salman rushdie - Fronteiras do Pensamento
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salman rushdie - Fronteiras do Pensamento
SALMAN RUSHDIE LIBRETO PREPARATÓRIO SALMAN RUSHDIE (Índia, 1947) Expediente Fronteiras do Pensamento Temporada 2014 Curadoria Fernando Schüler Produção Executiva Pedro Longhi Coordenação-geral Michele Mastalir Coordenação e Edição Luciana Thomé Pesquisa Francisco Azeredo Juliana Szabluk Editoração e Design Lume Ideias Revisão Ortográfica Renato Deitos www.fronteiras.com © Escritor britânico. Autor de Os versos satânicos, obra que causou controvérsia no mundo islâmico. “Passei por momentos difíceis que alteraram minha forma de agir. Meu trabalho, curiosamente, não sofreu mudança. Uma das coisas que aprendi foi ter confiança no que pensava e escrevia.” VIDA E OBRA Brilhante e polêmico. Estas são duas palavras usadas Morando atualmente em Nova York, o escritor lan- com frequência quando se fala no escritor britânico Sal- çou em 2012 o livro Joseph Anton, pseudônimo usado man Rushdie. Nascido em Mumbai, na Índia, na década por ele durante o período no qual esteve recluso. O co- de 1940, Rushdie começou seus estudos no país natal e dinome foi inspirado em dois dos escritores que ele mais os concluiu em escolas e universidades da Grã-Bretanha. admira: Joseph Conrad e Anton Tchekhov. Entre suas Autor de dezenas de livros, traduzidos em diversos países, o escritor costuma abordar temas como religião e as conexões e diferenças entre Ocidente e Oriente, por meio do realismo fantástico. Apesar de ter publicado sua primeira obra em 1975, Grimus, tornou-se mundialmente conhecido em 1988, pelo livro Os versos satânicos. A publicação gerou polêmica e protestos da comunidade islâmica pela suposta ofensa ao profeta Maomé. O livro foi banido em dezenas de países e, como consequência, o Aiatolá Ruhollah Khomeini, líder máximo do Irã na época, proferiu a fatwa, instigando os muçulmanos a assassinarem Rushdie, que por causa disso foi obrigado a viver no anonimato por mais de dez anos. outras obras de destaque estão Os filhos da meia-noite, Vergonha e O chão que ela pisa. Os filhos da meia-noite virou peça de teatro, adaptada pelo próprio autor, e depois filme, lançado em 2012. Com o objetivo de garantir a segurança do elenco, as filmagens foram mantidas praticamente sob segredo, e a produção adotou no período um outro nome, Winds of change. Apesar da polêmica a respeito de sua obra mais famosa, Salman Rushdie teve seu talento reconhecido com a eleição para membro da Academia Americana de Artes e Letras e da Sociedade Real de Literatura, além de outros inúmeros prêmios de instituições da Europa, dos Estados Unidos e da Índia. Mesmo assim, a obra foi bem recebida em outros Atualmente, o escritor é professor honorário de Hu- países, especialmente na Inglaterra, onde foi finalista do manidades no MIT e University Distinguished Professor Booker Prize e venceu o Whitbread Award. na Emory University, ambos nos Estados Unidos. 6 7 IDEIAS Rushdie também costuma fazer uso das redes sociais e mantém um perfil no Twitter, com quase 700 mil seguidores. “A liberdade é a questão maior de nosso tempo. Não há segurança nem liberdade total. É preciso lutar por elas e conquistá-las. Pode soar paradoxal, mas a liberdade depende da segurança das instituições. Não existe outro caminho, senão regimes de direito que garantam o exercício da liberdade – e aqui entram a liberdade de expressão e a criação artística.” “Um dos aspectos mais estranhos de tudo isso é que ninguém pensava que duraria muito tempo. Eles diziam ‘silencie por alguns dias, deixe com os diplomatas e políticos e tudo será resolvido’. Em vez disso, no fim, passaram-se quase 12 anos.” “Quem sou eu? Minha resposta: eu sou tudo e todos cujos ser-no-mundo afetei e foram afetados por mim. Eu sou qualquer coisa que ocorrer após minha partida e que não teria acontecido se eu não tivesse existido. Não sou particularmente excepcional nisso; cada eu, cada um destes mais de seiscentos milhões de nós, contém uma multidão similar. Repito pela última vez: para me compreender, você terá que engolir o mundo.” “Os versos satânicos pode ser lido como um prólogo à nova era que começou a surgir em 1989, quando o planeta começou a encolher, e as fronteiras culturais começavam a se abrir. Ele foi publicado um pouco antes da queda do Muro de Berlim e da dissolução do império soviético. Serviu como faísca para a emergência do radicalismo islâmico no Irã e no Afeganistão e para o surgimento de grupos terroristas, como a al-Qaeda. De alguma forma, meu romance profetiza o 11 de setembro.” 8 9 ESTANTE “Eu acho que o valor do romance está em sua flexibilidade infinita, que o torna um instrumento único para espelhar o mundo e registrar a realidade. Olhe em retrospecto e você perceberá que os grandes romances o informam mais profundamente sobre um determinado período histórico do que qualquer outro tipo de documento. Até mesmo os historiadores reconhecem isso. Outra coisa importante sobre os romances é que eles manifestam visões únicas e pessoais do mundo. Poucas formas de arte são tão individuais, tão pouco dependentes da colaboração externa.” “O relativismo cultural é uma noção imbecil. É desprezível a ideia de que tenho de respeitar os preconceitos e ideias infames do outro só porque é outro. Se uma comunidade acredita numa religião baseada no assassinato dos inimigos, não tenho de respeitá-la. O relativismo cultural ignora a existência das diversas multiculturas. Todas as culturas do mundo são multiculturas: a europeia, a indiana, a brasileira. É preciso encontrar um modo de convivência de acordo com princípios básicos, o estado de direito e a igualdade.” 10 JOSEPH ANTON Joseph Anton: A memoir 1ª edição 2012 / Edição em português – Companhia das Letras, 2012 Em 1989, Salman Rushdie recebeu um telefonema que mudaria sua vida. Uma jornalista informava ao escritor britânico de origem indiana que o Aiatolá Khomeini, líder supremo do Irã, acabara de emitir uma fatwa contra ele – uma espécie de sentença de morte, lançada ao mundo todo. Seu crime foi ter escrito o romance Os versos satânicos. Rushdie adotou, na clandestinidade, o codinome Joseph Anton. Nesta obra ele procura relatar a realidade ora deprimente, ora cômica de se ter policiais armados vivendo consigo e de ter de criar laços com seus protetores; e escrever sobre os esforços para conseguir apoio e compreensão por parte dos governos, dos chefes de inteligência, dos editores, jornalistas e de seus colegas escritores. 11 HAROUN E O MAR DE HISTÓRIAS Haroun and the sea of stories 1ª edição 1990 / Edições em português – Companhia das Letras, 1998 e Companhia de Bolso, 2010 Rashid, um exímio contador de histórias, perde, um dia, o dom da palavra, e com isso fica sem seu ganha-pão e a sua alegria de viver. É então que seu filho Haroun descobre que toda a história vem de um grande mar de histórias. E ele decide partir nesta aventura em busca das palavras. VERGONHA Shame 1ª edição 1983 / Edição em português – Companhia das Letras, 2010 Vergonha se debruça sobre o nascimento do Paquistão e a violenta disputa pelo comando do novo país, revelando jogos de poder nas esferas pública e privada. 12 OS VERSOS SATÂNICOS The satanic verses 1ª edição 1988 / Edição em português – Companhia de Bolso, 2008 Neste romance, Salman Rushdie narra a história de dois atores indianos que se metamorfoseiam, um em diabo e outro em anjo, depois de caírem de um avião atacado por terroristas. Muitas coisas opõem e associam os acidentados; um é apolíneo, o outro dionisíaco; um é apocalíptico, o outro integrado; um é apegado à origem, o outro está decidido a conquistar nova nacionalidade. Este romance alegórico transita livremente entre o real e o fantástico, entre o bem e o mal, e entre a infinidade de opostos complementares e inconciliáveis da vida. 13 NA WEB OS FILHOS DA MEIA-NOITE Midnight’s children 1ª edição 1981 / Edição em português – Companhia das Letras, 2006 SITE OFICIAL www.salman-rushdie.com Nascido à meia-noite de 15 de agosto de 1947, momento oficial da independência da Índia, Salim Sinai tem seu destino imbricado com a história do país. Este livro é a história da Índia no século XX narrada em chave de realismo fantástico. Para complicar, Salim descobre que foi trocado na maternidade por outro recém-nascido. Na verdade, deveria ser um hindu de família pobre. Todos os mil e um indianos nascidos entre a meianoite de 15 de agosto e a uma hora da madrugada de 16 de agosto de 1947 desenvolveram poderes extraordinários; o de Salim é a telepatia, que lhe permite reconstituir a história de sua família desde 1910 e examinar os acontecimentos políticos e culturais da Índia. FACEBOOK https://www.facebook.com/rushdie 14 TWITTER @SalmanRushdie WIKIPEDIA http://pt.wikipedia.org/wiki/Salman_Rushdie ENTREVISTAS “Tenho o direito de contar minha vida” Entrevista para o jornal Folha de S. Paulo, publicada em setembro de 2012 http://is.gd/Rushdie1 (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/66833-tenho-o-direito-de-contar-aminha-vida.shtml) “Odeio o fundamentalismo” Entrevista concedida para a revista Época, publicada em setembro de 2012 http://is.gd/Rushdie2 (http://revistaepoca.globo.com/cultura/noticia/2012/09/salman-rushdie-odeio-ofundamentalismo.html) 15 The Paris Review Trecho (http://www.theparisreview.org/interviews/5531/the-art-of-fiction-no-186salman-rushdie) (http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13126.pdf ) Entrevista concedida à revista The Paris Review, publicada no verão de 2005 (em inglês) http://is.gd/Rushdie3 Trecho do livro Joseph Anton, publicado pela editora Companhia das Letras http://is.gd/Rushdie7 Direito à leitura nas prisões “Atravessei o túnel do medo” Entrevista concedida para a revista Veja e publicada maio de 2003 http://is.gd/Rushdie4 (http://veja.abril.com.br/140503/entrevista.html) Matéria publicada no Fronteiras.com sobre a participação de Salman Rushdie e outros escritores na campanha contra a recente proibição de envio de livros para presidiários http://is.gd/Rushdie8 (http://fronteiras.com/canalfronteiras/noticias/?16,198) VÍDEOS E LINKS Joseph Anton Resenha publicada no jornal The Guardian, em setembro de 2012, sobre o livro de memórias Joseph Anton (em inglês) http://is.gd/Rushdie5 (http://www.theguardian.com/books/2012/sep/23/joseph-anton-salman-rushdiereview) “Os versos satânicos não seria publicado hoje” Matéria do site da revista Veja sobre o lançamento de Joseph Anton, publicada em setembro de 2012 http://is.gd/Rushdie6 (http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/salman-rushdie-versos-satanicosnao-seriam-publicados-hoje) 16 17 ARTIGO UMA ENCRUZILHADA DE IDENTIDADES INVENTADAS POR CARLOS ANDRÉ MOREIRA Jornalista, mestre em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PPGLET) da UFRGS. Salman Rushdie e sua obra devem muito a uma descoberta desconcertante: a da sensação de ser “um outro”. Em seu livro mais recente lançado no Brasil, o alentado relato memorialístico Joseph Anton, Rushdie narra, além do período em que precisou viver sob proteção devido à fatwa lançada por autoridades islâmicas (falaremos disso na sequência), suas múltiplas raízes familiares. Filho de uma professora e de um advogado erudito de formação islâmica, mas ateu, Salman Rushdie nasceu em Bombaim, em uma família muçulmana de origem caxemire, no exato ano em que a Índia e o Paquistão se tornavam independentes do jugo britânico. Aos 12 anos, foi levado pelo pai 18 19 para estudar na exclusiva Rugby School inglesa. Tal cal- Rushdie, era Zhora Butt antes de se casar, e alterou um do de experiências só poderia mesmo moldar um escritor, nome que, para ela, evocava um período turbulento da mais do que fascinado, obcecado pela condição do estran- juventude, em que fora apaixonada por outro homem. geiro, cada vez mais comum no mundo contemporâneo. O grande salto na ficção de Rushdie se dá quando “Depois que ele se despediu do pai, usando o boné de ele decide assumir de vez sua condição de “outro” e fa- listras azuis e brancas da Bradley House e a capa de sarja, zer da alteridade e, principalmente, da estranheza que mergulhou em sua vida inglesa. O pecado da estrangeiri- só um forasteiro pode sentir a matéria-prima de sua fic- ce foi a primeira coisa que ficou clara para ele. Até aquele ção. Esse desconforto permanente do estrangeiro vai se dia, ele nunca pensara em si mesmo como o outro de al- aliar nos livros de Rushdie a uma imaginação que não guém”, escreve Rushdie em Joseph Anton, um livro enge- recua diante do inusitado e que não vacila em lidar com nhosamente construído como uma autobiografia em que personagens que estão eles próprios em busca de uma o escritor se apresenta como um personagem observado identidade e reescrevendo seu passado. Sua estreia literá- por um narrador em terceira pessoa que parece olhá-lo de ria se deu em 1975, com uma novela na qual decantava fora, ainda que conheça bem, óbvio, seus pensamentos vários elementos da ficção científica que havia devorado mais íntimos. Rushdie se reinventa como personagem de em sua juventude e os casava com aspectos que se tor- ficção, como seu autoritário pai havia ele próprio se rein- nariam característicos de sua ficção: o tom fabuloso, a ventado na vida real – nascido na aristocracia da velha contaminação do fantástico e os temas da cultura e a fé Délhi, Anis Din Khaliqi adotou o sobrenome Rushdie islâmica como ponto de partida. Grimus retoma um poe- em homenagem ao pensador árabe Ibn Rushd, conhe- ma místico sufista em que 30 aves vencem as dificuldades cido no Ocidente como Averróis. De acordo com o que de uma peregrinação em busca de um deus, apenas para o escritor conta em Joseph Anton, trocas de identidade descobrir que, ao cumprir sua jornada, elas próprias se não eram incomuns na família do escritor: a mãe, Negin transformaram na divindade que buscavam. 20 21 Publicado quando Rushdie tinha 28 anos, Grimus foi dá com Os filhos da meia-noite, romance publicado em uma estreia tardia que não teve grande repercussão. O 1981, após seis anos de trabalho intenso, e que venceu escritor olhava preocupado para seus colegas de geração o Man Booker Prize daquele ano, o principal prêmio li- que iam construindo uma obra e angariando reconheci- terário britânico. O romance viria a ser premiado outras mento enquanto ele parecia patinar. Como ele mesmo duas vezes, escolhido o “Booker of Bookers” em 1993 e declarou em uma entrevista à publicação literária norte- em 2008. No romance, um delírio ficcional superpovoa- -americana Paris Review: do por uma multidão de personagens, Rushdie encadeia “Veja, eu achava que minha carreira de escritor não histórias e episódios que funcionam como uma alegoria havia levado a lugar nenhum. Entrementes, muitas pesso- da Índia nos anos imediatamente anteriores e posterio- as daquela geração talentosa da qual eu fazia parte desco- res à independência do domínio inglês. Todas as crianças briram seu caminho como escritores numa idade muito nascidas na primeira hora de independência indiana cres- mais jovem. Era como se estivessem passando a jato por cem para descobrir que têm algum poder especial – e o mim. Martin Amis, Ian McEwan, Julian Barnes, William mais poderoso deles é justamente o protagonista, Salim Boyd, Kazuo Ishiguro, Timothy Mo, Angela Carter, Bru- Sinai, nascido exatamente à meia-noite da libertação e ce Chatwin – para citar apenas alguns” (em As entrevistas com a capacidade telepática de se comunicar com todos da Paris Review, volume 2. Companhia das Letras, 2012). os outros “filhos da meia-noite”. As surpreendentes ca- É apenas ao encontrar sua voz literária que Rushdie deslancha, fazendo de sua obra um imenso caldeirão de referências e tradições que, como nas histórias das mil e uma noites ou nos contos de fada europeus ou mesmo pacidades daquela geração, contudo, perdem-se gradativamente enquanto a Índia afunda em uma guerra contra o Paquistão e em uma ditadura – uma metáfora bastante explícita dos sonhos perdidos após a independência. nos desenhos animados de fantasia, funde ingredientes Depois de um caudaloso romance sobre a Índia, díspares em um cozido mágico. O marco dessa virada se Rushdie escreve Vergonha (1983), romance no qual a 22 23 independência do subcontinente é abordada, desta vez, a cada um dos capítulos do Alcorão) em favor das três pelo ângulo do Paquistão. Se em Filhos da meia-noite deusas cultuadas na cidade. Algum tempo depois, pro- um enigma de paternidade estava no centro da trama feriu uma outra sura, com conteúdo contrário, critican- (Salim, filho de um casal de saltimbancos pobres, fora do a adoração àqueles ídolos pagãos e justificando que a trocado na maternidade por Shiva, o verdadeiro filho primeira redação havia sido ditada a ele não pelo Anjo do rico casal indiano Sinai), em Vergonha o protagonista Gabriel, mas por Satã, o adversário, disfarçado de anjo. Omar Kayyám Shakil também remói a dúvida espinhosa A primeira sura foi apagada do livro. de quem são seus pais, já que três irmãs garantem, cada Esse episódio foi a inspiração para um dos múltiplos uma, ter dado à luz o garoto. Foi outro livro bem-recebi- plots que Rushdie incluiu no romance, que começa com do pela crítica, sucesso de vendas no Paquistão, em uma a destruição de um avião em um atentado a bomba, do fatia do mundo islâmico que pouco depois transformaria qual são salvos, como por milagre, apenas dois passageiros Rushdie em um dos autores mais conhecidos do planeta, – ambos, contudo, transformados, um deles em uma fi- pelos motivos errados. gura semelhante a um anjo, outra, em algo mais próximo Rushdie demoraria cinco anos a voltar às livrarias, a um demônio. A essa moldura, que segue as tentativas desta vez com o romance que mudaria inapelavelmente dos personagens em retomar os cacos de suas vidas, aliam- sua vida como o debate sobre liberdade de expressão. Os -se sequências oníricas nascidas da mente delirante de Gi- versos satânicos (que talvez tivesse uma tradução mais precisa em português como “Os versículos satânicos”) baseia parte de sua trama em um episódio aceito pelas biografias breel Farishta, o personagem que desenvolve a personalidade do anjo (e que pode muito bem, o romance também acena com essa possibilidade, ser esquizofrênico). canônicas de Maomé. Enquanto lutava para ser aceito É dessas sequências de sonhos que emergiram os tre- pela comunidade de Meca como um profeta autêntico, chos considerados ofensivos por autoridades islâmicas e o fundador do islamismo proferiu uma sura (nome dado que culminaram, em 1989, em uma fatwa lançada pelo 24 25 então governante do Irã, o aiatolá Ruhollah Khomeini. por excelência, o romance, equilibrada com elementos Uma recompensa em dinheiro e um lugar no paraíso fo- extraordinários que remetem à riqueza fabular da obra ram oferecidos a quem matasse o escritor culpado de des- fundadora de uma certa visão do Oriente, As mil e uma respeitar uma religião que o condenava sem que muitos noites. Cabem ainda nos caudalosos livros de Rushdie as tivessem sequer lido o romance de mais de 500 páginas tradições literárias hindus e muçulmanas, inspirações mi- que provocara toda a controvérsia. Uma década escondi- tológicas, quadrinhos, cinema (tanto o da pragmática es- do sob a vigilância de serviços de segurança, primeiro na cola norte-americana quanto o da colorida Bollywood), Inglaterra e mais tarde nos Estados Unidos, foi o resulta- história da arte, entre outras fontes. do, transformando Rushdie em um símbolo dos perigos do autoritarismo fundamentalista. Diferentemente de outros autores que só conseguem dar a liga a semelhante amálgama usando uma voz lite- À medida que o tempo passou e Rushdie conseguiu rária autoconsciente, em perene reflexão sobre o estatuto permanecer vivo, o perigo da fatwa diminuiu, embora a ficcional do romance e sobre os artifícios da própria li- condenação não tenha sido formalmente retirada e vol- teratura, Rushdie costura suas histórias, sempre copiosas ta e meia seja brandida como uma ameaça. Apesar das e imaginativas, com uma habilidade rara, como quem mudanças de endereço e da incerteza quanto ao futuro, alinha fio a fio em uma tapeçaria um desenho rebuscado Rushdie continuou produzindo, e agregou cinco roman- e detalhista. Rushdie não é, definitivamente, um partidá- ces, dois livros infantis e uma coletânea de crônicas à sua obra. No conjunto de sua obra, Rushdie se dedica a ilu- rio do minimalismo. Seus romances são construídos da enumeração vigorosa de situações e episódios. minar as marcas produzidas pelo contato entre o Orien- Mas além do casamento entre as tradições narrativas te e o Ocidente e qual o amálgama resultante do entre- do Ocidente e do Oriente – praticamente um lugar-co- choque de suas respectivas culturais estéticas e religio- mum da crítica quando se trata de Salman Rushdie –, sas. O escritor usa, para isso, da forma literária europeia algo a ser apontado como uma grande realização do es- 26 27 critor é a maneira bem-sucedida como conseguiu incorporar em seus livros a voragem da cultura pop. Rushdie não é o primeiro nem um dos poucos a abordar o pop em sua produção, mas tem entre seus méritos o fato de ser um dos autores que melhor trouxeram para suas páginas elementos que formam o panorama da cultura contemporânea. Rushdie não se furtou em falar apenas de música, mas do rock como tema de uma fábula agridoce em O chão que ela pisa. Ou trazer a dinâmica de morte/ ressurreição típica das “vidas” dos videogames para o centro de uma história infantil inspirada nos contos das mil e uma noites, como Luka e o fogo da vida. O que torna Rushdie peculiar, portanto, não é seu vigoroso furor pós-moderno. É o modo bem-sucedido como consegue, nos limites de uma forma que sempre almejou incorporar o máximo da realidade circundante, agregar até elementos que, nas mãos de outros autores, sempre pareceram indigestos. 28 29 ANOTAÇÕES ANOTAÇÕES