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ANTES DA LEI, A NORMA NO CONTEXTO DA GUERRA,
E O SACRIFÍCIO DE VIRGENS NA GRÉCIA ANTIGA
Before the law, the regulation in the context of war and the virgin’s sacrifice in Ancient Greece
Paulina Nólibos*
Resumo: O presente artigo é resultado de uma investigação sobre a função social da morte
sacrificial de jovens, presente na tragédia e na iconografia grega do período arcaico. O sacrifício
humano surge enquanto problema histórico, e percebe-se uma distinção entre jovens rapazes ou
moças, apontando para uma discussão sobre a questão de gênero no sacrifício e suas fundamentações. Entre Micenas e o Oriente imaginário, no ciclo da Guerra de Troia, o sangue feminino conecta o Mediterrâneo. Ifigênia e Polixena, duas personagens do mito, representam o problema da
morte das donzelas, e estão presentes na abertura e no fechamento da guerra. Apontamos suas
presenças ora como signos de conotação erótica, numa relações entre casamento e morte, ora
como parte de uma estratégia reguladora dos costumes e normas sociais antes das leis escritas
serem produzidas e configuradas como padrão civilizatório.
Palavras-chave: Arte. Mito. Morte. Justiça. Norma.
Abstract: The present article is part of an inquiry about the social function of sacrificial death of
young people, in tragedy and greek iconography of the archaic period. The human sacrifice apears
as a historic problem, and we perceive a distinction between young male and female, pointing a
gender issue in sacrifice and its meanings. Between Mykenae and the imaginary orient, in the cicle
of Trojan war, the feminine blood connects the Mediterranean sea. Iphigenia and Polixene, two
mythical characters, show the women’s death problem, and they are present in the beginning
and in the end of the war. We point out their presences as signs of erotic meaning, in a relation
between marriage and death, or as part of rules and social norms strategies of social regulation,
before written laws had been produced and configurated as civilized pattern.
Keywords: Art. Myth. Death. Justice. Social rule.
Na Grécia antiga, muitas práticas sociais que nos parecem estranhas eram
observadas como parte de um universo de normas sociais reconhecidas. O problema é não apenas oferecer um contexto compreensivo dessas práticas arcaicas, mas valorizá-las como parte de um discurso acerca dos costumes e significados existentes muito antes que leis escritas tivessem concedido o direito
de praticá-las ou as tivessem proibido definitivamente.
*
Doutora em História (UFRGS), graduada em Filosofia e professora na Universidade Luterana
do Brasil.
Revista da Faculdade de Direito da FMP – 2013, n. 8, p. 108-118
Antes da lei, a norma no contexto da guerra, e o sacrifício de virgens na Grécia antiga
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Nossas fontes mais antigas para o assunto não são casos verídicos, mas
obras de caráter literário e visual, as tragédias e os vasos de pinturas negras, produzidos na região da Ática, mais especificamente em Atenas, e nosso limite
cronológico se estabelece entre os séculos VI (para o documento visual) e as
tragédias de Eurípides, Ifigênia em Áulis (representada após a morte do autor,
em 406 a.C.) e Hécuba (em torno de 424 a.C.).
O problema que ora nos ocupa é o do sacrifício de jovens do sexo feminino por motivos de ordem ritual: seu sangue derramado outorga certos poderes ou soluciona certas questões entre deuses e homens ou entre homens e
homens; simetria e assimetria assim se constituem. Nem todo o sacrifício humano descrito nas narrativas literárias é de mulheres: no mito de Tebas, conforme Eurípides nas Fenícias, o filho de Creonte, Meneceu, é oferecido para que
a cidade seja vitoriosa contra os chefes inimigos, mas a situação que nos ocupa
e que se refere a Troia indica duas personagens femininas, em idade núbil e
que, de alguma maneira, identificam-se no intrincado tecido do mito.
Evidências de existência real de sacrifícios humanos foram encontradas
em Creta e o corpo encontrado num santuário era de um rapaz, mas isso ainda
no segundo milênio antes de Cristo; em Esparta, Licurgo substitui o antigo sacrifício humano pela aspersão do altar quando da flagelação dos jovens (Pausânias, III, 16, 10-17); Tucídides faz menção a um sacrifício humano antes da
Guerra do Peloponeso, mas já como gesto anômalo. Entre estes momentos,
um milênio da história grega havia transcorrido e as narrativas de Ifigênia e
Polixena estariam inscritas entre estes exíguos testemunhos históricos da presença de tal estrutura que é ao mesmo tempo política e religiosa. Elas, extraídas do mito, marcam o limite do início e do final da Guerra de Troia.
Ifigênia, segundo o verbete do Dicionário mítico-etimológico, de J. S.
Brandão, é um composto de ís, força, vigor, sob a forma instrumental îphi,
com força, vigorosamente, e da raiz gend que aparece no tema em s, guénos,
raça, família, notadamente a grande família patriarcal, donde Ifigênia é “a nascida de uma raça forte, de uma família patriarcal” (1991, p. 599). Ifianassa é a
forma mais antiga do nome da filha de Agamemnon e Clitemnestra conforme
a encontramos na Ilíada (IX, 145,287), e a narrativa do seu sacrifício é matéria
corrente entre os artistas do século V.
Em parte por vingança pela sua morte, Clitemnestra justifica a morte do
rei, em Agamemnon de Ésquilo, mas este mito é entrecortado por variantes e
problemas, e Eurípides vai oferecer em Ifigênia em Táuride uma variação radical, pois a filha de Agamemnon nesta tragédia teria sido preservada a serviço
da deusa como sacerdotisa e sacrificadora de estrangeiros e termina por retornar
à Grécia. Segundo a tradição, a tragédia perdida de Sófocles, Crises, também
se refere à mesma variante, dando sequência à narração da fuga de Ifigênia,
Orestes e Pílades da Táurida, perseguidos pelo rei Toas e salvos por Crises,
neto do Crises da Ilíada, filho de Agamemnon com sua filha Criseide, e, portanto, meio-irmão de Ifigênia e Orestes.
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Mas em Ifigênia em Áulis o que temos como conflito central da peça é a
tarefa de um pai que deve sacrificar a filha primogênita, pois, tendo desobedecido a Ártemis e caçado uma corça em seus bosques, deve substituir o animal
pela morte de sua própria filha. Se isso não fosse feito, a calmaria que reinava
em Áulis não permitiria a partida dos navios em direção a Troia. Pressionado pelos homens, acaba cedendo e manda trazer Ifigênia sob o pretexto de casamento
com Aquiles. Eurípides explora o conflito entre a posição da mãe Clitemnestra
e a do pai Agamemnon, que tem atrás de si todo o exército e que pretende com
seu gesto um efeito de substituição por uma morte já acontecida e causada por
ele. É uma negociação entre homens e deuses que tem lugar em Áulis e, segundo Eurípides, Agamemnon, enquanto responsável, deve levar até o final a
substituição no sacrifício.
Examinemos a morte de Ifigênia sob o cutelo do sacrificador, morte paradigmática
que nenhum dos três grandes trágicos deixou de evocar, e mais de uma vez. A
morte de Ifigênia: um sacrifício, mas cuja vítima é uma moça, não um animal.
Simples detalhe? Poder-se-ia crer que sim, observando que, para dizer a morte
de Ifigênia, a tragédia recorre de bom grado aos verbos sphazo e thyo, mormalmente usados para significar o degolamento e o ato de sacrifício. Mas há textos
que nos levam a ver nesse detalhe uma monstruosidade e nos fazem pensar
essa morte sob a categoria do assassínio, phonos (LORAUX, 1995, p. 65).
Loraux, ao discutir a morte das personagens femininas na tragédia, em
Maneiras trágicas de matar uma mulher, refere-se ao uso diferenciador entre
verbos que significam de um lado um gesto aceito pela comunidade como sagrado, partícipe das regras religiosas que este grupo de pessoas abraça, e, de
outro, como phonos, que é como a mãe se refere ao ato de matar a sua primogênita, o que implicaria um gesto execrável, impensado, já que como a própria
virgem menciona em Ifigênia em Áulis, eles são contrapostos aos “bárbaros”,
no caso os asiáticos troianos. Como culturalmente superiores, o sacrifício humano
é suportável, embora anômalo, mas o assassinato mereceria punição.
Na sequência do texto, Loraux relaciona o sacrifício das virgens nas tragédias ao de animais, amplamente executado em momentos rituais na cultura
antiga, e reflete deste modo sobre as donzelas destinadas à morte. Cito-a novamente:
Sacrificar uma virgem: numa palavra, valer-se do jogo teatral para pensar o impensável, plantar-se no cúmulo da alienação para interrogar ali a norma a partir
do desvio – direi eu: sob a proteção de um desvio que se mostra muito evidente
como tal. Atenta em mascarar o assassínio oculto no sacrifício, a prática religiosa
das cidades esforçava-se para que o degolamento do animal fosse submetido a
uma encenação rígida. Pulverizando essas piedosas precauções, o gênero trágico,
à escuta do mito, entrega as moças ao cutelo do sacrificador. E o impensável
torna-se narração (pois nada dessas mortes virginais será posto diante dos olhos,
tudo será confiado à sugestão das palavras): uma narração boa para ser ouvida
porque o teatro é ficção (LORAUX, 1995, p. 65-66).
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A autora insiste quanto ao caráter eminentemente fantasioso dessas cenas e fala do “jogo teatral pensando o impensável”, mas seria realmente tão estranho às práticas sociais esta relação da morte das jovens enquanto ritual?
As relações de Ártemis com o sacrifício e com a perda da virgindade das moças
é um tema bastante recorrente e J. P. Vernant nos oferece em vários momentos
da sua obra estudos sobre a questão. No artigo Ártemis e as Máscaras, Vernant
aborda o “sacrifício humano”. Cito-o:
O caráter estrangeiro de Ártemis culmina na sua exigência de sangue humano.
Examinamos, portanto, como é que este tema se encontrava modulado: primeiro
na Ática, onde se associa à lenda de Ifigênia, virgem imolada à deusa que reivindica como coisa sua “o mais belo produto do ano” (Ifigênia em Táuride, 20-21).
Sem nos demorarmos excessivamente pelo vasto conjunto dos ritos pré-nupciais
e pelo lugar que eles conferem ao passamento, antes das núpcias, de jovens, de
rapazes e moças associadas a Apolo e a Ártemis, recordamos a homologia, fortemente sublinhada pelos antigos (cf. Artemidoro, Oneirocrítica, II, 49 e 65) entre
casamento e morte (VERNANT, 1991, p. 154).
Essa passagem de Vernant nos leva a outro problema subjacente ao mito
de Ifigênia e que depois irá reaparecer no de Polixena: a relação do sacrifício
com o casamento e sua simetria quanto aos rituais que configuram a ambos.
Aquiles é o noivo em ambas as narrativas. Quando Ifigênia é trazida pela
mãe, simbolicamente no momento de ruptura com o estado de párthenos, a jovem é dedicada à deusa e morre da mesma maneira que um animal, mas
como que consumando um casamento em diversos níveis do rito, entregue
pelas mãos do pai, num momento solene de reunião dos membros do génos,
vestida e enfeitada com coroa de flores, depois de um banho lustral. Mas sua
união não se efetua no mundo dos vivos. Diz Loraux:
Casamento no Hades, união com Hades: no âmago do sacrifício ou da execução,
o destino trágico das párthenoi inscreve-se no fundo dessa tensão, e como se
toda virgem devesse inelutavelmente realizar-se como esposa, não existe aparentemente terceiro termo para essa alternativa entre uma versão entre uma versão “ fraca” e uma versão “forte” da morte como casamento. Ifigênia, vinda a Áulis
para casar com o melhor dos aqueus, verifica que afinal seu esposo é “Hades e
não Aquiles”. Mas, com Ifigênia, começa um percurso através das figuras mais
secretas, próprias para enunciarem a equação morl das núpcias e do degolamento. Um lamento de Agamemnon, suspirando em vão a propósito do destino
de sua filha, prenderá especialmente a nossa atenção, pois o que ele exprime
é talvez mais que uma evocação dos esponsais infernais de Ifigênia. Quando o
rei brada ”-Quanto à desventurada virgem, que digo, virgem (párthenos)? Hades,
segundo parece, casar-se-á com ela dentro de pouco tempo” (Ifigênia em Áulis,
460-461), deve-se ouvir nessa exclamação uma simples variação em torno das
núpcias de Hades/ Ou deve-se dar sentido à reticência de Agamemnon e entender que a virgem perde sua virgindade no sacrifício? (LORAUX, 1995, p. 74-75).
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Na personagem de Polixena, a filha caçula de Príamo, temos um exuberante exemplo da transformação do mito efetuada ao longo dos séculos de
cultura oral e corroborada por Eurípides. Ela aparece em poucas cenas, e sua
presença está também estreitamente ligada a Aquiles. Os vasos áticos irão
salientar o momento do encontro de ambos, numa fonte, quando Troilo, seu irmão, é morto pelo herói grego. Nas tragédias, aparece em Hécabe, de 424
a.C. no momento da sua morte e é citada em As Troianas, de 415 a.C. por
duas vezes, fazendo-se menção a este mesmo episódio: seu sacrifício sobre
o túmulo de Aquiles, no último momento da Guerra de Troia. Entre esses momentos, a tradição vai devotar algumas palavras sobre sua relação com o herói,
no que poder-se-ia considerar um golpe de sorte para os troianos, pois através
dela Aquiles pôde ser morto.
Segundo o Dicionário mítico-etimológico, de J. S. Brandão, Polixena é um
composto de polýs, muito, numeroso, e de ksénê, feminino de ksénôs, hóspede, hospitaleiro, estrangeiro, de onde Polixena seria a “muito hospitaleira”.
Sua presença não é mencionada em Homero e nos Cantos Cíprios; ainda conforme o autor acima citado, ela é ferida mortalmente por Ulisses e Diomedes
na tomada e incêndio de Ílion. O filho de Aquiles, Neoptólemo, a teria sepultado condignamente (BRANDÃO, 1991, v. 2, p. 311).
Segundo o LIMC, a trajetória do mito da morte de Polixena segue com
a Ilioupersis de Arctino, onde são “os gregos” que a sacrificam. Desde Estesícoro e Ibicus, é Neoptólemo quem aparece como executor. Eurípides, portanto,
não é o primeiro a dar-lhe esta morte na literatura e numa ânfora do período
arcaico encontrada em solo etrusco, mas considerada por H. A. Shapiro em
Painting, politics and genealogy: Peisistratos and the Neleids de procedência
ática, pintada em figuras negras, temos esta cena num dos lados, ocupando
toda a parte central do vaso: Polixena sendo degolada pelo filho de Aquiles
como oferenda aos manes do morto. Eurípides em geral recebe os créditos
por esta inovação do mito da jovem pela permanência de seus textos, mas os
pintores e poetas já a conheciam e se utilizavam dessa versão há pelo menos
um século antes das tragédias terem-na representado.
Em Hécabe (Hécuba, conforme tradução brasileira), lidamos com uma
cena sinistra logo de início: o prólogo é pronunciado por um cadáver, eidolon de
Polidoro, o filho caçula dos priamidas, assassinado pelo hóspede Poliméstor nas
costas da Trácia e que deixado insepulto aparece em sonhos à mãe avisando-a da sua morte já ocorrida e da de sua irmã por acontecer. Simetricamente,
temos os desejos de dois fantasmas por atender: de um lado, Aquiles morto
exige ser honrado, enquanto Polidoro, ser enterrado. E para atender a ambos os
mortos, começamos pelo sacrifício da donzela, que se apresenta como o prêmio de Aquiles. Esta peça detalha com minúcia os passos da jovem troiana até
sua caída sobre o túmulo, e podemos acompanhar passo a passo a construção
euripidiana da figura da donzela sacrificada que, como Ifigênia, consente em ser
morta pelo cutelo do degolador.
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Nos versos 35-44 o fantasma de Polidoro fala do outro fantasma, Aquiles,
que, “tendo aparecido sobre o túmulo” (v. 37), “pede para ter a minha irmã,
Polixena, no túmulo, como sua própria oferenda de sangue e honraria” (v. 4041). Na sequência destes versos percebemos outra semelhança com a narrativa de Ifigênia: os ventos, ausentes, não permitem a partida dos aqueos. Ora,
em Ifigênia em Áulis era Ártemis, uma deusa filha de Zeus, que tinha controle
sobre os ventos, mas em Hécabe é o próprio Aquiles, com poderes nunca mencionados em vida, mas que aparecem neste momento depois da morte e que
provavelmente fazem eco ao culto que se desenvolve em torno da figura dos
heróis míticos.
Nos versos 35-36, “todos os aqueos, mesmo tendo suas naus, plácidos
estão sentados nas praias desta terra trácia” e nos 38-39, “Aquiles, contém todo
o exército helênico; embora eles dirijam para casa a frota marítima”, fica claro
que é o poder do morto que prende os companheiros ansiosos por partir e que
só depois da oferenda desejada é que estarão livres para tal. Mas, segundo J.
Gregory, “o último comentário acerca do sacrifício de Polixena é que ele é sem
efeito. O ritual pretendia aplacar a sombra de Aquiles, num certo sentido era esperado solucionar a desordem cósmica que a ausência dos ventos significava.
Mas a morte de Polixena não fez com que os ventos reiniciassem” (1997, p. 98).
Segundo estes versos (898-901), Agamemnon dá a Hécabe ainda o tempo para a vingança de Poliméstor, pois diz ele: “se para o exército houvesse
tempo bom, não poderia te dar esta graça; mas agora, como o deus não envia
ventos favoráveis, é necessário, olhando plácido, aguardar a viagem”, versos
que sugerem que a crise está além do problema de Aquiles. Apenas ao final
da peça, depois de todos os ritos fúnebres concedidos é que os ventos recomeçam a soprar garantindo aos aqueos a partida esperada.
Embora no prólogo Polidoro diga que Aquiles pediu para ter Polixena, o
primeiro coro, ao reproduzir as frases do morto recentemente surgido sobre
o túmulo, nos diz que ele pedira simplesmente para ser honrado: “– Como,
dânaos, o meu túmulo sem honraria deixando partis?” (v. 113-115), ambiguidade que permanece sem solução, mas que ganha em eloquência quando
pensamos nas relações entre casamento e sacrifício. A discussão acerca da
morte de Polixena parece ficar entre os membros do exército e, neste sentido,
é Odisseu quem dá a última palavra, contrariando a vontade de Agamemnon,
que não é favorável à morte da jovem, sendo acusado pelos filhos de Teseu
de protegê-la em função da sua união com Cassandra.
Já em Quinto de Esmirna, tardio narrador épico da queda de Troia, é a
versão da demanda de Aquiles que se impõe no Canto XIV das Posthoméricas.
É através de um sonho e não de uma aparição que Aquiles faz sua exigência,
e Neoptólemo é quem o vê. Ali diz Aquiles ao filho adormecido:
Comunica aos argivos, sobretudo ao atrida Agamemnon que [...] conduzam agora
a minha tumba, segundo meu desejo, Polixena de belos peplos, tomada do botim
de Príamo para rapidamente imolá-la, pois estou muito enojado com eles, ainda
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mais do que com a questão de Briseide e, senão, desencadearei sobre eles uma
tempestade depois da outra, [...] até que derramem para mim libações [...]. A ela,
a donzela, se quiserem, depois de tirar-lhe a vida, que a sepultem longe, ao que
de modo algum me oponho (v. 210-223).
Na continuação deste texto Polixena é arrastada, mas, sem demonstrar
aquiescência, chora e se lamenta ao ser arrancada da mãe lançando grandes
gritos. Não vemos aí um dos elementos insistentemente reafirmados como necessários ao sacrifício, qual seja, o assentimento da vítima, plenamente desenvolvido no texto euripidiano.
Na tragédia, Polixena, logo após saber da notícia através da mãe, discorre sobre seu futuro, lamenta Hécabe, e afirma: “mas, para mim, morrer ocorreu ser a melhor fortuna” (v. 215-216). Continua ela dizendo: “afasto dos meus
olhos livres este brilho, junto de Hades pondo meu corpo” (v. 367-368) e, mais,
“morrerei como uma escrava, sendo de um pai livre, sem noivo, sem um himeneu como eu devia ter obtido” (v. 420, 422).
Se por um lado ela é dada como presente a Aquiles, neste trecho ela diz
entregar seu corpo a Hades, ao mesmo tempo o lugar dos mortos e o senhor
dos mortos, ele também um exigente raptor da donzela, Coré, Perséfone. Ela,
Polixena, também uma coré, é arrancada do mundo dos vivos em direção ao
dos mortos numa alusão sutil ao universo do casamento. A este respeito N.
Loraux (1995) refere-se na seguinte passagem:
Há, porém, duas outras passagens de Eurípides onde uma virgem sacrificada,
sem ser, entretanto, declarada esposa de Hades, sofre a perda da virgindade. É
o que ocorre com Polixena que, em Eurípides, não se casa com Aquiles na morte.
Polixena, até então nymphe prometida a reis e que, em sua altivez, pretende entregar a Hades apenas seu corpo, demas, de forma alguma sua pessoa; Polixena
que, no instante da morte, dirá somente que vai “para debaixo da terra, sem esposo, sem himeneu”. Ora, uma vez imolada, esta mesma Polixena será qualificada
por sua mãe lacrimosa de “esposa sem esposo, virgem que não é mais virgem”,
nymphe ánymphos, párthenos apárthenos (LORAUX, 1995, p. 75).
O comportamento de Polixena frente à morte surpreende quanto à coragem que apresenta frente ao conjunto dos homens do exército reunidos. Sua
morte, que oscila entre o assassinato e o sacrifício, visto certas anomalias que
apresenta, confere à donzela honras de herói. R. Calasso a descreve, referindo-se ao texto do mensageiro Taltíbio:
Assim foi sacrificada Polixena: “as pessoas o aclamaram e o soberano Agamemnon
disse aos jovens para deixarem livre a virgem... Ouvindo as palavras do chefe,
Polixena agarrou os peplos, rasgou-os da ponta do ombro até a metade do ventre, perto do umbigo, mostrou o peito e os seios belíssimos, como os de uma estátua e, apoiando os joelhos no chão, pronunciou este discurso, o mais audaz e
desventurado de todos: ‘Olhe, jovem, este é o meu peito; se você quer ferir, fira;
se preferir o pescoço, está pronta esta garganta’. E ele (Neoptólemo), querendo
e não querendo por pena da donzela, fechou com ferro a passagem do sopro
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vital; saltaram jatos de sangue. Porém, mesmo enquanto morria, ela deu grande
atenção a cair de modo apropriado, escondendo aquilo que se deve esconder
dos olhos dos machos”. Depois, alguns guerreiros espalharam folhagens sobre a
morta. O comentador anota:” Lançam-se folhas sobre Polixena como se tivesse
obtido a vitória nos jogos; de fato, era aquela a homenagem prestada aos vencedores (CALASSO, 1990, p. 85-86).
J. Gregory salienta o erotismo, que, segundo ela, está presente, “necrofilia
é uma possibilidade” (1997, p. 97); Gellie (1980, p. 34-35) discute o”‘sexual
innuendo” da cena. Loraux (1995, p. 94) assinala que, embora os gestos de
Polixena não tivessem intenção erótica, o eram em efeito. Para Michelini (1987,
p. 158-168), a cena é um dos muitos efeitos dissonantes que contribuem para
a estética bizarra da peça.
A cena da morte de Polixena não faz parte do conjunto das cenas que
retratam propriamente o momento da queda de Troia e que podem em vários
vasos aparecer juntas (o assassinato de Príamo, o de Astíanax, o estupro de
Cassandra,...); no caso de Polixena, conhecemos poucas representações do
seu sacrifício: a maioria das peças descritas no LIMC, entre estátuas, a pintura
mural de Polignoto descrita por Pausânias (I, 22, 6) e um vaso pertencente ao
Museu de Berlin, 3161, estão perdidas (o vaso de Berlin destruído na II Guerra Mundial).
A peça mais impressionante do pequeno catálogo de documentos preservados desta cena é uma ânfora de fabricação ática, produto de exportação
para o mercado etrusco, encontrada na zona da Tirrênia no século VI, quando
a técnica de pintura em figuras negras estava em vigor.
Ânfora tirrênia do período arcaico, ca.570-560 a.C. pelo pintor de Timiades.
Lado A., o sacrifíco de Polixena. Lado B., Cômos.
Londres. British Museum, 18.97.7-27.2.
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Shapiro a descreve num artigo no qual o elemento central da pesquisa é
o personagem de Nestor. Diz ele:
Sua primeira aparição na arte da Ática é numa bem conhecida ânfora tirrênia da
metade do século sexto ou um pouco antes, agora em Londres (18.97.7-27.2). O
motivo é o sacrifício de Polixena sobre a pira de Aquiles. Três soldados gregos
seguram o corpo da vítima na horizontal, enquanto Neoptólemo dá o golpe fatal.
Nestor está de pé na extrema direita como espectador, em roupas civis, mas
segurando uma lança (SHAPIRO, 1983, p. 89).
Neste vaso de modelo exportação, como o chama Boardman (1995, p.
37), o artista ateniense já demonstra o que vai tornar famosa a pintura de vasos
ática: a narração de episódios mítico-literários, conhecidos de fontes orais ou
épicas e líricas, tendência que parece recém estar-se firmando, e que irá florescer na virada do século V. Este vaso é especialmente importante como fonte
documental, pois ele estabelece uma possibilidade de datação aproximada
de quando estas narrativas começaram a proliferar na zona consumidora da
cerâmica decorada ática. A Etrúria, boa consumidora, preferia até então o produto de Corinto. Quando Atenas entra no mercado como concorrente, oferece
especificidades de estilo de pintura com variações interessantes na narrativa
de cenas míticas e sexuais.
O sacrifício de Polixena oferece interfaces neste duplo aspecto: é uma
cena do mito de Aquiles e tem um efeito de combinação entre sexo e morte
muito apelativo, na medida em que ela é entregue à tumba de Aquiles como
presente ao morto, da mesma maneira que os grandes chefes tomaram concubinas para si tiradas da família real troiana. Esta relação tem uma história
nos vasos, principalmente nos de figuras negras, que retratam uma cena anterior da vida de Aquiles quando este, perseguindo o príncipe troiano Troilo, encontra Polixena junto a uma fonte; mata o irmão, mas conhece a jovem princesa. No final do século VI esta cena aparece em vários vasos e sua morte,
nesta ânfora do pintor de Timiades, oferece uma versão diferente da conhecida
através de Eurípides, sendo única no gênero para retratar o ritual do sacrifício
humano.
Numa referência em tom quase casual, Nicole Loraux menciona a posição
da jovem e acredito que ela tivesse esta ânfora em mente quando o faz, pois
discorrendo acerca da tragédia Hécabe e da maneira como Polixena se faz
respeitar pelos homens que irão matá-la, a autora comenta que ali a novidade
é que ela não se apresentava “como a Polixena que, muito antes de Eurípides, os pintores de vasos gostavam de reproduzir, levantada horizontalmente
acima do altar” (1995, p. 85). Esta frase solta, perdida numa menção rápida,
causa uma perplexidade maior na medida que a documentação preservada
e exaustivamente catalogada só parece contar com este exemplar da virgem
nesta posição.
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Este tipo de postura não é encontrado nem nas representações de Ifigênia; e motiva-nos um maior empenho desde esta leitura para reencontrar as
fontes que fizeram com que a prestigiosa classicista (ora já falecida), colocasse
no plural este número de representações. Apesar disso, no momento contamos
apenas com este documento para nos fornecer alguma informação a respeito
desta versão anterior a Eurípides e que a afasta tanto da jovem que enfrenta e
confronta Neoptólemo de pé, em liberdade na hora da morte, conforme a versão de Eurípides, quanto dos animais, que são mantidos sobre o altar, mas não
suspensos.
De qualquer forma, percebemos a longevidade da discussão acerca dessas situações de exceção dentro do imaginário grego e sua relativa importância para a estruturação de uma norma geral a respeito dos sacrifícios humanos,
míticos e, eventualmente, reais, parte de uma memória cultural compartilhada
no Ocidente, e, apenas muito depois, regida por leis escritas.
Referências
ANDERSON, Michael J. The fall of Troy in early Greek poetry and art. Oxford: Clarendon Press,
1997.
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