- Urbanismo

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comparação com a métrica observada nos desenhos que constam do
projecto original85.
Observem-se então, os princípios de composição do projecto de
António Varela.
6.4.2.2. A bandeira do pórtico de entrada da administração
Como foi referido anteriormente, através das observações efectuadas
no local, foi possível confirmar, no que diz respeito ao aspecto formal do
conjunto do edificado, a utilização de uma “lógica elementar e purista das
linhas horizontais e verticais” (Fernandes, 1993, p.58), e na qual se
destacam pontualmente alguns elementos iconográficos, como os logótipos
da empresa colocados a baixo-relevo nas platibandas das fachadas e
sempre presentes de qualquer ponto de vista do exterior.
Efectivamente, são facilmente observáveis, no desenho geral do
conjunto, certos princípios modernistas preconizados por António Varela
por esta altura, ao encontro da contenção e sobriedade na utilização das
linhas, dos efeitos cromáticos, dos materiais e das texturas, numa
linguagem onde impera essa ideia dos «grandes lisos»86.
85
“A geometria, diferentemente da medida, é auto-reguladora e quaisquer erros podem ser vistos
imediatamente.” In PENNICK, Nigel, Geometria Sagrada – Simbolismo e intenção nas estruturas
religiosas, Editora Pensamento, São Paulo, 1998 [seg. ed. original, Sacred Geometry – Symbolism
and Purpose in Religious Structures, 1980].
86
Segundo uma expressão de Carlos Ramos, pela mesma época. V. supra, 3.3.2.
303
A ornamentação do conjunto edificado resume-se apenas às
intenções publicitárias do conjunto iconográfico dos logotipos da empresa,
a alto-relevo nas fachadas do exterior, assim como no interior. No total, os
logotipos encontrados são apenas dois: o primeiro logotipo da empresa e o
segundo, posterior ao primeiro na data de sua concepção.
O primeiro apresenta-se sob forma de «diamante» hexagonal em
Fig. 237 – Lázaro Lózano, AEL, primeiro logótipo da empresa, por cima da entrada da baixo-relevo, incorporando as inicias da empresa em perspectiva cónica
administração [foto de com dois pontos de fuga. Data da fundação da empresa nos Anos Vinte e
1999]. foi criado por Lázaro Lózano [fig.297].
O segundo apresenta-se sob forma de um triângulo representando
uma vela latina, em cima, e o seu respectivo reflexo na água, estilizado por
linhas horizontais, em baixo, sendo o todo englobado por um círculo que
confere unidade ao conjunto. É posterior ao segundo, e data
aproximadamente da segunda parte dos Anos Vinte, tendo sido criado por
Fig. 238 – Lázaro Lózano, Lázaro Lózano87. Normalmente apresentado em artes gráficas sob fundo
empresa, na platibanda branco, surge na fachada da secção de fabrico com fundo amarelo [fig.
238] e na fachada da secção de cheio a branco com contorno azul.
AEL, segundo logótipo da da fachada da secção de fabrico [foto de 1999]. Este segundo logotipo foi maioritariamente utilizado pela empresa,
substituindo o primeiro na maior parte dos suportes onde foi utilizado
(fábricas, embarcações, latas, publicidade, etc.)88, pelo que se depreende
com natural evidência a sua utilização sistemática no projecto de António
Varela em Matosinhos.
Já o primeiro apenas surge na fachada exterior, por cima da entrada
da administração, junto à Praça Passos Manuel, assinalando as iniciais da
empresa: «A.E.L.» [fig.237].
87
88
V. supra, 6.1.e fig.170.
Ibidem.
304
Contudo, ao se acederem os degraus de acesso ao átrio da
administração89, depara-se ao observador outra figura, aparentemente em
nada comparável com qualquer tipo de imagens veiculadas pela empresa
noutro locais [fig.239-240.
Fig. 239 – Metrologia da Trata-se da anteriormente referida bandeira do pórtico que delimita o
interior do edifício do átrio exterior com saída para a praça Passos Manuel.
bandeira do pórtico da administração [foto de 1999]. O conjunto do átrio é assim composto pelo vão da porta [fig.241] colocado
debaixo do vão superior, sendo este mais largo do que o vão da porta,
constituindo a sua bandeira [fig.239-240].
Esta bandeira apresentava-se com secções de vidro, actualmente
destruídas, intercaladas no suporte da caixilharia em cimento anteriormente
referida. Convém referir que este desenho da bandeira é inexistente em
toda a iconografia da empresa, não se encontrando nenhuma analogia com
quaisquer das outras imagens veiculadas por esta, tanto no que respeita
outras unidades fabris anteriores, assim como na sua frota, publicidade,
objectos diversos, etc. Neste contexto, pertence unicamente à fábrica da
autoria de António Varela, e parece enquadrar o logótipo da empresa numa
Fig. 240 – Metrologia da configuração geométrica mais complexa.
administração [foto de 1999]. bandeira do pórtico da Destas considerações surge uma primeira pergunta: qual a razão que
terá levado Varela a utilizar um desenho aparentemente diferente, quando
o próprio emprega sistematicamente o principal logotipo da empresa na
composição geral do projecto90? Sendo a empresa detentora de uma
imagem de marca «forte e depurada»91, integrando um «espírito moderno»
89
À data de elaboração do nosso levantamento efectuado em 1999 e até à presente data permanece
esta entrada da fábrica pela praça Passos Manuel completamente murada (tal como o resto dos
acessos ao interior de todo o quarteirão, assim vedados devido ao seu estado de ruína), e é
impossível a sua visualização a partir da rua. Nestas condições, o seu acesso e completa observação
apenas se pode efectuar pelo interior, através de um acesso à AEL pela Rainha do Sado, que
comunica no seu interior com os armazéns de 1941.
90
Assinale-se que este desenho da caixilharia não consta do desenho do alçado da administração
entregue por Varela com vista a aprovação do projecto, em 1938. No entanto, apesar de não ter sido
encontrado nenhum desenho de pormenor do autor sobre este desenho da caixilharia em particular,
somos levados a considerar que devido a um grande número de analogias com outros desenhos
encontrados neste e noutros contextos de obras comprovadas do autor, a evidência de sua
paternidade poderá ser considerada como certa.
91
V. supra, 6.1 e 6.3.1.
305
veiculado por uma geração de artistas colaboradores, porque razão surge
aqui este caso particular?
Tendo em conta todo o cuidado aplicado pelo autor na imagem geral
do edifício, revelando o seu espírito metódico e racional, não nos parece
ser esta solução formal, – ainda mais tratando-se da “entrada nobre” do
edifício – o simples produto de uma razão meramente ornamental, o que
não parece fazer sentido se tivermos em conta o espírito de seu autor.
Parece aqui ter existido uma intenção evidente ao colocar uma entrada de
luz na parte superior deste vão, e, à primeira vista, a composição com base
no elemento circular também parece estabelecer uma analogia evidente
com o segundo logotipo da empresa, que também era ordenado com base
no círculo [fig.170-238]. É também óbvia a integração do logotipo
Fig. 241 – Metrologia da vão do pórtico empresarial, à semelhança dos exemplos de outras fábricas, como é
da administração possível observar na entrada da administração da conserveira Pinhais, uma
[foto de 1999]. das poucas unidades ainda em actividade em Matosinhos, situada alguns
quarteirões acima.
Contudo, o conjunto da caixilharia revela uma geometrização que se
desenvolve para além do elemento circular que originalmente integrava o
logótipo e ao qual este é manifestamente extemporâneo [fig.234]. Seria
então necessário «compreender» esta figura geométrica que aqui surge «do
nada», aparentemente sem qualquer vínculo residual, e que «emerge» de
forma insólita exactamente no lugar mais representativo do espaço: a
entrada da administração.
Para compreender seria então necessário observar o seu traçado
geométrico.
306
Fig. 242 – AEL, estudo metrológico da bandeira do pórtico de entrada da administração, com base no levantamento efectuado no local. Em termos gerais, pode considerar-se a caixilharia da bandeira uma
composição de três momentos, representados por três formas geométricas
regulares: um círculo, inserido num quadrado ladeado por quatro
quadrados menores (um em cada canto), perfazendo o todo um rectângulo
maior na sua periferia exterior. É uma composição regular, simétrica e
concêntrica. Até este ponto revela-se o objecto em plena conformidade
com os princípios compositivos do autor, no que respeita a utilização de
formas puras, tanto tridimensional como bidimensionalmente, assim como
pelo uso de um esquema concêntrico e unitário.
Coloca-se deste modo a conjectura, equacionando o que de facto
poderá ter presidido a esta insólita composição uma intenção do autor, ao
assinalar, formalmente, uma presença simbólica de seu método
compositivo, como forma de assinatura pessoal. Nesse caso estar-se ia
então perante uma atitude ritualista, podendo assemelhar-se – embora sem
um carácter «vinculativo» –, à tradição do ofício do artesão, perante a qual
este assinava a obra feita e da qual são exemplo as siglas ou marcas dos
pedreiros medievais92.
92
«Les marques d’appartenance», ou marcas de obediência, segundo designação de Franz Rziha:
veja-se a este respeito RZIHA, Franz, Études sur les marques des tailleurs de pierre – La Géométrie
secrète – l’histoire, les rites & les symboles des Compagnos tailleurs de pierre du Saint-Empire
Romain Germanique & de la Grande Loge de Strasbourg, ed. francesa: Éditions de la Maisnie/La
Nef de Salomon, Paris, 1993, [segundo a edição original alemã de 1883].
307
Seguindo esta analogia, convém relembrar alguns estudos efectuados
sobre este assunto, tendo-se verificado uma regra segunda a qual uma sigla
pessoal é composta com base numa rede, matriz ou traçado regulador,
correspondente à «casa-mãe», corporação ou confraria à qual cada
indivíduo pertenceria. Através deste sistema codificado também era
possível reconhecer e contabilizar o trabalho pessoal realizado numa obra
colectiva. Nos finais do século XIX, Franz Rziha elaborou um extenso
estudo pioneiro sobre marcas de pedreiros, considerando duas grandes
categorias que integravam diferentes tipologias: Rziha também distingue
na sua obra dois grandes tipos de marcas: as marcas «utilitárias» e as
marcas de «obediência»93.
Por analogia, considerando o carácter tanto pessoal como simbólico
da marca de António Varela na bandeira do pórtico de entrada da
administração da fábrica, somos levados a colocar a hipótese de defini-la
com um duplo carácter: utilitário e simbólico.
Utilitário, porque pode ser considerada como uma marca de origem,
designando o próprio autor; simbólico, porque designante de um sistema
hierofânico, logo sagrado em essência, pertencente a um sistema
geométrico canónico em particular94.
Pelos exemplos encontrados na obra do António Varela, tudo leva a
crer que este «padrão» pode entender-se como uma forma de «assinatura»
do autor nas suas composições, no que poderá dizer respeito a pelo menos
determinado período de sua carreira. Para além de outros projectos de sua
Fig. 243 – AEL, vista frontal da bandeira do pórtico da 93
Segundo Franz Rziha, estas tipologias estruturam-se do seguinte modo: 1) nas marcas utilitárias:
a) as marcas de propriedade, que designam o proprietário; b) as marcas de origem, designando o
autor do objecto; c) os sinais comerciais, que identificam o objecto durante o seu transporte; d) os
ideogramas científicos, de carácter matemático, geométrico, astronómico, químico, etc.; e) os
símbolos de manipulação na obra, sendo estes portanto os símbolos habitualmente utilizados pelos
operários par indicar a colocação das peças no seu devido local da obra, tais como utilizadas pelos
carpinteiros ou pelos pedreiros; f) os sinais secretos ou numerados, utilizados como escrita ou
sistema codificado. 2) nas marcas de obediência: a) as marcas pessoais, utilizadas por diversas
pessoas, fosse para marcar a sua designação específica de obediência a uma determinada loja ou
confraria, fosse como forma de “cachet” actual; b) as marcas de família, utilizadas maioritariamente
pela burguesia, como símbolo da casa ou da propriedade familiar, como contraponto aos símbolos
heráldicos utilizados pela nobreza; c) os sinais do domínio da simbólica, e em particular as formas
geométricas de estrutura regular e concêntrica: o círculo, o triângulo, o quadrado, o hexagrama, o
pentagrama, etc, assim como as suas composições. Idem, ibidem, pp.1-2.
94
V. infra, 6.4.2.2.1.
administração. 308
autoria nos quais foi possível identificar o mesmo «modus operandi»95,
poderá ainda assinalar-se o único quadro assinado pelo próprio [fig.244] –
e simultaneamente talvez o mais enigmático –, no qual se pode observar
um padrão geométrico similar ao da bandeira do pórtico [fig.243], e que se
apresenta sob modo de «óculo»96.
Fig. 244 – António Varela, guache sobre papel (ass. “António Jorge”, s.d.) Existem indícios que podem levar a considerar esta singular
composição como um auto-retrato do período de juventude, pintado por
volta de finais dos Anos Dez ou princípios de Vinte, onde a atmosfera é
mais uma vez preenchida por traços de melancolia ou um eventual
sentimento de «perda», numa personagem enigmática que olha para fora
do quadro como quem interroga ou escuta a obscuridade, numa paisagem
deserta e sob um horizonte quase imperceptível de uma floresta densa,
numa vigília próxima da atmosfera lunar ou paulista que também parece
sobressair do seu retrato pintado por Eduardo Viana [fig.50]. Os signos são
«densos», mas os seus significados poderão ser múltiplos. Seja como for –
auto-retrato, ou não? –, os limites da sua interpretação tornam-se
especulativos (o onírico, a temática lunar, a palidez cromática, a
vestimenta e a morfologia, etc.) pelo que nos fica a percepção sígnica da
sua geometria.
95
V. infra, Cap.7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação.
Tema recorrente no projecto da Casa da rua de Alcolena. Veja-se a este respeito 7.4. A casa da
rua de Alcolena e a colaboração com Almada Negreiros: maturidade e crepúsculo para um novo
«começar».
96
309
Já por esse caminho pode considerar-se o seu simbolismo
marcadamente em torno da figura do círculo, que parece ter sido uma
verdadeira «obsessão» geométrica de Varela, tendo-se exprimido através
de vários elementos na sua produção arquitectónica mais emblemática,
onde se pode incluir – para além da fábrica de Matosinhos –, a Fábrica da
Afurada, o Mercado de Coimbra, a Mirante e a Casa da rua de Alcolena97.
Poderá mesmo parecer que, à semelhança de Jorge Segurado – na
«adopção» icónica da figura do quadrado e do quadrado rodado –, terá
Varela «adoptado» o círculo como sua «figura-mater», ou como sua
«assinatura».
Tais «signos» parecem sobretudo enquadrar-se nos processos de
padronização dos «elementos geométricos psíquicos»98 que, pela mesma
altura, Fernando Pessoa febrilmente estudou, não sendo de estranhar a
identificação na obra de Varela de processos típicos do «grupo fechado» a
que pertencia, à imagem de Almada Negreiros e Jorge Segurado.
Sendo a simbologia do círculo esotericamente conotada como
«uterina»99 ou «celestialmente unitária»100 , poderá talvez simbolizar a
manifestação de quem o adoptou, ao querer «abraçar» uma «plenitude», ou
uma reintegração espiritual do «ser». Não nos parece, de qualquer modo e
no contexto psíquico e místico destas complexas personagens, um simples
«fait-divers» a ignorar.
Consequentemente, na evidência da mesma forma representada,
poderá considerar-se o mesmo padrão geométrico utilizado por analogia;
deste modo é possível abordar a sua observação conforme uma
97
No que designamos, expressamente, como a «família simbólica» das obras do autor. Veja-se a
este respeito o Capítulo 7: Outras obras à luz de uma mesma interpretação.
98
Cf. FREITAS, Lima de, Pintar o Sete: ensaios sobre Almada Negreiros, o Pitagorismo e a
Geometria Sagrada, Colecção Arte e Artistas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1990,
p.57 [1ª Ed. 1977]. V. supra, 2.5. De Pessoa a Almada: «a invenção do dia claro» como legado
hermético na construção da modernidade portuguesa, nota 49.
99
Veja-se a este respeito DURAND, Gilbert, Les structures anthropologiques de l'imaginaire –
introduction à l'archétypologie générale, Dunod, Paris, 1992 [1ª ed. 1960] e idem, Beaux-arts et
archétypes – la religion de l’art, Presses Universitaires de France, Paris, 1989, entre outros.
100
Idem, ibidem.
310
metodologia de Geoffrey Broadbent101 , segundo o qual o processo de
analogia pode manifestar-se através de dois modos:
1) por processo da Razão, pelo estudo das relações canónicas.
2) por processo da Metáfora, pelo estudo das relações icónicas.
Através desta estrutura é possível observar que o desenho canónico
decorre do processo de analogia da razão, enquanto que o desenho icónico
decorre da analogia da metáfora.
Contudo, tal não significa que a determinado desenho canónico não
corresponda uma conotação metafórica ou mesmo simbólica, enquanto
portadora de um ou de múltiplos significados, seja por intenção deliberada
do seu transmissor, seja pela possibilidade de interpretação livre, o que é
inerente à propriedade de transmigração não restritiva do seu potencial
conteúdo.
Importa referir que qualquer estudo de um elemento geométrico
torna-se objectivo por via canónica, e subjectivo por via icónica, sendo o
processo de analogia o meio de análise operativa ou especulativa, ou ainda
complementar, consoante o caso.
Devido às suas propriedades operativas particulares, as figuras
geométricas puras, (triângulos pitagóricos e sólidos platónicos, por
exemplo) eram consideradas desde a Antiguidade como manifestações da
ordem do Cosmos, por transferência do mesmo arquétipo: a manifestação
do «Uno Divino» no espaço físico. Icónicamente e canonicamente, foram
Fig. 245 – Piet Mondrian, também um tema recorrente da modernidade plástica por via do
linhas e cinza, óleo sobre Composição com quatro tela, 1926. 101
Veja-se a este respeito BROADBENT, Geoffrey, e al., Metodologia del diseño arquitectónico,
Editora Gustavo Gili, Barcelona, 1971, e BROADBENT, Geoffrey, Design in Architecture.
Architecture and the Human Sciences, David Fulton Publishing, Londres, 1988. Muito embora o
autor estabeleça ainda outros critérios de análise ao processo de concepção do desenho
arquitectónico, retemos estes dois (razão e metáfora), dentro do quadro do estudo canónico e
icónico das obras de António Varela, assim como pelo que permitem uma aproximação à reflexão
almadiana, entre o Logos e o Mito (v. supra, 2.5: De Pessoa a Almada: «a invenção do dia claro»
como processo de construção da modernidade portuguesa, e infra, Cap.7: Outras obras à luz de
uma mesma interpretação).
311
abstraccionismo geométrico, na exploração dos seus limites cognitivos e
meta-simbólicos102 [fig.245-248].
Assiste-se, no presente caso particular da «marca» de António
Varela, a uma transferência de um mesmo arquétipo, pela dupla analogia
de uma entidade simultaneamente icónica, mas também, como tudo leva a
crer, canónica.
Vejamos então e em primeiro lugar, a questão do Cânone. 6.4.2.2.1. Estudo do Cânone
Deste modo, tendo em conta que os objectivos desta parte se
enquadram no estudo de «representação» da fábrica, procurou-se o traçado
regulador subjacente à composição do desenho da bandeira do pórtico da
administração, no sentido de se compreender o «modus operandi» do autor
na composição geral da fábrica.
Como foi referido, o desenho da bandeira é uma figura regular,
simétrica e concêntrica; assim sendo, somos confrontados, à partida, com
duas constatações:
Em primeiro lugar, de que se trata de uma estrutura polar103
[fig.246], com base no círculo inscrito.
102
Sobre a questão mítico-simbólica e os ideais teosóficos de Piet Mondrian, veja-se o Cap.3, nota
78.
103
Segundo Matila Ghyka, deve-se a Ernst Moessel a divulgação, no século XX, de uma teoria
combinatória, denominada por hipótese de Moessel, na sua obra Die Proportion in Antike und
Mittelalter, [ed. C.H.Beck, Munique]. Esta teoria de Moessel apresenta-se, segundo Ghika, como
um ponto de vista prático e racional, e consiste na partição ou segmentação polar do círculo
fundamental ou círculo de orientação. Graças a este sistema de verificação ou ajuste proporcional
gráfico, é possível, de certo modo, sintetizar e conciliar as leis da analogia, da repetição da forma
fundamental, da identidade e da variedade, do Igual e do Semelhante: “distintas denominações de
um mesmo princípio ou de uma mesma comprovação, derivam, com efeito, dos conceitos de
simetria e de analogia, tal como os entendiam os antigos. (...) A proporção geométrica (...)
significava para eles, o mesmo que em Vitrúvio, ou seja, a comensurabilidade entre o todo e as
partes, correspondência determinada por uma medida comum entre as diferentes partes do conjunto,
e entre estas partes e o todo (é a definição de Vitrúvio, e a palavra simetria conserva, de todo
diferente da sua significação actual, desde os finais do século XVII).” [trad. do autor], In GIKHA,
Matila C., El Numero de Oro – ritos y ritmos pitagoricos en el desarrolo de la civilizacion
312
Em segundo lugar, de que se trata, igualmente, de uma estrutura
reticular [fig.247], pela delimitação de um quadrado, sendo este inscrito
num rectângulo maior. Este rectângulo incorpora ainda, quatro quadrados
menores.
Fig. 246 – Figura básica de uma estrutura geométrica polar. A forma de se poder desenhar com rigor uma trama polar e reticular
simultaneamente, será sobrepondo as duas, mantendo o centro geométrico
comum, o que decorre, por um lado, das propriedades geométricas do
sistema polar e, por outro, da manifestação arquetípica da hierofania, ou
«simbolismo do centro»104.
Numerosos padrões, matrizes, ou sistemas com propriedades
Fig. 247 – Figura básica de uma estrutura geométrica recticular. concêntricas foram estudados por vários autores de referência (Ernst
Moessel, Frederik Lund, Jay Hambidge, Matila Ghyka, entre outros).
Destas matrizes geométricas universais destacam-se duas principais, tendo
sido inicialmente reunidas e publicadas por Franz Rziha em 1883 [fig.249],
e apelidadas pelo autor como as «figuras-mãe» de todos os sistemas
combinatórios da corporação medieval da Bauhütte105. Segundo Rziha,
estas duas matrizes organizam-se segundo sistemas generativos, sendo
estes, o sistema «Ad Quadratum106» e o sistema «Ad Triangulum».
occidental, Editorial Poseidon, Barcelona, 1978, Primeiro volume – os ritmos, pp. 13 -14 [conforme
a edição original francesa, Le nombre d’or]. Veja-se ainda a este respeito Cap.2, nota 74.
104
105
V. infra, 6.4.2.2.2.
RZIHA, Franz, Études sur les marques des tailleurs de pierre – La Géométrie secrète –
l’histoire, les rites & les symboles des Compagnons tailleurs de pierre du Saint-Empire Romain
Germanique & de la Grande Loge de Strasbourg, ed. francesa: Éditions de la Maisnie/La Nef de
Salomon, Paris, 1993, p.48 [segundo a edição original alemã de 1883].
106
Sobre o sistema da quadratura, veja-se, em particular, LUND, F. Macody, Ad Quadratum, [2
vols.], ed. Batsford, Londres e ed. Morançé, Paris, 1922; a segunda parte, Ad Quadratum II, foi
editada pela Aktiesel det Lundske Forlag, Farsund, Noruega.
313
Fig. 248 – Piet Mondrian, composição com traços cinzentos, óleo sobre tela, 1918. Fig. 249 – As quatro chaves da quadratura e as quatro chaves da triangulação, segundo o estudo de Franz Rziha sobre a Bauhütte,1883. Estas «chaves» [fig.249] terão evoluído no espaço e no tempo, de
forma que foi possível a Rziha restabelecer os seus sistemas combinatórios
do período renascentista, já com a integração de elementos circulares:
daqui derivam o sistema quadrilobado e o sistema trilobado, de maior grau
de complexidade – que se podem observar, a título de exemplo, na
composição manuelina –, os quais não será necessário abordar no presente
estudo107.
Todo um sistema combinatório deriva destas duas «figuras-mãe»,
fundadas pela utilização sistemática do quadrado, do triângulo e do círculo.
De acordo com Rziha, as siglas mais antigas remontam na sua utilização ao
período romano e românico, tendo a sua origem no sistema da quadratura,
pela simples divisão geométrica do quadrado. São por isso apelidadas de
«figuras-mãe», com base na quadratura, e importa aqui especificar: a
utilização do quadrado ou quadratura, decorre, ao longo do tempo, de
quatro processos de utilização:
1). A divisão geométrica do quadrado [fig.250].
Fig. 250 – Divisão geomértrica do quadrado. 107
RZIHA, Franz, Études sur les marques des tailleurs de pierre – La Géométrie secrète –
l’histoire, les rites & les symboles des Compagnons tailleurs de pierre du Saint-Empire Romain
Germanique & de la Grande Loge de Strasbourg, ed. francesa: Éditions de la Maisnie/La Nef de
Salomon, Paris, 1993, p.65 [segundo a edição original alemã de 1883].
314
Por simples divisão do quadrado pelas suas diagonais principais
formam-se quatro menores, traçando-se as suas diagonais internas formase uma «figura-mãe» na qual é possível integrar toda uma série de marcas
lineares do período romano, românico e princípio do período gótico108.
2). A inscrição de quadrados menores em quadrados maiores ou
princípio gráfico dos quadrados reduzidos [fig.251-252-253].
Este procedimento, também denominado de quadratura reduzida,
constrói-se com base nas diagonais e linhas divisórias do quadrado de
origem, obtendo-se um novo traçado que se pode expandir ad infinitum: é
uma forma de potencialização da chave109 .
3). A rotação ou interpenetração dos quadrados ou princípio de
rotação do quadrado de origem ou ainda princípio de interpenetração de
Fig. 251-­‐252-­‐253 – Princípio gráfico dos quadrados da mesma dimensão [fig.254].
quadrados reduzidos ou quadratura reduzida, por Este traçado é facilmente observável em inúmeras tipologias
potencialização. arquitectónicas concêntricas e octogonais, como por exemplo, no caso das
cidades estrelares renascentistas ou nas charolas templárias. É ainda outra
forma de potencialização da chave110.
4). A quadratura combinada [fig.255-256-257-258-259].
Fig. 254 – Princípio de rotação do quadrado de origem ou Ao retomar-se numerosas vezes a divisão, a redução e a rotação,
obtêm-se figuras mais complexas que, no entanto, fazem coexistir as
princípio de interpenetração de quadrados da mesma dimensão. propriedades geométricas das anteriores num mesmo padrão, no qual se
podem arbitrar vários segmentos consoante a necessidade111 .
Fig.255-­‐256-­‐257-­‐258-­‐259 – Exemplos de progressão da quadratura combinada. 108
Idem, ibidem, p.49.
109
Idem, ibidem, p.49.
110
Idem, ibidem, p.50.
111
Idem, ibidem, p.50.
315
O que significa que na quadratura combinada podem sintetizar-se
dois princípios, designadas como potencializações da chave112:
1. O princípio da redução, por inscrição de quadrados menores
em quadrados maiores ou princípio gráfico dos quadrados
reduzidos [fig.260].
Fig.260 – Princípio de redução 2. O princípio de rotação, por interpenetração dos quadrados
[fig.261].
Estes dois movimentos combinam-se geometricamente no que
Fig.261 – Princípio de rotação poderemos convencionar de quadratura combinada de primeiro grau
[fig.262].
É a partir do primeiro grau da quadratura combinada que podem
construir-se outros níveis de complexidade, redefinindo os dois
movimentos de redução e de rotação, tanto para o interior, como para o
exterior (movimento de contracção e movimento de expansão) [fig.263].
Fig.262 – Quadratura combinada de 1º grau: sobreposição dos dois Este segundo grau é particularmente rico em propriedades
geométrico-aritméticas, na medida em que permite a integração da
movimentos anteriores num só padrão. récticula estática de razão 1/1 [fig.247] no sistema dinâmico da razão 1/√2
e que implicitamente decorre do princípio de rotação [fig.261],
harmonizando, deste modo e num único e mesmo sistema operativo, o
«mensurável»
e
o
«incomensurável»,
integrando
rectângulos
√2
Fig.263 – Quadratura comensuráveis e em íntima relação com o quadrado e rotações angulares
combinada de 2º grau: o primárias. [fig.263].
(interior) projecta os seus terceiro duplo quadrado vértices no primeiro duplo Assim se torna possível toda uma organização de esquematizações
quadrado (exterior), reintegrando com este de carácter misto e de propriedades diversas: estático e dinâmico,
movimento ternário a récticula mensurável e incomensurável, polar e recticular, etc., consoante as
e dinâmico da razão √2, «necessidades» de composição do desenho.
linear de 1/1 no sistema polar harmonizando o mensurável e o incomensurável. 112
Veja-se ainda este respeito, idem, ibidem, p.59.
316
Fig.264-­‐265 – Sobreposição da vista frontal da bandeira da fábrica da AEL na quadratura combinada de 2º grau e esquema geométrico da sua caixilharia com base na mesma matriz. Como se pode observar pela sobreposição da vista frontal na matriz
[fig.262], pode considerar-se possível que Varela tenha utilizado o método
da quadratura combinada, na elaboração do desenho da caixilharia da
bandeira da fábrica de Matosinhos [fig.264-265].
Esta matriz, padrão, «rede» ou «chave» parece, assim, constituir-se
como a «figura-mãe» dos traçados reguladores que presidem aos
mecanismos de pré-composição do autor, na organização do processo
compositivo do desenho arquitectónico, como adiante se poderá verificar.
6.4.2.2.2. Estudo do ícone
6.4.2.2.2.1. Simbologia da quadratura
A quadratura combinada de segundo grau [fig.88] tem um
significado particular, pois estabelece analogias com vários exemplos de
iconografia simbólica, em particular sobre a figura geralmente designada
como o triplo recinto (Triple Enceinte ou Emblème des Trois Enceintes)113.
Aqui tratamos da sua organização simbólica, não sendo o estudo abrangido
pelo rigor geométrico, mas pelas analogias arquetipais que podem decorrer
da manifestação da sua essência.
113
Sobre a Triple Enceinte ou Emblème des Trois Enceintes, veja-se CHARBONNEAU-LASSAY,
Louis, L’Ésotérisme de quelques symboles géométriques chrétiens, Éditions Traditionnelles, 11,
Quai Saint-Michel – Paris Ve, 1985, pp.1-3.
317
Embora seja impossível reunir em toda a sua abrangência este vasto
tema em tão curto espaço, aqui se sintetizam algumas considerações,
segundo alguns autores apontados como referências fundamentais na
matéria.
Se considerarmos os estudos levados a cabo por René Guénon e
Louis Charbonneau-Lassay, consideram-se como sendo algumas das
hipóteses mais prováveis do significado da «Triple Enceinte», desde os
tempos mais remotos, a representação do Homem em diferentes estados de
sua vida, ou ainda “une sucéssion de trois principaux degrés d’initiation”
(Charbonneau-Lassay, p.7)
114
, tendo-se registado a sua presença em
espaços tão diversificados como pedras neolíticas ou templos, como é o
caso do Parténon ou do Templo de Saturno – assim o relata o filósofo
Cébes, no século V a.C115 [fig. 265-267-268-269-270-271].
Platão também descreve a Atlântida como uma composição de três
círculos concêntricos, ligados por pontes no sentido dos quatro pontos
cardeais. O «Triplo Recinto» também é representado no simbolismo
Fig. 266-­‐267-­‐268-­‐269-­‐270-­‐
271 – várias representações do triplo recinto em diferentes lugares e em judaico-cristão pela disposição espacial da Jerusalém Celeste, que seria
diferentes épocas segundo composta, segundo o Apocalipse de S. João, “por uma planta baixa de
De cima para baixo: disco formato quadrado e muralhas que formavam três vezes quatro portões”
116
(Jung, 1992, p.243) .
Louis Charbonneau-­‐Lassay. funerário ou roda solar em osso de uma sepultura merovíngia em Amailoux, dois grafites templários da Poderiam multiplicar-se ad infinitum as referências à mesma figura,
torre de menagem do castelo de Chinon (1308); pois do ponto de vista da antropologia do imaginário, são numerosos os
grafite sobre pedra da exemplos construídos ou simplesmente idealizados quando se trata de
redonda de Loudun processos de esquematização de estruturas arquetipológicas universais. É a
antiga torre de menagem (Viena)); decoração de uma das pedras da antiga Igreja mesma figura arquetípica que se encontra nas mandalas: as traduções
de Ardin (St. André-­‐sur-­‐
tibetanas revelam o seu significado profundo apelidando-a literalmente de
da quadratura reduzida, e centro. Segundo Jung, representam o «Eu» do Homem transposto para um
plano cósmico de dimensão iniciática. Da mesma forma se encontram nos
Sèvres) segundo o princípio grafite da Abadia de Seuilly (séc. XIV-­‐XV). 114
CHARBONNEAU-LASSAY, Louis, L’Ésotérisme de quelques symboles géométriques
chrétiens, Éditions Traditionnelles, Quai Saint-Michel – Paris Ve, 1985, p.7.
115
Idem, ibidem, pp.8-9.
116
JUNG, Carl Gustav, O Homem e os seus Símbolos, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1991
p.243. [ed. original: Man and his symbols, Dell Publisher, Nova Iorque, 1964].
318
mitos indianos da criação do mundus, no mito da fundação da Roma
quadrata117 descrita por Plutarco, assim como nas rosáceas românicas e
góticas, como manifestação hierofânica:
“Toda a construção, religiosa ou secular, baseada no plano de uma mandala é
uma projecção da imagem arquetípica do interior do inconsciente humano
sobre o mundo exterior. A cidade, a fortaleza e o templo tornam-se símbolos
da unidade psíquica e, assim, exercem influência específica sobre o ser
humano que entra ou vive naquele lugar.” (Id., ibid., p.242)118.
Jung e o seu comentador Jolan Jacobi insistiram particularmente
sobre a importância universal do simbolismo da mandala: Jung descreve o
fenómeno do seguinte modo:
“Estas coisas não podem ter sido inventadas, devendo ressurgir de
profundezas esquecidas para expressar as mais elevadas percepções e as
mais sublimes intuições do espírito, unindo assim o carácter singular da
consciência moderna com o passado milenar da humanidade.” (Id., ibid.,
p.243).
Segundo Gilbert Durand, discípulo de Gaston Bachelard, esta figura
encontra-se ligada a toda uma simbólica floral, labiríntica, assim como ao
simbolismo da casa, servindo de receptáculo dos deuses, sendo o próprio
«palácio» dos deuses. Nas religiões monoteístas é assimilada à imagem do
Paraíso, no centro do qual reina o deus supremo, e no qual o tempo é
abolido por uma inversão ritual de transformação da terra mortal e
Fig. 272 – pedra de Suèvres, corruptível em «terra de diamante» incorruptível, actualizando desta forma
de Louis Charbonneaux-­‐
a noção de «paraíso terrestre»119.
período neolítico, desenho Lassay. 117
A descrição da Roma quadrata por Plutarco é interpretada por Jung da seguinte forma: “A
cidade fundada sob esta cerimónia solene tinha uma forma circular. No entanto, a velha e famosa
descrição de Roma refere-se à urbs quadrata, à cidade quadrada. De acordo com uma teoria que
tenta explicar esta contradição a palavra quadrata deve ser entendida como quadripartida, isto é, a
cidade circular dividida em quatro partes por duas artérias principais que corriam de norte a sul e de
este a oeste . o ponto de intersecção coincidia com o mundus mencionado por Plutarco. De acordo
com outra teoria, a contradição pode ser entendida como um símbolo, isto é, como a representação
visual do problema matematicamente insolúvel da quadratura do círculo, que tanto preocupava os
gregos e que deveria ocupar um lugar tão significativo na alquimia. Estranhamente, também
Plutarco, antes de descrever a cerimónia do traçado do círculo por Rómulo, refere-se a Roma como
Roma Quadrata. Para ele Roma era, a um tempo um círculo e um quadrado.” Idem, ibidem, p.242.
118
V. infra, 6.4.2.3.
119
Cf. DURAND, Gilbert, Les structures anthropologiques de l’imaginaire – introduction à
l’archétypologie générale, Dunod, Paris, 1992, p.282.
319
Durand, que apesar de concordar com a interpretação holística de
Jung, considera, no entanto, que a interpretação primordial da mandala
deverá manter-se “plus mesurée et ne signifier que la quête d’un labyrinte
initiatique” (Durand, 1992, p.282), sendo mais uma forma de suficiência da
«intimidade psíquica» do que um movimento egocêntrico de afirmação.
Nesse sentido, as concepções aritmológicas ou zodiacais da quadripartição
do universo serão sempre subordinadas à figura mística da mandala como
centro isomórfico do repouso «suficiente na profundidade» da psique120.
6.4.2.2.2.2. Interpretação aritmológica da bandeira do pórtico
“Pour trois raisons, le ciel se manifeste rond. La première est semblance:
parce que notre monde sensible est fait à la ressemblance du monde
archétypique et ideal qui est dans l’entendement divin: et ce monde là n’a ni
commencement ni fin. La deuxième est utilité: car parmi les corps
isopérimètres, le sphérique est le plus approprié. Et puisque le monde
contient toutes choses, cette figure lui convient. La troisième est nécessité:
car si le monde avait une autre figure, triangulaire ou quadrangulaire, il
s’ensuivrait que certaines places seraient sans corps, et certains corps sans
place. Ce qui est impossible. Cela devient bien apparent dans les figures
angulaires se mouvant alentour.” (Freitas, 1993, p.90) 121
O significado celeste da figura arquetípica do círculo encontra-se
desta forma explicada pelo astrónomo e matemático português do século
XVI: o céu é portanto redondo por «semelhança» arquetípica, por
«utilidade» enquanto contentor, e por «necessidade».
120
Cf. idem, ibidem, p.282: mais «silenciosa», esta qualificação de Gilbert Durand parece
enquadrar-se no perfil reservado e no modus operandi de António Varela.
121
NUNES, Pedro, Tratado da Esfera do Mundo, in FREITAS, Lima de, 515 Le lieu du mirroir –
Art et numérologie, Albin Michel, Paris, 1993, p.90.
320
Na mesma linha de raciocínio, Lima de Freitas comenta que esta
necessidade decorre da capacidade própria do círculo em inscrever os
ângulos de todas as figuras geométricas concêntricas, pela razão de que o
número de polígonos que se podem inscrever no círculo é infinito, assim
como pelo facto dos polígonos simbolizarem, segundo o conhecimento
pitagórico, toda a manifestação do Ser enquanto limite ou cristalização de
uma das inesgotáveis possibilidades contidas no círculo:
“Si l’on considère ainsi les divisions régulières du cercle, génératrices des
polygones parfaits qu’il est possible d’y inscrire, et si l’on accepte leurs
qualifications symboliques et métaphysiques comme découlant du nombre
de côtés, de la valeur des angles et des proprietés géométriques de ces
figures, on concevra aisément que les polygones réguliers constituent, en
quelque sorte, des figures archétypiques «Qui sont dans l’intelligence
divine» (ou tridimensionellement les polyèdres réguliers, appelés «corps
platoniques»). Ensuite, on comprendra qu’elles règlent, à leur tour, en tant
que modèles parfaits, l’apparition d’un nombre infini de figures imparfaites,
précisément celles dont est composé le monde crée.” (Id., ibid., pp.90-91).
É possível notar, através do estudo aritmológico, que o número de
lados das figuras regulares ou perfeitas (ou o número correspondente de
divisões iguais do círculo) traduz o arquétipo em correspondências
numerais (assim como o traçado dos polígonos regulares o traduz em
figuras geométricas)122.
Do mesmo modo, é possível constatar que uma figura geométrica
perfeita, assim como o número dos seus lados, exprime uma mesma
realidade através de duas linguagens diferentes: a aritmologia estrutural e a
aritmologia dimensional.
A artimologia, como estudo da simbólica dos números e da
geometria das formas simples, apresenta-se como um “ramo derivado do
conhecimento matemático pitagórico donde retém todo o carácter
simbólico e religioso” (Cunha, 1997, p.11). A aritmologia divide-se
também em dois caminhos distintos: a aritmologia estrutural e a
aritmologia dimensional, donde importa definir com mais exactidão estes
dois termos:
122
Veja-se a este respeito, JOUVEN, Georges, Les nombres cachés, Dervy, Paris, 1978 e idem, La
Forme Initiale – Symbolisme de l’Architecture Traditionelle, Dervy, Paris, 1985.
321
A aritmologia estrutural diz respeito ao estudo da simbólica das
formas ou figuras geométricas simples ou regulares: a recta, o quadrado, o
duplo quadrado, o círculo, os polígonos regulares, o cubo, a esfera “que
pela sua pureza os arquitectos tradicionais utilizam para desenhar a
estrutura das edificações, tanto em planta como nos planos elevados” (id.,
ibid., p.12), sendo “fisicamente observável por qualquer um que se
disponha a fazê-lo.” (id., ibid., p.12).
A aritmologia dimensional diz respeito ao “valor das cotas das
medidas da aritmologia estrutural, expressa em números privilegiados em
unidades de medidas sagradas” (id., ibid., p.211). Pela mesma razão, a
aritmologia dimensional “só é perceptível aos que conhecem os números
privilegiados e o valor das unidades em presença” (id., ibid., p.211).
Se o estudo da aritmologia estrutural relativo à bandeira do pórtico da AEL
pôde ser efectuado através das figuras 264 e 265, paralelamente, também
será necessário ter em conta o seu estudo dimensional.
Como foi anteriormente observado, a caixilharia da bandeira forma
Fig. 273 – relação das um círculo inscrito num quadrado, que por sua vez se inscreve num
unidades da bandeira da rectângulo maior, onde se podem observar quatro quadrados menores [fig.
do Sol. AEL com o quadrado mágico 273].
Consequentemente, a mais pequena unidade observável à vista é
aquela que forma os quadrados menores, o que significa que também é
possível regular o conjunto por aquilo que parece constituir a unidade de
base.
Neste caso obtêm-se a leitura de um rectângulo de seis por quatro e,
tendo em conta o seu traçado regular com base na quadratura, também se
pode considerar o seu prolongamento numa figura quadrada com a mesma
unidade de base: deste modo obtêm-se um quadrado de seis por seis, que
322
em aritmologia dimensional pode ser referente ao «quadrado mágico do
Sol»123. [fig.274].
Através deste princípio, é fácil observar que o módulo deste
quadrado, sendo composto por seis unidades de lado, integra no total 36
casas [6x6=36]. A soma interna de 36 é nove, sendo que o quadrado
mágico de nove [3x3] é o primeiro de todos os quadrados mágicos.
Contudo, o simbolismo do número nove é bastante complexo: com
Fig.274 – quadrado mágico do Sol ou de Ouro. efeito, pelo estudo da aritmosofia verifica-se que quanto mais elevado for
um número, maior o seu grau de complexidade, pelo que nos limitaremos a
descrever as suas conotações simbólicas mais comums.
Sendo nove a «totalidade dos princípios criadores»124, é também
«3x3», ou seja, a tripla soma da Trindade, representando a manifestação
divina em três planos: o Espírito, a Alma e a Matéria125.
Outra conotação essencial do nove, intimamente ligada à anterior,
reside no seu carácter de renovação de um ciclo, pois ele é oito (a plenitude
da matéria) mais o Uno Divino, sendo de todos os sistemas de numeração o
último número simples que marca o começo do desenvolvimento da série
numérica: de facto, nove é o último ternário da série de números126 .
Consequentemente, do ponto de vista metafísico, o nove representa a
solidariedade cósmica, também expresso pela união do quatro (a forma, a
matéria) com o cinco (o elemento formado, a fundação do reino, o
pentagrama, o anima mundi). O nove será assim “a integração do ser na
fonte comum de todos os seres” (Serro, 1997, p.104), ou ainda como
definido por Duns Scott, (1273-1308): “relação extrínseca do corpo às
partes do centro resultando da disposição das partes no corpo” (id., ibid.,
p.107), etc.
123
Veja-se a este respeito GANDRA, Manuel, Da face oculta do rosto da Europa – Prolegómenos
a uma História Mítica de Portugal, Hugin, Lisboa, 1997, pp.128-129.
124
Veja-se a este respeito SERRO, Luís, O Número de Ouro como reitor da concepção
arquitectónica, Universidade Lusíada, Lisboa, 1997, p.101.
125
Idem, ibidem, p.101.
126
Idem, ibidem, p.101.
323
Numa tentativa de síntese, é possível pensar que será sobretudo
devido ao simbolismo do quaternário terreno aliado ao quinto elemento,
que se poderá eventualmente entender a relação iconográfica entre o
círculo e os quatros elementos quadrados, como arquétipo que preside à
composição desenhada por António Varela.
Com efeito, se o quatro é de facto entendido essencialmente como o
simbolismo da terra, já o cinco corresponde ao elemento formado, ou seja,
ao Homem como arquétipo supremo da criação. Do mesmo modo, e como
o faz observar Carl Jung, se o quatro ou o quaternário surge na história dos
símbolos como expansão do Uno, já a estrutura pentagonal do cinco coloca
em evidência o Uno como centro do quadrado: a este respeito comenta
Marie-Louise von Franz:
“Cette quintessence ne vient pas seulement s’ajouter comme cinquième aux
quatre éléments habituels, mais elle représente l’unité des quatre la plus
raffinée et la plus subtilment spirituelle que l’on puisse imaginer. Elle est
soit inicialement présente en eux et extraite d’eux, soit produite par la
circulation de ces éléments l’un dans l’autre. Tandis que le pentagone, avec
ses cinq angles, géométrise le nombre cinq dans sa force quantitative et
additive, la quintessence est représentée par le quinconce comme centre de
quatre.” (Freitas, 1993, p.93)127
Este significado do cinco representado como um quatro centrado
marca
a
emergência
da
consciência
do
conhecimento
que,
simultaneamente, divide e distingue as diferentes polarizações da
totalidade do «continuum» universal reunificando-as na visão do sujeito,
ou seja, o ser humano consciente do «Anima Mundi»: “Le cinq est le
centre du quatre. Le carré représente la totalité du royaume ainsi que
chaque temple; on l’utilisait comme élément de base pour tracer tous les
camps militaires et les plans des villes.”(id., ibid., p.93).
127
FRANZ, Marie-Louise von, Nombre et temps – psichologie des profondeurs et physique
moderne, ed. La Fontaine de pierre, Paris, 1978, in FREITAS, Lima de, 515 Le lieu du mirroir – Art
et numérologie, Albin Michel, Paris, 1993, p.93.
324
Símbolo da «quinta-essência» nas religiões orientais, também assim
Fig. 275 – Consagração de foi considerado na tradição neopitagórica e neoplatónica no ocidente, como
um altar dos cristãos número do conhecimento. Na tradição ocidental, o cinco, como símbolo da
de Champeaux e Dom fundação do reino divino, preside e orienta a consagração do altar cristão.
O altar constitui assim um microcosmo e a sua consagração no
primitivos, segundo Gérard Sébastien Sterckx. macrocosmo, tanto pela disposição dos elementos como pela própria
liturgia128 [fig.275].
“L’autel constitue un microcosme et sa consécration préfigure et commence
de réaliser liturgiquement celle de l’univers. Par deux fois, le pontife trace
sur la table d’autel cinq croix: nous savons que c’est le schéma de
l’expansion spatiale; la première au centre, là où le ciel touche la terre, là où
la présence divine se communique aux hommes et transmute la matière
absolue transparente aux échanges spirituels; les quatre autres selon deux
diagonales rayonnant en étoile autour du centre et joignant les coins de
l’autel, dont la table rectangulaire tient lieu de la totalité spatiale. Pour la
premier tracé, le pontife se sert d’eau bénite, et c’est à une purification qu’il
procède: il refait le déluge et ramène le cosmos à son état préformel [...] il le
baigne en même temps dans l’eau de vie et renouvelle le mystère de la
genèse d’une nouvelle humanité issue de Noé [...] qui va repeupler la terre en
rayonnant autour de l’autel élevé à Dieu sur la Montagne du salut où l’arche
l’a abordé. La prière que le consécrateur récit alors exprime que tout cela est
inclus dans le geste de Jacob dressant sa pierre, l’oignant et faisant d’elle un
lieu de sacrifice et une porte du ciel. Ce qui fait le lien avec le second tracé
des cinq croix, cette fois-ci avec l’huile dite des catéchumenes.” (id., ibid.,
pp.95-96)129.
Fig. 276 – Pormenor de All Saints Church, Hawkhurst, Kent, Grã-­‐
Pela observação do mesmo gesto arquetípico, o desenho de António
Bretanha. Varela parece aparentar-se à representação dos quatro elementos e da
quinta-essência, pela presença dos quatro quadrados menores e do círculo
interior, representando os quatro elementos terrenos e a quinta-essência ou
quinto elemento, o uno indivisível, como podem ser observados em
numerosas composições mandálicas de disposição concêntrica segundo o
«princípio do 4+1»130.
De duas figuras apresentadas como exemplos, destacaríamos a
primeira, pela proporção geométrica com base na quadratura [fig. 276] e a
Fig. 277 – Estandarte de Las Navas de Tolosa, séc. XIII, Mosteiro de las Huelgas, Burgos, Espanha. 128
Idem, ibidem, p.95.
129
CHAMPEAUX, Gérard de, e STERCKX, Dom Sébastien, Introduction au monde des symboles,
Éd. Zodiaqe, Paris, 1966, in idem, ibidem, pp.95-96.
130
Idem, ibidem, p.95.
325
segunda, pela sua semelhança ao nível da composição do círculo inscrito
num quadrado ligados por quatro eixos ou «braços» [fig. 277], sem no
entanto estes últimos cruzarem o interior do círculo, respeitando deste
modo o princípio do «uno indivisível», regendo-se da mesma forma que o
centro da cruze celta. Note-se ainda que a mandala musulmana integra no
interior do seu círculo a quadratura combinada no primeiro grau.
No caso da bandeira da A.E.L., do mesmo modo é possível
considerar, que à metáfora iconográfica parece acrescentar-se a relação
canónica, facilmente observável nesta mesma figura, que indica, no seu
centro, a sua matriz: ou seja, o princípio da quadratura combinada.
Mas se também se trata de um sistema canónico, seria necessário
considerar a verificação da métrica do alçado do vão de entrada no seu
todo pelo mesmo modus operandi, ou seja, através da observação da
composição geométrica do autor, efectuada, como tudo leva a crer, com
base na mesma matriz: o sistema «ad Quadratum», potencializado na sua
combinação de segundo grau [fig. 263].
6.4.2.3. Estudo geral do pórtico de entrada da administração
Fig. 278 – Alçado do vão exterior da entrada da administração da fábrica: levantamento cotado (em metros), do conjunto da bandeira, vão da porta e escadas, a partir da cota de passeio da praça Passos Manuel. 326
6.4.2.3.1. Sobre a questão da ubiquidade do centro
Sendo o processo um sistema operativo, por excelência, verificam-se
os mesmos métodos compositivos como formas de «orientar» o espaço a
edificar, fazendo corresponder à obra uma identificação sagrada, interior e
singularizada, por oposição a um espaço profano, exterior131. Este
fenómeno constitui, em si mesmo, o que se designa por hierofania:
convém relembrar, a este respeito, uma reflexão de Mircea Eliade:
“(...) a dialéctica da hierofania supõe uma escolha mais ou menos manifesta,
uma singularização. Um objecto torna-se sagrado na medida em que
incorpora (...) «outra coisa» que ele próprio. Por agora, pouco importa que
essa «outra coisa» se deva simplesmente à sua forma regular, à sua eficiência
ou à sua «força» (...) o que pretendemos evidenciar é que uma hierofania
supõe uma escolha, um nítido desprendimento do objecto hierofânico em
relação ao restante meio (...). O desprendimento do objecto hierofânico fazse, na maior parte dos casos, a respeito de si mesmo, visto que ele apenas se
torna uma hierofania no momento em que deixa de ser um simples objecto
profano, e adquire uma nova «dimensão»: a da sacralidade.” (Eliade, 1964,
p.25)132.
Fig. 279 – Ideograma de Anu, deus do céu assírio. Esta nova «dimensão», sacralizada, implica portanto a existência de
um centro gerador: “É «centro» todo o espaço consagrado, isto é, todo o
espaço no qual podem ter lugar as hierofanias e as teofanias” (id., ibid.,
p.314). O simbolismo do centro, como arquétipo, abarca múltiplas noções,
entre as quais a do “espaço «criacional» por excelência, o único onde pode
começar a Criação” (id., ibid., p.318) [fig. 279]. Do mesmo modo, “Nada
pode começar, fazer-se, sem uma orientação prévia, e toda a orientação
implica a aquisição de um ponto fixo” (id., 1965, p.113)133. Ao considerarse esse ponto como uma manifestação simbólica do sagrado, poder-se-á
131
Segundo Nigel Penick, “Os princípios norteadores da geometria sagrada transcendem as
considerações religiosas sectárias. (...) A aplicação universal dos princípios idênticos de geometria
sagrada em lugares separados no tempo, no espaço e por crenças diferentes atesta a sua natureza
transcendental. Assim, a geometria sagrada foi aplicada nos templos pagãos do Sol, nos relicários de
Ísis, nos tabernáculos de Joevá, nos santuários de Marduk, nos santuários erigidos em honra dos
santos cristãos, nas mesquitas islâmicas e nos mausoléus reais e sagrados. Em todos os casos, uma
cadeia de princípios imutáveis conecta essas estruturas sagradas.” In PENNICK, Nigel, Geometria
Sagrada – Simbolismo e intenção nas estruturas religiosas, Editora Pensamento, São Paulo, 1998,
p.9 [ed. original, Sacred Geometry – Symbolism and Purpose in Religious Structures, 1980]. Da
extensa bibliografia sobre o tema, para além das obras de Carl Jung, Mircea Eliade, Gaston
Bachelard e Gilbert Durand, veja-se ainda CENTENO, Yvette, e FREITAS, Lima de, A simbólica
do Espaço – Cidades, Ilhas, Jardins, Editorial Estampa, 1991, e ROSENAU, Helen, A Cidade Ideal
– Evolução Arquitectónica na Europa, 1982, Editorial Presença, Lisboa, 1988.
132
ELIADE, Mircea, Traité d’histoire des religions, Payot, 1964, p.25.
133
ELIADE, Mircea, Le sacré et le profane, Gallimard, 1965, p.113.
327
revelar não só no seu centro geométrico (o seu «axis-mundi»134), assim
como na sua representação no múltiplo, pela observação do mesmo gesto
arquetípico.
Se bem que, tal como nas composições mandálicas, o quadrado se
encontre de forma inextricável ligado ao círculo, parece, no entanto, que
certas diferenças observadas por individualidades como Guénon, Jung,
Arthus ou Bachelard deveriam ser tomadas em consideração. Segundo
Durand,
alguns
autores
demonstraram
existirem
alguns
aspectos
diferenciados no simbolismo do centro, pela procura de diferenças
semânticas entre as figuras fechadas circulares e as figuras angulares:
Gaston Bachelard135 também estabelece uma nuance subtil entre o refúgio
quadrado e o refúgio circular, sendo este a imagem do refúgio natural, ou
do ventre feminino.
As figuras fechadas quadradas ou rectangulares acentuam o seu
simbolismo nos temas psicológicos da defesa da integridade interior (o
recinto quadrado é o símbolo da cidade, da fortaleza ou da citadela – vejase o caso da Jerusalém Celeste). Por outro lado, o espaço circular
representa o jardim, o fruto, o ovo ou o ventre materno (veja-se o caso da
Fig. 280 – Lima de Freitas, Traçado regulador da Vesica figura da Vesica Piscis136 ) [fig.280], deslocando a acentuação simbólica
Piscis, comummente para a voluptuosidade secreta da intimidade: segundo Durand, “Il n’y a
mística» ou ainda «o olho do guère que le cercle ou la sphère qui, pour la rêverie géométrique, presente
s.d. un centre parfait.” (Durand, 1992, p.284). O mesmo autor nota que também
designada por «amêndoa peixe». Tinta e aparo s/ papel, Arthus define o carácter do círculo: “de chaque point de la circonférence le
regard est tourné vers le dedans. L’ignorance du monde extérieur permet
134
De origem pitagórica, designa, simbolicamente, o eixo de fundação de um determinado espaço
através da sua representação num ponto fixo.
135
Veja-se a este respeito Chap. X – La phénoménologie du rond, in BACHELARD, Gaston, La
poétique de l’espace, Presses Universitaires de France / Quadrige, Paris, 2004, pp.208-214 [1ª ed.
1957].
136
Sobre a figura da Vesica Piscis, também denominada por olho de peixe, amêndoa mística ou
amêndoa dos iniciados, vejam-se ainda os vários ensaios de Lima de Freitas sobre neopitagorismo e
geometria sagrada, dois quais convém destacar o texto da comunicação Le point de la Bauhütte et la
Vesica Piscis, apresentada no convénio de Roma sobre Números e formas geométricas com base da
simbologia, em 1978, e inserido no volume Pintar o sete – Ensaios sobre Almada Negreiros, o
Pitagorismo e a Geometria Sagrada, pp.151-175 [compilação do autor sobre conferências e ensaios
da década de 70 mas somente editados pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda em 1990]; veja-se
ainda, do mesmo autor e sobre o mesmo tema, Almada e o Número, Editora Soctip, Lisboa, 1990,
pp.96-105 [1ª edição, Arcádia, 1977].
328
l’insouciance, l’optimisme...”(id., ibid., p.284)137, o espaço curvo, fechado
e regular, apresenta-se desta forma como símbolo de «paz e segurança»138.
Durand, à semelhança de Eliade, também qualifica o simbolismo do centro
pela sua qualidade de fenómeno de repetição:
“L’espace sacré possède ce remarquable pouvoir d’être multiplié
indéfiniment. L’histoire des religions insiste à juste titre sur la facilité de
multiplication de «centres» et sur l’ubiquité absolue du sacré: la notion
d’espace sacré implique l’idée de répétition primordiale qui a consacré cet
espace en le transfigurant. L’homme affirme là son pouvoir d’éternel
recommencement, l’espace sacré devient prototype du temps sacré (...). C’est
précisément dans ce phénomène d’ubiquité du centre que l’on saisit bien le
caractère psychologique de ces organisations archétypales pour lesquelles
l’intention psychique, l’obsession du geste ordinaire, compte toujours plus
que la démarche objective et que les objections positivistes”139.
É através da repetição deste gesto primordial que se desenvolve o
Mito do Eterno Retorno, como paradigma metafísico do mesmo arquétipo.
Deste fenómeno de ubiquidade decorre o princípio metafísico de que «o
Uno
se
manifesta
no
Múltiplo»,
sendo
«Uno»
e
«Múltiplo»
simultaneamente (coincidentia opositorium)140. Do mesmo modo podem
considerar-se vários «centros» na composição de António Varela, sendo
estes, no entanto, a representação do mesmo «uno indivisível», pela
observância
do
mesmo
gesto
arquetípico,
revelando
princípios
compositivos idênticos em diferentes ordens de grandeza quantitativas, e
mantendo a estrita observação das mesmas propriedades qualitativas, tanto
a pequena escala como a grande escala, ou seja: quer a nível do pórtico da
entrada, como paradigma do microcosmo, quer a nível de todo o complexo
fabril, como paradigma do macrocosmo.
137
ARTHUS, Le Village. Test d’activité créatrice, Hartman, Paris, 1949, p.265, in DURAND,
Gilbert, Les structures anthropologiques de l’imaginaire – introduction à l’archétypologie générale,
Dunod, Paris, 1992, p.284.
138
Cf. Idem, ibidem, p.284.
139
Idem, ibidem, pp.284-285.
140
Ou «coincidência dos opostos», sendo esta, exactamente, a propriedade ubíqua que decorre da
multiplicidade dos centros interpretativos.
329
6.4.2.3.2. Estudo metrológico do pórtico
Pelo mesmo processo, poder-se-á considerar, através de uma
observação aritmológica, o mesmo processo mental para verificação da
métrica a diferentes escalas, não só na área da bandeira, como foi
anteriormente demonstrado, como de todo o conjunto do pórtico de entrada
da administração, em toda a largura como em toda a altura, do primeiro
degrau ao tecto, com base na mesma matriz geradora do desenho da
caixilharia da bandeira da entrada: a quadratura combinada de segundo
grau [fig.281-282] e, finalmente, de todo o conjunto da fábrica141.
Fig. 281-­‐282 – Sobreposição do alçado do vão interior da entrada da administração da fábrica no sistema da quadratura combinada de segundo grau e comparação com a figura geométrica da bandeira, aumentada três vezes (razão 1/3). Representa-se neste caso o centro da quadratura no centro
geométrico do alçado do pórtico, como omphalus da figura antropomórfica
desenhada, fazendo coincidir a proporção do quadrado exterior com a
altura máxima do alçado, incluindo a escada, a partir da cota do passeio e
até ao tecto, imediatamente por cima do remate superior da caixilharia da
bandeira [fig. 281].
Já na figura 282 pode observar-se a razão de 1/3 entre a proporção
do círculo da bandeira e a largura total do vão do pórtico considerado em
141
V. infra, 6.4.2.4. e fig. 287-289-290-293.
330
toda a sua largura, representado pela mesma imagem do círculo aumentado
três vezes. Esta proporção também se encontra na altura do vão da porta,
sendo a altura desta a dimensão da altura do módulo da bandeira repetido
duas vezes, para o baixo, o que perfaz em três módulos de bandeira
sobrepostos em altura desde a cota do átrio exterior até ao tecto.
No entanto, se tivermos em conta a tradição pitagórica, será o
pentágono a figura-mãe que preside a todas as matrizes regulares
e esta
razão de 1/3 compreende-se ao considerarem-se algumas das algumas
propriedades deste último, pois segundo a mesma tradição, todos estes
sistemas matriciais (o ad Quadratum, o ad Triangulum, o sistema
quadrilobado ou o sistema trilobado) podem determinar-se segundo o
mesmo [fig.283].
6.4.2.3.2.1. Método do pentágono Fig. 283 – sobreposição tripla do alçado do pórtico de entrada da administração, da quadratura combinada de segundo grau, do pentágono e do seu pentagrama potencializado, com base no mesmo centro geométrico comum, correspondente ao centro do pórtico. Designa-se por pentagrama a estrela de cinco pontas incluída no
pentágono, e iniciaticamente denominada «Penta-Alfa» segundo a mesma
tradição pitagórica. Por potencialização desenvolve-se no seu interior uma
segunda estrela: esta relação entre a grande estrela e a pequena estrela
331
evidenciando, nas suas partes, proporções áureas, é conhecida desde a
Antiguidade. É bem sabido que o seu conhecimento foi transmitido a
Pitágoras durante o seu período de estadia no Egipto, sendo mais tarde
divulgado na civilização helénica através da Escola Pitagórica, da qual nos
ficam os testemunhos de Heródoto. Platão estabelece no Timeu o seu
modelo filosófico com base no «Número de Ouro», tendo o seu
conhecimento sido disseminado por todo o Mediterrâneo, prevalecendo nas
confrarias romanas, assim como, mais tarde, nas confrarias medievais.
Ficam alguns testemunhos escritos deste último período, como os
desenhos de Villard de Honnecourt, no século XIII, de Piero della
Francesca, Luca Paccioli, Leonardo da Vinci, até aos estudos de carácter
arqueológico de Franz Rziha no século XIX e, já no século XX, através da
divulgação de obras de autores como Matila Ghyka, René Guénon, Jay
Hambidge, Frederik Lund, Ernst Moessell, Dom Néroman142, entre outros,
assim como nas obras pictóricas e de investigação dos portugueses Almada
Negreiros, Lima de Freitas e Paulo-Guilherme d’Eça Leal143, já no fim do
Século XX, entre os numerosos estudos levados a cabo desde então.
Contudo, por não considerarmos oportuno aprofundar aqui as
numerosas propriedades aritmológicas do pentágono e do pentagrama,
assim como o estudo do número de ouro, restringir-nos-emos à sua relação
directa com o alçado do pórtico da fábrica, mantendo-nos, da forma mais
simples possível, no universo do presente objecto de estudo (a fábrica da
AEL e os princípios de composição de António Varela).
Das numerosas propriedades do número de ouro, retenhamos a sua
principal propriedade, a que Leonardo da Vinci apelidou de Divina
Proporção, ou seja, a relação ou secção áurea, pela sua dupla progressão,
aritmética e geométrica: «A relação áurea exprime-se pela divisão de um
segmento de forma a que a parte menor esteja para a parte maior assim
como a parte maior está para o todo».
142
Veja-se a este respeito Cap.2.5.
Para além das obras dos autores anteriormente mencionados, veja-se ainda LEAL, PauloGuilherme d’Eça, O Dilúvio de Quéops – novas comunicações sobre a esquecida ciência egípcia,
Livros Horizonte, Lisboa, 1993.
143
332
Deste modo, ao considerar-se a parte maior como uma unidade, o
total do segmento será Φ (phi) e a parte menor (ou resto), o seu inverso
[1/Φ]. Donde se obtém a seguinte equação:
Φ = 1+(1/Φ)
Considerando as suas demonstrações como passíveis de grande
ocupação de espaço, restringir-nos-emos à aceitação das suas veracidades
axiomáticas, ou seja: sendo Φ um número irracional ilimitado, ou dízima
infinita não periódica, é o resultado da expressão:
Φ = 1+√5 = 1,618034...e, do mesmo modo: 1 = 1 -√5 = 0,618034...
2
Φ
2
Outra propriedade importante do número de ouro reside no facto de
ser o único número do qual o seu quadrado é igual à soma de si próprio
mais a unidade:
Φ2 = Φ+1
Através do estudo tanto estrutural como dimensional, parece
evidenciar-se uma aproximação da métrica observada no conjunto do
pórtico, com as proporções áureas do pentágono e do seu pentagrama
inscrito, pelo que seria interessante centrar a observação nas larguras dos
três vãos presentes, que consideraremos, respectivamente: módulo a),
módulo b) e módulo c) [fig.284].
333
Fig. 284 – relação da proporção áurea com as três medidas dos vãos, observados em largura: a): largura do vão total da entrada; b): largura do vão da bandeira; c): largura do vão da porta. Sendo:
a) largura do vão total da entrada
≈
envergadura do pentagrama
médio.
b) largura do vão da bandeira ≈ lado do pentágono médio.
c) largura do vão da porta ≈ envergadura do pentagrama menor.
Coloca-se deste modo em evidência a métrica destes três vãos
através da proporção áurea da figura canónica, ou seja: pela relação da
envergadura do pentagrama médio com o lado do pentágono médio, igual à
relação do lado do pentágono médio com a envergadura do pentagrama
menor, ou seja:
a_
b
=
b
c
=
Φ
Por analogia, será então possível considerar que a largura do vão
total da entrada está para a largura do vão da bandeira aquilo que a largura
334
do vão da bandeira está para a largura do vão da porta, nesse caso,
considera-se:
a_
b
≈
b
c
≈
Φ
Contudo – e ao contrário da perfeição da figura canónica –, sendo
esta relação apenas aproximada e nunca absoluta, é possível, no entanto,
definir a sua margem de aproximação a Φ através da tradução destes
valores pelos valores das cotas reais observadas durante o levantamento no
terreno [fig.278], a que se recorre, visto não terem sido encontrados os
desenhos originais desta parte do projecto do autor144.
Considerando:
– largura do vão total da entrada: a = 2,50 m.
– largura do vão da bandeira:
b = 1,68 m.
– largura do vão da porta:
c = 1,02 m.
Obtém-se desta forma:
2,50_ = 1,488...
1,68
e:
1,68 = 1,647...
1,02
Donde se pode observar que estes valores tendem para o valor
absoluto de Φ, ou seja, aproximadamente 1,618 (considerando por
aproximação: 1,488...< Φ >1,647...).
De facto, o valor do número de ouro não é numerologicamente
possível de exprimir, pelo que somente a geometria o torna observável, de
forma que os valores encontrados durante o levantamento nunca seriam
perfeitos, mesmo tratando-se do caso de uma construção exemplar que não
tivesse sofrido descompensações145. Contudo, através da conhecida série
144
A que se recorre, visto não terem sido encontrados os desenhos originais desta parte do projecto
do autor.
145
V. supra 6.4.2.1
335
de Fibonacci, é facilmente observável que a sua evolução tende a
aproximar-se de Φ: a série desenvolve-se somando o resultado de um
número com o seu anterior, começando por 1:
1; 1; 2; 3; 5; 8; 13; 21; 34; 55; 89; 144; 233; 377; 610; 987; 1597;
2584; 4181; etc...
Esta série tem uma relação com o número de ouro, o que se deve ao
facto do resultado do quociente entre dois termos sucessivos (a razão)
tender, no infinito, para este, por aproximações sucessivas da relação de
duas razões sucessivas, reduzindo cada vez mais as suas margens de
aproximação:
1/1=1; 2/1= 2; 3/2 =1,5; 5/3=1,666; 8/5=1,6; 13/8=1,625;
21/13=1,615; 34/21=1,619; 55/34=1,617; 89/55=1,6181; 144/89=1,6179;
233/144=1,61805; etc…
Pelo que se pode concluir que a relação entre a largura do vão da
bandeira e a largura do vão da porta (quociente 1,647...) é mais
aproximado de Φ do que a relação entre a largura do vão total da entrada e
a largura do vão da bandeira (quociente 1,488...), encontrando-se no
entanto os dois valores perto do princípio da série fibonacciana, entre a
razão 3/2 e a razão 5/3:
razão 3/2 =1,5 enquanto que: razão 5/3=1,666...
No entanto, seria necessário voltarmos a salientar que estas
aproximações são estruturalmente imperfeitas, o que se deve às
imprecisões da construção e não ao princípio compositivo do projecto de
Varela, sendo este verificável na sua essência como estrutura geométrica
canónica perfeita, logo, em harmonia com o Número de Ouro.
Contudo, verifica-se que a razão 3/2 e a razão 5/3 são o inverso
aritmético dos harmónicos 2/3 (diapente) e 3/5, (respectivamente 0,666... e
0,6). Efectivamente, no meio musical ou harmónico, 2/3 equivale a uma
quinta dominante e 3/5 a uma sexta menor. Considerando o âmbito deste
336
estudo, não nos cabe aqui aprofundar esta demonstração, pelo que nos
limitamos a uma verificação geral que se pode retirar desta observação146.
Em suma, se considerarmos como aceitáveis os valores observados como
aproximações harmónicas, também se podem verificar as relações dos
valores dos vãos como progressão geométrica do Número de Ouro.
Convém também referir que a progressão aritmética é, por definição,
uma sucessão de números dos quais cada termo se obtém adicionando ao
termo anterior um valor constante, ou seja, a razão da progressão:
(1; 1+r; 1+2r; 1+3r; 1+4r...)147.
A progressão geométrica também é, por definição, uma sucessão de
números, dos quais cada termo se obtém multiplicando o termo anterior
pelo valor constante, sendo este a razão da progressão:
(1; r; r2; r3; r4...)148.
O que significa que se considerarmos c como 1 (primeiro valor da
série), b como Φ (a razão) e a como Φ2 (a progressão da razão), obtém-se,
por analogia, a progressão geométrica do pórtico, tendo em conta a
progressão geométrica do número de ouro, ou seja:
Se c =1 então b = 1,618... e a = 2,618...
146
Sobre as relações do número de ouro entre o meio musical, o meio artimético e o meio
geométrico, vejam-se, entre outros, NÉROMAN, Dom, Le Nombre d’Or – Clé du monde vivant,
Dervy, Paris,1981; GHIKA, Matila, El Numero de Oro – ritos y ritmos pitagoricos en el desarrolo
de la civilizacion occidental, Editorial Poseidon, Barcelona, 1978 [seg. ed. original francesa, Le
nombre d’or] e DOCZI, György, The Power of Limits – Proportional Harmonies in Nature, Art,
and Architecture, Shambhala – Boston and London, 1994.
147
Sobre a progressão aritmética e geométrica do número de ouro, veja-se, entre outros,
NÉROMAN, Dom, Le Nombre d’Or – Clé du monde vivant, Dervy, Paris, 1981, p.27.
148
Idem, ibidem, p.27.
337
Ao retomarmos as medidas dos vãos do pórtico, verificamos que os
valores reais multiplicados tendem a aproximar-se de uma relação
constante:
Valores da progressão geométrica Valores observados do número de ouro: nos três vãos do pórtico [fig. 278]: os valores da progressão c = 1 Quadro 4: comparação entre geométrica do número de c = 1,02 m. b = 1,618... b = 1,68 m. nos três vãos do pórtico da a = 2,618... a = 2,50 m. fábrica da A.E.L. de ouro e os valores observados Matosinhos. Pelo que também se verifica uma aproximação geométrica ao
número de ouro.
Partindo das relações observáveis entre as três larguras dos vãos em
estudo, foi possível identificar essas mesmas três dimensões noutras partes
da construção: o que significa que estas três medidas podem constituir os
três módulos que presidem à composição do alçado, sendo possível
identificá-los noutros segmentos [fig.285].
Fig. 285 – disposição dos módulos a), b) e c) por diversos segmentos do alçado do pórtico: estudo dimensional aproximado, com margem de erro máxima observada inferior a 5%, nomeadamente na relação do módulo c) com a altura da bandeira e na relação do módulo b) com a largura do degrau de soleira. Note-­‐se que o vão também é, na sua totalidade, um duplo quadrado, ou rectângulo ½. 338
6.4.2.3.2.2. Método do duplo quadrado
Uma outra forma de observação da proporção áurea no pórtico
consiste em tomar em consideração a aproximação de suas dimensões
máximas ao rectângulo harmónico de 1/2, ou seja, o rectângulo√4, também
denominado de rectângulo de duplo quadrado149. De facto, através do
levantamento efectuado, verificou-se que o perímetro do alçado não
totaliza exactamente a proporção do duplo quadrado. No entanto, a
margem de aproximação não excede os 3,2%, verificável entre a diagonal
real A’D’, e a diagonal geométrica AD do duplo quadrado, o que se
considerou como negligenciável, pelo que se optou por evidenciar os
valores (em metros) da diagonal do alçado, representados com a sua
correcçã
Fig. 286 – Verificação da proporção áurea no pórtico pelo método do duplo quadrado (margem de erro: 3,2%, entre A’D’ segmento real e AD segmento geométrico). o
Valores absolutos da progressão Valores métricos relativos à Quadro 5 – correspondência geométrica do número de ouro diagonal do vão do pórtico (por entre os valores absolutos da aproximação): progressão geométrica do pelo duplo quadrado para: bc = 1 (lado do quadrado) ab = 0,618... (1/Φ) ac = 1,618... (Φ) bc = ac = Φ ab
bc = 2 ,50 m. Número de Ouro e os valores ab = 1 ,54 m. métricos relativos à diagonal ac = 4,05 m. ,62 ≈ Φ
bc
2,50 ≈ 4,05 ≈ 1
1,54 2,50 do vão do pórico da A.E.L. (segundo a fig. 286). 149
DOCZI, György, The Power of Limits – Proportional Harmonies in Nature, Art, and
Architecture, Shambhala, Boston and London, 1994, p.9.
339
geométrica, com vista a facilitar a observação [fig.286 - quadro 5].
Para os valores da progressão geométrica de AC = Φ, BC = 1 e AB
= 1/Φ, verifica-se, por analogia, que o segmento real A’C tende a
aproximar-se do valor de Φ, o segmento real BC tende a aproximar-se do
valor de 1 e o segmento real A’B tende a aproximar-se de 1/Φ,
considerando deste modo A’C como o todo, BC como a parte e A’B como
o resto, pelo que se pode igualmente verificar a aproximação geométrica
do pórtico ao número de ouro, através do método do duplo quadrado150.
6.4.2.4. Estudo geral da fábrica
A observação do traçado regulador do pórtico de entrada da
administração e de sua bandeira, como composição decorrente do sistema
«ad Quadratum» levaram à identificação do mesmo processo a outras
escalas e em outros desenhos. Através deste processo é possível reconhecer
a regra de simetria, no sentido clássico e operativo do termo, ou seja, no
que respeita uma repetição das mesmas proporções a diferentes escalas e
em diferentes partes do conjunto.
6.4.2.4.1. Planta geral da fábrica
Como foi observado, o sistema «Ad Quadratum» integra
simultaneamente as propriedades de um sistema polar assim como de um
sistema reticular: deste modo, para se poderem confirmar as propriedades
da quadratura na planta geral da fábrica, será necessário e suficiente
reconhecer-lhe:
1.
Um centro gerador, conforme a propriedade polar do
sistema.
2.
Um módulo estrutural, conforme a propriedade reticular do
mesmo sistema
150
Sobre a verificação do Número de Ouro pelo método do duplo quadrado, veja-se, entre outros,
NÉROMAN, Dom, Le Nombre d’Or – Clé du monde vivant, Dervy, Paris, 1981, pp. 63-65.
340
De facto, a composição da fábrica revela-se de forma clara pela
observação da planta: uma disposição dos espaços que se organizam de
jusante (entrada da matéria-prima, pela rua Heróis de França) a montante
(armazém de cheio, com saída pela rua Roberto Ivens), encadeando
sucessivamente no seu interior as diferentes secções de fabrico,
transformação, armazenamento, etc151. Face à evidência de uma disposição
destes módulos numa organização em série e em cadeia, é possível denotar
uma evidente disposição do conjunto deste complexo fabril em torno da
secção de fabrico, fruto de um gesto elementar que caracteriza a modelação
da maior parte das tipologias fabris.
A secção de fabrico, como elemento nuclear do conjunto, define-se
em planta como um grande rectângulo: este rectângulo é um duplo
quadrado (1/2), encontrando-se geometricamente inscrito num quadrado
maior que se estende para sul. Este quadrado maior é coincidente no seu
canto de sueste com a creche e no seu canto de sudoeste num ponto situado
fora dos limites do terreno, já na rua João Chagas.
Por analogia, este quadrado maior, (que inscreve o duplo quadrado
definindo a secção de fabrico), pode ser tomado como o mesmo módulo do
quadrado que inscreve o círculo da bandeira a pequena escala152. Deste
modo é possível retomar a mesma sobreposição da figura 66, segundo o
módulo que define o quadrado que inscreve o círculo, pelo que se denota
ser o comprimento da fachada da secção de fabrico o módulo linear da
composição a esta escala maior [fig. 287].
151
152
V. supra, 6.4.5.
V. supra, fig. 282.
341
A coincidência do traçado com o desenho da planta (fig.287) revela
um processo de analogia com o modus operandi (fig.288) observado na
Fig. 287-­‐288 – Progressão geométrico-­‐aritmética do sistema ad quadratum e do bandeira e no alçado do pórtico da administração, à razão de 1/50. Esta
traçado da bandeira e do nova coincidência parece justificar a composição geral dos módulos, assim
administração com a planta como a repartição essencial do interior – o que não significa que a sua sub-
pórtico de entrada da geral da fábrica segundo o projecto original de António articulação siga invariavelmente um processo de mimetismo do traçado
Varela: os dois traçados em geométrico –, antes justificando a sua acção como «fio condutor» no
da composição da fábrica. desenvolvimento geral da métrica, assumindo-se como um mecanismo
fundador e essencialmente regulador da composição.
conjunto regulam os módulos De notar que: 16,6666667... = [5/3]x10; e: [5/3] =1,6666667...(terceira razão da série de Fibonacci). Deste modo obtém-­‐se, em ordem crescente: 1x3x[5/3]x10 = [5/3]x30 = 50; e em ordem decrescente: ___50 ___ = 1 [5/3]x30 342
6.4.2.4.2. Alçado norte
Verificando-se a analogia do sistema da quadratura como acção
reguladora da métrica na composição da planta, torna-se interessante
Fig. 289 – Alçado norte: correspondência do mesmo traçado com a observar a sua operatividade no alçado da secção de fabrico (alçado
métrica dos vãos e de «principal», por excelência, junto à avenida), no qual a correspondência da
desenhados, sobreposto à métrica ao sistema «Ad Quadratum» e à figura geométrica da bandeira
outros elementos mesma escala da planta (v. Fig.111]. pode ser observada com clareza. O eixo horizontal define um friso ao
343
longo de todo o conjunto, delimitando o piso superior, em cima, do piso
inferior, em baixo [fig.289].
6.4.2.4.3. Planta dos armazéns
Também é possível observar os armazéns desenhados por António
Varela, como ampliação do projecto inicial da fábrica, inaugurada em
1939, prosseguindo na mesma leitura espacial e geométrica. Estes dois
armazéns definem o espaço do terreno da ampliação em todo o seu
comprimento e largura, desde o limite do lote, rematando na rua Roberto
Ivens, a nascente, até ao pátio com saída para a rua Heróis de França, a
poente, e destinavam-se ao armazenamento e estiva de produto para
exportação, devido a um aumento exponencial da produção face à
encomenda massiva no contexto bélico da Segunda Guerra Mundial.
Varela tem aqui um problema essencialmente de composição de fachadas,
na necessidade de conferir alguma homogeneidade ao conjunto edificado.
Estes armazéns compõem-se por dois módulos rectangulares, sendo
interligados por um módulo quadrado, subdividido entre um átrio a céu
aberto e um espaço interior inicialmente destinado à estiva153.
Fig. 290 – Continuidade do sistema ad quadratum na composição dos armazéns de 1941, situados entre a AEL e a sua congénere, a Rainha do Sado: os eixos dos quadrados geométricos a sul do anterior limite da fábrica (alçado sul do projecto de 1938) regulam a definição da métrica dos três módulos dos armazéns. 153
V. supra, 6.3.4.2.
344
Pela junção do desenho da planta geral da fábrica com o desenho da
planta dos armazéns, foi possível observar que os três módulos que
compõem esta ampliação de 1941 sugerem uma continuidade do mesmo
modus operandi, através do prolongamento dos eixos dos quadrados da
estrutura geométrica da figura de origem, delimitando desta forma as
dimensões dos três módulos (dois rectângulos √2 e um quadrado central)
[fig.290].
6.4.2.4.4. Alçados dos armazéns
Os alçados dos armazéns sugerem uma simplicidade de linhas de
aparência neoclássica. São duas fachadas de desenho idêntico, uma a
nascente, confinando com a rua Roberto Ivens e outra a poente, recuada em
relação a rua Heróis de França, intercalada por um pátio de forma
trapezoidal de acesso à rua154, constituindo-se assim como os limites
exteriores do volume prismático que se prolonga no interior.
Fig. 291 – Armazéns de 1941, vista do lado da rua Roberto Ivens, articulando-­‐se em continuidade com a fachada da 1ª fase [secção de cheio, 1938]. 154
Idem.
345
Em comparação com o projecto da fábrica, de 1938, o que mais se
destaca à vista é a nítida diferenciação do remate superior destas peças,
onde já não impera o denteado escalonado de influência «Art Déco» que se
pode observar no vasto prisma da secção de fabrico, situada a norte, mas
um frontão curvo mas que confere ao conjunto um aspecto geral
marcadamente clássico [fig.291-292].
A curvatura do frontão é gerada pelo traçado da circunferência
original que rege a quadratura, confirmando a presença de um ângulo de
dezasseis graus pela sua triangulação, segundo o mesmo princípio
Fig. 292 – António Varela, canónico que regula a inclinação do denteado escalonado da secção de
do alçado sul). armazéns de 1941 (pormenor fabrico.
Fig. 293 – AEL, armazéns de 1941,alçado da rua Heróis de França, a poente : correspondência com o sistema ad quadratum e a bandeira do pórtico da administração. Se, por um lado, este frontão curvo contrasta, em aparência, com o
denteado escalonado da secção de fabrico datado de 1938, verifica-se,
contudo, que os ângulos formados pela triangulação do escalonamento dos
frontões da secção de fabrico do projecto anterior também perfazem
dezasseis graus de lado, pelo que tudo leva a crer que decorrem do mesmo
346
gesto arquetípico, como forma de analogia para com princípios de
composição clássicos [fig.293]. Por outro lado, convém referir que a
utilização do frontão curvo poderá ser um indício de «contaminação» – ou
de um exercício experimental, por mimesis, nesta ampliação para a A.E.L.
–, do alçado principal da fábrica da Afurada que por essa altura Varela
também elaborou, sendo bastante nítidas as analogias entre os dois
desenhos155 .
De qualquer modo, também se verifica neste alçado o que foi
possível verificar na planta dos armazéns156, ou seja: que Varela, ao
compor este novo projecto para a firma, elaborou um desenho que, apesar
de diferente pela utilização do elemento do frontão curvo ao invés de
elementos angulares, operou sempre – e ainda – em continuidade com o
traçado do projecto anterior.
O regime de continuidade manifesta-se através de um processo de
analogia no que respeita à utilização do mesmo traçado regulador,
mantendo deste modo a relação harmónica do edificado, embora alterando
a sua plasticidade pela inclusão de elementos novos, mas que apesar de
tudo parecem complementar-se num jogo de continuidades. Este «jogo»,
que poderá parecer à primeira vista algo eclético nada tem de arbitrário,
sendo aqui extremamente subtil em matéria de conjugação formal. Convém
não esquecer que Varela era, também, à sua maneira, um «esteta», e talvez
seja através destes pequenos gestos que melhor se pode compreender a
«filosofia conceptual» do autor, que como modernista do seu «tempo»,
aqui parece ter operado na consciência da lógica pitagórica, nos problemas
de continuum e do descontínuo, de avanços e recuos de uma
«modernidade», e poderá dar indícios, numa leitura mais profunda, de um
processo hermeticamente «pneumático».
Tendo em vista uma maior clarificação dos processos compositivos
de Varela, para além deste caso, afigura-se da maior pertinência o estudo
dos mecanismos compositivos noutros projectos de sua autoria, por
155
156
V. infra, 7.2.
V. supra, fig.290.
347
analogias, metamorfoses ou rupturas, num «sistema» que parece ter
evoluído no espaço e no tempo. Foi neste sentido que também se
observaram outras obras que elaborou pela mesma época e nos anos
seguintes, nas quais também foi possível identificar, por analogias
sistémicas,
correspondências
ou
coincidências
entre
esquemas
compositivos: por esta razão, também considerámos fundamental a questão
do estudo da fábrica da Matosinhos como objecto, pela recorrência, por
parte do seu autor, a um modus operandi que parece sistémico, num
«diálogo»
constante
entre
o
círculo
e
a
quadratura.
Assim,
convencionámos apelidá-lo, e unicamente para efeitos do presente estudo,
de «cânone de Varela».
Através da métrica observada no pórtico de entrada da
administração, na planta geral e nos alçados da fábrica de Matosinhos da
AEL, tornou-se possível compreender que o seu autor terá recorrido a um
traçado regulador particular, o sistema «Ad Quadratum», como matriz ou
rede que rege a composição através de propriedades simétricas, sendo as
partes comensuráveis ao todo.
O seu autor recorre à analogia canónica, através de um processo
racional e operativo.
Recorre igualmente à analogia icónica, através de um processo
metafórico e simbólico, qualificativo do espaço.
Estes dois processos mentais de metodologia de projecto encontramse indissociados e são complementares, pelo que decorrem do mesmo
gesto arquetípico, que parece manifestar-se através de uma metodologia
operativa e simbólica, como foi possível observar pelo estudo aritmológico
do pórtico de entrada da administração.
Foi nesse sentido que se observou a métrica de outras obras que o
autor elaborou pela mesma época, onde foi possível identificar
correspondências entre alguns desenhos e o sistema «Ad Quadratum».
Infelizmente em alguns desses casos há uma ausência dos desenhos
348
originais de António Varela. Algumas destas obras encontram-se em
avançado estado de ruína, como é o caso da fábrica de conservas de
Manuel Pereira Júnior, junto à foz do rio Douro, no sítio da Afurada. Esta
fábrica também é focalizada no capítulo seguinte157, revestindo-se de um
particular interesse, pois permite compreender de que modo evoluiu a
abordagem modernista de António Varela na arquitectura industrial,
iniciada pioneiramente com a complexidade do projecto da Fábrica nº6 da
Algarve Exportador Limitada.
Esses outros casos também permitem identificar analogias que pela
sua evidência nos devolvem à fundamentação do estudo da fábrica da AEL
como momento «operativo», pelo recurso, por parte do seu autor, a
esquematizações bastante similares em torno dos «elementos geométricos
psíquicos»158.
Fica assim observado que António Varela, arquitecto da primeira
geração modernista portuguesa, terá procurado, a partir deste período de
sua carreira, uma via «pessoal», ou um «caminho próprio», uma
«interpretação» da modernidade, estabelecendo relações de continuidade
entre esta, marcada pelo estudo explícito do seu carácter maioritariamente
funcionalista, e o uso implícito de uma metodologia de desenho que se
orientou, como tudo leva a crer, para valores e princípios próprios da
«Tradição» pitagórica. É sobre este paradigma que parecem evoluir
algumas das obras e dos projectos mais marcantes do autor, sendo objecto
de estudo do último capítulo, os quais, muito embora com programas
diferentes, parecem «geneticamente» reagrupáveis, e talvez permitam, à
luz deste contexto, serem identificados como «a família simbólica» de
Varela.
157
V. infra, 7.2.
Segundo a terminologia de Fernando Pessoa. V. supra: 2.5: De Pessoa a Almada: «a invenção
do dia claro» como legado hermético na construção da modernidade portuguesa, nota 49.
158
349
OUTRAS OBRAS À LUZ DE UMA MESMA INTERPRETAÇÃO
CAPÍTULO 7
“Encontrar sem buscar é coisa difícil e rara. Achar aquilo que se procura é coisa cómoda e fácil. Ignorar e buscar (aquilo que se procura) é impossível.”1 Arquitas de Tarento Procurou-se organizar neste capítulo um fio condutor, uma lógica
que possa conduzir a um olhar convergente sobre o pensamento de
António Varela. Pelas leis da geometria, leituras de lugares e de programas
diferentes parecem associar-se, senão em torno de uma regra, pelo menos
Fig. 294 – Almada Negreiros, Auto-­reminisciência, tinta e aparo sobre papel, espólio de António Varela com dedicatória do autor, ass. e dat.: Paris,[19]49. na procura de uma «direcção única».
Aparentemente paradoxal, essa mesma «direcção», tal como no olhar
da Vesica, ou do Ponto da Bauhütte, embora de aparência complexa, não é
estática, parecendo desdobrar-se numa multiplicidade de manifestações ou
de «centros» interpretativos. Mas este segundo movimento não é restritivo
e parece mesmo admitir a contradição, a negação, evitando o falso
paradoxo, excluindo-se a ideia de um Varela «refém» da interpretação de
uma modernidade dogmática ou de hermenêuticas redutoras.
Convém esclarecer que o aspecto de «invisibilidade» dos traçados é,
no fundo, bastante natural. Na sua relação com a concepção do desenho
arquitectónico, é bem possível que não tenham sido sistematizados de
forma tão «directa» pelo autor, tal como aqui se ensaiam, existindo antes
como esquemas mentais que utilizaria no todo ou apenas com recurso a
algumas das suas propriedades, consoante as necessidades de cada caso.
Em termos gerais, é necessário compreender que os traçados
geométricos fazem parte de «esquemas mentais» mais ou menos
1
In NEGREIROS, José de Almada, Ver, Editora Arcádia, Lisboa, 1982 [ed. original do autor,
Lisboa, 1943].
350 350
conscientes, que na maior parte das vezes nem chegam a materializar-se e,
quando tal acontece, apenas se manifestam sob esquissos, e quase
imediatamente se tornam dispensáveis a partir do momento em que se
«fixa» um determinado desenho ou composição. Daí a sua invisibilidade
ou inexistência como prova documental: não sendo um fim em si mesmos,
mas pontos de partida que servem para fixar uma determinada ordem na
composição, fazem parte de elementos aparentemente pouco relevantes,
entre outros facilmente degradáveis ou mais ou menos «descartáveis» que,
salvo raras excepções, mais facilmente se excluem na maior parte dos
arquivos pessoais, espólios ou legados particulares (fig.295).
Mas esta condição de meio, e não de fim, não inviabiliza o ensaio e a
verificabilidade de padrões que pelo seu potencial de síntese, permitem
análises de determinadas propriedades geométrico-artiméticas e podem
fornecer indícios de esquematizações operativas que «geneticamente»
permitem relacionar obras que só na aparência parecem diferentes, sendo o
carácter especulativo destas análises inversamente proporcional ao grau de
verificabilidade objectiva que decorre da demonstração geométricoaritmética, assim como do número ou do tipo de analogias que permitem
estabelecer dentro ou fora da mesma obra. Tal nos parece ser o valor e a
relevância do estudo geométrico.
Fig. 295 – António Varela, desenho, caneta sobre papel, s.d. Reconhecendo antes a capacidade multiplicadora desses vários
«centros», parece o conjunto destas obras de Varela comungar da «unidade
plural» do pensamento do autor, contribuindo para uma tentativa de leitura
de síntese do seu trajecto pessoal, que nasce, como tudo indica, da
multiplicidade do uno.
351
7.1. A PROPOSTA PARA O MERCADO DE COIMBRA
Fig. 296 – António Varela, Mercado de Coimbra, alçado nascente, 1937. A singularidade deste projecto de 1937 reside em vários aspectos:
primeiro, tem a particularidade de ser um exercício individual de Varela,
datado da década em que colaborava assiduamente com Jorge Segurado.
Em segundo lugar, parece preceder de um ano a concepção do projecto da
fábrica de Matosinhos e permite a comparação de traçados no que respeita
a uma outra interpretação do sistema da quadratura combinada.
A sua observação só é possível graças à sua publicação na mesma
revista Arquitectura e Edificação e Cerâmicas / Reunidas2, onde também
se publicou a Fábrica de Matosinhos da A.E.L.3 e o Lar da Misericórdia
das Caldas da Rainha4. Projecto não edificado, tem o interesse de revelar, à
semelhança da fábrica, valores de organização funcional e uma
composição que revela semelhanças não só com esta, mas também com a
Fábrica da Afurada, entre outras analogias possíveis que se podem
estabelecer, tal como se pode verificar.
A encomenda deste equipamento destinava-se a completar o sistema
abastecedor da cidade de Coimbra num bairro residencial localizado num
terreno de cota elevada e em declive no sentido poente/nascente. O
trabalho topológico de Varela parece orientar-se segundo esta característica
essencial do lugar e permitiria deste modo criar um miradouro
direccionado para o sol nascente. Podemos ser levados à consideração de
se tratar de um momento simbólico do percurso, sobretudo tendo em conta
2
Cf. A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação / Reunidas (A.P.C.E./R), n° 41, 3° série,
Agosto de 1938, pp.14-19.
3
V. supra, 6.3.4.
4
V. supra, 4.3.3.
352
que este tipo de equipamento «vive» sobretudo com o despertar do «astrorei» e rege a sua actividade segundo o seu ciclo ascendente. Parece, em
todo o caso, revestir-se este momento poético de uma conotação simbólica
não-restritiva. Do ponto de vista do programa, este miradouro também
previa o apetrecho das dependências subsidiárias do mercado: os armazéns
das lojas, o espaço de armazenamento dos utensílios do mercado, a
habitação do guarda, os armazéns frigoríficos e as instalações sanitárias
que, situadas no exterior, serviriam a um tempo tanto o mercado como os
visitantes do miradouro.
Fig. 297 – António Varela, Mercado de Coimbra, corte longitudinal norte-­‐sul, 1937. O sistema construtivo foi desenvolvido em parceria com o
engenheiro Pacheco de Sousa e consistiria, à semelhança da fábrica de
Matosinhos, edificada um ano depois, de uma estrutura de pilares e vigas
em betão armado e uma cobertura em fibro-cimento assente sobre asnas
metálicas [fig.297]. As paredes seriam de alvenaria de pedra e as
guarnições dos vãos em «cantaria da região»5. No interior, previa-se um
revestimento dos pavimentos e das paredes laváveis, composto por
elementos cerâmicos até quatro metros de altura, o que parece justificar-se
por motivos de higiene e limpeza. No resto do edifício seria aplicado o
«sistema cavanite» projectado, típico da época, como substituição do
recurso à pedra natural, e que permitiria – tal como mais tarde viria a
empregar nas fachadas da Fábrica de Matosinhos –, a expressão
esterotómica de um aparelho regular.
5
O artigo não menciona nenhum outro indício a este respeito, embora pareça tratar-se de um
aparelho de granito.
353