Couperin escreveu as primeiras sonatas “a tré” em França; Louis Couperin, pertencente a uma geração anterior, havia dado já o mote a este ideal, ao estabelecer contacto (e deixar-se fortemente influenciar) com Johann Jakob Froberger, cravista da corte imperial de Viena e antigo aluno de Girolamo Frescobaldi em Roma. O Petit Motet é escrito normalmente para 1 ou 2 vozes com acompanhamento de baixo contínuo; a esta formação são adicionados com alguma frequência dois dessus instrumentais (violons ou flûtes). Caracteriza-se, pot conseguinte, pelo pequeno efectivo vocal e instrumental, mas também pela sua concisão formal, duração breve e predilecção por textos litúrgicos ou devocionais de carácter predominantemente meditativo, contemplativo ou plangente. A escrita vocal e instrumental empregue raramente assume um carácter virtuoso e extrovertido, preferindo antes uma evocação sensível dos sentimentos mais íntimos e delicados. O Petit Motet é assim a forma musical mais adequada à expressão de uma devoção e piedade intensas, mas muito pessoais, reflectindo uma relação emocional e individual com Deus. Não deixa, contudo, de possuir uma extraordinária capacidade de resposta a diferentes necessidades litúrgicas, devocionais ou mesmo de “entretenimento espiritual”. Na Liturgia Galicana, por influência da prática levada a cabo na Capela Real de Versalhes, mas encontrando variantes particulares nas várias catedrais, paróquias, colegiadas e conventos, o Petit Motet encontrava lugar durante a Eucaristia, em particular na Consagração e na Elevação das Espécies, sendo por isso conhecido como Elévation. 63 notas ao programa 64 Estas obras de carácter eucarístico eram vulgarmente utilizadas nas adorações diárias do Santíssimo Sacramento, na devoção das Quarenta Horas e nas festividades do Corpus Christi. Os Petits Motets podiam ser escritos sobre um texto litúrgico (como a antífona O Salutaris Hostia), mas com mais frequência eram compostos sobre poesias neo-latinas não litúrgicas. A “Prière pour le Roy” ou Dominum Salvum costumava ser escrita sob a forma de Petit Motet. Existe ainda um número substancial de Petits Motets com textos bíblicos ou litúrgicos: os salmos, as quatro antífonas marianas, os cânticos bíblicos neo-testamentários (Magnificat, Nunc Dimitis, Benedictus) e, especialmente, as Lamentações de Jeremias (Leçons de Ténèbres).Todos eles permitiam uma aplicação muito vasta em diversos contextos, embora a sua principal utilização ocorresse na Recitação das Horas Litúrgicas. Nas comunidades paroquiais mais pequenas, tal como nos conventos e nos mosteiros, o uso de um ou dois Petits Motets dava particular brilho à oração de Vésperas, contrastando com o Cantochão medido e harmonizado em Faux-Bourdon (segundo a prática francesa da época) ou com a música de órgão. Nas catedrais e capelas principescas o Petit Motet assumia sobretudo o papel de alternativa íntima, recatada e quase sensual à grandiloquência e espectacularidade dos Grands Motets com solos, coros e faustosos acompanhamentos instrumentais. Nas Horas menos solenes, como as Completas e as Matinas, o Petit Motet era ainda mais largamente utilizado. Durante a Semana Santa verificava-se em França um fenómeno muito peculiar, motivado – de forma paradoxal – simultaneamente pela devoção e pelo mundanismo, pela piedade e pela coquetterie. Toda a população acorria em massa às principais casas religiosas, desde a família real até aos mais humildes súbditos, para ouvir cantar as Matinas do Tríduo, também conhecidas como Trevas (Ténèbres), frequentemente executadas pelos melhores cantores da Académie Royal de Musique (Ópera de Paris). Estas cerimónias decorriam inicialmente nas primeiras horas da madrugada de Quinta-Feira, Sexta-Feira e Sábado Santos; todavia, para permitir a assistência de um maior número de fiéis, há muito que a Igreja permitira a sua celebração antecipada, ao entardecer do dia anterior. As Matinas do Tríduo consistiam numa sucessão de nove leituras intercaladas com salmos e responsórios; em cada dia três das leituras (lições) eram extraídas do Livro das Lamentações, atribuído ao profeta Jeremias, versando sobre a destruição de Jerusalém e do Templo, aquando da deportação para a Babilónia. As cinco Lamentações constituem uma das maiores obras poéticas da Bíblia, escritas num estilo intenso, dramático, apaixonado, pleno de contrastes e imagens fortes, alternando súplicas, lamentos, momentos de raiva, ira, submissão e desespero – uma combinação bem ao agrado do gosto seiscentista. Com excepção da última, cada versículo das primeiras quatro Lamentações iniciava-se ordenadamente por uma das letras do alfabeto hebreu. Estas letras foram mantidas por São Jerónimo na tradução integral da Bíblia para Latim (Vulgata). Desde a Idade Média que cada letra era ornada por uma longa entoação, o que deu origem aos elaborados melismas que caracterizam a maior parte da Leçons de Ténèbres. As nove lições podiam ser cantadas, mas era mais comum musicar-se apenas a última lição de cada dia. O canto das Leçons de Ténèbres, porém, era apenas uma parte – ainda que essencial – de um elaborado notas ao programa cerimonial cénico, que envolvia a extinção progressiva das nove luzes de um candelabro específico, bem como outros gestos e rituais plenos de simbolismo. A partir de 1700, começaram a ser publicados com regularidade volumes de Petits Motets destinados a suprir a música para diferentes utilizações litúrgicas nas diferentes comunidades (catedrais, capelas, conventos, paróquias, etc.). A intensa eloquência dos textos, aliados a uma escrita musical extremamente cuidada e sensível e à modernidade do estilo, contribuíram para a sua grande disseminação. Assim, um uso complementar dos Petits Motets foi a recreação privada e edificante, sobretudo em convívios e encontros realizados em conventos ou em casas de famílias mais devotas. Assumiam assim uma função muito próxima das Cantatas profanas – elas mesmo por vezes dotadas de uma moral edificante – e musicalmente os estilos tendiam a aproximar-se (até porque, como vimos, os compositores de ambos os géneros eram os mesmos). As Leçons de Ténèbres de Marc-Antoine Charpentier hoje apresentadas são um dos ciclos menos conhecidos deste compositor. O autor escreveu nove séries. Este ciclo encontra-se redigido num estilo sóbrio e despojado, predominantemente silábico e declamativo, e dispensa quase por completo a ornamentação das letras hebraicas. A atenção foca-se sobretudo no conteúdo dramático do texto e na interligação entre as melodias vocais e os breves interlúdios instrumentais. Foi provavelmente escrito para os Jesuítas do Colégio parisiense Louis-le-Grand ou para a Sainte-Chapelle, onde Charpentier foi mestre de capela. Nicolas Bernier sucedeu-lhe nesse posto, que acumulava com outras funções como mestre-capela de várias instituições religiosas, entre elas a grande e rica paróquia de Saint-German-l’Auxerois. O salmo 94 constitui parte essencial do Invitatório, a primeira oração do dia. Antecedendo as Matinas, era recitado (ou cantado) todos os dias do ano, com excepção dos tempos penitenciais. André Campra foi mestre-capela da catedral de Nôtre Dame de Paris, ainda que se tenha distinguido sobretudo no campo da música operática. O jubiloso salmo 148 curiosamente não inclui o “Aleluia” inicial, talvez para permitir a sua utilização no maior número possível de ocasiões, e não num tempo ou cerimonial litúrgico particular. Parte das obras instrumentais são extraídas maioritariamente das Missas de Órgão de François Couperin. Encontramo-las aqui numa versão instrumental que corresponde não só às sugestões referidas nos prefácios de várias colecções de obras organísticas do período mas também ao exemplo de Charpentier, que legou uma esplendorosa Messe pour les Instruments au lieu des Orgues. Estas versões instrumentais têm a virtude de revelarem a escrita colorida de Couperin, profundamente influenciada pelos trios italianos: as Missas de Órgão são contemporâneas das suas primeiras sonatas em trio, representando primeiros “ensaios” neste campo, mas evidenciam, no entanto, outras “experiências”, como o uso de uma voz solística no registo médio, equilibrando a textura e possibilitando um tratamento contrapontístico mais complexo. O mesmo tipo de escrita surge já nas Fantasias – genuinamente escritas para conjuntos instrumentais – do tio de François, Louis, organista em Saint-Gervais de Paris e gambista na corte. Finalmente, de Charpentier apreciamos uma série de pequenas peças em trio com proveniências várias e nem sempre claras, umas profanas e outras sacras (como a H.529), agora combinadas de forma a evocarem 65 notas ao programa as Symphonies de Mr. Charpentier, copiadas no atelier do copista régio Philidor e hoje irremediavelmente perdidas. fernando miguel jalôto ! 66 textos Troisième Leçon du mercredi saint JOD Manum suam misit hostis ad omnia desiderabilia ejus quia vidit gentes ingressas sanctuarium suum de quibus præceperas ne intrarent in ecclesiam tuam. CAPH Omnis populus ejus gemens et quærens panem; dederunt pretiosa quæque pro cibo ad refocilandam animam; vide Domine considera quoniam facta sum vilis. LAMED O vos omnes qui transitis per viam adtendite et videte si est dolor sicut dolor meus quoniam vindemiavit me ut locutus est Dominus in die iræ furoris sui. MEM De excelso misit ignem in ossibus meis et erudivit me expandit rete pedibus meis convertit me retrorsum posuit me desolatam tota die mærore confectam. NUN Vigilavit jugum iniquitatum mearum in manu ejus convolutæ sunt et inpositæ collo meo infirmata est virtus mea dedit me Dominus in manu de qua non potero surgere. Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum. troisième leçon du jeudi saint. ALEPH Ego vir videns paupertatem meam in virga indignationis ejus; Me minavit et adduxit in tenebris et non in lucem; Tantum in me vertit et convertit manum suam tota die. BETH Vetustam fecit pellem meam et carnem meam contrivit ossa mea; Ædificavit in gyro meo et circumdedit me felle et labore; In tenebrosis conlocavit me quasi mortuos sempiternos. GHIMEL Circumædificavit adversum me ut non egrediar adgravavit conpedem meam; Sed et cum clamavero et rogavero exclusit orationem meam; Conclusit vias meas lapidibus quadris semitas meas subvertit. Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum. troisième leçon du vendredi saint. Incipit oratio Jeremiæ prophetæ: Recordare Domine quid acciderit nobis intuere et respice obprobrium nostrum; Hereditas nostra versa est ad alienos domus nostræ ad extraneos; Pupilli facti sumus absque patre matres nostræ quasi viduæ; Aquam nostram pecunia bibimus ligna nostra pretio conparavimus; Cervicibus minabamur lassis non dabatur requies; Ægypto dedimus manum et Assyriis ut saturaremur pane; Patres nostri peccaverunt et non sunt et nos iniquitates eorum portavimus; Servi dominati sunt nostri non fuit qui redimeret de manu eorum; In animabus nostris adferebamus panem nobis a facie gladii in deserto; Pellis nostra quasi clibanus exusta est a facie tempestatum famis; Mulieres in Sion humiliaverunt virgines in civitatibus Juda. Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum. psaume 94 (vulgata) Venite exultemus Domino jubilemus Deo salutari nostro; Præoccupemus faciem ejus in confessione et in psalmis jubilemus ei; Quoniam Deus magnus Dominus et rex magnus super omnes deos; Quia in manu ejus fines terræ et altitudines montium ipsius sunt; 67 textos Quoniam ipsius est mare et ipse fecit illud et siccam manus ejus formaverunt; Venite adoremus et procidamus et ploremus ante Dominum qui fecit nos; Quia ipse est Deus noster et nos populus pascuæ ejus et oves manus ejus; Hodie si vocem ejus audieritis nolite obdurare corda vestra; Sicut in irritatione secundum diem temptationis in deserto ubi temptaverunt me patres vestri probaverunt me et viderunt opera mea; Quadraginta annis offensus fui generationi illi et dixi semper errant corde; Et isti non cognoverunt vias meas ut juravi in ira mea si intrabunt in requiem meam psaume 148 (vulgata) 68 Laudate Dominum de cælis laudate eum in excelsis; Laudate eum omnes angeli ejus laudate eum omnes virtutes ejus; Laudate eum sol et luna laudate eum omnes stellæ et lumen; Laudate eum cæli cælorum et aqua quæ super cælum est; Laudent nomen Domini quia ipse dixit et facta sunt ipse mandavit et creata sunt; Statuit ea in sæculum et in sæculum sæculi præceptum posuit et non præteribit; Laudate Dominum de terra dracones et omnes abyssi; Ignis grando nix glacies spiritus procellarum quæ faciunt verbum ejus; Montes et omnes colles ligna fructifera et omnes cedri; Bestiæ et universa pecora serpentes et volucres pinnatæ; Reges terræ et omnes populi principes et omnes judices terræ; Juvenes et virgines senes cum junioribus laudent nomen Domini; Quia exaltatum est nomen ejus solius; Confessio ejus super cælum et terram et exaltabit cornu populi sui hymnus omnibus sanctis ejus filiis Israël populo ad propinquanti sibi. igreja matriz de nossa senhora da assunção alvito Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto n.º 29 904 (Diário do Governo de 16 de Maio de 1939) A génese da igreja matriz de Alvito está associada a um acordo sobre a cobrança dos respectivos dízimos que foi celebrado, em 7 de Março de 1262, entre D. Martinho I, bispo de Évora, e o donatário da vila, Estêvão Anes, chanceler-mor e colaço (irmão de leite) de D. Afonso III – e também genro do monarca, visto ter casado com uma sua filha ilegítima, D. Maria Afonso. Mais tarde, em cédula testamentária de 1279, o fundador legou o padroado da igreja ao convento da Santíssima Trindade, de Santarém, o que motivaria novo ajuste com a diocese de Évora, subscrito pelo bispo D. Durando. No ano seguinte estava em funções, como prior de Alvito, Fr. João Navarro, senhor desta igreja e das de Vila Nova, Benalvergue e Oriola. A invocação primitiva da paróquia foi a de Santa Maria, festejada no dia 15 de Agosto. De meados do século XV em diante, a povoação conheceu um surto de progresso que veio a culminar, em 1481, com a autorização dada por D. João II ao barão de Alvito, o Doutor João Fernandes da Silveira, chanceler-mor e regedor das justiças, e à sua segunda mulher, D. Maria de Sousa Lobo, senhora da terra, para edificarem o castelo. Terá sido pelo mesmo período que se iniciou a reconstrução da igreja matriz, certamente com o contributo decisivo do mecenato dos barões, a quem os trinitários permitiram erguer o panteão familiar no cruzeiro, em posição de destaque. A capela do lado do Evangelho ostenta, na chave, as armas dos Lobos da Silveira, enquanto a chave da que lhe fica fronteira tem as armas dos Costas e dos Teixeiras. Supõe-se que as arcas ferais existentes nestas capelas pertenceram, respectivamente, aos fundadores e a D. Fernando Afonso e D. Catarina Teixeira, os pais de João Fernandes da Silveira. Após o arranque inicial, as obras pararam alguns anos, devido a um litígio entre o bispo de Évora e a Ordem da Santíssima Trindade acerca da plena jurisdição paroquial, recaindo sobre o edifício uma ordem de demolição, que não chegou a ser cumprida. Foi já numa fase adiantada do século XVI, durante o priorado de Fr. Jorge de Pombal, que se concluíram os trabalhos, orientados pelo mestre de pedraria João Mateus. O risco do edifício, atribuído a João de Arruda, mas que pode ter sido feito por um dos seus filhos, Diogo e Francisco de Arruda, mestres das obras da comarca do Alentejo, 69 70 corresponde a uma requintada modalidade da arquitectura manuelina que ganhou protagonismo no Alentejo central e tem como principal paralelo a igreja matriz da limítrofe vila de Viana. Esta tipologia individualiza-se pela sólida imponência das três naves de distintas alturas, cada uma com quatro tramos integralmente revestidos por abóbadas de nervuras em estrela, partindo de arcos quebrados que se apoiam em meias-colunas e pilares octogonais seccionados por anéis e descarregam em mísulas tronco-cónicas. Nos capitéis e nos anéis prepondera uma elaborada decoração vegetalista, enquanto nos fechos avultam os elementos heráldicos, de acordo com a sintaxe característica do Gótico Final. O coro alto, assente num arco rebaixado e enquadrado por grelhas de tijoleira, resulta de um acrescento tardio, mas é fiel ao espírito do lugar. No exterior sobressaem os gigantes coroados por pináculos cónicos, intervalados por arcobotantes e fiadas de merlões chanfrados. Em pontos estratégicos distribuem-se gárgulas de feição antropomórfica ou com animais fabulosos, ao passo que outras mimetizam bocas de peças de artilharia, ao gosto do Renascimento. Tudo isto define uma sequência de ritmos e assimetrias que imprime singular movimentação ao poderoso conjunto, tornando bem explícito o diálogo do derradeiro Gótico com a estética mudéjar, fortemente cultivada entre nós a partir dos meados do século XV, que teve em D. Manuel um grande apreciador. O portal, de feição tardo-renascentista, data já dos primórdios do reinado de D. João III, marcando a viragem para a estética do Classicismo. A plástica renascentista esteve também presente no ciclo de pinturas murais que ornamentaram o edifício, hoje destruídas ou ocultas sob grossas camadas de cal. Cumpre destacar, entre os sectores preservados, o painel existente na capela lateral, do lado do Evangelho, que figura Santiago Maior ladeado por São Sebastião e Santo André, brilhante composição na técnica a secco, dos finais de Quatrocentos. O realce conferido ao apóstolo das Espanhas evoca a passagem, por Alvito, de um segmento do Caminho de Santiago que entrava no nosso país pelo termo de Serpa – e através do qual circulavam, em direcção a Compostela, os peregrinos vindos da Andaluzia. A própria existência de um importante hospital medievo, dedicado primeiro ao Espírito Santo e depois a Nossa Senhora das Candeias, aponta no mesmo sentido. Uma vez concluída a fábrica de raiz manuelina, sucessivas campanhas de obras contribuíram para enriquecê-la. De 1553 e 1559 procedeu-se à reconstrução da capela-mor e da sacristia, por ordem do cardeal infante D. Henrique, arcebispo de Évora. Nos inícios do século XVII introduziram-se os azulejos de caixilho azul e branco da capela-mor e os retábulos das capelas laterais. À volta de 1647, data inscrita no fecho do arco da capela do Rosário, efectuou-se a aplicação do vasto ciclo de azulejos de padrão de tapete, pontuado por painéis figurativos que aludem a devoções típicas da época da Contra-Reforma: o Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora do Rosário, Santo António, São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e os fundadores da Ordem da Trindade, São João da Mata e São Félix de Valois. O retábulo da capela-mor, notável desinência da talha de “estilo nacional”, foi construído entre 1691 e 1703, beneficiando de uma avultada esmola do arcebispo D. Fr. Luís da Silva Telles, grande mecenas das igrejas da sua arquidiocese. Pouco depois remodelaram-se os pavimentos, com a colocação de V. São Miguel a vencer o Demónio | Escola de Gand | Século XVIII (primeira metade) Alvito, igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção. ladrilhos de mármore branco e negro e de um estradado na nave central. Em data muito ulterior acrescentaram-se as duas capelas laterais mais afastadas do transepto. A igreja matriz de Alvito possui um precioso núcleo de obras de arte móveis, entre pinturas, esculturas e espécimes de artes decorativas, em particular ourivesaria e têxteis, incluindo alfaias provenientes de casas religiosas do concelho, como o convento franciscano de Nossa Senhora dos Mártires. josé antónio falcão Bibliografia fundamental: Luiz de Pina Manique, A Arte Manuelina na Arquitectura de Alvito: Impressões e Apontamentos, Lisboa, [edição do autor], 1949 (2.ª ed., Alvito, Câmara Municipal de Alvito, 1983); José Custódio Vieira da Silva, O Tardo-Gótico em Portugal: A Arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros Horizonte, 1989; J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Catarina Valença Gonçalves, A Pintura Mural no Concelho de Alvito (Séculos XVI a XVIII), Alvito, Câmara Municipal de Alvito, 1999; Hermínia Vasconcelos Vilar, As Dimensões de Um Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999. 71 ! 28 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 igreja matriz de nossa senhora da assunção alvito concerto campestre ! sileti venti Os Mestres do Barroco ANTONIO VIVALDI (1678-1741) Concerto em Fá Maior RV455 allegro giusto – grave – allegro CARLOS SEIXAS (1704-1742) Concerto em lá M allegro – adagio – allegro/giga GEORG PHILIPP TELEMANN (1681-1767) Duplo concerto em lá menor TWV 52:a1 grave – allegro – dolce – allegro GEORG FRIEDRICH HÄNDEL (1685-1759 ) Silete venti HWV 242 Symphonia: Silete venti Aria: Dulcis amor, Jesu care Accompagnato: O fortunata anima Aria: Date serta, date flores Presto: Aleluia 73 notas biográficas concerto campestre Joana Seara, soprano Pedro Castro, oboé barroco, flauta de bisel e direcção artística Denys Stetsenko, violino barroco Reyes Galliardo, violino barroco Raquel Massadas, viola barroca Sofia Diniz, viola da gamba Duncan Fox, violone Flávia Almeida Castro, cravo 74 Com o nome inspirado no famoso quadro de Giorgone, o Concerto Campestre é um grupo de música de câmara que se dedica à interpretação de música europeia desde o Renascimento ao Barroco, também chamada “musica antiga”. É constituído por jovens profissionais especialistas nos instrumentos da época, tais como o cravo, o oboé barroco, a viola da gamba e o violoncelo barroco. Os seus elementos são formados nas principais escolas europeias e trabalham em vários grupos da especialidade, entre os quais o Ricercar Consort, Al Ayre Español, Les Talens Liryques e a Orquestra Barroca Divino Sospiro. notas biográficas O grupo está sediado em Lisboa e tem a direcção artística de Pedro Castro. A sua constituição é versátil e varia conforme os programas que são apresentados, tendo realizado já projectos desde um trio de câmara até um conjunto de dez músicos e cantores na execução de cantatas e concertos de J. S. Bach, Telemann e Seixas. Apresentou-se na Festa da Música no Centro Cultural de Belém, nos Encontros de Música Antiga de Loulé, no átrio do Museu Gulbenkian, na “Festa no Chiado”, nas “Festas de Lisboa” e nos Encontros de Música Antiga de Tomar. JOANA SEARA Soprano Joana Seara iniciou os estudos musicais e de canto na Academia de Música de Santa Cecília e no Conservatório Nacional de Lisboa, sob a orientação de Elsa Saque. Foi membro e solista do Coro Gulbenkian durante seis anos e participou em inúmeros concertos, em Portugal e no estrangeiro, sob a direcção de Michel Corboz, Frans Brüggen, Fernando Eldoro, Jorge Matta, Michael Zilm, Claudio Abbado e Richard Hickox. Decidiu-se pelo canto solístico, tirando a Licenciatura, Mestrado em Performance e o Curso de Ópera na Guildhall School of Music and Drama, em Londres, com Laura Sarti. Participou também em cursos e masterclasses de aperfeiçoamento orientados por Thomas Hampson, Thomas Allen, Felicity Lott, Christa Ludwig, Jill Feldman, Emma Kirkby, Graham Clark e Paul Kiesgen. Enquanto estudante foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, da Wingate Foundation, do E. M. Behrens Charitable Trust e da Worshipful Company of Barbers. Entre os prémios que recebeu incluem-se o Worshipful Company of Glass Sellers Music Prize 2005 e o Sybil Tutton Award. Foi finalista na Händel Singing Competition 2007. Trabalhou como solista para companhias como a English National Opera, a Glyndebourne Festival Opera, a Castleward Opera, a New European Opera, a Bampton Classical Opera, a Independent Opera at Sadlers Wells, a Opera Restor’d e a British Youth Opera. Os seus papéis incluem Galatea (Acis and Galatea), Gretel (Hänsel und Gretel ), Damigella (The Coronation of Poppea), Despina, Zerlina, Juliet (Romeo and Juliet, de Benda), Margery (The Dragon of Wantley, de Lampe), Vespina (La Spinalba), Dorinda (Orlando de Händel) e Nannetta (Falstaff ), sob a direcção de maestros como Laurence Cummings, Gary Cooper, Paolo Olmi, Peter Tomek, Paul McGrath, Nicholas Kok e Mathew Halls e Marcos Magalhães. Em concertos e recitais tem-se apresentado como solista na interpretação de grandes obras como a Sinfonia n.º 2, de Mahler, a Sea Symphony, de Vaughan William, e o Messias, de Händel, e, mais recentemente, na Paixão segundo São João, de Bach, com o King’s Consort, sob a direcção de Mathew Halls. Apresentou-se no Festival Händel de 2008 e no Festival de Lieder de Oxford de 2006 com os pianistas Bernard Robertson e Sholto Kynoch. Actua regularmente com o Ensemble Barroco do Chiado, sob a direcção de Marcos Magalhães, e com a Orquestra Barroca Divino Sospiro, sob a direcção de Enrico Onofri, com quem participou em concertos para os festivais barrocos de Île-de-France, 75 notas biográficas Ambronay e Mafra. Futuras apresentações incluem Galatea em Acis and Galatea em Londres, Paris e Nantes, Vespina na reposição da produção do Centro Cultural de La Spinalba, Gretel para a Opera Holland Park, confidente de Dircée em Medée e Clotilde em Norma, na Fundação Gulbenkian. PEDRO CASTRO Oboé barroco, flauta e coordenação artística Pedro Castro nasceu em 1977 no Porto. Diplomado pela Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação de Pedro Couto Soares, e pelo Conservatório Real de Haia na Holanda, sob a orientação de Sebastian Marq (flauta) e Ku Ebbinge (oboé barroco). No âmbito do Mestrado em Artes Musicais na Universidade Nova de Lisboa realizou a tese Serenata L’Angelica – Um Estudo Performativo. Foi bolseiro do Centro Nacional de Cultura. A sua actividade profissional passa pelos seguintes agrupamentos: Al Ayre Español, Le Talens Liryques, Orquestra Barroca Divino Sospiro, Orquestra Barroca Capela Real, Orquestra Barroca de Sevilha, Flores de Música, Sete Lágrimas, Quarteto Arabesco, A Imagem da Melancolia e Músicos do Tejo. Tem assim oportunidade de trabalhar sob a direcção de Eduardo Lopez Banzo, Enrico Onofri, Christophe Rousset, Alfredo Bernardini e Monica Hugget, entre outros importantes nomes do meio da interpretação histórica. Como solista, além da actividade em música de câmara, apresentou-se também com a Orquestra Capela Real no Concerto para Oboé, de A. Marcello, no Duplo Concerto para Violino e Oboé, de J. S. Bach, e com a Orquestra Barroca Divino Sospiro com o Concerto para Oboé d’Amore, do mesmo compositor. No oboé clássico e com o Quarteto Arabesco apresentou-se com o Quarteto, de Mozart, ícone do repertório virtuosístico do classicismo. Ensina oboé barroco, flauta de bisel e música de câmara na Academia de Música de Santa Cecília, na Escola Superior de Música de Lisboa e na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo. É coordenador artístico do Concerto Campestre. SOFIA DINIZ Viola da gamba 76 Sofia Diniz nasceu em Lisboa em 1977. Tendo desde cedo uma formação na área da dança e da música nas escolas do Conservatório Nacional, optou pelo curso de violoncelo e em 1998 concluiu o bacharelato na Escola Superior de Música de Lisboa. Foi nos cursos da Academía de Música Antiga de Lisboa que surgiu o seu interesse pela interpretação histórica em instrumentos originais e a sua motivação para especializar-se nesta área. Como bolseira do Centro Nacional de Cultura de Lisboa e, mais tarde, do programa Nuffic-Huygens do Reino dos Países Baixos, estudou violoncelo barroco e viola da gamba com Rainer Zipperling em Colónia e com Wieland Kuijken e Philippe Pierlot em Haia e Bruxelas. Toca violoncelo e viola da gamba com vários grupos de câmara e orquestras como o Concerto Campestre, a Orquestra Barroca Capela Real, notas biográficas o Ludovice Ensemble, o Ricercar Consort, The Spirit of Gambo, Il Fondamento e o Colegium Vocale Gent, actuando em variados festivais, como o Festival de Música de Mafra, o Bach Festival en Vallée Mosane (Bélgica), as Folles Journées (França) ou o Holland Festival Oude Musik Utrecht (Países Baixos). Em 2005 foi convidada para um recital como “Solista Jovem Talento” no Festival Bach em Liége e em 2006 no Festival Printemps Baroque em Bruxelas. Para além da sua actividade concertante participou em gravações com o Ricercar Consort, sob a direcção de Philippe Pierlot, e o Colegium Vocale Gent, sob a direcção de Philippe Herreweghe. FLÁVIA ALMEIDA CASTRO Cravo Nasceu em 1978 em Lisboa. Após ter iniciado os estudos musicais na mesma cidade, diplomou-se em cravo na Escola Superior de Artes de Utrecht, Países Baixos, sob a orientação de Siebe Henstra, e na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação de Cremilde Rosado Fernandes. Estudou também com Jacques Ogg no Conservatório Real de Haia. É membro do Concerto Campestre e do L’anche Lyrique. Trabalhou igualmente com a Orquestra Barroca Capela Real, a Orquestra Barroca Divino Sospiro, a Orquestra Metropolitana de Lisboa e a Orquestra do Algarve, tendo sido dirigida por Wieland Kuijken, Jean-Marc Burfin, Álvaro Cassuto, Terry Fischer e Christina Pluhar. Foi bolseira do Centro Nacional de Cultura. Actualmente é professora de cravo no Instituto Gregoriano de Lisboa e na Academia de Santa Cecília e professora acompanhadora na Escola Superior de Música de Lisboa. ! 77 notas ao programa sileti venti Os Mestres do Barroco 78 Desde tempos imemoriais que o Homem associou a Música à emoção, às paixões ou estados de alma. Primeiro Platão [ca. 427-347 a. C.], depois Aristóteles [384-322 a. C.], trataram das qualidades e dos efeitos morais exercidos pela música sobre a vontade, o carácter e a conduta dos seres humanos. Durante o período renascentista, os teóricos musicais centraram o papel da música como extensão de um texto, como elemento da retórica, persuasivo, acoplando o aspecto emocional do discurso. Já no Barroco, o pensamento teórico foi marcado por René Descartes [1596-1650] e pelo seu célebre tratado, escrito em 1649, Les Passions de l’Âme (As Paixões da Alma). Seguindo o pensamento cognitivo dos gregos, este filósofo afirmava que, apesar da experiência e dos sentidos serem a fonte das ideias de objectos sensíveis, de nada serviriam se não fora a capacidade da mente em as perceber e as transformar em pensamentos. Assim, enquanto linguagem artística, a música barroca caracterizou-se por conter um núcleo central e motivador, a ideia de pathos, um afecto extremo que determinava e unificava o estilo de uma obra. Esse dinamismo reflectia um Homem que não estava perdido, ao contrário do que acontecia no Maneirismo. As tensões eram resolvidas, incitando à piedade e ao terror, o que acabava por exercer um profundo efeito catártico. O pathos daria origem a uma arte eminentemente retórica que tendia a exagerar tudo o que se diz: era a arte das hipérboles e a ostentação das antíteses. Esta preocupação de humanizar a música, tendência que já vinha do Renascimento, deu origem à chamada teoria degli affetti (teoria dos afectos), consagrando a música como veículo ideal para explicar as paixões e os seus movimentos. O catalisador deste movimento de afectos seria a retórica, enquanto persuasão, mobilização afectiva da vontade de quem ouve. O concerto de hoje reúne um conjunto de obras obras bem exemplificativas do que assinalamos, funcionando como síntese dos principais idiomas da música barroca, concretamente, da música concertante e da sua estrutura base radicada no princípio do ritornello, tema tocado pelo tutti instrumental, intercalado por passagens do/s instrumento/s solista/s (estrutura musical básica sintetizada pela fórmula tutti-solo-tutti-solo-tutti), dividida em três andamentos (rápido-lento-rápido), fortemente contrastantes, em que o virtuosismo técnico dos andamentos balizantes dá lugar a um forte lirismo do andamento intermédio. Conhecido como il prete rosso pela farta cabeleira natural ruiva, Antonio Vivaldi [1678-1741] notabilizou-se graças à sua música instrumental, ao tempo conhecida e cultivada em toda a Europa. Nascido em Veneza, em 1678, começou por estudar música e violino com o pai, Giovanni Battista, mas como sofria de um aperto de peito (provavelmente asma), optou pela carreira eclesiástica em detrimento da musical. Nesta época era comum os violinistas também tocarem oboé, instrumento inacessível ao compositor dada à doença notas ao programa de que sofria. Em 1703, ano em que foi ordenado sacerdote, entrou ao serviço do Ospedale della Pietà, orfanato feminino, como maestro di violino. Dispensado das obrigações eclesiásticas em 1704, viria a ser nomeado maestro dei concerti (director musical) do Ospedale em 1713, altura em que a orquestra e o coro desta instituição representavam já uma atracção de Veneza. Tal era a importância de Vivaldi que, apesar das viagens, das óperas, das encomendas régias vindas dos quatro cantos da Europa, a direcção do Ospedale della Pietà mantinha-lhe o soldo com a contrapartida de escrever dois concertos por mês e ensaiar a orquestra cinco vezes por ano. Já no final da vida, Vivaldi mudou-se para Viena, procurando a protecção do imperador Carlos IV [1685-1740], grande apreciador da sua música. Contudo, a morte do soberano e a ausência de encomendas conduziram-no a uma situação financeira preocupante. Viria a morrer de uma infecção interna em 1741. Dos cerca de 600 concerti que Vivaldi escreveu, pelo menos 20 são para oboé e orquestra de cordas. Não se conhecendo a data de composição do concerto RV455, o manuscrito contém a interessante anotação Sassonia, provavelmente uma alusão à Hofkapelle (orquestra da corte) de Dresden, considerada então como a melhor da Europa, dirigida por Johann Georg Pisendel [1687-1755], violinista, compositor e admirador da obra de Vivaldi. O concerto para cravo e orquestra de Carlos de Seixas é a obra concertante mais emblemática do Barroco musical português e um dos primeiros no seu género, na Europa barroca. Nascido em Coimbra, na freguesia de São Cristóvão, em 1704, filho de Francisco Vaz, organista da Sé Nova, e de Marcelina Nunes, José António Carlos de Seixas aprendeu música com o pai, acabando por suceder-lhe no cargo em 1718. Entre 1720 e 1722 passou a Lisboa, ensinando cravo em diversas casas nobres. Pela mesma altura obteve a nomeação para o lugar de organista da igreja patriarcal, cargo que ocuparia até ao fim da vida. Fica, no entanto, a dúvida se esta era a capela real, ao tempo sediada numa dependência do Paço da Ribeira, ou a basílica de Santa Maria Maior, vulgo Sé. Diz-nos Diogo Barbosa Machado que, residindo o músico na freguesia de São Nicolau, casou-se, “attrahido de um sincero affecto”, com D. Maria Joana Tomásia da Silva, em 1731, de quem teve dois filhos e três filhas. Segundo o 4.º conde de Ericeira, “Os Viscondes de Barbacena derão ao Muzico Joseph Antonio p.ª o seu casamento presentes que se affirma valerem 3 mil cruzados; por que este muzico não leva dinheiro pellas liçoens que dá à Senhora Viscondeça, e a suas filhas”. Com o intuito de vir a ser nobilitado, adquiriu, em 1738, a propriedade de um ofício de contador da Ordem de Santiago, obtendo o hábito da Ordem de Cristo, depois de um longo processo de habilitação, que durou perto de dez anos, pelo facto de ter um avô carniceiro e outro alfaiate, e das avós serem mulheres de segunda condição. Carlos de Seixas faleceu em Lisboa, na sua casa por detrás da igreja de Santo António, tendo sido sepultado nos covais da Irmandade do Santíssimo Sacramento da catedral. Segundo Barbosa Machado, “enfermando de um Reumatismo, que degenerou em Febre maligna se dispoz catholicamente para a morte recebendo todos os Sacramentos, e recitando a Ladainha de Nossa Senhora espirou a 25 de Agosto de 1742, quando contava trinta e oito annos, dous mezes, e quatorze dias de idade”. 79 notas ao programa 80 Ao contrário dos bolseiros régios, enviados para Roma, Seixas nunca saiu de Portugal. Todavia, é evidente que se familiarizou com as correntes musicais mais em voga na época, verosimilmente através do contacto com os diversos músicos estrangeiros da capela real. Como autor de obras para tecla, ocupa um lugar cimeiro e isolado, no tempo e na importância, entre os nossos compositores do século XVIII, não deixando qualquer dúvida sobre a profunda originalidade criativa deste autor e, por extensão, da escola cravística portuguesa coeva. O concerto para cravo, em Lá, apresenta, em termos gerais, uma concepção melódica e harmónica muito simples, em oposição à pujança rítmica de todo o discurso musical. A elegância grave do primeiro andamento contrasta com a exiguidade dolente do segundo, onde, supostamente, o solista deverá improvisar uma passagem, antecedida por uma intervenção orquestral de grande dramaticidade. O andamento final, uma giga (dança barroca), remete-nos para o universo musical francês, caracterizando-se pela jovialidade do tema e pela simplicidade virtuosística. Porém, não será descabido afirmar que, mais do que barroco, o idioma musical desta peça insere-se no “estilo galante”, próximo da linguagem de Giovanni Battista Pergolesi [1710-1736]. A segunda parte do concerto reúne obras de dois grandes amigos, de infâncias semelhantes, pretensos advogados, que desistiram da sua formação jurídica em prol de uma vida dedicada à música: Georg Philipp Telemann e Georg Friedrich Händel. Tido como o principal compositor alemão da primeira metade do século XVIII, e o mais fecundo de todos os tempos, Telemann nasceu em 1681 na cidade de Magdeburg, na Saxónia. O seu talento musical era reprovado pela família, com fortes ligações à Igreja Luterana, pelo que foi enviado para o colégio de Zellerfeld, mais tarde para o de Hildesheim e, finalmente, em 1701, para a Universidade de Leipzig, com o objectivo de estudar Leis. Nesta cidade, contudo, viu o seu talento incentivado. Em 1702 fundou o Collegium Musicum e em 1703 foi nomeado director da Casa da Ópera de Leipzig. Depois de dois anos como kapellmeister (mestre de capela) da cosmopolita corte do conde Erdmann II em Sorau, entre 1705 e 1707, o que lhe permitiu conhecer os estilos musicais francês e italiano, obteve o lugar de konzertmeister (director musical) e kantor da corte dos duques de Saxe-Eisenach. Em 1712 seguiu para Frankfurt para ocupar o cargo de director musices da cidade e kapellmeister das igrejas de São Paulo e Santa Catarina. No ano de 1721 obteve a nomeação como director musices de Hamburgo, o que implicava a direcção musical das cinco principais igrejas da cidade, posição de que abdicou em 1762, por começar a ficar cego. A partir de 1740 focou a actividade na escrita de tratados, versando a educação e a teoria musical, bem como numa aparente tutela sobre compositores mais jovens, como Carl Philipp Emanuel Bach [1714-1788], seu afilhado. Faleceu com a provecta idade de 85 anos, em 1767. Adepto de um estilo musical mais rígido do que o italiano, livre de virtuosismos extemporâneos, Telemann desenvolveu uma escrita baseada na riqueza dos conteúdos temáticos, nos contrastes dinâmicos e na conjugação de instrumentos de natureza tímbrica diferente, fugindo aos cânones da época. No que diz respeito à sua produção de obras concertantes, aproximou-se do modelo da ouverture francesa, adoptando como assinatura musical a sucessão de quatro andamentos (lento-rápido-lento-rápido), em detrimento dos três da tradição italiana. notas ao programa O duplo concerto em lá menor, para flauta e viola da gamba, TWV52:a1, insere-se no modelo anteriormente referido. Dos seus quatro andamentos realçamos o último, pelo espírito e pelo carácter próximo da música tradicional da Polónia, cujo idioma Telemann muito apreciava desde os tempos em que permanecera em Sorau (actualmente Zary, em território polaco). Igualmente prolífero mas não tão famoso, à época, como o seu amigo, Georg Friedrich Händel nasceu em 1685, na cidade de Halle, na Saxónia, sendo filho de Georg Händel, barbeiro-cirurgião e gentil-homem da câmara dos duques de Saxe-Weissenfels. Os dotes musicais de Händel revelaram-se desde os primeiros anos, para desespero do pai, que o destinara a uma carreira como advogado. Todavia, em 1692, iniciou os estudos com Friedrich Wilhelm Zachow [1663-1712], organista em Halle, depois do soberano ter repreendido publicamente o cirurgião por este negar ao filho qualquer contacto com a música. Em 1702 inscreveu-se na Universidade de Halle, no intuito de estudar Leis, seguindo o desejo do pai, entretanto falecido. Nesse mesmo ano foi nomeado organista temporário da catedral da cidade. A esta “distracção” musical juntar-se-ia outra: a recente amizade com um estudante, também ele relutante na carreira universitária, Georg Philipp Telemann… Entre 1703 e 1710 o jovem Händel viajou por Hamburgo, Florença, Roma e Veneza, um período rico em aprendizagem musical, em contacto directo com os expoentes máximos da música italiana, até aceitar o cargo de kappelmeister dos príncipes-eleitores de Hanôver. Em 1712 instalou-se definitivamente em Londres, cidade onde obteve grandes sucessos no domínio da ópera “italiana”, compondo para a Royal Opera House e para o King’s Theatre, do qual foi gestor, entre 1729 e 1734. Três anos depois sofreu uma trombose, que o deixou temporariamente paralisado e esteve na origem da sua cegueira. No seguimento de desaires financeiros e da pouca aceitação do público inglês em relação às suas óperas, em 1741 focou-se na composição de oratórias, género musical que lhe granjearia fama imediata e a posteridade do seu nome. Cegando completamente, em 1753, e sendo incapaz de ditar uma nota, o compositor permaneceu submerso numa profunda melancolia até à morte, ocorrida em 1759. Uma das suas obras mais conhecidas, o motete Silete venti (Silêncio, ó Ventos) é, na realidade, um reaproveitamento de diversas composições anteriores, prática comum entre os mestres barrocos, muitas vezes sinal da exiguidade de tempo para compor e dita pastiche (imitação). Perante a falta de dados concretos que possam datar o ano em que Händel compôs este motete, é comummente aceite situar a sua escrita entre 1724 e 1730. Dividido em seis andamentos, Silete venti começa com uma ouverture, à francesa, incluindo um primeiro momento lento, de ritmo pontuado e harmonia cheia, seguido de outro, rápido, breve fugato, à imagem de dezenas de outras aberturas händelianas. O efeito expressivo da admoestação do soprano, que interrompe o contraponto instrumental, mostra-nos que a abertura era, independentemente dos seus contornos melódicos e da sua eficácia musical, a descrição de uma tempestade. A parte central desta obra estrutura-se em dois blocos idênticos de recitativo-ária, o primeiro terminando com a ária Dulcis Jesus e o segundo com a ária Date serta. Ambos os casos são árias da capo (uma secção inicial é sucedida por uma outra, fortemente contrastante 81 notas ao programa antes da repetição da primeira, estrutura musical sintetizada pela fórmula ABA), em que a figuração do baixo contínuo assegura o pano de fundo da acção musical, deixando em primeiro plano a virtuosidade e lirismo vocal e os acompanhamentos descritivos do tecido orquestral. O motete termina com um pequeno mas exuberante Alleluia, conjugando a virtuosidade vocal com a simplicidade da escrita instrumental, numa despreocupada giga. josé bruto da costa ! 82 textos silete venti Silete Venti, nolite murmurare frondes, quia anima dulcedine requiescit. Dulcis amor, Jesu care, quis non cupit te amare; veni, transfige me Si tu feris, non sunt clades: tuæ plagæ sunt suaves, quia totur vivo in te. O fortunata anima, o jucundissimus triumphus, o felicissima lætitia. Date serta, date flores; me coronent vestri honores; date palmas nobiles. Surgent venti et beatæ spirent almæ fortunatæ auras cœli fulgidas. Alleluia ! 83 igreja matriz de santiago maior santiago do cacém Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto de 16 de Junho de 1910 e pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922 84 Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a “Reconquista” ficava no interior do castelo, onde existiu uma mesquita. Ao tomarem a terra, ao redor de 1217, os monges-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe mais tarde o topónimo árabe. O antigo edifício tornara-se pequeno quando a vila extravasou os limites da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV, sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça, neta do imperador Teodoro II Lascaris e aia da rainha D. Isabel, esposa de D. Dinis. Donatária de Santiago do Cacém e Panóias, em virtude de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre senhora dotou as igrejas destes domínios com relíquias insignes. À matriz de Santiago couberam vários fragmentos do Santo Lenho, provavelmente oriundos de Niceia. Para o altar-mor do mesmo edifício encomendou o retábulo de Santiago combatendo os Mouros, obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um dos mestres da catedral de Lisboa. Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (em 1530, em 1704 e, principalmente, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terramoto de 1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três naves separadas por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas perdurou um dos portais laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo dos capitéis e das impostas corre uma densa carga ornamental vegetalista e zoomórfica, sistema a que corresponde, no interior da igreja, a decoração que guarnece os capitéis e anima o perfil das arcadas em ogiva, com a introdução de figuras humanas, reflectindo a dominância naturalista da arte da época. O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por esguias frestas, define uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcosólio. Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em finais VI. Baptismo de Cristo (pormenor) | Trabalho escocês | Século XV (primeira metade) Santiago do Cacém, colecção particular (em depósito no Museu de Arte Sacra). do reinado dionisíaco, quando se transfiguraram quase totalmente, sob o impulso de correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda metade da era ducentista. A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, formada por um prior – o qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem –, seis (oito, no século XVII) beneficiados e um prioste, todos freires espatários, assumiu decisiva influência na vida da povoação, tal como as importantes confrarias e irmandades agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversificado património artístico, patente ao público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi instalado, em 2002, no próprio monumento. josé antónio falcão bibliografia fundamental: Bernardo Falcão, Memorias sobre a Antiga Mirobriga (Lisboa, Biblioteca dos Herdeiros do Prof. Doutor Eng.º Manuel António Falcão Beja da Costa, L.º Ms. s. n.º); António de Macedo e Silva, Annaes do Municipio de Sanct-Yago de Cassem desde Remotas Eras até ao Anno de 1853, Beja, Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id., Annaes do Municipio de Sant’Iago de Cacem, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa Nacional, 1869; José António Falcão & Jorge M. Rodrigues Ferreira, “Marcas Lapidares da Igreja Matriz de Santiago do Cacém – I”, em Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2.ª Série, I, Santiago do Cacém, 1987; José António Falcão & Fernando António Baptista Pereira, O Alto-Relevo de Santiago combatendo os Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja – Santiago do Cacém, Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja – Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001. 85 ! 14 DE MARÇO DE 2009 igreja matriz de santiago maior SANTIAGO DO CACÉM 17H30 masterclass/workshop de cravo 21H30 concerto flávia almeida castro maria josé barriga ! frente a frente A Música Barroca em Duo de Teclas JOHANN LUDWIG KREBS (1713-1780) Concerto em Lá m allegro – allegro – affetuoso Cravo I – Flávia Almeida Castro Cravo II – Maria José Barriga JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750) Concerto em Dó M BWV 1061a allegro – adagio ovvero largo – fuga Cravo I – Flávia Almeida Castro Cravo II – Maria José Barriga 87 ANTONIO SOLER (1729-1783) 3.º Concierto em sol M andantino – minué Cravo I – Maria José Barriga Cravo II – Flávia Almeida Castro FRANÇOIS COUPERIN (1669-1733) Les Folies Françaises (XIII ème Ordre) Cravo Solo WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791) Sonata em Dó M a 4 mãos KV 19d allegro – rondeau Cravo a 4 mãos JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750) Concerto III em Dó m BWV 1062 allegro – adagio – allegro Cravo I – Maria José Barriga Cravo II – Flávia Almeida Castro 88 notas biográficas O duo de teclas de Flávia Almeida Castro e Maria José Barriga foi formado com o intuito de divulgar um dos instrumentos musicais mais relevantes da prática musical dos séculos XVI, XVII e XVIII e do seu repertório solístico, em especial o composto para dois cravos a solo. No contexto deste repertório salientam-se compositores alemâes como J. S. Bach e os seus filhos, Carl Philipp Emanuel Bach e Wilhelm Friedemann Bach, franceses como Armand Louis Couperin, François Couperin, Gaspar Le Roux, o espanhol Antonio Soler ou ainda W. A. Mozart. Uma viagem musical pelo repertório de tecla de três séculos foi a aposta deste duo. FLÁVIA ALMEIDA CASTRO Nasceu em Lisboa em 1978. Após ter iniciado os estudos musicais na mesma cidade, diplomou-se em cravo na Escola Superior de Artes de Utrecht, Países Baixos, sob a orientação de Siebe Henstra, e na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação de Cremilde Rosado Fernandes. Estudou também com Jacques Ogg no Conservatório Real de Haia. É membro do Concerto Campestre e do L’anche Lyrique. Trabalhou também com a Orquestra Barroca Capela Real, a Orquestra Barroca Divino Sospiro, a Orquestra Metropolitana de Lisboa e a Orquestra do Algarve, sendo dirigida por Wieland Kuijken, Jean-Marc Burfin, Álvaro Cassuto, Terry Fischer e Christina Pluhar. Foi bolseira do Centro Nacional de Cultura. Actualmente é professora de cravo no Instituto Gregoriano de Lisboa e na Academia de Santa Cecília e professora acompanhadora na Escola Superior de Música de Lisboa. MARIA JOSÉ BARRIGA Nasceu em Beja em 1964. Iniciou os estudos de música em Piano e posteriormente em Cravo. Em 1987 concluiu o Curso de Cravo do Conservatório Nacional de Lisboa, na classe da Prof.ª Cremilde Rosado Fernandes, e a Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas. Nesse mesmo ano ingressou na classe do Prof. Ton Koopman (Países Baixos), tendo terminado o Curso Superior de Cravo no Conservatório Real de Haia em 1992. Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. É Mestre em Ciências Musicais (Etnomusicologia) e investigadora do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa, no domínio das práticas repentistas na música tradicional portuguesa. Participou em diversos cursos de Música Antiga, nos quais trabalhou com cravistas como Glenn Wilson, Robert Wooley, Ketil Haugsand, Bob Van Asperen e Ton Koopman. Actualmente é docente na Academia de Música de Santa Cecília e no Instituto Piaget de Almada. 89 notas ao programa frente a frente A Música Barroca em Duo de Teclas 90 Curt Sachs [1881-1959] terá sido um dos primeiros estudiosos a falar de música barroca. Contudo, já vários autores, nos finais do século XVIII, haviam utilizado este termo para referenciar composições que, aos seus ouvidos classicistas, lhes soavam complicadas, excessivamente ornamentadas e harmonicamente pouco coerentes. Faltavam as potencialidades contrastantes da dinâmica musical, do jogo de claro-escuro, dos forte-piano, de uma sinceridade menos tipificada e musicalmente mais genuína. Instrumento omnipresente neste período, o cravo assume a posição de veículo directo do idioma barroco, presença assídua em todas as cortes e em inúmeras casas europeias de então, aliando a simplicidade da sua morfologia a uma sonoridade requintada e harmonicamente completa. Não é, pois, de estranhar que este gosto, este sentido estético, levasse muitos compositores a escreverem páginas de música excepcionais para o cravo. É de notar, contudo, as diferenças de construção (e das sonoridades daí advindas) dos cravos do Norte da Europa, mais robustos, em relação aos do Sul, mais brilhantes, com implicações objectivas na escrita musical. Assim, e mesmo tendo em conta os estilos “regionais”, encontramos uma literatura cravística mais complexa, um tecido harmónico mais cheio, nos compositores alemães, em oposição ao lirismo e à vocalidade dos franceses e italianos. No concerto de hoje serão utilizadas duas cópias: um cravo alemão, com a sua forma típica de cauda arredondada e dois manuais, e um outro franco-flamengo. Um dos compositores que melhor explorou a totalidade das capacidades interpretativas do cravo foi Johann Sebastian Bach [1685-1750], num legado musical que incorpora as principais directrizes do estilo italiano, francês e alemão. O ano de 1735 foi particularmente fértil neste campo, coincidindo, em parte, com a intensa actividade que o artista desenvolveu com o Collegium Musicum, orquestra fundada em Leipzig, no ano de 1702, por Georg Philipp Telemann [1681-1767]. O concerto para dois cravos BWV1061a, em dó maior, é uma versão, sem acompanhamento de orquestra, do concerto BWV1060, que constitui, por sua vez, transcrição de um outro, actualmente perdido, escrito para oboé, violino e orquestra. Já o concerto BWV1062, em dó menor, também datado de 1735, é uma transcrição do concerto em ré menor para dois violinos e orquestra, BWV 1043, escrito em 1717 para a corte de Köthen, da qual o compositor era Kappelmeister (mestre de capela). Nascido em Weimar, em 1713, Johann Ludwig Krebs gozou do privilégio de ter tido como professor de órgão J. S. Bach. Ao talento inato do jovem músico juntava-se o facto de seu pai, Tobias Krebs [1690-1762], ser, também ele, um organista famoso e amigo do compositor. A relação entre mestre e pupilo deveria ser excelente, a julgar pelo famoso comentário apócrifo: “o único caranguejo [Krebs] do meu ribeiro [Bach]”. Sendo nomeado notas ao programa organista da corte de Gotha-Altenburg, em 1755, Johann Krebs manteve-se neste posto até à morte, em 1780. O que sobreviveu do legado musical deste mestre, essencialmente prelúdios e fugas, concertos para cravo e trio-sonatas, demonstram o seu talento, o seu poder inventivo, excelente no contraponto, mas demasiado complexo para a época em que esteve activo, o período Galante, que defendia a claridade e a simplicidade do discurso musical. Também ele um virtuoso, Antonio Soler nasceu em Gerona, na Catalunha, em 1729. Menino de coro no mosteiro de Montserrat, foi maestro di capilla da catedral de Lérida e em 1752 entrou no mosteiro de São Lourenço do Escurial, sendo nomeado mestre de capela em 1757, cargo que ocupou até à morte (1783). A sua virtuosidade ao órgão e ao cravo valeu-lhe a protecção de D. Maria Bárbara de Bragança [1711-1758], rainha de Espanha, tendo estudado com Domenico Scarlatti [1685-1757] e José de Nebra [1702-1768], vice-mestre da capela real. A vastíssima produção de Soler, na qual a literatura para tecla ocupa um lugar de destaque, acusa um conhecimento profundo da realidade musical da época, com influências do lirismo italiano ou, inclusivamente, dos tiques do Sturm und Drang alemão. Mais preocupado com os efeitos harmónicos, as figurações virtuosas e a inclusão de motivos do folclore espanhol do que com o equilíbrio da forma, este compositor representa, a par de Carlos Seixas, a verdadeira essência do gosto ibérico do século XVIII, nas suas variadas idiossincrasias. Nascido no seio de uma família de músicos, em 1668, François Couperin iniciou os estudos musicais com o pai, Charles Couperin, tendo-lhe sucedido no cargo de organista da igreja de Saint-Gervais, de Paris, em 1685. Figura destacada da corte de Luís XIV [1638-1715], foi nomeado organiste du Roi em 1693. Luís XV (1710-1774) ascendeu-o em 1717 às funções de ordinaire de la musique de la chambre du Roi. Este cargo tinha como principal função organizar um concerto semanal, quase sempre aos domingos, onde participavam, regularmente, os instrumentistas virtuosos da corte francesa. Tendo morrido em Paris, em 1733, Couperin ficou para a posteridade como um mestre da l’art de touchér le clavecin (“d’arte de tocar cravo”, nome de um tratado fundamental para o conhecimento da técnica interpretativa do período barroco, escrito pelo compositor). A obra Les folies françoises deverá ser lida num contexto estético complexo em que os principais compositores franceses desta época se envolveram, ao nível da linguagem musical e dos jogos harmónicos. Resumindo-se a um tema e sucessivas variações, importa notar o afrancesamento da Folia, dança de origem ibérica e muito cultivada no período barroco por italianos, como Arcangelo Corelli [1653-1713], referência inequívoca nesta obra de Couperin. Apesar de associarmos a figura de Wolfgang Amadeus Mozart ao piano, e à sua produção para este novíssimo instrumento, o facto é que muitas das primeiras composições deste menino dotado, nascido na cidade de Salzburg em 1756, foram idealizadas para o cravo. Tendo aprendido música com o pai, Leopold [1719-1787], tornou-se um fenómeno musical, para a época, estrondoso, passeado pelas principais cortes europeias e coberto de honrarias. 91 notas ao programa A sonata em dó maior, kv.19d, foi escrita, provavelmente, para uma das muitas exibições públicas que Wolfgang Amadeus fez com o pai e a irmã, Maria Anna [1751-1829]. Contudo, até há alguns anos, julgava-se que as dificuldades de cruzamento e duplicação de vozes desta obra eram fruto da inexperiência do então menino compositor. São recentes as investigações que identificaram o construtor e as características do instrumento em que as duas crianças se apresentavam, um cravo de dois manuais (teclados), transformando os aparentes erros de composição numa forma musical coerente. josé bruto da costa ! 92 igreja de nossa senhora dos prazeres beja Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 129/77 ( Diário do Governo de 29 de Setembro de 1977) Longamente meditado pelas autoridades concelhias, o propósito de facilitar o acesso à principal praça de Beja levou à abertura, em finais do século XVI (ou já em inícios do seguinte), de uma porta na muralha medieval, perto da Corredoura. Foi junto a este postigo que se construiu, poucas décadas mais tarde, encostada ao pano da fortaleza, a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. A escolha do sítio, contíguo à velha ermida de Santo Estêvão, cujo adro passou a partilhar, explica-se não só por ser um dos mais frequentados da urbe mas também pelo costume, usual em terras do Sul, de se assinalar a protecção simbólica de cada uma das principais entradas das povoações com a presença de uma capela. O título escolhido, por seu turno, reflecte uma devoção muito patente entre nós na época pós-tridentina, quando o culto da Virgem atingiu o clímax. De facto, a veneração tributada a Nossa Senhora dos Prazeres constitui um reflexo do intensificar da piedade mariana em finais da Idade Média e, à semelhança da elaboração dos Mistérios Dolorosos e Gozosos do Rosário, assenta no paralelismo entre as Sete Dores e as Sete Alegrias da Mãe de Deus, tendo alcançado notáveis ressonâncias litúrgicas e devocionais. Conheceu depois significativo acréscimo em meados do século XVI, devido a um acontecimento milagroso que provocou grande comoção. Junto à fonte de certa quinta do vale de Alcântara, no termo de Lisboa, foi encontrada uma imagem de Maria que comunicou virtudes curativas às águas deste manancial. Na mesma ocasião, a própria Virgem apareceu a uma menina, indicando-lhe que dissesse aos pais e aos vizinhos para erguerem aí uma capela em Sua honra. Construída a ermida e posta no altar a dita imagem, começaram os milagres, atraindo ao local inúmeros fiéis. O fenómeno despertou um intenso surto devocional e em vários pontos de país foram construídas igrejas e capelas sob a mesma invocação. Referência cimeira de tão impressionante série de fundações, o monumento levantado em Beja espelha a implantação local de um culto de vasta repercussão. São pouco conhecidas as circunstâncias que rodearam a sua erecção, talvez nascida da iniciativa de particulares. Em 1672 o grosso da obra já se encontrava concluído, a ajuizar pela data inscrita na verga do portal. Do ponto de vista tipológico, o edifício segue um modelo característico 93 94 da arte maneirista portuguesa, com planta longitudinal, de uma só nave, coberta por abóbada de berço, capela-mor mais estreita e mais baixa, com paredes perpendiculares ao arco cruzeiro e abside semicircular, rematada por cúpula e lanternim, e sacristia quadrangular adossada, também coberta por abóbada. À circunspecção dos alçados exteriores, própria da arquitectura chã, que dominava o panorama nacional, corresponde um interior de sumptuosa cenografia, verdadeira obra de arte total (gesamtkunstwerk). A azulejaria, a escultura e a pintura afluem aqui, mediante um sistema deveras coerente, em termos teológicos e plásticos, na criação de um “teatro sagrado” que permite antever as glórias do Céu. Iniciado, quanto ao essencial, à volta de 1680, este ciclo decorativo alongou-se, pelo que as fontes escritas mostram, durante mais de duas décadas, pondo em realce a crescente influência, dentro dos círculos bejenses, da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Tiveram nisso papel destacado duas figuras notáveis da sociedade local, Manuel Álvares Azeitado, opulento e prestigiado mercador, que ocupou prestigiosos cargos públicos, com realce para a vereação da Câmara, e o P.e Manuel Ledo Gago. O seu desempenho, ao longo de sucessivos mandatos, respectivamente como reitor e como escrivão da confraria, foi decisivo para a fazer brilhar, trazendo-lhe outrossim desafogo económico, graças à multiplicação das esmolas dos fiéis e à obtenção de alguns legados pios. Devido a este florescimento, o santuário dos Prazeres tornou-se um dos principais centros de piedade da grei pacense na época barroca, como o atestam as importantes ofertas votivas que recebeu, incluindo um notável núcleo de exemplares de joalharia. Alguns deles ornamentam, rotativamente, a imagem seiscentista da Virgem, escultura “de vestir” que a devoção da nobreza da cidade dotou com rico enxoval. Formando uma oval irregular ao gosto seiscentista, a capela-mor recebeu modificações de vulto para a sagração do novo altar, em 12 de Abril de 1779, por D. Fr. Manuel do Cenáculo Villas Boas, primeiro bispo de Beja após a refundação da diocese (1770). Devoto de Nossa Senhora dos Prazeres, o insigne prelado contribuiu para reforçar a notoriedade de que gozava a igreja. Vincula-se ao seu mecenato a oferta da cadeira e do par de credências pertencentes ao acervo da Irmandade, valiosos testemunhos do mobiliário meridional da segunda metade do século XVIII. Por esta data as celebrações já ultrapassavam, em esplendor e em repercussão pública, as do santuário “rival”, Nossa Senhora ao Pé da Cruz, sito no bairro dos Pelames, então ainda periférico, e cujas raízes ascendem ao crepúsculo da Idade Média. Na sacristia continua a preponderar a fisionomia das campanhas de obras dos finais de Seiscentos, destacando-se o arcaz-altar, de talha dourada e acharoada, e o lavabo, de pedra de Trigaches, com registos em forma de carrancas. Das pinturas murais que guarneciam primordialmente este espaço restam alguns vestígios, como um medalhão com a figura de São João Evangelista e um trecho de revestimento de um arco que imita azulejos de “figura avulsa”. Com o advento do Liberalismo, a Irmandade viu-se esbulhada de grande parte dos capitais e bens de raiz que lhe pertenciam, devido à legislação desamortizadora. Logrou, no entanto, vencer sem problemas de maior esta conjuntura de aperto, mercê da VII. São Francisco de Assis em Oração (pormenor) | Gabriel del Barco | 1693 Beja, igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. protecção de famílias gradas. Tal como sucedera na época barroca, a igreja dos Prazeres foi um lugar-chave da Beja romântica, frequentado pela aristocracia e pela burguesia chic. O seu espólio enriqueceu-se com alfaias oriundas de casas religiosas extintas. Ao convento de Nossa Senhora da Conceição pertenceu o Cristo em Oração no Horto, obra de marcado pendor bidimensional, típico da produção dos entalhadores regionais na segunda metade do século XVII. Particular interesse iconográfico possui o Senhor do Triunfo, escultura do primeiro quartel do século XVIII que evoca a Ressurreição de Jesus e a Sua vitória sobre a Morte, simbolizada por uma caveira em hipertrofia. A imagem de São Sebastião, santo muito venerado no Alentejo como protector das doenças, remonta também ao período barroco e destaca-se pelo ambíguo naturalismo da figura – tendência que é exaltada, no tratamento da árvore a que está preso, graças a um gosto ornamental arcaizante. Ostentando na frontaria um fecho de abóbada da época manuelina, o edifício anexo à igreja albergava a casa do despacho e outras dependências da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres. Mais tarde serviu de residência do capelão. Hoje tem um uso museológico e constitui o núcleo primordial do renascido Museu Episcopal. Este nome invoca a memória da instituição fundada em 1892 por Mons. Amadeu Ruas, sob a égide do bispo D. António Xavier de Sousa Monteiro, para evitar a dispersão das obras de arte pertencentes aos últimos conventos e mosteiros femininos de Beja que se foram extinguindo, em penosa agonia, ao longo da segunda metade do século XIX. O Museu Episcopal desapareceu com o advento da República e o respectivo acervo acabaria por ser parcialmente integrado no Museu Regional, mas o ideal que esteve na sua génese – preservar, estudar e divulgar o património religioso pacense – continua vivo. josé antónio falcão bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id., Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Vítor Serrão, “O Conceito de Totalidade nos Espaços do Barroco Nacional: A Obra da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (1672-1698)”, em Revista da Faculdade de Letras, 5.ª Série, XXI-XXII, Lisboa, 1996-1997; id., Francisco Lameira & José António Falcão, A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja. Arte e História de um Espaço Barroco (1672-1698), Lisboa, Alêtheia Editores, 2007. 95 ! 21 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 igreja de nossa senhora dos prazeres beja manuel pedro ferreira universidade nova de lisboa ! do velho ao novo mundo Conferência Manuel Pedro Ferreira (n. 1959) doutorou-se em Musicologia na Universidade de Princeton (Estados Unidos da América) com uma tese sobre o canto na abadia de Cluny; é actualmente Professor Associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde lecciona sobre a música da Idade Média e do Renascimento, coordena o Departamento de Ciências Musicais e é director executivo do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. Tem-se dedicado também à crítica musical e à interpretação (dirige desde 1995 o grupo Vozes Alfonsinas, com o qual se apresentou em todo o país e no estrangeiro, gravando vários discos compactos). 97 Tem estado activo como compositor, desde 1988, de forma intermitente, privilegiando a voz e a música de câmara. Como musicólogo, publicou mais de setenta artigos de investigação, que versam temas que vão da monodia medieval à obra de compositores contemporâneos; é também colaborador de vários dicionários especializados internacionais. Foi responsável pela publicação fac-similada do Cancioneiro de Elvas (1989) e do manuscrito 714 da Biblioteca Pública Municipal do Porto (2001); recebeu o Prémio de Ensaísmo Musical do Conselho Português da Música pelo seu livro O Som de Martin Codax (Lisboa, 1986). Os seus últimos livros publicados são Cantus Coronatus — Sete Cantigas d’Amor d’El-Rei Dom Dinis (Kassel, 2005), Dez Compositores Portugueses (Lisboa, 2007) e Antologia de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento (Lisboa, 2008). Estão no prelo outros títulos, entre os quais uma colectânea de ensaios musicológicos, em dois volumes, a publicar na Imprensa Nacional, sob o título Aspectos da Música Medieval no Ocidente Peninsular. ! 98 VIII. Estante de altar (pormenor) | Trabalho português | Século XVIII (meados) Beja, igreja de Santa Maria da Feira. igreja de santa maria da feira beja Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 42 255 ( Diário do Governo n.º 105, de 8 de Maio de 1959) A igreja de Santa Maria da Feira, matriz de Beja, ocupa um sítio emblemático no centro histórico da cidade, que pertencera antes – de acordo com a tradição, corroborada por explícitos achados arqueológicos – à primitiva catedral, cujas fundações devem ascender ao século VI. Outros relatos afirmam ter sido adaptada a mesquita na época do domínio islâmico, o que pressupõe a sua reconciliação com o culto cristão, após a “reconquista” da cidade, só tornada definitiva em 1232 ou 1234 (e só verdadeiramente segura após a expugnação de Mértola, em 1238). Aliás, não falta quem veja na torre do solar que lhe fica fronteiro, a Casa da Torrinha, a reminiscência da velha almádena, de cujo cimo, nas horas costumeiras, um religioso muçulmano chamava os crentes à oração. Túlio Espanca datou esta torre já do século XIX, mas está ainda por averiguar com rigor científico se não terá resultado da transformação de uma estrutura medieval. D. Afonso III autorizou em 1259 a feitura de uma nova igreja, sob a invocação de Santa Maria, algo importante para o repovoamento de uma terra que, tomada e perdida várias vezes pelas hostes portuguesas, sofrera grandes prejuízos. Aquele título correspondia a uma escolha usual numa época de profunda devoção à Virgem, sendo o mais preferido para a dedicação de antigas mesquitas. João Moniz, o seu primeiro prior, contribuiu decisivamente para o arranque da obra. No rossio vizinho começou a realizar-se em 1261, com licença régia, a feira de Beja, a qual acabaria por ficar associada ao título da igreja. Esta foi entregue pelo mesmo monarca, em 1259, à ordem militar dos freires de Évora ou de Avis, que aí instalou uma colegiada. Seguidamente tornar-se-ia também a sede da respectiva comenda em Beja. Os limites da paróquia alargavam-se a uma vasta faixa rural em que abundavam as terras férteis, incluindo Cuba e Selmes (hoje no concelho de Vidigueira). Quanto ao âmbito urbano, muitos dos seus fregueses estiveram tradicionalmente vinculados aos mesteres e ao comércio. Um aspecto digno de referência na história de Santa Maria da Feira é o facto de ter sido a igreja escolhida por D. João II, em 1495, para se efectuar a cerimónia do solene baptismo de Caçuta, o embaixador do potentado do Congo – manicongo – e dos demais membros 99 100 da sua comitiva. Garcia de Resende narrou assim estes acontecimentos na Chronica [...] do Christianissimo Dom Joam o Segundo (1545): “El-Rei do Congo mandou a El-Rei por seu embaixador Caçuta, homem muito importante que depois de ser cristão teve o nome de D. João da Silva, e alguns moços [...]. El-Rei D. João [...] estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia baptismal para o fazer cristão e assim aos moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-se ela e El-Rei de festa.” Favorecida pelos monarcas, pelos bispos de Évora e pelos prelados de Avis, a matriz de Beja possuiu desde cedo uma fábrica abastada, a que se juntaram outros patrimónios. De entre os seus muitos rendimentos sobressaíam os provenientes de capelas de missas. No tempo em que o cardeal infante D. Afonso deteve a cátedra eborense, estas capelas ultrapassavam a trintena e estavam vinculadas a bens que, além de cobrirem boa parte do território alentejano, se estendiam até Sintra. Existiam ainda mais de vinte propriedades foreiras, tanto urbanas como rústicas, além dos próprios do comendador, do prior e dos beneficiados. Um inventário realizado na segunda metade do século XVIII mostra que, apesar de sucessivas incorporações de capelas no erário régio, havia ainda um património impressionante. Ao grémio dos beneficiados de Santa Maria pertencia então Luís António Verney, autor d’O Verdadeiro Método de Estudar [1746-1747]; retirado em Roma, a colegiada fazia-lhe chegar os estipêndios correspondentes ao seu cargo. Grandes transformações alteraram a fisionomia do monumento ao longo dos tempos e deram-lhe o aspecto híbrido que hoje ostenta. Da estrutura medieva, com três naves, permanece a cabeceira de abside poligonal, rodeada por absidíolos. Os seus cinco panos, divididos por contrafortes escalonados, são rasgados por esguias janelas bífores de verga em arco quebrado e lunetas quadrifoliadas. Embora se tenha perdido a cortina de ameias que fechava o conjunto, persiste quase íntegra a sequência de modilhões e gárgulas zoo-antropomórficas. Remontando à transição do século XIII para o XIV, este sector constitui um notável testemunho da delicada elegância então atingida pela arquitectura gótica no Sul. Nos finais do século XV procedeu-se à construção da galilé, o que permitiu uma articulação mais funcional com o terreiro envolvente, lídimo coração da vila-cidade. Rasgado por arcos quebrados, separados por botaréus cilindricos, sobrepujados por cones envoltos por merlões chanfrados, este nártex resolve-se internamente numa abóbada de cruzamento de ogivas, com três tramos, cujas nervuras arrancam de mísulas de ornamentação vegetalista. Trata-se de uma solução típica do Tardo-Gótico alentejano em que avulta a influência da arte mudéjar. O corpo central do edifício, por seu turno, foi refeito na segunda metade do século XVI, correspondendo à tipologia de “igreja-salão” largamente utilizada no Alentejo durante a época da Contra-Reforma, com três naves, de igual altura, formadas por quatro tramos de abóbadas nervuradas, assentes em colunas de fuste cilíndrico e capitéis toscanos. Seguiu-se nisto o austero modelo maneirista da igreja de Santo Antão de Évora, traçado por Miguel de Arruda em 1548. Datam do mesmo período as duas sacristias, de planta em quadrilátero, cobertas por abóbadas de cúpulas assentes em trompas. Ciclos de pinturas parietais quinhentistas e seiscentistas, de que persistem ainda vestígios, remataram o espaço interior, dando outra vibração à sua harmoniosa severidade. Uma associação estratégica entre a munificência da colegiada, o mecenato de famílias do patriciado local e a intervenção de irmandades (que gozavam de prestígio e recursos apreciáveis) tornaram Santa Maria uma das igrejas mais opulentas de Beja, centro de intensa actividade litúrgica e devocional. É particularmente notável a sequência de retábulos dos séculos XVII, XVIII e XIX. Do lado do Evangelho avulta a capela de Nossa Senhora do Rosário, cuja estrutura escultórica, característica da talha de “estilo nacional”, foi encomendada em 1676 ao mestre lisboeta Manuel João da Fonseca. No seu vão central ergue-se uma extraordinária Árvore de Jessé, alusiva à genealogia de Cristo, enquanto os painéis das ilhargas e da predela são preenchidos por símbolos das Litanias da Virgem. Do lado da Epístola o realce pertence à capela de Nossa Senhora da Coroa e das Almas, de grande veneração bejense. Sobressai aqui a sumptuosa máquina retabular construída nos finais do reinado de D. Pedro II e que integra a imagem do arcanjo São Miguel em glória, acolitado por anjos. Atribuiu-se ao terramoto de 1755, além de outros danos no monumento, o desequilíbrio das colunas dos primeiros tramos. Terá sido o intuito de corrigir os seus efeitos que levou a uma nova campanha de obras na década de 1790, com a remodelação da capela-mor e das capelas colaterais. A da parte do Evangelho, consagrada a São Crispim e São Crispiniano e pertencente à Confraria dos Sapateiros, foi demolida nesta ocasião. A do Santíssimo Sacramento, na banda oposta, ganhou maior amplitude, tendo a abóbada revestida por estuques e acolhendo um retábulo de mármore branco e róseo em que se inscreve o painel da Última Ceia, de Pedro Alexandrino de Carvalho, o mais conhecido pintor lisboeta da época. Sagrado em 1792, o altar recebeu os privilégios de indulgência plenária por concessões de Pio VII em 1800 e 1803. Os trabalhos no edifício, todavia, prolongaram-se até 1794. Embora grande parte do tesouro paroquial se tenha disperso, a igreja conserva ainda espécimes artísticos de muito interesse. Merece especial atenção o painel a óleo sobre madeira que representa a Descida da Cruz, da autoria de um mestre do círculo do pintor eborense Francisco João, obra datada do último quartel da era quinhentista. Do faustoso aparato litúrgico da antiga colegiada perdurou um precioso núcleo de artes decorativas, incluindo espécimes de paramentaria, ourivesaria e mobiliário dos séculos XVI a XIX. A meio da fachada virada a Poente está adossado o campanário, edifício de raiz medieval que sofreu ampliações nas centúrias de Seiscentos e Setecentos. Tendo em conta a sua implantação e a sua estrutura, já se vislumbrou nela outra alternativa para a continuidade do minarete. Possui dois coroamentos diferentes, destinados aos sinos da paróquia e do concelho – o que evidencia a convergência, em ponto estratégico, perto das antigas casas da Câmara, dos poderes eclesiástico e civil, acabando este, mercê das obras realizadas em 1760-1763, por ter maior destaque. A face orientada para o Largo de Santa Maria ostenta, entre outras peças escultóricas dignas de atenção, a cabeça de um touro da época romana, insígnia da antiga Pax Iulia, e as armas medievais de Beja. Uma inscrição liga a sua presença ao passado glorioso da cidade: COLONIA / PAZ JVLIA / FESCE NO ANO DE 1763 / SENDO JVIZ DE FORA / O D.or ANT.o JORGE DE CARV.o 101 Em inícios do século XVIII, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário aproveitou o espaço que separava a igreja da torre sineira para erguer a respectiva casa consistorial, incluindo uma capela destinada aos irmãos. Poucos anos depois juntou-se à frontaria do edifício uma das estações da Via Sacra, pertencente à Irmandade do Senhor Jesus dos Passos. Retirado à posse da confraria durante a I República, o edifício do consistório foi entregue à Caixa Geral de Depósitos para nele instalar o seu balcão em Beja. Em 1922-1923 construiu-se um novo imóvel de linhas eclécticas, interessante compromisso entre o Revivalismo e Modernismo, sob projecto do Arqt.º Porfírio Pardal Monteiro [1897-1957]. A intervenção preservou a estrutura da capela e o ciclo de azulejaria nela existente, notável conjunto do terceiro quartel do século XVIII que põe em diálogo momentos culminantes da vida de Maria e de Cristo. Menos sorte teve a pequena capela de Nossa Senhora da Luz, já referida em fontes escritas de 1680, que ficava encaixada num dos contrafortes da cabeceira da igreja. De planta circular, à semelhança das coevas capelas do Calvário, foi demolida pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1970, com o pretexto de que prejudicava a leitura da estrutura medieval. josé antónio falcão bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, 102 IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id., Corpus da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; Jacques Marcadé, Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas – Évêque de Beja, Archevêque d’Evora (1770-1814), Paris, Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 1978; Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Leonel Borrela, “A Igreja de Santa Maria. I-III”, em Diário do Alentejo, Beja, 25 de Agosto e 1 e 8 de Setembro de 1995; Hermína Vasconcelos Vilar, As Dimensões de Um Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999; [Manuel Lourenço] Casteleiro de Goes, Beja. XX Séculos de História de Uma Cidade, I-II, Beja, Câmara Municipal de Beja, 1998 [1999]. 28 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 igreja de santa maria da feira beja coro gulbenkian ! o esplendor luso-brasileiro nos finais do século xviii e princípios do xix LUÍS ÁLVARES PINTO (1719-1789) Divertimentos Harmónicos, 1776, para 3 e 4 vozes Beata Virgo Benedicta tu in mulieribus Quæ est ista Efficieris gravida Oh! Pulchra es, et decora JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (1767-1830) Miserere para Quarta-Feira de Trevas, 1798 para 4 vozes concertantes e baixo contínuo Missa dos Defuntos a 4 vozes de Capella, 1809 para 4 vozes concertantes e baixo contínuo ANDRÉ DA SILVA GOMES (1752-1844) Laudate Pueri para 4 vozes concertantes e baixo contínuo Popule meus para 4 vozes Ofertório da Missa do Domingo de Paixão para 4 vozes concertantes e baixo contínuo Ofertório do 4.º Domingo de Quaresma para 8 vozes concertantes e baixo contínuo 103 notas biográficas coro gulbenkian Jorge Matta, direcção Nicholas Macnair, cravo Michel Corboz, maestro titular Fernando Eldoro, maestro adjunto Jorge Matta, maestro assistente Caroline Bart Mascarenhas, coordenadora Rebeca Cantos, secretária/arquivista 104 Fundado em 1964, o Coro Gulbenkian conta presentemente com uma formação sinfónica de cerca de 100 cantores, actuando também em grupos vocais reduzidos, conforme a natureza das obras a executar. Assim, tanto pode apresentar-se como grupo a cappella, o que tem acontecido regularmente para a interpretação de polifonia portuguesa dos séculos XVI e XVII, como colaborar com a Orquestra Gulbenkian para a execução de obras coral-sinfónicas do repertório clássico e romântico. Na música do século XX, campo em que é particularmente conhecido, tem interpretado – e frequentemente estreado – inúmeras obras contemporâneas de compositores portugueses e estrangeiros. Tem sido igualmente convidado a colaborar com as mais prestigiadas orquestras mundiais para execução de grandes obras como A Criação do Mundo, de Haydn, e a Nona Sinfonia, de Beethoven (Orquestra do Século XVIII/Frans Brüggen), a Missa Solemnis, de Beethoven (Orquestra Sinfónica de Baden-Baden/Michael Gielen), as Segunda, Terceira e Oitava Sinfonias, de Mahler (Filarmónica de Berlim/Claudio Abbado; Filarmónica de Londres/Franz Welser-Möst; Sinfónica de Viena/Rafael Frübeck de Burgos; Filarmónica Checa/Gerd Albrecht), A Danação de Fausto, de Berlioz (Filarmónica de Estrasburgo/ notas biográficas Theodor Guschlbauer e Concertgebouw de Amesterdão/Colin Davis), ou Daphnis et Chloeé, de Ravel (Filarmónica de Montecarlo/Emmanuel Krivine). Para além da sua apresentação na temporada de concertos da Fundação, em Lisboa, e das suas digressões pelo país, o Coro Gulbenkian tem actuado em numerosas cidades de Espanha, França, Itália, Hungria, Canadá, Iraque, Índia, Macau e Japão. Em 1991 apresentou-se em várias cidades da Bélgica, no quadro do Festival Europalia, e deslocou-se a Israel para uma série de actuações com a Orquestra de Câmara de Israel (Telavive, Carmiel, Haifa e Jerusalém). Em 1992, uma digressão em várias cidades da Holanda e da Alemanha, com a Orquestra do Século XVIII, deu origem à gravação ao vivo da Nona Sinfonia, de Beethoven, que foi incluída na edição integral das sinfonias que Frans Brüggen realizou para a Philips. Em 1993 o Coro Gulbenkian teve a honra de acompanhar o então Presidente da República, Doutor Mário Soares, numa visita oficial ao Reino Unido. Deslocou-se em seguida ao Brasil e recebeu o convite de S. A. R. o Príncipe Rainier do Mónaco para a realização de um concerto com a Orquestra Filarmónica de Montecarlo. Nesse mesmo ano, actuou ainda em Lyon, Estrasburgo e Mulhouse, com a Orquestra Nacional de Lyon (A Transfiguração, de Messiaen). Em 1994 deslocou-se a Budapeste com a Orquestra Gulbenkian e efectuou uma segunda digressão com Frans Brüggen e com a Orquestra do Século XVIII, actuando em Itália, França, Holanda e Portugal (A Criação, de Haydn). No ano seguinte, apresentou-se na Índia em quatro concertos a cappella, realizando uma digressão ao Brasil, Argentina e Uruguai, com a Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Michel Corboz (Elias, de Mendelssohn). Ainda em 1995, nove concertos com a Orquestra do Século XVIII (Nona Sinfonia, de Beethoven) levaram o Coro Gulbenkian a oito cidades do Japão. Em Junho de 1997 apresentou-se com esta mesma orquestra, dirigida por Frans Brüggen, em concertos realizados em diversas cidades europeias, incluindo uma participação no Festival Eurotop de Amesterdão (Sonho de Uma Noite de Verão, de Mendelssohn). Em Novembro do mesmo ano teve o privilégio de acompanhar o Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, na visita oficial à Holanda, a convite de S. M. a Rainha Beatriz da Holanda, tendo actuado em Leiden. Na temporada de 1998-1999 apresentou-se, entre outros, no Festival Veneto (com a Orquestra I Solisti Veneti) em Pádua e em Verona. Em 2000 realizou uma digressão com a Orquestra do Século XVIII e Frans Brüggen, actuando em Londres e em várias cidades da Holanda, da Alemanha e do Japão. No ano seguinte, colaborou com a Orquestra Sinfónica do Norte da Alemanha na apresentação da Missa Solemnis, de Beethoven, em Lisboa e Madrid. Já em 2002, a actividade internacional compreendeu concertos na Dinamarca, Malta, Japão (de novo com a Orquestra do Século XVIII) e Espanha (Festival Internacional de Música de Granada). O Coro Gulbenkian tem gravado para as editoras Philips, Archiv-Deutsche Grammophon, Erato, Cascavelle, Musifrance, FNAC Music e Aria-Music, interpretando um repertório diversificado que inclui música portuguesa do século XVI ao século XX. Algumas destas gravações receberam prémios internacionais, tais como o Prémio Berlioz, da Academia Nacional Francesa do Disco Lírico, o Grande Prémio Internacional do Disco, da Academia Charles Cros, ou o Orfeu de Ouro, entre outros. Desde 1969, Michel Corboz é o Maestro Titular 105 notas biográficas do Coro, sendo as funções de Maestro Adjunto desempenhadas por Fernando Eldoro e as de Maestro Assistente por Jorge Matta. JORGE MATTA Maestro assistente do Coro Gulbenkian, desde 1976, é doutorado em Musicologia Histórica pela Universidade Nova de Lisboa, onde ensina no Departamento de Ciências Musicais. Destacado investigador, editor e intérprete de música portuguesa, tem realizado inúmeras primeiras audições modernas e estreias absolutas de obras vocais e instrumentais de compositores portugueses. Gravou várias séries de programas de televisão e representou Portugal na Eurovisão e na Mundovisão, em 1986. Dirigiu a Orquestra Sinfónica da Radiodifusão Portuguesa, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Orquestra de Câmara de Macau, a Orquestra de Câmara de Lisboa, a Orquestra de Câmara Sousa Carvalho, a Orquestra Musicatlântico, a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, o Collegium Instrumentale de Bruges, o Coro da Radiodifusão da Baviera, e participou nos Festivais Internacionais de Pamplona, Palência e Badajoz (Espanha), Rotemburgo e Munique (Alemanha), Bruxelas (Europália 91) e Israel (1998). A sua discografia inclui discos com o Coro Gulbenkian, com o grupo Cantus Firmus e com a Orquestra de Câmara de Lisboa – “Música Portuguesa do Século XVIII”, que mereceu, entre outros, um prémio da Academia Francesa do Disco. Em 2000/2001 foi director do Teatro Nacional de São Carlos. É, desde 2001, presidente da Comissão de Acompanhamento das Orquestras Regionais. 106 notas ao programa o esplendor luso-brasileiro Nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX Notável conhecedor da realidade colonial portuguesa, Charles Ralph Boxer [1904-2000] afirmava que a mestiçagem fora uma “consequência inevitável da instalação e da manutenção do império português”, sendo o mulatismo o resultado mais “forte e visível” desse processo. Se tivermos em conta que a maioria dos músicos activos no Brasil durante o século XVIII, e mesmo durante o século XIX, eram mestiços, ocorre-nos questionar, obviamente, a razão de tal facto, estando a resposta na própria ordem social da época. Sendo a maioria homens-livres, os mulatos procuravam exercer funções não desempenhadas por negros ou brancos, numa tentativa de favorecerem a mobilidade vertical nas relações sociais. Salientou Maurício Monteiro que, em 1804, os músicos da capitania de Minas Gerais – ao tempo a mais rica e desenvolvida do vice-reino do Brasil – representavam 41% de todos os profissionais liberais listados no sector terciário. Dedicando-se exclusivamente à música ou desenvolvendo actividades económicas paralelas, os mulatos procuravam a possibilidade de ascensão social e distinção no seio de uma sociedade que lhes era, à partida, hostil. Segundo Harry Crowl, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses para impedir uma distinção social entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos sem posses. Contudo, a Igreja, com as suas irmandades e confrarias, e o Estado, com os senados camarários, o exército ou mesmo o aparelho judicial, constituíram-se como verdadeiras máquinas aglutinadoras de pretensões sociais, tornando-se a música o grande denominador comum nesse ambiente de sincretismo, paradigma do Brasil colonial. Não é, pois, de estranhar que os maiores vultos da música brasileira setecentista sejam mulatos e o seu percurso musical muito semelhante. Apelidado por José Mazza, no Diccionario Biographico de Musicos (ca. 1780), de “homem pardo”, Luís Álvares Pinto nasceu no Recife, na capitania do Pernambuco, em 1719. Mazza acrescenta que, ao redor de 1740, passou a Lisboa para “aprender contraponto com o celebre Henrique da Silva [Negrão], tem composto infinitas obras com muito acerto principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas exequias) à morte do Senhor Rey D. José o primeiro a quatro coros, e ainda em composições profanas tem escrito com muito aserto”. De volta a Pernambuco, em 1761, publicou, no ano seguinte, a segunda obra teórica sobre música escrita no Brasil, Arte de Solfejar (a primeira é da autoria do P.e Caetano de Melo Jesus [1759-1760]). A sua veia de escritor manifestou-se na comédia Amor mal correspondido (da qual subsistem alguns trechos), levada à cena na Casa da Ópera de Recife, em 1780, e ainda em três obras didácticas hoje perdidas: Dicionario Pueril (1784), Arte Pequena para se aprender Música e Arte Grande de Solfejar. Em 1762, Álvares Pinto foi eleito mordomo da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento, em Recife, e, em 1766, nomeado capitão do Regimento de Milícias. Acumu- 107 notas ao programa 108 lando tais funções com as de mestre de capela da igreja da Irmandade de Nossa Senhora do Livramento e da igreja de São Pedro dos Clérigos, desde 1778 (cargo em que viria a ser confirmado apenas em 1782), foi nesta última igreja que promoveu a fundação da Irmandade de Santa Cecília (ca. 1788), à imagem da existente em Lisboa, tendo sido o seu primeiro juiz. Morreu em Recife no ano de 1789. Datados de 1776, os Divertimentos Harmónicos resumem-se a cinco momentos musicais (a 3 [os dois primeiros] e a 4 vozes [os três restantes]), de temática mariana, em que as virtudes de Nossa Senhora são exaltadas, como mãe do Salvador e filha de Jerusalém. Próprios para o período litúrgico do advento, os Divertimentos apresentam uma construção musical semelhante, com a entrada das vozes em imitação sucessiva, residindo o seu principal interesse nos jogos “harmónicos”. São as dissonâncias, as progressões harmónicas e os contornos intervalares das melodias que conferem enorme graciosidade a esta pequena obra musical. Como outra face de um mesmo espelho temos o português André da Silva Gomes, nascido em Lisboa em 1752. Aluno, provavelmente no Seminário da Patriarcal, do “sabio e experimentado Mestre” José Joaquim dos Santos [1747-ca. 1801], segundo as palavras do próprio compositor, Silva Gomes tomou parte na comitiva do 3.º bispo de São Paulo, D. Fr. Manuel da Ressurreição [1718-1789], a convite do prelado, para ir ocupar as funções de mestre de capela da Sé paulistana, em finais de 1773. Apesar de elevada à condição de cidade em 1711, São Paulo era, à época, uma vila de poucos recursos, contando, no censo de 1778, com 5103 habitantes. O aparelho musical da Sé resumia-se a um órgão, oferta de D. João V [1689-1750] em 1746, cujo titular era Inácio Xavier de Carvalho, e a “quatro moços do Coro”, sendo a voz de baixo assegurada pelo organista ou pelo próprio mestre de capela. André da Silva Gomes substituiu-se ao Cabido, sempre com faltas crónicas de dinheiro, na tentativa de inverter esta situação. Ensinou música gratuitamente a dezenas de crianças (casado com a viúva Maria Garcia de Jesus, em 1775, não havendo filhos desta união adoptou dezasseis crianças) e procurou, através do seu salário de mestre de capela e das gratificações como mestre de música das festas da Ordem Terceira do Carmo, da Irmandade do Santíssimo Sacramento (onde viria a ingressar como irmão em 1813) e do Senado da Câmara, contratar mais cantores e instrumentistas. A obra de Silva Gomes não pode, nem deve, ser desassociada da rivalidade civil-eclesiástica existente em São Paulo, concretamente no entendimento estético-musical diferenciado entre os sucessivos prelados, adeptos de um “stilo antico”, e os governadores, “a italiana”. Como reflexo evidente deste facto, e estando economicamente dependente de ambos, acabou por desenvolver um corpus musical híbrido, mais ao sabor das encomendas do que de uma linguagem individual. Consequência provável destas contingências estéticas, André da Silva Gomes nunca encarou a sua função de mestre de capela como a única possibilidade de exercício profissional, procurando complementar os rendimentos com o exercício de outras actividades ou cargos. Assim, pleiteou e obteve as provisões de capitão de milícias (1789) e depois de tenente-coronel (1797), a provisão da serventia do ofício de escrivão da notas ao programa Intendência e Conferência da Real Casa de Fundição de São Paulo, a de proprietário do ofício de escrivão de Órfãos e, por fim, de professor régio de Gramática Latina (1803). Faleceu em 1844, com a provecta idade de 92 anos. Das obras hoje em concerto merecem particular atenção os dois ofertórios quaresmais Confitebor tibi Domine e Laudate Dominum, bem como o salmo vespertino Laudate Pueri. Em ambos é notório o estilo galante napolitano de David Perez [1711-1788] e Sousa Carvalho [1745-ca. 1800], fazendo uso de uma estrutura que consiste na alternância das intervenções corais e de solos virtuosos, em jeito de ritornelo musical. Muito interessante é a configuração melódico-ritmica do acompanhamento do órgão nas passagens solísticas dos ofertórios, em jeito de baixo de Alberti, próxima das sonatas para tecla de António Pedro Avondano [1714-1782]. Diametralmente oposto, o responsório de Sexta-Feira Santa, Popule meus, de estrutura homofónica e fundamentalmente silábica, desenvolve-se mais em termos harmónicos do que melódicos, numa procura da acentuação do pathos do texto lamentativo. Quando, a 22 de Janeiro de 1808, a esquadra portuguesa aportou em São Salvador, ao fim de 54 conturbadíssimos dias de viagem, uma página da História de Portugal foi virada. Seguindo um antiquíssimo plano, gizado nos tempos da Restauração, em 1641, para garantir a autonomia do império português no caso de invasão da metrópole, o então ainda príncipe regente, D. João de Bragança [1767-1826], ordenara o embarque imediato da corte e do erário público para a distante colónia do Brasil. É o próprio general Junot quem, nas suas quase diárias missivas ao imperador Bonaparte, informa que, ao chegar a Lisboa, se precipitou para o Alto de Santo Amaro na esperança de ainda avistar a esquadra na barra do Tejo. Mas já se haviam feito ao vento os navios, tacticamente fora do alcance dos canhões do forte de São Julião da Barra. Ficaria para a história, e enraizado na cultura popular, o dito “ficou a ver navios!” Instalada na cidade do Rio de Janeiro, em Março de 1808, a corte portuguesa recriou-se nos trópicos. Um dos homens que mais contribuiu para o amenizar de toda esta mudança foi o então mestre de capela da sé do Rio de Janeiro, P.e José Maurício Nunes Garcia. Este mulato (filho de um alfaiate branco e de uma filha de escravos forros) – “defeito vísivel” que muitos na corte gostavam de fazer notar – rapidamente caiu nas graças do príncipe regente. Nomeado mestre da Capela Real, a 26 de Novembro de 1808, com direito a “ração de creado particular”, o que, na prática, o equiparava a todos os servidores da Casa Real, foi-lhe concedido, no ano seguinte, o hábito da Ordem de Cristo, processo moroso concluído apenas em 1810, depois de uma série de intrigas cortesãs que obrigaram à intervenção directa de D. João. A chegada, em 1811, de Marcos Portugal [1762-1830], afastaria definitivamente Nunes Garcia da esfera da Capela Real. Desde esta data, a Ordem Terceira do Carmo e a Irmandade de Santa Cecília foram as principais instituições a encomendarem-lhe composições. Retirado da lista da Casa Real em 1821, por arbítrio do então regente D. Pedro [1798-1834], o músico apelaria, num tom pungente: “há sette mezzes que o S[u]pp[licant]e sofre nas necessidades por esta Causa”. Não obtendo resposta e escasseando as encomendas, finou-se em 1830, num estado de extrema miséria. 109 notas ao programa As duas obras em audição datam de períodos diferentes da vida de Nunes Garcia. O Miserere, para Quarta-Feira de Trevas, foi escrito em 1798, poucos meses antes da nomeação como mestre de capela da sé do Rio de Janeiro, onde, na infância, exercera as funções de moço de coro. Sendo uma das raras obras do compositor que pressupõe a alternância com o cantochão, desenvolve-se em onze partes, contrastantes entre si, alternando solos com tuttis, numa textura marcadamente silábica. Quanto à Missa dos Defuntos, foi composta em 1809, com destino à Capela Real, provavelmente para a solenidade dos Fiéis Defuntos. O essencial da linguagem musical de José Maurício Nunes Garcia permanece – uníssonos, harmonias rebuscadas, alternâncias constantes entre tonalidades maiores e menores, progressões suspensivas –, mas nota-se um refinamento a que não foi por certo alheio o facto de nesse mesmo ano ter sido nomeado arquivista da biblioteca musical do palácio de Queluz, também ela empacotada e remetida para o Brasil. Exemplo disso são os andamentos ternários, galantes, ao gosto napolitano, tão grato ao gosto da real pessoa, como é o caso do Gradual, de fugattos, na conclusão do Offertorio ou ainda nos arcaizantes versos a duo, como o Hostias, ou o Requiem æternam na Communio. josé bruto da costa ! 110