Do Velho ao Novo Mundo - Festival Terras sem Sombra

Transcrição

Do Velho ao Novo Mundo - Festival Terras sem Sombra
5.º festival de música sacra do baixo alentejo
2009
J
J
Do Velho ao Novo Mundo
5.º festival de música sacra do baixo alentejo
2009
J
J
Do Velho ao Novo Mundo
7
7
7
PRODUÇÃO
7
7
7
PROJECTO FINANCIADO POR
DGARTES (DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES) / MC (MINISTÉRIO DA CULTURA)
PATROCÍNIO
APOIOS
MEDIA PARTNERS
arte das musas
Rua da Páscoa, 87
1250-178 Lisboa
PORTUGAL
Tel: +351 210995674
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departamento do património
histórico e artístico
da diocese de beja
Largo dos Prazeres, 4
7800-420 Beja
PORTUGAL
Tel: +351 284320918
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festival terras sem sombra
de música sacra do baixo alentejo
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www.terrassemsombra.com
direcção
Filipe Faria
José António Falcão
produção
António Gonçalves
Avelino Veloso
João Diogo Pratas
Patrícia Pereira
Rita Santos
Sara Fonseca
textos
Fernando Miguel Jalôto
José António Falcão
José Bruto da Costa
fotografia*
Carlos Cristóvão (n.os III e IV)
Francisco Borba (n.os 5, 8 e 9)
José António Falcão (n.os 1, 4 e 6)
Rita Santos (n.o 7)
Sara Fonseca (n.os 2 e 3)
Sofia Perestrello (n.os I, II, IV, V e VI)
design & paginação
Arte das Musas
impressão
M-2 Artes Gráficas, L.da
depósito legal
288005/09
capa
Salva | Trabalho português | Século XVIII (inícios)
Beja, Museu Episcopal (igreja de Nossa Senhora dos Prazeres)
* As demais fotografias são da responsabilidade dos artistas e grupos convidados
© Arte das Musas | Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2009
ÍNDICE
abertura
Jorge Barreto Xavier
Director-Geral das Artes
11
inovação e excelência
António Cartageno
Secretariado de Liturgia e Música Sacra da Diocese de Beja
13
vinte e cinco anos depois
José António Falcão
Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja
15
elogio do efémero
Filipe Faria
Director Artístico do Festival Terras sem Sombra
27
programa geral
5.º Festival Terras sem Sombra
29
concerto de abertura . castro verde
Sete Lágrimas
Pedra Irregular: O Nascimento do Barroco em Portugal
35
concerto ii . almodôvar
Ludovice Ensemble
La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV
57
concerto iii . alvito
Concerto Campestre
Sileti Venti: As Paixões da Alma
73
masterclass/workshop . santiago do cacém
Flávia Almeida e Maria José Barriga
Cravo
87
concerto iv . santiago do cacém
Flávia Almeida e Maria José Barriga
Frente a Frente: A Música Barroca em Duo de Teclas
87
conferência . beja
Manuel Pedro Ferreira
Do Velho ao Novo Mundo
97
concerto de encerramento . beja
Coro Gulbenkian
O Esplendor Luso-Brasileiro nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX
I. Martírio de São Crispim e São Crispiniano
103
| Júlio Diniz de Carvo e António de Oliveira | Ca. 1600
Beja, Museu Episcopal.
“Os prazeres do ouvido enredaram-me e subjugaram-me mais tenazmente, mas Vós soltastes-me e libertastes-me. Agora, confesso-o, encontro um
pouco de repouso nas melodias a que as vossas palavras dão vida, quando são
cantadas com uma voz suave e bem trabalhada [...].
Às vezes, parece-me que lhes atribuo mais honra do que convém, quando
sinto que o meu espírito se move mais religiosa e ardentemente para a chama
da piedade com aquelas letras sacras, quando assim são cantadas, do que se
não fossem cantadas assim, e que todos os afectos do meu espírito, cada um
segundo a sua diversidade, têm na voz e no canto as suas próprias melodias
que os desperta.
[...] Às vezes [...] gostaria de afastar dos meus ouvidos e dos da própria
Igreja toda a melodia das músicas suaves que acompanham o saltério de
David; e parece-me mais seguro o que recordo ter ouvido dizer a respeito de
Atanásio, bispo de Alexandria, o qual levava o leitor do salmo a entoá-lo com
uma inflexão de voz tão pequena, que parecia mais própria de quem recita
do que de quem canta. Contudo, quando me lembro das minhas lágrimas,
que derramei ao ouvir os cânticos da Igreja, nos primórdios da recuperação
da minha fé, e quando mesmo agora me comovo, não com o canto, mas com
as coisas que se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma
modulação perfeitamente adequada, reconheço de novo a utilidade desta
prática.
Assim, flutuo entre o perigo do prazer e a experiência do efeito salutar e
inclino-me, apesar de não pronunciar uma opinião irrevogável, a aprovar o
costume de cantar na igreja, a fim de que, por meio do prazer dos ouvidos,
um espírito mais fraco se eleve ao afecto da piedade. Todavia, quando me
acontece que a música me comova mais do que as palavras, confesso que peco
de forma a merecer castigo e, então, preferiria não ouvir cantar. Eis em que
estado me encontro!”
Santo Agostinho de Hipona, Confissões
9
1.
Pia de água benta | Vila Ruiva (Cuba), igreja matriz de Nossa Senhora da Expectação.
abertura
Jorge Barreto Xavier
Director-Geral das Artes
!
Honrado pelo convite que me foi dirigido no sentido de escrever algumas palavras
introdutórias relativas ao Festival Terras Sem Sombra, aproveito o ensejo para me congratular
pela capacidade de organização e competência dos responsáveis que têm vindo a assegurar,
desde há cinco anos, a qualidade de uma iniciativa já consolidada em terras do Baixo
Alentejo.
Sabendo rodear-se de colaboradores de reconhecido mérito nas áreas artísticas investigadas e abordadas, nomeadamente as do riquíssimo património musical religioso, estes
responsáveis têm logrado divulgar o acervo da produção musical portuguesa do passado,
a par dos cruzamentos com outras culturas, em particular da região mediterrânica e dos
encontros registados historicamente entre tradições diversas, tais como a cristã, a árabe e
a judaica.
De salientar igualmente a selecção criteriosa dos espaços históricos e patrimoniais onde
decorrem os concertos programados, invariavelmente os mais apropriados à apresentação
pública de obras de um repertório específico de carácter religioso numa vasta região de
confluência de inspirações e tradições culturais.
Faço, assim, votos por mais um êxito desta iniciativa ímpar no panorama musical
português, esperando que constitua de novo um êxito perante as comunidades que a
ele têm acorrido, fidelizando a sua presença e um interesse manifesto pelos repertórios
revelados ao longo dos últimos anos.
11
Árvore de Jessé (capela de Nossa Senhora do Rosário) | Manuel João da Fonseca | 1676
Beja, igreja de Santa Maria da Feira.
2.
inovação e excelência
António Cartageno
Secretariado de Liturgia e Música Sacra
da Diocese de Beja
!
Sobre os programas dos concertos da 5.ª edição do Festival Terras sem Sombra de
Música Sacra do Baixo Alentejo, que este Secretariado analisou, todos eles – quer os
meramente instrumentais, quer os vocais – podem perfeitamente ser apresentados nas
igrejas. Não vemos, portanto, qualquer inconveniente na sua execução dentro dos vários
espaços sagrados propostos.
Pelo contrário, regozijamo-nos por ver que música sacra de alto nível, porventura
nunca ouvida na nossa região (e mesmo raramente ouvida em Portugal) e interpretada
por agrupamentos musicais de excelência, poderá ser apreciada nas várias localidades
escolhidas para este prestigiado Festival.
13
Banco da Irmandade do Santíssimo Sacramento | Alfundão (Ferreira do Alentejo), igreja paroquial de Nossa Senhora da Conceição.
3.
vinte e cinco anos depois
José António Falcão
Director do Departamento do Património
Histórico e Artístico da Diocese de Beja
!
O Senhor consolará Sião,
e reparará todas as suas ruínas.
Transformará o seu deserto num lugar de delícias,
a sua solidão num paraíso do Senhor,
onde haverá gozo e alegria,
cânticos de louvor e melodias de música.
Isaías, 51, 3
1. NO ÂMAGO DO PAÍS
O traço que melhor permite distinguir o Alentejo é, indubitavelmente, o seu carácter.
Este elemento diferenciador sente-se tanto na paisagem, nas pessoas e nos monumentos
como nas pequenas coisas do quotidiano, mesmo nas palavras e nos gestos simples. Fruto
de uma longa sequência de acções recíprocas entre a natureza e a história, ele acabou
por moldar uma personalidade facilmente identificável (embora nem sempre facilmente
inteligível, sobretudo quando contemplada por olhos alheios) dentro do tecido da
identidade nacional. Talvez seja em solo alentejano, mais do que em qualquer outro sítio
de Portugal, que se pode contemplar o frémito profundo da alma colectiva. Não é só por
obra do acaso que a região permanece, de entre todas, a mais íntegra do ponto de vista do
património ambiental e cultural.
Num mundo em transformação acelerada, o antigo “celeiro do país” tem-se mantido
aferrado aos seus valores. A metamorfose, todavia, parece inexorável. Hoje em dia ela não
representa, como aconteceu frequentemente até agora, uma simples cedência da periferia ao
primado dos centros decisores. Após décadas de quase paralisia, o desenvolvimento está a
bater com força – para o bem e para o mal – à porta deste território repleto de potencialidades.
É importante saber acolhê-lo e orientá-lo de forma sustentável, principalmente quando
o que está em causa pode representar a saída para a sobrevivência demográfica, ameaçada
15
16
por uma hemorragia que os recursos endógenos não lograram suster. Precisamos de tornar
viável o futuro do Alentejo, algo difícil se rarearem as condições indispensáveis à fixação
de novos activos.
Este fenómeno ocorre, porém, dentro de uma conjuntura na qual emerge com voracidade
um outro paradigma civilizacional que se subordina ao diktat de factores ainda pouco
tipificados em Portugal. Mercado global, cultura de massas, novas tecnologias, capitais
voláteis, subjectivismo ético, redução ontológica do ser humano à esfera de consumidor/objecto de consumo são alguns dos altares em que a sociedade actual queima, muitas
vezes em vão, o seu incenso. Tão penetrantes realidades ameaçam a permanência de um
modus vivendi plurissecular, repercutindo-se implacavelmente no tecido social e económico,
mas não deixam de condicionar também, de forma notória, as práticas e as manifestações
culturais, sem esquecer a própria vivência da espiritualidade cristã, que em terras do Sul
possui características muito próprias.
Parte fundamental da personalidade alentejana, o património religioso desempenhou
– e continua a desempenhar – um papel decisivo no universo afectivo e simbólico da nossa
idiossincrasia. Muito extenso e muito variado, disperso por toda a geografia meridional e
apresentando fragilidades em diversas frentes, este conjunto de valores encontra-se sujeito
a graves perigos. São já poucas as comunidades com capacidade para se ocuparem, de
maneira eficaz, da sua preservação. Inúmeros locais de culto permanecem sistematicamente
encerrados por falta de uso, tanto no meio rural como nas cidades e nas vilas. Todos os
anos há a lamentar, devido à míngua de condições elementares de conservação, a perda de
dezenas e dezenas de espécimes patrimoniais. Furtos e actos de vandalismo, intensificados
pela crise da autoridade pública, acentuam um quadro já de si difícil.
A inexistência de uma estratégia para a salvaguarda dos valores culturais religiosos, ao
nível da região, tem obrigado as entidades responsáveis a navegarem à bolina, sem rumo
definido, acudindo a casos pontuais e esquecendo a leitura do conjunto. O panorama
nacional não se afigura, infelizmente, mais animador. Se é certo que existe uma vaga
de sensibilização patrimonial cujos efeitos, alargados a toda a sociedade, começaram a
manifestar-se também no âmbito das dioceses, a gestão dos monumentos e dos acervos da
Igreja dá ainda passos balbuciantes, sucumbindo amiúde a critérios imediatistas, de escassa
qualificação técnica. Em diversas zonas a herança religiosa continua a ser vista como um
mero pretexto, não como uma causa. De um sistema baseado no funcionamento nefelibata
das comissões de Arte Sacra transitou-se ultimamente para a pseudo-tecnocracia dos
secretariados dos “Bens Culturais”, cuja motivação assenta recorrentemente mais num
voluntarismo pouco esclarecido do que em opções sólidas, de garantida sustentabilidade
a média e a longo prazo.
Observada à distância, a situação do país afigura-se, nesta perspectiva, uma manta
de retalhos, quando não uma triste feira de vaidades, regida pelas leis da emulação, que
incentiva a rivalidade onde devia sobressair a afinidade. Num período em que a abertura
à cultura constitui porventura o maior dos desafios enfrentados pela Igreja, a memória
histórica aguarda ainda o reconhecimento efectivo da sua dimensão pastoral. Pior ainda:
corre o risco de transformar-se no reduto de um poder egoísta, ansioso de protagonismo,
quando não entregue aos interesses de certos grupos, mas já sem efectiva capacidade
para se afirmar, dentro e fora das muralhas eclesiásticas, em termos científicos, técnicos e
artísticos. Para umas poucas dezenas de clérigos e uma mão-cheia de leigos, ser dirigente
ou membro dos “Bens Culturais” pode constituir, enquanto é moda, o subir de mais um
degrau no cursus honorum de carreiras acalentadas pela ambição. Durará isto? Seguramente
não. À semelhança de todas as modas, logo que o Sol brilhar noutras paragens, os amigos
da oportunidade segui-lo-ão.
2. A FIDELIDADE ÀS RAÍZES
Há que ter a coragem de admitir que muito do que acontece na cidadela dos Bonia
Culturalia se revela demasiado superficial e passageiro, para não dizer estéril. Em certas
ocasiões termina até por semear a cizânia onde devia prevalecer o respeito pelo trabalho
próprio e alheio, sem o qual parece impossível conseguir o fomento de sinergias que
tanto se impõe. Para a cultura contemporânea é trágico, por exemplo, que a Igreja não só
enfrente as maiores dificuldades para conservar adequadamente o seu património (afinal,
o sector com maior expressão no universo cultural da Europa do Sul) como permaneça
alheada da dimensão evangelizadora e pedagógica que representa a verdadeira razão de ser
desse conjunto de manifestações. Um património cuja voz emudeceu ou soa histriónica no
momento em que se torna mais necessário escutá-la. Conhecem-se, felizmente, algumas
excepções, mas são ainda poucas, muito poucas, até porque não basta fazer. É preciso saber
bem o que se quer fazer e como fazê-lo.
Quando a poeira, trazida pelos ventos agrestes que sopram de cima, parece cobrir a
visão do horizonte, importa deixá-la assentar e ler os sinais dos tempos. Por outras palavras,
devemos ser capazes de distinguir o trigo do joio. Cumpre não esquecer, a este propósito,
uma lição tornada realidade por grandes investigadores alentejanos, como António Tomás
Pires, João Gualberto da Cruz e Silva, Abel Viana e Túlio Espanca, para citarmos alguns
nomes que se impuseram pelo esforço próprio, inteligente e sensível, em tempos ainda
mais árduos do que os nossos: para quantos actuam ao serviço do património cultural,
o trabalho mais significativo é o que tem lugar directamente in situ, nas trincheiras da
“província”, longe das luzes da ribalta, aí onde o apego ao território e às gentes que lhe dão
vida representam ainda algo firme, estável e digno de crédito.
Dentro das suas peculiares circunstâncias, a experiência do Departamento do
Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja ao atingir um quarto de século de
actividade ininterrupta, constitui um testemunho dessa entrega aos valores permanentes,
que brotam da tradição mas não rejeitam a aproximação à contemporaneidade e aos seus
reptos. Experiência, é importante assinalá-lo, de uma pequena equipa, constituída no
essencial por voluntários, mas que se singulariza por ter cumprido, sem rupturas nem
17
4. Local de implantação da ermida de São Miguel (São Teotónio, Odemira), após a demolição ilegal
desta em 2004.
desvios, o rumo traçado aquando da sua fundação, em 1984. Ponderando não só o que foi
feito mas também o que ficou por realizar, com o distanciamento que a maturidade de vinte
e cinco anos de presença no terreno, vêm-nos à lembrança as palavras de São Paulo na II
Epístola a Timóteo (4, 7): “Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fiel”.
Efectivamente, se há algo que identifica a intervenção do “Património de Beja” isso
é a fidelidade aos grandes princípios da missão definida, naquela data já longínqua, pelo
bispo D. Manuel Franco Falcão – estudar, proteger e valorizar a memoria ecclesiæ do
Baixo Alentejo. Embora partindo do seio de uma diocese católica, a sua acção procurou
sempre fixar o epicentro no próprio território, vislumbrando os bens culturais religiosos
numa perspectiva unitária e ecuménica, capaz de suscitar o diálogo e de criar empatias
independentemente das tutelas, das confissões ou mesmo dos credos. Como já salientámos
noutras ocasiões, isso levou-o a dar grande atenção aos vestígios do Judaísmo e do Islão e
a ter igualmente em conta o magma primordial do Paganismo. Não se pode escamotear,
ainda, a adesão firme a uma estratégia de desenvolvimento de uma região que, em especial
nos meios rurais, tem sido condenada a uma certa marginalidade.
Na luta contra o desconhecimento, a indiferença, o preconceito, a negligência e a
cupidez – sem dúvida os grandes inimigos da herança cultural religiosa – algumas batalhas
acabaram por ser perdidas, apesar de todo o empenho dos técnicos diocesanos. Uma delas
teve lugar em 2000 e redundou na inútil destruição do belo tecto pintado, do tempo de
D. Maria I, da igreja de Santa Margarida da Serra, em Grândola, substituído por um forro
comum de pinho e depois queimado, às ordens de um pároco ignaro que não soube escutar
quem o aconselhava. Outra, ainda mais severa, consistiu na demolição da capela tardo-medieval de São Miguel, localidade do termo de São Teotónio, no concelho de Odemira,
intervenção levada a cabo ilegalmente, em 2004, pela Junta de Freguesia. Como o imóvel
se erguia num sítio ocupado já em tempos remotos e onde abundavam os vestígios da
época romana, o seu arrasamento implicou também o fim das estruturas arqueológicas
aí existentes. Crime quase perfeito, pois ficou sem castigo, graças à passividade das
autoridades competentes, a história julgá-lo-á um dia como lamentável epifenómeno de
um longo ciclo de malfeitorias cometidas por mandaretes sem rei nem roque.
Embora não se esqueçam estes dossiers insepultos, cabe referir que, na maioria
dos processos abertos ao longo de cinco lustros, a causa do património logrou gerar
entre nós os consensos necessários para sair vitoriosa. O recurso a fundos nacionais e
comunitários, através da colaboração com o Estado, os municípios e a sociedade civil,
permitiu recuperar, sob a égide directa ou indirecta do Departamento, mais de uma
centena de imóveis e cerca de um milhar e meio de espécimes integrados e móveis
(obras de arte, fundos dos arquivos e das bibliotecas, materiais arqueológicos, etc.),
incluindo as principais referências do património diocesano. As exposições efectuadas
regularmente no país1 e no estrangeiro,2 a Rede de Museus, com sete unidades em
1
Santiago do Cacém (1990-1991 e 2007), Mértola (1997), Beja (1998-1999, 2002 e 2008), Sines (1998), Lisboa (2000-2001 e 2004) e Faro (2005-2006).
2
Regensburg (1999-2000), Roma (2003) e Borja – Saragoça (2008).
19
Um aspecto da exposição No Caminho sob as Estrelas – Santiago e a Peregrinação a Compostela
Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior, 2007.
5.
funcionamento,3 a abertura ao público da Biblioteca e do Arquivo do Seminário de Beja, o
programa de acções de formação, a mobilização de congressos internacionais e de encontros
nacionais, a comemoração das Jornadas Europeias do Património e de dias temáticos, a
criação da Pedra Angular – Associação dos Amigos dos Museus, Monumentos e Obras
de Arte da Diocese de Beja e da Associação de Desenvolvimento Regional Portas do
Território foram outros passos decisivos no caminho iniciado em 1984.
3. MARTA E MARIA
Tudo isto repousa num labor discreto, quase silencioso, mas indispensável,
distribuído por três frentes que o actual bispo de Beja, D. António Vitalino Dantas,
tem vindo a impulsionar: a revisão e a actualização do inventário dos bens históricos,
artísticos e antropológicos da Diocese; a emissão de pareceres, tornados vinculativos
pelo Regulamento para as Intervenções no Património Cultural da Diocese de Beja
(1993); e o apoio técnico às paróquias e às outras entidades sob a tutela dos serviços
episcopais. Unir a reflexão à acção é a estratégia mais adequada à nossa realidade.
O estudo, a salvaguarda e a divulgação representam os vértices do triângulo que caracteriza
a vivência quotidiana do Departamento.
Mesmo com tantos cuidados, nada se teria conseguido, é de justiça lembrá-lo, sem
o apoio dos dezassete concelhos do distrito de Beja e do sector meridional do distrito
de Setúbal (Grândola, Santiago do Cacém e Sines), sem o envolvimento de mais de
duas centenas de colaboradores e sem um conjunto de parcerias estratégicas, formais ou
informais, que vai do Ministério da Cultura até às comissões de moradores de aldeias
do Alentejo profundo. A Diocese reconhece hoje, com o discreto orgulho que é próprio
dos alentejanos, a forma eficiente como as preocupações relacionadas com a salvaguarda
e a valorização da herança religiosa vieram a assumir, na maioria das paróquias, lugar de
relevo entre as prioridades pastorais.
Concluídas algumas das intervenções mais pesadas do ponto de vista material, a
estratégia diocesana passou a orientar-se crescentemente para a qualificação das tarefas
de acolhimento dos visitantes e de desenvolvimento dos recursos locais, o que implica o
assumir de novas responsabilidades em áreas como a sensibilização, a interpretação e a
animação do património cultural e ambiental. Se não existir um conjunto de actividades
devidamente articuladas que radique no âmago das comunidades e possa contribuir para
torná-los acessíveis a um público generalizado e insuflar-lhes vida, os nossos monumentos
estarão sempre no fio da navalha.
3
Tesouro da Colegiada de Santiago do Cacém (2002), Tesouro da Igreja Matriz de São Vicente de Cuba (2003),
Tesouro da Basílica Real de Castro Verde (2004), Museu de Arte Sacra de Moura (2005), Tesouro da Igreja de
Nossa Senhora das Salas (2005), Museu Episcopal de Beja (2006) e Museu do Seminário de Beja (2006).
21
Acção de formação de voluntários no âmbito da conservação preventiva de paramentos | Beja,
catedral, 2008.
6.
Uma iniciativa que cala fundo no espírito de quantos cooperam com o Departamento
nestes domínios consiste na celebração anual, a partir de 2003, do Festival Terras sem
Sombra de Música Sacra do Baixo Alentejo. Levado a efeito contra ventos e marés, numa
etapa em que, por muitos outros pontos do país, uma visão demasiado redutora do espaço
litúrgico está a erradicar pura e simplesmente os concertos das igrejas, truncando um
veículo essencial de empatia com os artistas, sejam eles criadores ou intérpretes, e de
abertura a legítimos anseios da sociedade, este projecto tem-se sabido afirmar. Uma boa
prova disto reside no facto de contar sistematicamente, entre naturais e forasteiros, com
a “casa cheia”.
A chave do Festival reside, outra vez, no apego à sua directriz de base: marcar a
temporada de música clássica da região através de um ciclo coerente de concertos, de
elevado nível artístico, obedecendo em cada ano a um tema-reitor, o que permite traçar,
pouco a pouco uma pequena mas fecunda “história da Música”. Conferências, palestras
e visitas guiadas completam, em ambiente descontraído, a programação musical. Estas
acções assumem enorme peso numa região que, embora relegada a posição secundária
nos circuitos da cultura oficial, não esconde o fascínio pela música. No entanto, poder
levá-las a cabo de maneira itinerante em igrejas históricas que foram alvo de trabalhos
de beneficiação e fazem parte de um sistema de abertura regular ao público assume um
significado ainda mais especial, permitindo juntar à fruição de espaços com notáveis
condições estéticas e acústicas uma proposta de reflexão acerca do sentido da Ars Sacra na
vida hodierna, precisamente aí onde o espírito do lugar melhor o permite.
No momento em que chega à sua quinta edição, o Festival Terras sem Sombra,
realizado em parceria com a Arte das Musas, tornou-se já, de certo modo, um dos
eixos fundamentais da acção do Departamento do Património Histórico e Artístico da
Diocese de Beja. É de sublinhar a empatia alcançada com o organismo responsável pela
área das artes no Ministério da Cultura, os municípios e as diversas entidades cujo apoio
tem permitido concretizar uma programação de grande qualidade. A adesão generosa
do público, a começar pelas populações dos nossos concelhos e a acabar nos muitos
participantes vindos de longe, sem esquecer a vizinha Espanha, representa a melhor
recompensa para os esforços dispendidos. Ela vem corroborar, de resto, a convicção de que
este e outros aspectos do trabalho no âmbito do património religioso, constituindo uma
“marca” de Beja e da sua Diocese, acabam por sê-lo igualmente do Alentejo. Desejamos
veementemente que o Festival, como grande festa da música da nossa região, aberta a
todos, assim continue por muitos e bons anos.
Uma boa maneira de fazer o nosso voto ainda mais firme é lembrar o comentário de
Santo Agostinho, bispo de Hipona, ao Salmo 99:
“Este salmo é de confissão ou de louvor, pois o seu título diz: Salmo de louvor ou
de confissão. Os versículos são poucos mas cheios de grandes mistérios. Germinem as
sementes nos vossos corações e delas nasça o trigo da seara de Deus. Este salmo de louvor
exorta-nos a alegrarmo-nos no Senhor. Mas não exorta apenas uma parte da terra a cantar,
ou só determinada casa ou assembleia de homens. Como sabe que a bênção foi semeada
em todo o mundo, a todo ele pede que se alegre.
23
Concerto do Coro Gulbenkian | Castro Verde, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição,
2006.
7.
Toda a terra ouviu esta voz, pois toda ela já canta ao Senhor. E aquela que ainda não
canta, há-de cantar-Lhe, [...] estendendo-se a bênção a todas as nações, desde o início da
Igreja, a começar por Jerusalém [...]. Cantar cânticos de júbilo quer dizer alegrar-se. Feliz o
povo que sabe aclamar-Vos. [...] Corramos para esta felicidade, entendamos esta alegria, não
a expressemos sem a entender. Não cantemos só com a voz mas com o coração. A voz do
coração é o entendimento.”
25
Ruínas do convento de Nossa Senhora das Necessidades, em Tomina | Santo Aleixo da Restauração.
8.
elogio do efémero
Filipe Faria
Director Artístico do Festival Terras sem Sombra
!
A História do Homem e da sua criação artística é definida pelo binómio composição/interpretação. Tirando o momento de composição, mais erudito ou mais popular,
mais intelectualizado ou mais improvisado, a interpretação de uma página musical escrita
em códigos e gramáticas com a sua própria história é um momento único de criação
artística e, no caso da arte musical, de construção de um edifício sonoro, elogio máximo
do efémero, em qualquer geografia ou tempo.
Elogiando o efémero desde 2003, o Festival Terras sem Sombra promove a programação
de um conjunto de concertos e actividades pedagógicas descentralizadas que se tem vindo
a afirmar como central na temporada cultural do Alentejo e do país. Produzido pela Arte
das Musas em parceria com o Departamento do Património Histórico e Artístico da
Diocese de Beja, conta, desde a primeira hora, com o fundamental apoio da Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura e das Câmaras Municipais dos concelhos
visitados. Em 2009 o Festival conta ainda com o patrocínio da Delta Cafés e o apoio da
Fundação Calouste Gulbenkian, da Associação Portas do Território, do Governo Civil de
Setúbal e dos Media Partners: rádios Antena 2, Renascença, Voz da Planície e Telefonia do
Alentejo e jornais Diário do Alentejo, Diário do Sul e Notícias de Beja.
Sob o tema Do Velho ao Novo Mundo, esta edição programa cinco concertos, uma
masterclass e uma conferência proferida pelo Prof. Doutor Manuel Pedro Ferreira, dedicados
às memórias sonoras do Barroco e do Classicismo Europeu e a sua influência e/ou fusão com
as linguagens do Novo Mundo (aqui representado pelo esplendor da composição brasileira
dos séculos XVIII/XIX, interpretado pelo Coro Gulbenkian, na que é já a quarta visita ao
Festival). Procurando oferecer palco de carácter internacional aos projectos profissionais de
jovens artistas nacionais, com excepcional curricula, contamos ainda com concertos de Sete
Lágrimas, Ludovice Ensemble, Concerto Campestre e Flávia Almeida Castro e Maria José
Barriga cujo talento é garantia de excepcionais momentos musicais pelas terras sem sombra.
Termino com um vivo agradecimento ao público pela excepcional entrega ao Festival,
desde a primeira hora, e aos músicos e apoiantes pela motivação e pelo interesse revelados,
com grande generosidade, em tempos difíceis.
27
9. Tangedor
de cabaça | Século XIV (inícios) | Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.
PROGRAMA GERAL
24 DE JANEIRO DE 2009 . 21H30 . CASTRO VERDE
SETE LÁGRIMAS
Pedra Irregular: O Nascimento do Barroco em Portugal
7 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 . ALMODÔVAR
LUDOVICE ENSEMBLE
La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV
28 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 . ALVITO
CONCERTO CAMPESTRE
Sileti Venti: As Paixões da Alma
14 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 . SANTIAGO DO CACÉM
FLÁVIA ALMEIDA E MARIA JOSÉ BARRIGA
MASTERCLASS/WORKSHOP
Cravo
14 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 . SANTIAGO DO CACÉM
FLÁVIA ALMEIDA E MARIA JOSÉ BARRIGA
Frente a Frente: A Música Barroca em Duo de Teclas
21 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 . BEJA
CONFERÊNCIA POR MANUEL PEDRO FERREIRA
Do Velho ao Novo Mundo
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28 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 . BEJA
CORO GULBENKIAN
O Esplendor Luso-Brasileiro nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX
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programa
basílica real de nossa senhora da conceição
castro verde
Classificada como Imóvel de Interesse Público
pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro
( Diário da República n.º 280, de 30 de Novembro de 1993)
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Após a “Reconquista”, Castro Verde foi confiada à Ordem de Santiago, que estabeleceu
aqui uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, situada numa
colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores
da vila. Teve ao seu serviço uma colegiada, presidida por um prior com as funções de
pároco. Em 1573, D. Sebastião mandou reerguer esse edifício, em lembrança de um facto
decisivo para que Portugal se tornasse uma nação independente: a batalha de Ourique,
travada nas elevações de São Pedro das Cabeças, a pouca distância de Castro Verde, em
25 de Julho de 1139, correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus
Cristo, na véspera da peleja, ao nosso primeiro rei.
O edifício actual, que ocupa sensivelmente o mesmo local dos anteriores, ficou a dever-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível ao significado patriótico e escatológico do
milagre de Ourique. Iniciados ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram sem delonga.
A sua traça segue um modelo derivado da arquitectura chã da época da Restauração e
que João Antunes aplicou na concepção de vários imóveis para a milícia espatária, como
a igreja de Santiago, de Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a igreja
matriz de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou
a planta longitudinal composta, formada por uma nave rectangular em que se inscrevem
duas torres sineiras quadradas e a capela-mor, mais estreita, ladeada por dependências.
Na frontaria, com três corpos delimitados por pilastras e empena rectilínea, avulta o portal,
sobrepujado por um frontão curvo quebrado, com a insígnia da Ordem.
Se a estrutura arquitectónica é tributária da tradição seiscentista, a decoração interior
corresponde já à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo uma notável visão integradora
das artes da época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com
sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a Aparição de Cristo a D. Afonso
Henriques. Este conjunto foi levado a cabo em 1728-1731 mediante uma parceria entre
o lisboeta António Pimenta Rolim, outro artista da capital, Manuel Pinto, e os pintores
bejenses Manuel e José Pereira Gavião - parceria que também se terá ocupado do
| Escola aragonesa | Século XIII (finais) – Século XIV (inícios)
Castro Verde, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição.
II. Cabeça-relicário de São Fabião
revestimento mural de outros sectores. As paredes encontram-se revestidas de painéis
azulejares, com destaque para os alusivos à vida do nosso primeiro rei e ao milagre de
Ourique, enquadrados por composições características das oficinas lisboetas de ca. 1730.
José Meco atribuiu a feitura do conjunto ao pintor P. M. P. - talvez o oratoriano P.e Manuel
Pereira -, uma das principais figuras do ciclo dos “Grandes Mestres”. O recurso aos artistas
de Lisboa revela-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem
ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas
referentes à monarquia e à Ordem de Santiago.
O interesse de D. João V pela matriz de Castro Verde levou a conseguir para ela, em
Roma, a dignidade de basílica, depois completada pelo título de real. Mas o soberano
empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as
quais sobressai a custódia de aparato, realizada em Lisboa, ao redor de 1715. O Tesouro
instalado na antiga sacristia em 2003 dá a conhecer este acervo, além de outras obrasprimas provenientes de igrejas do concelho, cabendo um lugar especial à cabeça-relicário
de São Fabião, peça de origem aragonesa, oferecida pela princesa D. Vataça a Panóias
(e transferida no século XVI para Casével).
josé antónio falcão
bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa,
V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; J[oão] J[osé] Alves
da Costa, O Termo de Castro Verde – Um Contributo para a sua História, I-II, Castro Verde, Câmara Municipal
de Castro Verde, 1996-1998; Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Barroco, Lisboa, Editorial Presença, 2003; José António Falcão, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde, Beja,
Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004.
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24 DE JANEIRO DE 2009 . 21H30
basílica real de nossa senhora da conceição
castro verde
sete lágrimas
!
pedra irregular
O Nascimento do Barroco em Portugal
DIOGO DIAS MELGAZ (1638-1700)
Salve Regina
Adjuva nos (instrumental)
In jejunio et fletu
CARLOS SEIXAS (1704-1742)
Sicut cedrus exaltata sum Responsorium II in festo assumptionis B.M.V.
ANTÓNIO TEIXEIRA (1707-1774)
Sacram beati Vicentii Responsorium I in festo S. Vicentii
Tanta grassabatur crudelitas Responsorium III in festo S. Vicentii (instrumental)
Si jubes pater sancte Responsorium II in festo S. Vicentii
FRANCISCO ANTÓNIO DE ALMEIDA (1702-1755?)
Lamentatio prima in Sabbato Sancto a 4 concertata
O quam suavis
Si quæris miracula Responsorio a 4 concertato per la Festa de St.o Antonio
Justus ut palma florebit Motetto a 4 concertato in commune unius martyres
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CARLOS SEIXAS (1704-1742)
Hodie nobis cælorum Rex Responsório a 5 para o Natal
notas biográficas
sete lágrimas
Grupo Residente do Festival Terras sem Sombra
Filipe Faria, tenor e direcção artística
Sérgio Peixoto, tenor e direcção artística
Mónica Monteiro, soprano
Andreia Carvalho, oboé barroco e flauta barroca
Denys Stetsenko, violino barroco
Diana Vinagre, violoncelo barroco
Hugo Sanches, tiorba
Tiago Matias, tiorba e guitarra barroca
Sérgio Silva, cravo*
* instrumento gentilmente cedido por Sintra Estúdio de Ópera
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O Sete Lágrimas (fundado em 2000 em Lisboa sob o nome L’Antica Musica) é um
consort de músicos especializados em música antiga e contemporânea que explora em cada
programa a ténue fronteira entre a música erudita e as tradições seculares. É dirigido por
Filipe Faria e Sérgio Peixoto.
Em 2007 o grupo editou o seu primeiro CD pela etiqueta MU (murecords.com)
com um projecto intitulado Lachrimæ #1. Este CD alcançou enorme sucesso na crítica
da especialidade e na recepção do público. Em 2008 editou o segundo CD pela mesma
notas biográficas
etiqueta, intitulado Kleine Musik [ver Notas de Imprensa abaixo], um projecto de música
antiga e contemporânea dedicado a Heinrich Schütz que contemplou a encomenda de
nove peças ao famoso compositor inglês Ivan Moody sobre os mesmos textos musicados
por Schütz no século XVII. Em Dezembro de 2008 o grupo editou o terceiro projecto de
edição discográfica intitulado Diaspora.pt em que explora as relações estéticas, conceptuais
e linguísticas da música dos países do cinco continentes visitados pelos Descobrimentos,
pela secular diáspora cultural portuguesa e pela lusofonia. Estes projectos discográficos
têm o apoio da Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura. Desde 2006 o grupo
desenvolve ainda projectos de composição de música original e arranjos de música antiga
para o cinema, o teatro e a televisão. A este propósito efectuou já a banda sonora original,
baseada em música dos séculos XVI a XVIII, de uma série de 13 programas da estação
televisiva SIC, em 2006.
Sete Lágrimas estreou-se em 2000 em Lisboa, fruto de uma intensa pesquisa de
cerca de um ano, com a estreia nacional e integral do Primeiro Livro de Madrigais
para Duas Vozes, de Thomas Morley (1595). Este repertório encerra em si a magia do
Renascimento europeu, que fazia da música e dos paradigmas clássicos uma forma de
arte nova apta a comunicar com o público de um modo ainda não experimentado, e
lançou o mote para os projectos futuros do grupo. Na temporada 2009/2010, este tem já
agendados doze concertos e um novo projecto de edição discográfica intitulado Silêncio,
com a parceria do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de
Beja e o apoio do Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura. Este projecto
contempla a encomenda de seis obras (60 minutos de música) aos compositores João
Madureira, Ivan Moody e Christopher Bochmann, a sua estreia mundial, uma pequena
tournée nacional e internacional e a edição discográfica destas obras especialmente
escritas para Sete Lágrimas. Tal como os anteriores projectos discográficos, Silêncio é
produzido pela MU/Arte das Musas. O grupo é também, desde 2006, grupo residente
do Festival Terras sem Sombra, sendo agenciado pela Arte das Musas. Para 2009 ultima
a preparação de um concerto no Festival Internacional de Música de Macau e uma
digressão, composta por concertos e masterclasses, pela América Latina (Uruguai, Chile
e Argentina), a convite da Embaixada Portuguesa no Uruguai, do Instituto Camões e
do Festival Barroco do Uruguai.
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notas de imprensa
NOTAS DE IMPRENSA
CRISTINA FERNANDES Público,14.11.2008
“Revelações do Barroco em Portugal
Ciclo Música em São Roque
Sete Lágrimas Consort
Pedra Irregular – O Nascimento do Barroco em Portugal
Lisboa, Igreja de São Pedro de Alcântara, 9 de Novembro, às 17 h.
Igreja cheia
Vocacionado para a música antiga e contemporânea, o Sete Lágrimas Consort constitui um dos
mais interessantes projectos surgidos em Portugal, nos últimos tempos, conforme se pode comprovar
através de dois CD já editados (Lachrimæ #1 e Kleine Musik), aos quais se seguirá, em breve, Diaspora.
pt. Dirigidos pelos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, o grupo apresentou no ciclo Música em São
Roque um criterioso programa intitulado “Pedra Irregular – O Nascimento do Barroco em Portugal”.
De Diogo Dias de Melgaz, um dos últimos vultos da Escola de Évora, a António Teixeira e Francisco
António de Almeida (bolseiros em Roma a expensas de D. João V), passando por Henrique Correia,
Carlos Seixas e Scarlatti, foi traçado um percurso com algumas das mais belas obras escritas entre
os finais do século XVII e os meados do século XVIII. O repertório sacro apresentado foi concebido
para coro (com ou sem solistas) e baixo contínuo, mas o Sete Lágrimas interpretou-o apenas com três
cantores, atribuindo algumas das restantes partes a instrumentos (oboé e violino barroco) e contando
com um grupo de baixo contínuo generoso (violoncelo, duas tiorbas e cravo). Algumas obras vocais
(de Melgaz, Teixeira e Almeida) foram tocadas apenas em versão instrumental e as restantes foram
objecto de combinações vocais e instrumentais variadas, que permitiram acentuar os contrastes da
textura musical e obter ambientes tão diversos como o intimismo contemplativo da Lamentação,
de Almeida, ou a exuberância italianizante dos Responsórios, de Carlos Seixas, do Responsório Si
quæris miracula ou do Motete Justus ut palma florebit, de Almeida. O colorido que se ganhou desta
forma mostrou facetas que outras interpretações deixam na sombra. Mas se o resultado foi revelador,
esta atitude é susceptível de algumas reflexões musicológicas. Várias destas peças foram certamente
cantadas na Patriarcal de D. João V, que contava com um coro de italianos de alto nível e cultivava
um cerimonial monumental, mas também não é impossível que tivessem sido feitas com uma voz
por parte noutros locais (prática documentada em Portugal nas décadas seguintes). O uso de um
conjunto vocal mais amplo seria talvez mais fidedigno, mas os Sete Lágrimas não se definem como
um grupo filiado nas “interpretações historicamente informadas” no sentido convencional, embora
tenham formação nessa área. Preferem apostar na experimentação e na recriação do repertório, de
resto uma tendência cada vez mais comum também a nível internacional. Com timbres de cores
suaves, as vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto combinaram-se com elegância e bom gosto e a
soprano Mónica Monteiro teve uma prestação de crescente eloquência que culminou nas páginas
de Almeida, precisando apenas de aperfeiçoar alguns detalhes nas passagens mais virtuosísticas.
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notas de imprensa
A clareza de fraseados do oboé de Andreia Carvalho, num sugestivo diálogo com o violino de Denys
Stetsenko, e um grupo de contínuo que nunca incorreu na monotonia completaram um trabalho de
conjunto de grande consistência técnica e artística.”
CRISTINA FERNANDES Público, Ípsilon, 20.06.2008
“Fazer voar a Música
O que têm em comum um compositor luterano do Barroco alemão e um ortodoxo grego do
século XXI? No seu segundo CD o grupo Sete Lágrimas quis mostrar como as músicas de Schütz
e de Ivan Moody se iluminam mutuamente.
Desde que começaram a cantar juntos, há dez anos, a música de Henrich Schütz (1585-1672)
tornou-se companhia para Filipe Faria e Sérgio Peixoto. Estes dois tenores do Coro Gulbenkian
tinham como ambição fazer um projecto livre de algumas convenções decorrentes da formação
musical clássica do conservatório. Queriam abordar a música antiga, a contemporânea e repertórios
de fronteira (entre o erudito e o popular) e emancipar-se da página escrita, pois a partitura é apenas
o suporte. Criaram em 2000 o grupo L’Antica Música, que tomou o nome de Sete Lágrimas em
homenagem ao ciclo de sete danças Lachrimæ (Lágrimas) de Jonh Dowland (c. 1563-1626) e ao
espírito que percorre a sua música.
No início, o percurso parecia semelhante ao de outros grupos de música antiga. Havia receio de
arriscar num meio fechado como o português, confessam ao Ípsilon Filipe Faria e Sérgio Peixoto.
Tinhamos ideias, mas quando chegava a altura de as mostrar acabávamos a fazer a oratória de
Carissimi ou outro repertório instituído. Foi há três anos que as coisas começaram a mudar. Em
Março de 2007 lançaram o primeiro CD (Lachrimæ #1), na etiqueta Murecords criada pela Arte
das Musas (empresa com actividade nas áreas da Cultura, Arte e Comunicação dirigida por Filipe
Faria), e há semanas colocaram no mercado o seu último trabalho (Kleine Musik), onde prestam
homenagem a Schütz através do olhar contemporâneo de Ivan Moody (n. 1964), compositor
britânico residente em Portugal, que convidaram a compor sobre os mesmos textos usados pelo
grande compositor alemão. Schütz era o compositor que melhor se adaptava à nossa maneira
de cantar e de ver a música, conta Sérgio Peixoto. Estudámos os Pequenos Concertos Espirituais
e descobrimos sempre coisas maravilhosas, não só a nível musical mas também interpretativo.
A ilustração musical do texto não é tão imediata como em Monteverdi ou nos italianos da mesma
época, mas depois de a trabalharmos em profundidade está lá tudo, é impressionante, explica Filipe
Faria. Dizemos muitas vezes: Schütz nunca nos enganou.
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O Italiano Extrovertido e o Intimismo Alemão
Os dois tenores já tinham cantado várias obras de Ivan Moody e a ideia de o convidar a participar
foi consensual. O projecto começou a ser delineado há dois anos e foi posto em prática com o apoio do
Ministério da Cultura, que elogiou a sua originalidade conceptual.
Também a visão de Schütz de Ivan Moody se encontra próxima da dos directores musicais
do Sete Lágrimas. A música de Schütz é uma belíssima mistura do italiano extrovertido com o
notas de imprensa
intimismo alemão, que tem a ver com a escala mais reduzida dos meios que ele tinha à disposição
depois da guerra dos 30 anos», diz o compositor. «Trata o texto com uma abordagem muito pessoal.
Há uma profundidade teológica no pensamento de Schütz que concilia ao mesmo tempo a seriedade
e o fascínio perante a criação e a alegria, coisa que só se percebe depois de entrar a fundo na sua
música. Isto diz-me muito porque são coisas que também sinto – uma alegria teológica.» Ivan
Moody é membro da igreja ortodoxa grega e identifica essa atitude com a sua fé.
Além dos textos, a proposta tinha outras condicionantes como o uso de instrumentação semelhante
à escolhida para as obras de Shutz, que se destinam a vozes e baixo contínuo. «Tal como Stravinsky,
acredito que as limitações podem fazer uma peça florir, se alguém nos dá o dinheiro e uma folha de
papel em branco, sem nada de onde partir, caímos no vazio», diz Moody. «Olhei para as partituras de
Schütz para absorver o ambiente e depois usei a minha linguagem.» A natureza dos meios também
não foi um problema pois Moody está habituado a escrever para grupos que se dedicam à música
antiga e contemporânea, como o Hilliard Ensemble ou o Taverner Consort, e também tem usado
instrumentos antigos. «Já fiz peças para consort de violas da gamba, mas nunca tinha escrito para tiorba
ou oboé barroco. O som destes instrumentos é fantástico. A maneira como a tiorba pode preencher o
espaço harmónico como faz na música barroca foi para mim uma coisa delirante.»
Abordagem Contemporânea
O projecto teve ainda outra convidada: a soprano Ana Quintans. «Estávamos a actuar com o
Coro Gulbenkian e de repente entra uma jovem soprano portuguesa para cantar a Missa em Dó
menor, de Mozart», conta Filipe Faria. «Fizemos-lhe o convite para colaborar com o Sete Lágrimas
logo nessa noite e foi aceite. Ana Quintans já não está só limitada às nossas fronteiras, é um assombro
de musicalidade e de seriedade. Nunca tinha abordado este repertório, mas deixou-nos sem palavras
durante a gravação.»
Do ponto de vista interpretativo Filipe e Sérgio tiveram com a música de Schütz e de Ivan
Moody uma atitude semelhante: uma aproximação à partitura que parte da recriação. Por exemplo:
duas das peças do compositor britânico são interpretadas no cravo embora tenham sido escritas para
vozes adoptando um processo similar ao que se fazia com a música do século XVII. «A formação
musical clássica incita-nos a ter respeito pela partitura mas fomos aprendendo a libertar-nos.
A partitura é apenas um suporte, serve para tentar perceber o que o compositor diz mas também para
descobrir o que queremos fazer com a música», refere Sérgio Peixoto. O Sete Lágrimas pretende
uma abordagem contemporânea e uma ligação à identidade sonora do grupo. «Uma dúvida essencial
desde o princípio era: será que isto passa como som do grupo? Mas a verdade é que isso tem vindo
a ser reconhecido.»
A criatividade para além da partitura e a combinação de repertórios de fronteira fervilhava há
muito nas mentes dos dois cantores, mas só há poucos anos começaram a arriscar. Agrupamentos que
admiram, como L’Arpeggiata de Christina Pluhar, Accordone de Marco Beasley e Guido Morini
ou Les Fin’Amoureuses, serviram de incentivo. «Não é uma questão de os imitar, mas sentimos
uma atitude semelhante perante a música», explica Filipe Faria. «Convidámos, por exemplo, para
o Festival Terras sem Sombra (que a Arte das Musas organiza) um coro para interpretar música
sacra de carácter popular do eixo latino-mediterrânico e em Novembro vamos lançar um novo CD,
Diaspora.pt. Aí a loucura será total.”
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notas de imprensa
Novos Projectos
Sérgio e Filipe gostavam que esse novo projecto «viesse mudar a mentalidade fechada que existe
em Portugal». «Temos intérpretes muito bons que fazem música antiga de acordo com as práticas
de execução históricas e gostamos muito de ouvir, mas não é essa a nossa intenção», diz Filipe. Em
Diaspora.pt evocam-se repertórios influenciados pela música portuguesa no mundo. «Começamos
em Portugal com Vilancicos de Negro (género coral que utiliza várias línguas e dialectos de influência
mestiça), passamos por Cabo Verde com a morna, por Goa, Macau, Timor, o México e o Brasil. A
ideia da diáspora tem ramificações: o português que saiu para a América do Sul no século XVI e
que compôs baseado nas tradições orais que recolheu, mas também os músicos que em Portugal
se inspiraram em fórmulas novas que ouviam interpretar aos escravos africanos», explica Sérgio.
«Teremos também músicos convidados, como o fadista António Zambujo.» Filipe acrescenta que
«não é um projecto musicológico, mas totalmente estético e conceptual» que implicou meses de
trabalho sobre as partituras: «recriámos do primeiro ao último compasso todas as peças.»
O objectivo foi criar uma abordagem pessoal do Sete Lágrimas e não uma aproximação
idiomática a cada um dos géneros. «Não queríamos imitar, mas recriar. Nos ensaios usámos adjectivos
e metáforas para transmitir as nossas ideias aos músicos. Lembro-me sempre do Maestro Frans
Bruggen que nos dirigiu tantas vezes no Coro Gulbenkian. Ele faz poucos gestos quando dirige,
mas quando ensaia usa adjectivos que fazem voar a música de Bach, nós tentámos fazer voar estas
músicas», diz Filipe Faria.
À Diaspora.pt vai seguir-se outro CD em 2009, Silêncio. «São três olhares de compositores
sobre a Bíblia: o de Ivan Moody que é ortodoxo grego, o de [ João Madureira] que é católico e
o de Christopher Bochmann que é anglicano protestante. Cada compositor fará música sobre a
herança erudita e popular da sua própria linguagem e experiência», conta Filipe Faria. «Será mais
uma aventura que promete quebrar fronteiras».”
M. A. G. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13-26.08.2008
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“A Grande Música
O maior compositor alemão do Barroco intermédio, Heinrich Schütz, os seus Pequenos Concertos
Espirituais (Kleine Geistliche Konzerte), a revisitação dessas peças por um compositor britânico
contemporâneo há muito fixado em Portugal, Ivan Moody, e o projecto, bem amadurecido, dos
tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, Sete Lágrimas. O conjunto dá origem a um dos mais belos
discos de edição nacional, surgidos nos últimos anos. O grupo Sete Lágrimas nasceu há cerca de
uma década como o nome L’Antica Musica. Formado por dois cantores do Coro Gulbenkian, surgiu
com o objectivo de ultrapassar barreiras mais ou menos convencionadas entre diferentes repertórios,
fossem de música antiga ou contemporânea, ou mesmo testemunho de diferentes “diásporas”, como
futuros projectos discográficos o atestam. Sucederam-se assim anos de trabalho e de concertos, até
ao momento em que editaram o primeiro disco, Lachrimæ # 1. Foi em 2007, quando Filipe Faria e
Sérgio Peixoto já tinham adoptado a designação Sete Lágrimas, a partir das sete variações Lachrimæ,
de John Downland, sobre Flow my Tears. O programa do primeiro disco demonstrava a atitude
III. Trânsito de São José | Corrado Giaquinto | Século XVIII (meados)
Santiago do Cacém, colecção particular (em depósito no Museu de Arte Sacra).
notas de imprensa
única do agrupamento. Obras de Giovanni Martini, Corelli e Schütz, a par de salmos protestantes
franceses, com quase dois séculos de distância entre si, cruzavam universos e modos de vida, cuja
soma parecia revelar um sentir comum – uma dor que não podia deixar de ser comum –, no confronto
que dividia a Europa entre os diferentes credos. O novo disco impõe mais uma vez o «desassossego».
Dos cerca de 50 Pequenos Concertos Espirituais de Heinrich Schütz, incluídos nos volumes de 1636
e 1639, nove deles são revisitados pelo compositor contemporâneo Ivan Moody, que não só conhece
as características muito próprias da música antiga, como sabe da convicção necessária para compr
música sacra - nenhuma simulação é possível, perante si mesmo e muito menos perante a verdade
de Schütz. Os Pequenos Concertos Espirituais surgiram em plena Guerra dos 30 anos. Usam
várias fontes, do Antigo Testamento a Santo Agostinho. Os textos (e os instrumentos de época)
são retomados por Ivan Moody, como num «jogo de espelhos», conforme confessa na apresentação
do CD: «reflectir como num espelho era ideia central deste projecto, devendo estar presente que
todos os espelhos distorcem». E essa é a grande lição deste disco, o que o transforma em algo único
e magnifíco. O idioma do britânico ortodoxo - facto bem patente na sua obra sacra - em tudo difere,
como é óbvio, da expressão do genial compositor luterano seiscentista. No entanto, parafraseando
Moody e a sua citação de São Paulo aos Coríntios, que «ponto de chegada» poderá ser mais rico «do
que o esforço de reflectir e complementar um Mestre, como através de um espelho, em enigma?» As
vozes de Sérgio Peixoto, Filipe Faria e, em particular, da soprano Ana Quintans materializam as
melhores respostas, acompanhadas por Inês Moz Caldas (flauta de bisel), Pedro Castro (flauta e
oboé barroco), Kenneth Frazer (viola da gamba), Duncan Fox (violone) e Hugo Sanchez (tiorba).
Juntos fazem com que a música corra, expressiva, exigente, atenta ao pormenor, à eloquência imposta
pelo mestre e pelo próprio enigma.”
CRISTINA FERNANDES Público, Ípsilon, 20.06.2008
“Jogo de Espelhos
O segundo CD do agrupamento Sete Lágrimas combina a espiritualidade do barroco alemão
com o olhar contemporâneo. Kleine Musik, Sete Lágrimas Consort, Filipe Faria e Sérgio Peixoto
(tenores, cravo e direcção), Ana Quintans (soprano), Murecords MU0102
Depois de uma estreia discográfica auspiciosa com Lachrimæ #1, o agrupamento Sete
Lágrimas acaba de lançar mais uma gravação de grande consistência artística e conceptual. Kleine
Musik combina uma selecção de peças extraídas dos Pequenos Concertos Espirituais, de Henrich
Schütz (1575-1672), com obras compostas para o grupo sobre os mesmos textos por Ivan Moody
(n. 1964), num deliberado jogo de espelhos. A combinação entre música antiga e contemporânea pode
encontrar-se em vários projectos discográficos internacionais, mas tem sido bastante rara no contexto
português. Kleine Musik não é apenas uma conjugação de universos cuidadosamente estudada, onde
a música de Schütz serve de inspiração ao olhar contemporâneo de Ivan Moody através de um
reflexo de processos criativos que usam diferentes linguagens. É também uma justa homenagem a
Schütz, um dos maiores compositores da história da música, que tem estado quase sempre ausente
43
notas de imprensa
dos programas de concerto em Portugal, mas que faz parte do repertório do Sete Lágrimas desde o
início da sua actividade. Se os pequenos trechos do compositor alemão incluídos no primeiro CD
se encontravam entre as interpretações mais conseguidas dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto,
neste segundo trabalho confirma-se a sua afinidade com a estética do compositor alemão e com a
sua expressividade profunda e intimista. As suas vozes fundem-se bem ao nível do timbre e nota-se
uma sintonia cuidada dos fraseados e das intenções retóricas, bem como uma cumplicidade eficaz
com a componente instrumental, a cargo de intérpretes experientes no âmbito da música antiga.
As faixas mais impressionantes do disco devem-se, porém, à interpretação de Ana Quintans, pelo
seu elevado nível técnico, pelo brilho vocal e pela força emocional. A soprano, que tem feito carreira
internacional no repertório barroco, soube também adaptar-se ao universo menos familiar de Ivan
Moody – ouça-se, por exemplo, O Misericordissime Jesu, na faixa 12. Este compositor britânico, a
residir em Portugal há vários anos, tem escrito outras obras com instrumentos antigos, conhecendo
bem os seus recursos e especificidades. A sua estética não procura o radicalismo, nem tem a obsessão
da vanguarda. Mostra antes um certo despojamento, mesmo quando os processos de composição são
mais intrincados, e a captação de uma atmosfera onde a espiritualidade é um elemento bem presente.
A transição entre o antigo e o novo pode ser uma tarefa arriscada mas neste caso é conseguida de
forma convincente, tanto pelo conteúdo musical como pela coerência interpretativa.”
BERNARDO MARIANO Diário de Notícias, 14.07.2008
“O Sete Lágrimas, do[s] tenor[es] Filipe Faria e [...] Sérgio Peixoto, editou o CD Kleine Musik,
projecto que cruza Heinrich Schütz (1585-1672) e Ivan Moody (n. 1964), compositor britânico
residente em Portugal e que consistiu em cantar nove Kleine Geistliche Konzerte de Schütz e pedir
a Moody que musicasse os mesmos textos (encomenda do Sete Lágrimas), procurando intersecções
(reflexos em espelhos deformantes) de passado e presente e abrindo-se às confluências entre o
Luteranismo temperado pela Itália de Schütz e do Modernismo eivado da música das igrejas
orientais do próprio Moody. O resultado aí está, com a estreia absoluta das noves pequenas obras de
Moody, sendo que duas delas são para cravo solo. O Sete Lágrimas conta, para lá do par de vozes
citadas, com o concurso do soprano Ana Quintans e de um quinteto instrumental de bisel, oboé,
gamba, violone e tiorba. Desafio ganho, na medida em que o acerto, beleza e propriedade das vozes,
o ambiente das linhas instrumentais por trás e o contraste estabelecido entre as linguagens barroca
e moderna funciona muito bem. Boa dicção do alemão [...]. Som excelente.”
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CRISTINA FERNANDES Público, 21.12.2007
“Movimentos da Música Antiga
O panorama começa a movimentar-se em Portugal, multiplicando-se com novas iniciativas. [...]
o panorama da música antiga em Portugal começa a movimentar-se e a multiplicar-se em novas
notas de imprensa
iniciativas. A maior parte deve-se à existência de uma nova geração de jovens intérpretes que se
têm especializado no estrangeiro [...] mas não só. [...] O Sete Lágrimas Consort lançou o seu
primeiro disco (Lachrimæ #1) na sua própria editora e tem sido responsável pela direcção artística do
Festival Terras sem Sombra no Baixo Alentejo, importante foco de divulgação de jovens intérpretes
portugueses nesta área [...].”
JEAN-LUC BRESSON Le Jouer de Luth - Société Française de Luth, 2007
“Le titre annonce d’emblée un climat poétique sans équivoque: Larmes. Cet enregistrement
regroupe en effet des pièces vocales et instrumentales présentant un lien direct avec ce théme. La
composition de l’ensemble fait alterner de lentes polyphonies aux profondeurs abyssales et quelques
pièces plus enjouées que l’on trouve en particulier dans deux suites de Corelli (Sonata da Chiesa
n.º 7 et Sonata da Chiesa n.º 6). Les œuvres réunies ici sont issues des répertoires français, italien
et allemand. On y trouve des pièces de Giovanni Battista Martini (1706-1784), d’Archangello
Corelli (1653-1713) et d’Heinrich Schütz (1585-1672). L’atmosphére qui domine évoque une
poignante méditation déclinée selon différents modes, d’une œuvre à l’autre. Dès les primières
secondes, l’auditeur est saisi apr le climat emprunt de spiritualité qui domine l’ensemble. Il est
invité à emprunter les voies d’une temporalité tournée vers l’interieur. Le temps s’écoule en longues
plages sensibles. La pochette de ce disque montre la photographie d’un visage, surexposée au point
de confiner à la plus parfaite blancheur. L’image conduit vers le blanc comme la méditation conduit
vers le silence, ce silence qui émane des limbes insondés de la tristesse selon l’expression chére à
Baudelaire. Si dans cet enregistrement la voix joue un rôle essentiel comme céhicule de l’émotion
diffusée, elle est sotenue par de beaux accompagnements.”
PEDRO BOLÉO Público, 01.06.2007
“De chorar por mais
Duas boas notícias: a primeira é a estreia em disco de um projecto musical já com alguns anos
actividade chamado Sete Lágrimas, um grupo que deu os primeiros passos em 2000, ainda com o
nome L’Antica Musica. a segunda boa notícia é que, no mesmo gesto, surgiu uma nova editora a
Mu Records. Este disco é sinal de uma capacidade de iniciativa de jovens músicos (neste caso dois
tenores do Coro Gulbenkian) que deve ser saudada. Ainda por cima quando o disco Lachrimæ #1 é
resultado de um trabalho musical cuidado, com algumas boas escolhas entre o repertório da música
renascentista e barroca. As vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto seguram com muita sensibilidade
as linhas das polifonias de autores anónimos do século XVI e de peças de Giovanni Battista
Martini (1706-1784). O conjunto instrumental cumpre bem a sua função, acompanhando as
vozes, participando activamente na polifonia ou interpretando Sonatas e Corelli de finais do século
XVII. Fica a sensação de que podia ir ainda mais longe na exploração tímbrica dos instrumentos e
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notas de imprensa
dar mais energia ao conjunto (mesmo se é um tom melancólico o que se procura em certas peças).
Mas o resultado final é, sem dúvida, de muita qualidade.”
BERNARDO MARIANO Diário de Notícias, 06.04.2007
“O disco é o primeiro da portuguesa Mu Records. Nele, o ensemble Sete Lágrimas [...] interpreta
três motetes do católico Martini, quatro Kleine geistliche Konzerte, do luterano Schütz, duas Sonate
da Chiesa do op. 3 de Corelli e três cânticos protestantes franceses (dois da calvinista Genebra).
Combinação interessante de obras [...] e interpretações de bom nível, sobretudo nas peças francesas
e nos motetes.”
IVAN MOODY
COMPOSITOR E MAESTRO
“Melancholy, as Dowland knew, may include an element of joy – a secular counterpart to the
Greek word harmolipi, describing a spiritual state that consists precisely in experiencing joy in
sorrow. Tears, therefore, able to betray both sadness and joy, are a natural expression of this state;
and seven of them (Sete Lágrimas – Seven Tears) recall the seven sorrows and seven joys of the
Virgin, the seven last words from the Cross, and – why not? – the seven hills upon which both
Rome and Lisbon are said to be founded. The tears encapsulated in the music recorded by this
ensemble, centred around two young Portuguese tenors, were real enough, and reflect not only
the tragic aspects of the life of Christ on earth, but also years of religious persecution. In other
words, the tears are human. The beauty and refinement of the performances and the elegance of the
recorded sound, as well as, most importantly, the sense of an internal tempo, paradoxically serve to
record human weakness with something very close to perfection.”
MANUEL PEDRO FERREIRA
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MUSICÓLOGO E CRÍTICO MUSICAL
“Neste seu primeiro CD, o grupo Sete Lágrimas oferece-nos uma confirmação da maturidade
artística que a interpretação de música antiga alcançou em Portugal. Exemplo de sensibilidade e
bom gosto, faz-nos esquecer que na sua base estão raras competências técnicas, adquiridas durante
anos de esforçada aprendizagem. De facto, a música flui, judiciosamente equilibrada e fraseada,
sem que os detalhes deixem de ser transparentes, oferecendo-se à degustação do ouvinte. As vozes
fundem-se admiravelmente e os instrumentos revelam um entendimento plenamente partilhado.
A proposta de repertório é, de alguma forma, ousada, não apenas por justapor melodias sobre
traduções francesas dos Salmos, de Marot, cantadas em estilo de discante, a peças de Heinrich
Schütz e belos, embora pouco conhecidos, responsórios do célebre padre Martini, mas também
notas de imprensa
porque os tempos distendidos, convidando à contemplação, contrariam a pressa inconsequente dos
tempos que correm. No livrete que acompanha o disco, lê-se que Dowland reivindica as Lágrimas
como expressão não só de tristeza, mas também de alegria interior. É esta alegria que, lentamente,
vai escorrendo deste disco, para ouvidos que a saibam recolher e ecoar.”
JORGE MATTA
MUSICÓLOGO E MAESTRO
”Afinação, fusão, sensibilidade contida, um hino ao bom gosto, um belo trabalho do grupo Sete
Lágrimas. Apetece sentar, baixar a luz e, simplesmente, ouvir! Bravo!”
FERNANDO ELDORO
MAESTRO
“Gratificante revelação de dois jovens cantores portugueses que decidiram apaixonar-se pela
música vocal dos séculos XVI e XVII e transformá-la num acto milagroso.”
CRISTINA FERNANDES
MUSICÓLOGA E CRÍTICA MUSICAL
“Sob o sugestivo título Lachrimæ #1, o programa do primeiro CD do Sete Lágrimas Consort
percorre um período temporal que se estende dos finais do século XVI ao século XVIII onde se
cruzam várias tradições e estilos musicais (francês, italiano, germânico) e a expressão ritual de vários
credos religiosos (catolicismo, protestantismo) unidos por fios condutores evidentes ou subtis.
O tema das lágrimas como expressão da dor, do sofrimento íntimo ou colectivo, da melancolia, da
fé ou da intolerância religiosa estão implícitos em quase todas as épocas no contexto de criação de
várias peças musicais ou no seu próprio conteúdo, atingindo uma expressão particularmente rica e
tocante no período barroco. Por outro lado, a voz que canta (mas também chora) é um elemento
primordial intrínseco à própria natureza da música, que é aqui entendida de forma abrangente
estendendo-se à aspiração que conduziu compositores e intérpretes da época barroca a tentar igualar
a eloquência da voz humana na música instrumental.”
!
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notas ao programa
pedra irregular
O Nascimento do Barroco em Portugal
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A utilização da palavra “barroco” e a sua aplicação a determinadas formas culturais
correspondem a um fenómeno recente. Os artistas dos séculos XVII e XVIII ignoravam-na, o que vale por dizer que, a título de exemplo, nenhum escritor da época fazia prosa para
que ela fosse “barroca”. A noção de estilo, e de estilo barroco, tal como hoje a entendemos,
era-lhes totalmente desconhecida.
É sobejamente conhecida a origem portuguesa desta palavra. O termo “barroco” surge,
pela primeira vez, no insigne Colóquios dos Simples (1563), de Garcia da Orta [1501-1568],
referenciando “huns barrocos mal afeiçoados e não redondos”. O mesmo termo seria
retomado por Rafael Bluteau [1638-1734], no seu Vocabulario (1712), para designar
“pérola tosca, e desigual, que nem he comprida, nem redonda”.
Contudo, enquanto conceito, na acepção historicista, o termo “Barroco” foi inventado
pela historiografia alemã oitocentista, num momento em que se procurava introduzir
paradigmas explicativos nas caóticas narrativas sobre arte. Embora tendo no seu horizonte
a arte italiana, Heinrich Wölfflin [1864-1945], com a obra Renaissance und Barock (1888),
opôs as qualidades da arte do Renascimento – primado da linha, do desenho, do plano,
da forma fechada, da unidade, da claridade absoluta – às do Barroco – primado da cor,
da profundidade, da forma aberta, da pluralidade, da claridade relativa. Curiosamente,
o historiador alemão falava, sobretudo, de Maneirismo, detendo-se em Gian Lorenzo
Bernini [1598-1680], artista “escabroso”, não avançando para além dele.
Na historiografia portuguesa, a designação “Barroco” para classificar determinada
época e determinado estilo tornou-se quase ambígua, em virtude das muitas e, dir-se-ia,
desvairadas acepções que à palavra foram atribuídas. De “barroco”, sinónimo de bizarro, de
“barroco” esquema escolástico de silogismo falso, de “barroco”, termo corrente na crítica de
artes plásticas, sinal de mau gosto e coisa absurda, passou-se a “Barroco”, etiqueta histórica
e estética, que se dava como equivalente ou substituto de “Seiscentismo”.
Importa abordarmos o Barroco tendo em conta as circunstâncias em que os seus
criadores actuaram, no conhecimento das convicções teóricas da época e dentro dos variados
domínios, o estabelecimento dos conceitos essenciais que norteavam as actividades criativas,
fazendo uma arqueologia das teorias que orientavam as múltiplas expressões artísticas.
O Barroco português pode ser contextualizado segundo determinados vectores: o
pensamento e os valores tridentinos, as referências do classicismo (mais mitigadas no
século XVII, mais actuantes no XVIII), a restauração da independência depois de 1640 e a
riqueza trazida ao reino pelo ouro e pelos diamantes brasileiros. Sob estas grandes referências
históricas, a cultura barroca legou-nos um espólio multifacetado, ora concordante, ora
notas ao programa
contrastante, que pode ser equacionado segundo alguns valores comuns: a manutenção
do primado da estética da imitação; a reafirmação da existência de cânones a regerem as
várias expressões artísticas; a valorização do gosto pelo lúdico e burlesco, patente em muita
da poesia da época; a explosão duma espiritualidade que parece rejeitar o mundo, como na
pintura de Josefa de Óbidos [1630-1684] ou na prosa de Fr. António da Chagas [1631-1682]; o aproveitamento das potencialidades da Retórica, seja na construção literária,
no sermão ou na própria arquitectura, que aproximam os sermões do P.e António Vieira
[1608-1697] do significado icónico do convento de Mafra; o interesse pela matéria e a
necessidade de a mascarar com texturas sedutoras; a polifonia das várias artes, de que são
exemplos maiores as igrejas forradas a talha e azulejo, artes destinadas a enquadrar a música
e a palavra do pregador; uma moralização permanente, seja na vigilância dispensada aos
temas de pintura ou na moralizante prosa do P.e Manuel Bernardes [1644-1710].
No que diz respeito à música, e seguindo a terminologia avançada por Rui Vieira Nery,
o período barroco deverá ser dividido em dois momentos assaz diferentes: um primeiro,
autóctone, na segunda metade do século XVII; e um outro, joanino, marcadamente
romanizante, ao longo da primeira metade do século XVIII.
Nascido em Cuba, no coração do Alentejo, em 1638, Diogo Dias Melgaz é um digno
representante deste primeiro período, contendo a sua literatura musical os princípios
compositivos que nortearam a generalidade da produção musical portuguesa da segunda
metade do século XVII. Tendo sido admitido no Colégio dos Moços do Coro da Sé de
Évora, em 1647, Melgaz teve uma carreira fulgurante nesta instituição. Nomeado reitor
em 1662, tornou-se mestre da claustra em 1664 e ascendeu ao lugar de mestre de capela
em 1680, cargo que ocupou durante dezanove anos. A sua música é marcada, no dizer
de Gerhard Doderer, por um colorido tonal “moderno”, em oposição ao modelo modal
tradicional, numa sequência dos efeitos expressivos do discurso melódico, mais por razões
de natureza textual do que por considerações de ordem puramente musical.
Das obras de Dias Melgaz hoje em concerto merece particular referência Salve Regina.
Alternando entre uma lógica de construção tendencialmente vertical (afastando-se da
dualidade tenor/soprano de quinhentos para uma nova dualidade, baixo/soprano) e um
universo diferente, mais contrapontístico, com entradas sucessivas das vozes, Melgaz
recorre a um cromatismo intenso das linhas melódicas, resultando numa paleta variada de
harmonias expressivas tão apropriadas ao pathos contido no texto sacro.
O segundo período do barroco musical português corresponde, grosso modo, à primeira metade do século XVIII. Marcado pelo esforço continuado de modernização
estruturante das artes, encetado por D. João V [1689-1750], não pode ser dissociado de
três medidas régias que iriam influenciar a vida musical portuguesa até ao dealbar do século
XIX: a criação de uma estrutura de ensino da mais alta qualidade, adequada à competente
formação de músicos portugueses, o Seminário da Patriarcal, fundado por Alvará Régio
de 9 de Abril de 1713; e o envio de bolseiros régios para Roma, a fim de se aperfeiçoarem
na sua arte; e a incorporação maciça de cantores e instrumentistas estrangeiros.
A contratação de Domenico Scarlatti [1685-1757] para o cargo de compositor régio,
em 1719, deve ser entendida no contexto anteriormente descrito. Por um lado, o prestígio
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notas ao programa
50
internacional do soberano estava em causa (Scarlatti era o mestre da Cappella Giullia, a
Capela Pontifícia), mas, por outro, assegurava-se a colaboração de um jovem compositor,
conhecedor da linguagem musical italiana e, concretamente, romana, inserindo-se, assim,
nos desígnios joaninos. Sobre a permanência de Scarlatti em Portugal, envolta numa certa
penumbra, mas parcialmente descortinada com sagacidade por João Pedro d’Alvarenga,
sabemos que chegou a Lisboa em Novembro de 1719, para ser “il Capo, e direttore di
tutta la […] musica della Patriarcale”. Como compositor régio, e controlando o aparelho
da produção musical da corte joanina, Scarlatti foi, se não o responsável pela introdução
na Patriarcal do repertório polifónico romano e de obras exclusivas da Cappella Giulia
(o Miserere de Allegri, por exemplo), o garante da sua correcta interpretação.
A adopção de modelos composicionais e práticas musicais de origem italiana pela
Capela Real permitiram o afastamento de modelos eminentemente ibéricos (como o
vilancico religioso, banido do culto em todas as igrejas do país por ordem régia de 1723).
É no seio desta mudança, no contexto da música sacra em Portugal, que se detectam dois
modelos dominantes: o stile pieno, que seguia o idioma contrapontístico de Palestrina,
embora a combinação das linhas polifónicas de igual peso cedesse o lugar a um processo
gradual de escrita baseado em progressões harmónicas, valorizando o movimento melódico
e texturas homofónicas, em detrimento do contraponto; e o stile concertato, que absorvera o
virtuosismo vocal da música dramática.
Foi ainda neste peculiar contexto que emergiu a obra de dois bolseiros do Magnânimo,
Francisco António de Almeida e António Teixeira, os quais, tal como Carlos Seixas, se
mostraram dignos ilustradores do universo musical joanino.
Nascido em Lisboa, em 1707, António Teixeira seguiu para Itália, na qualidade de
bolseiro, com apenas 10 anos, tendo permanecido em Roma até Junho de 1728. Ao
regressar a Lisboa foi apontado como cantor da Capela Real e examinador oficial de
cantochão da diocese de Lisboa. Presume-se que tenha morrido ca. 1759.
Os seus responsórios do Ofício de Matinas para a festividade de São Vicente, escritos para
4 vozes e baixo contínuo, apresentam a mesma estrutura formal, dividida em quatro partes
(à excepção do terceiro, com cinco partes): uma secção inicial, de carácter introdutório, de
escrita fundamentalmente vertical, na relativa menor, conduz à presa, a segunda secção, um
fugato, de discurso musical imitativo, na tónica, modelando à relativa maior, que funciona
como um refrão; segue-se o verso, para duas vozes solistas, na relativa maior, que conduz
à repetição da presa.
José António Carlos de Seixas foi um dos mais notáveis compositores portugueses da
primeira metade do século XVIII. Apesar de nunca ter saído de Portugal, ao contrário de
alguns dos seus contemporâneos, como Francisco de Almeida ou António Teixeira, teve
oportunidade de familiarizar-se com as novas correntes musicais, essencialmente, através
do contacto com os diversos músicos da Capela Real.
Nascido em Coimbra em 1704, desempenhou as funções de organista da Sé de Coimbra,
por morte do pai, antigo titular, entre 1718 e ca. 1722, ano em que se mudou para Lisboa,
onde viria ocupar cargo semelhante, desta feita, na Capela Real. Professor de cravo, ficou
famoso pelas sonatas para instrumento de tecla que, a acreditar nos testemunhos da época,
notas ao programa
ultrapassavam as 700. Nobilitado com a Ordem de Cristo, honra inaudita entre músicos
deste período, morreu em Lisboa em 1742.
Infelizmente, a sua obra musical é inconstante. Se, por um lado, temos a graciosidade
do responsório Hodie Nobis, num virtuosismo musical que acentua a prosódia do texto,
por outro deparamo-nos com a simplicidade do discurso de outras obras como, por
exemplo, a antífona Verbum Carum.
Quanto a Francisco António de Almeida, José Mazza, no Diccionario Biographico de
Musicos (ca. 1780), chama-lhe “organista da Patriarcal e famoso compositor”. Por outras
fontes da época é tratado apenas por Francisco António e citado como compositor de
música para as populares representações de Presépios que se faziam na Mouraria. Sabe-se que, tendo nascido ca. 1702, foi enviado para Roma em 1716/1717, onde permaneceu
por alguns anos. Da sua passagem por Roma ficou um retrato caricatural do famoso Pier
Leone Ghezzi [1674-1755], que se encontra na Biblioteca Apostólica Vaticana com a
seguinte legenda: “Signor Francesco Portoghese il quale è venuto in Roma per studiare, e
presentemente è un bravissimo compositore di Concerti, e di musica da Chiesa “.
Deduz-se que tenha regressado a Lisboa dois meses antes de António Teixeira, em
Abril de 1728, pois a 22 do dito mês executou-se no palácio do cardeal D. João da Mota
[1691-1747], Secretário de Estado do Reino, a serenata Il Trionfo della Virtù, com libreto
de D. Luca Giovine e música de sua autoria. Seguiu-se o scherzo pastorale Il Trionfo d’Amore,
a 27 de Dezembro de 1729, no Paço da Ribeira. Nos anos ulteriores compôs Gl’incanti
d’Alcina, cantada a 27 de Dezembro de 1730, no Paço da Ribeira (27 de Dezembro era a
festa onomástica de D. João V), La Spinalba ovvero il Vecchio Mato, no Carnaval de 1739, e
L’Ippolito, uma serenata, cantada no Teatro do Forte do Paço da Ribeira a 4 de Dezembro
de 1752. Presume-se que tenha morrido no terramoto de 1755.
Almeida foi, sem margem de dúvidas, o maior compositor português da primeira
metade do século XVIII, pela fluidez e requinte do discurso musical, e aquele que melhor
incorporou na sua obra o idioma musical romano em todo o seu esplendor. A harmonia do
contraponto, bem como a beleza das linhas vocais apontam, em certa medida, para além
do Barroco, num exercício de genialidade musical, raro entre nós.
josé bruto da costa
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textos
salve regina
in festo s. vincentii. responsorium ii
Salve, Regina, Mater misericordiæ,
vita, dulcedo, et spes nostra, salve.
ad te clamamus
exsules filii Evæ,
ad te suspiramus, gementes et flentes
in hac lacrimarum valle.
Eia, ergo, advocata nostra, illos tuos
misericordes oculos ad nos converte;
et Iesum, benedictum fructum ventris tui,
nobis post hoc exsilium ostende.
O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria.
Si jubes Pater sancte, responsis judicem æggrediar:
jam tibi fili, divini verbi curam commiseram.
Nunc quoque profide qua astamus, responsa
committo.
Magnam jam pridem cum laude, et crediti mihi
populi utilitate, meo munere fungebatis.
in jejunio et fletu
In jejunio et fletu orabant sacerdotes: Parce,
Domine, parce populo tuo, et ne des hereditatem
tuam in perditionem.
in festo assumptionis b.m.v
responsorium ii
Sicut cedrus exaltata sumi n Líbano, et sicut
cypressus in monte Sion, quasi myrrha electa.
Dedit suavitatem odoris.
Et sicut cinnamomum et balasamum aromzans.
in festo s. vincentii. responsorium i
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Sacram beati Vincentii martyris solemnitatem
devote celebremus, cum invictus Christi athleta
insignem victoriæ palmam intulit cælo.
Et bravium salutis æternæ comprehendens corona
justitiæ recepit.
Bonum certamen certavit, cursum consummavit
fidem servavit.
lamentatio prima in sabbato sancto.
a 4 concertata
De lamentatione Jeremiæ Prophetæ.
Heth.
Misericordiæ Domini quia non sumus consupti;
quia non defecerunt miserationes ejus.
Heth.
Non vidiluculo, multa est fides tua.
Heth.
Pars mea Dominus, dixit anima mea: propterea
exspectabo eum.
Teth.
Bonus est Dominus sperantibus in eum, animæ
querenti ilum.
Teth.
Bonum est præstolari cum silentio salutare Dei.
Teth.
Bonum est viro cum portaverit jugum ab
adolescentia sua.
Jod.
Sedebit solitarius, et tacebit: quia levavit super se.
Jod.
Ponet in pulvere ossum, si forte spes.
Jod.
Dabit percutienti se maxilam, saturabitur
opprobriis.
Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum.
textos
o quam suavis
O quam suavis est, Domine, Spiritus tuus, qui ut
dulcedinem tuam in filios demonstrares, pane suavissimo de caelo praestito, esurientes reples bonis,
fastidiosos divites dimittens inanes
responsorio a 4 concertato
per la festa de st.º antonio
Si quæris miracula, mors, error, calamitas, dæmon
lepra fugiunt: ægri surgunt sani.
Cedunt mare vincula membra, resque perditas,
petunt et accipiunt juvenes et cani.
Pereunt pericula, sessat et necessitas: narrent hi qui
sentiunt, dicant paduani.
Gloria Patri et Filio, et Spiritui Sancto.
motetto a 4 concertato
in commune unius martyris
Justus ut palma florebit, sicut cedrus quæ in
Libano est, multiplicabitur.
responsório a 5 para o natal
Hodie nobis cælorum Rex de Virgine nasci
dignatus est.
Ut hominem perditum ad celestia regna revocaret:
Gaudet exercitus angelorum: quia salus æterna
humano generi apparuit.
Glória in excelsis Deo, et in terra pax hominibus,
bonæ voluntatis. Glória Patri, et Filio et Spiritui
Sancto.
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igreja matriz de santo ildefonso
almodôvar
54
A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo,
e depois bispo da mesma cidade, que viveu no século VII) como orago da paróquia
de Almodôvar constitui um interessante reflexo da presença, no Baixo Alentejo, da
espiritualidade monástico-militar, difundida pelos freires da Ordem de Avis, que seguia a
Regra de São Bento. Porém, a primitiva igreja matriz da vila, pertencente em tempos ao
padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Esta teve
aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três beneficiados. Embora seguindo
outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários preservaram a devoção
a Santo Ildefonso.
O edifício actual, traçado em 1592 pelo arquitecto Nicolau de Frias, constitui um
exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (hallenkirche), com três naves
de quatro tramos cobertas por abóbadas, revelando grande sentido de unidade espacial
e excelente acústica. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo da composição dos
alçados e o destaque outorgado ao tratamento dos pormenores, como as seis colunas
toscanas em que assentam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do sentido
de depuração classicizante atingida, em finais do século XVI, por este modelo, fiel à
austeridade preconizada pela Contra-Reforma.
D. João V determinou uma remodelação parcial do monumento, obra descrita pelo
P.e Luís Cardoso no Diccionario Geografico (1747): “porque a capela-mor se achava
arruinada, e por sua pequenhez fica imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo
desta comarca, foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência,
e Ordens, se derrubasse, e fizesse regular ao restante da igreja, e se acrescentasse tribuna,
que de presente se anda fazendo”. Estas obras vieram a ser completadas com a encomenda,
à oficina do mestre eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha
dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das diversas confrarias e
irmandades da matriz.
Nos séculos XIX e XX realizaram-se outras intervenções de vulto que modificaram
substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de
(pormenor) | Escola portuguesa | Ca. 1720
Almodôvar, igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição.
IV. Nossa Senhora da Conceição
1950. Data de então o painel mural do pintor Severo Portela Jr. [1898-1985], artista
profundamente ligado a Almodôvar, figurando o Baptismo de Cristo no Jordão, que
ornamenta o baptistério renovado.
A paróquia de Santo Ildefonso conserva na sua igreja um importante acervo de alfaias
litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição da
mesma vila, que pertenceu à Ordem Terceira de São Francisco.
josé antónio falcão
bibliografia fundamental: Luiz Cardoso, Diccionario Geografico, ou Noticia Historica de todas as
Cidades, Villas, Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as Cousas
Raras, que nelles se encontraõ, assim Antigas, como Modernas, I, Lisboa, Na Regia Officina Sylviana, e da Academia
Real, 1747; José Maria Afonso Coelho, Foral de Almodôvar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de
Almodôvar, 2004; Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620),
Lisboa, Editorial Presença, 2002.
55
!
7 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30
igreja matriz de santo ildefonso
almodôvar
ludovice ensemble
!
la dévotion du grand siècle
Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV
FRANÇOIS COUPERIN (1668-1733)
5ème couplet du Gloria in Excelsis
[accommodé pour une flûte allemande, un violon, la basse de viole et la basse continue]
MARC-ANTOINE CHARPENTIER (1643-1704)
Troisième Leçon de Ténèbres du mercredi saint pour une basse, H. 141
FRANÇOIS COUPERIN
6ème couplet du Gloria in Excelsis
MARC-ANTOINE CHARPENTIER
Troisième Leçon de Ténèbres du mercredi saint pour une basse, H. 142
FRANÇOIS COUPERIN
7ème couplet du Gloria in Excelsis
MARC-ANTOINE CHARPENTIER
Troisième Leçon de Ténèbres du vendredi saint pour une basse, H. 143
LOUIS COUPERIN (ca. 1626-1661)
Fantasie de Violes – Simphonie – Simphonie
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NICOLAS BERNIER (1665-1734)
Motet pour tous les Temps à voix veule avec symphonie
“Venite, exultemus domino” (Psaume 94)
MARC-ANTOINE CHARPENTIER
Prélude, Menuet & Passepied devant l’Ouverture H.520 – Sarabande pour la Paix H.487–
Simphonie à 3 flutes ou violons H.529 – Trio de Mr. Charpentier H.548b
ANDRÉ CAMPRA (1660-1744)
III Motet a voix seule et deux dessus […] “Laudate Dominum de Cælis” (Psaume 148)
!
58
notas biográficas
ludovice ensemble
Hugo Oliveira, basse-taille
Joana Amorim, flûte traversière
Bojan Cicic, dessus de violon
Romina Lischka, basse de viole
Fernando Miguel Jalôto, orgue
O Ludovice Ensemble é um grupo de Música de Câmara especializado na interpretação
de Música Antiga. Sedeado em Portugal, conta com a colaboração de artistas de várias
nacionalidades, dotados de formação específica em “Práticas Históricas de Interpretação”.
O nome do ensemble é uma homenagem ao arquitecto e ourives alemão Johann Friedrich
Ludwig [1673-1752], arquitecto-mor d’el-rei D. João V, um dos elementos centrais
na reforma artística, cultural e social efectuada por este monarca para a “europeização”
da corte portuguesa. Criado em 2004 por Fernando Miguel Jalôto e Joana Amorim, o
Ludovice Ensemble tem como objectivo interpretar e divulgar repertório de câmara dos
séculos XVII e XVIII.
PRINCIPAIS CONCERTOS E ESPECTÁCULOS.
2008: “L’Apothéose de Corelli: A influência de Corelli na Música Europeia do Início
do Século XVIII” – Festival Música em Leiria; “La Dévotion du Grand Siècle: Música
Sacra Francesa no Tempo de Louis XIV”, Solista: Hugo Oliveira (barítono) – Festival
Internacional de Música de Alcobaça “Cistermúsica”. 2007: “Sonates et Concerts, et Autres
Airs à Danser et à Jouer, pour les Flûtes, Violes et Violons”, Solista: Akiko Veaux (Dança
Barroca) – Festival “Encontros do Espírito Santo” (Universidade de Évora); “Musica Lætitiæ
Comes Medicina Dolorum: Música e Medicina no Antigo Regime” – Auditório do Hospital
Geral de Santo António, Porto; Cantatas e Concerts de J.-Ph. Rameau, Solista: Hugo Oliveira
59
notas biográficas
(barítono) – Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) e Universidade de Évora.
2006: Suites, Concerts e Sonatas do Barroco Francês – Encontros de Música Antiga de
Loulé; Cantatas e Concerts de J. B. Stuck e de J.-Ph. Rameau; Solista: Orlanda Velez Isidro
(soprano) – Folle-Journée/Festa da Música, Centro Cultural de Belém. 2005: “À la Venue
de Noël… Advento e Natal na França do século XVIII”, Solista: Hugo Oliveira (barítono) –
Ciclo de Música Sacra de Viana do Castelo; Cantatas de A. Campra e K. Van Blankenburg,
Solista: Hugo Oliveira (barítono) – Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa).
“Une Fête Galante”, inspirado na obra de Antoine Watteau, Solista: Orlanda Velez Isidro
(soprano) – Festival Internacional de Música de Mafra.
HUGO OLIVEIRA Barítono
60
Nascido em Lisboa (1977), Hugo Oliveira iniciou a sua formação musical com seis
anos no Instituto Gregoriano de Lisboa. É licenciado em Canto pela Escola Superior
de Música de Lisboa, tendo estudado com Helena Pina Manique e Luís Madureira.
Enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian prosseguiu os estudos no Real
Conservatório de Haia (Holanda), onde foi aluno de Jill Feldman e Michael Chance.
Para além da especialização no repertório barroco, estende a sua flexibilidade como cantor
ao repertório clássico/romântico e contemporâneo. A convite do grupo inglês Hilliard
Ensemble estreou-se como solista, em 1997, na obra Passio, de Arvo Pärt ( Jesus). Tem
colaborado com a Orquestra Sinfónica de Londres, a Orquestra Filarmónica da Radio
(Holanda), a Orquestra Gulbenkian, Les Concerts des Nations, o Schöenberg Ensemble,
a Orquestra Sinfónica de Düsseldorf, a Ebony Band, o Remix Ensemble e o Ricercar
Consort, entre outras formações. Apresentou-se em algumas das mais importantes salas
nacionais e europeias (Amesterdão, Londres, Paris, Madrid, Barcelona) e em vários
festivais em Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Bélgica e Alemanha.
Entre outros maestros, cantou sob a direcção de Michel Corboz, Jordi Saval, Jaap
van Zweden, Marcus Creed, Gennadi Rozhdestvensky, Laurence Cummings, Christina
Pluhar, Stefan Asbury, Reinbert de Leeuw, François Xavier Roth, Martin Andrè, Pierre-André Valade, Werner Herbers, Nigel North e Richard Gwilt. Dentro do vasto repertório
interpretado destacam-se obras como Paixão segundo São Mateus, Paixão segundo São João,
Paixão segundo São Marcos e Oratória de Natal, de J. S. Bach, Vespro della Beata Vergine, de C.
Monteverdi, Invitatórios e Responsórios de Natal, de Casanoves, Paixão segundo São Mateus,
de Schütz, Messias, Nisi Dominus e Dixit Dominus, de Händel, Christus e Lauda Sion, de
Mendelssohn-Bartholdy, Missa Nelson, de Haydn, Requiem, Missa em Dó maior e Missa da
Coroação, de W. A. Mozart, Requiem, de Duruflé e Fauré, Requiem, de Brahms, Petite Messe
Solennelle, de Rossini, Pulcinella, de Igor Stravinsky, Die Legende von der Heiligen Elisabeth,
de Liszt, Missa das Crianças, de J. Rutter, e Jetzt immer Schnee, de Gubaidulina. Interpretou
também, em estreia absoluta, a Cantata Verbum Caro, de Nuno Corte-Real.
No domínio da Ópera interpretou As Bodas de Fígaro (Fígaro), de Mozart, The Triumph
of Time and Truth (Tempo), de Händel, Venus e Adonis (Adónis), de John Blow (Adónis),
notas biográficas
Les Malheurs d’Orphée, de D. Milhaud (Orphée), Melodias Estranhas, de António Chagas
Rosa (Damião de Góis) e comédia madrigalesca La barca di Venetia per Padova, de A.
Banchieri, sob a direcção de Gabriel Garrido. Enquanto membro do Estúdio de Ópera
do Porto – Casa da Música participou em produções como Joaz (Azaria e Jojada), de
Benedetto Marcello, L’Ivrogne Corrigé (Lucas), de Gluck, e Frankenstein!, de Heinz-Karl Gruber (coreografia de Paulo Ribeiro). No âmbito do projecto Académie Baroque
Européenne de Ambronay (2004) colaborou na ópera Les Arts Florissants (La Discorde),
de Marc-Antoine Charpentier, dirigida por Christophe Rousset.
FERNANDO MIGUEL JALÔTO Cravo e Direcção Musical
Fernando Miguel Jalôto estudou Cravo no Conservatório de Música do Porto e no
Departamento de Música Antiga e Práticas Históricas de Interpretação do Conservatório
Real da Haia (Países Baixos). Completou a Licenciatura (2002) e o Master Degree (2005)
sob a orientação de Jacques Ogg. Frequentou Master-Classes com Gustav Leonhardt, Ilton
Wjuniski, Laurence Cummings e Ketil Haugsand. Estudou órgão barroco e clavicórdio.
Foi bolseiro do Centro Nacional de Cultura. É Mestre em Música pela Universidade de
Aveiro (2006).
Enquanto aluno do Conservatório Real tocou sob a direcção de J. ter Linden, E.
Wallfish, T. Koopman, Ch. Pluhar. É membro da Orquestra Barroca Divino Sospiro desde
2005. Com este agrupamento apresenta-se regularmente sob a direcção de E. Onofri, R.
Alessandrini, Ch. Pluhar, A. Bernardini e V. Ghielmi. É frequentemente convidado por
esta orquestra para se apresentar como solista – Concertos de Carlos Seixas; J. S. Bach;
J. Ch. Bach/W. A. Mozart – nomeadamente nos festivais de Île-de-France, Ambronay
e “La Folle Journée” (França); no Festival Internacional de Varna (Bulgária); no
“Febrero Lírico” do Real Coliseo de San Lorenzo del Escorial (Espanha); nos festivais
internacionais de Mafra e Leiria; na Festa da Música no Centro Cultural de Belém; nos
Encontros de Música Antiga de Loulé; e em várias residências no Centro Cultural de
Belém.
Apresentou-se com a Lyra Baroque Orchestra (Minnesota) e a Real Escolania
de San Lourenço d’El Escorial, sob a direcção de Jacques Ogg, tendo gravado com
estes agrupamentos um CD para a editora espanhola Glossa; e com a Orquestra da
Radiotelevisão Norueguesa, sob a direcção de R. Goodman. Participou, sob a direcção de
C. Rousset, numa produção de duas óperas de Marc-Antoine Charpentier pela Académie
Baroque Européenne de Ambronay, incluindo 12 récitas em alguns dos principais teatros
de ópera de França e Espanha, a gravação de um DVD para a editora Armide e gravações
integrais ao vivo para os canais de televisão ARTE e Mezzo. Sob a direcção de Wim
Becu tocou em 2006 as Musikalische Exequien, de Schütz, em três concertos na Bélgica
e, em 2008, as Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, em concertos na Bélgica e na
Holanda. Em 2007 e 2008 apresentou-se como solista com a Orquestra Barroca da Casa
da Música (Porto), dirigida por L. Cummings, trabalhando ainda com este agrupamento
61
notas biográficas
sob a direcção de F. Biondi e H. Christophers. Participou recentemente numa produção da
ópera As Bodas de Fígaro com a Orquestra Camerata Academica Salzburg, sob a direcção
de M. Brabbins.
É co-fundador do Ludovice Ensemble, desempenhando as funções de director artístico.
Este agrupamento apresentou-se na Festa da Música (CCB), nos Festivais Internacionais
de Mafra, Leiria, Alcobaça e Loulé, e concertos em Évora (Universidade e Biblioteca),
Museu Calouste Gulbenkian (Lisboa), Porto e Viana do Castelo.
!
62
notas ao programa
la dévotion du grand siècle
Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV
O Petit Motet é uma forma musical francesa que conheceu o seu apogeu entre
1670 e 1730, aproximadamente. Desenvolveu-se a partir do Motetto Concertato italiano
seiscentista e da aplicação à música sacra dos princípios da monodia acompanhada e da
Seconda Prattica, praticados no Norte de Itália ao redor de 1600. Os grandes cultores do
Petit Motet foram os compositores mais progressistas, que procuravam revitalizar com
a música francesa, sem no entanto a desvirtuar das suas qualidades. Para conseguir tal
renovação, acreditavam que se devia procurar atingir um subtil equilíbrio entre as novas
tendências assimiladas a partir da música italiana – tendo como modelos as obras de Rossi,
Carissimi, Stradela e Corelli – e o estilo francês, tal como este fora codificado por Jean-Baptiste Lully em meados do século XVII.
Todos os compositores representados no programa que comentamos participaram
activamente neste movimento de “reunião dos gostos” (Goûtes-Réunis): Marc-Antoine
Charpentier estudou em Roma; Bernier e Campra dedicaram-se sobretudo à reforma
da música vocal – dramática, sacra e de câmara; François Couperin escreveu as primeiras
sonatas “a tré” em França; Louis Couperin, pertencente a uma geração anterior, havia dado
já o mote a este ideal, ao estabelecer contacto (e deixar-se fortemente influenciar) com
Johann Jakob Froberger, cravista da corte imperial de Viena e antigo aluno de Girolamo
Frescobaldi em Roma.
O Petit Motet é escrito normalmente para 1 ou 2 vozes com acompanhamento de
baixo contínuo; a esta formação são adicionados com alguma frequência dois dessus
instrumentais (violons ou flûtes). Caracteriza-se, pot conseguinte, pelo pequeno efectivo
vocal e instrumental, mas também pela sua concisão formal, duração breve e predilecção por
textos litúrgicos ou devocionais de carácter predominantemente meditativo, contemplativo
ou plangente. A escrita vocal e instrumental empregue raramente assume um carácter
virtuoso e extrovertido, preferindo antes uma evocação sensível dos sentimentos mais
íntimos e delicados. O Petit Motet é assim a forma musical mais adequada à expressão de
uma devoção e piedade intensas, mas muito pessoais, reflectindo uma relação emocional e
individual com Deus. Não deixa, contudo, de possuir uma extraordinária capacidade de
resposta a diferentes necessidades litúrgicas, devocionais ou mesmo de “entretenimento
espiritual”.
Na Liturgia Galicana, por influência da prática levada a cabo na Capela Real de
Versalhes, mas encontrando variantes particulares nas várias catedrais, paróquias,
colegiadas e conventos, o Petit Motet encontrava lugar durante a Eucaristia, em particular
na Consagração e na Elevação das Espécies, sendo por isso conhecido como Elévation.
63
notas ao programa
64
Estas obras de carácter eucarístico eram vulgarmente utilizadas nas adorações diárias do
Santíssimo Sacramento, na devoção das Quarenta Horas e nas festividades do Corpus
Christi. Os Petits Motets podiam ser escritos sobre um texto litúrgico (como a antífona
O Salutaris Hostia), mas com mais frequência eram compostos sobre poesias neo-latinas
não litúrgicas.
A “Prière pour le Roy” ou Dominum Salvum costumava ser escrita sob a forma de
Petit Motet. Existe ainda um número substancial de Petits Motets com textos bíblicos ou
litúrgicos: os salmos, as quatro antífonas marianas, os cânticos bíblicos neo-testamentários
(Magnificat, Nunc Dimitis, Benedictus) e, especialmente, as Lamentações de Jeremias (Leçons
de Ténèbres).Todos eles permitiam uma aplicação muito vasta em diversos contextos, embora
a sua principal utilização ocorresse na Recitação das Horas Litúrgicas. Nas comunidades
paroquiais mais pequenas, tal como nos conventos e nos mosteiros, o uso de um ou dois
Petits Motets dava particular brilho à oração de Vésperas, contrastando com o Cantochão
medido e harmonizado em Faux-Bourdon (segundo a prática francesa da época) ou com
a música de órgão. Nas catedrais e capelas principescas o Petit Motet assumia sobretudo o
papel de alternativa íntima, recatada e quase sensual à grandiloquência e espectacularidade
dos Grands Motets com solos, coros e faustosos acompanhamentos instrumentais.
Nas Horas menos solenes, como as Completas e as Matinas, o Petit Motet era ainda
mais largamente utilizado. Durante a Semana Santa verificava-se em França um fenómeno
muito peculiar, motivado – de forma paradoxal – simultaneamente pela devoção e pelo
mundanismo, pela piedade e pela coquetterie. Toda a população acorria em massa às
principais casas religiosas, desde a família real até aos mais humildes súbditos, para ouvir
cantar as Matinas do Tríduo, também conhecidas como Trevas (Ténèbres), frequentemente
executadas pelos melhores cantores da Académie Royal de Musique (Ópera de Paris). Estas
cerimónias decorriam inicialmente nas primeiras horas da madrugada de Quinta-Feira,
Sexta-Feira e Sábado Santos; todavia, para permitir a assistência de um maior número
de fiéis, há muito que a Igreja permitira a sua celebração antecipada, ao entardecer do
dia anterior.
As Matinas do Tríduo consistiam numa sucessão de nove leituras intercaladas com
salmos e responsórios; em cada dia três das leituras (lições) eram extraídas do Livro das
Lamentações, atribuído ao profeta Jeremias, versando sobre a destruição de Jerusalém e do
Templo, aquando da deportação para a Babilónia. As cinco Lamentações constituem uma
das maiores obras poéticas da Bíblia, escritas num estilo intenso, dramático, apaixonado,
pleno de contrastes e imagens fortes, alternando súplicas, lamentos, momentos de raiva,
ira, submissão e desespero – uma combinação bem ao agrado do gosto seiscentista.
Com excepção da última, cada versículo das primeiras quatro Lamentações iniciava-se
ordenadamente por uma das letras do alfabeto hebreu. Estas letras foram mantidas por
São Jerónimo na tradução integral da Bíblia para Latim (Vulgata). Desde a Idade Média
que cada letra era ornada por uma longa entoação, o que deu origem aos elaborados
melismas que caracterizam a maior parte da Leçons de Ténèbres. As nove lições podiam ser
cantadas, mas era mais comum musicar-se apenas a última lição de cada dia. O canto das
Leçons de Ténèbres, porém, era apenas uma parte – ainda que essencial – de um elaborado
notas ao programa
cerimonial cénico, que envolvia a extinção progressiva das nove luzes de um candelabro
específico, bem como outros gestos e rituais plenos de simbolismo.
A partir de 1700, começaram a ser publicados com regularidade volumes de Petits
Motets destinados a suprir a música para diferentes utilizações litúrgicas nas diferentes
comunidades (catedrais, capelas, conventos, paróquias, etc.). A intensa eloquência dos
textos, aliados a uma escrita musical extremamente cuidada e sensível e à modernidade
do estilo, contribuíram para a sua grande disseminação. Assim, um uso complementar
dos Petits Motets foi a recreação privada e edificante, sobretudo em convívios e encontros
realizados em conventos ou em casas de famílias mais devotas. Assumiam assim uma
função muito próxima das Cantatas profanas – elas mesmo por vezes dotadas de uma
moral edificante – e musicalmente os estilos tendiam a aproximar-se (até porque, como
vimos, os compositores de ambos os géneros eram os mesmos).
As Leçons de Ténèbres de Marc-Antoine Charpentier hoje apresentadas são um dos ciclos
menos conhecidos deste compositor. O autor escreveu nove séries. Este ciclo encontra-se redigido num estilo sóbrio e despojado, predominantemente silábico e declamativo,
e dispensa quase por completo a ornamentação das letras hebraicas. A atenção foca-se
sobretudo no conteúdo dramático do texto e na interligação entre as melodias vocais e os
breves interlúdios instrumentais. Foi provavelmente escrito para os Jesuítas do Colégio
parisiense Louis-le-Grand ou para a Sainte-Chapelle, onde Charpentier foi mestre de
capela. Nicolas Bernier sucedeu-lhe nesse posto, que acumulava com outras funções como
mestre-capela de várias instituições religiosas, entre elas a grande e rica paróquia de Saint-German-l’Auxerois. O salmo 94 constitui parte essencial do Invitatório, a primeira
oração do dia. Antecedendo as Matinas, era recitado (ou cantado) todos os dias do ano,
com excepção dos tempos penitenciais. André Campra foi mestre-capela da catedral de
Nôtre Dame de Paris, ainda que se tenha distinguido sobretudo no campo da música
operática. O jubiloso salmo 148 curiosamente não inclui o “Aleluia” inicial, talvez para
permitir a sua utilização no maior número possível de ocasiões, e não num tempo ou
cerimonial litúrgico particular.
Parte das obras instrumentais são extraídas maioritariamente das Missas de Órgão
de François Couperin. Encontramo-las aqui numa versão instrumental que corresponde
não só às sugestões referidas nos prefácios de várias colecções de obras organísticas do
período mas também ao exemplo de Charpentier, que legou uma esplendorosa Messe pour
les Instruments au lieu des Orgues. Estas versões instrumentais têm a virtude de revelarem a
escrita colorida de Couperin, profundamente influenciada pelos trios italianos: as Missas
de Órgão são contemporâneas das suas primeiras sonatas em trio, representando primeiros
“ensaios” neste campo, mas evidenciam, no entanto, outras “experiências”, como o uso de
uma voz solística no registo médio, equilibrando a textura e possibilitando um tratamento
contrapontístico mais complexo. O mesmo tipo de escrita surge já nas Fantasias – genuinamente escritas para conjuntos instrumentais – do tio de François, Louis, organista em
Saint-Gervais de Paris e gambista na corte. Finalmente, de Charpentier apreciamos
uma série de pequenas peças em trio com proveniências várias e nem sempre claras,
umas profanas e outras sacras (como a H.529), agora combinadas de forma a evocarem
65
notas ao programa
as Symphonies de Mr. Charpentier, copiadas no atelier do copista régio Philidor e hoje
irremediavelmente perdidas.
fernando miguel jalôto
!
66
textos
Troisième Leçon du mercredi saint
JOD Manum suam misit hostis ad omnia
desiderabilia ejus quia vidit gentes ingressas
sanctuarium suum de quibus præceperas ne intrarent
in ecclesiam tuam.
CAPH Omnis populus ejus gemens et quærens
panem; dederunt pretiosa quæque pro cibo ad
refocilandam animam; vide Domine considera
quoniam facta sum vilis.
LAMED O vos omnes qui transitis per viam
adtendite et videte si est dolor sicut dolor meus
quoniam vindemiavit me ut locutus est Dominus
in die iræ furoris sui.
MEM De excelso misit ignem in ossibus meis et
erudivit me expandit rete pedibus meis convertit
me retrorsum posuit me desolatam tota die mærore
confectam.
NUN Vigilavit jugum iniquitatum mearum in
manu ejus convolutæ sunt et inpositæ collo meo
infirmata est virtus mea dedit me Dominus in
manu de qua non potero surgere.
Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum.
troisième leçon du jeudi saint.
ALEPH Ego vir videns paupertatem meam in
virga indignationis ejus;
Me minavit et adduxit in tenebris et non in lucem;
Tantum in me vertit et convertit manum suam tota
die.
BETH Vetustam fecit pellem meam et carnem
meam contrivit ossa mea;
Ædificavit in gyro meo et circumdedit me felle et
labore;
In tenebrosis conlocavit me quasi mortuos
sempiternos.
GHIMEL Circumædificavit adversum me ut non
egrediar adgravavit conpedem meam;
Sed et cum clamavero et rogavero exclusit orationem
meam;
Conclusit vias meas lapidibus quadris semitas meas
subvertit.
Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum.
troisième leçon du vendredi saint.
Incipit oratio Jeremiæ prophetæ:
Recordare Domine quid acciderit nobis intuere et
respice obprobrium nostrum;
Hereditas nostra versa est ad alienos domus nostræ
ad extraneos;
Pupilli facti sumus absque patre matres nostræ
quasi viduæ;
Aquam nostram pecunia bibimus ligna nostra
pretio conparavimus;
Cervicibus minabamur lassis non dabatur requies;
Ægypto dedimus manum et Assyriis ut saturaremur
pane;
Patres nostri peccaverunt et non sunt et nos
iniquitates eorum portavimus;
Servi dominati sunt nostri non fuit qui redimeret
de manu eorum;
In animabus nostris adferebamus panem nobis a
facie gladii in deserto;
Pellis nostra quasi clibanus exusta est a facie
tempestatum famis;
Mulieres in Sion humiliaverunt virgines in
civitatibus Juda.
Jerusalem convertere ad Dominum Deum tuum.
psaume 94 (vulgata)
Venite exultemus Domino jubilemus Deo salutari
nostro;
Præoccupemus faciem ejus in confessione et in
psalmis jubilemus ei;
Quoniam Deus magnus Dominus et rex magnus
super omnes deos;
Quia in manu ejus fines terræ et altitudines
montium ipsius sunt;
67
textos
Quoniam ipsius est mare et ipse fecit illud et siccam
manus ejus formaverunt;
Venite adoremus et procidamus et ploremus ante
Dominum qui fecit nos;
Quia ipse est Deus noster et nos populus pascuæ ejus
et oves manus ejus;
Hodie si vocem ejus audieritis nolite obdurare corda
vestra;
Sicut in irritatione secundum diem temptationis
in deserto ubi temptaverunt me patres vestri
probaverunt me et viderunt opera mea;
Quadraginta annis offensus fui generationi illi et
dixi semper errant corde;
Et isti non cognoverunt vias meas ut juravi in ira
mea si intrabunt in requiem meam
psaume 148 (vulgata)
68
Laudate Dominum de cælis laudate eum in excelsis;
Laudate eum omnes angeli ejus laudate eum omnes
virtutes ejus;
Laudate eum sol et luna laudate eum omnes stellæ
et lumen;
Laudate eum cæli cælorum et aqua quæ super cælum
est;
Laudent nomen Domini quia ipse dixit et facta
sunt ipse mandavit et creata sunt;
Statuit ea in sæculum et in sæculum sæculi
præceptum posuit et non præteribit;
Laudate Dominum de terra dracones et omnes
abyssi;
Ignis grando nix glacies spiritus procellarum quæ
faciunt verbum ejus;
Montes et omnes colles ligna fructifera et omnes cedri;
Bestiæ et universa pecora serpentes et volucres
pinnatæ;
Reges terræ et omnes populi principes et omnes
judices terræ;
Juvenes et virgines senes cum junioribus laudent
nomen Domini;
Quia exaltatum est nomen ejus solius;
Confessio ejus super cælum et terram et exaltabit
cornu populi sui hymnus omnibus sanctis ejus filiis
Israël populo ad propinquanti sibi.
igreja matriz de nossa senhora da assunção
alvito
Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto n.º 29 904
(Diário do Governo de 16 de Maio de 1939)
A génese da igreja matriz de Alvito está associada a um acordo sobre a cobrança dos
respectivos dízimos que foi celebrado, em 7 de Março de 1262, entre D. Martinho I, bispo
de Évora, e o donatário da vila, Estêvão Anes, chanceler-mor e colaço (irmão de leite)
de D. Afonso III – e também genro do monarca, visto ter casado com uma sua filha
ilegítima, D. Maria Afonso. Mais tarde, em cédula testamentária de 1279, o fundador
legou o padroado da igreja ao convento da Santíssima Trindade, de Santarém, o que
motivaria novo ajuste com a diocese de Évora, subscrito pelo bispo D. Durando. No ano
seguinte estava em funções, como prior de Alvito, Fr. João Navarro, senhor desta igreja
e das de Vila Nova, Benalvergue e Oriola. A invocação primitiva da paróquia foi a de
Santa Maria, festejada no dia 15 de Agosto.
De meados do século XV em diante, a povoação conheceu um surto de progresso que
veio a culminar, em 1481, com a autorização dada por D. João II ao barão de Alvito, o
Doutor João Fernandes da Silveira, chanceler-mor e regedor das justiças, e à sua segunda
mulher, D. Maria de Sousa Lobo, senhora da terra, para edificarem o castelo. Terá sido
pelo mesmo período que se iniciou a reconstrução da igreja matriz, certamente com o
contributo decisivo do mecenato dos barões, a quem os trinitários permitiram erguer o
panteão familiar no cruzeiro, em posição de destaque. A capela do lado do Evangelho
ostenta, na chave, as armas dos Lobos da Silveira, enquanto a chave da que lhe fica
fronteira tem as armas dos Costas e dos Teixeiras. Supõe-se que as arcas ferais existentes
nestas capelas pertenceram, respectivamente, aos fundadores e a D. Fernando Afonso e
D. Catarina Teixeira, os pais de João Fernandes da Silveira. Após o arranque inicial, as
obras pararam alguns anos, devido a um litígio entre o bispo de Évora e a Ordem da
Santíssima Trindade acerca da plena jurisdição paroquial, recaindo sobre o edifício uma
ordem de demolição, que não chegou a ser cumprida. Foi já numa fase adiantada do
século XVI, durante o priorado de Fr. Jorge de Pombal, que se concluíram os trabalhos,
orientados pelo mestre de pedraria João Mateus.
O risco do edifício, atribuído a João de Arruda, mas que pode ter sido feito por um
dos seus filhos, Diogo e Francisco de Arruda, mestres das obras da comarca do Alentejo,
69
70
corresponde a uma requintada modalidade da arquitectura manuelina que ganhou
protagonismo no Alentejo central e tem como principal paralelo a igreja matriz da limítrofe
vila de Viana. Esta tipologia individualiza-se pela sólida imponência das três naves de
distintas alturas, cada uma com quatro tramos integralmente revestidos por abóbadas
de nervuras em estrela, partindo de arcos quebrados que se apoiam em meias-colunas
e pilares octogonais seccionados por anéis e descarregam em mísulas tronco-cónicas.
Nos capitéis e nos anéis prepondera uma elaborada decoração vegetalista, enquanto nos
fechos avultam os elementos heráldicos, de acordo com a sintaxe característica do Gótico
Final. O coro alto, assente num arco rebaixado e enquadrado por grelhas de tijoleira,
resulta de um acrescento tardio, mas é fiel ao espírito do lugar. No exterior sobressaem os
gigantes coroados por pináculos cónicos, intervalados por arcobotantes e fiadas de merlões
chanfrados. Em pontos estratégicos distribuem-se gárgulas de feição antropomórfica ou
com animais fabulosos, ao passo que outras mimetizam bocas de peças de artilharia, ao
gosto do Renascimento.
Tudo isto define uma sequência de ritmos e assimetrias que imprime singular movimentação ao poderoso conjunto, tornando bem explícito o diálogo do derradeiro Gótico
com a estética mudéjar, fortemente cultivada entre nós a partir dos meados do século XV,
que teve em D. Manuel um grande apreciador. O portal, de feição tardo-renascentista,
data já dos primórdios do reinado de D. João III, marcando a viragem para a estética
do Classicismo. A plástica renascentista esteve também presente no ciclo de pinturas
murais que ornamentaram o edifício, hoje destruídas ou ocultas sob grossas camadas
de cal. Cumpre destacar, entre os sectores preservados, o painel existente na capela
lateral, do lado do Evangelho, que figura Santiago Maior ladeado por São Sebastião
e Santo André, brilhante composição na técnica a secco, dos finais de Quatrocentos.
O realce conferido ao apóstolo das Espanhas evoca a passagem, por Alvito, de um segmento
do Caminho de Santiago que entrava no nosso país pelo termo de Serpa – e através do
qual circulavam, em direcção a Compostela, os peregrinos vindos da Andaluzia. A própria
existência de um importante hospital medievo, dedicado primeiro ao Espírito Santo e
depois a Nossa Senhora das Candeias, aponta no mesmo sentido.
Uma vez concluída a fábrica de raiz manuelina, sucessivas campanhas de obras
contribuíram para enriquecê-la. De 1553 e 1559 procedeu-se à reconstrução da capela-mor e da sacristia, por ordem do cardeal infante D. Henrique, arcebispo de Évora.
Nos inícios do século XVII introduziram-se os azulejos de caixilho azul e branco da
capela-mor e os retábulos das capelas laterais. À volta de 1647, data inscrita no fecho do
arco da capela do Rosário, efectuou-se a aplicação do vasto ciclo de azulejos de padrão
de tapete, pontuado por painéis figurativos que aludem a devoções típicas da época da
Contra-Reforma: o Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora do Rosário, Santo António,
São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e os fundadores da Ordem da
Trindade, São João da Mata e São Félix de Valois. O retábulo da capela-mor, notável
desinência da talha de “estilo nacional”, foi construído entre 1691 e 1703, beneficiando de
uma avultada esmola do arcebispo D. Fr. Luís da Silva Telles, grande mecenas das igrejas
da sua arquidiocese. Pouco depois remodelaram-se os pavimentos, com a colocação de
V. São Miguel a vencer o Demónio |
Escola de Gand | Século XVIII (primeira metade)
Alvito, igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção.
ladrilhos de mármore branco e negro e de um estradado na nave central. Em data muito
ulterior acrescentaram-se as duas capelas laterais mais afastadas do transepto.
A igreja matriz de Alvito possui um precioso núcleo de obras de arte móveis,
entre pinturas, esculturas e espécimes de artes decorativas, em particular ourivesaria e
têxteis, incluindo alfaias provenientes de casas religiosas do concelho, como o convento
franciscano de Nossa Senhora dos Mártires.
josé antónio falcão
Bibliografia fundamental: Luiz de Pina Manique, A Arte Manuelina na Arquitectura de Alvito:
Impressões e Apontamentos, Lisboa, [edição do autor], 1949 (2.ª ed., Alvito, Câmara Municipal de Alvito, 1983);
José Custódio Vieira da Silva, O Tardo-Gótico em Portugal: A Arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros Horizonte, 1989; J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV, Azulejaria em Portugal
no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; Túlio Espanca, Inventário Artístico
de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa,
Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Catarina Valença Gonçalves, A Pintura Mural no Concelho de
Alvito (Séculos XVI a XVIII), Alvito, Câmara Municipal de Alvito, 1999; Hermínia Vasconcelos Vilar,
As Dimensões de Um Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999.
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!
28 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30
igreja matriz de nossa senhora da assunção
alvito
concerto campestre
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sileti venti
Os Mestres do Barroco
ANTONIO VIVALDI (1678-1741)
Concerto em Fá Maior RV455
allegro giusto – grave – allegro
CARLOS SEIXAS (1704-1742)
Concerto em lá M
allegro – adagio – allegro/giga
GEORG PHILIPP TELEMANN (1681-1767)
Duplo concerto em lá menor TWV 52:a1
grave – allegro – dolce – allegro
GEORG FRIEDRICH HÄNDEL (1685-1759 )
Silete venti HWV 242
Symphonia: Silete venti
Aria: Dulcis amor, Jesu care
Accompagnato: O fortunata anima
Aria: Date serta, date flores
Presto: Aleluia
73
notas biográficas
concerto campestre
Joana Seara, soprano
Pedro Castro, oboé barroco, flauta de bisel e direcção artística
Denys Stetsenko, violino barroco
Reyes Galliardo, violino barroco
Raquel Massadas, viola barroca
Sofia Diniz, viola da gamba
Duncan Fox, violone
Flávia Almeida Castro, cravo
74
Com o nome inspirado no famoso quadro de Giorgone, o Concerto Campestre
é um grupo de música de câmara que se dedica à interpretação de música europeia
desde o Renascimento ao Barroco, também chamada “musica antiga”. É constituído
por jovens profissionais especialistas nos instrumentos da época, tais como o cravo, o
oboé barroco, a viola da gamba e o violoncelo barroco. Os seus elementos são formados
nas principais escolas europeias e trabalham em vários grupos da especialidade, entre os
quais o Ricercar Consort, Al Ayre Español, Les Talens Liryques e a Orquestra Barroca
Divino Sospiro.
notas biográficas
O grupo está sediado em Lisboa e tem a direcção artística de Pedro Castro. A sua
constituição é versátil e varia conforme os programas que são apresentados, tendo realizado
já projectos desde um trio de câmara até um conjunto de dez músicos e cantores na
execução de cantatas e concertos de J. S. Bach, Telemann e Seixas. Apresentou-se na Festa
da Música no Centro Cultural de Belém, nos Encontros de Música Antiga de Loulé, no
átrio do Museu Gulbenkian, na “Festa no Chiado”, nas “Festas de Lisboa” e nos Encontros
de Música Antiga de Tomar.
JOANA SEARA Soprano
Joana Seara iniciou os estudos musicais e de canto na Academia de Música de Santa
Cecília e no Conservatório Nacional de Lisboa, sob a orientação de Elsa Saque. Foi membro
e solista do Coro Gulbenkian durante seis anos e participou em inúmeros concertos, em
Portugal e no estrangeiro, sob a direcção de Michel Corboz, Frans Brüggen, Fernando
Eldoro, Jorge Matta, Michael Zilm, Claudio Abbado e Richard Hickox. Decidiu-se pelo
canto solístico, tirando a Licenciatura, Mestrado em Performance e o Curso de Ópera na
Guildhall School of Music and Drama, em Londres, com Laura Sarti. Participou também
em cursos e masterclasses de aperfeiçoamento orientados por Thomas Hampson, Thomas
Allen, Felicity Lott, Christa Ludwig, Jill Feldman, Emma Kirkby, Graham Clark e Paul
Kiesgen.
Enquanto estudante foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, da Wingate
Foundation, do E. M. Behrens Charitable Trust e da Worshipful Company of Barbers.
Entre os prémios que recebeu incluem-se o Worshipful Company of Glass Sellers Music
Prize 2005 e o Sybil Tutton Award. Foi finalista na Händel Singing Competition 2007.
Trabalhou como solista para companhias como a English National Opera, a Glyndebourne
Festival Opera, a Castleward Opera, a New European Opera, a Bampton Classical Opera,
a Independent Opera at Sadlers Wells, a Opera Restor’d e a British Youth Opera.
Os seus papéis incluem Galatea (Acis and Galatea), Gretel (Hänsel und Gretel ),
Damigella (The Coronation of Poppea), Despina, Zerlina, Juliet (Romeo and Juliet, de
Benda), Margery (The Dragon of Wantley, de Lampe), Vespina (La Spinalba), Dorinda
(Orlando de Händel) e Nannetta (Falstaff ), sob a direcção de maestros como Laurence
Cummings, Gary Cooper, Paolo Olmi, Peter Tomek, Paul McGrath, Nicholas Kok e
Mathew Halls e Marcos Magalhães.
Em concertos e recitais tem-se apresentado como solista na interpretação de grandes
obras como a Sinfonia n.º 2, de Mahler, a Sea Symphony, de Vaughan William, e o Messias,
de Händel, e, mais recentemente, na Paixão segundo São João, de Bach, com o King’s
Consort, sob a direcção de Mathew Halls. Apresentou-se no Festival Händel de 2008 e
no Festival de Lieder de Oxford de 2006 com os pianistas Bernard Robertson e Sholto
Kynoch. Actua regularmente com o Ensemble Barroco do Chiado, sob a direcção de
Marcos Magalhães, e com a Orquestra Barroca Divino Sospiro, sob a direcção de Enrico
Onofri, com quem participou em concertos para os festivais barrocos de Île-de-France,
75
notas biográficas
Ambronay e Mafra. Futuras apresentações incluem Galatea em Acis and Galatea em Londres, Paris e Nantes, Vespina na reposição da produção do Centro Cultural de La Spinalba,
Gretel para a Opera Holland Park, confidente de Dircée em Medée e Clotilde em Norma,
na Fundação Gulbenkian.
PEDRO CASTRO Oboé barroco, flauta e coordenação artística
Pedro Castro nasceu em 1977 no Porto. Diplomado pela Escola Superior de Música
de Lisboa, sob a orientação de Pedro Couto Soares, e pelo Conservatório Real de Haia
na Holanda, sob a orientação de Sebastian Marq (flauta) e Ku Ebbinge (oboé barroco).
No âmbito do Mestrado em Artes Musicais na Universidade Nova de Lisboa realizou
a tese Serenata L’Angelica – Um Estudo Performativo. Foi bolseiro do Centro Nacional
de Cultura. A sua actividade profissional passa pelos seguintes agrupamentos: Al Ayre
Español, Le Talens Liryques, Orquestra Barroca Divino Sospiro, Orquestra Barroca
Capela Real, Orquestra Barroca de Sevilha, Flores de Música, Sete Lágrimas, Quarteto
Arabesco, A Imagem da Melancolia e Músicos do Tejo. Tem assim oportunidade de
trabalhar sob a direcção de Eduardo Lopez Banzo, Enrico Onofri, Christophe Rousset,
Alfredo Bernardini e Monica Hugget, entre outros importantes nomes do meio da
interpretação histórica.
Como solista, além da actividade em música de câmara, apresentou-se também com
a Orquestra Capela Real no Concerto para Oboé, de A. Marcello, no Duplo Concerto para
Violino e Oboé, de J. S. Bach, e com a Orquestra Barroca Divino Sospiro com o Concerto
para Oboé d’Amore, do mesmo compositor. No oboé clássico e com o Quarteto Arabesco
apresentou-se com o Quarteto, de Mozart, ícone do repertório virtuosístico do classicismo.
Ensina oboé barroco, flauta de bisel e música de câmara na Academia de Música de Santa
Cecília, na Escola Superior de Música de Lisboa e na Escola Superior de Música e Artes
do Espectáculo. É coordenador artístico do Concerto Campestre.
SOFIA DINIZ Viola da gamba
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Sofia Diniz nasceu em Lisboa em 1977. Tendo desde cedo uma formação na área
da dança e da música nas escolas do Conservatório Nacional, optou pelo curso de
violoncelo e em 1998 concluiu o bacharelato na Escola Superior de Música de Lisboa.
Foi nos cursos da Academía de Música Antiga de Lisboa que surgiu o seu interesse pela
interpretação histórica em instrumentos originais e a sua motivação para especializar-se nesta área. Como bolseira do Centro Nacional de Cultura de Lisboa e, mais tarde,
do programa Nuffic-Huygens do Reino dos Países Baixos, estudou violoncelo barroco e
viola da gamba com Rainer Zipperling em Colónia e com Wieland Kuijken e Philippe
Pierlot em Haia e Bruxelas. Toca violoncelo e viola da gamba com vários grupos de
câmara e orquestras como o Concerto Campestre, a Orquestra Barroca Capela Real,
notas biográficas
o Ludovice Ensemble, o Ricercar Consort, The Spirit of Gambo, Il Fondamento e o
Colegium Vocale Gent, actuando em variados festivais, como o Festival de Música de
Mafra, o Bach Festival en Vallée Mosane (Bélgica), as Folles Journées (França) ou o
Holland Festival Oude Musik Utrecht (Países Baixos). Em 2005 foi convidada para um
recital como “Solista Jovem Talento” no Festival Bach em Liége e em 2006 no Festival
Printemps Baroque em Bruxelas. Para além da sua actividade concertante participou
em gravações com o Ricercar Consort, sob a direcção de Philippe Pierlot, e o Colegium
Vocale Gent, sob a direcção de Philippe Herreweghe.
FLÁVIA ALMEIDA CASTRO Cravo
Nasceu em 1978 em Lisboa. Após ter iniciado os estudos musicais na mesma cidade,
diplomou-se em cravo na Escola Superior de Artes de Utrecht, Países Baixos, sob a
orientação de Siebe Henstra, e na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação
de Cremilde Rosado Fernandes. Estudou também com Jacques Ogg no Conservatório
Real de Haia. É membro do Concerto Campestre e do L’anche Lyrique. Trabalhou
igualmente com a Orquestra Barroca Capela Real, a Orquestra Barroca Divino Sospiro,
a Orquestra Metropolitana de Lisboa e a Orquestra do Algarve, tendo sido dirigida
por Wieland Kuijken, Jean-Marc Burfin, Álvaro Cassuto, Terry Fischer e Christina
Pluhar. Foi bolseira do Centro Nacional de Cultura. Actualmente é professora de
cravo no Instituto Gregoriano de Lisboa e na Academia de Santa Cecília e professora
acompanhadora na Escola Superior de Música de Lisboa.
!
77
notas ao programa
sileti venti
Os Mestres do Barroco
78
Desde tempos imemoriais que o Homem associou a Música à emoção, às paixões ou
estados de alma. Primeiro Platão [ca. 427-347 a. C.], depois Aristóteles [384-322 a. C.],
trataram das qualidades e dos efeitos morais exercidos pela música sobre a vontade, o carácter
e a conduta dos seres humanos. Durante o período renascentista, os teóricos musicais
centraram o papel da música como extensão de um texto, como elemento da retórica,
persuasivo, acoplando o aspecto emocional do discurso. Já no Barroco, o pensamento
teórico foi marcado por René Descartes [1596-1650] e pelo seu célebre tratado, escrito
em 1649, Les Passions de l’Âme (As Paixões da Alma). Seguindo o pensamento cognitivo dos
gregos, este filósofo afirmava que, apesar da experiência e dos sentidos serem a fonte das
ideias de objectos sensíveis, de nada serviriam se não fora a capacidade da mente em as
perceber e as transformar em pensamentos.
Assim, enquanto linguagem artística, a música barroca caracterizou-se por conter
um núcleo central e motivador, a ideia de pathos, um afecto extremo que determinava
e unificava o estilo de uma obra. Esse dinamismo reflectia um Homem que não estava
perdido, ao contrário do que acontecia no Maneirismo. As tensões eram resolvidas,
incitando à piedade e ao terror, o que acabava por exercer um profundo efeito catártico.
O pathos daria origem a uma arte eminentemente retórica que tendia a exagerar tudo o
que se diz: era a arte das hipérboles e a ostentação das antíteses. Esta preocupação de
humanizar a música, tendência que já vinha do Renascimento, deu origem à chamada
teoria degli affetti (teoria dos afectos), consagrando a música como veículo ideal para
explicar as paixões e os seus movimentos. O catalisador deste movimento de afectos
seria a retórica, enquanto persuasão, mobilização afectiva da vontade de quem ouve.
O concerto de hoje reúne um conjunto de obras obras bem exemplificativas do
que assinalamos, funcionando como síntese dos principais idiomas da música barroca,
concretamente, da música concertante e da sua estrutura base radicada no princípio do
ritornello, tema tocado pelo tutti instrumental, intercalado por passagens do/s instrumento/s
solista/s (estrutura musical básica sintetizada pela fórmula tutti-solo-tutti-solo-tutti),
dividida em três andamentos (rápido-lento-rápido), fortemente contrastantes, em que o
virtuosismo técnico dos andamentos balizantes dá lugar a um forte lirismo do andamento
intermédio.
Conhecido como il prete rosso pela farta cabeleira natural ruiva, Antonio Vivaldi [1678-1741] notabilizou-se graças à sua música instrumental, ao tempo conhecida e cultivada
em toda a Europa. Nascido em Veneza, em 1678, começou por estudar música e violino
com o pai, Giovanni Battista, mas como sofria de um aperto de peito (provavelmente asma),
optou pela carreira eclesiástica em detrimento da musical. Nesta época era comum os
violinistas também tocarem oboé, instrumento inacessível ao compositor dada à doença
notas ao programa
de que sofria. Em 1703, ano em que foi ordenado sacerdote, entrou ao serviço do Ospedale
della Pietà, orfanato feminino, como maestro di violino. Dispensado das obrigações
eclesiásticas em 1704, viria a ser nomeado maestro dei concerti (director musical) do
Ospedale em 1713, altura em que a orquestra e o coro desta instituição representavam
já uma atracção de Veneza. Tal era a importância de Vivaldi que, apesar das viagens, das
óperas, das encomendas régias vindas dos quatro cantos da Europa, a direcção do Ospedale
della Pietà mantinha-lhe o soldo com a contrapartida de escrever dois concertos por mês e
ensaiar a orquestra cinco vezes por ano. Já no final da vida, Vivaldi mudou-se para Viena,
procurando a protecção do imperador Carlos IV [1685-1740], grande apreciador da sua
música. Contudo, a morte do soberano e a ausência de encomendas conduziram-no a uma
situação financeira preocupante. Viria a morrer de uma infecção interna em 1741.
Dos cerca de 600 concerti que Vivaldi escreveu, pelo menos 20 são para oboé e orquestra
de cordas. Não se conhecendo a data de composição do concerto RV455, o manuscrito
contém a interessante anotação Sassonia, provavelmente uma alusão à Hofkapelle (orquestra
da corte) de Dresden, considerada então como a melhor da Europa, dirigida por Johann
Georg Pisendel [1687-1755], violinista, compositor e admirador da obra de Vivaldi.
O concerto para cravo e orquestra de Carlos de Seixas é a obra concertante mais
emblemática do Barroco musical português e um dos primeiros no seu género, na Europa
barroca.
Nascido em Coimbra, na freguesia de São Cristóvão, em 1704, filho de Francisco Vaz,
organista da Sé Nova, e de Marcelina Nunes, José António Carlos de Seixas aprendeu
música com o pai, acabando por suceder-lhe no cargo em 1718. Entre 1720 e 1722 passou
a Lisboa, ensinando cravo em diversas casas nobres. Pela mesma altura obteve a nomeação
para o lugar de organista da igreja patriarcal, cargo que ocuparia até ao fim da vida. Fica,
no entanto, a dúvida se esta era a capela real, ao tempo sediada numa dependência do Paço
da Ribeira, ou a basílica de Santa Maria Maior, vulgo Sé.
Diz-nos Diogo Barbosa Machado que, residindo o músico na freguesia de São Nicolau,
casou-se, “attrahido de um sincero affecto”, com D. Maria Joana Tomásia da Silva, em 1731,
de quem teve dois filhos e três filhas. Segundo o 4.º conde de Ericeira, “Os Viscondes de
Barbacena derão ao Muzico Joseph Antonio p.ª o seu casamento presentes que se affirma
valerem 3 mil cruzados; por que este muzico não leva dinheiro pellas liçoens que dá à
Senhora Viscondeça, e a suas filhas”. Com o intuito de vir a ser nobilitado, adquiriu, em
1738, a propriedade de um ofício de contador da Ordem de Santiago, obtendo o hábito
da Ordem de Cristo, depois de um longo processo de habilitação, que durou perto de dez
anos, pelo facto de ter um avô carniceiro e outro alfaiate, e das avós serem mulheres de
segunda condição.
Carlos de Seixas faleceu em Lisboa, na sua casa por detrás da igreja de Santo António,
tendo sido sepultado nos covais da Irmandade do Santíssimo Sacramento da catedral.
Segundo Barbosa Machado, “enfermando de um Reumatismo, que degenerou em Febre
maligna se dispoz catholicamente para a morte recebendo todos os Sacramentos, e
recitando a Ladainha de Nossa Senhora espirou a 25 de Agosto de 1742, quando contava
trinta e oito annos, dous mezes, e quatorze dias de idade”.
79
notas ao programa
80
Ao contrário dos bolseiros régios, enviados para Roma, Seixas nunca saiu de Portugal.
Todavia, é evidente que se familiarizou com as correntes musicais mais em voga na época,
verosimilmente através do contacto com os diversos músicos estrangeiros da capela real. Como
autor de obras para tecla, ocupa um lugar cimeiro e isolado, no tempo e na importância, entre
os nossos compositores do século XVIII, não deixando qualquer dúvida sobre a profunda
originalidade criativa deste autor e, por extensão, da escola cravística portuguesa coeva.
O concerto para cravo, em Lá, apresenta, em termos gerais, uma concepção melódica
e harmónica muito simples, em oposição à pujança rítmica de todo o discurso musical.
A elegância grave do primeiro andamento contrasta com a exiguidade dolente do segundo,
onde, supostamente, o solista deverá improvisar uma passagem, antecedida por uma
intervenção orquestral de grande dramaticidade. O andamento final, uma giga (dança
barroca), remete-nos para o universo musical francês, caracterizando-se pela jovialidade
do tema e pela simplicidade virtuosística. Porém, não será descabido afirmar que, mais
do que barroco, o idioma musical desta peça insere-se no “estilo galante”, próximo da
linguagem de Giovanni Battista Pergolesi [1710-1736].
A segunda parte do concerto reúne obras de dois grandes amigos, de infâncias
semelhantes, pretensos advogados, que desistiram da sua formação jurídica em prol de
uma vida dedicada à música: Georg Philipp Telemann e Georg Friedrich Händel.
Tido como o principal compositor alemão da primeira metade do século XVIII, e o
mais fecundo de todos os tempos, Telemann nasceu em 1681 na cidade de Magdeburg,
na Saxónia. O seu talento musical era reprovado pela família, com fortes ligações à Igreja
Luterana, pelo que foi enviado para o colégio de Zellerfeld, mais tarde para o de Hildesheim
e, finalmente, em 1701, para a Universidade de Leipzig, com o objectivo de estudar Leis.
Nesta cidade, contudo, viu o seu talento incentivado. Em 1702 fundou o Collegium Musicum
e em 1703 foi nomeado director da Casa da Ópera de Leipzig. Depois de dois anos como
kapellmeister (mestre de capela) da cosmopolita corte do conde Erdmann II em Sorau, entre
1705 e 1707, o que lhe permitiu conhecer os estilos musicais francês e italiano, obteve o
lugar de konzertmeister (director musical) e kantor da corte dos duques de Saxe-Eisenach.
Em 1712 seguiu para Frankfurt para ocupar o cargo de director musices da cidade e kapellmeister
das igrejas de São Paulo e Santa Catarina. No ano de 1721 obteve a nomeação como director
musices de Hamburgo, o que implicava a direcção musical das cinco principais igrejas da
cidade, posição de que abdicou em 1762, por começar a ficar cego. A partir de 1740 focou
a actividade na escrita de tratados, versando a educação e a teoria musical, bem como numa
aparente tutela sobre compositores mais jovens, como Carl Philipp Emanuel Bach [1714-1788], seu afilhado. Faleceu com a provecta idade de 85 anos, em 1767.
Adepto de um estilo musical mais rígido do que o italiano, livre de virtuosismos
extemporâneos, Telemann desenvolveu uma escrita baseada na riqueza dos conteúdos
temáticos, nos contrastes dinâmicos e na conjugação de instrumentos de natureza tímbrica
diferente, fugindo aos cânones da época. No que diz respeito à sua produção de obras
concertantes, aproximou-se do modelo da ouverture francesa, adoptando como assinatura
musical a sucessão de quatro andamentos (lento-rápido-lento-rápido), em detrimento dos
três da tradição italiana.
notas ao programa
O duplo concerto em lá menor, para flauta e viola da gamba, TWV52:a1, insere-se no
modelo anteriormente referido. Dos seus quatro andamentos realçamos o último, pelo
espírito e pelo carácter próximo da música tradicional da Polónia, cujo idioma Telemann
muito apreciava desde os tempos em que permanecera em Sorau (actualmente Zary, em
território polaco).
Igualmente prolífero mas não tão famoso, à época, como o seu amigo, Georg Friedrich
Händel nasceu em 1685, na cidade de Halle, na Saxónia, sendo filho de Georg Händel,
barbeiro-cirurgião e gentil-homem da câmara dos duques de Saxe-Weissenfels. Os dotes
musicais de Händel revelaram-se desde os primeiros anos, para desespero do pai, que o
destinara a uma carreira como advogado. Todavia, em 1692, iniciou os estudos com Friedrich
Wilhelm Zachow [1663-1712], organista em Halle, depois do soberano ter repreendido
publicamente o cirurgião por este negar ao filho qualquer contacto com a música. Em 1702
inscreveu-se na Universidade de Halle, no intuito de estudar Leis, seguindo o desejo do
pai, entretanto falecido. Nesse mesmo ano foi nomeado organista temporário da catedral da
cidade. A esta “distracção” musical juntar-se-ia outra: a recente amizade com um estudante,
também ele relutante na carreira universitária, Georg Philipp Telemann…
Entre 1703 e 1710 o jovem Händel viajou por Hamburgo, Florença, Roma e Veneza,
um período rico em aprendizagem musical, em contacto directo com os expoentes
máximos da música italiana, até aceitar o cargo de kappelmeister dos príncipes-eleitores
de Hanôver. Em 1712 instalou-se definitivamente em Londres, cidade onde obteve
grandes sucessos no domínio da ópera “italiana”, compondo para a Royal Opera House e
para o King’s Theatre, do qual foi gestor, entre 1729 e 1734. Três anos depois sofreu uma
trombose, que o deixou temporariamente paralisado e esteve na origem da sua cegueira.
No seguimento de desaires financeiros e da pouca aceitação do público inglês em relação
às suas óperas, em 1741 focou-se na composição de oratórias, género musical que lhe
granjearia fama imediata e a posteridade do seu nome. Cegando completamente, em 1753,
e sendo incapaz de ditar uma nota, o compositor permaneceu submerso numa profunda
melancolia até à morte, ocorrida em 1759.
Uma das suas obras mais conhecidas, o motete Silete venti (Silêncio, ó Ventos) é, na
realidade, um reaproveitamento de diversas composições anteriores, prática comum entre
os mestres barrocos, muitas vezes sinal da exiguidade de tempo para compor e dita pastiche
(imitação). Perante a falta de dados concretos que possam datar o ano em que Händel
compôs este motete, é comummente aceite situar a sua escrita entre 1724 e 1730.
Dividido em seis andamentos, Silete venti começa com uma ouverture, à francesa,
incluindo um primeiro momento lento, de ritmo pontuado e harmonia cheia, seguido
de outro, rápido, breve fugato, à imagem de dezenas de outras aberturas händelianas.
O efeito expressivo da admoestação do soprano, que interrompe o contraponto instrumental,
mostra-nos que a abertura era, independentemente dos seus contornos melódicos e da sua
eficácia musical, a descrição de uma tempestade.
A parte central desta obra estrutura-se em dois blocos idênticos de recitativo-ária, o
primeiro terminando com a ária Dulcis Jesus e o segundo com a ária Date serta. Ambos os
casos são árias da capo (uma secção inicial é sucedida por uma outra, fortemente contrastante
81
notas ao programa
antes da repetição da primeira, estrutura musical sintetizada pela fórmula ABA), em que
a figuração do baixo contínuo assegura o pano de fundo da acção musical, deixando em
primeiro plano a virtuosidade e lirismo vocal e os acompanhamentos descritivos do tecido
orquestral.
O motete termina com um pequeno mas exuberante Alleluia, conjugando a virtuosidade
vocal com a simplicidade da escrita instrumental, numa despreocupada giga.
josé bruto da costa
!
82
textos
silete venti
Silete Venti, nolite murmurare frondes,
quia anima dulcedine requiescit.
Dulcis amor, Jesu care, quis non cupit te amare; veni, transfige me
Si tu feris, non sunt clades: tuæ plagæ sunt suaves, quia totur vivo in te.
O fortunata anima, o jucundissimus triumphus, o felicissima lætitia.
Date serta, date flores; me coronent vestri honores; date palmas nobiles.
Surgent venti et beatæ spirent almæ fortunatæ auras cœli fulgidas.
Alleluia
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83
igreja matriz de santiago maior
santiago do cacém
Classificada como Monumento Nacional pelo Decreto de 16 de Junho de 1910 e
pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922
84
Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a
“Reconquista” ficava no interior do castelo, onde existiu uma mesquita. Ao tomarem a
terra, ao redor de 1217, os monges-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu
patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe mais tarde
o topónimo árabe. O antigo edifício tornara-se pequeno quando a vila extravasou os limites
da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV,
sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça, neta do imperador Teodoro II Lascaris
e aia da rainha D. Isabel, esposa de D. Dinis. Donatária de Santiago do Cacém e Panóias,
em virtude de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre
senhora dotou as igrejas destes domínios com relíquias insignes. À matriz de Santiago
couberam vários fragmentos do Santo Lenho, provavelmente oriundos de Niceia. Para o
altar-mor do mesmo edifício encomendou o retábulo de Santiago combatendo os Mouros,
obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um
dos mestres da catedral de Lisboa.
Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (em 1530, em 1704 e,
principalmente, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terramoto de
1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três naves separadas
por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas perdurou um dos
portais laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo
dos capitéis e das impostas corre uma densa carga ornamental vegetalista e zoomórfica,
sistema a que corresponde, no interior da igreja, a decoração que guarnece os capitéis e
anima o perfil das arcadas em ogiva, com a introdução de figuras humanas, reflectindo a
dominância naturalista da arte da época.
O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por esguias frestas,
define uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcosólio.
Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e
a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar
próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em finais
VI. Baptismo de Cristo (pormenor)
| Trabalho escocês | Século XV (primeira metade)
Santiago do Cacém, colecção particular (em depósito no Museu de Arte Sacra).
do reinado dionisíaco, quando se transfiguraram quase totalmente, sob o impulso de
correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda
metade da era ducentista.
A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, formada por um prior – o
qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem –,
seis (oito, no século XVII) beneficiados e um prioste, todos freires espatários, assumiu
decisiva influência na vida da povoação, tal como as importantes confrarias e irmandades
agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversificado património
artístico, patente ao público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi
instalado, em 2002, no próprio monumento.
josé antónio falcão
bibliografia fundamental: Bernardo Falcão, Memorias sobre a Antiga Mirobriga (Lisboa, Biblioteca dos Herdeiros do Prof. Doutor Eng.º Manuel António Falcão Beja da Costa, L.º Ms. s. n.º); António
de Macedo e Silva, Annaes do Municipio de Sanct-Yago de Cassem desde Remotas Eras até ao Anno de 1853, Beja,
Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id., Annaes do Municipio de Sant’Iago de Cacem, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa
Nacional, 1869; José António Falcão & Jorge M. Rodrigues Ferreira, “Marcas Lapidares da Igreja Matriz de
Santiago do Cacém – I”, em Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2.ª Série, I, Santiago do Cacém, 1987;
José António Falcão & Fernando António Baptista Pereira, O Alto-Relevo de Santiago combatendo os
Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja – Santiago do Cacém, Departamento do Património Histórico
e Artístico da Diocese de Beja – Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001.
85
!
14 DE MARÇO DE 2009
igreja matriz de santiago maior
SANTIAGO DO CACÉM
17H30
masterclass/workshop de cravo
21H30
concerto
flávia almeida castro
maria josé barriga
!
frente a frente
A Música Barroca em Duo de Teclas
JOHANN LUDWIG KREBS (1713-1780)
Concerto em Lá m
allegro – allegro – affetuoso
Cravo I – Flávia Almeida Castro
Cravo II – Maria José Barriga
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)
Concerto em Dó M BWV 1061a
allegro – adagio ovvero largo – fuga
Cravo I – Flávia Almeida Castro
Cravo II – Maria José Barriga
87
ANTONIO SOLER (1729-1783)
3.º Concierto em sol M
andantino – minué
Cravo I – Maria José Barriga
Cravo II – Flávia Almeida Castro
FRANÇOIS COUPERIN (1669-1733)
Les Folies Françaises (XIII ème Ordre)
Cravo Solo
WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791)
Sonata em Dó M a 4 mãos KV 19d
allegro – rondeau
Cravo a 4 mãos
JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)
Concerto III em Dó m BWV 1062
allegro – adagio – allegro
Cravo I – Maria José Barriga
Cravo II – Flávia Almeida Castro
88
notas biográficas
O duo de teclas de Flávia Almeida Castro e Maria José Barriga foi formado com
o intuito de divulgar um dos instrumentos musicais mais relevantes da prática musical
dos séculos XVI, XVII e XVIII e do seu repertório solístico, em especial o composto
para dois cravos a solo. No contexto deste repertório salientam-se compositores alemâes
como J. S. Bach e os seus filhos, Carl Philipp Emanuel Bach e Wilhelm Friedemann
Bach, franceses como Armand Louis Couperin, François Couperin, Gaspar Le Roux, o
espanhol Antonio Soler ou ainda W. A. Mozart. Uma viagem musical pelo repertório de
tecla de três séculos foi a aposta deste duo.
FLÁVIA ALMEIDA CASTRO
Nasceu em Lisboa em 1978. Após ter iniciado os estudos musicais na mesma cidade,
diplomou-se em cravo na Escola Superior de Artes de Utrecht, Países Baixos, sob a
orientação de Siebe Henstra, e na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação de
Cremilde Rosado Fernandes. Estudou também com Jacques Ogg no Conservatório Real
de Haia. É membro do Concerto Campestre e do L’anche Lyrique. Trabalhou também
com a Orquestra Barroca Capela Real, a Orquestra Barroca Divino Sospiro, a Orquestra
Metropolitana de Lisboa e a Orquestra do Algarve, sendo dirigida por Wieland Kuijken,
Jean-Marc Burfin, Álvaro Cassuto, Terry Fischer e Christina Pluhar. Foi bolseira do
Centro Nacional de Cultura. Actualmente é professora de cravo no Instituto Gregoriano
de Lisboa e na Academia de Santa Cecília e professora acompanhadora na Escola Superior
de Música de Lisboa.
MARIA JOSÉ BARRIGA
Nasceu em Beja em 1964. Iniciou os estudos de música em Piano e posteriormente
em Cravo. Em 1987 concluiu o Curso de Cravo do Conservatório Nacional de Lisboa, na
classe da Prof.ª Cremilde Rosado Fernandes, e a Licenciatura em Línguas e Literaturas
Modernas. Nesse mesmo ano ingressou na classe do Prof. Ton Koopman (Países Baixos),
tendo terminado o Curso Superior de Cravo no Conservatório Real de Haia em 1992.
Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. É Mestre em Ciências Musicais
(Etnomusicologia) e investigadora do Instituto de Etnomusicologia da Universidade
Nova de Lisboa, no domínio das práticas repentistas na música tradicional portuguesa.
Participou em diversos cursos de Música Antiga, nos quais trabalhou com cravistas como
Glenn Wilson, Robert Wooley, Ketil Haugsand, Bob Van Asperen e Ton Koopman.
Actualmente é docente na Academia de Música de Santa Cecília e no Instituto Piaget de
Almada.
89
notas ao programa
frente a frente
A Música Barroca em Duo de Teclas
90
Curt Sachs [1881-1959] terá sido um dos primeiros estudiosos a falar de música
barroca. Contudo, já vários autores, nos finais do século XVIII, haviam utilizado este
termo para referenciar composições que, aos seus ouvidos classicistas, lhes soavam
complicadas, excessivamente ornamentadas e harmonicamente pouco coerentes. Faltavam
as potencialidades contrastantes da dinâmica musical, do jogo de claro-escuro, dos forte-piano, de uma sinceridade menos tipificada e musicalmente mais genuína.
Instrumento omnipresente neste período, o cravo assume a posição de veículo directo
do idioma barroco, presença assídua em todas as cortes e em inúmeras casas europeias
de então, aliando a simplicidade da sua morfologia a uma sonoridade requintada e
harmonicamente completa. Não é, pois, de estranhar que este gosto, este sentido estético,
levasse muitos compositores a escreverem páginas de música excepcionais para o cravo.
É de notar, contudo, as diferenças de construção (e das sonoridades daí advindas)
dos cravos do Norte da Europa, mais robustos, em relação aos do Sul, mais brilhantes,
com implicações objectivas na escrita musical. Assim, e mesmo tendo em conta os estilos
“regionais”, encontramos uma literatura cravística mais complexa, um tecido harmónico
mais cheio, nos compositores alemães, em oposição ao lirismo e à vocalidade dos franceses
e italianos. No concerto de hoje serão utilizadas duas cópias: um cravo alemão, com a sua
forma típica de cauda arredondada e dois manuais, e um outro franco-flamengo.
Um dos compositores que melhor explorou a totalidade das capacidades interpretativas
do cravo foi Johann Sebastian Bach [1685-1750], num legado musical que incorpora as
principais directrizes do estilo italiano, francês e alemão. O ano de 1735 foi particularmente
fértil neste campo, coincidindo, em parte, com a intensa actividade que o artista desenvolveu
com o Collegium Musicum, orquestra fundada em Leipzig, no ano de 1702, por Georg
Philipp Telemann [1681-1767]. O concerto para dois cravos BWV1061a, em dó maior, é
uma versão, sem acompanhamento de orquestra, do concerto BWV1060, que constitui, por
sua vez, transcrição de um outro, actualmente perdido, escrito para oboé, violino e orquestra.
Já o concerto BWV1062, em dó menor, também datado de 1735, é uma transcrição do
concerto em ré menor para dois violinos e orquestra, BWV 1043, escrito em 1717 para a
corte de Köthen, da qual o compositor era Kappelmeister (mestre de capela).
Nascido em Weimar, em 1713, Johann Ludwig Krebs gozou do privilégio de ter tido
como professor de órgão J. S. Bach. Ao talento inato do jovem músico juntava-se o facto
de seu pai, Tobias Krebs [1690-1762], ser, também ele, um organista famoso e amigo do
compositor. A relação entre mestre e pupilo deveria ser excelente, a julgar pelo famoso
comentário apócrifo: “o único caranguejo [Krebs] do meu ribeiro [Bach]”. Sendo nomeado
notas ao programa
organista da corte de Gotha-Altenburg, em 1755, Johann Krebs manteve-se neste posto
até à morte, em 1780.
O que sobreviveu do legado musical deste mestre, essencialmente prelúdios e fugas,
concertos para cravo e trio-sonatas, demonstram o seu talento, o seu poder inventivo,
excelente no contraponto, mas demasiado complexo para a época em que esteve activo, o
período Galante, que defendia a claridade e a simplicidade do discurso musical.
Também ele um virtuoso, Antonio Soler nasceu em Gerona, na Catalunha, em 1729.
Menino de coro no mosteiro de Montserrat, foi maestro di capilla da catedral de Lérida
e em 1752 entrou no mosteiro de São Lourenço do Escurial, sendo nomeado mestre de
capela em 1757, cargo que ocupou até à morte (1783). A sua virtuosidade ao órgão e ao
cravo valeu-lhe a protecção de D. Maria Bárbara de Bragança [1711-1758], rainha de
Espanha, tendo estudado com Domenico Scarlatti [1685-1757] e José de Nebra [1702-1768], vice-mestre da capela real.
A vastíssima produção de Soler, na qual a literatura para tecla ocupa um lugar de
destaque, acusa um conhecimento profundo da realidade musical da época, com influências
do lirismo italiano ou, inclusivamente, dos tiques do Sturm und Drang alemão. Mais
preocupado com os efeitos harmónicos, as figurações virtuosas e a inclusão de motivos do
folclore espanhol do que com o equilíbrio da forma, este compositor representa, a par de
Carlos Seixas, a verdadeira essência do gosto ibérico do século XVIII, nas suas variadas
idiossincrasias.
Nascido no seio de uma família de músicos, em 1668, François Couperin iniciou os
estudos musicais com o pai, Charles Couperin, tendo-lhe sucedido no cargo de organista
da igreja de Saint-Gervais, de Paris, em 1685. Figura destacada da corte de Luís XIV
[1638-1715], foi nomeado organiste du Roi em 1693. Luís XV (1710-1774) ascendeu-o
em 1717 às funções de ordinaire de la musique de la chambre du Roi. Este cargo tinha
como principal função organizar um concerto semanal, quase sempre aos domingos, onde
participavam, regularmente, os instrumentistas virtuosos da corte francesa.
Tendo morrido em Paris, em 1733, Couperin ficou para a posteridade como um mestre
da l’art de touchér le clavecin (“d’arte de tocar cravo”, nome de um tratado fundamental para
o conhecimento da técnica interpretativa do período barroco, escrito pelo compositor).
A obra Les folies françoises deverá ser lida num contexto estético complexo em que os
principais compositores franceses desta época se envolveram, ao nível da linguagem
musical e dos jogos harmónicos. Resumindo-se a um tema e sucessivas variações, importa
notar o afrancesamento da Folia, dança de origem ibérica e muito cultivada no período
barroco por italianos, como Arcangelo Corelli [1653-1713], referência inequívoca nesta
obra de Couperin.
Apesar de associarmos a figura de Wolfgang Amadeus Mozart ao piano, e à sua
produção para este novíssimo instrumento, o facto é que muitas das primeiras composições
deste menino dotado, nascido na cidade de Salzburg em 1756, foram idealizadas para o
cravo. Tendo aprendido música com o pai, Leopold [1719-1787], tornou-se um fenómeno
musical, para a época, estrondoso, passeado pelas principais cortes europeias e coberto de
honrarias.
91
notas ao programa
A sonata em dó maior, kv.19d, foi escrita, provavelmente, para uma das muitas exibições
públicas que Wolfgang Amadeus fez com o pai e a irmã, Maria Anna [1751-1829]. Contudo, até há alguns anos, julgava-se que as dificuldades de cruzamento e duplicação de
vozes desta obra eram fruto da inexperiência do então menino compositor. São recentes
as investigações que identificaram o construtor e as características do instrumento em que
as duas crianças se apresentavam, um cravo de dois manuais (teclados), transformando os
aparentes erros de composição numa forma musical coerente.
josé bruto da costa
!
92
igreja de nossa senhora dos prazeres
beja
Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 129/77
( Diário do Governo de 29 de Setembro de 1977)
Longamente meditado pelas autoridades concelhias, o propósito de facilitar o acesso
à principal praça de Beja levou à abertura, em finais do século XVI (ou já em inícios
do seguinte), de uma porta na muralha medieval, perto da Corredoura. Foi junto a este
postigo que se construiu, poucas décadas mais tarde, encostada ao pano da fortaleza,
a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. A escolha do sítio, contíguo à velha ermida
de Santo Estêvão, cujo adro passou a partilhar, explica-se não só por ser um dos mais
frequentados da urbe mas também pelo costume, usual em terras do Sul, de se assinalar
a protecção simbólica de cada uma das principais entradas das povoações com a presença
de uma capela. O título escolhido, por seu turno, reflecte uma devoção muito patente
entre nós na época pós-tridentina, quando o culto da Virgem atingiu o clímax.
De facto, a veneração tributada a Nossa Senhora dos Prazeres constitui um reflexo
do intensificar da piedade mariana em finais da Idade Média e, à semelhança da
elaboração dos Mistérios Dolorosos e Gozosos do Rosário, assenta no paralelismo entre
as Sete Dores e as Sete Alegrias da Mãe de Deus, tendo alcançado notáveis ressonâncias
litúrgicas e devocionais. Conheceu depois significativo acréscimo em meados do século
XVI, devido a um acontecimento milagroso que provocou grande comoção. Junto
à fonte de certa quinta do vale de Alcântara, no termo de Lisboa, foi encontrada
uma imagem de Maria que comunicou virtudes curativas às águas deste manancial.
Na mesma ocasião, a própria Virgem apareceu a uma menina, indicando-lhe que dissesse
aos pais e aos vizinhos para erguerem aí uma capela em Sua honra. Construída a ermida
e posta no altar a dita imagem, começaram os milagres, atraindo ao local inúmeros fiéis.
O fenómeno despertou um intenso surto devocional e em vários pontos de país foram
construídas igrejas e capelas sob a mesma invocação.
Referência cimeira de tão impressionante série de fundações, o monumento levantado
em Beja espelha a implantação local de um culto de vasta repercussão. São pouco conhecidas
as circunstâncias que rodearam a sua erecção, talvez nascida da iniciativa de particulares.
Em 1672 o grosso da obra já se encontrava concluído, a ajuizar pela data inscrita na
verga do portal. Do ponto de vista tipológico, o edifício segue um modelo característico
93
94
da arte maneirista portuguesa, com planta longitudinal, de uma só nave, coberta por
abóbada de berço, capela-mor mais estreita e mais baixa, com paredes perpendiculares
ao arco cruzeiro e abside semicircular, rematada por cúpula e lanternim, e sacristia
quadrangular adossada, também coberta por abóbada. À circunspecção dos alçados
exteriores, própria da arquitectura chã, que dominava o panorama nacional, corresponde
um interior de sumptuosa cenografia, verdadeira obra de arte total (gesamtkunstwerk).
A azulejaria, a escultura e a pintura afluem aqui, mediante um sistema deveras coerente,
em termos teológicos e plásticos, na criação de um “teatro sagrado” que permite antever
as glórias do Céu.
Iniciado, quanto ao essencial, à volta de 1680, este ciclo decorativo alongou-se, pelo
que as fontes escritas mostram, durante mais de duas décadas, pondo em realce a crescente
influência, dentro dos círculos bejenses, da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres.
Tiveram nisso papel destacado duas figuras notáveis da sociedade local, Manuel Álvares
Azeitado, opulento e prestigiado mercador, que ocupou prestigiosos cargos públicos, com
realce para a vereação da Câmara, e o P.e Manuel Ledo Gago. O seu desempenho, ao
longo de sucessivos mandatos, respectivamente como reitor e como escrivão da confraria,
foi decisivo para a fazer brilhar, trazendo-lhe outrossim desafogo económico, graças à
multiplicação das esmolas dos fiéis e à obtenção de alguns legados pios. Devido a este
florescimento, o santuário dos Prazeres tornou-se um dos principais centros de piedade da
grei pacense na época barroca, como o atestam as importantes ofertas votivas que recebeu,
incluindo um notável núcleo de exemplares de joalharia. Alguns deles ornamentam,
rotativamente, a imagem seiscentista da Virgem, escultura “de vestir” que a devoção da
nobreza da cidade dotou com rico enxoval.
Formando uma oval irregular ao gosto seiscentista, a capela-mor recebeu modificações
de vulto para a sagração do novo altar, em 12 de Abril de 1779, por D. Fr. Manuel
do Cenáculo Villas Boas, primeiro bispo de Beja após a refundação da diocese (1770).
Devoto de Nossa Senhora dos Prazeres, o insigne prelado contribuiu para reforçar a
notoriedade de que gozava a igreja. Vincula-se ao seu mecenato a oferta da cadeira e
do par de credências pertencentes ao acervo da Irmandade, valiosos testemunhos do
mobiliário meridional da segunda metade do século XVIII. Por esta data as celebrações
já ultrapassavam, em esplendor e em repercussão pública, as do santuário “rival”, Nossa
Senhora ao Pé da Cruz, sito no bairro dos Pelames, então ainda periférico, e cujas raízes
ascendem ao crepúsculo da Idade Média.
Na sacristia continua a preponderar a fisionomia das campanhas de obras dos finais
de Seiscentos, destacando-se o arcaz-altar, de talha dourada e acharoada, e o lavabo,
de pedra de Trigaches, com registos em forma de carrancas. Das pinturas murais que
guarneciam primordialmente este espaço restam alguns vestígios, como um medalhão
com a figura de São João Evangelista e um trecho de revestimento de um arco que imita
azulejos de “figura avulsa”.
Com o advento do Liberalismo, a Irmandade viu-se esbulhada de grande parte
dos capitais e bens de raiz que lhe pertenciam, devido à legislação desamortizadora.
Logrou, no entanto, vencer sem problemas de maior esta conjuntura de aperto, mercê da
VII. São
Francisco de Assis em Oração (pormenor) | Gabriel del Barco | 1693
Beja, igreja de Nossa Senhora dos Prazeres.
protecção de famílias gradas. Tal como sucedera na época barroca, a igreja dos Prazeres
foi um lugar-chave da Beja romântica, frequentado pela aristocracia e pela burguesia
chic. O seu espólio enriqueceu-se com alfaias oriundas de casas religiosas extintas.
Ao convento de Nossa Senhora da Conceição pertenceu o Cristo em Oração no Horto,
obra de marcado pendor bidimensional, típico da produção dos entalhadores regionais
na segunda metade do século XVII. Particular interesse iconográfico possui o Senhor
do Triunfo, escultura do primeiro quartel do século XVIII que evoca a Ressurreição
de Jesus e a Sua vitória sobre a Morte, simbolizada por uma caveira em hipertrofia.
A imagem de São Sebastião, santo muito venerado no Alentejo como protector das
doenças, remonta também ao período barroco e destaca-se pelo ambíguo naturalismo da
figura – tendência que é exaltada, no tratamento da árvore a que está preso, graças a um
gosto ornamental arcaizante.
Ostentando na frontaria um fecho de abóbada da época manuelina, o edifício anexo
à igreja albergava a casa do despacho e outras dependências da Irmandade de Nossa
Senhora dos Prazeres. Mais tarde serviu de residência do capelão. Hoje tem um uso
museológico e constitui o núcleo primordial do renascido Museu Episcopal. Este nome
invoca a memória da instituição fundada em 1892 por Mons. Amadeu Ruas, sob a égide
do bispo D. António Xavier de Sousa Monteiro, para evitar a dispersão das obras de
arte pertencentes aos últimos conventos e mosteiros femininos de Beja que se foram
extinguindo, em penosa agonia, ao longo da segunda metade do século XIX. O Museu
Episcopal desapareceu com o advento da República e o respectivo acervo acabaria por
ser parcialmente integrado no Museu Regional, mas o ideal que esteve na sua génese –
preservar, estudar e divulgar o património religioso pacense – continua vivo.
josé antónio falcão
bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV,
Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id., Corpus da
Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979;
Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira
do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Vítor Serrão, “O Conceito de
Totalidade nos Espaços do Barroco Nacional: A Obra da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (1672-1698)”, em Revista da Faculdade de Letras, 5.ª Série, XXI-XXII, Lisboa, 1996-1997; id., Francisco Lameira
& José António Falcão, A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja. Arte e História de um Espaço Barroco
(1672-1698), Lisboa, Alêtheia Editores, 2007.
95
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21 DE MARÇO DE 2009 . 17H30
igreja de nossa senhora dos prazeres
beja
manuel pedro ferreira
universidade nova de lisboa
!
do velho ao novo mundo
Conferência
Manuel Pedro Ferreira (n. 1959) doutorou-se em Musicologia na Universidade
de Princeton (Estados Unidos da América) com uma tese sobre o canto na abadia de
Cluny; é actualmente Professor Associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
da Universidade Nova de Lisboa, onde lecciona sobre a música da Idade Média e do
Renascimento, coordena o Departamento de Ciências Musicais e é director executivo
do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. Tem-se dedicado também à
crítica musical e à interpretação (dirige desde 1995 o grupo Vozes Alfonsinas, com o
qual se apresentou em todo o país e no estrangeiro, gravando vários discos compactos).
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Tem estado activo como compositor, desde 1988, de forma intermitente, privilegiando a
voz e a música de câmara.
Como musicólogo, publicou mais de setenta artigos de investigação, que versam
temas que vão da monodia medieval à obra de compositores contemporâneos; é
também colaborador de vários dicionários especializados internacionais. Foi responsável
pela publicação fac-similada do Cancioneiro de Elvas (1989) e do manuscrito 714 da
Biblioteca Pública Municipal do Porto (2001); recebeu o Prémio de Ensaísmo Musical
do Conselho Português da Música pelo seu livro O Som de Martin Codax (Lisboa, 1986).
Os seus últimos livros publicados são Cantus Coronatus — Sete Cantigas d’Amor d’El-Rei Dom Dinis (Kassel, 2005), Dez Compositores Portugueses (Lisboa, 2007) e Antologia
de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento (Lisboa, 2008). Estão no prelo
outros títulos, entre os quais uma colectânea de ensaios musicológicos, em dois volumes,
a publicar na Imprensa Nacional, sob o título Aspectos da Música Medieval no Ocidente
Peninsular.
!
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VIII. Estante de altar (pormenor)
| Trabalho português | Século XVIII (meados)
Beja, igreja de Santa Maria da Feira.
igreja de santa maria da feira
beja
Classificada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 42 255
( Diário do Governo n.º 105, de 8 de Maio de 1959)
A igreja de Santa Maria da Feira, matriz de Beja, ocupa um sítio emblemático no centro
histórico da cidade, que pertencera antes – de acordo com a tradição, corroborada por
explícitos achados arqueológicos – à primitiva catedral, cujas fundações devem ascender
ao século VI. Outros relatos afirmam ter sido adaptada a mesquita na época do domínio
islâmico, o que pressupõe a sua reconciliação com o culto cristão, após a “reconquista”
da cidade, só tornada definitiva em 1232 ou 1234 (e só verdadeiramente segura após a
expugnação de Mértola, em 1238). Aliás, não falta quem veja na torre do solar que lhe fica
fronteiro, a Casa da Torrinha, a reminiscência da velha almádena, de cujo cimo, nas horas
costumeiras, um religioso muçulmano chamava os crentes à oração. Túlio Espanca datou
esta torre já do século XIX, mas está ainda por averiguar com rigor científico se não terá
resultado da transformação de uma estrutura medieval.
D. Afonso III autorizou em 1259 a feitura de uma nova igreja, sob a invocação
de Santa Maria, algo importante para o repovoamento de uma terra que, tomada e
perdida várias vezes pelas hostes portuguesas, sofrera grandes prejuízos. Aquele título
correspondia a uma escolha usual numa época de profunda devoção à Virgem, sendo
o mais preferido para a dedicação de antigas mesquitas. João Moniz, o seu primeiro
prior, contribuiu decisivamente para o arranque da obra. No rossio vizinho começou a
realizar-se em 1261, com licença régia, a feira de Beja, a qual acabaria por ficar associada
ao título da igreja.
Esta foi entregue pelo mesmo monarca, em 1259, à ordem militar dos freires de
Évora ou de Avis, que aí instalou uma colegiada. Seguidamente tornar-se-ia também
a sede da respectiva comenda em Beja. Os limites da paróquia alargavam-se a uma
vasta faixa rural em que abundavam as terras férteis, incluindo Cuba e Selmes (hoje no
concelho de Vidigueira). Quanto ao âmbito urbano, muitos dos seus fregueses estiveram
tradicionalmente vinculados aos mesteres e ao comércio.
Um aspecto digno de referência na história de Santa Maria da Feira é o facto de ter sido
a igreja escolhida por D. João II, em 1495, para se efectuar a cerimónia do solene baptismo
de Caçuta, o embaixador do potentado do Congo – manicongo – e dos demais membros
99
100
da sua comitiva. Garcia de Resende narrou assim estes acontecimentos na Chronica [...] do
Christianissimo Dom Joam o Segundo (1545):
“El-Rei do Congo mandou a El-Rei por seu embaixador Caçuta, homem muito
importante que depois de ser cristão teve o nome de D. João da Silva, e alguns moços [...].
El-Rei D. João [...] estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia baptismal para o
fazer cristão e assim aos moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-se ela e El-Rei de festa.”
Favorecida pelos monarcas, pelos bispos de Évora e pelos prelados de Avis, a matriz
de Beja possuiu desde cedo uma fábrica abastada, a que se juntaram outros patrimónios.
De entre os seus muitos rendimentos sobressaíam os provenientes de capelas de missas.
No tempo em que o cardeal infante D. Afonso deteve a cátedra eborense, estas capelas
ultrapassavam a trintena e estavam vinculadas a bens que, além de cobrirem boa parte do
território alentejano, se estendiam até Sintra. Existiam ainda mais de vinte propriedades
foreiras, tanto urbanas como rústicas, além dos próprios do comendador, do prior e dos
beneficiados. Um inventário realizado na segunda metade do século XVIII mostra que,
apesar de sucessivas incorporações de capelas no erário régio, havia ainda um património
impressionante. Ao grémio dos beneficiados de Santa Maria pertencia então Luís
António Verney, autor d’O Verdadeiro Método de Estudar [1746-1747]; retirado em Roma,
a colegiada fazia-lhe chegar os estipêndios correspondentes ao seu cargo.
Grandes transformações alteraram a fisionomia do monumento ao longo dos tempos
e deram-lhe o aspecto híbrido que hoje ostenta. Da estrutura medieva, com três naves,
permanece a cabeceira de abside poligonal, rodeada por absidíolos. Os seus cinco panos,
divididos por contrafortes escalonados, são rasgados por esguias janelas bífores de verga
em arco quebrado e lunetas quadrifoliadas. Embora se tenha perdido a cortina de ameias
que fechava o conjunto, persiste quase íntegra a sequência de modilhões e gárgulas
zoo-antropomórficas. Remontando à transição do século XIII para o XIV, este sector
constitui um notável testemunho da delicada elegância então atingida pela arquitectura
gótica no Sul.
Nos finais do século XV procedeu-se à construção da galilé, o que permitiu uma
articulação mais funcional com o terreiro envolvente, lídimo coração da vila-cidade.
Rasgado por arcos quebrados, separados por botaréus cilindricos, sobrepujados por cones
envoltos por merlões chanfrados, este nártex resolve-se internamente numa abóbada
de cruzamento de ogivas, com três tramos, cujas nervuras arrancam de mísulas de
ornamentação vegetalista. Trata-se de uma solução típica do Tardo-Gótico alentejano em
que avulta a influência da arte mudéjar.
O corpo central do edifício, por seu turno, foi refeito na segunda metade do século XVI,
correspondendo à tipologia de “igreja-salão” largamente utilizada no Alentejo durante a
época da Contra-Reforma, com três naves, de igual altura, formadas por quatro tramos de
abóbadas nervuradas, assentes em colunas de fuste cilíndrico e capitéis toscanos. Seguiu-se nisto o austero modelo maneirista da igreja de Santo Antão de Évora, traçado por
Miguel de Arruda em 1548. Datam do mesmo período as duas sacristias, de planta em
quadrilátero, cobertas por abóbadas de cúpulas assentes em trompas. Ciclos de pinturas
parietais quinhentistas e seiscentistas, de que persistem ainda vestígios, remataram o
espaço interior, dando outra vibração à sua harmoniosa severidade.
Uma associação estratégica entre a munificência da colegiada, o mecenato de famílias
do patriciado local e a intervenção de irmandades (que gozavam de prestígio e recursos
apreciáveis) tornaram Santa Maria uma das igrejas mais opulentas de Beja, centro de
intensa actividade litúrgica e devocional. É particularmente notável a sequência de
retábulos dos séculos XVII, XVIII e XIX. Do lado do Evangelho avulta a capela de Nossa
Senhora do Rosário, cuja estrutura escultórica, característica da talha de “estilo nacional”,
foi encomendada em 1676 ao mestre lisboeta Manuel João da Fonseca. No seu vão central
ergue-se uma extraordinária Árvore de Jessé, alusiva à genealogia de Cristo, enquanto os
painéis das ilhargas e da predela são preenchidos por símbolos das Litanias da Virgem.
Do lado da Epístola o realce pertence à capela de Nossa Senhora da Coroa e das Almas,
de grande veneração bejense. Sobressai aqui a sumptuosa máquina retabular construída
nos finais do reinado de D. Pedro II e que integra a imagem do arcanjo São Miguel em
glória, acolitado por anjos.
Atribuiu-se ao terramoto de 1755, além de outros danos no monumento, o desequilíbrio
das colunas dos primeiros tramos. Terá sido o intuito de corrigir os seus efeitos que levou a
uma nova campanha de obras na década de 1790, com a remodelação da capela-mor e das
capelas colaterais. A da parte do Evangelho, consagrada a São Crispim e São Crispiniano
e pertencente à Confraria dos Sapateiros, foi demolida nesta ocasião. A do Santíssimo
Sacramento, na banda oposta, ganhou maior amplitude, tendo a abóbada revestida por
estuques e acolhendo um retábulo de mármore branco e róseo em que se inscreve o painel da
Última Ceia, de Pedro Alexandrino de Carvalho, o mais conhecido pintor lisboeta da época.
Sagrado em 1792, o altar recebeu os privilégios de indulgência plenária por concessões de
Pio VII em 1800 e 1803. Os trabalhos no edifício, todavia, prolongaram-se até 1794.
Embora grande parte do tesouro paroquial se tenha disperso, a igreja conserva ainda
espécimes artísticos de muito interesse. Merece especial atenção o painel a óleo sobre
madeira que representa a Descida da Cruz, da autoria de um mestre do círculo do pintor
eborense Francisco João, obra datada do último quartel da era quinhentista. Do faustoso
aparato litúrgico da antiga colegiada perdurou um precioso núcleo de artes decorativas,
incluindo espécimes de paramentaria, ourivesaria e mobiliário dos séculos XVI a XIX.
A meio da fachada virada a Poente está adossado o campanário, edifício de raiz
medieval que sofreu ampliações nas centúrias de Seiscentos e Setecentos. Tendo em
conta a sua implantação e a sua estrutura, já se vislumbrou nela outra alternativa para a
continuidade do minarete. Possui dois coroamentos diferentes, destinados aos sinos da
paróquia e do concelho – o que evidencia a convergência, em ponto estratégico, perto das
antigas casas da Câmara, dos poderes eclesiástico e civil, acabando este, mercê das obras
realizadas em 1760-1763, por ter maior destaque. A face orientada para o Largo de Santa
Maria ostenta, entre outras peças escultóricas dignas de atenção, a cabeça de um touro da
época romana, insígnia da antiga Pax Iulia, e as armas medievais de Beja. Uma inscrição
liga a sua presença ao passado glorioso da cidade: COLONIA / PAZ JVLIA / FESCE NO ANO
DE 1763 / SENDO JVIZ DE FORA / O D.or ANT.o JORGE DE CARV.o
101
Em inícios do século XVIII, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário aproveitou
o espaço que separava a igreja da torre sineira para erguer a respectiva casa consistorial,
incluindo uma capela destinada aos irmãos. Poucos anos depois juntou-se à frontaria do
edifício uma das estações da Via Sacra, pertencente à Irmandade do Senhor Jesus dos
Passos. Retirado à posse da confraria durante a I República, o edifício do consistório foi
entregue à Caixa Geral de Depósitos para nele instalar o seu balcão em Beja. Em 1922-1923 construiu-se um novo imóvel de linhas eclécticas, interessante compromisso entre o
Revivalismo e Modernismo, sob projecto do Arqt.º Porfírio Pardal Monteiro [1897-1957].
A intervenção preservou a estrutura da capela e o ciclo de azulejaria nela existente, notável
conjunto do terceiro quartel do século XVIII que põe em diálogo momentos culminantes
da vida de Maria e de Cristo.
Menos sorte teve a pequena capela de Nossa Senhora da Luz, já referida em fontes
escritas de 1680, que ficava encaixada num dos contrafortes da cabeceira da igreja. De planta
circular, à semelhança das coevas capelas do Calvário, foi demolida pela Direcção-Geral
dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1970, com o pretexto de que prejudicava a
leitura da estrutura medieval.
josé antónio falcão
bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa,
102
IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id., Corpus
da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1979; Jacques Marcadé, Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas – Évêque de Beja, Archevêque d’Evora (1770-1814),
Paris, Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 1978; Túlio Espanca, Inventário Artístico
de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa,
Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Leonel Borrela, “A Igreja de Santa Maria. I-III”, em Diário do
Alentejo, Beja, 25 de Agosto e 1 e 8 de Setembro de 1995; Hermína Vasconcelos Vilar, As Dimensões de Um
Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999; [Manuel Lourenço] Casteleiro
de Goes, Beja. XX Séculos de História de Uma Cidade, I-II, Beja, Câmara Municipal de Beja, 1998 [1999].
28 DE MARÇO DE 2009 . 21H30
igreja de santa maria da feira
beja
coro gulbenkian
!
o esplendor luso-brasileiro
nos finais do século xviii
e princípios do xix
LUÍS ÁLVARES PINTO (1719-1789)
Divertimentos Harmónicos, 1776, para 3 e 4 vozes
Beata Virgo
Benedicta tu in mulieribus
Quæ est ista
Efficieris gravida
Oh! Pulchra es, et decora
JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (1767-1830)
Miserere para Quarta-Feira de Trevas, 1798
para 4 vozes concertantes e baixo contínuo
Missa dos Defuntos a 4 vozes de Capella, 1809
para 4 vozes concertantes e baixo contínuo
ANDRÉ DA SILVA GOMES (1752-1844)
Laudate Pueri
para 4 vozes concertantes e baixo contínuo
Popule meus
para 4 vozes
Ofertório da Missa do Domingo de Paixão
para 4 vozes concertantes e baixo contínuo
Ofertório do 4.º Domingo de Quaresma
para 8 vozes concertantes e baixo contínuo
103
notas biográficas
coro gulbenkian
Jorge Matta, direcção
Nicholas Macnair, cravo
Michel Corboz, maestro titular
Fernando Eldoro, maestro adjunto
Jorge Matta, maestro assistente
Caroline Bart Mascarenhas, coordenadora
Rebeca Cantos, secretária/arquivista
104
Fundado em 1964, o Coro Gulbenkian conta presentemente com uma formação
sinfónica de cerca de 100 cantores, actuando também em grupos vocais reduzidos,
conforme a natureza das obras a executar. Assim, tanto pode apresentar-se como grupo a
cappella, o que tem acontecido regularmente para a interpretação de polifonia portuguesa
dos séculos XVI e XVII, como colaborar com a Orquestra Gulbenkian para a execução de
obras coral-sinfónicas do repertório clássico e romântico. Na música do século XX, campo
em que é particularmente conhecido, tem interpretado – e frequentemente estreado –
inúmeras obras contemporâneas de compositores portugueses e estrangeiros. Tem sido
igualmente convidado a colaborar com as mais prestigiadas orquestras mundiais para
execução de grandes obras como A Criação do Mundo, de Haydn, e a Nona Sinfonia, de
Beethoven (Orquestra do Século XVIII/Frans Brüggen), a Missa Solemnis, de Beethoven
(Orquestra Sinfónica de Baden-Baden/Michael Gielen), as Segunda, Terceira e Oitava
Sinfonias, de Mahler (Filarmónica de Berlim/Claudio Abbado; Filarmónica de Londres/Franz Welser-Möst; Sinfónica de Viena/Rafael Frübeck de Burgos; Filarmónica
Checa/Gerd Albrecht), A Danação de Fausto, de Berlioz (Filarmónica de Estrasburgo/
notas biográficas
Theodor Guschlbauer e Concertgebouw de Amesterdão/Colin Davis), ou Daphnis et
Chloeé, de Ravel (Filarmónica de Montecarlo/Emmanuel Krivine).
Para além da sua apresentação na temporada de concertos da Fundação, em Lisboa,
e das suas digressões pelo país, o Coro Gulbenkian tem actuado em numerosas cidades
de Espanha, França, Itália, Hungria, Canadá, Iraque, Índia, Macau e Japão. Em 1991
apresentou-se em várias cidades da Bélgica, no quadro do Festival Europalia, e deslocou-se a Israel para uma série de actuações com a Orquestra de Câmara de Israel (Telavive,
Carmiel, Haifa e Jerusalém). Em 1992, uma digressão em várias cidades da Holanda
e da Alemanha, com a Orquestra do Século XVIII, deu origem à gravação ao vivo da
Nona Sinfonia, de Beethoven, que foi incluída na edição integral das sinfonias que
Frans Brüggen realizou para a Philips. Em 1993 o Coro Gulbenkian teve a honra de
acompanhar o então Presidente da República, Doutor Mário Soares, numa visita oficial
ao Reino Unido. Deslocou-se em seguida ao Brasil e recebeu o convite de S. A. R. o Príncipe
Rainier do Mónaco para a realização de um concerto com a Orquestra Filarmónica de
Montecarlo. Nesse mesmo ano, actuou ainda em Lyon, Estrasburgo e Mulhouse, com a
Orquestra Nacional de Lyon (A Transfiguração, de Messiaen). Em 1994 deslocou-se a
Budapeste com a Orquestra Gulbenkian e efectuou uma segunda digressão com Frans
Brüggen e com a Orquestra do Século XVIII, actuando em Itália, França, Holanda e
Portugal (A Criação, de Haydn). No ano seguinte, apresentou-se na Índia em quatro
concertos a cappella, realizando uma digressão ao Brasil, Argentina e Uruguai, com a
Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Michel Corboz (Elias, de Mendelssohn).
Ainda em 1995, nove concertos com a Orquestra do Século XVIII (Nona Sinfonia, de
Beethoven) levaram o Coro Gulbenkian a oito cidades do Japão. Em Junho de 1997
apresentou-se com esta mesma orquestra, dirigida por Frans Brüggen, em concertos
realizados em diversas cidades europeias, incluindo uma participação no Festival Eurotop
de Amesterdão (Sonho de Uma Noite de Verão, de Mendelssohn).
Em Novembro do mesmo ano teve o privilégio de acompanhar o Presidente da
República, Dr. Jorge Sampaio, na visita oficial à Holanda, a convite de S. M. a Rainha
Beatriz da Holanda, tendo actuado em Leiden. Na temporada de 1998-1999 apresentou-se,
entre outros, no Festival Veneto (com a Orquestra I Solisti Veneti) em Pádua e em Verona.
Em 2000 realizou uma digressão com a Orquestra do Século XVIII e Frans Brüggen,
actuando em Londres e em várias cidades da Holanda, da Alemanha e do Japão. No ano
seguinte, colaborou com a Orquestra Sinfónica do Norte da Alemanha na apresentação da
Missa Solemnis, de Beethoven, em Lisboa e Madrid. Já em 2002, a actividade internacional
compreendeu concertos na Dinamarca, Malta, Japão (de novo com a Orquestra do Século
XVIII) e Espanha (Festival Internacional de Música de Granada). O Coro Gulbenkian
tem gravado para as editoras Philips, Archiv-Deutsche Grammophon, Erato, Cascavelle,
Musifrance, FNAC Music e Aria-Music, interpretando um repertório diversificado
que inclui música portuguesa do século XVI ao século XX. Algumas destas gravações
receberam prémios internacionais, tais como o Prémio Berlioz, da Academia Nacional
Francesa do Disco Lírico, o Grande Prémio Internacional do Disco, da Academia Charles
Cros, ou o Orfeu de Ouro, entre outros. Desde 1969, Michel Corboz é o Maestro Titular
105
notas biográficas
do Coro, sendo as funções de Maestro Adjunto desempenhadas por Fernando Eldoro e
as de Maestro Assistente por Jorge Matta.
JORGE MATTA
Maestro assistente do Coro Gulbenkian, desde 1976, é doutorado em Musicologia
Histórica pela Universidade Nova de Lisboa, onde ensina no Departamento de Ciências
Musicais. Destacado investigador, editor e intérprete de música portuguesa, tem realizado
inúmeras primeiras audições modernas e estreias absolutas de obras vocais e instrumentais
de compositores portugueses. Gravou várias séries de programas de televisão e representou
Portugal na Eurovisão e na Mundovisão, em 1986. Dirigiu a Orquestra Sinfónica da
Radiodifusão Portuguesa, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Orquestra de Câmara
de Macau, a Orquestra de Câmara de Lisboa, a Orquestra de Câmara Sousa Carvalho,
a Orquestra Musicatlântico, a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, o Collegium
Instrumentale de Bruges, o Coro da Radiodifusão da Baviera, e participou nos Festivais
Internacionais de Pamplona, Palência e Badajoz (Espanha), Rotemburgo e Munique
(Alemanha), Bruxelas (Europália 91) e Israel (1998). A sua discografia inclui discos com
o Coro Gulbenkian, com o grupo Cantus Firmus e com a Orquestra de Câmara de
Lisboa – “Música Portuguesa do Século XVIII”, que mereceu, entre outros, um prémio
da Academia Francesa do Disco. Em 2000/2001 foi director do Teatro Nacional de São
Carlos. É, desde 2001, presidente da Comissão de Acompanhamento das Orquestras
Regionais.
106
notas ao programa
o esplendor luso-brasileiro
Nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX
Notável conhecedor da realidade colonial portuguesa, Charles Ralph Boxer [1904-2000] afirmava que a mestiçagem fora uma “consequência inevitável da instalação e da
manutenção do império português”, sendo o mulatismo o resultado mais “forte e visível”
desse processo. Se tivermos em conta que a maioria dos músicos activos no Brasil durante
o século XVIII, e mesmo durante o século XIX, eram mestiços, ocorre-nos questionar,
obviamente, a razão de tal facto, estando a resposta na própria ordem social da época.
Sendo a maioria homens-livres, os mulatos procuravam exercer funções não desempenhadas
por negros ou brancos, numa tentativa de favorecerem a mobilidade vertical nas relações
sociais.
Salientou Maurício Monteiro que, em 1804, os músicos da capitania de Minas Gerais
– ao tempo a mais rica e desenvolvida do vice-reino do Brasil – representavam 41% de
todos os profissionais liberais listados no sector terciário. Dedicando-se exclusivamente
à música ou desenvolvendo actividades económicas paralelas, os mulatos procuravam
a possibilidade de ascensão social e distinção no seio de uma sociedade que lhes era, à
partida, hostil. Segundo Harry Crowl, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses
para impedir uma distinção social entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos
sem posses. Contudo, a Igreja, com as suas irmandades e confrarias, e o Estado, com
os senados camarários, o exército ou mesmo o aparelho judicial, constituíram-se como
verdadeiras máquinas aglutinadoras de pretensões sociais, tornando-se a música o grande
denominador comum nesse ambiente de sincretismo, paradigma do Brasil colonial. Não é,
pois, de estranhar que os maiores vultos da música brasileira setecentista sejam mulatos e
o seu percurso musical muito semelhante.
Apelidado por José Mazza, no Diccionario Biographico de Musicos (ca. 1780), de “homem
pardo”, Luís Álvares Pinto nasceu no Recife, na capitania do Pernambuco, em 1719.
Mazza acrescenta que, ao redor de 1740, passou a Lisboa para “aprender contraponto com
o celebre Henrique da Silva [Negrão], tem composto infinitas obras com muito acerto
principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat.e humas exequias) à morte do Senhor Rey
D. José o primeiro a quatro coros, e ainda em composições profanas tem escrito com
muito aserto”.
De volta a Pernambuco, em 1761, publicou, no ano seguinte, a segunda obra teórica
sobre música escrita no Brasil, Arte de Solfejar (a primeira é da autoria do P.e Caetano de
Melo Jesus [1759-1760]). A sua veia de escritor manifestou-se na comédia Amor mal
correspondido (da qual subsistem alguns trechos), levada à cena na Casa da Ópera de
Recife, em 1780, e ainda em três obras didácticas hoje perdidas: Dicionario Pueril (1784),
Arte Pequena para se aprender Música e Arte Grande de Solfejar.
Em 1762, Álvares Pinto foi eleito mordomo da Irmandade de Nossa Senhora do
Livramento, em Recife, e, em 1766, nomeado capitão do Regimento de Milícias. Acumu-
107
notas ao programa
108
lando tais funções com as de mestre de capela da igreja da Irmandade de Nossa Senhora
do Livramento e da igreja de São Pedro dos Clérigos, desde 1778 (cargo em que viria
a ser confirmado apenas em 1782), foi nesta última igreja que promoveu a fundação da
Irmandade de Santa Cecília (ca. 1788), à imagem da existente em Lisboa, tendo sido o seu
primeiro juiz. Morreu em Recife no ano de 1789.
Datados de 1776, os Divertimentos Harmónicos resumem-se a cinco momentos musicais
(a 3 [os dois primeiros] e a 4 vozes [os três restantes]), de temática mariana, em que as
virtudes de Nossa Senhora são exaltadas, como mãe do Salvador e filha de Jerusalém.
Próprios para o período litúrgico do advento, os Divertimentos apresentam uma construção
musical semelhante, com a entrada das vozes em imitação sucessiva, residindo o seu
principal interesse nos jogos “harmónicos”. São as dissonâncias, as progressões harmónicas
e os contornos intervalares das melodias que conferem enorme graciosidade a esta pequena
obra musical.
Como outra face de um mesmo espelho temos o português André da Silva Gomes,
nascido em Lisboa em 1752. Aluno, provavelmente no Seminário da Patriarcal, do “sabio e
experimentado Mestre” José Joaquim dos Santos [1747-ca. 1801], segundo as palavras do
próprio compositor, Silva Gomes tomou parte na comitiva do 3.º bispo de São Paulo, D.
Fr. Manuel da Ressurreição [1718-1789], a convite do prelado, para ir ocupar as funções
de mestre de capela da Sé paulistana, em finais de 1773.
Apesar de elevada à condição de cidade em 1711, São Paulo era, à época, uma vila de
poucos recursos, contando, no censo de 1778, com 5103 habitantes. O aparelho musical
da Sé resumia-se a um órgão, oferta de D. João V [1689-1750] em 1746, cujo titular era
Inácio Xavier de Carvalho, e a “quatro moços do Coro”, sendo a voz de baixo assegurada
pelo organista ou pelo próprio mestre de capela.
André da Silva Gomes substituiu-se ao Cabido, sempre com faltas crónicas de
dinheiro, na tentativa de inverter esta situação. Ensinou música gratuitamente a dezenas
de crianças (casado com a viúva Maria Garcia de Jesus, em 1775, não havendo filhos desta
união adoptou dezasseis crianças) e procurou, através do seu salário de mestre de capela
e das gratificações como mestre de música das festas da Ordem Terceira do Carmo, da
Irmandade do Santíssimo Sacramento (onde viria a ingressar como irmão em 1813) e do
Senado da Câmara, contratar mais cantores e instrumentistas.
A obra de Silva Gomes não pode, nem deve, ser desassociada da rivalidade civil-eclesiástica existente em São Paulo, concretamente no entendimento estético-musical
diferenciado entre os sucessivos prelados, adeptos de um “stilo antico”, e os governadores,
“a italiana”. Como reflexo evidente deste facto, e estando economicamente dependente de
ambos, acabou por desenvolver um corpus musical híbrido, mais ao sabor das encomendas
do que de uma linguagem individual.
Consequência provável destas contingências estéticas, André da Silva Gomes nunca
encarou a sua função de mestre de capela como a única possibilidade de exercício
profissional, procurando complementar os rendimentos com o exercício de outras
actividades ou cargos. Assim, pleiteou e obteve as provisões de capitão de milícias (1789)
e depois de tenente-coronel (1797), a provisão da serventia do ofício de escrivão da
notas ao programa
Intendência e Conferência da Real Casa de Fundição de São Paulo, a de proprietário do
ofício de escrivão de Órfãos e, por fim, de professor régio de Gramática Latina (1803).
Faleceu em 1844, com a provecta idade de 92 anos.
Das obras hoje em concerto merecem particular atenção os dois ofertórios quaresmais
Confitebor tibi Domine e Laudate Dominum, bem como o salmo vespertino Laudate Pueri.
Em ambos é notório o estilo galante napolitano de David Perez [1711-1788] e Sousa
Carvalho [1745-ca. 1800], fazendo uso de uma estrutura que consiste na alternância das
intervenções corais e de solos virtuosos, em jeito de ritornelo musical. Muito interessante
é a configuração melódico-ritmica do acompanhamento do órgão nas passagens solísticas
dos ofertórios, em jeito de baixo de Alberti, próxima das sonatas para tecla de António
Pedro Avondano [1714-1782].
Diametralmente oposto, o responsório de Sexta-Feira Santa, Popule meus, de estrutura
homofónica e fundamentalmente silábica, desenvolve-se mais em termos harmónicos do
que melódicos, numa procura da acentuação do pathos do texto lamentativo.
Quando, a 22 de Janeiro de 1808, a esquadra portuguesa aportou em São Salvador,
ao fim de 54 conturbadíssimos dias de viagem, uma página da História de Portugal foi
virada. Seguindo um antiquíssimo plano, gizado nos tempos da Restauração, em 1641,
para garantir a autonomia do império português no caso de invasão da metrópole, o então
ainda príncipe regente, D. João de Bragança [1767-1826], ordenara o embarque imediato
da corte e do erário público para a distante colónia do Brasil. É o próprio general Junot
quem, nas suas quase diárias missivas ao imperador Bonaparte, informa que, ao chegar a
Lisboa, se precipitou para o Alto de Santo Amaro na esperança de ainda avistar a esquadra
na barra do Tejo. Mas já se haviam feito ao vento os navios, tacticamente fora do alcance
dos canhões do forte de São Julião da Barra. Ficaria para a história, e enraizado na cultura
popular, o dito “ficou a ver navios!”
Instalada na cidade do Rio de Janeiro, em Março de 1808, a corte portuguesa recriou-se nos trópicos. Um dos homens que mais contribuiu para o amenizar de toda esta
mudança foi o então mestre de capela da sé do Rio de Janeiro, P.e José Maurício Nunes
Garcia. Este mulato (filho de um alfaiate branco e de uma filha de escravos forros) –
“defeito vísivel” que muitos na corte gostavam de fazer notar – rapidamente caiu nas
graças do príncipe regente. Nomeado mestre da Capela Real, a 26 de Novembro de
1808, com direito a “ração de creado particular”, o que, na prática, o equiparava a todos
os servidores da Casa Real, foi-lhe concedido, no ano seguinte, o hábito da Ordem de
Cristo, processo moroso concluído apenas em 1810, depois de uma série de intrigas
cortesãs que obrigaram à intervenção directa de D. João. A chegada, em 1811, de Marcos
Portugal [1762-1830], afastaria definitivamente Nunes Garcia da esfera da Capela Real.
Desde esta data, a Ordem Terceira do Carmo e a Irmandade de Santa Cecília foram
as principais instituições a encomendarem-lhe composições. Retirado da lista da Casa
Real em 1821, por arbítrio do então regente D. Pedro [1798-1834], o músico apelaria,
num tom pungente: “há sette mezzes que o S[u]pp[licant]e sofre nas necessidades por
esta Causa”. Não obtendo resposta e escasseando as encomendas, finou-se em 1830,
num estado de extrema miséria.
109
notas ao programa
As duas obras em audição datam de períodos diferentes da vida de Nunes Garcia.
O Miserere, para Quarta-Feira de Trevas, foi escrito em 1798, poucos meses antes da
nomeação como mestre de capela da sé do Rio de Janeiro, onde, na infância, exercera
as funções de moço de coro. Sendo uma das raras obras do compositor que pressupõe
a alternância com o cantochão, desenvolve-se em onze partes, contrastantes entre si,
alternando solos com tuttis, numa textura marcadamente silábica.
Quanto à Missa dos Defuntos, foi composta em 1809, com destino à Capela Real,
provavelmente para a solenidade dos Fiéis Defuntos. O essencial da linguagem musical de
José Maurício Nunes Garcia permanece – uníssonos, harmonias rebuscadas, alternâncias
constantes entre tonalidades maiores e menores, progressões suspensivas –, mas nota-se um
refinamento a que não foi por certo alheio o facto de nesse mesmo ano ter sido nomeado
arquivista da biblioteca musical do palácio de Queluz, também ela empacotada e remetida
para o Brasil. Exemplo disso são os andamentos ternários, galantes, ao gosto napolitano,
tão grato ao gosto da real pessoa, como é o caso do Gradual, de fugattos, na conclusão do
Offertorio ou ainda nos arcaizantes versos a duo, como o Hostias, ou o Requiem æternam na
Communio.
josé bruto da costa
!
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