índice - Bertrand
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ÍNDICE Introdução: Rumo à Integridade .....................................................11 Primeira Parte: COMPREENDER O PERDÃO ............................21 Capítulo 1 Porquê Perdoar? ....................................................23 Capítulo 2 O Que o Perdão Não É ........................................39 Capítulo 3 Compreender o Caminho dos Quatro Passos .....51 Segunda Parte: O CAMINHO DOS QUATRO PASSOS .............71 Capítulo 4 Contar a História .................................................73 Capítulo 5 Dar Voz ao Sofrimento ........................................99 Capítulo 6 Perdoar ..................................................................125 Capítulo 7 Reatar a Relação ou Libertá‑la ............................151 Terceira Parte: TUDO PODE SER PERDOADO .........................167 Capítulo 8 Necessitar de Perdão ............................................169 Capítulo 9 Perdoar‑se a Si Mesmo .........................................199 Capítulo 10 Um Mundo de Perdão ..........................................219 Fontes ................................................................................................231 Agradecimentos ................................................................................233 INTRODUÇÃO RUMO À INTEGRIDADE «Ele tinha múltiplos ferimentos.» Ela explicou tudo com a pre‑ cisão de um médico legista. «Apresentava três ferimentos na parte superior do abdómen, indiciadores de terem sido usadas diferentes armas para o ferir, ou de ter sido golpeado por um grupo de pessoas.» A senhora Mhlawuli prosseguiu o seu pungente depoimento perante a Comissão para a Verdade e Reconciliação, descrevendo o desapa‑ recimento e homicídio de Sicelo, o seu marido. «Na parte inferior, também tinha ferimentos. Ao todo, eram quarenta e três. Atiraram ‑lhe ácido para a cara. Deceparam‑lhe a mão direita logo abaixo do pulso. Não faço ideia do que fizeram com a sua mão.» Invadiu‑me uma onda de horror e náusea. Chegou depois a vez de Babalwa, de dezanove anos. Tinha oito anos quando o pai morreu e o irmão tinha apenas três. Descreveu o sofrimento profundo, a perseguição policial e as privações por que passaram nos anos que se seguiram à morte do pai. Depois, acres‑ centou: «Eu e o meu irmão bem gostaríamos de saber quem matou o nosso pai.» As suas palavras seguintes deixaram‑me estupefacto e sem fôlego. «Queremos perdoar‑lhes. Queremos perdoar, mas não sabemos a quem nos devemos dirigir para o fazer.» Na qualidade de presidente da Comissão para a Verdade e Re‑ conciliação, é frequente perguntarem‑me como é possível o povo sul‑africano ter perdoado as atrocidades e as injustiças que sofreu 12 O LIVRO DO PERDÃO durante o apartheid. O caminho que percorremos na África do Sul foi bastante longo e traiçoeiro. Hoje é difícil acreditar que, até às primeiras eleições democráticas em 1994, o nosso país institucio‑ nalizava o racismo, as desigualdades e a opressão. Na África do Sul do apartheid, apenas os brancos podiam votar, só eles mereciam ter uma educação de nível superior e podiam aspirar ao progresso e às oportunidades. Decorreram décadas de protesto e violência. Muito sangue foi derramado durante a nossa longa marcha rumo à liberdade. Quando finalmente os nossos líderes foram postos em liberdade, receava‑se que a nossa transição para a democracia se transformasse num banho de sangue, vingança e retaliação. Mila‑ grosamente, optámos por ter outro futuro. Escolhemos o perdão. Naquele momento, percebemos que contarmos a verdade e sarar‑ mos a nossa história era a única maneira de salvar o nosso país da destruição certa. Não sabíamos até onde nos levaria esta escolha. O processo em que embarcámos com a ajuda da Comissão para a Verdade e Reconciliação foi, como qualquer verdadeiro crescimen‑ to, incrivelmente doloroso e profundamente belo. Também costumam perguntar‑me o que aprendi sobre o perdão com essa experiência e com as viagens que fiz ao longo da minha vida a muitos lugares em conflito e onde as pessoas sofriam, da Irlanda do Norte ao Ruanda. Este livro é uma resposta a esta pergunta, e a outra, não formulada, que lhe está subjacente: «Como perdoamos nós, de facto?» Este livro é dirigido a todos aqueles que necessitam de per‑ dão, seja por quererem perdoar, seja por precisarem de ser perdoados. Há dias em que gostaria de poder apagar todos os horrores que testemunhei e que ainda guardo na memória. Parece inesgotável a criatividade humana para fazermos mal uns aos outros, tal como não têm fim as razões que consideramos justificáveis para agirmos desse modo. Também é inesgotável a faculdade humana para curar. Existe em cada um de nós uma capacidade inata para retirar alegria do sofri‑ mento, para encontrar esperança na situação mais desesperada e para sarar qualquer relação que esteja a necessitar de ser sarada. DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU Gostaria de partilhar consigo duas verdades muito simples: não há nada que não possa ser perdoado e não há ninguém que não me reça perdão. Quando conseguir ver e compreender que todos estamos ligados uns aos outros — quer seja pelo nascimento, pelas circuns‑ tâncias ou simplesmente pela nossa humanidade partilhada —, então, saberá que isto é verdade. Foram muitas as vezes em que eu disse que na África do Sul não existiria futuro sem perdão. A nossa raiva e a nossa busca de vingança seriam a nossa destruição. Isto é verdade tanto para cada um de nós, em termos individuais, como para todos nós, em geral. Houve alturas em que cada um de nós sentiu necessidade de perdoar. Também houve momentos em que todos precisámos de ser perdoados. E todos esses momentos voltarão a repetir‑se. De uma maneira muito particular, todos nos destroçamos e todos nós magoamos outras pessoas. O perdão é a viagem que empreendemos para sarar as partes destroçadas. É assim que reconquistamos a nossa integridade. Quer tenha sido o algoz que me torturou com a maior das bru talidades, o companheiro que me traiu, o patrão que me preteriu numa promoção ou um condutor que me barrou a passagem durante a minha deslocação matinal, deparo‑me sempre com as mesmas possibilidades de escolha: perdoar ou perseguir a vingança. Ponderamos esta opção de perdoar ou não como os indivíduos, as famílias, as comunidades e o mundo profundamente conexo que somos. A qualidade da vida humana no nosso planeta não é mais do que a súmula das interações diárias que temos uns com os outros. Sempre que auxiliamos e sempre que fazemos mal, provo ca m os um impacto drástico no nosso mundo. Como somos humanos, algumas das nossas interações correrão mal, e então magoaremos alguém, saíremos magoados, ou ambas as coisas. Isso faz parte da natureza do ser humano e é uma inevitabilidade. O perdão é o meio que temos de voltar a repor essas interações 13 14 O LIVRO DO PERDÃO no bom caminho. É a nossa maneira de remendar o tecido social. É a forma e ficaz de evitarmos que a nossa comunidade humana se desmorone. Já perdemos a conta aos estudos que referem os benefícios do perdão em termos sociais, espirituais, psicológicos e até fisiológi‑ cos. No entanto, o próprio processo do perdão foi com frequência votado ao desconhecimento e olhado como um mistério. Sim, é bom e ajuda muito atirarmos o ressentimento para trás das costas, mas como conseguimos fazê‑lo quando fomos magoados? Claro que o melhor é não retribuirmos na mesma moeda, mas como conseguimos esquecer esse olho por olho, dente por dente, quando aquilo que nos foi tirado não nos pode ser restituído? E, será mesmo possível perdoar e ainda assim tentar que se faça justiça? Que pas‑ sos temos de dar para conseguirmos perdoar? Como conseguimos sarar todas as brechas que se abriram nos nossos corações e que advêm do facto de sermos criaturas frágeis? O caminho do perdão não é fácil de percorrer. Quando segui‑ mos por ele, temos de passar pelo meio dos baixios lamacentos do ódio e da raiva, de avançar pelo meio do sofrimento e da perda para encontrar a aceitação que é o marco do perdão. Claro que seria muito mais fácil percorrermos esse caminho se a estrada estivesse claramente delineada, mas não está. A linha divisória que separa aqueles que causaram o mal dos que foram maltratados também não é clara. Num determinado momento, todos nos encontramos na posição daquele que foi magoado para, no momento seguinte, sermos aquele que magoou alguém. E, pouco depois, transpomos os limites e avançamos na dor e na raiva. Todos cruzámos já muitas vezes essas linhas divisórias. Onde quer que se encontre, seja o que for que tenha feito ou o que lhe tenha sido feito, este livro é‑lhe dirigido a si e temos esperança de que o ajude. Em conjunto, analisaremos cada um dos aspetos do Caminho dos Quatro Passos do perdão: Contar a História, Dar Voz ao Sofri mento, Conceder o Perdão e Renovar a Relação ou Libertá ‑la. DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU Convidamo‑lo a juntar‑se a nós nesta viagem de cura e transfor mação. Não importa se tem dificuldade em avançar e em ultra passar o mal que lhe foi feito, ou se precisa de coragem para admitir o mal que você mesmo fez. Perdoar não é nem mais nem menos do que a maneira como conseguimos sarar o mundo. Saramos o mundo sarando‑nos a nós mesmos e a tudo o que nos vai na alma. O processo é simples, mas a sua concretização não é fácil. Escrevo este livro com a minha filha, Mpho, que é sacerdote anglicana e trabalhou muito intensamente com paroquianos e pere grinos em busca de perdão e de cura. Neste momento, encontra ‑se a fazer uma tese de doutoramento sobre o perdão, trazendo valiosos conhecimentos para este livro. E dá um valioso contributo com a história da sua própria viagem pelo Caminho dos Quatro Passos e com a luta que travou para compreender e perdoar outras pessoas. Este livro é um convite que lhe fazemos para percorrer connosco o caminho do perdão. Partilharemos consigo as nossas histórias pes‑ soais, as histórias de outros que nos inspiraram e ainda aquilo que aprendemos acerca do processo de perdoar. Vimos como a prática deste processo permitiu transformar situações e reatar em igual medida relações entre pessoas de família, amigos, estranhos e ini‑ migos. Vimos como foi possível eliminar o veneno de ligeiros atos de desprezo que podemos, sem dar por isso, infligir uns aos outros e trazer a cura na sequência dos atos de crueldade mais brutais que se pode imaginar. É nossa profunda convicção que não há ninguém incorrigível, nenhuma situação expurgada de esperança e nenhum crime que não possa ser perdoado. Se procura uma maneira de perdoar, temos esperança de conse‑ guir indicar‑lhe o caminho para a liberdade. Mostrar‑lhe‑emos de que forma pode fazer com que aquele que o prejudicou o deixe em paz e se liberte das mordaças e das algemas do rancor e da raiva que o mantêm preso à experiência por que passou. 15 16 O LIVRO DO PERDÃO Se precisa de ser perdoado, temos esperança de que este livro lhe mostre um caminho esclarecedor e sem obstáculos para que se liberte dos grilhões do seu passado, que o impedem de construir a sua vida. Quando nos tornamos testemunhas da angústia e do mal que causámos, quando pedimos aos outros para nos perdoa‑ rem e para nos retribuírem da mesma forma, quando perdoamos e reatamos as nossas relações, regressamos à nossa própria natureza intrínseca. A bondade faz parte da nossa natureza. Sim, fazemos muitas coi sas más, mas na sua essência a nossa natureza é boa. Se não fosse assim, não ficaríamos chocados nem consternados quando fazemos mal uns aos outros. Quando alguém faz algo abominável, essa notícia enche as parangonas dos jornais, porque é a exceção à regra. Vivemos rodeados de tanto amor, bondade e confiança que nos esquecemos de quão notável isso é. O perdão é a nossa maneira de reavermos o que nos foi tirado e de reabilitarmos o amor, a bondade e a confiança perdidas. Após cada ato de perdão, seja ele pequeno ou grande, avançamos rumo à integridade. O perdão é muito simples‑ mente a maneira como trazemos paz a nós mesmos e ao mundo. O Livro do Perdão foi escrito, antes de mais, para aqueles que precisam de perdoar. Fizemo‑lo, porque até aqueles que precisam de ser perdoados precisam de perdoar o mal que lhes foi feito. Não se trata de uma desculpa, nem de uma justificação para aquilo que fizemos, apenas o reconhecimento do mal que foi passando de mão em mão e de uma geração para outra. Ninguém nasce criminoso; ninguém nasce cruel. Cada um de nós nasce íntegro, mas essa inte‑ gridade pode facilmente ser desfeita. Na África do Sul, optámos por procurar o perdão em vez de per‑ seguirmos a vingança. Essa escolha evitou um banho de sangue. Foi uma escolha que esteve por detrás de cada injustiça. Como já referimos, pode escolher o perdão ou a vingança, mas e scolher a vin‑ gança implica sempre um preço demasiado elevado a pagar. Optar pelo perdão em vez da retaliação serve, em última instância, para DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU nos tornar pessoas mais fortes e mais livres. A paz chega sempre àqueles que escolhem perdoar. Eu e Mpho comprovámos de perto não só os efeitos de se beber o veneno mais amargo da raiva e do rancor — vimos como ele corrói e destrói de dentro para fora —, mas também como o doce bálsamo do perdão suaviza e transforma as situações mais virulentas. É por esta razão que podemos afirmar que existe esperança. Não entramos no caminho do perdão despreocupadamente, nem o percorremos sem alguma trepidação, que pode levar a um afas‑ tamento do plano traçado. Perdoar é conversar, e, como a maior parte das conversas importantes, necessita de uma linguagem clara, honesta e sincera. Este livro ajudá‑lo‑á a aprender a linguagem do perdão. Ao longo dos diversos capítulos, disponibilizamos exercí‑ cios vários, meditação e rituais que o guiarão e ajudarão a percorrer esse caminho. Temos esperança de que alguns dos exercícios lhe proporcionem conforto e alívio, e que também lhe inspirem com‑ paixão. Acreditamos que alguns dos exercícios também possam apresentar‑se aos seus olhos como um desafio. Seríamos acusados de demagogia se não lhe disséssemos que, à semelhança de qualquer conversa, o resultado do processo de perdoar não pode ser conhecido de antemão. Este livro não é uma cura para todos os males, nem uma panaceia. No entanto, é nossa convicção de que estas páginas o guiarão até ao resultado que pre‑ tende alcançar. Acreditamos que a leitura destas páginas o levará a adquirir as aptidões e a disponibilidade necessárias para compor as suas relações e, de uma forma significativa, contribuir para con‑ sertar o nosso mundo. Na África do Sul, ubuntu é uma maneira de dizer que o mundo tem um sentido. A palavra significa literalmente «humanidade». Prende‑se com a filosofia e a crença de que uma pessoa só é pes‑ soa através de outra. Por outras palavras, somos humanos apenas quando nos relacionamos com outros seres humanos. A nossa humanidade mantém‑nos ligados uns aos outros, e qualquer rasgão 17 18 O LIVRO DO PERDÃO no tecido de ligação entre nós tem de ser remendado para que todos formemos um conjunto íntegro. Esta interligação é a verdadeira essência de quem somos. Percorrer o caminho do perdão é reconhecer que os seus pecados lhe causam tanto sofrimento a si quanto a mim. Percorrer o cami‑ nho do perdão é reconhecer que a minha dignidade está profunda‑ mente relacionada com a sua dignidade e que cada erro nos atinge a todos negativamente. Mesmo quando reconhecemos a nossa interligação, o per‑ dão pode, ainda assim, ser um caminho difícil de percorrer. Haverá dias em que teremos a sensação de que por cada passo dado em frente recuamos dois. É uma viagem. E, antes de iniciar qualquer nova viagem, grande ou pequena, tem de haver a predis‑ posição para dar esse tímido primeiro passo em frente. Sem predis posição, será impossível realizar esta viagem. Antes da compaixão, vem a predisposição para sentir compaixão. Antes da transforma‑ ção, tem de existir a crença de que essa transformação é possível, bem como a predisposição para tal transformação. Antes do per‑ dão, tem de existir a predisposição para considerar a possibilidade de perdoar. Iremos acompanhá‑lo nesta viagem. Mesmo que pense que não existe a mínima hipótese de alguma vez conseguir vir a perdoar, ou que acredite que o que fez é tão hediondo que nunca poderá ser perdoado, nós caminharemos ao seu lado. Se tiver medo ou se se sentir inseguro, ou se duvidar que a sua situação possa sofrer alguma mudança, convidamo‑lo a experimentar fazê‑lo. Se já per‑ deu a esperança, se se sente paralisado pela culpa, submerso na mágoa e na tristeza, ou cheio de raiva, convidamo‑lo a vir connosco. Percorreremos este caminho consigo, porque acreditamos que é um caminho que trará a cura e a transformação. Convidamo‑lo a fazer esta viagem connosco, não por ser fácil, mas porque o caminho do perdão acabará por ser o único que valerá a pena percorrer. DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU A Prece antes da Oração Quero estar disposto a perdoar Mas não me atrevo a pedir a vontade de perdoar Caso ma dês E eu ainda não esteja preparado Ainda não estou preparado para que o meu coração se torne mais brando Ainda não estou preparado para voltar a ser vulnerável Nem para ver que existe humanidade nos olhos daquele que me atormenta Ou que aquele que me magoa também pode ter chorado Ainda não estou preparado para a viagem Ainda não estou interessado nesse caminho Faço uma prece antes da oração do perdão Concede‑me a vontade de querer perdoar Concede‑ma, não já, mas em breve Conseguirei sequer formular as palavras Perdoa‑me? Atrever‑me‑ei sequer a olhar? Será que me atrevo a ver o sofrimento que causei? Posso vislumbrar todos os estilhaços dessa coisa frágil Essa alma que tentou erguer‑se com as asas da esperança partidas Mas só de relance Tenho medo de o fazer E se tenho medo de ver Como posso não ter medo de dizer Perdoa‑me? Há algum sítio onde possamos encontrar‑nos? Tu e eu O sítio a meio caminho Na terra de ninguém 19 20 O LIVRO DO PERDÃO Onde possamos passar além das linhas Onde tu tens razão E onde eu também tenho razão E onde nós os dois estamos errados e errámos Podemos encontrar‑nos aí? E procurar o sítio onde começa o caminho O caminho que termina quando perdoarmos O que deve levar na viagem Todas as viagens necessitam de provisões. A sua viagem requer dois objetos necessários à sua cura: Arranje, por favor, um diário pessoal, que usará como complemento dos exercícios apresentados em cada capí‑ tulo. Será o seu «livro do perdão» pessoal. Pode ser um simples bloco de apontamentos, ou um diário especial que adquira para esse fim específico. Apenas você o lerá, devendo sentir‑se livre e seguro para registar nele os seus pensamentos, emoções, ideias e a sua progressão ao longo do Caminho dos Quatro Passos. Saia e procure uma pedra que lhe agrade, seja em que aspeto for. Pode ser bonita ou feia, mas não deve ser um seixo nem um pedregulho. Procure uma pedra com algum peso. Deve ser suficientemente pequena para poder ser transportada na palma da sua mão, mas suficientemente grande para que não a perca. Anote no seu diário o sítio exato onde a encontrou e o que lhe pareceu que ela tinha de apelativo. Seja bem‑vindo. Acabou de iniciar o Caminho dos Quatro Passos. CAPÍTULO 1 PORQUÊ PERDOAR? Em criança, foram muitas as noites em que, impotente, tive de assistir ao meu pai a agredir verbal e fisicamente a minha mãe. Ainda me recordo do cheiro a álcool, do medo estampado nos seus olhos e do desespero impotente que sentimos quando vemos pessoas que amamos magoarem‑se umas às outras de forma incompreensível. Desejo que ninguém passe por essa experiên‑ cia, sobretudo uma criança. Quando volto a essas memórias, sinto vontade de agredir o meu pai, como ele fazia à minha mãe, e de forma que eu não era capaz em criança. Vejo o rosto da minha mãe e recordo aquele ser humano gentil que eu amava tanto e que não fazia nada para merecer a dor e o sofrimento que lhe eram infligidos. Quando me recordo desta história, apercebo‑me de como o pro‑ cesso de perdoar é tão difícil. Racionalmente, sei que o meu pai cau‑ sou sofrimento, porque ele próprio estava a sofrer. Espiritualmente, sei que a minha fé me diz que o meu pai merece ser perdoado como Deus nos perdoou a todos. Apesar disso, continua a ser difícil fazê ‑lo. Os traumas que testemunhámos ou que vivenciámos continuam vivos na nossa memória. Até mesmo anos mais tarde, eles podem reavivar a dor dentro de nós sempre que os recordamos. Sente‑se magoado e em sofrimento? Trata‑se de uma dor nova ou de uma ferida antiga ainda por sarar? Lembre‑se de que aquilo 24 O LIVRO DO PERDÃO que lhe foi feito foi errado, injusto e imerecido. Você tem razão para se sentir indignado. E é perfeitamente natural que queira retaliar, magoando a outra pessoa se ela também o magoou. No entanto, respondermos dessa forma raramente nos satisfaz. Pen samos que sim, mas a verdade é que não. Se eu lhe der uma bofe‑ tada depois de você me ter dado uma a mim, isso não atenua a dor do que ainda sinto na cara, nem diminui a minha tristeza pelo facto de você me ter agredido. Na melhor das hipóteses, o que a retaliação faz é muito simplesmente permitir um breve período de acalmia da dor emocional que sentimos. A única maneira de vivermos a experiência da cura e da paz é perdoarmos. Enquanto não formos capazes de perdoar, permaneceremos fechados na nossa própria dor e afastados da possibilidade de vivermos a experiência da cura e da liberdade, privados da possibilidade de nos sentirmos em paz. Sem o perdão, ficamos prisioneiros da pessoa que nos fez mal. Ficamos ligados a ela por grilhões de amargura, presos a ela e encurralados. Enquanto não perdoarmos, ela será a guardiã da chave da nossa felicidade; será o nosso carcereiro. Quando per‑ doamos, reassumimos o controlo do nosso próprio destino, bem como dos nossos sentimentos. Tornamo‑nos os nossos próprios libertadores. Não perdoamos para ajudar a outra pessoa. Não perdoamos pelos outros. Perdoamos por nós mesmos. Por outras palavras, o perdão é a melhor forma de manifestarmos interesse por nós próprios. Isto é verdade tanto em termos espirituais como científicos. A CIÊNCIA DO PERDÃO Na última década, verificou‑se um incremento dos trabalhos científicos sobre o perdão. Enquanto outrora a discussão sobre este tema estava reservada aos religiosos, agora está a despertar DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU a atenção como disciplina académica, estudada não só por filó sofos e teólogos, mas também por psicólogos e médicos. Exis tem centenas de projetos de investigação sobre o perdão em curso nas universidades do mundo inteiro. Só a Campanha de Pesquisa do Perdão, financiada pela Fundação Templeton, tem quarenta e seis projetos de investigação diferentes sobre esta mesma temá tica.1 Existem até neurocientistas que, neste momento, estu dam a biologia do perdão e avaliam barreiras evolutivas no cérebro que impedem o ato de perdoar. Alguns deles estão até a tentar perceber se existe a possibilidade de haver no nosso ADN um gene do perdão. À medida que a investigação científica moderna vai evoluindo, as descobertas mostram claramente que perdoar transforma as pes soas em termos mentais, emocionais, espirituais e físicos. Em Forgive for Good: A Proven Prescription for Health and Happiness, o psicólogo Fred Luskin escreve: «Ficou demonstrado em estudos científicos fidedignos que o treino do perdão diminui a depres são, aumenta a esperança, faz decrescer a irritabilidade, melhora o contacto espiritual [e] aumenta a autoconfiança emocional.»2 Estes são apenas alguns dos benefícios psicológicos muito reais e concretos. A investigação científica também revela que as pes soas que se mostram mais dispostas a perdoar apresentam menos problemas de saúde física e mental, bem como menos sintomas físicos de stresse. À medida que cada vez mais cientistas documentam o poder curativo do perdão, vão também olhando para os efeitos corrosivos, em termos físicos e mentais, de não se perdoar. Mantermo‑nos agarrados à cólera e ao ressentimento e vivermos em permanente estado de stresse são aspetos que podem estar na origem de com plicações cardíacas e espirituais. Na verdade, diversos estudos 1 http//www.forgiving.org/campaign/research.asp. Frederic Luskin, Forgive for Good: A Proven Prescription for Health and Happiness, HarperCollins, Nova Iorque, 2002. 2 25 26 O LIVRO DO PERDÃO mostraram que o facto de alguém não perdoar pode ser um fator potenciador de risco de doenças cardíacas, aumento da tensão arte‑ rial e de uma diversidade de outras doenças crónicas relacionadas com o stresse.3 Estudos levados a cabo em medicina e psicologia também têm demonstrado que uma pessoa que permaneça agarrada à raiva e ao ressentimento corre o risco aumentado de sofrer de ansiedade, depressão, stresse e insónia, sendo muito provável que sofra de hipertensão arterial, úlceras, enxaquecas, dores nas costas, ataques cardíacos e mesmo de cancro. O inverso também é verda‑ deiro. O perdão genuíno pode transformar estas doenças. Quando o stresse, a ansiedade e a depressão são reduzidos, os distúrbios físicos que deles decorrem também o são. Os estudos continuarão a aferir os batimentos cardíacos, a ten‑ são arterial e a longevidade daqueles que perdoam e dos que não o fazem. Mais artigos de jornal serão escritos e a ciência acabará por demonstrar aquilo que as pessoas já sabem há milhares de anos — que perdoar nos faz bem. Os benefícios para a saúde são apenas o princípio. Perdoar também é libertarmo‑nos de quaisquer traumas e dificuldades que tenhamos vivido e reclamarmos a nossa vida como sendo apenas nossa. SARAR O TODO Aquilo que a investigação realizada nos campos da medicina e da psicologia não consegue estudar, quantificar ou analisar com toda a minúcia é a ligação profunda que temos uns com os outros e a vontade que existe em cada um de nós de conseguirmos viver em harmonia. 3 Everett L. Worthington, Charlotte Van Oyen Witvliet, Pietro Pietrini e Andrea J. Miller, «Forgiveness, Health, and Well‑Being: A Review of Evidence for Emotional Versus Decisional Forgiveness, Dispositional Forgivingness, and Reduced Unfor‑ giveness», Journal of Behavioral Medicine 30, n.o 4, pp. 291‑302, agosto de 2007. DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU É possível que a ciência esteja a começar a reconhecer aquilo que em África há muito se sabe, que somos verdadeiramente inter‑ dependentes, embora ainda não se consiga explicar em absoluto a necessidade que temos uns dos outros. A doutora Lisa Berkman, presidente do Departamento de Sociedade, Desenvolvimento Humano e Saúde da Harvard School of Public Health, estudou sete mil homens e mulheres. De acordo com as conclusões a que che‑ gou, as pessoas que se encontravam socialmente isoladas tinham três vezes mais probabilidades de morrerem prematuramente do que as que faziam parte de uma forte rede social. Ainda mais espan‑ toso para os cientistas foi o facto de os indivíduos com um círculo social forte e um estilo de vida pouco saudável (como fumadores, obesos e pessoas que não praticavam exercício físico), na verdade, viverem mais tempo do que outros que se inseriam num círculo social fraco, mas com um estilo de vida saudável.4 Um artigo avulso publicado na revista Science concluiu que a solidão era um fator de risco para as doenças e a morte superior ao tabagismo.5 Por outras palavras, a solidão pode matar mais depressa do que o tabaco. Esta‑ mos profundamente ligados uns aos outros, quer o reconheçamos, quer não. Precisamos uns dos outros. Evoluímos dessa forma, e a nossa sobrevivência ainda depende disso. Quando não recebemos cuidados nem atenção, quando senti‑ mos falta de solidariedade por nós, quando não somos perdoados, acabamos sempre por pagar um preço por isso. No entanto, não somos só nós que sofremos. Toda a nossa comunidade sofre, e, em última análise, todo o nosso mundo sofre. É suposto existirmos numa delicada rede de interdependências. Somos irmãos e irmãs, quer queiramos quer não. Tratarmos alguém como se essa pessoa fosse menos do que humana, menos do que um irmão ou uma 4 Lisa F. Berkman e Lester Breslow, Health and Ways of Living: The Alameda County Study, Oxford University Press, Nova Iorque, 1983. 5 Greg Miller, «Why Loneliness Is Hazardous to Your Health», Science, 14, vol. 331, n.o 6014, pp. 138‑40, janeiro de 2011. 27 28 O LIVRO DO PERDÃO irmã, independentemente do que tenha feito, é contrariarmos as próprias leis da nossa humanidade. E aqueles que quebram a corrente da interligação não conseguem escapar às consequências dos seus atos. Na minha própria família, as zangas entre irmãos propagaram ‑se até criarem distanciamentos intergeracionais. Quando irmãos adultos se recusam a falar uns com os outros por causa de uma qualquer ofensa, recente ou antiga, os seus filhos e netos podem ser penalizados por não viverem a alegria dos relacionamentos familia‑ res fortes. Os seus filhos e netos podem nunca saber o que esteve na origem do corte daquelas relações. Sabem apenas que «Não vamos visitar aquela tia», ou «Não conhecemos bem aqueles primos». O perdão entre os membros das gerações mais velhas pode abrir a porta a relacionamentos saudáveis e solidários entre as gerações mais novas. Se o seu próprio bem‑estar — a sua saúde física, emocional e mental — não for suficiente, se a sua vida e o seu futuro não forem suficientes, então talvez venha a perdoar para o bem daqueles que ama, da família que lhe é muito querida. A raiva e a amargura não só o envenenam como envenenam todos os seus relacionamentos, incluindo os que tem com os seus filhos. A LIBERDADE DO PERDÃO O perdão não está dependente das ações dos outros. Sim, não há dúvida de que é mais fácil perdoar quando o responsável pelo sofrimento manifesta remorsos e apresenta uma qualquer espécie de reparação do dano ou de restituição. Nesse caso, poderá sentir ‑se como se, de alguma forma, tivesse sido compensado pelo que lhe fizeram. Pode dizer: «Estou na disposição de te perdoar por me teres roubado a caneta e por depois ma teres devolvido; perdoo‑te.» Este é o padrão do perdão mais comum. Nesta linha de raciocínio, DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU o perdão é algo que concedemos uns aos outros, uma dádiva que fazemos a alguém, mas é uma dádiva que tem cordões a ela atados. O problema é que os cordões que prendemos a essa dádiva de perdão se transformam nas grilhetas que nos prendem à pessoa que nos magoou. Essas são as grilhetas cuja chave se encontra na posse do autor da ofensa que sofremos. Podemos definir as condições para conceder o perdão, mas a pessoa que nos ofendeu decide se aquelas condições são ou não demasiado onerosas para serem cumpridas. Continuamos a ser vítimas daquela pessoa. «Não falo contigo enquanto não disseres que estás arrependida!», gritava a minha neta, Onalenna, quando era pequena. A irmã mais velha, achando aquela exigência injusta e injustificada, recusava‑se a pedir‑lhe des‑ culpa. As duas permaneciam encerradas numa batalha de vontades, unidas pelo ressentimento mútuo. Existem dois caminhos para sair deste impasse: Nyaniso, a mais velha, pode pedir desculpa, ou Onalenna pode decidir esquecer o pedido de desculpa e perdoar‑lhe sem quaisquer condições. O perdão incondicional é um modelo de perdão diferente da dádiva com cordões. É um perdão concedido como um gesto benevo‑ lente, uma oferta gratuita feita sem qualquer c onstrangimento. Neste modelo, o perdão liberta aquele que ofendeu do peso da vontade da vítima — seja o que for que a vítima possa exigir para conceder o perdão — e da sua ameaça de vingança. Mas ele também liberta aquele que perdoa. Quem concede o perdão num gesto benevolente é imediatamente libertado do jugo que o mantém preso à pessoa causa‑ dora do mal. Quando você perdoa, fica livre para prosseguir com a sua vida, para crescer e para deixar de ser vítima. Quando você perdoa, liberta‑se do jugo e o seu futuro separa‑se do seu passado. Na África do Sul, a lógica do apartheid criou inimizade entre as raças. Alguns dos efeitos perniciosos desse sistema ainda perduram, no entanto, o perdão abriu‑nos a porta para um futuro diferente, que não se regerá pela lógica do nosso passado. No início deste ano, sentei‑me ao sol a desfrutar dos gritinhos de satisfação de um grupo 29 30 O LIVRO DO PERDÃO de meninas de sete anos que festejavam o aniversário da minha neta. Elas representavam todas as raças da nossa Nação do Arco ‑Íris. O futuro delas não é determinado pela lógica do apartheid. A raça não condiciona a escolha daqueles que terão como amigos, com quem constituirão as suas famílias, das suas carreiras, nem a escolha do sítio onde irão viver. O seu futuro está a ser traçado segundo a lógica de uma África do Sul nova e do perdão como um gesto benevolente. A nova África do Sul é um país em construção porque, depois de se desfazerem do pesado fardo de anos de precon‑ ceito, opressão, brutalidade e tortura, algumas pessoas comuns mas extraordinárias têm a coragem de perdoar. A NOSSA HUMANIDADE PARTILHADA Em última instância, o perdão é uma escolha que fazemos, e a capacidade para perdoarmos os outros advém do reconhecimento de que todos temos defeitos e todos somos humanos. Já todos come‑ temos erros e magoámos outras pessoas, e voltaremos a fazê‑lo. Sabemos que é mais fácil perdoar quando conseguimos reconhecer que os papéis poderiam ter sido invertidos. Cada um de nós poderia ter sido o autor da ofensa, em vez da vítima. Cada um de nós é per‑ feitamente capaz de cometer contra outras pessoas os mesmos erros que tenham sido cometidos contra nós. Embora possamos dizer: «Eu nunca o faria...», a humildade genuína responderia: «Nunca digas nunca.» Antes dizer: «Espero que, perante o mesmo tipo de circunstâncias, eu não o fizesse...» Mas, alguma vez o saberemos? Como explicámos na introdução, escrevemos este livro porque, na verdade, isto não é uma dicotomia. Não há ninguém que vista sempre a pele do autor da ofensa, como nunca ninguém será sempre a vítima. Em determinadas situações, fomos magoados, enquanto noutras situações fomos nós que magoámos alguém. E, por vezes, ocupamos os dois campos, como quando, no calor de uma discussão conjugal, DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU trocamos ofensas com os nossos companheiros. Nem sempre as agressões têm um grau equivalente, mas também não é isso que pre‑ tendemos analisar aqui. Os que gostam de comparar o mal que fize‑ ram com o mal de que foram vítimas acabarão por se ver atolados num turbilhão de vitimização e negação. Os que se consideram acima de qualquer reparo não olharam honestamente para o espelho. As pessoas não nascem a odiar‑se umas às outras, nem com von‑ tade de fazer mal aos outros. Essa é uma condição a que se chega pela aprendizagem. As crianças não sonham crescer para serem violadores ou assassinos, no entanto, todos os violadores e assassi nos foram um dia crianças. Há alturas em que olho para alguns daqueles que são descritos como «monstros» e acredito sincera‑ mente que ninguém sabe o que lhe está reservado. Não digo isto por pensar que sou uma espécie de santo. Digo‑o porque já me sentei com homens que estão no corredor da morte, já falei com antigos agentes da polícia que admitiram ter infligido a tortura mais cruel, já visitei crianças usadas como soldados que cometeram atos de uma perversidade repugnante e, em cada um deles, reconheci uma profunda humanidade, em muito semelhante à minha. O perdão é, na verdade, o gesto benevolente pelo qual permiti‑ mos que outra pessoa se levante, e que o faça com dignidade, para começar tudo de novo. Não perdoar conduz à amargura e ao ódio. À semelhança do ódio e do desprezo por si próprio, sentir ódio pelos outros corrói aquilo que para o próprio é vital. Quer o ódio seja pro‑ jetado para fora quer seja dirigido para dentro, é sempre corrosivo para o espírito humano. O PERDÃO NÃO É UM LUXO O perdão não é algo que pertence ao mundo da fantasia. Tem que ver com o mundo real. A cura e a reconciliação não pertencem à categoria dos feitiços. Elas não apagam a realidade de uma ofensa. 31 32 O LIVRO DO PERDÃO Perdoar não é fingir que o que aconteceu não se passou. Curar não lança um véu sobre a ferida. Mais do que isso, a cura e a reconci‑ liação têm de ser consideradas com honestidade. Para os cristãos, Jesus Cristo estabeleceu o padrão do perdão e da reconciliação. Ele perdoou os que o traíram. Jesus, o Filho de Deus, conseguiu apagar os sinais da lepra, conseguiu curar aqueles que eram diminuídos em termos físicos, mentais ou espirituais e conseguiu devolver a visão aos cegos. Também conseguiria apagar os sinais da tortura e da morte a que foi sujeito. Todavia, optou por não apagar essas marcas tão evidentes. Depois da ressurreição, apareceu aos seus discípulos. Na maior parte dos casos, mostrou‑lhes os ferimentos e as cicatrizes que tinha no corpo. É isto o que exige a cura. O com‑ portamento que é ofensivo, vergonhoso, abusivo ou humilhante tem de ser trazido à intensa e temível luz da verdade. E a verdade pode ser brutal. De facto, a verdade pode exarcebar o sofrimento; pode até piorar a situação. Todavia, se quisermos perdoar e curar realmente, temos de nos confrontar com o sofrimento. O CONVITE AO PERDÃO Nos capítulos seguintes, analisaremos o perdão em profundi‑ dade. Veremos o que ele não é e o que é na verdade. Entretanto, importa dizer que o convite ao perdão não é um convite ao esque‑ cimento, nem é um convite à alegação de que uma ofensa é menos dolorosa do que realmente é, nem é um pedido para se dissimular a fissura aberta numa relação, dizer que está tudo bem quando não está. Não é de somenos importância ser ofendido. Não é de some‑ nos importância ser abusado. Não é de somenos importância ser violado. Não é de somenos importância ser traído. O convite ao perdão é um convite para se encontrar a cura e a paz. No meu dialeto nativo, o Xhosa, uma pessoa pede desculpa dizendo: Ndicel’ uxolo (peço paz). A locução é muito bonita e de DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU uma profunda perspicácia. O perdão abre a porta à paz e à concór‑ dia entre as pessoas e cria espaço para a paz interior de cada um. A vítima não pode ter paz sem perdão. O agente da ofensa não terá uma paz genuína enquanto não for perdoado. Não poderá haver paz entre a vítima e o agente da ofensa enquanto o dano se interpuser entre os dois. O convite para perdoarmos é um convite para chegar‑ mos à humanidade do autor do dano. Quando perdoamos, reconhe‑ cemos a realidade de que ninguém sabe o que lhe está reservado. Se eu e o meu pai trocássemos de vidas, se eu tivesse experimen‑ tado viver as pressões e os momentos de grande tensão por que ele passou, se eu tivesse de suportar todos os fardos que ele teve de carregar, ter‑me‑ia comportado como ele? Não sei. Gostaria de ser diferente, mas não sei se seria. Há muito que o meu pai morreu, mas, se pudesse falar com ele hoje, gostaria de lhe dizer que lhe perdoei. O que lhe diria? Começa‑ ria por lhe agradecer tudo o que de maravilhoso fez por mim como pai, mas depois dir‑lhe‑ia que houve algo que me magoou imenso. Dir‑lhe‑ia o quanto aquilo que ele fez à minha mãe me afetou, o quanto aquilo me custou. Pode ser que me ouvisse, ou talvez não. Ainda assim, perdoar ‑lhe‑ia. Como já não podia falar com ele, tive de lhe perdoar no meu íntimo. Se o meu pai aqui estivesse hoje, quer ele me pedisse desculpa quer não, e mesmo que se recusasse a admitir que era errado o que fez ou que não conseguisse explicar a razão pela qual agiu daquela maneira, mesmo assim, eu perdoar‑lhe‑ia. E por que razão havia eu de fazer semelhante coisa? Percorreria o caminho do perdão com ele, porque sei que é a única maneira de sarar a dor que senti no meu coração jovem. Perdoar ao meu pai é para mim libertador. Quando eu deixar de o recriminar pelas ofensas que cometeu, a memória que tenho dele deixará de exercer qualquer controlo sobre o meu estado de espírito ou sobre a minha dispo sição. A sua violência e a minha incapacidade de proteger a minha mãe já não me definem. Já não sou o menino pequenino que se 33 34 O LIVRO DO PERDÃO acocorava com medo da sua cólera ébria. Tenho uma história nova e diferente. O perdão libertou‑nos aos dois. Somos livres. O perdão implica prática, honestidade, abertura de espírito e dis‑ ponibilidade (ainda que seja uma disponibilidade frágil) para tentar. Esta viagem de cura não é uma cartilha — um livro que tenhamos de ler e compreender. Esta viagem de cura é uma prática — algo em que temos de participar. É o nosso próprio caminho para o per‑ dão. Para perdoarmos verdadeiramente, temos de ter uma melhor compreensão do perdão mas, antes de mais, temos de compreender aquilo que o perdão não é. Isso é o que analisaremos no próximo capítulo. Antes de prosseguirmos, façamos uma pausa para escutarmos aquilo que o nosso coração ouve. Perdoar‑te‑ei As palavras são tão pequenas Mas existe um universo oculto no seu interior Quando eu te perdoar Todas aquelas amarras de rancor, dor e tristeza que se enrolaram em volta do meu coração desaparecerão Quando eu te perdoar Não mais me definirás Me aferirás, me avaliarás, nem decidirás que podes magoar‑me Eu não contei Mas perdoar‑te‑ei Porque conto mesmo Sou importante Sou maior do que a imagem que tu tens de mim Sou mais forte Sou mais belo E sou infinitamente mais valioso do que tu me consideraste DESMOND M. TUTU E MPHO A. TUTU Perdoar‑te‑ei O meu perdão não é um presente que te dou Quando te perdoar O meu perdão será um presente que se oferece a mim Em Síntese Porquê Perdoar • O perdão é benéfico para a nossa saúde. • O perdão possibilita a libertação do passado, a libertação de um responsável pela ofensa e a libertação da futura vitimização. • O perdão sara famílias e comunidades. • Perdoamos para não sofrermos, nem física nem mental mente, os efeitos corrosivos de nos agarrarmos à raiva e ao ressentimento. • Estamos todos interligados e a nossa humanidade é par tilhada. • O perdão é um presente que damos a nós próprios. 35