Mariana de Castro Abreu AS MODALIDADES DE TRÁFICO DE
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Mariana de Castro Abreu AS MODALIDADES DE TRÁFICO DE
Mariana de Castro Abreu AS MODALIDADES DE TRÁFICO DE PESSOAS E O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO SÃO PAULO - BRASIL SP - 8379057v1 8 Introdução O tráfico de pessoas é uma atividade intimamente relacionada com organizações criminosas, sendo um dos crimes mais prejudiciais às suas vítimas sob todos os aspectos, pois consiste em uma grave violação aos direitos humanos. Uma das principais características do tráfico de pessoas é a sua invisibilidade, que encontra respaldo no completo controle físico e psicológico dos algozes sobre as vítimas, além do imenso temor que essas possuem de serem castigadas, o que acaba por garantir com que não denunciem os agentes desse crime. Em que pese a invisibilidade referida, a bem da verdade, este crime é muito comum e lucrativo: pesquisas realizadas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT)1 estimam que mais de 2,4 milhões de pessoas são vítimas do tráfico a cada ano em todo o mundo, um comércio ilícito que movimenta, anualmente, mais de US$ 32 bilhões de dólares, estando atrás, em números, apenas, dos lucros gerados pelo tráfico de substâncias entorpecentes e do contrabando de armas. Assim, diante dos elevados números de incidência, da grande lucratividade existente em torno desse crime e, principalmente, da sua extrema gravidade, o presente trabalho traz uma análise das modalidades existentes de tráfico de pessoas e do tratamento sociojurídico dado à essas modalidades no Brasil. Nesse sentido, será apresentado um panorama do tráfico de pessoas em todas as suas modalidades (trabalho em condições análogas a de escravo, retirada de órgãos e prostituição e demais formas de exploração sexual). Além disso, foram analisados os perfis das vítimas e principais dados oficiais, além dos tratamentos dados pela legislação internacional e nacional e as propostas de aperfeiçoamento da legislação brasileira. 1 Organização Internacional do Trabalho. Uma aliança global contra o trabalho forçado. Relatório Global do Seguimento da declaração da OIT sobre Princípios e Direitos fundamentais no Trabalho, 2005. SP - 8379057v1 9 Dessa maneira, o objetivo deste estudo é incentivar o debate, proporcionar maior compreensão sobre o tema e buscar soluções jurídicas mais efetivas, eficazes e justas para o melhor enfrentamento ao crime de tráfico de pessoas no Brasil. 1. Tráfico de Pessoas 1.1. Conceito O primeiro marco legal relacionado ao tráfico de pessoas é a Convenção das Nações Unidas (ONU) contra o Crime Organizado Transnacional, que trata de tema mais abrangente e amplo que o tráfico de pessoas, qual seja o crime organizado de maneira geral. Os aspectos específicos do tráfico de pessoas apenas foram abordados de maneira minuciosa pelo Protocolo Adicional à mencionada Convenção da ONU, denominado Protocolo relativo à Prevenção, Repressão e punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças (2000), também conhecido como Protocolo de Palermo, que foi promulgado pelo Decreto n.º 5.107, de 12 de março de 2004. Confira-se o preâmbulo do Protocolo de Palermo: “(...) apesar da existência de uma variedade de instrumentos internacionais que contêm normas e medidas práticas para combater a exploração de pessoas, especialmente mulheres e crianças, não existe nenhum instrumento universal que trate de todos os aspectos relacionados ao tráfico de pessoas” O Protocolo de Palermo pretendeu instituir um regime diferenciado de tratamento ao tráfico de pessoas, na medida em que buscou ir além do viés unicamente repressivo, incluindo medidas protetivas às vítimas e ações de prevenção. Ademais, o Protocolo de Palermo definiu o conceito de tráfico de pessoas em seu artigo 3º, a, definição esta que, atualmente, é a mais aceita internacionalmente, inclusive no Brasil: SP - 8379057v1 10 “A expressão tráfico de pessoas é o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração.” Dessa forma, depreende-se da definição acima que para que fique configurado o tráfico de pessoas, além da verificação da finalidade de exploração, é imprescindível que o traficante imponha ao menos uma das formas de coação descritas no artigo para a obtenção do consentimento da vítima. Nessa esteira, se percebe que o Protocolo de Palermo buscou não interferir nos domínios de autonomia e liberdade sexual do ser humano, na medida em que não considerou como tráfico de pessoas a prostituição voluntária, ou seja, a prostituição que é exercida sem a presença de qualquer dos meios coativos previstos em seu artigo 3º, a. 1.2. Modalidades de exploração O tráfico de pessoas pode ser identificado em diversas formas de exploração. O Protocolo de Palermo, por sua vez, assim dispõe acerca das modalidades de exploração existentes, na segunda parte do artigo 3º, a, in verbis: “A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.” A seguir, serão analisadas sucintamente cada uma dessas formas de exploração. 1.2.1. Tráfico de pessoas para fins de trabalho em condições análogas à de escravo O trabalho em condições análogas à de escravo também é denominado de trabalho SP - 8379057v1 11 forçado, trabalho escravo, servidão, trabalho degradante, dentre outros, sendo certo que todas essas nomenclaturas são utilizadas indistintamente para tratar da mesma realidade jurídica. A bem da verdade, em que pesem as supramencionadas denominações, qualquer trabalho que não reúna as mínimas condições necessárias para garantir os direitos do trabalhador, há que ser considerado trabalho em condição análoga à de escravo. No caso de tráfico de pessoas na forma de exploração que reduz o indivíduo a condição análoga à de escravo, os trabalhadores são aliciados por intermediários, em regra, em regiões distantes do local da prestação de serviços, para exercerem atividade no meio rural (plantações, carvoarias e minas) ou no meio urbano (tecelagens, construção civil e indústrias). A clandestinidade, o autoritarismo e a segregação social são características marcantes dessa modalidade de tráfico de pessoas2. Conforme exposto no Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas à de Escravo3: “A degradação vai desde o constrangimento físico e/ou moral a que é submetido o trabalhador – seja na deturpação das formas de contratação e do consentimento do trabalhador ao celebrar o vínculo, seja na impossibilidade desse trabalhador de extinguir o vínculo conforme sua vontade, no momento e pelas razões que entender apropriadas – até as péssimas condições de trabalho e de remuneração: alojamentos sem condições de habitação, falta de instalações sanitárias e de água potável, falta de fornecimento gratuito de equipamentos de proteção individual e de boas condições de saúde, higiene e segurança no trabalho; jornadas exaustivas; remuneração irregular, promoção do endividamento pela venda de mercadorias aos trabalhadores.” Os trabalhadores ficam à mercê dos aliciadores pertencentes à organizações criminosas bem como de terceiros beneficiados, não tendo respeitados não apenas seus direitos sociais e trabalhistas como, por exemplo, salários, tempo máximo de jornada e 2 MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.198. 3 Ministério do Trabalho e Emprego. Manual de Combate ao Trabalho em Condições Análogas às de Escravo. Brasília: MTE, 2011.p.8. SP - 8379057v1 12 proteção adequada, mas também outros direitos fundamentais, tais como a liberdade e a dignidade da pessoa humana. 1.2.2. Tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos Esta modalidade de tráfico de pessoas é extremamente complexa, uma vez que envolve profissionais altamente qualificados, como médicos cirurgiões, anestesistas e instituições de saúde com considerável aparato tecnológico. Sobre o tráfico de órgaõs que, em regra, aproveita da condição vulnerável das vítimas para adquirir seus órgãos mediante pagamento de contraprestação, relata MARIA HELENA DINIZ4: “Em todo o mundo há uma insaciável sede de lucro e casos de pobres, como os indianos, que vendem órgãos e tecidos para ricos com a esperança de diminuir sua miséria, tornando-se hoje o mercado de estruturas humanas (soft human market) uma triste realidade, em que frequentes são as denúncias sobre comercialização de partes do corpo humano, o que denota o não cumprimento dos padrões mínimos de conduta ético-jurídica exigida pela lei aos profissionais da saúde, aos doadores e às suas famílias. Vêm surgindo estímulos à venda de órgãos em vida, para entrega após o óbito do doador-vendedor, e fórmulas de incentivo de doação de órgãos e tecidos, como: a cash death benefit (benefício pago pela morte), pela qual um paciente terminal recebe um bom pagamento à vista e antecipado, que poderá, entre outras vantagens, cobrir as despesas com seu funeral; a cash benefit binding consente to donation, em que a pessoa vende seus órgãos em vida, podendo gerar o problema da recusa em entregá-los pelos familiares após seu falecimento; e a bought living-unrelated donor, pela qual o receptor compra órgão de doador vivo que não seja seu parente.” No Brasil, as principais vítimas do tráfico de pessoas para fins de remoção de órgãos e tecidos do corpo humano são jovens, do sexo masculino, com bom estado de saúde, que encontram-se em situação socioeconômica precária e sem perspectiva de melhora e que, espontaneamente, vendem seus órgãos em troca de benefícios financeiros5. 4 5 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 7ª ed, São Paulo, 2010.p.358. Brasil. Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. SP - 8379057v1 13 1.2.3. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual comercial Esta modalidade consiste em uma relação de mercantilização e abuso do corpo das vítimas. De um lado há os exploradores sexuais, que podem estar organizados em redes criminosas de comercialização de seres humanos ou serem os próprios pais ou responsáveis pelas vítimas e, de outro lado, há os consumidores de serviços sexuais pagos. Em uma análise dos lucros gerados por essa atividade, leciona SIDDHARTH KARA 6, que “as mulheres traficadas são forçadas a servirem centenas de homens, às vezes milhares antes de serem descartadas, formando a espinha dorsal de uma das empresas ilícitas mais rentáveis do mundo. O tráfico de drogas gera maiores receitas em dólares, mas mulheres traficadas são muita mais lucrativas. Diferentemente da droga, uma mulher não precisa ser cultivada, destilada ou embalada. Diferentemente da droga, a mulher pode ser reutilizada inúmeras vezes”. As vítimas que são introduzidas no universo do tráfico para fins de exploração sexual, em regra, trabalham em boates e casas noturnas exercendo a prostituição. Muitas dessas pessoas, especialmente crianças e adolescentes, são raptadas para esses lugares, presas e drogadas, enquanto outras são vítimas de outros meios coativos como, por exemplo, promessas de atividades diversas da prostituição, como garçonete, modelo, manicure, empregada doméstica, babá, dentre outros. Há, ainda, aquelas que embarcam com o intuito de exercer a prostituição em ambientes mais ricos, no entanto, acabam se deparando com um contexto completamente Manual de capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. São Paulo: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo, 2010. 6 Tradução livre do autor: “These sex slaves are forced to service hundreds, often thousands of men before they are discarded, forming the backbone of one of the most profitable illicit enterprises in the world. Drug trafficking generates greater dollar revenues, but trafficked women are far more profitable. Unlike a drug, a human female does not have to be grown, cultivated, distilled, or packaged. Unlike a drug, a human female can be used by the costumer again and again“ KARA, Siddharth. Sex Trafficking - Inside the Business of Modern Slavery. 1ª ed., New York: Columbia University Press, 2010.p.X. SP - 8379057v1 14 diferente daquele prometido pelos aliciadores. Independentemente das razões e condições que as levam até o exercício da prostituição nesses lugares, os relatos das vítimas têm alguns pontos em comum: são cobradas por despesas com passagem, alimentação, moradia, roupas, artigos de higiene, dentre outros, de maneira que estão sempre em débito com seus exploradores7. Isso porque, o preço a pagar por tais itens está muito acima das possibilidades econômicas das vítimas, obrigando-as sempre a cumprirem jornadas de trabalho exaustivas para conseguirem arcar com as dívidas adquiridas. As vítimas não possuem assistência à saúde, geralmente há incentivo ao consumo ou venda de drogas, vivem na clandestinidade, com seus passaportes retidos e sem possibilidade de fuga, vivendo, muitas vezes, em cárcere. Importante mencionar, ainda, que embora a maioria das vítimas seja do sexo feminino, há também vítimas do sexo masculino, além de vítimas pertencentes a um outro grupo que recentemente passou a ser considerado como vulnerável ao tráfico de pessoas: travestis e transexuais8. O tráfico de pessoas relacionado a esse ultimo grupo também tem como finalidade, em regra, a exploração sexual, sendo certo que a discriminação e o preconceito que sofrem da sociedade são indicados como as principais razões para o ingresso maciço de travestis e transexuais na prostituição. 7 Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Manual de capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. São Paulo: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo, 2010.p.20. 8 Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Manual de capacitação sobre enfrentamento ao tráfico de pessoas. São Paulo: Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria da Justiça do Governo de São Paulo, 2010.p.22. SP - 8379057v1 15 2. Tráfico de Pessoas para fins de exploração sexual no Brasil: Fatores originários, Perfil das vítimas e Principais dados Em geral, o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual tem seu ponto de origem em países ou cidades pobres, pouco desenvolvidas e com baixa perspectiva de vida para seus moradores. Já os locais de destino costumam ser aqueles com aparentes oportunidades de melhoria de condições financeiras, como metrópoles, pólos industriais e cidades turísticas. Conforme ensina MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA9: “As vítimas são aliciadas, normalmente, por pessoas inescrupulosas que ignoram a dignidade ou consideram legítimo privar dela um ser humano, através de oferta de emprego ou promessa de vida melhor. Entretanto, ao chegarem em seu destino, seus documentos e dinheiro são tomados, não há qualquer amparo ou possibilidade de reclamar ajuda, ficando à mercê dos aliciadores e terceiros beneficiados. Esse crime é configurado pelo aliciamento enganoso ou coativo da vítima, com a apropriação da liberdade do traficado, por dívida ou outros meios, sempre com o propósito de exploração, seja ela sexual, laboral ou para retirada de órgãos.” Segundo pesquisas realizadas pela OIT, os principais fatores originários do tráfico de pessoas são a globalização, a pobreza, a ausência de oportunidades de trabalho, a discriminação de gênero, a violência doméstica, a emigração irregular, o turismo sexual, a corrupção de funcionários públicos e as leis deficientes10. No que toca à questão da pobreza, por deixar as pessoas sem meios de sobrevivência diante da ausência de oportunidades de trabalho, acaba por torná-las extremamente vulneráveis ao aliciamento de traficantes. Ainda de acordo com as pesquisas da OIT, há cerca de 2,4 milhões de pessoas no 9 MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.202. Organização Internacional do Trabalho. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Brasília: OIT, 2006.p.57. 10 SP - 8379057v1 16 mundo vítimas do tráfico de pessoas. Desse total, conforme se observa no gráfico 11 a seguir, 43% estão em situação de exploração comercial, 32% na situação de outros tipos de exploração econômica e 25% em situações nas quais ambos os tipos de exploração estão presentes. 50 40 30 20 Exploração sexual comercial Exploração econômica Mista 10 0 Se levarmos em consideração apenas a situação brasileira, estima-se que existam em torno de 70.000 (setenta mil) vítimas brasileiras de tráfico para exploração sexual comercial em outros países. No que toca à quantidade de vítimas de tráfico interno, infelizmente, o país carece de números e pesquisas confiáveis. No entanto, em outubro de 2012, em diagnóstico preliminar sobre o tráfico de pessoas no Brasil elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), foi divulgado que entre os anos de 2005 e 2011, quase 500 (quinhentos) brasileiros foram vítimas do tráfico de pessoas. Desse total, 337 (trezentos e trinta e sete) casos referem-se à exploração sexual e 135 (cento e trinta e cinco) ao trabalho análogo à condição de escravo12. Porém, conforme reconhecido pela própria Secretaria Nacional de Justiça, referidos números ainda estão distantes da realidade brasileira, pois o registro de tráfico de pessoas ainda é deficiente no Brasil, principalmente, porque as vítimas não se apresentam ou não se 11 Fonte: OIT. Uma aliança Global contra o trabalho forçado. Relatório Global do Seguimento da Declaração da OIT sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, 2005. 12 Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/10/16/quase-500-brasileirosforam-vitimas-de-trafico-de-pessoas-em-seis-anos-mostra-diagnostico-do-ministerio-da-justica.htm.> Acesso em: 16.10.2012. SP - 8379057v1 17 reconhecem nessa situação. O levantamento mostra que a maioria dos casos foi registrado nos Estados de Pernambuco, da Bahia e de Mato Grosso do Sul. Segundo o diagnóstico, a maioria das vítimas brasileiras tem como destino os países europeus Holanda, Suíça e Espanha. O Suriname, que funciona como rota para a Holanda, é o país com maior incidência de brasileiros vítimas de tráfico de pessoas, com 133 (cento e trinta e três) casos, seguido da Suíça, com 127 (cento e vinte e sete), Espanha com 104 (cento e quatro) e Holanda com 71 (setenta e um) casos. Quanto ao perfil das vítimas do crime de tráfico de pessoas, DAMÁSIO DE JESUS13 afirma que: “Analisando as esparsas informações existentes sobre o tráfico de mulheres que obtivemos, é possível esboçar um perfil das vítimas. Em geral, são provenientes das camadas mais pauperizadas da população, as mesmas pessoas que podem ser vítimas da exploração sexual. As mulheres, em geral, têm baixo grau de escolarização e passam por dificuldades de ordem financeira. Muitas vezes já estão engajadas no sexo comercial. Mas há relatos de mulheres com formação em nível médio para cima, com trajetória de emprego anterior e, muitas vezes,com expectativa de retorno breve ao Brasil, acabando nas mãos de quadrilhas internacionais.” No mesmo sentido, a Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial (Pestraf)14, realizada em 2002, aponta para o perfil formado basicamente por mulheres e adolescents, afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos, com baixa renda, baixa escolaridade, residentes em áreas periféricas com carência de serviços básicos e bens sociais e com filhos. Quanto ao perfil econômico, nota-se que são inseridas em atividades econômicas informais, mal-remuneradas e com poucas possibilidades de ascensão e melhoria de vida, principalmente nos serviços domésticos e comércio, sendo que muitas já tem experiência com a prostituição. 13 JESUS, Damásio. Tráfico internacional de mulheres e crianças: Brasil: aspectos regionais e nacionais. São Paulo: saraiva, 2003.p.127. 14 Tráfico para fins de exploração sexual.2ed.Brasília: OIT,2006.p.25 SP - 8379057v1 18 Diante do exposto, se verifica que, em regra, a vítima encontra-se fragilizada pela situação de pobreza na qual está inserida, sendo considerada alvo fácil para aliciadores e traficantes que utilizam-se de meios coativos, para transformar as vítimas em um meio de obtenção de altos rendimentos. 3. 3.1. A proteção jurídica brasileira Análise da legislação penal vigente O tipo penal do tráfico internacional de pessoas passou a integrar a legislação brasileira com a entrada em vigor da Lei n.º 11.106/2005, que foi impulsionada pela já mencionada ratificação brasileira do Protocolo de Palermo. Essa lei foi posteriormente alterada pela Lei n.º 12.015/2009 e, a partir de então, o tráfico internacional para fins de exploração sexual passou a ser descrito no artigo 231, do Código Penal, da seguinte forma, in verbis: Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2º A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. SP - 8379057v1 19 § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplicase também multa. Grande parte da doutrina brasileira entende que o bem jurídico tutelado nesse caso seria a moralidade sexual pública. No entanto, o presente trabalho não partilha desse entendimento, pois tutelar a moralidade sexual pública seria violar as garantias constitucionais da liberdade sexual, da não discriminação e do livre exercício laboral15. Dessa forma, para este trabalho, os bens jurídicos protegidos por esse tipo penal seriam a liberdade e, em última instância, a dignidade da pessoa humana16. O elemento subjetivo do tipo penal é o dolo, pois para a configuração do crime de tráfico de pessoas é exigido que o agente tenha a vontade consciente de praticar o delito e a consciência de que a vítima será submetida à exploração sexual no local a que se destina. Importante observar, também, que não se verifica qualquer previsão desse crime na modalidade culposa. Tendo em vista que os verbos nucleares do tipo são promover, intermediar, facilitar, agenciar, aliciar, comprar, transportar, transferir e alojar, se verifica que o crime é formal17, pois basta que se realize a ação descrita pelo verbo, não sendo exigida a efetiva movimentação transnacional da vítima e sua efetiva exploração, sendo certo que o efetivo exercício da exploração sexual da vítima consistte em mero exaurimento do crime. Para outra corrente18, o tráfico de pessoas seria crime material, pois as expressões “venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual” e “vá exercê-la no 15 SALGADO, Daniel de Resende. O bem jurídico tutelado pela criminalização do tráfico internacional de seres humanos. Disponível em: <http://cdij.pgr.mpf.gov.br/boletins-eletronicos/alertabibliografico/alerta67/sumarios/membros/M04.pdf>. Acesso em: 03.09.2012. 16 NUNES, Lilian Rose Lemos Soares. Tráfico de Seres Humanos. Revista do Curso de Direito. Brasília. V.3.n.02.p.125-131.jun./dez.2005. 17 Nesse sentido: CAPEZ, Fernando. Código Penal Comentado. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.p.696.. Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 6a ed. São Paulo: Ed. Revista dos 18 SP - 8379057v1 20 estrangeiro” pressuporiam a necessidade do efetivo exercício da prostituição ou de outra exploração sexual. Embora possa existir resistência por pequena parte da doutrina, o entendimento majoritário é de que seria possível a realização do crime na forma tentada, uma vez que é perfeitamente possível fracionar o iter criminis. Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo e passivo desse crime, pois é um crime comum. A finalidade do crime é a condução da pessoa para a prostituição ou outra forma de exploração sexual que pode consistir em turismo sexual, prostituição infantil, pornografia infantil, prostituição forçada, escravidão sexual, casamento forçado, dentre outros. Conforme previsto parágrafo 2º, a pena será aumentada da metade quando: (i) a vítima for menor de 18 anos; (ii) a vítima não tiver o necessário discernimento para a prática do ato, (iii) o sujeito ativo for da pessoa traficada ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se tiver assumido, de alguma forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou (iv) na hipótese de emprego de violência, grave ameaça ou fraude. Ademais, nos termos do parágrafo 3º, será aplicada multa cumulativamente no caso de o crime ser cometido com a finalidade de obtenção de vantagem econômica. A ação penal é pública incondicionada, de iniciativa exclusiva do Ministério Público Federal, já que os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou Tribunais, 2009.p.850-851; SP - 8379057v1 21 reciprocamente, o juízo competente para julgamento do processo criminal é federal (artigo 109, V19), da Constituição Federal20. O tráfico interno para fins de exploração sexual, por sua vez, está tipificado no artigo 231-A, do Código Penal. É uma variação local do crime do artigo 231, no qual são captadas pessoas dentro do território brasileiro para irem para outra parte desse mesmo território com o objetivo de exercer prostituição ou outra forma de exploração sexual. Confira-se in verbis: Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos § 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2o A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplicase também multa. Observando-se a pena cominada de 02 a 06 anos, pode-se afirmar que é considerado menos grave que o tráfico internacional de pessoas. Suas características, à exceção da territorialidade, seguem a mesma linha do crime de tráfico internacional de pessoas: é crime doloso, sem a modalidade culposa, que admite tentativa, formal e comum. 19 Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar: (...) V - os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente; 20 BARROS, Marco Antonio. Tráfico de pessoas para fim de exploração sexual e a adoção internacional fraudulenta. Disponível em: <http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/FDir/2010/Artigos/marco_Antonio_de_Barros_OK.pdf.> Acesso em: 10.10.2012. SP - 8379057v1 22 Por fim, verifica-se que o Código Penal não exige a utilização de meios coativos na obtenção do consentimento da vítima para a configuração do crime de tráfico de pessoas, diferentemente do Protocolo de Palermo que, por sua vez, faz de forma expressa referida exigência. Nesse sentido, verifica-se um ponto da legislação penal vigente que merece ser complementado a fim de que seja adequada ao disposto no Protocolo de Palermo. 4. O necessário aperfeiçoamento da legislação brasileira 4.1. A ausência de tipificação das demais modalidades de tráfico de pessoas pela legislação penal brasileira A legislação brasileira não está de plena conformidade com a definição do art. 3º do Protocolo de Palermo, pois em que pese os artigos 231 e 231-A, do Código Penal, tipificarem os crimes de tráfico internacional de pessoas e tráfico interno de pessoas com algumas falhas que já foram mencionadas no capítulo anterior, o conceito de tráfico de pessoas adotado pelos tipos penais limita-se ao tráfico para fins de exploração sexual, havendo uma lacuna quanto às demais modalidades do mencionado crime. É esse o entendimento de ANÁLIA BELISA RIBEIRO21: “Os Artigos Antitráfico 231 e 231-A do Código Penal não definem o tráfico de seres humanos como nenhuma outra forma de exploração mencionada no Protocolo Antitráfico Humano (Protocolo de Palermo), como o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravidão, a servidão ou a remoção órgãos ou até qualquer outra de exploração sexual. Algumas dessas práticas são, no entanto, consideradas crimes, parcialmente ou completamente, por outros artigos do Código Penal, ou leis específicas.” Nessa esteira, é evidente que o ordenamento jurídico brasileiro prescinde de dispositivo que tipifique, de forma específica, o tráfico de pessoas para fins de exploração de trabalho em condições análogas à de escravo e para fins de remoção de órgãos, sendo certo 21 MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.73. SP - 8379057v1 23 que alterações são extremamente necessárias, principalmente, em razão de o artigo 5º22 do Protocolo de Palermo determinar que cada Estado signatário deverá adotar as medidas legislativas e outras que considerar necessárias de forma a estabelecer como infrações penais todos os atos descritos no artigo 3º do mencionado Protocolo. Além disso, o supramencionado Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas estabelece como sua Prioridade n.º 6, o aperfeiçoamento da legislação brasileira para a repressão ao tráfico de pessoas, conforme o modelo conceitual esatabelecido no Protocolo de Palermo. No entanto, isso não significa que, quando identificada, as práticas fiquem totalmente impunes: o Código Penal prevê, em seu artigo 14923, o crime de redução à condição análoga à de escravo; no artigo 20324, a violação de leis trabalhistas; no artigo 20625 22 Art. 5º, §2º, do Protocolo de Palermo. Cada Estado Parte adotará igualmente as medidas legislativas e outras que considere necessárias para estabelecer como infrações penais: a) Sem prejuízo dos conceitos fundamentais do seu sistema jurídico, a tentativa de cometer uma infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo; b) A participação como cúmplice numa infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo; e c) Organizar a prática de uma infração estabelecida em conformidade com o parágrafo 1 do presente Artigo ou dar instruções a outras pessoas para que a pratiquem”. 23 Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I - contra criança ou adolescente; II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 24 Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho: Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Na mesma pena incorre quem: I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida; II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. SP - 8379057v1 24 o recrutamento fraudulento de trabalhadores para o fim de emigração; e no artigo 207 26 o aliciamento e recrutamento fraudulento de trabalhadores para levá-los de uma para outra localidade do território nacional. Quanto ao tráfico de pessoas praticado com vistas à remoção de órgãos, há alguma disciplinação da matéria na Lei de Remoção de Órgãos (Lei n° 9.434/ 1997), cujo artigo 1527 versa sobre a comercialização de órgãos e partes do corpo humano. Ademais, o artigo 23928, do Estatuto da Criança e do Adolescente, rege a questão do envio de crianças ou adolescentes ao exterior sem observância das formalidades legais ou com o objetivo de obter lucro. Sobre os dispositivos legais mencionados acima e as omissões da legislação brasileira, a mesma autora ANÁLIA BELISA RIBEIRO29 leciona: 25 Art. 206 - Recrutar trabalhadores, mediante fraude, com o fim de levá-los para território estrangeiro. (Redação dada pela Lei nº 8.683, de 1993) Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos e multa 26 Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena - detenção de um a três anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. 27 Art. 15. Comprar ou vender tecidos, órgãos ou partes do corpo humano: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 200 a 360 dias-multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem promove, intermedeia, facilita ou aufere qualquer vantagem com a transação. 28 Art. 239. Promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro: Pena - reclusão de quatro a seis anos, e multa. Parágrafo único. Se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude: Pena - reclusão, de 6 (seis) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. 29 MARZAGÃO JÚNIOR, Laerte (coord.). Tráfico de Pessoas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.p.74. SP - 8379057v1 25 “Em contraste com o Protocolo Antitráfico Humano (Protocolo de Palermo), nenhuma dessas várias ofensas mencionadas acima entende a exploração como elemento chave constitutivo do crime. Consequentemente, o seu escopo prático para casos de tráfico de pessoas será limitado. Além disso, nenhuma dessas ofensas é considerada tráfico de pessoas, significando que as pessoas definidas como vítimas do tráfico humano sob a lei internacional com a qual o Brasil está comprometido poderão não receber a proteção e assistência a que têm direito.” Nesse sentido, visando auxiliar os Estados signatários do Protocolo de Palermo no preenchimento das lacunas legislativas relacionadas ao crime de tráfico de pessoas, no ano de 2009, o Escritório sobre Drogas e Crimes da Organização das Nações Unidas (UNODC) publicou o “Modelo de Legislação contra o Tráfico de Pessoas”30, o qual contém todas as provisões que os Estados signatários do Protocolo de Palermo devem introduzir em suas legislações internas para a adequação de suas leis conforme determina o referido Protocolo. Dessa forma, por não considerarem a utilização de meios coativos na obtenção do consentimento, a finalidade de exploração e a movimentação pelo território como elementos essenciais do fato típico, os artigos penais supramencionados não permitem que seja sancionada com a proporcional gravidade a conduta de quem pratica tráfico de pessoas para fins de trabalho em condições análogas à de escravo e para fins de remoção de órgãos, nem que as vítimas sejam protegidas com todos os direitos que lhe são assegurados pela lei internacional. Em razão disso, é que se mostra necessário o aperfeiçoamento e o preenchimentos das lacunas existentes na legislação penal brasileira. 4.2. Do Anteprojeto do Novo Código Penal Visando o aperfeiçoamento da legislação penal brasileira, uma Comissão Especial de Juristas presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Gilson Dipp, elaborou durante sete meses o texto do anteprojeto do novo Código Penal. Durante este período, foram promovidas quatro audiências públicas, em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e dois seminários, em Aracaju e Cuiabá. 30 Tradução livre do autor: UNITED NATIONS, Office on Drugs and Crime. Model Law against Trafficking in Persons, Vienna, Austria, 2009. SP - 8379057v1 26 O anteprojeto foi entregue ao Senado Federal em 27 de junho de 2012 e, após, foi transformado no Projeto de Lei do Senado Federal de n.º 236/2012. Em seguida, foi enviado à Comissão de Constituição e Justiça, que também já realizou duas audiências públicas sobre o tema. O anteprojeto busca substituir o atual Código Penal, que foi elaborado em 1940, com o objetivo de abordar temas novos e atuais como, por exemplo, os novos crimes contra os direitos humanos, cibernéticos, eutanásia e aborto. Atualmente, o projeto encontra-se em fase de recebimento de emendas31. No presente capítulo, será demonstrada e analisada apenas a parte do anteprojeto do novo Código Penal que visa a alteração e aprimoramento do crime de tráfico de pessoas, cujas justificativas tiveram por base a necessidade de adequação do ordenamento jurídico brasileiro para que fosse tipificado criminalmente o tráfico de pessoas em todas as suas modalidades nos exatos termos previstos pelo Protocolo de Palermo. No anteprojeto, o tráfico de pessoas foi realocado para os crimes contra os direitos humanos, pois além de proteger a dignidade sexual, também passa a ser contra a extração de órgãos, trabalho em condição análoga à de escravo e trabalho forçado. Nesse sentido é a redação do artigo 469, do anteprojeto do novo Código Penal, que dispõe sobre o crime de tráfico de pessoas: Art. 469. Promover a entrada ou saída de pessoa do território nacional, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso de quem não tenha condições de consentir por si mesmo, com a finalidade de submetê-la a qualquer forma de exploração sexual, ao exercício de trabalho forçado ou a qualquer trabalho em condições análogas às de escravo: Pena – prisão, de quatro a dez anos. § 1º Se o tráfico for interno ao País, promovendo-se ou facilitando o transporte da pessoa de um local para outro: Pena – prisão, de três a oito anos. 31 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404>. Acesso em: 19.09.2012 SP - 8379057v1 27 § 2º Se a finalidade do tráfico internacional ou interno for promover a remoção de órgão, tecido ou partes do corpo da pessoa: Pena – prisão, de seis a doze anos. § 3º Incide nas penas previstas no caput e parágrafos deste artigo quem agencia, alicia, recruta, transporta ou aloja pessoa para alguma das finalidades neles descritas ou financia a conduta de terceiros. § 4º As penas de todas as figuras deste artigo serão aumentadas de um sexto até dois terços: I – se o crime for praticado com prevalecimento de relações de autoridade, parentesco, domésticas, de coabitação ou hospitalidade; ou II – se a vítima for criança ou adolescente, pessoa com deficiência, idoso, enfermo ou gestante. § 5º As penas deste artigo serão aplicadas sem prejuízo das sanções relativas às lesões corporais, sequestro, cárcere privado ou morte. Verifica-se da redação do artigo supramencionado que a redação do caput é mais específica e abrangente em relação àquela do artigo 231, do atual Código Penal, pois: (i) adiciona a conduta de promover a saída de pessoa do território nacional, nas condições e com as finalidades previstas legalmente; (ii) inclui, como elementar do tipo comum, a prática da conduta mediante a utilização de meios coativos: ameaça, violência, coação, fraude ou abuso de quem não tenha condições de consentir por si mesmo; e (iii) deixa de limitar a descrição típica unicamente com finalidade de prostituição ou qualquer outra forma exploração sexual, para acrescer o exercício de trabalho forçado ou qualquer trabalho em condições análogas às de escravo. Quanto ao parágrafo 1º, sua regra equipara-se àquela descrita no art. 231- A, do atual Código Penal de 1940 que, por sua vez, versa sobre o tráfico interno de pessoas. No entanto, a pena para esse crime no anteprojeto é maior, uma vez que passa a ser de prisão, de três a oito anos, em razão da grande recorrência que tem sido verificada na prática de tal delito. O parágrafo 2º é extremamente inovador uma vez que passa a prever o tráfico de pessoas com a finalidade de promover a remoção de órgão, tecido ou partes do corpo da SP - 8379057v1 28 pessoa traficada, nacional ou internacionalmente, com limite de pena ainda maior que as demais modalidades de tráfico de pessoas. Já o parágrafo 3º em nada inova, pois segue na mesma linha dos dispositivos 231 e 231-A, do atual Código Penal, que, em seus respectivos parágrafos primeiros, assim dispõem: “Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la”. O parágrafo 4º, inciso I, por sua vez, prevê causa de aumento no mesmo escopo daquela elencada no inciso III, do § 2o, dos artigos 231 e 231-A, do atual Código Penal, agravando a pena nos casos em que o sujeito ativo prevalecer-se de relações de autoridade, parentesco, domésticas, de coabitação ou hospitalidade. A causa de aumento de pena prevista no inciso II, do mesmo parágrafo 4º, passa a ser mais abrangente daquela que consta do inciso II, dos artigos 231 e 231-A, do Código Penal de 1940. O parágrafo 5º propõe uma inovação fundamental para a maior repressão aos agentes do delito de tráfico de pessoas, na medida em que foi prevista a possibilidade de concurso de crimes, com o objetivo de permitir a punição do agente tanto pela prática do delito-fim (tráfico de pessoas), quanto por eventuais delitos-meio (lesões corporais, sequestro, cárcere privado), bem como se determinado resultado for produzido ainda que a título culposo. Outra inovação encontrada no texto do anteprojeto é a inclusão do crime de tráfico de pessoas no rol de crime hediondos, em razão de sua grave violação aos direitos humanos. Em razão da referida inclusão no rol de crimes hediondos, o crime de tráfico de pessoas passa a ser insuscetível de fiança, anistia e graça. Além disso, o agente do crime de tráfico de pessoas deverá iniciar o cumprimento de sua pena em regime fechado. Confira-se o texto do artigo 56, do anteprojeto do novo Código Penal: SP - 8379057v1 29 Art. 56. São considerados hediondos os seguintes crimes, consumados ou tentados: (…) XV – tráfico de pessoas; (…) § 1º A pena por crime hediondo será cumprida inicialmente em regime fechado. § 2º Os crimes hediondos são insuscetíveis de fiança, anistia e graça. Consiste, portanto, em grande avanço para a legislação penal brasileira o texto do anteprojeto do Novo Código Penal no que diz respeito ao crime de tráfico de pessoas, uma vez que está em conformidade com o que dispõe o Protocolo de Palermo. Porém, ainda resta uma longa tramitação a ser percorrida, razão pela qual ainda não há garantia de que esse dispositivo será, de fato, aprovado e integrará o Novo Código Penal brasileiro. Conclusão O presente trabalho apresentou as modalidades existentes de tráfico de pessoas bem como desenvolveu crítica às diversas falhas da legislação brasileira em vigor que, sem dúvida, são umas das grandes responsáveis pela crescente incidência do crime de tráfico de pessoas no país. Foi demonstrado que a ausência de tipificação das diferentes finalidades ligadas a esse crime além da exploração sexual, como o trabalho em condições análogas à de escravo e a extração de órgãos, aumentam a impunidade dos agentes desse crime. Pelo estudo apresentado, diante dos altos índices de lucratividade, invisibilidade, recorrência e graves violações aos direitos humanos causadas pelo crime de tráfico de pessoas, se verifica a necessidade de maior atuação e comprometimento do Poder Público e dos operadores do Direito na luta pelo aprimoramento da legislação brasileira. SP - 8379057v1 30 Bibliografia Obras publicadas: ARRUDA, Samuel Miranda. Notas Acerca do Crime de Tráfico de Órgãos. Pernambuco: Revista Eletrônica da Procuradoria da República de Pernambuco, 2004; BARBOSA, Cíntia Yara Silva. Tráfico Internacional de Pessoas. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2010. DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. DUARTE, Jorge Dias. Tráfico e exploração sexual de mulheres. Lisboa: Revista do Ministério Público, v.22.p.61-69. DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. GOMES, Luiz Flavio. Reforma penal dos crimes sexuais. 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Direção: David Cronenberg. Playarte Pictures. 2007. (100 min.) Tráfico Humano. Direção: Christian Duguay. Alpha Filmes, 2005. (176 min.) Tráfico de Bebês. Direção: Peter Svatek. California Home Video. 2004. (89 min.) SP - 8379057v1