Judeus 1 xp - A Esfera dos Livros

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INTRODUÇÃO
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partir da chegada de Hitler ao poder, em 1933, começaram as perseguições aos judeus, aos adversários políticos e a todos os que
o regime nacional-socialista considerava estarem fora da Volksgemeinschaft (Comunidade do Povo). À medida que a repressão e as
medidas anti-semitas endureciam, sobretudo a partir de 1938, aumentava a torrente dos fugitivos à procura de abrigo noutros países europeus. Em resposta, estes fecharam as suas portas. Portugal não se distinguiu dessa atitude, começando também a restringir a sua política
de fronteiras, nomeadamente aos «emigrantes» que não podiam voltar ao seu país de origem, como foi o caso dos judeus alemães. A estes
juntar-se-iam, depois da anexação da Áustria, da invasão dos sudetas
e da ocupação da Polónia – que deu início à II Guerra Mundial –, também os austríacos, os checoslovacos e os polacos.
A partir do início da guerra e sobretudo depois da invasão da França pela Wehrmacht, os perseguidos por Hitler que se tinham conseguido abrigar noutros países tiveram de prosseguir a fuga, cada vez
mais para ocidente. Foi assim que, entre 1940 e 1945, passou por Portugal, um país a viver em autarcia, por vontade de um regime ditatorial com uma ideologia nacionalista, uma vaga de fundo de estrangeiros que, por circunstâncias casuais e geopolíticas, aqui esperaram
até poderem atravessar o Atlântico. A maioria deles não permaneceu
no país por muito tempo, mas as condições em que o tiveram de fazer
eram duras: tratava-se, pura e simplesmente, de salvar as suas vidas.
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Eram refugiados que fugiam ao nazismo, que os perseguia por
motivos políticos ou racistas, ou invadira os seus países, pondo-os a
ferro e fogo. Passaram, assim, por Portugal judeus da Alemanha e dos
países ocupados, comunistas, sociais-democratas, liberais, cristãos,
intelectuais; pobres e ricos; alemães, austríacos, polacos, italianos,
checos, belgas, luxemburgueses, húngaros, holandeses, franceses e até
russos e originários dos países bálticos. Aguardaram em Lisboa, no
Porto, em Coimbra, nas Caldas da Rainha, na Figueira da Foz ou na
Ericeira um visto e um meio de transporte que os levasse para África,
a América Latina, países onde o ingresso de refugiados estava limitado, ou para os Estados Unidos, onde havia quotas de entrada, estabelecidas por nacionalidade.
Paradoxalmente, foi num país onde vigorava uma ditadura nacionalista com simpatias pelo antidemo/liberalismo e anticomunismo do
regime nacional-socialista alemão, que os perseguidos por Hitler
encontraram um porto de abrigo transitório. Foi num país atrasado,
pobre e isolado que, por algum tempo, estrangeiros com costumes
diferentes, comportamentos sociais e opiniões culturais e políticas
diversas se relacionaram com os portugueses. Como foi isso possível?
Assim como a vaga veio, assim se foi... Terá ficado alguma coisa na
areia? É a resposta a esta e a outras perguntas que se pretende dar
neste livro, cuja feitura tem ela própria uma história.
Por várias razões, a memória da presença dos refugiados em Portugal, durante os anos 30 e a II Guerra Mundial, permaneceu escondida até ao final dos anos 80 do século XX. Durante o período da ditadura, o próprio regime salazarista submergiu essa memória e tornou
impossível fazer a história do período contemporâneo próximo. Por
outro lado, após o 25 de Abril, houve no campo historiográfico muitas outras prioridades. Tudo estava por fazer, desde a caracterização
do regime ao estudo das suas instituições. E o tema dos refugiados,
nos anos 30 e 40 do século XX, era apenas um pequeno episódio da
história do Estado Novo. Por isso, não deve surpreender-nos que o
interesse por tal tema, que envolveu portugueses e estrangeiros,
nomeadamente alemães, tenha surgido em primeiro lugar fora de Portugal e, em particular, na Alemanha.
Em 1989, a escritora e socióloga alemã Christa Heinrich começou
a procurar pistas e bibliografia sobre a passagem de refugiados por
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Portugal. Na Alemanha, apenas tinha encontrado os romances de Ilse
Losa e algumas pequenas recordações de escritores que tinham passado por Portugal enquanto refugiados durante a II Guerra Mundial.
No decurso de uma estadia em Portugal, para investigar sobre o tema,
esperou encontrar bibliografia. Eu trabalhava então na livraria Buchholz, quando Christa Heinrich me perguntou se eu conhecia alguma
bibliografia sobre o assunto. Sabendo que, infelizmente, nada existia,
lembrei-me então que eu própria conhecia alguns antigos refugiados
alemães, que permaneceram em Portugal depois do final da II Guerra
Mundial. Muito recentemente apurei que, nesse mesmo ano de 1989,
duas estudantes de História Contemporânea do ISCTE, Cristina Baptista e Maria do Rosário Ferreira, também realizaram um trabalho
curricular sobre o tema, onde inseriram entrevistas feitas a antigos
refugiados em Portugal.
Depois dos primeiros contactos realizados com antigos refugiados,
foi «como uma bola de neve» – verificou Christa Heinrich – e surgiram então mais nomes, mais números de telefone, novas pistas, enriquecidas com as respostas aos anúncios entretanto publicados por
esta socióloga, na imprensa portuguesa e judaica. Para Christa Heinrich, era muito «importante tirar essas pessoas do esquecimento» em
que estavam há tanto tempo mergulhadas. À medida que o tempo ia
passando, os testemunhos iam-se acumulando, tanto da parte de refugiados que ficaram em Portugal como daqueles que transitaram pelo
país mas encontraram abrigo definitivo noutras paragens. Da parte
dos portugueses, os testemunhos também surgiam em catadupa e
todos tinham uma história para contar sobre a presença dos refugiados.
Em 1992, surgiu, entretanto, na Alemanha a obra pioneira de
Patrick von zur Mühlen, Fluchtweg Spanien-Portugal. Die deutsche
Emigration und der Exodus aus Europa. 1933-1945 («Caminho de
fuga Espanha-Portugal. A emigração alemã e o êxodo da Europa,
1933-1945») e, ainda nesse ano, Ansgar Shäfer publicou um artigo
sobre o «governo português e os refugiados durante a II Guerra
Mundial». Por seu lado Christa Heinrich foi autora de um filme-documentário, com entrevistas a antigos refugiados residentes e testemunhos de portugueses, em Portugal, intitulado «Lisboa – Porto
de Esperança» (Lissabon, Hafen der Hoffnung), realizado por Pavel
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Schnabel, com a colaboração do jornalista berlinense Jens Brüning,
em 1993, que passou no canal ARTE.
Ao mesmo tempo, outra história, também ligada aos refugiados
que transitaram por Portugal, durante a II Guerra, saía do esquecimento, ao ser editado, em 1990, o livro Injustiça. O Caso Sousa Mendes, de Rui Afonso, que publicaria, cinco anos depois, uma obra mais
aprofundada, intitulada Um Homem Bom, Aristides de Sousa Mendes. O «Wallenstein Português». Em 1992/93, o feito Aristides de Sousa Mendes (1885-1954), ex-cônsul de Portugal em Bordéus, foi, por
seu turno, objecto de um filme-documentário para a RTP, da autoria
da jornalista Diana Andringa.
Desde o processo disciplinar a que o ex-cônsul foi sujeito por parte
do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), o nome de Aristides Sousa Mendes, ostracizado pela ditadura salazarista, tinha caído
no esquecimento, em Portugal. O mesmo não aconteceu no estrangeiro, onde, em 1966, o Museu de Yad Vashem, em Jerusalém, considerou Aristides de Sousa Mendes «Homem Justo entre os Povos» e,
em 1987, o Estado de Israel lhe concedeu a cidadania honorária. Em
Portugal, esse ano foi também aquele em que Sousa Mendes começou
a ser louvado no seu próprio país. O presidente da República, Mário
Soares, atribuiu-lhe a Ordem da Liberdade e, no ano seguinte, Jaime
Gama, então deputado à Assembleia da República, introduziu uma
iniciativa legislativa destinada a homenagear o ex-cônsul em Bordéus
e efectuar uma reparação condigna, pela perseguição de que tinha sido
alvo. Esta iniciativa viria a ser adoptada por unanimidade e Aristides
de Sousa Mendes foi reintegrado postumamente no serviço diplomático, na categoria de embaixador.
Entretanto, em 1994 Lisboa foi Capital Europeia da Cultura e, no
âmbito desta iniciativa, Hans Winterberg, director do Goethe-Institut
de Lisboa, realizou, juntamente com Merete Vargas e Christa Heinrich, uma exposição e um colóquio sobre os refugiados em Portugal
durante a II Guerra Mundial, chamada «Fugindo a Hitler e ao Holocausto. Refugiados em Portugal entre 1933-1945», com design de Jürgen Bock e Roger Meintjes, a exposição foi inaugurada em Lisboa a
19 de Maio de 1994, desencadeando um grande interesse. No Outono, foi também mostrada na Figueira da Foz uma das zonas de «residência fixa», onde alguns refugiados tinham sido compulsivamente
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instalados a partir de 1940. Seguiu-se o Porto e depois Coimbra. Em
todos os locais, Christa Heinrich investigava previamente, encontrando nova documentação e fotografias, que eram integradas na
exposição.
Em 1995, o Goethe-Institut preparou uma versão alemã da exposição – especialmente feita para Berlim –, que foi apresentada na Akademie der Künste, acompanhando um colóquio, organizado por
Christa Heinrich, na Haus der Wannsee Konferenz, local onde, em
Janeiro de 1942, dirigentes nazis haviam delineado a «solução final».
Em 1996, a exposição foi apresentada na outrora «capital do movimento nazi», Munique, no centro cultural de Gasteig. Finalmente,
no ano seguinte, em que foi país-tema na Feira do Livro de Frankfurt, Portugal apresentou-se, entre outras iniciativas, com a exposição, no Museu Judaico dessa cidade. Em todas esses locais foram
acrescentadas, na exposição, fotografias e histórias de refugiados
naturais dessas cidades alemãs que acabaram por permanecer em Portugal e, em menor número, alguns que aqui tinham encontrado abrigo
transitório.
A iniciativa, inicialmente dinamizada por alemães, alastrou aos portugueses, que organizaram exposições locais noutras antigas zonas de
«residência fixa», em particular nas Caldas da Rainha e na Ericeira.
Em 1998, o Património Histórico – Grupo de Estudos e a Câmara
Municipal de Caldas da Rainha realizaram a exposição «Marcas da II
Guerra» nessa cidade e, no ano seguinte, foi por seu turno inaugurada na Ericeira uma mostra subordinada ao tema «Os refugiados estrangeiros da II Guerra Mundial, a Ericeira e o seu Quotidiano».
O tema também começou a interessar alguns estudiosos portugueses e a imprensa portuguesa de grande divulgação e especializada e
também diversas instituições portuguesas realizaram iniciativas sobre
o tema, entre as quais se contam o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Comunidade Israelita de Lisboa (CIL). Em particular, a vice-presidente da CIL, Esther Mucznik, recolheu diversos testemunhos de
pessoas da comunidade judaica de Lisboa, que deram origem ao filme-documentário «A palavra das testemunhas», da sua autoria. No
Estoril, foi entretanto aberto o Espaço Memória dos Exílios, onde está
patente, desde Fevereiro de 1999, uma exposição sobre a presença dos
refugiados no Estoril e em Cascais, organizada pela Câmara Munici-
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pal de Cascais. Esta autarquia também tem vindo a publicar o conjunto dos «Boletins de Alojamento de Estrangeiros/Boletins Individuais», do período entre 1939 e 1945, depositados no Arquivo Histórico Municipal de Cascais.
O presente livro resulta de um convite que a editora A Esfera dos
Livros amavelmente me fez e foi inicialmente concebido para ser elaborado em co-autoria com Christa Heinrich, que, por razões profissionais, não pôde participar dessa forma. No entanto, prontificou-se
gentilmente a prestar toda a colaboração e devo dizer que, sem esta,
o livro não seria o mesmo. Efectivamente, estão presentes, por todo
ele, diversos dados, testemunhos de refugiados e o resultado de um
trabalho exaustivo de investigação, realizado em arquivos, que generosamente forneceu.
Agradecimentos são, em segundo lugar, devidos a todos os ex-refugiados e portugueses que aceitaram com toda a sua disponibilidade
partilhar as suas memórias, mesmo se algumas não foram integradas
no livro, por falta de espaço. Agradeço ainda aos meus pais, Eurico
– que infelizmente já não está entre nós – e Erika Pimentel, através
dos quais eu própria conheci alguns ex-refugiados alemães que permaneceram em Portugal, e aos meus jovens amigos António Veiga e
Francisco Veiga, que me ajudaram a incluir algumas fontes no livro.
Grata estou também à Dr.ª Isabel Fevereiro, do Arquivo Histórico do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, e a Ansgar Shäfer, por me ter
cedido uma cópia da sua dissertação de Mestrado. A Ruth Arons, bem
como a Natércia Carvalho e a Ana Cristina, Eduardo e Graça Rosenheim Rodrigues, agradeço algumas das fotografias amavelmente cedidas, para ilustrarem o livro.
O livro trata dos refugiados, judeus e políticos, que, desde a subida
de Hitler ao poder e no decurso da II Guerra Mundial, passaram por
Portugal ou permaneceram no país, conseguindo assim salvar as suas
vidas. Pelo termo «refugiado» designa-se aquele ou aquela que teve
de fugir das perseguições do Terceiro Reich e procuraram refúgio,
embora passageiro, em Portugal. Muitos dos que chegaram a Portugal, nos anos 30 e antes do início da guerra, consideraram que vieram na qualidade de «emigrante», termo aliás habitualmente utilizado
na literatura de exílio alemã. No entanto, a essa expressão, que reflecte
um carácter mais ou menos voluntário da parte de quem emigra, mesmo
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se o faz pressionado por diversas circunstâncias, preferiu-se aqui a de
refugiado, por conter subjacente o aspecto da «fuga» e, portanto, de
saída «forçada» do país de origem. Relativamente aos primeiros refugiados que chegaram a Portugal, a imprensa local começou por designá-los como «estrangeiros» e, a partir do início do conflito mundial,
tanto os jornais como os meios oficiais passaram a designá-los «refugiados de guerra»1. Ora, muitos deles não o eram, ou não o eram unicamente, pois fugiam a muitas outras perseguições, além do facto de
os seus países se terem transformado em campos de batalha.
Sendo um trabalho de carácter historiográfico, é a cronologia que
preside à organização do texto, que está dividido em oito partes e
outros tantos capítulos. No primeiro capítulo, «A chegada dos primeiros judeus e antinazis, 1933-1937», tenta-se caracterizar o regime
salazarista que vigorava no país, quando alguns refugiados alemães
começaram a chegar, nos anos 30. Dá-se algum destaque à ausência
de anti-semitismo na ideologia salazarista e no Estado Novo, sendo
ainda este último comparado ao regime hitleriano. Nesse período, os
refugiados eram pouco numerosos e a política de fronteiras portuguesa relativamente branda, embora se tenha começado a assistir, a
partir de 1935, por pressão da PVDE sobre o governo e sobre o MNE,
a tentativas de limitar a sua entrada em Portugal.
Segue-se o segundo capítulo, «Das primeiras restrições à contenção da vaga. 1938-1940», onde se analisa a legislação portuguesa
de fronteiras a partir de 1938, o papel da PVDE e de Salazar, bem
como o de alguns diplomatas portugueses que ajudaram refugiados.
Foi um período em que a Alemanha nazi iniciou a sua política agressiva e expansionista, ao mesmo tempo que aumentavam qualitativamente as perseguições anti-semitas e quantitativamente as suas
vítimas. O terceiro capítulo trata da presença dos «refugiados entre
portugueses», abordando a chegada da grande vaga de fugitivos a
Portugal em 1940, e o relacionamento que estabeleceram como os
habitantes, quer nas zonas de residência fixa da Curia, Figueira da Foz
e Caldas da Rainha, quer na «Costa do Sol» ou em Lisboa. A imagem de Portugal, que perdurou na memória dos refugiados como um
«paraíso», a influência exercida por estes sobre os portugueses e a
realidade do país nos anos 40 são algumas das facetas observadas
neste capítulo.
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«Lisboa, porto de esperança», em 1940 e 1941, é o assunto abordado no quarto capítulo. Aí se observa que a capital portuguesa se transformou então numa cidade cosmopolita, de encruzilhada dos fugitivos,
mas também a importância dos «vistos», cuja aquisição significava,
para os refugiados, a diferença entre a vida e a morte anunciada. Mostra-se ainda como Portugal nunca deixou de ser apenas um país de trânsito e revela-se a importância das organizações de apoio aos refugiados,
ajudando-os nas dificuldades com que eles se confrontaram. Entre essas
dificuldades, contaram-se, a partir de 1942, as perseguições que a PVDE
lhes moveu, prendendo alguns e enviando outros para zonas de «residência fixa», abordadas no quinto capítulo.
O sexto capítulo, «Portugal, um País neutro, na II Guerra Mundial»,
aborda a atitude de neutralidade do regime salazarista, sendo aí tratados diversos aspectos, entre os quais se contam a presença dos dois campos beligerantes – a Alemanha e os Aliados ocidentais – no país, a vários
níveis: desde o relacionamento económico e político aos campos de propaganda de guerra e a espionagem... O penúltimo e sétimo capítulo,
«Portugal e o Holocausto. 1943-1944», trata de um período em que os
campos de extermínio nazis já estavam em pleno funcionamento e em
que o regime salazarista se confrontou com a repatriação de alguns –
poucos – judeus com nacionalidade ou ascendência portuguesa. Dada
a necessidade de contextualizar esse período, não só com o que acontecia em Portugal, mas também com o que sucedia na Alemanha e nos
países ocupados, inclui-se uma breve análise das diversas etapas que
conduziram a esse crime terrível que constituiu o Holocausto. No «Epílogo», tenta-se retirar algumas conclusões sobre o papel de Portugal,
enquanto refúgio passageiro – ponto de passagem efémero, mas nem
por isso menos importante.
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CAPÍTULO I
A CHEGADA DOS PRIMEIROS JUDEUS
E ANTINAZIS. 1933-1937
A
partir de 1933, ano da institucionalização do Estado Novo português e, em 30 de Janeiro, da subida de Hitler ao poder, na Alemanha, alguns (poucos) judeus e antinazis alemães, com uma percepção precoce das prováveis consequências da eliminação de toda a
oposição política interna e do anti-semitismo nazi, «emigraram» para
Portugal. Lembre-se que na época podiam entrar no país sem visto e
trabalhar, desde que não fosse por conta de outrem. Esses primeiros
«emigrantes», que hoje insistem terem vindo para Portugal nessa qualidade, e não como «refugiados» ou «exilados», foram também os que
permaneceram no país depois do final da guerra, não só porque tiveram a oportunidade de legalizar a sua estadia como porque acabaram
por se integrar na sociedade portuguesa.
Os primeiros refugiados.
«Em Portugal vivíamos como os portugueses»
Em 6 de Outubro de 1935, chegavam a Portugal, após uma viagem de cinco dias, no navio alemão Kap Arcona, vindo de Hamburgo, Ruth Davidsohn (por casamento, Ruth de Carvalho), a irmã
e os seus pais, uma antiga química e um consultor de galerias de arte.
Como partiram precocemente da Alemanha nazi, devido às perseguições que o regime lhes moveu, por serem judeus, conseguiram trazer
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os seus móveis e inúmeros haveres, num contentor (Lift), despachado, em Setembro desse ano, de Berlim. Escolheram também Portugal
como terra de exílio, devido ao facto de os tios de Ruth, Hugo e Lily
Losser, já aí se encontrarem, de ser um país da Europa, sem fronteiras com a Alemanha nazi, e ao mesmo tempo um porto de partida
atlântico, em caso de emergência.
Além disso, Portugal também lhes pareceu simpático, pois não
havia ainda dificuldades burocráticas, graças a um acordo luso-alemão de 1926 que dispensava vistos nos passaportes, e os estrangeiros
podiam trabalhar por conta própria, bem como obter autorização de
residência, por um ano, prorrogável. O tio de Ruth trabalhava, por
exemplo, em importação de máquinas automáticas de chocolates, com
a fábrica de chocolates Favorita, tendo a primeira vindo no Lift da
família Davidsohn. Com parte do dinheiro trazido, o pai de Ruth comprou uma loja de relógios, mas o negócio falhou, quando se tornou
difícil importá-los da Suíça e da Alemanha, devido ao início da guerra. A família viveu então dificuldades financeiras e o pai meteu mãos
à obra, vendendo, de forma ambulante, «quinquilharias» (óculos de
sol e lâminas de barbear), enquanto a mãe começou a fazer «bolas-de-berlim» caseiras, distribuídas pelo pai e pelas duas filhas, entre os
elementos da colónia alemã de Lisboa, que não tinham então qualquer «problema» em comprar a judeus. Em Portugal, viviam como os
portugueses, segundo contou Ruth, que aprendeu rapidamente a língua e acompanhava o pai, como tradutora «assistente», quando este
tinha de se deslocar às autoridades portuguesas1.
Em casa de Ruth, também viveram outros refugiados, sendo ela
e a irmã, por vezes, «obrigadas» a dormir num quarto pequeno e,
quando se queixavam, a mãe dizia-lhes que elas deviam estar felizes,
porque ainda tinham uma bonita cama. Sobre o regime que vigorava
em Portugal, Ruth disse que parte da PVDE simpatizava com a Gestapo e que existia, entre os refugiados, o medo de que a Wehrmacht
ocupasse Portugal e a Espanha, receio esse particularmente agudo, em
Novembro de 1942, quando a Alemanha ocupou a França «livre».
Em reacção, as organizações de apoio aos refugiados montaram operações de partida de crianças para famílias protectoras norte-americanas, e a irmã de Ruth, Gerda, também acabou por ser transportada
para os EUA. Entretanto os Davidsohn foram destituídos da nacio-
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nalidade alemã e ainda tentaram adquirir a portuguesa, mas durante
a guerra Portugal não concedeu naturalizações.
Ruth e os pais também seguiram para os EUA, não só por medo
da invasão alemã de Portugal, mas também, segundo contou a própria, porque estes não queriam que as suas filhas casassem com portugueses, devido ao machismo e ao predomínio masculino, num país
onde as mulheres não tinham quaisquer direitos. Ironicamente, porém,
Ruth acabaria por se casar com um português, filho de um diplomata,
que conheceu nos EUA. Mas antes de partir para a América, depois
de completar o liceu, Ruth trabalhou como tradutora de inglês e francês, no apoio aos refugiados, fornecido pelo Hicem, juntamente com
as suas amigas Lucie Levy, uma belga, e Carolina, uma portuguesa.
Todos os dias colava moradas em encomendas enviadas para os internados nos campos de concentração alemães e de internamento franceses, com alimentos fornecidos por mercearias e por uma loja de Delicatessen do refugiado Hans-Joachim Wartenberg. Ruth afirmou que,
na organização de apoio onde trabalhava e através da rádio, soube
dos horrores que se passavam na Alemanha, onde foram mortos,
depois de deportados, o seu tio Leo, a tia Alice e um primo, Horst.
Ruth, que sempre se sentiu judia, embora sem ser religiosa, considerou-se também «muito portuguesa». As suas pátrias eram Portugal e
os EUA, embora também sentisse ter raízes na Alemanha2.
Segundo Adolfo Benarus, dirigente da Comunidade Israelita de Lisboa (CIL) e da Federação Sionista Portuguesa, havia em Portugal, em
Setembro de 1933, apenas cerca de cem judeus alemães3, os quais não
eram diferenciados pelo regime salazarista relativamente aos outros
estrangeiros, desde que tivessem entrado no país por via legal. A organização judaica norte-americana, American Joint Jewish Distribution
Committee (JDC, Joint, para simplificar) disse que quem quisesse
então entrar em Portugal recorria aos consulados portugueses na Alemanha, pedindo um visto de imigração e recebia uma autorização de
residência4.
Nesse período podiam montar negócios e trabalhar por conta própria ou mesmo em empresas de outros, desde que não preenchessem
lugares pretendidos por portugueses. Um projecto de decreto-lei do
Ministério do Interior, de Janeiro de 1933, estipulava que, em regra,
era «livre a entrada de estrangeiros», desde que se conformassem com
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as leis nacionais e possuíssem um visto consular português, para residir no país. Apenas uma das alíneas desse diploma especificava que
os «indigentes, vagabundos indesejáveis», considerados «perigosos
para a ordem interna ou externa do Estado Português», seriam impedidos de entrar no país5.
Na primeira leva de fugitivos, eram raros os refugiados políticos.
De facto, não havia razão para estes procurarem refúgio num país cujo
regime era ditatorial e tinha nisso algumas semelhanças com o alemão, num período em que podiam escolher outros países europeus,
onde vigoravam regimes democráticos. Em resposta a um questionário do Partido Nacional-Socialista (NSDAP), a Legação da Alemanha
em Lisboa afirmou, no Verão de 1933, desconhecer a presença de
«emigrantes políticos entre a colónia alemã» e referiu, em Dezembro,
que apenas viviam então, em Portugal, Walter Bonn‚ sobre quem pendia um processo de retirada de nacionalidade, três comunistas, e os
sociais-democratas alemães, Hilda e Arthur Adler 6.
Este último, acusado pela PVDE de ser um agitador comunista, por
lhe haver sido apreendida, na fronteira com Espanha, «literatura antifascista», estava em vias de ser expulso, quando o alto-comissário
para os Refugiados da Sociedade das Nações (SDN) intercedeu em seu
favor, junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português. Instada por este ministério, a PVDE confessou que ele não era
de facto comunista, embora, na literatura que lhe havia sido apreendida, houvesse «habilidosas passagens de propaganda comunista»7.
Adler terá acabado por não ser expulso, dado que a sua presença
em Portugal foi referida por Lotte Pflüger, uma judia alemã, cujos pais
chegaram a Portugal nesse ano de 1933. No ano seguinte, chegou por
via marítima, através da Suíça e da Itália – na época, a comemorar o
XII aniversário da subida do fascismo ao poder –, o seu marido, Hermann Pflüger, um alemão de esquerda não-judeu. Lotte juntou-se a
ele mais tarde, depois de ter sido presa em Berlim e de a própria polícia alemã – ainda não era a Gestapo – lhe ter aconselhado, por ser
judia, a sair da Alemanha. Instalaram-se em Oeiras, onde já residiam
outros «emigrados» alemães, entre os quais se contavam Kurt Jacobson, professor de Química da Faculdade de Ciências, a família Arons,
da qual se voltará a falar, e os já referidos Adler. Depois passaram a
residir em Lisboa, onde deram aulas particulares de alemão8.
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De que fugiam os refugiados alemães?
Mal chegou ao poder, ao ser nomeado chanceler do Reich pelo presidente, marechal Paul von Hindenburg, Hitler iniciou o caminho que
transformaria o seu regime, de uma ditadura «legal», em totalitarismo. A 27 de Fevereiro, ocorreu o incêndio do Reichstag (Parlamento
alemão, em Berlim), pretexto para os nacionais-socialistas acusarem
os comunistas e emitirem o Decreto de suspensão dos direitos civis e
das liberdades, bem como da proibição do Partido Comunista Alemão (KPD). Seguiu-se a detenção de 4000 oposicionistas de esquerda. A 22 de Março, uma votação no Reichstag atribuiu ao chanceler
plenos poderes por quatro anos e no dia seguinte foi aprovada a Lei
de Ratificação, que concedeu amplos poderes legislativos ao governo
nazi.
Foram de seguida promulgadas diversas medidas, entre as quais se
contou a Lei sobre «prevenção das doenças hereditárias», a nomeação de Himmler como chefe das SS e a criação do campo de concentração de Dachau, onde foram encarcerados os oposicionistas de
esquerda ao regime. A 1 de Abril desse ano de 1933, o partido nazi
organizou na Alemanha um dia de boicote aos estabelecimentos
judeus e reclamou que estes fossem sujeitos a um numerus clausus, na
frequência dos liceus e universidades, bem como no exercício da profissão médica e jurídica. No mês seguinte foram queimados, em toda
a Alemanha, livros de autores antinazis, na sua maioria judeus, num
gigantesco «auto-da-fé», que deu o sinal de alarme aos intelectuais e
início à fuga destes para o exílio. Depois da dissolução do Partido
Social-Democrata Alemão (SPD) e de outros partidos, o regime tornou-se, a 14 de Julho, «de partido único».
A «polícia secreta de Estado», Gestapo (Geheime Staatspolizei),
instrumento de terror nazi, começara também, desde 1933, a exercer
as suas prerrogativas, independentemente do sistema judiciário, instituindo os seus próprios objectivos, métodos e processos de «administração da justiça». A 4 de Fevereiro de 1933, o decreto de «protecção do povo alemão» possibilitou à Gestapo prender e internar
administrativamente os suspeitos (adversários do regime), colocando-os, «por medida de segurança» (literalmente: medida de protecção),
em «detenção preventiva», ou na chamada «custódia protectora».
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Secundado por Reinhardt Heydrich, chefe do serviço de segurança
(SD) das SS, Heinrich Himmler foi sucessivamente acumulando o controlo das polícias autónomas de todos os Länder, e em Abril de 1934
foi nomeado inspector da polícia secreta do Estado da Prússia, bem
como da Gestapo em todo o território nacional9.
Na chamada «Noite das Facas Longas», Hitler ajustou contas com
a oposição de direita e com o primeiro fascismo nazi, representado
pelos SA, tropas de choque do NSDAP, assassinando o seu chefe, Ernst
Röhm, e outros dirigentes, bem como elementos do bloco de «esquerda»
do Partido Nazi, representantes da oposição liberal e conservadora, e
inimigos pessoais do Führer. Com a morte de Hindenburg, em Agosto
de 1934, a «Lei dos Plenos Poderes» atribuiu a Hitler os cargos de
chanceler, presidente do Reich e chefe supremo das Forças Armadas
(Reichswehr), que passaram a prestar-lhe juramento pessoal de lealdade. Os anos entre 1935 e 1938, período de milagre económico na
Alemanha, foram também de ampla mobilização ideológica em torno do nacional-socialismo, de pulverização e desmantelamento da
oposição ainda restante.
O refúgio numa ditadura nacionalista a autoritária
Como outros refugiados alemães, judeus e políticos, ao chegarem,
a partir dos anos 30, a Portugal, em fuga das discriminações e da
repressão do nacional-socialismo alemão, também Hermann Pflüger
só se apercebeu, pela leitura de um cartaz com o «Decálogo do Estado
Novo», que tinha procurado refúgio num país onde vigorava uma
ditadura, com algumas semelhanças com o regime de Hitler10. Entre
outros aspectos ficou então a saber que o regime português era uma
ditadura nacionalista, anti-liberal, anticomunista e autoritária.
Nacionalista, porque era propósito do regime, segundo esse «Decálogo», reintegrar Portugal «na sua grandeza histórica» de «vasto império». Anticomunista, anti-liberal e anti-individualista, porque repudiava a luta de classes, subordinando «todas as classes à suprema
harmonia do Interesse Nacional», e porque o indivíduo só existia
como parte integrante das famílias, das corporações e dos municípios.
Finalmente, autoritária, porque repudiava o «parlamentarismo» e
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pugnava por ser um «Estado Forte», que podia e devia usar «a força», para realizar «a legítima defesa da Pátria», contra os adversários
políticos, encarados estes como «inimigos da Nação».
À frente do governo português, desde 1932, o presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar, tinha sido convidado
para a pasta das Finanças em 1928, dois anos depois de um golpe do
Exército ter derrubado a I República portuguesa, substituindo-a por
uma Ditadura Militar. Iniciara-se então um processo conturbado e
longo que levara à edificação de uma ditadura civil assente numa
frente de diversas correntes da direita, arbitradas por Salazar. Na origem do Estado Novo português, não houve, assim, como aconteceu
na Itália fascista e na Alemanha nacional-socialista, uma tomada do
poder por um movimento político de massas mobilizador e foi o regime salazarista que instituiu, «a partir de cima» e na dependência do
governo, o partido único. Por isso, há quem o qualifique de «fascismo sem movimento fascista»11.
Ao caracterizar, em 1932, a União Nacional (UN), Salazar considerou que esta não era um «partido» e que deveria integrar, «sem violência», os cidadãos, reconhecendo o Estado, fora dela, liberdades e
direitos políticos. Esta última afirmação ficou, porém, sem aplicação
prática, pois admitia uma excepção que abria a porta a todas as
excepções: não seriam toleradas, fora da UN, quaisquer «ofensas à
actividade governativa nem aos fins da Constituição»12. Em 1933, no
ano em que Hitler subiu ao poder, foi plebiscitada a nova Constituição, que institucionalizou o Estado Novo português, a qual recusava
tanto o liberalismo como o totalitarismo estatal.
Embora contivesse resquícios liberais, negava os fundamentos
democráticos e parlamentaristas do Estado e as «abstracções» da
soberania popular, do cidadão e da liberdade, enquanto conceitos legitimadores do regime. Como disse Salazar, era necessário «fortalecer
a autoridade, desprestigiada e diminuída, diante das arremetidas de
mal compreendida liberdade»13 e eliminar, da futura Assembleia
Nacional, o «parlamentarismo, isto é, discussões estéreis, grupos,
partidos, lutas pela posse do poder». Relativamente ao totalitarismo
estatal, que tudo subordinava «à ideia de nação ou de raça», Salazar
considerou-o incompatível com a civilização cristã da qual Portugal
fazia parte. Por isso, a Constituição portuguesa limitava, segundo ele,
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pela «moral e o direito», a omnipotência do Estado, ao impor-lhe o
respeito pelos direitos individuais e corporativos, ao assegurar a liberdade de crença e prática religiosa, ao atribuir aos pais a educação dos
filhos, ao reconhecer a acção espiritual da Igreja católica e ao garantir a propriedade, o capital e o trabalho14.
Apesar de reconhecer que o Estado Novo se assemelhava ao fascismo italiano no «reforço da autoridade», na guerra a certos princípios da democracia e no seu carácter nacionalista, Salazar esclareceu
que o seu novo regime não podia fugir «a certas limitações de ordem
moral» que tornavam as leis portuguesas «menos severas», os «costumes menos policiados» e o Estado «menos absoluto». Segundo ele,
a «violência» fascista não se adaptava à «brandura dos costumes»
portugueses, mesmo que se tornasse necessário dar por vezes «uns
safanões a tempo» aos adversários políticos15. Uma das semelhanças
entre o regime português e os regimes fascista e nacional-socialista foi
o anticomunismo, embora, mesmo em relação à luta anticomunista,
Salazar tivesse mostrado receio de que Hitler fosse longe de mais, ao
eliminar fisicamente os seus opositores16.
Noutra crítica ao fascismo italiano e ao nacional-socialismo alemão, Salazar considerou então que, embora estes dois regimes se diferenciassem do comunismo, «pelas suas concepções económicas e as
suas exigências espirituais», não deixavam de compartilhar com aquele o mesmo «conceito de Estado totalitário». «Tanto para um como
para outro, o partido é o Estado, ao qual se encontra subordinada
toda a actividade dos cidadãos» – acrescentou Salazar – dado que, nesses regimes, os homens só existiam «para o engrandecimento e a glória do Estado», o qual possuía, «em si mesmo, o seu fim e a sua razão
de ser», não deixando, fora dele, «existir nem regra externa para limitar a sua actividade, nem qualquer direito».
Ao considerar «natural que, nos Estados tão absorventes, todas as
actividades que tivessem interesse político directo ou um interesse na
formação da consciência nacional» se encontrassem nas suas mãos,
Salazar não deixou, porém, de alertar para o perigo de, num tal Estado
totalitário, a violência se vir transformar no direito supremo:
«Um Estado tão forte não recuaria, nem mesmo perante a violência
mais exagerada, e na lógica do seu sistema, em vez de considerar esta
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violência como um atentado contra o direito, ele encaminhá-la-á para
a manifestação dum direito mais elevado.»17
Na prática, o regime português foi uma ditadura do chefe do
governo, que estava à frente de um executivo quase autónomo,
monopolizador dos direitos legislativos, retirados a uma Assembleia
Nacional subalternizada, ocupada pela União Nacional, o partido
único do Estado Novo. Em 1933, foi ainda criada, para eliminar a
luta de classes, a legislação básica da organização corporativa que
assentaria, depois da proibição das associações operárias, em sindicatos nacionais (estatais) únicos e grémios patronais todo-poderosos. O corporativismo português, influenciado pelo catolicismo
social, foi também implantado, tal como o havia sido a UN, «a partir de cima» e subordinado ao Estado, que, através das suas estruturas, se propunha regular os conflitos na sociedade e intervir na
economia.
No final desse mesmo ano de 1933, o edifício do Estado Novo
ficou quase concluído com a supressão da liberdade de expressão e
associação, a reorganização da Censura e a criação do Secretariado
de Propaganda Nacional que, embora influenciado pelo fascismo italiano, difundiu a imagem tradicional e ruralizante do português cristão, pobre, humilde e obediente. Finalmente, foi ainda criada, nesse
ano, para reprimir os crimes contra «a segurança interna e externa do
Estado», a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), que, prestando directamente contas a Salazar, reprimiu os opositores ao regime,
utilizando como métodos, a delação e a tortura, usando e abusando
da prisão preventiva e prolongando as penas de prisão, sem levar, frequentemente, os presos a julgamento.
O Estado Novo português foi considerado «fascista» ou «tendencialmente totalitário»18, por aqueles que realçaram as suas semelhanças com o Fascismo italiano, ou foi caracterizado como uma ditadura
«autoritária», na qual não se teria feito sentir a «tensão totalitária»19,
pelos que, pelo contrário, valorizaram as diferenças entre os dois regimes. O certo é que o Estado salazarista pertenceu à corrente comum
de ideologias antiliberais e de ditaduras nacionalistas autoritárias e
fascistas que, em reacção contra-revolucionária à crise do liberalismo,
assolaram a Europa no período entre-guerras. Mas também é um facto
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que o Estado Novo português se distinguiu, na sua essência, do nacional-socialismo alemão.
Enquanto ideologia, o salazarismo caracterizou-se por combinar o
ideário da direita radical, com o conservadorismo tradicionalista e o
catolicismo social corporativista, antiliberal e anticomunista. Por seu
turno, enquanto funcionamento do sistema político, o Estado salazarista nunca entrou em tensão com o Partido – ou seja, a UN – e sobrepôs-se sempre a ele. Finalmente, no seu relacionamento com a sociedade, não hegemonizou todo o corpo social e, embora tenha por vezes
entrado em conflito com a Família, o Exército e a Igreja católica, permitiu a essas instituições espaços de actuação. Era desejo de Salazar
«levar os portugueses a viver habitualmente» e por isso, exceptuando
no período de fascização mais notória, como em 1936, não houve,
em Portugal, grandes manifestações de massas nem uma tentativa de
constante mobilização política da população.
Segundo a filósofa judia alemã, Hannah Arendt, diferentemente das
tiranias tradicionais – ou das ditaduras – que utilizam o seu aparelho
repressivo para perseguir e calar os adversários políticos, o «totalitarismo» terrorista nazi não se contentou em destruir unicamente os inimigos do regime, mas quis, também, aniquilar, indiscriminada e arbitrariamente, toda a espécie de vítimas inocentes. Entre estas, contaram-se
os judeus, massacrados, apenas por o serem20. Segundo essa diferença conceptual, deve-se afastar o Estado Novo do campo «totalitário»
e caracterizá-lo como uma ditadura, cujo objectivo era amedrontar e
calar os seus adversários políticos. Por outro lado, a ditadura salazarista não incluiu, na sua ideologia, o anti-judaísmo, e muito menos o
elemento anti-semita racial e biológico.
«Em Portugal, não havia sentimentos anti-semitas»
Ao escolher um país para onde fugir do regime nacional-socialista,
em 1935, a família de Ruth Davidsohn de Carvalho também teve em
conta que em Portugal não existia o anti-semitismo, que havia sentido em Berlim. É um facto que, em Portugal, quatro séculos depois das
conversões forçadas dos judeus portugueses ao catolicismo, em 1497,
e da introdução da Inquisição, em 1537, a pequena comunidade
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judaica, formada, na sua maioria, por famílias de judeus sefarditas que
haviam regressado, ao país no século XIX, vindas do Norte de África,
estava perfeitamente integrada na sociedade portuguesa. Tinham-se
instalado inicialmente nos Açores, na Madeira, no arquipélago de
Cabo Verde, bem como no Algarve, e mais tarde no Porto e em Lisboa. Muitos deles exerciam profissões liberais, sobretudo a medicina
e a docência universitária, e alguns eram mesmo próximos do regime,
como foi o caso de Moisés Amzalak, presidente da CIL, durante dezenas de anos.
Em Portugal, a emancipação dos judeus foi tardia. No século XIX
a legislação abrangia, na concessão de direitos, só os cidadãos portugueses. Ora, apenas era considerado cidadão português, aquele que
professava a religião oficial do reino – a católica21. A Carta Constitucional de 1826 só admitia, na função pública, os portugueses – portanto de religião católica – e autorizou aos estrangeiros apenas o culto
de uma religião diferente da católica, e em locais «sem forma alguma
exterior de Templo», como aconteceu à primeira sinagoga, construída em Lisboa em 1905.
Com o advento da República, os judeus portugueses ficaram com
os mesmos direitos políticos dos outros cidadãos. A Constituição
republicana de 1911 aboliu a religião de Estado, afirmou a liberdade
de crença e de culto, reconheceu a igualdade política e civil a todos
os cultos, legalizou a comunidade israelita (em 1912) e abriu todas as
carreiras profissionais aos cidadãos de outras crenças religiosas.
Devido a essas novas circunstâncias, uma organização territorialista
judaica sondou, através de membros da comunidade judaica portuguesa, parlamentares portugueses no sentido de se constituir uma
colónia judaica em Angola. O projecto chegou a ser aprovado pela
Câmara de Deputados, em Julho de 1913, mas nunca foi enviado para
aprovação final das duas Câmaras, ficando assim esse diploma sem
aplicação22.
Ainda nesse ano, quando decorriam as guerras balcânicas contra
o domínio do Império Otomano, muitos dos habitantes desses territórios viram a sua nacionalidade posta em causa, o que aconteceu, em
particular, aos elementos da comunidade judaica de Salonica, quando o exército grego ocupou esse porto. Cerca de 400 famílias israelitas de origem portuguesa solicitaram então a reintegração na antiga
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nacionalidade, para evitar a assimilação pela soberania helénica, e o
governo republicano de Portugal, à semelhança de outros, concedeu
a nacionalidade a esses «judeus levantinos de origem portuguesa»23.
Considerou, no entanto, que a delicadeza da situação só permitia inscrições provisórias e assim permaneceram, até porque, em 1917,
Salonica foi incendiada, perdendo-se os documentos inicialmente
apresentados por esses judeus24.
Entretanto, em 1914 surgiu em Portugal o movimento doutrinário
Integralismo Lusitano (IL), cujo principal ideólogo, António Sardinha
(1887-1925), publicou, no ano seguinte, a obra O Valor da Raça,
onde, entre outros argumentos, reabilitou a Inquisição, que segundo
ele, impedira «os judeus de tentar dominar Portugal»25. Com um discurso diferente, pelo seu carácter anti-semita e pagão, o poeta modernista Mário de Saa publicou, em 1921, no ano da fundação, em Lisboa, da Federação Sionista portuguesa, um opúsculo onde se
preocupou em indagar as origens genealógicas «semitas» da maioria
dos vultos republicanos, banqueiros, industriais, artistas e poetas26.
Mário de Saa distinguiu-se de Sardinha, ao introduzir, no seu discurso, ideias do pensamento eugénico, do darwinismo social e do
racismo biológico. Adversário das conversões forçadas, feitas pela
Inquisição, que segundo ele havia assim misturado «o que era naturalmente diverso», Mário de Saa era um defensor de uma espécie de
sistema de apartheid – perdoe-se o anacronismo – onde os judeus fossem apartados dos outros portugueses. Segundo as suas palavras, a
«bem do progresso deveriam delimitar-se em Portugal o pansemitismo e o pan-gotismo», ao contrário do que tinha feito a Inquisição portuguesa que, em vez de expulsar os judeus (!) só os tinha admitido no
País, «mais para dentro».
Estas ideias continuaram a ser defendidas, depois, noutro livro,
A Invasão dos Judeus (1924), onde Saa se entreteve a encontrar
judeus por todo o lado, desde o aparelho de Estado republicano aos
escritores. Entre a publicação do primeiro opúsculo e a do livro de
Mário de Saa, foi editado no Porto o panfleto anti-semita, Os Planos
da Autocracia Judaica (Livraria Portuguesa, 1923), a primeira tradução portuguesa dos Protocolos dos Sábios de Sião, com comentários
de Francisco Pereira de Sequeira e Lemos Peixoto, dirigentes das
Juventudes Monárquicas Conservadoras27.
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Nesse ano foi ainda publicado em Portimão o folheto Crimes da
Franco-Maçonaria Judaica, da autoria de «Paulo de Tarso», pseudónimo de António da Silva Pena Peralta, membro da Acção Realista
Portuguesa, do Algarve. A publicação é certamente a maior manifestação de anti-semitismo virulento jamais escrita em Portugal, pois
«Paulo de Tarso» aí defendeu, numa linguagem que seria tragicamente
passada ao acto, anos depois, pelos nazis, que o «mal» judaico «devia
ser exterminado», tal como se matava «os cães, como medida preventiva contra a raiva». Este anti-semita chegou mesmo a sugerir
medidas práticas de discriminação, tendentes a impedir a assimilação
e a separar os judeus do resto da população.
Nos primeiros vinte anos do século XX, o anti-semitismo assumiu,
porém, em Portugal, uma matriz mais católica e cultural do que política, expressando-se ao nível da escrita, em alguns pensadores da direita
monárquica, que só por vezes reclamaram a tomada de medidas práticas discriminatórias. Com uma postura «anti-judaica» de fundamento económico e moral, o anti-semitismo português foi um fenómeno aparentemente importado de França, provavelmente lido em
racistas, como Édouard Drumont, Arthur de Gobineau, ou do inglês
Houston Stuart Chamberlain. Como afirmou, aliás, Raul Proença,
não haveria uma única ideia integralista que não pagasse «na alfândega direitos de importação»28.
Por outro lado, como realçou José Augusto França, nos anos 20,
«o anti-semitismo português em termos intelectuais e sociais não foi
longe», e no final da década «a colónia judaica» chegou a inaugurar escolas rabínicas em Lisboa e no Porto29. Entre as razões para
que mesmo assim tivesse havido então manifestações escritas de anti-semitismo em Portugal, contou-se provavelmente o sempiterno projecto de colonização de Angola. Também se pode aventar a hipótese, com base no que os próprios anti-semitas revelam no seu
discurso, de que as suas manifestações se teriam devido à nova visibilidade das comunidades «marranas» do norte do país e particularmente à Obra do Resgate empreendida pelo capitão Barros Basto, a
partir de 192330.
Ao reunir, a 23 de Junho desse ano, o Comité da Comunidade
Israelita de Lisboa (CIL) manifestou preocupação com um possível
reavivar do anti-semitismo, quase inexistente em Portugal, caso os
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judeus fizessem «proselitismo»31. Os dirigentes da CIL, Moisés Amzalak e Adolfo Benarus, repetiram, depois, esse aviso, lembrando que,
aos «olhos da Igreja, a grande maioria dos marranos são ainda seus
filhos baptizados, e qualquer acção sob a forma de propaganda para
os converter ao judaísmo seria tomada com amargo ressentimento»32.
Em 1928, o capitão Arthur Barros Basto deu conta de que, ao mesmo tempo que se concretizava o seu projecto de estabelecimento de
um centro judaico no Porto e de núcleos no norte do país, tinham
começado os boicotes aos judeus, por parte de «reaccionários»33. No
ano de 1932, em que Salazar se tornou chefe de governo e começou
a edificar o Estado Novo, a pressão social de católicos contra os
judeus, em Pinhel, na Covilhã e em Argozelo, foi porém tão grande
que, segundo Barros Bastos, algumas «famílias judaicas iniciaram
mesmo uma diáspora para cidades como Lisboa ou Porto»34. Nesse
mesmo ano, foi também criada a organização fascista portuguesa,
Movimento Nacional-Sindicalista (MNS), de Rolão Preto (1893-1977), que seria, aliás, dissolvida por Salazar dois anos depois. Os fascistas portugueses enalteceram, logo que Hitler subiu ao poder, em
Janeiro de 1933, o novo regime alemão, justificando as primeiras
medidas anti-semitas por este tomadas. A 27 de Maio, o jornal nacional-sindicalista, Revolução, esclareceu a posição do MNS sobre a
questão judaica:
«Como encaramos nós os nacionalistas e a Revolução nacional o problema judeu? Há em Portugal uma questão judaica? Somos nós um
nacionalismo rácico a quem a defesa do sangue reclama medidas profiláticas contra os israelitas, como acontece na Alemanha presentemente?
A resposta é bem simples: não há em Portugal, um problema judaico.
Porque na defesa da raça teve já, é certo, esse problema que resolveu, de
resto como hoje o resolve a Alemanha hitlerista.»
No artigo, explicava-se que em Portugal essa «resolução» tinha já
ocorrido no tempo de D. Manuel I e que, depois, nunca mais «as
necessidades dessa defesa impuseram a batalha contra os filhos de
Israel»35. Por outro lado, noutro artigo, publicado a 12 de Julho de
1933, nesse mesmo jornal, um germanófilo anónimo denunciou que,
num barco com destino à Trafaria, «sem a mínima noção de civilidade e abusando da sã hospitalidade portuguesa», um grupo de
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«judeus chegados da Alemanha» havia cantado «coisas obscenas»,
«com alusões directas à actual política alemã e aos seus dirigentes»,
mimoseando «a pessoa de Hitler em termos os mais infamantes».
Salazar e os judeus
Em 1933, a família de Salomão Sequerra Amram, vinda do Algarve,
foi viver para Lisboa, onde este frequentou a Escola Israelita, entre os 10
e os 14 anos, quando entrou para o Liceu Camões. Aí, manteve um certo confronto «com alguns colegas germanófilos, e outros que eram favoráveis a Mussolini». Nunca se sentiu, porém, «marginalizado ou excluído da sociedade portuguesa, tanto devido à força espiritual que emanava
da prática religiosa» da sua família, «como devido às influências sociais
e culturais recebidas de ilustres judeus portugueses da época», entre os
quais se contaram «as figuras de Moses Bensabat Amzalak, de Joaquim
Bensaúde, dos irmãos Augusto e José d’Esaguy, de Adolfo Benarus, de
Matilde Bensaúde, de Elias Baruel e de Mark Athias»36.
Também Samuel Levy contou que, enquanto estudante, sentiu algum
anti-semitismo, ocorrendo-lhe «uns atritos com uns colegas alemães
nazis», e teve dificuldades para não fazer os exames aos sábados37. Afirmou, no entanto, nunca ter visto comportamentos anti-semitas em Portugal, onde o que se sentia «era que muitas pessoas não sabiam o que
era um judeu», embora essa palavra tivesse, por vezes, uma «conotoção negativa» e estivesse relacionada com autênticas «lendas»:
«Antes da guerra, a um irmão meu, que estudava no Instituto Industrial, o professor de Física disse: “Eu gosto dos judeus, mas há uma coisa que não percebo. Porque é que os judeus tiram o sangue das criancinhas que matam antes da Páscoa, para fazerem a bolacha da Páscoa?”
Outro caso passou-se com um homem culto, autor de livros, membro
da Academia das Ciências, que um dia se virou para mim e disse: “Sabe,
gosto dos judeus, admiro muito os judeus, mas eles têm uma coisa que
me faz um bocado de confusão. É que, quando as pessoas estão a morrer, abafam-nas, sufocam-nas!”»
Samuel Levy soube depois que este último era vizinho, na Rua Borges Carneiro, de umas senhoras judias e tinha visto uma delas mor-
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rer de uma forma que lhe parecera um sufoco, e explicou a origem
desse mito:
«Acontece que nós, judeus, temos o costume da hevrá kadishá, grupo de pessoas que dão assistência a uma pessoa moribunda para que ela
diga a oração. Depois da pessoa morrer, fecha-se-lhe a boca, tapam-se-lhe os olhos e cobre-se-lhe a cara com um lençol. (…). O facto é que,
no século XVII, existia mesmo em Portugal uma seita dos abafadores,
mas que não era constituída por judeus; quando as pessoas estavam a
morrer, eles abafavam-nas para o último suspiro. E é assim que se arranjam as lendas sobre os judeus.»38
Assim, com a excepção de alguns – poucos – admiradores do nazismo, a maioria da população portuguesa não manifestava, nos anos
30, sentimentos anti-semitas. Ao chegarem a Portugal, nesse período,
os refugiados alemães mostraram-se agradavelmente surpreendidos e
gratos com a ausência de sentimentos anti-semitas no seio dos portugueses. Estes de forma geral não percebiam por que é que aqueles
estrangeiros com aspecto culto e por vezes próspero eram discriminados, nem compreendiam por que é que um judeu alemão deixava
de ser alemão por ser judeu.
Embora a confusão entre «nacionalidade» e «raça» tenha estado
latente nos anos 30, também entre os portugueses este conceito de
«raça», em Portugal, não era utilizado numa perspectiva biológica nem
excluía os judeus. Estes não eram considerados como constituindo uma
«raça» à parte, mas como pessoas que professavam uma religião minoritária e uma cultura diferente, num país maioritariamente católico. De
facto, o regime não introduziu, excepto nas colónias africanas, dimensões raciais nos conceitos de cidadania e de nacionalidade. Apesar de utilizar frequentemente, nos anos 30, o termo «raça», a ideologia salazarista aplicava esse conceito ao de comunidade nacional histórica e
culturalmente fundada, ou seja, incluía-o num nacionalismo político-cultural e não numa concepção de racismo biológico. O nacionalismo salazarista teve um fundamento político e não biológico-étnico, e apesar de
o catolicismo ser a religião oficial legitimadora do regime, ninguém era
expulso por razões de raça ou de religião, da «comunidade nacional».
Deve-se antes dizer que os judeus, em Portugal, eram sobretudo
ignorados e que, devido à invisibilidade da pequeníssima comunidade
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judaica portuguesa, ninguém era qualificado de judeu. Era como se
não houvesse judeus em Portugal, como observou Samuel Levy. Este
último acrescentou ainda que, no «Estado Novo, ao contrário do que
se pensa, os judeus não tinham problemas». Salazar foi, segundo ele,
«um produto da cultura conservadora do tempo», que seguia o princípio segundo o qual «os judeus em Portugal teriam os mesmos direitos dos cidadãos portugueses, desde que não se metessem em actividades políticas contra o regime»39.
O certo é que os inimigos de Salazar eram os seus adversários políticos que, embora privados dos direitos cívicos/políticos e da liberdade, não foram escorraçados da nação, nem destituídos da nacionalidade. Referindo-se, embora sem o nomear, ao nacional-socialismo
alemão, Salazar esclareceu, em 1934, que o nacionalismo português
não incluía «o ideal pagão e anti-humano de deificar uma raça ou um
império»40. Numa recolha de textos de propaganda, intitulado Como
se Levanta um Estado (1937), Salazar criticou, sem também as
nomear, as Leis de Nuremberga, recentemente aprovadas na Alemanha. Considerou então «lamentável» que o nacionalismo alemão estivesse «vincado por características raciais tão bem marcadas», que
havia imposto, «do ponto de vista jurídico, a distinção entre o cidadão e o sujeito – e isso sob risco de perigosas consequências»41.
Lembre-se que «Judeu» passou a ser, na Alemanha, todo aquele
que tivesse pelo menos três avós, «total e racialmente judeus». Na
sequência das Leis de Nuremberga de 1935, Liselotte Roseheim
Rodrigues, que chegou a Portugal em 1939, foi considerada «racialmente» um «híbrido de 3/4 partes», porque o seu pai era de origem
judaica, a sua mãe ariana e ela fora baptizada apenas aos 11 anos,
na sua cidade natal de Frankfurt42. Lembre-se que segundo as «Leis
de Nuremberga», promulgados a 15 de Setembro de 1935, «só os
nacionais podiam ser cidadãos do Estado», «só as pessoas de sangue
alemão podiam ser nacionais e nenhum judeu podia ser nacional alemão». A lei de «Cidadania do Reich» estabeleceu a distinção entre
os «cidadãos do Reich» – de «sangue alemão» – e «os sujeitos» que
aí viviam, entre os quais se incluíam os judeus, doravante considerados como estrangeiros. Por seu lado, a lei de «Protecção do sangue e da honra alemãs» proibiu, aos judeus, casar e ter relações
sexuais com cidadãos alemães, desfraldar a bandeira do Reich e
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empregar alemães. Finalmente, a 14 de Novembro de 1935, o regime
nazi introduziu ainda o «Regulamento da lei do Reich sobre nacionalidade», especificando a ausência de direitos dos judeus, que deixavam de ser cidadãos do Reich, de ter direito de voto e de ocupar
cargos públicos.
«Não há uma questão judaica em Portugal»
Ao ser novamente levantada, em 1936, a hipótese da colonização
judaica em Angola, o Conselho do Império opôs-se, com o argumento de que os judeus constituíam um colectivo «pouco inclinado à agricultura» e tinham uma religião que «perturbaria a organização social»
das colónias43. Outro dos argumentos então utilizados foi o mesmo
usado nesse ano, como se verá, por Marcelo Mathias, para justificar
a revogação da lei republicana de 1913, que concedera a nacionalidade portuguesa aos judeus de Salonica. Ou seja, o facto de, assim,
não se abrir um «problema semita» com a entrada em Portugal de
judeus, «cuja tendência nómada e diferenciação rácica e religiosa, os
tornam praticamente inassimiláveis»44.
Em 1938, Luís Teixeira de Sampayo, secretário-geral do MNE,
diria igualmente, ao ministro alemão em Lisboa, Hoyningen-Huene, que não havia um problema judaico em Portugal, dando a entender que desejava a manutenção dessa situação45. O mesmo argumento de que a «questão judaica» não existia em Portugal, não dizia
respeito aos portugueses e era do absoluto interesse nacional que ela
jamais se viesse a colocar, seria usado, após a «Noite de Cristal» na
Alemanha, em 1938, pelo jornal situacionista, Diário da Manhã, da
União Nacional, para que não se abrissem as portas do país aos refugiados46.
Também o director de A Voz, Fernando de Sousa, afirmaria, logo
a seguir ao Anschluss (anexação) da Áustria pela Alemanha, num editorial de 23 de Março de 1938, que não havia anti-semitismo em Portugal, avisando, porém, que essa situação poderia mudar, com o surgimento de «instigações e diligências promovidas de fora por
proselitismo e manifestações confessionais junto dos que há séculos
abandonaram o judaísmo e são cristãos». A Voz publicaria, aliás, nesse
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ano de 1938, uma série de artigos de Vieira Borges, inseridos numa
campanha «contra as ervas daninhas que Hitler arrancou da terra alemã e que para cá se foram transportando», onde eram referidas pretensas actuações de agentes do «judaísmo inglês» no norte do país.
Tratava-se de indirectas, mas claras, alusões à Obra do Resgate de
Barros Bastos, que, a 1 de Janeiro de 1938, tinha inaugurado, no Porto, a sinagoga «Melor Haim»47, mas também uma referência à chegada a Portugal de refugiados judeus. Augusto d’Esaguy, da Comunidade Israelita de Lisboa, publicou nesse mesmo ano um artigo no
jornal Ilustração, onde deu conta de que, na «massa heterogénea que
tem passado por Lisboa a caminho de outras terras, quasi todas a
caminho das Américas», tinha encontrado de «tudo», desde ricos a
«pobres judeus polacos»48.
Por seu lado, numa conferência proferida nos EUA, em 1941,
Augusto d’Esaguy, então dirigente da Comissão de Apoio aos Refugiados Judeus em Portugal (Comassis), afirmaria que estes estavam a
ser ajudados, em Portugal, com «simpatia e boa vontade» e que essa
havia sido a forma encontrada, pelos portugueses, para pagarem, quatrocentos anos depois, «a dívida» que tinham para com os judeus, perseguidos aqui nos séculos XV e XVI. O elogio também abrangia o
governo português que, segundo d’Esaguy, havia aberto as portas do
país aos fugitivos49. A razão para Augusto d’Esaguy «dourar» a atitude de Portugal e dos portugueses poderia ser genuína, mas também
se prendia com o objectivo táctico de conseguir, das organizações
judaicas americanas, um maior apoio financeiro para a assistência aos
refugiados. Um dos argumentos que o dirigente da Comassis usou
para obter mais auxílio, foi aliás o de que haveria o perigo real de um
endurecimento da política de entradas de refugiados em Portugal, se
estes se tornassem um fardo para os contribuintes portugueses.
À medida que a situação económica se ia deteriorando, havia de
facto o perigo de se fazerem sentir, também em Portugal, alguns sinais
de hostilidade relativamente aos estrangeiros. Suzanne Chantal descreveu, no seu romance Deus não Dorme, uma pastelaria onde os
refugiados judeus habitualmente se encontravam, que já havia sido
alcunhada de «Canto dos Judeus», temendo que isso pudesse vir a
gerar o «gueto», uma vez que se começava, também em Portugal,
a «diferenciar os judeus dos outros».
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Uma das suas personagens, o judeu português, Abel Sequeira, presidente do comité de apoio aos refugiados, começou também a manifestar preocupação, ao ver chegar refugiados pobres, «arrancados às
profundezas dos “guetos”», tão diferentes dos judeus ricos portugueses e de outros refugiados mais afortunados. Atormentado com os
sinais da «semente de um anti-semitismo, ainda em embrião», que vislumbrara, ao verificar que, num jornal português, o director tivera de
mandar cortar a palavra «judeu», que qualificava um artista estrangeiro, Sequeira lembrou que nunca antes se tinha, em Portugal, «catalogado um talento, uma personalidade, segundo a religião»50.
Felizmente, os receios de Sequeira não foram confirmados, e por
exemplo quando já decorria o extermínio dos judeus na Polónia, perpetrado pelos nazis, o jornal Aufbau noticiaria, em 1943, a abertura de um
museu sobre história dos judeus, em Tomar51. Por outro lado, numa conferência realizada em Lisboa em 27 de Junho de 1944, sob os auspícios
da Associação de Cidadãos Polacos, Samuel Schwartz elogiou António
de Oliveira Salazar, graças ao qual, segundo ele, não existia em Portugal a «peçonhenta planta do anti-semitismo exótico». Independentemente da veracidade desse argumento, havia mais uma vez, como acontecera com Augusto d’Esaguy, em 1941, uma razão para esses elogios ao
ditador português: é que, em 1944, ocorreriam negociações para salvar
alguns judeus de nacionalidade ou ascendência portuguesa, a viver nos
países ocupados, nomeadamente na Grécia, como se verá.
A Igreja católica portuguesa, o nazismo e a tentação eugénica
Um dos aspectos que distanciou o salazarismo do nacional-socialismo foi a sua matriz católica. A própria Igreja portuguesa também
não deixou de ser crítica relativamente ao regime hitleriano, em particular a partir de 1938. Embora se deva dizer que não foi o anti-semitismo do nacional-socialismo que mais afligiu a Igreja, mas a perseguição feita às organizações católicas e à monopolização estatal da
educação, que estavam em marcha na Alemanha. Apesar de profundamente anticomunistas, alguns membros da Igreja portuguesa tornaram-se hostis ao que se passava na Alemanha, nomeadamente ao
«paganismo» e «totalitarismo» do nacional-socialismo.
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O próprio cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira, chegou a acusar o nacional-socialismo de pretender «a destruição da fé católica»52 e denunciou, na revista Lúmen, o regime alemão,
por cair nos «erros do estatismo totalitário», «da religião da Nação»
e do culto pagão da força e da violência. Na esteira do documento
Mit Brennender Sorge, emitido em 1937 pelo papa Pio XI, o cardeal
Cerejeira ergueu-se contra os excessos do regime hitleriano, criticando-o por se basear na ideia de raça para edificar um Estado, que se
pretendia «absoluto senhor das consciências»53.
Os meios católicos também condenaram a tentação eugénica – ou
seja, a ideia de «aperfeiçoamento da raça» através de medidas de engenharia social – que, embora de forma ténue, não deixou de existir em
Portugal. E nesse sentido condenaram o «Estado senhor da vida e do
indivíduo» e o «revigoramento da raça», assumido pela ideologia nazi,
«legalizando abortos, praticando infanticídios, mutilando, numa
suprema audácia e tirania, homens para os quais a natureza foi menos
pródiga»54.
Em Portugal, o debate eugénico só se manifestou no início do Estado Novo. Em 15 de Junho de 1932, realizou-se em Coimbra, por iniciativa de Eusébio Tamagnini, director do Instituto de Antropologia
da Universidade e futuro ministro da Instrução Pública (1934-36),
uma reunião preparatória para a criação da Sociedade Portuguesa de
Estudos Eugénicos. Para propagandear as ideias «eugénicas» e responder à «necessidade de se criar uma geração mais forte», foi fundada, em 9 de Dezembro de 1937, essa sociedade em Coimbra, com
a presença de representantes de vários países, entre os quais se contou Eugen Fischer, director do Instituto de Antropologia Kaiser
Wilhelm de Berlim55.
Um dos membros da Sociedade foi o psiquiatra Henrique Barahona Fernandes (n. 1907), que estagiou nesse instituto alemão entre
1934 e 1937, não sem deixar de criticar o programa de esterilização
«racista» na Alemanha. Chocava-o o facto de esse programa ser contrário a todos os valores morais e de constituir uma «intervenção»
estatal sobre os indivíduos. Referindo-se a Portugal, considerou que
não «havia motivos para se insistir em medidas dizimadoras tão chocantes para a nossa personalidade e formação como era a esterilização de doentes mentais e anormais»56.
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Redes de passaportes falsos
Alguns dos primeiros refugiados judeus e apátridas que começaram a chegar a Portugal em 1933, tinham tentado obter, em alguns
consulados de Atenas, Zurique e Viena, passaportes portugueses, alegando serem de origem lusa, mas o MNE e a PVDE consideraram que
a concessão desses documentos teria sido fraudulenta e a troco de
dinheiro57. Embora, em 1930, o cônsul português em Atenas, Lencastre de Menezes, tivesse relatado ao cônsul de Bucareste, M. de Brederode, que havia recusado emitir um passaporte a Albert Israel, inscrito em Salonica58, começou por ser denunciado ao MNE, pela
Embaixada britânica em Lisboa. Esta deu conta de que dois apátridas
de origem russa, que em 1931 eram portadores de passaportes Nansen, haviam posteriormente mostrado documentos portugueses, emitidos na Grécia. A Embaixada continuou depois a denunciar outros
casos, entre os quais se contou o de Siegfried Wreszynski, que comprara num intermediário em Paris, por 70 000 francos, um passaporte
português, convencido de ter legalmente adquirido esse documento59.
Esta e outras denúncias levaram o MNE a proceder, embora não de
imediato, a uma investigação, não sem que, entretanto, a Legação portuguesa em Roma tivesse, por seu turno, dado conta, em 20 de Dezembro de 1933, de que vários nacionais turcos e búlgaros se haviam apresentado nos postos consulares de Portugal, em Itália, com passaportes
portugueses. Segundo contou o ministro em Roma, Augusto de Castro,
a notícia não era oficial e tinha sido obtida, por acaso, de um arménio,
que «ingenuamente» se deslocara à Legação para saber se, em Roma,
se podiam obter passaportes portugueses, afirmando que essa sugestão
lhe havia sido dada por um seu patrício, portador de tal documento passado na Grécia, que lhe custara 2000 liras60.
O Palácio das Necessidades, sede do MNE, mandou apreender os
passaportes passados a judeus por Lencastre de Menezes – por exemplo, em Novembro de 1935 ordenou a apreensão, em Estrasburgo, do
título português passado a Gos Psnaw. Enviou, ainda, às representações diplomáticas portuguesas instruções para não reconhecerem os
referidos documentos, emitidos em Atenas, antes de 7 de Maio de
1934, data em que o cônsul nessa cidade grega foi exonerado. Através de uma investigação efectuada sobre esse caso, o MNE apurou
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que Lencastre de Menezes tinha emitido mais de 200 passaportes portugueses, em troca de dinheiro. Este cônsul tinha utilizado como argumento para a emissão desses documentos a já referida disposição legal
da República Portuguesa, de 1913, que havia concedido aos descendentes dos judeus do Levante residentes em Salonica, ocupada pela
Grécia, a possibilidade de obterem a nacionalidade portuguesa, caso
pudessem provar a descendência61.
O chefe da Repartição de Contencioso e Administração Consular
do MNE, Vasco de Quevedo, descobriu também que Menezes havia
concedido, em Atenas, a inscrição consular ao cônsul honorário de
Portugal em Trieste62. Não foi, aliás, caso único, dado que muitos
estrangeiros tentaram, nesse período, ser cônsul honorário de Portugal, apurando o MNE que se tratava de um negócio chorudo, pois muitos deles concediam documentação portuguesa a troco de dinheiro.
Por exemplo, a 11 de Abril de 1934, o Consulado-Geral de Hamburgo informou o MNE de que, nesse próprio dia, se tinha aí apresentado Albert Lévy, doutor em Filosofia, residente em Genebra, «a
pedir um certificado ou título de nacionalidade de português», dado
que havia sido informado, «por um diplomata americano, que os Consulados portugueses eram os únicos que nacionalizavam estrangeiros
ao preço de 3000 marcos».
O cônsul em Hamburgo concluiu que a «coisa» provinha dos cônsules honorários e estrangeiros, «desses muitos que imploram a
nomeação e que, por falta de escrúpulos ou por motivo de solidariedade política ou religiosa, não hesitam em cometer esta e outras indignidades». Assim se justificava, segundo ele, «o interesse que certos
indivíduos têm em ser “Cônsules de Portugal” nas localidades onde
não há navegação e, muito menos, intercâmbio comercial de importância, pois, para honraria, mais lhes valia o título concedido por
outra Nação, como os Estados Unidos, a Inglaterra, França ou qualquer das grandes potências, que de modo nenhum emprestam a estrangeiros os títulos de cônsul».
No mesmo mês de Abril de 1934, o ministro plenipotenciário de
Portugal em Berna, João Lobo de Ávila Lima, mandou, por seu turno, chamar o cônsul honorário em Zurique, Guggenhül, exigindo-lhe
explicações sobre as razões por que se dirigira directamente ao MNE,
sem dar conhecimento à representação portuguesa na Suíça, e cobrara
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indevidamente dinheiro, para apor um visto no passaporte de Hildegard Grajeh. Ávila Lima relatou então, ao MNE, que muitos emigrantes lhe estavam a pedir informações sobre a possibilidade de comprar a nacionalidade portuguesa. Acrescentou que esses pedidos
partiam «quase unanimemente de israelitas de origem alemã, mais ou
menos impossibilitados de regressar ao Reich e em situação verdadeiramente trágica», devido à «expiração das suas autorizações de
residência» na Suíça63.
Essa situação levou a um inquérito, por parte de Ávila Lima, e a uma
investigação da polícia suíça, que detectou uma rede de venda de passaportes portugueses. Numa carta enviada ao MNE, de Berna, em 23
de Maio de 1934, Ávila Lima apresentou os dados apurados pela polícia suíça, que lhe haviam sido transmitidos pelo director, sr. Baechtold.
Tudo havia começado com «reclame sugestivo e aliciante, em jornais
circulando ou afectos às massas emigradas, no género dos insertos no
jornal Freiheit de Saarbrücken, de 20 de Março desse ano, e posteriormente no Tagebuch», de Paris, os quais anunciavam, ainda de forma
vaga, a possibilidade de obtenção de «naturalização» portuguesa. Segundo o ministro em Berna, tinha sido «o mais abundante êxodo israelita
alemão que veio determinar ou sugerir a instalação da nova indústria»,
enquanto «Israel forneceu a matéria-prima activa e passiva».
Apurado estava que as operações se desenvolviam, pelo menos, em
dois teatros, em França e na Suíça. Na capital francesa, um indivíduo
de nome Krause tratava da obtenção de documentos portugueses, contra o pagamento de 30 000 francos franceses. No que se referia aos limites da Confederação Helvética, havia uma agência de Nidwalden (Haus
Neuheim, em Hergiswil), a cargo Alfred Rabes, refugiado político alemão que já havia sido interrogado pela polícia. Este não era, porém, o
principal agente da operação, mas um simples mandatário, actuando
por conta de outro indivíduo, Prof. Junker, que se dizia cônsul da Nicarágua junto dos governos bálticos. Havia sido expulso da Suíça, em
1926, mas havia sido detectado em Montana, a despeito da interdição
de estadia na Confederação Helvética. Pressentindo algo, Junker levantara voo, andando no seu encalço a polícia suíça, que lhe atribuía o
papel de deus ex machina da operação, pelo menos na Suíça64.
Depois da detenção de Rabes pela polícia suíça, o cônsul honorário
de Portugal em Zurique, G. Guggenbühl, foi suspenso do seu posto, sem
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que tivesse, porém, ficado provado que estivesse realmente envolvido
no negócio de passaportes65. Depois de ter sido informado da sua exoneração, por Ávila Lima, «sem indicar razões», G. Guggenbühl
enviou, a 31 de Julho de 1934, uma carta ao MNE, pedindo a suspensão dessa demissão, afirmando poder documentar que sempre agira
de forma estritamente legal, «a bem da Nação», desde que assumira o
seu cargo, quatro anos antes. Explicou que ele próprio tinha enviado
ao MNE referências sobre a venda ilegal de passaportes e que não
tinha culpa por um «dos agentes, homem sem escrúpulo, estar na Suíça». Terminando, acrescentou que como «homem honrado», não
podia «deixar a vergonha de uma exoneração» pesar sobre si, a qual
faria crer ao público que estaria envolvido na questão66.
Entretanto, o ministro de Portugal em Bruxelas, Alberto d’Oliveira,
também transmitira, em 20 de Junho, ao MNE, factos ocorridos nessa cidade, que lhe haviam sido relatados pelo cônsul naquela cidade,
Jorge Gomes. Um «israelita alemão emigrado, personalidade importante do comércio do seu país, actualmente residente em Bruxelas»
tinha-se deslocado ao consulado para se informar das condições em
que legalmente poderia obter a nacionalidade portuguesa.
Contou esse refugiado ter lido, em diversos jornais publicados por
emigrados alemães, tais como Pariser Tageblatt, Neues Tagesbuch von
Schwarschild, Neue Weltbühne e Deutsche Freiheit, vários anúncios
sobre a possibilidade de aquisição da nacionalidade de países americanos e europeus, entre os quais se contava Portugal. Suspeitando que
não se tratava de uma operação lícita, o refugiado tinha ido ao consulado apurar da seriedade e legalidade de uma tão rápida naturalização e recebera como resposta do cônsul em Bruxelas que tais ofertas envolviam uma «evidente escroquerie». Oliveira acrescentou ter o
«israelita alemão» pedido «reserva do seu nome, para não complicar
mais ainda a situação em que se encontrava».
A 21 de Agosto, a PVDE informou, por seu turno, o MNE de que
um indivíduo, de apelido Scheiber, residente na Rue Washington, em
Paris, negociava o «fornecimento de passaportes e títulos de nacionalidade portuguesa», adquiridos no Consulado de Portugal em Atenas. O certo é que os anúncios de venda de passaportes continuaram
a surgir na imprensa francesa e suíça, onde o jornal de exilados alemães, Freiheit, que já havia publicado um deles, a 26 de Julho de
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1933, inseriu um novo, a 26 de Maio de 1934, e a Gazette de Lausanne, outro, a 2 de Junho de 1934. Em Agosto do ano seguinte, o
Neue Zürcher Zeitung, de Zurique, noticiou que o Journal Suisse des
Commerçants, de 5 de Julho de 1935, publicara um anúncio de um
consulado, a publicitar a concessão de vistos portugueses, por 7000
francos suíços. Já no início de 1936, um advogado de Genebra também anunciou, na imprensa, que estava apto a obter a naturalização
portuguesa de indivíduos apátridas67.
Por outro lado, o consulado português em Milão informou o MNE
de que tinham sido concedidos, pelas representações diplomáticas de
Génova, Salonica, Genebra, Marselha, Paris e Viena, passaportes a
309 indivíduos, dos quais 287 eram judeus e apenas 3 tinham realmente nascido em Portugal.
O MNE apurou ainda, em Maio de 1936, através do seu inspector, Jorge Roza de Oliveira, enviado a Viena para investigar o caso,
que o cônsul honorário de Portugal, Adolfo Weiss, havia desviado
taxas consulares, no valor de cerca de 400 000$00, e que existiam,
no consulado português dessa cidade, dois livros de matrículas, com
71 inscrições consulares, das quais apenas 14 eram de portugueses
nascidos em território português. As restantes 45 inscrições referiam-se a «indivíduos não nascidos em território português… mais que
duvidosas», certamente «judeus», que figuravam como naturais da
Turquia, Bulgária, Roménia, Áustria, Alemanha, Suíça, Mónaco e
Checoslováquia.
Roza de Oliveira informou ainda o MNE que Adolfo Weiss lhe
havia dado, como explicação, o facto de todos eles serem judeus descendentes de portugueses, mas que ele tinha matriculado outros, apesar de não terem ascendência portuguesa, «porque tinham prestado
grandes serviços ao nosso País, fornecendo informações muito importantes, principalmente sobre movimentos comunistas». O emissário do
MNE a Viena contou igualmente ter sido informado pelos cônsules em
Lyon e Trieste, de que estes tinham vindo a ser procurados por vários
judeus oriundos da Alemanha, solicitando inscrições consulares e
dizendo alguns deles, que outros consulados os davam «facilmente desde que se pague alguma coisa para a Cruz Vermelha Portuguesa».
Ao solicitar ao MNE uma tomada de medidas radicais, Roza de
Oliveira propôs, entre outras, a anulação das matrículas dos indiví-
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duos não nascidos em território português, inscritos pelos consulados
e vice-consulados de 4.ª classe, bem como a subordinação total destes aos cônsules de carreira68. O certo é que o MNE cancelou, a 18
de Julho de 1936, as inscrições de 42 indivíduos, na sua maioria
judeus, feitas pelo consulado em Viena.
Diga-se que o mesmo enviado do MNE também apurou que tinha
havido 201 inscrições duvidosas no consulado de 4.ª classe de Berlim
(cujo cônsul, Brasch, havia acabado de falecer), respeitando a «israelitas». Numa carta, escrita em Hamburgo, datada de 25 de Junho de
1936, deu conta ao MNE de que pareciam existir muitas dessas matrículas duvidosas, em diversos países da Europa Central, e que o chanceler do consulado de Portugal em Berlim lhe dissera que recebia muitos pedidos de informações sobre o preço e a forma de obter a
nacionalidade portuguesa, bem como que constava pagar-se, em certos consulados de Portugal, 3000 marcos por esses documentos69.
É de realçar, porém, que provavelmente graças aos passaportes portugueses emitidos por esses cônsules honorários ou de carreira nos
anos 30, nomeadamente graças àqueles concedidos por Lencastre de
Menezes em Atenas, várias dezenas de judeus sefarditas com ascendência e passaporte portugueses, viriam a ser salvos, em 1944, das garras nazis, como se verá. Além disso não se deve confundir negócios com
passaportes a troco de dinheiro, com a concessão desses documentos
portugueses por cônsules, que apenas foram guiados por razões humanitárias.
Foi o caso do conde Giuseppe Agenore Magno, descendente de
uma família aristocrática napolitana, que no início do século XX servira como chefe do Serviço de Imigração Italiano, em Buenos Aires,
e fora recomendado por Augusto de Castro, ministro de Portugal em
Roma, para se tornar cônsul honorário em Milão. Magno, do qual se
voltará a falar, tomou posse do cargo em 1934, e logo nos dois anos
seguintes concedeu passaportes a 112 pessoas, e também aos cônjuges e filhos, na sua maioria judeus70.
Outro cônsul que ajudou perseguidos pelo nazismo nos anos 30,
foi Israel Abrahão Anahory, cônsul de Portugal desde 1921, colocado na cidade francesa de Ruão, quatro anos depois. Este lisboeta
de origem judaica concedeu passaportes a judeus em Janeiro de
1935, sendo exonerado, por essa razão, seis meses depois. Na
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sequência da investigação que o MNE lhe moveu, este ordenou a
apreensão dos passaportes por ele concedidos, afirmando que não
constituíam títulos de nacionalidade. Ao regressar de França a Portugal em 1940, Israel Anahory foi preso pela PVDE, sendo encarcerado no Aljube antes de ser deportado para S. Tomé, em 1941.
Daí, passou para a África francesa, onde combateu nas forças de De
Gaulle, tendo-se exilado, em França, depois da libertação deste país.
Quando regressou a Portugal, nos anos 50, foi-lhe fixada residência em Olhão71.
Mas nesse período, já o MNE havia enviado às representações consulares a circular n.º 17, de Julho de 1935, que ordenava a apreensão
de todos os documentos portugueses, atribuídos nos consulados
envolvidos. Embora relacione directamente – e bem – a descoberta
dessa fraude de passaportes portugueses com a emissão dessa circular
n.° 17 e com a publicação do DL n.º 26.598, em 1936, Ansgar Shäfer
lembra que as restrições na concessão de cidadania portuguesa e o
impedimento da entrada de «indesejáveis» em Portugal já se haviam
iniciado anteriormente.
De facto, em Abril de 1934, um mês antes da descoberta da venda de passaportes portugueses na Suíça e da exoneração do cônsul
em Atenas, Lencastre de Menezes, a concessão de vistos a «judeus
polacos» ficou dependente da consulta prévia à PVDE72. Por outro
lado, o secretário-geral desta polícia alertou, no final desse ano, o
ministro do Interior, para a existência, em Portugal, de «numerosos
elementos indesejáveis» polacos, na sua maioria «judeus “askenazin”
emigrados da Alemanha», que, segundo ele, se dedicavam ao «tráfico de brancas e estupefacientes, (e) até aos assuntos de espionagem».
Por isso, Catela sugeriu que fosse restringida a concessão de vistos
aos judeus estrangeiros residentes na Alemanha, nomeadamente aos
de nacionalidade polaca. A restrição da concessão de vistos portugueses aos judeus polacos foi depois alargada, a partir de Maio de
1935, primeiro aos apátridas e aos russos e depois aos portadores de
passaportes Nansen73.
Segundo propôs então o Ministério do Interior ao MNE, todos os
vistos de entrada deviam passar a ser recusados aos que, não tendo
meios para a sua manutenção, quisessem trabalhar em Portugal, e
quanto aos de residência só seriam concedidos depois de autorizados
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pelo responsável da pasta do Interior. Por outro lado, os consulados
portugueses, aos quais caberia a concessão de vistos, deveriam enviar
em duplicado, à PVDE, informações sobre a «idoneidade» dos candidatos à entrada no país. Embora concordasse com a essência da proposta, o MNE discordou desta última alínea, considerando que cabia,
a esse ministério, e não à polícia, a função de instruir os cônsules, bem
como autorizar os consulados a conceder os vistos74.
Numa informação datada de 8 de Fevereiro de 1936, que transmitiu a Salazar, o diplomata português, Marcelo Mathias, incumbido
de analisar a questão dos passaportes falsos, contextualizou a situação. Deu, assim, conta de que os judeus alemães, com a subida ao
poder do nacional-socialismo, se viam, em grande número, obrigados
a abandonar a Alemanha, devido às perseguições movidas pelo governo nazi, por motivos económicos, étnicos e religiosos. Depois de
explicar que o governo hitleriano atribuíra aos judeus «certo carácter
comunista» que os tornara «suspeitos à maioria dos Estados capitalistas», Mathias referiu a concessão «ilegítima» de passaportes a
alguns dos judeus expulsos da Alemanha, por parte do ex-cônsul
honorário em Atenas, Lencastre de Menezes75.
Ao referir a investigação feita pelo MNE, segundo a qual existia
uma «organização internacional» que se «incumbe da obtenção a
favor dos heimatlos de documentos de vários países para tanto beneficiando da incompetência ou da cumplicidade de cônsules não de carreira», Mathias observou que o assunto tinha saído «do seu âmbito
originalmente administrativo». Passava, assim, a ter «um duplo carácter, de ordem política e de técnica consular». Exigiam-se, por isso,
«providências de ordem policial, pelo que seria conveniente, segundo
Mathias, uma «acção conjugada da nossa polícia internacional com
as suas congéneres de França e da Suíça», no sentido de serem presos
os intermediários já conhecidos na obtenção ilegal de passaportes portugueses.
O facto de o cônsul em Atenas, Lencastre de Menezes, se ter
«acobertado» com o «pretexto, nunca objectivamente limitado, da
autorização dada pelo Ministério, em 1913, para a matrícula provisória dos israelitas do Próximo Oriente de ascendência portuguesa», levou Marcelo Mathias a rever essa lei do governo republicano. O cônsul em Atenas teria criado, segundo ele, um «certo
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número de pseudo-portugueses com documentação a que não
tinham direito» e os judeus desse processo constituíam «casos de
simples fraude à lei, originados no movimento anti-semita». Não
se deviam, assim, confundir com «os judeus do rito português de
Salonica», visto estes terem beneficiado, em 1913, de «uma protecção superiormente autorizada, pacífica, de boa fé»76. No entanto, Marcello Mathias aconselhou a Salazar a revogação da circular
de 1913, que havia concedido a nacionalidade portuguesa aos
judeus levantinos77.
Munido desta informação, o presidente do Conselho fez um despacho no sentido de reprimir as missões consulares que actuassem «a
pretexto da regulamentação de 1913». Mais tarde, através da circular
n.º 29, de 17 de Agosto de 1936, o MNE ordenou ainda a anulação
das «matrículas de inscritos não nascidos em território português», a
menos que possuíssem um documento «expedido pelas autoridades
competentes da metrópole e das colónias»78.
«Em Portugal tudo era estranho e diferente.
Parecia uma aldeia atrasada»
Em Abril de 1936, chegava a Portugal de automóvel Ruth Arons
e a família depois do que parecia, para os seus 13 anos, uma viagem
turística pela Europa, mas era na realidade uma fuga da Alemanha.
«Por todo o lado nas ruas viam-se caricaturas horríveis de propaganda
anti-semita, expostas em vitrinas com o jornal nazi Der Stürmer» – é
assim que Ruth Arons, natural de Berlim, se recorda dos primeiros
anos da ditadura nazi, em que, após as primeiras medidas anti-semitas, foi retirada, pelos pais, do liceu, e inscrita num colégio católico
de freiras.
Como advogado, Albert Arons já não tinha possibilidade de exercer a sua profissão, e nas férias de Natal de 1935 Ruth e a sua irmã,
Ellen, respectivamente de 13 e 10 anos, foram enviadas para a Suíça,
onde os pais lhes disseram que não mais voltariam para a Alemanha.
A família partiria, de automóvel, para Lisboa. A viagem foi vivida
pelas duas raparigas como uma «grande aventura» e Lisboa era como
se fosse «uma folha branca», um país desconhecido do qual não se
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sabia mais nada além de que tinha vinho do Porto, sardinhas e cortiça79. Na capital portuguesa, onde chegaram em 1936, ano em que o
número de refugiados rondaria os 60080, Ruth e a família ficaram instalados numa pensão na Av. da Liberdade, ao lado do Hotel Tivoli,
que à época, e à semelhança de todas as pensões e hotéis, estava repleto de espanhóis nacionalistas, «provavelmente a planear o golpe franquista»81.
Em Portugal, «tudo era estranho» e «diferente», segundo Ruth,
que recorda a Lisboa de então como «uma aldeia, muito atrasada».
Quanto aos portugueses, eram «simpáticos e solícitos», embora se
mostrassem também «distantes» e fosse «muito difícil para um
estrangeiro ser aceite nos respectivos círculos» familiares. A integração na sociedade portuguesa foi difícil porque as famílias portuguesas viviam entre si e a sua vida privada permanecia em regra fechada aos refugiados82. Especialmente aos pais e à avó, que viria para
Portugal após a «Noite de Cristal» de 1938, foi difícil ambientarem-se ao exílio português83.
O regime salazarista vivia então um período de endurecimento.
Multiplicaram-se, nesse ano de 1936, os grandes comícios anticomunistas, foi aberto o campo de concentração do Tarrafal84 e foram criadas organizações de enquadramento de sectores da população, como
as mulheres e os jovens. Essa «crispação fascizante»85 deveu-se, em
parte, primeiro à vitória da Frente Popular em Espanha, e depois à
eclosão de uma sublevação militar, chefiada por Franco, prontamente
apoiada pelo governo português, que desembocou numa sangrenta
guerra civil no país vizinho.
No entanto, a milícia para-militar – Legião Portuguesa (1936) –,
criada pelo regime «a partir de cima», foi perdendo a sua autonomia,
força mobilizadora e militância para finalmente ser enquadrada e dirigida pelo Exército. Quanto à organização de mulheres, OMEN (1936),
teve um carácter voluntário, e às formações de juventude – Mocidade
Portuguesa (1936) e Mocidade Portuguesa Feminina (1937) –, embora
de filiação obrigatória, só enquadraram a juventude escolar e não se
substituíram totalmente à Escola, à Igreja e à Família na educação dos
jovens. Por outro lado, apesar de terem tido a veleidade de criar o
«homem novo», limitaram-se a transmitir valores tradicionais, católicos e conservadores86.
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As primeiras dificuldades dos refugiados
Pouco depois da vitória eleitoral da Frente Popular, em Espanha, o
MNE emitira, a 24 de Março, a circular n.º 1, que introduzira três tipos
de vistos para estrangeiros: um, de duração ilimitada, para «entrada e
residência» em Portugal; outro, para «turistas», e um terceiro, com a
duração de 48 horas, para «trânsito». O deferimento de pedidos de
vistos do primeiro tipo – entrada e residência – para os «polacos», heimatlos (apátridas) e portadores de documentação emitida por autoridades diversas das do seu país de origem, caberia ao Ministério do Interior, ou seja, à PVDE, tutelada por esse ministério, e só era concedido
caso pudessem viver no país, «unicamente dos seus rendimentos». Por
seu lado, o MNE ficava com a possibilidade de emitir vistos de trânsito, sem prévia consulta ao Ministério do Interior e à PVDE, a pessoas que se distinguiam pela sua alta «categoria»87.
Em Maio, o próprio chefe da Legação alemã em Lisboa, barão
Oswald von Hoyningen-Huene, informou Berlim de que as autoridades fronteiriças portuguesas estavam a restringir a entrada de «emigrantes» judeus. Acrescentando que o director da PVDE lhe havia
transmitido a intenção de impedir a entrada indesejada de emigrantes judeus e de expulsar os considerados indesejáveis88, o ministro da
Alemanha na capital portuguesa transmitiu ainda informações recebidas dos consulados, em Vigo e Sevilha, segundo as quais viajantes
alemães, «cujos passaportes apresentavam o espaço de revalidação riscado», não tinham sido autorizados a entrar em Portugal89.
Mas o Ministério do Interior quis mais e propôs, em Junho, ao MNE,
que fosse impedida a entrada no país aos russos, polacos e heimatlos
(apátridas), por serem suspeitos de «espionagem e de agitação internacional», assim como aos sírios e aos libaneses que, segundo a PVDE, se
dedicavam ao tráfico de brancas, a burlas e ao proxenetismo. Segundo
essa proposta, os consulados só deveriam visar os passaportes Nansen,
embora «sem prejuízo de posterior procedimento policial»90.
O MNE foi sensível a esses argumentos porque, a 24 de Setembro,
enviou a todas as representações diplomáticas de Portugal a circular
n.º 8, segundo a qual deviam ser recusados os vistos aos cidadãos da
URSS, bem como autorizações de residência a indivíduos apátridas,
portadores de passaporte Nansen e àqueles com documentos emiti-
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dos por autoridades diferentes das dos países de onde eram originários. Estes últimos podiam, no entanto, obter vistos de turismo, válidos por trinta dias, prorrogáveis até sessenta dias, mediante autorização prévia do MNE, cabendo à PVDE a prorrogação da validade
dos mesmos91.
Essa circular n.º 8, de Setembro de 1936, não impediu, porém, conforme observou Shäfer, a entrada de judeus alemães em Portugal, dado
que os que tinham documentação alemã válida podiam fixar-se no país,
ou, caso contrário, chegavam na qualidade de turistas92. No entanto,
relativamente aos alemães que chegavam com passaportes caducados
ou em vias de caducar, o secretário-geral da PVDE, Catela, explicou
ao MNE que, como o consulado da Alemanha recusava a renovação
desses documentos a alguns dos seus nacionais – ou seja, a judeus –,
os seus portadores passavam a ser indocumentados e passíveis de
expulsão, a expensas do Estado português. Por outro lado – acrescentou o secretário-geral da PVDE –, como era difícil destrinçar «o alemão judeu dos restantes», «em circunstância alguma» seria permitida
a partir de então a entrada de alemães portadores de documentos caducados. Quanto aos restantes alemães, só seria autorizada a permanência em Portugal enquanto os seus passaportes tivessem validade e apenas receberiam uma autorização de residência mediante apresentação
do certificado de inscrição consular93.
Ainda na sequência dos casos dos consulados de Atenas, Zurique
e Viena, o já referido DL n.º 26.598, também de 1936, reduziu os
poderes dos cônsules de 4.ª classe – não de carreira –, que a partir
de então só podiam conceder inscrições definitivas aos cidadãos portugueses que provassem a sua identidade e nacionalidade94. Conforme alertou, dois anos depois, junto do MNE, o cônsul de Portugal em Istambul, Jacques Joseph Abravanel, devido à aplicação
desse diploma, deixava de ser reconhecida a nacionalidade portuguesa de dezenas de cidadãos judeus, residentes em Istambul, que
assim corriam o risco de ser expulsos da Turquia95. Em Novembro
de 1938, o Diário de Lisboa noticiou a presença desse cônsul, descendente de um financeiro do rei D. Afonso V, no século XV, Isaac
Abravanel, na capital portuguesa, onde aguardava uma audiência
com o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Caeiro da Matta, para
resolver esse problema96.
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Diga-se que, nesse ano, havia 49 judeus portugueses inscritos no
consulado de Istambul, conforme relatou ao MNE o seu enviado especial, diplomata de carreira e ex-cônsul em Atenas, Eduardo Rodrigues
de Carvalho, em 31 de Dezembro desse ano97. Este último lembrou,
aliás, que a Espanha não abandonava os «seus judeus», sugerindo que
Portugal tivesse idêntica atitude e considerasse os judeus inscritos em
Istambul «como portugueses, salvo prova em contrário», recordou
ainda que, entre eles, estavam elementos da família Abravanel, que
tinham auxiliado Portugal e os seus aliados, na Grande Guerra98.
Ainda em 13 de Março de 1940, Jacques Abravanel intercedeu,
junto de Salazar, para que fosse dado um visto português a Krothy
Miroff, um «infeliz velho, pai de oito filhos», de origem russa e
antigo professor de Filosofia. Outro descendente de Isaac Abravanel era Maurice, nascido em Salonica, chefe de orquestra, que em
Berlim, Paris e Roma era «sempre anunciado como maestro português». No último dia de 1939 queixou-se ao cônsul de Portugal em
Nova Iorque de que tinha vindo a pedir, desde 1936, uma renovação do seu passaporte, em diversos consulados de Portugal, sem o
conseguir99.
Nesse ano de 1936, assistiu-se na imprensa portuguesa a diversas
manifestações anti-semitas, nomeadamente nos jornais A Voz, de Lisboa, e Póvoa do Lanhoso, da região de Braga, que desenvolveram
então uma campanha contra o judaísmo, considerado o «pai do
comunismo»100. Em Abril desse ano, uma carta anónima, dirigida ao
comandante da Região Militar do Norte, denunciou o capitão Barros Basto de práticas de assédio sexual a alunos da escola judaica,
desencadeando a abertura de um inquérito101. Embora tenha sido
absolvido pelo Tribunal Militar, no ano seguinte o Regulamento de
Justiça Militar condenou Barros Basto que, entre as duas sentenças,
foi desonrosamente expulso do Exército por ordem de Fernando Santos Costa102.
Por razões que serão analisadas mais tarde, houve, a partir de 1937,
não só um aumento constante de prisões de refugiados (até 1941), pela
PVDE, como de expulsões de judeus alemães de Portugal. Esse endurecimento da repressão ocorreu num período em que uma parte da
oposição ao Estado Novo, nomeadamente anarquista e comunista,
desestabilizou o regime, com rebentamentos de bombas, em 21 de
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Janeiro, revoltas de marinheiros da Organização Revolucionária da
Armada (ORA, do PCP), e sobretudo com um atentado, a 4 de Julho,
contra António de Oliveira Salazar, que acumulava com a chefia do
governo a pasta da Guerra, desde o ano anterior103. O atentado falhou
e a PVDE procurou colmatar falhas na sua investigação, tentando inicialmente fazer crer que ele tinha sido obra dos comunistas, quando,
na realidade, a autoria havia sido de anarquistas.
Em Janeiro de 1937, o Hicem, organização norte-americana judaica de transmigração, sediada em Paris, deu conta ao governo britânico que as autoridades portuguesas haviam ordenado a saída, «dentro de um prazo de 8 dias», de todos os alemães, incluindo os de
nacionalidade polaca e os portadores de passaportes Nansen, que aqui
tivessem entrado após 1933. Ao preocupado embaixador britânico em
Lisboa, C. Wingfield, o secretário-geral do MNE, Luís Teixeira de
Sampayo, garantiu que apenas se pretendia expulsar os refugiados e
apátridas com passaportes falsificados bem como indivíduos com
antecedentes dúbios. Além do MNE, Wingfield contactou também o
dirigente da CIL e presidente honorário do Hicem, em Lisboa, Moisés Amzalak, o qual lhe assegurou que essas expulsões não eram motivadas por qualquer política anti-semita de Portugal, mas por denúncias de que os visados eram comunistas, transmitidas à PVDE pelo
partido nazi, NSDAP, na capital portuguesa104.
Em Março de 1937, quando o alto-comissário adjunto para os
Refugiados da SDN, lorde Duncan, transmitiu ao governo português,
as suas preocupações sobre essas expulsões, foi-lhe dito que a suspeita
de que um refugiado fosse comunista não mais representaria, no futuro, um motivo suficiente para uma expulsão. O certo é que, graças a
essas pressões junto do MNE, as expulsões abrandaram.
Não cessaram, porém, até final de 1938 pois a PVDE terá proposto
ao Ministério do Interior a expulsão de 1409 estrangeiros do território nacional, segundo deu conta o capitão Agostinho Lourenço, num
relatório105. Este director da PVDE afirmou, aliás, em Março de 1938,
que Portugal tinha sido «o país escolhido pelos judeus para se acolherem», até que, «por feliz acaso», como as expulsões de estrangeiros, na sua maioria judeus, atingiram elevado número em 1935 e
1936, começara a correr, na imprensa internacional, o rumor de que
essa polícia os perseguia106.
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Por coincidência ou não, ao mesmo tempo que a PVDE e o MNE
tomavam essas medidas restritivas, recorrendo nomeadamente a
expulsões, um artigo anti-semita, de Jesus Pereira, publicado no
Diário de Notícias de 14 de Dezembro de 1937, alertou contra a
invasão judaica no mundo, imputando-a a «uma raça» «inabsorvível nos meios». Acrescentava, porém, que os 3000 judeus portugueses, de «famílias da maior distinção que se encontram de há
muito absolutamente integrados no espírito da pátria», nada
tinham em «comum com os seus irmãos de raça, para seu e nosso
orgulho».
Nesse ano de 1937, em que, como se viu, foi publicado um livro
de propaganda salazarista, onde o ditador português teceu críticas ao
totalitarismo e anti-semitismo nazis, Portugal suspendeu as encomendas de material de guerra à Grã-Bretanha e enviou missões militares à Itália e à Alemanha107. O volume das importações portuguesas provenientes deste país aumentara, entretanto, 37% no seu valor,
nesse ano em que Portugal participou em algumas iniciativas da Alemanha nazi, nomeadamente a nível de trocas de delegações entre a HJ
e a Mocidade Portuguesa, cujo comissário nacional, Francisco Nobre
Guedes, era, aliás, um simpatizante do nazismo108.
Do lado dos que combatiam o anti-semitismo, também se levantaram, porém, algumas vozes, tendo sido editado nesse ano o primeiro
volume de Os Judeus e os Protocolos dos Sábios de Sião, de João Paulo
Freire (Mário), aos quais se seguiram, nos anos seguintes, mais três
volumes onde, entre outras manifestações anti-semitas, o autor denunciou os livros de Mário de Saa109. Por seu turno, Adolfo Benarus, dirigente da comunidade israelita de Lisboa, publicou, também em 1937,
um livro onde se regozijava por não existir «modernamente o anti-semitismo» em Portugal, exceptuando da parte de «alguns espíritos
ambiciosos» que repetiam teorias lidas nos livros estrangeiros mas sem
«aplicação» em Portugal110.
Provavelmente para antecipar-se, ou em resposta a argumentos
anti-semitas como aqueles de Jesus Pereira no Diário de Notícias,
Adolfo Benarus teve o cuidado de assegurar que a «influência financeira hebraica na banca portuguesa é absolutamente nula», não
havendo em Portugal «um único director de banco ou banqueiro
hebraico».
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O dirigente da CIL esclareceu ainda, num evidente agradecimento
a Salazar e à Censura, que esse anti-semitismo de importação tinha
sido prontamente «sufocado à nascença, por quem neste país o podia
sufocar». Referindo-se depois aos cerca de mil judeus portugueses,
considerou que, embora estivessem em parte assimilados, possuíam
«cambiantes psíquicas» e «qualidades físicas especiais e distintivas de
raça», concluindo que não era desejável uma «assimilação» completa. Assegurou também que eles eram tratados pelos seus compatriotas «com igualdade e urbanidade», e não sentiam, na «sua qualidade
de cidadãos portugueses», qualquer «restrição perante a lei» que os
colocasse «em situação de inferioridade».
A colónia alemã em Portugal.
«Não brinques com judeus!»
Chegada a Lisboa no Verão de 1938, Rosalie Anschel Vasconcelos
arranjou trabalho na empresa alemã Zickermann, onde começou a
ouvir referências ao facto de ela ser meia judia (o pai era judeu, mas
ela e a mãe eram católicas) e foi avisada de que não se podia relacionar com judeus. O emprego durou, porém, só alguns meses e no início da guerra o administrador despediu-a, afirmando-lhe que doravante não poderiam aí trabalhar «pessoas de sangue judeu». Não se
sabe se essa empresa tomou voluntariamente essa atitude ou se foi
pressionada, nesse sentido, pelo governo alemão111.
Outro caso ocorreu com o berlinense Paul C. Roche, chegado a Portugal em 1933, para ocupar o cargo de representante da firma Radio
Lorenz, até que foi obrigado, pelo lado alemão, a deixar a empresa,
apurando através do cônsul Dehnhardt, que a medida se inseria no
quadro da «arianização». Posteriormente, Roche juntou-se com um
sócio português, ficando com a representação de uma firma ligada à
Phillips holandesa, que vendia aparelhos de rádio de ondas curtas112.
Da mesma forma, a firma Siemens em Portugal despediu, em 1939, o
seu gestor de vendas, Neumann, e na AEG um vendedor judeu também foi demitido113.
Uma razão para os refugiados não se sentirem seguros em Portugal, prendeu-se com o facto de muitos dos alemães residentes no país
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pertencerem ao partido nazi, e outros, donos de empresas alemãs,
terem despedido compatriotas judeus, com base nas leis nazis para
«Protecção do Povo e do Estado», nos anos 30114. No entanto, até
meados da década, os primeiros refugiados judeus e antinazis alemães,
que haviam chegado logo a seguir à subida de Hitler ao poder, não se
sentiam discriminados, nem se distinguiam dos «arianos» da colónia
alemã em Portugal.
Por exemplo, entre 1933 e 1935, os judeus, tal como os portugueses, eram dispensados, na Escola Alemã de Lisboa, de cantar o
hino nazi e, numa ocasião em que um judeu foi aconselhado a retirar
a estrela de David, o mesmo aconteceu a outro jovem que exibia o
emblema nazi. Quem o contou foi Rudolf Aberle115, filho de holandeses, chegados a Portugal em 1926, não como refugiado mas devido a razões profissionais do pai, que frequentou a Escola Alemã de
Lisboa quase durante dez anos, até 1935:
«Não houve discriminação dos judeus até 1935. Depois, saíram da
escola todos os judeus e os não-arianos. Havia em Portugal membros
da Juventude Hitleriana, tal como em 1936 passou a existir a Mocidade
Portuguesa, e nós sabíamos perfeitamente o que se estava a passar então
na Alemanha.»116
Numa entrevista, dada com outro nome, «De Coster», mas que é
provavelmente do mesmo Rudolf Aberlé, este afirmou que a expressão «“Porco judeu” era um insulto que por cá os refugiados só
ouviam pronunciado em alemão». Nas escolas, institutos e clubes da
colónia alemã eram, segundo ele, frequentes os jantares e as assembleias em que se comparecia fardado com uniformes nazis e o partido e as organizações de juventude nacional-socialistas tinham ali os
seus escritórios. «Estavam organizados em Portugal tal e qual como
na Alemanha», recorda De Coster, segundo o qual «a colónia alemã
tinha ordens rigorosas para não se misturar com judeus», os quais
foram, aliás, despedidos das empresas, geridas em Portugal por naturais do Reich117.
De facto, nesse ano de 1935, elementos nacionais-socialistas de Lisboa exigiram, com sucesso, que fosse destruída uma escultura «anti-heróica» e «degenerada», que o artista alemão, Hein Zemke, tinha
criado para a Igreja Evangélica Alemã e, paulatinamente, ao mesmo
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tempo que as estruturas nacionais-socialistas invadiam a colónia
alemã, os judeus começaram a ser de lá escorraçados. Nesse ano, ao
chegar a Portugal, a família Braumann de Munique colocou os seus
dois filhos na Escola Alemã, mas só aí permaneceram durante três
meses, porque não quiseram frequentar as actividades da HJ118.
Maria Helena Correia Guedes, uma portuguesa que frequentou a
Escola Alemã, lembrou «pequenas» mudanças, que aí observou, logo
a partir de 1933. Recordou que, ao recusar-se a fazer a saudação nazi,
provocou uma tremenda cólera no director, Diehm, e que vários professores judeus foram despedidos, entre os quais se contou Fraulein
Berta Auerbach119. Esta senhora montou depois, antes de se exilar na
Suíça, um jardim infantil e uma escola primária, cuja abertura foi
publicitada no Diário de Notícias, de 1 de Outubro de 1939: «Escola Primária e Kindergarten, Rua Castilho 32-R/C, Direcção Berta
Auerbach».
A HJ, fundada em Portugal em 1935, e dirigida por Hans Berner
e por Fritz Issel, e a Liga das Raparigas Alemãs (Bund Deutscher
Mädel, BDM), chefiada por Marie Wilhelm, que enquadravam os alunos alemães, coexistiram, a partir de 1938, com a Mocidade Portuguesa (MP) e a Mocidade Portuguesa Feminina (MPF), para os alunos portugueses. Diga-se, porém, que embora tivesse havido muitas
visitas de intercâmbio entre as organizações de juventude dos dois países, a partir de 1940 os dirigentes portugueses passaram a realçar a
independência nacionalista e a postura católica da MP e da MPF e a
criticar o «ateísmo», o «paganismo» e o «militarismo» da HJ, bem
como a ginástica «viril» e «competitiva» da BDM.
Tal como na Escola Alemã de Lisboa, a nazificação sobreveio na Escola Alemã do Porto a partir da segunda metade dos anos 30, em particular a partir de 1937. Nesse ano, escreveu-se pela primeira vez na ficha
de três alunos dessa escola portuense, a indicação «mos.» (mosaisch,
judeu), uma qualificação que adjectivaria, até 1941, oito jovens. Ao mesmo tempo, foram também retiradas da biblioteca da escola as obras de
judeus e nomeadamente uma referência ao compositor judeu, Mendelsohn-Bartholdy120.
No Porto, os alemães antinazis e judeus tiveram, a partir de meados
da década de 30, de se afastar da colónia alemã, onde se começou a fazer
sentir o insidioso anti-semitismo.
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Na praia da Foz, numa ocasião em que várias crianças alemãs construíam um castelo na areia, ouviu-se uma mãe a gritar, em alemão, ao
filho: «Vem cá imediatamente, não brinques com um judeu.»121 Elisabeth Baruch Kiefe Simon contou que numa ocasião, na mesma
praia, um dos seu filhos colocou uma bandeira portuguesa num castelo construído na areia e, de imediato, uma mãe da colónia alemã do
Porto enviou a sua filha, para que colocasse, ao lado, uma bandeira
com uma cruz gamada122.
Embora simpatizasse com aspectos do regime nacional-socialista,
o Estado Novo, cuja postura era essencialmente nacionalista e de desconfiança relativamente a ingerência de ideologias e organizações
estrangeiras em Portugal, seguiu atentamente a nazificação dos alemães no país. A preocupação com o assunto prendeu-se provavelmente com o facto de, em Junho de 1937, ter começado a ser publicado o boletim Nachrichtenblatt des Deutschen Vereins in
Lissabon123 (Folha Noticiosa do Clube Alemão de Lisboa). Essa
publicação propunha-se, segundo Hoyningen-Huene, ministro da
Alemanha em Portugal, propagandear o ideário nacional-socialista e
reforçar as ligações entre «a Alemanha de Adolf Hitler e o Portugal
do Dr. Oliveira Salazar». Dessa forma divulgava as iniciativas do Clube Alemão (Deutsche Verein), existente desde os anos 20, na Rua do
Passadiço 86, presidido por Carl Schuldt até 1938, ano em que tinha
escassos 294 associados, entre os 1200 elementos da colónia alemã
da capital124.
O Nachrichtenblatt informava sobre as reuniões e actividades do
partido nazi, as reuniões do Ortsgruppe Lissabon (núcleo do partido
nazi de Lisboa) e das várias organizações nacionais-socialistas na capital. Dava ainda conta das várias iniciativas do Clube, como os Eintopfessen125, jantares de uma única malga (Eintopf) e as recolhas de
fundos para a Winterhilfswerks (Obra de Auxílio de Inverno). Anunciava ainda as confraternizações de «Alemães na Linha», realizados
no Hotel Atlântico no Monte Estoril126, bem com as visitas dos navios
de guerra alemães a Lisboa e a chegada dos navios da KdF127, com
trabalhadores alemães em férias128. O boletim, que saiu pela última
vez em 1 de Setembro de 1939, apelava ainda à inserção dos alemães,
a viver em Portugal, na Volksgemeinschaft (Comunidade Nacional).
Por exemplo, em Janeiro de 1938, um artigo intitulado «Nomes ale-
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mães para as crianças alemãs» exortou os compatriotas a escolherem,
para os filhos, nomes «germânicos», e não «judeus».
Em Agosto de 1937, foi enviado a Salazar um relatório sobre a
Auslands-Organisation do NSDAP (organização do partido nacional-socialista, no estrangeiro), cujo núcleo nacional, Landesgruppe (organização em Portugal), era chefiado por Julius Claussen, adido comercial da Legação da Alemanha em Lisboa, e contava, em 1939, com
285 membros. O primeiro núcleo local, Ortsgruppe da AO do
NSDAP, na Península Ibérica, tinha sido, aliás, criado em 1930 na
cidade do Porto, contando, em 1933, com 40 militantes129. O representante do Ortsgruppe do partido nacional-socialista em Lisboa era
Werner Pankow, que dirigia as organizações assistenciais nazis WHW
(Obra de Auxílio de Inverno) e Nationalsozialistischen Volkswohlfahrt (NSV, Assistência Nacional-socialista)130.
O núcleo em Portugal do NSDAP, da Arbeitsgemeinschaft der
deutschen Frau im Ausland (ADFA, Organização de Trabalho das
Mulheres Alemãs no Estrangeiro) e da Deutsche Arbeitsfront (DAF,
Frente de Trabalhadores Alemães) estavam sediados no Clube Alemão
de Lisboa, sob a chefia respectiva de Paul Wehr, Marie Bergner e de
Fritz Schubeius. Existia ainda, em Portugal, a Deutsch-Portugiesische
Gesellschaft (DPG, Sociedade Luso-Alemã), cuja secção cultural, dirigida por Johannes Roth, professor da Escola Alemã até 1937, mudou
depois para a Legação da Alemanha, onde ele era o representante do
Deutscher Akademischer Austausch-Dienst (DAAD, Serviço Alemão
de Trocas Académicas no Estrangeiro)131.
Deve-se dizer, porém, que a colónia alemã de Portugal não foi
homogénea. Havia nela, por um lado, nacionais-socialistas fanáticos, que usavam uniforme, proferiam tiradas anti-semitas, colaboravam com os serviços secretos alemães, fotografando navios ingleses, e denunciavam os que bebiam vinho do Porto inglês ou os jovens
que não acatavam a mobilização para a Wehrmacht. Havia, por
outro lado, os compagnons de route, que contribuíam para o
Winterhilfswerk, não faltavam aos Eintopfessen, mas que só faziam
a saudação nazi na rua, quando ninguém estava a observar, mas também os «resistentes» passivos das velhas famílias alemãs, que lamentavam o anti-semitismo e saudavam com um «Bom dia» e não com
Heil Hitler132.
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JUDEUS EM PORTUGAL DURANTE A II GUERRA MUNDIAL
Fora da colónia, havia os refugiados alemães, judeus e antinazis,
que na sua maioria não se davam com os seus compatriotas «alemães
do Reich»133. Ilse Losa contou que os refugiados conheciam os locais
de encontro dos membros do partido nazi no Porto e ela própria viu-os a entrar na Escola Alemã com casacos compridos, por baixo dos
quais traziam os uniformes nazis, que escondiam no espaço público.
Relatou ainda que, numa ocasião em que ela e o seu irmão se encontravam num café do Porto, tiveram de abandoná-lo quando entrou
um homem que cumprimentou os seus amigos aos gritos de Heil
Hitler, dando-se um ar muito importante134. Um dia em que Marinanne Oppeheim Tavares estava com o seu pai, num cruzamento,
para atravessar a rua, ouviu da janela de um automóvel alguém a gritar-lhes em alemão: «Porco judeu, sai do caminho senão atropelo-te
a ti e à tua criança.»135
Um dos poucos que frequentou elementos da colónia alemã foi
Roche, que chegou a Portugal em 1933 com a sua mulher judia136.
Contou que, quando eram convidados para casa de uns conhecidos
alemães, estes retiravam da parede a fotografia de Hitler. Outro alemão não judeu, comerciante em Portugal desde os anos 20, casado
com uma judia, foi pressionado, por volta de 1937, pela Legação
da Alemanha, a separar-se, e ao recusar-se, membros da colónia alemã deixaram de lhe falhar e de o cumprimentar, tendo sido abandonado até por «amigos»137. Por outro lado, as donas de casa alemãs não «se importavam» de comprar quark, pão preto, manteiga
sem sal ou bolas-de-berlim pelo Natal, habitualmente vendidos por
refugiados judeus, que assim tentavam contornar a proibição de trabalho138.
Momento de grande mobilização, na colónia alemã em Portugal,
foi aquele que ocorreu por ocasião do plebiscito sobre a anexação da
Áustria, em Abril de 1938, a três milhas da costa portuguesa, nos
navios eleitorais Madrid e Achilles. Entre os 754 votantes de Lisboa,
incluindo 36 ex-austríacos, só dois responderam «não» e um absteve-se, e todos os 332 votantes do Porto aprovaram a política agressiva de Hitler139.
Mas no espaço público português, as bandeiras com a cruz
gamada, que decoravam as salas do Clube Alemão de Lisboa e que
eram ostentadas por crianças alemãs, nas recepções dos navios de
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A CHEGADA DOS PRIMEIROS JUDEUS E ANTINAZIS. 1933-1937
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guerra alemães, com turistas organizados na KdF, foram raramente
vistas, depois de Setembro de 1939. Cenas como as manifestações
conjuntas, nas visitas de delegações da HJ140 à Mocidade Portuguesa, foram, a partir de 1940, substituídas por actividades menos politizadas e mais «culturais».