Nona edição - Composição - Revista de Ciências Sociais/UFMS
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Nona edição - Composição - Revista de Ciências Sociais/UFMS
Editorial A Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, leva a público mais uma edição de Composição, Revista Eletrônica de Ciências Sociais. Nesta edição de número 9 temos mais uma vez, contribuições de colegas pesquisadores mestrandos, doutorandos, doutores ligados a programas de pós-graduação na área de Ciências Sociais e afins. Os temas discutidos são bastante variados, mantendo o propósito de Composição de criar um espaço para que toda comunidade acadêmica possa apresentar os resultados de diferentes pesquisas. Serão discutidos temas culturais, saúde publica, literatura, filosofia, pósmodernidade, entre outros que enriquecem o debate acerca das ciências sociais no Brasil.Contudo, a partir do próximo numero, Composição solicita que os colaboradores que estejam cursando mestrado e doutorado elaborarem seus artigos ou resenhas acompanhados com o nome dos orientadores. Desejo a todos uma boa leitura. Aparecido Francisco dos Reis – Editor. 2 SUMARIO Entre parentes, vizinhos e amigos: redes de sociabilidade e agência jurunense Carmem Izabel Rodrigues…………………………………………………………………04 A sociedade urbana e a crise de identidade na pós-modernidade Vanda Gomes.......................................................................................................................21 Orgânico e simbólico nas ciências sociais em saúde Litza Andrade Cunha............................................................................................................33 Construindo uma nação: o Nacionalismo no pensamento de Alberto Torres Cesar Alberto Ranquetat Júnior...........................................................................................45 A construção de novos sujeitos – reflexões pós-coloniais a respeito da relação entre conhecimento e poder Aline Tereza Borghi Leite....................................................................................................58 A pesquisa biográfica e suas travessias: um diálogo sobre experiência etnográfica e imaginação Anaxsuell Fernando da Silva................................................................................................67 O saber científico em construção Eduardo Duarte....................................................................................................................81 Saúde e sofrimento social: a inserção da população negra no SUS do Rio Grande do Norte Edmilson Lopes Júnior; Andrea Monteiro da Costa............................................................95 A influência de Comte e Spencer no Positivismo latino-americano, Uma comparação entre o pensador brasileiro Luís Perreira Barreto e o pensador chileno José Victorino Lastarria Vinicius Delangelo Martins Gatto......................................................................................108 Terras do sem fim e Os magros: Uma releitura das relações sociais e de poder Rosângela Cidreira; Maria de Lourdes Netto Simões........................................................123 Americanismo e iberismo: a questão do atraso na América Latina Carlos Henrique Gileno......................................................................................................139 A ontologia fenomenológica sartriana da consciência: das obras do jovem Sartre ao Ser e o nada Luís Carlos Ribeiro Alves..................................................................................................151 Critérios de cientificidade e ética: elementos para refletir sobre a questão da qualidade na pesquisa social Tania Steren dos Santos.....................................................................................................161 3 Entre parentes, vizinhos e amigos: redes de sociabilidade e agência jurunense1 Between relatives, neighbors and friends: Sociability networks and jurunense agency Carmem Izabel Rodrigues2 Resumo: Para além de sua configuração geral, pela qual se assemelha aos demais bairros de periferia da cidade de Belém, o Jurunas aparece no imaginário popular, como um lugar onde festas e procissões acontecem (quase) todo dia. Através das festas, de sua fabricação incessante durante todo o ano, seus moradores colocam em operação redes de relações de parentesco, amizade e vizinhança, e constroem a si mesmos como habitantes de um espaço próprio – um lugar – onde vivem sua vida, reproduzem suas práticas cotidianas e garantem, através dessas práticas de uso e apropriação desse lugar, o direito à cidade. Nesse sentido, o bairro é visto, ao mesmo tempo, como um espaço de invenção, inovação, criatividade e agência. Palavras-chave: sociabilidade, identidade, agência Abstract: In addition to its general pattern, which is similar to other neighborhoods in the outskirts of Belém, Jurunas appears in the popular imagination as a place where festivals and processions take place (almost) every day. Through the festivals, their incessant production throughout the year, the residents put into operation networks of kinship, friendship and neighborliness, and build themselves as inhabitants of an area of their own - a place - where they can live their lives, reproduce their daily practices and ensure, through such practices of use and ownership of this place, the right to the city. In this sense, the neighborhood is seen at the same time, as a place of invention, innovation, creativity and agency. Key words: sociability, identity, agency 1. Redes e sociabilidade Ao analisar algumas práticas culturais dos moradores de bairros localizados na zona sul de Belém-Pará, próximos ao rio Guamá, verificamos a presença de atividades de trabalho e troca, consumo e lazer, produzidas nos espaços do bairro, colocando em operação redes de sociabilidade que envolvem os moradores nos diversos eventos. Essas redes são formadas por parentes, amigos, vizinhos, compadres, colegas, chegados, com contatos que variam em constância e intensidade, de acordo com os dias da semana e do mês, e com o tipo de evento realizado. Tais eventos podem ocorrer nas sedes das escolas de samba ou nas sedes de diversas associações locais, que em muitos casos se localizam nas próprias residências dos seus diretores e/ou organizadores. Nessas ocasiões o espaço da 1 Trabalho apresentado na II Reunião Equatorial de Antropologia. Natal, UFRN, de 19 a 22 de agosto de 2009. 2 Professora da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. Laboratório de Antropologia da Universidade Federal do Pará Tel.: 91 3201 7406 3201 8024. E-mail: [email protected]; [email protected] 4 festa inclui parte da casa ou casas vizinhas e também se estende ao espaço da rua, criando um espaço intermediário – o pedaço – no qual se misturam o público e o privado (MAGNANI, 1993). O bairro popular, de periferia, é um excelente contexto para se perceber a relação entre as formas de sociabilidade e a delimitação do espaço urbano (Idem, p.5). Nele é possível perceber mais claramente a existência desses pedaços, isto é, espaços conhecidos e nominados em um território claramente demarcado e apropriado pelos usuários (p.6), lugares de passagem e de encontro entre vizinhos, conhecidos ou chegados. No Jurunas, muitas ruas e passagens se destacam como palco de uma forte sociabilidade, funcionando como caminhos de procissões ou como espaço para ensaios das quadrilhas juninas ou das escolas de samba. Um grande número de atividades de trabalho e de lazer dinamizam os diversos espaços do bairro, como a zona portuária, o entorno das igrejas, escolas, clubes esportivos, associações comunitárias, as casas de festas e as agremiações carnavalescas. Quanto às atividades econômicas propriamente ditas, predominam as comerciais, dos grandes aos pequenos comércios e, principalmente, as vendas de alimentos, bebidas e serviços, atividades informais, muitas delas oferecidas e/ou realizadas nas próprias residências, com intensa participação do círculo de parentes. Entre as formas de sociabilidade predominantes em bairros populares como o Jurunas, destacam-se as presentes nas festas populares (religiosas, carnavalescas, juninas) e em outras formas de lazer e consumo (práticas esportivas como os campeonatos de futebol suburbano, freqüência a bares e a festas de aparelhagem). Através das festas, há uma circulação de pessoas no bairro, entre diversos bairros, entre a capital e as cidades mais próximas, através dos portos. Essas pessoas circulam, entre a capital e as cidades ribeirinhas, principalmente por motivos de trabalho, passeio, estudo, em visita a parentes ou para tratamento de saúde; mas também para participar das festas religiosas ou ainda para trabalhar e/ou desfilar no carnaval. Muitas delas costumam circular pelos diversos espaços e eventos do bairro, daí porque encontramos as mesmas pessoas nas procissões católicas oficiais e particulares; nestas e nas procissões nem tão católicas como as outras; nestas e nos eventos carnavalescos, nestes e nos eventos juninos. Há uma ampla sociabilidade ligando os sujeitos no cotidiano. Nesses eventos, misturam-se diversas formas de lazer e interação, de modo que conversar nas portas, pátios e calçadas, instalar mesas, cadeiras e aparelhos de televisão nos pátios das casas para assistir a jogos de futebol ou para jogos interativos, preparar refeições, passear e brincar, 5 comer ou jogar no meio da rua, são práticas comuns que misturam novas e antigas formas de sociabilidade. Entre os inúmeros registros dessa sociabilidade no bairro aparecem diversas formas de participação comunitária de grupos e movimentos sociais, entre as quais destacamos um grande número de associações locais, algumas das quais tiveram um papel fundamental em processos de organização para ocupação ou manutenção de terrenos e áreas públicas ou privadas, especialmente nas últimas décadas do século passado. Os que participam dos eventos festivos geralmente compartilham, além e através das relações de parentesco e vizinhança, formas de trabalho, lazer e consumo, em espaços comuns onde realizam diversas atividades ou tarefas voltadas à organização, divulgação e execução das festas religiosas, juninas e carnavalescas. É freqüentando esses círculos que muitas pessoas se conhecem, tornam-se amigos e chegados; é quando jovens ou adultos namoram, casam, se juntam e vão morar, na maioria dos casos, ali mesmo, nos fundos das casas dos pais ou na vizinhança próxima, de modo que permanecem em contato com suas famílias de origem, muitas vezes compartilhando tanto os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos/netos, quanto formas de trabalho e renda. A adesão às rodas de bebida faz parte de uma sociabilidade local aceita e praticada por grande parte dos moradores, especialmente nos fins de semana, quando parentes, vizinhos e amigos se reúnem nos pátios das casas ou no meio da rua, produzindo-se uma forte convivialidade entre os presentes. Uma tradição comum aos participantes desses eventos é o clube da cerveja, reunião realizada na porta da casa, que começa pela manhã e prossegue até a tarde, que algumas vezes inclui e outras vezes até substitui o almoço de domingo, acabando apenas no final da tarde ou início da noite. É importante destacar as atividades das escolas de samba nessas redes e circuitos de sociabilidade, pois estas funcionam também como espaços de trabalho e lazer, sociabilidade e associativismo. Nelas se desenvolvem diversas atividades durante todo o ano, incluindo homens, mulheres, crianças e idosos em uma mesma rede de sociabilidade local. Dentre elas o Rancho Não Posso me Amofiná, escola de samba mais antiga da cidade, desenvolve o maior número de atividades, com um extenso cronograma que inclui festas comemorativas (aniversário da escola, Páscoa, festas em homenagem ou premiação) e de preparação dos eventos mais importantes na vida da escola (o desfile carnavalesco e, em menor destaque, as competições na quadra junina); atividades comunitárias (serviços de atendimento à população carente do bairro, clubes de mães, grupos de terceira idade); reuniões semanais e mensais (cafés da manhã, almoços e jantares; rodas-de-samba e 6 pagode), além de outros eventos, próprios ou de associações vizinhas (igrejas, escolas, associações comunitárias). Outras escolas do bairro (Academia de Samba Jurunense, Coração Jurunense, Deixa Falar) também organizam, além das atividades carnavalescas e das quadrilhas juninas, festas, reuniões, debates e ações comunitárias locais, que incluem e envolvem os moradores de várias ruas localizadas no entorno das escolas. Relações de parentesco, vizinhança e amizade atravessam toda a estrutura das agremiações carnavalescas, cruzando-se entre si, sobrepondo-se, de modo que em muitos casos as mesmas pessoas, com múltiplas relações entre si, desempenham diversas tarefas em diferentes modalidades de eventos festivos ao longo do ano. As escolas de samba funcionam como espaços de construção de identidades, vinculadas ao lugar, mas também falam de uma territorialidade específica, a do samba (sambistas, festeiros). Rancho, Academia Jurunense e Deixa Falar, entre outras, produzem estratégias de manutenção de identidades próprias, diferenciadas entre si, mas sempre medidas e avaliadas a partir da escola maior (o Rancho). Desenvolvendo múltiplas funções, misturando atividades lúdicas com ações sociais e políticas, as escolas ultrapassam, como afirma DaMatta (1997, p.69), a visão de que os participantes das associações carnavalescas “pouco se organizam para reclamar ou reivindicar [mas] se organizam para brincar”, assim como os espaços que seriam destinados às atividades propriamente comunitárias são também usados para reuniões carnavalescas. As diferentes mas de certo modo padronizadas maneiras de fazer as festas podem ser pensadas da perspectiva de uma prática cultural (DE CERTEAU, 1994) compartilhada por grupo de moradores do bairro, geralmente parentes, vizinhos e amigos. Podemos então pensar o bairro do Jurunas como um bairro de parentes, vizinhos e amigos? 2. Entre parentes, vizinhos e amigos... O Jurunas é o bairro do encontro. É nos espaços das festas e reuniões do bairro que muitos moradores se encontram, e é quando que se constrói ou se potencializa (DIAS JR. e SCHALL, 2000) o capital social (BOURDIEU, 1999) desejado por todos, dentro das redes de relações estabelecidas no bairro e/ou fora dele. Redes de parentesco e vizinhança, em função da maior proximidade espacial e social, têm um grande peso nessas atividades, sobrepondo-se a outras. Muitos dos participantes dessas redes são, ao mesmo tempo, parentes e vizinhos, vizinhos e conterrâneos, vizinhos e colegas de trabalho. Parentes, vizinhos, amigos e também membros de uma mesma associação comunitária. Parentes, vizinhos, amigos e membros de uma associação carnavalesca e também de uma associação 7 religiosa. Parentes, vizinhos, amigos e membros de uma associação carnavalesca e também membros ativos de um partido político. Assim como nas atividades carnavalescas, onde a tendência crescente é o pagamento de todos os serviços, torna-se cada vez mais imperioso pagar pela festa: pela decoração do salão e do andor do santo, pela compra de foguetes, flores e balões, comidas e bebidas, pela propaganda impressa, visual e sonora feita para anunciar a festa em diversas ruas do bairro e nos bairros vizinhos, pela aparelhagem que comanda a festa profana, pelos músicos que tocam na procissão. Mas nem tudo é pago. Diferente das atividades carnavalescas, muitos devotos trabalham por obrigação e pagam ao santo essa obrigação com trabalho não remunerado ou mesmo com uma pequena contribuição em espécie. Ao mesmo tempo, parte do material utilizado circula em outras festas, como o mastro3, as flores artificiais e os foguetes não utilizados, que são doados, ou melhor, entregues como presentes em uma troca diferida entre produtores de festas no bairro. Quando falam das atividades relacionadas às festas, as pessoas sempre se referem à importância crucial da participação e ajuda de parentes, vizinhos e amigos, através de contribuições, doações e trocas entre membros das mesmas e/ou diferentes associações. Para fazer uma festa é necessário ter o apoio de redes de inter-conhecimento que, quanto mais extensas (quanto ao número de participantes) e intensas (em termos da natureza e conteúdo dos vínculos), permitirão garantir, junto com o poder do santo, o poder de seu organizador para mobilizar um grande número de pessoas e recursos, incluindo o apoio de agências particulares ou oficiais. Nesse sentido, as redes de inter-conhecimento dos organizadores de uma festa podem ser decisivas para o prestígio que esta obtém entre seus participantes, pois, ter amigos é ter conhecimento, e um conhecimento anterior leva a novos conhecimentos, velhos amigos ajudam a fazer novos amigos, o que dará maior capital social e simbólico aos produtores de uma festa. É o que dizem, por exemplo, do principal dirigente da Irmandade de São Benedito, que organiza uma grande festa dedicada a esse santo, que tem muito conhecimento, tem parentes importantes que o apóiam e amigos poderosos, no governo e na prefeitura, assim como em diversas paróquias da cidade, o que faz com que a sua festa seja bem mais organizada e mais freqüentada que outras. De acordo com uma das mais antigas 3 O mastro de São Benedito da festa da Comunidade circula por várias outras festas durante o ano, até que, no ano seguinte, é doado a São João e queimado em fogueira na noite do santo. 8 participantes da Irmandade, “Todo mundo pensa que o Manel é rico. O Manel não é rico, o Manel é pobre que nem nós, o que ele tem é conhecimento, tem muitos amigos”. A posse de uma capela pela Irmandade garante a essa festividade um prestígio crescente4, atribuído em grande parte à rede de relações de que dispõe seu principal dirigente. Portanto, o investimento em relações pessoais pode aumentar o capital social e simbólico de pessoas ou grupos. E uma das maneiras de alguém ser bem-sucedido nesse investimento é saber “jogar o jogo” da sociabilidade, isto é, saber relacionar-se com as pessoas certas, manter em operação redes de relações capazes de atravessar diversas instâncias e instituições e estabelecer alianças, mesmo que temporárias, que possam atender aos objetivos e motivações dos sujeitos envolvidos nessas redes de sociabilidade, de acordo com os interesses precípuos. Mas pode também levar, pelo excesso de proximidade, a conflitos crescentes, gerando profundas inimizades, causadas por diversos motivos. A análise das redes sociais pode fornecer subsídios que permitam esclarecer padrões de sociabilidade, incluindo as formas conflitivas. Para analisar sociabilidades e conflitos em nível local, não podemos esquecer a formulação clássica de Barnes (1987) sobre rede social como “um conjunto de relações interpessoais concretas que vinculam indivíduos a outros indivíduos a partir de laços de parentesco, amizade e reciprocidade” (p. 167,184)5. Boissevain (1987) analisa alguns conflitos que são resolvidos através do acionamento de uma rede de “amigos de amigos”, quando são feitas alianças temporárias entre pessoas para resolver conflitos existentes. Essa rede, que pode incluir “parentes, amigos e colegas de trabalho”, é acionada através de “visitas, trocas, fofocas e manipulações” (p.197-198), produzindo rivais e aliados, solidariedades e oposições nas relações cotidianas dos moradores de uma cidade ou bairro. Como demonstra o autor, indivíduos com interesses próprios, lutando por poder e prestígio, estão sempre tentando manipular redes de relações para atingir seus objetivos (p.201), o que confere aos sujeitos um papel ativo nos processos sociais produzidos no cotidiano. 4 A capela foi construída, segundo o dirigente da Irmandade, com a participação direta de parentes e amigos, além da ajuda de moradores e devotos. Moradores e devotos que costumam freqüentar as duas festividades de São Benedito, distinguem-nas jocosamente como as festas de “São Benedito dos pobres” (a festa da Comunidade) e “São Benedito do ricos” (a festa da Irmandade). 5 Barnes refere, ao lado das formas e processos políticos institucionais mais amplos, alguns processos similares que ocorrem paralelamente, através de “alianças, desafio e compromisso, testes de força e distribuição de recompensas [que] operam dentro da região, do distrito, da aldeia, bem como dentro de clãs, companhias, igrejas e outros grupos não territoriais [envolvendo] processos políticos de nível mais baixo ou de nível local [que] ocorrem dentro de instituições que preenchem muitas funções que não são políticas [sendo portanto] processos de tipo trans-institucional” (p.159-160). 9 No contexto analisado, fazer amigos e evitar inimigos, saber distinguir claramente entre amigos e inimigos, entre lealdades e rivalidades e, melhor ainda, saber conviver com os adversários, evitando transformá-los em inimigos ou, mais difícil ainda, transformar os inimigos em adeptos através de ações que envolvem aproximações sutis, conversas, promessas de apoio futuro, são questões políticas por excelência, pois, como afirmou Caillé (2002), “um problema político por excelência é separar os amigos dos inimigos.” 3. Sociabilidade festiva Saber jogar o jogo da sociabilidade, saber relacionar-se, ter amigos, circular com desenvoltura em diferentes espaços, saber como e quando acionar as redes de relações (que são, ao mesmo tempo, redes de conhecimento e poder), são astúcias utilizadas pelos sujeitos na trama cotidiana de viver e sobreviver no mundo urbano. Essas redes podem ser bastante operativas quando articuladas nos espaços e tempos das festas, misturando as esferas de trabalho, religião, consumo e lazer, dinamizando as formas de interação, mobilizando recursos sociais e simbólicos. Através do que estamos chamando aqui de agência jurunense, demonstram a presença de uma relação criativa e produtiva entre formas de sociabilidade e as práticas culturais, confirmando que a sociabilidade festiva pode ser também uma forma de ação6. Sempre que perguntávamos quais os motivos para fazer ou não fazer uma festa, as respostas obtidas giravam em torno de alguns temas sempre repetidos. Os entrevistados afirmavam que podiam fazer uma festa “pelo simples prazer de fazer a festa”, para garantir a continuidade de uma festa que “é feita todo ano, nunca falhou”; para “manter a tradição”; para “manter o costume”; para confirmar que a identidade jurunense é lúdica e festeira. A dinâmica das festas interfere diretamente na vida e na memória dos moradores do bairro. Toda festa é uma repetição e ao mesmo tempo um evento único, que deve ser sempre lembrado. Ao mesmo tempo em que é feita para registrar um evento importante no calendário de uma agremiação/associação do bairro, a festa é em si mesma lembrada como um evento importante, que marca a história e a própria continuidade desse grupo ou 6 O conceito de agência, central na análise da relação entre estrutura e sujeito (Giddens, 1989), está sendo reapropriado aqui, para um nível micro, para tratar das capacidades relacionais dos sujeitos para estabelecer vínculos e obter recursos materiais ou simbólicos para produzir eventos (como as festas) através de diversas mediações construídas através de suas práticas cotidianas. Nesse sentido, buscamos nos aproximar de estudos como os de Xavier Costa (2002), sobre a relação entre sociabilidade festiva e reflexividade, de Domingues (1999) sobre a relação entre memória e criatividade social dos sujeitos. 10 agremiação. A vontade de fazer uma festa, o investimento na festa, a projeção de uma festa e a recordação ou lembrança das melhores festas, dos momentos culminantes das grandes festas na memória dessas pessoas são dados recorrentes nas conversas. Isso é recorrente tanto na questão do trabalho quanto na questão do lazer. No trabalho porque muitas dessas pessoas obtêm sua renda diária ou semanal das vendas na própria residência (na porta de casa, na sala ou no lado da casa), onde predomina o pequeno comércio, bares, salão de beleza, vendas de produtos de todo tipo. Ao mesmo tempo, esse tipo de atividade feito no próprio bairro, na própria casa, na própria rua ou esquina da rua onde moram, é bastante valorizado por eles, seja porque muitos moradores não têm acesso ao mercado de trabalho formal, que a maioria almeja, mas não consegue, seja porque é um tipo de trabalho que, mesmo tendo uma renda incerta e nem sempre satisfatória, possibilita, entre outras coisas, permanecer na casa ou no espaço da vizinhança e assim “ficar de olho na casa e nos filhos” e, ao mesmo tempo, estar atualizado em relação aos principais eventos do cotidiano do bairro, alguns deles relacionados à violência (assaltos, tiros, brigas de gangues, brigas entre vizinhos), outros relacionados às reuniões semanais ou mensais organizadas por diversas associações de bairros, para discutir questões ligadas à melhoria de vida no bairro, especialmente as políticas públicas reivindicadas pelos moradores e prometidas, embora nem sempre executadas, pelos gestores municipais e estaduais. Todos esses assuntos são transmitidos nos encontros diários entre parentes e vizinhos, mas o grande encontro que ocorre por ocasião de uma festa recoloca todas essas questões em uma esfera pública popular que, ao mesmo tempo em que dinamiza as diversas formas de sociabilidade, atualiza processos de reflexividade, em reuniões que incluem conversas, críticas, brincadeiras e gozações. É quando as pessoas se apelidam jocosamente, chamando uns aos outros de caboclos. É quando também criticam as ações da Prefeitura e do Governo, mostrando que tanto as ações impetradas pelas agências oficiais como os discursos veiculados por estas e pelos meios de comunicação de fato não refletem nem coincidem com os seus verdadeiros interesses, tanto em relação a temas considerados mais vitais à sobrevivência, às condições de vida da população, quanto em relação a questões culturais, também importantes, mesmo que não valorizadas como deveriam ser. Citamos, como exemplo, o comentário de uma dona de casa sobre o fato de que o brega, ritmo musical preferido por grande parte dos moradores do bairro e freqüentadores das festas suburbanas, é menosprezado pelas elites e por parte da mídia 11 local que, de fato, segundo sua própria visão, não reconhecem os interesses e gostos das camadas populares nem se identificam com eles: Você vê na televisão toda hora: o Jatene [Governador do Estado] está levantando a bandeira do Pará. Mas o que é a bandeira do Pará? Nossos governantes não valorizam o que é nosso, a coisa daqui. Eles desprezam o brega e não só o brega mas tudo que é do povo. Houve uma enquete na Rádio Cultura: se achava que o Jatene ia levantar a bandeira do Pará. Mas que bandeira é essa se as coisas mais importantes são esquecidas? Soihet (1998), tomando as festas carnavalescas como um cenário privilegiado de observação da realidade, destaca a resistência dos populares que “a partir de suas manifestações culturais, desenvolveram formas alternativas de organização, garantindo a expressão de suas necessidades, anseios e aspirações” (p.179). Ao afirmar que “o recurso ao riso como instrumento de crítica revela uma prática muito antiga”, a autora enfatiza o pressuposto bakhtiniano do riso festivo como instrumento de crítica, através do qual um grupo de foliões procura, no ritual carnavalesco, ao zombar do preconceito sofrido no cotidiano, reagir contra esse preconceito ou exclusão (p.12). Contrariando também a imagem que alguns segmentos tinham de que “carnaval não é coisa séria”, pois as manifestações populares não teriam autenticidade ou permanência, DaMatta (1997) já havia destacado o “poder de organização e mobilização social” desses “marginais anônimos”, sua “alta criatividade [e] a capacidade de reinventar a estrutura social” (p. 173), assim como o “interesse nascido de dentro para fora, que obedece aos impulsos mais genuínos do próprio grupo” (p.123)7. Dessa perspectiva, podemos pensar a festa como um fato social total (MAUSS, 1974) e um evento que é, ao mesmo tempo, produto e produtor da sociabilidade. Um evento produtor da vida social ao mesmo tempo local e ampliada, expressão de cidadania, espaço de lazer e trabalho, momento ritual e vida cotidiana. É o que demonstra o estudo de Costa (2002) sobre as fallas valencianas, um grande carnaval onde se queimam, em praça pública, grandes alegorias fabricadas em papelão, em meio a paradas, cortejos musicais e reuniões festivas8. A sociabilidade é pensada aqui no sentido simmeliano, como a forma 7 Para o autor, associações carnavalescas são “formas de associação das mais autênticas e espontâneas [...] que não seguem qualquer modelo externo [...] Ao contrário, são um modo de dialogar com as estruturas de relações sociais vigentes na realidade brasileira [e] nisso reside sua autenticidade e permanência” (p. 123-124). 8 Mistura de tradição e modernidade, o ritual das fallas permite, através da experiência contemporânea, atualizar antigos mitos do carnaval, além de outras formas de sociabilidade postas em cena durante o festival. Por estarem juntos naquele lugar, naquele momento, os sujeitos se relacionam, trocam idéias, colocam em dia os assuntos mais cotidianos, e isso possibilita a existência de um processo de reflexividade, em uma esfera pública alternativa, que não tem a ver diretamente com as instituições, mas tem a ver com o cotidiano vivido 12 como as pessoas se relacionam, geralmente para cooperação, geralmente entre amigos, irmãos, vizinhos, companheiros, através de redes estabelecidas entre sujeitos e grupos. Essas redes de sociabilidade se concentram de modo muito forte por ocasião das festas, incluindo muitas pessoas que também trabalham e vivem economicamente da festa, pessoas que organizam as festas, que se reúnem para as festas e nas festas. Através dessa sociabilidade festiva, os sujeitos também se organizam para fazer reivindicações para o bairro (melhorias do sistema de água, luz, esgoto, transporte), e isso é feito muitas vezes no próprio espaço das festas. 4. A festa como investimento e ganho moral As festas atualmente realizadas pelas escolas de samba no bairro dificilmente chegam a ser rentáveis. O mesmo acontece com os arraiais montados na quadra junina ou nas festas de santo como as da Comunidade e da Irmandade de São Benedito (Rodrigues, 2006). Elas não são, de fato, um empreendimento econômico em si, no sentido que nós entendemos uma economia de mercado. Especialmente nas pequenas escolas, acabam dando certo prejuízo, que acaba sendo coberto por rateio feito entre seus organizadores. Diante desse quadro, quando perguntamos se “afinal, valeu a pena fazer a festa? Adianta fazer uma festa se só dá prejuízo?”, uma das resposta foi que Valeu a pena, mesmo tendo prejuízo, porque nós mostramos que podemos fazer uma festa, arcar com a responsabilidade da festa [...] Porque a gente marca presença, a gente fez uma festa, mostramos que estamos vivos! Nós até podemos pensar em não fazer a festa, porque a cada ano fica mais difícil pra nós, mas como vamos chamar as pessoas sem a festa? Com uma festa mais facilmente nós vamos chamar as pessoas, atrair as pessoas... (DM, 50 anos). Proprietários de pequenas aparelhagens que costumam tocar nessas festas a preços módicos (cerca de R$ 200,00 por dia), dizem que “faço porque gosto, faço por amizade, mas não dá lucro”. Mas para muitos, fazer uma festa é, além de algo prazeroso, também um investimento e uma fonte de sobrevivência. E para os que investem nas festas também como uma fonte de renda, não existe a pura falta de interesse. Mas ao mesmo tempo não podemos dizer que se trata apenas de puro interesse, de um cálculo puramente econômico, pois os lucros, quando existem, são muito reduzidos e muitas vezes os resultados podem pelos sujeitos que participam desse festival. Através de um ritual antigo e moderno como as fallas valencianas, os atores se encontram, conversam, atualizam os assuntos e temas do seu interesse, colocam em operação diversas práticas de sociabilidade, isto é, colocam suas “relações pessoais em operação” através das práticas produzidas nesse contexto, trazendo à tona o que Simmel chamou de socialidade em ato. 13 ser negativos e mesmo assim as pessoas não deixam de manter o interesse e o desejo de fazer a festa, mesmo sabendo que no final poderão ter prejuízo. No caso das escolas de samba, na maioria das vezes em que as pessoas se reúnem para fazer uma festa, por ocasião do lançamento do enredo ou do samba, seus dirigentes são chamados a ajudar nas despesas e cada um deles acaba pagando um pouco, do seu próprio bolso, para que a festa possa acontecer. A festa é então paga por todos os que apostaram nesse investimento, mesmo reconhecendo, por experiências anteriores, que ela não dará lucro. Seriam então as festas um investimento negativo? Podemos dizer que há uma economia arcaica gerindo essas festas? É uma economia irracional? É uma economia negativa? Se de fato a ausência de lucro pode indicar uma ausência de eficácia técnica e rentabilidade econômica, haveria por outro lado algum tipo de eficácia simbólica percebida pelos sujeitos e reproduzida através das festas? Aparentemente, o lucro ou ganho da festa localiza-se exatamente na diferença entre fazer ou não fazer a festa. E se existe um ganho em fazer a festa, é um ganho comunitário, social, moral e também psicológico: acima de tudo, as festas possibilitam, o estar juntos, o encontro, que é de importância central para os moradores e mesmo para muitos que não moram mais no bairro, mas sentem falta desse tipo de relação. Entre as diversas motivações para as pessoas organizarem e participarem de uma festa, seja uma festa de brega ou um baile da saudade, com dança de salão, sejam festas de aniversário ou festas de vizinhança, a motivação principal parece ser a de estarem juntos, beberem juntos, se encontrarem, conversarem, namorarem, se divertirem. Como vimos, a partir desse estar juntos é possível colocar em dia diversos assuntos, reciclar uma série de tópicos da vida cotidiana. Então esse estar juntos, algo aparentemente insignificante, acaba sendo extremamente importante, pois possibilita colocar, no espaço da festa, discussões sobre determinadas questões de real interesse na vida diária dos moradores do bairro, inclusive problemas comunitários, de interesse coletivo que, circulando nas conversas, podem levar a um processo de reflexividade. Nesse sentido, as festas não são, de fato, puro gasto de energia ou de dinheiro, porque possibilitam, no momento em que acontecem, um processo uma atualização da vida cotidiana, de conscientização acerca de temas e problemas de interesse dos moradores do bairro, como já referimos acima. Aplica-se portanto, perfeitamente, às festas do bairro do Jurunas, o conceito de sociabilidade de Simmel (1983), sinteticamente definido, no trabalho desse autor, como “a 14 forma lúdica de fazer sociedade, de estar em relação”. Percebemos aqui uma forte sociabilidade como forma lúdica de relação, o sentimento de estar relacionado, de estar fazendo algo que não tem um objetivo prático ou nenhum interesse mais imediato do que estar em relação. E mesmo quando existem interesses, nem sempre se configuram como interesses econômicos ou puramente econômicos. Como exemplo, quando perguntamos à organizadora da festa de N. Sª da Conceição, e que há muitos anos não conseguia fazer uma grande festa como a que ocorreu no último ano, se o resultado foi o esperado, se valeu a pena fazer a festa, ela afirmou que Foi muito bom, porque agora todo mundo me cumprimenta, todo mundo me conhece, vem me cumprimentar e dizer que espera que eu faça outra festa igual a esta no ano que vem, mas se depender de mim e se Deus me ajudar eu vou fazer uma festa ainda melhor que esta”. Portanto, mesmo reconhecendo que não obteve lucro financeiro, sua organizadora destacou o ganho moral e comunitário obtido, no sentido de que sua ação de fazer a festa acrescentou um valor social e simbólico ao evento, que resultou em um aumento de prestígio, pois se sentiu de algum modo mais valorizada depois que organizou a festa. Portanto, o trabalho investido nas festas não é claramente definido como rentável ou não-rentável, produtivo ou não-produtivo. O sucesso de uma festa, mesmo que nãorentável, pode significar, para seus produtores, o dever social cumprido, o ritual realizado na forma exigida, a performance desempenhada. Esse resultado pode levar a uma ampliação da rede de relações, a um aumento do capital social e simbólico (BOURDIEU, 1999). E se as atividades técnicas e rentáveis são claramente percebidas como diferentes das atividades simbólicas, as festas são vistas como atividades simbólicas por excelência, capazes de gerar mais-valia simbólica, mais do que lucro. Nesse espaço de negociação aparece a diferença entre lucro material e lucro simbólico, entre capital econômico e capital simbólico. Sem dúvida, o objetivo do lucro na festa também existe. Determinadas festas são feitas sempre visando a obtenção de lucro, com vendas de ingressos, de bebidas, etc9. Entretanto, na maioria das festas analisadas, percebemos motivações e interesses não diretamente ou necessariamente econômicos, assim como, em casos específicos, percebemos a presença de um conjunto de motivações e 9 Proprietários de aparelhagens, por exemplo, descobriram nas festas do bairro e fora dele, um espaço onde podem trabalhar e ganhar algum dinheiro. Outro exemplo é o carnaval oficial, que recebe subvenção, no qual a maioria das pessoas trabalha recebendo remuneração que varia muito de uma escola para outra. Muitos dos que hoje trabalham hoje como decoradores, aderecistas durante todo o ano, começaram e aprenderam sua profissão trabalhando no carnaval. 15 objetivos sociais e políticos mais amplos, extrapolando a festa, mas totalmente inseridos no contexto e na dinâmica das festas, como na fala de Marquinho, líder comunitário local: Através dessas festas, podemos renovar sempre nosso entusiasmo, nossa vontade. Através do samba, podemos organizar muita coisa aqui no bairro, organizar as lutas pelos nossos direitos, envolver as pessoas nesse trabalho, lutar pelo lado social. A [escola de samba] deve ser aglutinadora, principalmente dos movimentos culturais. É importante resgatar esse espírito. 5. A festa como agency Finalmente, se a festa é um modo de ação coletiva, podemos pensá-la como agency? Se tomarmos o termo no sentido da capacidade que possuem os sujeitos em agir com criatividade para produzir laços e redes de relações capazes de atravessar ou se infiltrar nos interstícios das estruturas e instituições sociais, podemos, mesmo fugindo do contexto mais específico e da dimensão política onde o conceito se consagrou 10, podemos falar de uma agência jurunense, que, através da sociabilidade festiva, incorpora saberes e conhecimentos, criatividade social. Ao mesmo tempo em que articula redes de interconhecimento, contrapõe, à “reflexividade insitucional” de Giddens, típica da modernidade ocidental (DOMINGUES, 1999, p.328), uma reflexividade produzida nos espaços de sociabilidade festiva (COSTA, 2002), que valoriza os laços e contatos pessoais e as redes de conexões, assim como os aspectos estéticos e artísticos de uma cultura popular da qual os sujeitos afirmam fazer parte quando sonham, projetam, produzem e organizam as festas, e mesmo quando recordam e contam, para si mesmos e para os outros, as festas passadas. Com base na visão simmeliana de que toda ação é otimista 11, entendemos que fazer a festa é uma ação transformadora que se inscreve positivamente tanto nas relações presentes como no imaginário do bairro. Podemos falar então de uma agência dos jurunenses quando afirmam que fazem uma festa “para marcar terreno”, “para dizermos para nós mesmos que fizemos a festa”, “para lembrar e contar que fizemos muitas festas”. Ou quando afirmam que “enquanto fizermos a festa, provaremos que estamos vivos, seremos lembrados”. 10 Sobre esse assunto, ver Giddens (1989) sobre a teoria da estruturação, Bourdieu (2002) e Ortner (1984, 2007) sobre a teoria da prática. 11 “Simmel é o único sociólogo que entende que a transformação da teoria social em teoria da ação não é acompanhada necessariamente pela superação do otimismo progressista. O conceito de ação transporta, clandestinamente, o conceito de progresso. Simmel descobriu isso nas suas reflexões sobre o fenômeno do pessimismo. Pessimismo é para ele “carência de atividade” e sofrimento real ou fictício. O agir por si mesmo só pode ser otimista [...] O agir social, como agir racionalmente dirigido a fins, sempre contém uma porção de otimismo quanto ao futuro...” (Souza e Öelze, 1998, p.210). 16 Podemos falar então da formação positivada da identidade jurunense através das festas. Fazer uma festa envolve práticas e saberes, astúcias e argúcias. Mais do que resistências, devemos falar, seguindo De Certeau (1996, p.48), das astúcias através das quais os sujeitos reproduzem práticas culturais cotidianas que, ao mesmo tempo em que “reproduzem sem capitalizar, isto é, sem dominar o tempo”, permitem a apropriação de determinados espaços urbanos de uma forma própria12. Astúcias para fazer amigos e vencer os inimigos. Astúcias também nos movimentos de ocupação do espaço do bairro como espaços próprios para desenvolver suas redes de sociabilidade, inclusive as de sociabilidade festiva. Astúcias para realizar, manter, fazer crescer e durar cada festa, transformar cada uma delas em um grande evento, atraindo cada vez mais “pessoas que têm carisma”, isto é, “aquela pessoa que traz muita gente junto com ela”. Os moradores dizem que gostam da animação do bairro, que não gostam de silêncio, gostam de barulho, sons e movimento. Esse é um quadro sempre presente no ato de preparação de uma festa, que envolve diversas atividades coletivas e comunitárias como limpar a rua para a festa, tarefa que pode também ser realizada pela Prefeitura Municipal, quando alguém consegue articular sua rede de amigos de amigos, pois “tem sempre alguém que conhece alguém que sabe ou pode fazer isso ou aquilo”. Através desses contatos é possível obter também iluminação pública e proteção policial para o evento, além de divulgação em algum tipo de mídia mais ampla que a local, que geralmente é feita em carro-som ou bicicleta. Enquanto estão preparando a festa, estão bebendo, colocando diversos assuntos em dia, ao mesmo tempo em que estão ouvindo ritmos populares como o brega e o pagode, preferidos de muitos dos que freqüentam os circuitos do carnaval, das festas juninas e das festas de santo no bairro. Os moradores são conscientes de uma história do bairro que fala tanto das antigas e atuais festas quanto dos movimentos sociais, das lutas por moradia e outros direitos, assim como da violência sempre presente no cotidiano, e dão a essa história um valor especial. Muitos afirmam que conhecem boa parte da cidade, mas gostam mesmo é de circular pelo próprio bairro, participar das festas locais, demonstrando que as mesmas agregam maisvalia simbólica ao bairro, tanto quanto o crescimento das lojas e grandes comércios, ao lado de modernos edifícios, nas principais ruas do bairro. 12 “Diante do conjunto da cidade, atravancada por códigos que o usuário não domina, mas que deve assimilar para poder viver, diante dos desníveis sociais internos ao espaço urbano, o usuário sempre consegue criar para si algum lugar de aconchego, itinerários para seu uso ou seu prazer, que são as marcas que ele soube, por si mesmo, impor ao espaço urbano” (De Certeau, 1996, p.41). 17 Os moradores reproduzirem continuamente um discurso sobre a identidade festiva do bairro (o bairro das festas, das procissões, do carnaval). À imagem de bairro violento, contrapõem as imagens de um lugar festivo, com uma forte sociabilidade. As melhores festas, a melhor escola de samba, a melhor aparelhagem estão no bairro, e esse reconhecimento (que em grande parte os jornais têm dado) e valorização do movimento festivo no bairro pode ser também uma resposta dos moradores aos que vêem o Jurunas como violento e perigoso. Assim, mantendo a imagem do bairro festeiro, animado e vivo, também o projetam para fora, para além. Podemos então falar de uma agência jurunense, no sentido de que os moradores do bairro conhecem e dominam os espaços onde circulam, moram ou trabalham; interferem, criando/recriando, (n)os ritmos e movimentos do bairro: no trabalho (em casa, na esquina; em bares, lojas, barracas; nos portos, feiras, mercados; no centro comercial e áreas centrais da cidade: como ambulantes, artesãos, autônomos, empregados de lojas grandes e pequenas); nas festas; na produção de signos visuais no bairro, que misturam espaços e representações rurais e urbanas, misturam saberes locais, de origem ribeirinha ou cabocla, com conhecimentos modernos, criando espaços de hibridismo, sincretismos e mesclas (CANCLINI, 1997). Como migrantes ribeirinhos, de origem cabocla; como negros, mestiços ou mulatos; como pobres que lutam com dificuldades para driblar e/ou vencer as crises, sem perder o ânimo, pois, como dizem sempre, “um jurunense não pode se amofiná”. Podemos falar em agência quando os moradores vêm do interior morar em um bairro que para eles se parece com o lugar de origem, pois muitos deles permanecem no bairro não apenas porque é um dos lugares de acesso mais fácil e direto que eles poderiam ter com os seus lugares de origem, mas porque, entre os vários lugares em que poderiam morar, a partir de suas condições objetivas de vida, eles escolheram esse lugar para viver. Esse lugar é o Jurunas, um lugar na cidade moderna, que é animado e vivo e, ao mesmo tempo, muito parecido com o interior. Cria-se então uma identidade de bairro graças a essas pessoas que circulam pelo bairro e se relacionam através de redes de locais, valorizam uma identidade local, um espaço que é lhes é próprio e ao qual eles sentem pertencer. Podemos falar da formação positivada de uma identidade jurunense através das festas. A sociabilidade festiva, enquanto evento reiterativo, enquanto prática cultural e ação significativa, estabelece uma relação entre os sujeitos e as festas (passadas, presentes, 18 futuras), assim como entre a localidade e as identificações dos sujeitos. Através dessas formas de sociabilidade, produzidas localmente, eles constroem, para além de suas diferenças sociais, uma identidade cultural através da qual se reconhecem e se projetam para além do bairro. Em síntese, uma identidade de bairro (jurunense) se expressa através das festas produzidas e/ou consumidas pelos moradores; ao sentido de localidade, de pertencimento a um território específico (o bairro do Jurunas), sobrepõem-se práticas culturais identitárias, de modo que viver no bairro, circular pelo bairro, participar das festas e vida do bairro são práticas cotidianas que ligam os sujeitos em redes de sociabilidade e atuam como formas de inclusão e ao mesmo tempo distinção, contribuindo para a construção e a manutenção dessa identidade. Referências BARNES, John. 1987. Redes sociais e processo político. In: Antropologia das sociedades contemporâneas. Bela Feldman-Bianco (org.). São Paulo: Global. BOISSEVAIN, Jeremy. 1987. Apresentando “Amigos de amigos: redes sociais, manipuladores e coalizões”. Antropologia das sociedades contemporâneas, Bela FeldmanBianco (org.). São Paulo: Global. BOURDIEU, Pierre. 2002. Esboço de uma teoria da prática. Oeiras: Celta. _________ 1999. 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In: Conferências e diálogos: saberes e práticas antropológicas (25ª Reunião Brasileira de Antropologia, Goiânia, 2006). Blumenau: Nova Letra, 2007. RODRIGUES, Carmem. 2006. Vem do bairro do Jurunas: sociabilidade e construção de identidades entre ribeirinhos em Belém. Tese de Doutorado em Antropologia, PPGA/UFPE. SIMMEL, Georg. Simmel. 1983. Sociologia. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática. SOIHET, Raquel. 1998. A subversão pelo riso. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas. SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. 1998. Simmel e a modernidade. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 20 A sociedade urbana e a crise de identidade na pós-modernidade Urban society and identity crisis in postmodernity Vanda Gomes1 Resumo: Qual a relação existente entre a sociedade urbana e a crise de identidade ocorrida na pósmodernidade, especialmente no que diz respeito aos conceitos de público e privado? Para responder a essa questão, são trabalhados neste artigo o impacto das transformações ocorridas durante a pós-modernidade na identidade e a influência da sociedade urbana e sua cultura sobre os cidadãos, trabalhando a oposição entre o que é considerado individual e o que é social nas relações interpessoais. Palavras – chave: Identidade, pós-modernidade, sociedade urbana Abstract: What is the relationship between urban society and identity crisis that occurred in post-modernity, especially with regard to the concepts of public and private? To answer this question, are worked in this article the impact of changes occurring during post-modern identity and the influence of urban society and culture on its citizens, working the opposition between what is considered individually and that is social in interpersonal relationships . Keywords: Identity, post-modern, urban society Objetivos: O presente trabalho tem como objetivo geral identificar a influência da forma de vida da sociedade urbana na crise de identidade da pós-modernidade e como objetivo específico analisar os conflitos ocorridos entre os conceitos de público e privado neste contexto. Metodologia: O trabalho inicia com uma explanação da trajetória da identidade desde o Iluminismo até a era pós-moderna, retratando as diferenças entre seus diversos tipos, com base nos estudos de Stuart Hall (2006). Aos estudos do autor são acrescentados os conceitos de Baumann (2001) e Slater (2002) sobre o tema. A vida na sociedade urbana e o impacto sobre a identidade individual e social são discutidos em seguida, juntamente com uma análise sobre as relações sociais no ambiente da cidade. A crise de identidade na sociedade pós-moderna, no que se refere aos domínios do público e do privado fecha o 1 Vanda Viana Gomes é jornalista, professora, especialista em Comunicação Empresarial e mestranda em Letras e Ciências Humanas na Universidade do Grande Rio (Unigranrio), situada à Rua José de Souza Herdy, 1.160 - 25 de Agosto - Duque de Caxias - Rio de Janeiro. CEP: 25071-202 , endereço eletrônico: www.unigranio.br. Telefone: 26717793. 21 trabalho, que tem como hipótese que esses conceitos estão ainda em construção e se influenciam entre si. Como ainda é uma controvérsia se o período atual pode ser intitulado pósmodernidade ou continuidade da modernidade, ou ainda modernidade tardia ou líquida, neste trabalho foram mantidas as nomenclaturas originais usadas pelos autores, mas sob a concepção de que todas elas se referem ao mesmo contexto de mudanças sócio-históricas. Enquanto Hall, Baumann, Slater, Giddens e Harvey se concentram mais no período a partir da segunda metade do século XX, Simmel, Sennett, Castells e Hollanda abordam um período imediatamente anterior, mas que, para efeito da análise conceitual realizada neste artigo, pode ser considerada como transição para a chamada pós-modernidade, sendo incluído no mesmo recorte de fenômenos sociais. Introdução A crise de identidade instalada na pós-modernidade (que emerge com o capitalismo flexível e outras mudanças) tem como uma de suas consequências ou sintomas o acirramento do conflito entre os domínios do público e privado dentro das sociedades urbanas. Ao desvendar o processo de descentração da identidade, tanto individual quanto social, Hall (2003) fornece recursos para o entendimento desse processo, que é comum na maioria das sociedades pós-modernas. De acordo com Sennett (1998), a tendência do sujeito moderno é de tentar aplicar a psicologia à realidade social, o que provoca uma disfuncionalidade nas relações sociais. Para Simmel (1987), apesar de serem interdependentes, os agentes sociais simplesmente não querem se entender como tal, agindo individualmente. Paradoxalmente, essa corrida para dentro de si mesmo parece um poço sem fundo, já que não permite um crescimento saudável, autônomo, unificado e o cumprimento das responsabilidades sociais. (Sennett, 1998). Perdido e sem meios de viver em sociedade, o indivíduo pode encontrar duas soluções para o conflito entre o público e o privado: se refugiar na vida íntima para se proteger, através da religiosidade (como os antigos romanos), ou voltar-se para si mesmo para refletir sobre sua psique, como tem sido feito na modernidade. Para Sennett, essa segunda opção equivale a usar a vida íntima como um fim em si, o que acaba deixando os 22 sujeitos sem meios para se conhecerem e se relacionarem adequadamente. Com o advento da pós-modernidade, esse processo torna-se ainda mais prejudicial, pois as instituições e alicerces culturais que serviam de referência para os agentes sociais estão em constante mudança, não possibilitando nem funcionalidade na vida social e nem estabilidade interior. (Hall, 2003) Sobre o mesmo tema, Hollanda (1985) fala sobre a solução encontrada pelo homem cordial (forma de identidade adotada comumente pelo brasileiro) que busca compensar o vazio existencial, do não contato com os próprios sentimentos, com o exagero da afetividade na vida pública, substituindo a polidez e a ritualização (necessários para a organização e proteção da sociedade) pelas escolhas baseadas na cordialidade, vivendo através dos outros. Percebe-se, então, que o estudo da identidade em sua dimensão individual e social, conjugado com o estudo da sociedade urbana, sob contexto da pós-modernidade, contribui muito para entender o indivíduo contemporâneo, tanto em relação à suas relações sociais e valores na sociedade urbana, quanto a seus conflitos a respeito do domínio do público e privado. 1- O deslocamento da identidade na pós-modernidade Uma das principais características da pós-modernidade – período que inicia na segunda metade do século XX segundo Slater (2002) – é a mudança nos padrões identitários, que passam de unificados a fragmentados. Para Stuart Hall (2006), essa chamada crise de identidade é “vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais da sociedade moderna e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social”. (p.7) Hall desenvolve o tema afirmando que ainda são provisórias e sujeitas à contestação as teorias sobre o assunto e que há controvérsias sobre a existência ou não da crise identitária na pós-modernidade. O autor explica que, para os teóricos que acreditam num colapso da identidade, o argumento se desenvolve assim: Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas 23 transformações estão também abalando nossas identidades pessoais, abalando a idéia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (Hall, 2006, p.9) Hall explica que esse processo de perda de “sentido em si” pode ser chamado de deslocamento do sujeito. Sobre o mesmo tema, Slater (2002), afirma que as mudanças ocorridas após os anos 70, como o advento do capitalismo flexível e a aceleração do fluxo de informações, foram acompanhadas de uma intensificação na fragmentação da identidade, que, baseada na cultura do consumo, deixou de ter como eixo a tradição para girar em torno do poder de compra. O resultado foi o abandono da estabilidade e a adoção de formas transitórias de identidade. Slater (2002) explica que as regras tradicionais, baseadas em leis suntuárias, garantiam à nobreza os cargos políticos, o status social e econômico. Com a chegada do capitalismo, advento da burguesia e da modernidade, ocorridas entre os séculos XVIII e XIX, essas regras começaram a ser restringidas, sendo totalmente abaladas com a flexibilização do capital e o surgimento da pós-modernidade, que possibilitou a mobilidade social e constantes negociações da identidade social e individual. As relações sociais, assim como a cultura influenciada ou produzida por elas, passaram a ser fluidas e transitórias. De acordo com Baumann (2001), nesse mundo líquido moderno, as estruturas sociais que sustentavam as identidades agora estão em constante transformação e os indivíduos têm a seu dispor inúmeras opções de personalidade para utilizar, conforme o ambiente social em que estejam inseridos. Para Hall, a crise de identidade pressupõe um duplo deslocamento, com a “descentração” dos indivíduos tanto de seu lugar social e cultural quanto de si mesmos. Ele acredita ser de imensa importância este fenômeno, a ponto de explicar o momento sóciohistórico atual. Esses processos de mudança, tomados em conjunto, representam um processo de transformação tão fundamental e abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade que está sendo transformada. (Hall,2006, p.10) 1.1 - As três concepções de identidade Hall (2006) distingue três concepções de identidade em relação ao contexto sóciohistórico, a fim de estudar as transformações ocorridas com a chegada da pós- 24 modernidade: a do sujeito do Iluminismo, sociológico e pós-moderno. Para o autor, a primeira delas apresenta o ser humano como indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou ‘idêntico’ a ele – ao longo da existência do indivíduo. (idem, p.10-11). Sobre a concepção de sujeito sociológico, Hall explica que refletia a complexidade da modernidade e a consciência de que “este núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele habitava”. (ibidem, 2006). Essa concepção de identidade, baseada em teorias de autores do interacionismo simbólico, prevê que A identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo que é o “eu real”, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem. A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o “interior” e o ”exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. (Hall, 2006, p.11) O autor acrescenta que a concepção sociológica preenche o espaço “entre o mundo pessoal e o mundo público”, e que o indivíduo projeta a si próprio nas identidades culturais, internalizando seus significados e alinhando os sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupa no mundo social e cultural. O autor lembra, porém, que essas relações estão mudando, produzindo o sujeito pós-moderno: O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. (idem, p.12). Hall lembra que esse fenômeno transforma a identidade em uma “celebração móvel”, que se modifica conforme as representações nos sistemas culturais que nos rodeiam, sendo definida historicamente e não biologicamente. Para o autor, a identidade 25 plenamente unificada é uma fantasia, reforçada pela construção de uma “narrativa do eu” que os indivíduos constroem desde o nascimento. Sobre as condições de mudança numa sociedade pós-moderna ou de modernidade tardia, Anthony Giddens afirma: Os modos de vida colocados em ação pela modernidade nos livraram, de uma forma bastante inédita, de todos os tipos tradicionais de ordem social. Tanto em extensão, quanto em intensidade, as transformações envolvidas na modernidade são mais profundas do que a maioria das mudanças características dos períodos anteriores. No plano da extensão, elas serviram para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em termos de intensidade, elas alteraram algumas das características mais íntimas e pessoais de nossa existência cotidiana. (Giddens, 1990, p.21, apud Hall, 2006, p.16). Sobre as mudanças de que fala Giddens, Hall comenta que as mais importantes são as relacionadas à descontextualização das relações sociais. Castells (2000) explica que a difusão urbana, como resultado da revolução industrial, teve vasta influência nos relacionamentos, que de primários e afetivos, passaram a ser associativos, tendo os interesses como principais atrativos. 2-A sociedade urbana e o impacto nas relações sociais Segundo Castells (2000), sociedade urbana quer dizer, no sentido antropológico do termo, um “certo sistema de valores, normas e relações sociais possuindo uma especificidade histórica e uma lógica própria de organização e de transformação”. (p.147). O autor explica ainda que o modelo teórico de “sociedade urbana” foi elaborado principalmente por oposição à sociedade rural, envolvendo a evolução das relações sociais da forma comunitária para associativa, com a segmentação de papéis, multiplicidade de dependências e a primazia de relações sociais secundárias sobre as primárias. Embora Castells argumente que o capitalismo industrial não provocou o reforço da cidade e da cultura urbana enquanto sistema institucional e social autônomo, o autor reforça que a urbanização, enquanto processo de organização do espaço, é produto da industrialização e que a autonomia do modelo cultural urbano e a difusão urbana são dois processos contraditórios. Com efeito, a constituição da mercadoria enquanto engrenagem de base do sistema econômico, a divisão técnica e social do trabalho, a diversificação dos interesses econômicos e sociais sobre um espaço mais vasto, a homogeinização do sistema institucional, ocasionam a irrupção da conjunção de uma forma espacial, a cidade, e da esfera de domínio social de uma classe específica, a 26 burguesia. A difusão urbana equivale exatamente à perda do particularismo ecológico e cultural da cidade. (Castells, 2000, p. 45) Conclue-se, então, dos estudos de Castells, que existem duas conceituações básicas a respeito do urbano: o fenômeno de organização do espaço, ou urbanização, já exposto aqui e a difusão de uma cultura específica, a cultura urbana, que estaria sendo incluída em muitos estudos no conceito de urbanização. Esta união dos dois conceitos, de acordo com o autor, tem cunho ideológico e tem por finalidade “fazer corresponderem formas ecológicas e um conteúdo cultural” e “sugerir uma ideologia da produção de valores sociais a partir de um fenômeno ‘natural’ de densificação e heterogeinização”. Castells lembra que a urbanização, ligada à revolução industrial e ao capitalismo, esteve fundamentada em dois fatos fundamentais: a emigração das populações rurais para centros urbanos já existentes, fornecendo mão-de-obra para as indústrias e a passagem de uma economia doméstica para uma economia de manufatura, depois para a fábrica. Desta forma, ao mesmo tempo que as cidades já existentes à época da revolução industrial atraíram as indústrias, estas também colonizaram espaços e provocaram a urbanização. Sobre a identidade e relações sociais do indivíduo pós-moderno em uma cidade, Simmel (1987) analisa que “os problemas mais graves da vida moderna derivam da reivindicação que faz o indivíduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica de vida”. (p.11). Relatando um histórico da humanidade desde as épocas primitivas até a atualidade, Simmel lembra que no século XVIII, com o advento da modernidade, ocorreu a especialização funcional do homem e de seu trabalho, tornando-o único e incomparável. No entanto, este mesmo fenômeno provocou a interdependência entre os indivíduos, já que cada um precisará dos serviços que só o outro sabe desempenhar. A dificuldade existente nas sociedades modernas, no entanto, é que os sujeitos resistem a serem nivelados por um “mecanismo sociotecnológico”. De acordo com Simmel, as cidades são as sedes da mais alta divisão econômica do trabalho. O autor lembra que a metrópole, apesar de funcionar em regime de especialização, onde um homem é dependente dos serviços do outro, conduz a um tipo de existência pessoal mais individual. Essa discussão da vida em uma cidade e os conflitos entre o social e o individual vão ao encontro da oposição entre o público e o privado, tema a ser discutido a seguir. 27 3-Identidade pós-moderna entre o público e o privado: conflitos urbano Sennett (1998) compara a evolução das categorias de público e privado na modernidade ao processo de decadência do império romano, dizendo que, à medida que o reinado de Augusto decaía, os romanos passaram a tratar a vida pública como uma formalidade. O autor explica que para contrabalançar essas exigências formais do espaço público, a população romana passou a cultivar em sua vida privada novos princípios e crenças, entre elas o Cristianismo. Com o indivíduo moderno ocorreu processo semelhante: A maioria dos cidadãos aborda suas negociações com o Estado com um espírito de aquiescência resignada, mas essa debilitação pública tem um alcance muito mais amplo do que as transações políticas. Boas maneiras e intercâmbios rituais com estranhos são considerados, na melhor das hipóteses, como formais e áridos e, na pior, como falsos. (Sennett, 1998, p.15-16). A principal diferença entre os tempos da decadência romana e a modernidade é, segundo Sennett, que o romano buscava o princípio da religiosidade para contrapor ao público e o indivíduo moderno busca uma reflexão sobre sua própria psique, ou sobre a autenticidade de seus sentimentos. Essa tendência é avaliada como negativa pelo autor, que considera que o indivíduo moderno tem tornado seus momentos de privacidade com a família e amigos íntimos, um fim em si mesmo, levando-o ao isolamento e não a uma compreensão de sua própria personalidade, de seus sentimentos. Considera-se esta vida psíquica tão preciosa e tão delicada que fenecerá se for exposta às duras realidades do mundo social e que só poderá florescer na medida em que for protegida e isolada. O eu de cada pessoa tornou-se seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo. E precisamente porque estamos tão absortos em nós mesmos, é-nos extremamente difícil chegar a um princípio privado, dar qualquer explicação clara para nós mesmos ou para os outros daquilo que são nossas personalidades. A razão está em que, quanto mais privatizada é a psique, menos estimulada ela será e tanto mais nos será difícil sentir ou exprimir sentimentos.” (idem, p.16) Sennett vai mais a fundo na explicação da relação entre a identidade do homem moderno e o conflito entre o público e privado, explicando que o romano conseguiu expor sua religiosidade, antes vivida no mundo íntimo, ao mundo público, “subjugando a lei militar e o costume social a um princípio mais elevado, claramente diferente”. (1998, p. 16). O autor explica que no mundo moderno, a relação entre o mundo privado e público não está clara, pois os indivíduos tentam entender a sociedade a transformando numa estrutura psíquica. “Podemos compreender que o trabalho de um político é o de elaborar ou executar a legislação, mas esse trabalho não nos interessa, até que percebamos o papel da personalidade na luta política.” (idem, p.17) Chamando a visão psicológica da vida de 28 “íntima”, Sennett afirma que os indivíduos acabam por se decepcionarem com o mundo exterior ao adotarem esse comportamento. A obssessão para com as pessoas, em detrimento de relações sociais mais impessoais, é como um filtro que descobre o nosso entendimento racional da sociedade; ela torna obscura essa importância continuada da classe na sociedade industrial avançada; leva-nos a crer que a comunidade é um ato de autodesvendamento mútuo e a subestimar as relações comunitárias de estrangeiros (ibidem, p.17) Para Sennett, a visão intimista ganha proporção maior na medida em que o domínio público é abandonado, por estar esvaziado. O autor afirma que o espaço público morto é uma das razões pelas quais as pessoas procuram um terreno íntimo, através do isolamento. Mas esse comportamento de fuga à visibilidade pública e a ênfase na visão psicológica do social exige uma relação complementar, onde a necessidade de exposição é satisfeita, para pessoas com quem quer se fazer contato. A relação complementar existe então, pois são duas expressões de uma única e geral transformação das relações sociais. (...) Às vezes, penso nessa situação complementar em termos das máscaras criadas para o eu pelas boas maneiras e pelos rituais de polidez. Essas máscaras deixaram de ter importância em situações impessoais, ou parecem ser propriedade exclusiva dos esnobes; em relacionamentos mais íntimos, parecem impedir que se conheça outra pessoa. E me pergunto se esse desprezo pelas máscaras rituais da sociabilidade não nos tornou, na realidade, culturalmente mais primitivos do que a mais simples tribo de caçadores e catadores”. (Sennett, 1998, p. 29-30) 3.1 - O público e o privado como crise de identidade Para investigar as origens da crise entre os domínios do público e privado na modernidade, Sennett (1998) relata que, por volta do final do século XIX, houve uma intensa preocupação com a exposição involuntária de estados psicológicos, que era estudada por uma prática chamada frenologia – a leitura da personalidade a partir da forma da cabeça – e da criminologia, pelas quais psicólogos tentavam identificar futuros criminosos através de traços físicos. Em ambas correntes de estudos, acreditava-se que a personalidade não poderia ser ajustada pela vontade do indivíduo. Em noções mais refinadas, como as de Darwin, também se pensava que estados emocionais transitórios fossem expostos involuntariamente; na verdade, muito das primeiras investigações psicanalíticas baseou-se em um princípio derivado de Darwin: a saber, que o processo primário poderia ser estudado em adultos, porque escapava à vontade e ao controle do adulto (idem, 40-41) O autor afirma que esses estudos são emblemáticos do período de transição para a modernidade, que é caracterizado por quatro condições psicológicas: desvendamento involuntário da personalidade, superposição do imaginário público e privado, defesa 29 através do retraimento e silêncio. O primeiro deles, já descrito acima, tinha como resultado a crença de que a divisão entre os sentimentos particulares e a exposição pública poderia ser apagada e a fronteira entre o público e privado já não era mais uma conseqüência de ações humanas. O segundo traço da crise está no discurso político, onde esses agentes públicos são escolhidos mais por traços pessoais do que por sua atuação profissional. A terceira condição diz respeito aos mecanismos de defesa utilizados pelos indivíduos contra sua crença no desvendamento da personalidade e a confusão de utilização dos imaginários público e privado, que levam os indivíduos à compensação, elevando os artistas ao status de figuras públicas. Num meio onde se pensa que os sentimentos, uma vez despertados, eram exibidos além do poder da vontade de ocultá-los, o retraimento do sentimento é o único meio de se manter um certo grau de invulneranilidade. (...) Ao mesmo tempo em que as pessoas procuravam parecer o mais discretas possível, começavam a exigir que no teatro os trajes fossem indicadores precisos da personalidade. (ibidem, p.42-43) A quarta condição é o silêncio em público, que se tornou o único modo de experimentar a vida pública. Sennett explica que “o paradoxo da visibilidade e do isolamento que ronda tanto a vida pública moderna originou-se nesse direito ao silêncio público do seculo XIX. (...) As obsessões com a individualidade são tentativas para se solucionar os enigmas do século XIX pela negação”. (1998, p.44) A respeito da crise de identidade com respeito ao público e privado, Hollanda (1985) diz que o Estado não é uma ampliação do círculo familiar ou integração de certos agrupamentos, mas sim uma oposição ao privado. Ele afirma que “só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da cidade”. (p.141) Hollanda (1985) relaciona a crise entre o público e o privado com o conceito de “homem cordial”, dizendo que onde quer que seja forte a família patriarcal chega a ser precária a evolução da sociedade segundo conceitos atuais, pois indivíduos criados sob sistemas protecionistas tendem a ter problemas de adaptação. Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o homem cordial. (....) seria engano supor que essas virtudes possam significar boas maneiras, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. (p. 146-147) O autor diz que o brasileiro está longe da civilidade, pois esta é coercitiva. A forma de convívio no Brasil é o contrário da polidez, que seria a forma ideal para uma sociedade organizada e que “equivale a um disfarce que permitirá a cada qual preservar intactas sua 30 sensibilidade e emoções. Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da cordialidade, que não precisam ser legítimas para se manifestarem, revela-se um decisivo triunfo sobre a vida”. (Hollanda,1985, p.147). No homem cordial, Hollanda identifica um padrão totalmente diferente: a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio e, todas as circunstâncias de sua existência. Sua maneira de expressão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como no bom americano – tende a ser a que mais importa. Ela é antes um viver nos outros. (idem, p. 147) A crise de identidade dos indivíduos e sua dificuldade em estabelecer limites entre o que é público e o que é privado podem ser encaradas, portanto, como características da identidade pós-moderna e da sociedade urbana. Entre as soluções para este conflito, a polidez e a cordialidade são duas formas de personalidade, portanto, de identidades. Ao assumirem uma das duas alternativas, os indivíduos influem nas relações sociais, culturais e até econômicas de uma sociedade. Enquanto a conduta da polidez conduz a uma sociedade equilibrada e a um estado burocrático organizado, garantindo direitos e deveres políticos e sociais, a cordialidade leva a relações baseadas em favores, gerando crises. Para Sennett e Hollanda, essa segunda opção, comumente adotada pelos brasileiros, revela uma deficiência na educação familiar, sendo perigosa para a estabilidade da sociedade. Conclusão A sociedade urbana tem formas de qualificação diferentes para público e privado e cada uma corresponde a um tipo de identidade. O capitalismo e a pós-modernidade impulsionaram as relações associativas e ritualísticas, consideradas mais funcionais para Sennett e Hollanda, sobretudo para a organização da sociedade. Os dois autores concordam que a vida pública não pode ser ampliação da vida privada e que não se pode usar psicologia para estudar o social. Simmel e Castells estudam o impacto da vida na cidade na identidade individual e social do indivíduo, enquanto Hollanda e Sennett fazem estudo da influência do comportamento do indivíduo na sociedade urbana quanto aos domínios do privado e do público. Estas duas dimensões sempre se confrontam, ora construindo ou reconstruindo a outra. Todos os autores concordam que o capitalismo industrial, a pós-modernidade e a urbanização geram interdependência entre os indivíduos, sobretudo no que diz respeito aos 31 serviços. Mas isso não quer dizer que haja convivência mais próxima. Embora precisem uns dos outros, os indivíduos preferem viver isolados, situação que é potencializada pelo descentramento das identidades individuais e sociais, pois já que as instituições e valores que forneciam referências identitárias estão sempre mudando, não há mais terreno para estabilidade pessoal ou nas relações. Enquanto o domínio público entra em decadência, invadido pelo privado, os indivíduos paradoxalmente vivem mais isolados, pois usam a vida íntima como defesa, tentando refletir sobre suas psiques e usando a privacidade como um fim em si mesma. Isso impede que eles se conheçam e construam relações funcionais, de acordo com Sennett. A escolha entre as duas posturas apresentadas por Hollanda frente ao problema do público e do privado - o da polidez e a do homem cordial – continua sendo motivo de conflito para o indivíduo moderno, que não consegue manter unidade em sua personalidade. Referências BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001. CASTELLS, Manoel. A questão urbana. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 2000. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2002. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2003. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução: Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo, Editora Loyola, 1998. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras,. 1985. SLATER, Don. Cultura do Consumo & Modernidade. Tradução de Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo, Editora Nobel, 2002. SENNETT, Richard. O domínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução: Lygia Araújo Watanabe. São Paulo, Companhia das Letras, 1998. SIMMEL. George. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio G (org.) O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1987. 32 Orgânico e simbólico nas ciências sociais em saúde Organic and symbolic in the social sciences in health Litza Andrade Cunha1 Resumo: O artigo propõe uma reflexão acerca da fratura que divide o mundo acadêmico em duas dimensões: de um lado, o campo de conhecimento voltado para o estudo dos sistemas culturais e, do outro, a investigação da natureza. Desenvolvo o argumento de que o orgânico e o simbólico devem ser considerados não mais como totalidades dadas, ligadas por relações exteriores, mas dimensões vividas e articuladas em uma existência total. Palavras chave: sociologia da saúde, sofrimento emocional e itinerário terapêutico. Abstract: The article proposes a reflection about the fracture that divides the academic world in two dimensions: on one hand, the field of knowledge devoted to the study of cultural systems and on the other, the investigation of nature. I argue here that the organic and the symbolic should no longer be considered as given totalities linked through exterior relations, but as dimensions that are lived and articulated in a total existence. Key words: sociology of health, emotional distress and therapeutic measures. Introdução Na Grécia Antiga, os médicos costumavam prescrever aos pacientes, além das poções, a ida ao teatro (STOKLOS, 2001, p.13). Partiam do pressuposto de que os remédios só se processariam quimicamente no corpo quando no espírito se operasse também uma transformação. Alguns tipos de psicoterapia e terapias religiosas muitas vezes proporcionam uma imersão semelhante à do teatro. Trata-se de situações produtoras de uma poderosa experiência transformadora que faz emergir emoções, via um processo em que a dimensão orgânica, dificilmente, pode ser dissociada da simbólica. No entanto, a fratura que divide o trabalho acadêmico e situa, de um lado, as disciplinas que lidam com a cultura e, do outro, os campos do conhecimento que se voltam para o mundo das estruturas materiais, dificulta a compreensão de vivências desse tipo. Pretendo refletir acerca dessa dicotomia nas ciências sociais voltadas para o campo da saúde, a partir do relato da trajetória de uma pessoa em situação de sofrimento emocional, que passarei aqui a chamar de Alice. 1 Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, Bolsista da FAPESB, Pesquisadora do Núcleo de Ciências Sociais em Saúde da UFBA, Estrada de São Lázaro, nº 197, Federação, Salvador-BA, tel: 32836446, [email protected] 33 O sofrimento de Alice Diagnosticada como esquizofrênica ainda na adolescência, em um de seus relatos, Alice revela: [...] comecei a sofrer muito, a vida parecia um pesadelo, sabe? Parecia que quando eu dormia era vida e quando tava acordada era pesadelo. Eu chorava, chorava tanto, vivia chorando. Só tinha vontade de morrer, queria morrer mesmo, porque era muito sofrimento, muita dor. Uma vez, eu cheguei a colocar uma faca no meu peito, mas não consegui enfiar. Mas eu desejava muito ter uma doença grave que me matasse rápido, sabe? Queria ter um câncer desses que matam a pessoa em pouco tempo, eu só pensava no que eu podia fazer pra morrer. Eu agia feito uma louca mesmo: não falava coisa com coisa, gritava, chorava muito, às vezes, na escola, eu saía e ficava sentada na calçada chorando, chorando. (Alice) O desejo de se libertar dessa condição por meio da morte enfrenta a severa desaprovação do espiritismo, religião que passa a ter forte presença em sua vida. Alice sempre fez uso de medicação psiquiátrica, porque acredita que isso pode oferecer uma certa segurança na prevenção das crises. Porém os remédios que toma provocam muita sonolência, dificultando o desempenho das atividades cotidianas. São tensões internas a exigir um enfrentamento permanente. O medo de ter uma crise faz com que ela nem leve em consideração a possibilidade de deixar de tomar essa medicação que traz efeitos colaterais danosos, que precisam ser controlados com o uso de outros remédios. O mais difícil para Alice, no entanto, é conviver com a sonolência, pois se constitui um obstáculo à realização de um projeto central na sua vida: trabalhar. Sempre está envolvida com novos planos profissionais que não consegue realizar e que terminam sendo substituídos por outros. Habitualmente, ela se queixa da falta de dinheiro para o lazer e para o pagamento do transporte. Filha de pais assalariados e moradora de um bairro de classe média, Alice sempre estudou em escolas particulares. Às vezes, Alice é tomada por uma tristeza profunda e chega a chorar o dia inteiro. Diz que nesses momentos: [...] a vida fica sem cor, fica tudo negro, nas trevas, nada tem sentido. Eu fico jogada na cama sem vontade de fazer nada. Eu tenho transtorno bipolar. Isso acontece de repente, sem mais nem menos, não tem uma razão específica. E eu não sei ainda lidar com isso... às vezes eu reajo, tomo um banho, saio de casa um pouco, vou ao centro espírita, mas às vezes eu me jogo na cama e fico paralisada, sem vontade de fazer nada. (Alice) São escolhas que dividem a pessoa entre desistir de viver e decidir permanecer lutando para se manter viva. Quando se refere à mãe e à irmã, sempre se queixa de não receber delas nenhum incentivo para melhorar. Sente-se sempre tratada por ambas como louca, doente e incapaz, 34 e isso lhe provoca muita raiva. Por essa razão, tem evitado ao máximo ficar em casa e termina se envolvendo com uma série de atividades fora: participa de um coral numa universidade pública e tem se apresentado em vários lugares, vai com frequência às atividades de dois centros espíritas, e também atua no movimento de luta antimanicomial. Ela vivencia a experiência da presença dos espíritos obsessores, mas acredita também que há uma dimensão física de seu problema que deve ser enfrentada com o tratamento psiquiátrico. O cotidiano de Alice oscila entre momentos de depressão, medo de voltar a ter uma crise e a tentativa de articular e combinar as diversas práticas, com vistas a garantir uma normalidade que lhe permita realizar o que planeja. Muitas vezes, chego no centro me sentindo muito mal e saio de lá ótima, animada, transformada mesmo, sabe? Mas o centro espírita não vende cura pra ninguém, cada um é responsável pelo seu tratamento, a melhora só depende da própria pessoa. Quando eu fico sem vontade de ir no centro, isso é um sinal de uma crise se aproximando. (Alice). Por isso diz que se esforça para ir mesmo sem vontade. Faz tratamento também em instituições psiquiátricas e, em uma delas, recebe um atendimento psicológico que considera muito importante. A articulação e a concordância entre essas diversas práticas nem sempre se fazem de forma fácil e exigem um esforço permanente por parte de Alice. Uma vez um espírito se manifestou em mim quando eu tava com o psiquiatra, era um espírito agressivo, ele disse um monte de coisa grosseira pra o médico, mas não era eu. Só que o médico não acreditava, porque ele não era espírita, mas tem psiquiatra que é espírita. (Alice) Ciências sociais em saúde As ciências sociais voltadas para a saúde, desde o princípio, vêm chamando a atenção para a insuficiência da compreensão biomédica acerca da doença. Seu foco principal sempre foi revelar, para além dos aspectos físicos, todo um universo de significados atribuídos à doença. Subjacente à maioria das abordagens está a percepção de uma doença em si, apresentando sinais físicos, sobre a qual se formulam diferentes formas de interpretação. Isso significa estabelecer uma cisão entre dois campos distintos: o primeiro refere-se aos aspectos orgânicos morfofisiológicos da doença (disease), estudados pela biomedicina, e o segundo se dirige à experiência subjetiva da doença que, segundo muitos autores, remete aos diversos sistemas de conhecimento voltados para compreensão, explicação e enfrentamento da doença (illness), domínio de atuação das chamadas ciências 35 da cultura. Nesse sentido, situações como a de Alice vêm sendo estudadas tradicionalmente por cientistas sociais apenas em suas dimensões culturais, reconhecendo-se a interligação entre natureza e cultura, mas entendendo-se cada uma como um sistema independente a ser separadamente estudado. A identificação de tal fissura na trajetória das ciências sociais em saúde exige uma reflexão acerca de seus pressupostos filosóficos, suas fragilidades e consequências para os estudos socioantropológicos. A concepção cartesiana constitui o fundamento filosófico desse fosso entre natureza e cultura. Ao situar o pensamento como próprio do homem e separá-lo de todo o resto, o extenso — aquilo que, contrariamente ao pensamento, manifesta-se no espaço —, Descartes promoveu uma fissura de grandes consequências. Essa separação em duas esferas ontológicas distintas colocou, de um lado, as substâncias extensas (res extensa), possíveis de serem medidas e descritas matematicamente, e, do outro, a consciência ou o “ser pensante” (res cogitans), gerando uma dificuldade de se compreender como ambas se relacionam, pois a origem e a manutenção dos sistemas aparecem como garantidas de modo independente (JONAS, 2004, p.95). Trata-se de tomar cultura e natureza enquanto esferas autônomas, ou seja, sistemas pré-dados, compostos por partes inter-relacionadas e mantidas por certas regularidades a serem descobertas pela ciência. Esse é um pressuposto bastante problemático, na medida em que cada sistema prescinde do outro para ser entendido e explicado, por só admitirem relações exteriores entre si, baseadas em causalidade. Ao conceber pensamento como separado de tudo o que existe no espaço, ficamos impossibilitados de resolver o dilema da relação entre essas duas esferas autônomas e, portanto, de perceber a natureza como um todo atuante (JONAS, 2004, p.11). Emergência de novas abordagens Alguns trabalhos abrem um novo arco interpretativo nas ciências sociais e promovem uma revisão realmente significativa dessas perspectivas sistêmicas. Trata-se de considerar natureza e cultura não mais como totalidades dadas, ligadas por relações exteriores, mas dimensões vividas e articuladas dentro de práticas. Um exemplo dessa nova orientação é o trabalho desenvolvido por Tim Ingold, um dos antropólogos que mais têm chamado a atenção para a necessidade de buscar superar essa fratura que divide o mundo acadêmico em disciplinas que lidam, por um lado, com a mente humana e seus produtos 36 linguísticos, culturais e sociais, e, por outro lado, em campos do conhecimento que se voltam para o mundo das estruturas materiais. Há algo de errado, diz Ingold, com a antropologia cultural ou social quando esta não apoia o fato de que a existência humana é organismo biológico envolto em processos de desenvolvimento semelhantes aos de outros organismos; da mesma forma que há algo de errado com a antropologia biológica ao recusar qualquer coisa que se aproxime do papel de agência, intencionalidade ou imaginação (INGOLD, 2000, p.2). O que chamamos de diferenças culturais consiste, em primeiro lugar, em variações nas habilidades, que se desenvolvem e são incorporadas aos organismos humanos por meio de práticas e treinamentos no ambiente, em um processo no qual corpo e mente não se separam. Assim sendo, enquanto propriedades de organismos humanos, as habilidades são tanto biológicas quanto culturais (INGOLD, 2000, p.5). Ingold propõe a substituição do fosso entre cultura e natureza por uma espécie de sinergia organismo e ambiente. Ao assumir esse ponto de partida, a antropologia deixa de se voltar primordialmente para os sistemas culturais, do modo pelo qual tradicionalmente as ciências sociais têm feito, e se dirige para os engajamentos em que indivíduos coexistem no mundo com seres diversos. Interessa ao antropólogo compreender as habilidades pelas quais participamos de um mundo comum, nos fazendo junto com ele. Desse modo, Ingold busca superar a postura tradicional nas teorias sociais de entender a ordem dos significados ou da cultura como sobreposta ao domínio da materialidade ou da natureza. Trata-se de uma tendência que tem levado os estudiosos a tratar o corpo como mero instrumento para a manifestação exterior de significados situados na ordem mais elevada da cultura. Segundo Jackson (1989 apud INGOLD, 2000, p.170), ao subjugar a corporeidade ao domínio semântico, essa posição teórica promove duas reduções. Primeiro, os movimentos, as posturas e os gestos corporais são reduzidos ao status de signos e dirigem o analista para a procura dos significados culturais extrassomáticos que lhe dão sustentação. Segundo, o corpo é feito passivo e inerte, enquanto o papel ativo de mobilizar, colocar em uso e atribuir significado é delegado a um sujeito do conhecimento apartado do corpo. Para Ingold, a primeira redução falha em reconhecer que gestos, por mais que possam ser realizados para simbolizar, delineiam seus próprios significados embutidos em contextos sociais e materiais de ação. A segunda redução ignora a consideração principal 37 da fenomenologia de Merleau-Ponty de que o corpo é dado em movimento, e a corporeidade do movimento carrega sua própria intencionalidade imanente. É por essa intencionalidade que o sujeito da ação é ao mesmo tempo um movimento de percepção (Merleau-Ponty, 1962 apud INGOLD, 2000, p.110-111). A maior parte dos psicólogos, observa Ingold, afirma que as pessoas percebem o contexto que as cerca pela construção de representações do mundo no interior de suas cabeças. Supõe-se que a mente trabalha sobre o cru material da experiência, constituindo sensações de luz, som, pressão sobre a pele e, então, organizando dentro de um modelo interno que se torna guia para a ação subsequente (INGOLD, 2000, p.2). Para Ingold, é James Gibson quem subverte essa concepção em uma obra intitulada The ecological aproach to visual perception (1979). É preciso descartar a ideia, que nos acompanha desde o tempo de Descartes, diz Gibson, da mente como um órgão distinto que é capaz de operar sob os dados sensíveis corpóreos. Percepção, argumenta este autor, não é a realização de uma mente em um corpo, mas do organismo como um todo em seu ambiente, e é equivalente ao próprio movimento exploratório do organismo através do mundo. Se a mente está em algum lugar, então, não é dentro da cabeça, mas fora dela, no mundo. Ingold acredita que a identidade e as características das pessoas são a condensação de histórias de amadurecimento dentro de campos de relacionamentos sociais que são passados adiante e transformados por meio das suas próprias ações (INGOLD, 2000, p.30). O ser ‘animado’ (animacy) [...] não é uma propriedade que as pessoas imaginativamente projetam sobre as coisas que elas percebem em sua volta. Ao invés [...] é um potencial dinâmico, transformativo do campo total de relações em que seres de todos os tipos, mais ou menos como pessoas ou como coisas, contínua e reciprocamente, se fazem existir. O caráter animado do mundo da vida, em suma, não é o resultado da infusão de espírito na substância, de agência em materialidade, mas é ontologicamente anterior à sua diferenciação (INGOLD, 2006, p.10 apud RABELO, 2008, p.123). Comumente, organismo e pessoa são concebidos como componentes separados da existência humana. Entretanto, argumenta Ingold, uma pessoa é organismo e não algo que lhe é acrescentado. O que nos impede de ver dessa maneira é uma certa concepção de organismo como algo separado, uma realidade limitada por certas fronteiras, algo vivendo e se relacionando com outros organismos no ambiente por meio de contatos externos, mas que não afetam sua base interna. E se pessoa é organismo, então os princípios do pensamento relacional, longe de ficarem restritos ao domínio da sociabilidade humana, devem ser aplicados certamente sobre sua continuação na vida orgânica. Seu argumento vai na direção de considerar que humanos são trazidos para a existência como organismos38 pessoas dentro de um mundo que é habitado por existências de vários tipos, tanto humanas como não humanas. As relações humanas que estamos acostumados a chamar de sociais, são um subgrupo das relações ecológicas (INGOLD, 2000, p.3). A antropóloga Annemarie Mol também tem desenvolvido um trabalho de pesquisa que converge para este entendimento de que cultura e biologia não são esferas separadas por rígidas fronteiras. O caminho para estudar as concepções sobre a doença tradicionalmente trilhado pelas ciências sociais voltadas para o campo da saúde não é, segundo Mol, uma via segura para se chegar à própria doença. Dirigir a atenção apenas para o significado é deixar de levar em consideração a importante realidade física do corpo. Em um mundo de significados, diz a autora, ninguém está tocando a realidade da doença, todos estão apenas formulando interpretações sobre ela. Em meio a várias interpretações, a doença não está em nenhum lugar para ser encontrada. Os estudos centrados nos significados multiplicam os observadores e mantêm isolado o objeto observado. Desse modo, Mol explica sua opção de não se ocupar das perspectivas, mas das práticas, das materialidades e dos eventos que fazem (enact) a doença (MOL, 2002, p.11). Assim como não é possível encontrar um sistema integrado de significados que defina a doença de uma vez por todas, não há também um corpo unificado numa totalidade dada a priori. Evocado como modelo característico do que é um todo pela tradição teórica ocidental, a sistemática coerência do corpo, em geral, nunca é questionada. Diferentemente desse ponto de vista dominante na biomedicina, para Mol, no corpo, a coerência não é autoevidente, mas permanentemente perseguida. Mas, embora não considere o corpo uma totalidade dada, Mol também não o compreende como fragmentado, ou seja, o corpo não é um todo nem uma série de fragmentos. Isso porque ele tanto pode se dirigir para a fragmentação, se assim for performado, ou para a integração. Nosso corpo abriga uma complexa configuração de tensões e conflitos que precisam ser enfrentados na direção de garantir a integração. Há tensões entre os órgãos do corpo; entre os controles internos e o caráter instável de seus comportamentos; e entre as várias necessidades e desejos que os corpos tentam combinar com vistas a perseguir a unidade. Manter alguém integrado é algo que exige um trabalho das pessoas, e quem falha em fazer isso morre (MOL; LAW, 2004, p.58-59). Na situação de sofrimento vivenciada por Alice, é possível perceber seu grande empenho em manter a vida dentro dos parâmetros de normalidade. Alice vai mobilizando 39 uma série de recursos para ajudar a garantir esse projeto: medicação, tratamento psiquiátrico, terapia psicológica e terapia espírita. Tudo isso vai sendo articulado na tentativa de superar suas dificuldades. Enquanto Alice continuar comprometida com o enfrentamento dos conflitos, o corpo tenderá a permanecer integrado. Ele é, no entanto, cheio de tensões: entre manter o controle e ser instável, entre as exigências de negociar com a esquizofrenia e outras demandas ou desejos. No dia a dia prático, essas tensões não podem ser evitadas, elas precisam ser permanentemente negociadas. A suposição de que temos um corpo coerente ou somos um todo, esconde, para Mol, muito trabalho a ser feito. Manter a nós mesmos como um todo integrado é uma das tarefas da vida, não nos é dado, deve ser conquistado (MOL; LAW, 2004, p.58). Se não há um corpo pensado como um sistema independente, mas modos de ser performado, não há, portanto, razão para se falar na doença como uma realidade única, sobre a qual se formulam diversos pontos de vista. É preciso superar essa postura ainda presente nas ciências sociais voltadas para o campo da saúde. A pergunta “O que é a doença?” deixa de fazer sentido, pois não se trata mais de buscar o significado último dos eventos e de encontrar neles uma explicação para as práticas. Em lugar de perguntar quais as concepções dos indivíduos acerca da doença, o central passa a ser o que essas pessoas envolvidas fazem. A orientação metodológica de Mol é, portanto, voltar-se para as práticas e buscar compreender como a doença vai sendo atuada nos diversos contextos. O enfoque deixa de ser a busca do que seja a esquizofrenia ou a depressão, e passa a ser a percepção de como é praticada, como é feita. Muitos relatos de sofrimento psíquico revelam que a preocupação em definir o que é a doença não é tão central para pacientes e médicos, mas sim o que fazer frente a ela. As pessoas atuam a doença sem muita preocupação com o que ela é exatamente. No diálogo entre médicos e pacientes no consultório, o central não é o que é mais real ou verdadeiro, mas o que é mais importante para cada paciente no enfrentamento de uma enfermidade. Nas consultas com o psiquiatra, Alice conversa sobre a quantidade e o tipo de medicação a ser usada, conforme seu relato: Eu só precisava tomar o Rivotril à noite pra dormir, se eu tomar durante o dia, como o médico passou, eu só tenho vontade de dormir e termino não conseguindo estudar e fazer minhas coisas. Eu pedi que ele passasse uma medicação que pudesse dar mais ânimo. Mas os médicos têm medo desses remédios, porque muitas vezes deixam a pessoa agitada demais. Eu fico eufórica às vezes, e aí fico falando demais, não escuto os outros. Termino falando muito alto, e no centro espírita reclamam se eu falar alto. (Alice) 40 Há uma preocupação em não incomodar, não ser inconveniente com os outros. Seu desafio é encontrar um equilíbrio entre a prostração e a euforia. Essa é uma discussão que mobiliza uma série de elementos: da vontade de trabalhar ao medo de ter uma crise, ou o receio de ficar muito agitada e incomodar as pessoas. Trata-se de avaliar as perdas e ganhos das atividades ou do tratamento. São discussões muitas vezes chamadas de meramente pragmáticas, mas Mol sustenta não haver nada acima ou abaixo das práticas, elas não são “meras”, mas tudo o que temos (MOL, 2002, p.63). Essas avaliações e escolhas vão definindo os modos de performar a doença. A doença vai sendo atuada numa trajetória em que entram em jogo os diversos agentes: médicos, pacientes, medicação, amigos, parentes, trabalho, desejos. Quando se solicita a Alice que fale sobre sua situação, o que ela relata é a experiência prática de conviver com a doença. Sua abordagem começa narrando o que ocorreu quando apareceram os primeiros sinais de sofrimento, as atitudes tomadas pelas pessoas, as dificuldades que surgiram, o modo como ela precisou ir se adaptando e reorganizando sua vida. Isso evidencia que ter uma doença não se restringe apenas à tentativa de encontrar significados para ela, mas traz à tona, sobretudo, desafios de ordem prática. As interpretações vão sendo bordadas e ganhando corpo no próprio tecido da ação, nas teias de atitudes concretas. A enfermidade de Alice se faz no entrelaçamento de diversos elementos heterogêneos, entre eles: conviver com o medo permanente de ter uma nova crise; ingerir uma medicação que, embora amenize essa ameaça, produz muita sonolência e a impede de ter uma vida mais ativa; argumentar com o médico sobre a necessidade de também usar uma medicação que combata o sono, mas que não a deixe muito agitada; acreditar que se devem afastar os espíritos obsessores, seguindo o tratamento na agência terapêutica espírita. Assim, não há uma doença a priori e sobre a qual vão se construindo concepções, porque a enfermidade vai sendo feita pelo paciente e seu modo de agir, e também pelos médicos, pela medicação, pelas compreensões e práticas espíritas, pelas relações com amigos e familiares, enfim, por uma pluralidade de agentes articulados na prática. Os relatos de Alice falam tanto de significados que mobilizam, quanto de objetos, espaços, pessoas que a afetam e por isso atuam a enfermidade. Se, em lugar de nos ocuparmos do estudo de sistemas de significados, voltarmos a atenção para as práticas através das quais a doença vai sendo atuada e vivida, podemos perceber que as fronteiras territoriais entre as profissões não são tão rígidas. Quando, por 41 exemplo, o psiquiatra pergunta a Alice no consultório “Como está você?”, ela faz um rico relato do modo como está vivendo, das dificuldades colocadas pela doença para a realização de seus projetos, dos problemas relacionados com a medicação, das tristezas, dos sentimentos de solidão, da vontade de trabalhar, ou seja, uma série de elementos heterogêneos podem emergir ou ser desprezados na sua descrição. O próprio psiquiatra vai não apenas observar exames que revelam aspectos físicos, mas também articular outros tantos elementos. Para Mol, ao formular tais relatos, médicos e pacientes tornam-se importantes etnógrafos, e foi nessa fonte que seu trabalho de pesquisa se fundamentou. Além disso, o fato de ser uma filósofa produzindo etnografias não a impediu de tratar também da realidade física, ou seja, de reconhecer o humano não apenas nos aspectos psicossociais. Embora interpretações sejam importantes, diz Mol, elas não estão sozinhas na realização de tudo o que envolve a vida, pois, no cotidiano, a vida que vivemos é também algo feito de carne (MOL, 2002, p.27). A condição de Alice envolve um corpo que tem sono ou expressa uma euforia indesejável, remédios atuando no organismo, hospitais, agências terapêuticas religiosas. A questão de Mol é não abandonar nas mãos dos médicos esse domínio das materialidades, dos espaços, de corpos e perseguir um caminho que permita falar livremente de todos esses aspectos que compõem as enfermidades. Colocando dessa forma, ela sugere que as próprias reflexões médicas podem se apropriar da atividade etnográfica. Conforme observa, a articulação de vários aspectos diferentes em uma história singular, típica de métodos etnográficos, não é algo novo para a medicina. Escutar uma entrevista clínica em que o médico pergunta “Como vai você?” ou “O que eu posso fazer por você?” e esperar que o paciente conte uma história sobre os eventos do dia a dia, no qual coisas de todo tipo coexistem e interferem uma na outra, é algo comum na clínica médica. Sobre esse ponto, a etnografia é uma técnica promissora: pode produzir ricas histórias de corpos vivos em que a medicina figura como uma parte da vida cotidiana. Mas, para Mol, as narrativas estáveis que perseguem a coerência perderão o ponto mais importante. Ela acredita que os aspectos trágicos de vivenciar as tensões e de reagir a elas devem ser descritos, assim como as histórias irregulares e recortadas são necessárias. Elas podem ser contadas por uma variedade de narradores, cujas vozes podem ser agrupadas e/ou confrontadas. Os pacientes estão aptos a contar histórias sobre suas experiências e os efeitos de suas intervenções terapêuticas. O alvo completo na forma de vozes múltiplas da história investigativa contada não precisa necessariamente caminhar 42 para uma conclusão. Sua força está no modo de abrir questionamentos (MOL; LAW, 1995, p.290). Considerações finais Esse deslocamento do foco dos estudos de sistemas de significados para as práticas parece apresentar uma boa alternativa de superação das tradicionais dicotomias, na medida em que considera não haver totalidades dadas a priori, mas perseguidas em um campo de ação. Assim sendo, vai se descortinando um caminho de compreensão do mundo não mais como realidade dada, mas atuada por diversos agentes humanos e não humanos. A premissa é de que não há uma doença independente do que se pensa e se faz, ou seja, atuar, ser atuado, pensar, sentir caminham juntos no processo de performar a doença. E, assim, seguimos nos tornando, enquanto nos empenhamos em tentativas de manter a totalidade integrada. De modo complementar, o trabalho desenvolvido por Tim Ingold permite iluminar melhor a compreensão de como essas experiências de atuar e ser atuado são vividas. Segundo o autor, grande parte do debate que se trava em torno dessa questão parte do princípio de que vivências desse tipo são marcadas pela transmissão de representações. A essas concepções Ingold contrapõe o argumento de que, em lugar de uma transmissão de conteúdos mentais, tais experiências envolvem, em primeiro lugar, a aquisição de habilidades por meio de uma educação da atenção. O aprendizado de Alice com a doença não envolve, portanto, diria Ingold, a execução pelo corpo de um conjunto de representações adquiridas previamente. Não há uma atividade intelectual separada da posterior execução de uma atitude comportamental. Trata-se de abandonar a noção de representações pensadas em termos de causa e efeito, ou seja, de superar a ideia de um corpo que seria instrumento a serviço de comandos mentais. Os cuidados desenvolvidos para enfrentar a doença ocorrem via um ajuste do organismo e do ambiente, num processo em que significação e ação não se separam, emergem juntas em um campo de atividade prática. Referências ALVES, Paulo C. A fenomenologia e as abordagens sistêmicas nos estudos sócioantropológicos da doença: breve revisão crítica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de 43 Janeiro, v.22, n.8, p.1547-1554, ago. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 18 out. 2010. INGOLD, Timothy. The perception of the environment: essays in livelihood, deilling and skill. London; New York: Routledge, 2000. 465p. INGOLD, Timothy. Da transmissão de representações à educação da atenção. Educação, Porto Alegre, v.33, n.1, p.6-25, jan./abr. 2010. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br>. 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O pensador fluminense insurge-se contra a imitação de modelos políticos estrangeiros por parte das classes dirigentes do país e advoga a necessidade de organizar e construir a nação, tarefa esta que seria levada a cabo por elites políticas e intelectuais. Como é analisada e destacada neste trabalho, a originalidade de Alberto Torres, está em opor-se às concepções racistas em voga no período em que escreveu suas obras. Palavras-chave: nacionalismo, elites políticas, Estado. Abstract : The present study examines the nationalist thought of the Brazilian intellectual, jurist, politician Alberto Torres. Torres is part of a historical and cultural context when several intellectuals start to reflect about the theme of national identity. The thinker from Rio de Janeiro reacts against the imitation of foreign political models by the country leading classes and advocates the necessity of organizing and building the nation, task that should be undertaken by political and intellectual elites. As analysed and highlighted in this work, Alberto Torres’ originality lies on his opposition to racist conceptions usually present when he wrote his books. Keywords: nationalism, political elites, State. Introdução: o autor e seu tempo Nas primeiras décadas da República velha uma série de intelectuais como Sílvio Romero, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Tavares Bastos, Euclides da Cunha, Alberto Torres, Nina Rodrigues e Oliveira Vianna se destacaram por pensarem a questão da identidade nacional, debruçando-se na temática do nacionalismo. De acordo com Ruben Oliven (OLIVEN, 2000, p. 60): Naquela época - como atualmente - o pensamento de nossa intelectualidade oscila no que diz respeito a essas questões. Assim, em certos momentos nossa cultura é extremamente desvalorizada por nossas elites, tomando-se em seu lugar a cultura européia (ou, mais recentemente, a norte-americana) como modelo. Como reação, em outros momentos nota-se que certas manifestações da cultura brasileira passam a ser extremamente valorizadas, exaltando-se nossos símbolos nacionais. 1 Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Avenida Bento Gonçalves nº 9500, CEP: 91509-900 - Porto Alegre-RS. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected]. 45 Neste período, forma-se uma tradição de pensamento político e social de cunho autoritário que se caracteriza pela oposição ao liberalismo, à democracia parlamentar, pela exaltação do nacionalismo e defesa de um Estado forte e centralizador. Esta corrente de pensamento deita raízes em figuras conservadoras do império como Visconde do Uruguai, Bernardo de Vasconcelos, Braz Florentino e Joaquim Nabuco, se corporificando historicamente com o advento do Estado Novo em 1937. Concentraremos nossa atenção na exposição e análise do nacionalismo no pensamento de Alberto Torres. As idéias de Alberto Torres não obtiveram o mesmo impacto e expressão de contemporâneos seus como Sílvio Romero, Rui Barbosa e Euclides da Cunha, mas influenciaram decisivamente o pensamento de autores de uma geração posterior como Tristão de Ataíde, Oliveira Vianna, Plínio Salgado, Azevedo Amaral e Cândido Motta Filho2. Centrada na temática do nacionalismo sua obra foi comemorada por autores tanto à direita como à esquerda do espectro político. Plínio Salgado, criador da Ação Integralista Brasileira na década de 1930, inspirou-se em Torres. Intelectuais de esquerda como Barbosa Lima Sobrinho e Cândido Motta Filho também beberam nas fontes da obra torresiana. Alberto Torres nasceu em Porto das Caixas, município de São João do Itaboraí, no estado do Rio de Janeiro, no ano de 1865. Era oriundo de uma família tradicional da região, seu pai Manuel Martins Torres foi magistrado e senador. Estudou Direito na Faculdade do Largo de São Francisco em São Paulo, mas terminou seus estudos jurídicos na Faculdade de Direito de Recife Torres foi deputado estadual, deputado federal, ministro da justiça, presidente do estado do Rio de Janeiro de 1897 a 1900 e ministro do Supremo Tribunal Federal de 1900 a 19093. Logo após sua carreira política e jurídica dedicou-se à atividade intelectual escrevendo para vários jornais do estado do Rio de Janeiro. Os artigos escritos para jornais foram reunidos em duas obras publicadas em 1914, A organização nacional e O problema nacional brasileiro. Vale aqui lembrar que, anteriormente, em 1909, publica Vers la paix, e em 1913 Le problème mondial, que tratam de temas ligados as relações internacionais. Em 2 Em 1932 é criada por estes intelectuais a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, espécie de centro cultural dedicado ao estudo do pensamento torresiano e a discussão dos problemas políticos e sociais brasileiros. 3 Alberto Torres foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal com 35 anos, o mínimo exigido pela constituição de 1891. 46 1915 publica um opúsculo chamado As fontes de vida no Brasil. Focaremos nossa análise do pensamento nacionalista de Alberto Torres a partir dos dois livros publicados em 1914. A desorganização nacional, o Estado e as Elites políticas Para Alberto Torres a sociedade brasileira encontrava-se em um estado de profunda desordem e anarquia social. Não haveria neste país qualquer sentimento de solidariedade social e consciência coletiva, campeando o mais sórdido individualismo e a luta entre partidos e facções: “Fora dos nominais laços políticos, as populações dos nossos Estados e municípios não são unidas por nenhuma solidariedade prática: não há união social e econômica em nosso país [...]” (TORRES, 1978, p. 202). Forjar um espírito nacional, uma mentalidade coletiva e solidarista são as palavras de ordem da filosofia política de Torres4. Observa-se de forma implícita o desejo, em seus escritos, de uma sociedade nacional homogênea, unitária, equilibrada e harmônica. Os excessivos contrastes, conflitos, regionalismos e partidarismos seriam sinais de anomia e desorganização social. A ausência de uma firme orientação política, de um princípio ordenador do corpo social era um mal a ser combatido: Somos um país sem direção política e sem orientação social e econômica. Este é o espírito que cumpre criar. O patriotismo sem bússola, a ciência sem síntese, as letras sem ideal, a economia sem solidariedade, as finanças sem continuidade, a educação sem sistema, o trabalho e a produção sem harmonia e sem apoio, atuam como elementos contrários e desconexos, destroem-se reciprocamente, e os egoísmos e interesses ilegítimos florescem, sobre a ruína da vida comum (TORRES, 1978, p. 63). Ao contrário de outros ideólogos do nacionalismo, que concebem a nação como uma entidade natural e eterna, Alberto Torres afirmava que as nações modernas são obra de arquitetura política, “feitas sobre terrenos heterogêneos, com raças distintas, são obras de arte políticas, que demandam décadas de trabalho consciente e de calma elaboração [....]” (TORRES, 1978, p. 70). A sociedade nacional teria que ser ordenada e construída: O nosso problema vital é o problema da nossa organização; e a primeira coragem de que nos cumpre dar provas, é a da longa, máscula e paciente tenacidade, necessária para empreender e sustentar, com vigor e inteligência, o esforço múltiplo e vagaroso da construção da nossa sociedade. É uma obra de arquitetura política, mas de uma arquitetura destinada a edificar um colossal e 4 Segundo Barbosa Lima Sobrinho (LIMA SOBRINHO, 1968, p. 321): “Alberto Torres conhecia bem a sociologia de seu tempo e citava, embora escassamente (o que valoriza as citações) os mestres da época, de Comte a Spencer, de Lester Ward a Giddings, de Letorneau a Buckle e a Frederico Le Play, sem esquecer os antropologistas e etnólogos a que recorreu, ou os que assinalavam, com Peschel e Ratzel, a influência poderosa da geografia, modelando sociedades, criando e desfazendo costumes e hábitos, no cadinho do meio físico”. 47 singular edifício, que deve viver, mover-se e progredir, - a que incumbe a nossa geração (TORRES, 1933, p. 47). A tarefa de construção da nação seria levada a cabo pelo Estado controlado por uma elite política e intelectual consciente da realidade nacional, “o governo só pode ser função de capazes, e a capacidade governamental é uma das mais raras” (TORRES, 1978, p. 250). Em outro momento, Torres assevera que são as aristocracias espirituais e temporais, as elites, que orientam e guiam os povos, revelando o aspecto elitista e conservador de seu pensamento: A vontade dos chefes temporais e dos chefes espirituais - do rei ao caudilho eleitoral, do sacerdote ao feiticeiro, do homem de ciência ao taumaturgo - pesou mais sobre os destinos dos povos que seus interesses, seus sentimentos e suas necessidades. Os povos têm sido moldados à imagem e semelhança de seus chefes (TORRES, 1933, p. 242). As massas não teriam um papel ativo em seu sistema político, pois a missão de reconstrução nacional e organização do país seria efetivada por minorias, aristocracias intelectuais e políticas. A revolução restauradora partiria de cima, do Estado comandado e guiado por elites esclarecidas. Trata-se de uma revolução conservadora. A defesa de um Estado forte, dirigista e intervencionista é um dos aspectos centrais do projeto nacionalista de Alberto Torres. Opunha-se assim ao Estado mínimo, gendarme, do liberalismo individualista. Para este autor, o Estado cumpriria uma função coordenadora, diretora, não podendo ficar inerte, passivo, diante da realidade social. Entretanto, se enfatizava a necessidade de fortalecimento do Estado não chegava ao exagero de advogar um Estado totalitário, absolutista, negador dos direitos e liberdades individuais. Caberia ao poder político central formar a sociedade, “formar o homem nacional é o primeiro dever do Estado” (TORRES, 1978, p. 229). Por sua vez, o sistema educativo seria acionado para transmitir os valores da nacionalidade e preparar as elites políticas e intelectuais para dirigir a nação. No seu livro A organização nacional propôs a criação de um Instituto de Estudo dos Problemas Nacionais e uma Faculdade de Altos Estudos Sociais e Políticos que teria como objetivo “a formação e educação das classes dirigentes e governantes” (TORRES, 1978, p. 275). Vale aqui ressaltar que, em 1955, o então ministro da educação Cândido Motta Filho, discípulo de Torres, cria o Instituto Superior de Estudos dos Problemas Nacionais (ISEB). Pretendia Alberto Torres a uniformização e a unificação da nação por meio do Estado e do sistema educativo. Caberia a estes a organização e ordenação do país. 48 Ainda com o objetivo de centralizar e unificar o poder político, o pensador fluminense argüia a necessidade do surgimento de um Poder Coordenador que teria por órgão central um Conselho Nacional. Seria um poder que se colocaria “acima dos demais poderes do Estado, para uma função de equilíbrio e de ajustamento de todo o sistema” (LIMA SOBRINHO, 1968, p. 464). Este Poder Coordenador muito se assemelhava ao Poder Moderador da época do Império e o Conselho Nacional lembrava o Conselho de Estado também vigente no período imperial. Conforme João Camilo de Oliveira Tôrres (TÔRRES, 1966, p. 251), o sistema político torresiano era uma forma de império sem a coroa, “o republicano Alberto Torres, de fato, queria restabelecer a estrutura, a organização do império.” Alberto Torres defendia a representação classista, nos moldes do corporativismo e do sindicalismo. Não pretendia a abolição da democracia parlamentar, mas acreditava que juntamente com a representação partidária deveria haver uma representação dos diversos grupos sociais que formam a nacionalidade. Não via com bons olhos o parlamentarismo e o regionalismo, pois ambos enfraqueceriam o poder central. Batia-se por uma república presidencialista unitária, altamente centralizadora e com poderes de intervenção nos municípios e estados. O pensamento de Alberto Torres expressava sobretudo uma visão organicista de sociedade. Os conflitos e tensões sociais, a luta de classes e de partidos eram concebidos como fenômenos negativos, a serem controlados e amainados. O tema da raça e a psicologia do homem brasileiro Em um período histórico onde vigoravam as concepções racistas, de supremacia da raça branca sobre as raças mestiças e de cor, Alberto Torres se destacava por valorizar o elemento mestiço, indígena e negro de nosso país. Não concordava com as concepções de Gobineau, Vacher de Lapouge e outros, muito em voga naquela época, e afirmava que o fator racial não era o fator determinante na compreensão de uma dada sociedade. Os fatores sociais, ambientais e geográficos se sobreporiam ao fator raça. Para Torres, a identidade nacional não se fundamentava apenas em laços de sangue, em uma identidade racial, desvinculando nacionalidade de raça. Não há para este autor uma relação íntima entre nacionalismo e racismo. As nações modernas são formadas por laços de afinidade, laços políticos, culturais e econômicos. 49 Acreditava que as nações modernas não são constituídas por uma única raça homogênea, mas por diversas raças distintas: Pretender formar, em nossa época, raças nacionais nos países novos, é verdadeira utopia; estes países destinaram-se a ser regiões de baldeação de populações transbordantes; dentro deles, conforme suas condições naturais, deviam reunir-se fatalmente os tipos mais variados (TORRES, 1978, p. 115). A concepção da superioridade da raça ariana era julgada por Alberto Torres como um mito, as raças seriam produtos do meio social e físico: As raças são produtos dos meios físicos; é o meio que lhes determina os caracteres. Nenhum grupo humano trouxe predisposição espontânea, nem adquire nenhuma superioridade ou inferioridade natural, senão a que resulta da modelação do indivíduo e das gerações pelo ambiente em que vem sofrendo o processo da formação orgânica e mental (TORRES, 1978, p. 116). De acordo com Luiz de Castro Faria (FARIA, 2002), praticamente todos os autores no período de 1870 a 1930 levantavam a bandeira do branqueamento do povo brasileiro, sendo Alberto Torres uma das raras exceções. A tendência de desprezar o elemento indígena e africano aqui presentes, por alguns intelectuais daquela época como Nina Rodrigues e Arthur Ramos, é rechaçada por Torres que percebia estas visões como infantis e levianas. O negro e o indígena não eram concebidos por Alberto Torres como “degenerados, indolentes e preguiçosos”: Seria simples pretensão de vaidosa nobreza étnica afirmar que o brasileiro negro ou índio é inferior ao branco. Mais de uma memória ilustre protesta contra a sentença de incapacidade dos nossos negros; e entre os nossos políticos e escritores eminentes, seria fácil apontar dezenas de figuras em que a mescla de sangue africano ou índio se denunciava nos traços fisionômicos (TORRES, 1978, p. 119). O branqueamento ou arianização do povo brasileiro, defendida por seu principal discípulo Oliveira Vianna5, era definida por Torres como uma ilusão e fantasia. Acerca disto e das relações entre Alberto Torres e Oliveira Vianna se faz necessário aqui fazermos alguns comentários. Os pontos de contato entre o pensamento de ambos são inegáveis. A crítica ao liberalismo e ao individualismo, a cópia e imitação de instituições e valores estrangeiros por parte de nossas elites dirigentes, a falta de senso nacional e de solidariedade social em nosso povo, a defesa de um Estado forte e centralizador e o 5 Importante aqui frisar que esta tendência racialista em Oliveira Vianna se atenua com o passar dos anos. Se lermos suas obras mais maduras como Instituições políticas brasileiras e Problemas de organização e problemas de direção não há qualquer referência ao fator racial enquanto elemento explicativo de uma dada sociedade. 50 realismo na análise social, são alguns tópicos presentes nos dois pensadores. Conforme Evaldo Amaro Vieira: A trajetória do pensamento de Oliveira Vianna encontra seu ponto de partida, sem dúvida alguma, nas análises de Alberto Torres, cuja problemática está sempre presente, mesmo quando reinterpretada por aquele. Torres mostrou que as questões políticas, constitucionais, sociais, educacionais e econômicas precisavam ser investigadas levando-se em conta a nação. A nação tem direito à unidade e este direito prevalece sobre as reivindicações de autonomia dos estados. Tal princípio dá o sentido nacionalista da obra de Alberto Torres e restaura - a consciência da nacionalidade - e o - sentimento dominante da pátria comum -. Notemos, assim, a estreita vinculação de Oliveira Vianna a este preceito nacionalista, cuja essência reflete a necessidade de revitalizar a unidade nacional, através do papel do Estado (VIEIRA, 1976, p. 77). Por outro lado, Luiz de Castro Faria assevera: A colagem destes autores não se sustenta pelos argumentos esgrimidos por cada um para basear suas sociodicéias do Brasil: embora as convergências existam (na consideração da função das elites, por exemplo) eles se contrapõem especialmente nas teses sobre a raça e a demografia, fatores centrais em Oliveira Vianna e marginais em Torres. Este não se apóia numa invocação do passado para interpretar os dilemas do seu presente, enquanto Oliveira Vianna abusa progressivamente de um passado que contribui a mistificar (FARIA, 2002, p.135). Há ainda outro ponto de divergência entre Alberto Torres e Oliveira Vianna, que se refere à consideração das características psicológicas e comportamentais do povo brasileiro. Tais considerações fazem lembrar “o homem cordial” de Sergio Buarque de Holanda, como podemos observar nesta passagem: Sensível, generoso, nobre, hospitaleiro, probo, trabalhador, o homem genuinamente brasileiro, fiel ao nosso espírito e sentimento tradicional, que não deturpou o caráter na confusão cosmopolita das grandes cidades, mostra logo á primeira vista, no sorriso aberto e na palavra serena, onde a ociosidade a que foi habituado põe uns laivos de desânimo - a inteligência viva e aguda, um raro senso da realidade, um engenho curioso e hábil (TORRES, 1933, p. 116). O cosmopolitismo dos grandes centros urbanos era visto por Torres, como um elemento negativo, corruptor do caráter tradicionalista do autêntico homem brasileiro. Não pactuava o pensador fluminense, com a idéia de que povo brasileiro tivesse uma tendência natural à apatia e à passividade: A idéia vulgar de que o brasileiro é, de natureza, preguiçoso, pertence ao número dos prejuízos que a observação superficial da nossa índole e dos nossos costumes inspirou ao nosso ceticismo de adoção. O brasileiro é trabalhador e ativo como os mais operosos povos do mundo. O trabalho é, no Brasil, em todas as profissões, mais demorado e mais intenso do que na Europa (TORRES, 1933, p. 115). 51 Considerava ainda Torres as diversidades dos tipos regionais. Cada região brasileira contribuiria, por razões históricas e naturais na formação de tipos específicos: No ponto de vista da inteligência, do caráter, da atividade, da iniciativa, a observação já denota traços distintos, entre os tipos das diversas regiões do país: a imaginação, o calor, a emotividade, dos homens do Norte; a ponderação, o espírito mais positivo, dos homens do centro; a tendência prática, mas aventurosa, dos paulistas; o cauto e prevenido conservantismo, de fluminenses e mineiros; o arrebatamento e espírito combativo dos gaúchos; a resistência e ambição tenaz do cearense, o auvergnat brasileiro; traços de inclinação literária, na cultura de certas populações; de pendor militar em outras - são agentes de diferenciação que se irão acentuando gradualmente (TORRES, 1978, p. 67). Ruralismo, capitalismo internacional e estrangeirismos A defesa do ruralismo, do destino agrícola de nosso país é também um dos elementos do ideário de Alberto Torres. “Nosso país tem de ser, em primeiro lugar, um país agrícola. Fora ridículo contestar-lhe esse destino, diante de seu vasto território” (TORRES, 1978, p. 207). Não aceitava a excessiva industrialização e urbanização das sociedades modernas, pois acreditava que tais processos poderiam desmantelar os laços sociais orgânicos, corrompendo o caráter generoso, sensível e probo do homem brasileiro. Combatia desta forma, o êxodo das populações rurais para os centros urbanos. Sobre isto asseverava: Num país vasto, a maioria das populações deve ser de agricultores. Se nosso povo, como aliás o de quase todos os países, evita, atualmente, o campo, e procura as cidades, e se a causa desse êxodo se manifesta, entre nós, como uma verdadeira repugnância pelo trabalho rural, é que as condições econômicas e sociais da vida agrícola repelem os habitantes, sem educação apropriada para amá-la e para exercê-la, em meio e terras não estudados. E os governos não fazem, com sua política de melhoramentos urbanos, de desenvolvimento da viação férrea e apoio direto ao comércio, senão desviar as populações do campo (TORRES, 1978, p. 231). A dicotomia entre campo e cidade e entre o rural e o urbano é uma das características do pensamento conservador. O campo, a zona rural e o trabalhador agrícola são percebidos como mais puros, como verdadeiros representantes da nacionalidade, ligados às forças telúricas e, assim, livres da corrupção das grandes cidades. De alguma forma, nestas cosmovisões conservadoras o espírito nacional se encarnaria de forma mais autêntica no camponês, no homem do sertão, dos pampas, do interior. Os laços 52 comunitários e o sentido de solidariedade social seriam mais fortes nas zonas rurais, as cidades representariam o individualismo, a competição desenfreada e o materialismo. Em consonância com a ideologia ruralista revela-se em Alberto Torres uma forte crítica ao capitalismo internacional, ao imperialismo das grandes potências e ao poder desmedido da esfera econômica na sociedade moderna. De acordo com o pensador fluminense estaríamos nos encaminhando para um sistema plutocrático, dominado por oligarquias financeiras e industriais completamente contrárias a idéia de nação. As antigas aristocracias militares estariam sendo substituídas em nosso tempo por novas aristocracias timocráticas: Para os povos de organização regular, o problema político de nossos dias está todo em saber se, na conquista das liberdades teóricas, pelo caminho das idéias e das formulas jurídicas, as aparências não iludiram os espíritos, substituindo o predomínio da tradição e do sangue, pelo predomínio da especulação e do dinheiro, as castas aristocráticas, com seus títulos militares e suas virtudes marciais, arrogantes de sua honra e de sua bravura, por essa outra classe de senhores improvisados, selecionados nos corredores das bolsas e no pano verde das roletas, ás vezes, cujos caprichos e aventuras pesam sobre a sorte de milhões de homens, em seus países e no estrangeiro, mais efetiva e poderosamente, que o de muitos reis de outrora (TORRES, 1933, p. 245). Para Torres de nada valeria um regime de liberdades e direitos formais sem uma verdadeira soberania econômica. Temia o açambarcamento de nossas riquezas pelas potências dominantes: O povo brasileiro jamais cogitou de um perigo nacional que o afrontasse de súbito, ameaçando-o, como o despenhar de uma avalanche, com a apropriação do melhor do seu patrimônio bruto e de seus bens em exploração, subordinadoo virtualmente ao governo de estrangeiros, e pondo a continuação da sua integridade, da sua independência e da sua soberania á mercê das grande potências econômicas e militares (TORRES, 1933, p. 236). A oposição ao capitalismo financeiro, as grandes indústrias e a cobiça do especulador é uma constante em certas propostas políticas e sociais conservadoras, que percebem no hipercapitalismo uma força desenraizadora e aniquiladora dos valores tradicionais. Seu projeto social e político exprime uma orientação comunitarista. O nacionalismo econômico, a proteção da economia nacional por meio de um Estado intervencionista e dirigista seriam as medidas necessárias para evitar a exploração do patrimônio nacional por empresas estrangeiras e pelas potências hegemônicas. Juntamente com a crítica ao capitalismo internacional, destacam-se nos escritos de Alberto Torres o rechaço pelo transplante de valores, instituições e normas jurídicas 53 estrangeiras por nossas classes intelectuais e políticas. Esta tendência foi cunhada por Oliveira Vianna (VIANNA, 1974, p. 22) como “idealismo utópico”. Segundo o pensador fluminense, nossas constituições e sistemas políticos não estão de acordo com o nosso povo e com a nossa história, sendo mera imitação de modelos de outros povos. Deveríamos assim forjar uma política própria, uma política nacional baseada no estudo de nossa realidade: “Não é verdadeira nacionalidade um país que não tem a sua política, e não há verdadeira política que não resulte do estudo racional dos dados concretos da terra e da sociedade, observados e verificados pela experiência” (TORRES, 1978, p.151). Em seu livro A organização nacional, o pensador fluminense propõe uma ampla revisão da constituição republicana de 1891. Procura mostrar que uma constituição deve ser orgânica, baseada na história e na realidade social de cada povo. A constituição de 1891 é vista por Torres, como uma cópia da constituição norte-america fundada em um regime presidencialista e federativo. Sua proposta é centralizadora, enfraquecendo o poder dos estados. Sobre esta constituição assim se manifesta: Como a nossa Constituição não é uma lei original, mas uma adaptação de instituições estrangeiras, deve-se partir, neste trabalho de hermenêutica de seu pensamento íntimo, das idéias, noções e doutrinas alheias, que dirigiam o espírito do legislador, no momento em que a elaborava. Ainda aqui fomos teóricos; a constituição de um país é sua lei orgânica, o que significa que deve ser o conjunto das normas, resultantes de sua própria natureza, destinadas a reger seu funcionamento, espontaneamente, como se exteriorizassem as próprias manifestações da maneira de ser e de viver, do organismo político. É por isso que se chama - constituição -. A nossa lei fundamental não é uma - constituição -; é um estatuto doutrinário, composto de transplantações jurídicas alheias. Seu grande modelo foi a Constituição dos Estados Unidos (TORRES, 1978, p.79). Alberto Torres é um pensador realista, pragmático, desconfiado de especulações teóricas abstratas, desconectadas da realidade objetiva. Os floreios de linguagem, a retórica vazia, o exagerado idealismo são alguns dos males das classes políticas e intelectuais apontados por Torres: Fora das teorias, tudo quanto, em nosso país, se tem por vida do pensamento e da opinião, é um estado de aérea divagação, erudita e brilhante, em que as idéias se diluem, dilatam-se e evolam-se, como para fugir, cada vez mais longe, à vida real, numa gaseificação de tropos e palavras sonoras - pulverizadas em frases as generalidades mais vagas de todas as escolas - sem que as inteligências tomem pé no trabalho de abstrair, de analisar, de sintetizar e de aplicar (TORRES, 1978, p. 35). 54 O pensador fluminense opõe o seu nacionalismo a um patriotismo sentimental e cerimonial, que apenas se manifesta em determinadas datas e festividades: “Este patriotismo é o patriotismo oficial ou litúrgico, o patriotismo dos protocolos e do ritual [...]” (TORRES, 1933, p. 263). O verdadeiro nacionalismo, o seu nacionalismo, deveria ser construído, inculcado na mente do povo, fundamentando-se não apenas em laços afetivos, mas em uma comunidade de interesses morais, sociais e econômicos, de forma que, em cada indivíduo estivesse viva a consciência nacional, o espírito da pátria. Sobre este assim afirmava: “O nosso nacionalismo não é uma aspiração sentimental, nem um programa doutrinário, que pressuponha um colorido mais forte do sentimento ou do conceito patriótico. É um simples movimento de restauração conservadora e reorganizadora” (TORRES, 1933, p. 275). É o nacionalismo para Alberto Torres, a condição basilar para a organização de um país, somente o nacionalismo pode tornar uma sociedade forte, sadia e unificada, mas isto é algo a ser feito, a ser forjado: Os países novos carecem de constituir artificialmente a nacionalidade. O nacionalismo, se não é uma aspiração, nem um programa, para povos formados, se, de fato, exprime, em alguns, uma exacerbação mórbida do patriotismo, é de necessidade elementar para um povo jovem, que jamais chegará á idade da vida dinâmica, sem fazer-se - nação -, isto é, sem formar a base estática, o arcabouço anatômico, o corpo estrutural, da sociedade política (TORRES, 1933, p.89). Considerações finais Como vimos neste artigo, para Torres, a nação é uma construção social, uma obra de arquitetura política, não sendo, desta maneira uma realidade natural, dada, mas algo a ser forjado. Neste ponto ele discorda de boa parte dos “intelectuais orgânicos” do nacionalismo que partem de uma postura primordialista (NASCIMENTO, 2003), concebendo a nação como um ente eterno. Conforme Alberto Torres, a construção da nação é levada a termo por elites políticas e intelectuais. São aristocracias, minorias iluminadas, portadoras da consciência nacional que formam a nação. Nesta tarefa acionam o Estado, o sistema educacional e os meios de comunicação de massa com o objetivo de nacionalizar a cultura, integrar política e juridicamente o país e transmitir os símbolos, mitos e valores nacionais (LÖFGREN, 1989). A principal originalidade de Torres está em sua postura anti-racista. No período em que escrevia, as concepções de supremacia da raça branca dominavam o cenário 55 intelectual. O pensador fluminense exaltava em seus escritos a figura do indígena e do negro. Torres desvinculava assim o nacionalismo do racismo. Outro aspecto do ideário torresiano que merece ser novamente enfatizado nesta conclusão é sua recusa em associar o nacionalismo com um patriotismo vago, sentimental e meramente litúrgico. Para Alberto Torres, o nacionalismo é antes de tudo a consolidação de um espírito nacional, a formação de uma consciência coletiva. Podemos definir o pensamento social e político de Alberto Torres como autoritário e conservador, porém é preciso distinguir o conservadorismo torresiano de outros conservadorismos. Não se trata de um conservadorismo católico à maneira de Jackson de Figueiredo, e de outros intelectuais católicos que gravitam em torno do Centro Dom Vital. Torres batia-se por um regime republicano de separação entre Estado e Igreja Católica. Não era o catolicismo, no ideário de Torres, o elemento de identificação e união da nacionalidade. Por sua vez, se destacava o papel do Estado, e de minorias dirigentes na organização da nação, não advogava a destruição do sistema democrático parlamentar e defendia com ardor as liberdades e direitos individuais. Seu pensamento oscilava entre o liberalismo e o conservadorismo, era um liberal-conservador com tendências autoritárias, mas não totalitárias. Por último, é preciso aqui ressaltar a relação ambígua e paradoxal existente entre o nacionalismo e a modernidade. Relação esta que se apresenta com clareza no discurso de Alberto Torres de crítica ao individualismo, ao capitalismo e seu elogio ao mundo rural e de pequenas propriedades. O pensador fluminense defendia a criação de uma sociedade nacional solidarista e orgânica. De maneira implícita se percebe uma ideologia iberista e pré-moderna na utopia torresiana (CARVALHO, 1999)6. Se por um lado as nações são construções modernas, e os movimentos e intelectuais nacionalistas “navegam” na modernidade, por outro é inegável que tais ideólogos e agrupamentos lançam mão da tradição, de elementos arcaicos e pré-modernos para consolidar e construir a sociedade e a cultura nacional. 6 Tratando sobre o pensamento de Oliveira Vianna, afirma José Murilo de Carvalho sobre o iberismo (1999:214): “O iberismo pode ser entendido, negativamente, como a recusa de aspectos centrais do que se convencionou chamar de mundo moderno. É a negação da sociedade utilitária individualista, da política contratualista, do mercado como ordenador das relações econômicas. Positivamente, é um ideal de sociedade fundado na cooperação, na incorporação, no predomínio do interesse coletivo sobre o individual, na regulação das forças sociais em função de um objetivo comunitário”. 56 Referências CARVALHO, José Murilo de. Pontos e Bordados: Escritos de História e Política. Belo Horizonte: UFMG, 1999. FARIA, Luiz de Castro. Oliveira Vianna: De Saquarema à Alameda São Boaventura, 41Niterói. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. LÖFGREN, Orvar. The Nationalization of Culture. Ethnologia Europaea. Journal of European Ethnology, Copenhague, vol. 19, n.1, 1989. MOTTA FILHO, Cândido. Alberto Torres: O tema da nossa geração. Rio de Janeiro: Schmidt, 1931. NASCIMENTO, Paulo César. Dilemas do Nacionalismo. BIB. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, São Paulo: nº 56, 2003. OLIVEN, Ruben. O nacional e o estrangeiro na construção da identidade brasileira. In: BERND, Zilá (org.). Olhares cruzados. Porto Alegre: UFRGS, 2000. SOBRINHO, Barbosa Lima. Presença de Alberto Torres: Sua vida e pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. TORRES, Alberto. A organização nacional. 3ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. _________.O problema nacional brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933. TORRES, João Camilo de Oliveira. Interpretação da realidade brasileira: Introdução à história das idéias políticas no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. VIANNA, Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras: Volume II. 3ª edição. Rio de Janeiro: Record, 1974. VIEIRA, Evaldo Amaro. Oliveira Vianna e o Estado Corporativo. São Paulo: Grijalbo, 1976. 57 A construção de novos sujeitos – reflexões pós-coloniais a respeito da relação entre conhecimento e poder The build of new subjects – postcolonial reflexions about the relation between knowledge and power Aline Tereza Borghi Leite1 Resumo: Com a finalidade de expor algumas abordagens que têm em comum o empenho em direcionar seus estudos a entender a experiência histórica dos subalternos, este artigo busca apresentar alguns aspectos que evidenciam a construção de uma nova epistemologia, com ênfase para o entendimento dos determinantes da produção do conhecimento. Para isso, utiliza como referência alguns estudos pós-coloniais que têm como propósito problematizar a forma como é produzido o conhecimento científico, questionando a noção de neutralidade da ciência e ampliando a análise para além dos “muros da universidade”. Palavras-chave: conhecimento; poder; estudos pós-coloniais. Abstract: The aim of this essay is to present some approaches that show the effort in directing its studies to understand the historical experiences of the subalterns; seeking to show some aspects that outline the building of a new epistemology, with emphasis in the direction of the understanding of the determinants of the knowledge output. In order to think about this question, it uses as reference a few postcolonial studies that have the purpose to question the way the scientific knowledge is produced, questioning the idea of neutrality of science and increasing the analysis beyond the "university walls". Key words: knowledge; power; postcolonial studies. Introdução Com o propósito de enfocar os estudos que se propõem a repensar a lógica das relações de poder, ao passar a considerar o não dito e as desigualdades quase que incontabilizáveis nas relações sociais, a atenção se volta inicialmente ao processo de construção do conhecimento, o que implica pensar que todo conhecimento é construído a partir da experiência que se tem do mundo. Desconstruindo-se a noção de um conhecimento supostamente racional, neutro, verdadeiro e isento de manifestações de controle e dominação, passa-se a compreender que, na verdade, o conhecimento tem se construído desconsiderando-se o “outro” silencioso ou silenciado, em que cada um estabelece para si uma alteridade, representada pelo “outro” desqualificado, subordinado e não digno. 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Contato: (16) 3351 8673 [email protected] 58 Na busca pela superação do marco epistemológico colonial e desconstruindo as interpretações essencializadas do “colonizado”, os estudos pós-coloniais – representados pelas contribuições de autores como Homi Bhabha, Edward Said, Gayatri Spivak e Stuart Hall, embora não estejam reunidos em uma matriz teórica única – formularam uma crítica ao processo de produção do conhecimento científico, promovendo uma reinterpretação da História Moderna e uma reconfiguração do campo discursivo. Segundo a abordagem colonial, caracterizada pelo Racionalismo europeu, o conhecimento era edificado levando-se em consideração que a ciência era vista como supostamente neutra, inquestionável, e feita por dominantes, na medida em que se destacava uma história hegemônica da Modernidade. Nessas circunstâncias, a história moderna reduzia-se a uma ocidentalização do mundo, partindo-se do pressuposto de que o Ocidente designava uma superioridade ontológica, essencializada, enquanto o Oriente era definido como o “outro”, sendo visto como atrasado e selvagem, representado pela “falta” em relação ao Ocidente imaginado (COSTA, 2006). No âmbito da discussão epistemológica empreendida pelos autores evidenciados, cabe destacar, de início, algumas questões que se revelam como inquietações aos estudos que se preocupam em entender o “por que” das diferenças: Em que medida sujeito e objeto se relacionam na produção do conhecimento científico? Há uma distinção nítida entre sujeito e objeto? Como se trabalha com gênero, raça, classe social e/ou sexualidade? As demandas da própria dinâmica acadêmica dão conta de pensar as lutas historicamente articuladas? Em que medida o desenvolvimento de paradigmas teóricos está vinculado às condições históricas? Um saber sobre o “outro” pode continuar sendo produzido pelo dominante? Uma abordagem sociológica sintonizada com os marcadores sociais da diferença Ao se nortear este enfoque pelas reflexões sociológicas que se propõem a incorporar os marcadores sociais da diferença, parte-se do princípio de que as realidades são muito diversas e as identidades são múltiplas e conflitantes, na medida em que os sistemas de significação e de representação cultural são caracterizados “por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis” (HALL, 2005, p. 13). As interseccionalidades, que se definem pela junção dos marcadores sociais da diferença, demonstram que os estudos de gênero, étnico-raciais e de sexualidade têm uma matriz 59 comum. Em virtude disso, não podem ser dissociados, o que implica a reunião de todas as categorias identitárias, em que todas as faces se interseccionam de modo absolutamente particular. Ressalta-se nos enfoques aqui reunidos o compromisso com as demandas históricas dos movimentos sociais. No texto “A voz e a escuta”, Miriam Adelman, constrói uma análise histórica acerca do que se processou entre a sociologia e os estudos feministas desde 1950, enfatizando as dimensões culturais e subjetivas deste processo histórico. Por meio da caracterização de uma mudança radical de cenário, a autora dedica-se a promover um resgate histórico das mudanças sociais que impõem desafios à academia, uma vez que se tornaram objeto de análise dentro da sociologia. A transformação radical que se percebia na sociedade da década de 1960 não se refletia no ambiente acadêmico, estando as reflexões teóricas baseadas nas referências anteriores, descontextualizadas, o que não permitia a quebra de paradigmas2. Os novos paradigmas conduzem ao pensamento de que não há uma distinção tão nítida entre sujeito e objeto. E que o processo de produção do conhecimento científico, que supostamente produziria uma ciência neutra, não deriva apenas do conhecimento restrito aos “muros da universidade”. Ao buscar romper com esta construção do conhecimento que reproduz a lógica de dominação – à medida que a abordagem científica privilegia um modo Ocidental de apreender o mundo e prioriza um discurso de representação estereotipado, desconsiderando as particularidades históricas – os estudos pós-coloniais empenham-se em distanciar-se do modelo dominante de representação da ciência, que tem se mostrado como posicionada claramente do lado do poder do colonizador, ao manter uma visão de autoridade. Desse modo, o conhecimento sobre o Oriente definia-se mediante as impressões e julgamentos ocidentais, como nos explica Said (2006, p. 103): Para o Ocidente, a Ásia representara outrora a distância silenciosa e a alienação: o Islã era a hostilidade militante ao cristianismo europeu. Para superar essas temíveis constantes, o Oriente precisava primeiro ser conhecido, depois invadido e possuído, e então recriado por estudiosos, soldados e juízes que desenterraram línguas, histórias, raças e culturas esquecidas, de maneira a situá-las - além do alcance do oriental moderno - como o verdadeiro Oriente clássico que poderia ser usado para julgar e governar o Oriente moderno. 2 A mudança de paradigmas teve como exigência a criação do “Centro de Estudos da Cultura Contemporânea” e dos trabalhos de Foucault, Deleuze e Guatarri, pós-estruturalistas, que se constituem como os autores que, ao contrário dos trabalhos que tinham a ciência como referência, construída no âmbito da Academia, produziram um saber construído com o fundamento das mudanças sociais contextualizadas no período histórico da década de 1960. 60 Por outro lado, os saberes subalternos não se constituem como um produto da universidade nem da ciência institucionalizada do Estado. Tais saberes são aqueles que não se enquadraram nas disciplinas institucionais e, em razão disso, puderam articular as diversas fontes; não demarcaram terreno, tendo um compromisso com “o que” se pesquisa, ao invés de “de onde” se pesquisa. Em sintonia com as demandas sociais do contexto histórico, os saberes subalternos apresentam uma visão crítica e contrastiva à perspectiva de autoridade da ciência. Dessa forma, enquanto o sujeito hegemônico era a base sobre a qual se construía a ciência, na modernidade, passa-se a perceber o sujeito como “descentrado” (HALL, 2005, p. 23), o que remete à imagem de um sujeito que não possui uma identidade permanente ou essencial. Considerando-se que as identidades são “formadas culturamente”, a transformação cultural do cotidiano, expressa pela “virada cultural’, resultou em uma compreensão mais ampliada da linguagem, o que implica alterações quanto à produção do conhecimento: [...] a cultura não é nada mais do que a soma de diferentes sistemas de classificação e diferentes formações discursivas aos quais a língua recorre a fim de dar significado às coisas. O próprio termo “discurso” refere-se a uma série de afirmações, em qualquer domínio, que fornece uma linguagem para se poder falar sobre um assunto e uma forma de produzir um tipo particular de conhecimento. O termo refere-se tanto à produção de conhecimento através da linguagem e da representação, quanto ao modo como o conhecimento é institucionalizado, modelando práticas sociais e pondo novas práticas em funcionamento (HALL, 1997, p. 13) Assim, a chamada “virada cultural”, manifesta nos movimentos sociais, contribuiu para criar uma exigência quanto às mudanças teóricas. Na concepção de Hall (2005), tratar a sociedade sob o viés da cultura passa a ser uma necessidade histórica, assumindo uma centralidade ao penetrar “cada recanto da vida social contemporânea”. Nessas circunstâncias, as revoluções da cultura produzem impacto “[...] sobre os modos de viver, sobre o sentido que as pessoas dão à vida, sobre suas aspirações para o futuro – sobre a ‘cultura’ num sentido mais local” (HALL, 1997, p. 2). 61 Este “momento de extraordinária contestação”, que se tornou o “palco social” que conduziu a uma transformação teórica, pode ser retratado nos seguintes termos: Não obstante as ambivalências de décadas posteriores, o que aconteceu nos anos 60 abalou a legitimidade de certas formas de poder e autoridade ou, pelo menos, criou movimentos que iniciaram essa tarefa, de maneira que pudemos ter acesso a uma nova linguagem para refletir sobre o mundo e, provavelmente, também para agir nele (ADELMAN, 2009, p. 27). Segundo a perspectiva adotada por Adelman (2009), as transformações históricas demandam mudanças teóricas. Isto é, questões novas relativas às circunstâncias históricas exigem a produção de novas questões teóricas. Isso implica dizer que a discussão dos marcadores sociais da diferença não é apenas acadêmica, levando-se em conta que a demanda das análises interseccionais têm uma origem prático-social. Com isso, não se pode, de fato, desvincular o desenvolvimento de paradigmas teóricos das condições históricas. Os novos saberes surgem como resposta às demandas sociais. Nessas condições, a discussão teórica das interseccionalidades vai se construir com base nessas expectativas sociais. Há processos históricos e sociais que conduziram os teóricos a pesquisar os sujeitos subalternos, alterando, com isso, a ordem do pensamento a partir do primeiro diálogo entre a sociedade e a academia. Trata-se da construção de uma nova epistemologia, o que resultou em uma “epistemologia subalterna”, produzindo, assim, um deslocamento da forma de produção do conhecimento (HALL, 2005). Reflexões sobre o “outro”, de “outra” cultura Ao elaborar uma reflexão acerca do saber que se constrói sobre a alteridade, Bhabha (2005) faz uma discussão epistemológica, questionando o conhecimento sobre o “outro”, produzido pelo dominante. Partindo-se do pressuposto de que todo conhecimento é construído a partir da experiência que se tem do mundo, pode-se afirmar que os saberes não buscam elementos que já existem e que precisam ser conhecidos. Na verdade, os saberes criam o objeto, a partir da constituição de um grupo de especialistas, para lidar com o objeto, que se revela como resultante das estratégias políticas e históricas. Dessa forma, Bhabha (2005) trabalha com as experiências subjetivas que são fundamentais para a 62 construção de dispositivos sobre um saber acerca do “outro”. O saber sobre o “outro” se constrói pelo discurso estereotipado, como uma ambivalência que cria um jogo de atração e desejo, e de repulsa e violência. Há, nos termos de Bhabha (2005), um processo de ambivalência que dá sentido ao estereótipo colonial ao conferir condições para sua ocorrência em conjunturas históricas e discursivas mutantes, fundamentando suas estratégias de individuação e marginalização. Isto é, o poder discriminatório, apoiado no argumento racial, sexista ou periférico, tem na ambivalência uma das estratégias discursivas e psíquicas mais significativas. O estereótipo é visto como um modo ambivalente de conhecimento e poder, o que representa um questionamento das posições dogmáticas e moralistas em relação ao significado da opressão e da discriminação. Ao se pensar a relação entre o discurso e a política para além dos limites do determinismo ou funcionalismo, observa-se que a partir da análise da ambivalência, podese chegar a uma compreensão dos “processos de subjetivação”. Nas palavras de Bhabha (2005, p. 106): Minha leitura do discurso colonial sugere que o ponto de intervenção deveria ser deslocado do imediato reconhecimento das imagens como positivas ou negativas para uma compreensão dos processos de subjetivação tornados possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo. Julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade política prévia é descartá-la, não deslocá-la, o que só é possível ao se lidar com sua eficácia, com o repertório de posições de poder e resistência, dominação e dependência, que constrói o sujeito da identificação colonial (tanto colonizador como colonizado). Nessa perspectiva, não é suficiente apenas o reconhecimento da diferença, já que o caráter discriminatório pode ser ainda mais aprofundado à medida que a representação do “outro” é estereotipada. Isso é o mesmo que dizer que o reconhecimento do “outro” ainda pode conter traços discriminatórios. A questão que assume uma relevância central é buscar questionar o “modo de representação da alteridade” (BHABHA, 2005, p. 107). Assim, o estereótipo pode ser mais facilmente verificado no âmbito do discurso, considerando-se que os subalternos também têm uma visão de si mesmos marcada pelos estereótipos construídos pelo dominante, na medida em que a fala do “outro” não consegue se distanciar dos termos do colonizador. A fim de deslocar a análise da marcação do estereótipo para os “processos de subjetivação”, percebe-se que a alternativa seria propiciar a desconstrução do aparato discursivo no universo acadêmico, considerando-se que a percepção da diferença deve 63 pressupor uma “ruptura epistemológica”. Nesse sentido, Bhabha (2005) avança ao promover uma ruptura em relação à construção do conhecimento. Nessas circunstâncias, é importante também citar as contribuições da teoria Queer, que se constitui como uma mudança radical no foco da política, criando uma política não tradicional e não convencional, desfazendo-se de um projeto identitário. Para além dos estudos de mulheres e homens, que predominavam até a década de 1970, os queer passam a reavaliar os padrões sociais de comportamento, pensando em superar a noção de ação e estrutura, desconstruindo, assim, a ontologia social. Com efeito, na perspectiva queer, a intenção é de revisar as normas, promovendo uma “destruição da ontologia social”, ao “chacoalhar” as bases da estrutura social, a partir do ângulo de visão do sujeito. Trata-se de pensar numa proposta de sociedade com subjetividades. Sabe-se que existem ambigüidades e conflitos na realidade empírica que vão além de alguns meios estruturais que permanecem aprisionando o processo de construção – hegemônica – do conhecimento. É o caso dos binarismos, que, como a base das estruturas de dominação moderna, expressos em polaridades identitárias, como mulher/homem, eu/outro, sujeito/objeto, preto/branco, permanecem representando o modo ocidental de apreender e classificar o mundo, constituindo-se como ferramentas para pensar e analisar a realidade. Já que o processo de produção do conhecimento tem um fundo colonialista, os estudos pós-coloniais, ao objetivarem explorar as fronteiras, produzindo uma reflexão além da teoria, fazem referência a diversas situações de opressão, definidas a partir de fronteiras de gênero, étnicas e raciais. Ao fazer uma crítica ao processo de produção do conhecimento científico, que reproduz a lógica da relação colonial, a abordagem póscolonial se define pelo propósito de “reconfigurar o campo discursivo, em que as relações hierárquicas são ressignificadas” (COSTA, 2006). Ao invés de essencializar o sujeito, tomando-o como coerente, é relevante, como no pensamento de Scott (2005) reconstituir a experiência que criou o sujeito, que é descentrado e que possui incongruências da fala e da ação. Na perspectiva desta autora, é preciso questionar as normas estruturantes que essencializam a estrutura e o sujeito. Fundamentando-se em Foucault, Scott (2005), busca, ao fazer história com uma perspectiva feminista não heterocentrada, reconstituir as relações de poder, numa determinada época e numa sociedade específica, a fim de fazer uma “analítica do poder”, 64 considerando o poder como contingencial, histórico e relacional. Nessa concepção, não há um sujeito portador, por essência, de uma perspectiva de mudança; depende, na verdade, de uma reflexão sobre a ordem estratégica do poder. Considerações Finais O intuito deste artigo foi o de suscitar reflexões acerca da seguinte questão imposta à investigação social: como escapar dos essencialismos ou de reiterar a ordem heteronormativa e do Ocidente ao se fazer ciência? Distanciando-se da história normativa e oficial, as análises apresentadas aqui não têm como finalidade normatizar o discurso, mas compreender as relações sociais que se estabelecem. Há, de fato, um deslocamento da forma de produção do conhecimento. Vimos que a teoria deve, em certo sentido, estar em transformação conforme a prática dos sujeitos, já que o processo marcado pelas transformações teóricas e criação de novos sujeitos se deu a partir de demandas históricas específicas, sendo os novos estudos resultado direto dos movimentos sociais, isto é, da subjetividade materializada. Esta abordagem teve como pretensão, portanto, permitir uma compreensão consistente das demandas políticas contextualizadas historicamente, revelando que as lutas, com efeito, são articuladas, resultando na produção de “novas formas de compreender o mundo” (ADELMAN, 2009, p. 23). Por fim, a exposição dos textos das abordagens pós-coloniais, que se dedicavam a entender a dominação colonial como restrição à resistência através da imposição de um conhecimento que desqualificava a fala do subalterno, buscou contribuir para a discussão, analisando as experiências subjetivas fundamentais à construção de um saber acerca do “outro”, e apoiando-se no argumento de que não é possível fazer estudos sociais desconsiderando os marcadores sociais da diferença. Referências ADELMAN, Miriam. A Voz e a Escuta: encontros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea. Curitiba: Blucher, 2009. BHABHA, Homi. A Outra Questão. In: O Local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. 65 COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos: Teoria social, anti-racismo, cosmopolismo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. HALL, Stuart. A Centralidade da Cultura. In: THOMPSON, Kenneth. Media and Cultural Regulation. London, 1997. Tradução de Ricardo Uebel, Maria Isabel Bujes e Marisa Vorraber Costa. . A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. SAID. Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. Tradução de Tomás Rosa Bueno. SCOTT, Joan W. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 13, n. 1, 2005. 66 A pesquisa biográfica e suas travessias: um diálogo sobre experiência etnográfica e imaginação The biographical research and its crossings: a dialogue on ethnographic experience na imagination Anaxsuell Fernando da Silva1 Resumo: Este trabalho se propõe a problematizar o rigor na investigação biográfica. Para tanto será feita uma comparação de duas pesquisas que utilizam procedimentos analíticos e metodológicos diferenciados. Richard Fardon, que investigou o itinerário de Mary Douglas, e, Rubem Alves que escreve sobre a trajetória de Gandhi. O posicionamento de pesquisa apontado por cada biógrafo permite discutir suas escolhas para a partir delas discutir o papel do trabalho de campo e da imaginação na reconstituição das trajetórias investigadas por meio da narrativa. Palavras-chave: pesquisa; biografia; etnografia Abstract: This work compares two biographical research that uses differentiated analytical and methodological procedures. Richard Fardon, who investigated the itinerary of Mary Douglas, and, Rubem Alves whom he writes on the trajectory of Gandhi. The positioning of research pointed for each biograph allows to argue its choices stops from them arguing the paper of the work of field and the imagination in the reconstitution of the trajectories investigated by means of the narrative. Such boarding allows to think the severity of the qualitative research, in special, the biographical research. Key words: research; biography; ethonography - São as minha memórias, dona Benta. - Que memórias, Emília? -As memórias que o Visconde começou e eu estou concluindo. Neste momento estou contando o que se passou comigo em Hollywood, com a Shirley Temple, o anjinho e o sabugo. É um ensaio duma fita para a Paramount. Emília! exclamou dona Benta. Você quer nos tapear. Em memórias a gente só conta a verdade, o que houve, o que se passou. Voce nunca esteve em Hollywood, nem conhece a Shirley. Como então se põe a inventar tudo isso?- Minhas memórias, explicou Emília, são diferentes de todas as outras. Eu conto o que houve e o que deveria haver[...]" (Monteiro Lobato, 1950, p.129) O olho vê, a lembrança revê e imaginação transvê. É preciso transver o mundo. (Livro sobre Nada, Manuel de Barros) Narrar é algo constitutivo do humano. De alguma forma a narrativa está sempre presente em nossa vida. Narramos fatos, feitos, fenômenos. Tentamos traduzir 1 Doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Rua Cora Coralina, s/nº - CEP 13083-896. Cidade Universitária - Campinas - São Paulo – Brasil. (19) 3521 2600Email: [email protected] 67 sentimentos e experiências por meio de narrativas. Cabe mencionar que os textos científicos também se constituem, de forma elaborada, coesa e parametrizada, em narrativas: narram descobertas, compreensões, interpretações, recomendações. Assim, narrar é dimensão basilar da comunicação humana e de atribuição de significado ao mundo ou, dito de outro modo, é no enredo que se encontra o sentido cultural, como lembrou Victor Turner (1980) O filósofo Paul Ricoeur admite a narrativa e a leitura como pressuposto essencial para a compreensão da história. A partir da narrativa o ato da escrita etnográfica não só ganha similitude com o verossímil, como arranja a relação entre a intenção e a ação, como pressuposições interligadas. Para ele deve-se valorizar a intriga, pois ela constitui o elo e faz parte da tessitura do texto, a verdade e o sentido de um acontecimento são relativos ao sentido e a verdade de outro acontecimento. Não se distingue dessa maneira, a narrativa do conhecimento histórico. Como o título desse texto sugere, compreendo que as narrativas assemelham-se a uma travessia. Essa palavra – como muitas outras – originou-se do latim trans-verto, que significa o verter-se e o figurar-se no itinerário do viver. Assim, a imagem da travessia, atrai e congrega muita das questões que emergem numa tentativa de traçar o itinerário da vida de uma pessoa. É que só na travessia o homem chega ao que o faz humano. Como bem lembrou Guimarães Rosa “Existe é homem humano. Travessia” (2001, p. 460). Se em travessia, o radical “vessia” deriva do verbo vértere que significa verter, tomar figura, realizar, já o prefixo trans exprime o que se dá através de, no agir e ir além, no se mover no caminho e como caminho. Mas o ir além, o agir pressupõe a ação. Ainda um pouco mais acerca da ação narrativa, ajudará na análise das biografias que proponho o entendimento Walter Benjamim sobre esta questão. Ele advogava que a arte de narrar origina-se na experiência – no alemão, Erfabrung, conceito central no pensamento benjaminiano. Para ele, narrar é a capacidade de intercambiar experiência com o outro. Nesse sentido, a experiência é o elemento original e originário a que recorrem os narradores. Narrar (do latim, narrare), etimologicamente, significa “fazer conhecer”. Portanto, erfahren e narrare fazem chegar o conhecimento ao homem. Erfahrung é a experiência que leva o conhecimento ao homem. Mas não a um conhecimento científico pautado por regramentos necessários ao situar o que é ou não é verdadeiro. Erfahrung é a experiência que leva o indivíduo a conhecer a sua existência. 68 Concomitante ao desaparecimento da narrativa como memória e experiência partilhada e transmissível coletivamente emergiu o modo capitalista de produção, que responde pela organização sócio-econômica do império da razão. A sociedade moderna, assentada no modo de produção capitalista, na cientificidade e na técnica, não admite a Erfahrung. Neste caso, Erfahrung “abdica” o lugar para a Erlebnis, também experiência mas uma experiência vivida isoladamente por um indivíduo solitário, desligado do seu grupo, de uma memória comum. Ainda acerca do ensaio O Narrador, escrito por Walter Benjamin, a narrativa das transformações sociais e culturais impactaram e deram à luz a modernidade européia. A modernidade técnica inerente ao estilo de vida burguês e capitalista do império da razão acaba com a arte de narrar e transforma a comunicação, até então portadora de uma sabedoria, em informação, portanto, um artigo de consumo como outro qualquer. Benjamin propõe a reconstrução da Erfahrung acompanhada por uma nova forma de narrativa. Biógrafos nas encruzilhadas: uma biografia é dada ou construída? Nas pesquisas biográficas, e não somente nelas, a metodologia não é algo abstrato, ao contrário, ela tem afinidades eletivas com a proposta de trabalho de cada biógrafo. Em grego hódos – do método – é caminho. E neste ponto, cabe mencionar Octávio Ianni (2000) e sua observação de que o conhecimento do mundo pode ser constituído por viagens reais ou imaginárias, quando mundo conhecido por histórias fantásticas que outros viajantes ou narradores propiciam ou propiciaram, por meio do campo literário e científico. Adentremos às biografias que proponho relacioná-las. De um lado temos Richard Fardon, antropólogo social e etnógrafo africanista, professor da Universidade de Londres, autor de Mary Douglas – uma biografia intelectual. De outro temos Rubem Alves, Filósofo, psicanalista e professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas, autor de Reverência pela Vida: a sedução de Gandhi. Ambos trazem consigo o desafio de contar a história de pessoas conhecidas além dos limites disciplinares e geográficos. Para isso, Fardon mantém o distanciamento tão apregoado por alguns autores das Ciências Sociais2 como pressuposto epistemológico, enquanto Rubem Alves efetua um deslocamento e assume a narrativa como sendo o próprio biografado. Tais características fazem com que a biografia de Mary Douglas seja 2 Me refiro aqui, de modo especial, a Bourdieu e sua noção de distanciamento. 69 considerada acadêmica enquanto a de Gandhi seja vista como uma peça literária. Razão pela qual me senti motivado para compará-las. Mary Douglas (1921-2007), acerca de quem escreveu Fardon, é uma das antropólogas britânicas mais produtivas e mais respeitadas. Escreveu por cinco décadas e ficou muito conhecida em virtude da abrangência de suas pesquisas, que vão desde a Teologia aos estudos ambientais, passando pela economia e pelos estudos da sociedade de consumo. E ainda está entre as pensadoras mais controversas da antropologia, seja por sua franca rejeição aos padrões de abordagem utilitarista presentes nas abordagens adotadas nas disciplinas que ela tentou colonizar, seja por sua vida de busca no interior de sua própria disciplina – enquanto outros se contentaram em abraçar um relativismo frouxamente definido – por uma fórmula explicativa universal para a diferença cultural. (Fardon, 2004, p. 11). Rubem Alves contou a história de Mahatma Gandhi (1869-1948), líder espiritual e pacifista indiano. Voraz defensor do princípio da Satyagaha, isto é, formas de protestos ancorados na não-violência, um político de “Gestos poéticos”. Os biografados são bastante conhecidos, o que torna maior o desafio de compor suas trajetórias. Além disso a vida de ambos parecem ter sido marcadas de modo significativo por suas convicções religiosas, fato que será ponderado por seus respectivos biógrafos. Ainda que sob prismas diferentes. Cada um, ao seu modo, valoriza o conflito na trama. Seja entre as concepções da antropóloga e dos seus críticos no âmbito acadêmico. Seja entre o líder político indiano e os governantes da sua época. Talvez ambos tivessem em mente a recomendação de Ricoeur “Uma história que não comportasse nem surpresas, nem coincidências, nem encontros, nem conhecimento, não reteria nossa atenção” (Ricoeur, 1984) . Richard Fardon, a biografia como um dado Esta não é uma biografia de Mary Douglas como indivíduo particular, mas uma descrição de seus escritos baseada nos textos e nos desenvolvimentos destes. Em grande parte, trata-se de um trabalho descritivo – uma explicação, mais do que uma avaliação. (Fardon, 2004, p.18) É com esta advertência que Richard Fardon prefacia seu livro que objetiva, como já mencionamos, compor (talvez decompor seja mais apropriado) a trajetória acadêmica/intelectual/biográfica da Antropóloga Mary Douglas. Para ele, o fundamental é mostrar por que Douglas “escreveu como escreveu, como desenvolveram suas idéias” (Id). Isso já aponta para a compreensão de Fardon da biografia como um dado objetivo, em que 70 é possível recolher dados e assim conciliar a trajetória intelectual de cinco décadas ao curso de oitenta e seis anos de vida da autora mencionada. Muito embora Fardon afirme que optou por um fio narrativo biográfico não linear (Id., p. 21), seu arranjo dos fatos é sucessivo, de modo que, a trama biográfica do livro divide-se em três partes sob um critério cronológico. Cada uma dessas partes subdivididas em capítulos tomando o mesmo critério como eixo, isto é, estabelecendo as divisões do tempo e fixando datas. A primeira parte do livro, em três capítulos, compreende o período de 1920 a 1950. No primeiro deles, chamado “Memórias de uma menina católica: décadas de 1920 e 1930”, tenta-se reconstituir a infância de Mary Douglas no referido intervalo de tempo, evidenciando uma meninice marcada indelevelmente pela visão de mundo do catolicismo inglês do inicio do século XX. O capítulo seguinte chamado “Os anos em Oxford: década de 1940”, como o próprio nome aponta refere-se aos anos pós-guerra em que Mary Tew (nome de solteira da biografada) ingressa e se diploma no Instituto de Antropologia Social de Oxford. No último capítulo desta parte, “A africanista: década de 1950”, concerne às suas pesquisas etnográficas e seus trabalhos como africanista. “Síntese: década de 1960” é como se chama a segunda parte do livro, que é subdividida em dois capítulos. Esta secção tem um caráter diferente, compõe-se de leituras rigorosas de Purity and Danger3 (o mais famoso livro de Douglas) – no capítulo quatro nomeado de “Pureza e Perigo revisitado” –, e da sua obra seguinte Natural Symbols, no capítulo cinco “Em defesa de Símbolos naturais”. Para Fardon, esses dois livros, ambos escritos na década de 1960, abrangem idéias que constituiria a base de incursões posteriores de Douglas em disciplinas contíguas à Antropologia e um ponto fulcral em suas novas arrancadas para seu projeto teórico. Na terceira parte do livro, “Excursões e aventuras: décadas de 1970-1990”, as entradas que Mary Douglas efetua em campos substantivos e seus variados interesses. Sua relação pela teoria do consumo e pela economia do bem-estar foi mediado pela investigação do ritual, de modo mais específico dos hábitos alimentares no capítulo seis intitulado “Rituais de consumo”. No capítulo sete, “armas verbais e meio ambiente em perigo”, seguiu-se do interesse econômico de Douglas para suas aventuras, em colaboração com outros autores, nas análises de risco e nas preocupações ecológicas nos EUA. Os capítulos oito, “De volta à religião – no Ocidente contemporâneo”, e nove, “De volta à 3 Publicado em português em 1976 pela editora Perspectiva com o título de Pureza e Perigo. 71 religião – no Antigo Testamento”, investigaram respectivamente as análises de Douglas sobre a religião contemporânea e, sua pesquisa intensa do Pentateuco. Dois capítulos encerram a última parte deste livro nomeada de “Preservando o modernismo antropológico”. Eles buscam situar a obra de Douglas em seu contexto, relacionando-a em seus aspectos filosóficos, políticos, teológicos e do desenvolvimento da teoria antropológica. No décimo capítulo, “As instituições pensam”, discute-se detalhadamente as formas como Douglas revisou seu próprio arcabouço teórico, ao longo de sua aplicação. O capítulo onze, “A consciência secreta dos indivíduos e a sociedade consagrada”, é um balanço da obra de Douglas considerando que seu trabalho representou uma nova convergência de correntes do pensamento social francês pós-reforma, que teriam sido refratadas e desenvolvidas através da antropologia social britânica de meados do século XX, com a educação e os compromissos católicos romanos da antropóloga. Para Fardon, a defesa de Mary Douglas das organizações hierárquicas, sua análise sociológica conservadora e sua ênfase nas bases sociais do pensamento coletivo podem ser relacionados com as fontes supramencionadas. No que tange aos aspectos formais do livro, o biógrafo faz, ao longo das 458 páginas do livro, uso constante de extensas citações, as quais para ele “deixa-a, em geral, falar por si” (Id. p.21). Salta aos olhos a necessidade de Richard Fardon situar e contextualizar historicamente tanto a trajetória da vida da biografada, quanto sua extensa produção acadêmica, além de ser criterioso com o detalhamento das suas fontes. O autor atribui uma enorme importância a linearidade na reconstituição dos fatos. Tanto que, ao final do livro ele acrescenta dois apêndices em que dispõe cronologicamente todas as publicações de sua biografada ao longo dos anos de 1950 – 1998 (livros, livros organizados, artigos em periódicos, capítulos de livros, ensaios de crítica e resenhas de livros, além de cartas e textos efêmeros). A tese sob a qual assenta o fio condutor da sua narrativa é de que na educação escolar secundária do Convento do Sagrado Coração em Roehampton, a disciplina hierárquica benigna preparou Mary Douglas para a admiração da ordem e transmitiu a ela uma duradoura preocupação em relação a questões sociais urgentes, particularmente a pobreza. Na medida em que regras altamente ritualizadas caracterizavam a vida cotidiana do convento em que viveu parte da sua vida, as aulas de teologia eram dedicadas à discussão aberta das encíclicas papais que definiam a doutrina social da Igreja Católica4, 4 Para ser mais específico, o autor refere-se, em particular, a Rerum Novarum e a Quadragesimo Anno 72 nas quais o papa Pio XI delineou a posição da igreja em relação à industrialização e à degradação das condições da classe trabalhadora. Após sair da escola, Douglas matriculou-se na Universidade de Oxford e lá se graduou em Ciência Política, Filosofia e Economia. Neste percurso, duas monografias (Land, Labour and Diet, Audrey Richards, 1939; e Os nuer, Evans Pritchard, 1940) marcaram-na decisivamente e a inspiraram fazer seu doutorado em Antropologia Social, desenvolvendo seu trabalho de campo entre os “Lele” do antigo Congo Belga. Fardon advoga que coube a ela desenvolver uma forma de durkheiminismo mais sólido em comparação ao que emergia em seu contexto. O biógrafo, Richard Fardon, afirma ter encontrado ânimo e advertência para o seu trabalho ao ler uma crítica escrita pela própria Mary Douglas acerca de uma biografia de outra Antropóloga, Margaret Mead: “Este livro sofre da limitação costumeira da hagiografia: é forte nos elogios (…) e fraco para lidar com os enigmas e problemas de uma pessoa que viveu em determinada época e lugar” (Douglas apud Fardon, 2004, p. 17). E mais adiante acrescenta: “reconfortante voltar, em busca de um roteiro, às expectativas dela mesma em relação a um biográfo” (Fardon, Id., p. 17). Além da advertência de Mary Douglas em relação aos produtos oriundos de pesquisas biográficas, ele tinha como pressuposto metodológico uma afirmativa de Hans Keller, a qual faz questão de anunciar “Nesta era obcecada por biografias, gostamos de pensar que a vida explica a obra, porém o mais comum é a obra explicar a vida” (Keller apud Fardon, 2004, p. 24). Como sua proposta foi de biografar Mary Douglas não como indivíduo particular, mas sim, descrevê-la a partir de seus escritos e do desenvolvimento destes, Fardon trouxe à tona as dificuldades levantadas pela tentativa de compor uma trajetória de uma pessoa viva5. Já que sua biografada escrevera incessantemente por cinco décadas. E, enquanto ele desenvolvia sua pesquisa ela escrevia ainda mais6, obrigando-o a “alcançar a poeira que ela ia deixando em sua trilha. Os aspectos positivos e as desvantagens do empreendimento de compor a trajetória de Mary Douglas, são avaliados dos pelo próprio biógrafo. Contou a seu favor na feitura do trabalho sua nacionalidade e classe atual semelhantes a da biografada, além do seu conhecimento pessoal (Mary Douglas o supervisionou durante a pós-graduação), 5 A primeira edição do livro de Fardon, em inglês, foi publicado em 1998. 6 Segundo o próprio Fardon, após a aposentadoria de Douglas e durante o período de desenvolvimento da pesquisa biográfica, foram escritos um terço de sua produção intelectual mais tarde publicados. 73 proximidade geográfica (ambos moravam “em ladeira vizinhas na zona norte de Londres”), formação de ambos em Antropologia, economia e etnografia africana, e, por fim, a experiência de terem sido docentes na mesma instituição (University College). As diferenças que pesaram na construção do trabalho, segundo ele, foram: “origem familiar, o sexo, o credo religioso e uma certa ignorância, em alguns campos de interesse de Douglas” (Id. p. 24). Vale dizer que Mary Douglas foi consultada acerca do convite a Fardon para escrever sua biografia e endossou a indicação. E, além disso cedeu-lhe tempo e apoio, recebendo-o em sua casa e eventualmente discutindo com ele dúvidas que emergiam acerca de momentos históricos da sua vida e idéias apresentadas em seus escritos. Rubem Alves, a biografia como composição imaginativa Contar é muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que tem certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, contar alinhavado só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficam muito mais perto da gente do que outras de recente data. Assim é que eu acho, assim é que eu conto. O senhor mesmo sabe, e se sabe me entende. Toda saudade é uma espécie de velhice. Riobaldo (Rosa, 2001, p. 115) Quem guardou consigo os ecos de Grande sertão: veredas sabe da importância que Rosa atribui à capacidade de transformar recordações "alinhavadas", planas e estéreis em experiências vivas. Narrar o passado como paradoxo que nos intriga e interroga é o desafio do narrador Riobaldo, e a proposta de Rubem Alves ao contar a história (ele prefere o termo estória) de Gandhi. Walter Benjamim parece anuir ao jagunço quando afirma ser cada vez mais difícil encontrar alguém com capacidade de narrar, de trocar experiências vividas por palavras. A experiência é a fonte do narrador, constituída por viagens fantásticas, daquele que percorreu o mundo ou daquele que permaneceu em seu país, conhecendo histórias e tradições: “a experiência propicia ao narrador a matéria narrada, quer esta experiência seja própria ou relatada” (Benjamim, 1975, p. 66). Tais idéias estão permeando a escrita de Rubem Alves no livro “Reverência pela vida”, que ao longo de 128 páginas busca compor a trajetória do lider religioso indiano Mahandas Karamchand Gandhi. Sobre sua intenção biográfica no livro, ele afirma: Foi isto que tentei fazer. Contei estórias sem respeitar o tempo e sem respeitar o espaço. Juntei coisas que aconteceram longe e pus no mesmo tempo a meninice e a velhice. Assim é o mundo da estória, parecido com os sonhos, arte do 74 inconsciente: lá não existe nem espaço nem tempo. Só o espaço e o tempo da saudade, coisa do desejo. (Alves, 2006, p. 119) A história é contada em dez capítulos curtos. Rubem Alves faz uma opção pouco convencional, narra a trajetória de Gandhi em primeira pessoa. Assumindo a história como se fosse sua própria história. Sobre o experiência de tradução da história de outrem numa “estória” contada para ser lida, ele confidencia durante uma entrevista7: Foi uma experiência estranha. Ao escrevê-lo tive a nítida impressão de estar num transe. Sem que eu fosse vegetariano fiquei incapacitado de comer carne enquanto escrevia. A carne que antes eu comia com prazer passou a causar-me repugnância. Vou transcrever, em memória a Gandhi, uns curtos trechos do que escrevi. Não creio que o que eu pudesse escrever agora, sem estar em transe Diante deste quadro é impossível não recordar a noção de “ser afetado” trazido à tona inicialmente por Jeanne Favret-Saada (1990) e posteriormente discutida por Márcio Goldman (2006), em que o pesquisador está sob o mesmo estado do “outro” e redimensiona seu papel participativo na pesquisa etnográfica, ou seja, o pesquisador observa participando e participa observando. Como já mencionei o livro não segue ordem cronológica. Antes, privilegio o arranjo poético entre os cenários descritos, assim como as interconexões entre os fatos relatados. A trama inicia-se no primeiro capítulo, “Gestos Poéticos”, com Gandhi, já morto, sendo cremado. Na medida em que as cinzas dele se espalham pelo Rio Yamuna ele conta suas memórias e reflete acerca da sua existência. Somente ao final desta secção do livro é que o autor explica, rapidamente, quem está por trás da fala e que conta a estória. Cito-o: Ah! Quase que me esquecia: os mortos não podem falar. É alguém que fala em meu lugar, que tentou ouvir e procurou colher as coisas que eu mesmo colheria, se pudesse. (Alves, 2006, p. 21) Em seguida, no segundo capítulo denominado “Origens”, o narradorpersonagem conta sobre seu nascimento e seu povo, evidenciando lembranças infantis. “Humilhações” é o título do terceiro capitulo e nele Gandhi relata uma série de vexames sofridos não somente por ele, mas também, e principalmente, por seus conterrâneos que viviam em Durban, na África do Sul. Segue-se a este “Satyagraha”, ponto em que o rebaixamento moral dos indianos atinge o seu ápice e Gandhi propõe uma afronta aos Britânicos, colonizadores da região, por meio de uma resistência não-violenta. 7 Publicada na Folha de São Paulo, Caderno Tendências e Debates, em 31/01/2001. 75 Nos dois capítulos seguintes, “O colar” e “Os saquinhos de anil”, interrompe a narrativa com a seguinte justificativa: “De repente, meus pensamentos ficaram confusos. Lembrei-me de um sonho que me deu grande ansiedade...” (Id. p. 61). O personagemnarrador, mais uma vez, abre mão da seqüência histórica dos fatos e entrega-se aos desígnios dos seus sonhos para contar, acerca de um colar que recebera e, respectivamente, sobre pequenos sacos em que as cores lembravam o céu da sua terra. Aqui sonhos, desejos e acontecimentos factuais se misturam de tal modo que nem mesmo o narrador sabe mais do que se trata. Os capítulos sete “A caminhada para o mar”, oito “A reverência pela vida” e nove “A tristeza final” trazem consigo o desenrolar da trama, dando ênfase às posturas políticas de Gandhi em defesa do povo indiano que era massacrado e oprimido pelos colonizadores britânicos. O último capítulo pretende ser – se assim pudermos chamá-lo – metodológico. Nomeado de “Como eu escrevi essa história”, o biógrafo Rubem Alves tenta expor seu percurso na construção da trajetória de Gandhi. Expondo os motivos que o levou a contar, e mais que isso, a forma como decidiu contar e sua relação com as fontes. Cito-o: Parecia brincadeira de armar quebra-cabeças. Milhares de peças sobre a mesa, fragmentos do passado, coisas que Gandhi disse e falou, coisas que outros disseram. De saída uma imposição: não mais que 65 laudas. Se fosse história eu estaria perdido. Não haveria enciclopédia que chegasse. Mas era estória. A fala seria minha fala... Pensei, então, coisa que não teria coragem de confessar se estivesse escrevendo para cientistas, no fundo não será verdade que toda história é uma estória? (Alves, 2006, p. 121) A estratégia narrativa é singular. Embora haja uma divisão em capítulos, o livro se transforma numa narrativa de um fôlego só, como se a história de Gandhi, a matéria vertente, jorrasse sobre o leitor em forma de palavras. Simulando um relato oral, Gandhi recorre à memória para reconstruir sua vida e transforma-se, ao mesmo tempo, em narrador e em personagem principal, não só de seu próprio relato, mas também acerca do contexto sócio-cultural em que estava inserido. A intrincada forma narrativa arranjada por Rubem Alves, que recorre ao diálogo entre Gandhi e o leitor, permite visualizar o cenário opressor imposto aos não britânicos (especialmente os indianos) na colonia de Durban, na África do Sul. Em muitos aspectos, a estratégia narrativa de Rubem Alves lembra a travessia espacial e interior do ex-jagunço Riobaldo, narrador e personagem princiapal de Grande Sertão: veredas, pelo sertão das Minas Gerais. Evocado pelo biográfo em seu último 76 capítulo não por acaso. O narrador personagem de Alves, Gandhi, também faz uma travessia exterior (Índia-África-Índia) e interior. O personagem biografado, ao contar sua história mostra conhecer sua verdade, ou aquilo que, através do processo de elaboração de sua experiência, teceu como verdade. Mas esta verdade precisa ser revisitada, pois há pontos “encobertos” e lacunas que ainda precisam ser preenchidas, assim, ele tece seu discurso, primeiro com metáforas e depois com os fatos, “compondo e decompondo” suas idéias. A imaginação exerceu, pois, um papel fundamental para a composição dessa trama, de modo que o factual e o fato imaginado se entrelaçam ao longo do texto. No capítulo que ousei chamar aqui de “metodológico”, Rubem Alves explica: Tive um problema: como separar a minha imaginação, que usei para completar os espaços vazios, dos materiais que o espaço legou? Haveria sempre o perigo do leitor confundir a voz do contador de causos com a voz do próprio biografado. Pensei em usar o recurso das aspas. Achei ridículo. Como se um compositor, autor de uma rapsódia construída com temas populares, fizesse soar os pratos sempre que um deles fosse tocados... preferi manter a indefinição. Vez por outra usei a frase de outro autor, peça de quebra-cabeça diferente, mas que se encaixa muito bem. T.S. Eliot, Rauschenbusch, Helálio Brito... (Id. p. 123). Rubem Alves transformou seu personagem biografado no típico narrador de Walter Benjamin. Gandhi é aquele que narra as ações da experiência, e não somente suas vivências. Embora não de maneira explícita, o leitor está presente ao longo de toda narrativa, conferindo o caráter dialógico da narração. Gandhi só se tornou o homem que foi, devido a todos os fatos que o circundaram que lhe garantiu uma aprendizagem da condição humana. Assim, pela repetição de sua história, Gandhi vai se construindo e elaborando, proporcionando aos leitores um mergulho em seu acervo memorialístico. Não sabemos quanto de verdade há em seu relato, mas sabemos como o narrador, ao longo dos eventos que vivenciou se construiu como líder religioso e, nesta narrativa, contador de causos. Interessante observar que esta reconstrução se dá sempre pela oralidade e que Gandhi repete relacionando-se diretamente com suas lembranças e esquecimentos. Benjamim (1994) faz uma definição a cerca da faculdade da memória, originada da Mnemósine, que sofreu uma espécie de cisão com o declínio do épico e a ascensão do romance. Se na narração o poder da memória está no campo das reminiscências que são justapostas como um todo unificado, no romance estamos no âmbito das recordações. A primeira é coletiva e efêmera e narra episódios de uma aventura e um herói, e a segunda é eternizante e individual (do romancista), narrando muitos eventos difusos. E, realmente, 77 são as reminiscências justapostas de Gandhi que formam a aventura de um líder eminente que teve um tipo de angústia com a qual muitos se identificam. Antônio Candido (2006) fez uma análise bastante interessante da travessia de Riobaldo, personagem do Rosa que aqui temos evocado, nesta análise ele mostra a influência do espaço do Sertão sobre a personalidade de Riobaldo, apontando alguns aspectos importantes dessa sua travessia interior. Segundo o autor, o meio físico é uma “realidade envolvente e bizarra, servindo de quadro à concepção do mundo e de suporte ao universo inventado.” (Candido, 2006, p.113). Tal análise parece ser útil também na história contada por Rubem Alves, na medida em que o deslocamento geográfico de Gandhi parece ser suporte da concepção do mundo do biógrafo que explicita sua valoração do passado como experiência vital, imanente, positiva, portanto, épica. Assim, compreendo que a escolha da narrativa para Gandhi compartilhar a sua procura existencial não é gratuita. Rubem Alves escolhe a narrativa para que Gandhi reconstrua o seu percurso existencial. A narrativa permite ao líder dos “gestos poéticos” manifestar o seu ser. Ela provoca o pensar, as lembranças. A narrativa é, pois, experiência e memória. E isso foi possível pela imaginação do biógrafo. Rubem Alves expressa a relação entre memória e experiência “Quando escrevo, repito o que vivi antes”. Do factual ao mitopoético: à guisa de uma conclusão Inicialmente tínhamos a perspectiva de que as narrativas constituíam a mais fidedigna descrição dos fatos e era esta fidedignidade que estaria "garantindo" consistência à pesquisa. Logo nos apercebemos que as apreensões que constituem as narrativas dos sujeitos são a sua representação da realidade e, como tal, estão prenhes de significados e reinterpretações. Conseguimos, ainda, perceber que, antes disto ser um problema, era o cerne da pesquisa sócio-antropológica pois, como explicitam Berger & Luckmann, as análises tem particular importância para a sociologia do conhecimento porque revelam as mediações existentes entre universos macroscópicos de significação, objetivados por uma sociedade, e os modos pelos quais estes universos são subjetivamente reais para os indivíduos (1985, p.109). Se Richard Fardon em Mary Douglas: uma biografia intelectual está interessado em fatos alinhavados, dados históricos precisos, descrição detalhada das fontes, extensas citações (delimitando sua voz, da fala da biografada). Análises críticas da 78 produção intelectual da antropóloga por ele biografada. Rubem Alves, na biografia que escreveu de Gandhi Reverência pela vida, entrega-se num tempo que tem o seu ritmo próprio, não é homogêneo, linear ou histórico. É um tempo cheio de oscilações, que vai se compondo conforme a vontade e a memória do narrador-personagem. Lembra o caleidoscópio, pequeno instrumento cilíndrico, em cujo fundo encontramos fragmentos de vidros coloridos, os quais, ao refletirem-se sobre um jogo de espelhos angulares dispostos longitudinalmente, produzem um número infinito de imagens. Para o narrador, cada uma dessas imagens terá um sentido. O importante não é a seqüência dos acontecimentos (das imagens), mas a compreensão do sentido dos mesmos. Permita-me, neste ponto mencionar novamente Paul Ricouer, para o qual o imaginário representa ponto nodal para a construção da história, pois para relacionar o tempo vivido ao tempo do mundo seria necessário construir conectores para manejar essa relação. Aos conectores seria assegurada a virtude de tornarem o tempo legível aos olhos humanos, tal qual faz o calendário. Nesse sentido, história e ficção, ambas matrizes de pensamento recorrem às mediações imaginárias na refiguração do tempo, o que justifica, por exemplo, os empréstimos tomados da literatura pela história, quanto aos modos de discurso que apresentam, muitas vezes, ora uma estrutura de romance, oura irônica, cômica, etc. Enquanto Fardon mobiliza sua imaginação no sentido de reproduzir o discurso da sua biografada, Mary Douglas, e a partir disto analisá-la e re-conhecer a trajetória da mesma a partir de sua produção. Em Rubem Alves a imaginação não é reprodutiva de qualquer discurso. Antes, ela é criadora. Se para o primeiro a verdade, é pois, um dado a ser visto, colhido e lembrado. Para o segundo, a verdade é uma elaboração negociada. Para Fardon, a obra explica a vida. Para Rubem Alves a vida explica a vida. Cada autor efetua sua travessia por meio da narrativa biográfica ao seu modo, seja dando ênfase a tradução da vivência em experiência intelectual, ou atribuindo a imaginação a capacidade de recriar uma experiência que se perde na factualidade, considerando no biografado uma existência mitopoética. Se, como nos advertiu Johanes Fabian, que ao debruçar-se numa pesquisa acerca das narrativas de viagens científicas no mundo colonial (séc. XX) constatou que todo conhecimento é um re-conhecimento, assim, seria preciso considerar o gênero narrativo como um mecanismo que cria o sentido da experiência pela “estória” partilhando-a com o leitor devido sua universalidade. Essa experiência pode ser tanto 79 sensível como intelectual (Cf. Throop, 2003) e é de grande importância para os relatos antropológicos objetivando que a imaginação (sensível ou intelectual) avance além da perspectiva sensorial, provocando o alargamento do mundo. Referências BARROS, Manoel. Livro Sobre Nada. Rio de Janeiro: Record, 2000. BENJAMIN, Walter. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1975. BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo Rouanet. 4.ed. São Paulo, Brasiliense, 1994. BERGER, Peter & LUCKMANN. A construção social da realidade. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1985. BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, v. 1, nº 19, 2002. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3.ed. São Paulo: Companhia das letras, 1994. CANDIDO, Antônio. O Homem dos Avessos. In: _____. Tese e Antítese. Rio de Janeiro: FARDON, Richard. Mary Douglas: uma biografia intelectual. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. 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Minding experience: an exploration of the concept of “experience” in the early french anthropology of Durkheim,, Lévy-Bruhl, and LéviStrauss, Journal of the History of the Behavioral Sciences, Vol. 39(4), 365–382 Fall 2003 TURNER, Victor: Social Dramas and Stories about Them, Critical Inquiry, Vol. 7, No. 1, On Narrative (Autumn, 1980), pp. 141-168. 80 O saber científico em construção The construction of scientific knowledge Eduardo Duarte1 Resumo:A história das ciências é a história da constituição do conhecimento numa forma especifica de saber com todos os embates políticos em torno do poder. Os meios de comunicação fizeram emergir novas problemáticas para a compreensão do mundo contemporâneo, desmembrando o saber científico num novo campo de investigação. Palavras-chave: comunicação; saber; campo científico. Abstract:The history of the sciences is the history of the knowledge constitution in a specific form of knowing with political collisions around the power. The mass media instigated new problems to understanding the contemporary world, It created a new investigation field in the scientific knowledge. Key words: communication; knowledge; scientific field. O Saber Científico em Construção No lento processo, de milhares de anos, de fundação e diversificação das culturas, nesse que é o próprio ato de criação do homem com seu universo de crenças, valores, regras; conhecimentos tradicionais herdados acumulam-se com conhecimentos novos, levando o homem a uma inevitável classificação e valoração desse arsenal técnico de informações. Essas informações se organizam e se reorganizam constantemente ao longo do tempo, a partir dos valores socialmente desenvolvidos em ressonância com a materialidade técnica em exploração constante do universo real de experimentação humana. Esse ciclo sistêmico de exploração e reflexão da materialidade técnica permite a emergência não apenas de novos artefatos tecnológicos, cruciais para a história de uma coletividade humana, no seu referido tempo e espaço, mas também novas cognições, novas compreensões a respeito deste tempo e espaço, logo do real material e imaterial das relações com o pensamento e a natureza. O filósofo alemão Peter Sloterdijk chama a essas emergências de antropotécnicas (SLOTERDIJK, 2000, p.65). Ele as divide, em seguida, em antropotécnicas duras e moles. As duras são relativas a tecnologia materializada em suportes físicos, como uma cadeira, 1 Departamento de Comunicação Social, Centro de Artes e Comunicação - Universidade Federal de Pernambuco . Av. Prof. Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária, Recife – PE. [email protected] 81 uma caneta, um carro, uma bomba. As moles fazem parte do repertório humano de regras de convivência, “técnicas culturais”, interditos e normatizações criadas nas relações humanas, como a interdição do incesto, as regras de casamento, as linguagens, as lógicas de parentesco, as técnicas de educação, a normalização dos papéis designados aos dois sexos. Para Sloterdijk, as antropotécnicas se espalham e se escondem em todos os sentidos da vida, desde o nascimento da criança humana. O útero já é o primeiro processo de separação ontológica, a primeira esfera existencial que incuba o humano. Quando ele nasce, essa esfera uterina é substituída pelas esferas antropotécnicas que dão continuidade à intermediação do homem com o ambiente. Essas esferas já compõem uma natureza própria ao homem e dentro dela, ele cria universos de relações com outros homens e entre os homens e a natureza, através dos conhecimentos que acumula a partir da sua experimentação do mundo. Quanto maior o repertório de conhecimentos, maior a capacidade de experimentação do mundo, levando a formação de novas estruturas técnicas, que servem como plataformas de construção de novos conhecimentos. Dessa maneira, a experimentação constante do mundo faz surgir informações que se organizam em conhecimentos. Tomamos por conhecimento aqui o processo no qual as informações se aglutinam e gestam uma compreensão. Trata-se de uma compreensão similar a que é apresentada pelo historiador Peter Burke; para ele a palavra informação refere-se ao que é relativamente “cru”, específico e prático, enquanto que conhecimento denota o que foi “cozido”, processado ou sistematizado pelo pensamento (BURKE, 2003, p.19). O acúmulo de conhecimentos sobre um determinado tema leva a sua organização em extratos de complexidade, construindo níveis dos graus mais básicos e introdutórios aos mais elevados de compreensão deste tema. Nesse ponto observamos a emergência de um macroconceito de conhecimento. Edgar Morin chama de um macroconceito (MORIN, 1996,p.268). o resultado da articulação recíproca de vários conceitos que se associam fazendo emergir um conceito macro, que se destaca para além das suas partes associadas, e que não pode ser dito de outra forma que não seja pela emergência da articulação dos conceitos correlatos. Esse macroconceito é uma estrutura técnica que conta com regimes de observação, formulações teóricas e algum nível de experimentação prática como parte dos conhecimentos associados em seu conjunto. A esse macroconceito também podemos dar o nome de saber. Um saber é o acoplamento estrutural de conhecimentos emergentes de num 82 certo campo de experimentação e reflexão, organizados em níveis interdependentes de complexidade. Um saber consolida uma área de conhecimento e pesquisa, é a formalização de uma área de conhecimento normatizada. Esse movimento leva inevitavelmente a fundação de cursos e escolas, esses juntos fazem surgir as universidades, como centros divulgadores e iniciadores em saberes. O que faz com que sejam necessários mestres para ordenar os saberes e repassá-los a iniciados. Surgem os estudantes em níveis diferenciados de aprendizado das matérias ou disciplinas, correlatas ao exercício de aquisição de um determinado conhecimento regrado. Os saberes se fecham em regimes de validação e legitimação deles mesmos, assumem-se como regimes políticos, nos quais se desenvolve a lógica da detenção de conhecimento como detenção de maior ou menor poder. No momento da normatização da estrutura do conhecimento num saber já entram em jogo os comandos que podem legitimar maior ou menor poder, de acordo com o acesso a compreensão dos níveis mais sofisticados de abstração ou aplicabilidade de determinada formalização de conhecimento. Esse processo tem mais clara sua consolidação do final da Idade Média atravessando toda a era moderna. O historiador Peter Burke comenta que no século XVII as universidades já se mostravam pouco dispostas a incluir novas compreensões paradigmáticas as suas reflexões; eram as sociedades científicas que se colocavam em maior abertura a conhecimentos a filosóficos, levando as universidades a serem vistas como de pouca contribuição para o avanço da ciência. Já nesse período as universidades européias eram centros de transmissão de informações, sem disposição para novos questionamentos. “Um estudante podia mover-se entre um mestre e outro, mas esperava-se que seguisse as idéias de um estudioso importante e não que se envolvesse na leitura pessoal e na apresentação de concepções próprias” (BURKE, 2003, p. 52). O saber seja ele artístico, filosófico, religioso ou científico, implica numa formação do interessado a conhecimentos normatizados e gerenciados em níveis hierárquicos de aprendizado e complexidade. Atravessar um saber implica em tornar-se iniciado, ter um mestre, assumir-se discípulo e cumprir com os regimes formais de ingresso no campo do saber. Como assistentes de artistas suportam seus humores para conhecer suas técnicas; discípulos de mestres zen suportam testes de desconstrução de estruturas egóicas; alunos nos bancos científicos enfrentam provas de conhecimento e avançam em níveis de reconhecimento de formação durante anos de sua formação, tendo mestres específicos para cada disciplina que estude. 83 A Ciência como uma expressão do Saber. A ciência é resultado de uma forma peculiar de produção e formatação de conhecimento em saber. Diferentemente de um saber filosófico, ou estético, ou religioso, ou político, o saber científico lida com a experimentação e teorização direta do mundo natural. É uma compreensão de realidade cada vez mais abstrata na era Moderna, mas que parte de uma observação e experimentação direta do mundo. Antes do período moderno o saber científico possuía interelação muito mais profunda com as demais formas de saber. Para os gregos a filosofia nunca se separava de sua dimensão política, nem de suas abstrações matemáticas e geométricas. Para Galileu e Giordano Bruno observar as estrelas e reconhecer desenhos nos céus não implicava em abrir mão do seu saber religioso, mesmo que esse último precisasse ser reformado. Naturalmente que a vertigem do mundo causada pelo choque de paradigmas entre o senso comum da contemplação do mundo de Ptolomeu e a reconstrução equacional deste mesmo mundo, por Copérnico, ajudou na separação dos saberes científico e espiritual 2. Entretanto, foi apenas na Era Moderna que essa separação se deu de forma mais explícita fazendo emergir as universidades como centros formadores e disseminadores desse saber. Esses passaram a ser mais claramente a morada do saber científico, guardando pouco ou nenhum espaço para saberes artísticos, filosóficos e espirituais que possuem outra constituição de formalização. As universidades podem ter continuado a desempenhar sua função tradicional de ensinar efetivamente, mas não eram, em termos gerais, os lugares em que se desenvolviam as idéias novas. Sofriam do que já foi chamado de “inércia institucional”, mantendo suas tradições corporativas a preço do isolamento em relação às novas tendências.” (BURKE, 2003, p. 51). A estrutura das universidades se montou de forma lenta e gradativa. Na Idade Média o saber acadêmico operava num sentido mais teórico e filosófico, ele ainda não dispunha das sofisticadas estruturas técnicas da ciência moderna. De qualquer maneira, a emergência desses conhecimentos estruturados em saberes foi sempre eco de movimentos histórico-psico-socio-antropológicos. Um conjunto de circunstâncias de uma determinada época entrelaçadas aos recursos técnicos conhecidos permitia a estruturação de um conhecimento como suporte a uma determinada realidade emergente. 2 Para saber mais sobre esse choque paradigmático ver: SLOTERJIDK, Peter. A Mobilização Copernicana e o Desarmamento Ptolomaico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1992 84 Por exemplo, com a necessidade da educação dos futuros párocos para a ocupação das paróquias, no século XVI, a igreja criou os seminários. Devido a necessidade da formação de corpo de pessoal para os assuntos jurídicos do governo, a administração pública estimulou a preparação dos seus funcionários em Direito. Essa arquitetura educacional serviu de matriz para a estruturação das universidades e a academia da Era Moderna. Apesar da grande quantidade de conhecimentos técnico-científicos acumulados no séc. XVII, o que levou Claude Levi-Strauss a comparar essa revolução tecnológica das ciências modernas com a revolução do neolítico3 (02), apenas o Direito e a Medicina eram campos de saberes acadêmicos consolidados. A explosão das práticas, a invenção das escolas em torno de saberes cada vez mais consolidados pelas demandas contextuais começaram a se difundir no século XVIII. Os bibliotecários começaram a surgir como função prática, já no século XVII, antes de serem normatizados em cursos específicos, para dar conta da profusão de conhecimentos novos, não classificáveis. Conhecimentos que eram revelados pelos viajantes ultramarinos e pelos próprios desenvolvimentos técnicos de cada área do conhecimento. São as mesmas grandes navegações que redesenharam constantemente a cartografia do planeta com inúmeras informações econômicas, políticas, de relevo, de costumes de outros homens, de outros animais, que levaram a necessidade da organização disciplinar de um saber geográfico. No século XVIII os inúmeros povos descobertos e submetidos a condição de colônias da coroa britânica levaram a criação da função do antropólogo, afim de estudar melhores formas de colonização dos povos conquistados, a partir do conhecimento profundo de suas práticas simbólicas. O saber vai consolidando campos de pesquisa, de experimentação e teorização e esses, por sua vez, vão desenhando campos de atuação política e econômica. O campo científico emerge de uma natural disputa de concepções que melhor expliquem o funcionamento do mundo natural, como também das relações econômicas no comércio entre os povos, nas formas políticas de governos; dos movimentos dos astros aos costumes dos povos. 3 Esse hiato de milhares de anos entre as duas revoluções tecnológicas Lévy-Strauss chama de Paradoxo do Neolítico. Ver: LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976. p. 33. 85 Esse movimento do saber científico está ligado ao detrimento de poder e os riscos de se perder a hegemonia estrutural de uma organização com a “contaminação’ de novos conhecimentos, “grupos criativos, marginais e informais, dominantes de um período, regularmente se tornam as organizações formais, dominantes e conservadoras da próxima geração ou da seguinte.” (BURKE, 2003, p. 51). Logo, o saber científico constituiu-se como um sistema vivo, e como todo o sistema vivo ele aborta as iniciativas que o ameaçam, ou excluindo-as ou incluindo-as, mas anulando sua força contestadora. Revertendo a intenção contestadora numa forma marginal de cooperação. Como todo produto do pensamento a ciência é uma criação clara de sentido para a experiência da realidade. Como os saberes religioso e filosófico, o científico tem sua parcela de participação no movimento do homem de tentar entender o que está a sua volta, de explicar, de ordenar sentimentos e idéias a respeito do mundo no qual faz parte, de dar sentido a realidade. De todas essas criações humanas a ciência tem sido uma das que mais debate e disputas tem gerado em torno de suas produções, pois que explicar o funcionamento do mundo natural e o comportamento dos homens é um poder que provoca duelos sobre a detenção da verdade; sobre o direito de trazer a explicação mais aproximada da experiência do real. Um espaço tomado do sentido absoluto dado pela igreja, na Idade Média, e que entrou no terreno dos paradigmas e construções epistemológicas do argumento de cada construção científica. A objetividade tão perseguida pelas ciências modernas se revelou desde sempre como um espaço de duelos subjetivos objetivados pela detenção da verdade. O certo e o errado da ciência estão nos resultados de uma construção bem sucedida ou equivocada das equações do argumento. Se o argumento estiver bem construído, epistemologicamente bem fundado e demonstrado do ponto de onde emerge a observação do pesquisador, isso já é, por si mesmo, válido cientificamente; mesmo que também possa se chegar a um resultado completamente diferente usando-se do mesmo rigor, mas partindo de bases epistemológicas distintas. Portanto os duelos são políticos e performáticos, a força retórica e de influência política conduzirá maior visibilidade a um argumento do que a outro. A ciência é marcada pelo seu tempo, pelas necessidades e circunstancias da vida no momento em que o pensamento é gerado. A ciência é plenamente circunstancial, só pode responder pela capacidade de enxergar do seu momento de maturidade, com as referencias, os modelos de pensamentos possíveis naquele instante, com o conjunto de conquistas à 86 compreensão do mundo e o suporte técnico permitido para o instante histórico. Mesmo que ela tente falar do futuro, ela só pode fazer isso com o arsenal técnico-cognitivo do presente. Nesse sentido, a ciência é verdade circunstancial, atende aos interesses da própria sobrevivência de seu saber e está em ressonância com as perguntas que trazem os homens daquele tempo. E mesmo num tempo específico ocorrem muitos embates sobre qual ou quais versões são mais viáveis para a explicação da realidade estudada. A verdade alcançada num instante é um congelamento espaço-temporal de um argumento, que aglutinou força política suficiente para suprir a transcendência de um sentido de verdade. O saber científico desmembra campos de atuação em ressonância com as atenções coletivas de um momento histórico. O nível de complexidade das relações técnicas e cognitivas de um grupo social permitem a emergência de novos problemas de compreensão da realidade. Vários fatores se acumulam para o surgimento dessas perguntas. A história do grupo e sua relação com outros grupos, sua situação econômica, o repertório tecnológico disponível para fazer operar as máquinas de pensamento, esses são alguns dos elementos que constituem um patamar complexo de consciência que lança novas indagações para a compreensão da realidade. São essas perguntas que estimulam os saberes na direção de uma resposta, e no caso do saber científico promove a extensão ou até mesmo a fundação de um novo campo de atuação. Todo campo científico fundamenta-se nas dúvidas ontológicas e/ou operacionais que provoca os homens a partir da sua experimentação do real. Quando diante de novos desafios político-socio-economico ao longo da história uma indagação de compreensão do mundo se fez, um novo campo cientifico emergiu, assim assistimos com a Geografia, a Antropologia, Biblioteconomia entre outras ciências. O espetáculo da construção do conhecimento gera reorganizações físicas e cognitivas no mundo a nossa volta. As novas emergências implicam em novas dúvidas, novos problemas fundamentais de novos campos de conhecimento pedem urgentemente pesquisa, pedem teorias que as expliquem, trazendo atrelados todos os embates e duelos pelo direito momentâneo da verdade. Mas as dúvidas são resultado também de uma forma de olhar para a experiência da realidade. Juntamente com os fatores apontados acima emerge uma perspectiva de pensar seu tempo, de reunir métodos e teorias criando visão de mundo. A isso podemos dar o nome de paradigmas ou modelos de pensamento que se constitui de conjuntos epistemológicos afins, em sintonia com essa concepção de indagação da realidade. São 87 esses modelos e seus conjuntos epistemológicos que norteiam o sentido da emergência do problema, como também da forma de pensar sua investigação; bem como as possibilidades de ler e interpretar suas respostas. O problema científico funda a razão do campo. A partir daí os pesquisadores lançam seus olhares para suas experiências do real e localizam objetos. Os objetos são construções problemáticas reificadas sobre uma temática ou uma experiência observada no campo. Os objetos surgem sempre marcados por uma perspectiva de concepção, uma criação motivada pela inquietação pessoal do pesquisador e as motivações epistemológicas que formam sua época e seu pensamento. Os objetos dão substância real, corporificam as crenças, as formações políticas, as perspectivas paradigmáticas. Através da definição de um objeto de pesquisa é possível se enxergar todo o contexto de um tempo do pensamento e suas projeções técnicas. A emergência do campo comunicacional. O século 20 foi palco de grandes saltos tecnológicos no processo de complexidade acelerada das sociedades contemporâneas. Juntamente com novos suportes tecnológicos emergiram novas formas de se conceber a experiência do real e com isso, novas indagações e desmembramentos da investigação científica em novos campos de saber. O controle da produção de eletricidade disparou milhares de desenvolvimentos tecnológicos movidos por essa fonte de energia limpa. Um setor de acumulação desses desenvolvimentos está ligado a grande quantidade de dispositivos tecnológicos de produção, transmissão e recepção de informação que começaram a se desenvolver a partir da invenção de uma das primeiras ferramentas elétricas de comunicação, o telégrafo. Esse último foi suporte para a radiotelegrafia e a invenção do telefone, chegando aos complexos comunicacionais do cinema e da televisão nos dias atuais. Os suportes técnicos de produção, transmissão e recepção de informações permitiram o agenciamento de uma nova experiência cognitiva do homem no mundo. Surgiu uma experiência de participação coletiva em realidades diversas, completamente ficcionais ou recortes das realidades ficcionados jornalisticamente. Ambientes, cidades, mundos reais e imaginários que servem de referência para a vida coletiva dos espectadores foram apresentados. Os instrumentos de produção, transmissão e recepção de informações geram o circuito de ação dos meios de comunicação de massa; esses instrumentos se 88 multiplicaram e criaram novos produtos e subprodutos, derivados tecnológicos de divulgação de informações. O agenciamento e veiculação de informação fizeram aumentar a densidade de suportes tecnológicos de comunicação fazendo crescer exponencialmente a quantidade de informações em fluxo e suas implicações na vida das sociedades complexas. Não é a tecnologia em si que dispara o agenciamento de uma nova experiência coletiva, mas as necessidades simbólicas do homem recriadas num ambiente virtual vivo; uma dimensão paralela a do materialmente vivido, mas densamente interligadas por redes que atualizam os fluxos de vida simbólica entre os dois mundos. Surge um duplo midiático vivo a partir de representações extraídas de referentes que buscam nessas mesmas imagens novos valores para lhe justificar o pensamento. Por imagem aqui não me refiro a uma experiência apenas visual, mas conceitual, uma imagem, ou seja, um duplo vivo no bios mídia é formado conceitualmente. Ele pode ser construído até sem imagem visual, mas apenas pelas opiniões acumuladas a seu respeito. Ele cria força de personagem com humores mesmo sendo um fenômeno da natureza como o furacão Katrina ou uma onda chamada Tsunami. O duplo pode ter ligação com um quem real físico, mas ele pode ser a construção de qualquer imagem conceitual a partir do acumulo de informações geradas. O duplo não precisa necessariamente ter uma materialidade referente, ou uma condição humana; o duplo indica um referente que pode ser por sua vez já uma construção de pensamento, como um sentimento. Nesse sentido ele pode estar num fenômeno da natureza, num personagem de desenho animado, num animal, numa religião, num país, tudo pode virar duplo personificado no universo midiático, por isso o vemos como um bios virtual. Essa hiperdimensão tem profunda conexão com a dimensão de onde ela tira os elementos para construção de suas imagens. A dimensão referente, por sua vez, também está profundamente ligada e define seus movimentos a partir da sua imagem hiperdimensional. Temos então um acoplamento estrutural entre essas duas dimensões, ou seja, uma co-dependência de estruturas viventes. Células, por exemplo, não sobrevivem isoladamente por muito tempo e por isso entram em cooperação umas com as outras acoplando suas estruturas para fazer gerar uma macro estrutura mais resistente, como um tecido. O acoplamento estrutural é uma combinação simbiótica de estruturas que passa a determinar as vidas das estruturas individuais associadas. A ligação entre essas duas dimensões criou uma co-dependência de suas estruturas. O universo referente precisa da hiperdimensão a fim de parametrar a construção de seus valores. O universo midiático constrói sua biosfera a partir de e destinada ao universo 89 referente. Hoje em dia não é mais possível imaginar as sociedades contemporâneas sem o vinculo com seus duplos dessa hiperdimensão. Emerge com o duplo hiperdimencional do bios virtual midiático uma expressão da noosfera. Por noosfera entendemos aqui o conceito de Teilhard de Chardin retrabalhado por Edgar Morin: “o mundo vivo, virtual e imaterial, constituído de informações, representações, conceitos, idéias, mitos que gozam de uma relativa autonomia e, ao mesmo tempo, são dependentes de nossas mentes e de nossa cultura”. (MORIN, 2000, p. 53). A tradição filosófica idealista cria a partir dos produtos do pensamento um mundo próprio tomado de referência do mundo “real”. Esse mundo se complexifica e ganha densidade antropológica através dos tempos nos mitos, nos arquétipos, nas criações humanas. Essas forças retornam ao mundo dos humanos como valores de mundo que recriam seu próprio espaço criador. O homem, ao mesmo tempo em que cria, é criado pelos seus duplos de projeção. O duplo midiático encarna uma das expressões da noosfera, uma representação tecnologicamente muito complexa da recriação simbólica das expressões do pensamento. Nesse sentido, nada mais legitimo do que observar a emergência de um novo campo de saber científico com a comunicação, um novo espaço de construção de sentido, de disputas e aprimoramento de idéias e ferramentas de investigação científica. Como qualquer novo campo de investigações, a comunicação deve enfrentar os mesmos desafios que qualquer área que descobre novas implicações de conhecimento na observação do real. A dificuldade inicial é a de compreender e demarcar qual o seu campo de investigação e quais os objetos que o compõe. Essa dificuldade é real e observada pelos pesquisadores das conjunturas epistemológicas possíveis a esse novo campo, pois a expressão comunicação é de uso bastante disseminado em inúmeras práticas científicas e cotidianas, prosaicas e poéticas, logo, como entender o que propõe o campo de saber científico da comunicação sem considerar todas as atualizações e implicações dos conceitos de comunicação utilizados? Nesse ponto qualquer campo disciplinar enfrenta o mesmo dilema do corte. A delimitação conceitual e problemática de um objeto científico. Uma atitude inevitável, pois se assim não fosse não seria uma disciplina, um campo instituído de saber. Pelo que podemos observar da construção do duplo midiático, ele tem a contribuição fundamental dos suportes tecnológicos que recriam esse exemplar da noosfera numa hiperdimensão virtual. A partir disso, poderíamos dizer que os suportes tecnológicos 90 são fundantes do conhecimento desse novo campo? O que fazer então com a comunicação que emerge das relações interpessoais, das operações de cognição coletiva que se criam a partir do discurso de um político num palanque ou da ação de um professor em sala de aula? Para constar da problemática desse campo e de sua definição conceitual as interfaces relacionais devem ser apenas os instrumentos midiáticos? Trata-se de uma experiência tecnológica em si? Até que ponto assim não se reduz a experiência comunicacional que ocorre também através de múltiplos micro dutos de circulação de informação e que em Efeito Borboleta4 interferem na construção e compreensão geral da emergência desse campo? Como lidar com as expressões das tribos urbanas que usam o corpo como suporte comunicacional da identidade de seus pertencimentos em brandings e tatuagens; ou nas próprias roupas criando modas? O suporte tecnológico tem uma relevância visível, mas não absoluta na compreensão dessa realidade dimensional, porque se assim fosse poderíamos acreditar que a simples troca de informações entre máquinas, nas operações telemáticas automáticas, fazendo surgir novas informações, é um processo comunicacional sem a elaboração de humanos. Se pensarmos separadamente o problema da definição conceitual e em seguida a construção do problema que faz emergir o campo podemos ter nuances e estratégias diferenciadas para responder as duas questões de forma mais orgânica. Qual o conceito de comunicação com o qual estamos lidando? Podemos chegar a uma construção consensual, mas que nem por isso deixaria de ser delimitadora, o que re-atualiza o dilema. O recorte institucional científico implica na constituição de um saber que naturalmente formaliza-se, pois para estudar o objeto é necessário defini-lo, numa certa medida, pois caso contrário seria impossível tê-lo cientificamente se não puder ser partilhado. O conceito científico da comunicação precisa, então definir-se, independente de suas atualizações cotidianas e usos 4 Edward Lorenz batizou de Efeito borboleta o fenômeno caótico observado na tentativa de efetivar previsões meteorológicas de longo prazo. A quantidade de micro elementos que interferem nas condições do tempo não permitia o desenho de um gráfico preciso do seu comportamento. Na proporção em que se observava o gráfico estender-se por semanas a linha de comportamento climático destoava completamente da linha esperada a partir dos dados iniciais colocados no computador. Quanto maior o tempo de observação, mais os micro elementos não computáveis geravam uma realidade climática diversa das que eram possíveis de se mensurar pelos dados iniciais. Daí surgiu a expressão: o batimento de asas de uma borboleta em Paris pode desencadear um tornado no Texas. Ver: THUAN,Trinh Xuan . O Caos e a Harmonia – a fabricação do real. Lisboa:Terramar, 1999. p.88. 91 corriqueiros. É necessário chegar a uma idéia de comunicação que possa ser partilhada e compreendida pela classe de cientistas que se dedica a questão em qualquer lugar. Por outro lado, sabe-se historicamente que a intitucionalização cria hábitos tautológicos de investigação do objeto. Os acordos políticos para composição de universos comuns de concepção e validação de argumentações, os acordos para realizações de eventos e publicações de livros na área conduzem a cada vez maior expressão da fala dos mesmos aspectos de um imenso campo ainda desconhecido a todos nós. Trata-se realmente de uma luta política pela demarcação de um espaço, repetindo a mesma história de constituição dos campos de saber institucionalizados. Naturalmente que aquilo que não é reconhecido pelos pares num contexto histórico e político de um saber disciplinar é excluído, pois é visto como não pertencente à área, que nem sequer definiu a abrangência de seu campo a partir de suas problemáticas fundadoras. O fechamento do conceito científico da comunicação pode nos tirar dos olhos as microcapilarizações do fenômeno que surgem diariamente, nessa área tão veloz em acontecimentos redefinidores de suas práticas. Capilarizações que ajudaram e ajudam a compor o quadro problemático que se impõe como campo. Isso nos mergulha no desafio de pensar como um conceito de comunicação possa vir a definir uma atuação científica, dando fôlego aos conhecimentos novos, que capturam a comunicação em sentidos mais complexos quando se fundem com outras disciplinas. Não é o caso de importar o conceito de comunicação de outras disciplinas, mas admitir a contaminação do objeto como algo que possa até nos fazer rever o que acreditamos ser o seu conceito. Se o conceito da comunicação é diverso e controverso talvez haja uma forma de manter a diversidade sem perder a consolidação de um campo. Nosso ponto de partida unificador pode estar na identificação da problemática fundante deste campo. Um conjunto problemático é resultado de uma forma de olhar para a experiência da realidade fazendo emergir perspectivas de pensar seu tempo, de reunir métodos e teorias criando visão de mundo. São esses modelos e seus conjuntos epistemológicos que norteiam o sentido da emergência do problema, como também da forma de pensar sua investigação; bem como as possibilidades de ler e interpretar suas respostas. O problema científico funda a razão do campo. A partir daí os pesquisadores lançam seus olhares para suas experiências do real e localizam objetos. Os objetos são construções problemáticas reificadas sobre uma temática ou uma experiência observada no campo. A crise paradigmática dos nossos dias nos permite outras condições de pensar esse 92 problema constituindo-o de maneira mais sistêmica, mas interligada a operações do pensamento que se acoplam estruturalmente nos revelando compreensões que se dão para além de um fechamento operacional da formalização de um saber. Nesse sentido, temos a possibilidade de construir num norte problemático complexo que revele a perplexidade e curiosidade que motiva a investigação científica do tema; deixando que o conceito de comunicação ganhe variáveis que se atualizam em objetos disciplinares e transdisciplinares, em ressonância com a indagação do problema complexo. Uma problemática que não se restrinja a fácil leitura tecnológica dos fenômenos de maior visibilidade na comunicação, mas que releve os microfenômenos que se somam em importância à constituição desse campo de pensamento. Entretanto, é importante mais uma vez afirmar que na constituição dessa problemática complexa, se acreditamos que ela possa ser um ponto de partida mais eficiente para abrigarmos conceitos comunicacionais, estamos revendo uma questão anterior: a perspectiva científica que diz respeito a compreensão de ciência herdada desde a Era Moderna. A necessidade de demarcação linear e mecânica de territórios disciplinados de saber que permitam intercâmbios regrados com outras áreas do conhecimento, apenas como estratégia para consolidar suas cercas delimitatórias. Observando a construção do campo pela herança cartesiana do pensamento o desafio inicial é o de encontrar uma problemática específica que recorte um campo numa compreensão científica, independente dos usos diversos do conceito comunicação. Uma proposição nesse sentido caminha inevitavelmente noutra concepção do fazer científico, o que implica numa revisão do que acreditamos por fazer ciência. Falamos aqui de pensarmos a problemática do campo revendo o movimento secular de fechamento disciplinar do saber. Uma área dinâmica como a comunicação, nos surpreendeu e surpreende agenciando novos objetos e novas experiências cognitivas num espaço curto de tempo com fenômenos enormemente variados. O fechamento do saber implica em optarmos por um caminho na definição do campo. Mas o que esse campo ainda tem a nos dizer e revelar sendo ainda tão jovem? Nesse sentido, é que acreditamos estarmos diante de um campo de conhecimento que demonstra a necessidade de uma revisão paradigmática sobre o sentido de ciência que se pretende usar para observá-lo, uma opção paradigmática que se permita biodegradável. 93 Referências BURKE, Peter. Uma história Social do O Conhecimento: de Gutemnberg a Diderot. Rio de Janeiro: Ed.Zahar, 2003. LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1976. MORIN, Edgar. Ciência com Consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 1996. MORIN, Edgar. A Cabeça bem feita: repensar e reformar, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand. 2000. SLOTERDIJK, Peter. La Domestication de l’Être. Paris : Mille et une nuits. 2000. SLOTERDIJK, Peter. A Mobilização Copernicana e o Desarmamento Ptolomaico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1992. THUAN,Trinh Xuan. O Caos e a Harmonia – a fabricação do real. Lisboa: Terramar, 1999. 94 Saúde e sofrimento social: a inserção da população negra no SUS do Rio Grande do Norte8 Health and social suffering: the insertion of the black population in the SUS of Rio Grande do Norte. Edmilson Lopes Júnior9 Andrea Monteiro da Costa3 Resumo: Qual o sofrimento social acumulado pela população negra nos seus contatos com o sistema público de saúde do Brasil? Este texto aborda esta questão a partir dos dados produzidos por uma pesquisa qualitativa realizada junto aos usuários de saúde do SUS nos principais municípios do Rio Grande do Norte. O foco da análise é sobre as dores resultantes da ausência de reconhecimento sofridas pelos usuários negros. Palavras-chaves: Preconceito, Saúde Publica, Grupos Étnicos, Reconhecimento. Abstract: What is the social suffering accumulated by the Black community in their contacts with the public health system of Brazil? This text addresses this issue form the data produced by a qualitative research done in joint with the users of the SUS in the main counties of Rio Grande do Norte. The focus of this analysis is about the pains of the resulting absence of recognition suffered by the black users. Key Words: Prejudice, Public Health, Ethnic Group, Recognition. Introdução Os esquemas pré-reflexivos, modeladores das ações e percepções dos agentes sociais, formam uma base sobre a qual se constrói comumente a inserção no mundo social. Elementos constitutivos daquela dimensão do ser social que o sociólogo francês Pierre Bourdieu procurou captar com o conceito de habitus (Bourdieu, 2002), esses esquemas estão subjacentes aos mapas mentais dos agentes, orientando as suas interações cotidianas. Essa proposição teórica permite-nos dar sentido à situações nas quais mesmo quando discursivamente os atores parecem se alinhar com posicionamentos supostamente progressistas (a defesa retórica do tratamento igualitário dos usuários do sistema de saúde, por exemplo), na prática, e muitas vezes imperceptivelmente, contribuem para a exclusão e o não-reconhecimento de pessoas marcadas por traços identificadores de “diferença”. E cristalizações ancoradas em dimensões tão variadas quantas as possíveis de serem socialmente construídas a partir de referentes como sexo, “raça”, classe social, local de nascimento ou moradia, dentre outros, dão força à essa diferença. 8 O projeto de pesquisa do qual resultou este artigo recebeu financiamento do CNPq, através do Edital MCT/ CNPq/MS – SCTIE-DCIT/2006 nº26. 9 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN e PRODEMA/UFRN. 3 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFCG. 95 A proposição acima serve de bússola para abordarmos o Sistema Único de Saúde (SUS), um dos mais substantivos ganhos da cidadania brasileira inseridos na Constituição de 1988. Isso porque a perspectiva universalista e socialmente inclusiva subjacente à implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil tem se defrontado, ao longo de quase duas décadas de existência, com os esquemas alimentadores da sub-cidadania (Sousa, 2003) presentes nos mapas mentais dos operadores do sistema. As evidências que apontam para um tratamento diferenciado negativamente em relação aos membros da população negra legitimam a necessidade de uma problematização menos conspirativa e mais nuançada dessa realidade. Assim, uma das tarefas mais importantes das ciências sociais brasileiras na atualidade é a produção de narrativas que apreendam o quantum de sofrimento social acumulado pela população negra nos seus contatos diretos ou indiretos com o SUS. Por sofrimento social, referimo-nos à in-corporação, pelos agentes, das dores do não-reconhecimento e da exclusão. Dores que fraturam a auto-estima e corroem as bases constitutivas de uma inserção cidadã nos sistemas de serviços ofertados pelo Estado. A ausência de reconhecimento, não raramente, transmuda-se em reações, marcadas pelo ressentimento, que, como um efeito perverso, levam à confirmação de um lugar social de negação. Por isso, analisar o sofrimento social resultante do contanto da população negra com o sistema público de saúde brasileiro, é, de algum modo, assumir o desafio de dotar de inteligibilidade as diferentes situações nas quais a negação da cidadania dessa parcela da população se manifesta. Um caminho para a apreensão da produção desse sofrimento social é a investigação sobre os sentidos construídos pela população negra a respeito da sua inserção nos espaços e serviços públicos. Apoiados em uma pesquisa realizada junto aos usuários do SUS nos principais municípios do estado do Rio Grande do Norte, buscamos, no presente trabalho, produzir uma narrativa das tortuosas trilhas e atalhos do sofrimento social no Brasil contemporâneo. A pesquisa que serviu de referente para as proposições aqui esboçadas alicerçou-se em um conjunto de entrevistas abertas e observações etnográficas, realizadas durante os anos de 2007 e 2008, na Região Metropolitana de Natal e mais dez municípios do interior do Rio Grande do Norte. As entrevistas guiaram-se pela perspectiva teórica aberta por Pierre Bourdieu em sua última e ambiciosa empresa de pesquisa: a socioanálise. Como se sabe, foi essa perspectiva que serviu de referência para o desenvolvimento da pesquisa 96 sobre o sofrimento social resultante do desmonte do Estado e do agravamento da questão social na França da década de 1990. As bases epistemológicas dessa empreitada analítica já haviam sido lançadas, mesmo que de forma rudimentar, anos antes em Bourdieu & Wacquant (1992). O fundamental do projeto bourdieusiano (na verdade, um projeto assumido coletivamente pelo que se pode depreender da leitura de “A miséria do mundo”) é fazer emergir situações e realidades que nem sempre são expressas (ou nem podem ser) por palavras (Bourdieu, 1998). Esse caminho implica em um envolvimento do pesquisador com o pesquisado e o estabelecimento de alguns compromissos básicos. Dentre eles, o mais importante e decisivo: o de construir um respeitoso espaço de escuta. Somente com essa escuta, pode-se fazer emergir o “alien” - o monstro existente nos que são objetos de sofrimento social e que cresce alimentando-se de frustrações e não reconhecimento. Dores, sofrimentos e ressentimentos É tarefa de uma ciência do social perscrutar como as dores, físicas ou psíquicas, sentidas pelos agentes, são traduzidas em leituras do mundo que os rodeia e de si próprios. Ou, em outras palavras, buscar apreender como tais dores são in-corporadas (para usar aqui uma expressão cara ao universo da sociologia bourdieusiana) pelos indivíduos. E, como já demonstrou alhures a “antropologia da doença” (Laplantine, 1991), a forma como cada um que ficou doente, ou acompanhou a doença de alguém, elabora sobre esses momentos e situações “limites”, é algo que está diretamente relacionado não só a um conjunto de disposições construídas ao longo de toda uma vida, mas também a representações sociais sobre o corpo. Ora, sabemos de há muito, como aponta-nos, dentre outros Bourdieu (1998) que o corpo é percebido e construído socialmente. E que nessas construções pesam fortemente as marcas de gênero. Homens e mulheres percebem-no e sentem-no de forma diferenciada. O acima exposto pode ser tomado como guia para uma compreensão mais nuançada de situações, difíceis de serem apreendidas apenas com as palavras, por alguns de nossos entrevistados. Tratava-se, então, de construir um olhar atento sobre as expressões faciais e os movimentos de corpo produzidos pelos nossos interlocutores. Somente dessa forma a dimensão do sofrimento social enquanto uma dor in-corporada podia ser efetivamente apreendida, e, de alguma forma, traduzida. O trecho abaixo, retirado de uma entrevista com 97 R.S, 25 anos, mãe de uma filha e moradora da zona rural do município de Ceará-Mirim, situado há poucos quilômetros de Natal, é ilustrativa. - A senhora estava falando do atendimento de sua menina... - Sempre demora, né? Demora um pouco... Porque tem muita gente. A primeira vez, eu fui de meio-dia pra tarde, mas como ela estava com febre, foi atendida logo. Estava com febre alta. Ai... Se for pra contar tudo mesmo (se contorce e ri triste...). Várias vezes no decorrer de um tempo bem curto, eu fui lá. Eu fui umas três vezes com ela durante um mês... Toda vez que fui com ela, ela ficou internada. Na primeira vez, eu cheguei lá e os médicos fizeram exame. E o exame de sangue não acusou muita coisa. (pára um pouco e respira). “Não, se ela piorar, se ela continuar com febre, você volte.” Foi numa quinta-feira. No sábado, pela manhã, voltei. Quando cheguei em casa, a menina continuou com febre. No exame de sangue, o médico disse: “Não, não tem nada de mais, dá pra esperar. Só paracetamol pra tomar, se continuar volte...” Só que ela continuou e foi piorando. Eu disse: “não vou esperar”. Fui na sexta-feira mesmo. Quando chegou lá, já tinham outras... Eu não disse que ela tinha feito exame, que já tinha ido lá. Eu esperei a ação da outra (médica) que estava lá. Ela fez exame de sangue, aí disse: “eu vou pedir, por acaso, só para tirar uma dúvida, um RX. Estou achando ela... Mãezinha, eu acho que vai ser uma pneumoniazinha. Mas, se for isso, é muito pouquinho... A gente deixa pra tratar ela em casa. Vamos bater o RX?.” Fui fazer os exames de sangue e bater o RX. (Demonstra cansaço ao narrar o fato) Quando chegou, recebi tudinho. (suspira profundo e pára de falar por um momento) Fui pro retorno. Aí a médica olhou o exame de sangue: “nada de mais”. Quando olhou o RX dela, comunicou para a outra (enfermeira): “olha só como o exame de sangue engana! Olhe o RX dessa criança! Até os brônquios dela estão cheios”. E aí se virou para mim: “Mãezinha, ela vai ter que ficar internada. Essa foi a 1ª vez. Tudo bem. Aí foram, fizeram o internamento e tudo. Fiquei muito nervosa. (choro silencioso). No enfrentamento (e acompanhamento do atendimento) da doença de um ente querido, no caso acima de uma filha, algumas imagens pesam e reforçam o sofrimento pessoal. E se é quase um lugar-comum a afirmação de que esse sofrimento é lido, ou “construído”, como prefeririam alguns, a partir de uma gramática fornecida pelo meio social, é, então, fundamental a apreensão de quais as matrizes discursivas estão subjacentes nesses discursos. Nesse sentido, Vale a pena reter como a entrevistada acima narra o seu retorno, com a filha, ao hospital: Quando eu vi o RX... (fala segurando a cabeça com as mãos). A manchinha do mesmo jeito da outra vez, tava lá, e a menina ainda tava com diarréia. De novo, segunda vez, entrou com infecção intestinal e com o pulmão... Foi direto pro infectologista, passei mais cinco dias. Quando a medicação bateu, então, começou a fazer efeito. Aí ela começou a melhorar, se animar, né?. Parou de vomitar, parou com a febre... Depois de cinco dias, o médico passou mais um remédio, o Querflex, para tomar em casa. Tudo bem! (cansaço) Termina a medicação, na meia noite do domingo. Na segunda-feira (altera a voz), a menina começou de novo... Veio a febre. Torna lá, internada novamente. Terceira internação. Aí aconteceu uma coisa que eu me senti muito chateada. Quando eu chego, o internamento e tudo, muito desesperada. A enfermeira foi pegar a veia dela, pra 98 poder pegar a medicação, o soro. Eu disse (expressão de choro e angustia): oh, meu Deus, é a terceira vez aqui de novo, mulher... Eu não acredito numa coisa dessas... Ela disse: é, mãezinha, isso é o cuidado em casa que não tem... (Altera a voz, indignada) Aí eu respondi: “Não tem?!! Porque não tem? Passa a medicação pra menina e a menina não fica boa... Passa pra casa, eu dou direitinho, termina, volta de novo. Não, alguma coisa tem. Tem que vê isso... Fiquei logo chateada. Muito chateada. Quando cheguei lá dentro, tinha outras mães... E a enfermeira dizia: “tá aqui de novo?” Uma outra disse: “isso é o cuidado em casa que não tem. O povo gosta muito de hospital...” A “chateação”, expressão de uma indignação que, não raro, permanece velada, é, no caso acima, a manifestação de uma revolta contra o não-reconhecimento, por parte dos profissionais do serviço de saúde, de que se é uma mãe cuidadosa e responsável. Negada essa condição, tudo se passa como se o sujeito fosse rebaixado na sua condição de usuário. De um(a) cidadã(o) com direito ao atendimento no sistema público de saúde, matriz discursiva sobre a qual se constrói a legitimidade do SUS, passa-se à condição de alguém que, dado o seu “pouco cuidado em casa”, cria “problemas” para o próprio “sistema”. O usuário passa a ser o culpado da sua doença ou da doença dos que lhes são próximos. Não é raro também que a “humilhação” sofrida expresse toda a ausência de expectativa em relação aos direitos constitutivos da cidadania. O discurso abaixo, produzido no seio de uma longa entrevista, parece modulado por uma lógica facilmente identificável: a descrença em relação ao direito de um atendimento de qualidade na saúde pública. Eu vejo que o ser humano deve ser tratado com respeito. Não tem exames básicos! Remédios, também não... O que me resta? Fazer particular. Por isso, nem vou muito lá. Eu acho assim, sabe... Sempre que as pessoas têm um trabalho importante, no caso da medicina, aí eles querem naturalmente... Como eu vou dizer? Eles querem se sentir superior aos outros, não é? Se não brigar, não entra. Meu filho quebrou o fêmur e a enfermeira disse que a ambulância só ia pra Natal se tivesse outra pessoa. Depois, quando chegou no Walfredo, o atendente disse, com deboche: “lá em Touros, não tem hospital não?” Humilhação!!! É um direito nosso, a gente só vai para o hospital se está doente. E qualquer um de nós quer ser bem atendido, bem tratado, e isso acontece e a gente não se sente bem. (M.R.S., 43 anos, mãe de dois filhos, residente em uma comunidade na zona rural do município de Touros, no litoral norte do RN). E não são poucos os que relacionam a ausência de um tratamento qualificado à ausência de cidadania. Dona A., também moradora da mesma comunidade rural acima identificada, é uma senhora de 71 anos, hoje aposentada, mas, durante anos, lavadeira de roupas. Com uma firmeza que destoa da idade, Dona A. analisa os serviços prestados pelo SUS com certa indignação. Eu sinto muito é raiva. Porque você passa um dia todinho. Algumas vezes, com um cristão lá esperando... Não! De primeiro, era ruim, mas, agora, ta pior, muito pior... 99 Essa raiva é de quem? É de não ter o atendimento, não ter a pessoa pra atender, a gente não paga? Se paga imposto é pra ser atendida. Mas se a gente não tiver um dinheiro pra fazer um exame, vai morrer... À míngua... Algumas vezes, a resposta ao tratamento discriminatório resvala para ações irracionais e que só retroalimentam o preconceito. Uma vez eu fui pra delegacia... Eu fui parar na delegacia de polícia! Por quê? Porque uma amiga tinha tido uma briga... Eu tava com ela, isso foi em Touros. Ela desmaiou e eu levei-a pro hospital. Chegando lá, o médico disse que ela tava drogada. “Isso é muita droga nessa garota”, ele disse. Eu fiquei louca, sabe? Eu avancei prá cima do médico. Ataquei. Briguei com ele, viu? Veio todo mundo do hospital pra cima de mim. Eles me chamavam de “porca”, de “negra”... Eu arranquei a toca da cozinheira, veio todo mundo... Chamaram a polícia e eu registrei a queixa. O médico é muito preconceituoso. Ele ri de você, diz piada com você... Eu perdi a cabeça... O relato acima parece ser o melhor referente para a questão teórica, formulada por Christophe Dejours: Então o sofrimento pode gerar a violência? Trata-se aqui de uma inversão teórica na própria análise social: ontologicamente, o sofrimento não se apresenta como conseqüência da violência, como seu resultado último, como término do processo, sem nada depois. Ao contrário, o sofrimento vem primeiro. Porquanto para além do sofrimento existem as defesas. E as defesas podem ser terrivelmente perigosas, pois são capazes de gerar a violência social. (Dejours, 1999, p. 84). A dor da espera e de não-saber A demora e a ausência de informações são duas das situações que mais traduzem ausência de cidadania no SUS, e que foram mencionadas recorrentemente por nossos informantes. Esse o caso de E.C.S, entrevistada a quem já nos referimos anteriormente, que, ao comentar a descoberta de uma enfermidade, um mioma, e suas conseqüências, aponta a prática de sonegação de informações vitais aos pacientes por parte de profissionais de saúde no SUS: Depois disso eu fiquei grávida, mas perdi... Não sei o porquê de isso ter acontecido. A médica disse que não foi por causa do mioma porque é externo... Eu não sei o que aconteceu, a gente fica sem saber. A informação é um elemento fundamental para o deslocamento cidadão nos espaços institucionais, concordamos todos. Essa condição é também fundamental não apenas para o alargamento da cidadania, mas, o que é mais decisivo, para a efetivação do que vem sendo propugnado como palavra de ordem, por entidades e órgãos públicos da 100 área de saúde desde há algum tempo: “a humanização do SUS”. E o que sobressai da entrevista acima é uma tendência em linha oposta. Ainda a respeito da transparência na informação, vale a pena reter o que a entrevistada citada mais acima aponta a respeito da “porta de entrada” do sistema: o posto de saúde. Aqui mesmo, neste posto... Fui muito mal atendida. No momento que você chega e pergunta, é porque você precisa da informação. Aí vem um funcionário e diz que tem a informação no cartaz. Eu acho que mesmo se tem no cartaz, ele tem obrigação de informar. Ele disse uma vez que tinha o cartaz, que eu olhasse no cartaz, porque a informação estava lá. Ele disse: “a gente bota o cartaz já pra isso...”. Não poucas vezes, para os nossos entrevistados, a lembrança da espera demorada pelo atendimento, especialmente de entes queridos, é algo rememorado com muita dor. É o que transparece na entrevista de W.A., 28 anos, residente em Macau, município situado a cerca de 150 quilômetros da capital do Rio Grande do Norte, quando ele comenta o tratamento de sua mãe, recentemente falecida. Fale-me dessa “falta de respeito”. A demora... A demora pra ser atendido no local. Como a gente é do interior, então, eu acho que era pra ser prioridade. Chegar lá e ter assim... Não que a gente seja melhor do que ninguém não, não, mas, quem mora na capital já tem certa estrutura, já consegue a consulta. E quem mora no interior? Esse depende do transporte prá voltar pra cidade de origem. Então era muito estressante pra voltar, prá ir prá Natal. A gente não tinha lugar pra ficar lá... E o atendimento era de 14:00, e a gente chegava lá de 8:00 da manhã pra ser atendida de 14:00. Muitas vezes, ela tava com dor de cabeça. No caso dela só fez a operação em dezembro. De outubro até dezembro, tinha que ir e vir toda semana. Era exame, exame... Aí passaram a cirurgia. Até chegar o dia da cirurgia, que demorou também ser marcada. Não tinha médico, em greve e tudo. Aí minha mãe morreu... (choro incontido). Se a elaboração de uma doença sofrida depende da mobilização de um conjunto de valorações sobre si mesmo e o seu lugar no mundo, isso significa que, de algum modo, há uma gramática generativa das disposições dos usuários negros do SUS no Rio Grande do Norte. Nesse sentido, os recortes sócio-demográficos que informam essa população são fundamentais para a produção de uma compreensão mais nuançada da sua forma de avaliar/perceber os serviços a que tiveram acesso. Um recorte fundamental, além daquele relacionado à posse de capital cultural (expresso em capital escolar e no pertencimento a alguma rede de relacionamento, traduzida, no caso do SUS, em “ter amigos lá dentro), diz respeito aos cortes de gênero e de geração. 101 Assim sendo, no geral, as mulheres com mais de sessenta anos de idade, e detentoras de alguma escolaridade, encaram de forma mais crítica o que o SUS oferta, além de produzirem discursos mais substantivos sobre as dores do não-reconhecimento. Tudo se passa como se lembrar, para elas, fosse uma forma de fincar um marco de reconhecimento (ou de luta por). Não raro, as suas falas são marcadas pela emoção. É o caso de F.T, 64 anos, moradora do município de Macau, no litoral setentrional do Rio Grande do Norte. Para ela, o tratamento dispensado aos idosos negros pelos atendentes é o mais “revoltante”. E essa revolta é diretamente relacionada à sua percepção de que se é invisível para o serviço médico. Se você vai se consultar, o médico, com a cabeça baixa, apronta a consulta e nem olha para você. Faz tudo e diz: “pega aí...”. Se é uma pessoa que a gente vai pedir uma ficha, um negócio, a atendente trata você como se você nem existisse. Tem uma que mora aqui, sabe? Uma atendente. Aí eu cheguei lá no Posto e disse: “minha filha, tem ficha aí?” E ela calada, não sabe? Só querem ser o que não é. Aí eu repeti: “mulher, olhe aí se tem alguma ficha...” Ela respondeu: “Espera aí, minha filha, não é assim que se resolve não, tenha paciência”. Aí veio a outra e disse: “Mulher, o que é, hein?”. Aí eu disse assim, assim, o que eu queria. Aí ela virou-se para mim e disse: “fique esperando aí, lá pras 10 horas, eu lhe chamo...”. Isso aí eram umas oito horas... É muito humilhante. C., 39 anos, casado, 03 filhos e residente em Parnamirim, município situado na região metropolitana de Natal, chama também a atenção sobre a demora e o nãoreconhecimento que ela vivencia no SUS. A gente fica na fila muito tempo. Os médicos chegam quando bem querem. Eles atendem depressa demais. A hora da ficha é 7 da manhã e a gente vai ser atendido no final da tarde... É a mesma reclamação de V.S., 26 anos, mãe de dois filhos, moradora de um assentamento rural do município de Touros: Medo! Porque a pessoa vai com fé de ser atendida e ficar logo boa. Quando chega, fica esperando... Não dão resposta logo. Aí, quando a consulta é uma coisinha simples: “pronto, pode ir já pra casa!” Por exemplo, quando a pessoa vai pra se vacinar, é uma coisa que deveria ser rápida, não é? Mas, não.... A gente chega de 7h00 e o atendente fica demorando até 9h00. Se a pessoa vai resolver outra coisa, a pessoa não pode resolver... É só pra isso... Eu acho que isso não é pra ser assim. E é sempre assim. Os fios de dor que tecem o sofrimento social: a negritude no SUS Vale a pena, antes de prosseguirmos, aclararmos um pouco mais o sentido que emprestamos ao termo sofrimento social. Podemos defini-lo como o resultante da violência e da exclusão cotidianas, nem sempre explícitas e quase sempre difíceis de serem expressas em palavras. Embora, ao contrário da violência simbólica, abordada por Bourdieu em 102 muitas de suas obras, o sofrimento social, embora tenha alicerces, como toda forma de violência, em um algum grau, na violência simbólica, não se confunde com esta. Não se trata, no caso do sofrimento social, de uma “violência doce”, que conta com a cumplicidade, não raro, ativa dos agentes que a sofrem. Longe disso! O sofrimento social remete a um sofrimento que é sentido, vivido e que a vítima, não raramente, procura sublimá-lo como uma estratégia de “seguir adiante”, de continuar vivendo. Mas esse sofrimento tem marcas, registros de momentos que, quando são criadas possibilidades, como é o caso de uma entrevista, emergem com força e produzem momentos catárticos. O relato abaixo, parte da entrevista que nos foi concedia pela senhora F.T, de 64 anos, a quem já nos referimos anteriormente, é ilustrativo do que apontamos nos parágrafos anteriores: Fico angustiada pensando no pior, quando vou ao médico. É difícil... (respira profundo). Como é que vou conseguir? Meu Deus! É tão difícil... Eu acho que vai ser uma coisa muito longa, porque é muito difícil, a gente não tem... Como vai ser essa caminhada? Eles botam aquela dificuldade e a gente... E a gente anda... Que ande! Minha filha, eu tenho sofrido muita dor, muita... Eu tô aqui porque acredito que a pele morena é uma família forte. E é mesmo... Porque eu tenho sofrido muito, muita doença. Eu não sei como já não virou CA, graças a deus. Na minha família não tem CA. Graças a deus minha filha não tem, mas, coração, problema no útero... Para E.C.S, há que se levar em conta o fato de que “quando a gente é preto, moreno, muita gente não dá atenção, não. Querem é pisar em quem é preto.” Enquanto MZ, uma senhora de 62, que sofre de hapatite C, residente no município de Assu, no interior do Rio Grande do Norte, mas que freqüentemente busca os serviços do SUS em Natal, a percepção de que atendentes e enfermeiros tratam os negros com discriminação é um dado do mundo: Eu acho o seguinte... Abala-me tanto, sabe. Através da humilhação, da discriminação. Uma coisa que não afeta você, trabalha com luva, simplesmente uma picada subcutânea em uma pessoa... Por que eles tratam a gente assim? A mesma entrevistada, em outro ponto de sua narrativa, faz-nos um relato pungente do tratamento dispensada aos negros, especialmente aos idosos, no posto de saúde de seu município. Deus me perdoe! Mas eu não perdôo nunca quem trata mal a gente... Eu não sou vingativa, mas eu sou muito sentida com as coisas. Tem atendente que quando chegam pessoas pretas mais velhas, eles dizem: “chegou! eita povo fedorento!” (sic). Sabe? Aqueles velhinhos que não se limpam, que não tem quem cuide deles. Outro dia, quando chegou um com muito cheiro de suor no posto, uma funcionária ficou falando prá todo mundo ouvir que ali tinha “fudum”. Eu fiquei com muita raiva. Aquilo me doeu muito, sabe? Ora, você quer comparar você, que é jovem e que tem mais higiene, com uma pessoa de idade? Então, você não sabe que a velhice traz aquele cheiro? Uma vez eu cheguei no posto e ninguém me atendia. 103 Aí a chefona lá mandou: “fulano, vai tu”. Aí fiquei lá zanzando, não conseguia uma atendente para me aplicar uma injeção. Isso deixa a gente com vontade de chorar, sabe? Eu dizia para o Senhor Jesus: “faça com que eu seja atendido, Senhor da Glória. Eu quero ser atendida e ir embora daqui, meu Senhor...” Aí uma estagiária veio e aplicou a injeção. Outro dia, ela (a funcionária que, segundo a entrevistada, tratou-a mal), querendo aparecer, veio falar comigo com um arzinho de riso e deboche. Mas eu não estava despreparada, não. Eu não tava para baixo, não... Mas foi assim casual. Eu estava com mágoa dela, mas fiquei na minha... Quando foi no posto, ela de novo, para aparecer, disse: “Mulher, como é que vai? Ficou boa? Tá melhor?” Eu disse: “Eu tenho nojo de você! Se você tivesse vergonha, não falava comigo”. O.T, 24 anos, trabalhador autônomo e atuante em entidade de representação de bairro na cidade do Natal, é também um interlocutor privilegiado no que diz respeito à questão da discriminação contra os negros no sistema de saúde. Tendo concluído o ensino médio e participado de diversas atividades políticas, é um informante que constrói uma elaboração sofisticada das relações sociais nas quais está envolvido. Consegue, em certo sentido, produzir aquele distanciamento necessário para que se tome como objeto o mundo social no qual se encontra inserido. Uma postura que é tida, de certo modo, como a forma “natural” de agir do cientista social. Eu estava em uma fila de exame... De marcação de exame odontológico. Então, na hora da distribuição das fichas, houve um pequeno distúrbio, dado que tinha muita gente esperando, e esperando há muito... Era uma disputa para ver quem conseguiria uma ficha, certo? Aí a funcionaria gritou que “aquilo” era coisa de “negro amundiçado” (sic). E eu fiquei muito chateado. Poxa! Ela é uma profissional de saúde, atendendo à população e sai com um dessas. Onde é que isso leva? Ao reforço do preconceito e à diminuição da auto-estima do negro... Enquanto O.T. elabora um discurso articulado, no qual se percebe, muito facilmente, a presença de aportes oriundos de sua participação política (ele já trabalhou como “assessor informal” de um vereador do PMDB), outros usuários constatam situações de discriminação, mas, destituídos do seu capital cultural e político, terminam por resvalar para o fatalismo. Isso não significa, adiante-se, que não se produzam, também nesses últimos, ressentimentos e sofrimentos como respostas às formas percebidas como negativas de atendimento no SUS. Exemplar do que apontamos acima é o relato que nos foi dado por M. A., casada, mãe de dois filhos, um menino e uma menina, e ocupante de uma casa que se encontrava abandonada nas imediações em um dos bairros da Zona Sul de Natal. M. A. e sua família, até a alguns meses antes de nossa entrevista, viviam em São José de Mipibu, município situado há poucas dezenas de quilômetros de Natal. Toda a família trabalha e desloca-se pela cidade em uma carroça. O sustento da família é garantido com a reciclagem de 104 material recolhido de lixos residenciais. O seu marido, algumas vezes, consegue ser contratado como ajudante de pedreiro. No dia em que entrevistamos M.A., ela se encontrava no Posto de Saúde do Pirangi, na zona sul de Natal, para tentar conseguir tratamento para o seu filho. Este, segundo ela, encontrava-se acometido por uma doença ainda não diagnosticada. Mesmo tendo chegado bem cedo ao posto, em torno das 07h00min, não conseguiu ficha para ser atendida (a distribuição ocorrera às 06h30min). Persistente, ela esperou a médica passar pelo corredor e a abordou. Esta, após uma rápida conversa, solicitou que um funcionário aplicasse nebulização na criança e disse-lhe que esperasse, pois, no período da tarde, poderia atendêla. Durante toda a nossa conversa, a criança, aparentando fragilidade, dormia em seu colo. Já eram 10h40min, e M.A, dizendo-se com fome, saiu do posto e subiu na carroça, que estava na frente do Posto, para, na suas palavras, “procurar alguma coisa para comer”. Antes de se despedir, em tom de desabafo, mas também de conformação, disse-nos: Eu vim aqui porque ele está muito cansado... Eu não sei se volto de tarde, não... Ao resgatarmos, partes de sua entrevista deparamo-nos com um discurso, muito comum entre os nossos entrevistados, para os quais o contato com os serviços de saúde é relatado sempre de forma muito dolorosa. Se isso é, em parte, verdade para todos os que têm que lidar com suas doenças em qualquer sistema de saúde; para os negros usuários do SUS no RN, esse é quase o relacionamento padrão, especialmente porque, nele, como sói ocorrer com as tratativas com outros sistemas (de segurança, por exemplo), a sua diminuição como sujeito é momentaneamente revelada. Um dia meu filho estava vomitando, com febre. Eram 7 ou 8 horas da noite. Eu vim aqui, perguntei se tinha médico, disseram que não. E me mandaram ir lá pro (Conjunto) Satélite. A gente pegou a carrocinha e foi. Quando eu cheguei lá, me olharam e disseram que não podiam atender urgência de criança. Isso foi há um mês. Só atendiam se fosse caso de vida e morte. Foi... (suspiro) Disseram lá... Desse jeito. Ai, meu marido deu brabo, né? Falou alto e a gente foi embora... A gente até àquela hora não tinha dado ainda o jantar aos meninos. Aí agente continuou a andar na carroça. Paramos numa carrocinha de lanche. Parece que foi uma benção! Tinha uma farmácia perto. A gente falou com um homem da farmácia, perto da Divemos, e ele passou um remédio. Foi bem barato, uns R$ 4,00... Olha, foi igual ao médico... Igual, não, melhor! Não é raro que as situações de discriminação na entrada do sistema sejam apreendidas através de uma gramática que diagnostica as diferenças como alicerçadas exclusivamente na posse “do dinheiro”. Talvez esta seja uma estratégia de sublimação das 105 situações de racismo das quais se é vítima. Uma usuária, moradora do município de Macau, a qual necessita, com freqüência, levar o seu filho para tratamento especializado em Natal, afirma que “já teve vez de eu estar na filha e aí vem outra pessoa, que tem cara de quem dinheiro, e passa na frente. Dá um desgosto, uma raiva...”. A mesma entrevistada relata que, como utiliza a ambulância para conduzi-la, junto com o seu filho, para a capital, já questionou o motorista o porquê de algumas pessoas, com mais condições de mobilidade do que ela, serem apanhadas em casa, o que não ocorre com ela. A essa altura da conversa, pára um pouco, ri com amargura e esfregando os dedos polegar e anelar da mão direita, sentencia: “aí tem...”. Também não é raro que o mau tratamento recebido seja atribuído exclusivamente à personalidade ou aos atributos pessoais do atendente. Isso ocorre, como é o caso da entrevistada E.C.S, já citada, quando a informante chama a atenção para as dores e fraturas pessoais causadas pelo tipo de atendimento recebido: Eu fico constrangida. Eu não me sinto bem. Eu fico com aquela angústia. É muito ruim você não ser tratada bem. Se você não gosta da sua profissão, então mude, né?. Esse funcionário que não me atendeu bem, já disse: “eu faço o que eu quero, não o que as pessoas querem...” Outros entrevistados relatam situações nas quais a teatralização do desespero funciona como um último recurso para se conseguir estabelecer uma relação com o corpo funcional do SUS. As expressões de dor e a dramatização da doença funcionam, paradoxalmente, como elementos de aproximação e de conquista de algum reconhecimento. É esse o caso de uma entrevistada, com mais de sessenta anos de idade, que nos chamou a atenção para como conseguiu ser atendida. Eu estava desesperada. Todas as cirurgias que eu fiz, foi em desespero. Eu pedindo, chorando e implorando... Porque eles não querem fazer não, filha. Só se chegar um furado, chegar uma urgência, a pessoa morrendo. Mas se você chegar a pé, andando, assim eles não fazem fácil não, criatura. Você anda minha filha, você anda... E não consegue... (M.C.S, 64 anos, professora aposentada e residente no município de Apodi, oeste do RN). Conclusões A pessoalização e a dádiva estão presentes nas relações que os usuários negros do RN constroem com o SUS. A impessoalidade, não raras vezes defendida por gestores públicos como uma expressão da universalização (daí a defesa de formas de relacionamento como a “marcação de consultas por telefone”), tende a ser apreendida pela população pesquisada como “des-humanização” do SUS. 106 As experiências de injustiça e ausência de reconhecimento, vivenciadas pelos negros do RN no SUS, fazem emergir certa fobia em relação aos serviços de saúde. Tais situações, por outro lado, são dolorosamente incorporadas pelos agentes em suas biografias. Constituem-se ainda em referentes nos quais ancoram as suas produções de descrença e absenteísmo em relação às instituições públicas. Essas situações constituem dolorosas marcas que irrompem em momentos raros, como aqueles nos quais as experiências pessoais são revividas, como é o caso de uma entrevista. Por último, vale a pena frisar, a invisibilidade é a tradução do não-reconhecimento dos negros no SUS. E essa invisibilidade, referenciada pelos entrevistados na forma como atendentes e alguns médicos lidam com as situações (doenças, traumas, enfermidades, etc.) que levaram eles próprios ou pessoas próximas a procurarem atendimento nos serviços de saúde, se traduz, não raro, em ressentimentos e revolta. Referências BOURDIEU, Pierre. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2002. __________. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 1998. BOURDIEU, Pierre e WACQUANT, Loïc. Réponses: pour une anthropologie réflexive. Paris: Éditions du Seuil, 1992 DEJOURS, Christophe. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: FGV, 1999. LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1991. SOUSA, Jessé. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003. 107 A influência de Comte e Spencer no Positivismo latino-americano, Uma comparação entre o pensador brasileiro Luís Perreira Barreto e o pensador chileno José Victorino Lastarria. Comte and Spencer's influence on Latin-American Positivism, A comparison between the Chilean intellectual José Victorino Lastarria and the Brazilian intellectual Luís Perreira Barreto Vinicius Delangelo Martins Gatto1 Resumo: O artigo tem como objetivo central analisar a recepção do Postivismos inglês e francês entre os trabalhos do pensador brasileiro Luís Perreira Barreto e o pensador chileno José Victorino Lastarria. O trabalho discute ainda o caráter do Positivismo e o papel desempenhado pelo mesmo na América Latina. Palavras chaves: Positivismo, América Latina, Sociologia do conhecimento. Abstract: This article´s main objective is to analyze the reception of the English and French Positvism among the works of the Brazilian intellectual Luís Perreira Barreto and the Chilean intellectual José Victorino Lastarria. This work also discusses the character of Positivism and the role played by this theory in Latin America. Keywords: Positivism, Latin America, Sociology of knowledge. Introdução – O Positivismo na América Latina. Este artigo tem como objetivo analisar a influência do Positivismo na América Latina, mais especificamente entender os motivos e as razões da escolha desta teoria pelas elites intelectuais chilena e brasileira. Procurarei, deste modo, os contextos sociais, históricos e políticos de cada nação que balizaram cada escolha. O Positivismo chileno será analisado à luz do trabalho do intelectual José Victorino Lastarria e o Positivismo brasileiro será tratado com base no trabalho do intelectual Luís Pereira Barreto. A escolha dos dois pensadores se deu pelo fato de representarem posições inaugurais, centrais nos debates e discussões sobre as possibilidades positivas na vida política de cada país. É notória a predileção de Lastarria pelo Positivismo liberal inglês de Herbert Spencer e no caso brasileiro a preferência pelo Positivismo francês por Luís Pereira Barreto. Um dos objetivos deste trabalho será também analisar as diferenças crucias entre o 1 Mestrando do Departamento de Sociologia – Universidade de Brasília. SQN 303 Bloco F apt 607, 70735-060, (61) 9965-4049. [email protected]. 108 Positivismo inglês e o Positivismo Francês, entender quais aspectos de cada teoria favoreceram a escolha por cada elite latino americana. O Positivismo é uma corrente filosófica que se inicia na segunda metade do século XIX na Europa. O Positivismo se organiza com base em uma Epistemologia que procura combater as visões metafísicas na ciência. A ênfase metodológica está na observação sensível dos fatos e da experiência procurando em vez de causas, leis que expliquem o funcionamento da realidade. Deriva em grande parte dos avanços das Ciências Naturais no período e é uma tentativa de aplicar o mesmo procedimento ao estudo das sociedades e da política, daí advindo a criação da Sociologia por Auguste Comte. O Positivismo rejeita aspectos externo a realidade para legitimar o conhecimento. Sua intenção é a descrição objetiva dos fatos e a explicação dos mecanismos e dos sistemas pelos quais estes fatos acontecem e se repetem. Esta ênfase na realidade cognoscível tem como pressuposto a busca por uma ciência utilitária, pragmática que descubra verdades passíveis de serem utilizadas pela humanidade. Isto é, em suma, o espírito da época em que a teoria foi produzida. O Positivismo é resultante da conturbada realidade europeia pós Revoluções Francesa e Gloriosa. Na medida em que a Modernidade e o Capitalismo produziam novas relações sociais, completamente diferentes do período anterior, o Feudalismo, a Europa se encontrava em um período turbulento de ajuste no qual estas novas relações sociais, como a urbanização e a industrialização passam a conviver com mentalidades aristocráticas remanescentes. É particularmente instável a situação política da França pós-revolucionária. Visto deste modo, o Positivismo está do lado da Modernidade, por isso é tão cara a noção de progresso nesta escola, no qual a Modernidade e o Capitalismo são enxergados sob um prisma evolutivo, isto é um período mais complexo, mais heterogêneo, mais dinâmico do que o anterior. A passagem para o novo sistema histórico, a Modernidade representa apenas o desenvolvimento da lei da história, assim como os seres humanos são derivados de espécies animais inferiores, ou o sistema solar derivou de uma grande massa homogênea. O Positivismo e sua crença inabalável na Ciência representam antes de tudo a esperança de uma elite em conseguir respostas, explicações, verdades a respeito da realidade a partir da observação, experimentação, comparação dos dados sensíveis com vista à utilização prática e útil do conhecimento sobre a natureza em favor do homem. 109 Segundo Leopoldo Zea (1976), na América Latina a descoberta desta nova teoria soou como a salvação para os problemas latino-americanos. A ênfase desta Filosofia no progresso, no futuro, na ciência e na educação repercutiu mais do que apenas entre o círculo acadêmico e científico. O Positivismo representou uma nova e poderosa ideologia para as elites latino-americanas. Antes da chegada do Positivismo neste continente a corrente filosófica de maior força era a Escolástica. Analisada pelos positivistas a Escolástica nada mais era do que a Filosofia católica imposta pela metrópole. E agora começamos a chegar ao ponto que explica o motivo de tão grande aceitação da Filosofia positiva. Enquanto a Filosofia e a América Latina eram marcadas pelo pensamento especulativo, por bacharéis e literatos, o Positivismo era a ode à Modernidade, à pratica, à utilidade, ao novo, ao futuro, ao progresso. No período pós-independência nacional a América Latina entra em um período de caos social, político e econômico. É notória a falta de estabilidade e a sucessão de golpes, revoluções, trocas de poder. Por outro lado o vizinho americano mais ao norte caminhava estavelmente rumo ao progresso e ao desenvolvimento. É neste contexto que certos intelectuais latino-americanos passam a enxergar as mazelas do continente como resultado da aceitação dos paradigmas e das mentalidades ibéricas. Fez se a revolução, acabou o monopólio da metrópole, mas os esquemas de pensamento, a forma de agir, o funcionamento da sociedade, da política, da economia ainda permaneciam aristocráticos à moda ibérica, por conseguinte, atrasados (ZEA:1976). Visto deste modo, o Positivismo representou uma esperança revolucionária para definitivamente acabar com os esquemas mentais atrasados remanescentes da colonização europeia e colocar a América Latina nos caminho evolutivo rumo a Modernidade. A América Latina não necessitava de mais bacharéis e literatos, seria necessário sim engenheiros, industriais, cientistas, estradas de ferro, produção. O espírito aristocrático deveria ser trocado por um espírito prático, um espírito de ação e acumulação de riquezas. A ordem seria acabar com o passado, pensar o futuro e realizar a verdadeira independência. Mais do que mudar o espírito da própria elite dirigente em cada nação, o Positivismo foi encarado, muito a partir de sua ênfase na educação e na Ciência como um meio de mudar costumes atrasados e não modernos da população. A ordem seria educação de qualidade e gratuita para todos, mais do que apenas conhecimento havia aí uma pedagogia explícita: preparar os latino-americanos, toda a população, para fazer, participar e desejar o progresso. 110 Estas são as características centrais do movimento em toda a América Latina, mas assim como se pode fazer uma generalização a respeito de um Positivismo latino americano, é possível também, perceber Positivismos nacionais específicos. Em cada nação o Positivismo foi encarado como um remédio eficaz para determinado mal social. Na argentina se considerou um bom instrumento para acabar com as mentes tirânicas e absolutistas que a haviam governado. Os chilenos consideraram o Positivismo como um instrumento eficaz para converter em realidade os ideais do liberalismo. No Uruguai o Positivismo se ofereceu como a doutrina moral capaz de acabar com uma longa era de quartelaços e corrupções. Peru e Bolívia encontraram na mesma doutrina, a mentalidade que haveria de fortalecê-los depois da grande catástrofe nacional que sofreram na guerra contra o Chile. Os cubanos viam a doutrina como justificativa para seu desejo de independência da Espanha. (ZEA 1976, p. 80, tradução livre). Portanto mais do que uma Epistemologia, o Positivismo foi visto como uma força moral, ideológica capaz de mover os países. O Positivismo representou uma nova utopia para os latino-americanos. Em cada país as formulações teóricas enfatizaram autores diferentes. Assim para muitos dos positivistas latino-americanos a teoria de Auguste Comte, especialmente sua ideia de uma religião da humanidade foi definitivamente rechaçada por conta de embates locais contra o clericalismo. Por outro lado o caso brasileiro parece guardar uma distinção fundamental, enquanto no restante do continente o Positivismo era uma utopia revolucionária, por aqui a adoção oficial pelo governo do Positivismo indica não uma mudança estrutural, mas sim uma adaptação do governo, da classe dirigente às circunstâncias históricas. O caso brasileiro representa não uma revolução, mas no melhor modo positivista, uma evolução. Portanto, o conservadorismo das explanações de Auguste Comte encontrou terreno muito mais fértil em solo brasileiro do que, por exemplo, no Chile, aonde o liberalismo era a força matriz por trás dos ensejos positivos nacionais. Cabe destacar que a apesar da força e das imensas tentativas dos positivistas latinoamericanos, passados quase dois séculos os objetivos positivos não foram alcançados. Em grande parte, ainda permanecemos uma sociedade hierarquizada, desigual, não escolarizada, mal alfabetizada. Enquanto isso a força de instituições sociais como a Igreja e o Exército, ou mesmo a classe econômica dominante tradicional por muitas vezes barrou os ensejos positivos por uma nova mentalidade prática e por uma nova realidade moderna e industrial. 111 Auguste Comte, o Positivismo conservador. Auguste Comte pode ser considerado o pensador inaugural da doutrina positivista. Foi o primeiro pensador a sistematizar a Metodologia da doutrina. Na concepção do autor, a Filosofia se torna apenas uma Filosofia da ciência, isto é uma Epistemologia capaz de fornecer as bases teóricas para os procedimentos científicos em busca da verdade. Tal Epistemologia deriva dos grandes resultados alcançados por outras áreas das Ciências Naturais. Partindo dos métodos da Biologia e da Astronomia, Comte conclui que todo conhecimento, seja ele aplicado ao mundo natural ou ao mundo histórico deve seguir o mesmo caminho, ou seja, a observação, a experimentação, a comparação, a classificação e a ordenação dos fatos reais, observáveis, sensíveis. Vemos aqui a ênfase na realidade e na experiência observada e a negação de teorias metafísicas. Apesar de não prescindir da observação dos fatos, Comte considera que toda observação possui uma teoria a priori, é necessário algum tipo de pensamento antecedente para tratar os dados. O objetivo da Ciência, em geral, é estabelecer leis sobre o funcionamento das coisas e a partir do conhecimento sobre o funcionamento dos sistemas, prever os resultados. A teoria deve exprimir a realidade. Comte é ainda um pensador que visualiza a ciência como utilitária, pragmática, o conhecimento deve ter uma aplicabilidade. Comte é responsável pela criação de uma nova ciência, a Sociologia, uma disciplina capaz de utilizar o método positivo sobre o objeto social. Comte visualiza a filiação histórica como método fundamental para esta disciplina, antevendo já a noção de progresso. Havia já nesta época uma disciplina que estudava o social, a Economia Política, porém Comte recusa a primazia do econômico sobre o social, justificando assim o nascimento de sua ciência. O entusiasmo provocado pela obra de Comte deriva em grande parte da aplicação de seu método positivo sobre o objeto social e a esperança de influir positivamente na realidade. Provavelmente, a formulação mais conhecida de Auguste Comte é a lei dos três estados. Segundo Comte, as sociedades passam por três estágios definidos. O estado teleológico, o metafísico e o positivo. A evolução, inclusive valorativa, é do primeiro para o último. Como exemplo de cada extremo, temos primeiro a sociedade militar, na qual predomina no corpo social a força como medida da política e dos costumes, a sanção física para os desvios, as guerras de conquista e o comando irracional, não científico e sim 112 movido pela emoção por parte dos governantes. A estrutura governamental arquetípica é a realeza. No outro extremo encontramos a sociedade industrial. Na qual predomina a cooperação como mediadora dos conflitos e dos costumes, a produção como resultado desejado, como valor operacional para a vida, a paz nas relações internacionais, a sanção moral para o desvio e o racionalismo e a utilização da Ciência para decisão dos governantes. A estrutura governamental arquetípica é a República. O estado metafísico representa um estado intermediário, híbrido sem conotações próprias definidas, podendo combinar aspectos dos dois outros estados. Esta dinâmica de passagem entre os estados é fixa, é uma lei. A ação humana pode apenas interferir nos aspectos secundários deste processo, pode retardar ou adiantar, mas não mudar o rumo da transição. A sociedade se organiza em um sistema composto de vários elementos, dos quais os expostos acima são alguns, estes elementos são interdependentes em variados graus. Já que Comte prega a aplicabilidade do conhecimento, se faz necessário algumas considerações sobre o exposto até aqui. Sem dúvida o pensador francês considera o estado positivo, o estado melhor e definitivo. Neste sentido o estudo da Sociologia deve fornecer planos e ações para favorecer, acelerar a passagem entre os estado, rumo ao estado positivo. A política, isto é a Sociologia aplicada, deve favorecer a mudança de relações feudais para relações industriais, isto é, de relações baseados no conflito rumo a relações baseadas na cooperação. Dentro do esquema positivo pensado por Comte, o autor esboçou algumas soluções para os problemas sociais. Antes de tudo, Comte detesta a anarquia e a desordem, a aceleração política do progresso e da evolução deveria ocorrer dentro da mais completa ordem e de forma gradual. E mais, segundo Comte, esta aceleração, ou a política deveria ser conduzida por especialistas positivos, de fato, por sociólogos. Neste esquema não seria necessário a intervenção dos cidadãos comuns. Comte acredita que a educação e a livre discussão das ideias devem ser amplamente difundidas para todos os habitantes, acredita fortemente que a democratização do conhecimento é um fator de evolução e de progresso da sociedade. Um dos fatores deste progresso é o contínuo aumento de liberdade do indivíduo dentro da ordem. Entretanto no esquema político de Comte não seria necessário a intervenção dos cidadãos, na verdade os cidadãos deveriam crer na política, da mesma forma que creem na Ciência. Em suma, é a mesma relação, 113 afinal a política seria a ciência aplicada. Comte nos dá um bom exemplo de como funcionaria o procedimento: todos sabem que os engenheiros sabem construir pontes, todos creem na capacidade dos mesmos, de modo que ninguém interfere no trabalho. Assim deveriam se portar os governados em relação aos sociólogos governantes. Comte foi um forte combatente do Liberalismo. Para o autor esta corrente apenas favorece o individualismo e a dissolução do corpo social. De tal modo que o contínuo progresso da sociedade prevê a constante solidariedade entre os membros. Comte foi inclusive favorável a uma maior distribuição dos bens, serviços, renda entre trabalhadores e patrões. Mas discordava das soluções revolucionárias, entre a ordem e a justiça, o autor preferia buscar a última por meio da primeira. O pensador francês dedicou boa parte de sua argumentação em favor de uma reeducação moral, uma nova moral de cooperação, solidariedade e respeito espiritual à Ciência deveria ser ensinada e difundida para se alcançar o progresso. Por fim, Comte leva seu sistema positivo às últimas consequências e funda a religião da humanidade. Tal religião chegou a ter ritos, sacramentos, cerimônias. No fundo suas bases eram as mesmas de todo o seu sistema filosófico, ou seja, a procura pela verdade por meio da ciência, a busca pela solidariedade e a cooperação, a democratização do conhecimento, o aumento da liberdade, a busca pelo progresso, a evolução e acima de tudo, a manutenção da ordem. Esta foi a utopia final de Auguste Comte. Ordem e progresso, o Positivismo de Luís Pereira Barreto. A trajetória intelectual de Luís Perreira Barreto conforme nos mostra Ângela Afonso em seu artigo O Positivismo de Luís Pereira Barreto e o Pensamento Brasileiro no Final do Século 19 demonstra um pouco das mudanças pelas quais estava passando o Brasil em fins do século XIX. A maioria dos intelectuais brasileiros era formada nas escolas de Coimbra ou Paris com vistas à carreira de bacharel, muito bem vista, na estrutura do segundo império. Entretanto, Barreto por conta de sua excelente condição financeira e, portanto da não necessidade de uma carreira na estrutura do governo escolhe a Universidade de Bruxelas e a carreira de médico. É na Bélgica que Barreto entra em contato com a obra de Comte e se torna um positivista religioso. 114 Segundo a autora, no Brasil, a recente Guerra do Paraguai provocava mudanças importantes. A partir do entusiasmo provocado pela vitória brasileira, crescia a importância política da classe militar, até então afastada dos rumos políticos da nação. Os militares adquiriram enorme prestígio com a vitória e desejavam influir nos rumos políticos da nação. Desde 1850, noções positivistas vinham sendo infiltradas no interior da organização, o que levou os militares a tomarem posições republicanas e antiescravagistas. Crescia também a insatisfação com o predomínio dos bacharéis e dos letrados sobre os rumos políticos da nação. Esta posição vai unir militares e a nova classe intelectual emergente urbana que exigia a meritocracia para os cargos do governo. No campo econômico ocorre o declínio da antiga elite cafeeira paulista do vale do Paraíba e a ascensão da elite cafeeira do oeste paulista, do qual Barreto faz parte. Enquanto a primeira elite permanece fiel a D. Pedro, o oeste paulista começa a reivindicar um sistema federalista e republicano. Barreto então ambiciona se tornar o porta-voz desta reivindicação sob os auspícios do Positivismo. É neste contexto, que surge uma contra elite intelectual, que sob o guarda chuva do Positivismo, vai se contrapor à condução patrimonialista do governo por D. Pedro, o liberalismo dos bacharéis e ao romantismo indianista enquanto força legitimadora nacional. Pretende-se uma republica moderna, científica, técnica. O projeto civilizatório, calcado no Positivismo e, por conseguinte na ciência, proposto por Barreto se enquadra nesta linha. O Positivismo seria ainda uma arma poderosa contra a instituição monárquica. No fim o Positivismo brasileiro vai desempenhar um importante papel na abolição da escravatura e no apoio ao golpe militar que acabou com o Império e proclamou a república. Afonso (2010) prossegue: o Positivismo de Barreto vai buscar em Comte seus aspectos conservadores para a transformação social. Isto é, a linguagem do consenso, da ordem, da solidariedade, da persuasão com o objetivo da harmonia social. A evolução de um estado a outro seria dado de forma pacífica e segundo um consenso dos notáveis. Barreto se fixa em São Paulo e publica em 1874, Filosofia Teológica e em 1876 Filosofia Metafísica. Nestes o autor busca compreender a realidade brasileira com base na formulação dos três estados de Comte. Barreto compreendia que existia ao mesmo tempo no Brasil aspectos retrógrados como o romantismo e o catolicismo e por outro lado já havia empreendimentos científicos e industriais, de tal modo, que o país poderia ser classificado no estado metafísico. No Positivismo de Barreto destaca-se uma tentativa de adequar a doutrina e os esquemas do pensador francês à realidade brasileira. Por exemplo, 115 a respeito da escravidão defendia uma lenta e gradual libertação. No caso da derrubada do Império, a evolução deveria ocorrer no mesmo ritmo, lenta e gradual. Admitindo a teoria de Comte, de que a evolução é inevitável, cabendo aos homens apenas retardar ou acelerar o processo, Barreto procurava programas e atividades que removessem os entraves históricos para a passagem rumo ao estado positivo. O autor se detinha em dois pontos, a mudança de mentalidades atrasadas, ou seja, uma adequação moral e por outro lado, medidas práticas - econômicas e políticas. Para tanto empreendeu uma maciça divulgação do Positivismo pelos canais intelectuais brasileiros. E como tática política, Barreto fez alianças pontuais em torno de temas importantes para o país. Contra a visão teológica, em declínio no país, se aliará aos legistas. Contra os bacharéis, elite intelectual dominante, buscará o apoio dos demais científicos e técnicos. Como última parte tentará convencer os colegas positivistas de que a sua interpretação é a mais verdadeira. Estas alianças táticas mais o seu revisionismo da obra do autor francês provocaram reações de positivistas brasileiros mais ortodoxos como, por exemplo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes. O primeiro o expulsa da igreja positivista do Brasil. Entretanto ao sectarismo de certa parte do Positivismo nacional, Barreto contrapôs uma análise e uma ação política com bases na política real do país, isto é, um verdadeiro plano de ação com vistas a passagem do Brasil rumo ao terceiro estado, rumo à Modernidade. Liberalismo: o último estágio no esquema evolutivo da humanidade. A obra de Herbert Spencer. Podemos dizer que Herbert Spencer partilha das considerações epistemológicas de Auguste Comte, neste sentido sua teoria social é ela também positivista, no sentido que seus métodos derivam também dos grandes realizações das Ciências Naturais. Spencer também estava convencido da necessidade da observação sensível da realidade. Os pensadores inglês e francês estão de acordo ainda no caráter fundamental da ciência e da educação como estímulos para o progresso, a civilização e ao espírito capitalista. Entretanto, os pressupostos sociais, as correntes ideológicas dos dois autores são bem diferentes. Enquanto Comte acredita, sobretudo na ordem e na solidariedade coletiva, Spencer enfatiza a todo o momento a competição e a liberdade individual. Em outras 116 palavras, Spencer é um teórico do liberalismo, corrente a qual Auguste Comte sempre combateu. A primeira premissa metodológica de Spencer é utilizar conceitos biológicos para o estudo da sociedade. Segundo o autor, as leis que regem o funcionamento de uma sociedade são rigorosamente iguais às que regem um organismo. Há um mesmo princípio regulador, esta perspectiva fica bem clara na noção mais conhecida de seu sistema filosófico, a noção de evolução e progresso. O progresso é a tendência natural de todos os fenômenos. Spencer em seu livro Do Progresso: Suas Leis e Suas Causas analisa resultados em diversas ciências tais como a Biologia, a Astronomia, a Geologia e por fim as Ciências Humanas para enunciar a sua lei: o progresso é sempre do mais simples ao mais complexo, do mais homogêneo ao mais heterogêneo. Cada etapa subsequente é resultado de um processo de diferenciação, de mudança e de aumento de complexidade. Assim, o sistema solar deriva das continua diferenciação da matéria, os seres vivos evoluem do mais simples ao mais complexo e a Terra em seu início era uma massa uniforme com um único clima, uma única temperatura, uma única densidade e composição. Esta tendência é percebida com muito mais clareza na evolução das sociedades. Conforme o progresso do tempo, a humanidade se diferenciou e se heterogeneizou em costumes, hábitos, linguagem, alimentações, celebrações, religiões, vestimentas. E dentro de cada sociedade, a tendência natural é a complexificação de funções e o aumento da divisão social. Este é a natureza da evolução: modificar-se continuamente e complexificar. Qual o mecanismo por trás desta contínua mudança? Spencer explica assim sua lei, cada causa produz mais de um efeito e toda força ativa produz uma modificação. O autor evita adjetivar esta mudança, chega a rejeitar concepções de evolução com base em valorizações, do tipo pior para melhor. Mas quando confrontamos a aplicação desta lei no estudo da sociedade inglesa, podemos perceber como o autor enxerga a mudança rumo à diferenciação como algo positivo. Passemos a tratar das concepções sociais do autor. Spencer é um liberal clássico, isto é, defende a restrição da atuação do Estado sobre a sociedade, perpesctiva que pode ser melhor percebida na obra O indivíduo contra o estado. Para o autor a função única e primordial do Estado é garantir a segurança e liberdade dos seus indivíduos. Como o seu esquema evolutivo se encaixa nesta assertiva? Segundo o autor, o sistema industrial inglês é o que há de mais complexo nas sociedades 117 humanas. Um sistema no qual a cooperação compulsória foi substituída pela cooperação espontânea. O sistema industrial é o que acumula o maior número de funções, complexificações, divisões sociais. Concentrar o poder na mão do estado é limitar a crescente heterogeneização da sociedade. Spencer crê na auto-adaptação do sistema deixado livre. Quanto maior a liberdade e autonomia individual maior a tendência para o surgimento espontâneo de inovações e modificações. E quanto mais livre, maior a tendência da própria sociedade de se auto-regular e resolver suas contradições sociais. A competição é o meio pelo qual a liberdade e a inventividade humana podem se desenvolver. É de autoria de Spencer a famosa frase: a sobrevivência do mais apto. Em suma, segundo seu sistema a competição entre indivíduos livres gera indivíduos mais aptos e sociedades mais diferenciadas e mais complexas. Lastarria, um seguidor do Positivismo liberal. Em 1818 o Chile alcança sua independência. Bernardo O'Higgins é nomeado diretor supremo da nação e governa de forma autoritária. Em 1823, para evitar uma guerra civil, O'Higgins renuncia ao cargo e o Chile enfrenta um longo período de convulsão social e instabilidade política. A estabilidade será retomada a partir de 1829, com a eleição de José Joaquín Prieto e o início do período conhecido como República Conservadora. Em 1833 é promulgada uma nova constituição em que se estabelece o sufrágio e a concentração de poderes na figura do presidente. O país se desenvolve em torno da cultura de trigo e da exploração do cobre. Durante a República conservadora o país segue em crescimento. Inaugura-se a Universidade do Chile e diversifica-se a produção econômica. Após conflitos com o clero, Manuel Montt eleito em 1851 perde apoio político e parte dos conservadores se une aos liberais (GALDAMES: 1952). Os liberais chegam ao poder em 1861, inaugurando o período conhecido como República Liberal. Em 1871, termina a aliança liberal-conservadora e começa a aliança liberal. Neste período inicia-se o aumento da ocupação sobre o território. Inicia-se também uma tendência para a laicização do país e reforma da constituição de 33, revisões que vão recrudescendo ao longo do tempo. É nesta época que ocorre as guerras contra o Peru e a Bolívia. As regiões incorporadas pela guerra proporcionam um salto econômico ao país a partir da exploração de jazidas de minérios (GALDAMES: 1952). 118 Em 1833, quando o governo conservador promulgou a constituição de 33, José Victorino Lastarria participou de uma revolta estudantil contra a medida. Desde seus primeiros estudos o jovem intelectual se filia ao Liberalismo. Em 1842 o mesmo funda a Sociedade Literária ao lado de outros intelectuais chilenos para divulgar teses combinando Positivismo e Liberalismo. Lastarria ocupou ainda diversos ministérios ao longo da República Liberal. Segundo Leopoldo Zea (1976) o primeiro ponto a ressaltar na obra do pensador chileno é sua total oposição ao fatalismo histórico. Lastarria vê esta forma de análise como uma ferramenta para a subjugação dos povos com menor desenvolvimento pelos mais desenvolvidos. Um pensador, preocupado com o fato de modernizar a América Latina não podia aceitar teorias que colocassem este continente de forma determinística abaixo da Europa ou da América Saxônica. De fato a aceitação de um fatalismo histórico é causa da aceitação da colonialidade, isto é, da aceitação de estigmas de inferioridade impostos pelo colonizador (MIGNOLO: 2005). O Positivismo liberal do autor visa também uma mudança moral, a quebra dos esquemas de pensamento coloniais. O autor chileno compartilha com o Positivismo a necessidade de observação sensível da realidade. E vê na ciência uma ferramenta para a mudança de mentalidades. A esta perspectiva fatalista na história o autor chileno opunha a teoria liberal. A história é feita pela mão dos homens, o desenvolvimento e o progresso são realizados por ações autônomas individuais. Lastarria está convencido de que a liberdade é o motor do progresso. Vemos aqui uma aproximação da teoria do autor com a obra de Spencer, mais semelhanças aparecerão ao longo deste texto (ZEA:1976). Lastarria não se opunha integralmente a Auguste Comte. Aceita, por exemplo, a lei dos três estados, reconhece que esta evolução é o caminho natural e inevitável da humanidade. E conjugando o Liberalismo com o Positivismo comtiano conclui: se a história é feita por homens, também é dever dos homens corrigir os erros passados e interferir nos efeitos secundário que acelerem o progresso. Lastarria rejeita o fatalismo, mas acredita firmemente na marcha histórica rumo ao progresso. Entretanto, diferentemente de Comte e de forma similar à Spencer, considera a liberdade individual com causa da dinâmica histórica. O autor chileno rejeita profundamente a noção moral de Comte e sua busca espiritual pelo consenso, paradigmas explícitos na criação da religião da humanidade. É, portanto dever da geração atual corrigir os defeitos e as mentalidades retrógradas da época colonial. Visto deste modo, a anarquia pós-independência prestou um 119 papel importante ao Chile, preparar as bases para o estágio positivo, para o progresso (ZEA: 1976). Em suas discussões sobre o papel do Estado, Lastarria se aproximará cada vez mais de Spencer e se distanciará de Comte. Para o autor, a função básica do Estado é garantir a liberdade individual. Isto é, fornecer ao indivíduo segurança e apoio para seu desenvolvimento particular. A paz é resultado desta função. Lastarria rejeita os que em nome da ordem e do progresso permitem ao Estado extrapolar suas funções e interferir na vida e na liberdade individual (ZEA: 1976). Em uma discussão com Stuart Mill, o autor chileno rejeita ainda a noção de utilidade como medida para a ação estatal. O Estado deve agir de acordo com o Direito, de acordo com leis voluntariamente aderidas, este é a sua medida de funcionamento. Respeitado o direito, garantido a função da liberdade individual pelo Estado, a paz e a ordem são os resultados naturais. Quando o Estado busca ativamente a ordem e o progresso, o resultado é justamente a diminuição destas duas qualidades na nação. Do mesmo modo que Spencer, Lastarria considera que a intervenção estatal em qualquer assunto social é maléfica, contrária ao progresso. Os indivíduos estão encarregados de dinamizar o corpo social Conclusão. O estudo sobre o Positivismo revela três aspectos essenciais. Em primeira medida a pretensa cientificidade, a busca pela verdade, a confiança nos sentidos e na observação não é também uma metafísica? A rejeição dos positivistas de legitimações externas à realidade não revela na verdade uma crença em uma realidade que seja ela mesma cognoscível? De fato, conforme nos mostrou a Sociologia do conhecimento de Durkheim (1996) o conhecimento necessita sempre de um aspecto legitimador, de uma crença, de fato envolve sempre uma metafísica. Métodos rigorosos de observação, experimentação não excluem logicamente a possibilidade de erros nas deduções e induções dos cientistas. O Positivismo apenas substituiu noções etéreas para legitimar a crença na verdade da Ciência pela crença absoluta de que a verdade está na realidade, há aí uma idealização da realidade enquanto entidade capaz de nos fornecer verdades. No fundo a Epistemologia positiva funciona como entidade externa legitimadora do conhecimento. 120 O desenvolvimento lógico desta concepção nos faz chegar às noções positivas mais caras, como o progresso e a evolução. De fato o Positivismo funcionou como uma verdadeira utopia e uma ideologia. Um meio pelo qual os homens pudessem alcançar o desenvolvimento material. O fato dos quatros positivistas aqui analisados proporem ações normativas de como deveria se portar a sociedade revela o quanto a pretensa cientificidade da doutrina serviu para legitimar o sentimento de uma época, isto é, precisamos atingir, acelerar ou manter o desenvolvimento. Chamamos atenção aqui para o conceito moral subentendido, para a premissa social do Capitalismo, desenvolvimento material é progresso, é evolução, é o que devemos atingir. Em suma este é o pressuposto, a premissa inquestionável e, portanto não científica. Habbermas (2002) em seu clássico livro sobre a Modernidade nos faz lembrar de como o desenvolvimento da Sociologia é o fruto das relações conturbadas da sociedade europeia face ao desenvolvimento da Modernidade e do Capitalismo. A maioria dos sociólogos clássicos procurou apreender este movimento em torno de pares de oposição: Tönnies, comunidade e sociedade; Weber, ação racional, ação tradicional; Durkheim, solidariedade orgânica, solidariedade mecânica, ou mesmo, Comte e seu estado positivo e o estado teológico. O que esta explicação nos faz lembrar é que teorias sociológicas são elas também produtos sociais das sociedades e como tal, podem ser analisadas sociologicamente. Do mesmo que há explicações sociais para o surgimento de certos movimentos literários ou políticos, a aceitação, negação ou popularidade de uma teoria sociológica também deve levar em conta o estrato social no qual esta teoria está sendo recebida ou produzida. Teorias sociológicas são produtos culturais em circulação e como todo produto cultural, estão sujeitas às malhas históricas sociais, aos contextos configuracionais de poder, aos costumes, valores, sentidos de determinada localidade e aos canais disponíveis de circulação. O anseio, o valor que anima grande parte da elite latino-americana é o mesmo, o progresso e o desenvolvimento. A recepção do Positivismo na América Latina teve de lidar com este sentimento, mas o que a comparação entre os casos chileno e brasileiro demonstra é que as diferenças políticas, históricas, sociais determinam o modo pelo qual esta absorção será feita, o canal em que tal discussão se dará, qual elite e qual contra elite se apropriará de qual teoria e em que medida esta teoria será revisada, mantida ou mesclada. 121 Referências AFONSO, Angela. O Positivismo de Luís Pereira Barreto e o Pensamento Brasileiro no Final do Século 19. disponível em http://www.iea.usp.br/iea/artigos/alonsopositivismo.pdf acessado em 04/01/2010 COMTE, Auguste; MORAES FILHO, Evaristo de. Auguste comte: Sociologia. 3. ed. Sao paulo: Ática, 1989. DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Sao paulo: Martins Fontes, 1996. GALDAMES, Luis. Historia de Chile. 13. ed. Santiago de chile: Zig-Zag, 1952. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: M Fontes, 2002. MIGNOLO, Walter. The idea of Latim America. Malden, MA: Blackwell, 2005. SPENCER, Herbert. Lei e causa do progresso: a utilidade do anthropomorphismo. Rio de Janeiro: Laemnent, 1889. SPENCER, Herbert. Individuo contra o estado(o). Sao paulo: Cia Brasil ZEA, Leopoldo. El pensamiento latino americano. Barcelona: Ariel, 1976 122 Terras do sem fim e Os magros: Uma releitura das relações sociais e de poder Terras do sem fim and Os magros: A reading of the asymmetrical power relations Rosângela Cidreira1 Maria de Lourdes Netto Simões2 Resumo: Este texto objetiva analisar as relações sociais e de poder existentes nas obras ficcionais Terras do Sem Fim, de Jorge Amado e Os magros, de Euclides Neto, decorridas principalmente pela posse da terra e dos cacauais. Com base na concepção de poder do filósofo Michel Foucault, em proposta comparativista, as obras serão analisadas segundo, principalmente, a categoria do caráter produtivo do poder. Palavras-chave: Cacau; poder; trabalhador. Abstract: This text aims to analyze the social and the power relations in the fictional works Terras do Sem Fim, de Jorge Amado e Os magros, de Euclides Neto, especially over land ownership and cocoa plantations.Based on the conception of power of the philosopher Michel Foucault, in comparativist proposal, the fictional works will be analyzed mainly in the categories of productive nature of power. Key words: Cocoa; power; cocoa worker. Introdução Na década de 1930, passa a vigorar, no cenário nacional da Literatura, uma produção regional caracterizada pela denúncia da alienação e dos fatores que a tornam possível, como a exploração dos trabalhadores, denominada “Romance de 30”, na qual se destaca, por exemplo, o baiano Jorge Amado, autor de Terras do sem fim. O escritor do “Romance de 30”, ao invés de pegar em armas, usa o romance como forma de denunciar as desigualdades sociais e as injustiças. Posteriormente, nos anos 60, Euclides Neto, por sua vez, autor de Os magros, herda, do romance nordestino de 30, o compromisso de denúncia social. A Literatura do Cacau é a produção literária em que se destaca a temática do cacau. Alguns ficcionistas baianos, como Jorge Amado e Euclides Neto, se reportam tematicamente também aos temas sociais peculiares ao contexto dos cacauais, momento em que o cacau era a principal atividade econômica do Sul Baiano. O cacau sinaliza a cultura e a civilização de uma época específica da Região Sul Baiana. A literatura dos autores em foco é representação de algumas de suas 1 Mestranda do Programa de Letras: Linguagens e Representações da Universidade Estadual de Santa Cruz/BA. 2 Professora Orientadora em Literatura Comparada e Turismo Cultural da Universidade Estadual de Santa Cruz/BA. Rodovia Ilhéus/Itabuna/Salobrinho. Tel.: 73-3680-5002. BA 123 peculiaridades: as crenças, costumes, hábitos, relações sociais, as relações de poder e a linguagem do povo que viveu o apogeu dos cacauais. Ora, o que mais poderia revelar um povo do que a sua literatura? Este artigo objetiva uma análise das relações assimétricas de poder e,obviamente das relações sociais decorrentes principalmente da posse da terra e, conseqüentemente, dos cacauais, ocorridas nas terras grapiúnas e representadas na produção ficcional de Jorge Amado e Euclides Neto. A questão social e do poder são aqui entendidas da perspectiva de Foucault ( 1979 ), que concebe o poder como imanente em todas as sociedades e em todas as relações sociais nelas presentes; logo, pensar numa sociedade e acreditar que ela está isenta de relações de poder é uma mera abstração. O poder foucaultiano penetra as pequenas práticas cotidianas, constituindo a sua microfísica. Para fundamentar a sua idéia de microfísica do poder, Foucault se insurge contra uma visão do poder que teria o Estado como fonte original: [...] a idéia de que o Estado seria o órgão central e único de poder, ou de que a inegável rede de poderes das sociedades modernas seria uma extensão dos efeitos do Estado, um simples prolongamento ou uma simples difusão de seu modo de ação, o que seria destruir a especificidade dos poderes que a análise pretendia focalizar. (Foucault,1979, p. 13). Assim, o que interessa é entender o poder enquanto exercício constante nas sociedades e, particularmente, aqui, compreender as relações sociais existentes como retrato da prática de poder na sociedade grapiúna que são relações sociais, capitalistas, que visam o jogo de interesses e a produção de capital e nas quais a terra se torna objeto de conquista, pois por meio dela se terá o cacau e, conseqüentemente, o capital, e se exercerá o poder decorrente de sua posse. Em Os magros, Euclides Neto, demonstra sua evidente opção pelos pobres, oprimidos e, obviamente, pelos magros. Isso decorre, obviamente, de sua forma de ver e sentir a realidade . O trabalhador, em Euclides Neto, é inserido num contexto de relações de poder em que um outro que lhe aproveita o trabalho, no caso, o coronel, o proprietário das terras. Numa relação capitalista, somente o trabalho humano gera valor, daí a necessidade que coronel tem do trabalhador, não lhe pagando salário justo e ainda lhe tomando as terras, quando, porventura, as possuía. Essa prática tão constante na época áurea dos cacauais − tomar a terra dos trabalhadores − como se verá a seguir, constituiu uma especificidade nas relações sociais da sociedade grapiúna. Nessas relações de poder que implicam a tomada e a posse das 124 terras, não há a propriedade do poder por quem toma a terra: o poder está mais na estratégia utilizada do que em uma propriedade; são disposições, manobras, táticas; ele se exerce e é um efeito de suas disposições estratégicas, Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade que possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. (FOUCAULT, 1979, p. XI). Nesse sentido, Foucault afasta-se da concepção tradicional: o poder deixa de ser concebido como algo detido por uma classe (os dominantes), excluindo definitivamente a participação e a atuação dos dominados. Na visão foucaultiana, o poder pressupõe um enfrentamento perpétuo e dinâmico, só pode ser concebido como algo que existe em relação, envolvendo forças que se contrapõe: “ Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas.” (Foucault,2009,p. 29).Então, percebe-se que essa perspectiva aberta pela visão de Foucault entende que o poder não deve ser encarado como uma propriedade, e que o Estado, conforme anteriormente apontado, deve ter o seu papel redimensionado. Foucault propõe também, na sua concepção, que as relações de poder não podem de maneira alguma ser analisadas em termos de proibição, repressão, negação: O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simples mente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer,forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.(FOUCAULT,1979,P.8) Assim, ao enfatizar o aspecto produtor do poder e sua natureza relacional, Foucault acredita que a existência da liberdade é essencial para a ocorrência dessas relações sociais, dessas relações de poder.Não há poder sem liberdade o que pressupõe também a existência de potencial de revolta, de resistência. A resistência se apresenta em múltiplos focos no tecido social assim como o poder na perspectiva aqui apresentada: “ Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que como ele venha de “baixo” e se distribua estrategicamente.”(FOUCAULT, 1979,p. 241) . A resistência aqui não é concebida como algo inferior, assim “a partir do momento 125 em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência “(FOUCAULT, 1979,p.241). Enfim, com base em tal concepção de poder, este texto é estruturado em duas secções, a questão da terra e do social no contexto de Terras do sem fim e Os magros e, na secção subseqüente, uma leitura das relações assimétricas de poder . 1-A questão da terra e do social no contexto de Terras do sem fim e Os magros Nas décadas de 40 e 60, épocas de publicação dos romances aqui analisados, respectivamente, Terras do sem fim e Os magros, inseridos no contexto de uma sociedade essencialmente agrária e na qual predominava a monocultura do cacau, viveram Jorge Amado e Euclides Neto: o primeiro, em Ilhéus, embora tenha nascido na Fazenda Auricídia, próxima ao arraial de Ferradas, município de Itabuna; e o segundo em Ipiaú, apesar de nascido no povoado de Jenipapo, atual Ubaíra. As suas obras ficcionalizam a memória das sociedades em que se inseriam, caracterizadas basicamente por estruturas sociais injustas nas quais persistia a exploração desumana em sua constante busca pela terra e pelo poder que a sua posse proporcionava. Uma sociedade que, tendo o cacau como sua única economia de destaque, via ser despejado dinheiro em duas, às vezes, três colheitas ao ano, sem maiores esforços ou empreendimentos coletivos: “Os grapiúnas, que tudo fizeram sozinhos, disso extraíram um modelo de sociedade. Cada um se bastava e bastava cada um. Deu no que deu”. (Fernandes,1996, p. 17). A individualidade reinante na sociedade cacaueira, de certa forma, contribuiu para a ocorrência das repetidas crises que proporcionaram o ocaso da civilização do cacau. O fruto que fez uma civilização e a levou ao apogeu ocasionou também o seu declínio. Assim, ocorreu com Ilhéus, Itabuna, Camacã, Ipiaú e outros 37 municípios que compõem a Microrregião de Ilhéus-Itabuna (Região Cacaueira), totalizando 41 municípios. (ROCHA, 2008, p. 16). Ilhéus e Ipiaú... a primeira ainda é conhecida como a Capital do Cacau(Rocha,2008, p. 20): “[...] o cacau se torna definitivamente importante para a economia sul-baiana, sendo Itabuna e Ilhéus responsáveis pela maior produção, conforme censo de 1920”. Ilhéus, a terra de Jorge Amado que, no primeiro capítulo de Terras do sem fim, em diversos momentos, contextualiza o espaço em que ocorre a ação dos personagens no 126 romance, fazendo uso dos diálogos, dos pensamentos de homens e mulheres que viajavam no navio para as terras do sul da Bahia: A roça de milho bastaria para eles dois, para que essa ânsia de vir buscar dinheiro num lugar do qual contavam tanta coisa ruim? Nas noites de lua, quando as estrelas enchiam o céu, tantas e tão belas que ofuscavam a vista, os pés dentro da água do rio, ele planejava a vinda para estas terras de Ilhéus. (AMADO, 1961, p. 31). Ipiaú, a terra de Euclides Neto, a terra onde fez sua história política, onde foi advogado e prefeito eleito no início dos anos 60, que, por sua vez, foi, também, grande produtora de cacau, porém não tão conhecida quanto a cidade de Ilhéus, é onde foi contextualizada a maioria de suas obras ficcionais, como explicita o autor, no primeiro capítulo de sua obra ao apresentar a família dos magros, os explorados − João, Isabel e os filhos − e o seu local de trabalho: A casinha, coberta com indaiá, era a cozinha, o quarto e a sala de fora. Duas portas, ou melhor: duas aberturas como uma toca. No fundo, a lama escura esverdeada, a pimenteira, o pé de jiló e o penico de barro encostado à parede. Na frente, o terreiro estreito. Em volta, as matas, capoeiras e cacaueiros da fazenda Fartura, situada no município de Ipiaú. (NETO, 1992, p. 2). A obra de Jorge Amado está voltada para as raízes nacionais, retratando a vida na cidade de Salvador, o cotidiano da Bahia do Sul e, em menor proporção, a Bahia sertaneja. Seus personagens são geralmente plantadores de cacau, os lendários coronéis do cacau, pescadores, artesãos e gente que vive próximo ao cais, em Salvador, capital da Bahia. Suas obras, na primeira fase, mostravam os conflitos e as injustiças sociais. A segunda fase começou com o lançamento de Gabriela, cravo e canela (1958), quando seus textos passam a se caracterizar ainda mais pelo erotismo e pelo bom humor. Sobre essa obra, diz Araújo: As urgências históricas emergem do texto múltiplo e heterogêneo, ampliando-se o cosmo dramático e humano, primeiro pela luta de classes no interior da sociedade afeita a profundas desigualdades e depois, a partir de Gabriela, cravo e canela (1958), pela remontagem dessa luta em função dos embates de afirmação das forças populares, da democracia étnica e do hibridismo cultural, com os consequentes padrões de desdobramentos da miscigenação étnica e social e da tolerância política, religiosa e ideológica sem, no entanto, perder de vista a marca d’água da ideologização da espécie pensante em seu substrato estruturador de um mundo novo. (Araújo,2008, p. 74). 127 Cacau (1932), Terras do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Gabriela cravo e canela (1958) e Tocaia grande (1983) são as obras que constituem o ciclo do cacau amadiano. Nessas, o autor compõe a saga do cacau e ficcionaliza a formação dessa nação. Com Terras do sem fim, Jorge Amado inicia, mais especificamente, o seu ciclo dos coronéis, com narrativas que destacam os seus métodos brutais para a conquista da terra, do poder e, conseqüentemente, de prestígio na região. Essa perspectiva do narrador é mudada em Tocaia Grande, quando o narrador passa a contar os fatos a partir da ótica do trabalhador rural. Por sua vez, Euclides Neto se preocupa, primeiramente, com a vida de duro labor dos nativos, trabalhadores, agregados, vendeiros, migrantes temporários, no entorno e arredores da cultura do cacau, demonstrando o seu apego à terra e ao homem do campo. Há quem o acuse de panfletário, de escrever para difundir um socialismo em que os ricos são sempre ruins e os pobres sempre bons, vítimas dos interesses escusos daqueles. Assim, na obra em análise de Euclides Neto, os coronéis, apesar de ricos e gananciosos, exploradores e desumanos, no exercício constante do poder, não excluem definitivamente a participação e atuação dos trabalhadores, ainda que esses sejam suas vítimas mais indefesas . Euclides Neto, em Os magros, vê todos os ricos como maus enquanto todos os pobres são vistos como bons e trabalhadores, exercendo o poder na perspectiva da resistência. Já em Terras do sem fim, de Jorge Amado, mais especificamente no primeiro capítulo, o narrador conta a viagem dos trabalhadores para o Sul da Bahia. Viajavam de navio e, nele, todos conversavam e partilhavam suas respectivas esperanças. “O navio”, título do primeiro capítulo, servia para levar todos aqueles que sonhavam com melhores condições de vida. E essas melhores condições, na época, se encontravam nas terras do sem fim, a região cacaueira, onde Ilhéus representava um Eldorado, uma possibilidade de enriquecimento rápido decorrente da pujança econômica do cacau. Nos diálogos que ocorrem durante a viagem, emergem traços específicos de uma época de muita violência e também de muita impunidade: A madrugada é fria, os passageiros se encolhem sob os cobertores. Margot ouve a conversa que vem de longe: − Se o cacau der quatorze mil-réis esse ano levo a família ao Rio... − Tou com vontade de fazer uma casa em Ilhéus... Os homens se aproximaram conversando: 128 − Foi um caso feio. Mandaram matar Zequinha pelas costas... − Mas, dessa vez vai haver processo, eu lhe garanto. − Vá esperando... (AMADO, 1961, p. 47). Os trabalhadores saíam dos rincões do Nordeste para trabalhar nos cacauais, com a intenção de voltar para suas terras, para a sua gente, com o dinheiro conseguido com o seu trabalho, ou de adquirir, na região cacaueira, uma nesga de terra para poder ir buscar a família, mulheres e filhos: Homens escreviam, homens que haviam ido antes, e contavam que o dinheiro era fácil, que era fácil também conseguir um pedaço grande de terra e plantá-la com uma árvore que se chamava cacaueiro e dava frutos cor de ouro que valiam mais que o próprio ouro. A terra estava na frente de quem chegava e não era de ninguém. (AMADO, 1961, p. 31). A literatura, além de ser uma fonte primeira de entretenimento, diversão e lazer, responde também por vastas informações sobre a organização social, sobre os tipos que estiveram presentes nessas terras grapiúnas. As viagens e o contexto social registrados no texto literário amadiano são produto do imaginário autoral, mas também fazem parte da essência do contexto histórico-social relativo à época de fundação das fazendas de cacau, da fundação da região cacaueira. A produção literária de Jorge Amado apresenta a Nação Grapiúna ao Brasil e ao mundo, como fruto das suas memórias e das suas experiências enquanto menino, filho de fazendeiro: “o seu olhar da época”. Nascido numa fazenda de cacau, Jorge Amado se apropria desse cenário para escrever alguns de seus romances e histórias, construir seus personagens e proclamar, para todos, os costumes e crenças da sua gente, da sua terra e da sua aldeia: universalizar o local, o regional. A literatura de Jorge Amado conseguiu harmonizar ficção, lirismo e realidade, ou simplesmente, arte e vivência, arte e postura, arte e crenças. Euclides Neto, por sua vez, em sua obra, apresenta suas crenças e valores a partir da leitura que fez e das suas vivências enquanto menino, homem e, depois, político. Sobre ele, afirma César: Nesse autor, o marxismo é temperado e amenizado em sua virulência histórica, pelas influências menos radicais de sua juventude, principalmente Gandhi, Jesus Cristo e Tólstoi. Do primeiro, Euclides Neto recolhe o pacifismo messiânico, de Cristo a comunhão, a fraternidade e opção preferencial pelos pobres; de Tólstoi, o amor pela terra e pelas coisas do campo. (César,2003, p. 13). 129 Assim, tanto Jorge Amado quanto Euclides Neto, por meio do fazer literário, procuram expressar suas vivências, crenças e experiências, os sentimentos nascidos de verem e viverem as terras grapiúnas, no Sul da Bahia. Euclides Neto, em Os magros, e Jorge Amado, em Terras do sem fim, apresentam um tema recorrente em sua produção literária, o cacau; incluem-se, portanto, no seleto grupo de escritores pertencentes à Literatura do Cacau, uma literatura que surgiu a partir da civilização do cacau e que delineia toda uma época e uma história: da conquista da terra, do desbravamento e do povoamento, em Terras do sem fim, às crises cíclicas do cacau e à sua decadência, em Os magros. Diríamos que este escritor [Euclides Neto] enceta a história da decadência das terras do cacau, iniciada quando o proprietário, herdeiro do antigo coronel, já não vive na fazenda, mas em Salvador, numa luxuosa mansão e entrega todos os cuidados da roça ao capataz, aguardando apenas a remessa dos lucros para sua conta bancária. (CÉSAR, 2003, p. 12). Assim, além de apresentarem a cultura do cacau como temática, percebe-se que há um certo telurismo que une as obras aqui analisadas, Terras do Sem Fim e Os magros, pois ambas tratam do cacau,conforme já sinalizado, o cacau, que vem da terra, vai para a cultura da mente e modifica os costumes dos grapiúnas. A terra influencia os costumes dos habitantes da sociedade cacaueira. O cacauicultor, por exemplo, precisa da terra para plantar seus cacauais e, desta forma, fazer uso do poder : um poder que não é detido por uma classe, que não alija a participação e a atuação dos dominados, mas um poder que presume um enfrentamento perpétuo. Dinheiro, poder e terra estão, dessa forma, extremamente relacionados e essa relação, bastante presente no contexto social da região, está evidenciada nos romances analisados, como no exemplo a seguir retirado de Terras do sem fim: “O vento soprou mais forte e trouxe para a noite da Bahia fragmentos das conversas de bordo, palavras que foram pronunciadas em tom mais forte: terras, dinheiro, cacau e morte” (AMADO, 1961, p. 25). Em Terras do sem fim, as terras de Sequeiro Grande são disputadas pelos coronéis Horácio da Silveira e pelos Badarós, Sinhô e Juca Badaró. No quinto capítulo, A Luta, começam os ataques pela posse das terras de Sequeiro Grande entre os coronéis: artimanhas jurídicas, invasão de propriedades, incêndio nas roças de cacau e mortes... Quantas mortes ocorreram por conta da posse da terra! 130 As terras eram disputadas com muita luta e muita morte. Muitas cruzes haveria pelas estradas e infinitas delas sem o nome da vítima: muitos homens desconhecidos haviam caído de bala, sob o punhal ou mesmo de doença, seus corpos atravessariam as terras disputadas nas redes, “e o sangue pingaria delas e regaria a terra. Essa não era uma terra para bailes e pastores azuis, de boinas encarnadas. Era uma terra negra, boa para o cacau, a melhor do mundo” (AMADO, 1961, p. 224, grifos nossos). A terra também está presente no romance Os magros, mas não para ser disputada através de lutas e mortes. A terra, que alimentava a luta, na época do seu desbravamento, alimentando também os sonhos dos coronéis, em Terras do sem fim, vem aqui alimentar os corpos famélicos, na época da decadência do cacau, época em que os coronéis não mais possuem uma ligação telúrica com o solo: a terra, em Os magros, alimenta o corpo que, posteriormente, alimentará a terra que alimentará os cacauais que alimentará a cultura dessa gente grapiúna. Percebe-se então que o telurismo que une as obras Terras do sem fim, de Jorge Amado, e Os magros, de Euclides Neto, apresenta algumas peculiaridades a serem destacadas: no primeiro, a terra existe como objeto de luta, gerando, assim, relações de poder, pois as rendas e os cacauais fluíam da terra e, no segundo, a terra se apresenta literariamente como alimento da cultura da região e literalmente como alimento do corpo ,a terra enquanto alimento da morte: Ali perto, na roça, dormia o menino morto, enterrado naquele dia. Duas rosas murchas e galhos de manjericão foram o enfeite. A terra preta estaria mastigando o corpinho aniquilado. E aquele aguaceiro salivava as raízes ávidas que já se estiraram para a comida farta. (NETO, 1992, p. 52). O menino morto fazia parte da “ninhada farta” da família dos magros João e Isabel. O casal teve quinze filhos, sendo que desses, apenas oito estavam vivos. Os filhos foram morrendo, pois não tinham uma alimentação saudável, morriam de fome, “[...] desapareciam no mato à procura de uma fruta qualquer. Empanzinavam-se de laranjas verdes. Os menores ficaram na saia de Isabel choramingando, catarrentos, pançudos de barrigas necessitadas” (NETO, 1992, p. 7). Os corpos famélicos, mal alimentados eram ansiosamente aguardados pelos cacauais famintos: “Lá fora as raízes dos cacaueiros coleavam feito cobras gulosas em procura do menino morto” (NETO, 1992, p. 53). Vem-se buscando, prioritariamente, ao longo deste subitem, “A questão da terra e do social no contexto de Terras do sem fim, de Jorge Amado e Os magros, de Euclides 131 Neto”, contextualizar essas produções ficcionais, observando, principalmente, os entraves existentes por conta da terra: primeiro observa-se a disputa, a luta existente entre os homens, na época da formação da nação grapiúna para a aquisição das terras; depois a morte, o sangue que corre na terra por conta das lutas; decorrentes da sua posse, sinalizando o apogeu dessa nação; o alimento e a vida que a terra proporcionava na época do ocaso dessa civilização grapiúna, como e também novamente a morte, alimentada literalmente pela própria terra, na época da decadência econômica; entraves esses que são ficcionalizados nas obras em análise. 2-Uma leitura das relações assimétricas de poder Michel Foucault trilhou diversas áreas do saber, entretanto o seu estudo sobre o poder foi o causador de grandes controvérsias. Apresenta o poder como relação e não como algo passível de ser localizado e/ou situado em determinada instância. Assim, acredita que o cotidiano é um espaço constituído de relações sociais que são, obviamente, relações de poder, o cotidiano como espaço de contínua tensão. O cotidiano da sociedade cacaueira representado nas páginas dos romances Terras do Sem Fim,de Jorge Amado e Os magros, de Euclides Neto: formação e declínio de uma sociedade que se fez e se formou inspirada nos cacauais. E os cacauais necessitava da terra, elemento gerador de relações sociais e de poder. Conforme anteriormente discutido , a terra apresenta-se nos romances Terras do Sem Fim, de Jorge Amado e Os magros, de Euclides Neto como um elemento que gera relações sociais e, conseqüentemente, relações de poder entre os envolvidos. Em Terras do Sem Fim , a terra torna-se motivadora de disputas sangrentas pela sua posse e, em Os magros, a terra servia literalmente como alimento para a morte. Essas relações provenientes da posse da terra, são relações sociais que geram relações de poder, um poder que coloca em cena um progressivo afastamento da idéia de se pensá-lo como algo localizável e/ou passível de ser propriedade de alguns indivíduos, como a terra sempre foi. Um poder que não se possui, se exerce; logo, não é uma propriedade, constitui-se enquanto estratégia. Nesse contexto da sociedade cacaueira, no momento de formação dessa sociedade, o poder se concretiza nas ações que implicam a conquista da terra. Em 132 Os magros, quando a sociedade cacaueira encontra-se em seu declínio, percebe-se as conseqüências oriundas da época do seu apogeu econômico. Assim, vale como exemplo, a crueldade da situação de exploração e injustiça a que se submete João, trabalhador da Fazenda Fartura de propriedade de Dr. Jorge, quando fica evidenciado no texto que as terras atuais, de propriedade de seu patrão, foram tomadas de seu pai: “João desceu a ladeira pelo caminho que ia dar na estrada real. Resolveu ir à roça da Pedra Preta que tinha sido tomada de seu pai” (NETO, 1992, p. 161, grifos nossos). Assim, evidencia-se que as relações sociais grapiúnas estão impregnadas de práticas de poder, imanentes ao próprio corpo social. Essas micropráticas diferenciam aqueles que o exercem daqueles que sofrem o seu exercício. O poder é pensado enquanto relação e, dessa forma, os sujeitos envolvidos não podem ser pensados enquanto repositórios de poder Esses sujeitos envolvidos, os que exercem o poder e os que sofrem o seu exercício, e suas respectivas vidas, hábitos, costumes e crenças estão evidenciados em Os magros, como também em Terras do Sem Fim. As relações sociais são, conforme anteriormente assinalado, relações de poder; portanto se exercem cotidianamente e nas pequenas ações constituindo o que Foucault designaria de sua microfísica, poder que penetra “na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder”.(FOUCAULT, 1979,p.XII).Assim, pretendendo dar conta deste nível molecular de exercício do poder, Foucault se insurge, por exemplo, quanto ao papel central desempenhado pelo Estado e quanto ao caráter repressor do poder. Apresenta o caráter produtor do poder, o seu traço punitivo, do poder disciplinar e do poder da resistência. É o que se propõe aqui, tecer assim algumas considerações 2.1- Do seu traço produtor O poder propõe controlar as ações dos homens, sendo possível e viável utilizá-los ao máximo: diminuindo a capacidade de resistência, de revolta e aumentando sua capacidade produtiva. A diferença social gritante exposta em Os magros, praticamente não é vista pelos trabalhadores rurais, diminuindo, obviamente, o seu poder de resistência, pois, aqueles que exercem o poder tentam uniformizar os interesses contraditórios, mascarando as diferenças e impedindo que a outra parte da sociedade reconheça o profundo antagonismo existente, 133 há uma total falta de consciência do seu estado de explorado: “João fazia mentalmente as contas. O ganho não dava para nada. Farinha estava a dois cruzeiros o litro. Como haveria de ser? Já a noite passada os meninos jejuaram. − Mas... Deus dá o frio conforme o cobertor, consolava-se” (NETO, 1992, p. 17). Não há luta, anula-se o poder de resistência. O personagem João está conformado com sua situação de profunda miséria e é nesse sentido que o poder que se exerce na sociedade cacaueira ali retratada tem uma positividade característica: o seu caráter produtor. Assim, o poder, segundo Foucault (1979), não deve ser analisado apenas negativamente como algo que somente reprime, exclui, esconde, mascara: o poder tem a sua positividade produtiva. Salienta-se que o conformismo da miséria torna-se um efeito da ação do poder disciplinar, tornando as forças corporais mais produtivas, do ponto de vista econômico e menos sujeitas a transgressão, ocasionando um conformismo em relação a situação de exploração a que estão submetidos. Os trabalhadores, em virtude dos baixos salários e das péssimas condições de sobrevivência não tinham perspectivas de dias melhores, tendo, inclusive, dificuldade para se alimentar e até para comprar seu instrumento de trabalho, como se vê no trecho em que se justifica João, magro trabalhador, ao seu gerente: “Vou comprar... mas a questão é que a comida está pela hora da morte e não tenho podido. Nem roupa tenho comprado. A casa está cheia de menino... O senhor quer me adiantar um dinheiro para comprar um facão? (NETO, 1992, p. 7).Nesse sentido, tem-se a idéia básica de Foucault a respeito do poder, mostrar que as relações de poder não se passam fundamentalmente ao nível da repressão, é preciso refletir sobre o seu lado positivo, isto é, produtivo, transformador: É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, ele reprime, ele recalca, ele censura, ele abstrai, ele mascara, ele esconde. De fato, o poder produz; produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade. O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. (FOUCAULT,1979,p.XVI) O poder não se explica inteiramente por sua função repressiva. Na visão foucaultiana, ao poder não interessa expulsar os homens da vida social, mas “tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta(...), tornar os homens dóceis politicamente.”(FOUCAULT, 1979,p.XVI,grifos nossos). 134 Os trabalhadores, vítimas diretas da exploração exercida, não tendo consciência dessa situação, têm seu trabalho explorado e não reagem a isso, se conformam, se tornam politicamente dóceis, têm sua capacidade política inibida, mas, por outro lado, sua capacidade produtiva liberada e, obviamente, explorada tornando-se úteis economicamente, e esse é o tipo de sujeito almejado pelo sistema capitalista que reina na sociedade cacaueira: “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 2009, p. 132). Um corpo é dócil quando se torna frágil, algo possível de manipular e facilmente adestrável, enfim, suscetível de dominação, submissos. Assim, exemplifica-se aqui, o personagem João de Os magros, de Euclides Neto. João é economicamente produtivo, mas não apresenta, nesse sentido, nenhuma resistência ao poder que lhe é exercido: “ Segundafeira, seria dia de roçagem. Veriam como se engole mato. E o nome do facão seria este: Engole-Mato.”(Neto,1992,p.146). Em Os magros, a resistência é incipiente e ocorre de forma pacífica, a partir da posse do conhecimento marxista. Nesse sentido, destaca-se aqui o personagem Sarará. Não há violência. João Rodrigues dos Santos, personagem de Os magros, vive miseravelmente com sua família, resignado, vítima da exploração do proprietário das terras de cacau. Mesmo quando dialoga com Sarará, personagem revolucionário que o informa sobre algumas noções marxistas, João permanece resignado, não demonstra qualquer atitude de luta contra sua própria condição de explorado: “Já andava tão gasto, batido por tanta fome, tão acostumado a perder os meninos, que nem sabia se ainda sentia falta de mais um que se fora, como os outros. Suas preocupações andavam reduzidas ao facão, à fome e ao trabalho” (NETO, 1992, p. 61). O discurso e o poder, segundo Foucault, são armas poderosas da elite para a dominação das massas; o discurso de Sarará, entretanto, é um discurso de resistência à exploração realizada pelas elites. Assim, nesse caso, Sarará exerce o poder da resistência, poder pacífico que vem atrelado ao conhecimento de algumas noções da teoria de Karl Marx. Diz Sarará “que, se nosso serviço vale cinqüenta cruzeiros, o patrão só paga vinte e cinco. Portanto o patrão roubou vinte e cinco. Portanto a gente só podia apanhar esses vinte e cinco que o patrão nos roubou” (NETO, 1992, p. 110). A resistência aqui, embora pacífica, não pode ser vista como um poder inferior, ou melhor, como um subproduto das relações de poder. Se fosse secundária ao poder ou apenas oposição não haveria resistência. Sarará, personagem que destoa do universo dos 135 trabalhadores passivos do romance de Euclides Neto, propõe, de forma criativa e inventiva, um discurso resistente às forças dominantes, o que coaduna com Foucault que propõe um discurso de resistência que venha de baixo, um discurso de um trabalhador: “Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de ‘baixo’ e se distribua estrategicamente”. (FOUCAULT, 1979, p. 241). No que se refere ao romance Os magros, salienta-se o fato de que o ciclo da resistência não se completa, pois não “se distribui estrategicamente”. O romance de Jorge Amado, Terras do Sem Fim, ficcionaliza o período do desbravamento das terras para a plantação dos cacauais, década de 40, auge da cultura cacaueira. O romance Os magros, por sua vez, já propõe ficcionalizar o início do período da decadência, década de 60, período em que ocorreu o registro na história, de “ grupos anteriormente silenciados, definidos por diferença de raça, sexo, preferências sexuais, identidade étnica, status pátrio e classe.”(Hutcheon,1991,p.89) O contexto social de Os magros contribuiu para a presença, mesmo tímida, da resistência. Assim, sem muitos focos de resistência, os coronéis tornam-se proprietários do poder e do saber. Em Terras do sem fim, Jorge Amado relata as polêmicas ocorridas por meio dos artigos publicados em dois jornais de Ilhéus, A Folha de Ilhéus e O Comércio, o primeiro da responsabilidade do coronel Horácio, enquanto que O Comércio atendia aos interesses políticos dos Badaró. A gente de Ilhéus responsabilizava em geral o dr. Rui pelos artigos de ‘A Folha de Ilhéus’. E se formavam verdadeiros grupos torcedores quando, em época de eleições, ‘A Folha de Ilhéus’ e ‘O Comércio’ iniciavam uma daquelas polêmicas cheias de adjetivos insultuosos. De um lado o dr. Rui, com seu estilo palavroso e de frases redondas e empoladas, de outro lado Manuel de Oliveira e por vezes dr. Genaro. (AMADO, 1961, p. 204). Parafraseando Foucault (1979), percebe-se que poder e saber se implicam mutuamente; que não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber, assim como todo saber constitui novas relações de poder e, obviamente, relações de resistência. Nesse sentido, percebe-se que as relações de poder existentes entre os Badaró e o coronel Horácio aconteciam também através dos jornais, ou melhor, por meio do saber produzido. Os discursos que prevalecem nas sociedades, inclusive na cacaueira, são daqueles indivíduos que exercem o poder; assim os indivíduos aprendem em nome de um discurso proferido como válido pelas famílias e instituições. 136 As relações de poder são tão inevitáveis quanto as relações de resistência, onde há poder, há sempre focos de resistência, e vice-versa. Nesse sentido, cita-se, em Terras do Sem Fim, a personagem feminina Don’Ana Badaró que, ao mandar incendiar um cartório devido a realização de um caxixe, que ia de encontro aos interesses de sua família (AMADO,1961,p.177),apresenta uma atitude que destoa do comportamento feminino grapiúna dominante, constituindo o poder da resistência. Considerações Finais O cacau, economia característica do espaço Sul Baiano, gerou riquezas e misérias, mandos e desmandos, poder e exclusão social, justiças e injustiças, enfim, toda a história de uma civilização, com características específicas, foi formada a partir dele. A Literatura do Cacau é, assim, a expressão dessa civilização, fazendo emergir traços culturais de uma época e de um lugar, eternizando os tempos áureos em que o cacau se consagrou enquanto fator econômico regional e, principalmente, enquanto seu referente temático. Em Terras do sem fim, Jorge Amado, ícone maior da Literatura do Cacau, eterniza esse momento áureo dos cacauais, principalmente no que se refere ao período do desbravamento das matas, da chegada dos migrantes para o plantio dos cacauais e, conseqüentemente, da formação de uma determinada civilização. Nesse contexto, surgem alguns tipos sociais específicos, destacados, na presente análise, as figuras do coronel e do trabalhador. E como se viu ao longo desse artigo, as relações sociais estabelecidas entre a figura do coronel e a figura do trabalhador eram conseqüências diretas da lei do cacau: o coronel, nesse sentido, tinha o cacau e exercia o poder, a palavra final, enquanto o trabalhador vivia em situação de extrema exploração social. Jorge Amado narra a saga da civilização do cacau na perspectiva dos coronéis, enquanto Euclides Neto, em Os magros, se preocupa em contar essa mesma saga sob a perspectiva dos trabalhadores.Aqui, acentuam-se também as especificidades do poder foucaultiano na aplicação que se faz no contexto literário acima assinalados, contextualizados na época da formação e decadência da lavoura cacaueira. Dessa forma, dando destaque às relações sociais e de poder existentes entre o coronel e o trabalhador, nas obras ficcionais Terras do sem fim, de Jorge Amado e Os 137 magros, de Euclides Neto, contextualizou-se a sociedade grapiúna, apresentando alguns aspectos da cultura cacaueira presentes na sua literatura. Referências AMADO, Jorge.(1961) Terras do sem fim. São Paulo: Martins, 11. ed ARAÚJO, Jorge de Souza.(2008) Floração de imaginários: o romance baiano no século XX. Itabuna/Ilhéus: Via Litterarum. BARBOSA, Carlos Roberto Arléo.(2003) Notícia Histórica de Ilhéus. 4ª . ed. BOURDIEU, Pierre.(2009) O poder simbólico.. Tradução Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 12. ed CARDOSO, João Batista.(2006) Literatura do cacau: ficção, ideologia e realidade em Adonias Filho, Euclides Neto, James Amado e Jorge Amado. Ilhéus: Editus. CÉSAR, Elieser.(2003) O romance dos excluídos: terra e política em Euclides Neto. Ilhéus: Editus. FERNANDES, Bob.(1996)” O ocaso de uma civilização”. Carta Capital, 12 abr.1996. FOUCAULT, Michel.(1979) Microfísica do poder. Organização/Tradução Roberto Machado.. Rio de Janeiro: Graal. 22. ed FOUCAULT, Michel(2009). Vigiar e punir. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis, RJ: Vozes,36ed. HUTCHEON, Linda(1991). Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Tradução Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago. MENDES, Sandra Regina et al(2006). Ipiaú; histórias de nossa história. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia. NETO, Euclides(1992). Os magros. São Paulo: Guena & Bussius,2 a.ed. ROCHA, Lurdes Bertol(2008). A região cacaueira da Bahia; dos coronéis à vassoura-debruxa: saga, percepção, representação. Ilhéus: Editus. SIMÕES, Maria de Lourdes Netto(1996). Caminhos da ficção. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia. 138 Americanismo e iberismo: a questão do atraso na América Latina Americanism and “iberismo”: the issue of backwardness of Latin America Carlos Henrique Gileno1 Resumo: O presente artigo objetiva analisar alguns aspectos das interpretações do Brasil constantes em Tavares Bastos, André Rebouças e Oliveira Viana. Nesse contexto, o debate sobre os conceitos de americanismo e iberismo se tornam fundamentais para a análise do desenvolvimento do processo de modernização que se estendeu da segunda metade do século XIX a meados do século posterior. Palavras-chave: Pensamento Político e Social no Brasil; Americanismo e Iberismo; Democracia e Liberalismo; Modernização no Brasil. Abstract: This article aims to analyze some aspects os interpretations of Brazil listed in Tavares Bastos, André Rebouças and Oliveira Viana. In this context, the debate on the concepts of americanism and “iberismo” become fundamental to the analysis of the development of the modernization process which it lasted from the second half of the nineteenth century to the mid of the twenty century. Key words: Social and Political Thought; Americanism and “Iberismo”; Democracy and Liberalism; Modernization in Brazil. 1. A América Latina: o outro ocidente 1.1 Tavares Bastos e André Rebouças: liberalismo e projeto de americanização da sociedade imperial O legado histórico do mundo ibérico se constitui numa determinação estrutural que orienta o desenvolvimento do processo histórico no Brasil, existindo duas interpretações que se destacam nesse debate. A dos americanistas, que identificam na herança ibérica o obscurantismo, o autoritarismo e o burocratismo presentes na vida política e social do Brasil; e a dos iberistas, para quem a formação ibérica nos trópicos, ao contrário, foi capaz de preservar uma ética moderna não individualista e comunitária (OLIVEIRA, 2000, p. 47). Durante a segunda metade do século XIX, os americanistas colocaram temas e problemas expressos por um liberalismo que não surgira do individualismo ou das liberdades civis. A interpretação americanista pressupunha que a situação de atraso era 1 Professor assistente doutor do Departamento de Antropologia, Filosofia e Política da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP (Campus de Araraquara) Rodovia Araraquara - Jaú - Km 0114800-901. Tel.: (016) 33016200. [email protected] 139 resultado imediato da formação ibérica da América latina, defendendo a introdução da cultura política e dos valores do liberalismo anglo-saxão. Exemplo daquela interpretação é encontrado no panfleto de Aureliano Cândido Tavares Bastos (1839-1875), intitulado Os males do presente e as esperanças do futuro (1861). O autor foi um dos mais articulados teóricos do liberalismo do Segundo Reinado (1840-1889), atuando mais intensamente nas décadas dos 60 e 70 do oitocentos (RÊGO, 1993, p. 74-85). Escolheu o gênero panfletário para tornar popular entre os letrados da época as idéias centrais de Os males do presente e as esperanças do futuro, dividindo-o em Realidade, Ilusão, Solução ao seguir o estilo do mestre do panfleto e jornalista ligado ao partido conservador, José Justiniano da Rocha (1812-1862), autor de Ação, Reação, Transação (1855) (ROCHA, 1956). A primeira parte do panfleto de Tavares Bastos, denominada Realidade, tem sua tese central apoiada na noção de que o atraso nacional finca suas raízes na “história do colonialismo português”. Os nossos males não afluem às origens do sistema colonialista como um todo, mas precisamente ao colonialismo português, cuja história e formação deveriam ser superadas para alcançarmos os padrões civilizatórios exigidos pela civilização ocidental industrializada. Em Tavares Bastos, os males do presente estavam baseados numa atividade política que se convertera em “lealdades e fidelidades através de um processo cumulativo de recíprocos encargos e favores”, impedindo a difusão das virtudes públicas identificadas pela possibilidade de um existir político autônomo, elemento fundamental para a existência de instituições políticas livres. A ausência dessas instituições fez emergir um servilismo personificado em homens “expropriados de vontade política”, mesmo sendo livres. Diante desses temas e problemas, Tavares Bastos rejeitou qualquer espécie de ruptura revolucionária que viesse implantar a liberdade individual. Aquela liberdade deveria ser obra do ethos conciliador, concebendo a revolução como um ato condenável que poderia colocar em perigo a unidade territorial do Império. Apenas a política da conciliação era imprescindível para se avançar nas reformas institucionais. Contudo, a formação de cidadãos independentes esbarrava na formação secular da estrutura política e social brasileira. O liberalismo no Brasil não emergiu historicamente do individualismo ou das liberdades civis. O Estado monárquico se constituiu no principal condutor da ordenação do conjunto da sociedade brasileira ao favorecer o desenvolvimento do processo de constituição do indivíduo e do mercado livre por intermédio de uma ampla 140 intervenção política sobre o social. Os liberais francamente capitalistas se confrontavam com o dilema de desenvolver o liberalismo em consonância com a estrutura latifundiária, onde praticamente inexistia o individualismo, mas a dependência pessoal (BOSI, 1992). Devemos acrescentar que a teoria e a ação política do abolicionista e engenheiro André Pinto Rebouças (1838-1898) ilustram alguns aspectos dos dilemas enfrentados pelos americanistas na sociedade imperial. Entre as décadas de 70 e 80 do século XIX, André Rebouças apontava o fato de que as oligarquias estendiam ao Estado um conservadorismo que embasava as suas ações privadas. A teoria e a ação política de André Rebouças estavam direcionadas para a transformação das estruturas imperiais, criticando constantemente o bacharelismo da oligarquia e a sua ociosidade, os quais eram obstáculos à difusão de um ethos empreendedor e moderno no país. Todavia, na década dos 80 do século XIX, André Rebouças delegou a transformação das estruturas do Império à atuação política de D. Pedro II (1825-1891). O autor defendia a existência de um ativismo social associado à política da conciliação nacional centrada na figura do monarca. André Rebouças abandonou o projeto da década dos 70 que defendia a noção de que a transformação das estruturas da sociedade imperial fosse construída autonomamente pelos agentes sociais. Nos anos 80, em pleno período abolicionista, André Rebouças percebeu que o movimento abolicionista estava associado à política imperial, sendo o resultado das mudanças lentas e graduais capitaneadas pelo Estado monárquico (CARVALHO, 1998). Para André Rebouças, na década dos 80, a modernização deveria ser efetivada, a exemplo dos casos alemão e italiano, por um Estado centralizado, demonstrando a impossibilidade do “homem comum em conduzir sua própria vida e prosperidade” no Brasil (1998). Adaptação, portanto, das reformas americanistas às condições históricas particulares da sociedade brasileira, devendo-se preservar o poder político da elite agroexportadora em favor da preservação da ordem, da unidade territorial e do poder centralizado da monarquia. Podemos dizer que a interpretação americanista de Tavares Bastos e André Rebouças afirma que a América ibérica faz parte da história do mundo ocidental, possuindo determinadas heranças de povos e culturas ocidentais de tradição helênico-judaico-cristã. 1.2 Fundamentos da interpretação ibérica 141 Entretanto, a América ibérica constitui outro Ocidente. A formação deste ocidente na península ibérica e no Novo Mundo se desenvolve em condições particulares, tornandose fundamental a análise histórica daquela particularidade, com a “questão do transplante da sociedade e da cultura” se transformando no “eixo da interpretação histórica” (OLIVEIRA, 2000, p. 47). Na interpretação ibérica da sociedade brasileira, existe a constatação de que o mundo ibérico não possui uma trajetória de desenvolvimento similar à do mundo anglo-saxão. O polêmico livro de Richard Morse enfatiza a idéia de que a modernização latino americana se desenvolve distanciada da noção do utilitarismo individualista. Aquela distância possibilitou a formação “de uma nova utopia de justiça e de integração social solidária, pós-moderna, que nega o mito prometéico da ideologia marxista e do fáustico da sociedade burguesa” (MORSE, 1988, p. 48). Talvez, a tese central do livro é que a organização da sociedade, da política e da cultura não necessita enveredar unicamente pela noção “do indivíduo maximizador do liberalismo anglo-saxão”. Em outras palavras, a defesa do universo ibero-americano conduz o autor à crítica do utilitarismo individualista. O Espelho de Próspero não espera muito do princípio liberal-democrático na América Latina. Richard Morse termina a parte histórica do seu livro persuadido de que a matriz ibérica de nossa cultura política persistirá. A sua expectativa é a de que “a mistura da cultura política ibérica com o rousseaunianismo possa preencher os ideais humanistas de maneira mais adequada do que o enxerto do marxismo na tradição nacional russa e a mescla anglo-atlântica de liberalismo e democracia” (1988, p. 53). A América Latina deve seguir um caminho próprio de desenvolvimento, derivado de sua tradição ibérica. A contemplação da América no espelho da América anglo-saxã conduz à imitação inócua do outro. O liberalismo, a democracia representativa, o racionalismo, o empirismo científico e o pragmatismo não só seriam incompatíveis com a realidade mais profunda da América ibérica, como também marcariam a decadência e a falta de sentido da sociedade capitalista e burguesa (1988, p. 55). Segundo Richard Morse, espanhóis e portugueses transplantaram para a América uma ordem política que transcende os indivíduos, fundada na ética e na religião, a qual se contrapunha à ordem política individualista, subjetivista e contratualista dos ingleses. A característica peculiar das sociedades ibéricas é que são sociedades “orgânicas e baseadas 142 em um princípio arquitetônico em oposição à sociedade anglo, marcada pelo individualismo - sociedade mecânica - e guiada por um princípio nivelador” (1988, p. 55-6). Por princípio ou cultura arquitetônica, devemos entender uma sociedade hierarquizada, integrada e comunitária. Em entrevista de Luiz Werneck Vianna ao livro intitulado Conversas com sociólogos brasileiros (BASTOS, ABRUCIO, LOUREIRO, REGO, 2006), a análise das características daquela sociedade hierarquizada, integrada e comunitária remete ao tema das “oportunidades que podemos extrair da nossa tradição”. Existe a constatação, em Luiz Werneck Vianna, de que a América Latina possui uma trajetória não similar à anglo-saxã. Segundo o autor, muito já se estudou sobre os efeitos que a nossa tradição causou na organização democrática da sociedade, tais como os estudos do coronelismo e do sistema de clientela. Todavia, ainda existem poucos estudos indicativos de algumas características daquela sociedade comunitária, hierarquizada e integrada, fundada e ancorada nas várias redes de lealdade e solidariedade. Talvez, como indica a pergunta dos organizadores do livro ao entrevistado, existe uma retomada em Luiz Werneck Vianna do ideal da solidariedade, que é o discurso típico do pensamento conservador contra o iluminismo e o liberalismo, fato este confirmado pelo autor. Luiz Werneck Vianna alerta que o tema da solidariedade em sua chave interpretativa se relaciona “à valorização do público, do bem comum”. Em outros termos, foi “a precedência do público sobre a esfera privada que criou, no Brasil, a idéia de comunidade”, com a formação do Estado Nacional brasileiro sendo a criação de um “cálculo político, de uma estratégia de Estado que manteve a unidade nacional”. A Nação, colocada acima dos diversos interesses em conflito na sociedade brasileira, sempre foi vista “como o lugar da comunidade e o público, como organizador da solidarizarão social” (2006, p. 173). Esta noção pode estar expressa no pensamento político e social de Oliveira Viana. 2. Autoritarismo instrumental e iberismo 2.1 Os anos 30: transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna 143 Rubem Barboza Filho retoma o tema da tradição ibérica, constante em Richard Morse, para notar que nem mesmo o anseio da ocidentalização, da modernização e da europeização despiu a sociedade brasileira de sua “noção arquitetônica de sociedade”, ou seja, “a idéia de um todo preexistente às partes e a crença no Estado como portador e premissa de nossa unidade e sentido”, com o Estado e a sociedade não emergindo como “resultados de pactos entre grupos ou indivíduos livremente dispostos, como na tradição anglo-saxã liberal”. O Estado, pois, representa uma “comunidade dotada de uma unidade anterior à vontade e à decisão dos indivíduos e sujeitos sociais que a compõem”. Por outro lado, a tradição anglo-saxã é “imaginada como exotismo britânico ou norteamericano” (BARBOZA FILHO, 1995). Intelectual e ator político das primeiras décadas do século XX, Francisco José de Oliveira Viana (1883-1951) pode ser lido como um autor que imagina “como exotismo britânico ou norte-americano” a tradição anglo-saxã no Brasil. Defensor da visão de desenvolvimento ibérico da América Latina, Oliveira Viana observou que a sociedade brasileira chegou à democracia sem que houvesse realizado um projeto efetivamente democrático para a Nação. Antes de examinarmos diretamente alguns aspectos do pensamento político e social de Oliveira Viana, devemos realizar algumas considerações a respeito do clima de inquietação cultural, social e política que se instaurou no Brasil após o movimento de outubro de 1930. O acirramento das divergências que perpassavam as oligarquias regionais e que levaria à crise do pacto oligárquico, a emergência da incipiente industrialização e do proletariado, e a crise do capitalismo mundial ocorrida em 1929 - que propiciou um substancial enfraquecimento da economia de exportação - conduziu o País a uma contestação da hegemonia dos grandes fazendeiros do café, que dominaram o cenário sócio-político até o início da década dos 30. Nesse contexto, as interpretações sobre o Brasil levaram artistas, intelectuais e políticos a reinterpretarem a nossa História - a Colônia, o Império e a República - sob a inspiração de teorias clássicas do pensamento ocidental, tais como as de Franz Boas (1858-1942), Georg Simmel (1858-1918), Karl Marx (1818-1883) e Max Weber (1864-1920) . Havia uma efervescência criativa nas ciências e nas artes. Juntamente com as mudanças ocorridas na realidade material e política, eram buscadas novas formas de sentir, de expressar, de (re) interpretar-se. Nessa perspectiva histórica e social em mudança, intelectuais, artistas, escritores e políticos trouxeram novos debates, propostas e idéias para 144 se pensar a sociedade nacional. O campo das ciências sociais será influenciado, neste primeiro momento de sistematização da sociologia, pelos estudos de natureza históricosociológica: é o que podemos constatar nas interpretações de Gilberto Freire (1900-1987), Oliveira Viana, Caio Prado Júnior (1907-1990) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), que se tornaram clássicas na análise da realidade brasileira (MOTA, 1998). Nas outras esferas da cultura, como a literatura, a pintura e a música, o momento histórico também favoreceu a criação artística e literária: surgem Mário de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954), Graciliano Ramos (1892-1953), Cândido Portinari (1903-1962), Villa Lobos (1887-1959), entre outros. Em verdade, na década dos 30 do século XX ocorrem intensos debates sobre as possibilidades e perspectivas de transição da sociedade tradicional para a sociedade moderna. É nesse contexto que a tese do autoritarismo instrumental será considerada fundamental para se pensar algumas das questões contidas nas discussões sobre as relações estabelecidas entre tradição e modernidade no Brasil. Por exemplo, o professor Wanderley Guilherme dos Santos nota que a tese do autoritarismo instrumental - que é formulada durante o Império - coloca a “idéia de que cabia ao Estado fixar as metas pelas quais a sociedade deveria lutar, porque a própria sociedade não seria capaz de fixá-las, tendo em vista a maximização do progresso nacional” (SANTOS, 1978, p.103- 4). Esta idéia, segundo o aludido professor, é a base da ação política da elite imperial, inclusive das elites “liberais”. Entretanto, o pleno desenvolvimento desta “linhagem” do autoritarismo instrumental só se realizaria efetivamente na década dos 30 do século XX como resposta aos desafios econômicos, políticos, sociais e culturais. De fato, existiam condições, na década dos 30, para a difusão da tese do autoritarismo instrumental. 2.2 A crítica ao constitucionalismo liberal e a defesa do autoritarismo instrumental: o iberismo em Oliveira Viana Oliveira Viana expressa, uma década antes dos anos 30 do século XX, o dilema do liberalismo no Brasil. Segundo Oliveira Viana, não existe um sistema político liberal sem uma sociedade liberal. O Brasil não possui uma sociedade liberal, mas uma sociedade parental, clânica, autoritária. Em conseqüência, um sistema político liberal não apresentará desempenho apropriado. Além disso, o país necessita de um sistema político autoritário 145 para eliminar as condições políticas e sociais que impedem a vigência da sociedade liberal no Brasil. Em verdade, para o jurista e sociólogo carioca seria preciso um sistema político autoritário para que se pudesse constituir a sociedade liberal no país: um sistema político que impedisse de vicejar as pretensões do constitucionalismo liberal, que tentava implantar no Brasil um acervo institucional que estava em desacordo com o nosso meio social. Talvez esse seja o tema mais recorrente nos escritos políticos de Oliveira Viana. A oposição entre o país real e o país artificial (legal) está expressa no pensamento político e social do século XIX. Retomada na década dos 30 do século XX, aquela oposição apontava os fundamentos da crítica de Oliveira Vianna a todas as Constituições liberais no Brasil desde o Império, ressaltando a inadequação do modelo constitucional liberal democrático para o Brasil. Assim, a crítica de Oliveira Viana ao sistema político democrático liberal está centrada na análise sociológica da cultura política do povo brasileiro. Ao analisar a nossa cultura política, Oliveira Viana conclui que o povo brasileiro é incapaz de autogoverno, surgindo a questão do “apoliticismo da plebe” que era desconhecida, segundo Oliveira Vianna, pelos idealistas utópicos do liberalismo constitucional. Faltava aos propagandistas dos modelos constitucionais estrangeiros a consciência objetiva da estrutura e do processo de constituição da cultura política do “povo-massa” no Brasil. Portanto, Oliveira Viana atribui a incapacidade política do grosso da população brasileira às relações inadequadas estabelecidas entre a cultura do “povomassa” e as instituições liberais. Nesse contexto, o autoritarismo instrumental como um sistema político autoritário que almeja consolidar uma sociedade liberal, está presente no pensamento político e social de Oliveira Viana, cujo objetivo primordial é examinar a particularidade da experiência brasileira (SANTOS, 1978; BASTOS, 1993; VIANNA, 1997; BRANDÃO, 2007). É importante notar que a busca da singularidade da formação histórico-social e política do país revela algumas das características do projeto político de Oliveira Viana, que só pode se formar a partir da construção de um conhecimento realístico e objetivo da realidade, pensando a constituição de um novo Estado e o projeto político que pudesse formar “diretrizes políticas capazes de criar uma nação solidária” (BRANDÂO, 2007). É com a perspectiva desse projeto político que podemos refletir sobre a dimensão políticosocial do pensamento de Oliveira Viana. A reflexão do autor sobre as instituições estatais 146 no Brasil e a sua análise da gênese e do desenvolvimento das instituições políticas brasileiras conduz as suas propostas de reformas institucionais. Oliveira Viana destaca a distância que separa o país legal do país real, ou seja, a distância entre o comportamento das elites (com suas normas liberais) e o povo-massa, que é rural, possuindo normas, comportamentos e tradições próprias ignoradas pelas elites. Seguindo o raciocínio do autor, as elites idealizam o país a partir da Carta Constitucional monárquica de 1824 e da Carta Constitucional republicana de 1891. Uma das questões fundamentais sobre as instituições políticas brasileiras se apóia no fato de que as mudanças institucionais brasileiras não teriam causas sociais nem econômicas, mas políticas ou eleitorais. Por exemplo, o sufrágio universal apenas espraiaria o domínio dos clãs para fora do domínio rural, sendo o “povo-massa” é transformado “cidadão” sem que se alterasse a sua dependência em relação aos senhores rurais. O sufrágio universal e a democracia ficam descolados da realidade sociocultural brasileira, já que não haveria a formação de cidadãos que possuíssem o espírito público. Oliveira Viana observa que o partido dos governadores, o partido dos coronéis e o nepotismo forjam as instituições legatárias do estatuto colonial. A ruptura do estatuto colonial se daria apenas no plano político, não alterando os fundamentos essenciais das instituições políticas brasileiras, que se caracterizam pelo privatismo e pelo personalismo. Portanto, segundo Oliveira Viana, chegamos à democracia sem que se houvesse realizado um projeto democrático para a nação, emergindo uma cultura política que ressentia a ausência do Estado e que se alicerçava na “solidariedade de clã”, que concebia o Estado como instrumento de realização dos interesses privados, consolidando interesses particularistas. O clã rural domina a vida pública brasileira, e a reforma política deveria amenizar a sua influência ao implantar reformas que eliminassem a cultura política privatista, personalista e patrimonialista do clã, conduzindo o processo da emergência da liberdade, democracia e progresso. A reforma política não poderia ignorar a cultura do “povo-massa”, que seria institucionalizada de forma gradual e moderada. Oliveira Viana preconiza a idéia de que as instituições políticas brasileiras deveriam se amoldar à constituição histórica e social particular do país, devendo ocorrer uma organização política nacionalmente centralizada, com um executivo forte e liberto das influências do parlamento e dos partidos políticos que personificavam os interesses particularistas dos clãs rurais. 147 Oliveira Viana propugnou a consolidação de um Estado forte, capaz de estender a sua autoridade pública à esfera privada, ou seja, aos interesses particularistas dos clãs rurais. Um Estado centralizado, portanto, que controla o poder privado. Essa é uma característica do pensamento autoritário dos anos 30 do século XX que pode estar relacionada à interpretação ibérica da formação da sociedade brasileira, uma vez que Oliveira Viana atenta para o fato de que a América ibérica engendrou um desenvolvimento histórico e um sistema político próprios, que não deveriam apenas entrar no ritmo da história dos países ocidentais avançados, mas que possuiriam uma formação social e política particular, inscrevendo-se na história do ocidente como sociedades que teriam uma opção ibérica de desenvolvimento. Portanto, A América Latina possuiria uma formação histórica, social, política e cultural singulares, diferentes de outros tipos políticos e sociais europeus ou norte-americanos. Considerações Finais Para a construção da iniciativa individual, o Estado imperial e, posteriormente, o Estado republicano, objetivaram capitanear o projeto de futuro que desenvolvesse a americanização, evidenciando que as reformas institucionais e políticas não advinham de um projeto popular. No interior de uma sociedade civil herdada do obscurantismo luso, não haveria como fazer triunfar o projeto americanista de implantação do liberalismo e da razão moderna sem a condução da modernização conservadora efetivada pelo Estado. Ao analisar o pensamento historiográfico do diplomata, historiador e militar Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), visconde de Porto Seguro, o historiador e filósofo Nilo Odália (1929-2004) observou que as elites rurais e escravocratas conceberam o Estado brasileiro do século XIX como um instrumento que teria a função primordial de constituir politicamente a Nação. As reformas defendidas e propagadas pelos americanistas estavam circunscritas à autoridade irrevogável do Estado monárquico. A unidade existente durante a fase colonial se dissolvera com a independência, cabendo ao Estado “buscar a unidade perdida, fazendose dele algo unitário e centralizador; às divisões internas, que se abrem imediatamente, deve corresponder um Estado cuja autoridade deve ser incontrastável” (ODÁLIA, 1997, p. 58-9). 148 No período regencial (1831-1840) houve um impulso de americanização do império brasileiro. Porém, a livre iniciativa, a formação de um mercado interno e a descentralização não encontraram respaldo ideológico e político no interior de elites amparadas fortemente na pretensão de manter a unidade territorial. O iberismo permitia que os ideais americanistas seguissem os ditames da empresa individual, mas não consentia no esfacelamento da sua estratégia territorialista. O interesse individual, expresso no americanismo, deveria sempre estar subordinado aos ditames do chamado “interesse nacional”. O liberalismo vicejava na consciência das elites e articulava o Estado, sendo reprimido no seu sentido mais amplo ao vivenciar o seu descompasso em relação ao territorialismo constitutivo de elites políticas que se apoiavam no patrimonialismo herdado da estrutura econômica colonial. O padrão específico da modernização brasileira durante o período imperial e, posteriormente, no Estado republicano da primeira Meade do século XIX, desenvolveu conteúdos históricos de transição que reiteravam a exclusão dos interesses da maioria da população, com a questão democrático-popular passando ao largo dos temas que nortearam os debates acerca da modernização do país entre conservadores e liberais. A modernização nacional foi realizada pelo alto, não sendo gerada por uma sociedade civil constituída, impedindo a emergência de atores democráticos. O modelo político brasileiro de desenvolvimento durante o século XIX e primeira metade do século XX era essencialmente patrimonialista, e o transformismo - a transformação pelo alto imposta pelas elites territorialistas - compunha o nosso modelo político melhor acabado (FAORO, 1994). Os liberais caminhavam num terreno minado por contradições: o monopólio da propriedade territorial e a submissão das classes subalternas eram resultados do iberismo estrutural da sociedade brasileira. Nesse contexto, o projeto de futuro de americanização do país estava consubstanciado no espírito reformador do Estado, monárquico ou republicano, condutor da reforma educacional, intelectual, jurídica, moral e política. Referências ABRUCIO, Fernando; BASTOS, Elide Rugai; LOUREIRO, Maria Rita; REGO, José Márcio (Orgs.). Conversas com sociólogos brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2006. BARBOZA FILHO, Rubem. FHC: os paulistas no poder. In: AMARAL, Roberto (Org.). FHC: os paulistas no poder. Niterói: Casa Jorge Editorial, 1995. 149 BASTOS, Élide Rugai; MORAES, João Quartim de (Orgs.). O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Editora Hucitec, 2007. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. O quinto século: André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1998. ODÁLIA, Nilo. As Formas do Mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. OLIVEIRA, Lúcia Lippi de. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA. Minas Gerais: Editora da UFMG, 2000. FAORO, Raymundo. Existe um Pensamento Político Brasileiro? São Paulo: Editora Ática, 1994. MORSE, Richard M. O espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira: pontos de partida para uma revisão histórica. São Paulo: Editora Ática, 1998. RÊGO, Walquíria Gertrudes Domingues. Tavares Bastos: um liberalismo descompassado. In: Revista USP, mar. abr. mai. 1993. ROCHA, Justiniano José. Ação, reação, transação. ln: MAGALHÃES JR. Três panfletários do segundo reinado. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1978. VIANNA, Luiz Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos. In: VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997. 150 A ontologia fenomenológica sartriana da consciência: das obras do jovem Sartre ao Ser e o nada The Sartrean Phenomenological Ontology Of Consciousness: Theworks of Young And Sartre for Be Nothing Luís Carlos Ribeiro Alves∗ Resumo: Este artigo analisa o percurso da temática da consciência ao longo das obras do filósofo francês Jean-Paul Sartre , com ênfase em suas obras teóricas. A metodologia adotada é a de revisão bibliográfica. O autor procura destacar os momentos em que a consciência alcança o papel mais importante na filosofia sartriana defendendo que, de acordo com Sartre a ontologia fenomenológica se torna possível pelo fato de esta estar centrada no ser da consciência, enquanto ser que é ao mesmo tempo contingente. PALAVRAS-CHAVE: Consciência. Fenomenologia. Ontologia. Sartre. ABSTRACT: This article examines the way the theme of conscience over the works of French philosopher Jean-Paul Sartre, emphasizing its theoretical works. The methodology adopted is a literature review. The author tries to highlight the moments when the consciousness reaches the most important role in defending Sartrean philosophy that, according to Sartre's phenomenological ontology is made possible by the fact that this be centered on the consciousness, and being that is both contingent. KEY WORDS: Consciousness. Phenomenology. Ontology. Sartre. 1. Introdução A fenomenologia sartriana é muito mais conhecida através de O Ser e o Nada, seu Ensaio de Ontologia Fenomenológica, entretanto seus estudos relacionados à fenomenologia principiaram bem antes que escrevesse essa obra. Aqui, apresentaremos um pouco deste seu respirar fenomenológico, através da análise de algumas de suas principais obras que antecederam a O Ser e o Nada, tentando abranger toda a sua teoria da consciência para melhor entendermos a ideia de consciência defendida em sua principal obra, entendendo os momentos de continuidade, assim como os rompimentos que realizou em sua própria teoria. Professor do Instituto de Formação e Educação Teológica – IFETE; Especialista em Ensino de Filosofia pela Faculdade do Noroeste de Minas – FINOM e em Ensino de Geografia e História pela Faculdade Vale do Salgado – FVS; pós-graduando em Docência do Ensino Superior pela FINOM. Graduado em Filosofia, com Bacharelado pelo Instituto Teológico-Pastoral do Ceará – ITEP e Licenciatura Plena pela Universidade Católica de Brasília – UCB. Membro do corpo editorial da revista Composição da UFMS. 151 Divide-se em três momentos. No primeiro destaca os pressupostos da ontologia fenomenológica de Sartre, em seguida enfatiza a ontologia fenomenológica que aparece, ainda que não tão aperfeiçoada quanto a da maturidade nas suas primeiras obras, ditas préontológicas, dentre elas, A Transcendência do Ego, Esboço de uma Teoria das emoções e O Imaginário de modo a traçar o percurso percorrido por Sartre no desenvolvimento de sua ontologia fenomenológica ao longo de suas diversas obras. Por fim, destacamos a ontologia apresentada em O Ser e o Nada, bem mais madura que nas obras anteriores, destacando o objeto de reflexão principal, que diz respeito ao homem, a saber, as categorias do Em-si, Para-si e o para-outro. Objetivando fazer uma leitura do percurso de desenvolvimento da ontologia da consciência por Jean-Paul Sartre. 2. Ontologia a fenomenologia em Sartre Sartre realiza assim como Heidegger, uma retomada da ontologia por meio da fenomenologia, embora com uma abordagem em muito diferente da heideggeriana. Em O Existencialismo é um Humanismo Sartre aponta o ponto de partida de seu existencialismo, afirmando que este se encontra na subjetividade do individuo e, portanto no Cogito cartesiano como fundamento para a verdade de sua teoria, de modo que Não pode haver outra verdade, no ponto de partida, senão esta: penso, logo existo; é aí que se atinge a si própria a verdade da consciência. Toda teoria que considera o homem fora deste momento é antes de mais uma teoria que suprime a verdade, porque, fora deste cogito cartesiano, todos os objetos são apenas prováveis, e uma doutrina de possibilidades que não está ligada a uma verdade desfaz-se no nada [...]. Portanto, para que haja uma verdade qualquer, é necessário uma verdade absoluta.1 Com isso Sartre não só apresenta em sua teoria uma idéia de continuidade em relação a Descartes, no que se refere ao Cogito, embora ele substitua o método utilizado para alcançar este cogito, a saber, a dúvida hiperbólica que, segundo Bornheim é substituída pela náusea. Fazendo o mesmo caminho de Descartes, que escreveu o Discurso do Método (ensaio), escreverá um romance, A Náusea, onde apresentará sua dúvida profundamente mais ampla que a cartesiana; esta abrange não só o conhecimento, como era a daquele, como a todo o sentido da existência humana. Esta náusea, sem dificuldades SARTRE, J-P. O existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril, 1973. (Coleção Os Pensadores). p. 21 152 pode ser relacionada à angústia de Heidegger, que consistia na experiência vivencial reveladora do sentido do ser. Representa também certo rompimento com o pensamento do próprio Descartes, ao romper com o dualismo interno ao homem e sua determinação, como uma forte ligação a Heidegger por considerar toda a realidade humana em sua concretude de ser-no-mundo e, “admitindo a ideia de mundo é que Sartre consegue atribuir ao cogito uma dimensão existencial que não se encontra em Descartes. Dessa forma desintelectualiza-se o cogito e fundamenta-se a reflexão na consciência não reflexiva”2. Sendo assim o ponto de partida de Sartre, nem é puramente o cogito cartesiano, como também não tem por base de sua teoria a simples suspensão dos conhecimentos, muitos menos, pergunta pelo sentido abstrato do Ser; sua pergunta toca toda a realidade humana, e é sobre esta que recai sua investigação, que coincide com a investigação da consciência, como aquela condição de possibilidade de toda a construção existenciária e do próprio projetar humano, enquanto ser para-si que busca determinar-se. Sua ontologia dividir-se há em três momentos: a investigação do ser Em-si, do Para-si e posteriormente como conseqüência deste a investigação do para-os-outros. 3. O tema da consciência nas obras pré-ontológicas. Sartre começa a desenvolver os seus estudos acerca do tema da consciência ainda na juventude, ao se deparar com o pensamento de Edmund Husserl, aqui analisaremos um de seus principais estudos sobre o pensamento fenomenológico husserliano, onde ele – Sartre –começa a desenvolver sua tese sobre a consciência. Denominamos de pré-ontológicas as obras que antecedem a O Ser e o Nada, embora essa classificação não exista oficialmente, usaremos este termo a partir da consideração de que sua obra prima de ontologia é o ser e o nada, enquanto nas demais aparece muito mais o Sartre fenomenólogo, além do fato de tomar aqui para análise, sobretudo das primeiras obras do filósofo francês. Analisaremos o tema da consciência nas obras iniciais, tais como, A Transcendência do Ego, Esboço de uma Teoria das Emoções, obras nas quais ele se remete constantemente ao tema da fenomenologia e da consciência, sobretudo a husserliana; tomaremos ainda, um pequeno opúsculo que analisaremos em BORNHEIM, G. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 19 153 conjunto com Transcendência do Ego, a saber, Consciência de si e conhecimento de si, texto de uma de suas conferências. Outra obra que enfatizaremos é O Imaginário, obra em que Sartre desperta sua atenção para a consciência, elemento que a partir de então se tornará o centro de sua investigação. a) A Transcendência do Ego. Em A Transcendência do Ego, obra escrita em 1934, ano em que Sartre estudava em Berlim, com o objetivo de estudar a fenomenologia de Husserl, e publicada em Recherches Philosophiques em 1936, fica claro que seu pensamento ainda não se encontrava plenamente elaborado. O que ele realiza nessa obra é um esboço de descrição fenomenológica com o objetivo de defender a hipótese filosófica de que o ego não é um habitante da consciência, como era pensado até então pela maioria dos filósofos, segundo ele: “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser no mundo, tal como o Ego de outrem.”310. Para ele, na fenomenologia husserliana, o reencontro com a consciência transcendental de Kant se dá através da epoché fenomenológica, entretanto essa consciência diferirá da de Kant, quanto a não ser mais um conjunto de condições lógicas; agora a consciência será um fato absoluto e sua relação com o Eu de cunho existencial. A colocação do Eu transcendental, como habitante da consciência, significa a morte da consciência, visto que a consciência é um fato absoluto e consciente dela mesma. Nesse ponto de sua construção teórica Sartre admitirá uma consciência pura, ou seja, a consciência como um absoluto que é consciência de si mesma, um fenômeno onde ser e aparecer se identificam. Nesse sentido Sartre afirma que o Eu é um existente concreto e se dá por meio de uma intuição, só aparecendo pelo ato reflexivo, ficando assim, ao alcance da redução fenomenológica como unidade de seus estados e ações e sua espontaneidade não pode ser confundida com a da consciência. Para Sartre o Ego é “precisamente, a interioridade da consciência refletida contemplada pela consciência reflexiva.”4 enquanto que a SARTRE, J-P. A Transcendência do Ego. Lisboa: Edições Colibri, 1994. p. 43 10 4 Idem. p. 71. 154 consciência, já em concordância com o que afirmará posteriormente em O Ser e o Nada, “é um ser cuja essência implica a existência.”5 Dessa forma o Eu não passa de uma forma sintática e vazia e só se revela à consciência a medida que esta o olha. A mudança que Sartre propõe em relação a Husserl é a substituição do Ego transcendental por uma consciência transcendental, sendo que agora este Eu (moi) passa de proprietário a objeto da consciência. “A consciência transcendental é uma espontaneidade impessoal. A cada instante, ela determina-se à existência sem que se possa conceber qualquer coisa antes dela.”6 Afirma-se assim toda a anterioridade da consciência e esta consciência que é anterior a tudo descobre-se extremamente livre e de forma vertiginosa não esbarrando sequer no solipsismo deixado de lado, à medida que o Ego perdeu seu lugar de privilégio, não passando de uma das manifestações da consciência, como Sartre defende na Conferência Consciência de Si e Conhecimento de Si7; de forma que agora “só a consciência absoluta existe como absoluta” e o meu Eu, não é mais certo que o dos outros, para a consciência, é apenas mais íntimo. Já em Consciência de Si e Conhecimento de Si, Sartre afirmará a existência da préreflexividade no cogito que, é condição para o cogito cartesiano; é este cogito pré-reflexivo que funda a reflexão e o cogito reflexivo, questões que defenderá ardentemente em O Ser e o Nada e dos quais falaremos mais claramente quando tratarmos desta obra, logo a seguir. b) Esboço de uma Teoria das Emoções. Em Esboço de uma Teoria das Emoções Sartre aparece muito mais como psicólogo fenomenológico que como filósofo, analisando as posições psicológicas de Husserl; além de elaborar um estudo cuidadoso de diversas teorias das emoções, dedicando um primeiro momento à análise das teorias clássicas e à teoria psicanalítica, para só ao final oferecer sua própria contribuição, em forma de um esboço de uma teoria fenomenológica da consciência. 5 Idem. p. 71 Idem. p. 79. grifos do autor A Conferência Consciência de Si e Conhecimento de Si foi concedida à Sociedade Francesa de Filosofia na Sessão do dia 2 de junho de 1947; sessão que foi presidida pelo Senhor Parodi, publicada pela primeira vez no Boletim da própria Academia. Aqui analisamos a tradução para o português do Sr. Pedro M. S. Alves publicada pelas Edições Colibri de Lisboa em 1994 acompanhando o texto de A Transcendência do Ego. 155 Para ele a consciência não pode ser explicada simplesmente por meio dos hábitos, como se vinha fazendo até então; muito menos tinha sentido a idéia de que os hábitos nos tornam inconscientes, em resposta à idéia, Sartre oferece o argumento do ato de escrever: “Na realidade o ato de escrever não é, de modo algum, um ato inconsciente; é uma estrutura atual da minha consciência. O que sucede é que o ato não tem consciência de si mesmo”8, o ato não ter consciência de si não faz-me inconsciente, segundo Sartre, porque tenho consciência de mim como escritor, embora não o tenha de cada traço realizado por minha mão. Desse modo, sua afirmação fundamental é a de que uma emoção é uma transformação do mundo e, nesta o corpo é dirigido pela consciência para alterar suas relações com o mundo alterando assim as qualidades do mundo, de forma que: “para se compreender claramente o processo emocional, a partir da consciência, é preciso recordar esse caráter duplo do corpo, o qual é, por um lado, um objeto no mundo, e, por outro, a vivência imediata da consciência.”9 Sua conclusão nesta obra, que nos é de fundamental importância ressaltar, é a de que a consciência é consciência não-tética de si, assim, sendo vítima de sua própria armadilha, de modo que perpetua a emoção, criando um mundo mágico a partir dessas emoções. Tais conclusões, Sartre considera como contribuições ao desenvolvimento de uma psicologia fenomenológica da emoção. c) O imaginário. Em O Imaginário, uma de suas mais destacadas obras da primeira fase e que é fundamental a compreensão da temática da consciência, assim como em Esboço de uma Teoria das Emoções, aparece um Sartre muito mais psicólogo fenomenológico que filósofo propriamente dito. Nesta obra ele analisa a relação entre imagem e consciência, como ele mesmo o afirma ao expressar o objetivo da obra: “O objetivo desta obra é descrever a grande função “irrealizante” da consciência ou “imaginação” e seu correlativo noemático, o imaginário.”10 8 SARTRE, J-P. Esboço de uma Teoria das Emoções. Rio de Janeiro: Zahar editores. 1965. p. 51 Idem. p.68-69 10 SARTRE. J-P. Lo imaginario. Psicología fenomenológica de la imaginación. Buenos Aires: Losada, 1976. p. 13. Tradução nossa 9 156 Aí ele emprega uma significação para o termo “consciência” diferente da forma como este era empregado até então, além de defender a idéia de que a imagem ou a representação intencional não é um objeto habitante da consciência, mas externo a ela; nomeia assim com o termo “consciência” a todas as estruturas psíquicas, não em seu conjunto, mas nas particularidades concretas de cada uma. Outro fator marcante é a questão da reflexividade da consciência, pois é, pela atitude de reflexão que a consciência revela aquele conteúdo certo, que é a imagem. A reflexão terá, segundo Sartre, quatro características fundamentais, a saber: a) que a imagem é uma consciência, ou seja, se opõe a idéia de que as imagens habitam a consciência, afirmando que esta é um tipo de consciência do objeto intencionado e, imagem vem a designar apenas a relação entre a consciência e o objeto; b) outro fenômeno captado por Sartre é o da quase observação, fenômeno este que se mostra no fato de nós observarmos os objetos apenas a partir de perfis de tal modo que “para esgotar as riquezas de minha percepção atual, seria necessário um tempo infinito.”11Dessa forma são fundamentais a esse momento os três tipos de consciência que se mostram na percepção: perceber, conceber e imaginar. É neste ponto que defenderá a postura husserliana da intencionalidade, dado que nesse período ele se considera um husserliano, antes de desenvolver o seu próprio caminho, de que a “a intencionalidade está no centro da consciência: é ela que trata de alcançar ao objeto, ou seja, que lhe constitui pelo que é.” 12 c) outra característica especifica é o fato de a consciência imaginante propor seu objeto como um nada, ou seja, toda consciência é consciência de algo estranho a ela própria, desse modo a consciência é pré-reflexiva ou irreflexiva, mas para que essa consciência seja desvendada faz-se necessário um outro tipo de consciência: a consciência reflexiva: Toda consciência propõe seu objeto, mas cada uma tem sua maneira de fazê-lo. [...] Este ato pode tomar quatro formas, e só quatro: pode propor o objeto como inexistente, ou como ausente, ou como existente em outro lugar; também se pode “neutralizar”, ou seja, no propor seu objeto como existente.13 E é dessa forma que Sartre expressa a relação entre consciência intencional e os objetos e a criação das imagens ou representações e d) a última das quatro características 11 Idem. p.22. Tradução nossa Ibid. p. 24.Tradução nossa 13 Ibid. pp. 26-27. Tradução nossa 12 157 consiste na espontaneidade da consciência imaginante que encera una consciência nãotética de si - mesma, não possui um objeto, que Sartre resume da seguinte forma: “Se sente consciência de uma a outra ponta e homogênea com as outras consciência que a precederam e as quais está sinteticamente unida.”14 Para enfim concluir sua defesa, afirmando que a imagem é uma espécie de consciência intencional do objeto. 1.A ontologia sartriana: Em-si, para-si e para-outrem. A ontologia sartriana é elaborada principalmente em O Ser e o Nada, obra que tem como subtítulo Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Ao se dizer “ontologia fenomenológica”, parece-nos inicialmente algo plenamente contraditório e estranho, visto que a fenomenologia é categoricamente anti-metafísica; contudo a investigação de Sartre se constitui como ontologia à medida que tem como objeto de sua descrição fenomenológica ao ser do fenômeno. Como afirma Cléa Góis “A sua descrição constituirá, por isso, uma "ontologia", porque visará o próprio ser; mas uma ontologia "fenomenológica", uma vez que o ser é a objetividade do fenômeno.”15Facilmente se pode encontrar a descrição fenomenológica do Ser na obra de Sartre, dado o que podemos chamar de uma categorização do ser, nas categorias do a) Ser Em-si, ou seja, da coisa, esta absolutamente determinada é o próprio ser do fenômeno, daquilo que nos aparece da forma que nos aparece, “não possui um dentro que se oponha a um fora e seja análogo a um juízo, uma lei, uma consciência de si. O Em-si não tem segredo: é maciço.” 16 O Em-si é imutável, é a própria coisa; b) do Ser Para-si, que é o próprio ser da consciência, no sentido em que Sartre apresenta na Introdução de O Ser e o Nada “é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser”17 é mutável, indeterminado, em constante possibilidade de transformação, diferentemente do Ser Em-si, o para-si não pode ser determinado conceitualmente, visto que é indeterminação, ele é a negação do ser e pode ser relacionado ao modo de ser do homem e da consciência, visto que o homem é por excelência um ser de inúmeras possibilidades, e c) Ser para-outro, ou seja a visão do outro, a própria teoria da 14 Ibid. p. 30. Tradução nossa SILVA, C. G. Liberdade e consciência no existencialismo de Jean Paul Sartre. Londrina: Ed. da UEL, 1997. p. 22. 16 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. Petrópolis, Vozes, 2000. p. 39. 15 17 Ibid. p. 35 158 alteridade de Sartre onde “o outro surge como mediador indispensável do eu consigo mesmo, porquanto sinto vergonha de mim tal como apareço ao outro.”18, pois a forma como apareço para o outro é a de um objeto, pois é dessa forma que se darão todas as relações humanas, entre sujeito e objeto. O Outro é negação de mim mesmo, mas é à medida que o outro me reconhece que sou e “para me fazer reconhecido pelo outro, devo arriscar minha própria vida.”19 Assim o outro em seu ser, depende de mim assim como o meu ser depende dele e, mesmo a forma como eu me vejo a mim mesmo, de modo a surgir uma interdependência entre o eu e o outro, embora este sempre me apareça como um estranho. Considerações Finais Cabe apresentarmos algumas considerações acerca desta pesquisa, embora ela n.ao se mostre como a última ou possa se isentar de críticas, pretendeu desde o inicio refletir acerca do percurso da temática da consciência no contexto das obras do filósofo francês Jean-Paul Sartre. Por meio dessa análise cuidadosa podemos perceber uma perspectiva de análise das obras desse filósofo, no que concerne a temática da consciência, tomada como central a partir deste trabalho, embora não tome para si a ousadia de ser um trabalho fechado ou uma verdade indubitável acerca da filosofia sartriana, enfatiza a importância dessa temática não só no contexto de uma obra, mas ao longo de várias de suas obras, sobretudo as mais teóricas, de modo a garantir que essa foi uma preocupação constante do autor ao longo de seu percurso pelo longo caminho da filosofia. As reflexões aqui que se referem, desde a preocupação em combater o ego hurserliano até a preocupação com as categorias do ser, o em-si, o para-si e o para-outro, sempre apontando a consciência como ponto chave de suas indagações filosóficas. De modo, que podemos correr o risco de propor uma afirmação para resumir a filosofia sartriana e sua ontologia: uma ontologia fenomenológica é possível à medida que esta é uma ontologia (do ser/imutável) da consciência (fenômeno/mutável). 18 BORNHEIM, G. Sartre. Op.cit. p. 81-82. 19 SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. Op. cit. p. 307 159 Referências BORNHEIM, G. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. SARTRE, J-P. A Transcendência do Ego. Trad. Pedro M. S. Alves Lisboa: Edições Colibri, 1994. SARTRE, J-P. Consciência de Si e Conhecimento de Si. In. A Transcendência do Ego. Trad. Pedro M. S. Alves Lisboa: Edições Colibri, 1994. SARTRE, J-P. Esboço de uma Teoria das Emoções. Rio de Janeiro: Zahar editores. 1965. SARTRE. J-P. Lo imaginario: Psicología fenomenológica de la imaginación. Buenos Aires: Losada, 1976. SARTRE, J-P. O Existencialismo é um Humanismo. São Paulo: Abril, 1973. (Coleção Os Pensadores). SARTRE, J-P. O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia fenomenológica. Trad. Paulo Perdigão. 8.ed. Petropólis; Vozes, 2000. SILVA, C. G. Liberdade e consciência no existencialismo de Jean Paul Sartre. Londrina: Ed. da UEL, 1997. 160 Critérios de cientificidade e ética: elementos para refletir sobre a questão da qualidade na pesquisa social Ethical and scientific criteria: elements of reflection on the issue of quality in social research Tania Steren dos Santos1 Resumo: O estudo dos critérios de cientificidade possibilita um melhor desenho e operacionalização do objeto de pesquisa, assim como, a qualificação das pesquisas desenvolvidas. É necessário o questionamento da formação metodológica e ética do pesquisador e o fortalecimento dos mecanismos legais e institucionais que propiciam uma adequada relação sujeito-objeto do conhecimento. Neste estudo são também apresentadas algumas reflexões sobre pesquisa quantitativa e qualitativa, considerando finalmente a questão ética relacionada com a utilização de imagens na pesquisa social. Palavras chaves: pesquisa quantitativa e qualitativa; critérios de cientificidade; ética na pesquisa Abstract: The study of scientific criteria allow a better design and operation of the research object as well as the qualifications of the research developed. It is necessary to question the training methodology and ethics of the researcher and the strengthening of legal and institutional mechanisms that provide adequate subjectobject relationship of knowledge. This study also presented some thoughts on quantitative and qualitative research, considering the ethical issue finally connected with the use of images in social research. Key words: quantitative and qualitative research, scientific criteria, research ethics Introdução Bases de dados disponíveis oferecem cada vez maior quantidade de informações para a pesquisa social, assim como sites especializados de centros e núcleos de pesquisa nacionais e internacionais. Nesse contexto torna-se tarefa importante a reflexão sobre a qualidade dos dados e procedimentos que podem tornar o trabalho científico cada vez mais rigoroso e confiável. Que elementos podem contribuir para que nossa pesquisa atinja um nível de qualidade e cientificidade condizente com o padrão esperado pela comunidade acadêmica do nosso campo de atuação? Acredita-se que o estabelecimento de critérios de cientificidade rigorosos, a escolha de métodos e técnicas adequados ao objeto de estudo e a utilização de fontes de dados confiáveis sejam fatores decisivos na produção de conhecimentos sobre a realidade social que possam ser caracterizados como científicos. A postura ética do pesquisador também contribui, de forma significativa, para a qualificação da pesquisa, pois suas escolhas e inferências devem ser guiadas pela honestidade e respeito em relação às fontes de informação. 1 Tania Steren dos Santos. Professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Av. Bento Gonçalves 9500, Porto Alegre, RS; fone:33086956; [email protected]. 161 Neste estudo serão analisadas algumas contribuições e reflexões sobre metodologia de pesquisa, adotando-se uma postura aberta a novas perspectivas. É necessário o questionamento dos próprios procedimentos, numa abordagem reflexiva que possibilite avaliar criticamente o caminho percorrido desde a coleta até a análise e interpretação dos dados e, especialmente, as implicações individuais e coletivas da divulgação dos resultados da investigação. Considerações sobre a pesquisa quantitativa e qualitativa O pluralismo técnico, decorrente da incorporação numa mesma pesquisa de ferramentas qualitativas e quantitativas, se apresenta como promissor recurso metodológico para o estudo científico do objeto de pesquisa (projetos mistos). A integração de códigos gramaticais com códigos numéricos possibilita um aprofundamento maior da compreensão sobre as características e determinantes dos fenômenos sociais. Vasconcelos considera que as posturas ecléticas são problemáticas, mas, ao mesmo tempo, salienta que a crescente complexidade da vida social exige a incorporação de diversas abordagens paradigmáticas e epistemológicas2, numa abordagem pluralista da realidade. Nas suas palavras: Por ecletismo entendemos a conciliação e uso simultâneo, linear e indiscriminado de teorias e pontos de vista teóricos e éticos diversos sem considerar as diferenças e incompativilidades na origem histórica, na base conceitual e epistemológica, e nas implicações éticas, ideológicas e políticas de cada um desses pontos de vista, o que sem dúvida é problemático, como já discutimos no capítulo anterior. Entretanto, isso é diferente de reconhecer a complexidade e multidimensionalidade dos fenômenos físicos, biológicos, humanos, sociais e ambientais, que exigem um conjunto pluralista de perspectivas diferentes de abordagem (VASCONCELOS, 2007, p. 108). Certamente que ao propor a junção de paradigmas ou correntes (linhas, escolas) de pensamento (pluralismo de abordagens) é necessário avaliar a sua compatibilidade, pois o 2 No Manual de metodologia .. (SAUTU et. al. 2005), editado por CLACSO, Conselho Latinoamericano de Sociologia, com sede em Buenos Aires, encontramos um quadro interessante sobre as características dos diferentes paradigmas de pesquisa social, considerando os pressupostos ontológicos, epistemológicos, axiológicos e metodológicos. Os autores comparam o paradigma positivista/pós-positivista com o paradigma construtivista e associam o primeiro à metodologia quantitativa e o segundo à metodologia qualitativa (SAUTU et. al., 2005, p. 40). Esta dicotomia exige alguns cuidados, pois pode gerar uma falsa impressão de que somente é possível a utilização de técnicas quantitativas no primeiro caso e qualitativas no segundo, quando atualmente, com a incorporação de programas informáticos para análise qualitativa é possível quantificar depoimentos provenientes de entrevistas em profundidade, por exemplo. 162 ecletismo gera confusões desnecessárias no campo científico, mas, a integração de diversas técnicas torna-se um recurso muito útil para a triangulação de dados. Com relação à pesquisa qualitativa, seus críticos a consideram muito vulnerável a interferências subjetivas, com limitado valor científico. O padrão quantitativista deriva principalmente do modelo científico das ciências naturais. Nas ciências humanas a interferência (cientificamente controlada) da subjetividade é considerada como elemento constitutivo do conhecimento, onde os próprios valores e representações ocupam uma posição relevante na análise dos fenômenos sociais, deixando de ser considerados como distorções a serem neutralizadas. O preconceito em relação às técnicas qualitativas está sendo alterado, pela divulgação de pesquisas qualitativas com elevado nível de confiabilidade. Por outro lado, o ideal positivista de objetividade, que estabelece uma rígida separação entre sujeito-objeto do conhecimento é questionado, propondo-se, no seu lugar, a potencialidade criativa da interação e reconhecimento mútuo de ambos os elementos do processo cognitivo. Ao mesmo tempo, a crítica à perspectiva positivista de neutralidade não significa o abandono do ideal de objetividade e dos critérios de cientificidade que possam revelar as reais dimensões e determinantes dos fenômenos sociais em estudo. O padrão positivista de neutralidade-objetividade da ciência, no qual somente o que pode ser comprovado mediante técnicas quantitativas é aceito como científico, tem predominado no campo científico e gerado muitos preconceitos em relação às abordagens qualitativas. Se os dados não possibilitam uma generalização empírica, comprovados com estatísticas, são considerados de pouco valor e avaliados com suspeita. A neutralidade, considerada condição ideal na produção do conhecimento científico, desconhece a participação direta do sujeito cognoscente e sua relação intrínseca com o objeto de estudo. Os fatos não são “coisas”, externas ao pesquisador e que se impõem com poder de coerção, como afirmava Durkheim (1978) e sim fenômenos produzidos pela ação dos homens organizados em grupos de interesses (em relações antagônicas). Portanto, é possível a transformação da realidade e o estudo científico desse processo, numa perspectiva crítica e questionadora do consenso presente na estrutura dominante. Nos anos 1960, os sociólogos Medina Echevarria no México e Gino Germani na Argentina desenvolveram a perspectiva teórico-metodológica positivista. Echevarria afirmava que: “Sin una técnica de investigación definida, o sea, sometida a cânones 163 rigurosos, la investigación social no solo es infecunda sino que invita a la acción siempre dispuesta del charlatán y del audaz. [...] La sociologia ha sido siempre la más castigada por la improvisación” (BLANCO, 2005, p.36 ). Germani, por sua vez considerava que: La radical separación entre ciencias de la naturaleza y ciencias del espíritu tuvo consecuencias que han afectado seriamente el desarrollo de la investigación concreta de la realidad social. [...] al negar la posibilidad de extender a esta esfera los métodos de la ciência em general se favoreció la especulación en lugar de la investigación y la actividad intelectual dirigida al conocimiento de los fenómenos sociales fue más de carácter filosófico que científico y bajo el nombre de sociologia se hizo filosofia social (GERMANI apud BLANCO, 2005, p. 36). Existia preconceito quanto á utilização da estatística, freqüentemente concebida como atrelada aos pressupostos e interesses da sociedade norteamericana. A sociologia positivista, dominante no meio acadêmico daqueles anos, foi considerada atrelada a posturas sociológicas conservadoras. O sociólogo Paul Lazarsfeld foi o representante mais destacado desta perspectiva teórico-metodológica. No entanto, a estatística em si é uma ferramenta que pode ser utilizada em qualquer tipo de abordagem. Este é o caso dos estudos que adotam o referencial do materialismo histórico dialético e utilizam como ferramenta metodológica os recursos da estatística. Rodrigues (2007, p. 35) considera que não se podem separar rigidamente dados quantitativos e qualitativos, pois ambos pressupõem elementos comuns, ou seja, existem “qualidades intrínsecas às quantidades”. Como exemplo menciona que o número 3, que representa uma quantidade matemática, não exclui algumas qualidades: ser impar, positivo, primo e inteiro. Atualmente a identificação das técnicas quantitativas exclusivamente com o positivismo e o empirismo, de forma reducionista, está mudando. As novas tecnologias da informática utilizadas para coleta, processamento e análise de dados estão cada vez mais sofisticadas e precisas e as abordagens qualitativas vêem ganhando crescente credibilidade, pela valorização das técnicas numéricas. As pesquisas mistas que integram recursos numéricos a conteúdo discursivo, portanto, estão em crescente expansão no campo das ciências sociais3. São utilizados cada vez mais métodos rigorosos em ambas as abordagens. 3 Consultar a obra de John Creswell (2007), sobre projeto de pesquisa, onde o autor desenvolve metodologia combinada quanti-quali, tendência em expansão nos últimos anos no meio acadêmico. Ao abordar a cientificidade da abordagem qualitativa, estereótipos que privilegiavam as técnicas estatísticas de processamento e análise de dados, tendem a diminuir, propiciando uma promissora ampliação das estratégias de pesquisa. Também o texto de Santos (2009) apresenta reflexões sobre esta questão. 164 O desenvolvimento das técnicas de survey aliadas à utilização das CAQDAS (Computeraided qualitative data analysis software) configura avanços substanciais na pesquisa científica de tipo mista. Critérios de cientificidade A sociedade da informação, caracterizada por transformações tecnológicas consideráveis, está tendo um impacto considerável sobre a metodologia das ciências sociais, pela disponibilidade de técnicas de pesquisa cada vez mais sofisticadas. Observa-se, na atualidade, a utilização de múltiplas fontes de informação e uma maior transparência a respeito das estratégias metodológicas adotadas na pesquisa, ou seja, os pesquisadores procuram explicitar a natureza dos dados e as técnicas que utilizaram na sua pesquisa para uma correta avaliação dos resultados. As fontes e procedimentos de coleta dos dados empíricos são crescentemente questionados na sua validade e fidedignidade. As novas tecnologias da informática e da comunicação (TICs), em especial a internet, têm ampliado muito o acesso a dados primários e secundários, assim como, a uma comunicação direta com os informantes. No caso da pesquisa bibliográfica e documental se coloca a necessidade de verificar se as fontes são confiáveis, eliminando o denominado “lixo cibernético”. As seguintes observações alertam os pesquisadores quanto a alguns fatores de distorção: Primeiro, o documento pode conter erros óbvios ou ser inconsistente na sua representação. Segundo, existem versões diferentes do mesmo documento. Terceiro, há inconsistências internas em termos de estilo, conteúdo, caligrafia e assim por diante. Quarto, o documento passou pelas mãos de uma pessoa ou pessoas que tinham interesse que se fizesse uma leitura particular do seu conteúdo. Sexto, a versão deriva de uma fonte secundária suspeita. Sétimo, ele é inconsistente em relação a outros documentos semelhantes. Finalmente, ele é ‘conciso’ demais em termos de ser representativo de um certo grupo de documentos (PLAT apud MAY, 2004, p. 220). Alguns dos principais requisitos para que uma pesquisa seja confiável e científica são: rigor metodológico e adequação dos procedimentos técnicos à natureza do objeto de pesquisa. A avaliação dos dados deve estar relacionada com os objetivos e teoria explicativa logicamente consistente. Os critérios de seleção da amostra do estudo e a definição dos indicadores (em pesquisas quantitativas) ou das categorias (em pesquisas 165 qualitativas) devem ser claramente avaliados e apresentadas suas limitações de forma transparente. Por meio da reflexividade é possível o controle de eventuais erros e distorções durante o processo da pesquisa, desde a definição inicial até a exposição dos resultados. Ao analisar os desníveis de comunicação entre investigadores e entrevistados, Michel Thiollent (1980) menciona algumas fontes de distorção, tanto durante a situação de entrevista quanto no momento da interpretação dos dados, explicando que: No primeiro, a diferença de modo de comunicação interfere na enunciação da pergunta por parte do investigador, na compreensão da pergunta e na formulação da resposta por parte do respondente e, finalmente, na transcrição da resposta. No segundo nível, a interpretação feita sem levar em conta as diferenças de modos de comunicação recai inevitavelmente nos problemas de sociocentrismo4 ou de falta de relativismo cultural anteriormente apontados. Em ambos os níveis, a neutralidade dos procedimentos técnicos está posta em questão (THIOLLENT, 1980, p. 53). Se estas fontes geradoras de erros nas várias etapas da pesquisa forem controlados de maneira correta é possível ampliar a confiabilidade dos dados e inferências realizadas. A seguir são apresentados alguns critérios que possibilitam avaliar e considerar um estudo como científico: a) Questionamento - O espírito crítico é essencial à produção de análises cada vez mais próximas da realidade objetiva. A confiabilidade das fontes, a qualidade e a forma de acesso aos dados devem ser permanentemente questionadas, escolhendo teorias interpretativas que possibilitem superar a observação unilateral. b) Falibilidade – A ciência gera conhecimentos consistentes que podem vir a ser refutados se surgirem novas evidências e controvérsias. A “verdade” do conhecimento científico sempre é provisória e histórica, ou seja, pode vir a mudar de acordo com o contexto e a conjuntura. Resultados válidos para uma determinada situação podem ser negados em outra diferente. c) Verificabilidade - A escolha de métodos e técnicas adequados e validados possibilita uma aproximação melhor do objeto de pesquisa, procurando oferecer elementos para 4 Thiollent explica o significado do sociocentrismo da seguinte forma: “o sociólogo pode perder a sua ‘imaginação sociológica’ e se revelar incapaz de avaliar a realidade fora das normas, padrões de comportamento ou de linguagem do seu próprio grupo social, em geral bastante privilegiado” (THIOLLENT, 1980, p. 49). 166 avaliar a qualidade das estratégias escolhidas. A comunidade de pares do campo científico no qual a pesquisa é desenvolvida constitui-se em fator fundamental para avalizar os procedimentos e resultados alcançados. d) Fidedignidade – Os resultados de uma pesquisa devem seguir o princípio da replicabilidade e da generalização dos dados (quando se trabalha com amostras estatisticamente representativas5) a outras situações diferentes da original, considerando margens de erros seguros. e) Objetividade – A relação sujeito- objeto do conhecimento implica numa postura dialógica, na qual o pesquisador se coloca como observador distante, mas ao mesmo tempo comprometido. Não há neutralidade absoluta por parte do cientista e sim uma inabalável convicção na sua capacidade de gerar conhecimentos que reflitam, da forma mais rigorosa possível, a realidade estudada, eliminando interferências provenientes de interesses particulares, preconceitos e distorções. f) Racionalidade – O conhecimento científico exige a utilização de recursos analíticos, numa perspectiva mais explicativa-interpretativa do que descritiva, embora muitas pesquisas se limitem a este tipo de abordagem. A qualidade da ciência se estabelece na medida em que o pesquisador ultrapassa a mera descrição fatual e se adensa nos meandros da compreensão, produzida pela teoria. g) Consistência teórico-conceitual – A capacidade explicativa dos paradigmas e referenciais possibilitam uma abordagem abrangente e profunda do objeto de pesquisa. O uso de termos técnicos e linguagem científica qualificam a pesquisa e evitam dubiedades e imprecisões. h) Universalidade - Este princípio significa que a pesquisa científica é aberta a toda pessoa que busque produzir conhecimento teórico, prático ou ambos, sem posicionamentos dogmáticos e fechados. i) Transparência e divulgação de resultados - É um direito dos cidadãos compartilhar as descobertas e o conhecimento gerado nos diversos campos científicos. Tanto a pesquisa básica ou pura quanto a pesquisa aplicada devem ser socializadas visando o bem comum ou melhoria de algum aspecto da vida em sociedade. A confiabilidade de uma pesquisa está relacionada também à qualidade da relação estabelecida entre o pesquisador e o objeto de pesquisa. Na pesquisa de campo, se for 5 O princípio da fidedignidade também pode ser seguido com amostras não-probabilísticas. 167 consolidado um grau de confiança e colaboração apropriado aos objetivos do estudo com as pessoas entrevistadas, estão sendo geradas condições mais favoráveis à obtenção de dados mais próximos da realidade. Portanto, o pesquisador deve manter uma relação dialógica com os entrevistados, procurando ganhar sua confiança e colaboração com os objetivos da pesquisa. Nesse processo, a avaliação de especialistas e a contribuição dos próprios respondentes durante o desenvolvimento de um estudo exploratório ou realização de pré-teste dos instrumentos de coleta de dados, se torna uma estratégia muito adequada para atingir graus mais elevados de cientificidade. No caso da pesquisa documental, é imprescindível a avaliação da confiabilidade da fonte emissora. As características da instituição, tipo de indicadores utilizados e a categoria de classificação de um periódico científico no sistema QUALIS6 da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), são bons indicadores da qualidade das informações. Algumas considerações sobre a ética na pesquisa A qualidade de uma pesquisa está vinculada ao domínio e competência do pesquisador na escolha dos procedimentos técnicos e perspectiva analítica, desde o planejamento inicial do estudo até a redação final. Todavia, nesse percurso, existe um fator fundamental na confiabilidade da pesquisa que é a postura ética do cientista, ou seja, a confiabilidade do trabalho científico está relacionada com a formação e valores do pesquisador. A honestidade na utilização das diversas fontes disponíveis para pesquisas e a identificação precisa das referências utilizadas torna-se um imperativo cada vez maior no novo contexto virtual. É importante a seriedade e rigor científico, ademais, na elaboração dos instrumentos de coleta de dados, na definição e seleção da amostra e no processamento dos dados. Questionários, roteiros de entrevistas e planilhas de observação, por exemplo, devem ser detalhadamente avaliados e pré-testados. O pesquisador está constantemente em luta contra todo tipo de viés, distorções e erros que ameaçam seu trabalho científico de várias formas. Preconceitos, rotulações e estigmas são fontes freqüentes de problemas na pesquisa. Nesse sentido, estar atento adotando uma postura reflexiva é fundamental para minimizar o efeito desses fatores negativos. 6 As diversas áreas avaliam e classificam os periódicos científicos em nível internacional, nacional e regional, estabelecendo estratos indicativos de qualidade: A1, o mais elevado; A2; B1; B2; B3; B4; B5 e C. 168 Em relação ao tema dos direitos autorais e da propriedade intelectual, na nova realidade virtual, o seguinte comentário de Mariño (2008) nos leva a refletir também sobre a ética na pesquisa: “Para pulsar nuevas realidades como el software libre, como la problemática sobre derechos de autoría con asuntos como el Copyleft o las licencias Creative Commons, o como los procesos de vigilancia y control social que operan a través de la revolución tecnológica, es imprescindible recurrir a técnicas de investigación específicas” (MARIÑO7). O que é Copyleft?: O termo vem de um trocadilho em inglês, que substitui o ‘right’ (direita, em inglês) de ‘copyright’ por ‘left’ (esquerda, em inglês). O duplo sentido do termo está no fato de que a palavra ‘left’ é o verbo ‘leave’ (deixar) no passado, tornando ‘copyleft’ um termo próximo a ‘cópia autorizada’. Outro trocadilho intraduzível brinca com a famosa frase ‘Todos os direitos reservados’, que sempre acompanha o símbolo. Para o ‘copyleft’, ‘All rights reserved’ torna-se ‘All rights reversed’ (‘Todos os direitos invertidos’). Documento obtido na internet8. O Creative Commons significa licenças flexíveis para obras intelectuais. Ele “disponibiliza opções flexíveis de licenças que garantem proteção e liberdade para artistas e autores. Partindo da idéia de ‘todos os direitos reservados’ do direito autoral tradicional nós a recriamos para transformá-la em ‘alguns direitos reservados”9. Estas novas conceituações são muito polêmicas, pois em nome da liberdade de expressão e da produção coletiva podem estar sendo acobertadas posturas desonestas, ou incentivando o plágio e interesses individualistas na produção científica. Por outro lado cumpre registrar que existem alguns problemas relacionados à falta de ética intelectual: descaso com a autoria e propriedade intelectual, pouco respeito à privacidade de indivíduos e instituições, quebra de sigilo, alteração de documentos ou depoimentos originais e identificação imprecisa ou incorreta de fontes e referências. Sobre a questão da autoria é necessário o desenvolvimento de maior número de pesquisas científicas que permitam avaliar a gravidade e a extensão do problema da inclusão indevida, ou omissão de autores. Observa-se uma preocupação, nas diversas instituições10 onde são desenvolvidas as pesquisas científicas, com a definição clara dos 7 Documento obtido na internet. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u12307.shtml. Acesso em: 16 jan. 2009. 9 Disponível em: http://www.creativecommons.org.br/. Acesso em: 17 jan. 2009. 8 10 Na UFRGS, desde 1997, atua o Comitê de Ética em Pesquisa, credenciado junto à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde em 1997. 169 critérios de autoria, embora ocorram muitas distorções geradas pela ânsia produtivista que tomou conta da comunidade acadêmica nos últimos anos. Em alguns casos, pesquisadores e estudantes que não participaram efetivamente de um trabalho incluem seus nomes em artigos científicos para publicação em co-autoria. José R. Goldim, especialista em Ética na Pesquisa11, salienta quais são os critérios de autoria, afirmando que “contribuições menores na realização de trabalhos científicos, tais como sugestão de referências, de análise de dados ou auxílio na editoração, não garantem crédito de autoria”12 e que “a participação apenas na obtenção de fundos ou outros recursos necessários para a pesquisa ou na coleta de dados não justificam autoria ”.13 Acrescenta que para definir a autoria de uma pesquisa é necessário estar atento às seguintes situações: Amigos, colegas, chefes, bolsistas e estagiários não se tornam autores apenas devido a estas relações [...] Não se considera colaborador quem simplesmente auxiliou o autor na produção da obra intelectual, revendo-a, atualizando-a, bem como fiscalizando ou dirigindo sua edição14. Os créditos de autoria devem estar baseados somente em contribuições substanciais para: a) concepção, planejamento, análise ou interpretação dos dados; b) redação do artigo ou sua revisão intelectual crítica; c) responsabilidade pela aprovação final para publicação. Todas as condições (a, b e c) devem ser cumpridas (GOLDIM, 2005)15. No que se refere a direitos autorais, em 2004, se consolida no Brasil a união de duas associações de defesa: a ABDR (Associação Brasileira de Direitos Reprográficos) fundada em 1992 e a ABPDEA (Associação Brasileira para a Proteção dos Direitos Editoriais e Autorais) fundada em 1999 por alguns editores dissidentes da anterior. Existem atualmente diversos estudos sobre este tema, principalmente nas áreas do direito, biblioteconomia e ciências da informação. Uma obra pioneira sobre o assunto é O impacto da tecnologia digital sobre o direito de autor e conexos, de Deise F. Lange 11 Conforme Diretrizes e Normas de Pesquisa em Seres Humanos do Conselho Nacional de Saúde definidas no país. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/comissao/conep/publicacoes_cep.html Acesso em: 10 nov. 2009. Goldim toma como base o Parágrafo único da Lei 5988/73 que regula o assunto. 12 Ethical principles of psychologists and code of conduct. American Psychologist 1992;47:1597-1611. International Committee of Medical Journal Editors. Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals. Ann Int Med 1988;108:258-265. 14 Lei 5988/73, de 14/12/73 15 Documento obtido na internet: Aspectos Éticos relacionados à Autoria Científica. Conforme o International Committee of Medical Journal Editors. Uniform requirements for manuscripts submitted to biomedical journals. Ann Int Med 1988, n. 108, 258-265. 13 170 (1996), na qual a autora analisa a transformação nos meios de informação e sua influência na produção intelectual, do ponto de vista principalmente jurídico. Outro estudo mais recente é o de Fernandez Molina (2008), intitulado Derecho de autor y bibliotecas digitales: en busca del equilíbrio entre intereses contrapuestos. Quanto ao tema da privacidade de indivíduos ou instituições, os cientistas devem ter extremo cuidado para evitar a divulgação de informações que possam estar distorcidas ou conter erros de interpretação, preservando, sempre que possível, o anonimato daquelas pessoas ou entidades que tenham respondido às indagações da pesquisa. Nas ciências sociais, assim como ocorre em outros campos científicos, é freqüente que o pesquisador, ao realizar entrevistas, assine conjuntamente com o entrevistado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou o também denominado Consentimento Informado16. Assim, existe uma mútua garantia de respeito a princípios éticos durante todo o processo da pesquisa. Este recurso representa um instrumento ético-metodológico cada vez mais utilizado nas pesquisas com seres humanos, especialmente nas qualitativas. As pessoas que fazem parte do objeto da pesquisa devem ser tratadas com respeito, protegendo sua individualidade. Em todo trabalho científico o anonimato é condição indispensável, salvo algumas justificadas exceções. Nem sempre isto é possível, mas podese utilizar pseudônimo, numeração ou indicar o perfil daquele que emite um depoimento ou de uma instituição, sem necessidade de divulgar nomes e endereços. É necessário lembrar que existem graus diferentes de invasão de privacidade e isto deve ser levado em consideração ao estabelecer contato com os participantes de uma pesquisa e principalmente ao divulgar os resultados. Uma reflexão final sobre a questão ética relacionada com a utilização de imagens na pesquisa social. Na obra Dados visuais para pesquisa qualitativa, Banks nos oferece importantes elementos para a adoção de estratégias metodológicas adequadas: Tópicos éticos entram muito mais obviamente em questão quando pesquisadores sociais criam suas próprias imagens dos sujeitos de pesquisa ou usam e reproduzem essencialmente imagens privadas que eles forneceram, como fotografias de família [...] o ato de olhar para as pessoas – escopofilia, fixidez de olhar, vigilância, bisbilhotice – pode carregar complicados ecos no modelo panóptico de Foucault, especialmente quando conduzido por aqueles que detêm ou buscam um poder sobre aqueles assim observados. O poder não apenas de olhar, mas de gravar e disseminar, é um poder que todos os 16 Trata-se de um documento no qual o entrevistado concorda com a divulgação dos seus depoimentos e informações, geralmente com garantia de anonimato. 171 pesquisadores sociais que criam imagens devem reflexivamente abordar. Não pode haver regras absolutas ou diretrizes sobre isso (ainda que escritores como Trinh T,. Minh-há cheguem perto de condenar todos os projetos de filmes etnográficos produzidos pela “antropologia branca (BANKS, 2009, p. 114). Para Banks, no momento em que os dados visuais (fotografias ou filmes), são produzidos e divulgados o pesquisador perde o controle sobre as imagens geradas. Portanto, os desdobramentos exigem cautela sem comprometer, entretanto, a capacidade de produzir dados relevantes para a pesquisa científica. Trata-se da superação de um obstáculo metodológico, intensificado no mundo virtual, a ser enfrentado de forma correta, para que a liberdade de expressão não justifique excessos e erros sempre à espreita na pesquisa documental ou no trabalho empírico. Considerações finais O desafio dos pesquisadores no campo das ciências sociais é tornar cada vez mais científicos os estudos sobre a realidade social, especialmente os de abordagem qualitativa. A abrangência e poder explicativo dos diversos paradigmas teórico-metodológicos exigem estudos mais aprofundados, em perspectiva comparativa. Não há consenso em relação a quantos são e quais são e sobre as diferenças e semelhanças entre eles. Também há divergências em relação às denominações mais apropriadas para caracterizá-los. Esta tarefa exige um esforço coletivo de todos os sociólogos que se debruçam sobre os problemas e implicações da formação metodológica dos pesquisadores17. A exposição de alguns aspectos sobre o tema da ética na pesquisa também foi salientado neste estudo, na medida em que ele se constitui em elemento decisivo na superação de eventuais erros e distorções que costumam ameaçar a qualidade da pesquisa ao longo de todo o processo, desde a definição inicial até a coleta, análise e exposição dos resultados. Isto, aliado a uma atitude reflexiva em relação a preconceitos e estigmas presentes na realidade social (os quais devem ser neutralizados pelo pesquisador no seu trabalho científico), possibilitam a produção de conhecimentos mais qualificados sobre os fenômenos sociais. 17 Na obra de Appolinário (2009, p. 151), Dicionário de metodologia científica: um guia para a produção do conhecimento científico, encontramos uma proposta para classificação geral das pesquisas, segundo a finalidade, o tipo/profundidade, a origem dos dados, temporalidade, local de realização e natureza. Esta contribuição se constitui em importante avanço sobre os critérios de classificação. 172 O domínio da metodologia de pesquisa e das técnicas de coleta, processamento e análise de dados disponíveis é condição cada vez mais necessária à construção de conhecimentos científicos, com adequado grau de confiabilidade. No entanto, a complexidade da vida social exige a descoberta e consolidação de novas estratégias operacionais, numa perspectiva criativa de incorporação dos novos recursos provenientes do mundo virtual e audiovisual. Referências APPOLINÁRIO, Fabio. Dicionário de metodologia científica: um guia para a produção do conhecimento científico. São Paulo: Atlas, 2009. BANKS, Marcus. Dados visuais para pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. BLANCO, Alejandro. La Asociación Latinoamericana de Sociologia: una historia de sus primeros congresos. Sociologias, ano 7, n. 14, p. 22-49, jul/dez 2005. CRESWELL, John W. Projeto de pesquisa: método qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2007. DURKHEIM, Emile. As regras do método sociológico. São Paulo: Nacional,1978. FERNÁNDEZ-MOLINA, Juan Carlos. Derecho de autor y bibliotecas digitales: a la búsqueda del equilibrio entre intereses contrapuestos. 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