cadernos 23 - Grupo de Estudos Espinosanos
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cadernos 23 - Grupo de Estudos Espinosanos
XXIII ISSN 1413-6651 São Paulo - 2010 Editora Responsável Institucional Marilena de Souza Chaui Editora Responsável Tessa Moura Lacerda N. XXIII, JUL-DEZ DE 2010 – ISSN 1413-6651 Comissão Editorial Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva. Conselho Editorial Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo PiresAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofolini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de Lyon). Pareceristas Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Douglas Ferreira Barros, Eduardo de Carvalho Martins, Eduino José de Macedo Orione, Fernando Dias Andrade, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho, Sérgio Xavier Gomes de Araújo. Ficha Catalográfica Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2010. Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651 Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII Universidade de São Paulo Reitor: Prof. Dr. João Grandino Rodas Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira de Cruz FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretora: Profa. Dra. Sandra Nitrini Vice-Diretor: Prof. Dr. Modesto Florenzano Departamento de Filosofia Chefe: Roberto Bolzani Filho Vice-Chefe: Márcio Suzuki Coord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de Ávila Zingano e Carlos Alberto Ribeiro de Moura Imagem da Capa: Belvedere (Litogravura) M. C. Escher 1958 Endereço para correspondência: Profa. Marilena de Souza Chaui A/C Grupo de Estudos Espinosanos Departamento de Filosofia – USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 05508-900 – São Paulo-SP – Brasil Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431 e-mail: [email protected] site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// [email protected] /// Tiragem: 500 exemplares A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças. 3 APRESENTAÇÃO O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período, diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para, como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito. Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição. O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país. Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão, regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros, contribuindo com o acervo sobre o assunto. Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar conosco no desenvolvimento deste trabalho. Franklin Leopoldo e Silva 5 SOBRE ESTE NÚMERO Este número traz uma diversidade de autores do século XVII: dois artigos sobre Leibniz (em sua complexa relação com a filosofia espinosana e na diferença entre o possível e o existente); dois artigos sobre Hobbes (sobre sua noção de causalidade e sobre o direito natural); dois artigos sobre Espinosa (sobre a política nesse autor); um artigo sobre a noção de liberdade para Descartes; e finalmente um artigo sobre um autor contemporâneo: MerleauPonty e sua crítica ao chamado “paradigma cartesiano de pensamento”. Este número conta ainda com a tradução das anotações de Leibniz sobre o primeiro livro da Ética de Espinosa. Boa leitura! Os Editores 7 SUMÁRIO LEIBNIZ, 1678: ANOTAÇÕES DE LEITURA DA ÉTICA DE ESPINOSA Ulysses Pinheiro.....................................................................................11 A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADE Celi Hirata...............................................................................................33 Possíveis e Existentes em Leibniz Wilson Alves Sparvoli.............................................................................59 A concepção cartesiana da liberdade nos Princípios da Filosofia Mariana de Almeida Campos.................................................................73 Imagens e analogias do corpo e da mente na política de Spinoza Alexandre Arbex Valadares.....................................................................95 Imaginação: entre o medo e a liberdade Daniel C. Avila.......................................................................................135 O DIREITO À VIDA NOS ELEMENTOS DA LEI NATURAL E POLÍTICA DE HOBBES Rogério Silva de Magalhães..................................................................159 9 Para além do corpo-objeto e da representação intelectual: como Merleau-Ponty redescobre o corpo como veículo da existência José Marcelo Siviero.............................................................................187 SOBRE A ÉTICA DE BENTO ESPINOSA G. W. Leibniz............. .........................................................................................215 Notícias.....................................................................................................254 INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES...........................................................257 CONTENTS...................................................................................................258 LEIBNIZ, 1678: ANOTAÇÕES DE LEITURA DA ÉTICA DE ESPINOSA* Ulysses Pinheiro** Resumo: Este artigo analisa as anotações que Leibniz escreveu, em 1678, sobre a então recém-publicada Ética de Espinosa, mostrando como elas prefiguram alguns desenvolvimentos posteriores de sua teoria metafísica. Partindo de uma análise das críticas de Leibniz à Proposição 2 da Parte I da Ética, o artigo mostrará como as discussões sobre a compatibilização entre liberdade e determinismo, que ocuparam o centro de suas preocupações metafísicas nas décadas seguintes, retomam, ainda que com modificações, temas e problemas tratados nessas notas. Particularmente, será mostrado que a relação entre autonomia e poder de escolha pode ser melhor compreendida como um desenvolvimento de teses exploradas nessa leitura inicial da obra de Espinosa. Palavras-chave: Leibniz, Espinosa, monismo, determinismo, liberdade. Na data de seu encontro pessoal com Espinosa, em 1676, Leibniz já havia lido seu Tratado Teológico-Político, e provavelmente também os Princípios da Filosofia de Descartes1, além de ter tomado conhecimento das teses centrais de sua obra principal (e à época inédita), a Ética, mas teve de esperar até 1678 para finalmente ter o livro entre as mãos. O exame atento de como Leibniz recebeu, criticou e eventualmente assimilou as proposições da Ética pode ser usado como um princípio hermenêutico para compreender a elaboração, então ainda em curso, de seu próprio sistema. A partir da exposição de trechos das anotações nas quais as teses * Este texto foi escrito graças ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), através do Programa de Apoio a Humanidades 2008 e do Pronex Predicação e existência. O autor também conta com a bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida pelo CNPq. ** Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 10 11 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro em questão foram formuladas, explicar as divergências assinaladas por se formava então na Europa. Ainda em busca de Espinosa, Leibniz faz um Leibniz em sua leitura será um dos índices que permitirá avaliar um co- longo desvio de sua viagem de Paris até Hanover, onde ocuparia o cargo pertencimento e uma distância entre essas figuras centrais da modernidade. de bibliotecário da Corte, passando por Haia para conversar pessoalmente Não se trata de elucidar a relação entre eles a partir da difícil noção de com o autor do livro tão ansiosamente aguardado. “influência”, nem da idéia reguladora de um “diálogo” que tivesse como A curiosidade de Leibniz explica-se por um conjunto de motivos resultado o estabelecimento de um julgamento final sobre a verdade e a – ou, pelo menos, podemos inferir algumas dessas razões a partir de outros falsidade contidas na teoria de um ou de outro . Ao invés disso, o método escritos da mesma época. Primeiramente, já então envolvido no projeto de de contraposição aqui adotado é buscar, na figura que Espinosa assume formular uma “linguagem universal” para a ciência, mas tendo em vista, no contexto da teoria de Leibniz, a manifestação de traços essenciais do sobretudo, o objetivo político maior de pensar os fundamentos da sociedade pensamento desse último. européia na unidade da Igreja através da reunificação da cristandade, 2 No inicio dos Novos ensaios, é traçado um conflito dramático Leibniz via, na anunciada filosofia esotérica de Espinosa, escrita, segundo constitutivo da obra, o qual não opõe, como se poderia supor, as teorias de se dizia no círculo restrito dos que conheciam versões ou trechos da Leibniz e Locke, mas antes as de Leibniz e Espinosa: o primeiro, travestido obra, “à maneira dos geômetras”, uma possível contribuição a (ou talvez sob a figura de Teófilo, parece confessar, numa espécie de autobiografia mesmo a realização acabada de) seu próprio projeto de elaboração de uma intelectual, ter, em certa época, quase se “convertido” ao espinosismo. A língua perfeita que exprimisse a estrutura lógica do pensamento, livre das resistência a essa conversão é suficientemente importante para justificar contingências históricas que contaminam as línguas naturais. A decepção o batismo de ninguém menos do que do protagonista do diálogo; Leibniz de Leibniz, ao ler a obra póstuma no começo de 1678, manifesta-se nas descreve aí a tentação de aderir à filosofia de Espinosa, para acrescentar inúmeras críticas, escritas à margem do texto ou em suas anotações privadas, logo em seguida: “mas essas novas luzes me curaram, e desde essa época algumas vezes expressas em tom áspero, contra as demonstrações propostas adoto às vezes o nome de Teófilo”3. Não discutiremos aqui se a tentação por Espinosa. Em segundo lugar, Leibniz aparentemente também buscava, narrada por Leibniz nesse trecho foi real ou apenas um recurso literário, na filosofia espinosana, uma contribuição para suas tentativas de elaborar mas é inegável que ela corresponde a um fato marcante em sua vida: mesmo uma prova para a existência do Ser necessário que explicasse, ao mesmo antes de seu “período parisiense”, que transcorreu entre os anos de 1672 tempo, o estatuto ontológico dos seres contingentes e unisse, em uma única e 1676, Leibniz já tinha conhecimento da filosofia de Espinosa, da qual explicação coerente, essas duas modalidades do ser. A decepção aqui talvez se aproximou, primeiramente, com reservas . Em Paris, fez contatos com tenha sido ainda maior: o necessitarismo implicado pela noção espinosana membros do “círculo espinosista” – principalmente o jovem matemático e de substância será, no fim da década de 1670, duramente criticado, e depois cientista Tschirnhaus, cuja indiscrição hesitante lhe permitiu os primeiros incorporado, como uma espécie de slogan filosófico, a todas as suas críticas contatos com a expressão máxima da obra de Espinosa, o manuscrito da aos “novos filósofos” (i.e., os cartesianos e os hobbesianos). A partir da Ética, que circulava entre poucos no movimento “radical” subterrâneo que década de 16805, o espinosismo será caracterizado como a realização mais 4 12 13 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro bem acabada do cartesianismo, mas não merecerá mais nenhum exame O argumento de Leibniz é labiríntico: em primeiro lugar, concede detalhado como os que ele lhe consagrou no conjunto de anotações sobre que, se atributos forem entendidos como predicados concebidos por si a Ética, datadas de 1678 . A crítica a Espinosa ocupa, assim, uma função mesmos, então duas substâncias com atributos diferentes não têm nada peculiar no desenvolvimento intelectual de Leibniz: formulada de uma vez em comum entre si; em seguida, formula uma objeção contra a Proposição por todas nesse primeiro contato, permanecerá como um axioma negativo 2, negando que seja absurdo que duas substâncias distintas possam ter pelo resto de sua obra. Mostraremos adiante que esse axioma oculto é alguma coisa em comum (precisamente, atributos que são concebidos por compatível com alguns desenvolvimentos posteriores do pensamento si mesmos); finalmente, diz que sua própria objeção poderia ser respondida leibniziano, especialmente com os conceitos de noção completa e com sua por Espinosa, mas não explicita em que consistiria essa resposta; ao invés concepção acerca da liberdade e da contingência; antes disso, porém, é disso, recusa o argumento e a própria questão que ele tenta responder preciso entender sua formulação nesse momento inaugural. porque nega que possa haver dois atributos exprimindo a mesma essência. 6 O cerne da crítica que Leibniz elaborou em 1678 à Ética de Espinosa encontra-se em seu comentário sobre a Proposição 2 da Parte I; diz ele: Entretanto, com esse último movimento, parece ter sido retirada a base de sua crítica inicial, pois o que ele implica diretamente é que, dada a definição de substância a partir de uma de suas propriedades (a de “ser Proposição 2. Duas substâncias com atributos diferentes não têm nada em comum. Se por atributos ele entende predicados que são concebidos por si mesmos, concedo a proposição [....] Mas o caso é diferente se essas duas substâncias têm alguns atributos diferentes e alguns em comum, como quando c e d são atributos de A, e d e f, atributos de B. [....] Talvez ele pudesse demonstrar a proposição contra essa objeção, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essência (sendo atributos da mesma substância A, por hipótese), e d e f também expressam a mesma essência, pela mesma razão (sendo por hipótese atributos da mesma substância B), c e f também devem [exprimir a mesma essência]. Portanto, segue-se que A e B são a mesma substância, o que é contrário à hipótese, sendo, pois, absurdo que duas substâncias distintas possam ter alguma coisa em comum. Retruco que não concedo que possa haver dois atributos que são concebidos por si mesmos e ainda assim possam expressar a mesma substância. Pois quando quer que isso ocorra, esses dois atributos expressando a mesma coisa de diferentes modos podem ser analisados, ou pelo menos um deles. Isso posso facilmente provar. (Leibniz 11, GP 1, p.141) 14 em si”), segue-se imediatamente outra propriedade, a de “ser concebida por si”. Ora, é essa assimilação que, nos comentários sobre a Ética, é enunciada precisamente como o principal ponto de discórdia com relação à teoria de Espinosa7, sendo incessantemente repetido ao longo das notas de leitura redigidas nesse período – por exemplo, ao comentar a Definição 3 da Parte I, diz Leibniz: Definição 3. Substância é aquilo que é em si e é concebido por si. [....] Então podemos perguntar: [....] a substância é ao mesmo tempo em si e concebida por si? Mas então seria necessário para ele provar que o que quer que tenha uma propriedade também tem a outra, embora o contrário pareça antes ser verdadeiro [....]. E esse [isto é, a tese contrária à de Espinosa] é o modo como os homens usualmente concebem as substâncias. (Leibniz 11, GP 1, p.139) A importância que Leibniz concedeu à Proposição 2 fica clara à luz desse último trecho: ela é o ponto de partida do qual todo o sistema 15 16 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro espinosano é derivado, já que a Proposição 1 é, aos seus olhos, supérflua8, partir das propriedades de “ser em si” e “ser concebida por si”, pois, como e nessa demonstração inicial encontram-se em germe as polêmicas teses veremos adiante, se a recusa da conexão entre elas garante uma explicação do monismo e do determinismo absoluto, contra as quais Leibniz volta para a contingência requerida pelo poder de escolha, a afirmação dessa todo seu arsenal argumentativo ao longo da polêmica de uma vida inteira mesma conexão é o que fundamenta a autonomia das ações. De fato, a teoria contra o “espinosismo”. Dada a tese espinosana segundo a qual duas leibniziana da noção completa, elaborada em sua forma acabada na década substâncias numericamente distintas não podem ter nenhum atributo seguinte9, segundo a qual todas as substâncias são individuadas por meios comum entre si, segue-se que cada substância é um princípio único de puramente conceituais, parece assimilar as propriedades de “ser em si” e autodeterminação, o qual, não sendo influenciado por nada de externo, “ser concebido por si”, o que permitiria explicar a autonomia das substâncias só pode ser explicado, internamente, por sua própria essência – o que através de sua completa independência conceitual, mesmo com relação a implica diretamente, segundo o autor da Ética, o determinismo absoluto, Deus: esse último encontra prontas em seu intelecto as idéias das substâncias já que todas as propriedades de uma substância (inclusive sua existência) possíveis. Por outro lado, a contingência do mundo atual e, por transitividade, seriam derivadas logicamente de sua essência. de todos os acontecimentos que nele ocorrem, só é possível se a criação A ambigüidade presente no argumento de Leibniz é explicada em do mundo por Deus for explicada a partir de uma relação entre o criador parte pelo fato de, em um certo sentido, ele ter de recusar a conexão entre as e as criaturas, concebidas como substâncias, que inclua uma comunidade duas propriedades da substância discriminadas acima, e, em outro sentido, de atributos (ainda que sob a forma de limitação e de negação10), o único ter de aceitar essa mesma conexão, tendo em vista a inteligibilidade das modo de exprimir de forma inteligível uma relação causal que preserve o substâncias criadas e, no caso dos indivíduos dotados de razão, sua autonomia poder de escolha dos seres finitos. A questão inicial com a qual temos de como agentes livres. Inteligibilidade e autonomia que ele sempre se recusou nos defrontar diz respeito, pois, ao modo de conciliar essas duas posições a separar: se um agente é livre, ele o é tanto mais sua liberdade enraíza- aparentemente antagônicas. Para explorar o modo como Leibniz viu essa se em uma compreensão (e, veremos adiante, em uma autocompreensão) conciliação, voltemos a seu comentário da Proposição 2 da Parte I da Ética, racional de sua essência. Se é verdade, como dirá Leibniz mais tarde, que pois desde esse primeiro contato com o texto tão ansiosamente aguardado o passado está impregnado de futuro, então talvez fosse legítimo supor que por um ano11, a recusa do “fatalismo” necessitarista que ele reconheceu nas a consciência, ainda que implícita, dos desenvolvimentos posteriores de páginas recém folheadas guiou suas críticas. seu próprio sistema guia as anotações feitas à margem da Ética – ou, seria A leitura atenta das anotações de Leibniz revela não só uma melhor dizer, parece ser parte de seu processo constitutivo. Um indício disso crítica ao uso ambíguo que Espinosa faz da palavra “atributo”, mas uma é a constatação de que os paradoxos envolvidos na proposta compatibilista contaminação do próprio Leibniz por essa ambigüidade12: essa palavra entre liberdade e determinismo, proposta por Leibniz após 1685, e dos quais é usada tanto por ele quanto pelo autor que critica ora para significar a muitos duvidam que ele tenha conseguido se livrar, manifestam-se desde totalidade da essência da substância (o equivalente do “atributo principal” essa raiz metafísica que é a caracterização do conceito de substância a cartesiano), ora para significar uma das formas ou propriedades que 17 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro constituem a essência da substância. Podemos desfazer essa ambigüidade complexo se resolve porque a essência é uma lei (ou noção) individual. reservando ao primeiro sentido a palavra “essência” e ao segundo, a palavra Nesse sentido, Deus é o sujeito de predicação de todas as formas simples, “atributo” . O que Leibniz pretende mostrar é que, em certo sentido, uma mas a essência de Deus não é o mero agregado dessas formas, nem cada substância, que é “em si”, não é “concebida por si”, na medida em que ela tem uma delas tomada separadamente16. Porque as formas são simples17, em comum com as outras substâncias (Deus e as demais substâncias criadas) nenhuma proposição afirmativa verdadeira poderia ser dita da relação que muitos atributos; em outro sentido, porém, cada substância é “concebida por elas estabelecem entre si se elas não estivessem unidas a um sujeito (por si”, pois a essência de cada uma delas é qualitativamente diferente da de exemplo: o pensamento não é a duração, mas o sujeito que pensa dura). todas as demais. É só ao manter, simultaneamente, que a cada substância Mas isso mostra precisamente a diferença entre as formas e a substância. individual corresponde uma única essência, e que essa essência é composta Ora, é a substância que tem uma essência. As formas simples são todas elas por atributos compartilhados com outras substâncias (e, em sua forma e apenas elas atributos de Deus, elementos primeiros de sua possibilidade, absoluta, com Deus) que Leibniz poderá explicar a criação de substâncias ainda que Deus as preceda todas em ato: “as formas são concebidas por si, que formam um subconjunto do conjunto de substâncias possíveis. os sujeitos o são pelas formas e pelo fato de que são sujeitos”18. A relação 13 Feita essa distinção entre “essência” e “atributo”, fica claro por entre os atributos e as substâncias (Deus ou as criaturas) é a relação entre que o comentário de Leibniz sobre a Proposição 2 é compatível não só com abstratos (expressos em predicados) e o concreto (uma coisa substancial, a doutrina da noção completa, enunciada de forma clara a partir de 1685, plenamente inteligível) – os primeiros encontram-se em um ser concreto e da qual essa distinção é ao mesmo tempo um signo e uma causa, mas que é a condição de sua existência, mas que encontra neles, por sua vez, também com o argumento para provar a existência de Deus, elaborado em a condição de sua essência. A substância não é definida pela lista de seus 1676 durante suas discussões com Espinosa em Haia, e retomado ao longo atributos, como se as variações dos atributos fossem suficientes para dos anos seguintes . De fato, esse último argumento afirma que Deus é singularizar o sujeito19: ela é a razão ou o fundamento que permite deduzir um ser dotado de infinitas perfeições ou infinitos atributos, enquanto o todos os atributos do sujeito que ela designa, o que faz que a relação de argumento de 1678 contra a Proposição 2 afirma que, se mais de uma inerência seja também uma relação de fundamento explicativo. 14 propriedade exprime a essência de uma substância, então uma delas não é Poderíamos tentar discernir nessa última afirmação a “resposta de simples, e pode ser analisada até se chegar a algo simples. A divergência Espinosa” aludida por Leibniz em sua crítica à Proposição 2. Como vimos, com Espinosa15 poderia ser interpretada da seguinte maneira: a propriedade essa resposta permaneceu inarticulada no comentário leibniziano, o qual, de “exprimir uma essência” só pode ser aplicada a algo simples, de tal lembremos, é formulado nos seguintes termos: modo que vários atributos simples não podem ser predicados de uma mesma coisa se a predicação for entendida como “expressão da essência”. Toda substância tem apenas uma essência simples, embora ela seja, em certo sentido, complexa e completa: essa conjunção do simples e do 18 Talvez ele pudesse demonstrar a proposição contra essa objeção, como se segue. Uma vez que d e c ambos expressam a mesma essência (sendo atributos da mesma substância A, por hipótese), e d e f também expressam a mesma 19 Cadernos Espinosanos XXIII essência, pela mesma razão (sendo por hipótese atributos da mesma substância B), c e f também devem [exprimir a mesma essência]. Portanto, segue-se que A e B são a mesma substância, o que é contrário à hipótese, sendo, pois, absurdo que duas substâncias distintas possam ter alguma coisa em comum. (Leibniz 11, GP 1, p.141) Ulysses Pinheiro (o que equivale à tese provada na Proposição 5). Essa análise de Bennett poderia servir como base para completar o argumento da Proposição 2, da seguinte maneira: se uma substância A fosse d e c e apenas d e c e se uma substância B fosse d e f e apenas d e f, algo teria de explicar esse fato; ora, o que explicaria esse fato só poderia ser o atributo d (já que nada mais, por hipótese, é dado na realidade de A e de B). Mas isso significaria que d 20 Não fica claro, nesse trecho, o conteúdo completo do argumento, explica ao mesmo tempo fatos diferentes, o que é incompreensível (ainda aqui apenas esboçado, que Leibniz sugeriu ao se colocar no lugar de mais se levarmos em conta que, sendo uma forma simples, d não implica Espinosa e imaginar sua resposta à objeção formulada logo antes. Podemos nem c nem f). Logo, a situação descrita na hipótese inicial é impossível ensaiar uma hipótese sobre seu significado, desde que reconheçamos desde porque é inexplicável. Contra essa conclusão, poder-se-ia formular a o início que ela permanecerá sempre uma especulação não comprovável seguinte objeção: se o atributo d não pode explicar a diferença entre A e B, textualmente, como indica o próprio preâmbulo da leitura leibniziana do então ele não pode explicar tampouco por que, no caso em que A tivesse texto espinosano, enunciado justamente como uma marca de prudência: “... os atributos d e c e B tivesse os atributos f e g, A teria o atributo c – mas forte demonstrabit hoc modo”. Essa especulação teria a seguinte forma: um só o atributo d parece poder explicar esse fato. Contra essa objeção, seria exame atento da Proposição 2 deve admitir, inicialmente, que ela pode ser possível imaginar a seguinte resposta: o que explica a presença de c em lida de duas maneiras: ou bem como afirmando que, se duas substâncias A é apenas a compossibilidade entre d e c, a qual é a razão explicativa de diferem com relação a todos os seus atributos, então elas não têm nada em sua atribuição a A; se, em seguida a essa resposta, for perguntado por que comum entre si, ou bem como afirmando que, se duas substâncias têm um existem algumas compossibilidades e não outras, a resposta seria: todas as atributo distinto de algum atributo da outra, então elas não têm nenhum compossibilidades existem (porque tudo o que é possível necessariamente atributo em comum entre si. É apenas a segunda leitura que permitiria a existe); só existe uma única substância (Proposição 14). “resposta de Espinosa” obscuramente sugerida por Leibniz20. Bennett (1, Mas basta por ora de especulações sobre o que Leibniz teria podido §17) sugere que, dada a tese do racionalismo explicativo (isto é, a tese que querer dizer; o que quer que ele tenha pensado sobre esse ponto, o que é afirma a validade irrestrita do Princípio de Razão Suficiente), se houvesse importante notar, tomando como base o que ele efetivamente escreveu, é que n substâncias com o atributo d, algo teria de explicar esse fato; ora, essa a mera distinção conceitual entre “essência” e “atributo” não resolve todas explicação teria de derivar de d, isto é, do que d é, isto é, da definição de as dificuldades relacionadas à caracterização da natureza das substâncias d. Mas nenhuma definição exprime um número determinado de indivíduos individuais a partir das propriedades de “ser em si” e “ser concebido por (pela Proposição 8), uma vez que ela se limita a exprimir a natureza da si”. Em particular, a atribuição de liberdade às substâncias individuais coisa definida. Logo, dizer que há um número n de substâncias com o proposta por Leibniz deve explicar sua autonomia levando em conta sua atributo d seria uma afirmação para a qual nenhuma razão poderia ser dada versão peculiar da atribuição a elas da propriedade de “ser concebidas por 21 22 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro si”: enquanto os indivíduos espinosanos (os modos finitos da substância partir da maneira como as discussões sobre a ontologia fundamental das única) podem ser ditos autônomos na medida em que suas ações não são substâncias desembocam em uma teoria do juízo que pretende explicar a explicadas por causas externas, os indivíduos leibnizianos aparentemente liberdade das substâncias individuais. só podem ser, tanto quanto a substância única de Espinosa, inteiramente Em muitos textos, Leibniz definirá a autonomia envolvida na ativos, já que nada de externo age sobre eles (a não ser Deus, na medida escolha livre pelo simples exercício da capacidade de julgar, através da em que os cria). Paradoxalmente, esse excesso de independência traz qual representamos possibilidades alternativas que exercem a função de problemas não só, como era de se esperar, para a atribuição da contingência causas finais sobre as quais incidem diversos desejos. Os desejos, por sua envolvida no poder de escolha, uma vez que tudo o que acontece a uma vez, estão submetidos a uma lei natural instaurada por Deus23, a Lei da substância é uma ação que se segue de seu conceito, mas também para a Vontade, formulada como instância do Princípio da Perfeição, segundo a própria noção de autonomia, uma vez que a passividade deve ser explicada qual os homens farão sempre o que lhes parece ser o melhor. Dessa forma, a partir de determinações intrínsecas à substância – todas as suas ações, as duas proposições seguintes não são, ao contrário do que aparentam à tanto as ditas “livres” quanto as “involuntárias”, seriam o resultado primeira vista, contraditórias: I- “a mente não escolhe nunca o que no causal de sua essência, a qual é “concebida por si” (no sentido relevante momento [impræsentiarum] lhe parece ser o pior” e II- “a mente não discriminado acima21). Como se sabe, Leibniz terá uma saída elegante para escolhe sempre o que no momento lhe parece ser o melhor” (Leibniz 14, esse problema, ainda que ela só seja elaborada em textos muito posteriores C 21)24. Ora, se fossem dados a um sujeito S dois objetos de escolha, A ao fim da década de 1670 (saída essa que manifestaria uma influência e B, e se A lhe parecesse ser melhor do que B, por que seria impossível, inequívoca de Espinosa (Cf. Friedmann 7, p.292-293)): ele distinguirá como afirma Leibniz, para alguém que tivesse acesso aos estados mentais ações e paixões a partir de características internas das almas (i.e., de suas de S anteriores e contemporâneos à deliberação, prever que S escolherá percepções: idéias claras e distintas e idéias obscuras e confusas). Esse A naquele momento? Ou ainda: se for certo, por uma lei natural, que S tipo de explicação será especialmente adequado ao sistema leibniziano, não escolherá B, e supondo-se que ele fará uma escolha, por que não é no qual, ao contrário do espinosano, não se admite haver influência real imediatamente certo que ele escolherá A? Leibniz explica: a mente “pode entre indivíduos22. Mas então Leibniz deverá explicar em que consiste essa adiar e suspender o juízo até uma deliberação ulterior, desviando a alma determinação interna a partir de idéias claras e distintas. É exatamente isso [animum] em direção a outros pensamentos” (Leibniz 14, C 21-22)25; qual o que ele fará, a partir de uma análise do conceito de juízo. Vejamos, pois, pensamento finalmente lhe ocorrerá não pode ser o objeto de nenhuma como a filosofia madura de Leibniz, partindo da aceitação desse “axioma lei pré-definida, pois é pela pura espontaneidade de sua mente26, causa de negativo” formulado às margens das páginas da Ética, tentará resolver tal suas representações, que, no momento seguinte, S (sua alma) pensará em, impasse. Fazer esse movimento anacrônico nos permitirá discernir mais digamos, C, que aparecerá como melhor do que A (e, a fortiori, do que B), claramente a forma como a recepção da filosofia de Espinosa moldou e que será objeto do desejo mais forte. Cumprindo assim a Lei da Vontade as reflexões de Leibniz sobre o problema da liberdade, especialmente a (que é válida sem exceções), S escolherá C. 23 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro Novamente aqui, a solução de Leibniz é extremamente engenhosa um gabinete em Hanover. Mas, uma vez acertadas essas contas teóricas, e original. Enquanto que, para Descartes, a liberdade da vontade se definia a luta política e religiosa contra o “espinosismo” poderá desde então ser por duas características independentes , a saber, a espontaneidade (ou travada publicamente, em um combate incessante em prol de uma Europa “facilidade na determinação”) e o poder de escolha entre contrários (a a ser libertada de seu principal inimigo. O fracasso desse combate, agora “indiferença positiva”), e que, para Espinosa, a liberdade se definia apenas constatado retrospectivamente, tendo em vista os resultados do projeto pela espontaneidade (o livre arbítrio sendo denunciado como uma ilusão), iluminista em parte inspirado por Leibniz, não pode ser usado para medir para Leibniz a espontaneidade é equivalente ao poder de escolha. Escolher o talento do desafiante. 27 não significa nada além do que ser a causa autônoma de nossas representações: porque podemos suspender nossos juízos e introduzir autonomamente uma nova representação no curso da deliberação, podemos nos subtrair à ordem das causas eficientes e escolher algo diferente daquilo que indicava a Lei da Vontade (que, ainda assim, será efetiva quando a escolha for feita). A única condição para sermos livres é sermos racionais e dotados de um poder criativo de nos afigurarmos possibilidades alternativas. O único pecado é não nos determos suficientemente na deliberação e na reflexão dessas alternativas e, precipitadamente, escolhermos uma aparência de Bem que esconde o Mal; inversamente, nossa principal virtude é a atenção e a paciência28. Essa “solução” para o problema da compatibilização entre liberdade e necessidade está longe de ser inteiramente satisfatória – e as infindáveis retomadas do problema por parte do próprio Leibniz poderiam nos levar a suspeitar de que nem mesmo para ele sua solução encontrou uma formulação definitiva29. Mas esse breve resumo de uma de suas etapas iniciais (ou, talvez fosse melhor dizer, de uma de suas discussões preparatórias) nos permitiu, pelo menos, ver de que forma as críticas a Espinosa, escritas no limiar da década decisiva de maturação do pensamento leibniziano, prefiguraram e condicionaram seus desenvolvimentos posteriores. A partir de então, o nome “Espinosa” e o adjetivo “espinosista” serão os signos abreviados de uma divergência teórica que os opôs nesse momento inaugural, em parte pessoalmente, em Haia, e, depois da morte do filósofo, privadamente, em 24 Leibniz, 1678: lecture notes on Spinoza’s Ethics Abstract: This paper analyses the notes Leibniz wrote in 1678 on the then recently published Spinoza’s Ethics, showing how they foreshadow some ulterior developments of his metaphysical theory. Taking as the point of departure of this analysis Leibniz’s critics to Proposition 2 of the Part I of the Ethics, the paper will show how the discussions on the compatibility between freedom and determinism, that occupy the center of his metaphysical concerns in the following decades, resume themes and problems considered in these notes, even if they are somehow different from the original context. It will be showed, in particular, that the relation between autonomy and the power of choice can be better understood as a development of theses explored in this first reading of Spinoza’s work. Keywords: Leibniz, Spinoza, monism, determinism, freedom. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. BENNETT, Jonathan – A Study of Spinoza’s Ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 1984. 2. BEYSSADE, Jean-Marie – La Philosophie Première de Descartes. Paris: Flammarion, 1979. 3. CHAUI, Marilena – A nervura do real. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 4. DELEUZE, Gilles – Le pli. Leibniz et le barroque. Paris: Les Éditions de Minuit, 1988. 25 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro 5. DONEY, Willis – “Gueroult on Spinoza’s Proof of God’s Existence”. In: Spinoza – Issues and Directions. Leiden; New York: E.J. Brill, 1990, pp. 32-38. 15. ______ – [Rauzy] Recherches générales sur l’analyse des notions et des vérités. 24 thèses métaphysiques et autres textes logiques et métaphysiques. Org. por Jean-Baptiste Rauzy. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. 6. FICHANT, Michel – “L’origine de la négation”. In: Science et métaphysique dans Descartes et Leibniz. Paris: Presses Universitaires de France, 1998, pp. 85-120. 7. FRIEDMANN, Georges – Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1962. 8. GOLDENBAUM, Ursula – “Why Shouldn’t Leibniz Have Studied Spinoza? The Rise of the Claim of Continuity in Leibniz’s Philosophy out of the Ideological Rejection of Spinoza’s Impact on Leibniz”. In: The Leibniz Review, Vol. 17, 2007, pp. 107-138. 9. LACERDA, Tessa Moura – “Leituras leibnizianas de Espinosa”. In: Cadernos Espinosanos, VI, 2000, pp. 47-74. 10. ______ – “Simplicidade e variedade: um diálogo entre Leibniz e Espinosa”. In: O que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241. 11. LEIBNIZ, G. W. – [GP] Die philosophischen Schriften von G.W. Leibniz, ed. por C.J. Gerhardt, 7 vols., Berlin, 1875-1890, reedição Georg Olms, Hildesheim, 1978. 12. ______ – [NE] Nouveaux essais sur l’entendement humain. Paris: Flammarion, 1990. 13. ______ – [Grua] Textes inédits (d’après les manuscrits de la bibliothèque provinciale de Hanovre). 2 volumes. Ed. por Gaston Grua. Paris: PUF, 1998. 14. ______ – [C] Opuscules et fragments inédits de Leibniz. Extraits des manuscrit de la Bibliothèque royale de Hanovre. Ed. por Louis Couturat. Paris: Felix Alcan, 1903. 26 16. ______ – [A] Sämtliche Schriften und Briefe. Ed. Deutsche Akademie der Wissenschaften zu Berlin. Darmstad; Berlin: Akademie Verlag, 1923-. NOTAS: 1. Sobre a provável data em que Leibniz leu os Princípios, cf. Friedmann 7, pp. 86-87. Segundo Friedmann, as anotações de Leibniz à margem do primeiro livro publicado por Espinosa são posteriores a sua leitura da Ética, em 1678. 2. Ainda assim, para uma bem informada discussão recente sobre as possíveis influências de Espinosa sobre Leibniz, cf. o artigo de Goldenbaum 8, que trata da disputa que contrapôs, no final do século XIX, Erdmann e Stein a Guhrauer, Trendelenbourg, Foucher de Careil e Gerhardt. 3. Cf. Leibniz 12, I, 1. Como se sabe, a primeira redação dos Novos ensaios ocorreu em 1703, um ano antes que a morte de Locke interrompesse seu projeto de publicação. 4. Leibniz menciona Espinosa pela primeira vez em 1669, em carta de 30 de abril a Jacob Thomasius: ele comenta, não muito favoravelmente, Os princípios da filosofia de Descartes (cf. Friedmann 7, p. 86). Nessa carta, o nome de Espinosa aparece enumerado em uma lista de cartesianos, dentre os quais, segundo Leibniz, “não há quase nenhum que tenha acrescentado o que quer que seja às descobertas do mestre” (apud Friedmann, id. ibid.). É curioso notar que esse juízo preliminar será de certa forma mantido mesmo após ele estudar a obra de Espinosa, na medida em que considerará essa última como o desenvolvimento lógico do cartesianismo. Em 1670, com a publicação do Tratado teológico-político, Leibniz envolve-se em uma intensa troca de cartas, principalmente com correspondentes que, como ele, viam no livro um ataque à religião. No ano, seguinte, porém, escreve a Espinosa uma carta cordial (a única que restou da correspondência entre os dois filósofos, publicada, a contragosto de Leibniz, na edição da Opera Posthuma do filósofo herético). 5. Como nota Lacerda 9, p. 54, as objeções de Leibniz a Espinosa formuladas em 1678 se, por um lado, prefiguram o sistema maduro do primeiro, ainda são tributárias 27 28 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro de uma concepção escolástica de substância que não inclui a noção de força entre suas notas características (nem tampouco, portanto, sua concepção posterior dos atributos, entendidos como eventos): “A crítica a Espinosa é redigida [....] em um universo preso à linguagem escolástica e o seu pressuposto, mesmo que Leibniz já imaginasse incluir nas notas características do conceito de substância individual as reflexões trazidas da dinâmica e da matemática infinitesimal, não deixa de ser uma definição lógica de substância como sujeito, cujos atributos seriam predicados”. É curioso notar que o silêncio progressivo de Leibniz a respeito de Espinosa se dá no mesmo movimento de introdução dessa noção dinâmica de substância em seu próprio sistema – o que, entretanto, o aproximaria da concepção espinosana de substância. Essa discussão é retomada em Lacerda 10, p. 229. 6. Leibniz GP 1: 139-152. Há um segundo manuscrito de Leibniz sobre a Ética, reproduzido em Grua I: 277-286. Uma exceção notável ao silêncio que se segue a esses comentários mais extensos é seu exame das teses da Ética a partir de suas notas de leitura do livro Elucidarius cabalisticus, escrito pelo teólogo J.-G. Watcher em 1706. Apesar de ter sido editada por Foucher de Careil na França, no século XIX, sob o titulo um tanto equivocado de Uma refutação inédita de Espinosa, o texto trata principalmente das relações entre a cabala e a filosofia de Espinosa tal como Watcher as figurava. Para uma análise desse texto, cf. Lacerda 10, pp. 237-240. 7. Cf. sobre esse ponto Lacerda 10, p. 230, citando Marilena Chauí 3, pp.786-792. 8. Cf. seu comentário à Proposição 5 dessa mesma Parte I: “Observo além disso que a Proposição 1 é inútil a não ser para provar esta proposição. Ela poderia ter sido omitida, pois basta que a substância possa ser concebida sem suas afecções, seja ela anterior a elas por natureza ou não”. Com relação a essa crítica de Leibniz, é curioso notar que no Apêndice do Curto tratado, uma espécie de proto-Ética que só será descoberta e publicada no século XIX, os equivalentes das Proposições 1 a 4 da Ética aparecem como axiomas. 9. De forma paradigmática, no Discurso de metafísica e na correspondência com Arnauld. 10. Os atributos das substâncias finitas (complexos, relativos, em parte negativos) são limitações dos atributos divinos (simples, absolutos, positivos). 11. Como atesta sua correspondência com Schüller, um dos responsáveis pelo trabalho secreto e perigoso envolvido na publicação da obra póstuma de Espinosa. 12. Desde o inicio de suas anotações críticas sobre a Ética, Leibniz manifestou suas críticas às dificuldades presentes na definição espinosana de atributo (sintoma, a seus olhos, da deficiência da linguagem lógica do livro); comentando a Definição 4 da Parte I, ele se pergunta “se ele entende por atributo todo predicado recíproco, ou todo predicado essencial, seja ele recíproco ou não, ou, finalmente, todo predicado essencial primário ou indemonstrável da substância”. A crítica de Leibniz deriva, em suma, da constatação da ausência de uma definição lógica de atributo. 13. Um dos fragmentos de novembro de 1676 (A VI iii 574) formula precisamente dessa maneira a relação entre essência e atributos: “Um atributo é um predicado necessário que é concebido por si, isto é, que não pode ser reduzido a muitos outros”; “A essência é tudo aquilo que numa coisa é concebido por si, isto é, o agregado de todos os atributos”. 14. A nota que Leibniz redigiu durante os dias em que permaneceu em Haia, em novembro de 1676, é conhecida sob o título de Que o ser sumamente perfeito existe (A VI iii 578; G VII 261-263). 15. Embora possamos suspeitar se se trata de uma divergência real, pois a doutrina da Ética sobre as relações entre essência e atributos poderia ser interpretada como afirmando precisamente essa distinção. 16. O texto Sobre as formas ou atributos de Deus, de abril de 1676 (A VI iii 513515) elucida essa relação entre “atributos” e “essências”: “Os atributos de Deus são infinitos, mas nenhum envolve a essência total de Deus. Pois a essência de Deus consiste nisto: em que ele é o sujeito de todos os atributos compatíveis”. 17. Uma das características do pensamento maduro de Leibniz será um certo ceticismo quanto a nossa possibilidade de apreender essas formas simples – embora ele nunca tenha abandonado a tese acerca da necessidade de pressupô-las em uma explicação metafísica. 18. A VI iii 513-516, abril de 1676. Como vimos acima (nota 18), essa solução é em certo sentido similar à de Espinosa: esse último afirma que muitos (infinitos) atributos podem exprimir a mesma essência e que a essência da substância única é o agregado de todos os atributos logicamente possíveis. 19. Fichant, 6, pp. 107-108; Deleuze 4, pp. 60-67 (deve-se notar, porém, que ambos se referem primariamente à noção de substância da filosofia madura de Leibniz). Aqui se prenuncia a noção dinâmica de substância, formulada de modo claro nos anos seguintes. 20. Sobre essa dupla leitura da Proposição 2, cf. Bennett 1, § 17; Doney 5, pp. 3536. Como nota Doney, a primeira leitura da Proposição 2 implica a falsidade da Proposição 14, na medida em que essa última tem como premissa que não pode haver 29 30 Cadernos Espinosanos XXIII Ulysses Pinheiro mais de uma substância com o mesmo atributo: se houvesse outra substância além de Deus, ela teria de compartilhar algum atributo com Deus – o que apenas a segunda leitura da Proposição 2 refuta. 21. Isto é, usando a distinção entre “atributo” e “essência”, tomando tal distinção no sentido em que, para cada substância, há uma e apenas uma essência correspondente, e não no sentido em que não há nenhum atributo comum entre as várias substâncias. 22. Os indivíduos espinosanos são, como se sabe, coisas finitas que modificam os atributos infinitos de Deus; para esses modos, não há nenhum problema em admitir que eles têm coisas em comum entre si (justamente o atributo do qual eles são modificações). Ao caracterizar os indivíduos como substâncias que são, em um certo sentido, “concebidas por si”, Leibniz deve recusar uma influência real entre elas precisamente porque são essências diferentes. Essa solução, no entanto, traz consigo um novo problema: se o que permite a relação causal (de criação) entre Deus e as criaturas não é uma comunidade de essências (pois a essência de Deus é qualitativamente distinta da essência das criaturas), mas apenas uma comunidade de atributos (no caso da relação das substâncias criadas com Deus, há uma medida comum porque os atributos das primeiras são limitações dos atributos divinos), então por que a comunidade de atributos entre as substâncias criadas não seria suficiente para permitir relações causais entre elas? Esse problema seria provavelmente evitado por Leibniz graças a sua teoria acerca das noções completas: duas coisas finitas com essências distintas não têm nenhuma relação real entre si porque a essência de cada uma delas exprime-se em uma noção completa. No caso da relação entre Deus e as criaturas, a relação causal de criação não interfere nas noções completas das coisas, mas limita-se a acrescentar o predicado de existência a elas – ou seja, a existência não faz parte do conceito completo de nenhuma coisa. 23. Cf. Discurso de metafísica, Art. 13 (Leibniz 11, vol. 4, pp. 436-439): há dois decretos primitivos de Deus, o primeiro pelo qual Ele decide fazer sempre o mais perfeito e o segundo pelo qual Ele decide que o homem fará sempre (ainda que livremente) o que lhe parecerá ser o melhor. 24. C 21, sem título e sem data. Para a datação desse texto, cf. Rauzy (in: Leibniz 15, p. 325) (segundo Rauzy, a data mais provável é o começo dos anos 1690; segundo Parkinson, trata-se provavelmente de um texto escrito na metade da década anterior). 25. Deve-se notar aqui a oposição entre “mente” [mentem] e “alma” [animum], que talvez indique dois níveis mentais distintos, um mais ativo e outro passivo. Um resultado adicional interessante desse exame seria mostrar que Leibniz tem uma teoria original para explicar o fenômeno da acrasia ou incontinência, assimilando-o a uma espécie de omissão intencional. 26. Cf. Ensaios de Teodicéia, 323 (Leibniz 11, vol. 6, p. 308): “a forma ou a alma” (notar aqui uma certa hesitação) “é a fonte da ação, tendo em si o princípio do movimento e da mudança; em uma palavra, τό αύτοχίνητον, como Platão a chama”. 27. Pode ser dubitável, porém, que as duas características definitórias da liberdade sejam logicamente independentes para Descartes: mesmo quando a vontade é exercida em uma situação de indiferença negativa, na qual o poder de escolha se sobrepõe à espontaneidade, é requerido que haja autonomia (ausência de coerção) e, portanto, uma certa “facilidade” na autodeterminação. Da mesma forma, nas escolhas “fáceis” do Bem e do Verdadeiro, quando há uma forte inclinação em assentir ao que se apresenta de modo claro e distinto para a mente, deve haver a presença necessária da indiferença positiva (pelo menos se levarmos em conta a famosa carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645). Cf. sobre esse ponto Jean-Marie Beyssade 2, Cap. IV (“Le libre arbitre et le moment de l’élection”). A dimensão temporal do ato de escolha, constantemente assinalada por Beyssade em sua interpretação de Descartes, também encontra um lugar de destaque no texto de Leibniz que estamos examinando. Para uma espécie de antecipação cartesiana da resposta de Leibniz, cf. Carta a Mesland de 2 de maio de 1644. 28. A deliberação virtuosa deve ter seu término atentamente considerado, tendo como critério de seu fim a “vontade presumida de Deus, tanto quanto possamos julgá-la” – Discurso de metafísica, Art. 4 Leibniz 11, vol. 4, pp. 429-430). Sobre a ação indireta da vontade sobre as ações, será interessante comparar a teoria de Leibniz com a teoria de Descartes, tal como ela é exposta no Tratado das paixões da alma, Art. 27 e 50. O próprio Leibniz realiza essa comparação nos Ensaios de Teodicéia, Primeira Parte, §§ 60-65 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 135-138). Sobre o poder de escolha explicado pelo adiamento de uma decisão, cf. Ensaios de Teodicéia, Terceira Parte, §§ 326-327 (Leibniz 11, vol. 6, pp. 309-310). 29. Em particular, não basta afirmar que a autonomia é equivalente ao poder de escolha; é preciso dar a esse último um sentido que recupere ao menos parte de nossa compreensão corrente do ato de escolher como um evento que envolve a contingência. 31 A CAUSALIDADE EM HOBBES: NECESSIDADE E INTELIGIBILIDADE Celi Hirata* Resumo: O escopo do artigo é examinar a tese hobbesiana de que todo efeito possui uma causa necessária, indicando como o filósofo a demonstra de modos diferentes, mas complementares: em primeiro lugar, tanto por meio da identificação entre causa integral, causa suficiente e causa necessária, como pela redefinição dos conceitos de potência e ato; em segundo, através da subordinação do princípio de bivalência à determinação necessária dos eventos; e, por fim, pela defesa de que só por meio de uma causa necessária, causa que opera mecanicamente por meio de contato, é possível dar a razão pela qual os eventos possuem tais determinações espaciotemporais ao invés de outras, de modo que a causalidade mecânica necessária se estabelece como o único tipo legítimo de explicação dos fenômenos em Hobbes, transformando-se, então, na forma geral da inteligibilidade. Palavras-chave: causalidade, necessidade, requisito, mecanicismo, lei de inércia. 1. Causalidade e necessidade Na sua doutrina da causalidade, Hobbes reformula conceitos provenientes da tradição aristotélico-escolástica de maneira a substituir uma concepção qualitativa da natureza por uma física estritamente mecanicista (cf. Leijenhorst 18, p. 426 - 447). Trata-se de uma doutrina absolutamente central em seu sistema, sendo decisiva não apenas no campo da filosofia propriamente natural, mas também no campo da moral e da política, já que ela vale para todo tipo de evento, seja natural ou humano, de forma que tanto a concepção que Hobbes possui das paixões humanas como a que ele tem de liberdade decorrem diretamente do modo como ele pensa a relação entre causa e efeito. Mais do que isso, a doutrina da causalidade * Doutoranda do Departamento de Filosofia da USP. 33 Cadernos Espinosanos XXIII é determinante para a própria circunscrição da atividade filosófica ou Nesta primeira definição de causa apresentada no De Corpore, científica, uma vez que a filosofia em geral se define em Hobbes como Hobbes, além de determinar que a relação causal se dá entre acidentes (e investigação racional das conexões causais (Hobbes 7, I, §2, p. 2). Por ser não entre corpos ou substâncias) e envolve um agente e um acidente (isto uma teoria que está contida na própria definição de filosofia, ela começa é, dois termos, dos quais um gera ou destrói algum acidente e o outro sofre a ser constituída antes mesmo que a parte efetivamente doutrinária do De alguma alteração), realiza duas distinções que serão centrais na defesa da Corpore, a filosofia primeira, que deve fornecer as primeiras definições, tese de que todo evento tem a sua causa necessária. A saber: a discriminação seja iniciada. Uma vez que a investigação das relações causais se identifica entre o que é requisito e o que não é, por um lado, e entre causa integral e com a própria filosofia, o estabelecimento do que é causa e efeito torna- parcial, por outro. se central na instituição do método, que consiste justamente no caminho Em primeiro lugar, Hobbes salienta que a causa é constituída mais breve possível de investigação dos efeitos pelas causas conhecidas e, dos acidentes do agente e do paciente que estritamente concorrem para inversamente, das possíveis causas a partir de efeitos conhecidos (idem, VI, a produção do efeito. Quando o evento se dá, é preciso examinar as §1, p. 58 e 59). Assim, Hobbes apresenta no capítulo relativo ao método, circunstâncias que o antecedem para, por meio da análise ou da resolução, parte da Computatio sive logica, a definição de causa: isolar os diversos acidentes tanto no agente como no paciente que estavam Causa é a soma ou agregado de todos os acidentes, tanto no agente quanto no paciente, que concorrem para a produção do efeito proposto, de um tal modo que não se pode entender que todos existem sem que o efeito exista, ou que, estando qualquer deles ausente, que o efeito exista. Uma vez conhecendo-se o que é a causa, cabe examinar, um a um, cada um dos acidentes que acompanham ou precedem o efeito e que pareçam de algum modo contribuir para ele, e ver se, algum deles não existindo, pode-se ou não entender que o efeito proposto exista. Separam-se, desse modo, aqueles que concorrem para a produção do efeito daqueles que não concorrem. Feito isto, reúnem-se aqueles que concorrem e considera-se se é possível entender que, existindo todos simultaneamente, o efeito proposto não exista. Se não podemos conceber isso, aquele agregado é a causa integral do efeito, caso contrário, não, e, nesse caso, outros acidentes devem ainda ser buscados e acrescentados (Hobbes 13, VI, §10, p. 151). 34 Celi Hirata presentes na realização do evento. Feito isto, deve-se a seguir eliminar dentre estes quais não contribuem para o efeito, o que se faz por meio da hipótese da privação: caso se possa conceber que, na ausência do acidente examinado, o efeito se produza, então não se tratava de um fator ou requisito para a produção do efeito, mas de um acidente que, embora seja antecedente ao efeito, não faz parte de sua causa. É a estes acidentes que se aplica a denominação de contingentes, termo que denota a relação de independência causal de um acidente ou evento em relação a outro (Hobbes 7, IX, § 10, p. 112) ─ sem significar de modo algum a ausência de causa ou de necessidade dos eventos, como se mostrará. Ao contrário, se não se pode conceber a remoção do acidente examinado sem a remoção da própria causa, trata-se de um acidente que concorre para a produção do efeito, sendo ele, então, parte da causa. Fala-se, neste caso, de uma causa sine qua non, isto é, causa necessária por hipótese ou requisito para a produção do efeito, como Hobbes precisará no capítulo concernente à causa e ao efeito (idem, IX, §3, p. 107). Deste modo, só é parte da causa o que efetivamente 35 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata contribui para a sua produção, sendo que todos os outros acidentes do Isto é, se a concepção da reunião de todos estes acidentes não pode ser agente e do paciente com os quais o efeito não possui uma relação de separada da concepção da produção do efeito em questão, trata-se da dependência são excluídos da explicação causal. Ora, é por meio desta causa integral. Ao contrário, caso a separação da concepção da soma dos eliminação dos acidentes que não constituem requisitos para a produção fatores até então delimitados daquela do efeito produzido não resulte num do efeito da relação causal que se evitam as superstições, que se originam absurdo, numa impossibilidade de concepção, então não se trata da causa justamente devido à ignorância do que é a causalidade: como Hobbes diz integral, pois, “supondo-se estar todos [os acidentes tanto do agente quanto no Leviatã, a maioria dos homens, rememorando aquilo que eles viram do paciente, sem os quais o efeito não pode ser produzido] presentes, não anteceder determinados efeitos, sem examinar pelo raciocínio o que há se pode entender que o efeito não se produza no mesmo instante” (Hobbes no antecedente e no consequente que possui uma relação de dependência 7, IX, §3, p. 108). Se a conexão necessária entre a totalidade dos requisitos ou conexão, esperam supersticiosamente determinados eventos a partir de ou causa integral e o efeito se rompesse, ocorreria algo ininteligível. A fatos semelhantes, que não possuem parte na sua produção (Hobbes 8, XII, relação em questão é, assim, de natureza lógica: uma vez suposto o p. 97). Fica claro assim que a relação causal não consiste numa relação antecedente, é incompreensível que o consequente não se siga. Por isso, a de antecedência e sucessão simplesmente temporal, mas lógica, de forma ausência da produção do efeito sinaliza diretamente a ausência de um ou que a imaginação e a memória são, sem o recurso da razão e das suas mais requisitos necessários para a produção do efeito, devendo, então, o operações de análise e síntese, insuficientes para o estabelecimento correto agregado dos acidentes em questão ser incrementado com outros acidentes das conexões causais. indispensáveis para o engendramento do evento esperado até que a não- Em segundo lugar, na definição de causa supracitada, Hobbes produção deste seja inconcebível. Assim sendo, a totalidade exaustiva de determina o que é causa integral. Após a discriminação dos acidentes que todas as condições sine quibus non, isto é, das condições necessárias, para constituem fatores para a produção do efeito daqueles que não o são, o a produção do efeito, que constitui a sua causa integral, será, na filosofia que é realizado em parte pela análise ou resolução (distinção dos diversos de Hobbes, identificada com a condição suficiente desta produção, que, por acidentes que antecedem o efeito) e em parte por síntese (verificação de sua vez, será identificada com a sua causa necessária, transformando-se se o acidente em questão entra ou não na composição da causa), deve-se causa integral, causa suficiente e causa necessária em termos sinônimos. novamente pela síntese reunir todos os acidentes que constituem requisitos Eis a sinonímia que constitui o cerne da tese de que todo efeito possui uma para a produção do efeito e examinar se este agregado é suficiente ou não causa necessária: para a produção do efeito, exame que se faz por uma prova indireta, uma espécie de redução ao absurdo: caso não seja possível conceber que, estando todos aqueles acidentes reunidos, o efeito não se produza, fica patente que aquele conjunto de requisitos constitui a soma de todos os requisitos para a produção do efeito, soma que só pode ter como resultado o efeito proposto. 36 A causa integral é sempre suficiente para produzir o seu efeito, sempre que esse efeito seja de todo possível, porque qualquer efeito que se proponha para ser produzido, caso se produza, torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente; mas se ele não for produzido e ele for, no entanto, 37 Cadernos Espinosanos XXIII possível, é evidente que algo estava faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito não pode ser produzido, isto é, estava faltando algum acidente que era requisito para a sua produção. A causa não era, portanto, integral, ao contrário do que era suposto. Daí se segue também que, no instante em que a causa se torna integral, neste mesmo instante o efeito se produz; porque se não se produzisse faltaria algo requerido para a produção e não se trataria de uma causa integral como se supunha. Ao definir como causa necessária aquela que, uma vez suposta, o efeito não pode deixar de se seguir, concluir-se-á também que qualquer efeito que se produza o será por uma causa necessária. Porque o produzido, pelo mero fato de sêlo, teve uma causa integral, isto é, tudo aquilo que, uma vez suposto, não se pode conceber que o efeito não se siga; e essa causa é necessária. E, pela mesma razão, torna-se manifesto que quaisquer que sejam os efeitos que se produzirão no futuro, eles possuem uma causa necessária e que, deste modo, tudo o que tenha sido produzido ou que há de sê-lo, terá sua necessidade em coisas antecedentes (idem, IX, §5, p. 108 e 109; os itálicos do segundo parágrafo são meus). Deste modo, causa integral, causa suficiente e causa necessária se tornam conceitos intercambiáveis, pois só é suficiente a causa que é integral, isto é, a causa que dispõe da totalidade dos requisitos ou condições sine quibus non. E uma causa integral ou suficiente não pode, por definição, ser deficiente, sendo necessária a produção do efeito uma vez que a causa é dada. Como Cees Leijenhorst indica, esta identificação entre a causa suficiente e a causa necessária realiza-se por meio de uma reinterpretação destes dois conceitos, que podem ser encontrados em manuais escolásticos. Enquanto os escolásticos distinguiam a causa suficiente da causa necessária por meio da distinção entre condições internas e circunstâncias externas ─ mesmo havendo uma causa suficiente, o efeito pode não se produzir 38 Celi Hirata devido à interferência de uma circunstância externa, como, por exemplo, no caso de um fogo, que possui todas as condições requisitadas para queimar um pedaço de madeira, mas não o efetiva por causa de uma chuva ou vento repentinos, sendo que a causa necessária não se identifica com a causa suficiente porque aquela é a composição desta mais a ausência de impedimentos externos ─, para Hobbes, uma se iguala à outra na medida em que ele extermina a distinção entre condições internas e externas, tomando ambas como requisitos para a produção do efeito (Leijenhorst 18, p. 432). Afinal, requisito denota, como já foi dito, todos os fatores que possuem uma relação de causalidade ou dependência com o efeito, independentemente se estes estão no agente ou no paciente. Ora, na medida em que a totalidade dos requisitos para a produção do efeito equivale a esta produção mesma, o efeito torna-se a ratio congnoscendi de sua causa, de maneira que do efeito é forçoso deduzir que ele foi produzido por uma causa suficiente: como Hobbes diz, sua produção “torna manifesto que a causa que o produziu era suficiente”. Inversamente, a ausência do efeito proposto constitui um índice de que a causa não era integral, já que, neste caso, “é evidente que algo estava faltando ou no agente ou no paciente sem o qual o efeito não pode ser produzido”. Assim, de todo efeito produzido, na medida em que é índice de uma causa suficiente ou necessária, conclui-se que ele possui a sua causa necessária, o que vale não só para os efeitos produzidos no passado ou os que estão se produzindo no presente, mas também para os eventos futuros. Em oposição à noção de futuros contingentes, Hobbes atribui, então, necessidade a todos os eventos, independentemente destes serem passados, presentes ou futuros. Afinal, deve vigorar a mesma conexão lógica de antecedência e consequência em todas as relações de causa e efeito, independentemente da posição temporal dos homens em relação ao fenômeno examinado, de forma que “tudo o que tenha sido produzido ou 39 Cadernos Espinosanos XXIII que há de sê-lo, terá sua necessidade em coisas antecedentes”. Esta expansão da necessidade da relação da causa e do efeito para toda a extensão do tempo, independentemente se os eventos em questão são passados, presentes ou futuros, é tornada ainda mais explícita pelo tratamento que Hobbes dá ao par conceitual potência e ato. Atribuindo um significado novo a estes conceitos tradicionais, Hobbes reconduz a distinção entre potência e ato àquela entre causa e efeito, dizendo que ambas são a mesma coisa, ainda que a partir de diferentes considerações: quando o agente e o paciente possuem todos os requisitos necessários para a produção do efeito, dizemos que eles podem produzi-lo, isto é, que eles possuem a Celi Hirata É impossível um ato para cuja produção não há uma potência plena. Na medida em que potência plena é aquela na qual todas as coisas que são requisitos para a produção do ato concorrem, se a potência nunca for plena, sempre faltará uma destas coisas sem as quais o ato não pode ser produzido; donde aquele ato nunca poderá ser produzido, isto é, é impossível: e todo ato que não é impossível é possível. Todo ato que é, portanto, possível deve ser produzido em algum momento; pois se ele nunca for produzido, então aquelas coisas que constituem requisitos para a sua produção nunca deverão concorrer; donde ser aquele ato impossível por definição, o que é contrário ao que era suposto (idem, X, § 4, p. 115). potência (potentia, power) para esta produção, sendo que a potência do 40 agente equivale à causa eficiente e a potência do paciente à causa material. Neste parágrafo, Hobbes reproduz em certa medida aquele A única diferença é que o termo causa diz respeito ao efeito já produzido e o argumento supracitado de que todo efeito possui uma causa necessária, termo potência é relativo a este mesmo efeito a ser produzido no futuro, de argumento que recorre à dupla implicação, seja entre causa e efeito, seja modo que “causa” se refere ao passado e “potência” ao futuro. Da mesma entre potência e ato: a potência plena não pode, consistindo na totalidade maneira, o acidente produzido é, em relação à causa, efeito, e, em relação à dos requisitos para a produção do ato, deixar de produzir o ato, que, por sua potência, ato (Hobbes 7, X, §1, p. 113). Ora, assim como causa e efeito são vez, só pode ser produzido por uma potência plena, pois, caso contrário, termos relativos, só havendo causa onde há efeito e, inversamente, efeito faltaria um ou mais dos acidentes que são condição sine quibus non para apenas na medida em que há uma causa integral ou suficiente, potência e ato a sua produção. Já naquele parágrafo do capítulo concernente à causa e são termos correspondentes, de maneira que “um ato só pode ser produzido ao efeito, Hobbes afirmava que a necessidade desta relação vigora tanto por uma potência suficiente ou por aquela potência a partir da qual ele não no passado, como no futuro. Nesta passagem, entretanto, ao abstrair a poderia deixar de ser produzido” (idem, X, §2, p. 114). Isto é: só pode haver perspectiva temporal por meio do conceito de potência, ele estende esta ato onde há uma potência plena e, reciprocamente, só se pode falar de uma necessidade a qualquer momento que se queira, eliminando, assim, a potência plena na medida em que há ato, já que “todo ato é produzido no noção de possibilidade enquanto modalidade lógica que não só se opõe à mesmo instante que a potência é plena” (idem, X, §2, p.114). Ao identificar impossibilidade, mas também se distingue da necessidade: na filosofia de a relação de ato e potência com a de causa e efeito, potência equivalendo à Hobbes, aquilo que é possível é necessário, pois um ato só é possível na produção do ato, tal como a causa integral com a produção do efeito, Hobbes medida em que a potência de produzi-lo é plena, o que significa que ela assimilará, a partir do conceito de potência, a possibilidade à necessidade e o produzirá necessariamente. Logo, o ato que não se produz em algum a ausência de potência com a impossibilidade. momento do tempo não é possível, já que sempre falta para esta produção 41 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata algum requisito que impede a potência de ser plena; em outras palavras, ele que possui valor de verdade e das quais todo o conhecimento filosófico é é impossível. Ou seja, não há nada entre o possível e o impossível, já que composto, não poderiam ser nem verdadeiras e nem falsas, o que tornaria o possível se identifica com o necessário. Deste modo, Hobbes elimina a o princípio de bivalência inválido e, consequentemente, toda pretensão de contingência, ou melhor, a redefine: ao invés de se aplicar aos eventos que ciência caduca. Como Hobbes diz no seu comentário crítico ao discurso podem ou não ocorrer, ela exprime tanto a maneira pela qual explicitamos a sobre a liberdade e a necessidade do bispo de Bramhall, a necessidade ausência de conexão causal entre dois eventos, que, embora concomitantes de todo evento não é apenas provada pela dupla implicação já examinada ou sucessivos, são independentes entre si, como, mais frequentemente, a entre causa suficiente ou necessária e a produção do efeito, como também nossa ignorância das causas necessárias (idem X, §5, p. 115 e 116) ─ a pela natureza da proposição: contingência não denota a ausência de causas, mas caracteriza apenas a relação do nosso conhecimento com o evento (Hobbes 9, p. 259). Como Luc Foisneau comenta, o tempo não é, em Hobbes, abertura ao possível, mas a limitação do conhecimento em função de nossa consideração, de modo que o possível passa a ser apenas uma modalidade temporal do necessário: um evento possível é um evento necessário que sabemos que se produzirá, sem, no entanto, saber quando (cf. Foisneau 5, p. 88). A oposição a Aristóteles não poderia, então, ser mais clara. Se por meio do par conceitual potência e ato, Aristóteles distinguia dois modos distintos do ser, diferenciando a potência como mera possibilidade do ato, que denota o real e que é, por isso, ontologicamente superior à potência (cf. Metafísica, livro IX, 1045 b 25 – 1052 a 12 - Aristóteles 2, p. 428 - 473), Hobbes, em contraste, eliminará justamente por meio destes dois conceitos a distinção da possibilidade e da atualidade: a potência completa se identifica ao próprio ato, isto é, a possibilidade de um ato já significa a sua efetividade, de modo que todo ato possível deve ocorrer em algum ponto do tempo.1 2. Causalidade e inteligibilidade Na filosofia de Hobbes, a necessidade estabelecida pela relação causal vai de par com a racionalidade. Se os eventos não fossem necessários, as proposições, que constituem a única espécie de discurso 42 É necessário que amanhã chova ou não chova. Se, portanto, não for necessário que chova, é necessário que não chova, caso contrário, não há necessidade de que a proposição choverá ou não choverá seja verdadeira. Sei que há alguns que dizem que é necessariamente verdadeiro que um dos dois venha a ocorrer, mas não separadamente que choverá ou que não choverá, o que equivale a dizer que uma delas é necessária e que, no entanto, nenhuma delas é necessária; para evitar este absurdo, eles fazem a seguinte distinção, de que nenhuma delas é verdadeiramente determinada, mas indeterminada, o que significa apenas que uma delas é verdadeira, mas nós não sabemos qual e a necessidade, então, permanece, ainda que nós não a saibamos (Hobbes 9, p. 277). Da mesma forma que uma proposição é ou verdadeira ou falsa, não havendo meio-termo entre a verdade e a falsidade (que é o que o princípio de bivalência estabelece), um evento, como, por exemplo, a chuva futura, é ou necessário (de forma que a proposição que o enuncia é verdadeira) ou não-necessário, o que, como já se disse, equivale, na filosofia de Hobbes ao impossível, já que não há nada entre o necessário e o impossível, sendo a proposição que a enuncia, então, falsa. A indeterminação cabe ao fato e à proposição correspondente apenas do ponto de vista do nosso conhecimento: objetivamente, toda proposição é ou verdadeira ou falsa e todo evento 43 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata é ou necessário ou impossível. Em uma passagem muito semelhante à no tempo, já que, neste caso, não se poderia imaginar nem o início e nem o supracitada, na qual Hobbes igualmente defende a necessidade de todos término de qualquer fenômeno. Numa palavra, não se poderia representar os eventos por meio do princípio de bivalência, o filósofo acrescenta que a ou conceber qualquer alteração na natureza: verdade de uma proposição “não depende de nosso conhecimento, mas da anterioridade de suas causas” (Hobbes 7, X, §5, p. 116). Assim, esta prova da necessidade pelas proposições subordina-se àquela prova já discutida da necessidade pelas causas (cf. Foisneau 6, p. 109). De fato, numa outra passagem do Anti-White, o filósofo inglês afirma que a “necessidade das proposições, em função da qual dizemos que um tal evento ocorrerá, segue-se da necessidade que exige que os eventos procedam de causas” (Hobbes 11, XXXV, 13, p. 393; apud Foisneau 6, p. 110). Ora, essa mesma dependência do valor de verdade das proposições em relação à determinação necessária dos eventos por meio de suas causas aparece de maneira explícita Que um homem não pode imaginar nada começando sem uma causa não pode ser conhecido de outra forma senão tentando conceber como ele pode imaginá-lo. Mas, se ele empreender esta tentativa, ele encontrará, se não houver causa para a coisa, tanta razão para conceber que esta poderia começar tanto em um tempo como noutro, de forma que ele teria razões iguais para pensar que a coisa deveria começar em todos os tempos, o que é impossível, e, portanto, ele deveria pensar que houve uma causa especial pela qual ela começou então ao invés de mais cedo ou mais tarde; ou então que ela nunca começou, mas é eterna (idem, p. 276). na justificação da necessidade na presciência divina, que seria destruída se houvesse livre-arbítrio ou contingência no sentido tradicional do termo: A relação necessária entre a causa e seu efeito não só é provada “essas coisas que são chamadas de futuros contingentes, se elas não ocorrem pela imbricação entre o conceito de causa suficiente e de seu efeito e de maneira certa, isto é, a partir de causas necessárias, não podem ser pela dependência que o princípio de bivalência possui em relação a ela, conhecidas de antemão” (Hobbes 10, p. 18). Pois não é o conhecimento que mas também pela imprescindibilidade desta relação na representação dos determina os eventos, mas sim o contrário: “que a presciência divina deva eventos no tempo, pois é impossível conceber um evento sem uma causa, ser a causa de alguma coisa, não pode ser verdadeiramente dito, vendo que causa que só pode ser, aliás, necessária. presciência é ciência, e ciência depende da existência das coisas conhecidas e não estas daquela” (Hobbes 9, p. 246). 44 Como Hobbes diz, a representação do evento no espaço e no tempo é necessariamente acompanhada da representação de sua causa. Sem a Mais ainda, a relação entre a necessidade posta pela causalidade e intervenção do conceito de causa, haveria tanta razão para conceber que a inteligibilidade que ela torna possível se estabelece num nível ainda mais um evento poderia começar tanto num tempo como no outro, de forma que fundamental, a saber, na imaginação, anteriormente ao estabelecimento seu início seria inimaginável. Uma vez que Hobbes pensa que toda ideia da filosofia propriamente dita. Sem o recurso à causalidade necessária ou concepção é uma imagem (Hobbes, 8, III, p. 17), sendo que só podemos não só a constituição do discurso científico se tornaria impossível, uma conceber aquilo que podemos imaginar (razão pela qual não há ideia de vez que o valor de verdade das proposições se fundamenta nas relações infinito, por exemplo), o evento e o seu início seriam ininteligíveis na causais, como também se tornaria impossível a representação dos eventos ausência da representação de uma causa. Dito de outra forma, não haveria 45 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata razão suficiente para imaginar o evento se iniciando em um momento razão para se dar em qualquer parte do tempo: “o único modo pelo qual o determinado ao invés de outro, mas aquele que representa o evento espírito pode dar razão de uma proposição, assim como de um efeito natural, “teria razões iguais para pensar que a coisa deveria começar em todos os consiste em exibir sua causa produtora. A causa produtora aparece então tempos, o que é impossível”. Sem a representação da causalidade não seria como a forma mais universal do princípio de razão. Ela se identifica com possível a representação de nenhum evento, isto é, de nenhuma alteração a exigência de racionalidade em geral” (Zarka 19, p. 203). A causalidade na natureza, mas só seria possível a representação das coisas como sendo necessária aparece, então, como a forma geral da inteligibilidade, pela qual eternas, o que é contrário à estrutura da representação humana, que só pode tanto a representação dos eventos como a enunciação das suas proposições se dar no espaço e no tempo2. Toda representação de um evento envolve, correspondentes são tornadas possíveis para nós. pois, a concepção de uma causa especial, causa que dá a razão pela qual este evento teve início num momento determinado e não anteriormente 3. Causalidade e mecanicismo ou posteriormente. Assim, na ausência de uma relação causal necessitante 46 não só o valor de verdade das proposições sobre os eventos permaneceria Resta indicar como esta identificação entre causa necessária indeterminado, o que feriria o princípio de bivalência, como também a e razão se estabelece no interior do paradigma mecanicista da filosofia imaginação ou representação de um evento seria indeterminada, sem uma moderna, o que tornará ainda mais claro como só uma causa necessária ─ inserção precisa no tempo e no espaço, já que o início de qualquer evento causa que Hobbes concebe como sendo mecânica ─ pode tornar os eventos seria ininteligível. Numa palavra, a representação seria impossível. Que inteligíveis, dando razão de suas determinações espaciotemporais. todo evento só possa ser representado como possuindo um início prova O parágrafo citado na seção anterior, no qual Hobbes defende que que todo evento possui a sua causa necessária, pois o evento só pode ter um homem não pode imaginar algo começando sem uma causa, já que, na início se a sua causa é suficiente para produzi-lo, isto é, se não falta nada ausência desta, não haveria razão para conceber o início do evento num que constitui requisito para a sua produção, como Hobbes argumenta no determinado ponto do tempo, constitui a justificativa (alocada na seção parágrafo seguinte ao supracitado. Afinal, como a causa suficiente e a “minhas razões” do Da liberdade e da necessidade) do sexto item listado produção do efeito se equivalem, o efeito é produzido no mesmo instante em “minha opinião sobre a liberdade e a necessidade”, no qual Hobbes em que a causa é integral, de modo que “em toda ação o início (principium) afirma que “nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ação de algum e a causa são tomados pelo mesmo” (Hobbes 7, IX, §6, p. 110). outro agente imediato” (Hobbes 9, p.274). É derivando as consequências Assim, é a relação causal que confere inteligibilidade tanto às desta máxima3 para o campo da moral que Hobbes sustenta que a causa proposições, na medida em que “a razão das proposições ─ o porquê de uma volição não pode residir na própria vontade, mas deve provir de delas serem verdadeiras ou falsas ─ não é outra que a causa dos eventos” móbiles exteriores, de forma, então, que a acepção da liberdade humana (Foisneau 6, p..111), como aos próprios eventos, já que a razão de qualquer como o poder de iniciar uma cadeia causal nova, sem que ela mesma seja mudança só pode ser encontrada na sua causa, sem a qual o evento teria causada por nada, revela-se falsa, que é a concepção que Hobbes visa 47 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata combater neste texto polêmico. Do lado da filosofia natural, esta máxima se todos os requisitos necessários para se mover ─, ela não poderia deixar identificará à rejeição do movimento espontâneo e terá como consequência de se mover; ora, como esta potência ativa é atribuída à própria coisa, a dupla asserção que constitui o cerne do princípio de inércia, a saber, ela dispensa o recurso a qualquer outra circunstância exterior, de forma que um corpo em repouso assim sempre permanecerá a menos que um que ela deveria ter se movido desde a eternidade e, sem a necessidade da outro corpo o mova e, simetricamente, que um corpo em movimento intervenção de outros corpos a ela exteriores, em todas as direções. Mas permanecerá para sempre em movimento a não ser que um outro corpo o esta suposição só mostra como a atribuição aos corpos de uma potência de pare. Eis como Hobbes prova a inexistência do movimento espontâneo na se mover é absurda: não se pode conceber que a soma de todos os requisitos décima conclusão extraída a partir dos princípios estabelecidos no Short para a produção de um efeito não resulte nesta produção mesma, pois, caso tract on first principles: contrário, tratar-se-ia de um absurdo matemático, de uma equação desigual, Nada pode mover a si mesmo. Suposto (se isso for possível) que A pode mover a si mesmo, é preciso que ele o faça por uma potência ativa que esteja nele próprio (de outra forma, ele não move a si mesmo, mas é movido por outro); e, vendo que ele age sempre em si mesmo, ele deve [...] mover a si mesmo sempre. Suposto, então, que A possui a potência (power) de ser movido na direção de B, então, A deve sempre mover a si mesmo em direção a B. Do mesmo modo, suposto (como nos é permitido) que A possui a potência de ser movido em direção a C, então, A deve sempre mover a si mesmo em direção a C. Ele deve, então, mover-se sempre em direções contrárias, o que é impossível. (Hobbes 12, p. 18 e 20). De acordo com a demonstração hobbesiana da causalidade necessária de todo evento (demonstração que também se encontra no Short Tract, ainda que não tão desenvolvida quanto aquela que consta no De Corpore), o conjunto de todas as condições necessárias para a produção de um efeito constitui a sua condição suficiente que, como tal, não pode deixar de produzi-lo, sendo, então, necessária. Do mesmo modo, se algo possuísse em si mesmo a potência de se mover ─ o que significa, conforme a definição que Hobbes dá ao termo potência, que esta coisa possuiria 48 de uma conexão que vai contra a razão, concebida por Hobbes precisamente como a capacidade de calcular, isto é, de somar e de subtrair (Hobbes 7, I, §2, p. 3). Ora, uma vez que a produção do efeito suposto é inconcebível, isto é, incompatível com a estrutura da representação humana, que não pode deixar de imaginar o evento num espaço e num tempo determinados, mostra-se que a hipótese é falsa. Assim, é a concepção matemática que Hobbes possui da causalidade que está no fundamento da rejeição do movimento espontâneo e da cosmologia aristotélica em geral, já que a concepção aristotélica de evento natural, calcada nas noções de potência e ato, forma e matéria, é avessa a qualquer tratamento matemático, sendo aí toda alteração compreendida qualitativamente como um processo. Para Hobbes, ao contrário, a relação causal, que é pensada segundo o modelo da geração ou produção, é estritamente quantitativa, sendo que a causa e a produção do objeto se equivalem, de forma que se conhece a causa de algo quando se é capaz de reproduzi-lo (idem, I, §5, p. 5 e 6) ─ o que se ajusta perfeitamente à concepção de ciência típica da modernidade, segundo a qual o escopo da filosofia reside na utilização dos efeitos previstos para a produção de eventos conforme a comodidade dos homens (idem, I, §6, p. 6). Rejeitando, então, a concepção de que as coisas possuam uma potência ativa pela qual elas movam a si mesmas, Hobbes concebe que 49 Cadernos Espinosanos XXIII toda mudança ─ que, vale dizer, o filósofo inglês reduz ao movimento local (idem, IX, §9, p. 111 e 112), que doravante constituirá não só o único tipo de alteração, mas também a causa mais universal de todas, sendo que um movimento sempre tem como causa outro movimento (idem, VI, §5, p. 62; Hobbes 8, I, p. 2), o que possibilita o tratamento matemático de todo evento ou alteração, já que tanto a causa como o efeito são, neste caso, termos homogêneos, passíveis de composição e de subtração ─ é fruto de uma causa transitiva, de modo que toda relação de causa e efeito envolve um agente e um paciente, uma causa eficiente e uma causa material que compõem a causa integral.4 Uma vez que os corpos são desprovidos de um princípio interno de ação, de uma forma ou essência que os disponha a uma alteração qualquer, a causa da mudança só pode estar em algo exterior. Sem referência a esta causalidade exterior, não só não se poderia conceber por que a mudança, isto é, a passagem do repouso ao movimento ou do movimento ao repouso, iniciou-se num tempo determinado, como também não se poderia explicar por que o movimento se deu numa direção determinada. Ou seja, sem o recurso a esta causalidade exterior e mecânica, a um outro corpo contíguo e em movimento (Hobbes 7, IX, §7, p. 110 e 111), que altera o corpo em questão pela transmissão de seu movimento por meio do contato, não haveria a razão pela qual o evento em questão possui estas determinações espaciotemporais ao invés de outras: O que está em repouso permanecerá sempre em repouso, a não ser que haja algum outro corpo além dele que, esforçando-se em tomar o seu lugar por meio do movimento, faça com que este não possa mais permanecer em repouso. Pois suponha-se que algum corpo finito existe e está em repouso e que todo o espaço ao seu redor está vazio; se agora este corpo começar a se mover, ele o fará em alguma direção; vendo, portanto, que não havia nada no corpo que não o dispusesse ao repouso, a razão pela qual ele se moveu nesta direção está em algo fora 50 Celi Hirata dele; e, da mesma maneira, se ele tivesse se movido em outra direção, a razão do movimento naquela direção teria estado em algo fora dele; mas, vendo que se supunha que nada havia fora dele, a razão de seu movimento numa direção seria a mesma de seu movimento em todas as outras direções, do que se segue que ele se moveria do mesmo modo em todas as direções simultaneamente, o que é impossível. Do mesmo modo, o que está em movimento, sempre estará em movimento, a não ser que haja algum outro corpo além dele que o leve ao repouso. Pois se supomos que não há nada além dele, não haverá razão pela qual ele deveria entrar em repouso agora ao invés de em algum outro tempo; donde se segue que seu movimento cessaria de forma similar em qualquer partícula do tempo, o que não é inteligível (idem, VIII, § 19, p. 102 e 103, itálicos meus). O princípio de inércia, que constitui um dos principais pilares da transformação que a concepção de natureza sofre na passagem da filosofia aristotélico-escolástica para a moderna, é, nesta passagem do De Corpore, ainda que apresentado de maneira incompleta, demonstrado, então, por meio da noção de razão. Com o declínio da cosmologia aristotélica, o movimento e o repouso passam a ser concebidos não mais como modos do ser, isto é, como o processo e o seu fim, mas como estados definidos por uma relação entre espaço e tempo5, em relação aos quais os corpos são completamente indiferentes, o que introduz a necessidade de se dar uma razão para explicar por que o corpo passou de um para o outro. Afinal, opondo-se à concepção aristotélica segundo a qual todo ser natural constitui um princípio de atividade dotado de uma essência que lhe proporciona uma finalidade interna, de modo que toda alteração é concebida teleologicamente como um processo de atualização de uma potência (Física III, I, 201 a 10 – 201 a 11 - Aristóteles 3, p. 195), Hobbes não só estabelece que tanto a potência como o ato consistem em movimentos atuais que só diferem 51 52 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata quanto à perspectiva temporal (Hobbes 7, X, §6, p. 116), como também moveu em uma determinada direção ao invés da outra, pois, sem esta rejeita tanto a causa formal como a causa final, que, a seu ver, não passam referência à disposição do outro corpo em relação ao corpo movido, este de causas eficientes: enquanto a primeira nada mais é do que uma causa seria indiferente a qualquer direção, sendo determinado a se mover em eficiente que ocorre entre conteúdos de conhecimento, na qual um é causa todas as direções, o que é impossível. Do mesmo modo, sem a intervenção do outro, a segunda só tem lugar nas coisas que possuem sentidos (sensum) de um outro corpo, não se poderia compreender como um corpo passa e vontade (idem, X, §7, p. 117; III, §20, p. 38 e 39) e indica apenas a do movimento ao repouso agora ao invés de antes ou depois, pois não há relação entre a representação de algo desejado e uma ação, sendo que a nenhuma tendência natural no corpo ao repouso, mas, ao contrário, assim primeira constitui a causa eficiente da segunda.6 Ora, uma vez que o corpo como um corpo em repouso assim permanecerá, a menos que um outro é destituído de qualquer princípio de atividade interno, na ausência de uma corpo se choque com este, o que é comumente aceito, pela mesma razão, razão exterior ao corpo, ele permanecerá no estado em que se encontra, e a saber, que nada pode alterar-se a si próprio, um corpo em movimento só poderá passar do repouso ao movimento e do movimento ao repouso permanecerá eternamente em movimento se um outro corpo não o parar pela intervenção de outro corpo. ─ o que, ao contrário, não é facilmente admitido devido à autoridade dos Mas, com o abandono do arsenal aristotélico da teoria do doutores da Escola, que atribuem às coisas inanimadas um apetite pelo movimento, não é só a passagem de um estado a outro que requer uma repouso, o que, por sua vez, tem por base o antropomorfismo (Hobbes 8, razão exterior ao corpo: também a direção na qual o corpo se move deve II, p. 3 e 4). Desta forma, a passagem do movimento ao repouso necessita de ser referida a uma razão que não se encontra nem no corpo e nem no uma explicação causal tanto quanto a passagem do repouso ao movimento. espaço, doravante concebido como sendo perfeitamente homogêneo. Em Se não houvesse a comunicação do movimento por um corpo exterior, haveria contraste com a concepção de um cosmos qualitativamente organizado e tanta razão para que o corpo passasse bruscamente ao repouso em qualquer com a noção de lugar natural que lhe é correspondente, segundo a qual instante que se queira, e não por graus e num espaço de tempo determinado, cada coisa tende a um lugar determinado conforme a sua natureza própria como ocorre pela transmissão do movimento de um corpo ao outro, pelo (Do Céu, IV, 3 – Aristóteles 1, p. 342 - 351), Hobbes concebe o espaço qual os acidentes do agente alteram continuamente os acidentes do paciente como sendo algo que não é real, mas imaginário (já que não existe fora (Hobbes 7, IX,§ 6, p. 109), tal qual numa função matemática, concepção da representação, mas é a imagem que o sujeito percipiente possui de que, no entanto, Hobbes não chega a formular (cf. Fiebig 4, p. 31). Numa algo exterior e subsistente por si, isto é, o corpo), apresentando-o como palavra, os estados dos corpos e suas determinações espaciotemporais seriam aquilo que não é atualmente preenchido, mas como aquilo que pode ser ininteligíveis sem a referência a um outro corpo, contíguo e em movimento preenchido (Hobbes 7, VII, §2, p. 82 e 83). Na medida em que o espaço é (isto é, a uma causa mecânica, que não pode deixar de produzir o seu efeito), desprovido de determinações atuais, os corpos são indiferentes a um lugar já que a razão destes não podem ser encontradas nos próprios corpos. ou outro, de forma que se não houvesse a comunicação do movimento Assim, é a causalidade necessária, que consiste numa relação a partir de um corpo exterior, não haveria a razão pela qual o corpo se matematicamente determinada entre a causa integral e a produção do 53 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata efeito, e o seu estabelecimento como único tipo legítimo de explicação dos insuficiente de razão quando se trata de responder a questão mais essencial fenômenos, tanto naturais como humanos, que fundamenta a rejeição da de todas, a saber, por que existe alguma coisa e não o nada? (cf. Leibniz 17, alteração (isto é, movimento) espontânea e, consequentemente, o princípio §7, p. 158), questão que só poderá ser respondida por meio da introdução da de inércia. Por isso é que a tese de que nenhum homem pode imaginar algo ideia de finalidade e do melhor, já que o “nada é mais simples e fácil do que se iniciando sem uma causa necessária constitui a justificativa ou a razão alguma coisa” (idem), isto é, o nada não possui requisitos, ao contrário da pela qual “nada se inicia por si mesmo, mas a partir da ação de algum outro existência do mundo. Enfim, se, por um lado, Leibniz deve o seu princípio de agente imediato”, como Hobbes expõe no Da liberdade e da necessidade. razão suficiente em certa medida a Hobbes, o que ele não deixa de reconhecer, Dar a razão de um evento significa, doravante, dar conta de sua produção e como se pode verificar em seu comentário crítico aos Questions concerning submetê-lo ao cálculo (cf. Zarka 19, p. 205). Só uma causalidade necessária, liberty, necessity and chance (cf. Leibniz 15, p. 388- 399), por outro, por causalidade que opera apenas mecanicamente, a partir da transmissão do meio deste princípio ele se oporá não só ao necessitarismo e materialismo do movimento, pode, então, tornar os eventos inteligíveis, dando razão de sua filósofo inglês, como também à sua tese da impossibilidade de se conhecer inserção determinada no espaço e no tempo. Vê-se, desta forma, que a Deus pela razão natural, bem como à sua concepção de justiça divina, como teoria da causalidade constitui o principal pilar na refutação hobbesiana ele bem expõe neste apêndice da Teodiceia. da concepção aristotélico-escolástica de natureza em favor da física Causality in Hobbes: necessity and intelligibility mecanicista típica de seu tempo. *** Por fim, é interessante notar que seja justamente por meio de algumas noções empregadas por Hobbes na demonstração de que todo efeito possui a sua causa necessária que Leibniz se oporá ao seu materialismo e necessitarismo, o que ele fará por meio do princípio de razão suficiente. Como se mostrará num de seus textos de juventude, Leibniz demonstrará este princípio precisamente a partir da dupla implicação entre a existência de uma coisa e de sua razão suficiente, argumentando que a totalidade dos requisitos constitui a razão suficiente da existência de uma coisa, que, por sua vez, não poderia existir se um dos requisitos estivesse ausente (Leibniz 16, p. 483). Ora, tal como se pode ver no desenvolvimento de sua filosofia, Leibniz o utilizará para mostrar como a causalidade mecânica é um tipo 54 Abstract: The aim of this paper is to examine the hobbesian thesis that every effect has a necessary cause, showing how he demonstrates it in different but complementary ways: firstly, by means of identification between entire, sufficient and necessary cause and the redefinition of concepts of power and act; secondly, through the subordination of the principle of bivalence to the necessary determination of events; and lastly, by affirming that only through a necessary cause, a cause that can operate only mechanically via contact, is possible to give the reason why the events have these spatial and temporal features instead of others. Therefore the mechanical and necessary cause becomes in Hobbes the unique legitimate type of explanation of phenomena and the general form of intelligibility. Key-words: causality, necessity, requisite, mechanism, law of inertia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. ARISTÓTELES. On the heavens. Londres: William Heinemann, 1960. Tradução: W. K. C. Guthrie. 55 56 Cadernos Espinosanos XXIII Celi Hirata 2. _______. Metaphysics. Londres: William Heinemann, 1968. Tradução: H. Tredennick, vol I (livros I – IX). 3. _______. Physics. Londres: William Heinemann, 1970. Tradução: P. Wicksteed e F. Cornford, vol I (livros I – IV). 4.FIEBIG, H. Erkenntnis und technische Erzeugung – Hobbes’ operationale Philosophie der Wissenschaft. Meisenheim am Glam: Anton Hain, 1973. 5. FOISNEAU, L. “Le vocabulaire du pouvoir: potentia/ potestas, power” In: ZARKA, Y. (ed.) Hobbes et son vocabulaire. Paris: Vrin, 1992, p. 83-103. 6. _______. “De la nécessité des choses et des actions. Hobbes critique des futurs contingents”. In: La découverte du principe de raison. Paris: P.U.F., 2001, p. 91-119. 7. HOBBES, T. De Corpore. In: MOLESWORTH, W. (ed.). Opera Latina. Darmstadt: Schrecker, 1966 (2ªedição), vol. I 8. _______. Leviathan. In: MOLESWORTH, W. (ed.). English Works. Darmstadt: Schrecker, 1966 (2ªedição), vol III. 9. _______. Of liberty and necessity. In: English Works, vol. IV. 10. _______. The questions concerning liberty, necessity, and chance. In: English Works, vol. V. 11. _______. Critique du “De Mundo” de Thomas White. JAQUELOT e J. JONES, H. W. (ed.). Paris: Vrin, 1973. 12. _______. Court Traité des premiers principes/ Short Tract on First Principles. Paris: P.U.F., 1988. 13. _______. Do Corpo – parte I: Cálculo ou lógica. Campinas: Unicamp, 2009. Tradução: Maria Isabel Limongi e Viviane de Castilho Moreira. 14. JESSEPH, D. “Hobbes and the method of natural science”. In: SORELL, T. (ed.). The Cambridge Companion to Hobbes. Nova York: Cambridge University Press, 1996, p. 86 – 108. 15. LEIBNIZ, G.W. Theodicée. In: GERHARDT, C. (ed.). Die philosophischen Schriften von Gottfried Wilhelm Leibniz. Darmstadt: Georg Olms, 1961, vol. VI. 16. _______. “Demonstratio propositionum primarum”. In: Philosophischen Schriften herausgegeben von der Leibniz-Forschungsstelle der Universität Münster. Berlim: Akademie – Verlag, 1966, tombo VI, volume II. 17. _______. Princípios da natureza e da graça. In: Discurso de metafísica e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Tradução: Alexandre da Cruz Bonilha. 18. LEIJENHORST, C. “Hobbes’s theory of causality and its aristotelian background”. In: The Monist, vol 79, n° 3, julho de 1996, p. 426 – 447. 19. ZARKA, Y. La décision métaphysique de Hobbes. Paris: Vrin, 1999 (2ª edição). 20. _______. “First philosophy and the foundation of knowledge”. In: The Cambridge Companion to Hobbes, p. 62-85. NOTAS: 1. Luc Foisneau indica que Hobbes, ao estabelecer uma relação necessária entre potência e ato, retoma, contra Aristóteles, o necessitarismo dos megáricos, que justamente não reconhecem a potência como um modo de ser intermediário entre o ser e o não-ser, mas, como Hobbes, argumentam que não há potência se não há ato e que não há ato a não ser que haja potência (Foisneau 5, p. 87). 2. Após inaugurar a filosofia primeira no De Corpore com a hipótese do aniquilamento do mundo, com a qual Hobbes visa esclarecer a estrutura e o conteúdo da representação humana (Zarka 20, p.66), o filósofo apresenta em primeiro lugar as definições de espaço e de tempo, que não são coisas que existem fora de nós, mas pertencem apenas à mente, uma vez que são os fantasmas “de uma coisa existente enquanto existente” e “de um movimento, na medida em que imaginamos nele um antes e um depois” (Hobbes 7, p. 83 e 84), respectivamente. Na medida em que constituem as imagens da exterioridade e da mudança em geral, “espaço e tempo não são fantasmas particulares entre outros, mas pertencem à forma do nosso conhecimento das coisas que existem e se alteram” (Zarka 20, p. 67). 3. A tese de que nada pode iniciar o seu próprio movimento constitui a segunda das cinco máximas que Hobbes lista em “Maximes necessary for those, yt from ye sight of an Effect shall endeavour to assigne its Natural Cause” (Classified Papers, IV (I), nº 30, apud Jesseph 14, p. 90). Apesar de constituir uma máxima de sua filosofia, ela pode ser derivada a partir de sua concepção de causalidade. 4. Causa eficiente e causa material não denominam, como em Aristóteles, dois tipos distintos de causa, das quais uma seria externa e a outra imanente ao efeito (Metafísica, livro V, 1018 b 4 – 1018 b 5 – Aristóteles 2, p. 212 e 213), mas indicam apenas dois modos distintos da consideração da causa que denominaríamos eficiente, já que tanto numa como na outra se trata dos requisitos (que são sempre acidentes e não a matéria, isto é, o corpo) que colaboram na produção do efeito. 57 Cadernos Espinosanos XXIII 5. “Diz-se que está em repouso aquilo que, durante qualquer tempo, está num lugar; e que está em movimento ou foi movido o que, esteja agora em movimento ou em repouso, estava antes em outro lugar do que está agora” (Hobbes 7, VIII, §11, p. 98). 6. Como Yves Zarka diz, para Hobbes, “a causalidade final nada mais é do que a aparência subjetiva que a causalidade eficiente adquire na imaginação do homem” (Zarka 19, P. 202). Possíveis e Existentes em Leibniz Wilson Alves Sparvoli* Resumo: Nesse artigo, pretendemos tratar da distinção entre um ser possível e um ser existente em Leibniz. Para tanto, vamos nos apoiar nas reflexões dos comentários de Martine de Gaudemar e de Robert Adams em seus livros. Pretendemos mostrar que um possível é algo que não possui uma força própria, apesar de todo possível exigir existir, essa força não passa da própria força da divindade, não existe alteridade antes da criação. Já um existente possui uma força e uma autonomia própria. Palavras chaves: Leibniz, Existente, Possível, Força, Mônada. Nosso objetivo nesse texto é verificar qual é a diferença entre um ser possível e um ser existente em Leibniz, ou seja, a diferença entre os vários mundos possíveis e o mundo existente e criado. Para resolver essa questão vamos partir dos comentários de Martine de Gaudemar (Gaudemar 1), e complementá-los com algumas idéias tiradas de Robert M. Adams (Adams 2). Leibniz, na correspondência com Arnauld, defende que há diversos possíveis não criados e que esses possíveis se encontram no intelecto divino, chamado de o “país dos possíveis”. Um dos motivos para afirmar a existência de possíveis não criados é garantir a contingência tanto da ação divina como da ação humana. Leibniz enviou para Arnauld um sumário do Discurso de Metafísica. O velho teólogo, ao ver a carta de Leibniz, rapidamente se horroriza com o artigo 13º. No título desse artigo lemos: * Doutorando do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. 58 59 Cadernos Espinosanos XXIII “Como a noção individual de cada pessoa encerra duma vez por todas quanto lhe acontecerá, nela se vêem as provas a priori da verdade de cada acontecimento ou a razão de ter ocorrido um de preferência a outro” (Leibniz 3, pág. 127). Arnauld imediatamente acusa Leibniz de restringir a liberdade divina no ato de criação, instituindo um regime de “nécessité plus que fatale” (Leibniz 7, Pág. 83.), pois, se a noção individual de Adão encerra tudo aquilo que lhe acontecerá, os filhos que terá e a noção desses filhos também, a liberdade divina parece ficar restrita à decisão de criar ou não o mundo. Caso decida criar, tudo se seguirá dessa noção individual necessariamente. A ligação entre Adão e seus predicados pareceu à Arnauld semelhante à ligação existente entre minha essência e a propriedade de ser pensante, isto é, intrínseca e necessária. Leibniz, é claro, não pode aceitar essa conseqüência, assim como também não vai aceitar nenhuma das outras conseqüências tiradas por Arnauld, que implicam limitação à liberdade de Deus e do homem. Um dos argumentos utilizados por Leibniz para se esquivar desse determinismo é a pluralidade de mundos possíveis. A contingência da escolha divina e da ação humana se baseia em certa medida nessa pluralidade de possíveis não criados. No texto do artigo 13º do Discurso de Metafísica, Leibniz vai fazer uma distinção muito sutil entre o certo e o necessário. Todos os predicados de uma substância podem ser deduzidos a priori de sua noção individual, já que essa noção é sumamente individualizada. Contudo, mesmo se alguém tivesse um poder de análise grande o suficiente para realizar uma análise completa dessa noção (o que é inviável mesmo para Deus, já que realizar uma análise infinita no tempo é impossível. Apenas na perspectiva da eternidade seria possível “realizar” tal feito), não seria capaz de demonstrar que o contrário de tal predicado implica contradição lógica. Explicando um pouco melhor, segundo o 60 Wilson Alves Sparvoli famoso exemplo das camisas: está contido em minha noção individual que, enquanto escrevo esse texto, visto uma velha camisa vermelha. Isso é certo, entretanto não é necessário, pois não é logicamente impossível (não implica contradição) que hoje eu estivesse vestindo uma elegante camisa branca. Mais do que isso, em outros mundos possíveis, eu trajo uma infinidade de camisas possíveis! A contingência no leibnizianismo é salva por essa distinção e por esse esquema de possibilidade ou impossibilidade lógica. É necessário apenas aquilo cuja negação é logicamente impossível. A necessidade fatal se restringe ao domínio das verdades matemáticas e lógicas, incriadas e imutáveis; elas não poderiam ser alteradas sequer por Deus. Sem dúvida nenhuma, esse é um tema muito rico e complexo do leibnizianismo, entretanto, para nosso objetivo nesse texto, basta frisar que os possíveis garantem a contingência da ação humana e da ação divina: os mundos possíveis não criados abrem um leque de opções possíveis (que não são logicamente contraditórias) para os sujeitos e para Deus. Um problema adicional seria que, no melhor dos mundos possíveis (o que foi realmente criado por Deus), é hipoteticamente necessário que eu use a bendita camisa vermelha... Não posso vestir, ou seja, é certo que eu não vou vestir uma camisa verde e desequilibrar o delicado conjunto do mundo, diminuindo sua perfeição; entretanto, apesar de certo, não é necessário. É logicamente possível vestir essa camisa verde, e essa possibilidade lógica está ligada à pluralidade de mundos possíveis não criados. Esses possíveis não criados garantem a contingência da ação divina: a criação não é necessária, tanto porque Deus poderia não ter criado nada, quanto porque, ao decidir criar, poderia ter criado um outro mundo dentre os vários possíveis em seu intelecto. No entanto, mais uma vez, a necessidade hipotética intervém, pois é certo que Deus vai criar o melhor dos mundos, embora ele ainda tenha o poder para criar um mundo possível menos perfeito. Esses possíveis são chamados por Gaudemar de 61 Cadernos Espinosanos XXIII Wilson Alves Sparvoli “matéria” lógica da criação (Gaudemar 1, pág. 33). O mundo existente pode ser um desdobramento necessário da essência divina, porque isso foi escolhido entre esses possíveis e então criado. Isso evita algumas também parece aproximar Leibniz de Espinosa. Esse desdobramento é um indesejadas conseqüências espinosistas, como o fim da contingência ou desdobramento possível (Deus poderia não criar ou criar outro conjunto), da possibilidade. Como sabido por todos, no espinosismo não existem e mais do que desdobramento é uma criação mesmo, pois, diferente de possíveis. Por outro lado, esse material lógico da criação também evita Espinosa, em Leibniz existe uma pluralidade de substâncias, a criação algumas conseqüências indesejáveis do cartesianismo. Cada um desses institui uma alteridade substancial. Não se trata de modos brotando da mundos foi criado segundo regras lógicas e de bondade pré-existentes substância única, isto é, o deus-natureza. (porém co-eternas a Deus). Não houve nem um voluntarismo despótico Para entender melhor o ato de criação vamos recorrer a duas metáforas (caso de Descartes) que cria a partir do nada com uma falsa liberdade tiradas de Gaudemar. Os mundos possíveis são como as sombras que Ulisses absoluta, nem houve um necessitarismo sem escolha, onde todos os encontra no Hades: cada uma delas clama pelo sangue da oferenda imolada possíveis se tornam existentes. O que houve foi uma criação realmente (no entanto esse “clamor” não pode ser diferente da potência divina). Já o livre, onde a vontade inclinada por considerações sobre o bem e a perfeição mundo criado é como Lázaro ao ser ressuscitado. E o Ato criador nada mais (regras pré-existentes à criação e co-eternas a Deus) escolheu o melhor é do que um “Levanta e Anda!”. O que isso quer dizer? dentre uma infinidade de possíveis não criados (matéria lógica). Entretanto, essa “matéria” lógica da criação põe seus próprios melhor dos mundos possíveis. E o ato criador dá ao mundo criado potência problemas ao leibnizianismo. Por exemplo, Leibniz diz que os possíveis e força para agir por si mesmo. Como Gaudemar nota, a existência não exigem existir de acordo com o grau de perfeição que possuem. Isso seria pode ser um predicado, pois os mundos possíveis são completos, não um constrangimento para Deus? Um conjunto de possíveis por sua própria lhes falta nenhuma determinação ou predicado. A Existência então vai força e mérito forçaria sua passagem para a existência? Deus seria, segundo ser outra coisa, ela vai ser uma espécie de autonomia, ou seja, concessão as palavras de Gaudemar, um mero “guarda de fronteira”, e o melhor de força própria. O mundo criado, assim como Lázaro, vai “levantar e conjunto de possíveis um “estrangeiro com salvo-conduto”? Parece-me caminhar” por conta própria. Sua ação não vai ser mais a ação de Deus, que Gaudemar fornece uma boa resposta para essas questões. Os possíveis vai ser uma ação própria que é análoga à potência de Deus, entretanto, não criados não podem ter uma existência separada de Deus (por exemplo, limitada, ao invés de infinita. Como nos diz Leibniz no Discurso de no parágrafo 43 da Monadologia), isso anularia a criação: Deus cria a partir Metafísica em 1686 e nos Princípios da Natureza e da Graça de 1711: do nada, antes da criação não existe alteridade nenhuma. Não existe um “A substância é um ser capaz de ação1” outro ser incriado que possa pôr-se lado a lado com Deus. Ou seja, esses Para consolidar essa leitura vamos nos dirigir brevemente ao texto “De Ipsa Natura” publicado em 1698. Nesse texto, Leibniz vai contestar algumas posturas ocasionalistas de um interlocutor, Christopher Sturm, e oferecer uma interessante explicação da criação e da natureza. possíveis não são diferentes do próprio Deus. Se eles têm uma pretensão à existência, uma “força” para existir, essa força não pode ser diferente da suma potência divina. Entretanto na criação essa força também não 62 Deus escolhe o clamor da sombra correta. Nesse caso, Tirésias é o 63 Cadernos Espinosanos XXIII Wilson Alves Sparvoli O Ocasionalismo foi uma corrente filosófica derivada do definição de natureza, a outra sobre a aparente falta de potência (força) cartesianismo, cujo principal expoente foi Malebranche. O próprio no mundo criado. No entanto, o trecho que nos importa se encontra na Leibniz chegou a flertar com essa concepção em seus textos de juventude, resposta à primeira pergunta do texto. O que é a natureza? Ao responder anteriores a 1686, mas, por fim, acabou se tornando um crítico dela. essa questão, Leibniz não deixa de afirmar seus principais compromissos O Ocasionalismo de Malebranche afirmava, entre outras coisas, que referentes à física. Em primeiro lugar, tudo se faz mecanicamente na nenhuma causa finita era capaz de produzir algum efeito, somente uma natureza, o recurso a formas, almas, princípios hilárquicos, naturezas causa infinita teria esse poder, logo, apenas Deus poderia ser a causa de plásticas é inútil e supérfluo, a natureza é uma criação divina infinitamente todo e qualquer efeito no mundo e os seres finitos seriam apenas as causas complexa e com um funcionamento mecânico independente de auxílios. ocasionais, daí o nome dessa corrente. Se em sua juventude Leibniz Entretanto, o mecanicismo tem seus limites: se ele basta para explicar os parecia aprovar esse recurso à divindade, em sua maturidade dirigiu fenômenos naturais em suas particularidades, ele não basta para explicar os algumas críticas a essa postura. Pois considerou um absurdo teológico seus princípios gerais de funcionamento, daí o recurso a noções metafísicas, Deus ter que intervir constantemente na criação. Esse fato, na visão de como a da força (ação/paixão) e do axioma da igualdade entre o efeito Leibniz, diminui a potência divina, pois Deus não teria sido diligente o inteiro e a causa plena. A natureza é definida por Leibniz segundo a velha suficiente para criar uma obra que fosse capaz de funcionar sozinha, sem definição de Aristóteles: o princípio de movimento e de repouso. auxílio externo constante. Além disso, nessa hipótese tudo na natureza Sturm, no texto criticado por Leibniz, não deixa de reconhecer, se explicaria por um milagre contínuo. Na definição de Leibniz, milagre como convém a um físico cristão, que os movimentos ocorrem devido à não é um fato raro e extraordinário, milagre é tudo àquilo que ultrapassa força da lei eterna dada por Deus na criação e, mais uma vez com acerto, as forças e capacidades das substâncias criadas: também afirma que não são necessários novos atos ou mandatos de Deus para cada ocasião em particular. Ambas as respostas convêm muito a um “Pois me parece que a noção de milagre não consiste na raridade, será dito para mim que Deus não age nisto senão segundo uma lei geral e por conseqüência sem milagre. Mas eu não concordo com essa conseqüência e eu creio que Deus pode fazer regras gerais em relação aos milagres mesmos” (Leibniz 7, pág. 161.) pensador cristão, mas ambas encontram um pequeno obstáculo: o mandato divino deu uma denominação puramente extrínseca ou forneceu uma lei interna para todas as mudanças nas criaturas? (Leibniz 4, pág. 487) Sturm parece não tomar posição nesse ponto de suma importância. Na verdade, se Sturm adotar a primeira postura nada mais estará fazendo do que adotar a postura ocasionalista e recaindo em todos os erros Daí que a continuidade do milagre, seu caráter habitual, não o próprios dela. Leibniz vai aprofundar um pouco mais seu pensamento: se tornaria por isso menos milagre. A natureza nada mais seria que uma criação o mandato não deixou marca nem denominação intrínseca, não é possível capenga de um artífice incapaz de dotá-la de suficiente autonomia. nenhum tipo de explicação razoável e distinta da realidade, pois tudo se Leibniz criticou duas das posições de Sturm, uma delas acerca da realizaria segundo um milagre, as coisas passariam a operar por saltos e sem intermediários (Leibniz 4, pág. 488). Além disso, o próprio Deus se 64 65 Cadernos Espinosanos XXIII tornaria impotente, pois sua vontade não teria sido capaz de produzir um efeito perdurável. Muito pelo contrário, o mandato divino dotou o mundo de eficácia e autonomia para se desenvolver por si próprio, não lhe sendo Wilson Alves Sparvoli leibniziana ela pode ser identificada? Para realizar essa identificação vamos recorrer a dois importantes opúsculos: O Specimem Dinamicum e o Exame da Física de Descartes. necessária a constante manutenção de uma máquina defeituosa. Deus Em ambos os textos citados, Leibniz faz uma catalogação dos cria o mundo segundo certos desígnios e o conjunto da obra vai seguir tipos de força existentes: uma primeira divisão é feita entre força ativa infalivelmente esses desígnios por si mesmo. Por fim vamos citar um e força passiva, e uma segunda divisão é feita entre força primitiva e importante trecho do De Ipsa Natura: força derivativa. Leibniz define todos esses conceitos com o objetivo de superar muitos daqueles que considera erros cometidos por outras escolas “Mas se a lei dada por Deus deixou algum expresso vestígio seu nas coisas, se as coisas foram formadas deste modo mediante um mandato de modo a tornarem-se aptas a cumprir a vontade do mandatário, então deve concederse que as coisas encerram uma eficácia, forma ou força que chegou a nós tradicionalmente com o nome de natureza” (Leibniz 4, pág. 488). Assim sendo, para evitar o que considerava erros ocasionalistas, cartesianos e espinosanos, Leibniz definiu a natureza como essa forma ou força capaz de cumprir por seu desenvolvimento no tempo a vontade do mandatário. O decreto divino tornou as substâncias eficazes e ativas, ou seja, segundo os textos citados do Discurso de Metafísica (parágrafo 8) e dos Princípios da Natureza e da Graça (parágrafo 1), fez dos possíveis substâncias, isso é, aquilo que é capaz de atividade. Agora vamos explorar um pouco mais a fundo a ontologia leibniziana. Já sabemos que a diferença entre um possível e um existente se encontra na força: o possível não tem nenhuma ação independente da ação divina (não é algo diferente de Deus, não existe alteridade antes da criação), já o existente possui uma força própria (uma determinação intrínseca) pela qual é capaz de seguir a vontade do criador, contudo com liberdade. Mas o filosóficas. A extensão, definida por Descartes como o atributo essencial da substância e, portanto, de onde se derivariam todos os seus modos, não é capaz de explicar e derivar muitas das características que empiricamente podemos verificar no mundo. Se em determinado momento de sua vida Leibniz aderiu totalmente ao programa mecanicista vulgar, entretanto, depois de constatar os limites desse programa, reformulou-o de maneira a reabilitar alguns conceitos da antiga escolástica: “Encantou-me a bela maneira destes de explicar mecanicamente a natureza e reprovei com razão o método daqueles que nada empregavam além das formas ou das faculdades das quais nada se aprende. Mas depois, havendo tentado aprofundar os princípios mesmos da mecânica para fornecer uma explicação das leis da natureza conhecidas por meio da experiência, apercebi-me que a consideração da massa extensa não seria por si mesma suficiente e que seria preciso empregar ainda a noção de força, a qual é plenamente inteligível, ainda que pertença ao domínio da metafísica.” (Leibniz 8, pág. 16) “Descobri, então, que a natureza das formas substanciais consiste na força” (Idem). que precisamente é essa força, ou melhor, com que aspecto(s) da ontologia 66 67 Cadernos Espinosanos XXIII Os princípios mesmos do mecanicismo não podem ser derivados da mera massa extensa. Isso parece significar que algumas das leis da natureza conhecidas empiricamente não podem ser explicadas a partir da extensão, como, por exemplo, a conservação da quantidade de força (mv2), mas, além disso, muitas das características dos corpos não podem ser derivadas da extensão. Por exemplo, a inércia e a impenetrabilidade dos corpos, ambas envolvem certa resistência que a extensão cartesiana, indiferente, não pode fornecer. O próprio movimento também não poderia ser derivado da extensão, daí os excessos ocasionalistas... Para explicar todas essas noções, que envolvem certa atividade ou passividade, é necessário recorrer a algum substrato dinâmico e não mais meramente geométrico (como a extensão cartesiana), daí o recurso às forças. A ação e a paixão das substâncias vão ser a base primitiva de onde essas noções vão ser derivadas e explicadas, elas vão ser uma espécie de substrato ontológico para as características dinâmicas renegadas pelo cartesianismo. São a força passiva e a força ativa primitivas. Mais do que simplesmente substrato, a ação e a paixão vão ser a própria substância. Lembremos o primeiro parágrafo dos Princípios da Natureza e da Graça: a substância é um ser capaz de ação. Elas nada mais vão ser do que a forma e a matéria constitutivas da substância leibniziana: “E a (força ativa) primitiva sem dúvida (que não é outra coisa que a enteléquia primeira) corresponde à alma ou forma substancial” (Leibniz 6, pág. 59). “E sem dúvida a força primitiva de suportar ou resistir constitui o mesmo que, se se interpretou corretamente, se denomina nas escolas matéria primeira” (Leibniz 6, pág. 60). Essas duas instâncias metafísicas vão constituir a substância leibniziana: a famosa mônada: 68 Wilson Alves Sparvoli “E este mesmo princípio substancial se chama alma nos viventes, nos demais seres forma substancial e, enquanto constitui com a matéria uma substância realmente única, ou seja, uma unidade por si, forma o que chamo mônada”. (Leibniz 4, pág. 493). Pode parecer muito estranho que um ser, dito realmente uno, seja composto por matéria e forma, mas nesse ponto sigo a interpretação de Adams. Não se trata de dois componentes, mas antes de dois aspectos que apenas por uma abstração podem ser separados. A substância criada tem uma parcela de ser (ação), mas também por seu caráter de criatura necessariamente tem sua parcela de nada (limitação constitutiva das substâncias), a força ativa (ação) nunca se encontra separada da força passiva (paixão). São como um ser e sua sombra, os dois lados de uma mesma moeda absolutamente inseparáveis, apesar de poder haver, se é licito recorrer ao vocabulário cartesiano, uma distinção de razão. Assim sendo, podemos enfim verificar que as forças concedidas por Deus ao melhor conjunto de possíveis nada mais são do que a própria mônada leibniziana. Pode parecer um tanto óbvio dizer isso, mas a criação transforma os possíveis em substâncias no sentido leibniziano, isto é, em mônadas. Esse é o lugar ocupado pelas forças na ontologia leibniziana, elas são a matéria e a forma das substâncias criadas. Um último desafio poderia ser colocado: como conciliar matéria e forma com a mônada que tem como apanágio perceber, ou antes, como conceder matéria à mônada não extensa? Mais uma vez vou recorrer ao livro de Adams. A matéria de que se trata aqui é uma matéria metafísica: “As substâncias tem matéria metafísica ou potência, a qual é passiva enquanto as substâncias expressam algo confusamente, ativa enquanto expressam algo de maneira distinta” (Leibniz 4, pág. 313) 69 Cadernos Espinosanos XXIII Assim como a positividade das mônadas criadas pode ser identificada com sua percepção clara do universo, a paixão/imperfeição pode ser identificada com a percepção obscura. Por isso a matéria em questão (paixão, limitação da substância) no limite vai poder ser entendida como uma característica relacionada com a percepção confusa da substância, daí seu caráter metafísico. Não se trata de reabilitar pela porta dos fundos a extensão cartesiana escorraçada com alarde pela porta da frente. Enfim, para concluir, gostaria apenas de dizer que a diferença entre um possível e um existente é ao mesmo tempo muito simples e envolve muitas mediações. Um possível existente nada mais é que uma substância, ou seja, um conjunto de força ativa e passiva, matéria e forma, ao mesmo tempo em que as articulações entre os diversos aspectos da substância surgem como um complicador: a substância é força ativa e passiva, é matéria e forma, e também percepção clara e confusa. Como conciliar e articular todos esses aspectos? Sem dúvida nenhuma esse seria um assunto para um outro trabalho um pouco mais longo que esse. Já o puramente possível é uma essência em Deus que apesar de ter uma força para a Wilson Alves Sparvoli REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. ADAMS, R. M. Leibniz. Determinist, Theist, Idealist. New York. Oxford University Press. 1994. 2. GAUDEMAR, M. Leibniz, De la Puissance au Sujet. Paris. Vrin. 1994. 3. LEIBNIZ, G. W. Discurso de Metafísica in os Pensadores vol. Leibniz. São Paulo. 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In order to this, we will use as support reflections on the comments of Gaudemar Martine and Robert Adams, in their books. We intend to show that a possible is something that doesn’t have its own force. Although every possible demands existing, this force is nothing but the divinity’s force itself; there is no otherness before creation. Differently, an existing has its own strength and autonomy. Keywords: Keywords: Leibniz, Existing, Possible, Force, Monad. 70 71 A concepção cartesiana da liberdade nos Princípios da Filosofia Mariana de Almeida Campos* Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar uma resposta a dois problemas presentes na teoria cartesiana da liberdade tal como é desenvolvida nos Princípios da Filosofia. O primeiro refere-se às diferenças entre a versão latina e a tradução francesa dos Princípios no que concerne à definição de liberdade. O segundo refere-se à controvérsia, existente no contexto da literatura secundária, sobre se a teoria cartesiana da liberdade desenvolvida nos Princípios seria distinta daquela desenvolvida nas Meditações Metafísicas. Como pano de fundo desta discussão encontra-se um problema clássico, a saber, o problema da relação entre o que parecem ser duas concepções de liberdade: liberdade como livre-arbítrio e liberdade como espontaneidade. Tendo em vista esse problema, é nossa pretensão também responder, sobre como, precisamente, deveríamos compreender a relação entre essas duas concepções na teoria da liberdade desenvolvida por Descartes nos Princípios. Palavras-chave: Descartes, liberdade, livre-arbítrio, espontaneidade, vontade. Introdução Descartes começou a trabalhar nos Princípios da Filosofia no início de 1641, logo após a publicação de suas Meditações Metafísicas. Nesse livro, ele pretendia publicar o resultado de suas investigações sob a forma de um manual, destinado a substituir os que existiam à época. Originalmente concebido como uma exposição sistemática de sua filosofia, cujo objetivo era retomar as teses que haviam sido expostas nas Meditações, Descartes não chegou a concluir suas últimas seções, referentes aos seres vivos e ao homem, permanecendo, assim, inacabado. Trataremos aqui somente da Parte I, intitulada “Dos princípios do conhecimento humano”, que, junto * Doutoranda do PPGFIL – UERJ e bolsista CAPES. 73 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos com o começo da Parte II, contém a parte propriamente filosófica do livro, defensores de uma evolução na doutrina cartesiana da liberdade. Por outro e é onde podemos encontrar a teoria da liberdade. Conforme a uma ordem lado, há autores que negam que tenha havido entre as Meditações e os constante nos escritos de Descartes, os artigos sobre a liberdade aparecem Princípios tal evolução. Dentre esses autores, analisaremos a posição após os artigos sobre a dúvida (Parte I, artigo I a III e VI), sobre o cogito de Jean Laporte, em seu artigo La liberté selon Descartes, e de Anthony (Parte I, artigo VII a XIII) e sobre as provas da existência de Deus (Parte Kenny, em seu artigo Descartes on the will. I, artigo XIV e seguintes). Assim, os artigos sobre a teoria do erro e sobre a teoria da liberdade são os seguintes: XXXI a XLIV. O original latino dos Princípios foi publicado em 1644; já a tradução Parte 1 - Diferenças entre a versão latina e a versão francesa dos Princípios da Filosofia francesa consta de 1647. Embora a versão francesa tenha sido revista pelo próprio Descartes, ela contém omissões e, sobretudo, acréscimos ao texto Segundo Michelle Beyssade, em seu artigo Des Principia original. Michelle Beyssade, em seu artigo Des Principia aux Principes: aux Principes: variations sur la liberté, a relação entre os Principia variations sur la liberté, de 1994, apresenta uma detalhada classificação Philosophiae de 1644 e os Principes de la Philosophie de 1647 não é a das diferenças existentes entre essas duas versões. Dentre elas, há uma em de uma pura e simples tradução. Segundo ela, a versão francesa contém particular que na sua visão parece revelar uma mudança de pensamento a inúmeras diferenças em relação ao texto original. Neste artigo não nos respeito da liberdade. Assim, a hipótese de uma mudança de pensamento propomos a analisar todas essas diferenças, mas apenas uma, em particular, é levantada a partir da comparação entre o que é dito na versão latina e que na visão da autora é mais importante do que as demais pelo fato de que na versão francesa do artigo XXXVII da primeira parte dos Princípios. parece representar dois pensamentos diferentes a respeito da liberdade. A Segundo Michelle Beyssade, a diferença entre as duas versões desse artigo diferença em questão se encontra no artigo XXXVII da Primeira Parte dos traz à tona o problema da relação entre o que parecem ser duas diferentes Princípios. Vejamos o que diz a versão latina: concepções de liberdade: liberdade como “poder dos contrários” e liberdade como poder de sermos determinados em nossos juízos por idéias claras e distintas. Na primeira parte deste artigo, pretendemos investigar se a hipótese de uma mudança conceitual entre os Principia e os Principes a respeito da liberdade é coerente dentro do sistema cartesiano. Na segunda parte, mostraremos que há ainda uma outra controvérsia, no contexto da literatura secundária, sobre se os Princípios marcam uma mudança em relação às Meditações; essa é a tese defendida por Etienne Gilson em seu livro La liberté chez Descartes et la théologie, e por Ferdinand Alquié em seu livro La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes, 74 “Mas que a vontade se estenda o mais amplamente possível, isso também convém à sua natureza; e é, em certo sentido, uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade, isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar o autor de suas ações e por elas merecendo louvor. Pois não se louvam os autômatos por exibirem com precisão todos os movimentos para os quais foram construídos, porque necessariamente os exibem assim; mas se louva o seu artífice por havê-los fabricado tão precisos, porque não os fabricou necessária, mas, sim, livremente. Pela mesma razão, deve-se de certo pôr mais em nosso crédito abraçar 75 Cadernos Espinosanos XXIII a verdade, quando a abraçamos, porque é voluntariamente que o fazemos, do que se não pudéssemos deixar de abraçála” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53)1. Michelle Beyssade observa que a versão latina deste artigo é um dos textos em que, para caracterizar a liberdade, Descartes afirma mais fortemente o “poder dos contrários”. Esse poder é reconhecido como um aspecto de perfeição no homem, como uma suma perfeição, e como condição do seu mérito, por intermédio da idéia de responsabilidade presente no termo “autor”. Além disso, ele é considerado como oposto à necessidade do movimento dos autômatos. Segundo a autora, essa oposição está em harmonia com o que é dito no artigo XXXIX, onde a liberdade também é caracterizada como um “poder dos contrários”: “Mas para que haja liberdade em nossa vontade, e [que], a nosso arbítrio, possamos assentir ou não assentir” (Descartes 4, VIII, 19, Descartes 6, XXXIX, 55); e com a associação entre “liberdade” e “indiferença” no artigo XLI: “[...] estamos de tal modo cônscios da liberdade e da indiferença que está em nós” (Descartes 4, VIII, 29; Descartes 6, LXI, 57). Assim, a caracterização da liberdade na versão latina do artigo XXXVII como um “poder dos contrários” está em harmonia com o que é dito na versão latina dos artigos XXXIX e XLI. Porém, a versão francesa do artigo XXXVII é muito diferente do original latino. Como observa Michelle Beyssade, o trecho em que a hipótese de uma mudança de pensamento pode ser mais fortemente levantada é o seguinte: “Igualmente devemos nos atribuir algo mais pelo fato de escolhermos o que é verdadeiro, quando o distinguimos do falso, graças a uma determinação da nossa vontade do que se fossemos determinados e coagidos por um princípio externo” (Descartes 4, IX, 41. Descartes 5, III, 112-113)2. 76 Mariana de Almeida Campos Como vimos na versão latina do artigo XXXVII, a liberdade é caracterizada como um “poder dos contrários”. Mas na versão francesa, de acordo com o trecho citado acima, a liberdade é considerada como uma determinação interior não constrangida. Face a essa diferença entre as duas versões do artigo XXXVII, Michelle Beyssade se pergunta se não haveria aí o indício de uma mudança no pensamento de Descartes sobre a liberdade. Segundo ela, essa diferença corresponde à diferença entre as duas caracterizações da liberdade que se encontram na Quarta Meditação separadas pela expressão “ou antes”: liberdade como poder dos contrários e liberdade como determinação interna. Assim como há diferenças entre as duas versões dos Princípios, também é possível observar uma variação entre o que Descartes escreve na versão latina das Meditações sobre a liberdade e o que ele escreve na versão francesa. Na versão latina, a liberdade se caracteriza por uma determinação interna; neste caso a expressão “ou antes” tem como função excluir da definição essencial de liberdade a caracterização da liberdade como um “poder dos contrários”. Mas, na versão francesa, esse poder parece não ser mais explicitamente excluído da definição essencial de liberdade. Na verdade, Descartes não se pronuncia sobre essa questão, pois o que de fato ele exclui da definição essencial de liberdade é o estado de indiferença negativa resultante de uma carência de conhecimento. Na versão francesa da Quarta Meditação, a liberdade em seu mais alto grau também se caracteriza por uma adesão irresistível às idéias claras e distintas, mas, diferentemente da versão latina, o “poder dos contrários” não é explicitamente excluído da definição essencial de liberdade. É uma tese defendida por Michelle Beyssade em seu famoso artigo sobre a Quarta Meditação, Descartes’s Doctrine of Freedom: Differences between the French and Latin Texts of the Fourth Meditation, que, após a publicação das Meditationes, há nos 77 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos escritos de Descartes um maior reconhecimento do “poder dos contrários” essa visão, não há dois pensamentos diferentes sobre a liberdade, mas duas (Beyssade 2, p. 205). Segundo ela, esse maior reconhecimento pode ser maneiras diferentes de expressar um mesmo pensamento: “A divergência observado pelo que é dito sobre a liberdade na carta a Mesland de 1645 e das variações se opõe à idéia de uma mudança de doutrina” (Beyssade na versão francesa das Meditações de 1647. Porém a explicação sugerida 3, p.46). Para sustentar essa tese, a autora mostra que na versão francesa pela autora para resolver o problema da diferença entre as duas versões dos Princípios podemos encontrar afirmações em artigos posteriores ao das Meditações, a saber, de que há um maior reconhecimento do “poder artigo XXXVII que não revelam uma negação do “poder dos contrários”, dos contrários” na caracterização da liberdade após 1641, não serve para afirmado na versão latina desse artigo, e que, além disso, atenuam a resolver o problema da diferença entre as duas versões dos Princípios, e diferença que destacamos anteriormente entre as duas versões do artigo mais especificamente a diferença entre as duas versões do artigo XXXVII XXXVII. Vejamos o que diz Descartes no artigo XXXIX dos Principes: da Primeira Parte, que acabamos de apresentar. Pois, se nos Principia a liberdade é caracterizada como envolvendo um “poder dos contrários”, nos Principes ela é caracterizada como uma determinação interna. É compreensível, como argumenta Michelle Beyssade, que em 1644, data da versão latina dos Princípios, Descartes considere a liberdade como um “poder dos contrários”. No período de redação dos Principia Descartes apresenta formulações diferentes daquelas que encontramos em 1641, pois ele tenta evitar as objeções endereçadas às Meditationes (BEYSSADE, M., 1996, p. 44). Mas como compreender essa nova acentuação do caráter interno da determinação na versão francesa dos Princípios? Como explicar ainda o fato de que essa versão é publicada no mesmo ano da versão francesa das Meditações, mas apresenta uma caracterização da liberdade que se aproxima do ponto de vista das Meditationes de que as Méditations se distinguem? Há ou não aí o indício de uma mudança na doutrina cartesiana da liberdade? Michelle Beyssade defende a tese de que não há uma mudança no pensamento cartesiano sobre a liberdade no período que se estende entre as duas versões dos Princípios (Beyssade 3, p. 49). A autora afirma que, embora a versão francesa dos Princípios seja diferente da versão latina, essas diferenças não negam o que o texto latino afirmava. De acordo com 78 “Quanto ao mais, é tão evidente que possuímos uma vontade livre, que pode ou não dar o seu consentimento quando bem lhe aprouver, que isso pode ser considerado uma das nossas noções mais comuns. Tivemos anteriormente uma prova bem clara: pois, ao mesmo tempo em que duvidávamos de tudo, e que supúnhamos até que aquele que nos criou empregava o seu poder para nos enganar de todas as maneiras, apercebíamos em nós uma liberdade tão grande que podíamos evitar crer naquilo que não conhecíamos ainda perfeitamente bem. Ora, aquilo que apercebíamos distintamente e de que não podíamos duvidar durante uma suspensão tão geral é tão certo quanto qualquer outra coisa que possamos jamais conhecer” (Descartes 4, IX, 40. Descartes 5, III, 112). Como vimos na versão francesa do artigo XXXVII, Descartes caracteriza a liberdade como uma determinação interna. Porém, no artigo XXXIX dessa mesma versão, ele afirma explicitamente o “poder dos contrários”, como mostra o trecho que acabamos de citar. Embora esse poder seja afirmado, a seqüência do artigo nos mostra que seu exercício não é absoluto, mas se limita aos casos em que não somos plenamente esclarecidos por razões, isto é, aos casos em que experimentamos algum 79 Cadernos Espinosanos XXIII grau de dúvida. Desta forma, a versão francesa do artigo XXXIX atenua, sem negar, a afirmação que é feita na versão francesa do artigo XXXVII, a saber, de que a liberdade consiste numa determinação interna. De acordo com o que foi dito, podemos pensar que a versão francesa dos Princípios admite, por um lado, a caracterização da liberdade como uma determinação interna, nos casos em que estamos esclarecidos por razões, como mostra o artigo XXXVII; e, por outro lado, a caracterização da liberdade como um “poder dos contrários”, nos casos em que experimentamos algum estado negativo de indiferença, ou seja, algum grau de dúvida, como mostra o artigo XXXIX. Assim, numa mesma versão é possível compatibilizar as noções de determinação interna e de “poder dos contrários” na caracterização da liberdade. De modo correlato, como observa Michelle Beyssade, o artigo XLIII também é um texto que atenua a diferença entre as duas versões do artigo XXXVII. Vejamos respectivamente o que diz a versão latina e a versão francesa desse artigo: “É certo, porém, que jamais viremos a tomar o falso pelo verdadeiro se dermos assentimento somente àquilo que percebermos clara e distintamente. Digo que é certo porque, como Deus não é enganador, a faculdade de perceber que nos deu não pode tender ao falso, nem tampouco a faculdade de assentir, quando se estende somente àquilo que é percebido claramente. E, ainda que de maneira alguma o provássemos, isso está de tal sorte impresso pela natureza dos ânimos de todos [nós] que, todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, VIII, 21; Descartes 6, XLIII, p. 59). “Mas é certo que nunca tomaremos o falso pelo verdadeiro enquanto julgarmos apenas o que percebemos clara e 80 Mariana de Almeida Campos distintamente, porque, não sendo Deus enganador, a faculdade de conhecer que nos deu não poderia falhar, nem mesmo a faculdade de querer, quando não estendemos para além do que conhecemos. E mesmo que tal verdade não tivesse sido demonstrada, somos tão naturalmente inclinados a dar o nosso consentimento às coisas que apercebemos manifestamente que não poderíamos duvidar delas enquanto as percebemos dessa maneira” (Descartes 4, IX, 43; Descartes 5, III, 116). Como argumenta Michelle Beyssade, se na versão latina do artigo XXXVII Descartes caracteriza a liberdade como um poder dos contrários, no artigo XLIII dessa mesma versão ele considera a dúvida sobre uma percepção clara e distinta como absolutamente impossível. Isso significa que, embora esse poder seja afirmado no artigo XXXVII, mais adiante no artigo XLIII Descartes afirma que seu exercício não é absoluto, pois diante de uma percepção clara e distinta não temos o “poder dos contrários”. Se na versão francesa do artigo XXXVII Descartes caracteriza a liberdade como uma determinação interna, no artigo XLIII dessa mesma versão ele omite a expressão latina “nullo modo”, que tornava a dúvida sobre uma percepção clara e distinta impossível, e acrescenta uma frase que não havia no texto latino. Essa adição da versão francesa atenua a tese da impossibilidade de duvidarmos das percepções claras e distintas, na medida em que ela restringe essa impossibilidade ao momento da presença da percepção manifesta e admite ser possível duvidarmos dessas percepções quando a atualidade se esvai. Assim, a versão francesa desse artigo, sem entrar em contradição com a versão latina, que afirma que a dúvida sobre uma percepção clara e distinta é impossível, indica como se exerce o “poder dos contrários” submetendo-o às condições de desatenção características do pensamento humano. Esses dois artigos que acabamos de analisar atenuam a diferença 81 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos entre as duas versões do artigo XXXVII, que poderia ser considerada do pensamento tomista, representa uma crítica à doutrina molinista. Nos como um indício de uma mudança na doutrina cartesiana da liberdade. Princípios, ao negar a crítica da liberdade de indiferença e afirmar que As modificações observadas nesses artigos posteriores, com base no “indiferença” e “liberdade” são sinônimos – “estamos de tal modo cônscios estudo de Michelle Beyssade, nos mostram que a versão francesa do artigo da liberdade e da indiferença que está em nós” (Descartes 4, VIII, 20; XXXVII não nega o que Descartes afirma na versão latina desse texto, mas Descartes 6, XLI, 57) – Descartes estaria, na visão de Gilson, claramente se apresenta uma formulação diferente sobre a liberdade. Essa diferença de afastando de sua posição anterior e aderindo à doutrina molinista. Segundo formulação a respeito da liberdade entre as duas versões dos Princípios o comentador, essa mudança no pensamento cartesiano sobre a liberdade pode ser explicada, como sugere Michelle Beyssade, pelo fato de que pode ser explicada pela mudança que então havia tomado a controvérsia ao reler o artigo XXXVII, na ocasião de sua tradução, Descartes estava sobre a graça, e pela preocupação de Descartes em assegurar o sucesso de mais preocupado em mostrar como se manifesta a perfeição da liberdade sua filosofia mediante a aprovação dos jesuítas (Gilson 7, p.319). na adesão da verdade do que em afirmar o “poder dos contrários”, que Gilson argumenta que, no momento da redação dos Princípios, ele afirma nos artigos posteriores dessa mesma versão (Beyssade 3, p. Descartes se encontrava decepcionado pelo fato de não haverem recebido 39-41). De acordo com essa interpretação, Descartes teria preferido, na seus Meteoros com bastante consideração e por não terem introduzido versão francesa, ressaltar um outro aspecto da liberdade, a saber, a adesão esse texto no ensino, e começa então a redigir os Princípios, esperando da vontade às idéias claras e distintas. Assim, acreditamos com Michelle a aprovação da Sorbonne de sua obra anterior, as Meditações. Sem uma Beyssade que não há uma mudança na teoria cartesiana da liberdade entre aprovação oficial dos doutores da Sorbonne, diz Gilson, Descartes sabia os Principia e os Principes, mas duas ênfases distintas de uma mesma que seria imprudente entrar em guerra aberta com a Companhia de concepção geral (Beyssade 3, p. 49). Jesus, mas totalmente diferente seria a sua posição na luta se ele pudesse demonstrar aos seus adversários que a física que eles haviam recusado Parte 2 - Interpretações contra e a favor da tese de que os Princípios da Filosofia marcam uma mudança em relação à doutrina da liberdade exposta nas Meditações Metafísicas decorria necessariamente dos princípios metafísicos que a Sorbonne havia aprovado. No entanto, as Meditações são recusadas pelos doutores da Sorbonne. Diante desse fato, Descartes renuncia ao desejo que ele tinha de refutar o curso de filosofia difundido nos colégios jesuítas. Para que a 2.1. A posição de E. Gilson filosofia cartesiana triunfasse e substituísse a de Aristóteles, era preciso que Descartes colocasse a Companhia de Jesus a seu favor; pois somente 82 Gilson defende a tese de que os Princípios representam uma mudança os jesuítas com seus colégios potentes e suas numerosas ligações nas na doutrina cartesiana da liberdade em relação às Meditações (Gilson 7, p. universidades poderiam garantir o triunfo rápido da filosofia cartesiana. 318). Ele considera que a doutrina da liberdade que é desenvolvida nas Segundo Gilson, Descartes estava consciente disso e, ao escrever os Meditações, apoiada na crítica da liberdade de indiferença sob a influência Princípios, tentava conciliar o seu pensamento com o pensamento dos 83 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos jesuítas: “a história dos Princípios é dominada inteiramente pela preocupação redação das Meditações, Descartes ainda está ligado ao livro de Gibieuf, de Descartes com os jesuítas” (Gilson 7, p. 332). Na visão de Gilson, é em livro pelo qual ele confessa uma profunda estima. Gilson chama a atenção função da não aprovação dos Meteoros e das Meditações que Descartes para o fato de que entre 1641 e 1644, isto é, no intervalo que separa as evita introduzir nos Princípios tudo o que pudesse ser considerado como Meditações dos Princípios, um fato novo se produz: por via de evolução uma crítica das doutrinas teológicas em destaque na Companhia. Assim, o tomismo acabava por culminar no jansenismo. O ano de 1640 é o ano Descartes exclui dos Princípios a crítica da liberdade de indiferença, em que aparece o Augustinus de Jansenius, em que ele acusa os jesuítas pois essa crítica atingiria a Companhia de Jesus inteira, que estava muito de pelagianismo e de semipelagianismo. Diante dessa acusação os jesuítas engajada na querela da graça e muito sensível sobre essa questão. não tardam em combater o jansenismo. A escamoteação da crítica da liberdade de indiferença nos Como observa Gilson, entre 1641 e 1644 a mudança que toma Princípios ocorre, além disso, segundo Gilson, em função das circunstâncias a controvérsia da graça é cada vez mais desfavorável para o jansenismo. particulares em que Descartes se encontrava, circunstâncias essas que se Os tomistas e oratorianos também manifestavam alguma inquietude. Eles ligavam à publicação do livro de Gibieuf, De libertate, em 1630 (Gilson temiam que os jesuítas, vendo a ocasião propícia para comprometer todos 7, p.321). Nesse mesmo ano, Descartes, tendo exposto a Mersenne suas os seus adversários, tomassem uns pelos outros – jansenistas, tomistas e reflexões sobre a liberdade divina, toma conhecimento da aparição do livro oratorianos. Assim, em sua análise Gilson mostra que, depois da publicação de Gibieuf que acabara de ser publicado. Em outubro de 1631 Descartes das Meditações, o sentido e a orientação de certas doutrinas haviam mudado, lê esse livro e demonstra prazer nessa leitura; as idéias de Gibieuf o os jesuítas triunfavam no momento da redação dos Princípios, e a doutrina satisfazem. Naquele ano, a querela que esse livro iria provocar ainda de Molina, durante muito tempo suspeita, era agora a única que não era não havia começado; é o momento em que os jesuítas vão a Roma para evidentemente jansenista. O tomismo não tinha mais como se defender de tentar condená-lo, mas o livro ainda não é conhecido pelo grande público. Molina, mas ele se esforçava para não ser confundido com o jansenismo. Descartes deixa de se corresponder com Mersenne sobre a questão da Gibieuf era um dos mais seriamente comprometidos. Gilson defende a tese liberdade e, de uma maneira geral, parece espaçar suas correspondências de que nos Princípios Descartes abandona a posição da Quarta Meditação a tal ponto que, durante o período que vai do fim de 1631 a janeiro de ao tomar conhecimento da controvérsia jansenista e verificar que a sua 1637, encontramos apenas quatorze cartas a Mersenne, cartas essas doutrina coincidia com a daquela escola, o que o tornaria suspeito aos consagradas às discussões científicas ou à condenação de Galileu em jesuítas (Gilson 7, p. 373). 1634, que preocupava Descartes. O ano de 1637 marca uma retomada de Descartes da sua correspondência com Mersenne, mas chegamos em 1640, 2.2. A posição de F. Alquié data da redação definitiva das Meditações, sem que ele tenha escrito nada 84 sobre a liberdade humana. O Discurso do Método apenas toca na questão Essa mesma posição de uma evolução entre as Meditações e os da liberdade sem que Descartes tome algum partido. Em 1640, data da Princípios na teoria cartesiana da liberdade será mais tarde defendida 85 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos por Alquié, embora sob um ponto de vista diferente. Enquanto Gilson “Ora, para julgar requer-se certamente o entendimento, porquanto nada podemos julgar de uma coisa que de nenhum modo percebemos. Mas, também se requer a vontade, para que o assentimento seja concedido à coisa de algum modo percebida” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXIV, 51). considera que a razão da mudança na teoria cartesiana da liberdade diz respeito a uma atitude oportunista de Descartes em tentar ganhar o apoio dos jesuítas para poder difundir a sua filosofia nas escolas jesuíticas, Alquié considera que essa mudança diz respeito a um maior reconhecimento de Descartes do problema moral. Segundo ele, nos Princípios a reflexão sobre a liberdade se torna moral, o problema da responsabilidade aparece e a indiferença entendida como poder de escolha aparece como sinônimo Porém, a vontade é mais extensa do que o entendimento: de liberdade. De acordo com Alquié, nesse texto, haveria uma insistência “E certamente a percepção do entendimento não se estende senão às poucas coisas que lhe são oferecidas e é sempre muito limitada. A vontade, porém, pode de algum modo ser dita infinita” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXV, 52). por parte de Descartes da noção de mérito e a introdução da possibilidade de escolhermos o mal e o falso mesmo em presença do bem e da verdade (Alquié 1, p. 287). Temos assim ao menos dois grandes comentadores e estudiosos da filosofia cartesiana que defendem a tese de uma evolução entre as A vontade é infinita na medida em que só depende dela querer: Meditações e os Princípios. Vejamos agora o que dizem aqueles que “Mas que a vontade se estenda o mais amplamente possível, isso também convém à sua natureza; e é em certo sentido, uma suma perfeição no homem que ele aja pela vontade, isto é, livremente, sendo assim de um certo modo peculiar o autor de suas ações e por elas merecendo louvor” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53). defendem a tese de uma não-evolução. Dentre os defensores de uma nãoevolução podemos citar alguns autores tais como J.-M. Beyssade e M. Gueroult entre outros, mas neste artigo analisaremos somente as posições de J. Laporte e A. Kenny, que nos parecem mais esclarecedoras para o problema que nos propomos analisar. 2.3 A posição de J. Laporte Segundo Laporte, o problema da liberdade nos Princípios é introduzido da mesma maneira que na Quarta Meditação, em relação ao erro e para mostrar que Deus não pode ser a causa dos nossos erros. Segundo ele, a argumentação segue a mesma ordem das Meditações. Descartes mostra que o erro reside no juízo e que o juízo depende do concurso de duas faculdades: o entendimento que percebe e a vontade que consente. 86 Há, portanto, desproporção entre o entendimento e a vontade. E o erro ocorre porque não é necessário para darmos o nosso consentimento, isto é, para fazermos um juízo, que tenhamos um conhecimento inteiro e perfeito, mas basta termos algum conhecimento, mesmo que ele seja obscuro e confuso: “Não se requer, porém (ao menos para julgar de um modo qualquer), uma íntegra e omnímoda percepção da coisa, pois podemos assentir a muitas coisas que não conhecemos 87 Cadernos Espinosanos XXIII senão de maneira muito obscura e confusa” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXIV, 51). Erramos quando não temos um conhecimento certo sobre aquilo que julgamos: Descartes Descartes6, XLIII, 59). Para Laporte, a liberdade é antes de tudo aquilo que nos torna dignos de louvor ou vitupério, e temos ou não temos mérito em agir porque somos mestres ou autores de nossas ações e porque não somos nem determinados nem constrangidos por nenhum princípio externo (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53). “Quando, porém, percebemos algo, é manifesto que não nos enganamos, desde que absolutamente nada afirmemos ou neguemos dele. Do mesmo modo, tampouco nos enganamos, quando afirmamos ou negamos só aquilo que clara e distintamente percebemos dever ser assim afirmado ou negado. Mas só [nos enganamos] quando (como sói acontecer), ainda que não percebamos algo corretamente, não obstante julgamos sobre isso” (Descartes 4, VIII, 17; Descartes 6, XXXIII, 51). Se a percepção obscura e confusa determinasse por ela mesma o assentimento, o erro seria inevitável e Deus, autor de nossa natureza, não poderia ser justificado. É preciso então que diante de uma percepção obscura e confusa possamos dar nosso consentimento, mas que possamos também refutá-lo. Isso é justamente o que ocorre na experiência da dúvida: “experimentávamos, com efeito, existir em nós essa liberdade [que é tal] que podíamos nos abster de crer naquelas coisas que não eram inteiramente certas e averiguadas” (Descartes 4, VIII, 19; Descartes 6, XXXIX, 55). Mas, com a experiência da dúvida, aprendemos também que há coisas de que não podemos duvidar, a saber, aquelas – das quais a primeira é o cogito – que percebemos clara e distintamente. Diante da evidência atual somos levados a crer em virtude de uma inclinação que é irresistível: “Todas as vezes que percebemos algo claramente lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, 21, VIII; 88 Mariana de Almeida Campos Segundo o autor, a liberdade nos Princípios, tal como nas Meditações, é essencialmente a faculdade de se decidir por si mesmo, mas, acidentalmente, ela se acompanha de indiferença ou de indeterminação em relação a tudo o que não é claramente conhecido (Laporte 9, p. 128). Quanto à caracterização da indiferença negativa como o mais baixo grau de liberdade que não se encontra explicitamente nos Princípios, Laporte argumenta que podemos encontrar expressões, equivalentes ao que diz Descartes na Quarta Meditação, que mostram que a indiferença é a fonte do erro e que o erro é um defeito no uso da nossa liberdade (ver artigos XXXIII, XXXIV e XXXIX citados anteriormente). Assim, para Laporte não há uma mudança conceitual entre os Princípios e as Meditações. 2.4. A posição de A. Kenny Para Kenny os Princípios confirmam a doutrina encontrada nas Meditações (Kenny 8, p.132-159). Mas ele chama a atenção para o fato de que, se lermos o artigo XXXVII dos Princípios sem atenção, podemos ter a impressão de que Descartes mudou de idéia sobre a liberdade. Pois na última frase desse artigo a liberdade caracterizada como poder dos contrários parece permanecer no assentimento às idéias claras e distintas: “Pela mesma razão, deve-se de certo pôr mais em nosso crédito abraçar a verdade, quando a abraçamos, porque é voluntariamente que o fazemos, do que se não pudéssemos deixar de abraçá-la” (Descartes 4, VIII, 18; Descartes 6, XXXVII, 53). Contudo, Kenny afirma que essa leitura é apenas 89 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos aparente e superficial, uma vez que a impossibilidade de se suspender o evidência presente nas Meditações se mantém intacta nos Princípios, juízo diante de uma idéia clara e distinta é explicitamente afirmada no como podemos conferir no artigo LXIII – “todas as vezes que percebemos artigo LXIII: “todas as vezes que percebemos algo claramente, lhe damos algo claramente, lhe damos espontaneamente o nosso assentimento e de espontaneamente o nosso assentimento e de nenhum modo podemos nenhum modo podemos duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, duvidar que não seja verdadeiro” (Descartes 4, VIII, 21; Descartes 6, IX, II, 25. Descartes 5, III, 116) –, o que vai contra a posição de Alquié. XLIII, 59). Desta forma, Kenny, tal como Laporte, defende a tese de que Não há a nosso ver nenhuma mudança conceitual da parte de Descartes em a doutrina das Meditações a respeito do problema da liberdade se mantém relação à teoria da liberdade humana entre as Meditações e os Princípios, intacta nos Princípios. como defendem Gilson e Alquié. A interpretação de Laporte, que segue passo a passo os artigos concernentes à teoria da liberdade nos Princípios, Considerações finais de modo a mostrar que eles estão em coerência com o que é dito na Quarta Meditação, é extremamente enriquecedora e mostra que em ambos os textos Na segunda parte deste artigo, apresentamos duas linhas Descartes diz a mesma coisa sobre a liberdade. A interpretação de Kenny interpretativas sobre a teoria cartesiana da liberdade: a primeira concernente segue a mesma linha da interpretação de Laporte e, embora reconheça aos defensores da tese de uma evolução entre as Meditações e os Princípios, que uma leitura apressada do artigo XXXVII possa nos levar a pensar tais como Gilson e Alquié, a segunda concernente aos defensores de uma numa mudança no pensamento cartesiano, não afirma que há de fato uma não-evolução, tais como Laporte e Kenny. Em relação à interpretação mudança, mas, ao contrário, acaba por reconhecer que uma tal leitura seria proposta por Gilson, acreditamos que os elementos externos ao sistema aparente e superficial, uma vez que ele afirma que a teoria cartesiana, tal cartesiano, que ele utiliza para defender a tese de uma evolução, tais como é desenvolvida nas Meditações, se mantém intacta nos Princípios. como o interesse de Descartes em ver aprovada a sua filosofia nos meios De acordo com o que foi dito, temos os seguintes resultados: teológicos e a mudança de direção tomada pela controvérsia da graça, são - Em 1644, na versão latina dos Princípios, o “poder dos contrários” inconsistentes com o texto; assim como a afirmação de Alquié, de que é reconhecido como um aspecto de perfeição no homem e como condição a tese da irresistibilidade diante da evidência, afirmada nas Meditações, de seu mérito, e, sem negar o que havia sido dito em 1641, na versão latina passaria a ser excluída dos Princípios, o que nos legitimaria a falar de uma das Meditações Metafísicas, a respeito da definição essencial de liberdade, evolução. Pois, se por um lado, a crítica da liberdade de indiferença (no Descartes acrescenta que seu exercício permanece excluído dos casos em sentido negativo) é mantida nos Princípios tal como nas Meditações, como que a evidência é presente. demonstra o artigo XXXIX – “experimentávamos, com efeito, existir em - Em 1647, na versão francesa dos Princípios, Descartes retoma nós essa liberdade [que é tal] que podíamos nos abster de crer naquelas a terminologia de 1641 e afirma que a essência da liberdade não inclui o coisas que não eram inteiramente certas e averiguadas” –, o que vai contra exercício do poder de escolha entre contrários. a posição de Gilson; por outro lado, a tese da irresistibilidade diante da 90 91 Cadernos Espinosanos XXIII Mariana de Almeida Campos The Cartesian concept of freedom in Philosophical Principles 8. KENNY, Anthony. “Descartes on the will”. In: COTTINGHAM, John (Org.). Descartes. Oxford: Oxford University Press, 1998. p. 132-159. Abstract: The aim of this article is offering a solution to two different problems in the Cartesian theory of freedom, both of which are developed in the Philosophical Principles. The first of them deals with the contrast between the Latin and the French version of the Principles regarding the concept of Freedom. The second refers to the controversy in the secondary literature in which the Cartesian theory of freedom developed in the Principles would be different from that exposed in the Metaphysical Meditations. Behind this question is the classic problem of correlating what seem to be two distinct concepts of freedom: freedom as freewill and freedom as spontaneity. With this in mind, we will also try to respond precisely how the relationship between these two concepts of freedom exposed in the Principles should be understood. Keywords: Descartes, Freedom, Freewill, Spontaneity, Will. Referências bibliográficas: 9. LAPORTE, Jean. “La liberté selon Descartes”. Revue de Métaphysique et Morale, Paris, v. 44, p. 101-164, 1937. NOTAS: 1. Para citação da versão latina dos Princípios da Filosofia utilizaremos a tradução brasileira de Guido Antônio de Almeida, Raul Landim Filho, Ethel M. Rocha, Marcos André Gleizer e Ulysses Pinheiro, que se encontra em DESCARTES. Princípios da Filosofia. Tradução coordenada por Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. As notas bibliográficas remetem sempre para duas edições, a edição padrão de Adam e Tannery e a edição brasileira. 2. Para citação da versão francesa dos Princípios da Filosofia faremos uma tradução livre da edição em língua francesa DESCARTES, René. Oeuvres Philosophiques. Ed. par F. Alquié. Paris: Garnier, 1997. 3 v. Neste caso, as notas bibliográficas remetem sempre para duas edições, a edição padrão de Adam e Tannery e a edição de Alquié. 1. ALQUIÉ, Ferdinand. “La liberté humaine”. In : ______. La découverte métaphysique de l’homme chez Descartes. Paris: PUF, 1991. cap. 14, p. 280-299. 2. BEYSSADE, Michelle. “Descartes’s Doctrine of Freedom: Differences between the French and Latin Texts of the Fourth Meditation”. In: COTTINGHAM, John (Org.). Reason, Will, and Sensations: Studies in Descartes’s Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 1994. p. 191-206. 3. ______. “Des Principia aux Principes: Variations Sur la Liberté”. In: PRINCIPIA PHILOSOPHIAE (1644-1994), CONVEGNO PER IL 350 ANNIVERSARIO DELLA PUBLICAZIONE DELL’OPERA, 1994, Parigi. Atti... Napoli: Instituto Italiano Per Gli Studi Filosofici, 1996. p. 37-51. 4. DESCARTES, René. Oeuvres de Descartes. Ed. par C. Adam et P. Tannery. Paris: Vrin, 1982. 12 v. 5. ______. Oeuvres Philosophiques. Ed. par F. Alquié. Paris: Garnier, 1997. 3 v. 6. ______. Princípios da Filosofia. Tradução coordenada por Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: UFRJ, 2002. 7. GILSON, Étienne. La Liberté chez Descartes et la théologie. Paris: Alcan, 1913. 92 93 Imagens e analogias do corpo e da mente na política de Spinoza Alexandre Arbex Valadares* Resumo: O presente artigo propõe estudar algumas possibilidades interpretativas suscitadas pela analogia com que Spinoza busca ilustrar, a partir da imagem do corpo humano, a estrutura de composição do corpo político. Começando por discutir a dinâmica de produção de corpos na Natureza, o texto desenvolve uma análise da contradição entre duas teses, presentes na obra de Spinoza – uma, na sua ontologia, e outra, na política –, que se formulam nos termos da analogia do corpo humano com o corpo político; em seguida, essa analogia desdobra-se em uma comparação entre a mente humana e o que se poderia denominar uma “mente” do corpo político, a partir da distinção entre os dois níveis de constituição do político – a cidade (civitas) e o Estado (imperio); por fim, propõe-se uma interpretação do processo de produção de ideias e representações na vida política à luz da teoria althusseriana da ideologia. Palavras-chave: Spinoza, política, corpo, imaginação, ideologia. 1. A analogia entre corpo humano e corpo político é um lugar-comum da teoria política moderna, e denota a influência, nesta última, das concepções organicistas ou atomistas de mundo. Mais que mero recurso retórico, que, aludindo a uma imagem-síntese, permite atalhar as dificuldades inerentes a uma explicação rigorosa do processo de constituição e funcionamento da vida social, a comparação confere evidência a dois princípios importantes do pensamento político pós-Maquiavel. O primeiro diz respeito à unidade do Estado, à sua integralidade ou ao seu caráter absoluto; o segundo concerne a algo que se poderia chamar identidade entre o todo e suas *Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 95 96 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares partes. Tal princípio permeia a tese contratualista do Estado fundado inepto e mesmo a opressão empreendida por um tirano contra os cidadãos por homens, do Estado-instituição, que, reproduzindo em maior escala a são males igualmente nocivos à saúde do organismo político. No TP, concepção ideal do homem livre e racional, vincula o poder do soberano à Spinoza evoca a ideia de unidade ou integridade desse organismo, tanto sua vontade. A mesma ideia de identidade subjaz às interpretações relativas para designar, como união de corpos, o processo de composição da potência às condições de legitimidade do poder político, tanto nas teorias do pacto coletiva que constitui a cidade (II, 15), quanto para descrever, como união social, que consideram legítimo o poder absoluto emanado da vontade das de mentes, o direito da cidade fundado na razão (III, 7). Esse “corpo”, a partes, quanto nas teorias em que a legitimidade assume sentido realista, cuja imagem Spinoza assimila a política, é, pois, dotado de uma “mente”, como em Maquiavel e Spinoza, e não se distingue do conjunto de relações mas, em contradição com a concepção de natureza humana descrita na de poder, ou de potência, que sustentam, no presente, certa autoridade ou Ética (E), em especial com o princípio da independência dos atributos instituição. Nesse caso, é dito legítimo o poder cuja constituição está de pensamento e extensão, essa mente parece exercer, pela vontade, algum acordo com a natureza humana, não tal como a representam os moralistas, poder sobre o corpo: o parágrafo 5 do capítulo III di-lo expressamente, mas tal como ela se dá a conhecer na história e na experiência, isto é, e a definição, ainda que metafórica, do rei como “mente do Estado” no marcada pelas paixões, pela imaginação e pelo conflito. Desse ponto de parágrafo 19 do capítulo VI reforça essa correspondência. vista, a legitimidade não decorre propriamente do grau de adequação do Essas passagens, claro está, têm sentido meramente ilustrativo: poder político ao modo de ser dos homens, mas é, antes, por conformar-se seus argumentos apelam à imaginação, e estão longe de sugerir um recuo à natureza destes que esse poder tem condições de se conservar; um poder de Spinoza em relação à sua crítica ao livre-arbítrio, abordada na Ética. político é legítimo na medida em que existe. Mas as aparentes incongruências entre sua política e sua ontologia não Que Spinoza se inspire em Maquiavel ao lançar mão da analogia se restringem a esse tópico: o enunciado da proposição 4 da parte III da entre corpo humano e Estado, o texto mesmo do seu Tratado político (TP, Ética, segundo o qual nenhuma coisa pode ser destruída senão por uma X, 1) nos autoriza a afirmar. Ele se refere, nessa passagem, ao trecho dos causa exterior, contradiz formalmente a tese, presente no TTP e no TP, que Discursos sobre a década de Tito Lívio em que Maquiavel compara um situa no interior do corpo político a principal fonte dos males que podem Estado sob risco de dissolução a um corpo doente, cuja situação tende erodir a estabilidade do Estado. Tais contradições são irrespondíveis? a agravar-se caso não lhe seja aplicado o remédio ou tratamento clínico Elas atestam, de fato, certo grau de autonomia da política de Spinoza em necessário. A imagem chama a atenção para um fato político essencial: relação à sua ontologia, esta a desdobrar-se no conhecimento de segundo nada ameaça mais a estabilidade de um Estado que seus inimigos internos. gênero, das noções comuns ou das ideias verdadeiras, enquanto aquela O Tratado teológico-político (TTP) faz advertência semelhante ao assinalar se vai instalar plenamente, ao lado da religião, no domínio das paixões os riscos que uma guerra de religião pode acarretar ao Estado, mas esse e da imaginação, da experiência e da história? Seria desaconselhável, perigo endógeno não é representado apenas pelos conflitos civis ou pelas como tarefa filosófica, buscar a todo custo uma norma de conciliação que conspirações nascidas no seio da aristocracia; a atuação de um legislador harmonizasse na coerência do sistema essas disparidades. Mas a correlação 97 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares entre a imagem do corpo político como corpo humano, evocada nos dois partes do corpo são determinadas, pela ação dos corpos exteriores, a entrar Tratados, e a ideia de corpo, apresentada na Ética, permite propor uma em outras relações diversas daquela que caracteriza o modo próprio de interpretação da filosofia spinozista que, em consonância o parecer de composição do corpo afetado e o distingue como um indivíduo singular. Negri (4), identifica na ontologia de Spinoza a sua verdadeira política. É este o objetivo do presente estudo. característica sob a qual outros corpos ou partes, mantendo-se unidos entre si, distinguem-no como corpo complexo existente, então nada que decorra 2. A definição de “corpo humano”, para Spinoza, não se distingue da definição de “corpo” em geral. Ela abrange dois aspectos principais: a individualidade complexa e a tendência à autoconservação. Um corpo é um indivíduo composto de outros corpos – ou de outros indivíduos – que se mantêm unidos entre si segundo uma relação determinada; essa relação, ou esse regime de composição, singulariza o corpo como um modo de existir, e ele existe na medida em que conserva ou reproduz essa relação. Noutros termos, essa relação é expressão da essência singular desse indivíduo, e singulariza-o, não como somatório de partes, mas como um regime ou uma lei determinada de composição que lhe é própria. A individualidade de um corpo não é definida pelas partes que o compõem: estas podem modificarse em cada atualidade em virtude da interação com outros corpos. O que distingue um corpo como indivíduo é o modo ou a relação segundo a qual as partes – ou outros corpos – entram na sua composição. A rigor, a tendência mesma de autoconservação do corpo envolve a regeneração de suas partes e o intercâmbio permanente com o exterior, isto é, com outros corpos que o afetam. Um alimento, por exemplo, agrega partes a um corpo, sem entretanto modificar sua relação essencial: essas partes compõemse com essa relação, ou, o que vem a ser o mesmo, conservam-na. Pode ocorrer, porém, que a afecção provocada por um corpo sobre outro não seja favorável à conservação deste; nesse caso, não há agregação de partes nem composição, mas, ao contrário, um processo de decomposição pelo qual as 98 Ora, se a essência de um indivíduo é a lei de composição ou a relação dessa essência pode destruir o indivíduo. A essência de uma coisa existente não se diferencia da sua tendência de autoconservação. É este o sentido da afirmação de Spinoza segundo a qual nenhuma coisa pode ser destruída, senão em virtude de uma causa exterior (E, III, 4). A noção de “exterior”, a que Spinoza alude nesse caso, não diz propriamente respeito ao que é externo ao corpo, ao que está “fora”: os choques dos corpos exteriores, percebidos sob a forma de afecções ou modificações em nosso corpo, podem, de acordo com as condições em que se dão esses choques, decompor as nossas relações características, ou seja, as relações em que nossa essência se expressa como um modo de existir ou como um modo da extensão, mas, ao mesmo tempo, a conservação desse corpo depende da regeneração constante de suas partes constitutivas, de um intercâmbio ininterrupto com os outros corpos. Dizer que uma coisa favorece a conservação das relações de movimento de um corpo (E, IV, 39) é o mesmo que dizer que ela aumenta a capacidade desse corpo de ser afetado por outros corpos (E, IV, 38), isto é, de abranger um maior número de partes (ou de corpos menos complexos) sob sua relação característica, ou, dito de outra maneira, de estender a sua lei de composição própria sobre outros corpos. Por essa razão, um corpo é tanto mais apto a conservar-se quanto mais é capaz de ser afetado por outros corpos, e não na medida em que é capaz de se defender deles ou evitá-los. Do exterior, do mundo da extensão, vem todo bem e todo mal: a conservação e a destruição de um corpo explicam-se pelas condições em que ele se encontra ou se choca com outros corpos. 99 Cadernos Espinosanos XXIII 100 Alexandre Arbex Valadares Um corpo está em comunicação permanente com os corpos A extensão, como o pensamento, é um dos infinitos atributos de exteriores, ou, mais exatamente, as partes ditas internas de um corpo Deus, isto é, Deus pode ser concebido como coisa pensante e como coisa estão em contato contínuo com partes externas a esse corpo, integradas às extensa. O atributo tem um sentido adjetivo em relação à Substância, que relações características de outros corpos. A rigor, como observa Deleuze é Deus ou a Natureza. O modo infinito mediato da extensão – a facies (2002), a distinção entre “exterior” e “interior” não é real: o exterior é um totius universi – concerne ao mundo material infinito, designa o que interior projetado, e o interior é um exterior introjetado. Supor semelhante se poderia chamar o “corpo” de Deus. Quanto ao atributo pensamento, separação significaria considerar a extensão um continente de corpos, também constitutivo da natureza divina infinita, pode-se supor, além de isolados uns dos outros por espaços vazios. Mas a extensão, para Spinoza, um modo infinito imediato – o intelecto infinito de Deus –, um modo é um atributo infinito de Deus, ou da Natureza, que se apresenta sempre infinito mediato – a ideia infinita de Deus, que, por analogia, se assimilaria e já na forma de uma modificação infinita e imediata – o movimento, ou à “mente” de Deus. A mente divina seria, portanto, a ideia infinita que as relações de movimento e repouso –, e, a partir desta, na forma de uma abrange todas as ideias das modificações da natureza de Deus. Contudo, modificação infinita e mediata – a figura do universo em sua totalidade se as relações de movimento e repouso no atributo extensão dão existência (facies totius universi) (Carta 64 a Schuller). Essa figura total do universo aos corpos singulares ou a suprimem, mas segundo a dinâmica de produção é, por assim dizer, a imagem da permanência, da eternidade, do universo da existência eterna e infinita de Deus como coisa material, as ideias se como totalidade material; ela se refere ao que, a despeito das ilimitadas afirmam todas simultaneamente na ideia infinita de Deus; a rigor, quer variações que os corpos sofrem, dos desdobramentos sucessivos das um modo singular exista ou não exista, é possível formar uma ideia a seu relações de movimento e repouso, segue sendo constante no universo: o respeito: ele é pensável, sua ideia compõe-se com as outras ideias no atributo fato de ele se apresentar como existência material infinita. Os corpos são pensamento, assim como as essências de todas as coisas se compõem na modos finitos da extensão, efeitos materiais das relações de movimento essência eterna e infinita de Deus. Se, na extensão, a dinâmica de produção e repouso, que exprimem as infinitas variações singulares, e de duração e destruição dos corpos singulares inspira a imagem da finitude, isto se limitada, da facies totius universi. É o jogo das relações de movimento deve a que os homens são determinados a perceber seus próprios corpos e repouso que determina a duração do corpo: sua conservação ou seu como entes materiais distintos, separados dos outros corpos, ante os quais aniquilamento advém das relações com os outros copos, das relações através exerce sua potência de existir e de agir, cujos limites são assinalados pela das quais suas partes entram em contato com as partes de outros corpos, ora potência de existir e de agir de todos esses outros corpos. compondo-se com elas segundo a sua relação característica – que define o Essa dinâmica concorrencial que, do ponto de vista dos modos modo como sua essência se exprime na extensão –, ora compondo-se com singulares da extensão – dos homens –, parece presidir aos choques e elas segundo outras relações que não a que o caracteriza, de sorte que sua encontros dos corpos, não explica o processo de produção da existência essência deixa de ter expressão na extensão, ou seja, de sorte que tal corpo eterna e infinita de Deus. Do ponto de vista da totalidade – de Deus ou da decompõe-se, deixa de existir. Natureza –, não há decomposição: dos choques e encontros dos corpos 101 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares resulta sempre a afirmação de uma coisa como existente, isto é, um modo de sua aniquilação, isto é, embora a essência siga sendo concebível sob outros ser que exprime, em grau limitado, finito, o ser ou essência eterna e infinita atributos, ela não se concebe mais sob o atributo extensão, não se exprime de Deus, concebido pelo atributo extensão. Os choques ou encontros entre mais sob a forma de um modo desse atributo. A identidade entre a ordem de os corpos, decorrentes das relações de movimento e repouso, constituem produção das ideias e a ordem de produção das coisas, tal como enunciada o modo infinito imediato pelo qual a existência de Deus ou da Natureza é na proposição 7 da parte II da Ética, não justifica a suposição, demasiado produzida eterna e infinitamente. O processo de constituição da realidade citada entre comentadores, de um paralelismo entre o atributo pensamento é um processo de produção de existências singulares por composição de e o atributo extensão: por “coisas”, deve-se entender “essências”, e não corpos, determinado pela ordem das relações de movimento e repouso. A “corpos”. A ordem de produção destes, conquanto não possa ser distinta infinita variedade dos modos de ser ou essências singulares que ganham da ordem de produção das ideias – uma vez que exprime sempre a mesma atualidade ou passam à existência a partir dessas relações explica a essência de Deus –, não a espelha nem a reproduz em ato: a duração heterogeneidade do real; por outro lado, uma vez que cada corpo exprime, indefinida da existência dos corpos não se confunde com a eternidade das em certo grau, a essência ou o ser de Deus concebido pelo atributo extensão, ideias adequadas ou das ideias das essências, que podem referir-se a coisas isto é, uma vez que cada corpo, ao mesmo tempo que afirma sua essência existentes ou não existentes na extensão. como existente, afirma a materialidade do real, este se apresenta sempre sob a unidade homogênea e permanente da facies totius universi. 102 Como é preciso compreender, à luz das considerações precedentes, a proposição segundo a qual uma coisa não pode ser destruída senão por No entanto, as leis de produção dos modos no atributo extensão, uma causa exterior? Que um corpo seja destruído, que as suas partes sejam ou, para dizer o mesmo, as leis de movimento que determinam que as partes determinadas a entrar em outras relações em virtude da ação de outros extensas se agreguem ou se desagreguem sob a forma deste ou daquele corpos, é algo que a simples experiência permite perceber: um corpo conjunto corporal, podem, em seus efeitos, ser destrutivas para um corpo dotado de uma propriedade corrosiva, por exemplo, pode extinguir outro em particular. Da perspectiva da totalidade, de Deus, não há decomposição: cuja natureza não seja capaz de assimilar seus efeitos; um corpo, que nos todos os efeitos que se desdobram na extensão afirmam a essência de Deus convém sob uma dada relação (combinado a outros corpos ou em certas sob este atributo, exprimem-na em grau determinado, e integram a facies quantidades, como o remédio), pode tornar-se-nos letal sob uma relação totius universi; quando um corpo em particular é destruído, isto significa diferente (o veneno). Mas não é disso que trata a proposição. As coisas que, na ordem de produção da existência de Deus ou da Natureza, se deram são destruídas pelo que é exterior, não propriamente ao seu corpo – porque causas que excluem a existência singular desse corpo, ou que os demais sua conservação depende do intercâmbio com corpos externos –, mas à corpos que, nesse processo causal, entraram em contato com ele infligiram- essência delas. A afirmação da essência de uma coisa entra em contradição lhe modificações que alteraram o regime de composição de suas partes, e com a afirmação da essência de outra coisa: suas definições se limitam ou se estas passaram a agregar-se sob outras relações estranhas à essência desse excluem na mente. Mas, se uma ideia limita outra ideia, e um corpo limita corpo; noutros termos, embora a essência desse corpo não se perca com a outro corpo (E, I, def.2), a contradição lógica no pensamento se exprime 103 104 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares como conflito físico na extensão (MATHERON, 3); e, da mesma maneira existir – corpo – e como modo de pensar – mente –, são definidos por uma que, por um lado, a afirmação de uma essência, no pensamento, dá-se dinâmica interna de resistência. como ideia verdadeira ou adequada, como modo de pensar que persevera A mente é uma ideia do corpo, um modo de perceber o corpo. no seu ser, na sua verdade intrínseca, a afirmação dessa essência como Mas mente e corpo não produzem efeitos um sobre o outro; os efeitos que coisa existente na extensão, como corpo, toma a forma de uma tendência limitam a maneira pela qual uma essência singular se afirma, ou seja, que de autoconservação. definem a potência com que tal essência se expressa como realidade, se Um corpo individual é sempre complexo: ele é um composto de encadeiam de maneira independente e distinta em cada atributo. Cumpre corpos, unidos, como suas partes constitutivas, por uma relação característica assinalar que essa correlação não presume uma duplicidade de efeitos; segundo a qual elas comunicam entre si certa quantidade de movimento, pensamento e extensão são atributos de uma substância única, assim ou seja, certa potência; o que torna singular um indivíduo corporal é, não o como a mente e o corpo são apenas modos através dos quais se exprime número de suas partes – que é sempre infinito –, mas a relação específica que uma mesma essência singular, modos de a conceber em relação a outras as agrupa e que, exprimindo a essência desse corpo, exprime a potência que realidades, outras essências singulares. Quanto ao atributo pensamento, o afirma essa essência como coisa existente na extensão, na materialidade. A efeito de uma ideia dada sobre nossa mente (ela própria uma ideia) pode potência do corpo é uma potência causal, cujos efeitos concordam com sua ou determiná-la a produzir uma ideia adequada ou verdadeira, caso em essência, e, nessa medida, favorecem a tendência de autoconservação do que a ideia dada favorece a potência de pensar da mente e lhe permite corpo; noutras palavras, os efeitos que se seguem da potência de um corpo, afirmar a existência do nosso corpo como expressão de nossa essência de sua ação, ainda que possam diferenciar-se quanto aos objetos sobre os adequadamente concebida; ou pode, por outro lado, determiná-la a gerar quais se aplicam, têm em comum o fato de concorrerem para a conservação uma ideia inadequada ou falsa, caso em que a ideia dada limita a potência desse corpo, não porque a dinâmica interna deste seja animada por uma de pensar da mente e a coage a afirmar, não a existência de nosso corpo, teleologia, por um finalismo, mas porque esses efeitos se explicam sempre mas a de um corpo externo, cuja imagem é ligada à ideia dada. Quanto pela essência singular desse corpo e afirmam, na extensão, a relação à extensão, o efeito de outro corpo sobre nosso corpo pode ou favorecer característica ou a identidade dominante que exprime essa essência. Quer nossa tendência de autoconservação e a potência que a realiza, caso em isto dizer que o corpo reproduz indefinidamente as condições de sua própria que suas partes compõem-se com as partes que nos constituem, sob a atividade, isto é, a relação característica, estrutural, que o singulariza como relação característica que as mantêm unidas e na qual se exprime nossa um composto de corpos, investido, por assim dizer, de certo quantum de essência singular; ou pode limitar essa tendência de autoconservação, movimento, de uma potência que afirma, em face de outros corpos, a caso em que suas partes não se compõem com as nossas e, assim, tornam tendência de autoconservação desse corpo singular. Bove (2) encontrará aí instável a relação característica sob a qual elas se mantêm unidas, a ponto o fundamento da ideia segundo a qual os homens, na condição de modos de desfigurá-la de forma que tal relação perde em alguma medida sua finitos de ser cuja essência se exprime simultaneamente como modo de identidade com nossa essência, e esta já não pode afirmar-se, com a mesma 105 Cadernos Espinosanos XXIII potência, como coisa existente na extensão. 106 Alexandre Arbex Valadares que se lhe opõem, isto é, não realiza a sua autoconservação pela destruição Mas, se está claro que, na extensão, a contradição ou o efeito de de tudo quanto não se submeta à lei de sua essência singular. A exposição afecções contrárias à nossa essência (que se exprime na extensão, vale constante do indivíduo a afecções contrárias traduz uma condição própria repetir, como tendência de autoconservação) se apresenta como ameaça à dos modos finitos: sua passividade. E tal condição não engendra um poder integridade do corpo, é possível todavia afirmar que o corpo é sujeito de de resistência. Os indivíduos, de fato, afirmam sua potência sempre no contrários, um “lugar de guerra”, de conflito? Como observa Bove (2, p.13), âmbito das relações sob as quais entram em contato uns com os outros, os corpos podem ser sujeitos de contrários, ou seja, podem sofrer afecções e sua potência é limitada pela estrutura mesma dessas relações, mas a ou modificações que se opõem à sua tendência de autoconservação, desde expressão dela não é uma forma de reação pela qual ela responderia a uma que essa contradição não atinja a “a identidade dominante do corpo na causa externa: ela é sempre expressão da essência singular do indivíduo, relação de suas partes”. A dinâmica interna do corpo caracterizar-se- e se explica, não pela sua “pessoalidade”, pela sua existência, mas, antes, ia, então, como um esforço de resistência, que buscaria expulsar de si a pela participação do indivíduo no processo de produção da Natureza, contradição, deslocando-a indefinidamente, e empregando, nesse esforço, pelo grau determinado com que a potência de Deus ou da Natureza sua potência, determinada pelas condições atuais em que o problema da produz, a partir dessa essência singular, os efeitos que dela se seguem autoconservação se lhe apresenta. O corpo não é, entretanto, um substrato necessariamente. Isto significa que a potência de agir dos indivíduos não onde se desenrola o conflito; tal conflito constitui a determinação atual atende ao objetivo de conservar seu corpo, como se ele pudesse captar a desse corpo, e prescreve, na extensão, o espaço e a duração da expressão de potência de Deus ou da Natureza para fazê-la servir a essa finalidade; a sua potência. Um corpo é um complexo de relações de força, de potências conservação do corpo é um efeito da afirmação de uma essência singular, que se afirmam umas sobre as outras, ao mesmo tempo que se conjugam que se exprime como modo da extensão, mas essa essência não envolve em uma potência mais complexa, que afirma a existência desse corpo como a existência do corpo. Se, por certo, não há distinção real entre uma coisa uma indivíduo singular (composto). e sua tendência a perseverar no ser, é porque sua essência concorda com O princípio de resistência identificado por Bove na tendência sua potência, e ambas são apenas expressões ou modos de ser da essência de autoconservação do corpo faz supor, entretanto, que a perseverança de Deus e da potência de Deus. A potência singular individual é antes uma indefinida do indivíduo na existência tem, no conflito, a sua dinâmica potência causal que uma potência de autoconservação: a conservação de fundamental. Pode-se, decerto, afirmar que o corpo é sujeito de contrários, um indivíduo explica-se, pois, menos por sua capacidade de resistência na medida em que é sujeito a afecções que limitam sua tendência de que pela sua capacidade de produção de efeitos necessários do ponto de autoconservação, isto é, na medida em que sofre modificações cujas causas vista da essência de Deus, não em termos absolutos, mas na medida em não se explicam pela sua essência e cujos efeitos, por essa razão, não que ela se exprime na forma de sua essência singular. favorecem a potência que afirma essa essência como existente. Contudo, o Ora, dizer que o indivíduo é uma potência causal não é senão indivíduo corporal não persevera na existência em reação a outros corpos afirmar que sua potência se integra à ordem de produção do ser, à ordem 107 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares de produção das coisas, como consta na proposição 7 da parte II da Ética. como um indivíduo extraordinariamente complexo, definido por uma Essa produção, no atributo extensão, se realiza por composição de corpos, tendência de conservação, de reprodução do modo de ser desse indivíduo, segundo relações de movimento e repouso. Por isso, a tendência de ou de reprodução das relações constitutivas que o caracterizam, e por uma autoconservação dos corpos ou a dinâmica interna dos indivíduos corporais imagem ou representação mental, igualmente complexa, dessas relações e encontra sua razão fundamental, não em um princípio de resistência, das práticas que delas decorrem. mas em um princípio de composição, de união; essa diferença pode ser As relações constitutivas de um corpo político, como as relações entendida, do ponto de vista dos homens, como uma regra de prevalência dos corpos em geral, são relações de potências ou de forças que se afirmam do indivíduo, complexo de corpos em constante modificação e definido por umas em face das outras, mas das quais resulta, ao mesmo tempo, certo uma relação característica, sobre o sujeito, “lugar” de contrários, em cujo regime de composição, que as agrega em uma potência tão complexa quanto interior uma potência de permanência, de afirmação do “mesmo”, reage a união das partes que se conjugam na sua constituição e que responde em face do “outro”, das afecções ou modificações que a limitam. pela conservação do corpo político em sua totalidade. Está visto que uma coisa só pode ser destruída por uma causa exterior, e que, se é possível 3. A concepção spinozista de indivíduo envolve três elementos essenciais: a) a complexidade, isto é, sua natureza composta; b) a relação característica que conserva essa composição, ainda que suas partes constitutivas se modifiquem de momento a momento; e c) a tendência à autoconservação, que não se distingue do grau de potência que a realiza, ou seja, da força pela qual o indivíduo persevera no seu ser. Nos indivíduos humanos, na medida em que são constituídos de um corpo e uma mente, essa tendência à autoconservação exprime-se, por um lado, por meio de uma prática material, da busca pelas coisas úteis e necessárias à existência, ou das coisas que se compõem com a natureza do indivíduo e cujas partes se integram, preservando-a, à sua relação característica, e, por outro lado, por uma reflexão ou imagem consciente através da qual o indivíduo percebe essa prática e afirma, à luz dela, a continuação de sua existência. Esse conceito de indivíduo, abrangendo corpo e mente, deve repercutir sobre a analogia traçada por Spinoza entre o ser do homem e o ser da política. Noutros termos, a sociedade pode ser compreendida 108 afirmar que o corpo é sujeito de contrários ou lugar de modificações que se opõem à conservação de sua existência, é apenas na medida em que elas não pertencem à sua essência ou não se encadeiam, nele, segundo a relação característica em que a essência desse corpo se exprime. Esta dicotomia entre o conflito de potências das partes constitutivas de um corpo e a unidade de afirmação da potência através da qual esse corpo, como indivíduo complexo, se conserva é, do ponto de vista da política, o fundamento da ideia segundo a qual o maior perigo à estabilidade de um Estado reside em seu interior: é a guerra civil. Hobbes, a propósito, sustenta que o medo à guerra generalizada é o que compele os homens a aderir ao pacto e a obedecer à vontade do soberano, renunciando ao direito natural de se conduzir segundo a sua própria vontade. Isto significa, em primeiro lugar, que o estado civil seria um estado de trégua, não propriamente de suspensão do conflito que está na sua gênese, mas, ao contrário, de reprodução das condições de determinação desse mesmo conflito e, com elas, da necessidade de reiterar, eventualmente com mais rigor, a adesão dos cidadãos ao pacto. A guerra civil, assimilada ao estado de natureza, 109 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares corresponderia, por assim dizer, à ideia latente da qual o estado civil seria perfeitamente com a existência atual desse indivíduo. Cada indivíduo o conteúdo manifesto. Além disso, o pacto hobbesiano supõe que esse existe tanto quanto está em sua potência afirmar-se como existente. A conflito fundamental só pode reduzir-se a uma unidade a partir de uma potência singular é sempre em ato; o direito natural não é uma faculdade extrema polarização: a transferência de todos os direitos naturais a uma de agir, mas uma ação necessariamente determinada, uma necessidade autoridade cujo mandato é fazer cumprir o pacto social, isto é, a trégua, e em ação. Potência singular e direito natural são apenas a expressão de que, para tanto, é investida de um poder absoluto. uma essência singular que persevera no seu ser, ou, do ponto de vista do Para Spinoza, o poder constituinte da vida civil não se dissocia corpo, a expressão da tendência de autoconservação da existência. Todos da própria potência coletiva resultante da composição das potências os homens buscam conservar-se, e recorrem a todos os meios que estão em singulares de seus cidadãos. A multidão, nome que Spinoza dá a essa sua potência para tanto. Spinoza (E, III, 9) afirma que todos os homens composição, não subentende, está claro, uma conciliação perfeita em uma são conscientes disso, o que não quer dizer senão que eles percebem uma unidade formada por simples agregação de partes: ela engloba, na sua conexão imaginária ou real entre, de um lado, seu modo de agir ou operar individualidade complexa, os conflitos existentes nas relações entre suas no mundo, e, de outro, o desejo de permanecer em vida. partes, isto é, nas relações entre os cidadãos. Mas, se a constituição da vida civil envolve algum grau de contradição, ou, noutros termos, se também a 110 Essa tendência pela qual os homens são determinados a perseverar no ser opera neles em dois níveis diferentes. multidão pode ser “sujeito de contrários”, por outro lado somente ela atua Em um primeiro nível, o da imaginação, essa tendência toma como poder constituinte precisamente porque tal contradição não pertence a forma específica de um desejo, que se dirige a um objeto específico, à sua essência nem se exprime nas relações que a caracterizam – a multidão representado por este mesmo desejo como algo bom ou útil porque causa é, com efeito, segundo observa Bove (2, p.12), atravessada de conflitos e um acréscimo de potência, sentido sob a forma de uma paixão, um afeto contradições, e, contudo, ela afirma, com a potência coletiva que a define, passivo porque se prende à imagem do objeto externo, representado como uma unidade política. A questão está, pois, em explicar o processo de sua causa. Assim, um homem imagina que deseja uma coisa não porque constituição dessa potência ou, mais pontualmente, em compreender por ela lhe é boa ou útil sob dada relação, mas porque ela é boa ou útil em si que os homens se tornam cidadãos, por que eles constituem uma cidade. mesma, ou melhor, porque ela é um Bem, uma vez que a alegria passiva que A teoria spinozista do direito natural permite-nos lançar uma ele sente ao imaginá-la sob sua posse parece depender da natureza própria primeira luz sobre essa indagação. Spinoza não faz distinção entre o direito dessa coisa. Essa percepção invertida constitui, com um só movimento, natural e a potência singular de um indivíduo: o direito deste sobre a a forma da consciência, ou seja, a demarcação entre um sujeito e um natureza vai até onde vai sua potência de agir, e tudo quanto um indivíduo objeto, e o conteúdo moral desta consciência, que representa as imagens das faz em virtude de sua potência singular pertence ao seu direito natural. coisas como valores. Mas essa percepção imaginária ou inadequada não é Isto significa que o direito natural de um indivíduo não atende a nenhum rigorosamente falsa: embora os homens ignorem as causas verdadeiras em outro critério de legitimidade senão à sua própria potência, e esta coincide virtude das quais tendem a buscar tais coisas, eles percebem, simplesmente 111 Cadernos Espinosanos XXIII 112 Alexandre Arbex Valadares porque são determinados a desejá-las e se alegram com sua posse, que elas Uma noção comum se produz quando é dado ao homem apreender favorecem a sua potência de perseverar no ser. Na ignorância das causas, o as causas verdadeiras de uma afecção ou de uma modificação percebida desejo e os afetos alegres são guias seguros na busca das coisas que lhes são no seu corpo. Spinoza (E, I, 3) afirma que apenas as coisas que têm úteis, e a imaginação que os induz a considerar tais coisas como causas do propriedades em comum com nossa natureza podem causar modificações desejo ou da alegria representa essa busca como uma teleologia ou como um em nós. Isto significa que os efeitos produzidos em nós pela ação de outros finalismo da ação, orientado por ideias valorativas ou juízos morais. corpos envolvem sempre as propriedades comuns existentes entre nossa Mas, em um segundo nível, o da razão, essa tendência de perseverar natureza e a desses corpos, e, por conseguinte, as ideias dessas modificações no ser envolve uma ideia verdadeira da utilidade recíproca dos homens, ou afecções, pelas quais elas são percebidas, envolvem essa relação. Esse ou, o que vem a ser o mesmo, uma noção comum da utilidade. Essa noção conteúdo verdadeiro, porém, não se nos apresenta, por assim dizer, em comum não tem outro ponto de partida que os afetos passivos e as ideias estado puro, como uma ideia verdadeira dada. Ele reveste, quase sempre, inadequadas da imaginação; contudo, nesse segundo nível, já não se trata de uma forma falsa ou inadequada: ao percebermos uma afecção, somos ideias de objetos externos, de ideias de imagens, e sim de ideias de relações. determinados a considerar a imagem do corpo externo que nos afeta, uma Um homem não considera como intrinsecamente boas ou úteis as coisas para imagem parcial, na medida em que é delimitada pela parte do nosso corpo as quais tende; elas lhe parecem boas ou úteis na medida em que ele entretêm que é afetada; e, assim, acabamos por confundir essa imagem parcial com a com elas uma relação favorável à sua potência, isto é, na medida em que natureza do corpo externo, julgando-a boa ou má segundo essa afecção nos compreende essa relação como uma composição entre a sua natureza singular cause alegria ou tristeza, favoreça ou diminua a nossa potência singular. e a natureza das coisas. Ora, essa composição favorável só pode ocorrer se as Podemos formar noções comuns apenas quando nos é possível encadear relações que um homem estabelece com as coisas que o afetam se realizam essas ideias de imagens ou ideias de afecções, não na ordem acidental por meio das propriedades comuns de seus corpos. É certo que, no nível da em que as percebemos na sucessão dos choques e encontros de corpos na imaginação, ainda que um homem suponha que sua alegria derive do fato natureza, mas na ordem necessária de sua produção, isto é, quando nos é de ele – sujeito – ter entrado na posse do objeto desejado, o que ocorre não possível relacionar uma ideia de afecção e outra ideia de afecção a partir é senão uma relação de composição entre a sua e a natureza desse objeto, a das propriedades comuns que nelas se afirmam e por meio das quais o partir de suas respectivas propriedades comuns. Mesmo que, na imaginação, intelecto pode transigir de uma à outra. Uma vez que a noção comum é a a causa dessa alegria seja percebida por uma ideia inadequada, no plano das ideia da relação entre as propriedades comuns de nosso corpo e do corpo essências, do real, o que a explica é uma composição de naturezas; noutros que nos afeta, propriedades estas que explicam por que esse corpo pode ser termos, os homens podem estabelecer composições favoráveis à sua potência causa de modificações em nós, é apenas em presença de uma afecção que – e são determinados a isso pelo desejo –, pondo-se em relação com outros favoreça nossa potência de agir, ou seja, de uma relação de composição, corpos a partir de suas propriedades comuns, sem necessariamente terem que temos condições – necessárias, mas não suficientes – de apreender a uma ideia dessa relação, isto é, uma noção comum. noção comum; do ponto de vista dos afetos, apenas em estado de alegria 113 Cadernos Espinosanos XXIII podemos efetuar essa passagem. 114 Alexandre Arbex Valadares de efeitos que favoreçam a afirmação de sua potência ou a conservação O processo de constituição da sociedade política – ou da cidade de seu ser, esses efeitos são igualmente úteis ou bons a todos os corpos – sintetiza esses elementos conceituais, e permite reintroduzir a questão de natureza semelhante à sua, ou seja, a todos os homens; por isso, na do direito natural. Spinoza, como foi visto, considera esse direito idêntico Natureza, nada é mais útil ao homem que outro homem (E, IV, 35). à potência singular dos indivíduos, a potência pela qual eles agem, com Este enunciado traduz a ideia de utilidade recíproca dos homens, todos os meios de que dispõem, para conservar sua existência. No entanto, descrita no quinto capítulo do TTP como um processo de divisão social do tomada em si mesma, e em oposição à potência de todas as coisas exteriores, trabalho, que se explica, por um lado, pela tendência em virtude da qual essa potência singular em que consiste o direito natural individual tem os homens são determinados a buscar as coisas necessárias à conservação uma existência puramente hipotética; Spinoza chamá-la-á no TP (II, 15) de sua existência, e, por outro, pela impossibilidade de empreenderem de simples abstração. A potência singular de um homem é infinitamente essa busca contando somente com sua própria potência singular. Os ultrapassada pela potência que sobre ele exercem os corpos externos. homens, diz Spinoza, precisam alimentar-se, vestir-se, proteger-se contra Os homens são partes da Natureza ou modos de ser de Deus que as intempéries, alegrar o espírito e muitas outras coisas cujas exigências não existem por si mesmos, isto é, modos de ser cuja essência não envolve excedem os limites de sua potência. Eles não podem ser suficientemente a existência; em outros termos, nenhum homem é de constituição corporal hábeis em todas as tarefas, não dispõem de tempo para executá-las, e, ou mental tão complexa que possa, contando apenas com sua potência, ademais, em boa parte de suas vidas, na infância, na doença ou na velhice produzir todas as coisas de que necessita para seguir vivendo. Por isso, – que nada mais são que afecções ou modificações impostas ao seu corpo a tendência mesma que determina os homens a buscar na Natureza as pela ação dos outros corpos existentes na Natureza –, têm reduzida a sua coisas que são boas ou úteis à conservação de sua existência determina-os capacidade de agir, a ponto de dependerem, com frequência, da potência a compor sua potência singular com outras potências singulares, a formar, de outros homens para obter as coisas de que necessitam. Ao mesmo pois, uma potência mais complexa, por meio da qual possam produzir tempo, porém, como as naturezas singulares dos homens têm numerosas coletivamente as coisas de que têm individualmente necessidade. Quanto propriedades comuns entre si, o alimento que um homem cultiva e o nutre, mais propriedades comuns houver entre a natureza de um homem e a o agasalho que fabrica e o protege, a casa que constrói e o abriga, ou a natureza de outros corpos, tanto mais lhe é possível estabelecer com eles música que ele compõe e o enternece, são coisas úteis à conservação da relações de composição que favoreçam a sua potência singular; assim, uma existência de todos os indivíduos cujas naturezas são-lhe semelhantes. coisa é tanto mais útil ou boa para um homem quanto mais propriedades Essa utilidade recíproca explica por que o modo pelo qual os homens comuns houver entre suas naturezas singulares, quanto mais essas forem tendem a conservar sua existência determina-os a estabelecer relações uns semelhantes entre si. Ora, na Natureza, a coisa que mais tem propriedades com os outros, a compor entre si suas respectivas potências singulares, comuns com a natureza singular de um homem é a natureza singular de outro de maneira que, através da potência coletiva assim constituída, possam homem; isto quer dizer que, quando um homem se empenha na produção produzir as coisas necessárias às suas existências individuais. As relações 115 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares de composição de potências singulares são, pois, relações de produção, e a que um o possui e o outro o perde. Então, imaginando cada qual que a potência coletiva que se forma a partir destas – a potência da multidão – é alegria de um é causa da tristeza do outro, ou seja, que a apropriação por o próprio fundamento constituinte da vida política, da cidade. É apenas um deles desse bem desejável exclui o outro de sua posse, tais homens na vida política, na constituição de relações de composição de potências odiar-se-ão, e desejarão destruir-se (E, IV, 34 esc.). em um processo de produção comum das coisas necessárias à existência, Contudo, essa ideia de utilidade recíproca não é auto-evidente. Em que os homens podem realizar o seu direito natural de autoconservação; a suas relações, os homens não se governam orientados pela noção comum de natureza dos homens é, pois, política (TP, II, 15). que dependem uns dos outros, e não é raro, como a história e a experiência atestam, que grandes rivalidades, nascidas das paixões, se enraízem entre 4. Ao afirmar que nada é mais útil ao homem que outro homem, Spinoza promove a desalienação da idéia de Bem: ele a desloca de um objeto, representado pela imaginação como bom em si mesmo, como portador intrínseco de um valor, para situá-la em uma relação. Mas esta diferença indica também por que uma mesma coisa pode ser-nos útil ou nociva (E, IV, 30): sua utilidade é acidental, ou seja, não decorre de uma propriedade inerente à natureza da coisa, mas se explica pela relação sob a qual ela nos afeta e pelo modo sob o qual essa relação é percebida por nós. Spinoza afirma que os homens, quando dominados pelas paixões, são inconstantes e variáveis, a ponto de não ser possível dizer que suas naturezas concordam entre si: eles podem, com efeito, opor-se uns aos outros (Et., IV, 32) e perceber suas relações mútuas, não sob a ideia verdadeira de sua utilidade recíproca, mas sob a imagem de um antagonismo que os representa uns para os outros como causas de afecções que limitam sua potência de agir e os afetam de tristeza. Se, por exemplo, os homens aspiram a um mesmo bem, representando-o como causa de alegria, é certo que suas naturezas estão de acordo, e o desejo que cada um sente de possuir esse bem é alimentado pelo desejo similar do outro. Eles passam a diferir em natureza, no entanto, se, imaginando que esse bem só pode ser apropriado por um deles em detrimento do outro, são afetados de paixões divergentes, na medida em 116 eles. O conflito marca a vida política precisamente porque a imaginação e as paixões constituem a forma imediata e universal pela qual os homens percebem o mundo em que vivem e se relacionam uns com os outros. Tal percepção não é unívoca nem invariável: ela é atualizada constantemente, em cada indivíduo, a partir das modificações ou afecções de seu corpo. As afecções do corpo são percebidas, na mente, sob a forma de ideias de afecções. As ideias de afecções são ideias das imagens das partes do corpo afetadas e, portanto, representam, na mente, o estado atual do corpo, sua existência em ato. Mas as ideias de afecções não são causadas pelas afecções: como a natureza de um homem, sua essência singular ou seu modo de ser, exprime-se, simultaneamente, como um modo de existir na extensão – o corpo – e um modo de pensar – a mente –, cada modificação ocorrida na natureza desse homem exprime-se como uma modificação do corpo e uma modificação correspondente da mente. Noutros termos, seguindo-se uma afecção no corpo, é impossível que não se siga uma ideia dessa afecção na mente, através das qual essa afecção é percebida ou representada. Essa afecção pode convir ou não à essência singular de um homem, compor-se ou não com ela, favorecer ou limitar a sua potência: em caso positivo, ele perceberá essa variação sob a forma de um afeto de alegria; em caso negativo, sob a forma de um afeto de tristeza. Os afetos são sintomas da variação da potência singular, e esta 117 118 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares aumenta ou diminui segundo as afecções sofridas pelo corpo concordem um empreendimento de apropriação de um objeto visto como um bem em ou não com sua natureza, isto é, componham-se ou não com ela a partir si mesmo, e individualista, porque é governado por julgamentos parciais, de suas propriedades comuns. Um afeto, entretanto, é dirigido ao objeto por ideias que não põem em evidência as propriedades comuns das coisas, externo que é causa da afecção e cuja imagem é representada na ideia as relações, mas apenas os critérios de valor derivados das paixões que dessa afecção. Nesse nível de percepção – o da imaginação e das paixões particularizam, na forma de uma consciência subjetiva, a percepção que os – duas ilusões se infiltram: em primeiro lugar, a afecção, que é sempre homens têm acerca de seu modo de operar no mundo. parcial, circunscrita à forma da relação sob a qual um corpo nos afeta, é É porque todos os homens buscam conservar sua existência singular inadequadamente apreendida como uma expressão da natureza ou essência e têm consciência disso, e, por outro lado, porque essa busca é, no mais desse corpo, e a ideia dessa afecção é interpretada como a representação das vezes, presidida pela imaginação e pelas paixões, que a composição dessa essência; em segundo lugar, o afeto de alegria ou de tristeza que de potências na produção coletiva das existências individuais, ou seja, a nos advém com essa afecção, e que não indica senão a variação de nossa divisão social do trabalho, que define, para Spinoza, a cidade, acaba por ser potência, é pensado como um signo de uma característica intrínseca do dissimulada sob a aparência de um individualismo competitivo, que evoca corpo que nos afeta, um signo a partir do qual julgamo-lo bom, se nos a imagem hobbesiana da guerra de todos contra todos. A vida política causa alegria, ou mau, se nos causa tristeza. Ora, todos os homens tendem a transcorre no elemento da imaginação e das paixões, e por isso é lugar perseverar no seu ser, a conservar a sua existência, e têm consciência disso de conflito, ainda que seu fundamento – o fundamento da cidade – seja a (Et., III, 9), porque percebem e afirmam o seu corpo como seu. Eles não têm potência coletiva dos homens que a compõem e que se constitui a partir das da natureza das coisas um conhecimento prévio que os permita identificar suas relações recíprocas. Esta é, a rigor, a razão de ser da política, mas as quais entre elas favorecem sua potência singular; no entanto, por meio dos rivalidades nascidas entre homens por efeito do desacordo de suas paixões afetos de alegria e tristeza, têm um conhecimento espontâneo e imediato pode comprometer o funcionamento essencial da cidade: uma guerra civil das coisas que lhes convêm ou não, e é à luz das paixões e da imaginação, interrompe os processos sociais de produção que geram a oferta dos bens ou seja, da imagem de tais coisas, que eles se orientam no seu esforço de que os homens precisam para subsistir, e põe fim à segurança em nome de autoconservação. Afirmar, como Spinoza, que eles têm consciência da qual a vida política se organiza. Como, então, conferir estabilidade à disso significa apenas dizer que esse esforço toma, na prática, uma direção convivência comum dos homens ante a instabilidade das paixões? específica, fá-los voltar-se a um ou outro objeto que, na sucessão das relações, É impossível suprimir as paixões nos homens: eles são passionais dão conteúdo aos seus desejos, isto é, são representados, na imaginação, em virtude da constituição de sua natureza. No primeiro capítulo do TP, como coisas boas, como bens cuja posse causa alegria. Eles julgam boas Spinoza rejeitará a perspectiva moral da teoria política, que identifica nas as coisas porque as desejam, e não o contrário, e esse julgamento substitui paixões uma imperfeição da natureza dos homens, e adota, para remediar neles conhecimento das causas. Com isso, seu modo de conduzir-se no esse mal, um viés normativo, centrado no controle do corpo. Em lugar mundo torna-se essencialmente finalista, na medida em que se resume a disso, ele afirmará que as paixões são modos de ser que pertencem à 119 Cadernos Espinosanos XXIII 120 Alexandre Arbex Valadares natureza dos homens e se explicam por causas determinadas. A história Spinoza afirma que, se os homens se conduzissem antes pela razão e a experiência demonstram que, em todas as épocas, os homens viveram que pelas paixões, se a natureza que faz deles seres passionais permitisse- em sociedade e sob a influência das paixões, e que essas duas dimensões lhes igualmente ter uma compreensão adequada de suas paixões, seriam só podem harmonizar-se se eles são capazes de estatuir um regime ou dispensáveis os meios que, no Estado, os constrangem ou os persuadem regra de vida comum que, em vez de confiar ao arbítrio de cada um, a obedecer às leis. A figura mesma da autoridade seria prescindível. Os invariavelmente suscetível à força dos afetos, o dever de conduzir-se em homens comporiam uns com os outros suas potências, engajando-se nas paz nas suas relações com outros homens, ganhasse uma institucionalidade relações de produção que constituem a cidade, determinados pela noção tal que os determinasse, contra ou a favor de sua vontade, a agir sempre comum de sua utilidade recíproca, sem se deixarem inimizar por efeito em conformidade com o bem comum. A estrutura das relações comuns das paixões. Nesse caso, dispostos livremente a viver sob essa regra de produção, isto é, o campo da composição de potências singulares em comum de vida, eles não precisariam submeter suas relações recíprocas uma potência coletiva, é, pois, complementada por uma superestrutura ao mecanismo institucional e normativo de um Estado. Contudo, como de instituições, que diz respeito às leis, aos costumes, aos aparelhos de observa Bove (2, p.12), a multidão é atravessada de conflitos e contradições, poder, em suma, à forma de governo segundo a qual a potência coletiva e a unidade de sua afirmação sempre está em questão. O projeto político do dos cidadãos – a soberania – se distribui na dinâmica das relações que eles TP, com efeito, não é pôr em discussão as formas de governo, elegendo a são determinados a estabelecer entre si. melhor entre elas, mas, antes, oferecer um conjunto de princípios práticos No TP, Spinoza designa essas duas dimensões por dois conceitos que permitam organizar, sob um regime monárquico, aristocrático ou distintos. A cidade (civitas) concerne ao nível das relações e é o próprio democrático, uma sociedade de cidadãos livres. Com efeito, trata-se de fundamento constituinte da vida política; sobre esta base, constitui- constituir um regime comum de vida que permita aos homens exercer se o nível das instituições, o Estado (imperio). É nesse segundo nível sua potência singular com máxima intensidade, o que significa promover que se coloca o problema das formas de governo como o problema da entre eles o máximo possível de relações comuns, de modo a fazer-lhes conciliação das paixões e dos desejos dos homens em um regime ou presente a ideia de sua utilidade recíproca. Noutras palavras, um Estado regra de vida comum que os torne tão livres quanto possível, ou seja, que onde os cidadãos são livres é aquele onde a distribuição da soberania favoreça o máximo possível seu direito natural, a potência singular pela favorece o mais possível a expressão dos direitos naturais individuais, qual afirmam a singularidade de sua essência. A afirmação da essência e, nessa medida, expressa o mais possível o seu fundamento constituinte singular, que caracteriza essa liberdade, não se dá senão na política, e imanente: a potência coletiva da multidão. abrange os dois modos sob os quais essa essência se exprime: o corpo – É à luz dessa concepção que Spinoza considerará a democracia e, portanto, o acesso às coisas necessárias à conservação da existência, a o mais natural dos regimes. O paradoxo da obra política de Spinoza autonomia de deslocamento, de associação etc. – e a mente – a liberdade consiste em que a democracia, forma de governo para a qual ele não de pensamento, de expressão etc. indicará um receituário específico, é precisamente a única sobre a qual o 121 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares TP verdadeiramente fala: seu objetivo aí não é outro senão dotar as formas pode ser assimilado à mente da cidade. Ele consubstancia o modo pelo qual monárquica e aristocrática de um conteúdo radicalmente democrático. a cidade – ou o conjunto de relações que a constitui – se percebe. O Estado A vida política é então pensada a partir de seu fundamento constituinte, é, por assim dizer, a consciência da cidade, uma ideia de sua imagem, sua isto é, a cidade, a dinâmica produtiva das relações que compõem o corpo representação inadequada, que, em lugar de exprimir a essência da cidade político; e as formas de governo, conjunto das instituições que formam o – a soberania da potência coletiva da multidão –, confunde-a com seus Estado, são interpretadas, não como determinantes da vida política, mas, símbolos – como, por exemplo, a pessoa do soberano e sua autoridade, a antes, como imagens dela. letra da lei, a tradição etc. –, reconhecendo nestes, e nas formas de governo Essa distinção permite trazer novamente à baila a comparação entre que com eles se identificam, o fundamento constituinte da vida política. A o homem-indivíduo e a sociedade-indivíduo. A cidade corresponderia, inversão operada por esse reconhecimento é similar à que a imaginação nos termos dessa analogia, ao corpo político, abrangendo o conjunto das individual engendra com respeito à mente e ao corpo, supondo residir relações comuns de produção em que se compõem umas com as outras naquela, e não neste, a razão de ser dos estados da individualidade. O Estado as potências singulares dos cidadãos. A conhecida sentença de Marx, é, como a mente, um modo de afirmar o corpo político como existente, e segundo a qual uma sociedade não é uma soma de indivíduos, sintetiza de afirmá-lo tal como ele é percebido. Os “órgãos” dessa percepção são essa formulação: com efeito, a sociedade não se define pelos homens as instituições sociais, os seus “aparelhos ideológicos”, segundo a célebre que fazem parte dela, mas pelas relações sob as quais essas partes, os conceituação de Althusser (1). Pode-se dizer, com esse mesmo autor, que homens, se mantêm unidas entre si. Essas relações estruturam a cidade as ideias produzidas por essas instituições são ideias materiais, isto é, são como um corpo e exprimem a essência desse corpo político; isto significa ideias que correspondem a uma prática material determinada e através das que a conservação desse corpo político depende da reprodução de suas quais essa prática material é percebida e afirmada. relações constitutivas. A dinâmica de produção dessas relações é, pois, A relação entre a imagem ou representação da figura do Estado, uma dinâmica de reprodução das condições em que essas relações se dão, afirmada no plano das instituições, e a imagem ou representação sob a qual uma dinâmica de conservação de seu equilíbrio interno. Se, de acordo com os homens consideram a si mesmos, pode ser ilustrada pela demarcação Spinoza, uma coisa só pode ser verdadeiramente conhecida pela sua causa, que Althusser traça entre as noções de indivíduo e sujeito e pela forma então o que define uma sociedade-indivíduo, um corpo político, é seu através da qual este prevalece sobre aquele no processo político. Como modo de produção social, o modo através do qual essa sociedade conserva os homens, indivíduos, são convertidos em sujeitos? Althusser propõe sua existência, reproduzindo a forma de suas relações características – as que essa passagem se realiza pela via da ideologia: a ideologia interpela relações sociais –, ao mesmo tempo que, por meio delas, produz as coisas os indivíduos como sujeitos. A ideologia é produzida e reproduzida por ou os bens de que têm necessidade para “regenerar continuamente”(E, II, “aparelhos” do Estado, por instituições – a família, a escola, a igreja, a post. 4), como o corpo humano, as suas partes constitutivas. fábrica etc. – cuja função política é reafirmar um determinado modo de De outra parte, o Estado, entendido como o conjunto das instituições, 122 perceber as relações entre os homens, ou, antes, tornar reiteradamente 123 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares presente uma determinada percepção que os homens têm de sua prática. individuais, em oposição aos “choques” aleatórios e imprevisíveis com Tais aparelhos não funcionam à maneira de máquinas de propaganda ou de que, na solidão hipotética do estado de natureza, um homem se defrontaria manipulação: as ideias que se produzem a partir deles são, efetivamente, a todo instante. Na cidade, as relações dos homens se subordinam a um as ideias que correspondem à prática social, são representações que fazem regime de regularidade: a sua produção é também reprodução das condições sentido com a materialidade dessa prática. A ideologia, compreendida sob as quais produzem, e sua dinâmica interna de autoconservação é, ao como conjunto de ideias ou representações sob as quais os homens mesmo tempo, um elemento constitutivo e dependente da dinâmica social percebem suas relações, nasce com essas mesmas relações, não como de conservação do corpo político. Assim, uma vez que sua existência efeito delas, mas como o modo pelo qual os homens tomam consciência individual envolve, como sua causa, a existência da cidade, a tendência delas, isto é, as reconhecem e se reconhecem nelas. É esse reconhecimento que determina os homens a produzir sua existência também os determina que transforma os indivíduos, cujas relações constituem a cidade, em a reiterar as relações por meio das quais se engajam nessa produção – as sujeitos de um Estado. próprias relações sociais. Essas relações realizam-se, pois, sob a determinação da “essência” 5. Mas como essa transformação pode ser descrita a partir da teoria política spinozista? A vida política, segundo Spinoza, é um processo de organização das relações entre os indivíduos, de composição de suas potências singulares ou direitos naturais em um processo de produção comum. Como visto, a tendência pela qual um homem é determinado a perseverar no ser, buscando o que convém à sua natureza ou essência singular, somente se pode efetivar na cidade, na vida política, através das relações que ele estabelece com outros indivíduos de natureza semelhante à sua e que, por isso, podem compor com ele uma potência coletiva mais eficaz na busca ou produção das coisas de que cada um, em particular, tem necessidade. A vida política é, pois, o lugar onde os homens podem entreter uns com os outros relações favoráveis às suas respectivas potências singulares e, portanto, ao seu esforço de autoconservação. Dessa perspectiva, a vida política apresenta-se, então, como um modo de organização dos “encontros” entre os indivíduos, dos encontros dos corpos e das mentes 124 do corpo político que constituem, isto é, a forma característica das relações sociais em uma cidade exprime seu modo de ser, seu modo de produção. Isto significa que, na vida política, as relações comuns que os homens são determinados a estabelecer revestem determinada forma de acordo com o modo pelo qual essa sociedade existe e se reproduz, conservando essas mesmas relações constitutivas. Por isso, os homens, na vida política, pensam e operam dentro da lógica de conservação do corpo político: eles estão submetidos a certos tipos, e não outros, de afecções, e estas são percebidas por certos tipos, e não outros, de ideias de afecções na imaginação. Em virtude da contínua reiteração das relações através das quais o indivíduo pensa e opera, e das condições sob as quais essas relações se dão, o regime de reprodução social em que ele está inserido como “parte” tende a fazê-lo imaginar sua prática como uma sucessão estável. Os objetos – as afecções – apresentam-se-lhe constantemente sob as mesmas relações e seguem freqüentemente uma mesma ordem, de tal sorte que, por mais complexa que seja a dinâmica social, um indivíduo é capaz de reconhecer as coisas que o afetam e os efeitos que pode esperar delas. Essa previsibilidade permite125 Cadernos Espinosanos XXIII 126 Alexandre Arbex Valadares lhe supor que as coisas atendem a fins próprios, e, assim, ele pode colocar- A imaginação, segundo Spinoza, é, em todos os homens, a percepção se, em relação a elas, como sujeito, confundindo as afecções, derivadas de comum e espontânea das modificações produzidas por causas externas causas externas que determinam sua percepção dos outros corpos e do seu sobre seu modo de vida. Se, no estado de natureza, um homem viveria ao próprio corpo, com “objetos” acerca dos quais ele é capaz de formar uma acaso de encontros, que fariam variar indefinidamente suas representações percepção autodeterminada. imaginárias de mundo, ele é, na vida política, submetido a um tal regime de A percepção espontânea que os homens fazem acerca das coisas, previsibilidade que sua imaginação é determinada a revestir a forma de uma cujas imagens lhes são recorrentemente presentes em virtude da regularidade composição estável de representações, de idéias de afecções constantemente das afecções, produz neles uma ideia reflexiva, isto é, uma ideia que tem concertadas nas mesmas associações, cujos conteúdos informam sua visão por objeto a ideia de uma afecção, a ideia de uma imagem: assim, um de mundo. Desse modo, a imaginação individual tende a estabilizar-se na corpo exterior modifica o corpo de um homem por meio de uma afecção, forma determinada de uma consciência subjetiva. As idéias de imaginação de uma imagem material; tal homem percebe a existência desse corpo – idéias dos efeitos ou das imagens materiais das coisas que nos afetam – exterior por uma ideia de sua imagem ou afecção, e, em um nível reflexivo, são o elemento constitutivo da consciência, e é precisamente neste teatro percebe como seu o corpo afetado e como sua a mente que forma dessa de formas que são plasmados, com aparência de criações espontâneas do afecção uma ideia. A mente é uma ideia do corpo, uma ideia do conjunto espírito, os juízos e opiniões, os valores e, por conseguinte, as disposições de afecções que modificam o corpo em dada atualidade. Ela afirma, pela de obediência e de reconhecimento de autoridade. percepção dessas afecções, a existência do corpo, mas, no nível reflexivo, A consciência é a imaginação socialmente estruturada, modificada converte-se ela mesma em objeto de outra ideia, pela qual se percebe a pela interpelação ideológica. O repertório estável das representações dos si própria. A mente tem, pois, uma ideia de si mesma, uma consciência; homens corresponde ao regime regular de suas práticas sociais, exprime a na medida em que a mente é uma ideia do corpo e este é percebido por percepção dominante ou universal que eles têm acerca de tais práticas, e suas afecções, a mente existe como um conjunto de ideias de afecções que estas exprimem a forma dominante ou universal das relações sociais que corresponde ao conjunto das partes afetadas do corpo. Como as ideias de eles estabelecem uns com os outros, cuja reprodução é efeito e condição da afecções envolvem, sempre, uma imagem do corpo afetante e uma imagem dinâmica de conservação do corpo político. Noutros termos, a consciência do corpo afetado, o substrato comum a todas as ideias de afecções é a é a imaginação estruturada segundo a ideologia dominante (ou universal) imagem desse corpo, e por isso a mente percebe-o como seu. O que reduz correspondente à forma dominante (ou universal) das relações sociais a variedade das ideias de afecções à unidade da consciência é a ideia que que caracterizam o corpo político, que definem sua dinâmica imanente de a mente é determinada a formar de si mesma, a capacidade da mente de conservação ou seu modo de produção. vincular as representações das coisas percebidas a uma representação de A diferença entre “imaginação” e “consciência”, no plano si mesma, na medida em que as percebe. Essa percepção espontânea toma individual, é análoga à diferença entre “multidão” e “povo”, no plano nela a forma de uma consciência subjetiva. político, e remete à distinção conceitual, cunhada por Althusser (1), entre 127 128 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares “indivíduo” e “sujeito”. A noção de “povo” designa sempre um sujeito ocupar essa posição, quer a ocupe em virtude de um direito hereditário, político, que se define em relação a um Estado, tanto no sentido de divino ou de guerra, o fato é que, dada a maneira pela qual a potência “sujeição” – sujeito ao direito, isto é, à lei, à autoridade do Estado – quanto da multidão se distribui, como graus de poder, entre os cidadãos, aqueles no sentido de “autonomia” – sujeito de direito, ou seja, sujeito coletivo que se apropriam de uma parcela maior dessa potência são aqueles que cuja vontade faz o direito e legitima a autoridade do Estado. A multidão, governam o Estado. O fundamento do poder político no Estado é a potência conforme foi visto, é anterior, por definição, ao povo, assim como a cidade da multidão, e a legitimação desse poder reflete apenas o modo através do é anterior ao Estado. Ela não constitui um sujeito, segundo a acepção dada qual essa potência se distribui entre os cidadãos. há pouco: ela é um indivíduo, definido por suas relações de produção, Esta distribuição de poder não resulta de um contrato social. Ela de composição de potências, e consiste, como potência coletiva assim é, por assim dizer, conjuntural, uma vez que exprime a institucionalidade constituída, no corpo político, no corpo da cidade. O Estado é, por assim atual dada às relações que os cidadãos estabelecem entre si. Se, por um dizer, uma superestrutura mental em relação a essa estrutura corporal: o lado, a cidade, o corpo político, é o fundamento constituinte que atravessa conjunto de suas instituições diz respeito ao modo pelo qual as relações todas as formas de organização da existência dos homens – porque os constitutivas desse corpo são percebidas, e abrange, na sua unidade, uma homens, conforme a história o demonstra, sempre viveram em sociedade, visão de mundo determinada pelos efeitos dessa percepção. É no nível do e, conforme sua natureza determina, não podem efetivar seu direito natural Estado – na esfera das instituições – que a multidão, indivíduo composto de senão nas relações comuns com outros homens –, por outro lado a forma indivíduos, se concebe como povo, sujeito composto de sujeitos; e é nesse de governo sob a qual tais relações se institucionalizam não é perene, e a mesmo nível que as imaginações individuais – e os juízos particulares sua estabilidade no tempo depende da conservação da estrutura de relações acerca do bom e do útil – convergem em uma mesma forma de consciência a partir da qual ela se erigiu. Noutras palavras, para que uma forma de subjetiva –, em um conjunto de valores morais universais. Estado siga existindo, é preciso que os homens que dele participam, ao A multidão, pois, é sempre sujeito no Estado? Sim, se considerarmos mesmo tempo que se empenham na produção de efeitos bons ou úteis à que ela se representa como povo, na medida em que sua potência coletiva conservação de suas existências singulares, sejam determinados a produzir – a soberania – é, no Estado, no âmbito de uma forma de governo definida, efeitos bons ou úteis à conservação do Estado. No entanto, quando essa exercida como poder por uma autoridade. A multidão, está visto, engloba correspondência deixa de existir, isto é, quando os homens deixam dominantes e dominados: todos são partes do corpo político. A separação de perceber, em uma dada forma de Estado, um elemento útil ou bom ocorre no nível do Estado, isto é, no nível das instituições, segundo o lugar à conservação de suas existências singulares, eles podem buscar outras ou a função que cada cidadão desempenha nelas, e às quais corresponde formas de estabelecer relações, de conjugar suas potências, dando ao corpo um grau determinado de poder, uma parcela da potência da multidão. político uma outra composição. Nesse caso, pode-se dizer que a multidão Spinoza não se ocupa de distinguir os variados mecanismos de legitimação se reapropria de sua potência coletiva, da soberania, e, a partir disso, dessa autoridade: quer tenha ela obtido anuência dos demais cidadãos para refunda o Estado. Ela deixa de operar como sujeito, e passa a atuar como 129 130 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares indivíduo. É essa inflexão que caracteriza o processo revolucionário, tal é, a percepção espontânea de sua prática social, que informam o conteúdo como Spinoza sugere no TP (III, 9). da imaginação e das paixões dos homens. Por essa razão, se assegurar a Da mesma forma que o corpo humano, sob ação de afecções, pode estabilidade do Estado implica conter a multidão dentro de certos limites ser “sujeito de contrários”, a unidade da multidão não exclui o conflito do – afetivos, imaginativos –, as instituições que caracterizam essa forma corpo político. Em um, como em outro, a conservação da existência não diz de Estado tendem a incitar as paixões ou fazer circular as imagens que respeito à ausência de modificações, à imobilidade – o equilíbrio dinâmico concorrem para a manutenção de sua estrutura de poder por meio da qual dos corpos depende da regeneração de suas partes constitutivas, assim a potência da multidão se distribui entre os cidadãos. como a estabilidade dos Estados pode requerer a realização de reformas Seria controverso sustentar que Spinoza defende, no TP, a saída em suas instituições –, mas concerne, antes, à preservação da estrutura revolucionária, visto que, em variadas passagens, ele define, como razão característica das relações em que suas partes constitutivas se compõem. de ser do Estado, a garantia da paz e da segurança. Por outro lado, as No corpo político, essas relações são as relações sociais de produção, e é diretrizes práticas de organização que Spinoza recomenda, no TP, aos da reprodução da estrutura característica das relações sociais que depende Estados monárquico e aristocrático – a divisão de poderes, a criação a conservação do Estado, entendido como forma de governo ou regime de de assembleias e conselhos de composição multitudinária e rotativa, a distribuição, entre os cidadãos, da potência coletiva da multidão. propriedade comum do solo etc. – não têm outro fim que, preservando Dentro do Estado, a parcela de poder – político, econômico, os símbolos e aparências de cada uma, dotar essas formas de governo simbólico – de cada cidadão é determinada por sua posição nessa de uma institucionalidade democrática. A democracia, como Spinoza a distribuição, e não por sua potência singular isoladamente considerada. concebe, é o mais natural dos regimes porque favorece em maior grau a Por outro lado, uma vez que os homens tendem, por natureza, a buscar realização do direito natural dos homens, na medida em que produz uma modos de composição de relações melhores e mais úteis à sua conservação, estrutura mais dinâmica e equânime de distribuição da potência coletiva o Estado, ao dar institucionalidade às relações, estabiliza-as e as faz da multidão. Permitindo aos cidadãos tomar parte nas deliberações convergir para a reprodução da estrutura de relações que caracteriza a sua políticas e assegurando-lhes a liberdade de pensamento e o acesso aos bens forma. Como os homens empreendem essa busca, guiados pelas paixões e necessários à vida, ela favorece a busca de cada um deles por estratégias de pela imaginação, a conservação do Estado como conjunto de instituições composição de relações melhores e mais úteis. Embora, por essas mesmas passa pelos mesmos mecanismos imaginativos e passionais pelos quais razões, o regime democrático pareça mais suscetível à instabilidade, a os homens operam. Por isso, as instituições, que definem o espaço da liberdade de constituir relações, de conjugar suas potências em uma prática social ao delinear o circuito através do qual se dão as relações, prática comum tende a tornar mais presente aos homens a ideia de sua funcionam como grandes “corpos” dentro do corpo político, “corpos” que utilidade recíproca. Se o corpo humano é tanto mais potente quanto maior determinam por assim dizer o tipo de afecções a que os homens desse sua capacidade de ser afetado e assimilar modificações (E, IV, 38), e se corpo político são sujeitos. São as ideias dessas “afecções políticas”, isto a mente se torna, por isso, tanto mais apta a perceber um grande número 131 Cadernos Espinosanos XXIII Alexandre Arbex Valadares de coisas e formar uma ideia mais perfeita de seu estado, pode-se dizer 5.. SPINOZA, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. que a potência coletiva do corpo político é tanto maior quanto mais as suas relações constitutivas favorecerem a afirmação dos direitos naturais individuais. Assim também, o Estado será tanto mais conforme à natureza dos homens (e por isso mais estável) na medida em que suas instituições favorecerem as paixões ou afetos que disponham os homens a perceber 6.. SPINOZA, Baruch. Tratado da reforma da inteligência. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 7.. SPINOZA, Baruch. Tratado teológico-político. Tradução e prefácio de Diogo Pires Aurélio. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 8.. SPINOZA, Baruch. Tratado político. Lisboa: Editorial Estampa. 1977. como coisa boa ou útil as suas próprias relações comuns. Images and analogies of the body and the mind in Spinoza’s politics Abstract: This article proposes to study some interpretative possibilities raised by analogy of the image of the human body and the structure of the political body. Beginning by discussing the dynamics of production of bodies in nature, the text provides an analysis of the contradiction between two thesis presented in the work of Spinoza - one in his ontology, and another in politics -, which are formulated in terms of the analogy of human body with the political body . Then this analogy spreads in a comparison between the human mind and what might be called a “mind” of the political body, by discussing the two levels of politics - the city (civitas) and the State (imperio). Finally it is proposed an interpretation of the production process of ideas in political life in the light of Althusserian theory of ideology. Keywords: Spinoza, politics, body, imagination, ideology. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. ALTHUSSER, Louis. Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une recherche).Positions. Paris: Les Éditions Sociales, 1976. 2. BOVE, Laurent. Introduction. In: SPINOZA, B. Traité Politique. Paris: LGF, 2002. 3. MATHERON, Alexandre. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Minuit, 1988 4. NEGRI, Antonio. A anomalia selvagem. São Paulo: Ed. 34, 1993. 132 133 Imaginação: entre o medo e a liberdade Daniel C. Avila* Resumo: Medo e esperança aparecem na história da filosofia como problemas situados na dimensão temporal da existência. Espinosa acompanha essa tradição, bem como o uso da filosofia como uma medicina animi, porém reserva para si algumas diferenças. Ressaltando o papel da imagem na constituição de medo e esperança, demarca a via pela qual estes dois afetos são necessariamente produzidos pela limitação da imaginação à duração dos corpos. No entanto, quando livre dos impedimentos à sua potência, a mente é capaz de ordenar e concatenar as afecções do corpo, considerando a si mesma sem relação ao corpo, sob uma nova perspectiva. O tratamento do problema do medo, portanto, não se localiza no tempo presente, mas sim na eternidade. Palavras-Chave: Benedictus de Espinosa, esperança, medo, imaginação, liberdade. Mostre-me um homem que não é um escravo; um é escravo do sexo, outro do dinheiro, outro da ambição; todos são escravos da esperança ou do medo (Sêneca 4, Ep. 47, p. 95) Em uma imagem poética que Sêneca emprega na carta V da correspondência mantida com Lucílio, esperança e medo marcham “juntas, como um prisioneiro e a escolta à qual se prendem suas algemas” (Sêneca 4, Ep. 5, p. 38). Mas ainda que a afinidade íntima entre esses afetos possa ser considerada fonte de temor a um aprendizado ético, o estóico prescreve * Mestrando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano - Instituto de Psicologia Universidade de São Paulo. 135 Cadernos Espinosanos XXIII Daniel C. Avila uma solução, tomando emprestado um escrito de Hecato: “’Deixe de ter uso, o homem se depara com uma situação completamente desfavorável, esperança’, ele diz, ‘e você deixará de ter medo’” (idem). até mesmo se comparado com os animais, sem encontrar em tempo algum Para o estóico romano, medo e esperança, assim como as outras qualquer paz. Por outro lado, a constituição de um modo de vida correto, paixões, seriam doenças das quais o homem deve ser curado. Mas como curado das paixões nocivas, é possível a partir de um aprendizado ético a medicina, enquanto técnica do bom funcionamento do corpo, não que, por uma educação da imaginação, combatendo sua ignorância, retorne alcançasse em seu ofício tal empresa, à filosofia é feita a convocação a agir ao tempo atual. No diagnóstico final de Sêneca, apenas encontrando no sob a forma de uma terapia, sob as vestes de uma medicina animi. O exame presente sua força de agir e existir é que o homem pode exercer um bom filosófico que apresenta Sêneca é que medo e esperança uso de suas faculdades projetivas, em prol de uma vida plena e feliz. Aquestão do medo e da esperança na filosofia de Espinosa estabelece- pertencem a uma mente em suspense, a uma mente em estado de ansiedade por mirar sempre o futuro. Ambos são devidos principalmente à projeção de nossos pensamentos além de nós mesmos em lugar de nos adaptarmos ao presente. É assim que a previsão, a maior benção que foi dada à humanidade, é transformada em maldição. Animais selvagens fogem dos perigos que realmente vêem e, uma vez que tenham escapado, não mais se preocupam. Nós, entretanto, somos atormentados de maneira idêntica pelo que já aconteceu e o que irá acontecer. Um número de bênçãos fazem-nos mal, pois a memória traz de volta a agonia do medo enquanto a previsão a traz prematuramente. Ninguém confina sua tristeza ao presente (idem). se, em uma primeira aproximação, sobre as mesmas considerações que são abordadas por Sêneca. Assim por exemplo, Espinosa afirma que o “medo é uma tristeza e, já que a esperança não existe sem o medo, ela também não tem nada em si que a faça útil ao homem” (Spinoza 5, E V, P47 dem, p. 324). Isso não significa que, para Espinosa, medo e esperança sejam necessariamente maus ao homem, dado que o medo pode ser utilmente empregado na supressão de uma alegria excessiva, assim como a esperança pode evitar o desespero quando se imagina algo que exclui a idéia de algo que certamente causaria mal no futuro. A utilidade de ambos afetos, no entanto, é indireta e não depende deles em si. Não obstante, o medo e, sobretudo a esperança, adquirem um papel fundamental na constituição da melhor forma que pode adotar um regime qualquer, tema exposto no Sêneca demarca, portanto, o problema do medo e da esperança na dimensão temporal da existência. São paixões que afetam o homem em um descompasso cognitivo envolvido em conflitos com presente, que o assolam de tal maneira que ele pode apenas recorrer ao deslocamento dos seus mecanismos imaginários a instantes transcendentes, refugiando-se em outro tempo. Tal atividade patológica da imaginação torna possível que um medo futuro seja tão ameaçador quanto um já passado, e por isso ela deve ser o centro do tratamento. Pois, reduzida a potência de prever a esse 136 Tratado Político, porém que escapa do escopo do atual trabalho. Da mesma maneira que Sêneca, Espinosa também acredita que medo e esperança são afetos que se originam a partir de uma disposição inadequada da imaginação, atrelada a uma temporalidade transcendente isto é, uma temporalidade dada na imaginação e que está para além do presente atual, indo em direção ao passado ou ao futuro: “a esperança nada mais é do que uma alegria instável, surgida da imagem de uma coisa futura ou passada de cuja realização temos dúvida. O medo, por outro lado, é uma 137 Cadernos Espinosanos XXIII Daniel C. Avila tristeza instável, surgida igualmente da imagem de uma coisa duvidosa” lhe está presente, até que o corpo seja afetado de um afeto que exclua a (Spinoza 5, E III P18 esc 2, p. 187). Espinosa também afirma que o existência ou a presença desse corpo” (Spinoza 5, E II, P17, p. 111). Ainda problema da esperança e do medo deve ser resolvido em uma dimensão que a idéia de uma coisa presente e existente seja diferente da idéia de cognitiva, pois são afetos que indicam uma carência de conhecimento uma coisa não presente, isto é, sobre a qual não se pode ter certeza sobre e uma impotência da mente. Conseqüentemente, quanto mais o homem a sua existência, a força com que a imaginação pode fornecer explicações se esforça em viver sob a condução da razão, tanto menos depende da à mente sobre a realidade atual é a mesma com a qual ela torna presentes esperança e se livra do medo. as imagens das coisas que já não estão à sua percepção. Assim, no escólio Apesar dos pontos comuns, a chave para compreender a solução dessa proposição, Espinosa afirma que a diferença da idéia de Pedro, que proposta por Espinosa como tratamento está localizada em uma outra constitui a mente do próprio Pedro, e a idéia desse mesmo Pedro que existe dimensão temporal. Para Sêneca, como vimos, o homem livre do medo e em outro homem (Paulo) é que a primeira explica a essência do corpo de da esperança vive voltado para o presente, enquanto que para Espinosa, a Pedro e não envolve a existência senão enquanto Pedro existe, e a segunda estratégia para esse combate é “dominar, o quanto pudermos, o acaso; e por indica mais o estado do corpo de Paulo (ou seja, a afecção cuja causa dirigir nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão” (Spinoza é o corpo de Pedro), que a natureza de Pedro. Assim, enquanto durar o 5, E IV, P47 esc, p. 321). Trata-se, na visão espinosana, não apenas de estado do corpo de Paulo, sua mente considerará Pedro como lhe estando viver o presente, mas de confrontar a ordem comum da natureza, com seus presente, mesmo que Pedro já não mais exista. encontros fortuitos que produzem um conhecimento confuso e mutilado, Após essa passagem, Espinosa define a noção de imagem: e submetê-la ao império da razão, do conhecimento claro e distinto. Mais “as afecções do corpo humano, cujas idéias nos representam os corpos ainda, trata-se de operar um esforço para que a mente seja internamente exteriores como estando presentes, embora elas não restituam as figuras determinada e possa compreender a si mesma, a Deus e às coisas, sob um das coisas” (Spinoza 5, E II, P17 esc, p. 111), o que anuncia uma verdadeira aspecto de eternidade, em sua maior parte com relação à parte sua cuja liberdade da mente quando esta despreza o erro da faculdade de imaginar determinação é externa e acompanhada da impotência cognitiva, efeito da e a supera como fonte única de conhecimento. De fato, imaginação orientada à transcendência. Essa incrível potência da imaginação em representar, no tempo presente, afetos ligados ao passado e ao futuro, tem as suas causas necessárias explicadas na segunda parte da Ética, onde Espinosa dedica parte de seu texto à demonstração do modo de funcionamento da imaginação. De acordo com a proposição 17 dessa parte: “Se o corpo humano é afetado de uma maneira que envolve a natureza de algum corpo exterior, a mente humana considerará esse corpo exterior como existente em ato ou como algo que 138 a mente não erra por imaginar, mas apenas enquanto é considerada como privada da idéia que exclui a existência das coisas inexistentes como se lhe estando presentes. Pois, se a mente, quando imagina coisas inexistentes como se lhe estivessem presentes, soubesse, ao mesmo tempo, que essas coisas realmente não existem, ela certamente atribuiria essa potência de imaginar não a um defeito de sua natureza, mas a uma virtude, sobretudo se essa faculdade de imaginar dependesse exclusivamente de sua natureza, isto é, se ela fosse livre (idem). 139 Cadernos Espinosanos XXIII A causa necessária, portanto, que determina que a mente seja que todas as coisas particulares são experimentadas como contingentes e afetada de maneira idêntica pelas imagens de uma coisa presente e de corruptíveis, deduz que não se pode ter delas, em sua duração, qualquer outra não presente é a servidão da imaginação à duração. Ora, sendo conhecimento adequado. E, como complementa o escólio da proposição determinada pela ordem comum da natureza e pela presença e ausência 33, não há “nenhuma outra razão para se dizer que uma coisa é contingente, das coisas, a mente despreparada pode apenas imaginar a sua existência, a não ser a deficiência de nosso conhecimento” (Spinoza 5, E I, P33 esc, p. afastando de seu julgamento suas respectivas durações. Espinosa alerta o 57). É o conhecimento inadequado, engendrado pelo binômio imaginação- leitor da Ética para o perigo que emana de tal propriedade da imaginação, duração, que explica, portanto, a potência da imaginação em persistir na afirmando nas proposições 30 e 31 que da duração do nosso corpo e representação de idéias transcendentes ao presente e, por esse mesmo das coisas singulares que nos são exteriores não se pode ter senão um caminho, a servidão ao medo e à esperança. Espinosa demonstra, assim, a conhecimento extremamente inadequado. Isso se dá, como ele demonstra, via cognitiva pela qual estes dois afetos são necessariamente produzidos porque a duração de um corpo não depende de sua essência (pelo axioma por uma imaginação limitada à duração. De maneira paradoxal, é como 1 dessa parte) nem da natureza absoluta de Deus (pela proposição 21 da se o sujeito esperançoso ou medroso estivesse, como na definição de primeira parte). A duração do corpo e das coisas singulares depende apenas Sêneca, alienado de seu presente; contudo, ao mesmo tempo, esse da ordem comum da natureza e do estado das coisas, de modo que a idéia apelo à transcendência deve ser compreendido como causado por uma imaginativa a respeito da duração desses corpos é inadequada por não “intoxicação” do presente, limitada à duração dos corpos. se referir à sua essência nem à natureza de Deus e, assim, não permite considerar as idéias que não têm como objeto este corpo. 140 Daniel C. Avila É de se notar que o próprio Espinosa já se dava conta dos riscos que corria com tais afirmações, o que se verifica na digressão ao final de Em contraposição à força com a qual a idéia referida à duração um escólio da segunda parte da Ética, no qual solicita que elas somente exprime a extrema inadequação da imaginação, Espinosa apresenta a idéia sejam julgadas quando o leitor tenha “lido tudo até o fim” (Spinoza, E II, P11 clara e distinta do conhecimento adequado, necessariamente existente esc, p. 95). A razão de tal cautela se explica pela severidade com que esse em Deus visto que ele, em seu intelecto divino, possui as idéias do corpo pensamento, implicando a afirmação de uma ontologia do necessário, choca- humano e de todas as outras coisas. A forma adequada de conhecer a se com a tradição teológico-metafísica do possível (Chaui 1 e Chaui 3). realidade é, portanto, aquela que parte da idéia que “a mente humana é A corrente teológico-metafísica à qual Espinosa se contrapõe é uma parte do intelecto infinito de Deus” (Spinoza 5, E II, P11, p. 95) para aquela fundada sobre a oposição entre os binômios liberdade-vontade e apreender o conhecimento da duração do corpo em Deus, isto é, para além necessidade-natureza, com a conseqüente localização de Deus no primeiro da ordem comum da natureza e dos estados de corpo, referindo-o à sua termo, associando-o à imagem de um agente que opera por vontade própria essência e à natureza de Deus. tendo um fim em vista. Tendo Deus criado o mundo porque quis - assim O arremate de tal denúncia é apresentado no corolário da como poderia não tê-lo criado se assim o quisesse -, os seres singulares da proposição 31 dessa parte, quando Espinosa, por meio da afirmação de Natureza são considerados como frutos de uma ação voluntária e, por isso, 141 Cadernos Espinosanos XXIII 142 Daniel C. Avila condenados a realizar aquilo que lhes é necessário e involuntário. Nessa Essa vinculação é possível na medida em que a mente age, isto é, oposição entre o reino da liberdade e o da necessidade, qualquer objeto em que se converte em causa total dos afetos. Pois a mente interiormente de escolha é contingente, pois as leis da natureza só são necessárias na disposta torna-se a causa adequada do conhecimento de si, de Deus e das medida em que Deus teve essa vontade. E, assim, a tradição teológico- coisas, constituindo a via cognitiva (isto é, por meio do conhecimento) à metafísica conjuga liberdade e necessidade em uma seqüência causal, de liberdade. E, nessa nova perspectiva, a mente funda uma nova relação com modo que da vontade de Deus surge a necessidade da Natureza. a eternidade ontológica. Contudo, quando esse pensamento se aplica no interior do O conhecimento em estado de servidão à duração do corpo e das campo político, a transcendência teológico-política transfere o direito de coisas singulares é um conhecimento inadequado por não se referir à sua governar do monarca celeste ao monarca terrestre sob a égide da Teoria da essência nem à natureza de Deus. Por outro lado, como Espinosa afirma Monarquia Absoluta. Trata-se da base da teocracia: o rei é soberano pela na proposição 38 da parte II: “Aqueles elementos que são comuns a todas vontade de Deus - ou pela graça divina -, de quem recebe não só o poder, as coisas, e que existem igualmente na parte e no todo, não podem ser mas também as marcas que o tornam semelhantes ao monarca celeste. Este concebidos senão adequadamente” (Spinoza E II, P38, p. 129). Essa é uma é uma pessoa transcendente ao universo, dotado de inteligência onisciente proposição importante à epistemologia espinosana na medida em que é e vontade onipotente, criador do mundo a partir do nada, simplesmente por nela, e mais ainda na exposição de seu corolário, que Espinosa afirma a um ato contingente de sua vontade que assim o quis. Da mesma maneira, existência de idéias ou noções comuns a todos os homens, dado que todos o monarca terrestre, escolhido de forma contingente pela vontade divina, os corpos estão em concordância quanto a certos elementos presentes no inaugura o espaço social que está fora e acima da sociedade, depositando todo e nas partes, os quais devem ser percebidos por todos adequadamente, em sua vontade a força da lei (Chaui 1). ou seja, clara e distintamente. Desse modo, a metafísica se constitui enquanto ciência do possível O critério que define tal adequação é apresentado posteriormente, na medida em que “seu objeto são os transcendentais segundo os quais na proposição 40: “Todas as idéias que, na mente, se seguem de idéias se definem os universais como essências possíveis aptas à existência, que que nela são adequadas, são igualmente adequadas” (Spinoza E II, P40, passam a existir por um ato da vontade divina criadora“ (Chaui 1, p. 2). E a p. 133). Assim, as idéias que são causadas pela essência da mente, e não vinculação do desejo ao futuro, à falta, à ausência, isto é, a tudo aquilo que mais originárias da imagem corporal das afecções, são idéias adequadas, é considerado como possível, determina a servidão voluntária do homem. e causa das noções comuns que constituem os fundamentos da capacidade Inversamente, portanto, a filosofia espinosana trata de fundar uma ciência do humana de raciocínio. Espinosa agrega a essa afirmação, no segundo necessário por meio de um conhecimento dos universais (isto é, as noções escólio da proposição, uma discussão sobre a formação dos conceitos comuns) e das essências singulares que existem devido à necessidade universais transcendentais. A elaboração de seu argumento é a explicação, absoluta de Deus. E, por fim, de exercer um vínculo do desejo à necessidade já apresentada no escólio da proposição 17, de tal formação por sua causa de uma potência plena, determinando-o por uma livre necessidade. necessária, a saber, a limitação do corpo humano em formar em si próprio, 143 Cadernos Espinosanos XXIII Daniel C. Avila distinta e simultaneamente, apenas um número preciso de imagens, sendo Dada a multiplicidade de disposições dos corpos que formam imagens de incapaz de apreender a imagem de muitas coisas singulares. E a própria homens, tais corpos entram em descordo sobre qual é o conceito possível dedução do universal transcendental é efeito de tal limitação, pois no e certo. Como Espinosa completa, não se deve surpreender-se pelo fato “momento em que as imagens se confundem inteiramente no corpo, a de “que dentre os filósofos que pretenderam explicar as coisas naturais mente imaginará todos os corpos também confusamente e sem qualquer exclusivamente pelas imagens dessas coisas, tenham surgido tantas distinção, agrupando-os, como se de um único atributo se tratasse, a saber, controvérsias” (idem). A invenção de Espinosa está, portanto, na fundação o atributo de ente, coisa, etc” (Spinoza E II, P17 esc, p. 109). de uma nova forma de conhecimento, baseada nos universais imanentes O exemplo dado por Espinosa para demonstrar a constituição formados pela mente a partir de elementos reais e concretos, presentes dos universais transcendentais é o da formação do conceito de homem. ao mesmo tempo nas partes e no todo, assim como nas relações entre as Assim, por se formarem, simultaneamente no corpo humano, um número partes e das partes com o todo. As noções comuns, justamente por isso, são de imagens de homens que supera a capacidade de imaginar, a mente se igualmente compartilhadas por todos os homens, independentemente do torna incapaz de imaginar as pequenas diferenças singulares como, por estado de seus corpos e dos corpos exteriores. exemplo, a cor, o tamanho etc., de cada um. Desse estado, a mente é capaz No mesmo escólio, são apresentadas três maneiras de formar apenas de imaginar aquilo que, em todos os homens – conquanto o corpo noções universais. A primeira maneira se dá a partir de coisas singulares, é por eles afetado –, está em concordância. Essa afecção mais comum no representadas mutilada e confusamente pelos sentidos do corpo, sem a conjunto das imagens dos homens que se formaram no corpo é exatamente ordem própria do intelecto. Como demonstra a proposição 29 da segunda aquela que, por intermédio de cada indivíduo, mais afetou esse corpo. E parte, a idéia de uma afecção do corpo humano não envolve o conhecimento é esse algo, em que todos os homens estão em concordância, que a mente adequado do próprio corpo e, por não exprimir sua natureza está em exprime pelo nome de homem, formando o conceito que designa uma discordância com a mente, isto é, consiste em uma idéia inadequada. A tais multiplicidade de coisas singulares. percepções, Espinosa dá o nome de conhecimento originado da experiência Espinosa alerta, entretanto, que essas noções não são formadas errática, pois sempre que a mente humana percebe as coisas segundo a por todos os homens da mesma maneira. Tudo depende da razão da coisa ordem comum da natureza e por meio das idéias das afecções, ela não tem, de pela qual o corpo foi mais vezes afetado, e a razão pela qual a mente si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um conhecimento imagina ou lembra mais facilmente. Assim, os que admiram a estatura do adequado, mas apenas um conhecimento confuso e mutilado. homem associarão à palavra homem um animal de estatura ereta, outros, acostumados a outro aspecto, formarão dos homens uma outra imagem comum: um animal que ri, um bípede sem penas, um animal racional etc. “E, assim, cada um, de acordo com a disposição do seu corpo, formará imagens universais das outras coisas” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 133). 144 Afirmo expressamente que a mente não tem, de si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento confuso, sempre que percebe as coisas segundo a ordem comum da natureza, isto é, sempre que está exteriormente determinada, pelo encontro fortuito com as coisas, a 145 Cadernos Espinosanos XXIII 146 Daniel C. Avila Certamente, no caso de uma série de números simples, o cálculo considerar isto ou aquilo. E não quando está interiormente determinada, por considerar muitas coisas ao mesmo tempo, a compreender suas concordâncias, diferenças e oposições (Spinoza, E II, P29 esc, p. 123) do comerciante e o do geômetra têm como efeito o mesmo resultado. Além do conhecimento originado da experiência errática, Espinosa relação entre os dois primeiros números, na medida em que o comerciante agrega também a esse gênero o conhecimento a partir de signos: “por apenas emprega operações com as quais já está se acostumou por meio do exemplo, por ter ouvido ou lido certas palavras, nós nos recordamos das hábito. Para o primeiro existe uma idéia clara que envolve as idéias dos coisas e delas formamos idéias semelhantes àquelas por meio das quais elementos singulares, enquanto que o segundo a ignora. Ainda que, no imaginamos as coisas” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 135). De uma maneira caso dos números simples, o conhecimento de primeiro e segundo gênero geral, esse primeiro gênero de conhecimento tem como característica a cheguem ao mesmo resultado, o mesmo não é valido para uma série de determinação externa da mente por meio da idéia imaginativa inadequada. números complexos. Por outro lado, apesar da diferença entre os dois Em contraposição, quando a mente se encontra interiormente arranjada, as gêneros, quando aplicados a números simples, um não contradiz o outro, coisas são consideradas de forma clara e distinta de acordo com o segundo isto é, não há hierarquia entre os gêneros de conhecimento, no sentido de e o terceiro gênero de conhecimento. que um suprime, anula ou elimina o conhecimento obtido pela via de um A diferença é que a explicação geométrica faz uso de uma propriedade comum à série numérica, isto é, a proporção ou razão, deduzida a partir da O segundo gênero de conhecimento se caracteriza pelas outro. O que existe é uma diferença de potência, dado que um gênero pode noções comuns e as idéias adequadas das propriedades das coisas. Para mais ou menos que outro, em uma construção ativa da mente na qual os demonstrar o modo de funcionamento desse gênero, Espinosa compara conhecimentos de distintos gêneros ocupam partes maiores ou menores da a resolução de um mesmo problema, efetuada por comerciantes e por mente em uma situação de colaboração conjunta. um geômetra: “Sejam dados três números, com base nos quais quer se Uma das propriedades do conhecimento de segundo gênero é a de obter um quarto que esteja para o terceiro como o segundo está para o produzir as condições sob as quais a mente pode concatenar as afecções primeiro” (Spinoza, E II, P40 esc 2, p. 135). Os comerciantes, limitados corporais em uma ordem própria à sua essência e, assim, determinar-se ao primeiro gênero, não hesitam em multiplicar o segundo pelo terceiro a si mesma. Isto ocorre porque, como mostra a proposição 10 da parte e dividir o produto pelo primeiro, “ou porque não esqueceram ainda o final da Ética: “Durante o tempo em que não estamos tomados por afetos que ouviram seu professor afirmá-lo, sem qualquer demonstração, ou que são contrários à nossa natureza, nós temos o poder de ordenar e porque experimentam-no, freqüentemente, com números mais simples” concatenar as afecções do corpo segundo a ordem própria do intelecto” (idem). Já o geômetra resolve o problema por meio da demonstração da (Spinoza, E V, P10, p. 379). Justifica-se, assim, a necessidade humana proposição 19 do livro 7 dos Elementos de Euclides, isto é, por causa por regras de vida que afastem da mente quaisquer afetos que sejam da propriedade comum dos números proporcionais, empregando um contrários à sua natureza (idéias inadequadas e afetos passivos), pois conhecimento de segundo gênero. durante esse afastamento toda a sua potência pela qual se esforça em 147 Cadernos Espinosanos XXIII compreender a natureza das coisas não está impedida. 148 Daniel C. Avila às coisas singulares que são consideradas como ausentes, exigindo-se, A idéia de potência da mente é explicada na proposição 26 da para refrear os afetos ordenados e concatenados segundo a ordem própria quarta parte da Ética: “Tudo aquilo pelo qual, em virtude da razão, nós do intelecto, uma força maior do que a requerida para refrear os afetos nos esforçamos, não é senão compreender; e a mente, à medida que utiliza imprecisos e erráticos. a razão, não julga ser-lhe útil senão aquilo que a conduz ao compreender” Um aprendizado ético, enquanto não atinge um conhecimento (Spinoza 5, E IV, P26, p. 293). De fato, a razão é o modo finito que adequado dos afetos, exige um princípio correto de viver, orientado compartilha absolutamente a essência da mente, pois a essência da razão por noções comuns. Essas regras seguras de vida, quando confiadas à não é senão a mente, à medida que compreende clara e distintamente memória e aplicadas continuamente aos casos particulares podem afetar (Spinoza 5, E IV, P26 dem, p. 293 - 295). De maneira inversa, em continuamente a imaginação e, estando sempre à disposição na experiência virtude da razão significa uma ação da mente em compreender clara e cotidiana, tornam a mente, tanto quanto possível, afastada dos afetos que distintamente. Assim, não apenas a razão está em conformidade com a compõem um impedimento à sua potência. constituição ontológica da mente, mas também com o seu conatus, pois o Seguindo essa orientação, Espinosa deduz, no escólio da “esforço por se conservar nada mais é do que a essência da própria coisa, proposição 10 da quinta parte, o principio de que ódio deve ser combatido a qual, à medida que existe como tal, é concebida como tendo força para com amor em vez de ódio recíproco. Essa noção comum convém para perseverar no existir e para fazer aquilo que se segue, necessariamente, que a razão esteja sempre à disposição dos homens, todas as vezes que se de sua dada natureza” (Spinoza, E IV, P26 dem, p. 293). depararem com um encontro carregado de ódio. Ora, se um conhecimento Da mesma maneira, um impedimento à potência da mente é inadequado poderia conduzir a uma reação de ódio igual ou mais forte uma idéia que, sem o ordenamento próprio da razão, apresenta-se como nesse tipo de situação, com essa noção o homem passa a pensar e a refletir conhecimento inadequado e, assim, contradiz a natureza da mente. Tal sobre as ofensas habituais dos outros e de si mesmo, bem como a maneira contradição tem como efeito a diminuição da potência da mente em e a via pelas quais elas podem ser mais efetivamente rebatidas por meio da fazer aquilo que se segue de sua natureza, isto é, compreender clara e generosidade. Nesse caso ocorre que, no interior da imaginação, a imagem distintamente. Segue-se daí o critério que define se algo é bom ou mau, da ofensa está unida à imaginação dessa regra e, por isso, está sempre à isto é, se algo nos leva efetivamente a compreender ou pode impedir que sua disposição. Espinosa invoca, aqui, a proposição 18 da segunda parte compreendamos. Porém, de que maneira pode-se fazer com que não sejamos da Ética, afirmando que se o corpo humano foi simultaneamente afetado facilmente mobilizados por estes afetos? Como chegamos a alcançar este por dois ou mais corpos, sempre que a mente imaginar um desses corpos, ordenamento e concatenação racionais das afecções do corpo? Com efeito, imediatamente se recordará também dos outros. A associação imaginativa dado que, como afirma a proposição 7 da quinta parte, quando se leva o pode ser, portanto, um mecanismo complementar à razão no que concerne tempo em consideração, isto é, a duração, os afetos que provêm da razão à presença da noção comum ainda que no interior de uma experiência ou que ela suscita são mais potentes do que aqueles que estão referidos da contingência. Em seguida, Espinosa fornece um segundo exemplo e 149 Cadernos Espinosanos XXIII Daniel C. Avila apresenta, sob o princípio da verdadeira utilidade, o bem que se segue como maneiras pelas quais ajuda os outros e se une a eles, porém nem da amizade mútua e da sociedade comum, e que a suprema satisfação do todas elas são de fato reguladas pela razão. O exclusivo ditame da razão ânimo provém do princípio correto de viver, pois a satisfação consigo garante que a proposição 10 se encontre no âmbito do segundo gênero mesmo pode surgir apenas da razão e essa satisfação consigo mesmo é, de conhecimento. A divisão da fortaleza em firmeza e generosidade se dá na realidade, a maior coisa que se pode esperar (Spinoza 5, E IV P52 e pelo contraste entre as ações que têm por objetivo a exclusiva vantagem seu esc, p. 325). do agente e aquelas que têm por objetivo também a vantagem de um outro, Um outro exemplo refere-se ao modo pelo qual “para acabar com respectivamente. E, da mesma maneira, como completa este escólio, “a o medo, é preciso pensar com firmeza, quer dizer, é preciso enumerar temperança, a sobriedade e a coragem diante do perigo, etc., são espécies e imaginar, com freqüência, os perigos da vida e a melhor maneira de de firmeza” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259). evitá-los e superá-los por meio da coragem e da fortaleza” (Spinoza 5, E A razão liberta o homem do medo e da esperança por meio do V, P10, p. 380). Espinosa identifica o pensar com firmeza com a ação de império sobre a fortuna. Ainda que a experiência da acaso, e a conseqüente imaginar perigos e a melhor maneira de evitá-los e superá-los. Para isso paixão pelo possível, tenham causas absolutamente necessárias, trata-se contribuem a coragem (animi praesentia), isto é, a presença ou força de de exercer, tanto quanto se pode, o domínio sobre a contingência. Não se ânimo, e a fortaleza (fortitudine). As definições de presença de ânimo e trata, obviamente, de afirmar que a razão possa exercer um império sobre de fortaleza se encontram na terceira parte da Ética, quando Espinosa a ordem da natureza, mas sim de exercê-lo sobre si mesma, engendrando a remete “todas as ações que se seguem dos afetos que estão relacionados à determinação interna da mente. E Espinosa finaliza o escólio da proposição mente à medida que ela compreende, à fortaleza, que divido em firmeza e 10 concluindo a verdadeira importância do segundo gênero: generosidade” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259). Assim, quando a mente age sob a fortaleza ela é a causa adequada de seus afetos. A fortaleza, assim como a razão, se encontra firmemente apoiada na afirmação do conatus, pois é definida pelo “desejo pelo qual cada um se esforça por conservar seu ser, pelo exclusivo ditame da razão” (Spinoza 5, E III, P59 esc, p. 259). A generosidade, por sua vez, é compreendida como o desejo pelo qual cada ser se esforça, pelo exclusivo ditame da razão, por ajudar os outros e para unir-se a eles por amizade. Chama a atenção o fato de Espinosa empregar de maneira reiterativa a expressão “pelo exclusivo ditame da razão” (ex solo rationis dictamine), como uma modalidade afetiva. De fato, existem diversas maneiras pelas quais o homem se esforça por conservar seu ser, todas elas agrupadas sob o conatus, assim 150 Assim, quem tenta regular seus afetos e apetites exclusivamente por amor à liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas causas, e por encher o ânimo do gáudio que nasce do verdadeiro conhecimento delas e não, absolutamente, por considerar os defeitos dos homens, nem por humilhá-los, nem por se alegrar com uma falsa aparência de liberdade. Quem observar com cuidado essas coisas (na verdade, elas não são difíceis) e praticá-las poderá, em pouco tempo, dirigir a maioria de suas ações sob o comando da razão (Spinoza 5, E V, P10 esc, p, 381) Sendo essas regras seguras de vida pertencentes ao segundo gênero, tem-se que a moderação do medo e da esperança se dá por uma 151 Cadernos Espinosanos XXIII Daniel C. Avila via cognitiva, isto é, pelo uso da razão. Pela disposição freqüente dessas a mesma flutuação da imaginação, e tais coisas seriam consideradas normas comuns, a mente pode se encontrar internamente disposta a contingentes. Espinosa já antecipa no segundo corolário dessa proposição, refletir sobre os medos singulares que se apresentam na vida cotidiana. uma idéia que só encontrará seu pleno desenvolvimento na quinta parte: De fato, como enuncia a proposição 28 dessa parte, o esforço ou o desejo “É da natureza da razão perceber as coisas sob uma certa perspectiva de por conhecer as coisas por meio do terceiro gênero de conhecimento não eternidade” (Spinoza 5, E II, P44 esc, p. 141). pode provir do primeiro, mas, sim, do segundo gênero de conhecimento, É importante notar que o sujeito da cena proposta por Espinosa pois das idéias mutiladas e confusas do primeiro gênero, não se seguem não é um homem, mas uma criança, agente que será retomado mais idéias claras e distintas. tarde como aquele que não tem conhecimento adequado de si mesmo, O conhecimento de segundo gênero demonstra-se, de fato, necessário para que se alcance um terceiro gênero de conhecimento, ao qual Espinosa dá o nome de ciência intuitiva. Trata-se do conhecimento obtido a partir da idéia adequada da essência formal de certos atributos de Deus para chegar ao conhecimento adequado da essência das coisas. Com relação ao tempo, a razão consiste no melhor remédio para moderar os afetos de medo e esperança, pois, segundo o escólio da proposição 44 da segunda parte da Ética, é da natureza da razão considerar as coisas como necessárias, não como contingentes e deve-se exclusivamente à imaginação que as coisas possam ser consideradas, quer com respeito ao passado, quer com respeito ao futuro, como contingentes. Para demonstrar como se processa o mecanismo de associação imaginária, Espinosa propõe a seguinte cena: uma criança que avista Pedro de manhã, Paulo, ao meio-dia, e depois Simão à tarde, se no dia seguinte visse Pedro novamente de manhã, esperaria que Paulo aparecesse novamente ao meio-dia, e Simão à tarde. E, se visse Simão, à tarde, imaginaria que Pedro e Paulo haviam passado durante o dia. Porém, se em lugar de Simão, a mesma criança visse no dia seguinte Jacó passando à tarde, sua imaginação flutuaria entre as idéias dos dois, e consideraria ambos como dois futuros contingentes. E para todas as outras coisas em relação com um tempo passado ou com um tempo presente, haveria 152 de Deus e das coisas. Como os corpos humanos são capazes de muitas coisas, não há dúvida de que podem ser de uma natureza tal que estejam referidos a mentes que tenham um grande conhecimento de si mesmas e de Deus, e cuja maior parte, ou seja, cuja parte principal é eterna, e que, por isso, dificilmente temem a morte (...) E, de fato, aquele que, tal como um bebê ou uma criança, tem um corpo capaz de pouquíssimas coisas e é extremamente dependente das causas exteriores, tem uma mente que, considerada em si mesma, quase não possui consciência de si, nem de Deus, nem das coisas. Em troca, aquele que tem um corpo capaz de muitas coisas, tem uma mente que, considerada em si mesma, possui uma grande consciência de si, de Deus e das coisas (Spinoza 5, E V, P39 esc, p. 407) O esforço do homem no sentido de sua liberdade é o de relacionarse de uma maneira plena com o tempo, isto é, encontrar a eternidade divina a partir da experiência da duração das coisas singulares. Trata-se de um exercício para que o corpo da infância se transforme, tanto quanto o permite a sua natureza e tanto quanto lhe seja conveniente, em um outro corpo, capaz de muitas coisas e referido a uma mente que tenha extrema consciência de si mesma, de Deus e das coisas “de tal maneira que tudo aquilo que esteja referido à sua memória ou à imaginação não 153 Cadernos Espinosanos XXIII tenha, em comparação com o seu intelecto, quase nenhuma importância” (Spinoza 5, E V, P39 esc, p. 407). Mas qual seria esta nova relação com o tempo, pela via da eternidade? Até a quarta parte da Ética, Espinosa define o primeiro e único fundamento da virtude ou do princípio correto de viver como sendo a busca daquilo que é útil para si, segundo o corolário da proposição 22 e a proposição 24 da quarta parte. Porém, na proposição 41 da última parte, ele afirma que mesmo ignorando a eternidade da mente, o homem que se orienta pelo exclusivo ditame da razão chega à mesma conclusão e considera como primordiais todos os afetos referidos à firmeza e à generosidade. O tema da duração da mente, ou a mente considerada sem relação ao corpo, aparece sob a forma de um enigma no texto da Ética ao final do largo escólio da proposição 20 da quinta parte. A explicação do enigma aparece somente na proposição 40, que afirma que a mente tanto mais é perfeita quanto age. Deste modo, a parte da mente que permanece, isto é, que é eterna, é o intelecto, pelo qual o homem exclusivamente age. Por outro lado, a parte da mente que Espinosa demonstra perecer é a própria imaginação, por meio da qual exclusivamente o homem padece. Pois embora a mente não possa imaginar nem se recordar das coisas passadas, senão enquanto dura o corpo, conforme a proposição 21, há uma parte 154 Daniel C. Avila Essa idéia que exprime a essência do corpo sob a perspectiva da eternidade é, como dissemos, um modo definido do pensar, que pertence à essência da mente e que é necessariamente eterno. Não é possível, entretanto, que nos recordemos de ter existido antes do corpo, uma vez que não pode haver, nele, nenhum vestígio dessa existência, e que a eternidade não pode ser definida pelo tempo, nem ter, com este, qualquer relação. Apesar disso sentimos e experimentamos que somos eternos. Com efeito, a mente não sente menos aquelas coisas que ela concebe pela compreensão do que as que ela tem na memória. Pois, aos olhos da mente, com os quais ela vê e observa as coisas, são as próprias demonstrações. Assim, embora não nos recordemos de ter existido antes do corpo, sentimos, entretanto, que a nossa mente, enquanto envolve a essência do corpo sob a perspectiva da eternidade, é eterna, e que esta existência da nossa mente não pode ser definida pelo tempo, ou seja, não pode ser explicada pela duração. Portanto, pode-se dizer que a nossa mente dura e que a sua existência pode ser definida por um tempo preciso apenas à medida que envolve a existência atual do corpo; e, apenas sob essa condição, ela tem o poder de determinar a existência das coisas pelo tempo e de concebê-las segundo a duração (Spinoza 5, E V, P23 esc, p. 391) sua que não é destruída quando o corpo perece e, segundo o escólio da A permanência de uma parte da alma resolve o aparente preposição 40, “fica evidente que a nossa mente, à medida que compreende, problema de um modo finito ser eterno. Mais ainda, lança as bases de é um modo eterno do pensar” (Spinoza 5, E V, P40 esc, p. 407). um aprendizado ético contra o medo, por meio de uma educação da Espinosa não atribui à mente humana, portanto, nenhuma imaginação. A compreensão verdadeira e livre do tempo na filosofia de duração possível de ser definida pelo tempo senão enquanto exprime a Espinosa não está, como vimos, no presente, mas no seio da eternidade. idéia atual do corpo, isto é, enquanto dura o corpo. Porém, dado que Contudo, para alcançar essa relação plena com a dimensão temporal, a a expressão da essência do corpo na mente é concebida pelo próprio mente necessita tornar-se, tanto quanto possível, internamente disposta. intelecto de Deus, essa expressão é algo que pertence à essência da mente A condição de existência desse movimento afetivo e cognitivo, contudo, e é necessariamente eterno. não se limita ao seguimento de regras e princípios de vida que estimulem 155 Cadernos Espinosanos XXIII Daniel C. Avila a razão como um exercício do desejo para além da duração, do medo Imagination: between fear and freedom e da esperança. É o próprio exercício da potência de pensar, livre dos impedimentos que lhe constituem as idéias inadequadas e os afetos passivos, que permite à mente conceber o corpo, Deus e as coisas sob a perspectiva da eternidade. Pois, quando internamente disposta, a mente considera os demais modos como estritamente necessários, ao passo que quando é afetada pelo medo e pela esperança vincula-se à imaginação da contingência temporal do passado e do futuro. Restaria agora perguntar-nos qual seria a relação mantida pelo homem, plenamente orientado pela razão, com o medo e a esperança. Abstract: Fear and hope appear in the history of Philosophy as problems located in temporal dimension of existence. Espinosa follows this tradition, as well as the use Philosophy as a medicina animi, but sets apart for himself some differences. Giving prominence to the role of image in fear and hope constitution, he delimits the way by which these affects are necessarily produced by the limitation of imagination to body duration. However, when freed of the impediments to its potency, the mind is able to ordinate and concatenate body affections, considering itself without relation to the body, under a new perspective. Fear problem treatment, therefore, is not in present time, but in eternity. Keywords: Benedictus de Espinosa, hope, fear, imagination, freedom. Ora, sabemos que o medo é e sempre será uma paixão, isto é, tem e terá causas externas necessárias. Além disso, tendo uma origem externa, o medo não nasce da ignorância nem é suprimido pelo saber da verdade, o que poderíamos também dizer da esperança. Suas causas necessárias decorrem da própria constituição finita do homem, desde sempre rodeado e envolvido por outras partes da natureza, cuja potência de longe supera a do seu conatus e, assim, constantemente o amedrontam e conduzem a imaginar formas de evitar a sua própria aniquilação. O certo é que um aprendizado ético de forma alguma se dirige à anulação desses afetos, assim como a ciência intuitiva não elimina o conhecimento de outros gêneros. Trata-se de um esforço para que a mente mantenha uma maior parte internamente determinada e guiada à eternidade comparada àquela cuja determinação é externa e acompanhada da impotência cognitiva, efeito da imaginação orientada à transcendência. Afinal, o que podemos esperar de uma compreensão livre e verdadeira do tempo, senão a fortaleza para enfrentar e conhecer nossos verdadeiros medos e esperanças? 156 Referências bibliográficas: 1. CHAUI, M. Espinosa: poder e liberdade. Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/ filopolmpt/06_chaui.pdf 2. . Imperium ou moderatio? Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 12, n. 1-2, p. 9-43, jan.-dez. 2002. 3. . O fim da metafísica do possível: Espinosa e a ontologia do necessário. Anotações para aula de Pós-Graduação em Filosofia. Universidade de São Paulo, 2009 4. SÊNECA, L. A. Letters from a Stoic: Epistulae morales ad Lucilium. Penguin Classics: Londres, 1969. 5. SPINOZA, B. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Autêntica: Belo Horizonte, 2008. 157 O DIREITO À VIDA NOS ELEMENTOS DA LEI NATURAL E POLÍTICA DE HOBBES Rogério Silva de Magalhães* Resumo: Este artigo visa examinar os limites da liberdade de ação do homem, isto é, de seu direito natural, levando-se em consideração a finalidade última desse direito nos Elementos da lei natural e política de Hobbes. Essa finalidade seria a auto-preservação do homem. Entretanto, para que esse direito seja efetivamente respeitado, Hobbes alega ser necessário a constituição de um poder soberano. Não basta assim uma simples convenção entre os homens para garantir a paz. Ou seja, se faz necessário a existência de uma ordem política regida por um poder soberano absoluto para que a preservação da vida tenha efeito jurídico. Hobbes entende que somente o estado civil é o único capaz de estabelecer as condições efetivas para que esse objetivo seja atingido. Palavras-chave: poder soberano, auto-preservação, direito natural, estado civil, liberdade. 1. Introdução Ao longo da história da filosofia, o pensamento filosófico-político e jurídico de Hobbes foi alvo das críticas mais vorazes possíveis, talvez perdendo somente para Maquiavel. Em seu Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, Ribeiro afirma que, após Maquiavel, Hobbes teria assumido o posto de pensador maldito da modernidade. O hobbista sucedeu ao maquiavélico – na galeria que mais tarde incluiria o niilista – num imaginário corrente que associa uma filosofia à perversão, mostrando a que vilanias leva a razão desassistida da autoridade religiosa, o pensamento sem a Igreja; designando-se como ateu um * Mestrando em filosofia na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e bolsista CAPES. 159 Cadernos Espinosanos XXIII pensamento que é leigo não por rejeitar Deus, mas por libertar-se da instituição eclesiástica (Ribeiro 7, p. 50). Ora sob a injusta alcunha de pensador ateu1, ora rotulado como defensor desprezível do despotismo2, o fato é que, uma análise sóbria e, portanto, menos superficial, nos mostra que o pensamento hobbesiano está comprometido com a produção de uma reflexão sólida e científica baseada na experiência política e jurídica de sua época, a qual pode ser atestada nas duas partes que compõem Os elementos da lei natural e política. Isso significa que o pensamento de Hobbes pode ser considerado um retrato qualitativo dos conflitos e medos da modernidade, mas, trata-se, sobretudo, da construção de uma ciência da arte política. De fato, Hobbes deduz sua teoria política de suas observações científicas acerca da natureza humana. Mas o que realmente parece ter atraído a ira de seus detratores foi a proposta de gerenciamento da sensualidade e da ambição de bens e prestígio sugerida por Hobbes quando da instituição do poder soberano. O filósofo inglês estava completamente ciente da impossibilidade de se extinguir a natureza desejante do homem. Não era essa, portanto, a sua intenção ao escrever Os elementos da lei natural e política. Pelo contrário, essa natureza é necessária para a nossa existência porque o desejo é o que concede movimento à vida. Para Hobbes, não há assim homens no mundo que não sejam dotados de natureza desejante, pois, esta é a força motriz que impele o homem em direção a um determinado objeto que pode lhe proporcionar prazer. Isso pode ser atestado pela seguinte passagem: Existem duas espécies de prazer, dos quais um parece afetar o órgão corpóreo da sensação, e que eu chamo de sensual (sensual). O seu papel principal é fazer com que através dele sejamos incitados a perpetuar nossa espécie, e o secundário é aquele pelo qual o homem é incitado à 160 Rogério Silva de Magalhães carne, para a preservação da sua pessoa individual. A outra espécie de deleite não é particular a nenhuma parte do corpo, e recebe o nome de deleite da mente, aquele deleite a que denominamos alegria (joy) (Hobbes 3, p. 50). Ou seja, é natural que o homem aspire obter glória porque esta lhe proporciona prazer, porém, desde que esta seja fundada em uma imagem adequada de si. Caso contrário, ela é vã glória e, como veremos mais adiante em profundidade, pode desencadear um estado beligerante. Diz Hobbes: Além disso, a ficção (que também é imaginação) das ações realizadas por nós, mas que nunca realizamos, é glorificação; mas porque ela não gera apetite nem ímpeto para qualquer tentativa futura, ela é meramente vã e inútil; como quando um homem imagina a si mesmo realizando as ações que leu em algum romance, ou sendo como algum outro homem cujos atos ele admira. [...]. Os sinais da vã glória nos gestos são a imitação de outrem, o falsearem seu interesse por coisas que não compreendem, a afetação do vestuário, a busca da honra a partir dos seus sonhos e outras historietas sobre si mesmos, sua terra natal, seus nomes e coisas afins (Ibid., p. 58). É absolutamente natural que o homem busque a satisfação de seus interesses. Hobbes não nega ou sugere, portanto, que o homem iniba, ou melhor dizendo, extingua sua natureza desejante. Em seu estado natural, Hobbes alega que o homem tem direito a tudo que lhe apraz, mas, sobretudo, tem direito a tudo aquilo que julgar necessário para a sua conservação. “Todo homem tem por natureza direito a todas as coisas, ou seja, a fazer qualquer coisa que lhe apraz e a quem lhe apraz, a possuir, a utilizar e usufruir todas as coisas que quiser e puder” (Ibid., p. 95). Vemos assim que o desejo é a medida do movimento humano em direção a algo. 161 Cadernos Espinosanos XXIII Se compararmos a vida do homem com uma corrida – na qual, embora ele não possa ocupar todas as posições, pode porém manter-se nela à caça dos seus propósitos -, poderemos tanto constatar quanto recordar quase todas as paixões mencionadas anteriormente. Mas devemos entender que essa corrida não tem nenhum outro objetivo ou outro prêmio além de nos mantermos em primeiro lugar, [...] (Ibid., p. 67). 2. Estado de natureza e o conflito entre os homens Rogério Silva de Magalhães O estado dos homens em sua liberdade natural é o estado de guerra (Ibid., p. 96). Embora todos os homens sejam iguais por natureza3, segue que tomados pelas paixões, tais como, o medo, a competição e a glória, os homens entram freqüentemente em atrito uns com os outros. Sem saber o que se passa na mente do outro e com o intuito de preservar a si mesmo e seus direitos, o homem concebe uma imagem ameaçadora do outro. O homem vive assim em constante pavor de ser atacado por outros, isto é, vive em função de um medo expectado, o qual não é, desse modo, presente. “Mas com respeito ao desprazer expectado, chama-se medo É justamente esse o ponto nevrálgico da filosofia hobbesiana, (fear)” (Hobbes 3, p. 48). Ocorre que, por intermédio da sensação de isto é, o estado de natureza. Se, em um primeiro momento, por natureza, medo, o homem conjectura uma imagem futura desagradável de sua Hobbes concebe que todos possuem direito a tudo que julgam necessário própria condição em relação ao outro. para a sua preservação, em um outro, diante desse cenário de conflito em potência, Hobbes procura entender como o homem pode atingir sua finalidade última de auto-preservação. Na medida em que o direito a tudo está distribuído entre todos, os homens tendem a entrar em conflito no momento da satisfação de seus desejos. Todos são uma ameaça constante aos outros. O direito natural A concepção do futuro nada mais é que uma suposição do mesmo, proveniente da recordação do que é passado; e nós somos capazes de conceber que alguma coisa irá acontecer daqui por diante somente à medida que sabemos que existe algo no presente que tem a potência de produzi-la (Ibid., p. 53). não nos impede de realizar nada que almejamos, a não ser aquilo que não podemos realizar por conta da nossa impotência. Todo o resto é legítimo. O ponto fundamental está na produção de uma imagem distorcida Esse seria o retrato do célebre estado de guerra hobbesiano onde um tenta da potência de si e daquilo que o outro faz ou irá fazer que possa, de dominar o outro. Esse estado é assim por ele apresentado: alguma forma, afetar a honra do homem, sem base alguma no real. O Considerando então a ofensividade da natureza dos homens uns com os outros, deve-se acrescentar um direito de todos os homens a todas as coisas, segundo o qual um homem invade com direito, e outro homem com direito resiste, e os homens vivem assim em perpétua difidência, e estudam como devem se preocupar uns com os outros. 162 conflito surge assim como resultado das distintas crenças (beliefs) sobre a própria potência e, por conseqüência, a respeito dos meios que podem ser empregados para a auto-preservação. O apego a essa imagem inadequada da própria potência constitui um perigo para a preservação do homem4. 163 Cadernos Espinosanos XXIII Ele imagina ter um poder, imagina ser respeitado – ou ofendido – pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer. [...]. O estado de natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem) poderoso, perseguido, traído (Ribeiro 8, p. 59). Antes de prosseguirmos, a essa altura, talvez não seja nenhum exagero dizer que o pensamento filosófico de Hobbes esteja engajado não só em uma reflexão consistente sobre o choque de interesses individuais, mas, também uma reflexão a respeito do choque de crenças envolvendo a efetiva extensão da própria potência. Diante desse cenário, resulta que os homens concebem que é mais razoável atacar o outro preventivamente a fim de garantir que as suas naturezas desejantes não sejam tolhidas na busca da satisfação de seus interesses. Nas palavras de Ribeiro: Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante – eu não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é forçado a supor o que farei. Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens (Ibid., p. 55). Desse modo, a princípio, poderia parecer que o homem hobbesiano possui uma propensão natural para fazer o mal ao outro sem causa aparente ou somente pelo desejo de provar que a potência de um é superior à do outro. Contudo, como podemos perceber até o dado momento, não é tão simples assim. A idéia que subjaz o pensamento hobbesiano é a de garantir a 164 Rogério Silva de Magalhães auto-preservação porque o outro representa uma ameaça à minha potência. “Os homens, segundo o relato de Hobbes, não desejam prejudicar outros homens pelo prazer de prejudicá-los; eles desejam ter poder sobre eles, é verdade, mas poder somente para assegurar a sua própria preservação” (Tuck 11, p. 65 - nossa tradução).5 É importante deixar claro que esse estado conflituoso retratado na filosofia de Hobbes não é necessariamente histórico e, por conseqüência, datado, isto é, preso a um determinado tempo e espaço. Esse estado de natureza poderia ser considerado hipotético e, dessa forma, pode-se dizer que seria utilizado por Hobbes como um mero recurso metodológico para explicar o constante estado de atrito entre os homens, mas é um pouco mais do que isso porque esse estado não é irreal, isto é, pura ficção da mente.6 3. A origem do corpo político e a constituição do poder soberano Baseado na experiência7, Hobbes nota que esse estado não é extinto quando da constituição do estado civil. Isso significa que o estado de natureza hobbesiano se encontra, de certo modo, presente no estado civil. O homem do estado de natureza é o mesmo do da sociedade. “[...]: o homem natural de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a vida social” (Ribeiro 8, p. 54). A natureza apetitosa do homem, a qual se encontra em constante busca de prazer, não se extingue assim no estado civil. Ela é somente ordenada, pois o homem abdica da liberdade de subjugar e matar o outro para se preservar. “[...] para Hobbes o conceito de natureza se divide em direito e lei – por ela pode cada homem lutar pela vida, contra todos, mas também deve procurar a paz, renunciando à plena liberdade de guerrear e matar” (Ribeiro 7, p. 25). Se o estado de natureza é composto 165 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães de instabilidade, de conflito, em suma, se sua característica principal é a Sendo assim, em busca da paz que permitiria a realização da insegurança, e, embora o homem possua liberdade de potência para agir felicidade de cada um, os homens concorrem racionalmente para a como lhe aprouver para garantir seus direitos, ocorre que ele pode não submissão às leis de natureza.8 Trata-se de regras engendradas pela razão. conseguir resistir às investidas do outro. Nesse ponto, surge uma questão: O homem se vê obrigado a obedecê-las por conta de seus elementos como sair desse estado lastimável de total insegurança? racionais se realmente desejar a sua conservação. É pela lei, isto é, por Para Hobbes, não é racional que o homem deseje viver um ordenamento racional da ação que o homem se aproxima da paz. Eis permanentemente nesse caos. Nenhum homem pode racionalmente aspirar a importância da paz no pensamento político-jurídico de Hobbes. A lei viver nesse constante estado de incerteza em relação à própria existência, natural fundamental, prescrita pela razão, diz que o homem deve buscar a pois “o direito de natureza é tão pleno que não comporta infração” (Ibid., paz. Vale lembrar que essa lei não é fruto simplesmente de uma naturalis p. 87). Nesse estado natural, é lícito ao homem empregar os meios que ratio, mas, de um raciocínio. E a paz serve para atender a um fim último: julgar necessário para se preservar, incluindo, a prática de crimes, pois a vida. “O objetivo da paz, para Hobbes, é extraído do estudo positivo da não há transgressão a lei alguma. Ora, viver no estado de natureza porque natureza humana, o qual mostra que o homem, dominado pelo instinto acredita-se aí ter liberdade para exercer plenamente todos os seus direitos de conservação, considera a vida como o valor supremo” (Bobbio 1, p. em vista de seu próprio bem constitui um atentado contra si na medida 106). A razão deve orientar o homem para que este alcance aquilo que em que os homens se tornam adversários na tentativa de consumação de lhe causa prazer. Porém, esse prazer só pode ser atingido se o homem não seus desejos. Por isso, para o filósofo inglês, o estado de natureza não é o correr risco algum de morte. Para Hobbes, a felicidade do homem pode ser mais apropriado para se adquirir todos os bens almejados para a própria obtida, então, pelo cálculo. conservação. Antes, notamos a visão que Hobbes nos apresenta do homem no estado de natureza. É ainda importante ressaltar que o estado de natureza é o homem sem a lei civil, mas não sem desejos. E contra o desejo de se viver nesse estado, Hobbes escreve: [...], aquele portanto que deseja viver num estado tal como é o estado de liberdade e direitos de todos sobre tudo (all to all), contradiz a si mesmo. Pois todo homem, pela necessidade natural, deseja o seu próprio bem, ao qual aquele estado é contrário, no qual supomos haver disputa entre os homens que por natureza são iguais e aptos a se destruírem uns aos outros (Hobbes 3, p. 96). A razão não é menos da natureza humana do que a paixão, e ela é a mesma em todos os homens, porque todos os homens concordam na vontade de serem dirigidos e governados no caminho para aquilo que eles desejam alcançar, a saber, o seu próprio bem, o qual é obra da razão. Não pode haver, portanto, outra lei de natureza além da razão, nem outros preceitos da lei natural (natural law) do que aqueles que declaram para nós os caminhos para a paz onde esta pode ser obtida, e os caminhos para a defesa onde não se puder obtê-la (Hobbes 3, p. 100). Esse é o primeiro passo para que os homens possam gozar das benesses da paz. Reconhecer racionalmente que viver em um estado onde 166 167 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães impera a ausência de lei e, por conseguinte, onde a felicidade é algo incerto A convenção em si não é, então, suficiente para garantir a paz, isto é o primeiro passo jurídico em direção à constituição de um corpo político é, não é suficiente para evitar a desconfiança mútua entre os homens. Para ou comunidade (Commonwealth). impedir efetivamente que haja risco do surgimento de um estado de guerra novamente, Hobbes concebe a instituição de um poder comum capaz de Assim se constitui um corpo político, ou comunidade (ou Commonwealth), definido pela presença dessa força de um novo tipo, incomparavelmente mais poderosa do que qualquer outra força individual, orientada no sentido do bem público, towards a more contented life, e inteiramente submetida à autoridade de um homem ou de uma assembléia, o soberano (Polin 6, p. 115). Nesse estágio, os homens em conjunto estabelecem uma convenção onde se obrigam a respeitar essas leis. “[...] a concórdia entre os homens é artificial, e se dá pelo caminho da convenção” (Hobbes 3, p. 130). Entretanto, Hobbes está ciente de que essa convenção pode não ser duradoura porque um homem ou um grupo de homens pode voltar a infringir qualquer uma das leis conduzindo todos ao temido estado de guerra de uns contra os outros (bellum omnium contra omnes). Conforme manter as partes unidas que constituem um corpo político. É esse poder que Hobbes sublinha ao dizer: Portanto, mantém-se ainda que o consenso, pelo qual eu entendo a concorrência da vontade de muitos homens para uma ação, não é segurança suficiente para a sua paz comum, sem que se levante algum poder comum, por cujo temor eles possam ser compelidos tanto a manter a paz entre eles quanto a reunir suas forças conjuntamente contra um inimigo comum. E que isso pode ser feito, não existe maneira imaginável senão unicamente pela união, que é definida – no capítulo XII, seção 8 – como sendo o envolvimento ou a inclusão das vontades de muitos na vontade de um homem, ou na vontade da maioria numa quantidade de homens, ou seja, na vontade de um homem, ou de um conselho (council) (Hobbes 3, p. 130-131). vimos nas páginas anteriores, a competição, o medo e a glória são as fontes de conflito entre os homens. É importante ter essa idéia em mente Por intermédio de um acordo de vontades, os homens transferem porque ela é o fundamento central da construção do edifício político no seus direitos individuais de se protegerem a um homem ou a uma pensamento hobbesiano. Essas causas fornecem a justificativa racional assembléia. Pelo pacto, o soberano passa assim a ter a obrigação de proteger para a constituição de um corpo político. seus súditos. Com efeito, no ato da transferência, é justamente isso que os súditos esperam do soberano. A esse respeito, Hobbes nos diz o seguinte: A pressão combinada de competição, medo e glória leva à guerra de todos contra todos, e a uma vida de pobreza, solidão, desagradável, bruta e curta. Para escapar dessa condição, os homens devem erigir instituições que façam cumprir as normas de conduta que garantam a paz (Ryan 9, p. 222). 168 O fim pelo qual um homem outorga ou transfere para outro, ou outros, o direito de proteger e defender a si mesmo por intermédio de sua própria capacidade, é a proteção que ele, através dessa transferência, espera para ser protegido e defendido daqueles a quem ele transferiu o direito (Ibid., p. 136). 169 Cadernos Espinosanos XXIII Desse modo, o poder soberano passa a ter poder político e jurídico, pois não só conta com o respaldo da vontade geral, mas com o direito de estabelecer leis que possam garantir a segurança dos súditos na república. Uma socialização administrada por um poder comum pavimenta o caminho para a paz. Esta última torna-se pré-condição para a realização do desejo de cada homem. [...], pertence também ao julgamento do mesmo poder soberano publicar e tornar conhecida a medida comum pela qual todo homem deve saber o que é seu e o que é de outrem, o que é bom e o que é mau, o que ele está obrigado a fazer e o que não está, e ordenar que o mesmo seja observado. Estas medidas das ações dos súditos são aquelas que os homens chamam de leis políticas ou civis (laws politic, or civil). A elaboração destas deve, de direito, caber àquele que tem o poder da espada, pelo qual os homens são compelidos a observá-las, pois, de outra forma, elas teriam sido elaboradas em vão (Ibid., p. 138). Todavia, para que esse poder seja eficiente, Hobbes estabelece que ele seja absoluto. Como vimos anteriormente, ao longo da história da filosofia, Hobbes foi taxado de defensor do despotismo por defender a teoria do poder absoluto. Contudo, a soberania absoluta hobbesiana não significa necessariamente dizer que o filósofo exija que o poder soberano seja déspota. O pensamento hobbesiano não é assim do despotismo (à Montesquieu) nem só do absolutismo (à Luís XIV), é da soberania: reconhecer, no interior do corpo político, um poder soberano perante o qual nenhum privilégio localizado, nenhum direito adquirido subsista; fundar tal 170 Rogério Silva de Magalhães poder na representação, fazendo este foco central haurir dos súditos a sua força (Ribeiro 7, p. 53). Há um motivo para que o poder soberano seja supremo na república. De modo a garantir a realização do fim último para o qual ele foi constituído, o poder soberano não pode ser divisível. “[...] - a soberania é indivisível” (Hobbes 3, p. 141). E esse poder soberano absoluto também não pode estar subordinado a uma outra autoridade, seja ela civil ou não. Caso contrário, não só não seria soberano como também poderia ser constantemente coagido a não realizar a sua função primordial: garantir a segurança dos súditos e manter, por conseqüência, a paz na república. “E assim em nenhum caso pode o poder soberano de uma república estar sujeito a uma autoridade eclesiástica, além daquela do próprio Cristo” (Ibid., p. 194). 4. O poder absoluto do soberano e o direito dos súditos O percurso realizado até o momento permite-nos compreender como surge a figura do soberano no pensamento hobbesiano. Apesar de absoluto, sua função não é de se preocupar somente consigo mesmo. Pelo contrário, o soberano deve prioritariamente se preocupar e fazer, portanto, de tudo pelos súditos e, conseqüentemente, isso se reverterá em um bem para ele também. “[...] há para os soberanos esta lei geral, que eles obtenham, para o máximo do seu empenho, o bem do povo” (Ibid., p. 206). Nos Elementos da lei, haveria, então, uma lei que regeria o poder pleno do soberano. A esse respeito, Ribeiro nos diz o seguinte: “O soberano representante age em nome dos súditos, não por amor a eles; por isso não é um estrato a mais na sociedade, mas o soberano; [...]” (Ribeiro 7, p. 46).9 Sendo assim, contrariamente ao que se possa pensar, o homem 171 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães não tem menos direito no estado civil do que no estado de natureza. Nos Elementos da lei, Hobbes insiste nesse ponto, pois a escolha de um soberano, ou seja, de um poder supremo que vigie o curso de nossas Mais adiante, no mesmo capítulo dos Elementos, Hobbes acrescenta o seguinte: ações em uma república, não implica no fim dos direitos dos súditos, tais como, o direito à vida. Ao propor o poder soberano absoluto, Hobbes não visa estabelecer a paz às custas do sacrifício dos direitos naturais dos homens. É importante ter em mente que não é pela força que o poder soberano surge, mas pelo consentimento. Em outras palavras, é a vontade de ter segurança que propicia o surgimento do poder soberano. Ao abdicar de sua liberdade de exercer a sua potência de agir como desejar para se preservar e obter assim o que desejar para atingir esse objetivo, Hobbes nega que o súdito esteja abdicando do seu direito à vida, da possibilidade de acumular riquezas e do direito à propriedade. Pelo contrário, a instituição do poder soberano teria como meta viabilizar a realização desses direitos com o mínimo de atrito possível entre os homens. De fato, escreve ele: A comodidade da vida consiste em liberdade e riqueza. Por liberdade eu quero dizer que não existe proibição sem necessidade de alguma coisa para um homem, que seria legítimo para ele na lei de natureza; ou seja, que não existe restrição da liberdade natural, senão naquilo que é necessário para o bem da república, e que os homens bem intencionados possam não cair no perigo das leis, como em armadilhas, antes que sejam alertados. Diz respeito também a esta liberdade que um homem possa ter uma passagem cômoda de um lugar a outro, e não ser aprisionado ou confinado com a dificuldade de caminhos e falta de meios para transporte de coisas necessárias. Quanto à riqueza do povo, ela consiste em três coisas, a boa ordenação do tráfico, a obtenção de trabalho, e a proibição de consumo supérfluo (Hobbes 3, p. 207). 172 [...] é necessário estipular para cada súdito a sua propriedade e terras e bens distintos, sobre os quais ele pode exercer e receber os benefícios da sua própria indústria, e sem os quais os homens discutiriam entre si, como fizeram os pastores de Abraão e Ló, cada um deles se aproveitando e usurpando tanto quanto podiam do benefício comum, tendendo assim à disputa e à sedição (Ibid., p. 207-208). Nota-se assim que quando da criação do poder soberano, o súdito não perde o seu direito à alimentação, à propriedade, ao trabalho, em suma, à vida. O súdito não fica assim à completa mercê do soberano no sentido de que ele possa sem justa causa impedi-lo de obter o necessário para a sua subsistência. Embora possa teoricamente fazê-lo, essa atitude seria insana porque o direito à vida é um valor inalienável e, por essa razão, o estado de guerra poderia ressurgir a qualquer momento na medida em que o súdito buscar reaver sua liberdade com o intuito de lutar por sua conservação. “A vida é valor supremo e incondicionado: [...]” (Ribeiro 7, p. 93). Esse poder soberano não é, portanto, pura força bruta. O soberano deve agir pautado por princípios razoáveis com a finalidade de garantir a segurança, principalmente, a dos súditos. Em qualquer situação, é preciso respeitar o direito à vida. “É do apetite de cada corpo a preservar-se que decorre o direito de todo homem a manter sua vida” (Ibid., p. 114). Portanto, dentre todos os bens, o mais importante que o soberano pode oferecer aos súditos é a segurança. “A causa em geral que move um homem a se tornar súdito de outro é (como eu já disse) o medo de não preservar a si mesmo por outros meios” (Hobbes 3, p. 132). Em seu Hobbes: a very short introduction, Tuck aponta: 173 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães O nosso único direito que o soberano possui, ou que ele exerce em nosso nome, é o direito de considerar quais os meios necessários para a nossa sobrevivência, e o de introduzir qualquer programa que vá além das necessidades de sobrevivência física (Tuck 11, p. 83 – nossa tradução).10 5. Controvérsias em torno da figura do poder absoluto do soberano e a liberdade dos súditos Não só porque os súditos carecem desse bem no estado de possui direito real à propriedade, pois, esta é delegada pelo poder soberano. natureza, isto é, de tranqüilidade por viverem em constante ameaça de Dentre as críticas que poderiam ser feitas à teoria política do poder soberano de Hobbes, poderia objetar-se que o súdito hobbesiano não Todavia, como vimos no capítulo IX da segunda parte dos Elementos da lei extermínio, mas também porque, a partir da segurança do estado civil, é natural e política, Hobbes não deixa de reconhecer o direito à propriedade, criada condições básicas para que o súdito possa satisfazer o seu desejo de mas, para evitar controvérsias entre os súditos, ele sugere a intervenção do glória desde que este não constitua nenhuma ameaça ao poder soberano. poder soberano na partilha de terras. Por outro lado, se alargarmos a nossa Sendo assim, o homem possui a liberdade para agir desde que seja nos compreensão do conceito de propriedade para além do campo dos bens limites da sujeição política e jurídica ao poder soberano. O estado civil materiais e vinculá-lo ao sentimento de pertença daquilo que é mais íntimo garante uma disputa mais civilizada para a fruição dos bens que os homens e vital ao homem, propriedade seria aquilo que é permitido ao homem almejam para serem felizes. fazer, isto é, definiria a linha limítrofe de seu agir. Os homens não querem apenas viver – mas viver bem. Não os levou à sociedade só o medo da morte, mas também a esperança de conforto; e, afastados o homicídio e a fome, expande-se o seu desejo, almejando mais e mais. Sendo incondicionado o direito à vida, deve o soberano respeitar a natureza insaciável dessa matéria humana: por mais que os artífices de uma república cuidem de instruir os cidadãos em seus deveres, de prevenir as seduções, resta que cada homem é movido por um apetite infinito. [...]. A questão não é condenar o conatus sem fim, mas agenciá-lo mecanicamente (as imagens da máquina e do autômato), de modo que os apetites inesgotáveis não mais se destruam (Ribeiro 7, p. 117-118). A propriedade se conceitua, no século XVII, de maneiras diferentes da nossa. [...]. No Seiscentos, porém, o conceito é mais abrangente: para Locke também inclui vida, liberdade e estates de um homem. Hobbes, que tampouco limita a propriedade aos bens, vincula-a à Justiça, e portanto a todas as ações que são próprias de um homem, àquelas que é direito seu (e, talvez, exclusivamente seu) praticar: designa assim o agir do homem, a dimensão em que é lícito o seu fazer (Ibid., p. 81). É também equivocada a idéia de que a sujeição ao poder soberano constitui uma escravidão. Hobbes rejeita essa idéia porque ela é fruto da imaginação. Os homens que assim pensam acreditam que um poder misto é melhor do que um indivisível. “A divisão, portanto, da soberania não realiza efeito algum na supressão da simples sujeição ou introduz a guerra, na qual a espada particular outra vez tem lugar” (Hobbes 3, p. 140-141). 174 175 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães Para Hobbes, essa divisão de poderes independente do poder soberano (uma 186). Admitindo a ineficácia das leis contra o que se passa na mente dos assembléia para elaborar leis, uma para a judicatura e uma para administrá- súditos, Hobbes propõe um controle sobre as ações dos homens porque las) leva os homens à sedição. Assim, a instituição de um poder soberano as ações são regidas pelas opiniões. “Quanto às ações dos homens que não constitui inconveniente algum para o súdito, a não ser em sua mente. procedem de suas consciências, a regulação de tais ações é o único “Os inconvenientes do governo em geral para um súdito não existem, se instrumento para a paz, [...]” (Ibid., p. 175). Porém, por outro lado, desde bem considerados, senão em aparência” (Ibid., p. 167). que as opiniões e ações não venham a colidir com as determinações do Além desses dois expostos acima, há outros motivos pelos quais poder soberano, inclusive as religiosas, o homem possui uma margem alguns súditos podem crer que haja uma coibição de seus direitos e liberdade de liberdade para a especulação. “As consciências especulem, desde que com a instauração de um poder soberano. O primeiro reside na religião. A sábias – isto é, que não queiram interferir na soberania” (Ribeiro 7, p. discórdia entre súdito e soberano oriunda da religião surge normalmente 46). Não se trata, portanto, de um controle arbitrário para evitar somente entre aqueles que exigem liberdade de consciência. injúrias contra o soberano, mas também para evitar as dissenções entre Essa dificuldade, portanto, permanece em meio àqueles cristãos (e perturba apenas a eles), a quem é permitido tomar como o sentido da Escritura aquilo que eles fazem a partir dela, seja por sua própria interpretação particular, seja por uma interpretação tal como as que podem ser colocadas pela autoridade pública. Aqueles que seguem continuamente a sua própria interpretação pedem pela liberdade de consciência; [...] (Ibid., p. 174-175). Hobbes defende o argumento de que o súdito não tem motivo para se rebelar contra o poder soberano por causa de religião. Os preceitos fundamentais da religião não constituem empecilho algum para os homens. Lembremos que o que Hobbes deseja evitar é o estado de guerra entre os homens, isto é, um estado onde a autoridade política seria inexistente e onde não haveria a necessidade de se cumprir a lei. Nesse sentido, para Hobbes, não há nada que possa justificar a sedição no corpo político.11 Contra essas ameaças, Polin argumenta: A sedição é a doença ou o vício do corpo social. Não há justificativa possível: não há rebelião legítima nem em nome da religião, nem em nome da consciência, nem em nome da justiça. A ameaça de revolta, a presença virtual de forças rebeldes não devem então contar no cálculo do equilíbrio político (Polin 6, p. 124). que o súdito respeite e se submeta ao poder soberano. Pela experiência, Hobbes sabe que aqueles que contestam o poder soberano alegando a necessidade de liberdade de pensamento dificilmente se contentam em somente utilizar a mente como desejarem no âmbito privado. Ademais, a atividade da mente não se restringe ao campo mental. “Mas a verdade é evidente, pela experiência contínua, de que os homens buscam não apenas a liberdade de consciência, mas de suas ações; [...]” (Ibid., p. 176 6. Considerações finais Para completar a nossa exposição, é preciso ainda dizer que o limite da liberdade da potência de agir do homem em prol do seu bem-estar esbarra no respeito ao poder soberano e às leis estabelecidas. A individualidade do súdito se realiza assim a partir do poder soberano. Ao assegurar o direito à 177 Cadernos Espinosanos XXIII segurança e bem-estar na república, o súdito passa a gozar de liberdade para atingir seus objetivos porque agora se encontra livre dos perigos eminentes do estado de guerra. Ou seja, na esfera privada, o homem tem o direito de agir livremente, porém, dentro das regras do poder público. O direito natural máximo de preservação da própria vida é mantido quando da instituição do poder soberano. É somente como parte componente de um corpo político que o homem tem, de fato, a sua vida garantida. Vemos assim que Hobbes tinha sensibilidade para perceber que, para garantir a preservação da vida dos súditos, é preciso unidade política, pois sem essa unidade, não seria possível haver paz suficiente que pudesse garantir o direito natural maior do homem que é a conservação da própria vida. No entanto, é digno de nota que esse direito deixa de ser natural para se tornar civil quando da instituição do poder soberano. Desse modo, o direito à vida ganha força para ser cumprido porque agora há um poder soberano. De fato, a preservação da vida parece ser o ponto de intersecção entre direito e lei natural no pensamento filosófico de Hobbes. Vemos que a lei de natureza é o que a razão mostra como a conduta mais adequada para a preservação do homem. E o poder soberano nasce para garantir que a vida esteja em primeiro lugar, pois a experiência mostra que sem obediência a esse poder não há ordem política e, por conseguinte, o soberano fica impedido de cumprir sua obrigação que é a garantia do direito à vida. Com o surgimento do poder soberano, aquilo que era um ditame para a razão do homem, isto é, preservar-se, assume o status de civil. Nesse exato momento, aquilo que dependia somente da potência racional do homem ganha caráter jurídico, isto é, as leis de natureza se tornam civis. Para Hobbes, o fato de que as leis naturais obrigam apenas em consciência significa simplesmente que elas nos induzem a desejar sua realização. A passagem do desejo de realização para a realização ocorre somente quando estamos seguros 178 Rogério Silva de Magalhães de poder cumpri-las sem prejuízo para nós. Isto quer dizer que as leis naturais obrigam condicionalmente, ou seja, na condição de que, da realização delas, não nos derive nenhum dano. Como se vê, o princípio utilitarista da moral hobbesiana entra em jogo também nesse ponto. Se as leis naturais não prescrevem ações boas em si mesmas, e menos ainda remetem à sanção divina, mas são simplesmente meios para atingir um determinado fim vital (a paz), então seria contraditório que aquele que as executasse retirasse delas um prejuízo e não uma utilidade. Em outras palavras: já que as leis de natureza não são absolutas, mas relativas a um fim, a obrigação que delas deriva não é incondicional, mas condicionada pela obtenção de um fim. Ora, quando é que o homem se encontra em melhores condições para agir de acordo com a lei natural sem sofrer nenhum prejuízo? Quando está seguro de que o outro fará o mesmo. [...]. Mas essa segurança só pode ser obtida no estado civil, ou seja, naquela situação onde as ações dos homens não são mais impostas condicionalmente, e sim de modo incondicional. O que significa que sou obrigado a realizar o que as leis naturais me prescrevem somente quando estas leis naturais são transformadas em leis civis (Bobbio 1, p. 111-112). Dessa forma, com a instauração do poder soberano e a submissão do homem às leis do estado civil, Hobbes consegue garantir o princípio máximo de sua filosofia que é a vida como valor supremo. Como nos diz Tuck: “Está claro que ele acreditava que nosso único direito natural é o direito de apenas nos preservarmos e usar qualquer meio que consideremos necessário para esse propósito” (Tuck 11, p. 70 – nossa tradução).12 Agora entendemos porque Hobbes acentua que somente no estado civil e sob a tutela de um poder soberano o homem pode perseverar em sua existência. A ética hobbesiana está comprometida com o estabelecimento de uma 179 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães moral mínima alicerçada no direito à vida. Se nos fosse exigido definir nos esquecer que seu objetivo maior é pôr fim à instabilidade reinante no um princípio universal que perpassa o pensamento hobbesiano, este seria estado de natureza que rege as relações humanas e que não deixa de existir o melhor candidato, levando-se em consideração, conforme exposto, o com a fundação da república. “A política é a continuação da ‘guerra de intrigante fato de que mesmo sendo aceito por todos os homens como um todos contra todos’ por outros meios” (Comte-Sponville 2, p. 107). Desse princípio válido universalmente em si, isto é, com o qual todos estariam modo, pode-se dizer que sua política está comprometida com a segurança de acordo, ele não seria suficiente para garantir a paz. E Hobbes tinha dos súditos e, por conseqüência, de seu bem-estar. Seu fim último parece, plena consciência disso. então, ser o equilíbrio nas relações humanas para que haja vida – condição básica para o progresso do homem. Hobbes quer, portanto, um mundo Argumentos sobre o escopo do direito de conservação estava no coração da teoria hobbesiana, porque ele reconhecia que mesmo com a aceitação geral desse princípio moral, os homens não viveriam em paz: as opiniões difeririam acerca do que realmente ameaçava a segurança de cada homem, e os homens agiriam com base nessas opiniões díspares (Tuck 12, p. 189 – nossa tradução).13 A insistência de Hobbes na periculosidade de uma vida subjugada aos ditames do estado de natureza e sua defesa incondicional do estado civil denota que no núcleo central de seu pensamento encontra-se uma preocupação social com a vida, não só em uma dimensão elementar como a da integridade física, mas, em todos os desdobramentos posteriores. Por isso, a transição para o estado civil é, na verdade, a luta para tornar universal um princípio que Hobbes considera irrenunciável para qualquer ser humano. A defesa da vida humana deixa de ser assim um privilégio para mais seguro que sirva de base para que cada um, com mais equilíbrio de condições, possa lutar por sua felicidade. The right to life in Hobbes’s Elements of law natural and politic Abstract: This article aims to examine the limits of man’s freedom of action, that is, of his natural right taking into account the final goal of this right in Hobbes’s Elements of law, natural and politic. This final goal would be man’s self-preservation. However, in order for this right to be effectively respected, Hobbes claims that it is necessary the rise of a sovereign power. Thus, a simple pact among men is not enough to live in peace. In other words, the existence of a political order ruled by an absolute sovereign power is necessary for the preservation of life to be lawfully effective. Hobbes understands that the civil state is the only one capable of imposing effective conditions for this goal to be achieved. Keywords: sovereign power, self-preservation, natural right, civil state, freedom. determinados grupos sociais para se tornar um direito de facto. Não mais particular, mas, para todos os súditos da Commonwealth. Por detrás da filosofia política-jurídica hobbesiana, o que temos é a defesa do princípio REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: básico dos direitos humanos: o direito à vida. 1. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4ª ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991. 2. COMTE-SPONVILLE, André. Tratado do desespero e da beatitude. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Em um primeiro momento, o plano político de Hobbes pode parecer autoritário, brutal e antipático aos nossos olhos, mas não podemos 180 181 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães 3. HOBBES, Thomas. Os elementos da lei natural e política: tratado da natureza humana, tratado do corpo político. Trad. Fernando Dias Andrade. São Paulo: Ícone, 2002. (Col. Fundamentos do direito). 4. ________________ . Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Col. Os Pensadores). 5. MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke. Trad. Nelson Dantas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. (Col. Pensamento Crítico). 6. POLIN, Raymond. O mecanismo social no Estado civil. In: QUIRINO, Célia Galvão e SADEK, Maria Teresa (Orgs.). O pensamento político clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 113-128. 7. RIBEIRO, Renato J. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo. 2ª ed. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004. 8. _______________ . Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, “O Federalista”. Vol. 1. São Paulo: Ática, 1989. p. 51-77. (Série Fundamentos, 62). 9. RYAN, Alan. Hobbes’s political philosophy. In: SORELL, Tom (Org.). The Cambridge companion to Hobbes. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 208-245. 10. SKINNER, Quentin. Razão e retórica na filosofia de Hobbes. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Ed. Unesp/Cambridge University Press, 1999. 11. TUCK, Richard. Hobbes: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2002. 12. _____________ . Hobbes’s moral philosophy. In: SORELL, Tom (Org.). The Cambridge companion to Hobbes. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. p. 175-207. na proposta de subordinação da Igreja ao poder do Estado. Além disso, Hobbes também faz uma crítica ao excesso de princípios vinculados à religião e, portanto, ao dogmatismo religioso. Tudo isso com o intuito de dizer ao leitor cristão que, como veremos mais adiante, não há contradição alguma entre a fé religiosa e a obediência ao poder soberano. “Mas, em seu tempo, foi mais complexa e grave a acusação de ateu dirigida a Hobbes. A teologia hobbesiana conforta: reduz os princípios do cristianismo à crença mínima em que ‘Jesus é o Cristo’, torna arbitrários os demais artigos de fé, suprime o Inferno e faz da ‘morte eterna’ prometida aos maus apenas uma segunda e definitiva morte” (Ribeiro 7, p. 49). Essa interpretação encontra respaldo na seguinte passagem dos Elementos da lei natural e política: “Consideradas estas coisas, aparecerá facilmente que sob o poder soberano de uma república cristã não existe perigo de danação a partir da simples obediência às leis humanas; pois naquilo que o soberano permite a cristandade nenhum homem está compelido a renunciar à sua fé, que é suficiente para a sua salvação, isto é, os pontos fundamentais” (Hobbes 3, p. 184-185). 2. Em sua obra Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o seu tempo, Ribeiro nos oferece o exemplo de um famoso filósofo moderno que contribuiu para denegrir o pensamento político-jurídico de Hobbes, alegando ser este uma defesa do despotismo. “[...]: escrevendo pelo fim da vida de Hobbes o Segundo Tratado sobre o Governo, Locke converte o soberano absoluto hobbesiano em inimigo de todos, em besta merecedora de morte, porque desumanizada, déspota oriental ou Jaime II” (Ribeiro 7, p. 51). 3. Essa afirmação encontra respaldo no Cap. XIV da primeira parte dos Elementos. “Em primeiro lugar, se considerarmos quão pouca é a diferença de força ou de sagacidade existente entre os homens na idade adulta, e com quão grande facilidade aquele que é o menos potente em força ou em senso, ou em ambas, pode apesar disso destruir o poder do mais forte, com base nisso não é necessária muita força para que se retire a vida de um homem, podemos concluir que os homens, considerados na sua simples natureza, devem admitir igualdade entre elas” (Hobbes 3, p. 94). Pode-se dizer, então, que, considerando a natureza humana em si, os homens possuem uma certa igualdade de potência. Em termos de capacidade, não há um desnível absoluto. 4. No Cap. X da primeira parte dos Elementos, Hobbes deixa claro que o homem não pode se apoiar na imaginação se deseja adquirir conhecimento exato das coisas. Somente o juízo ou discernimento pode fazer com que a mente do homem tenha conhecimento verdadeiro. “E essa virtude da mente é aquela pela qual os homens NOTAS: 1. Em seu Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra o tempo, Ribeiro afirma que a acusação de ateísmo que recaiu sobre Hobbes em sua época se fundava menos em argumentos teológicos ou pela falta de fé dele na existência de Deus e mais 182 183 184 Cadernos Espinosanos XXIII Rogério Silva de Magalhães atingem o conhecimento exato e perfeito. O prazer, aí, consiste na instrução contínua, e na distinção de lugares, pessoas e estações, o que recebe comumente o nome de juízo (judgement). Afinal, julgar nada mais é do que distinguir ou discernir” (Hobbes 3, p. 71). Skinner tece o seguinte comentário acerca desse assunto nos Elementos: “Decorre daí que, embora as qualidades da fantasia e do discernimento possam ser ambas descritas como formas de inteligência, elas se mantêm como faculdades opostas. Nos Elementos, não há lugar para a possibilidade de que a fantasia seja capaz de cooperar com o juízo na produção do saber e, por conseguinte, na construção de uma ciência verdadeira” (Skinner 10, p. 481). 5. Reproduzimos, a seguir, o original em inglês: “Men, on Hobbes’s account, do not want to harm other men for the sake of harming them; they wish for power over them, it is true, but power only to secure their own preservation”. 6. Em sua obra A teoria política do individualismo possessivo: de Hobbes a Locke, Macpherson alega que a fonte do estado de natureza hobbesiano é as paixões. “O estado de natureza, de Hobbes, tal como é geralmente reconhecido, é uma hipótese lógica, não histórica. É uma ‘Dedução oriunda das Paixões’; relata ‘que maneira de vida haveria se não existisse um Poder comum a temer’” (Macpherson 5, p. 31). Fica assim patente que não se trata de um estado primitivo, oposto ao social ou civil. Não é uma condição presente no homem somente em um passado remoto. 7. No Cap. XIII do Leviatã, Hobbes convida o leitor a averiguar a veracidade de sua reflexão de acordo com a própria experiência do leitor. Na passagem a seguir, nota-se que Hobbes destrói o paradigma aristotélico de que a convivência humana não é conflituosa e de que a pólis teria surgido a partir de uma propensão natural do homem para viver em comunidade. “Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela experiência” (Hobbes 4, p. 109). O realismo hobbesiano reside justamente em tomar a experiência como ponto de partida para o desenvolvimento de sua filosofia política. Para Hobbes, a experiência nos mostra que é necessário viver em paz para que os homens possam usufruir dos bens que almejam com menos dificuldade. E nada melhor do que o estado civil para garantir a possibilidade de acesso a esses bens. “A filosofia política pode ser deduzida da filosofia natural, da ciência física; mas também pode ser aferida pela experiência pessoal (do leitor): e então se situa entre duas confissões. O filósofo refina e cifra, como teoria – ou ‘doutrina’ -, a própria experiência; o leitor confronta com a sua experiência essa ciência que recebeu, e assim pode também metamorfosear em ciência a sua prudência” (Ribeiro 7, p. 21). 8. Ver Parte I, Cap. XVI e Cap. XVII dos Elementos da lei natural e política. 9. Em seu texto O mecanismo social no Estado civil, Polin afirma que o governante hobbesiano tem como lei máxima buscar o bem-estar do povo. Para atingir tal empresa, Hobbes atribui deveres aos soberanos. E esses deveres estão vinculados às leis de natureza, isto é, a um princípio racional, pois, como vimos, fazer o bem ao povo é fazer bem a si mesmo. “E Hobbes, conseqüentemente, atribui ao soberano um certo número de deveres (duties) como conformes à lei da natureza: o soberano deve estabelecer a melhor religião, deve deixar aos cidadãos toda a liberdade compatível com a ordem pública; deve definir a propriedade e repartir os impostos proporcionalmente à riqueza” (Polin 6, p. 122). 10. Reproduzimos, a seguir, o texto no idioma original: “The only right of ours which the sovereign possesses, or which he exercises on our behalf, is the right to consider what means are necessary to our survival, and it would introduce any programme which went beyond the considerations of physical survival”. 11. No Cap. VIII da segunda parte dos Elementos da lei, Hobbes discorre acerca das possíveis causas que podem levar os homens a se rebelarem contra o poder soberano. Elas são baseadas no descontentamento, na pretensão e na expectativa de êxito. Ele argumenta que nenhuma dessas causas são razoáveis o suficiente para uma rebelião contra o poder soberano. Todas são imagens falsas que tornam a mente do súdito confusa. 12. Transcrevemos, a seguir, o texto original: “It is clear that he believed that our only natural right is the right barely to preserve ourselves, and to use whatever means we take to be necessary for that purpose”. 13. Reproduzimos, a seguir, a citação no original em inglês: “Argument about the scope of the right of self-preservation was at the heart of Hobbes’s theory, for he recognized that even with the common acceptance of this moral principle, men would not live in peace: opinions would differ about what actually threatened each man’s security, and men would act on the basis of these disparate opinions”. 185 Para além do corpo-objeto e da representação intelectual: como Merleau-Ponty redescobre o corpo como veículo da existência José Marcelo Siviero* Resumo: Este ensaio analisa as objeções elaboradas por Merleau-Ponty ao que ele chama de “paradigma cartesiano de pensamento”, ou seja, a separação entre alma e corpo. Concentrando-nos nos dois primeiros capítulos da primeira parte da Fenomenologia da Percepção, trata-se de identificar, nas críticas dirigidas à fisiologia mecanicista e à psicologia subjetiva, como o filósofo delega ao corpo sensível um novo estatuto filosófico, colocando-o como principal veículo da existência, ao mesmo tempo em que redescobre a experiência pré-objetiva. Palavras-chave: Merleau-Ponty; existência; corpo; subjetividade; fisiologia. Introdução A filosofia merleau-pontyana coloca o corpo como pivô da existência, como o esteio do ser no mundo. Por outro lado, esse corpo do qual fala o filósofo não é um mero aparato mecânico, um pedaço de matéria a perceber o seu mundo na simplicidade das relações lineares entre estímulos e respostas pontuais, como se sua percepção se reduzisse a um sistema de engrenagens e de mecanismos pré-engatilhados. Nem mesmo esse corpo é tão-somente invólucro para a alma, mera vestimenta material para um Cogito privilegiado no circuito da existência. Também de Merleau-Ponty podemos afirmar que, em sua filosofia da existência, há a desmontagem do paradigma cartesiano de separação entre alma e corpo, ou seja, que há enfim a tentativa de uma articulação entre as ordens do em-si e do para-si, sem que haja a prevalência de uma das dimensões. * Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 187 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero Como o filósofo consegue superar essa dicotomia, examinando as se fossem os centros cerebrais que estivessem prejudicados? Uma resposta objeções da fisiologia moderna e da psicologia clássica a essa objetivação mais apressada postularia a perda de certos dados sensoriais pelos danos do corpo? E, uma vez de posse de tais objeções, como ele trabalha para no instrumento material responsável pela sua captação. O que não ocorre, situar o corpo, não mais reduzido a objeto ou a representação, no centro pois, como aponta Merleau-Ponty, “as lesões dos centros e até mesmo dos da existência mesma? condutos não se traduzem pela perda de certas qualidades sensíveis ou de certos dados sensoriais, mas por uma diferenciação da função.” (Merleau- 1. O corpo-objeto ultrapassado a partir da fisiologia e a sua ambiguidade essencial Ponty 1, 112). Não são os dados que são perdidos, mas é a maneira pela qual a percepção deles se desdobra que é distorcida, é a maneira pela qual o corpo responde ao mundo que é adulterada. 188 O que seria, pois, a definição estrita do corpo como objeto? Para o Isso fica mais claro no exemplo citado por Merleau-Ponty, de autor, um objeto é caracterizado pelo fato de que “existe partes extra partes e como um doente com lesões centrais percebe as cores (cf. Merleau-Ponty que, por conseguinte, só admite entre suas partes ou entre si mesmo e os outros 1, 112): não há uma perda efetiva da visão, o que há é uma simplificação objetos relações exteriores e mecânicas.” (Merleau-Ponty 1, 111). O corpo do espectro de tonalidades as quais o olho do paciente tem acesso. humano tomado segundo essa definição seria, pois, um corpo percipiente Lentamente, os tons vão esmaecendo, para se limitarem ao amarelo, no qual cada sentido ocuparia um compartimento estanque, como se fossem verde, azul e púrpura, até que por fim todas as cores se dissolvem em peças independentes: tato, visão, audição e outros não se relacionariam entre tons acinzentados. Assim, ao invés de interromperem a captação dos si, os dados captados por eles seriam qualidades independentes e isoladas, dados em cada um de seus aparatos sensórios, as lesões levam a uma e para cada um dos sentidos corresponderia uma superfície ou um órgão “decomposição da sensibilidade”, a um distúrbio geral do corpo que pontual de captação. A rigor, não haveria percepção efetiva, pois os sentidos afeta a organização espacial do campo perceptivo e o desdobramento do não se desdobrariam no espaço e o corpo, ao elaborar sua resposta aos percebido. A rigor, observamos aqui pela primeira vez uma espécie de estímulos do mundo, nada mais emitiria senão uma reação mecânica. Não integração funcional dos sentidos corporais, o que afasta, num primeiro haveria propriamente uma relação intrínseca do sujeito com seu mundo, momento, a hipótese dum corpo organizado partes extra partes. mas tão-somente o choque entre dois elementos estranhos entre si, entre Deste modo, o que antes era exterioridade pura entre sentidos e duas categorias de fenômenos tão discrepantes que a simples ideia de uma estímulos advindos do ambiente encontra um ponto de articulação, um articulação por si só recairia em contrassenso e em antinomia. terreno comum. O exame da percepção alterada das cores leva a crer Supondo-se esse corpo no qual para cada sentido corresponde que a percepção do mundo exterior reclama uma participação ativa do uma região determinada, o que ocorreria caso tais organelas de captação corpo, e a estrutura deste, por sua vez, é responsável por desdobrar os fossem lesionadas? Ou mais profundamente, se a lesão se localizasse nos dados sensoriais numa percepção efetiva e não numa resposta linear a um condutos neurais responsáveis pela sua comunicação ao cérebro, ou ainda estímulo qualquer. Consequentemente, “a exteroceptividade exige uma 189 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero enformação dos estímulos, a consciência do corpo invade o corpo, a alma delimitam o membro fantasma ao campo somático mostram-se limitadas se espalha em todas as suas partes, o comportamento extravasa seu setor e, em algumas vezes, incapazes de chegar a um diagnóstico conclusivo. central.” (Merleau-Ponty 1, 114) Desaparece a clivagem entre o interior É a fraqueza do paradigma objetivo do em-si que Merleau-Ponty aqui subjetivo e o corpo exterior; em-si e para-si se confundem na experiência quer explicitar, encarnado numa fisiologia mecanicista e fiadora duma do mundo percebido, a tal ponto em que não há mais distinção entre eles. causalidade linear, na qual há a prevalência do exterior. Todo o corpo participa de maneira integral da percepção, e é isso o que as Contudo, se trasladássemos esse distúrbio ao campo das especulações teses da fisiologia moderna desvelam, contribuindo para a refutação do psicológicas, teríamos menos sucesso, logo nos enredaríamos nas mesmas argumento dum corpo reduzido a objeto. dificuldades do mecanicismo e da causalidade linear. Não somente um Merleau-Ponty aprofunda esta problemática ao analisar os casos ferimento ou uma mutilação, mas Merleau-Ponty coloca que também “uma de pacientes acometidos pelos sintomas do membro fantasma e da emoção, uma circunstância que relembre as do ferimento fazem aparecer anosognose. O autor os escolhe com uma intenção clara: seus distúrbios um membro fantasma em pacientes que não o tinham.” (Merleau-Ponty não encontram explicação plausível em nenhuma das categorias 1, 115). Vicissitudes do psiquismo e circunstâncias influem também no objetivas, a saber, nem do lado do funcionamento orgânico e nem do lado aparecimento do membro fantasma, a ponto até mesmo de reabsorvê-lo estritamente psicológico. Em ambos, tais explicações conduzem mais a no coto e fazê-lo desaparecer sem qualquer sinal orgânico mais claro ou equívocos do que a soluções. alguma alteração significativa no estado de saúde do paciente. Relacionar No caso do membro fantasma, o paciente sente no coto a presença estritamente o membro fantasma a fenômenos somáticos é portanto dum braço ausente, captando dados dos sentidos numa estrutura material enxergar somente uma das faces do fenômeno do corpo, ignorando sua que não mais existe em seu corpo. Além disso, para o doente o seu braço amplitude e sua complexidade; porém, a entrada em cena do psiquismo e mutilado permanece na mesma posição do instante de seu ferimento, e da subjetividade arrastam a experiência corporal para um plano ambíguo, ele até mesmo sente a dor dos estilhaços de obus que antes estiveram no qual a aplicação de categorias é problemática. incrustados em seu braço real (cf. Merleau-Ponty 1, 115). 190 Tal é o mesmo impasse que se encontra na observação da Se nos ativéssemos à explicação somática desse caso, limitar-nos- anosognose, moléstia que curiosamente é a antípoda do membro fantasma: íamos a localizar o distúrbio nos condutos neurais dos cotos, e a sua secção nela, o doente aparentemente não possui nenhum defeito físico, mas anularia tal sintoma. Entretanto, se a manifestação desse braço fantasma ignora uma das partes de seu corpo, como um braço ou uma perna, que fosse meramente um efeito orgânico, a anestesia pela cocaína faria sua nele é parcialmente insensível e a qual o doente até mesmo chega a tratar sensibilidade desaparecer, como o faz nas outras regiões do corpo, o que como um anexo inerte, uma “serpente longa e fria” atada ao seu corpo não ocorre. Além do mais, como nos escreve Merleau-Ponty, o membro (Merleau-Ponty 1, 116). Tal qual no membro fantasma, há aqui um curioso fantasma ataca até aqueles pacientes de lesões cerebrais que nunca sofreram fenômeno de ambivalência: nos mutilados, encontrávamos uma ausência mutilação alguma (cf. Merleau-Ponty 1, 115). Logo, as explicações que sentida como presença efetiva, já nos anosognósicos o que se observa é 191 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero uma presença concreta que é tomada erroneamente como ausência ou falta. pensamentos elaborados pela vontade do paciente, mero derramamento do Se adotássemos uma explicação pautada exclusivamente no corpo como psíquico no terreno do somático. Primeira ou terceira pessoa, a particularidade objeto material, a anosognose seria um erro grosseiro, pois o braço ignorado do subjetivo frente ao anonimato generalizante, tal é o impasse que se nos continua ali, como uma peça perfeitamente encaixada no todo do aparato apresenta. Como Merleau-Ponty responde a tal impasse? corporal. Porém, abordá-la como uma espécie de esquecimento ou desvio O filósofo vai curiosamente buscar suas respostas na observação deliberado por parte do paciente, como um tipo de “recalque orgânico”, ou dum experimento comportamental aplicado com insetos. Sua escolha seja, aplicando-se a categoria diametralmente oposta da psicologia, também não é por acaso ou por capricho: no comportamento instintivo do inseto não nos conduz a uma conclusão plausível: de quaisquer perspectivas que submetido à experiência é impossível operar uma distinção entre categorias, se abordem os dois problemas, o que se impõe é uma espécie de disjunção ou seja, ele se encontra de tal maneira engajado em seu ambiente e aberto exclusiva, ou causalidade objetiva ou cogitationes, o em-si ou o para-si, aos seus estímulos que é incapaz de separar o que é da ordem do corporal sem que haja uma articulação entre ambas. e o que é da ordem do psiquíco. Não se trata aqui de escolher entre alternativas de paradigmas ou Ora, poderíamos então facilmente afirmar que o comportamento de enquadrar o fenômeno numa categoria; o que Merleau-Ponty procura instintivo do inseto é unicamente uma reação mecânica e pré-programada é o meio em que se articulam as duas ordens de fenômeno, o domínio aos estímulos exteriores; contudo, há um inusitado fenômeno de substituição no qual não haja clivagem entre em-si e para-si, entre a alma e o corpo, no uso das patas que ocorre quando ele é mutilado ou aprisionado, que é o entre a causalidade objetiva e a subjetividade. Só uma tal instância seria que Merleau-Ponty aborda a seguir: capaz de reunir as duas dimensões e de dar razão de suas ambiguidades e ambivalências. “É preciso compreender então como os determinantes psíquicos e as condições fisiológicas engrenam-se uns aos outros: não se concebe como o membro fantasma, se depende de condições fisiológicas e se a este título é o efeito de uma causalidade em terceira pessoa, pode por outro lado depender da história pessoal do doente, de suas recordações, de suas emoções ou de suas vontades.” (Merleau-Ponty 1, 116) Certamente, o membro fantasma e a anosognose não são apenas processos em terceira pessoa, visto que não dependem exclusivamente do corpo e de suas condições fisiológicas; posto que também não se limitam à primeira pessoa, pois não são, como vimos, desvios deliberados ou 192 “Quando, em um ato instintivo, o inseto substitui a pata cortada pela pata sã, isso não significa, nós o vimos, que um dispositivo de auxílio previamente estabelecido se substitua por desencadeamento automático ao circuito que acaba de ser posto fora de uso. Mas também não significa que o animal tenha consciência de um fim a atingir e use seus membros como diferentes meios, pois então a substituição deveria produzir-se a cada vez em que o ato fosse impedido, e sabe-se que ela não se produz se a pata apenas está presa.” (Merleau-Ponty 1, 117) Em resumo, quando a pata está presa, o inseto não necessita fazer a sua substituição, pois ele ainda conta com seus movimentos e sua disponibilidade; o que não ocorre quando ela é seccionada e o inseto 193 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero precisa operar uma reorganização de sua estrutura corporal. O que muda sentido de uma situação, e a percepção, enquanto não põe primeiramente no inseto é a maneira pela qual ele investe de sentido os seus reflexos e os um objeto de conhecimento e enquanto é uma intenção de nosso ser total, encaixa numa situação concreta; em resumo, quando há a necessidade de são modalidades de uma visão pré-objetiva que é aquilo que chamamos de substituição da pata o inseto altera a maneira pela qual o seu corpo se abre ser no mundo.” (Merleau-Ponty 1, 118-119) e se projeta no mundo que o envolve. Como já foi exposto, não há mecanismos sensório-motores paradigmas extremos, o do em-si e do para-si, o exterior ou o interior, programados e previamente engatilhados para que a substituição ocorra a causalidade objetiva e as cogitationes, ou, lançando mão do jargão em determinada situação, como se o corpo do inseto fosse dotado de cartesiano, a res cogitans e a res extensa, propiciando a sua articulação instrumentos de emergência; frente à mutilação, ele simplesmente altera através dum ponto comum no qual inexiste a clivagem do pensamento o uso que comumente faz de seu corpo, ele adota um comportamento objetivo. Contudo, não se trata duma síntese ulterior entre as duas diferenciado. Também não se trata duma decisão planejada e/ou posições paradigmáticas, mas antes duma experiência prévia, na qual a presumida, pois não podemos falar de consciência de si num ser vivo de separação é sempre posterior. tal proporção sem cair numa hipótese absurda e fantasiosa. O que está Logo, remontando ao pré-objetivo, as categorias aferradas aos por trás do fenômeno de substituição das patas, escreve-nos o filósofo, processos em primeira e terceira pessoa se dissolvem; os dois paradigmas “é o movimento do ser no mundo” (Merleau-Ponty 1, 117), isto é, é a antagônicos, diametralmente opostos, rivais ao extremo, agora se maneira pela qual, através de seu corpo capaz de perceber e de projetar- confundem entre si, entrelaçados numa mesma dimensão originária, se no mundo sensível que o rodeia, o inseto se engaja em uma situação abarcados num esteio comum. Assim sendo, concreta e a investe de sentido. Descobrindo-se esse “ser em situação” e esse engajamento mundano que é proporcionado pela percepção, os reflexos corporais não podem mais ser reduzidos a uma soma de dados isolados colhidos pela sensibilidade; ao percebê-los, o corpo os desdobra numa situação, inserindo-os num contexto global organizado como um campo perceptivo. Os dados sensíveis não são mais dados isolados, eles se estendem e se correlacionam com o seu horizonte total. Podemos estender a reflexão até o domínio da subjetividade: o pensamento deixa de ser assim um projeto particularíssimo, restrito à primeira pessoa e à interioridade do Cogito, para se transformar na intenção total do sujeito ao se dirigir ao mundo. Desta maneira, conclui Merleau-Ponty que “o reflexo, enquanto se abre ao 194 Será esse domínio da experiência pré-objetiva que unirá os dois É por ser uma visão pré-objetiva que o ser no mundo pode distinguir-se de todo processo em terceira pessoa, de toda modalidade da res extensa, assim como de toda cogitatio, de todo conhecimento em primeira pessoa- e que ele poderá realizar a junção do ‘psíquico’ e do ‘fisiológico’. (Merleau-Ponty 1, 119) Retornemos aos casos do portador do membro fantasma e do anosognósico, transplantando a eles as conclusões que Merleau-Ponty tirou do exame do comportamento do inseto e a constatação duma visão pré-objetiva subjacente a todos os fenômenos perceptivos. Caso adotássemos uma das explicações díspares que nos são oferecidas pelo pensamento objetivo, seja do lado da fisiologia e seja do 195 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero lado da psicologia, os diagnósticos do membro fantasma e da anosognose de ordem prática, isto é, a obstrução de suas ações sensório-motoras seriam excludentes, suas justificativas seriam por demais limitadas e, através da imobilização de seu corpo ou de sua mutilação, faz um uso obviamente, não conduziriam a quaisquer conclusões mais sólidas. Se nos diferenciado de suas funções corporais, refletindo o impasse que lhe é fiássemos no paradigma fisiologista, o membro fantasma nada mais seria imposto pela situação na qual está mergulhado. O inseto substitui a pata senão a persistência de estimulações interoceptivas numa região do corpo quando sofre a mutilação ao perceber que ele não conta mais com os que não mais existe, e os sintomas do anosognósico, por sua vez, seriam movimentos e a sensibilidade da pata cortada; por esse motivo é que a sua supressão ou a perda de sensibilidade num membro aparentemente ele não a substitui quando ela está somente imobilizada, pois o membro saudável (cf. Merleau-Ponty 1, 119-120). Nos dois casos, adotando-se os preso, ao contrário do seccionado, ainda está aberto ao mundo, às suas juízos emitidos pelo pensamento fisiologista, tratar-se-ia tão-somente dum solicitações e às suas possibilidades. O problema não está em determinar funcionamento anômalo da estrutura neural do paciente, um prolongamento o domínio fisiológico e psicológico, mas em entender tais fenômenos a e uma interrupção errôneos em cada um dos doentes. partir do engajamento do sujeito em seu mundo através do corpo integral, Porém, reportando-nos às explicações da psicologia, não encontramos ainda um terreno firme. Nela, a fraqueza é tão evidente quanto Como a experiência do inseto pode nos ajudar a esclarecer os dois nas conclusões dum exame estritamente fisiológico. A ambiguidade das fenômenos, que vínhamos discutindo até então? Será possível, de que duas moléstias é encarada pela psicologia como a permanência de certas maneira e por quais vias, ligar o experimento comportamental do inseto representações, matizadas como pensamentos ou juízos do sujeito em e suas conclusões aos problemas ambíguos diretamente relacionados relação ao seu corpo e às partes dele. Deste modo, o membro fantasma, ao membro fantasma e à anosognose? Os dois domínios se aproximam enquanto presença invisível dum braço ou duma perna já ausentes, é quando pensamos o corpo como engajado numa situação concreta, aberto definido como uma recordação, juízo positivo ou uma percepção, e, do outro a ela pela percepção e profundamente envolvido no ambiente mundano lado, o membro esquecido do anosognósico é análogo a um esquecimento segundo as suas respostas sensoriais e motoras. Assim, pois, ou juízo negativo (cf. Merleau-Ponty 1, 120). Segundo este paradigma, tais distúrbios na infraestrutura do corpo dependem unicamente das cogitationes dum sujeito absoluto, residente na sua subjetividade interna, cujo corpo é apenas um invólucro carnal do qual ele é capaz de decidir tudo. Tal como nas explicações fisiológicas, o impasse não se resolve, não alcança um desfecho. A problemática continua em aberto. Agora desloquemos o problema para o domínio do ser no mundo, isto é, para a experiência pré-objetiva que a análise do comportamento do inseto nos trouxe a lume. O pequeno inseto, enfrentando um problema 196 e não de uma ou outra de suas províncias. Aquilo que em nós recusa a mutilação e a deficiência é um Eu engajado em um certo mundo físico e inter-humano, que continua a estender-se para seu mundo a despeito de deficiências ou de amputações, e que, nessa medida, não as reconhece de jure. A recusa da deficiência é apenas o avesso de nossa inerência a um mundo, a negação implícita daquilo que se opõe ao movimento natural que nos lança a nossas tarefas, a nossas preocupações, a nossa situação, a nossos horizontes familiares. (Merleau-Ponty 1, 121) 197 Cadernos Espinosanos XXIII Dito dessa maneira, encontramos o membro fantasma como do membro fantasma, utilizando-se do coto como se ali ainda houvesse seu uma região corporal que, mesmo ausente e desligada de todo o aparato membro; mesmo o fracasso de suas tentativas não o desencoraja da tarefa. sensório-motor, ainda persiste em se manter aberta ao seu mundo, retendo Do interior de sua ambiguidade, o corpo do doente ainda percebe até mesmo os caracteres sensíveis do momento de sua destruição (no tais objetos como manejáveis, embora a parte de seu corpo que se abria caso, como já expusemos, da paralisação de sua posição no momento da a tal fenômeno não exista mais. Como isso é possível, indaga o autor? mutilação e da dor ainda presente dos estilhaços do obus que o ferira). Como a existência pode comportar tal ambiguidade? Será um erro por Já no anosognósico o que há é o fenômeno oposto, o fechamento ou a parte da percepção do indivíduo ou um distúrbio nas solicitações do recusa do mundo localizada num dos membros, que não mais se move mundo sensível? e não mais sente o meio circundante, omitindo-se a responder ao que o mundo lhe solicita. 198 José Marcelo Siviero Novamente, é preciso ultrapassar as antinomias do em-si e do parasi. Desçamos ao reino da experiência pré-objetiva e pré-pessoal, onde não Logo, desvelamos, através dessas conclusões parciais, a existe ainda essa separação em categorias. Nela convivem em harmonia importância capital do corpo na filosofia de Merleau-Ponty: “O corpo é tanto a dimensão pessoal quanto a generalidade; assim, a ambiguidade o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar- deixa de ser um juízo errôneo para se tornar um caractere intrínseco da se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se experiência. Assim, sobre as solicitações dirigidas ao membro inexistente continuamente neles.” (Merleau-Ponty 1, 122). Entretanto, ao colocar o e à ambivalência de tal experiência perceptiva, adverte-nos Merleau-Ponty corpo no centro da existência, Merleau-Ponty acaba também por lançar de que “é preciso que o manejável tenha deixado de ser aquilo que manejo luz sobre o fenômeno da ambiguidade. Tomemos esse questionamento atualmente para tornar-se aquilo que se pode manejar, tenha deixado de ser de outra perspectiva: como o mundo pode ainda solicitar determinados um manejável para mim e tenha-se tornado como que um manejável em si.” comportamentos e condutas, certos movimentos e reações sensoriais, de (Merleau-Ponty 1, 123). O corpo, antes limitado pela dimensão do para-si, um corpo que é incapaz de engajar-se nelas, como no caso do portador agora descobre uma região de generalidade que lhe é própria; em resumo, do membro fantasma? o uso que se faz atualmente do corpo depende de toda uma sedimentação Esse é o caso paradoxal do mutilado; embora seu corpo seja o pivô de seu passado, impressa em hábitos, gestos e cacoetes. É isso o que de sua existência, o veículo com o qual ele se dirige ao seu mundo, este permite a Merleau-Ponty caracterizar a ambiguidade do corpo como a sua ainda o obriga a manejar objetos movimentando o seu braço ausente. De composição em duas camadas existenciais, a saber, o corpo habitual e o certa maneira, o paciente retém o uso que no passado ele fazia de seu corpo, corpo atual (cf. Merleau-Ponty 1, 122), sendo que o primeiro é o “fiador” do tempo anterior ao seu ferimento de guerra, e tal sedimentação de gestos deste último. Assim, no mutilado, as intenções motoras solicitadas ao seu e reações motoras ainda aflora no seu corpo atual e nas situações mundanas braço fantasma fazem referência a esse corpo habitual, que se faz presente em que ele atualmente está inserido. O paciente, como cita Merleau-Ponty na atualidade mesmo quando seu braço está ausente. A ambiguidade aqui no interior de seu texto, continua a tentar pegar e mover objetos com a mão não é mais um problema, mas faz parte da estrutura de seu ser no mundo. 199 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero O corpo, que opera tanto o fechamento quanto a abertura ao seu mundo, da psicologia, clarifica ainda mais o fenômeno da ambiguidade temporal comporta harmonicamente essa mescla de generalidade e atualidade. vivenciada pelo portador do membro fantasma. Num objeto material, Saímos desse modo da disjunção exclusiva entre as duas alternativas, regido por leis mecânicas, como queria a fisiologia ao abordar o corpo o impasse que era suscitado pelos paradigmas do pensamento cartesiano. A humano, seria impossível falar de uma tal ambiguidade, especialmente se ordem do em-si e do para-si, representados pelo corpo habitual que mantém ela levar em conta o passado e a atualidade do objeto. Com isso, retornamos o passado vivo e no corpo atual que desfecha a existência em situação, à reflexão com a qual iniciamos esse trajeto, para alcançar enfim o cerne agora são as duas faces da mesma moeda, duas dimensões constitutivas das objeções que Merleau-Ponty move em direção ao fisiologismo dum único fenômeno, advindas duma origem comum encontrada na mecanicista: num objeto mecânico, cujos movimentos se caracterizam vivência do pré-objetivo. Entre elas não há separação ou isolamento; tal pela linearidade e regularidade entre estímulo e reação, cujas reações clivagem só ocorre num momento posterior, quando da necessidade de mecânicas estão previamente determinadas e são perfeitamente previsíveis, elaboração dum discurso e dum pensamento objetivo, como é o caso das não há espaço para a sedimentação de um passado e a sua consequente ciências empíricas e seus juízos e asserções. Entretanto, na experiência atualização. Os objetos mecânicos não conhecem o tempo, não guardam o que dá sustentação a qualquer objetividade, nessa experiência originária passado, não constroem hábitos, não acumulam memórias; seu horizonte é e espontânea do ser no mundo, nessa existência mundana mais direta e o das determinações imóveis do presente, e, sendo um prisioneiro do puro autêntica, o que encontramos primeiramente é uma oscilação entre os atos atual, não há espaço para uma mudança nas suas reações ou para um uso em primeira e terceira pessoa que, contudo, não os separa, mas reforça a diferenciado de seus movimentos. Em resumo, para um objeto como esse sua imbricação, como salienta Ramos: dos mecanicistas, não há engajamento, não há ser no mundo. Há assim um movimento integrado da existência normal que pendula entre os atos em terceira pessoa e os atos pessoais, sem que isso signifique uma desintegração da conduta. Quer dizer, neste caso, o corpo próprio retoma ou mobiliza os hábitos adquiridos (o passado do sujeito), mas também se abre para novas aquisições (ou seja, ele se projeta num presente vivo que reativa o passado, e se dirige a um futuro inédito ao improvisar e, consequentemente, adquirir novos comportamentos). O doente, por sua vez, é um ser fragmentado e fadado à repetição de um tempo perdido. (Ramos 3, 74) A experiência do recalque, que Merleau-Ponty toma de empréstimo 200 Entretanto, o corpo não é um objeto estritamente material; ele arrasta consigo todo o seu passado sedimentado, projeta-se no seu presente com vistas a um futuro ainda em estado virtual e reage de maneiras diferenciadas ao mundo que o engloba e o inquire, sempre levando em conta as configurações da situação na qual está inexoravelmente engajado, com seu corpo ora abrindo-o e ora fechando-o à experiência perceptiva do mundo. O sujeito está, desde o início, encarnado num corpo que é ambíguo, amparando uma experiência existencial que é ambígua em seu âmago. Por isso, não sendo uma mera máquina corpórea, não há mais sentido em se falar de separação entre corpo e alma, entre sujeito e meio exterior, entre para-si e em si. Entretanto, isso é o que descobre Merleau-Ponty ao interrogar de 201 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero dentro os postulados científicos elaborados pela fisiologia clássica. E quanto ou da lâmpada porque ele é percebido constantemente, enquanto posso me ao outro lado, o dos juízos da psicologia, o que o filósofo questiona neles? afastar daquelas. Portanto, ele é um objeto que não me deixa.” (Merleau- O que Merleau-Ponty descobre ao perscrutar o domínio da subjetividade Ponty 1, 133) O primeiro caractere atribuído pela psicologia clássica é a absoluta, ou seja, quando o corpo é abandonado em detrimento das permanência, a constância do corpo próprio em todas as suas experiências representações do intelecto? Como ele resolverá o impasse a partir de seu sensório-motoras; e, ao denominá-lo como um objeto que nunca o outro lado, articulando-o com a descoberta das duas camadas existenciais abandona, faz cair por terra quaisquer interpretações objetivistas, posto do corpo? Examinemos a seguir as suas objeções quanto aos juízos da que “o objeto só é objeto se pode distanciar-se e, no limite, desaparecer psicologia clássica. de meu campo visual.” (Merleau-Ponty 1, 133). Os objetos que se podem manejar estão ao alcance do corpo, seja de seus dedos ou, no caso daqueles 2. A experiência do corpo vista pela psicologia clássica: contribuições e objeções mais afastados, na linha de seu campo visual. Da mesma maneira que estão próximos, eles podem também se distanciar, variando o grau de ação que podem sofrer; podem até mesmo desaparecer do campo da experiência 202 A psicologia clássica, segundo o filósofo, é a primeira a se afastar sensorial. Desdobram-se em várias perspectivas, podendo ser examinados das interpretações que tomam o corpo como objeto, introduzindo em seu de inúmeros ângulos; logo, o objeto pode ser percebido em sua miríade seio um interior, representado pelo “psiquismo”. Será essa interioridade de variações. Já o corpo é percebido constantemente, ele não pode ser do corpo próprio que o moverá por si mesmo e que colocará os objetos deixado de lado, ele se mostra sempre sob a mesma perspectiva, furtando- no horizonte de sua experiência, seja na aquisição de hábitos e seja no se a uma exploração mais detalhada, nem mesmo é possível se afastar dele manejo e no exame perspectivo dos objetos que chegam à sua percepção, na experiência perceptiva. E, mais do que isso, é através dele que se pode afastando-o das reações lineares do paradigma mecanicista. visar e tocar os objetos exteriores. Como nos mostra Merleau-Ponty, as contribuições da psicologia Como emparelhar, dessa maneira, o corpo aos objetos por ele aprofundam a crítica aos paradigmas mecanicistas e iluminam a experiência utilizados? Devido à sua permanência, como vimos, o corpo está sempre do corpo; entretanto, ela falha ao desvelar o engajamento efetivo do corpo presente no campo visual do sujeito; não podemos, pois, afirmar que ele nos fenômenos ao recair na dimensão do psíquico e voltar a se confinar está simplesmente solto na tessitura do mundo, pois isso implicaria na na perspectiva do para-si. É necessário, pois, analisar essas contribuições possibilidade de sua dissolução ou de seu ocultamento, como acontece teóricas legadas pelo exame do psiquismo, para logo depois objetá-las e aos outros objetos. O corpo, por se mostrar por uma única e constante continuar no trajeto da articulação das ordens do em-si e do para-si. É esse perspectiva, não se perfila sobre o horizonte o mundo; já os objetos por ele o andamento que o filósofo adota para essa seção de seu texto. visados “só podem aparecer para mim em perspectiva, mas a perspectiva Primeiramente, o corpo não é um objeto dentre outros, perfilado particular que a cada momento obtenho deles só resulta de uma necessidade por entre eles, misturado ao cenário do mundo: ele “se distingue da mesa física, quer dizer, de uma necessidade da qual posso me servir e que não 203 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero me aprisiona: de minha janela, só se vê o campanário da igreja, mas esse tornando-se seu fiador: “a presença e a ausência dos objetos são apenas constrangimento me promete ao mesmo tempo que de outro lugar se veria variações no interior de um campo de presença primordial, de um domínio toda a igreja.” (Merleau-Ponty 1, 134). O exemplo do prisioneiro é ainda perceptivo sobre os quais meu corpo tem potência [...], como também a mais assertivo: de sua cela, ele está limitado a um único ângulo, e sua visão apresentação perspectiva dos objetos só se compreende pela resistência de do campanário é sempre truncada. Desse modo, o corpo permanece ao meu corpo a qualquer variação de perspectiva.” (Merleau-Ponty 1, 136). lado de toda experiência possível do sujeito, e a variação de perspectivas e Tal constância, ao abrir o campo de experiência do corpo, fornece-nos inclusive o desaparecimento dos objetos de seu campo visual depende de também a medida de seu engajamento na existência mundana. sua posição e de sua movimentação em meio a esse cenário mundano. Ente sem perspectivas, é o corpo que as fornece. 204 A permanência é, portanto, a descoberta essencial da psicologia, mas ela não a ultrapassa; o corpo é sempre percebido ao lado de toda Assim, o corpo não é mais um fragmento de matéria lançado experiência possível, mas, para a psicologia subjetivista, tal permanência ao mundo, com o privilégio de ser um objeto especial a ser percebido continua como avesso da experiência objetiva, e o corpo não sai de constantemente, invariável; é ele que, tal como as janelas, abre uma seu status de invólucro material para o pensamento. Após identificar a perspectiva sobre o mundo. Desprovido de perspectivas, mas capaz de contribuição, Merleau-Ponty não tarda a confrontá-la com a objeção de que, desdobrá-las no mundo; percebido permanentemente, mas sem se reduzir caso a psicologia se debruçasse mais apuradamente sobre a permanência a objeto; dotado de percepção, mas impossível de ser perscrutado pelas do corpo próprio, “podia conduzi-la ao corpo não mais como objeto do potências de seu próprio aparato sensorial: o corpo, sob o argumento mundo, mas como meio de nossa comunicação com ele, ao mundo não da permanência proposto pela psicologia clássica, encerra em si tais mais como soma de objetos determinados, mas como horizonte latente de contradições: “observo os objetos exteriores com meu corpo, eu os manejo, nossa experiência.” (Merleau-Ponty 1, 136-137). os inspeciono, dou a volta em torno deles, mas, quanto ao meu corpo, não o Esse é o primeiro caractere identificado por Merleau-Ponty, e observo ele mesmo: para poder fazê-lo, seria preciso dispor de um segundo também a primeira contribuição da psicologia na ultrapassagem do para- corpo que não seria ele mesmo observável.” (Merleau-Ponty 1, 135). Em si; o segundo apontado pelo autor é o fenômeno das “sensações duplas”, outras palavras, é o corpo que nos abre ao mundo, é o fato de ele mesmo se quer dizer, de uma ambivalência interna estabelecida entre os dados dos furtar à nossa percepção que permite que ela se efetive. sentidos. É a experiência de se apertar a própria mão: nesse contexto, é Assim, tal presença originária não constitui somente um interior impossível determinar com distinção qual é a mão que toca e a mão que para o corpo, a moradia de sua subjetividade, a presença clara e imediata recebe o toque, a sensação é ambígua e o contato entre as duas mãos é de si a si; a permanência emana um campo de potencialidades ao redor do confuso. Diz-nos o filósofo que “quando pressiono minhas mãos uma contra sujeito, no qual os objetos se perfilam e se oferecem à sua experiência. É a outra, não se trata então de duas sensações que eu sentiria em conjunto, por manter essa sua permanência intrínseca que o corpo consegue sentir como se percebem dois objetos justapostos, mas de uma organização a presença dos outros entes e, com eles, desdobrar a sua experiência, ambígua em que as duas mãos podem alternar-se na função de ‘tocante’ 205 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero e ‘tocada’”. (Merleau-Ponty 1, 137). A ambivalência das sensações, que o das “sensações cinestésicas”, isto é, dos movimentos parciais do corpo psicólogo constata mas erroneamente classifica como uma duplicação de em direção a determinado fim e as sensações derivadas diretamente dados sensoriais, evidencia um viés afetivo do corpo em mão dupla com daí. Os psicólogos tendem a decompor o movimento total do corpo em o mundo: ao segurar a própria mão, o corpo toca ao mesmo tempo que é partes objetivas e, uma vez em posse delas, reconstituir passo a passo tal tocado, o que é característico do circuito de existência. Ao mesmo tempo movimentação, até a síntese do movimento global. A rigor, o que há é em que é paciente, o corpo é agente; ele é afetado pelo exterior no ato uma antecipação do final desses movimentos, ignorando-se o movimento mesmo de explorar as suas regiões. originário desfechado pelo corpo próprio. No manejo de objetos externos, O caractere afetivo é crucial para se identificar outra fragilidade é natural que haja tal decomposição de etapas; contudo, o que podemos das teorias psicológicas no que tange ao corpo próprio. Se nos pautarmos dizer da movimentação do corpo próprio? Será que podemos decompor apenas pelo lado da subjetividade, aos elementos do exterior caberiam sua motricidade em eventos separados, servos de um fim, como intenta certos tipos de afeto, e a eles, no momento em que influenciariam o corpo, tal vertente da psicologia? corresponderia uma representação pontual no intelecto. O que não ocorre: O corpo, como vimos, está sempre presente; não é necessário, indica-nos Merleau-Ponty que, no caso de um incômodo acarretado pois, um movimento de preparação para alcançá-lo a distância, pois “eu o por um prego a ferir o pé, não se pensará que ele seria a “causa” ou a movo diretamente, não o encontro em um ponto do espaço objetivo para “representação” da dor, mas que ele é a região dolorosa mesma, ou seja, levá-lo a um outro, não preciso procurá-lo, ele já está comigo.” (Merleau- “a dor indica seu lugar, [...] ela é constitutiva de um ‘espaço doloroso’” Ponty 1, 138). Sua movimentação é, antes de tudo, espontânea, anterior ao (Merleau-Ponty 1, 138) que é intrínseco ao corpo. É o resvalar do mundo surgimento dum espaço compartimentado e quantificável. Há para o corpo circundante na subjetividade que a experiência de dor evidencia, posto uma presença inalienável, um atestado de existência própria a qual não que a dor, mesmo que advinda dum afeto externo, nunca se decompõe em cabem questionamentos, um campo de presença que o harmoniza com os “pensamento de dor” ou em mero significado doloroso. objetos que o rodeiam, afetando-se mutuamente e entranhando-os numa Desta maneira, na experiência afetiva, o corpo nunca é uma massa inerte e passiva; ele é, não somente pela sua permanência e pela suma, esse transbordamento da subjetividade. sua capacidade imediata de reflexão, diferente dos objetos externos pela Assim, tal como com a fisiologia mecanicista, Merleau-Ponty faz maneira com a qual projeta diante e ao redor de si um fundo afetivo, no uso dos argumentos internos de tal paradigma a fim de questioná-lo de qual esses elementos sensíveis do mundo externo se perfilam e estabelecem dentro. Porém, todas essas contribuições que lhe permitiram repensar a relações. É esse fundo afetivo que, a rigor, é o responsável por impulsionar subjetividade e superar a ordem restritiva do para-si vieram da própria a consciência para fora de si mesma (cf. Merleau-Ponty 1, 138), e que é psicologia, que, mesmo avançando em tais conclusões, não conseguiu ir involuntariamente desvelado pela psicologia clássica. além da subjetividade confinada ao interior. Por que, afinal, a psicologia Por fim, o último caractere investigado por Merleau-Ponty é o 206 mesma duração, fazendo-os habitar um mundo comum, que exprime, em acaba acertando em suas conclusões parciais, mas erra ao tentar dar um 207 Cadernos Espinosanos XXIII passo além? Por que ela, tal como o mecanicismo, termina por defender um dos extremos do pensamento objetivista, a saber, a ordem do para-si, a subjetividade soberana face ao mundo exterior? Para Merleau-Ponty, trata-se duma orientação teorética dos psicólogos clássicos que reforçava a separação total entre sujeito e objeto, desta vez favorecendo o primeiro, ou seja, um reforço do paradigma cartesiano de pensamento. Em suas palavras, “eles se situavam no lugar de pensamento impessoal ao qual a ciência se referiu enquanto ela acreditou poder separar, nas observações, o que diz respeito à situação do observador e as propriedades do objeto absoluto.” (Merleau-Ponty 1, 139). José Marcelo Siviero A incompletude de minha percepção era compreendida como uma incompletude de fato, que resultava da organização de meus aparelhos sensoriais; a presença de meu corpo, como uma presença de fato que resultava de sua ação perpétua sobre meus receptores nervosos; enfim, a união entre a alma e o corpo, suposta por essas duas explicações, era compreendida, segundo o pensamento de Descartes, como uma união de fato cuja possibilidade de princípio não precisava ser estabelecida porque o fato, ponto de partida do conhecimento, eliminava-se de seus resultados acabados. (Merleau-Ponty 1, 140) De certa maneira, os paradigmas da psicologia cometem os mesmos erros Contudo, por se colocar justamente numa perspectiva impessoal do mecanicismo, mas com sinal trocado; aqui, valorizou-se o sujeito em e destacada do mundo, a mirá-lo duma distância segura, o psicólogo, na detrimento de seu mundo. É o outro polo da problemática. visão do filósofo, ignora que é o seu próprio psiquismo que está sendo Os psicólogos que se pautam por tal matriz teórica, nas conclusões analisado, que são as leis universais da vida de sua consciência que estão do autor, tomam como objeto de seus estudos o “psiquismo”, ou seja, a vida em evidência. Ao enumerar fatos em seus estudos, o pesquisador também da consciência devidamente objetivada e, distanciando-se dele, isolando-se ignora a abertura originária ao mundo que é sua raiz, seu fundamento, o tal qual na relação entre sujeito e objeto, limitam-se a determinar suas leis e campo primordial de vivências que lhes confere um significado. É o campo suas relações através de um pensamento impessoal, uma visão de sobrevoo, afetivo da consciência do qual já falamos que é necessário retomar. para utilizarmos um célebre bordão merleau-pontyano. Assim, mesmo que Deste modo, ser uma consciência não é se fechar no interior suas conclusões parciais abrissem uma brecha para novas considerações da subjetividade e, uma vez encastelado nessa dimensão, contemplar filosóficas, a psicologia clássica enfocada por Merleau-Ponty se esquece do um mundo representado. Pelo contrário: “ser uma consciência, ou, fundo existencial fundado pelo subjetivo e, desprezando toda a riqueza da antes, ser uma experiência, é comunicar interiormente com o mundo, vida da consciência, limita-se a tomar os fenômenos mentais como simples com o corpo e com os outros, ser com eles em lugar de estar ao lado fatos. O corpo, por sua vez, não tarda a recair no plano da representação deles. Ocupar-se de psicologia é necessariamente encontrar, abaixo do intelectual; o subjetivismo de cunho cartesiano se fortalece. pensamento objetivo que se move entre as coisas inteiramente prontas, Novamente, o problema das relações entre alma e corpo; novamente, o impasse do pensamento objetivo, agora pendendo para o lado do intelecto. Desta maneira, alerta-nos Merleau-Ponty de que uma primeira abertura às coisas sem a qual não haveria conhecimento objetivo.” (Merleau-Ponty 1, 142). Sendo assim, reencontramos também nas análises da psicologia clássica a experiência do pré-objetivo, testemunha dessa abertura primeira 208 209 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero do corpo ao mundo, anterior às separações categoriais, meio onde se da duração e da temporalidade: pelo hábito, o corpo traz consigo, em encontram unidas, anterior à sua polarização, as ordens do somático e do perene atualização e retomada, todo o seu passado. Já o campo afetivo da psíquico. É a pá de cal jogada sobre o corpo reduzido a objeto material subjetividade que entrevemos pela análise dos argumentos dos psicólogos, do mundo e sobre a representação nascida do intelecto: por impor uma especialmente no que toca à permanência do corpo próprio e à sua perspectiva sobre o mundo, por se situar em seu estofo e não acima ou capacidade de afetar e ser afetado pelo mundo que o cerca, confere-lhe um numa dimensão lateral, é o corpo que, pela sua permanência, garante o horizonte, um campo de possibilidades de experiência, em resumo, abre-o acesso do sujeito à esfera mundana. Poderíamos dizer mais: que é pela ação para um devir, para uma dimensão futura. Reforça-se, portanto, a duração do corpo que o subjetivo ganha o exterior, ou que o para-si da interioridade que já era entrevista nas análises da fisiologia. Se o corpo tem um passado, psíquica transborda para além de suas fronteiras. não podemos mais considerá-lo como um objeto estável e regido por leis mecânicas, como queriam os fisiologistas; já se ele emana ao redor de si 3. Considerações finais O “paradigma cartesiano de pensamento”, ou seja, a separação entre a alma e o corpo, uma das mais conhecidas fórmulas filosóficas, é objeto de críticas constantes por parte de Merleau-Ponty. Nele, as relações entre ambas as dimensões ontológicas são marcadas por uma forte oposição: ambas são substâncias separadas, distintas entre si, cada uma com a sua dimensão própria. Tanto nas críticas à fisiologia mecanicista quanto na análise dos discursos da psicologia clássica, o filósofo desemboca inexoravelmente no domínio do pré-objetivo. É essa dimensão que está antes das categorias, que é subjacente aos discursos categoriais da fisiologia e da psicologia, que permite dar ao corpo percipiente e às suas capacidades sensório-motoras um novo estatuto filosófico: o de veículo da existência, acesso ao ser através da percepção do mundo e, em outras palavras, como o ser no mundo mesmo. Ser no mundo é, antes de tudo, ter um corpo em contato permanente com um mundo de caracteres sensíveis. O paradoxo do corpo habitual e atual, reforçado pelos sintomas do membro fantasma e da anosognose, além de contestar o argumento do corpo como um objeto material como os outros, contamina-o com o germe 210 um campo de virtualidades, que nada mais é do que o transbordamento da subjetividade no exterior, também não mais podemos contar com a impessoalidade e a atemporalidade dum intelecto soberano. Portanto, o corpo que emerge das reflexões de Merleau-Ponty é o pivô da existência primeiramente porque ele a acompanha em todos os seus passos; é ele que pulsa nessa duração subjacente a todas as vivências do ser humano, fazendo a junção entre seu passado e seu devir. O corpo como pivô da existência é, por si só, atualidade mesma. É nele que se deposita a dimensão temporal, é no corpo pré-objetivo que o somático e o psíquico não travam conflito algum. BEYOND THE OBJECT BODY AND THE INTELECTUAL REPRESENTATION: how Merleau-Ponty rediscovers the body as the existence’s vehicle. Abstract: This essay analyses the objections made by Merleau-Ponty to what he calls “cartesien paradigm of thinking”, the separation between soul and body. Concentrating in the two first chapters of Phénomenologie de la perception’s first part, it’s an intent to identificate, in the critics directed to the mechanicist physiology and to the subjective psychology, how the philosopher gives a new philosophical statute for the sensitive 211 Cadernos Espinosanos XXIII José Marcelo Siviero body, putting it as the main existence’s vehicle, in the same time that he rediscovers the pre-objective experience. Keywords: Merleau-Ponty; existence; body; subjectivity, physiology. pré-objetiva justamente num ser irracional pelo mesmo motivo que se utiliza de exemplos de doente para clarificar os meandros da percepção: é nessas situações nas quais o pensamento objetivo está ausente que se verifica a presença preponderante de seu fundamento, na qual só se pode encontrar esse engajamento mundano primordial. Em resumo, nas situações que escolhe para analisar, Merleau-Ponty parte não das categorias mas da vivência bruta e espontânea, o que seria dificultoso (para não se dizer problemático) se ele tomasse as categorias objetivas como ponto de partida. Trata-se, a rigor, duma questão de método que é suscitada pelo próprio pré-objetivo. 2. É interessante notar como Merleau-Ponty busca conceitos em outros ramos do conhecimento, no caso a psicologia, para iluminar os estudos e reflexões que elabora ao longo de sua filosofia. No caso do membro fantasma, quando uma determinada recordação ou contexto emocional o manifestam no doente, a associação com o recalque do qual fala a psicanálise é inevitável. Escreve-nos o filósofo sobre o recalque que ele “consiste em que o sujeito se empenha em uma certa via [...], encontra uma barreira nessa via e, não tendo força nem para transpor o obstáculo nem para renunciar ao empreendimento, permanece bloqueado nessa tentativa e emprega indefinidamente suas forças em renová-la em espírito.” (Merleau-Ponty 1, 123) A rigor, o indivíduo recalcado ou traumatizado tem a existência imobilizada por um episódio ou elemento de seu passado, que o impede de se projetar ao futuro, condicionando-o a um horizonte impossível que ele não cessa de alimentar em cada segmento de sua vida. Aqui vemos o peso do passado que o corpo atual é fadado a carregar: toda recordação, ou qualquer elemento que faça referência a ela, como no caso dos mutilados que ainda sentem o membro inexistente na extremidade do coto, reabre esse passado, torna-o presente a quem o viveu e obriga o indivíduo a retomá-lo a partir de sua atualidade. Por outro lado, em se considerando o retorno inesperado dessa vivência passada, “todo recalque é a passagem da existência em primeira pessoa a um tipo de escolástica dessa existência, que vive para uma experiência antiga ou antes para a recordação de tê-la tido” (Merleau-Ponty 1, 124). O recalque, tal como a permanência dum braço fantasma, aprisiona o sujeito numa experiência em terceira pessoa, isto é, dissolve a experiência do atual no anonimato e na generalidade. Como no exemplo apontado por Merleau-Ponty nessa altura do texto, o indivíduo continua a se empenhar num amor adolescente ou numa obra malfadada, mesmo sabendo-os impossíveis, embora novas experiências e novos fatos vão lhe acontecendo. Porém, essas experiências são arroladas num domínio geral e vivenciadas pelo sujeito em seu anonimato, tendo pouca ou nenhuma influência em seus projetos pessoais. Além de reforçar o fenômeno REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 2. FERRAZ, Marcus Sacrini Ayres. O transcendental e o existente em Merleau-Ponty. São Paulo: Humanitas, 2006. 3. RAMOS, Silvana de Souza. A Prosa de Dora: Uma leitura da articulação entre natureza e cultura na filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo, 2009. Tese (Doutorado em Filosofia). FFLCH, Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo. Notas: 1. Observemos o comentário de Marcus Ferraz: “O território em que o psíquico e o somático estão integrados é a dimensão em que eles ainda não foram cindidos. Na vivência encarnada do ser no mundo, no movimento de transcender-se em um meio significativo, não há separação entre ambos, e sim a experiência de um ‘corpo habitual’, ou seja, de um conjunto de respostas às situações mundanas que se sedimentam e podem mesmo ganhar autonomia em relação à consciência atual do corpo.” (Ferraz 2, 88-89). Não falaremos diretamente da contraposição entre corpo habitual e corpo atual nessa passagem; ela aparecerá em breve em nosso texto. Por ora, da leitura do comentador e do texto merleau-pontyano, descobrimos o pré-objetivo como um elemento subjacente ao pensamento objetivo, e não como a sua contraparte. Deste modo, tanto a objetividade quanto a subjetividade se radicam nesse domínio originário da experiência, nessa vivência primeira e espontânea do ser no mundo. A cisão, portanto, é secundária e dependente. Merleau-Ponty identifica a experiência 212 213 Cadernos Espinosanos XXIII de ambiguidade temporal do corpo em sua marcha existencial, o recurso a conceitos advindos de outros domínios do conhecimento é, mais do que um recurso estilístico frequentemente empregado por Merleau-Ponty, uma maneira de colocar a filosofia em diálogo com a experiência integral do ser humano. TRADUÇÃO APRESENTAÇÃO À TRADUÇÃO DE AD ETHICAN B. DE SP. DE LEIBNIZ Leibniz recebeu a Opera posthuma de Espinosa em 1678, provavelmente depois de 25 de janeiro* (quando Schuller comunica o envio dela a Leibniz) e, a partir dessa data, fez uma série de anotações nas margens de seu exemplar. Sem a preocupação de relacionar os textos comentados entre si, leu, sugere Belaval**, como um criador, a partir de sua própria filosofia. Há dois manuscritos de Leibniz sobre a Ética de Espinosa: um comentário mais detido sobre a parte I da Ética (publicado por Gerhardt em 1875: Leibniz – Die philosophischen Schriften. Ed. C. I. Gerhardt, 7 vols., Berlin, Halle: 1949-63; reimpressão Hildesheim, 1962 – vol. I, p.139- 150) e uma releitura dos cinco livros da Ética na qual Leibniz redefine de maneira muito breve, em notas curtas, alguns conceitos espinosanos (publicado por Grua: Textes inédits. Ed. G. Grua. Paris: PUF, 1948 – vol. I, p.277-286). A tradução que agora apresentamos é do primeiro desses manuscritos, escrito, certamente depois de uma segunda leitura do livro I * Cf. Morfino, V. – Spinoza contra Leibniz. Documenti di uno scontro intellettuale (1676-1678). Milano: Edizioni Unicopli, 1994. – p.115. ** Belaval, Y. – “Leibniz lecteur de Spinoza” in Archives de philosophie, 1983, 4. 214 215 Cadernos Espinosanos XXIII da Ética, como sugere V. Carraud* depois de F. de Careil**. leitura das proposições 17 a 36, razão pela qual Friedmann* chega a Esse texto, que recebeu de Gerhardt o título Ad Ethican B. considerar a hipótese de que o comentário à segunda parte do De Deo, de Sp., apresenta uma crítica cerrada do primeiro livro da Ética de sobretudo a partir da proposição 20, tenha sido escrito um pouco mais Espinosa, acompanhando o duplo movimento que define o De Deo***, isto tarde. De qualquer maneira, o fato é que a acidez das críticas do manuscrito é, a demonstração da unicidade substancial (nas proposições 1 a 16) e a leibniziano na segunda parte do livro I da Ética pode ser perfeitamente demonstração da causalidade eficiente imanente necessária (proposições compreendida pelo tema a que se dedicam essas proposições de Espinosa, 17-36). Podemos observar uma diferença sutil no comentário de Leibniz a causalidade eficiente imanente necessária, tema que vai de encontro a a cada um dos grupos de proposições. É verdade, como observa Morfino****, teses fundamentais da filosofia leibniziana, como a criação do mundo por que o adjetivo que domina o manuscrito de Leibniz é “obscuro” (usado para um Deus bom e sábio, a liberdade divina e a humana etc. Mesmo que as definições 2, 3, 4, axioma 1, proposições 5, 8, 20, 21, 22, 29). Em outras possamos admitir que a filosofia leibniziana ainda não estava madura em palavras, a crítica à forma lógica do texto de Espinosa aparece ao longo 1678 e que alguns temas ainda não estavam perfeitamente definidos**, há de todo o livro I da Ética, mas quando Leibniz se dedica às proposições certos pressupostos de que Leibniz jamais poderia se desfazer – a criação que demonstram a essência do absoluto, seus comentários mostram um do mundo por um Deus sábio é um deles, a contingência desse mundo interesse particular em compreender o que está sendo dito e não apenas criado por uma ação da vontade divina também. . Nas primeiras proposições, a crítica à As anotações de Leibniz ao De Deo, traduzidas para o português forma lógica do texto leva Leibniz inclusive a refazer demonstrações, por Homero Santiago, constituem um documento importante para a oferecendo alternativas para o que considera mal demonstrado. Em certo compreensão das relações entre a filosofia de Leibniz e a filosofia de sentido, poderíamos dizer que, por mais críticos que sejam os comentários Espinosa, para a compreensão das possíveis influências de Espinosa no às proposições 1-16, Leibniz é mais generoso em sua leitura do que na pensamento leibniziano, para a compreensão, enfim, de determinadas em criticar as teses espinosanas ***** * Carraud, V. in Leibniz – “Sur l’Éthique de Spinoza” in Philosophie, n.2, avril 1984. Paris: Les Editions de Minuit – p.2. ** Foucher de Careil – Ménmoire sur La Philosophie de Leibniz. Paris: 1905 – tomo I, p.166. *** Cf. Chaui, Marilena – A nervura do real. São Paulo: Cia. das Letras, 1999 – p.750-751, p.816. **** Morfino, V. – “Il manoscrito leibniziano Ad Ethicam” in Quaderni materialisti volume II, 2003. Milano: Edizioni Ghibli – p.108. ***** O adjetivo “obscuro” denota, no comentário às primeiras 16 proposições, apenas uma incompreensão ou uma discordância, ao passo que nas proposições seguintes, as críticas são muito mais ásperas, como, por exemplo, na proposição 20 “os raciocínios desse gênero são familiares àqueles que não possuem a arte verdadeira da demonstração.”; na proposição 25 “essa prova não tem nenhuma importância”; na proposição 29 “A demonstração é obscura e abrupta, conduzida pelas proposições precedentes, elas também abruptas, obscuras e duvidosas”; na proposição 30, “essa proposição, tão clara de acordo com as precedentes, (...), nosso autor a demonstra, a sua maneira, por elementos obscuros, duvidosos e afastados” e, mais adiante ainda na P30, “O espírito do autor, parece, é bastante tortuoso: raramente ele avança por um caminho claro e natural, mas sempre abruptamente e com desvios. E a maior parte das demonstrações enganam o espírito mais do que o esclarecem.”. 216 Apresentação: Tessa Moura Lacerda posições filosóficas de Leibniz. Tessa Moura Lacerda. * Friedmann - Leibniz et Spinoza. Paris: Gallimard, 1963. ** Cf., por exemplo, a definição de substância ou a relação entre a essência simples de Deus e seus atributos. Ver nosso Lacerda, Tessa - “Simplicidade e variedade: um diálogo entre Leibniz e Espinosa”. In: O que nos faz pensar, 26, dezembro de 2009, pp. 217-241. 217 SOBRE A ÉTICA DE BENTO ESPINOSA G. W. LEIBNIZ Ad Ethicam B. d. SP. (G.W. Leibniz) (Tradução de Homero Santiago e revisão de Tessa Moura Lacerda*) Pars prima de Deo. Definitio 1. Causa sui est id cujus Essentia involvit existentiam. DEFINIÇÃO 1. CAUSA DE SI é isso cuja essência envolve existência**. DEF. 2. É obscura: que a coisa finita seja a que pode ser delimitada Definitio 2. obscura est, quod res sit finita, quae alia sui generis por outra de seu gênero. O que é, com efeito, um pensamento ser delimitado terminari potest. Quid est enim cogitationem cogitatione terminari? An qua por um pensamento? Dá-se um maior que outro, tal como se diz que um datur alia major? uti corpus terminari ait quo aliud majus concipi potest. Adde infra prop. 8. corpo é delimitado por se poder conceber outro maior? Acrescente-se a prop. 8 abaixo. DEF. 3. SUBSTÂNCIA é isso que é em si e concebido por si. Definit. 3. Substantia est quod in se est et per se concipitur. Também esta é obscura. Com efeito, o que é ser em si? Ademais cabe Etiam haec obscura. Quid enim in se esse? Deinde quaerendum est, perguntar se ser em si e ser concebido por si conjugam-se entre si cumulativa cumulative an disjunctive inter se conjungat: in se esse, et per se concipi, id est an hoc velit: substantiam est id quod in se est, item substantia est id quod per se concipitur; an vero velit substantiam esse id in quo utrumque ou disjuntivamente; ou seja, se isto quer dizer que substância é aquilo que é em si, bem como que a substância é aquilo que é concebido por si; ou se quer dizer que a substância é isso em que concorrem ambas as coisas, a saber, que seja em si e por si concebida. Ou será necessário demonstrar hoc concurrit, ut nempe et in se sit et per se concipiatur. Aut necesse erit que ter uma coisa é também ter a outra, já que, pelo contrário, mais parece ut demonstret, qui unum habeat etiam alterum habere, cum contra videatur haver algumas coisas que são em si, se bem que não sejam concebidas potius, esse aliqua quae sint in se, etsi non per se concipiantur. Et ita vulgo homines substantias concipiunt. Subjicit: substantia est cujus conceptus 218 PRIMEIRA PARTE: DE DEUS por si. e é assim que os homens comumente concebem as substâncias. Ele * Professores do Departamento de Filosofia da USP. ** Os trechos em itálicos correspondem a passagens do texto de Espinosa, embora freqüentemente nas transcrições de Leibniz faltem termos presentes no texto de Espinosa. (N.R.) 219 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) non indiget alterius rei conceptu a quo formari* debeat. Sed in hoc quoque acrescenta: substância é isso cujo conceito não carece do conceito de outra difficultas, nam in sequenti definitione ait coisa a partir do qual deva ser formado. Mas nisso igualmente há uma attributum ab intellectu de substantia percipi tanquam ejus essentiam constituens. Ergo attributi conceptus necessarius est ad formandum conceptum substantiae. Si dicas intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela. Logo, o conceito de atributo é necessário para formar o conceito de substância. attributum non esse rem, te vero requirere saltem ut substantia non indigeat Se disseres que atributo não é uma coisa, e que tu na verdade requeres ao conceptu alterius rei, respondeo. explicandum est ergo, quid vocetur res, ut menos que a substância não precise do conceito de outra coisa, respondo: intelligamus definitioneni, et quomodo attributum non sit res.** Definit. 4. etiam obscura est, quod attributum sit id quod intellectus cabe então explicar, para entendermos a definição, o que é chamado de coisa e como o atributo não é uma coisa. DEF. 4. Também é obscura: atributo é isso que o intelecto percebe de substantia percipit, ut essentiam ejus constituens. Quaeritur enim an per da substância como constituindo a essência dela. Com efeito, pergunta-se attributum intelligat omne praedicatum reciprocum, an omne praedicatum se por atributo ele entende todo predicado recíproco; ou se todo predicado essentiale sive reciprocum sive non; an denique omne praedicatum essencial, recíproco ou não; ou se, finalmente, todo predicado essencial ou essentiale primum seu indemonstrabile de substantia. Vide definit. 5. Definit. 5. Modus est quod in alio est, et per aliud concipitur. indemonstrável da substância. Ver a def. 5. DEF. 5. Modo é isso que é em outro, pelo qual também é concebido. Portanto parece diferir do atributo nisso: o atributo deveras está na Videtur ergo in eo differre ab attributo, quod attributum est quidem in substância, todavia é concebido por si. E aqui, ajuntada esta explicação, substantia, attamen per se concipitur. Et hic explicatione adjecta cessat desaparece a obscuridade da definição 4. obscuritas definitionis 4. Definit. 6. Deum, inquit, definio Ens absolute infinitum, vel substamiam constantem infinitis attributis, quorum unumquodque aeterriam DEF. 6. Defino Deus, diz ele, o ente absolutamente infinito, isto é, a substância que consiste em infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e [140] infinita. Ele devia mostrar que essas duas definições são eqüipolentes; de outra forma não pode substituir uma pela et infinitam essentiam exprimit. Ostendere debebat has duas definitiones outra. Ora, serão eqüipolentes quando se mostrar que na natureza há vários esse aequipollentes, alioqui unam in alterius locum substituere non potest. atributos ou predicados que são concebidos por si, bem como quando se Erunt autem aequipollentes, ubi ostensum erit plura esse in rerum natura attributa seu praedicata, quae per se concipiuntur; item ubi ostensum erit * No original, firmari; corrigimos seguindo Carraud c o próprio texto espinosano; logo a diante se vê: ad formandum conceptum... A edição italiana ndo procede à correção. ** Segundo Morfino, este parágrafo está à margem do manuscrito; Gerhardt incorpora-o ao texto. 220 dificuldade, pois na definição seguinte, ele diz que ATRIBUTO é o que o mostrar que vários predicados podem estar juntos. Além disso, é imperfeita toda definição (ainda que possa ser verdadeira e clara) entendida a qual se possa duvidar que a coisa definida seja possível. Ora, esta é assim; com efeito, pode-se ainda duvidar que o ente que tem infinitos atributos não implique [contradição]; e isso porque se pode duvidar de que a mesma 221 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) plura praedicata posse stare, inter se. Praeterea omnis definitio imperfecta essência simples possa ser exprimida por vários atributos diferentes. De est (tametsi vera et clara esse possit) qua intellecta dubitari potest an res fato, são várias as definições das coisas compostas, mas de uma coisa definita sit possibilis. Talis autem ista est, dubitari enim adhuc potest an simples não há senão uma única, e sua essência parece não poder ser Ens infinita habens attributa non implicet. Vel ideo quia dubitari potest, an exprimida senão de um único modo. eadem essentia simplex pluribus diversis attributis exprimi potest. Equidem DEF.7 COISA LIVRE é a que existe a partir da necessidade de plures sunt definitiones rerum compositarum, sed rei simplicis non nisi sua natureza e determina-se por si, COISA COAGIDA aquela que é unica est, nec ejus essentia nisi unico modo exprimi posse videtur. determinada por outro a existir e a operar. Definit. 7. Res libera quae ex suae naturae necessitate existit et ad agendum determinatur, res coacta quae ab alio determinatur ad existendum et operandum. Definit. 8. Per eternitatem intelligo ipsam existentiam quatenus ex rei essentia sequi concipitur. Has definitiones probo. Axiom. 1. Omnia quae sunt, vel in se vel in alio sunt. Ax. 2. 1d quod per aliud non potest concipi, per se concipitur. Ax. 3. Ex data determinata causa sequitur effectus, si non detur, non sequitur. Ax. 4. Effectus cognitio ex cognitione causae dependet et eam involvit. Ax. 5. Quae nihil commune secum invicem habent, etiam per se invicem intelligi non possunt. Ax. 6. Idea vera debet cum suo ideato convenire. Ax. 7. Quicquid ut non existens potest concipi, ejus essentia non involvit existentiam. DEF. 8. Por ETERNIDADE entendo a própria existência enquanto concebida seguir da definição da coisa eterna. Aprovo estas definições*. Ax. 1. Tudo que é, ou é em si ou em outro. Ax. 2. Isso que não pode ser concebido por outro é concebido por si. Ax. 3. De uma causa determinada dada segue um efeito; se não for dada, não se segue. Ax. 4. O conhecimento do efeito depende do conhecimento da causa e envolve-o. Ax. 5. Coisas que nada têm em comum uma com a outra também não podem ser inteligidas uma pela outra. Ax. 6. A idéia verdadeira deve convir com o seu ideado. Ax. 7. O que quer que possa ser concebido como não existente, sua essência não envolve existência.** Acerca dos AXIOMAS noto: o primeiro é obscuro enquanto não Circa Axiomata haec noto: Primum tamen obscurum est, quam constar o que é ser em si. Do segundo e do sétimo não era necessário anotar diu non constet quid sit esse in se. Secundum et septimum annotari nihil nada. O sexto parece pouco conforme: com efeito, toda idéia convém com necesse erat. Sextum parum congruum videtur; omnis enim idea cum suo seu ideado, e não vejo o que é a idéia falsa. O terceiro, o quarto e o quinto ideato convenit, nec video quid sit idea falsa. Tertium, quartum, quintum julgo que podem ser demonstrados. demonstrari posse arbitror. * Trata-se, como indica Gehardt, das definições 7 e 8 (N.T.). ** Leibniz transcreve os axiomas à margem do manuscrito-, Gerhardt os dá em nota; nós o incorporamos ao texto como faz Morfino (.Spinoza contra Leibniz. Documenti di uno scontro intellettuale (1676-1678). Milano: Edizioni Unicopli, 1994). (N.T.) 222 223 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) Propositio 1. Substantia est natura prior suis affectionibus, id PROPOSIÇÃO 1. A substância é anterior por natureza a suas est modis, nam ad defin. 5. dixit se per substantiae affectiones intelligere afecções, isto é, a seus modos, pois à def. 5 ele disse entender por afecções modos. Caeterum non explicuit quid sit esse natura prius, ideoque nec potest haec propositio ex praecedentibus demonstrari. Videtur autem per natureza, e por isso não pode demonstrar esta proposição a partir do que a precede. Ora, parece que por anterior por natureza a outro ele entende intelligere id per quod aliud concipitur. Caeterum fateor aquilo pelo que o outro é concebido. De resto, confesso que também nisso et in hoc aliquam esse difficultatem; videntur enim non tantum posteriora há alguma dificuldade; com efeito, parece que se podem conceber não natura prius alio per priora, sed et priora per posteriora concipi posse. Licebit tamen natura prius hoc modo definire, quod concipi potest non concepto alio, ita ut contra alterum concipi non possit nisi concepto ipso. Verum ut dicam quod res est, apenas os posteriores pelos anteriores, mas também os anteriores pelos posteriores. Todavia, seria lícito definir anterior por natureza [141] deste modo: o que pode ser concebido não concebida outra coisa; assim como, do contrário, não se possa conceber outro a não ser concebido o próprio. Para natura prius paulo latius est: nam exempli causa proprietas denarii ut sit 6 dizer a verdade, anterior por natureza é algo um pouco mais amplo, pois, + 4 posterior natura est hac ut sit 6 + 3 + 1 (quia ista est propior omnium por exemplo, a propriedade da dezena de ser 6 + 4 é posterior por natureza primae: denarius est 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1) et tamen concipi potest sine priore, imo quod amplius est, potest sine, ea demonstrari. Addo a de ser 6 + 3 + 1 9 (já que esta é mais próxima da primeira de todas: o número 10 é 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1 + 1), e todavia pode ser concebida sem uma anterior; e mais, é mais ampla e pode ser demonstrada aliud exemplum: In Triangulo proprietas illa, quod tres anguli interni sint sem ela. Acrescento outro exemplo: no triângulo, a propriedade de serem aequales duobus rectis, posterior natura est hac- quod duo anguli interni os três ângulos internos iguais a dois retos é posterior por natureza à de sint aequales externo tertii, et tamen illa sine ista concipi, imo forte (etsi non aeque commode) sine ipsa demonstrari potest. Prop. 2. Duae substantiae diversa attributa habentes nihil inter serem os dois ângulos internos iguais ao externo do terceiro, e todavia aquela pode ser concebida sem esta, e porventura até pode (embora não com a mesma comodidade) ser demonstrada sem ela. PROP. 2 Duas substâncias que têm atributos diversos nada têm em se commune habent. Si per attributa intelligit praedicata quae per se comum entre si. Se por atributos ele entende predicados que são concebidos concipiuntur, concedo propositionem, posito duas esse substantias A por si, concedo a proposição, posto serem duas substâncias A e B, e o et B et substantiae A attributum esse c, substantiae B attributum esse d, vel si substantiae A atribula omnia sint c. e, substantiae vero B attributa 224 da substância os modos. De resto não explicou o que é ser anterior por atributo da substância A ser c e o atributo da substância B ser d; ou se todos os atributos da substância A são c, e; todos os atributos da substância B são d, f. Seria diferente se aquelas duas substâncias tivessem alguns omnia d. f. Secus est si duae illae substantiae quaedam habeant attributa atributos diversos e alguns comuns, como se os atributos de A fossem c, diversa, quaedam coramunia, ut si attributa ipsius A sint c. d. et ipsius B d, e os atributos de B fossem d, f. Se ele nega que isso possa ocorrer, 225 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) sint d. f. Quod si negat hoc fieri posse, demonstranda est impossibilitas. cabe demonstrar a impossibilidade. No caso de objeção, talvez demonstre Propositionem ipsam in casu objectionis forte demonstrabit hoc modo: a proposição deste modo: porque d e igualmente c exprimem a mesma quia d pariter et c eandem essentiam exprimit (cum ejudem substantiae A attributa sint ex hypothesi) et ob eandem rationem etiam d et f (cum etiam ex hypothesi ejusdem substantiae 13 attributa sint); ergo et essência (como são por hipótese atributos da mesma substância A) e em vista dessa mesma razão também d e f (como também por hipótese são atributos da mesma substância B); logo, também c bem como f. Donde et f. Unde se segue que A e B são a mesma substância, contra a hipótese; logo é sequitur, eandem esse substantiam A et B, contra hypothesin, absurdum absurdo duas substâncias diversas terem algo em comum. Respondo c ergo duas substamias diversas aliquid commune habere.* Respondeo, non concedi a me quod possint dari duo attributa quae per se concipi, et tamen idem exprimere possint. Nam quandocunque id contigit, tunc duo illa attributa idem diverso modo exprimentia tandem resolvi possunt, vel saltem eorum alterutrum. Quod facile possum demonstrare. Prop. 3. Quae res nihil coramune inter se habent, earum una alterius causa esse non potest, per axiom. 5. 4. Prop. 4. Duae aut plures res distinctae vel inter se distinguuntur** que não é concedido por mim que se possa dar dois atributos que sejam concebidos por si, e todavia possam exprimir o mesmo. Pois, cada vez que isso acontece, então aqueles dois atributos, exprimindo o mesmo de modo diverso, podem finalmente ser resolvidos, ou pelo menos um dos dois. O que posso demonstrar facilmente. PROP. 3. De coisas que entre si nada têm em comum uma com a outra, uma não pode ser causa da outra, pelos axiomas 5 e 4. PROP. 4. Duas ou várias coisas distintas distinguem-se entre si ou pela diversidade dos atributos das substâncias, ou pela diversidade das afecções das mesmas substâncias. Duas ou várias coisas distintas ex diversitate attributorum substantiarum, vel ex diversitate affectionum. distinguem-se entre si ou pela diversidade dos atributos das substâncias, Desmonstrat ita: Omnia quae sunt, vel in se vel In alio sunt per axiom. 1., ou pela diversidade das afecções das mesmas substâncias. Ele demonstra hoc est per defin. 3. et 5. extra intellectum nihil datur praeter substantias, assim: tudo o que é, ou é em si ou em outro, pelo ax. 1, isto é, pelas def. 3 e earumque affectiones. [Hic miror eum oblivisci attributorum, nam defin. 5. 5 nada se dá fora do intelecto além da substância e suas afecções. (Admira- per substantiae affectiones intelligit tantum modos. Sequitur ergo aut eum ambigue locutum, aut attributa non numerari ab eo inter res extra intellectum existentes, sed tantum substantias et modos. Caeterum propositionem fácilius poterat ostendere, modo addidisset, res quae scilicet concipi possunt per attributa vel affectiones, necessario cognosci adeoque et distingui.] me aqui que ele tenha esquecido dos atributos, pois a def. 5 entende por afecções da substância apenas os modos. Logo, segue-se que ou falou de forma ambígua ou os atributos são enumerados por ele entre as coisas existentes fora do intelecto, mas apenas substâncias e modos. De resto, pudera apresentar mais facilmente a proposição, contanto que acrescentasse que as coisas que podem ser concebidas pelos atributos em afecções necessariamente são conhecidas e por isso também distinguidas.). * Richiamento com um asterisco à margem do manuscrito (Morfino). ** Gerhardt, distinguntur; corrigimos seguindo o texto espinosano. 226 227 Cadernos Espinosanos XXIII Prop. 5. In rerum natura non possunt, dari duae aut plures substantiae ejusdem naturae seu attributi. [Hic annoto obscurum videri quid sit hoc: in rerum natura. An intelligat: in universitate rerum existentium, an vero in regione idearum Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) PROP. 5. Na natureza das coisas não podem ser dadas duas ou várias substâncias de mesma natureza, ou seja, de mesmo atributo. (Noto aqui que parece obscuro o que seja isto: “na natureza das coisas”. Entende “na universalidade das coisas existentes” ou “na região das idéias ou essências dos possíveis”? Ademais, é obscuro se quer dizer vel essentiarum possibilium. Deinde obscurum est an velit dicere, non que não se dão várias essências de mesmo atributo comum, ou se quer dizer dari plures Essentias ejusdem attributi communis, vel an velit, non dari que não se dão vários atributos de mesma essência. Admiro-me também plura individua ejusdem essentiae. Miror etiam, cur hic vocem naturae et vocem attributi pro aequipollentibus sumat, nisi per attributum intelliga quod totam continet naturam. Quo posito non video quomodo possint dari por que ele toma aqui natureza e o termo atributo como eqüipolentes; a não ser que entenda por atributo o que contém a natureza inteira. Isto posto, não vejo de que modo se possam dar vários atributos de mesma substância que sejam concebidos por si). Demonstração: se se distinguissem, distinguir- plura attributa ejusdem substantiae quae per se concipianturj Demonstratio: se-iam ou pelas afecções ou pelos atributos; se pelas afecções, então, Si distinguerentur, aut affectionibus aut attributis distinguerentur; si como a substância é por natureza anterior a suas afecções pela prop. 1, affectionibus, ergo cum substantia sit natura prior suis affectionibus per prop. 1., depositis affectionibus etiam distingui debent, ergo attributis; si attributis, despojadas das afecções elas devem também distinguir-se, então, pelos atributos; se pelos atributos, logo não se dão duas substâncias de mesmo atributo. Respondo que parece que subjaz um paralogismo. Pois duas ergo non dantur duae substantiae ejusdem attributi. Respondeo subesse videri substâncias podem distinguir-se e todavia ter algum atributo em comum, paralogismum. Nam duae substantiae possunt, distingui attributis, et tamen contanto que tenham alguns próprios. Por exemplo, A (c-d) e B (d-e), em habere aliquod attributum commune, modo etiam aliqua praeterea habeant propria. Ex. gr. A c. d et B d. e quorum illius attributum sit c. d, hujus d. e. Annoto: prop. 1. non. esse utilem nisi ad hanc. Verum ea potuisset que os atributos daquele são c-d, e o deste d-e. Noto: a prop. 1 não é útil a não ser para esta demonstração. Poderia, contudo, abster-se dela, já que basta poder conceber a substância sem afecções, seja ou não seja ela anterior por natureza. careri, quia sufficit substantiam concipi posse sine affectionibus, sive sit natura prior, sive non. 228 229 Cadernos Espinosanos XXIII Prop. 6. Una substantiam non potest produci ab alia substantia, nam duae substantiae per prop. 5. non sunt ejusdem attributi, ergo nihil commune babent per prop. 2, ergo non potest una* esse alterius causa per axiom. 5. Idem aliter et brevius, quia quod per se concipitur, non potest Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) PROP. 6. Uma substância não pode ser produzida por outra substância, pois, pela prop. 5, não há duas substâncias de mesmo atributo; logo, nada têm em comum, pela prop. 2; logo, uma não pode ser causa de outra, pelo ax. 5. o mesmo, de outra forma e mais brevemente: já que o que é concebido por si não pode ser concebido por outro como por uma causa, concipi per aliud velut causam per axiom. 4. Caeterum respondeo, concedi pelo ax. 4. De resto, respondo que concedo a demonstração desde que se a me demonstrationem, si substantia sumitur pro re quae per se concipitur, tome substância como coisa que é concebida por si. Será diferente se se secus est si sumatur pro re quae in se est, uti vulgo honúnes sumunt, nisi ostendatur idem esse in se esse et per se concipi. tomar como uma coisa que é em si, assim como comumente tomam, a não ser que seja mostrado que é o mesmo ser em si e ser concebido por si. PROP. 7. À NATUREZA DA SUBSTÂNCIA PERTENCE EXISTIR. Prop. 7. Ad naturam substantiae pertinet existere. A substância não pode ser produzida por outro, prop. 6. Logo, é causa de Substantia non potest produci ab alio prop. 6. Ergo est causa sui, id est si, isto é, pela def. 1, sua essência envolve existência. Aqui, com justiça, per definit. 1. ipsius essentia involvit existentiam. Hic non immerito se o repreende por ora tomar causa de si como algo definido, a que a reprehenditur, quod causam sui modo ut definitum aliquod sumit, cui peculiarem significationem definit. 1. ascripsit, modo eo in coramuni ac def. 1 adscreve uma definição peculiar, ora utilizá-la em seu significado comum e vulgar. O remédio é fácil, todavia; contanto que se converta aquela 1ª. definição em axioma e se diga: o que quer que não seja por vulgari suo significatu. utitur. Remedium tamen facile est, si definitionem outro, é por si próprio, ou seja, é a partir de sua essência. Porém, restam illam 1. in axioma convertat et dicat- Quidquid non ab alio est, id est a se aí outras dificuldades, a saber, o raciocínio só precede se afirmado que ipso, seu ex sua essentia. Verum aliae hic supersunt difficultates: Nempe procedit tantum ratiocinatio, posito substantiam existere posse. Necesse est enim tunc ut, quia ab alio produci non potest, a se ipso existat, adeoque a substância pode existir. Com efeito, é então necessário que ela, por não poder ser produzida por outro, exista por si própria e, dessa forma, exista necessariamente; ora, que a substância é possível, isto é, que possa ser concebida, é algo a demonstrar. Parece que pode ser demonstrado a necessario existat- possibilem autem substantiam, id est concipi posse partir disto: se nada é concebido por si, nada também será concebido por demonstrandum est. Demonstrari posse videtur ex eo quia si nihil per outro, e dessa forma absolutamente nada será concebido. A fim de mostrar se concipitur, nihil etiam per aliud concipietur, adeoque nihil omnino concipietur. Quod ut distincte ostendatur, considerandura est, si ponatur a concipi per B, in conceptu ipsius A esse conceptum ipsius b. Et rursus Si distintamente, cumpre considerar que se se afirma A concebido por B, no conceito de A está o conceito de B. e de novo, se B é concebido por C, o conceito de C estará no conceito de A, e assim por diante até o último. Se alguém responder que não se dá um último, respondo que tampouco se dá um primeiro, o que mostro assim: como no conceito do que é concebido * Gerhardt, unum; corrigimos seguindo o texto espinosano e Carraud. 230 231 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) concipitur per c, in conceptu b esse conceptum ipsius c, et ita conceptus por outro nada há senão o que é alheio, por isso, procedendo por graus, ipsius c in conceptu ipsius a erit, et ita porro usque ad ultimum. Quid si quis ou não haverá absolutamente nada nele, ou somente o que é concebido b respondeat non dari ultimum, respondeo nec dari primum, quod sic ostendo. Quia in ejus quod per aliud concipitur conceptu nihil est nisi alienum, ideo por si. julgo que esta demonstração é completamente nova, mas infalível. E com ajuda dela pode-se mostrar que o que é concebido por si pode ser concebido. Mas se pode ainda duvidar, todavia, se isso é possível, do gradando per plura, aut nihil omnino in eo erit aut nihil nisi quod per se modo como aqui se toma o possível, seguramente não como aquilo que concipitur. Quam demonstrationem novam plane, sed infallibilem esse pode ser concebido, mas como aquilo de que se pode conceber uma causa, arbitror. Ejusque ope demonstrari potest id quod per se concipitur concipi posse. Sed adhuc tamen dubitari potest, an ideo sit possibile eo modo quo hoc loco sumitur possibile, nimirum non pro eo quod concipi potest, sed resolúvel finalmente na primeira. Pois as coisas que podem ser por nós concebidas, nem por isso, todavia, podem ser todas produzidas, devido a outras preferíveis com as quais são incompatíveis. Por isso, deve-se provar que o ente que é concebido por si existe em ato, com ajuda da experiência, pro eo cujus aliqua concipi potest causa, resolubilis tandem in primam. já que existem coisas que são concebidas por outro, logo existe também Nam quae a nobis concipi possunt, non ideo tamen omnia produci possunt, aquilo pelo que são concebidas. Vê quão diferente é o raciocínio necessário ob alia potiora quibus incompatibilia sunt. Ideo Ens quod per se concipitur actu esse probari debet adhibita experientia, quia existunt quae per aliud para provar cuidadosamente a coisa existente por si. Todavia, talvez não haja necessidade dessa última precaução. concipiuntur, ergo existit etiam id per quod concipiuntur. Vides quam longe alia sit opus ratiocinatione ad accurate probandam rem per se existentem. Forte tamen hac ultima cautione non opus. Prop. 8. Omnis substantia est necessario infinita, quia alioqui terminaretur ab alia ejusdem naturae per definit. 2. et darentur duae maneira seria delimitada por outra de mesma natureza, pela def. 2, e seriam dadas duas substâncias de mesmo atributo, contra a prop. 5. cabe substantiae ejusdem attributi contra. Prop. 5. Haec propositio ita intelligenda entender assim esta proposição: a coisa que é concebida por si é infinita res quae per se concipitur, in suo genere infinita est, et ita admittenda. em seu gênero, e assim cabe admiti-la. Ora, a demonstração sofre tanto de Demonstratio autem laborat tum obscuritate quoad illud: terminatur, tum incertitudine, ratione prop. 5. In Schol. elegantem habet ratiocinationem ad 232 PROP. 8. Toda substância é necessariamente infinita, pois de outra obscuridade quanto àquele “é delimitado”, como de incerteza, em razão da prop. 5. No escólio há um elegante raciocínio para provar que a a coisa que é concebida por si é única, em seu gênero decerto: sendo postos vários probandara rem quae per se concipitur esse unicam, in suo scilicet genere indivíduos, deve haver na natureza a razão por que [144] sejam tantos, não quia ponantur esse plura individua, ideo debet esse ratio in natura, cur sint mais. A mesma razão, como faz o porquê deles serem tantos, faz o porquê 233 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) tot, rion plura. Eadem cum fáciat cur sint tot, fáciat cur sit hoc et hoc. Ergo disto ou daquilo existir. Logo, também o porquê disto existir. Ora, essa et cur sit hoc. Ea ratio autem non est in uno horum potius quam in altero. razão não está em um deles mais que em outro. Logo, está fora de tudo. Ergo extra oninia. Una objectio feri posset, si dicatur numerum earum esse interminatuin sive nullum, sive omnem numerum excedere. Verum corrigi ou nulo ou excede todo número. Pode-se, porém, corrigi-lo se dentre eles tomamos apenas alguns e perguntamos por que existem; ou se tomamos potest, si aliqua tantum ex ipsis sumamus et quaeramus cur illa extiterint, vários que têm algo em comum, por exemplo, existem no mesmo lugar, [e vel si sumainus plura aliquid cominune: habentia, v. g. in eodem loco perguntamos] por que existem no mesmo lugar. existentia, cur illa in hoc loco extiterint. Prop. 9. Quo plus realitatis aut esse unaquaeque res habet, eo plura attributa ipsi competunt. [explicandum erat quid intelligatur per realitatem PROP. 9. Quanto mais realidade ou ser cada coisa tem, tanto mais atributos lhe competem. (cabia explicar o que é entendido por realidade ou ser, com efeito, são coisas sujeitas a equívocos). Demonstração: é patente aut esse, sunt enim haec obnoxia aequivocationibus.] Demonstratio: patet pela def. 4. Isto, diz o autor. A mim não parece que seja patente a partir ex defin. 4. Haec autor. Mihi eam inde patere non videtur. Nam potest una daí. Pois uma coisa pode ter mais realidade que outra, porque ela própria res plus realitatis habere quam alia, ideo quod ipsa major est in. suo genere seu majorem attributi alicujus partem habet. V. g. circulus plus extensionis é maior em seu gênero ou tem uma parte maior de algum atributo. P. ex., o círculo tem mais extensão que o quadrado inscrito. E pode-se ainda duvidar se podem ser dados vários atributos da mesma substância, do habet quam quadratum inscriptum. Et dubitari adhuc potest an plura dentur modo como o autor tomou atributos. Reconheço, por ora, que admitido e attributa ejusdem substantiae, eo modo quo autor attributa sumsit. Fateor posto que os atributos são compatíveis, a substância é mais perfeita quanto interim hoc admisso et posito attributa esse compatibilia, eo perfectiorem esse substantiam, pro: plura habet attributa. mais atributos tem. PROP. 10. Cada atributo de uma substância deve ser concebido por Prop. 10. Unumquodque unius substantiae attributum per se concipi si, pelas def. 4 e 3. Mas segue-se daí, como objetei por vezes, que não se debet per definit. 4. et 3. Sed hinc ut aliquoties objeci sequitur rion dari nisi dá senão um único atributo de uma substância, se deveras ele exprime a unicum unius substantiae attributum, si quidem totam essentiam exprimit. essência inteira. Prop. 11. Deus seu substantia constans infinitis attributis quorum unumquodque aeternam et infinitam essentiam exprimit, necessario existit. 234 Uma objeção poderia ser feita: se se diz que o número deles é indeterminado PROP. 11. Deus, ou seja, a substância que consiste em infinitos atributos, dos quais cada um exprime uma essência eterna e infinita, existe necessariamente. Ele apresenta três demonstrações. PRIMEIRA, porque Tres affert: demonstrationes. Prima, quia substantia. Ergo per prop. 7. é substância. Logo, pela prop.7, existe. Mas isto supõe que a substância existit. Sed hoc supponit et substantiam necessario existere, quod ad prop. 7. existe necessariamente, o que não foi suficientemente demonstrado para a 235 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) non fuit satis demonstratum, et Deum esse substantiam possibilem, quod nori prop. 7, e também que Deus é uma substância possível, o que não é tão fácil aeque facile demonstratu est. IIda. Semper causa esse debet tam cur res sit quam de demonstrar. SEGUNDA, sempre deve haver causa tanto por que uma cur non sit. At nulla ratio esse potest cur Deus rion existat, non in ipsius natura, neque enim implicat contradictionem, nori in altero, nam alterum aliud vel erit Deus não exista, não em sua própria natureza – e com efeito, não implica contradição –, não em outro, pois esse outro ou será de mesma natureza e ejusdem naturae et attributi adeoque jam erit Deus, vel non erit adeoque nihil atributo, e dessa forma será Deus, ou não será e dessa forma não terá nada habebit commune cum Deo, adeoque existentiam ejus nec ponere nec impedire em comum com Deus, e assim não pode nem pôr nem impedir a existência potest. Respondeo 1. nondum probatum, Dei naturam non implicare, tametsi id asserere autor sine probatione absurdum esse dicat. 2. Poterit esse ejusdem naturae cuni Deo in quibusdam, non in oninibus. 3. Entia finita existunt (per dele. Respondo: 1º. Ainda não foi provado que a existência de Deus não implica [contradição], mesmo que o autor diga sem prova que é absurdo; 2º. poderá ser de mesma natureza que Deus em certas coisas e não em todas; 3º. os entes finitos existem (por experiência). Logo, se o infinito não experientiam). Ergo si infinitum non existit, erunt: ipsa potentiora Ente infinito. existe, eles serão mais potentes que o Ente infinito. Responde-se, se implica Respondetur, si implicet, Ens infinitum nullam potentiam habebit. Ut taceam [contradição], o Ente [145] infinito não terá nenhuma potência. Para calar improprie dici potentiam de existendi vi. Prop. 12. 13. Nullum substantiae attributum potest vere concipi, ex que impropriamente fala-se de potência acerca da força de existir. PROP. 12, 13. Nenhum atributo da substância pode verdadeiramente ser concebido do qual siga que a substância possa ser dividida, ou seja, quo sequatur substantiam posse dividi, seu substantia absolute sunita est a substância absolutamente tomada é indivisível. Com efeito, ela seria indivisibilis. Nam destruetur dividendo, partes non erunt infinitae adeoque destruída se fosse dividida; as partes não seriam infinitas nem, portanto, nec substantiae. Darentur plures substantiae ejusdem naturae. Concedo de re per se existente. Corollarium hinc sequitur, nullam substantiam adeoque nec corpoream esse divisibilem. as substâncias. Seriam dadas várias substâncias de mesma natureza. Concedo isso da coisa que existe por si. COROLÁRIO: segue-se daí que nenhuma substância, dessa forma, é corpórea nem divisível. PROP. 14. Além de Deus nenhuma substância pode ser dada nem Prop. 14. Praeter Deum nulla dari neque concipi potest substantia. concebida, porque todos os atributos competem a Deus e não se dão várias Quia Deo oninia competunt attributa, nec dantur plures substantiae ejusdein substâncias de mesmo atributo, por isso não se dá nenhuma substância attributi, ideo nulla datur substantia praeter Deum. Omnia haec supponunt além de Deus. Tudo isso supõe a definição de substância, que é o ente definitionem substantiae, quod sit Ens quod per se concipitur, et alia multa supra notata non admittenda. [Mihi nondum certum videtur, corpora esse substantias, Secus de mentibus.1 236 coisa é como por que não é. Mas não pode haver nenhuma razão por que que é concebido por si, e muitas outras coisas observadas acima como inadmissíveis. (Ainda não me parece certo que os corpos sejam substâncias. Diferentemente para as mentes). 237 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) Coroll. 1. Deum esse unicum. COROL. 1. Deus é único. Coroll. 2. Rem cogitantem vel rem extensam esse vel Dei attributa COROL. 2. a coisa extensa e a coisa pensante são ou atributos vel per axiom....* affectiones attributorum Dei. [Hoc est confuse loqui, praeterea nondum ostendit extensionem et cogitationem esse attributa seu de Deus ou (pelo ax...*) afecções dos atributos de Deus. (Isto é falar confusamente; além do que, ainda não mostrou que a extensão e o pensamento são atributos, ou seja, concebidos por si.) per se concipi.] ** Prop. 15. Quicquid est, in Deo est, et nihil sine Deo esse neque concipi potest. Quia enim nulla praeter Deum substantia prop. 14., ideo oninia alia erunt affectiones Dei seu modi, quia praeter substantias et modos nil datur. [rursus omittit attributa.] Prop. 16. Ex necessitate Divinae naturae infinita infinitis modis, hoc est omnia quae sub intellectum infinitum cadere possunt, sequi debent, per defin. 6. Coroll. 1. Hinc sequitur Deum omnium quae sub intellectum cadunt, esse causam efficientem. Coroll. 2. Deum esse causam per se, non vero per accidens. PROP. 15. Tudo que é, é em Deus, e nada sem Deus pode ser nem ser concebido. Com efeito, porque [não há] nenhuma substância além de Deus, prop. 14, por isso todas as coisas serão afecções de Deus ou modos, porque nada é dado além de substâncias e modos. (De novo ele omite os atributos). PROP. 16. Da necessidade da natureza divina devem seguir infinitas coisas em infinitos modos (isto é, tudo que pode cair sob o intelecto infinito), pela def. 6. COROL. 1. Segue daí Deus ser causa eficiente de todas as coisas que caem sob o intelecto infinito. COROL. 2. Segue Deus ser causa por si, e não por acidente. COROL. 3. Segue-se Deus ser absolutamente causa primeira. Coroll. 3. Deum esse absolute causam primam. Prop. 17. Deus ex solis suae naturae legibus et a nemine coactus agit, quia nihil extra ipsum. Coroll. 1. Hinc sequitur 1. nullam dari causam quae Deum extrinsece vel intrisece praeter ipsius naturae perfectionem incitet ad agendum. Coroll. 2. Solum Deum esse causam liberam. In Scholiis fusius explicat, Deum omnia quae in. ipsius intellectu sunt creavisse (cum tamen videatur ea tantum creasse quw voluit). Dei * Axioma 1, conforme o texto espinosano. ** O trecho entre parênteses está à margem do manuscrito; é chamado ao texto por um asterisco (Cf. Morfino - Spinoza contra Leibniz. Ed. cit.) 238 PROP. 17. Deus age somente pelas leis de sua natureza e por ninguém é coagido, pois nada há fora dele. COROL. 1. Donde segue: 1º não ser dada, exceto a perfeição de sua própria natureza, nenhuma causa que extrínseca ou intrinsecamente incite Deus a agir. COROL. 2. Segue: 2° só Deus ser causa livre. [146] Nos escólios** ele explica mais longamente que Deus criou tudo o que está em seu intelecto (porém, como parece, criou apenas o que quis). Diz que o intelecto de Deus também em essência difere de nosso intelecto, e a não ser equivocadamente pode-se atribuir a um e outro o nome de * Trata-se do axioma 1. (N. T.). ** Note-se que a prop. 17 tem um único escólio (N. T.) 239 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) intellectum etiam in essentia a nostro intellectu ait differre, nec nisi intelecto, tal como cão, signo celeste, e cão, animal que ladra. O causado aequivoce tribui posse utrique nomen intellectus, quemadmodum canis difere de sua causa pelo fato de ter causa. O homem difere do homem sigrium caeleste et canis animal latrans. Causatum differt a sua causa in co quod a causa habet. Homo ab homine quoad existentiam quain ab homine habet, a Deo quoad essentiam quam a Deo habet. Prop. 18. Deus est rerum causa iminanens, non vero transiens. Sequitur ex eo quod supra visus sibi est ostendisse, Deum solum esse substantiam, caetera ejus modos. Prop. 19. Deus sive omnia ejus attributa sunt aeterria. Nam essentia ejus involvit existentiam, et attributa ejus involvunt ejus essentiam. Citat praeterea autor ac probat modum quo id demonstravit prop. 19. Principiorum Cartesii. Prop. 20. Dei essentia et ejus existentia unum et idem sunt. Quia omnia ejus probat ex eo, quia attributa Dei quia aeterna (per prop. 19) existentiam exprimunt (per definitionem aeternitatis). Eadem autem et essentiani exprimunt per definitionem attributi. Ergo essentia et existentia sunt idem in. Deo. Respondeo id non sequi, sed hoc tantum, quod ab eodem exprimantur. Noto etiam prop. hanc supponere praecedentem, quod si ergo loco praecedentis ipsius denionstratio in. hujus demonstratione adhibeatur, patebit inepta circuitio. Hoc modo: Dei essentia et existentia sunt unum et idem, probo: Quia attributa Dei et existentiam et essentiam exprimunt. Essentiam exprimunt ex definitione attributi, existentiam exprimunt, quia aeterna; aeterna autem, quia involvunt existentia, exprimunt enim Dei essentiam quae involvit existentiam. Quid opus quanto à existência que recebeu do homem e, de Deus, quanto à essência que recebeu de Deus. PROP. 18. Deus é causa imanente das coisas, mas não transitiva. Segue-se de que acima, parece-lhe, ele mostrou que só Deus é substância, e o restante são seus modos. PROP. 19. Deus, ou seja, todos os seus atributos são eternos. Pois, sua essência envolve existência, e seus atributos envolvem sua essência. Além disso, o autor cita e aprova o modo como demonstrou-o na prop. 19 dos Princípios de Descartes. PROP. 20. A existência de Deus e sua essência são um só e o mesmo. Prova-o a partir do fato de os atributos de Deus, porque eternos (pela prop. 19), exprimirem existência (pela definição de eternidade). Ora, eles exprimem também essência, pela definição de atributo. Logo, essência e existência são em Deus o mesmo. Respondo que isso não se segue, mas apenas isto: são exprimidos pela mesma coisa. Noto também que esta prop. supõe a precedente, portanto, se em lugar da precedente, aplicamos a demonstração daquela, nesta, será patente a inutilidade do desvio. Que a essência e a existência de Deus são uma só e a mesma coisa provo deste modo: porque os atributos de Deus exprimem existência e também essência; exprimem essência pela definição de atributo; exprimem existência porque eternos; ora, são eternos porque envolvem existência; com efeito, exprimem a essência de Deus, a qual envolve existência. ergo mentione aeternitatis attributorum et propositione 19., cum res eo tantum redeat ut probetur Dei existentiam et essentiam esse uriuni et idem, quia Dei essentia involvit existentiam, eaetera enim adhibita sunt inanis apparatus causa, ut in speciem demonstrationis tornarentur. Hujusmodi ratiocinationes illis valde familiares qui veram denionstrandi artem rion tenent. 240 241 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) Coroll. 1. Hinc sequitur Dei existentiam pariter atque essentiam COROL. 1. Segue-se daí que a existência de Deus, e igualmente esse aeternam veritatem. Haec propositio non video quomodo ex sua essência, é uma verdade eterna. Não vejo como esta proposição siga praecedente sequatur, imo longe praecedente verior et clarior est. Statim enim patet, posito quod Dei essentia involvat existentia, tametsi non da precedente; ao contrário, é de longe mais verdadeira e mais clara que a precedente. Com efeito, é de imediato patente, posto que a essência de Deus envolve existência, ainda que não se admita que sejam [147] uma só admittatur esse ununi et idem. Coroll 2. Deus est iminutabilis oraniaque e a mesma coisa. COROL. 2. Deus é imutável e todos os seus atributos. É ejus attributa. Ista obscure et conffise proponit probaque autor. o que o autor propõe e prova de maneira obscura e confusa. Prop. 21. Quae ex absoluta natura alicujus attributi Dei sequuntur, semper et infinita existere debuerunt, sive per idem attributum aeterna et infinita sunt. Demonstrat satis obscure et prolixe, cuni sit facile. PROP. 21. Tudo que segue da natureza absoluta de algum atributo de Deus deve ter existido sempre e infinito, ou seja, pelo mesmo atributo é eterno e infinito. Ele demonstra bem obscura e prolixamente, embora seja fácil. PROP. 22. Tudo que segue de algum atributo de Deus, enquanto é Prop. 22. Quicquid ex aliquo Dei attributo quatenus modificatum modificado por uma modificação tal que, pelo mesmo [atributo], existe est tali modificatione quae et necessario et infinita per idem existit, necessariamente bem como infinita, deve também existir necessariamente sequitur, debet: quoque necessario et infinitum existere. Ait procedere demonstrationem ut in praecedenti. Ergo etiam obscure. Vellem exemplum talis modificationis dedisset. Prop. 23. Omnis modus qui et necessario et infinitus existit, necessario sequi debuit vel ex absoluta natura alicujus attributi Dei, vel ex aliquo atributo modificato modificatione quae et necessario et infinita existit, id est modum talem sequi ex absoluta natura alicujus attributi vel bem como infinito. Diz que a demonstração procede como na precedente. Logo, é também obscura. Gostaria que desse um exemplo de tal modificação. PROP. 23. Todo modo que existe necessariamente bem como é infinito deve ter seguido necessariamente ou da natureza absoluta de algum atributo de Deus, ou de algum atributo modificado por uma modificação que existe necessariamente bem como infinita, isto é, um tal modo segue da natureza absoluta de algum atributo, ou imediata ou mediante outro modo como tal. iminediate vel mediante alio modo tali. 242 243 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) Prop. 24. Rerum a Deo productarum essentia non involvit existentia, PROP. 24. A essência das coisas produzidas por Deus não envolve alioqui per defini. 1. causa essent sui, quod est contra Hypothesin. Res existência, de outra forma, pela def. 1, seriam causa de si, o que é contra aliunde manifesta. Sed haec demonstraflo est paralogismus. Causa enim sui per ejus definitionem 1. non cominunem sensuni retinuit, sed peculiarem nacta est. Non potest ergo conimunem vocis sensuin in locum proprii pro a hipótese. Com efeito, causa de si, pela def. 1, não reteve seu sentido comum, mas adquiriu um peculiar. O autor não pode, portanto, substituir o sentido comum da palavra em lugar do próprio sentido, assumido por ele arbitrariamente, a não ser que mostre que eles se equivalem.* arbitrio a se assumti substituere autor, nisi ostendat eos aequivalere. [Ex: hac propositione sequitur, contra ipsum Spinosam, res non esse necessarias. Hoc enim necessariuni non est, cujus essentia existentiam non involvit.]* coisas, mas também da essência. De outra forma, a essência das coisas sed. etiam essentiae. Alioqui posset rerum essentia sine Deo concipi, per poderia ser concebida sem Deus, pelo ax. 4. Mas esta prova não tem Axiom. 4. Sed haec probatio nullius momenti est. Nam ut concedamus nenhuma importância, pois que concebemos que a essência das coisas não essentiam rei-um sine Deo concipi non posse ex prop. 15., non ideo sequitur Deum esse essentiae rerum causam. Axioma enim quartuin non possa ser concebida sem Deus a partir da prop. 15, nem por isso segue-se que Deus é causa da essência das coisas. Com efeito, o quarto axioma não diz: aquilo sem o que algo não pode ser concebido é sua causa (o que seria hoc dici: sine quo quid non concipi potest, id est ejus causa (quod sane certamente falso, pois não se pode conceber o círculo / a linha sem centro/ falsum esset, nam circulus linea sine centro puncto concipi non potest: ponto; e não por isso o centro / ponto é causa do círculo / da linha), mas non ideo centrum punctum circuli lineae causa) sed. hoc tantum, effectus cognitionem involvere cognitionem causae, quod longe aliud est. Neque enim hoc axioma est convertibile. Ut taceani aliud esse involvere, aliud sine ipso concipi non posse. Parabolae cognitio involvit in se cognitionem foci, potest tamen sine eo concipi. Coroll. Res particulares nihil sunt nisi Dei attributorum affectiones sive modi, quibus attributa Dei certo ac determinato modo exprimuntur. Hoc ait patere ex defin. 5. et prop. 1 S., sed non apparet quomodo hoc corollar. * A observação ente paremeses está à margem do manuscrito; Gerhardt dá em nota. 244 PROP. 25. Deus é causa eficiente não apenas da existência das Prop. 25. Deus non tantuin est causa efficiens reruni existentiae, apenas isto: o conhecimento do efeito envolve o conhecimento da causa, o que é de longe outra coisa. E, com efeito, este axioma não é reversível. E isso para não falar que uma coisa é envolver, outra não poder ser concebido sem isso. o conhecimento da parábola envolve em si o conhecimento do foco, mas pode ser concebido sem ele. COROL. As coisas particulares nada são senão afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos, pelos quais os atributos de Deus se exprimem de maneira certa e determinada. Diz que isso é patente a partir da def. 5 e prop. 15, mas não aparece de que modo este corolário conecta* À margem do manuscrito Leibniz observou: “Desta proposição segue-se, contra o próprio Espinosa, que as coisas não são necessárias. Com efeito, não é necessário aquilo cuja essência não envolve existência”. (N.R.) 245 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) connectatur cum hac prop. 25. Certe Spinosa non est magnus demonstrandi se com esta prop. 25. Certamente Espinosa não é um grande mestre na arte artifex. Corollarium hoc ex supra dictis satis patet, sed verum est si sano de demonstrar. Este corolário é bem patente a partir do que foi dito acima; sensu intelligatur, non quidem res esse tales modos, sed modos concipiendi res particulares, esse modos determinatos concipiendi attributa divina. não são tais modos, mas os modos de conceber as coisas particulares são os modos determinados de conceber os atributos divinos. Prop. 28. Quodcunque singulare sive quaevis res quae finita est PROP. 28. Qualquer singular, ou seja, qualquer coisa que é finita et determinatam habet existentiam, non potest existere nec ad operandum e tem existência determinada, não pode existir nem ser determinado a determinari nisi ad existendum et operandum determinetur ab alia causa, quae etiam finita est et determinatam habet existentiam, et haec iterum ab alia, et sic in infinitum. Quia nihil determinatum, finitum et certo tempore operar, a não ser que seja determinado a existir e operar por outra causa, que também seja finita e tenha existência determinada, e por sua vez esta causa por outra, e assim ao infinito. Porque nada determinado, finito e existente num certo tempo pode seguir da essência absoluta de Deus. Desta existens ex absoluta Dei essentia sequi potest. Ex hac opinione recte opinião, se bem pesada, seguem-se muitos absurdos. Porque as coisas expensa multa absurda sequuntur. Revera enira res ex natura Dei hoc modo realmente não seguirão da natureza de Deus desse modo. Com efeito, o non sequentur. Ipsum enim determinans ab alia re iterum determinatur, et sic in infinitum. Nullo modo ergo res determinantur a Deo. Deus tantum próprio determinante é de novo determinado por outra coisa, e assim ao infinito. Logo, de nenhum modo as coisas são determinadas por Deus. De sua parte, Deus contribuirá apenas com algumas absolutas e gerais. Mais absoluta quaedam et generalia de suo contribuet. Rectius dicendum, unum corretamente, é preciso dizer que um particular não é determinado por outro, particulare non determinari ab alio, progressu in infinitum; alioqui enint numa progressão ao infinito; pois, diferentemente, sempre permanecem revera semper manent indeterminata, utcunque progrediaris: sed potius omnia particularia determinari a Deo. Nec posteriora priorum esse causam plenam,* sed Deunt potius posteriora creare ita ut connectantur prioribus realmente coisas indeterminadas, por mais que prossigas; mas, antes, todas as coisas particulares são determinadas por Deus. E as coisas posteriores não são a causa plena das anteriores*, mas Deus cria preferivelmente as posteriores tal como são conectadas com as anteriores segundo as regras da secundum sapientiae regulas. Si dicimus priora et causas efficientes sabedoria. Se dizemos que as anteriores são também causas eficientes das posteriorum, vicissim erunt posteriora quodammodo causae finales posteriores, inversamente as posteriores serão de certo modo causas finais priorum, apud eos qui ponunt Deum secundura finem operari. * Carraud propõe Nec ptiora posteriorum esse causam plenam. 246 mas na verdade, se for entendido no sentido certo, as coisas certamente das anteriores, entre os que põem que Deus opera segundo fins. * Certamente se trata de uma inversão involuntária de Leibniz, a frase correta seria “as coisas anteriores não são a causa plena das coisas posteriores”. (N. R.). 247 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) Prop. 29. In rerum natura nullum datur contingens, sed omnia ex PROP. 29. Na natureza das coisas nada é dado de contingente, mas necessitate divinae naturae determinata sunt ad certo modo existendum et tudo é determinado pela necessidade da natureza divina a existir e operar operandum. Demonstratio obscura et praerupta est, ducta per propositiones prwcedentes praeruptas, obscuras et dubias. Res pendet a definitione de maneira certa. A demonstração é obscura e abrupta, conduzida pelas proposições precedentes, abruptas, obscuras, duvidosas. A coisa depende da definição de CONTINGENTE, que ele não deu em parte alguma. Eu, contingentis quam nuspiam dedit. Ego cum ahis contingens sumo pro com outros, tomo contingente como aquilo cuja essência não envolve eo, cujus essentia non involvit existentiam. Hoc sensu res particulares erunt existência. Nesse sentido, as coisas particulares serão contingentes, segundo contingentes secundum ipsum Spinosam per prop. 24. Sed si contingens sumas more quorundara Scholasticorum, Aristoteli et aliis hominibus usuique vitw incognito, pro eo quod contingit, sic ut ratio reddi non possit: o próprio Espinosa, pela prop. 24. Mas se tomas contingente à maneira de certos escolásticos, desconhecido de Aristóteles e do uso da vida de outros homens, como aquilo que acontece,* sem que de modo algum se possa dar a razão por que acontece assim e não e outro modo, e cuja causa, estando ullo modo cur sic potius evenerit quam aliter, et cujus causa positis omnibus posto tudo que é requerido tanto dentro quanto fora dela mesma, esteve requisitis tam. intra quam extra ipsam, aeque disposita fuit ad agendum quam igualmente disposta a agir como a não agir, penso que tal contingência non agendum, puto tale contingens implicare, omniaque esse sua natura, ex hypothesi voluntatis divinae statusque rerum, certa ac determinata, tametsi nobis inexplorata, neque in se ipsis sed. per suppositionem sive hypothesin implica [contradição], e que todas as coisas, por sua natureza e segundo [149] a hipótese da vontade divina e do estado de coisas, são certas e determinadas, embora inexploradas por nós, e têm sua determinação em si mesmas, mas por suposição, ou seja, por hipótese, das coisas externas. externorum suam determinationem habentia. Prop. 30. Intellectus actu finitus et actu. infinitus Dei attributa Deique affectiones comprehendere debet et nihil aliud. Hanc propositionem satis claram ex praecedentibus, et sano sensu veram noster autor per alia obscura compreender os atributos de Deus e as afecções de Deus, e nada outro. Esta proposição suficientemente clara a partir das precedentes e, em sentido correto, verdadeira, nosso autor prova-a à sua maneira por coisas et dubia et remota more suo probat: nempe quod idea vera convenire: debet obscuras e duvidosas, a saber, que a idéia verdadeira deve convir com o cum ideato, id est ut per se notum (sic ait, etsi ego quomodo id per se notum, ideado, isto é, como é por si noto (ele diz isso, embora eu não compreenda imo verum sit non capiam), id quod in intellectu. objective: continetur, debet necessario in natura dari; quod non nisi una substantia datur, nempe Deus- 248 PROP. 30. O intelecto, finito em ato ou infinito em ato, deve de que modo isso seja por si noto e tampouco verdadeiro), aquilo que está contido objetivamente no intelecto deve necessariamente dar-se na natureza; que não se dá senão uma única substância, a saber, Deus. Essas quae tamen propositiones obscurae et dubiae et longe remotae sunt. Videtur proposições entretanto são obscuras, duvidosas, e muito afastadas. Parece autoris ingenium fuisse valde detortum: raro praecedit via clara et naturali, * Como aquilo que acontece traduz pro eo quod contingit. É preciso notar o jogo de palavras no latim: a origem do adjetivo contingens é o particípio presente do verbo contingeo, acontecer. (N. T.). 249 Cadernos Espinosanos XXIII Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) semper incedit per abrupta et circuitus- pleraeque ejus demonstrationes que o engenho do autor é muito tortuoso: ele raramente procede por uma magis animum circumveniunt (surprennent) quam filustrant. via clara e natural, avança sempre por vias abruptas e desvios; a maioria de Prop. 31. Intellectus actu sive finitus sive infinitus, ut et voluntas, cupiditas, amor etc. ad naturam naturatam, non ad naturantem referri debet. PROP. 31. O intelecto, finito em ato ou infinito em ato, assim como a vontade, o desejo, o amor etc., deve ser referido à natureza naturada, Intelligit per naturam naturantem Deum ejusque attributa absoluta, per não à naturante. Entende por natureza naturante Deus e seus atributos naturatam ejus modos. Esse autem. intellectum nihil aliud quam certum absolutos, por naturada, seus modos. Ora, o intelecto não é nada mais que cogitandi modum. Hinc alias dicit Deum proprie non intelligere: nec velle. Hoc ipsi non assentior. Prop. 32. Voluntas non potest vocari causa libera, sed tantum um certo modo de pensar. Daí, aliás, ele dizer que, propriamente, Deus não entende nem quer. No que não concordo com ele. PROP. 32. A vontade não pode ser chamada causa livre, mas somente necessária, a saber, porque é livre o que é determinado apenas por si. Ora, necessaria, quia scilicet liberum id quod tantum a se determinatur. a vontade é um modo de pensar e dessa forma é modificada por outro. Voluntatem autem esse modum cogitandi adeoque ab alio modificari. PROP. 33. As coisas não puderam ser produzidas por Deus de nenhuma outra maneira e em nenhuma outra ordem do que aquelas em que foram produzidas. Segue-se, com efeito, da imutável natureza de Deus. Esta proposição é verdadeira ou falsa conforme é explicada. Na hipótese de uma vontade divina que escolhe o melhor, ou seja, que opera de maneira perfeitíssima, certamente não puderam ser produzidas senão estas coisas; mas segundo a própria natureza das coisas considerada por si, as coisas não puderam ser produzidas de outra maneira. Do mesmo modo dizemos que os anjos confirmados não podem pecar, salva a liberdade deles; poderiam se quisessem, mas não querem. Absolutamente falando, podem querer, mas neste estado de coisas existente, não podem querer mais. O autor reconhece corretamente no escólio que algo torna-se impossível de dois modos, ou porque em si mesmo implica [contradição], ou porque não se dá nenhuma causa externa apta para produzir. No segundo escólio, nega que Deus produza tudo em vista do bem. Não é de admirar, negou-lhe a vontade e pensa que os dissentâneos submetem Deus ao destino, embora Prop. 33. Res nullo alio modo neque ordine a Deo produci potuerunt quam productae sunt. Sequuntur enim ex immutabili natura Dei. Haec propositio vera falsave, prout explicatur. Ex hypothesi voluntatis divinae eligentis optima seu perfectissime operantis certe non nisi haec produci potuerunt, secundum ipsam vero rerum naturam per se spectatam aliter produci res poterant. Quemadmodum angelos confirmatos dicimus non posse peccare, salva eorum libertate; possent si vellent; sed non volent. Possent velle absolute loquendo, sed hoe rerum statu existente amplius non possunt velle. Recte autor et in Scholio agnoscit, duobus modis aliquid impossibile reddi vel quia in se implicat, vel quia causa nulla eaeterna datur ad producendum apta. In Scholio secundo negat Deum omnia sub ratione boni agere. Ninúrum negavit ei voluntatem, et dissentientes putat Deum fato subjicere, cum tamen ipse fateatur Deum omnia sub ratione perfecti agere. 250 suas demonstrações mais afligem (surprennent*) que ilustram o animo. também ele confesse que Deus age em vista do perfeito. * Surpreendem – em francês no texto. (N.T.) 251 Cadernos Espinosanos XXIII Prop. 34. Dei potentia est ipsa ejus essentia, quia ex natura essentiae sequitur eum esse causam sui et aliorum. Prop. 35. Quicquid in Dei potestate existit, id necessario est, id est ex essentia ejus sequitur. PROP. 34. A potência de Deus é sua própria essência, porque segue da natureza da essência, que ele é causa de si e de outras coisas. PROP. 35. O que quer que concebamos estar no poder de Deus, necessariamente é, isto é, segue de sua essência. PROP. 36. Nada existe de cuja natureza não siga algum efeito, Prop. 36. Nihil existit, ex cujus natura effectus aliquis non sequatur, porque exprime a natureza de Deus de um modo certo e determinado, isto quia Dei naturam certo ac deterininato modo exprimit, hoc est per prop. é, pela prop. 34, a potência de Deus; é verdadeiro, embora não se siga 34. Dei potentiam, (non sequitur satis) verum est tamen. Subjicit Appendicem contra eos qui Deum propter finem operari putant, miscens vera falsis. Etsi enim verum sit non omnia hominum causa fieri, non tamen sequitur sine voluntate sive, boni intellectu agere. 252 Tradução: Ad Ethicam B. d. SP. (Sobre a Ética de Bento Espinosa) satisfatoriamente. Segue um Apêndice contra os que pensam que Deus opera por causa de fins, no qual ele mistura coisas verdadeiras e falsas. Com efeito, embora seja verdadeiro que nem todas as coisas foram feitas por causa dos homens, todavia não se segue que Deus age sem vontade, ou seja, sem intelecção do bem. 253 NOTÍCIAS de resolução dos problemas teóricos da formulação hobbesiana, pode-se obter um ganho no sentido de melhorar o trato com essas dificuldades. Palavras-chaves: Hobbes, reciprocidade, antropologia, filosofia política DEFESAS DE DOUTORADO: DEFESAS DE MESTRADO: Marcelo Gross Villanova Wilson Alves Sparvoli Hobbes e a reciprocidade. Uma investigação sobre a relevância da regra Questão das substâncias corporais em Leibniz de ouro das leis naturais na teoria política hobbesiana Orientador: Luís César Guimarães Oliva Orientador: Maria das Graças de Souza Data: 09.08.2010 Data :06.08.10 Resumo: Nosso objetivo principal foi esclarecer o papel e o 254 Resumo: Base da postulação da comunidade política, as leis estatuto ontológico dos corpos dos seres vivos no leibnizianismo. Para naturais são resumidas por duas frases, “faça aos outros o que gostaria tanto, partimos da ontologia cartesiana que transforma os corpos em que fizessem a si” e a outra “não faça aos outros o que gostaria que não substâncias cuja essência é a extensão entendida geometricamente. fizessem a ti”. Hobbes denomina essa síntese das leis naturais de “princípio Depois disso, analisamos as críticas que Leibniz fez a esta ontologia, de reciprocidade”. Fora essas duas frases, Hobbes não apresenta maiores bem como a nova ontologia de forças e mônadas que usa para superar esclarecimentos quanto ao seu significado. A presente pesquisa pretende todas as limitações e erros do cartesianismo. Enfim, terminamos refletir sobre a teoria política hobbesiana a partir da problematização do considerando que, devido a todas as críticas realizadas contra a extensão sentido do princípio de reciprocidade, colocando em evidência algo que cartesiana, não existe, como sustentam alguns comentadores, uma noção não está bem explicado e que não ocupa um lugar de pouca importância de substância corporal que reabilite a materialidade ou a extensão; na sua teoria política. Na literatura crítica é bem conhecida a controvérsia na verdade, a substância corporal leibniziana tem que ser entendida a respeito do papel das leis naturais, da relação entre as leis naturais e segundo uma ontologia idealista. Nesse percurso, também pudemos leis civis, do direito de resistência, do direito de punir, “silêncio” das leis. constatar alguns dos desdobramentos científicos que a nova ontologia Reflete-se sobre essas e outras questões tendo em vista a perspectiva da leibniziana acarretava, como, por exemplo, o surgimento de uma física elucidação do princípio de reciprocidade. Ainda que situar adequadamente dinâmica e a tese da pré-formação dos seres vivos no âmbito da fisiologia. o locus conceitual das dificuldades não seja uma garantia Palavras-chave: Descartes, Leibniz, Substância e Corpo. 255 Rafael Augusto de Conti INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES Liberdade para além do Estado em Thomas Hobbes: o rei nu em busca da equidade soberana (ou do homem à máquina e da máquina ao homem: a liberdade como reino da ética) Orientador: Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros Data: 23.09.2010 Resumo: A reconstrução do pensamento hobbesiano acerca do Estado, com foco no tema da liberdade, é o que foi feito neste trabalho. Como é possível a compatibilidade entre liberdade e necessidade?; Qual a relação entre liberdade, guerra e paz?; Como a justiça está relacionada com a questão da liberdade?; Qual a liberdade dos cidadãos frente ao Estado?; Qual a liberdade do soberano pelo Estado? - constituem questionamentos que refletem o caminho percorrido. Sempre possuindo a liberdade como foco, foi-se do homem à máquina e da máquina ao homem, por meio da exploração articulada do pensamento hobbesiano acerca dos campos da Física, da Antropologia/Psicologia, do Direito e da Moral. Palavras-chave: liberdade, poder, Estado, soberania, justiça, natureza humana 256 :::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas (30 linhas de 70 toques). :::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou o telefone. (E-mail: [email protected]). :::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords. :::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo, utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé dos programas de edição. :::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação. :::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8, p.10). 257 CONTENTS Leibniz, 1678: lecture notes on Spinoza’s Ethics Ulysses Pinheiro.....................................................................................11 Causality in Hobbes: necessity and intelligibility Celi Hirata...............................................................................................33 Possibles and existents in Leibniz Wilson Alves Sparvoli.............................................................................59 BEYOND THE OBJECT BODY AND THE INTELECTUAL REPRESENTATION: how Merleau-Ponty rediscovers the body as the existence’s vehicle. José Marcelo Siviero.............................................................................187 On Spinoza’s Ethics G. W. Leibniz........................................................................................................215 Notices.......................................................................................................254 INSTRUCTIONS FOR AUTHORS................................................................257 CONTENTS....................................................................................................258 The Cartesian concept of freedom in Philosophical Principles Mariana de Almeida Campos.................................................................73 Images and analogies of the body and the mind in Spinoza’s politics Alexandre Arbex Valadares.....................................................................95 Imagination: between fear and freedom Daniel C. Avila.......................................................................................135 The right to life in Hobbes’s Elements of law, natural and politic Rogério Silva de Magalhães..................................................................159 258 259