Dissertação
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Dissertação
8 INTRODUÇÃO O nosso trabalho surgiu de pesquisas iniciadas ainda na época da graduação em História. Nos períodos finais da graduação, houve um seletivo para estudantes que quisessem ingressar no Arquivo Público do Maranhão, exercendo a atividade de estagiário. Obtivemos aprovação nesse seletivo. Esta foi a oportunidade sem a qual, provavelmente, teríamos rumado para outra direção de pesquisa. Foi o estágio no Arquivo que abriu uma série de possibilidades de pesquisa. A mais atraente, sem dúvida, foi a possibilidade de trabalhar com os ofícios dos bispos 1 diocesanos do Maranhão ao Presidente da Província. Era realmente uma possibilidade bem promissora. O volume documental era imenso e as temáticas discutidas nos ofícios eram das mais interessantes. Por isso, nossa pesquisa surgiu quase que exatamente conforme um dizer de Júlio Aróstegui. Ela surgiu de um achado que terminou se harmonizando com as temáticas que sempre me atraíram. A pesquisa histórica surge de “achados” – de novas fontes, de novas conexões entre as coisas, de comparações – ou surge de insatisfações com os acontecimentos existentes, insatisfações que, por sua vez, são provocadas pelo surgimento de novos pontos de vista, de novas “teorias”, ou de novas curiosidades sociais 2. O desenrolar da pesquisa também apresentou certa similitude com o percurso de Carlo Ginzburg na confecção da sua História Noturna. Sobre o trabalho de pesquisa e análise das fontes, ele disse assim: Durante anos, partindo da documentação a respeito dos benandanti, procurei aproximar – tendo por base afinidades puramente formais – depoimentos sobre mitos, crenças e ritos, sem ter a preocupação de inseri-los em alguma espécie de moldura histórica plausível. A natureza das afinidades que eu confusamente andava procurando só a posteriori se esclareceu para mim 3. 1 Vide o Quadro II anexado ao final da dissertação. Nele consta a sucessão dos bispos do Maranhão no período de 1826 a 1898. 2 ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru, SP: Edusc, 2006, p. 470. Aspas do autor. 3 GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 26. 9 Muito disso aconteceu em nossa pesquisa. Ora, para uma documentação que surge como um achado não se vislumbra de início uma forma precisa de abordagem. Foi só com o avançar da análise dos documentos e o estudo da historiografia que as primeiras concatenações foram surgindo. Podemos dizer, sem qualquer receio, que foi a historiografia que tornou aquela documentação inteligível. Este consócio entre documentação e historiografia foi realmente decisivo na nossa pesquisa. O trabalho acadêmico é sempre dialogal. Nós todos estamos sempre dialogando com outras pesquisas, com outros autores, com outros campos do saber e quanto mais este diálogo for intenso, mais profícua será a nossa pesquisa. Tendo tido contato com a totalidade dos ofícios dos bispos e após o devido trabalho de contagem, catalogação, enumeração, organização e descrição, notamos que uma das temáticas mais recorrentes nos ofícios era aquilo que os bispos chamavam de “declínio do culto público”. Por isso, a nossa monografia de conclusão do curso de História teve como tema de abordagem os óbices postos ao culto público católico durante o século XIX. Mas nem de longe os ofícios dos bispos se encerram na temática do culto público. Sim, sem dúvida ela é a mais recorrente temática, mas há uma variedade bem grande de outros assuntos discutidos nos ofícios. Os ofícios dos bispos diocesanos do Maranhão constituem uma documentação muito densa e profusa. Trata-se de mais de 1.500 ofícios, sendo que o primeiro data de 1800 e o último de 1914. Pelo volume da documentação, pode-se dizer que a nossa pesquisa incorpora uma tendência atual percebida por Ronaldo Vainfas. Ele diz: A verticalização temática das pesquisas, bem como a preocupação cada vez maior com o tratamento das fontes e das evidências empíricas, têm conduzido os historiadores, nos diversos campos, a valorizarem muito mais o diálogo com a documentação e com a factualidade nela registrada. [...] Não por acaso, há quem qualifique boa parte da historiografia contemporânea como neo-historicista, apontando seu demasiado apego à pesquisa arquivística e a metodologias dedicadas a refinar a análise das fontes 4. Com efeito, os ofícios constituem uma documentação vastíssima. Nesses escritos encontramos um amplo panorama da Igreja Católica maranhense durante o século XIX, o que pode dar ensejo a pesquisas diversas. Neles, muitíssimas temáticas são discutidas. Além da 4 VAINFAS, Ronaldo. “Avanços em xeque, retornos úteis”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos domínios da história. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 322. Itálico do autor. 10 situação do culto público, os ofícios mostram como eram instáveis e problemáticas as relações entre o poder episcopal e o poder civil da província do Maranhão. Isso explica o fato de havermos decidido tratar das controvérsias ou dissidências entre a Igreja e o Estado na província do Maranhão. As situações de discórdia entre os dois poderes eram constantes. Da leitura e análise dos ofícios, percebemos que elas se acirraram e se aprofundaram na segunda metade do século XIX, sobretudo no recorte que compreende os anos de 1855 a 1875. Foi por isso que definimos o recorte temporal entre os anos de 1855 a 1875. Tomando os ofícios dos bispos do Maranhão como objeto de análise, a intenção neste trabalho é fazer um estudo da Igreja Católica 5 a partir da hierarquia, da ortodoxia, do cerne do poder eclesiástico provincial. Em linhas gerais, trata-se de um estudo sobre a relação entre a Igreja Católica e o Estado no Maranhão oitocentista. Dizer isso não significa muita coisa nem especifica o problema da nossa pesquisa. É assim que, dessa relação entre Igreja e Estado, selecionamos apenas um aspecto: aquilo que chamamos de discórdias ou dissidências entre a Igreja e o poder civil na província. Restringindo ainda mais este recorte, podemos dizer que essas discórdias serão vislumbradas a partir da análise de dois casos, que serão especificados no momento oportuno. É claro que quando dizemos “Igreja” ou “Estado” estamos usando de abstrações. Há como prescindir do uso de abstrações? Pensamos que não. Elas são úteis, sobretudo para fins didáticos. Onde, fisicamente, está a Igreja Católica? Quem é ela fisicamente? A Igreja Católica não é somente o papa ou os bispos reunidos. Onde ficariam os leigos nessa hipótese? Também não se diga que a Igreja está corporalmente no Vaticano. A existência objetiva da Igreja não se afere por esses parâmetros. A Igreja não é um indivíduo. Como disse Romano Guardini, a Igreja possui uma construção diferente da do indivíduo. As manifestações da sua vida, as épocas durante as quais ela se desenvolve lentamente, as suas lutas e as suas crises, o centro mesmo do seu ser, tudo isso é diferente nela e nos indivíduos 6. 5 Para evitar a constante repetição da expressão Igreja Católica, grafaremos por vezes apenas o termo Igreja. GUARDINI, Romano. O senhor: meditações sobre a pessoa e a vida de Jesus Cristo. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1964, p. 460. 6 11 Sem dúvida, “Igreja” é um termo genérico usado para se referir a uma comunidade de pessoas, com uma mentalidade própria, que se representa e representa o mundo de uma maneira que lhe é própria. Como qualquer comunidade, a Igreja possui lideranças. O nosso estudo está focado precisamente nisso, no ponto de vista das lideranças da Igreja. Assim, quando ao longo do nosso trabalho falamos em “Igreja Católica” no Brasil e mais especificamente no Maranhão, estamos nos referindo às lideranças da Igreja. Nosso trabalho faz uma análise dos pareceres e posicionamentos daqueles que estiveram na cúpula da hierarquia eclesiástica provincial: os bispos, e de sua relação (não raras vezes conflituosa) com a Presidência e demais autoridades civis provinciais. Como discute, a quem e a que recorrem os bispos diocesanos quando das divergências com o poder civil provincial? É presumível que os bispos foram em defesa da religião, mas a questão é: Quais os discursos legitimadores da Igreja que os bispos utilizavam? Ao longo do nosso trabalho, buscaremos possíveis respostas a esses questionamentos. Sem dúvida, nosso estudo tem caráter de história política. É também um estudo que tem como temática de abordagem algo que é clássico da historiografia: conflitos entre Igreja e Estado. Mas é certo que o trabalho é conduzido por um tipo de estratégia bem específica para tratar de uma temática já consagrada. Essa estratégia será evidenciada no primeiro capítulo. De fato, aconteceu conforme disse Ginzburg: foi só a partir da leitura de certos trabalhos e de “estudos realizados de maneira independente” é que as coisas “acabavam convergindo” 7. Foi a leitura de alguns trabalhos de nossos pares que nos inclinou a chamar de dissidência ou conflito aqueles episódios havidos entre os bispos e os homens do Governo. Imbuídos de tais leituras e analisando a documentação, notamos que o nosso enfoque é um dos mais verossímeis. Por isso que em grande medida o nosso trabalho é produto de uma atividade dialogal entre documentação e historiografia. Posto isso, gostaríamos de apresentar algumas informações8 importantes acerca dos ofícios. A primeira delas é que aproximadamente a metade daquele montante de mais de 7 GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 26. Vide o Quadro I anexado no final da dissertação. O quadro traz informações quantitativas acerca da totalidade dos ofícios dos bispos ao Presidente. A intenção ao fornecer este quadro é apenas informativa. Diga-se que o propósito não é analisar a totalidade dessa documentação. Já ficou posto que o recorte adotado compreende os anos de 1855 a 1875. Mesmo os 738 ofícios que foram expedidos ao longo desses vinte anos não serão todos objetos de estudo porque mais da metade desse total está inserida no rol dos ofícios estritamente burocráticos. 8 12 1.500 documentos é composta de “ofícios estritamente burocráticos”. Os ofícios inclusos nessa categoria são aqueles em que os bispos: 1. Acusam a recepção de cópias de Avisos Ministeriais; 2. Tratam sobre a programação da Semana Santa; 3. Convidam o Presidente para festividades de santos padroeiros e festejos em geral; 4. Solicitam o comparecimento do Presidente na Igreja Catedral para solenidades eclesiásticas; 5. Acusam o envio ou o recebimento da informação do falecimento de clérigos; 6. Acusam a recepção da informação de ter sido empossado (e entrado no cargo) um novo Presidente provincial; 7. Comunicam ao Presidente sobre candidatos em concursos para cargos eclesiásticos; 8. Informam ao Presidente da Província acerca da nomeação de clérigos para diversos cargos; 9. Acusam a recepção de cópias de atas e leis provinciais; 10. Simplesmente enviam, junto ao ofício, outros documentos anexados como, por exemplo: Cartas Pastorais e dispensa do preceito de abstinência de carnes durante a Quaresma. Observe-se que neste caso estamos chamando de burocrático o ofício que anuncia e que acompanha o documento anexo, e não este último. Certamente os documentos estritamente burocráticos, como esses acima citados, tiveram uma utilidade limitada para o nosso propósito. Neles, o teor é rigidamente mecânico. Por outro lado, naqueles ofícios em que junto seguem inclusos relatórios, pareceres, denúncias e deprecações, pudemos observar as opiniões e os posicionamentos dos bispos sobre determinado assunto. Sendo assim, foi sobre essa segunda categoria da documentação que incidiu o nosso trabalho de análise. Postas essas considerações, podemos dizer que, sob o aspecto estrutural, a dissertação está subdividida em quatro capítulos. O primeiro capítulo deve ser entendido como um prolongamento da Introdução. Nesse capítulo consta a discussão sobre as diretrizes teóricas e metodológicas que conduziram a pesquisa. Veremos ainda nessa parte, como são amplas as possibilidades de abordagem dos ofícios dos bispos. O segundo capítulo apresenta um possível contexto internacional que estaria funcionando como pano de fundo das dissensões entre a Igreja e o Estado, tanto no âmbito 13 nacional brasileiro como no âmbito provincial maranhense. Esse possível contexto internacional explica como, ao longo do século XIX, a Igreja Católica e o cristianismo de um modo geral, foram perdendo credibilidade. Esse contexto internacional pode ser entendido como o ápice de um longo processo de secularização da sociedade, processo esse que, no dizer de Nietzsche, culminou na “morte de Deus”. O terceiro capítulo suscita alguns aspectos que marcaram a relação entre a Igreja e o Estado no Brasil imperial. Esses aspectos são: o padroado e o beneplácito, ambos constitucionalizados pela Carta de 1824. Veremos como esses três aspectos foram os responsáveis por grande parte das divergências havidas entre eclesiásticos e autoridades civis. O último capítulo da dissertação é o núcleo de toda a pesquisa; nele consta propriamente a análise das dissidências que existiram entre a Igreja e o Estado na província do Maranhão. Mas não há só essa discussão no quarto capítulo. Ela é precedida pela exposição do cenário em que as dissidências foram desencadeadas, e também por algumas considerações acerca do bispado de D. Luis da Conceição Saraiva, que foi um dos protagonistas das controvérsias. Qualquer trabalho acadêmico é sempre incompleto. No fim, sempre apresentamos a versão que para nós parece mais verossímil. Sempre deslocamos a atenção para certas coisas em detrimento de outras. Talvez tenha sido por isso que Durval de Albuquerque Junior tenha dito que o fazer historiográfico é uma arte, a arte de inventar o passado, nas palavras dele. Uma obra de arte sempre deixa as marcas de seu autor. E o artista sempre exagera em certos traços, precisamente naqueles em que ele quer chamar mais a atenção do espectador. Pelos traços e pinceladas do pintor se pode perceber a escola a qual ele pertence e a que linhas de pensamento ele se filia. Assim mesmo ocorre com historiador, salvo, é claro, as devidas ponderações. De forma alguma o historiador é um pintor surrealista. Diríamos que o historiador se assemelha apropriadamente ao pintor realista, que é descritivo, analítico, que tenta representar com o máximo possível de fidelidade os personagens e temas que pinta. Com o propósito de ser o máximo possível fiel ao real, o pintor realista faz estudos de anatomia, de fisiologia, ele faz estudos sobre luz e perspectiva. Tudo isso faz o pintor realista com uma única intenção: apresentar, na medida do possível, uma representação condizente e fiel dos temas sobre os quais pinta. O historiador não muito se diferencia dessa categoria de pintores. 14 A intenção é basicamente a mesma, o que muda é o fato de o pintor usar cores e telas, e o historiador lidar com a palavra. Mas sem dúvida, se comparado ao pintor, o historiador está muito limitado. O pintor muitas vezes está diante daquilo que pinta, e o historiador escreve sobre coisas que não mais têm existência objetiva. O passado não mais existe. Nisso mesmo reside a complexidade do ofício historiográfico. “O passado”, disse Walter Benjamin, “só se deixa capturar como imagem que relampeja irreversivelmente [...]”. Por isso, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘tal como ele de fato foi’” 9. Sabe-se, além disso, que um texto sempre é o reflexo de seu autor. Conosco não poderia ser diferente. Este trabalho é produto de um momento específico da minha vida, um momento de redescoberta da fé, de redescoberta da plausibilidade da fé, e isso após um longo período de ceticismo. Paul Ricoeur costumava dizer que “[...] a filosofia não é simplesmente crítica, é também da ordem da convicção” 10. O mesmo podemos dizer sobre a historiografia: ela certamente é o exercício da crítica, mas também é a materialização da convicção. De que nos adianta tudo destruir sem nada construir? Postas essas considerações, iniciemos o trabalho. 9 BEJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012, p. 243. Aspas do autor. 10 RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Lisboa: Edições 70, 1997, p. 191 15 1 DIÁRIO DE PESQUISA: TEORIA E MÉTODO NO LIDAR COM OS OFÍCIOS DO BISPO DIOCESANO A intenção neste capítulo é apresentar um panorama geral que explique, sobretudo, a trajetória percorrida durante a pesquisa documental. É certo que esta etapa não se processou de forma isolada ou desencarnada; ela foi feita em plena associação à teoria e ao método. É diante da documentação que surgem as possibilidades de trabalho. É também diante dela que ficam patentes os óbices que o historiador não pode trespassar. É da leitura e análise dos documentos que se manifestam uma série de dilemas, tais como aqueles que se referem à organização da narrativa e à seleção da teoria e do método. Por isso, este capítulo tem um caráter de “diário de pesquisa”. Pode-se dizer que este é o capítulo mais subjetivo de toda a dissertação. Não é que os outros não sejam marcados pela subjetividade, mas neste aqui ela está bem mais evidente. Este capítulo é resultado dos impactos e dos influxos das leituras feitas ao longo dos últimos dois anos. Ele é o resultado de leituras muito proveitosas, boa parte delas apresentadas pelos professores durante as disciplinas do Mestrado. Este capítulo é o resultado de um certo amadurecimento que, felizmente, não foi marcado pelo ceticismo. O capítulo está organizado da seguinte forma: primeiro será apresentado um tópico que trata daquilo que denominamos de “percurso de trabalho”. Nele discutimos acerca dos desafios inerentes à pesquisa historiográfica; discutimos sobre os óbices postos ao historiador; evidenciamos os limites que lhes são postos, mas também apresentamos as credenciais que lhes autorizam a falar de uma maneira que nenhum outro pode. As questões suscitadas neste debate de caráter teórico estiveram presentes ao longo de toda a pesquisa. Também quisemos expor nesse primeiro tópico as amplas possibilidades de abordagem da documentação que utilizamos. No segundo tópico deste primeiro capítulo, a discussão está mais focada na especificação e exposição da teoria e do método condutores da nossa pesquisa e argumentação. Se no primeiro tópico suscitamos as amplas possibilidades teóricas e metodológicas de análise da documentação, no segundo tópico já está definida tanto a teoria como o método. Cabe nesse segundo momento tratar do suporte teórico-metodológico, bem como dizer em que sentido, em que medida e como esse suporte se relaciona com a nossa pesquisa. 16 1.1 O percurso de trabalho Como organizar a pesquisa? Que parâmetros tomar? Que conceitos adotar? É possível criar algum ordenamento para as coisas? Todas estas são dúvidas recorrentes em pesquisas de qualquer natureza. Tudo no início se afigura como um caos. O que se espera é que esse caos se dissipe à medida que a pesquisa e o estudo avançam. Mas como esse caos é dissipado? Ora, esta é a pergunta-chave de toda a pesquisa. Isso requer uma estratégia. É imprescindível definir um problema para, em seguida, definir uma estratégia de ação pertinente. Essa estratégia geralmente é representada pela teoria e pelo método. É por isso que as respostas obtidas por um trabalho em muito refletem o aparato teórico-metodológico adotado pelo pesquisador. Altera-se a teoria, altera-se igualmente a resposta dada ao problema. Entre outras coisas, é por isso que não só na historiografia, mas também nos demais campos do saber não há respostas perenes. A resposta que foi dada ontem, hoje é reavaliada à luz de uma nova teoria ou de uma nova sensibilidade teórica. Cumulado a isso, a historiografia possui algumas peculiaridades. Uma das mais importantes delas reside no fato de que o historiador é sempre um narrador. Com isso queremos enfatizar que “toda narrativa apresenta uma versão, um ponto de vista, sobre algo”11. Porém, disse Paul Ricoeur, “o historiador não é um mero narrador: [ele] fornece as razões pelas quais considera um fator e não outro a causa suficiente de determinado curso de acontecimentos” 12. Além disso, a sensibilidade historiográfica contemporânea identifica a história como um caleidoscópio. Dela não temos imagens unívocas. A depender da posição, dos instrumentos e do ponto de vista, conseguimos notar (a partir desse caleidoscópio) as mais variadas e multicores imagens. A metáfora do caleidoscópio quer dizer que a história não apresenta uma imagem única e monocromática, mas sim uma decomposição e uma sucessiva combinação de imagens com as mais variadas cores. Era para este fenômeno que Durval de Albuquerque Júnior queria chamar atenção quando disse: “O caráter relacional, contextual e plural de qualquer acontecimento histórico elimina a possibilidade de uma argumentação que 11 AMADO, Janaína. “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral”. In: Revista de História da Universidade Estadual Paulista. vol. 14. São Paulo: UNESP, 1995, p. 133. 12 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica. vol. 1. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012, p. 307. 17 tome, como ponto de partida, um ponto fixo” 13. Por isso dissemos que, a depender da teoria e do método, ou seja, a depender do ponto de vista que se tome, altera-se a resposta para o problema suscitado. Assim é que, para Durval de Albuquerque Júnior, “a interpretação em História é a imaginação de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se têm na mão”14. Os documentos com os quais o historiador se depara são “[...] monumentos esculpidos pelo próprio historiador, ou seja, o dado não é dado, mas recriado pelo especialista em História. O que se chama de evidência é fruto de perguntas que se fazem ao documento”15. É por tudo isso que a historiografia “[...] nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa e, portanto, guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico” 16. É também um fazer criativo porque os “documentos e outros vestígios do passado são tirados de seus propósitos e funções originais para ilustrar, por exemplo, um padrão que nem remotamente tinha significado para seus autores” 17. Onde está o prejuízo nisso tudo? Ora, isso não é prejuízo algum; apenas liberta e distingue a historiografia das ciências cartesianas. Assim é a nossa ciência. E não há erro ao chamar a história de ciência. Só haverá erro se tomarmos como parâmetro o modelo das ciências naturais. Mas as ciências naturais só se aplicam ao mundo físico e visível. O que se faz com todo o resto? Como se explica o mundo simbólico e as relações que não se veem? Quem explica a cultura, a religião e os demais fenômenos sociais e históricos? Há uma série de problemas e inquietações impassíveis da abordagem das ciências naturais. Elas ficam mudas quando se fala, por exemplo, em cultura. Assim é que tudo depende do conceito de ciência que temos em mente. Se nos pautarmos no paradigma cartesiano, certamente a historiografia não é uma ciência. Marc Bloch dizia: “Cada ciência tem sua estética de linguagem, que lhe é própria. Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre os quais muitos escapam à medida matemática” 18. Por conseguinte, onde calcular é impossível, impõe-se sugerir. Entre a expressão das realidades do mundo físico e a das realidades do espírito humano, o contraste é, em suma, o 13 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru: EDUSC, 2007, p. 58. 14 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63. 15 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63. 16 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63. 17 JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2001, p. 34. 18 BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 54. 18 mesmo que entre a tarefa do operário fresador e a do luthier: ambos trabalham no milímetro; mas o fresador usa instrumentos mecânicos de precisão; o luthier guia-se, antes de tudo, pela sensibilidade dos ouvidos e dos dedos. Não seria bom nem que o fresador se contentasse com o empirismo do luthier, nem que este pretendesse imitar o fresador 19. Ademais, se atentarmos para as contribuições de Certeau e de Aróstegui, veremos que a historiografia constitui um saber sofisticado, que não é inexoravelmente subjetivo, que requer um rigor, um fazer, uma técnica e uma erudição. É de Certeau, por exemplo, a seguinte consideração: Em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos mundanos ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. Este gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para construílas como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori 20. Assim como nas demais ciências, usamos de teorias, de hipóteses que estão passíveis de alteração e superação. Nós, historiadores, construímos nosso conhecimento. Que prejuízo há nisso? Não se está diante de um conhecimento hermético, e é justamente isso que possibilita o usufruto das potencialidades criativas e inventivas do historiador. Evidentemente que isso deverá ser feito com o auxílio de um suporte teórico-metodológico. O ofício historiográfico é um esforço hermenêutico, sendo que os intérpretes, os historiadores, “[...] não são ‘ausentes’. Voluntariamente ou não, eles se implicam na sua pesquisa e se engajam nas suas conclusões” 21. É claro que há uma dimensão artística no fazer historiográfico. Mas este fazer não se encerra em pura arte ou imaginação. O próprio Durval de Albuquerque alerta: “A narrativa histórica não pode ter jamais a liberdade de criação de uma narrativa ficcional” 22 . Ora, há necessidade de uma teoria e de um método para tornar a pesquisa inteligível. No dizer de Júlio Aróstegui, “sem uma teoria orientadora é possível 19 BLOCH, Marc. op. cit., p 55. CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 81. Itálico e aspas do autor. 21 DELUMEAU, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no ocidente (séculos 13-18). Bauru, SP: EDUSC, 2003, p. 14-15. Aspas do autor. 22 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. op. cit., p. 63. 20 19 pesquisar a história, mas dificilmente se poderá explicá-la”23. “Cada conceito que conquistamos”, diz Paul Veyne, “refina e enriquece nossa percepção de mundo; sem conceitos, nada se vê” 24 . As próprias “[...] fontes não funcionam sem um aparato teórico- crítico” 25. É por isso que a pesquisa deve se processar “[...] no sentido de um marco teórico; de concepções globais sobre o social-histórico. Somente nesses marcos, ainda que implicitamente, é possível formular perguntas, conjeturas, hipóteses enfim” 26. Daí a dedução é a seguinte: não somos por completo nem artistas nem cientistas no sentido cartesiano. A nossa subjetividade não é absoluta nem completamente irrestrita. A nossa invenção não é ex nihilo nem arbitrária; agimos mediados pela documentação. Assim é que estamos sempre em meio aos dilemas e a uma posição intermediária que parece intransponível. É por isso que, segundo Certeau, o historiador deve renunciar a qualquer posição de superioridade e demonstrar uma humildade de princípios que, ao mesmo tempo em que prossegue a sua marcha rumo à compreensão do outro, sabe que o enigma jamais será totalmente reabsorvido por aquilo que lhe resiste [...]. A história é, nesse sentido, o lugar privilegiado onde o olhar se inquieta 27. Neste sentido, “a erudição histórica tem por função reduzir a proporção de erro da fábula, diagnosticar o falso, correr atrás do falsificável, mas com uma incapacidade estrutural de alcançar uma verdade definitivamente estabelecida do vivido que passou” 28 . Aí está sucintamente descrito os dilemas que nos afligem, as fronteiras que não podem ser suplantadas. É importante que os limites sejam reconhecidos. Foi precisamente isso que fez o giro linguístico. Essa viragem linguístico-epistemológica considerou que “o problema essencial de toda crítica do discurso histórico é a necessidade de optar entre conceder à História um ‘conteúdo de verdade’ ou apenas de ‘verossimilhança’” 29 . É este o problema sempre atual que o historiador enfrenta. Diz Aróstegui que a resposta pós-modernista para isto foi que “[...] o historiador deve abandonar toda ingênua e perigosa ilusão de contribuir para 23 ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 476. VEYNE, Paul. O inventário das diferenças: história e sociologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, p. 30. 25 ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 480. 26 ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 476-477. 27 DOSSE, François. História e ciências sociais. Bauru, SP: Edusc, 2004, p. 212. 28 DOSSE, François. op. cit., p. 204. 29 ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 187-188. Aspas do autor. 24 20 um conhecimento científico, [pois] o explicável na obra histórica é seu caráter estético, onde o estilo é o mais importante” 30 . Ora, com efeito, o estilo não é o mais importante. Ele é relevante sim; no entanto, há rigores bem mais essenciais. O historiador não escreve uma novela, um poema, uma ficção. Peter Gay tem uma consideração importante sobre isso: “Uma cópia do universo”, disse Rebeca West, “não é o que se requer da arte; basta uma das insignificâncias”. Exatamente. Mas o que não se requer da arte é o que se requer da história: descobrir, por chocante que seja a descoberta, como era o velho universo, ao invés de inventar um novo. A diferença é simplesmente decisiva 31. Assim, o historiador usa técnicas de retórica, de erudição e de estilo não como fins em si mesmos, não como forma de contar uma fantasia da imaginação, mas sim como estratégia de falar sobre algo que teve uma existência objetiva no passado. Como disse Roger Chartier, é preciso lembrar que a ambição de conhecimento é construtiva da própria intencionalidade histórica. Ela funda as operações específicas da disciplina: construção e tratamento dos dados, produção de hipóteses, crítica e verificação de resultados, validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto. Mesmo que escreva de forma “literária”, o historiador não faz literatura, e isto pelo fato de sua dupla dependência. Dependência em relação ao arquivo, portanto em relação ao passado do qual ele é vestígio. [...] Dependência, continuando, em relação aos critérios de cientificidade e às operações que são o seu “ofício” 32. Diga-se ainda que existe sim uma pretensão de verdade na historiografia: “Abandonar essa intenção de verdade seria deixar o campo livre a todas as falsificações, a todas as falsidades”33. Ora, o passado objetivamente existiu. É desse passado que objetivamente existiu que o historiador tem a pretensão de falar. Quando nos expressamos dessa forma estamos considerando, inclusive, aquelas vertentes historiográficas que analisam o imaginário. Elas não contradizem o que foi dito aqui. Os pesquisadores dessa seara querem, por exemplo, “[...] compreender como é que funcionava de fato [e] o que é que podia ser a 30 ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 187. GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 175. 32 CHARTIER, Roger. “A história hoje: dúvidas, desafios, propostas”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 110. Aspas do autor. 33 CHARTIER, Roger. op. cit., p. 111-112. 31 21 cabeça de um camponês” 34 da primeira Idade Média. Este campo riquíssimo e promissor traz premissas que desagradam aqueles que desejam atribuir a todas as dimensões sociais unicamente os influxos dos poderes materiais e econômicos. O imaginário constitui uma perspectiva que desloca o centro das atenções para dimensões invisíveis e que, não obstante, são reais. Essas dimensões são tão reais que são capazes de dirigir e de coordenar a vida das pessoas. Os estudos sobre o imaginário estão atentos à seguinte noção de Jacques Le Goff: “Há fatos materiais, visíveis como as batalhas, as guerras, os atos oficiais dos governos; [mas] há fatos morais, ocultos, que nem por isso são menos reais” 35 . Vê-se, portanto, que o estudo do imaginário não é desencarnado. O imaginário é relevante justamente porque orienta condutas humanas que têm existência objetiva, sendo de fato “[...] o sentimento real que uniu socialmente muitos homens comuns, tão sensatos e egoístas como nós” 36. Assim também ocorre com o passado: ele teve existência objetiva; isso ninguém pode negar. Parece-nos que foi a isto que Paul Veyne se referiu ao dizer: “Materialmente, a História é escrita com fatos; formalmente, com uma problemática e conceitos”37. Edward Palmer Thompson também esteve de acordo com essa visão quando disse que o objetivo do historiador [...] é reconstituir, “explicar”, e “compreender” seu objeto: a história real. As teorias que os historiadores apresentam são dirigidas a esse objetivo, dentro dos termos da lógica histórica [...]. Nosso objetivo é o conhecimento histórico; nossas hipóteses são apresentadas para explicar tal formação social particular no passado, tal sequência particular de causação 38. O historiador reúne instrumentos e esforços para, de alguma forma e em alguma medida, acalmar inquietações presentes, problemas atuais, mas que não deixam de se associar com o passado que objetivamente existiu. Mais que qualquer outra categoria de estudiosos, os historiadores estão atentos ao que disse Wittgenstein: “Queremos compreender algo que já 34 LARDREAU, Guy. In: DUBY, Georges; LARDREAU, Guy. Diálogos sobre a nova história. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1989, p. 61. 35 LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 40. 36 CHESTERTON, G. K. O homem eterno. São Paulo: Mundo Cristão, 2010, p. 147. 37 VEYNE, Paul. op. cit., p. 6. 38 THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 67-68. Aspas do autor. 22 está aberto diante de nossos olhos. Porque, em um certo sentido, é isto que parecemos não compreender” 39. É o presente, é aquilo que está aí que muitas vezes nos inquieta. O que ocorre é que os historiadores se deparam com este entrave realmente intransponível e inevitável: “se é complicado ter conhecimento de algo que existe, então fica especialmente difícil dizer alguma coisa sobre um tema efetivamente ausente como é o passado [...]” 40. Acresce-se a isto o fato de que o sentido de um acontecimento para a sua posteridade está perpetuamente aberto a revisões. [...] A história é, em suma, inacabada no sentido de que o futuro sempre utiliza seu passado de novas maneiras. Mas este argumento não afeta em absoluto a questão de que uma interpretação é uma tentativa de oferecer uma explicação objetiva de um passado objetivo 41. Por isso, ousamos dizer que, assim como os filósofos, os historiadores estão à procura de sentido. O fundamento de toda inquietação é a busca de sentido. Sem desejar sentido, não há por que procurar nada. A postura mais coerente para quem nega este ponto de vista é concordar com Albert Camus; é tomar “o absurdo [...] como um ponto de partida” 42. Por absurdo ele entende o vazio, a completa ausência de sentido que muitas vezes culmina no suicídio. E culmina no suicídio porque matar-se, em certo sentido, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos. [...] Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo que instintivamente, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento 43. Assim é que Camus chega ao ponto em questão: Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, por que está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra 39 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009, p. 64-65. JENKINS, Keith. op. cit., p. 30. 41 GAY, Peter. op. cit., p. 191. 42 CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso, 2012, p. 18. 43 CAMUS, Albert. op. cit., p. 21. 40 23 prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo 44. O nosso ponto de vista é outro. Preferimos acreditar, como Paulo de Tarso, que as coisas se nos afiguram como absurdas porque “o nosso conhecimento é limitado” isso que “jamais compreendemos o bastante” 46 45 . É por . Vejamos as coisas como Kierkegaard que, mesmo diante do absurdo e do desespero, dizia: “A superioridade do homem sobre o animal está em ser suscetível de se desesperar” 47 . Não é que não haja sentido. No nosso caso, na historiografia, o sentido parece não ser unívoco nem dogmático. Trata-se um sentido em permanente reestruturação e sempre aberto a novos enxertos. Na historiografia, “o sentido não é algo estável, que poderia ser relacionado a uma posição absoluta” 48. É por esses e outros motivos que, como Pascal, temos a impressão de que “por mais que expandamos as nossas concepções para além dos espaços imagináveis, não geramos senão átomos em comparação com a realidade das coisas” 49. É evidente que o discurso historiográfico possui limites. Mas a consciência acerca dessas limitações não pode ser suicida a ponto de calar o historiador ou de equiparar a sua voz a voz dos demais. A voz do historiador é peculiar, tem um som próprio. O historiador não é um qualquer. Ele é alguém com formação acadêmica e com um nível de erudição que o diferencia dos outros. Esse é o ponto principal a ser reconhecido. Diz Aróstegui que “o trabalho historiográfico deve manter antes de tudo suas especificidades e resolver no seu próprio interior os problemas dos conceitos gerais, da representação, da linguagem” 50 . Ora, isso não poderá ser feito se estivermos morbidamente ciosos das limitações do discurso historiográfico e descurados dos domínios onde temos credenciais para exercer nosso ofício. Se há fronteiras que marcam os limites do discurso historiográfico, daí mesmo se deduz que há um território envolvido por essas fronteiras. Se é assim, se há um território que nos compete, então estamos lidimamente autorizados a falar sobre ele. Não é que os outros não possam falar sobre esse território. O que ocorre é que a historiografia tem, pelo menos, dois 44 CAMUS, Albert. op. cit., p. 21. “Primeira epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios”. Capítulo 13, 9. In: Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão. São Paulo: Paulus, 2008, p. 2010. 46 BLOCH, Marc. op. cit., p. 128. 47 KIERKEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 21. 48 MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes/ UNICAMP, 1993, p. 120. 49 PASCAL, Blaise. Pensamentos. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 79. 50 ARÓSTEGUI, Júlio. op. cit., p. 238. 45 24 mil anos de existência. Os saberes e as técnicas acumuladas durante esses séculos certamente deu aos historiadores credenciais que, no mínimo, os colocam num patamar distinto dos demais. É preciso estar atento para o fato de que essa discussão de caráter mais epistemológico acerca da historiografia foi inserida justamente porque ela esteve presente durante a pesquisa documental, durante a definição da forma de abordagem do problema e durante a produção da dissertação de um modo geral. Ora, trata-se de uma reflexão epistemológica; e uma reflexão dessa natureza nunca é sem sentido ou inoportuna. Passado este primeiro momento, gostaríamos de fazer uma exposição mais aprofundada da documentação, do problema que constitui o cerne da nossa pesquisa e das amplas possibilidades de abordagem deste problema. Já sabe o leitor que a documentação que utilizamos foi a correspondência oficial dos bispos do Maranhão ao Presidente da Província ao longo do século XIX. É claro que os ofícios dos bispos de forma alguma se encerram em mera correspondência burocrática, inócua ou desinteressada. Na análise desses escritos, levamos em consideração algo dito por Carlo Ginzburg: Naturalmente esses documentos não são neutros; a informação que nos fornecem não é nada “objetiva”. Eles devem ser lidos como produtos de uma relação específica, profundamente desigual. Para decifrá-los, devemos aprender a captar por trás da superfície lisa do texto um sutil jogo de ameaças e medos, de ataques e retiradas. Devemos aprender a desembaraçar os fios multicores que constituíam o emaranhado desses diálogos 51. É justamente porque a informação contida nesses documentos não é objetiva que eles são úteis. Importa aqui o ponto de vista dos bispos diocesanos, a sua versão sobre os fatos, e a forma como eles estruturaram seu discurso. Podemos dizer que neste trabalho “importa a versão, não o fato” 52. O problema central a ser analisado reside no seguinte: como a Igreja Católica, manifestada pelos seus expoentes máximos na província (os bispos), reagiu diante daquelas vicissitudes postas pela autoridade civil? Que fatores e discursos os bispos utilizaram a seu favor e a favor da Igreja? 51 GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Lisboa/ Rio de Janeiro: DIFEL/ Editora Bertrand Brasil, 1989, p. 209. Aspas do autor. 52 AMADO, Janaína. op. cit., p. 133. 25 No percurso de análise dos ofícios, algumas noções de Pierre Bourdieu foram bem relevantes. Elas nos ajudaram a descobrir uma dimensão importante dessa documentação. Vejamos, por exemplo, o que está mencionado a seguir: A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas sim um instrumento de poder. Não procuramos somente ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeitados, conhecidos 53. Partindo dessa noção, podemos dizer que as técnicas de retórica, de organização da escrita e de articulação das palavras foram utilizadas pelos bispos no sentido de persuadir, de ser obedecido e de evocar a sua autoridade como príncipe da Igreja. “Existe todo um aspecto da linguagem de autoridade que não tem senão a função de relembrar essa autoridade e de remeter à crença que ela exige” 54 . Ora, é isto mesmo que fazem os bispos ao longo de seus ofícios. D. Luis da Conceição Saraiva, ao desentender-se com o Inspetor da Tesouraria da Fazenda, diz assim: “Além da minha jurisdição de Diocesano, acresce-me a [...] de Delegado da Santa Sé Apostólica, em cujo exercício tenho atribuições para ingerir-me em todos os negócios da mesma Ordem [das Mercês]” 55. Em seus ofícios, os bispos insistem constantemente na observância da Constituição Imperial pelas autoridades civis, na proteção jurada à Igreja, nos postulados do Concílio de Trento e na moralidade. Mas o que se percebe na leitura desses ofícios é que a sensibilidade das autoridades civis acerca desses pontos muitas vezes destoava daquela que tinha os eclesiásticos. Ora, é justamente nesse desencontro de sensibilidades que repousa a causa dos embates entre a Igreja e o Estado. Quando diante desses impasses, os bispos suscitaram argumentos bem específicos. Eles colocaram o cristianismo católico como um elemento unificador e identitário da nação. Eles aduziram que o cristianismo esteve presente desde os primórdios do Brasil e que, portanto, constituía um elemento do que chamaríamos de memória nacional, a qual caberia ao Estado zelar. Era também por isso que, para os bispos, o alicerce e a estabilidade do Estado estavam na religião católica. 53 BOURDIEU, Pierre. “A economia das trocas linguísticas”. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. 2. ed. São Paulo: Editora Ática, 1994, p. 160-161. 54 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 162. 55 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 26 Nos ofícios, notamos ainda que os bispos analisaram os casos postos à sua apreciação com o auxílio de uma interpretação do passado. Nesse sentido, é plenamente possível dizer que em seus ofícios os bispos evocaram uma memória específica diretamente associada ao catolicismo, de forma a fortalecer a causa da Igreja e a convencer o Governo Civil de que naquelas controvérsias quem tinha razão eram eles, os bispos. Vejamos o seguinte trecho: Desde a paz da Igreja, e Século de Constantino Magno o Sacerdócio Cristão tem sido honrado, e socorrido pela beneficência, e liberalidade dos principais, dos governos [...] porque do mesmo sacerdócio a humanidade em desgraça tem participado os mais importantes benefícios 56. Como disse Michael Pollak, “a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis” 57 . Disse ainda o autor que, ao lado dos acontecimentos vividos pessoalmente pelos indivíduos, há uma segunda categoria de acontecimentos: os “vividos por tabela”. Isso quer dizer que [...] a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada 58. Diante disso, é possível inferir duas considerações: a primeira delas é que os bispos fizeram uma reapropriação do passado. Eles se identificaram com um passado bem distante do seu espaço-tempo. A segunda é que essa reapropriação do passado tem em vista a discussão de eventos que ocorrem no presente. Os bispos relacionam passado e presente no sentido de legitimar a causa da Igreja. É neste âmbito que se pode tomar outra noção de Pollak: a de enquadramento de memória. Para o autor, 56 Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Capitão de Mar e Guerra e Presidente da Província do Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 23/06/1837, Setor de Avulsos, APEM. 57 POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p. 9. 58 POLLAK, Michael. op. cit., p. 2. 27 o trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um semnúmero de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. [...] Toda organização política [...] veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma [...] 59. Neste exercício, os bispos recriaram o passado trazendo-o até o presente, conferindo-lhe significados. Ademais, fizeram eles uma projeção do futuro graças à faculdade da memória de transitar autonomamente entre as temporalidades 60. É possível considerar ainda o seguinte: muitas vezes ocorre que os homens deixem de ter uma ideia exata do lugar que ocupam no pensamento dos outros 61. Em grande medida este fenômeno parece ser experimentado pelos bispos quando eles falam, por exemplo, de “indiferença religiosa” e de “declínio do culto público”. Até agora temos falado dos ofícios sem dizer no que consiste esses documentos. Por ofício, deve-se entender a forma de correspondência oficial entre as autoridades do império. É preciso compreender que não se trata de um simplório ou desinteressado trâmite de papeis. Para entendermos melhor sua funcionalidade, basta termos em mente que o ofício é a forma de comunicação oficial entre as diversas autoridades intra e/ou extra provinciais. Por ser a forma de correspondência oficial, os ofícios obedecem a uma linguagem que lhe é própria, com termos e textos padronizados. Mas neste trabalho, veremos que os ofícios possuem não somente uma dimensão oficial, mas, sobretudo, oficiosa, ou seja, informal. Essas duas dimensões são plenamente perceptíveis quando da leitura dos ofícios dos bispos. Eles certamente utilizaram os ofícios com a finalidade oficial, mas não apenas com esta. Vejamos o favor que D. Marcos solicitou ao Presidente Luis Alves de Lima em benefício da viúva D. Rosa Álvares, [...] moradora na Vila do Rosário, [que] lamenta a sorte de um único filho Aprígio Antonio da Silva, que lhe servia de abrigo [...], e fazia ofícios de pai a cinco irmãos de menoridade, e em desamparo. Suas lágrimas enterneceram o coração do Bispo, que é o pai espiritual dos seus Diocesanos. A sobredita viúva nas amarguras da sua 59 POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p. 10. 60 AMADO, Janaína. op. cit., p. 132. 61 HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006, p. 35. 28 dor se persuadiu, que eu poderia advogar por seu filho preso a bordo da Charrua de guerra para ir para o Rio Grande 62. Leiamos ainda o pedido de D. Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré, bispo de Coimbra e conde de Arganil, [...] que tendo sido repetidas vezes convidado por diferentes Senhores desta Cidade do Maranhão, entre eles o Excelentíssimo Senhor Bispo Diocesano, para vir refugiar-se aqui da perseguição, que o Governo de Portugal lhe tem suscitado há mais de cinco anos, a fim de o obrigar a não cuidar mais do Rebanho, que a Divina Providência lhe confiara, forçado ultimamente a sair daquele Reino, para evitar ulteriores vexações [...] 63. Diante disso, são inegáveis os favores informais e também o peso político dos ofícios no que concerne ao relacionamento entre as autoridades. Vê-se que certamente há um percurso oficial e oficioso dessa correspondência. A intenção neste tópico inicial foi mostrar o máximo possível da caminhada percorrida ao longo da pesquisa que culminou neste trabalho. Este percurso envolveu teoria da história, envolveu metodologia e envolveu epistemologia. Cada um desses pontos, ainda que sucintamente, foi tratado neste tópico. Dizíamos no início que este capítulo seria, talvez, o mais subjetivo de toda a dissertação. Mas até aqui não se viu pura subjetividade. Houve sim um exercício de diálogo entre a nossa pesquisa e a pesquisa de outros que vieram antes e têm muito a dizer. É nesse caráter dialogal mesmo que, segundo Paul Ricoeur, reside a objetividade na historiografia. Disse ele: A esse anseio de conexão do lado do fato histórico corresponde a esperança de que os resultados obtidos por diferentes pesquisadores possam se acumular, por um efeito de complementaridade e de retificação mútuas. O credo da objetividade nada mais é senão essa dupla convicção de que os fatos relatados por histórias diferentes podem se conectar e de que os resultados dessas histórias podem se completar 64. 62 Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Coronel Luis Alves de Lima, 03/03/1841, Setor de Avulsos, APEM. 63 Ofício do Bispo de Coimbra e Conde de Arganil Dom Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazaré ao Presidente da Província do Maranhão, Baía de São Marcos a bordo do Navio Wilberforce, 22/06/1864, Setor de Avulsos, APEM. 64 RICOEUR, Paul. op. cit., p. 292. 29 Sendo assim, o ofício do historiador não se constitui de puro subjetivismo ou arbitrariedade volitiva. Nós utilizamos dos rigores científicos até onde é possível utilizá-los. Chega um ponto, porém, em que simplesmente a ciência se cala porque ela não tem nada a dizer em certos assuntos. São essas lacunas não preenchidas pela ciência que a erudição historiográfica tenta cobrir, ainda que modestamente. Também em nossa seara não há aquela situação de separação peremptória entre sujeito e objeto de pesquisa. Nós somos feitos da mesma substância daqueles que estudamos. Se notarmos isso, veremos que não há como escapar da subjetividade. Isso não pode ser visto como puro entrave, posto que este atributo é da natureza mesma do saber historiográfico. Sobre isso, disse G. K. Chesterton: Enquanto ignorarmos esse lado subjetivo da história, que mais simplesmente pode ser chamado de lado interior da história, sempre haverá limitação nessa ciência. Enquanto os historiadores não conseguirem fazer isso, a ficção será mais verdadeira que o fato. Haverá mais realidade num romance; isso mesmo, até num romance histórico 65. Além dessas reflexões de caráter epistemológico, quisemos, em continuidade da Introdução, apresentar considerações importantes sobre a documentação pesquisada. Com efeito, ela é bem rica e profusa. Apresentamos ainda os enfoques e as formas de abordagem que serão utilizadas de maneira associativa ao eixo teórico principal adotado neste trabalho. Agora é o momento de dizer precisamente qual é esse eixo teórico e de definir o método de análise dos ofícios. 1.2 Os ofícios: palco de representações Do título mesmo deste tópico já se presume qual a corrente teórica a qual filiamos o nosso trabalho. Trata-se da História Cultural. O nosso trabalho faz uma história política pautada no cultural. Neste sentido, uma das principais noções aqui utilizadas é a de representação. Os ofícios constituem um palco de representação justamente porque neles os bispos representam a posição que ocupam na Igreja e na sociedade. Estes escritos evidenciam as concepções de mundo dos seus autores. É justamente na medida em que os ofícios 65 CHESTERTON, G. K. op. cit., p. 147-148. 30 apresentam uma cosmovisão, que eles servem ao nosso propósito. A nossa análise se concentra nas representações que os bispos do Maranhão atribuíram a si enquanto autoridades religiosas e à Igreja Católica. Assim, pode-se dizer que os embates e controvérsias entre os bispos e as autoridades civis constituem, antes de tudo, “[...] lutas de representação, cujo objetivo é a ordenação da própria estrutura social” 66. Ademais, as dissensões entre Igreja e Estado envolvem diretamente o que Pierre Bourdieu chamou de capital simbólico. Este “não é outra coisa senão o capital econômico ou cultural quando conhecido e reconhecido, quando conhecido segundo as categorias de percepção que ele impõe” 67 . Adotando esta premissa, pode-se dizer que as dissensões entre os bispos e as autoridades civis ocorreram num plano simbólico, e que foram lutas simbólicas. Diz Bourdieu que essas disputas têm lugar porque [...] na luta pela produção e imposição da visão legítima do mundo social, os detentores de uma autoridade burocrática nunca obtêm o monopólio absoluto [...]. De fato, sempre existem, numa sociedade, conflitos entre poderes simbólicos que visam impor a visão das visões legítimas 68. O interessante é que os dois poderes conflitantes (Igreja e Estado) estavam formal e juridicamente unidos no século XIX. O próprio padroado, mantido na Constituição de 1824, foi objeto de controvérsias. Se isto mesmo era motivo de desentendimentos, como não supor que houve embates entre autoridades religiosas e homens do Governo? Nós nos centraremos, sobretudo, na dimensão simbólica desses embates. Aqui, “os enfrentamentos fundados na violência bruta, na força pura, se transformam em lutas simbólicas” 69 . Estes conflitos têm lugar numa esfera invisível e intangível, só acessível ao discurso. É neste sentido que o nosso estudo tomou como fundamental uma assertiva de Chesterton. Disse ele: “Está sempre teimosa e estupidamente repetindo que os homens lutam por fins materiais, sem refletir por um instante que os fins materiais quase nunca são materiais para os homens em luta” 70. Dessa forma, pode-se dizer que o nosso trabalho “é antes de tudo uma história das relações de forças 66 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS, 2002, p. 73. 67 BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p. 163. 68 BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990, p. 165. 69 CHARTIER, Roger. “Defesa e ilustração da noção de representação”. In: Fronteiras, Doutorados, MS, v. 13, n. 24, julho/dezembro, 2011, p. 20. 70 CHESTERTON, G. K. op. cit., p. 148. 31 simbólicas, uma história da aceitação ou da rejeição pelos dominados dos princípios inculcados, das identidades impostas [...]” 71. O conceito de representação aqui adotado é aquele proposto por Roger Chartier. Diz ele que as representações, [...] aspirando à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupos que as forjam [e] não são de forma alguma discursos neutros; produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade [...] a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas 72. Entender os ofícios dos bispos diocesanos enquanto palco de representações, sendo que estas estão alicerçadas em estratégias simbólicas, implica a avaliação de um ponto importante: a aceitação concedida (ou não) às representações, isso porque é do crédito concedido à representação que depende a autoridade do grupo ou do poder que a propõe. Assim, existem modalidades do fazer crer, procedimentos e dispositivos, discursivos ou formais, que objetivam coagir o leitor, sujeitá-lo, convencê-lo; por outro lado, existem formas de crença, variações possíveis diante dos mecanismos persuasivos, contrassensos, rebeldias, táticas 73. Dessa forma, assim D. Marcos, bispo do Maranhão, representa a Igreja: A Igreja sendo uma sociedade perfeita, recebeu do seu Divino Fundador todos os poderes necessários para seu governo espiritual. Ela pois só tem direito de estabelecer suas Leis, de variar, e regular sua disciplina sem ingerência de algum poder humano. Ela o exercitou efetivamente sob os imperadores idólatras, e o fato de se converterem estes, e abraçar a religião Cristã não lhes deu, nem lhes podia dar outro direito que o de protegerem, e manterem em seus estados 74. Nota-se, portanto, que analisar os ofícios com o auxílio da noção de representação e sob o prisma da História Cultural é um enfoque plenamente justificável. A pertinência desse 71 CHARTIER, Roger. op. cit., p. 108. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1998, p. 17. 73 CARVALHO, Francimar Lopes de. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, nº 01, 2005, p. 154. 74 Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Luis Alvares de Lima, 07/03/1840, Setor de Avulsos, APEM. 72 32 enfoque é corroborada ainda se notarmos o que disse o mesmo D. Marcos ao solicitar o aumento da côngrua concedida aos bispos do Maranhão por Lei do Orçamento de 22 de outubro de 1836: Todas as nações civilizadas em que se conserva amor à ordem, e à justiça, há respeito aos costumes, e às leis, jamais têm tolerado que a Mão Sagrada que abençoa, e distribui as graças espirituais, se estenda para mendigar o necessário alimento 75. Geralmente quando se fala de representações, subentende-se que há a imposição delas por estratégias linguísticas e discursivas. Mas no caso e no contexto que estamos analisando não se trata tanto da imposição, posto que no século XIX a Igreja Católica e o Estado brasileiro estavam associados juridicamente através da Constituição de 1824. Vejamos bem: é claro que ainda que indiretamente trata-se da imposição de uma representação. Mas não é tanto a imposição na acepção literal da palavra. Ora, é presumível que se o Estado reconhece uma religião oficial, ele deve acatar os ditames doutrinais e dogmáticos dessa religião. Muitas vezes, o que se percebe da leitura dos ofícios é que a argumentação dos bispos esteve orientada no sentido de relembrar as autoridades civis da relação jurídica de concórdia que unia a Igreja e o Estado. Redigindo os seus ofícios, os bispos supuseram que as autoridades civis partilhavam das mesmas crenças que eles, sobretudo porque o catolicismo era a religião oficial do Império. Mas é esta configuração mesma que possibilita a existência da polêmica e da controvérsia. Nesse sentido, disse Dominique Maingueneau que o exercício da polêmica presume a partilha do mesmo campo discursivo e das leis que lhe são associadas; [...] a polêmica supõe um contrato entre os adversários e, com ele, a ideia de que existe um código transcendente, reconhecidos pelos membros do campo 76. Até aqui ficou posto o direcionamento teórico do trabalho. É preciso agora apresentar o método utilizado na análise dos ofícios. Um método que está efetivamente atento aos influxos da História Cultural é a análise do discurso. Ora, é no discurso que se 75 Ofício do Bispo Dom Marcos Antonio de Sousa ao Capitão de Mar e Guerra e Presidente da Província do Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 23/06/1837, Setor de Avulsos, APEM. 76 MAINGUENEAU, Dominique. op. cit., p. 125. 33 consubstancia a representação. Analisar o texto, o documento escrito, sob a perspectiva do discurso é, no dizer de Eni Orlandi, “olhar o texto como fato, e não como um dado, é observar como ele, enquanto objeto simbólico funciona” 77 . Dessa forma, segundo a autora, o analista do discurso tem por objetivo averiguar a historicidade do texto, ou seja, a maneira que ele produz sentidos. Atento ao fato de que o discurso é estrutura e acontecimento, o propósito da análise do discurso “[...] é compreender como um texto funciona, como ele produz sentidos, sendo ele concebido enquanto objeto linguístico-histórico” 78. A análise do discurso revelou-se uma estratégia importante no lidar com os ofícios dos bispos diocesanos sobretudo porque ela [...] está interessada no texto não como objeto final de sua explicação, mas como unidade que lhe permite ter acesso ao discurso. O trabalho do analista é percorrer a via pela qual a ordem do discurso se materializa na estruturação do texto. [Assim,] feita a análise, não é sobre o texto que falará o analista, mas sobre o discurso 79. Ora, é precisamente por isso que o instrumental metodológico fornecido pela análise do discurso se harmoniza com o enfoque dado aos ofícios dos bispos. Esses documentos, como dissemos, serão tomados como palco do discurso e da representação, e não como escritos isolados. É precisamente neste sentido que a análise do discurso é uma estratégia metodológica útil ao nosso propósito. Dela vem a seguinte premissa, plenamente em consonância com o nosso enfoque: “Um texto é uma peça de linguagem de um processo discursivo muito mais abrangente” 80. Além dessas premissas gerais propostas pelo método da análise do discurso, gostaríamos de suscitar algumas considerações importantes enunciadas por Paul Ricoeur. Ele entende que o discurso escrito possui uma série de peculiaridades se comparado ao discurso falado. A escrita suscita um problema específico, já que não é apenas a fixação de um discurso oral prévio, a inscrição da linguagem falada, mas é pensamento humano diretamente trazido à escrita sem o estágio intermediário da linguagem falada. A escrita toma o lugar da fala. [...] No discurso falado, [...] a intenção subjetiva do 77 ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996, p. 58. 78 ORLANDI, Eni Puccinelli. op. cit., p. 56. 79 ORLANDI, Eni Puccinelli. op. cit., p. 60-61. 80 ORLANDI, Eni Puccinelli. op. cit., p. 61. 34 locutor sobrepõe-se de tal modo que é a mesma coisa entender o que o locutor pretende dizer e o que o seu discurso significa. [...] Contudo, com o discurso escrito, a intenção do autor e o significado do texto deixam de coincidir. [Assim] a carreira do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu autor. O que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer, quando o escreveu 81. Na escrita, “o discurso está [...] ligado a um suporte material, torna-se mais espiritual, no sentido de que é libertado da estreiteza da situação face a face” 82. É por isso que “faz parte da significação de um texto estar aberto a um número indefinido de leitores e, por conseguinte, de interpretações” 83 . Com a escrita, rompe-se a barreira imposta pela situação dialógica e é justamente por isso que “o texto liberta a sua significação da tutela da intenção mental do autor” 84. Wittgenstein já havia se referido aos problemas inerentes à linguagem quando disse: A dificuldade é, em rigor, a seguinte: ao queremos expressar um sentido totalmente determinado, subsiste a possibilidade de errar o alvo. Parece, pois, que, por assim dizer, não temos nenhuma garantia de que a nossa proposição seja realmente uma imagem da realidade 85. Ele aduziu ainda que: As convenções da nossa linguagem são extraordinariamente complicadas. A cada proposição acrescenta-se em pensamento muitíssimo que não é dito. [...] É claro: sei aquilo que com a proposição vaga quero dizer. Mas alguém não compreende e diz «sim, mas se tu queres dizer isso, terias de acrescentar – isto e isto»; então outrem não compreenderá e exigirá que a proposição seja ainda mais pormenorizada. Responderei então: sim, mas ISSO compreende-se por SI 86. Realmente Wittgenstein tinha razão: “A cada proposição acrescenta-se em pensamento muitíssimo que não é dito”. Trata-se de algo até involuntário. Assim, o autor supõe que o leitor conhece aquilo que está em discussão e simplesmente deixa de pronunciar 81 RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação. Lisboa: Edições 70, 2011, p. 45-47. RICOEUR, Paul. op. cit., p. 48. 83 RICOEUR, Paul. op. cit., p. 49. 84 RICOEUR, Paul. op. cit., p. 55. 85 WITTGENSTEIN, Ludwig. Cadernos (1914-1916). Lisboa: Edições 70, 1998, p. 100. Itálico do autor. 86 WITTGENSTEIN, Ludwig. op. cit., p. 104. Itálico do autor. 82 35 uma série de elementos ou conexões. O autor muitas vezes supõe que o leitor fará as mesmas concatenações mentais que ele (autor) e que, portanto, não haverá óbices à compreensão. Ora, é isso mesmo que acontece ao longo dos nossos trabalhos. Por certo, isso também ocorre nos ofícios dos bispos. Parece-nos que estes problemas inerentes à linguagem são intransponíveis. Essas considerações de Wittgenstein dialogam muito bem com aquilo que disse Ricoeur e Orlandi. Com efeito, é porque “as convenções da nossa linguagem são extraordinariamente complicadas” que o texto está aberto a um número indeterminado de interpretações e sentidos. Posta essa reflexão acerca das peculiaridades inerentes à linguagem, gostaríamos agora de dizer em que sentido a noção de representação se relaciona ao nosso trabalho. Isso, é claro, exige uma discussão. Disse Roger Chartier: “É do crédito concedido (ou recusado) às representações que depende a autoridade de um poder ou força de um grupo” 87 . Ora, é este mesmo o cerne do problema. Todo o século XIX é perpassado por um verdadeiro descrédito ou por uma relutância em aceitar aquilo que a Igreja Católica atribuía a si. O século XIX é quase um período de ocaso para o cristianismo católico. “No século XIX”, disse John Henry Newman, “a Igreja Romana não goza de grande popularidade, nem de riquezas, de glória ou de grandes esperanças para o futuro” 88. E não foi só o catolicismo; o cristianismo por inteiro sofreu sérios abalos no século XIX. Pode-se dizer, parafraseando Michel de Certeau, que este é um período em que “esgota-se o crer”, em que “a capacidade de crer parece estar em recessão” 89 . Segundo Certeau, na contemporaneidade ocorre uma alteração nos paradigmas do saber: a invisibilidade do real, premissa antiga, cedeu o seu lugar à visibilidade. “O simulacro contemporâneo é, em suma, a localização derradeira do crer no ver, é o visto identificado com aquilo que se deve crer”. E é assim que “a crença não repousa mais em uma alteridade invisível, escondida por trás de signos” 90 . Podemos dizer que é bem esse um dos cernes do problema enfrentados pela Igreja Católica durante o século XIX. É um problema no crer. É uma descrença não só na Igreja enquanto instituição, mas também no Deus propugnado pelo cristianismo. Talvez essa seja a causa mais profunda do problema. Se é assim, não se trata só 87 CHARTIER, Roger. op. cit., p. 108. NEWMAN, John Henry. Apologia pro vita sua: ou história das minhas opiniões religiosas. Rio de Janeiro: Edições Paulinas, 1963, p. 185. 89 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 278 e 280. 90 CERTEAU, Michel de. op. cit., p. 288-289. Itálico do autor. 88 36 de um entrave posto ao catolicismo, mas ao cristianismo de um modo geral. Nesse contexto, vemos o próprio Schleiermacher dizer: Sei que vós venerais tão pouco a Divindade no sagrado recolhimento como quando visitais os templos abandonados; sei que em vossas refinadas moradas não há outros deuses domésticos que as sentenças dos sábios e os cânticos dos poetas, e que a humanidade e a pátria, a arte e a ciência se têm apoderado por completo de vosso âmago que, para o Ser eterno e sagrado que reside segundo vós para além do mundo, não se deixa margem alguma e que não sentis nada a respeito dele nem com ele. Haveis conseguido fazer tão rica e polifacetada a vida terrena que já não necessitais da eternidade, e depois de vós haverdes criado um universo, vos sentis dispensados de pensar nele como vosso criador 91. Ora, “a localização do crer no ver” está em pleno desacordo com tudo aquilo que a Igreja Católica tem acreditado e proposto desde a sua fundação. O próprio apóstolo Paulo disse: “Não olhamos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” 92. Assim, a Igreja fala de realidades eternas e invisíveis, inacessíveis aos sentidos. Fala também de um Deus escondido e desconhecido que está impassível de objetivação. Os escritos dos Padres e Doutores da Igreja Católica evidenciam isso. Ireneu de Lião93, por exemplo, dizia o seguinte: São verdadeiramente grandes os depósitos dos tesouros celestes; incomensurável para o coração, ininteligível para a mente é o Deus que encerra em seu punho a terra. Quem saberá somente qual é a medida do dedo da sua mão direita? Quem poderá compreender tamanho de sua mão que mede o incomensurável e fixa a medida dos céus e encerra em seu punho a terra com seus abismos, que contém em si a largura, o comprimento, a profundidade e a altura de toda a criação visível, sensível, inteligível e invisível? 94. No mesmo sentido, São João Crisóstomo95 afirmava que “é o cúmulo da loucura tentar conhecer a essência de Deus”, pois “Deus é inexprimível, inconcebível, invisível e 91 SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre a religião: discursos a seus menosprezadores eruditos. São Paulo: Novo Século, 2000, p. 7. 92 “Segunda epístola do apóstolo Paulo aos Coríntios”. Capítulo 4, 18. In: Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão. São Paulo: Paulus, 2008, p. 2021. 93 Santo Ireneu de Lião viveu do ano de 130 a 202. 94 IRENEU DE LIÃO, Santo. Contra as heresias. 4ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2012, p. 425-426. 95 São João Crisóstomo viveu do ano de 347 a 407. 37 incompreensível. Ele ultrapassa a força da linguagem humana e escapa ao alcance da inteligência de qualquer mortal” 96. Diz ainda: Eu conheço muitas coisas cuja explicação ignoro. Por exemplo, sei que Deus está em toda parte e todo inteiro em toda parte; como está? Ignoro. Ele não tem começo nem fim, eu sei; mas de que modo? Não sei. Realmente a razão não alcança ser possível a uma essência existir sem receber o ser de si mesma ou de outro princípio. Sei que ele gerou um Filho, porém como? Ignoro. Sei que o Espírito procede dele, todavia como procede? Não sei 97. Isso não feria ou insultava o intelecto de São João Crisóstomo. Ele não se incomodava com o fato de crer em algo que o seu entendimento não decifrava por inteiro. Assim, dizer que Deus é incompreensível não significava para ele um entrave ou um óbice à razão. Significava tão somente, como ele próprio diz em referência ao apóstolo Paulo, que “‘o nosso conhecimento é limitado’, ou seja, aprendemos a parte de uma parte” 98. Pode-se inserir também o entendimento de Santo Atanásio99, que dizia: “negar a Deus, o autor e o criador da inteligência, é não ter inteligência” 100. A isto acrescentava: Já que não é a desordem que se vê no universo, mas a ordem, não a desmedida, mas a moderação, não a desarmonia, e sim a ordem, não é a desmedida, mas a medida, não a desarmonia, mas o cosmos, e a reunião harmoniosa do cosmos, é necessário refletir e ter uma ideia deste Senhor que reuniu e estreitou todos estes elementos e produziu entre eles harmonia. Ainda que seja invisível aos olhos, é possível, a partir da ordem e da harmonia dos elementos contrários, conceber o senhor, o ordenador e o rei de todas as coisas [...] porque a desordem é sinal da ausência da autoridade, mas a ordem faz conhecer o chefe 101. Também Santo Anselmo102, com aflição, se questionava sobre Deus: “Em que sinais e em que manifestações Te procurarei? Nunca Te vi. Não conheço a Tua face, Senhor 96 JOÃO CRISÓSTOMO, São. “Da incompreensibilidade de Deus”. In: JOÃO CRISÓSTOMO, São. Da incompreensibilidade de Deus; Da providência de Deus; Cartas a Olímpia. São Paulo: Paulus, 2007, p. 23 e 52. 97 JOÃO CRISÓSTOMO, São. op. cit., p. 22. 98 JOÃO CRISÓSTOMO, São. op. cit., p. 20. 99 Santo Atanásio viveu do ano de 296 a 373. 100 ATANÁSIO, Santo. “Contra os pagãos”. In: ATANÁSIO, Santo. Contra os pagãos; A encarnação do verbo; Apologia ao imperador Constâncio; Apologia de sua fuga; Vida e conduta de S. Antão. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2010, p. 90. 101 ATANÁSIO, Santo. op. cit., p. 101. 102 Santo Anselmo viveu do ano de 1033 a 1109. 38 meu Deus”. Dizia ainda: “Nem procuro entender para crer, mas creio para entender. Pois, até isto eu creio: que, se não acreditar, não entenderei” 103. Deve-se entender qual o propósito da inserção desses trechos de ordem teológica neste trabalho. A intenção é mostrar que foi construída uma teologia, uma forma de pensar sobre Deus e um discurso a seu respeito. O cristianismo construiu, enfim, uma forma de crer. Antes de adentrarmos na temática dos abalos sofridos pelo cristianismo durante o século XIX, é essencial tratarmos, ainda que perfunctoriamente, do modelo de crença proposto por ele. Nicolas Berdiaeff tinha razão quando disse que “no es posible comprender la estructura antirreligiosa sin haber comprendido antes la estructura religiosa” 104 . Isso explica a inserção dos fragmentos de ordem teológica. O cristianismo católico erigiu uma forma de ordenar a sociedade, a política e as relações de poder. Essa configuração tinha como premissa o seguinte: O poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente serlhes sujeitas e obedecer-lhe; de tal sorte que todo aquele que tem o direito de governar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos 105. Disso resultou o regime de consócio entre poder civil e poder religioso. Assim sendo, disse Gregório XVI106 que os príncipes devem considerar a autoridade a eles conferida “[...] não somente para o governo das coisas terrenas, mas de modo especial, para sustentar a Igreja. [Assim] é feito em favor de seu império e para a sua tranquilidade, o que se faz para a salvação da religião” 107. D. Luis da Conceição, bispo do Maranhão, se pronunciou no mesmo sentido quando disse: “Não desejo para o próprio interesse do Estado que os muros do Catolicismo, a cuja sombra verseja a árvore da virtude e da religião, sejam arruinados, 103 ANSELMO, Santo. “Proslogion”. In: ANSELMO, Santo. Proslogion, seguido do livro em favor de um insensato, de Gaunilo, e do livro apologético. Porto: Porto Editora, 1996, p. 21 e 23. 104 BERDIAEFF, Nicolas. El cristianismo y el problema del comunismo. 2. ed. Madrid: ESPASA-CALPE, 1936, p. 141. “Não é possível compreender a estrutura antirreligiosa sem haver compreendido antes a estrutura religiosa”. (tradução livre) 105 LEÃO XIII. Immortale Dei. “A constituição cristã dos estados”. In: Documentos de Leão XIII (1878-1903). São Paulo: Paulus, 2005, p. 239. 106 Gregório XVI foi papa de 1831 a 1846. 107 GREGÓRIO XVI. “Mirari vos”. Condenação do indiferentismo religioso e da liberdade de consciência, de imprensa e de pensamento. In: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX (1831-1878). São Paulo: Paulus, 1999, p. 41. 39 privando-se assim de sua sombra salutar que a ela se abrigam com fé” 108 . Desse contexto também se depreende que a autoridade política e civil não se constitui somente por leis humanas, mas, sobretudo, por leis eternas, emanadas do próprio Deus. De acordo com essa concepção, é porque o Governo está assentado sobre princípios divinos, que a autoridade civil deve atuar observando um parâmetro moral. Ora, toda essa configuração erguida pelo cristianismo católico foi duramente questionada ao longo de todo o século XIX. O arcabouço teológico cristão e a própria ideia de Deus foram objetos de críticas. Pode-se dizer que essa foi uma época de recusa da transcendência e da metafísica. O objeto do crer deve ser visível, tangível e plenamente acessível aos sentidos humanos. É, enfim, como disse Certeau: “a localização do crer no ver”. Havia mesmo um Deus, com existência objetiva e pessoal, ou ele constituía apenas uma fuga imaginativa, uma ilusão, um delírio dos homens? Essa foi uma inquietação de muitos pensadores do século XIX. Alguns deles propuseram uma reformulação no conceito de Deus. Outros ainda propuseram a completa abolição de Deus. Este assunto é o tema da reflexão do capítulo seguinte. 108 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Chefe de Polícia da Província do Maranhão, o Conselheiro Antonio Manoel de Campos Mello, 14/08/1862, Setor de Avulsos, APEM. 40 2 UM CONTEXTO INTERNACIONAL: A “MORTE DE DEUS” Desde já, gostaríamos de explicar o motivo da inserção da discussão acerca da “morte de Deus”, esta que talvez seja a mais famosa máxima de Nietzsche. Não há como fazer caber um século inteiro em poucas páginas. No máximo, o que fazemos é selecionar estrategicamente alguns elementos-chave, alguns conceitos, algumas conjunturas que funcionam como diretrizes na abordagem de determinado tema. É fora de dúvida que esse percurso muda a depender do historiador, do estilo da pesquisa e da sensibilidade do pesquisador. Em qualquer trabalho acadêmico o que nós fazemos é tentar montar uma espécie de esquema, devidamente fundamentado, que convença os nossos pares da plausibilidade do nosso ponto de vista. É claro que não se pode dizer que a construção desse esquema obedece a parâmetros fixos. Assim, o que é essencial para um determinado pesquisador pode não ser para o outro. Tudo termina dependendo de uma boa fundamentação e argumentação. Ao intitularmos essa parte do texto com a frase “um contexto internacional” queremos dizer o seguinte: não há o contexto internacional, mas sim um contexto possível e verossímil dentre vários outros. Sendo assim, o que faremos nas linhas a seguir é argumentar no sentido de justificar a plausibilidade desse contexto internacional que selecionamos, qual seja, o contexto da “morte de Deus”. O século XIX chegou ao fim com essa asserção de Nietzsche. É claro que foi no século XX que o peso dela foi sentido; mas foi no século XIX que a “morte de Deus” foi “constatada”. Pode isso não ser relevante para a nossa abordagem? Podemos ignorar que o XIX foi o século em que se disse: “Deus está morto”? Neste século se completou o processo que desligou a filosofia da ideia de Deus. Como pano de fundo para as dissensões entre a Igreja Católica e o Estado brasileiro na segunda metade do século XIX, tínhamos um contexto mais amplo no qual se proclamou a “morte de Deus”. Mas em que medida as ideias de filósofos como Nietzsche chegaram ao Brasil ainda no Oitocentos? Não sabemos responder. Provavelmente elas não chegaram nesse momento109. Mas não é este o ponto para o qual queremos chamar a atenção. Interessa aqui que a filosofia declarou a “morte de Deus” ainda no século XIX e que isso, sem dúvida, é algo que diretamente se relaciona não só com a Igreja Católica, mas com o cristianismo por inteiro. 109 Nietzsche “era um escritor cujas obras não tinham despertado muito eco entre os contemporâneos, mas que, cinquenta anos depois, iria aparecer à humanidade como o profeta dos seus abismos”. In: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja das revoluções: um combate por Deus. São Paulo: Quadrante, 2006, p. 9. 41 O processo de rompimento com a Igreja já estava consumado. “Esse movimento de ruptura havia de vir a precipitar-se no decurso dos séculos XVIII e XIX” 110 com a decretação da “morte de Deus”. A “morte de Deus” foi a declaração formal da concretização de um longo processo de secularização. A “morte de Deus” significa a morte de uma forma de inteligibilidade que os homens tinham de si mesmos e do mundo. É a morte de uma forma de compreender os homens e as relações que os envolvem. Isso com certeza deitou influxos na política. Se Deus está morto, não faz sentido o Estado ter ou professar uma religião. O Estado, então, deixa de conversar com a religião. Se Deus está morto, outra será a justificativa para o poder. Não foi sem razão que o Estado se separou da religião ainda no século XIX. Certamente, para que isso ocorresse concorreram vários outros fatores. É visível, portanto, que essa parte do nosso texto é continuidade da reflexão acerca da “recessão do crer”, iniciada no capítulo anterior. Tal recessão, como dissemos, não atingiu exclusivamente a Igreja Católica. Aqui não se trata de dissidências doutrinais ou dogmáticas entre uma e outra denominação cristã. Com o ateísmo, o cristianismo em si, o núcleo mesmo da fé (Deus), que é comum a todas as denominações cristãs é alvo de ataque. E não é apenas ateísmo; é, sobretudo, antiteísmo. Para compreendermos a situação, vejamos uma metáfora. Pode haver diálogo e reconciliação quando, por exemplo, duas pessoas dizem ter sido testemunhas de um homicídio. Elas podem divergir acerca de como o crime ocorreu, mas, sempre estão de acordo que houve o assassinato, pois presenciaram as evidências disso. Elas dizem que, vindo do outro quarto, ouviram as discussões, os xingamentos, a luta e, no fim, um disparo. Ao abrirem a porta, elas se depararam com um homem morto, sem qualquer arma por perto. Para as duas testemunhas, a existência daquele homicídio é fato inegável, restando apenas esclarecer as circunstâncias e os detalhes, que só ajudam a comprovar a existência do crime. Coisa totalmente diversa disso acontece com aquele que, sem nada ter presenciado e ao ouvir essa versão, pensa que as testemunhas imaginaram coisas ou deliraram e que nada daquilo relatado por elas é digno de crédito. Este ouvinte renegará terminantemente a versão oferecida pelas testemunhas e buscará outra explicação para o que ocorreu naquele quarto. Esta metáfora, com as devidas ponderações, auxilia na compreensão daquilo que pretendemos discutir nesta parte do trabalho. As testemunhas representam os cristãos. As 110 LUBAC, Henri de. O drama do humanismo ateu. Porto: Porto Editora, 1944, p. 20. 42 diversas denominações cristãs podem divergir no que tange aos aspectos dogmáticos e doutrinais. Pode, por exemplo, uma corrente cristã defender a doutrina dos santos, ou a virgindade perpétua de Maria, ou a eternidade das penas do inferno. Pode outra discordar disso tudo e postular a salvação pela fé, ou a abolição do celibato ou a predestinação. Todas as denominações cristãs podem em tudo discordar, mas num ponto elas estão em pleno acordo, qual seja: existe um Deus e este Deus foi revelado por Jesus Cristo. E Jesus, para os cristãos, é Deus mesmo. Esta doutrina culminou na ideia da Trindade de Deus que, nas palavras de Santo Agostinho, pode ser entendida da seguinte forma: “O Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só Deus, criador e governador de toda a criação” 111 . Neste mesmo sentido, consta no Símbolo “Clemens Trinitas” 112: A Trindade clemente é uma só divindade. Por isso, Pai e Filho e Espírito Santo é uma só fonte, uma só substância, uma só força, um só poder. Dizemos que o Pai é Deus, o Filho é Deus e o Espírito Santo é Deus, não três deuses, mas professamos com toda piedade um só Deus 113. Independentemente da denominação a qual pertençam, os cristãos são assim chamados porque acreditam em Deus da maneira como ele foi descrito por Cristo. O mesmo se passa com o entendimento dos cristãos acerca da instituição da Igreja. “Están perfectamente de acuerdo los cristianos entre sí sobre este punto: que la Iglesia ha sido instituída por Cristo” 114. Retornando à explicação da metáfora, pode-se dizer que o ouvinte da versão das testemunhas percorre uma trajetória diferente. Por considerar o depoimento das testemunhas uma versão incrível, o ouvinte buscará uma explicação mais plausível ao seu entendimento. O ouvinte não vê nenhum sentido ou lógica no relato das testemunhas, e ignora completamente a versão por elas apresentada. É por isso que ele foi à procura de outra explicação, totalmente desligada daquilo que foi relatado pelas testemunhas. Algo parecido com isso sucedeu com 111 AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 286. “Esta fórmula foi chamada também ‘Fides catholica Sancti Augustini episcopi’ e teve origem no século V/VI na França meridional”. In: DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 2. ed. São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2013, p. 39. 113 DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. 2. ed. São Paulo: Paulinas; Edições Loyola, 2013, p. 39-40. 114 SOLOVIEF, Vladimiro. Rusia y la iglesia universal. Buenos Aires: Libreria Santa Catalina, 1936, p. 149. “Estão perfeitamente concordes os cristãos entre si sobre este ponto: que a Igreja foi instituída por Cristo”. (tradução livre) 112 43 alguns pensadores do século XIX. Vendo no teísmo uma explicação fantasiosa, insuficiente, ilusória e irracional dos fenômenos, tais pensadores romperam com Deus. Os esforços diferentes, mas na verdade convergentes, de todos esses espíritos, levavam a recusar qualquer fé num ser transcendente, era propriamente “o conflito entre crer e não crer”. O Deus revelado da religião cristã passava a ser discutido; segundo alguns, radicalmente suprimidos 115. Nietzsche, por exemplo, dirá o seguinte: “Eu próprio não creio que jamais alguém tenha olhado para o mundo com uma suspeita tão profunda, e não apenas como ocasional advogado do diabo, mas também, para falar em termos teológicos, como inimigo e provocador de Deus” 116. Parece que Nietzsche tinha razão. É claro que antes dele e antes mesmo do século XIX existiram pensadores ateus. Cite-se, por exemplo, o barão d’Holbach117, iluminista francês. No entanto, não se pode dizer que a totalidade dos filósofos iluministas afastou-se da ideia de Deus. Alguns deles se mantiveram deístas118. Foi esse o caso de Voltaire. Disse ele: As nações ditas civilizadas [...] não encontraram antídoto mais poderoso contra os venenos que devoravam a maioria dos corações do que o recurso a um Deus recompensador e vingador. [...] Que outro freio podia, pois, ser posto à cupidez, às transgressões secretas e impunes, além da ideia de um senhor eterno que nos vê e que julgará até mesmo nossos pensamentos íntimos 119. “Voltaire, em suma, tinha sempre o cuidado de salientar a necessidade social de uma divindade” 115 120 . A sua divindade era, antes de tudo, um recurso útil, pragmático, uma DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 21. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 19. 117 “O barão d’Holbach (1723-1789) esforçou-se por desenvolver em ‘sistema’ coerente – e especificamente em sentido ateu – as ‘leis do mundo físico e do mundo moral’. [...]. O ateísmo do barão é circunstancial. Seu ateísmo declarado é bastante fatual e conjuntural: depende de situações e acontecimentos precisos”. In: LACOMPTE, Denis. Do ateísmo ao retorno da religião: sempre Deus? São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 113-126. 118 Para Kant, “é mais correto e mais justo dizer que o deísta acredita em Deus, enquanto o teísta acredita num Deus vivo”. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 3. ed. São Paulo: Ícone, 2011, p. 409. Nesse sentido, “o deísta seria aquele que pouco ou nada poderia dizer dobre Deus, a não ser que ele existe e que é a causa do mundo; enquanto o teísta pensava que a razão era capaz de dizer muito mais, nomeadamente que Deus foi o ‘Autor do mundo’ (não apenas a causa primeira abstrata), o princípio e a fonte de toda a ordem natural e moral – portanto, num sentido, um Deus pessoal”. In: BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: séculos XVII e XVIII. vol. 1. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 218-219. 119 VOLTAIRE. op. cit., p. 5. 120 JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 426. 116 44 ideia necessária para a manutenção da estabilidade social. Ele “[...] tenta salvar a moral: faz questão de um Deus garantia e fundamento, assim como remunerador” 121. Dessa forma, Voltaire recusa o ateísmo, justificando-se da seguinte forma: “Sempre considerei o ateísmo como o maior desvario da razão, porque é tão ridículo dizer que o arranjo do mundo não prova um artífice supremo, como seria impertinente dizer que um relógio não prova um relojoeiro” 122. Parece difícil, então, duvidar do sentimento religioso que animou Voltaire em sua concepção deísta do Deus-relojoeiro. Mas o filósofo negava toda a credibilidade ao Evangelho, ao cristianismo123 e ao conjunto da Revelação cristã, pois, para ele, a razão poderia intuir a existência de um Ser supremo. A mesma força de nosso entendimento que nos fez conhecer a aritmética, a geometria, a astronomia, que nos fez inventar as leis, também nos fez, portanto, conhecer Deus. [Por isso] não é necessária nenhuma revelação para saber [...] que o homem não se fez a si mesmo e que dependemos de um Ser superior, qualquer que seja 124. Ele ainda se justificava assim: “Se Deus é o pai de todos os homens, por que sua criação e suas primeiras ações foram ignoradas por todos os homens? Por que Moisés foi o único a conhecê-las ao cabo de dois mil e quinhentos anos antes num deserto?” 125. Apesar de negar o conjunto da Revelação, parece que Voltaire manteve a opinião de que Jesus foi um homem “por quem devemos ter profundo respeito”, foi uma espécie de “Sócrates rústico” 126 . Neste sentido, afirmou: O cristianismo, tal como foi desde os tempos de Constantino, está mais distante de Jesus do que de Zoroastro ou de Brama. Jesus tornou-se o pretexto de nossas doutrinas fantásticas, de nossas perseguições, de nossos crimes religiosos; mas não foi seu autor. [...] Apraz-me demonstrar que Jesus não era cristão, que, ao contrário, ele teria condenado com horror nosso cristianismo, tal como Roma o estabeleceu, cristianismo absurdo e bárbaro 127. 121 LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 107. VOLTAIRE apud LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 107. 123 LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 106. 124 VOLTAIRE. op. cit., p. 9. 125 VOLTAIRE. op. cit., p. 95. 126 VOLTAIRE. op. cit., p. 112-131. 127 VOLTAIRE. op. cit., p. 123. 122 45 Mesmo sendo partidário desse entendimento, pode-se dizer, em certo sentido, que Voltaire continuou dialogando com algumas noções cristãs. É dele a seguinte sentença: Falo sempre humanamente, ponho-me sempre no lugar de um homem que, nunca tendo ouvido falar nem dos judeus, nem dos cristãos, leria esses livros128 pela primeira vez e, não estando iluminado pela graça, teria a infelicidade de só acreditar na sua frágil razão, enquanto não fosse iluminado de cima 129. Pode-se dizer, então, que ele continua enxergando certo sentido em expressões como “iluminado pela graça” ou “iluminado de cima”. A filosofia de Voltaire ainda dialoga com a metafísica e supõe a existência de um Ser supremo. Voltaire era “anticristão, anticlerical, mas deísta” 130 . Nele havia algum sentimento religioso. Já Nietzsche, além de anticristão e anticlerical, seria ateísta, antiteísta e talvez niilista. O que sucedeu com a filosofia no século seguinte ao de Voltaire foi uma viragem completa e definitiva. O processo que desligou a filosofia da teologia e da metafísica foi concluído no século XIX. O Iluminismo, sobretudo o francês, foi o prelúdio, a antessala do caminho que conduziria ao rompimento com Deus. Disse Paul Johnson que “o Iluminismo francês foi o primeiro movimento intelectual europeu, desde o século IV, a se desenvolver fora dos parâmetros da crença cristã” 131 . O ateísmo que o sucedera não deve ser entendido como simples pensamento que postula a inexistência de Deus. Mais que ateísmo, era antiteísmo. É importante precisar o sentido do termo antiteísmo. Ele se relaciona com aquilo que Jacques Maritain chamou de ateísmo positivo. Por ateísmo positivo entiendo un combate activo contra todo lo que nos recuerda a Dios – por tanto, antiteísmo más que ateísmo – y al mismo tiempo un esfuerzo desesperado para reorganizar y reconstruir en conformidad con este estado do guerra contra Dios todo el universo humano de pensamiento y toda la escala humana de los valores. Es este ateísmo positivo el que encontramos en el ateísmo trágico de Nietzsche 132. 128 Trata-se dos livros que compõem a Bíblia. VOLTAIRE. op. cit., p. 51. 130 LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 107. 131 JOHNSON, Paul. op. cit., p. 424. 132 MARITAIN, Jacques. La significación del ateísmo contemporáneo. Madrid: Ediciones Encuentro, 2012, p. 14. Itálico do autor. “Por ateísmo positivo entendo um combate ativo contra tudo o que nos faz lembrar de Deus – portanto, antiteísmo mais que ateísmo – e ao mesmo tempo um esforço desesperado para reorganizar e reconstruir de acordo com este estado de guerra contra Deus todo o universo humano de pensamento e toda a escala humana de valores. É este ateísmo positivo que encontramos no ateísmo trágico de Nietzsche”. (tradução livre) 129 46 Além disso, trata-se, parafraseando Gadamer, de um “ateísmo da indiferença” 133 no qual Deus e as questões religiosas tornaram-se assuntos irrelevantes. Comte, Feuerbach, Marx e Nietzsche certamente são os pensadores que expressam essa linha de pensamento. Seria uma pretensão absurda tentar apresentar aqui considerações sobre cada um desses autores. Por isso, selecionamos apenas dois: Feuerbach e Nietzsche. Mesmo assim, é claro que não se pode esperar que um trabalho como o nosso ofereça uma análise aprofundada sobre cada um deles. As considerações desses autores serão aqui apresentadas apenas na medida em que dialogam com a temática geral do estudo. Isso ficará claro à medida que nossa análise for avançando. Iniciemos com Feuerbach tomando-o como precursor da “morte de Deus”, decretada por Nietzsche. Sim, Feuerbach foi ateu no sentido de que recusou um Deus transcendente e exterior à intimidade e ao sentimento dos homens. Não é que o filósofo tenha postulado a inexistência de Deus. O que ele propôs foi uma reestruturação do conceito de Deus: “Deus é o sentimento puro, ilimitado e livre. Qualquer outro Deus que estabeleceres aqui é um Deus que chega empurrado, vindo de fora do teu sentimento” 134. Dois são os corolários dessa asserção: 1) a sacralidade da religião não reside em um Ser superior e onipotente, mas no puro sentimento. “O sentimento é pois sacralizado meramente por ser sentimento; o motivo da sua religiosidade é a sua natureza, é inerente a ele próprio” 135; 2) a negação de um Deus que seja objetivo e externo ao sentimento. Sendo Deus “o pronunciamento do Eu do homem”, “como poderia eu duvidar do Deus que é a minha essência? Duvidar do meu Deus significa duvidar de mim mesmo” 136 . Parece então que o ateísmo de Feuerbach não pode ser entendido numa acepção literal da palavra. Com efeito, trata-se de alteração, de uma reestruturação semântica no conceito de Deus. Para Feuerbach, Deus não é uma alteridade, é a interioridade humana radicada no sentimento. “Assim”, disse ele, “tudo que a teologia e a filosofia consideraram até agora como Deus, absoluto, essencial, não é Deus; mas tudo que não consideraram como Deus é exatamente Deus” 137. Nota-se daí que ele foi um crítico do cristianismo, pois, segundo sua opinião, da forma como foi posta, a religião cristã “nega o bem como uma qualidade da essência humana: 133 GADAMER, Hans-Georg. “Dois mil anos sem um novo Deus: diálogos em Capri”. In: DERRIDA, Jacques; VATTIMO, Gianni (orgs.). A religião: o seminário de Capri. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 223. 134 FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 43. 135 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 42. 136 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 50. 137 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 51. 47 o homem é perverso, corrompido, incapaz do bem, mas em compensação somente Deus é bom, o bom ser” 138. Assim, disse ele, que para enriquecer Deus, o homem se tornou pobre, e para que Deus fosse tudo, o homem se transformou em nada 139 . Feuerbach se insurgiu ainda contra a concepção cristã acerca Deus. Ele criticou, sobretudo, o fosso que existe entre Deus e o homem no cristianismo, antítese esta que Feuerbach explica da seguinte forma: Deus não é o que o homem é, o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o finito; Deus é perfeito, o homem imperfeito; Deus é eterno, o homem transitório; Deus é plenipotente, o homem impotente; Deus é santo, o homem é pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o unicamente positivo, o cerne de todas as realidades, o homem é o unicamente negativo, o cerne de todas as nulidades140. Isso não fazia sentido para Feuerbach. Ele era da opinião segundo a qual tudo “[...] o que o homem diz de Deus diz ele em verdade de si mesmo” segredo da religião” 142 141 . “O homem: este é o . Por isso, não faz sentido a religião estar assentada na ideia de um Absoluto exterior ao homem. Se o que chamamos Deus é a própria essência humana, a religião deve ser um canal de acesso a tal essência, e não a algo dela desligado. Por isso, em Feuerbach, o fundamento da religião não pode ser teológico, mas sim antropológico. A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. [...] Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão dos seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública dos seus segredos de amor 143. Dessa forma, o saber que sustenta a religião não é a teologia, é a antropologia. E antropologia significa aqui algo bem específico: “fé no homem” 144 . De acordo com essa visão, os homens devem se convencer de que o único Deus do homem é o próprio homem145. 138 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 57. FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 55. 140 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 63. 141 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 58. 142 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 58. 143 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 44. 144 BAUMER, Franklin L. O pensamento europeu moderno: séculos XIX e XX. vol. 2. Lisboa: Edições 70, 2002, p. 72. 145 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 27. 139 48 No ponto de vista de Feuerbach, a religião enquanto consciência de Deus não faz referência a uma Alteridade suprema; trata-se sim da consciência que o homem tem de si próprio. A religião, portanto, deveria ser remodelada com a humanidade ocupando o posto de Deus. Embora recusando o “sujeito Deus”, Feuerbach esteve longe de negar os “predicados divinos”, isto é, os atributos e qualidades divinas 146 . O que ele fez foi um redirecionamento desses predicados. Com Feuerbach, os predicados de Deus foram atribuídos a outro sujeito: o homem. O filósofo eliminou o “sujeito Deus” para atribuir suas qualidades aos próprios homens. Para Feuerbach, no homem mesmo se realiza a trindade divina: a razão, o amor e a vontade147. É por isso que tudo “[...] o que foi considerado e adorado como Deus é agora conhecido como algo humano” 148 . E também já não há mais oposição ou antítese entre o divino e o humano. Em Feuerbach, o divino e o humano não são extremos inconciliáveis. A oposição entre o divino e o humano é apenas ilusória [...]. A essência divina não é nada mais do que a essência humana, ou melhor, a essência do homem abstraída das limitações do homem individual, real, corporal, objetivada, contemplada e adorada como uma outra essência própria, diversa da dele – por isso todas as qualidades da essência divina são qualidades da essência humana 149. Se todo o divino está encerrado no homem, desaparece aqui aquela noção segundo a qual “tudo o que é religioso é sobrenatural” 150 . Não há sobrenaturalidade porque “todo ser basta a si mesmo. Nenhum ser pode se negar, negar a sua essência; nenhum ser é limitado para si mesmo. Todo ser é ao contrário em si e por si infinito, tem o seu Deus, a sua mais elevada essência em si mesmo” 151. Em Feuerbach, o objeto do religioso é o próprio homem e sua essência interior. Assim sendo, não há por que buscar a explicação da religião fora ou além do homem. Além disso, a razão só pode crer em um Deus que seja coerente com a sua essência, em um Deus que não seja inferior à sua própria dignidade e que antes represente a sua própria 146 LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 168. FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 36. 148 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 45. 149 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 45-46. 150 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 5. 151 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 40. Itálico do autor. 147 49 essência; a razão só crê em si, na realidade e na verdade da sua própria essência. A razão não se faz dependente de Deus, mas Deus depende dela. Deus é tudo e tudo pode, era dito então, através da sua infinita plenipotência; no entanto, ele não é nada e não pode fazer nada em que se contradiga a razão 152. Vê-se, portanto, que não há como falar em sobrenaturalidade nesse contexto. Tudo – o religioso e o divino – estava no homem. Por isso, segundo Feuerbach, não era preciso que os homens fossem buscar as explicações de sua essência fora de si. Parece que, no fundo, os questionamentos de Feuerbach terminam sendo estes: “Para que buscar fora aquilo que já lhe é interior?” e “Se Deus é o próprio sentimento humano, se Deus é o homem mesmo, por que buscar fora aquilo que já é interior ao homem?”. Foi por isso mesmo que, para Feuerbach, seria uma alienação o fato de os homens buscarem explicações sobre si fora de si. Sendo assim, ao buscarem explicações transcendentais, radicadas num Deus exterior, os homens estariam se espoliando, se expropriando e se privando de sua própria essência. O cristianismo que era, nessa visão, o agente responsável por inculcar essa mentalidade alienante. Consequentemente, quanto mais depressa o homem tomasse consciência de que o cristianismo era ilusão ou mito, que era o resultado de sua própria alienação, melhor seria para o homem, e mais depressa ele poderia desenvolver uma religião, ou filosofia, mais elevada. A religião mais elevada era a humanidade 153. Pode-se dizer que em Feuerbach a ideia de Deus é usada como metáfora: “O homem é Deus”. É claro que este Deus perde a sua pessoalidade, sendo que os homens entram na posse dos atributos divinos. Por isso se diz que Feuerbach foi o difusor de uma “teologia humanista”, isso porque com ele “a humanidade coletiva tornou-se o novo deus” 154. Em Feuerbach, Deus é uma metáfora porque ele não tem uma existência objetiva, independente do homem. Nessa visão, a ideia de Deus funciona apenas como uma grande abstração usada para representar o puro sentimento. Deus, da forma como havia sido entendido pelo cristianismo, foi para Feuerbach sinônimo de alienação e engano. Para o filósofo, na ideia de Deus os homens nada mais encontram do que uma referência a si próprios. Feuerbach “[...] não consegue suportar um Deus que não esteja em nossa 152 FEUERBACH, Ludwig. op. cit., p. 66-67. BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 74. 154 BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 74. 153 50 subjetividade, que não seja apenas um ‘valor mais elevado’” 155. Toda a noção contrária a isso seria alienadora e mentirosa O que Nietzsche fez foi decretar a “morte” do Deus que havia sido recusado e anatematizado por Feuerbach. O Deus que desde o tempo dos iluministas franceses vinha sendo atacado e criticado, era agora declarado morto. Essa declaração pode ter sido tudo, menos repentina. Para que Nietzsche pudesse decretar a “morte de Deus”, os seus antecessores haviam preparado o caminho. Um longo processo havia sido percorrido para que, em fins do século XIX, o filósofo dissesse: “Deus está morto”. A “morte de Deus” foi, segundo Nietzsche, o resultado de uma escolha, de uma atitude, de uma conduta perpetrada pelos próprios homens. A expressão “morte de Deus” constituía a mais tradicional teologia, que designava o drama do Calvário. Certamente Nietzsche ouvira cantar ou cantara ele próprio, o coral de Lutero: “O próprio Deus morreu”. No entanto, o sentido dado por Nietzsche a esta expressão é completamente novo. Nele, não se trata de uma simples verificação. Não é tampouco uma lamentação ou um sarcasmo. Enfatiza, no fundo, uma opção, pois, diz Nietzsche: “Se Deus morreu, fomos nós que o matamos”. Em Nietzsche, somos nós os assassinos de Deus 156. E se Deus está morto, você nunca mais rezará, nunca mais adorará, nunca mais repousará numa confiança infinita – você se proíbe estacar ante uma sabedoria última, uma bondade última, um último poder, desarmando seus pensamentos- não há um constante guardião e amigo para as suas sete solidões – não existe, para você, mais nenhum retaliador, nenhum aperfeiçoador final – não há mais razão no que acontece, nem amor no que lhe acontecer – para o seu coração já não há pousada aberta, onde ele só tenha de encontrar e não mais procurar, você resiste a qualquer paz derradeira [...] 157. O próprio Schopenhauer, tantas vezes citado por Nietzsche, já dizia que [...] jamais se chega à essência das coisas. Por mais que se investigue, obtêm-se tão somente imagens e nomes. Assemelhamo-nos a alguém girando em torno de um castelo, debalde procurando sua entrada, e que de vez em quando desenha as fachadas 158. 155 BUBER, Martin. Eclipse de Deus: considerações sobre a relação entre religião e filosofia. Campinas, SP: Verus Editora, 2007, p. 24. Aspas do autor. 156 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 42-45. 157 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 171. 158 SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representação. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 156. 51 Assim foi que o “assassinato” de Deus não foi repentino. Ele demandou, como dissemos, um processo que consumiu centenas de anos. Foi “depois de quatro séculos de grandes combates contra a divindade cristã” 159 que o filósofo pôde constatar que “Deus está morto”. “Matar Deus” para quê? Para afirmar o homem. “Talvez o homem suba cada vez mais, já não tendo um deus no qual desaguar” 160 . “Desde que acabou a crença de que um Deus dirigiria os destinos do mundo em seu conjunto, [...] são os próprios homens que devem propor-se fins ecumênicos que abrangem toda a terra” 161 . Eis aí, em poucas palavras a ideia do super-homem. Nietzsche pretende propor a cada homem, em vez de facilidades covardes que, segundo ele, a religião nos dá, a aventura prodigiosa da “conquista penosa e cheia de riscos” do homem autêntico 162 . Nesse contexto, então, a fé aparece como uma luz ilusória, que impedia os homens de cultivar a ousadia do saber. O crer opor-se-ia ao indagar. Partindo disso, Nietzsche desenvolveu a sua crítica ao cristianismo por ter diminuído o alcance da existência humana, espoliando a vida de novidade e aventura163. Corolário da morte é a putrefação do corpo. “Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem!” 164 . Para Nietzsche, o cadáver de Deus, que se decompõe, é um sinal de gigantesca mudança 165, e isso porque o mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então 166. 159 ARMANI, Carlos Henrique. “A morte de Deus e a contemporaneidade”. In: Teocomunicação, Porto Alegre, v. 37, n. 156, jun. 2007, p. 175. 160 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 171. Itálico do autor. 161 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 47. 162 DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 33. 163 FRANCISCO. Lumen fidei: sobre a fé. Carta encíclica do sumo pontífice Francisco aos bispos, aos presbíteros, aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fieis leigos. São Paulo: Paulinas, 2013, p. 4-5. 164 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138. 165 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 51. 166 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138. 52 “Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos haverá cavernas em que sua sombra será mostrada” 167. O homem moderno havia perpetrado a morte de Deus, mas teria sido envolvido pela sombra do Deus morto. Era preciso, portanto, livrar-se dessa sombra168: “Quanto a nós, nós teremos que vencer também a sua sombra!” 169. Para Nietzsche, esse processo de livrar-se das sombras do Deus morto estava ainda se iniciando no século XIX. As consequências oriundas da “morte de Deus” ainda estavam por vir. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o cometeram 170. Uma consequência direta da “morte de Deus” foi o pessimismo, já em Nietzsche evidente: “[...] a humanidade em geral não tem objetivo e, por conseguinte, o homem não pode, ao examinar o processo inteiro dela, encontrar nela consolo e amparo, mas sim sua desesperança” 171 . Do pessimismo decorre uma sensação de desorientação do mundo; uma sensação de não saber exatamente onde estava a certeza, ou mesmo se haveria uma certeza para além da própria mudança. Na metáfora de Nietzsche, os europeus tinham-se desorganizado, destruindo as pontes atrás deles e lançando-se ao mar. Diante deles estendia-se o mar aberto, misterioso, infinito, perigoso172. Mas, para Nietzsche, esse estado de “leviandade ou melancolia são melhores que [...] uma reaproximação com o cristianismo, pois com ele não se pode, no estado atual do conhecimento, mais decididamente se entender sem manchar a consciência intelectual” 173. Ademais, disse ele: Uma religião que vê na última hora de um homem a hora mais importante de toda a sua existência, que prevê o fim de toda a vida sobre a terra e que condena todos os seres vivos a viver no quinto ato da tragédia, uma tal religião desperta certamente as forças mais profundas e mais nobres, porém, ela é hostil a qualquer nova semeadura, 167 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 126. ARMANI, Carlos Henrique. op. cit., p. 176. 169 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 126. 170 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138. Itálico do autor. 171 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 53. Itálico do autor. 172 BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 132. 173 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 96-97. Itálico do autor. 168 53 a qualquer tentativa ousada, a qualquer livre aspiração; ela impede qualquer voo para um desconhecido do qual não gosta e do qual não espera nada; ela não se entrega senão a contragosto ao fluxo do devir, para, no devido tempo, se livrar dele e sacrificá-lo, como uma força muito sedutora que atrai para a vida, como um engano sobre o valor da existência 174. A aversão de Nietzsche pelo cristianismo e por toda a espécie de fé em Deus se manifestou desde muito cedo e nada mais foi do que um sentimento espontâneo, completamente instintivo, como ele próprio explicou no Ecce Homo: “Para mim, o ateísmo não é o resultado seja do que for e ainda menos um acontecimento da minha vida; é coisa evidente; é coisa instintiva” 175. O ateísmo de Nietzsche não é tanto aquele que nega a existência de Deus, sustentando a sua não existência, mas sim aquele ateísmo caracterizado pelo esquecimento de Deus, que implicaria a sua morte. Tal ateísmo reside, portanto, no esquecimento, na indiferença, e não no postulado da não existência de Deus 176. Nietzsche, portanto, não está preocupado em falar que Deus não existe. Não é essa a questão. Os verbos por ele usados não denotam negação, mas desaparecimento177. O Deus cuja morte Nietzsche anunciou não foi somente o Deus da metafísica; foi, mais precisamente, o Deus cristão. “Essa mitologia”, disse ele referindo-se ao cristianismo, “que nem o próprio Kant abandonou por completo, que Platão havia preparado para a Europa, para infelicidade sua, esse mitologia fez já a sua época”. E n’O Anticristo disse: “Chamo ao cristianismo o maior de todos os flagelos [...]. Chamo ao cristianismo a nódoa vergonhosa e inapagável entre todas as da humanidade” 178. “Os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos” 179 . Sim, Nietzsche tinha razão. Essa frase explica muitas coisas. Ela, inclusive, ajuda a esclarecer o motivo da inserção dessa discussão acerca da “morte de Deus” em nosso estudo. Disse Nietzsche que o ato, a “morte de Deus”, já em sua época estava consumado. Ora, é isso que interessa, a princípio. É evidente que a partir daí um desafio foi posto ao 174 NIETZSCHE, Friedrich. “II Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da história para a vida”. In: NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre história. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005, p. 140-141. 175 LUBAC, Henri de. O drama do humanismo ateu. Porto: Porto Editora, 1944, p. 41. ARMANI, Carlos Henrique. op. cit., p. 175. 177 ARMANI, Carlos Henrique. op. cit., p. 177. 178 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 115-116. 179 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138. 176 54 cristianismo. Em sua época mesmo, na segunda metade do século XIX, Nietzsche notou a negligência, o desprezo e a ojeriza em relação ao cristianismo. Ele mesmo agiu dessa forma: “Que são ainda essas igrejas, senão os mausoléus e túmulos de Deus?” 180 . Em outro momento escreveu: Quando, numa manhã de domingo, ouvimos tocar os velhos sinos, nos perguntamos: Como é possível? Isso diz respeito a um judeu, crucificado há dois mil anos, que se dizia filho de Deus! Faltava a prova para semelhante afirmação. Certamente a religião cristã é, em nossa época, uma antiguidade, um vestígio de um distante passado, e o fato de que se possa acreditar nessa afirmação talvez seja a peça mais antiga dessa herança. Um Deus que gera filhos com uma mulher mortal; um sábio que recomenda não trabalhar mais, não julgar mais, mas estar atento aos sinais do iminente fim do mundo; uma injustiça que aceita o inocente como vítima substituta; alguém que ordena a seus discípulos beber seu sangue; orações para pedir milagres; pecados praticados contra um Deus e expiados por um Deus; medo de um além, do qual a morte é a porta; a figura da cruz como símbolo, numa época em que já não se conhece o destino nem a ignomínia da cruz – que vento horripilante nos vem de tudo isso, como que saído do túmulo de um passado antiquíssimo! Quem haveria de crer que ainda se acredita em semelhante coisa? 181 Aqui nós temos um cenário de completa descrença, de completo descrédito do cristianismo. Em Nietzsche há um ateísmo marcado pela frieza da indiferença religiosa, pela hostilidade à Igreja. E não é somente isso. Em Nietzsche, “[...] há bem mais do que o banal anticlericalismo, e até o ódio à Igreja como instituição. Na raiz do movimento o que há é um pensamento, uma concepção do homem essencialmente oposta àquela que o cristianismo oferece” 182 . Trata-se de um “humanismo ateu”, como disse Henri de Lubac. E esse ateísmo não está preocupado em provar que Deus não existe; está preocupado tão somente em “[...] empurrar Deus para o meio dos fantasmas vãos ou dos cadáveres em decomposição” 183 .É como se Deus fosse um suporte descartável que, para Nietzsche, havia se tornado decrépito e inútil. “Qual o ser pensante que ainda precisa da hipótese de um Deus?” 184 . Nietzsche simplesmente ignorou Deus e recusou qualquer transcendência. A situação de Nietzsche foi “a situação do homem que não experimenta o divino, que não mais o experimenta como seu 180 NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 138. NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 104. 182 DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 20. 183 DANIEL-ROPS, Henri. op. cit., p. 10. 184 NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano. São Paulo: Editora Escala, 2006, p. 49. 181 55 parceiro e interlocutor, que não ousa ou não consegue experimentá-lo” 185 . Talvez tenha sido por isso que ele disse: “Deus está morto”. Martin Buber preferiu usar outra metáfora, que, a nosso ver, é bem mais perspicaz e explicativa. Buber, já no século XX, preferiu utilizar a expressão “eclipse de Deus”. Quando ocorre o eclipse do sol, parece que ele não existe se não se sabe que, de fato, está encoberto. Assim, “o eclipsar da luz de Deus não é um apagar-se; amanhã, o que se interpôs já poderá ter ido embora” 186. Franz Rosenzweig foi mais além. Ele respondeu à metáfora de Nietzsche da seguinte forma: “Dios no es vida: Dios es luz. Es señor de la vida, pero tan no está vivo como no está muerto. [...]. Dios ni vive ni está muerto, sino que infunde vida a lo muerto y ama. Es el Dios tanto de vivos como de muertos precisamente porque El ni vive ni está muerto” 187. E Bruno Forte, já em nossos dias, disse que “[...] el hombre tiene siempre una necesidad absoluta de salir de la cárcel del proprio yo para abrirse a la alteridad [...]” 188. Em diversos sentidos, o século XIX foi catastrófico para o cristianismo. A “morte Deus” foi apenas o grito final que arrematou uma série de abalos. A Igreja Católica, por exemplo, esteve diante de grandes desafios, tais como: a Revolução Francesa, Napoleão, a unificação italiana e, por fim, o rompimento dos laços jurídicos que uniam a Igreja ao Estado em muitos países. O movimento de unificação italiana terminou por extinguir os Estados Pontifícios juntamente com o poder temporal do papa. As perdas patrimoniais foram sem precedentes. Mas nunca os processos e conjunturas históricas são massas unívocas ou monolíticas. No mesmo século XIX, tão avesso ao catolicismo, Paul Johnson conseguiu notar aquilo que ele chamou de “ressurgência da autoridade papal” a partir do pontificado de Pio VII. O papa restabeleceu a Companhia de Jesus em todo o mundo e, juntamente com os 185 BUBER, Martin. op. cit., p. 30. BUBER, Martin. op. cit., p. 119. 187 ROSENZWEIG, Franz. La estrella de la redención. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2006, p. 447-448. “Deus não é vida: Deus é luz. É senhor da vida, mas não está vivo nem está morto. [...]. Deus nem vive nem está morto, mas sim infunde vida ao morto e ama. É o Deus tanto de vivos como de mortos justamente porque Ele nem vive nem está morto”. (tradução livre) 188 FORTE, Bruno. La eternidad en el tiempo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2000, p. 244. “[...] o homem tem sempre uma necessidade absoluta de sair do cárcere do próprio eu para abrir-se à alteridade [...]”. (tradução livre) 186 56 esforços do cardeal Consalvi, reintroduziu, o papado na arena da diplomacia europeia após uma ausência de quase dois séculos189. Também foi dó século XIX o Movimento de Oxford190. Esse movimento foi o responsável pela conversão de vários anglicanos ao catolicismo. A conversão de mais famosa nesse sentido foi a de John Henry Newman (1801-1890)191, que apresentou como um dos motivos de sua conversão o seguinte: É fora de dúvida que a Igreja nacional 192 tem sido até aqui um dique útil [...]. Dizer por quanto tempo ainda resistirá o dique nos anos que temos diante de nós, é impossível, porque a Nação arrasta a Igreja e pouco a pouco a rebaixa ao seu nível. Entretanto, a Igreja nacional tem ainda sobre a Nação a mesma influência que o jornal sobre o partido que representa [...]. Reconheço, pois, na Igreja anglicana, uma instituição venerável [...]. Mas que ela seja algo sagrado, que ela seja o oráculo da doutrina revelada, que possa reclamar Santo Inácio ou São Cipriano como seus antepassados [...] é o que se me tornou impossível reconhecer após a minha conversão 193. O percurso que levou Newman à conversão foi, na opinião de Paul Johnson, representativo de uma tendência seguida por determinados intelectuais não só na Inglaterra. A figura de Roma como um depósito de certezas medievais, de homogeneidade e de visão unitária exercia uma clara atração sobre tais intelectuais. Newman era defensor daquilo que ele próprio chamava de “princípio do dogma”, que era diametralmente oposto ao “princípio antidogmático”, isto é, o liberalismo194. “Minha luta era contra o liberalismo”, dizia ele, e “a questão vital era saber como impediríamos a invasão do liberalismo na Igreja” 195 . Newman foi ainda um apologeta da infalibilidade papal. Sobre este tema, ele expôs suas razões tomando um trecho do Evangelho. 189 JOHNSON, Paul. op. cit., p. 443. Foi “um amplo movimento cultural que, a partir de 9 de setembro de 1833, iniciou a publicação de uma série de opúsculos – os Tracts of the Times. Os Tracts, partindo de uma crítica ao anglicanismo, procuravam delinear uma espécie de via média entre catolicismo e anglicanismo”. In: ZAGHENI, Guido. A idade contemporânea: curso de história da igreja IV. São Paulo: Paulus, 1999, p. 98. “O Movimento [...] desenvolveu-se; cada ano tornava-se mais forte até que veio a colidir com a nação e com a Igreja da nação que de início propusera defender”. In: NEWMAN, John Henry. Apologia pro vita sua: ou história das minhas opiniões religiosas. Rio de Janeiro: Edições Paulinas, 1963, p. 122. 191 Foi uma das lideranças do Movimento de Oxford. “Newman começara a se afastar do Anglicanismo ao trabalhar em seu livro sobre o arianismo no século IV”. In: JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago, 2001, p. 460. 192 Trata-se da Igreja Anglicana. 193 NEWMAN, John Henry. Apologia pro vita sua: ou história das minhas opiniões religiosas. Rio de Janeiro: Edições Paulinas, 1963, p. 409-412. 194 NEWMAN, John Henry. op. cit., p. 91. 195 NEWMAN, John Henry. op. citp. 70-91. 190 57 Consta no Evangelho de Mateus uma passagem em que Jesus, antes da ascensão, ordenou aos apóstolos a difusão e o ensino universal de sua doutrina. Disse Jesus: “Ide, portanto, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos” 196 . Newman explicou essa passagem da seguinte forma: Assim pois, mandou-lhes Jesus, em primeiro lugar, “ensinar” Sua Verdade Revelada; depois, “até a consumação dos séculos”; terceiro, para dar-lhes ânimo, Jesus assegurou que estaria com eles “todos os dias”, sempre, passasse o que passasse, até o final. A eles foi imposto o dever de ensinar as palavras de seu Mestre, um dever que não poderiam cumprir com fidelidade a não ser com o auxílio do mesmo Cristo; daí a promessa de estar com eles para que pudessem levar a cabo tal missão. [...]. Essa promessa de ajuda sobrenatural não caducou com o desaparecimento dos Apóstolos, posto que Cristo acrescenta: “até a consumação dos séculos”, evidenciando assim que os Apóstolos teriam sucessores e comprometendose a estar junto a esses sucessores da mesma forma que com os Apóstolos. [...]. Se a Igreja, iniciada pelos Apóstolos e continuada por seus sucessores, foi fundada com o propósito explícito de conservar, proteger e proclamar a Revelação sob o amoroso cuidado de seu fundador divino, estamos dizendo em outras palavras que, no que se refere à Mensagem que lhe foi confiada, a Igreja é infalível. O que significa Infalibilidade do Magistério senão o fato de que o Mestre está livre de erro no que ensina? E como pode um homem estar livre de erro senão graças a um guia sobrenatural infalível? Para que essas palavras “eu estarei convosco até a consumação dos séculos”, senão como resposta antecipada ao medo e à aflição de um mísero grupo de pescadores e homens do campo que se sentiam esmagados pelo peso e responsabilidade de uma missão sobre-humana? 197 Newman conclui seu raciocínio afirmando que a infalibilidade do papa está associada à infalibilidade do magistério da Igreja: “De igual manera, el papa debe presentarse ante nosotros de una forma o con un gesto especial para que entendamos que está ejerciendo su poder y oficio de enseñar. Esa forma se llama ex cathedra” 198. Assim é que, no dizer de Paul Johnson, no cenário da crença declinante do século XIX a Igreja de Roma emergia como uma fortaleza. As imagens de algo seguro, de um refúgio para a segurança são numeráveis nos escritos de conversos como Newman. Numa época em que os avanços intelectuais empurravam alguns para o agnosticismo ou para descrença completa, “[...] o catolicismo e, acima de tudo, o papismo desenvolveram um novo 196 “Evangelho segundo São Mateus”. Capítulo 28; 19-20. In: Bíblia de Jerusalém. 5ª impressão. São Paulo: Paulus, 2008, p. 1758. 197 NEWMAN, John Henry. Carta al duque de Norfolk. Madrid: RIALP, 2005, p. 105-106. (tradução livre) 198 NEWMAN, John Henry. op. cit., p. 106. “Da mesma forma, o papa deve se apresentar diante de nós de uma forma ou com um gesto especial para entendermos que ele está exercendo seu poder e ofício de ensinar. Esta forma se chama ex cathedra”. (tradução livre) 58 poder de atração, graças a características que outrora haviam feito com que parecesse repulsivo” 199. Isso, segundo Johnson, “[...] nos oferece o indício fundamental da revigoração da Igreja Romana do século XIX e da reafirmação do poder papal” 200 . Esse movimento de reafirmação da autoridade papal, como sabemos, teve seu ápice no Concílio Vaticano I, que definiu o dogma da infalibilidade do papa em assuntos de fé e moral. Do século XIX datam ainda os escritos de François-René de Chateaubriand. No período que sucedeu a Revolução Francesa, em 1802, Chateaubriand escrevia: Se Roma compreender bem a sua posição, nunca ela teve ante si maiores esperanças e mais brilhantes destinos. Esperanças, dizemos, porque contamos as tribulações entre os desejos da Igreja de Jesus Cristo. A sociedade degenerada reclama uma segunda pregação do Evangelho: o cristianismo restabelece-se e sai ovante do mais terrível dos assaltos que ainda lhe deu o inferno. Quem sabe se o que nos parece a queda da Igreja não é antes a sua reedificação? Na riqueza e no repouso parecia ela esquecida da cruz; agora será salva, porque a cruz reaparece 201. São também relevantes as obras de Vladimir Soloviov, filósofo e teólogo ortodoxo russo. O que podemos destacar aqui acerca dos escritos de Soloviov é o tom dialogal que ele quis firmar com catolicismo romano. Soloviov tentou estabelecer um diálogo e uma aproximação com Roma. Ele enxergava na Igreja Católica uma unidade e independência que não conseguia ver nas igrejas protestantes nem na própria Igreja Ortodoxa Russa. Num trecho dizia ele: Ningún razonamiento puede anular la evidencia del hecho siguiente: fuera de Roma no hay más que Iglesias nacionales (como la Iglesia armenia, la griega), Iglesias de Estado (como la Iglesia rusa, la anglicana), o sectas fundadas por particulares (como los luteranos, calvinistas, etc.). Sólo la Iglesia Católica romana no es ni Iglesia nacional, ni Iglesia de Estado, ni secta fundada por un hombre. Es la única Iglesia del mundo que conserva y afirma el principio de la unidad social universal contra el egoísmo de los individuos y el particularismo de las naciones; es la única que conserva y afirma la libertad del poder espiritual contra el absolutismo del Estado; es, en una palabra, la única contra la cual no han prevalecido las puertas del infierno 202. 199 JOHNSON, Paul. op. cit., p. 462. JOHNSON, Paul. op. cit., p. 463. 201 CHATEAUBRIAND, François-René de. O gênio do cristianismo. vol. 2. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W. M. Jackson Inc. Editores, 1949, p. 285. 202 SOLOVIEF, Vladimiro. Rusia y la iglesia universal. Buenos Aires: Libreria Santa Catalina, 1936, p. 215216. Itálico do autor. “Nenhum raciocínio pode anular a evidência do fato seguinte: fora de Roma não há mais do que igrejas nacionais (como a Igreja armênia, a grega), Igrejas de Estado (como a Igreja russa, a anglicana), ou seitas fundadas por particulares (como os luteranos, calvinistas, etc.). Apenas a Igreja Católica romana não é 200 59 No século XIX, nove homens foram proclamados Doutores203 da Igreja Católica. No Oitocentos viveram ainda Kierkegaard e Schleiermacher, importantes nomes do pensamento cristão protestante. Certamente Kierkegaard é o grande marco da filosofia e teologia protestantes no século XIX. Opôs-se ao hegelianismo e considerou que a natureza da fé não está atrelada à especulação ou à abstração. Para Kierkegaard, crer não é saber nem compreender. Para ele, a fé não constitui um sistema racional. A fé não é um simples momento do pensamento, e é por isso que o crente não é um especulante. Na fé, o indivíduo real encontra-se na presença de um Deus real204. Enfim, a fé alça voos que a razão não consegue acompanhar. Ó cálice amargo, se a ignomínia da morte é mais amarga que o absinto para os mortais, o que não será, então, para o imortal! Ó ácida beberagem – mais ácida que o vinagre – não se ter para se reconfortar senão a incompreensão da pessoa amada! Ó consolo na aflição, o de sofrer como culpado, mas o que não será o de sofrer sendo inocente! 205 Isso dialoga muito bem com aquilo que, no século XX, João Paulo II viria a dizer na Fides et Ratio: “A razão não pode esgotar o mistério de amor que a Cruz representa” 206 . Sendo assim, é inconcebível pretender conter o Absoluto em esquemas especulativos. Não se pode “[...] caer en la tentación de confundir el saber con la fe” 207. No mesmo século em que a Crítica Bíblica quis racionalizar a fé a partir de uma investigação científica das Escrituras, Kierkegaard se insurgiu contra a pretensão de nem Igreja nacional, nem Igreja de Estado, nem seita fundada por um homem. É a única Igreja do mundo que conserva e afirma o princípio da unidade social universal contra o egoísmo dos indivíduos e particularismo das nações; é a única que conserva e afirma a liberdade do poder espiritual contra o absolutismo do Estado; é, em uma palavra, a única contra a qual não têm prevalecido as portas do inferno”. (tradução livre) 203 São eles: São Pedro Damião (proclamado Doutor em 1828); São Bernardo de Claraval (proclamado Doutor em 1830); Santo Hilário de Poitiers (proclamado Doutor em 1851); Santo Afonso de Ligório (proclamado Doutor em 1871); São Francisco de Sales (proclamado Doutor em 1871); São Cirilo de Alexandria (proclamado Doutor em 1882); São Cirilo de Jerusalém (proclamado Doutor em 1882); São João Damasceno (proclamado Doutor em 1890) e São Beda, o Venerável (proclamado Doutor em 1899). In: Los 33 Doctores de la Iglesia por orden cronológico. Disponível em: ˂http://www.conferenciaepiscopal.es/index.php/materiales-deinteres/materiales/2192-los-33-doctores-de-la-iglesia-por-orden-cronologico.html˃. Acesso em: 20 nov. 2013. 204 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 101-102. 205 KIERKEGAARD, Sören. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 55. 206 JOÃO PAULO II. Fides et ratio: sobre as relações entre fé e razão. Carta encíclica do sumo pontífice João Paulo II aos bispos da igreja católica. 13. ed. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 35-36. 207 KIERKEGAARD, Sören. Post scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010, p. 41. “[...] cair na tentação de confundir o saber com a fé”. (tradução livre) 60 racionalização da fé. Para ele a fé não precisa de provas; essas são, aliás, suas inimigas. Quando a fé começa a se envergonhar de si mesma; quando não se contenta com o amar e se envergonha maliciosamente do amado, aí sim a fé sente necessidade de constatar. Quando a fé começa a perder a paixão, quando começa a deixar de ser fé, é aí que necessita da prova para gozar do respeito do incrédulo208. Assim, para Kierkegaard, as provas se tornam necessárias quando a fé desaparece. Disse ele que a forma de compreensão surgida no âmbito da fé é, no mínimo, espantosa. E a relação da compreensão, como é espantosa! Pois é menos espantoso cair com o rosto no chão quando as montanhas tremem à voz do deus do que estar sentado junto dele como ao lado de um igual, e no entanto esta é afinal de contas a preocupação do deus, sentar-se justamente desta maneira! 209 Sendo essa a relação de compreensão, à medida que a interioridade do indivíduo vai crescendo, a verossimilhança vai diminuindo em vez de aumentar. Aliás, a fé não sente o mínimo gosto por essa verossimilhança. O inverossímil não é adversário da fé, é o seu alimento210. Mientras que hasta ahora la fe había tenido en la incertidumbre un provechoso tutor y maestro, en la certidumbre encontrará a su más peligroso enemigo. Es decir, si se prescinde de la pasión, la fe deja de existir, pues la certidumbre y la pasión no concuerdan. Vamos a aclararlo mediante un paralelismo. Para quien cree en la existencia de Dios y de la Providencia es más fácil (preservar la fe), es más fácil alcanzar definitivamente la fe (y no una imagen fantástica) en un mundo imperfecto donde la pasión se mantiene en vela, que un mundo absolutamente perfecto. En un mundo así la fe es de hecho impensable 211. É possível dizer, então, que em seus escritos, Kierkegaard pretendeu desligar a fé de uma sistematização lógica. A fé não é um arcabouço especulativo. Dessa forma, pelo que 208 KIERKEGAARD, Sören. Post scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010, p. 42. 209 KIERKEGAARD, Sören. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011, p. 56. 210 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 103-104. 211 KIERKEGAARD, Sören. Post scriptum no científico y definitivo a migajas filosóficas. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2010, p. 41. “Enquanto que até agora a fé teve na incerteza um proveitoso tutor e professor, na certeza encontrará o seu mais perigoso inimigo. Ou seja, se se prescinde da paixão, a fé deixa de existir, pois a certeza e a paixão não concordam. Vamos esclarecer mediante um paralelismo. Para quem acredita na existência de Deus e da Providência é mais fácil (preservar a fé), é mais fácil de alcançar definitivamente a fé (e não uma imagem fantástica) em um mundo imperfeito onde a paixão se mantém acordada, do que num mundo absolutamente perfeito. Em tal mundo a fé é de fato impensável”. (tradução livre) 61 foi exposto, pode-se dizer que Kierkegaard intentou salvaguardar o elemento de “escândalo” essencial ao cristianismo212. Da discussão que consumiu as seis páginas anteriores, podemos concluir o seguinte: se “por um lado [no século XIX] a cultura europeia estava num processo de secularização ao ponto de ignorar, ou lamentar, as questões religiosas”, por outro, o pensamento religioso não havia se estagnado, e “estava a ser alvo de um renascimento” 213 . Daí pode-se dizer que “o universo religioso sempre tende a ressurgir” 214. Notemos ainda que na mesma época em que Nietzsche enxergava como promissor o destino dos homens desligado da ideia de Deus, Dostoiévski nos apresentava o suicídio como sendo o pináculo de um mundo sem Deus. “Onde Nietzsche pressente um apogeu, não vê Dostoiévski senão uma falência” 215. Em Nietzsche, mata-se Deus para poder fazer viver o homem, ao passo que “a ideia principal de Dostoiévski é a de que, ao matar-se Deus no homem, é o próprio homem que acaba por se matar” 216 . Foi ainda o literato russo que percebeu algo bem relevante. Para ele, “[...] o socialismo russo era um problema religioso, relativo a Deus e à imortalidade, à transformação completa, radical, da vida humana, e não um problema político” 217. Até o momento de sua prisão, em 1849, Dostoiévski não parece muito preocupado com a busca de Deus. Foi na prisão que Dostoiévski reencontrou Cristo. Este é o episódio sem o qual sua obra não pode explicar-se 218. Numa carta escrita após sua libertação, disse: E, todavia, envia-me Deus momentos de completa serenidade. Foi em momentos tais que realizei em mim próprio uma profissão de fé, onde tudo é claro e sagrado. Essa profissão de fé é simplíssima. Ei-la: acreditar que nada de mais belo, de mais profundo, de mais simpático, de mais razoável, de mais corajoso ou de mais perfeito existe do que Cristo. E não somente nada existe como ainda – confesso a mim próprio cheio de amor ciumento – nada poderá existir. Mais ainda: se alguém me houvesse provado que Cristo estava fora da verdade, e se, na realidade, se encontrasse estabelecido que a verdade está fora de Cristo, eu teria preferido ficarme com Cristo a voltar-me para a Verdade 219. 212 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 104-105. BAUMER, Franklin L. op. cit., p. 212. 214 LACOMPTE, Denis. op. cit., p. 126. 215 GIDE apud LUBAC, Henri de. op. cit., p. 299-300. 216 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 335. 217 BERDIAEFF, Nicolas. op. cit., p. 147-148. (tradução livre) 218 LUBAC, Henri de. op. cit., p. 308-309. 219 DOSTOIÉVSKI apud LUBAC, Henri de. op. cit., p. 310. 213 62 Em outro momento diz Dostoiévski, pela boca de Chátov: A razão e a ciência, hoje e desde o início dos séculos, sempre desempenharam apenas uma função secundária e auxiliar; e assim será até a consumação dos séculos. Os povos se constituem e são movidos por outra força que impele e domina, mas cuja origem é desconhecida e inexplicável. Essa força é a força da confirmação constante e incansável do seu ser e da negação da morte. O espírito da vida, como dizem as Escrituras, são “rios de água viva” com cujo esgotamento o Apocalipse tanto ameaça. [...] É a “procura de Deus”, como eu chamo tudo o mais. O objetivo de todo o movimento do povo, de qualquer povo e em qualquer período da sua existência, é apenas e unicamente a procura de Deus 220. Dostoiévski dirá, enfim, “[...] que nenhuma ciência poderá realizar jamais o ideal humano e que a paz para o homem, fonte da vida, salvação e condição indispensável da existência de todo o mundo, se encontra encerrada nestas palavras: “O Verbo fez-se carne” e na fé que nelas se tenha” 221. Vemos, assim, que em Dostoiévski, Deus continua vivo. Claro que existe afinidade de pensamento entre Dostoiévski e Nietzsche. E não só entre eles dois. Há uma similaridade evidente entre Dostoiévski, Nietzsche e Kierkegaard. Quem sobre ela escreveu muito bem foi Romano Guardini. Disse ele que durante o século XIX decorrem os períodos criadores de três homens que exteriormente quase não tiveram relações [...] e que no entanto dão provas de uma extrema afinidade de estrutura de pensamento e experiências. São eles os três grandes românticos: Sören Aabye Kierkegaard, Fiodor Mikailovitch Dostoiévski e Friedrich Wilhelm Nietzsche. Neles a situação existencial do homem da Idade Moderna – do homem, portanto, a partir do século XV – atinge as últimas consequências. Eles liquidam a Idade Contemporânea e ao mesmo tempo existem neles elementos da época posterior, que ainda não tem nome 222. No cenário apresentado por Nietzsche, a Igreja e a teologia não tinham nada a dizer, posto que Deus estava morto. Vejamos uma metáfora que muito bem pode explicar nosso raciocínio. Tomemos o pensamento filosófico europeu do século XIX como uma orquestra a tocar uma sinfonia. Geralmente uma sinfonia começa com uma melodia suave, com notas quase imperceptíveis. À medida que está sendo executada, a sinfonia vai adquirindo notas e tons mais graves até que chega o momento final, o clímax, o grand finale do processo sinfônico. Esta sinfonia representa o pensamento filosófico europeu oitocentista. 220 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 250-251. DOSTOIÉVSKI apud LUBAC, Henri de. op. cit., p. 312. 222 GUARDINI, Romano. O mundo religioso de Dostoiévski. Lisboa: Editorial Verbo, 1964, p. 206. 221 63 Já vinha dos filósofos iluministas a tendência anticristã e antieclesial. O século XIX apenas consumou o gradual processo de esvaziamento da autoridade religiosa e da religião na Europa. O processo se iniciou com a crítica da Igreja (seja ela católica ou protestante), passando pela recusa da metafísica e chegando ao clímax: a “morte de Deus”. Esse decreto de Nietzsche marcou o fim de uma época. A “morte de Deus” nada mais foi do que a recusa definitiva da transcendência, da metafísica, dos valores morais absolutos e das certezas ontológicas acerca do homem. A “morte de Deus” é ainda a formalização, a oficialização do divórcio entre fé e filosofia, entre a teologia e a filosofia, entre a Igreja e a filosofia. Tanto foi assim, que em fins do século XIX se dizia no Brasil: “Outro inimigo da Igreja é a filosofia, como o século de hoje a entende, [...] porque, declarando-se em plena independência, não admite autoridade alguma superior; e ousa julgar tudo, explicar tudo” 223. Assim, o dilema em que a fé cristã se encontra tem diversos motivos. Mas um dos mais importantes consiste no fato de a fé se ver abandonada pela filosofia e, por via disso, se achar de repente colocada, por assim dizer, no vácuo. Na Antiguidade e na Idade Média, a fé era veiculada aos homens na medida em que a filosofia lhes oferecia uma imagem do mundo na qual essa fé poderia assumir o seu lugar com sentido. [...]. Desde Kant que esta unidade do pensamento filosófico se acha cada vez mais em ruptura e, acima de tudo, que desapareceu quase completamente a certeza confiante de que o homem pode, convincente e justificadamente, sondar, para lá do âmbito da física, a essência das coisas e o seu fundamento. [A partir de então] a fé não pode encontrar nenhum ponto de ligação firme e seguro no espaço do pensamento humano e, quando faz essa tentativa, não encontra senão um vazio a que se agarrar 224. Enxerguemos, portanto, em Nietzsche o clímax sinfônico ao qual nos referimos na metáfora. Mas nem sempre as sinfonias terminam de forma majestosa e apoteótica. Há sinfonias que terminam de forma bem melancólica, quase no puro silêncio. Foi assim que terminou a sinfonia que, na metáfora usamos, representa o pensamento filosófico europeu do século XIX. Essa sinfonia chegou ao fim com a “morte de Deus”. Nada mais trágico do que isso. A sinfonia termina com os homens tentando se livrar do cadáver divino em decomposição. Foi o pessimismo que ditou o tom no final da sinfonia. Sem dúvida, essa questão da “morte de Deus” é relevante. Toda a filosofia e teologia posteriores necessariamente tiveram que lidar com a expressão deicida de Nietzsche. Evidentemente que um desafio foi posto à manutenção do cristianismo. E este desafio foi encarado por alguns 223 CAMPOS, Joaquim Pinto de. A igreja e o estado: o catolicismo e o cidadão. Rio de Janeiro: Typographia do Globo, 1875, p. 22. 224 RATZINGER, Joseph. Fé e futuro. Estoril: Princípia, 2008, p. 57-58. 64 teóricos cristãos sob a forma do seguinte questionamento: “Em que se há de transformar a humanidade se ela não tiver mais a Deus, ou se ela tiver quantos deuses queira forjar?” 225 . Na visão de Veuillot, o grande ponto em discussão era este: A questão – a verdadeira questão – é saber de onde vem a humanidade, o que ela quer e para onde ela vai. O homem é criatura de Deus? O Deus Criador daria à criatura uma legislação imutável em meio às transformações permitidas à liberdade? Será que durante mil e oitocentos anos a humanidade cometeu o equívoco de acreditar que Jesus Cristo é o Deus vivo e eterno? 226 Eis o desafio posto ao cristianismo pela “morte de Deus”. Ao fim da primeira parte deste capítulo voltamos a perguntar: em que medida a discussão sobre a “morte de Deus” dialoga com a temática geral do nosso estudo? Se, como dissemos no início, as ideias de Nietzsche só viriam ter repercussão algum tempo depois de sua morte, é pertinente falar na “morte de Deus” como um possível contexto internacional oitocentista? Sim, enxergamos essa discussão como pertinente. No ponto de vista de Martin Buber, “[...] o mais importante na história do homem são as mudanças que ocorrem com as forças que não foram vistas ou percebidas em seus respectivos momentos” 227 . Nietzsche foi como uma síntese ou cume do pensamento de uma época. Foi com o desafio por ele lançado que o cristianismo como um todo teve de lidar desde fins do século XIX até nossa época. Seria exagero dizer que ainda no século XIX certos pensadores e lideranças católicos estavam já “antevendo” um mundo sem Deus e sem as representações religiosas? Vejamos o que dizia monsenhor Joaquim Pinto de Campos no Brasil, em 1875: O que sucederá no dia em que se inocular, e impregnar bem nas turbas a ideia de que a religião é uma peia pueril; de que a morte acaba todos os gozos, todas as dores, todas as responsabilidades? Erguer-se-ão triunfantes os ruins instintos, e o descrente se converterá logicamente no mais abominável malvado. “Visto que nada há depois da morte (dirá ele), nem prêmio do bem obrar, nem punição de malefícios; de que serve praticar virtude, quando ela me prejudicar?” [...]. Ainda sob o aspecto humano, ai de nós, no dia em que descrermos na vida futura! Nesse dia, que significará virtude? Uma convenção egoísta da sociedade [...]. Que significará decência? Pura comédia [...]. Que significará amor da pátria aos olhos de quem não tem porvir? Que importa ela? Que valem família, filhos? Para que felicitar todas essas coisas perecedoras e vãs, a custa da própria felicidade? Morram elas e viva o eu. E o eu, o terrível eu, dominará todas as minhas ações. Serei todo matéria, e apetites, e carne, e 225 VEUILLOT, Louis. A ilusão liberal. Niterói, RJ: Editora Permanência, 2010, p. 88. VEUILLOT, Louis. op. cit., p. 87. 227 BUBER, Martin. op. cit., p. 119. 226 65 sangue, e animal! A sublime lei do Gólgota proscreveu o que nossas leis proscrevem, exaltou o que elas exaltam: tanto cuidou do homem eternal como do caduco; tanto legislou para o céu como para a terra. [...]. Mas que vemos em torno? Uma moral de convenção, de conveniência, discutível, discutida porque é sem religião; uma metafísica sem crença; ideias lisonjeiras de pueril vanglória do espírito, mas que não elevam a alma [...]. Respiramos uma atmosfera mefítica de indiferença! Gerações sobre gerações vão rolando como ondas que se quebram nas praias; e cada geração vai achando diminuído o patrimônio humano da fé, do culto, da moral cristã. Tremo só de o pensar, mas o progressivo caimento em que vamos, levar-nos-à, em meio século mais, à ruína das práticas, como dos sentimentos religiosos! Tristonho futuro se me antolha! 228 Parece então que a discussão sobre Nietzsche e o ateísmo da indiferença longe de ser descabida, é bem pertinente. Não foi diferente o pessimismo da parte das lideranças católicas. Foi dessa maneira que Gregório XVI se expressou também. Triunfa soberba a improbidade, insolente a ciência, licencioso o descaramento. A santidade das coisas sacras é desprezada, e a augusta majestade do culto divino, que possui grande força e influxo sobre o coração humano, indignamente é rejeitada, contaminada e tornada objeto de escárnio por homens tratantes. Então se distorce e perverte a sã doutrina e se disseminam de modo audaz erros de todo gênero. Não há leis sagradas, nem direitos, nem instituições, e nem disciplinas por santas que sejam que se encontrem protegidas do ardil deles, que expelem apenas malvadezas de sua boca imunda 229. Neste mesmo sentido, o papa Pio IX230 se posicionou. Talvez o tom dele seja bem mais trágico, uma vez que a abolição dos Estados Pontifícios ocorreu em seu pontificado. Quisessem os céus que nós pudéssemos anunciar-vos o fim dessa grande calamidade! Mas a corrupção dos costumes que se propaga por toda parte, continuamente alimentada por escritos ímpios, infames, obscenos, representações teatrais, casas de meretrício abertas por toda parte e outros perversos artifícios, os erros mais monstruosos e horrendos disseminados por toda parte; a crescente e abominável mistura de todos os vícios e maldades; o mortífero veneno da incredulidade e do indiferentismo largamente difundidos; o descuido e o desprezo para com a autoridade eclesiástica, as coisas e as leis sagradas; o injusto e violento saque dos bens da Igreja; a ferocíssima e contínua perseguição contra os ministros sagrados; o ódio diabólico contra Cristo, contra sua Igreja e doutrina e contra esta Sé Apostólica; e, com esses, também outros inumeráveis excessos que foram perpetrados pelos obstinadíssimos inimigos da catolicidade [...] parecem prorrogar e adiar o tão desejado momento no qual será dado presenciar o pleno triunfo da nossa santíssima religião, da justiça e da verdade 231. 228 CAMPOS, Joaquim Pinto de. (Prólogo). op. cit., p. VIII-X. Itálico do autor. GREGÓRIO XVI. op. cit., p. 27. 230 Pio IX foi papa de 1846 a 1878. 231 PIO IX. “Quanto conficiamur moerore”. Sobre os erros doutrinais do tempo presente. In: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX (1831-1878). São Paulo: Paulus, 1999, p. 232-233. 229 66 Por que não dizer que na província do Maranhão os bispos também se expressavam lastimosos e com pessimismo? O que se percebe na leitura dos ofícios dos bispos diocesanos do Maranhão expedidos ao longo do século XIX é que os clérigos se encontravam diante da negligência e do indiferentismo religioso da parte das autoridades civis. Ora, durante todo o século XIX os bispos do Maranhão lamentaram o que eles chamam de “decadência do culto público”, atribuindo como uma das causas dessa situação a completa negligência ou desinteresse dos poderes provinciais. Agindo assim, será que as autoridades civis já não estavam a enxergar a religião com certas ressalvas ou com certo desprezo? Durante todo o século XIX, os bispos do Maranhão escreveram seus ofícios em tom pessimista, isto em razão dos “[...] males velhos, que lançaram raízes profundas” 232. Com efeito, aquelas considerações de Certeau acerca da “capacidade de crer” foram bem importantes para este trabalho. Elas ensejaram uma reflexão que constitui um dos cernes da nossa análise. O teor dessa reflexão ficou posto nas páginas anteriores. Toda uma estrutura de crença estava sendo desacreditada durante o século XIX. Neste momento, quando fala em leis eternas e divinas, em origens divinas do poder e num Deus invisível e inescrutável, parece que a Igreja Católica discursava a um público absolutamente indiferente e até cético. É isso mesmo que se percebe na leitura dos ofícios que os bispos do Maranhão enviaram aos presidentes da província ao longo do século XIX. Os presidentes parecem indiferentes aos apelos e ameaças espirituais dos bispos. Cedo ou tarde, Excelentíssimo Senhor, comparecemos no Tribunal do Juiz Supremo dos vivos, e dos mortos, onde dando estrita conta dos muitos encargos da minha administração responderei também pelo zelo de solicitar perante as Autoridades temporais os interesses desta Igreja, e Vossa Excelência respondendo pelo cumprimento da Constituição, e das Leis, que nos regem, será também responsável pelos deveres de filho obediente da Igreja, a qual Vossa Excelência promete toda a proteção em qualidade de Delegado do Poder Executivo 233. Durante todo o século XIX os bispos solicitaram o auxílio pecuniário dos presidentes no sentido de suprir o culto público com aquilo que era estritamente básico. As igrejas matrizes, quando existiam, careciam de paramentos, alfaias, vasos e livros sagrados. 232 Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Eduardo Olímpio Machado, 03/04/1855, Setor de Avulsos, APEM. 233 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de Araujo Vianna, 12/07/1831, Setor de Avulsos, APEM. 67 Acresce-se a isto o fato de que “há paróquias onde os atos religiosos são celebrados em pardieiros sem forma alguma de templo” 234 . Notemos que esta informação data já do fim do século. O apelo dos bispos maranhenses por melhoria no aparelhamento do culto público atravessou o século; e este apelo simplesmente parecia não ser ouvido pelos presidentes da província. Essa incúria dos presidentes pode denotar certo indiferentismo. Acostumado como estou, a ouvir queixas de quase todos os Párocos relativamente à falta de meios de que dispõem, para a decência do culto, confesso a Vossa Excelência, que já me acho sem forças para atendê-las, por me faltarem todos os recursos, ainda os naturais, pela má vontade, ou não sei como me exprima, dos sentimentos do século, que tanto entorpecem o bem andamento dos princípios católicos 235. Quando D. Luis da Conceição, em 1870, alienou os bens do patrimônio de São Bento de Bacurituba para suavizar as carências do culto público nessa localidade, ele foi rechaçado e denunciado pelo Inspetor da Tesouraria da Fazenda. Essa desavença mostra claramente o intervencionismo do poder civil nos negócios eclesiásticos. Mostra ainda como eram confusas, tênues e imprecisas as linhas que separavam o que era de jurisdição temporal e o que era de jurisdição espiritual. Mas antes de adentrar nesse estudo das dissidências entre o poder espiritual e o poder temporal no Maranhão oitocentista, é necessária uma discussão sobre certos aspectos essenciais no relacionamento entre a Igreja e o Estado no contexto imperial. 234 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM. 235 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Ambrosio Leitão da Cunha, 21/04/1865, Setor de Avulsos, APEM. 68 3 DISSIDÊNCIAS ENTRE A IGREJA CATÓLICA E O PODER CIVIL NA PROVÍNCIA DO MARANHÃO Este capítulo final é propriamente o cerne de toda discussão. De forma alguma ele pode ser lido de forma desvinculada do que foi dito antes. A leitura deste capítulo deve ser feita de maneira compartilhada e dialogal com os demais capítulos da dissertação. Os aspectos essenciais que norteavam o relacionamento entre a Igreja e o Estado no Império foram postos no capítulo anterior. Eles se referem quase que inteiramente ao direito de padroado e beneplácito. Mas, e a Igreja? Qual a sua “porção” nesse sistema? Não se oferecia à Igreja uma compensação pelo fato da existência do padroado e do beneplácito? Bastava somente a solene declaração contida no art. 5º da Constituição de 1824? Não. A Constituição incumbia as autoridades civis de um dever maior em relação à Igreja e ao catolicismo. Esse dever consistia no juramento de proteção e manutenção da religião católica, previsto nos artigos 103, 127 e 141 da Constituição. O imperador, antes de ser aclamado, era obrigado a jurar que manteria a religião. Se o imperador, por força da Constituição, era obrigado a fazer esse juramento, é claro que tacitamente isso se esparge às demais autoridades civis do Império. “Juro manter a Religião Católica Apostólica Romana”. Aí está o juramento que o art. 103 ordenava o imperador a prestar. “Manter” a religião em que sentido? O que significa aqui “manter” a religião? O verbo manter pode ser entendido no sentido de suprir, de dar suporte. O juramento era a declaração formal de que o Estado se comprometeria em garantir a manutenção da religião oficial do Império. Competia então ao Estado manter, suprir e dar o necessário suporte à religião que ele adotou como oficial. Não se trata aqui de algo abstrato ou de uma simples formalidade. “Manter a religião” foi a tarefa atribuída ao Estado de agir concretamente no sentido de garantir a permanência e perpetuidade do catolicismo. No momento oportuno veremos através de que maneira o Estado poderia “agir concretamente”. Neste capítulo veremos, por intermédio dos ofícios dos bispos diocesanos do Maranhão, se essa regra que incumbia as autoridades civis de manter o culto público foi cumprida ao longo do século XIX na província. Essa discussão serve como contexto para uma das dissidências havidas entre D. Luis da Conceição e o Inspetor da Tesouraria de Fazenda. A segunda controvérsia, mais relacionada com a questão do padroado, se refere a uma decisão da Câmara Municipal de São Luís que modificou um antigo costume da Igreja. 69 3.1 Contexto geral das dissidências As dissidências entre a Igreja e as autoridades civis na província do Maranhão tiveram como pano de fundo aquilo que os bispos chamaram de “declínio do culto público”. Mas não podemos nos enganar com essa expressão. Declínio faz supor que houve um período de ascensão e isso, na província do Maranhão, jamais parece ter ocorrido. O século XIX inteiro foi um longo período de agonia e decadência do culto público. Desde o alvorecer dos Oitocentos até o seu ocaso os bispos do Maranhão clamaram por melhorias na estruturação do culto público. “Todo direito encerra uma contrapartida, uma prestação. A todo direito corresponde um dever. O direito de padroado, além de conferir privilégios, encerra o dever correlato de defender e proteger a Religião Católica” 236. Através de diversas atitudes o Estado poderia promover a defesa e a proteção da religião, sendo que uma delas consistia no subsídio que o Estado deveria oferecer para a instrumentalização e manutenção do culto público e dos seus ministros. O padroado incumbe “ao Estado incumbe [...] o dever de subsidiar o culto divino, mantendo ministros, templos e alfaias, bem como os seminários eclesiásticos” 237. Foi neste sentido que D. Marcos de Sousa se expressou ao dizer: “Espero que em tempo conveniente sejam dadas as providências requeridas em favor das paróquias, as quais o Governo é obrigado a edificar, reparar, e dotar por dever do Padroado” 238. Ora, é sabido que as religiões possuem cultos exteriores e que a existência desses cultos está associada à própria manutenção da religião. Para que possamos entender a importância e a centralidade do culto público no caso do catolicismo, vejamos um trecho de monsenhor Pinto de Campos: Se há um Deus, e uma revelação, há, certamente, um culto determinado e positivo; e será sempre este o direito comum, a lei divina, e positiva do gênero humano. A Igreja negaria a revelação; negaria a si mesma, no dia em que obliterasse esta fé, ou renunciaria à sua missão, se não a proclamasse 239. 236 SCAMPINI, José. “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado”. Primeira parte – A liberdade religiosa no Brasil império. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 11, nº 41, jan./mar. 1974, p. 114-115. 237 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 140. 238 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Luis Alvares de Lima, 07/03/1840, Setor de Avulsos, APEM. 239 CAMPOS, Joaquim Pinto de. A igreja e o estado: o catolicismo e o cidadão. Rio de Janeiro: Typographia do Globo, 1875, p. 107. 70 Nota-as daí que o culto é elemento essencial do catolicismo. O culto é a forma pública de louvor a Deus, é a forma de exteriorização, de proclamação da mensagem a qual a Igreja se sente depositária. Isto é assim porque é “[...] evidente que Deus não revelou a fé sem o culto, que é a sua forma, e que, por conseguinte, é dever da mesma Igreja propagar a fé, e a forma” 240. O cerne, a razão mesma de ser do culto católico é a Eucaristia, o mais importante dos sacramentos da Igreja. O culto é o ritual que busca não só recordar, mas também percorrer a trajetória da vida Jesus, que culminou em sua imolação. Por isso que o culto católico recebeu o nome de Santo Sacrifício da Missa. Na linguagem das Constituições Sinodais da Bahia, a missa é um sacrifício porque o [...] sagrado Mistério da Eucaristia, e celebração da Missa consiste o verdadeiro, real, e único sacrifício, que tem a Igreja Católica: porque o mesmo Cristo, que instituiu como Sacramento o Mistério do seu Corpo, e Sangue sacramentado, quis que o mesmo Mistério fosse verdadeiro sacrifício. E este sacrifício o mesmo, quanto à substância, que Cristo Senhor nosso, como Sumo Sacerdote ofereceu ao Eterno Pai pela redenção do mundo na Ara da Cruz; mas difere quanto ao modo: porque o da Cruz foi sacrifício cruento com derramamento de sangue, e real, e verdadeira morte de Cristo; porém este da Eucaristia é incruento sem derramamento de sangue, e só morte mística do mesmo Cristo, ambos porém quanto à substância são o mesmo; porque Cristo é o principal Sacerdote em um, e outro sacrifício; e a mesma vítima do seu Corpo, e Sangue, que na Cruz ofereceu ao Pai é a que oferece por seus Ministros no Sacrifício da Missa 241. Assim, manter a religião católica é, entre outras coisas, manter o culto a ela associado. Portanto, o suporte vindo do Estado deveria se materializar na forma de auxílios pecuniários e de subvenções destinadas à manutenção do culto público da religião adotada como oficial. Mas o que se percebe através da leitura dos ofícios dos bispos do Maranhão é que este dever do Estado, a contrapartida do privilégio do padroado, foi simplesmente negligenciado pelas autoridades civis. Durante todo o século XIX as igrejas matrizes da província, quando existiam, eram carentes dos mais essenciais aparatos para o culto. 240 CAMPOS, Joaquim Pinto de. A igreja e o estado: o catolicismo e o cidadão. Rio de Janeiro: Typographia do Globo, 1875, p. 108. 241 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 133. (Livro Segundo, Título I das Constituições). 71 Para realizar-se o culto, é necessário uma série de instrumentos, utensílios, ornamentos e o local apropriado para tanto. E, neste sentido, as mesmas Constituições Sinodais da Bahia ordenavam o seguinte: E porque é mais conveniente não celebrar, do que dizer Missa em lugar não sagrado, e destinado pela Igreja para este Santo Sacrifício, e o direito, e Sagrado Concilio proíbe o celebrar-se fora das Igrejas, Capelas, Oratórios, e Ermidas aprovadas, e visitadas pelos Ordinários, conformando-nos com sua disposição ordenamos, e mandamos, que nenhum Sacerdote secular, ou Regular diga Missa em casas particulares, e fora da Igreja, no campo, ou outro qualquer lugar, posto que aí seja convocado o povo, nem em Igreja interdita, violada, ou poluta, nem em Ermida, Capela ou Oratório particular, não sendo por Nós visitado, e aprovado 242. Pelos ofícios dos bispos nota-se que na província do Maranhão se instaurou, em relação ao culto, um cenário que foi uma verdadeira antítese das disposições das Constituições Sinodais da Bahia. Tais Constituições, versando sobre normas e ditames eclesiásticos, foram a expressão nacional dos preceitos do Concílio tridentino. Pode-se dizer as disposições de Trento chegaram ao Brasil por intermédio das ditas Constituições. Este documento engloba um compêndio vastíssimo que, em tese, deveria orientar o clero a respeito, entre outras coisas, dos dogmas, dos sacramentos, das heresias e como tratá-las, e das obrigações do clero. Em se tratando da diocese do Maranhão, as Constituições foram de fundamental importância tendo em vista que foi por meio da “[...] Constituição Sinodal Baiense, se rege esta Diocese Sufragânea” 243. A diocese do Maranhão, por ser sufragânea em relação ao Arcebispado da Bahia, deveria acatar as normas eclesiásticas daí oriundas. No entanto, do começo ao fim do século XIX, a maioria das igrejas matrizes maranhenses apresentaram-se diametralmente opostas às determinações das referidas Constituições. Notase dos ofícios que a missa no Maranhão provincial era sim celebrada em palhoças, pardieiros e em casas particulares. Dissemos que uma das nossas intenções neste trabalho é apresentar e analisar os discursos e representações que os bispos usaram em favor de si próprios e da Igreja quando diante de demandas com o poder civil. Vejamos que argumentos os bispos usavam quando solicitavam melhorias no aparato do culto. Possuía o culto, a missa uma relevância social? 242 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 137-138. (Livro Segundo, Título IV das Constituições). 243 Ofício do Bispo Dom Frei Carlos de São José ao Presidente da Província do Maranhão Joaquim Franco de Sá, 01/06/1847, Setor de Avulsos, APEM. 72 Na visão dos bispos do Maranhão, o culto era o meio mais exímio de erguer, promover e manter a civilização. Para D. Luis da Conceição Saraiva, o culto é “(...) o mais edificante objeto, o elemento mais forte para moralizar a sociedade, porque mesmo constitui o primordial objeto do Catolicismo” 244. Era ainda o culto entendido como uma das bases sobre a qual se estruturava a firmeza do Império, como o suporte seguro do Estado: “[...] a Religião, é a mais sólida coluna, em que se firma a estabilidade dos Impérios, e segurança dos povos”245. Se Estado e Igreja estão unidos por meio do padroado, então a ruína da Igreja Católica corresponderia igualmente à ruína do Estado brasileiro. Sem dúvida, foram dois os grandes suportes das argumentações dos bispos em seus ofícios. Os bispos sempre recorreram aos artigos 5º e 103 da Constituição de 1824, e às determinações do Concílio de Trento, bem como das Constituições Sinodais da Bahia. Eles se reportaram à Constituição no sentido de enfatizar a “proteção jurada” ao catolicismo. D. Marcos Antônio de Sousa parece ter se expressado nesse sentido quando disse: [...] tendo a Constituição do Império estabelecido que a Religião Católica Apostólica Romana continuaria a ser a religião do Estado, tendo garantido o seu dogma, Moral, disciplina, seus templos, e edifícios Eclesiásticos, e ainda a subsistência de seus ministros, [...] espero tão bem em abono da Religião Santa, e da Igreja naquela parte que ela descansa na proteção das Autoridades temporais que V. Exª. praticará em seu favor tudo que mandar as Leis Canônicas, e Civis, tendo em respeito os objetos destinados ao culto do Senhor, e sustentação dos seus ministros 246. Já com relação ao Concílio tridentino e às Constituições do Arcebispado da Bahia, pode-se dizer que eles foram abordados pelos prelados como as diretrizes doutrinais e disciplinares a serem seguidas. Isso pode ser vislumbrado num ofício em que D. Marcos de Sousa reclama em favor da conservação dos registros de batismo em um arquivo sob sua direta vigilância, e não em “[...] habitações de alguns párocos em lugares esmos, e solitários”. Nesse contexto, D. Marcos disse o seguinte: O Registro dos batismos decretado pelo Sacrossanto Concílio Tridentino [...] é uma lei disciplinar observada em todo o Catolicismo, e por isso da competência do Poder 244 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM. 245 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de Araujo Vianna, 13/02/1832, Setor de Avulsos, APEM. 246 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de Araujo Vianna, 05/07/1831, Setor de Avulsos, APEM. 73 Eclesiástico fazer os regulamentos convenientes à observância da mencionada lei canônica. É ato conexo, e intimamente ligado com a administração do Sacramento, e por isso em toda a Igreja Católica este objeto tem sido regulado pela autoridade dos Prelados Diocesanos. [...]. É um objeto disciplinar e relativo à administração dos Sacramentos e que não pode ser alterado sem o concurso do Poder espiritual segundo o Concílio Tridentino Sessão 21 Cap. 2º de Reformatione. E declarando muito positivamente o Art. 5º da Lei fundamental deste Império, que a Religião Católica, Apostólica, Romana continuará a ser a Religião do mesmo Império, é consequente que não só compreenda o dogma, como também a Moral, culto, hierarquia, e parte disciplinar tão necessária a manutenção do mesmo culto 247. Por isso, para D. Marcos, os registros “serão guardados com mais recato, e segurança em um arquivo debaixo das vistas da primeira Autoridade Eclesiástica da Diocese”. Ora, o que nós estamos discutindo desde o capítulo anterior é justamente essa divergência de opiniões entre a hierarquia da Igreja e o Governo civil acerca da oficialização do catolicismo. Para D. Marcos, o art. 5º da Constituição era autoevidente: “E declarando muito positivamente o Art. 5º da Lei fundamental deste Império, que a Religião Católica, Apostólica, Romana continuará a ser a Religião do mesmo Império, é consequente que não só compreenda o dogma, como também a Moral, culto, hierarquia, e parte disciplinar [...]”. A “lógica” do beneplácito simplesmente inverte esse raciocínio de D. Marcos de Sousa. Só atravessa o crivo do beneplácito aquilo que não fere a Constituição de demais leis civis. Regressemos à temática do culto público. Pode-se dizer que, basicamente, eram três as carências maiores relacionadas ao culto: 1) ausência total de templos ou ruína das igrejas matrizes existentes; 2) falta de sacerdotes para ministrarem o culto e 3) falta de paramentos e alfaias 248 . Sobre essa temática, Lyndon de Araújo Santos se pronuncia de forma aproximada à nossa percepção. Tomando como fonte o relatório do Presidente Augusto Olímpio Gomes de Castro, reproduzido n’O Publicador Maranhense de 3 de maio de 1871, disse: Três eram “as causas mais salientes da decadência do culto público”, que demonstravam a ineficiência do Estado, mas também as críticas da época à própria Igreja e aos seus seguidores, já não tão fiéis assim: a falta de recursos por parte da província, a indiferença religiosa da população e o pouco zelo dos sacerdotes. As 247 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Capitão de Mar e Guerra e Presidente da Província do Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 23/06/1837, Setor de Avulsos, APEM. 248 Em geral, correspondem ao conjunto de objetos litúrgicos, indispensáveis à celebração do culto religioso. São eles, por exemplo: cálice, toalhas para o altar, vasos sagrados, crucifixo, castiçal, patena, velas, ostensório, incenso, indumentárias litúrgicas, entre outros. 74 provas estavam no estado de ruína dos poucos templos e na falta de alfaias e paramentos para os ofícios 249. Lyndon de Araújo teve como fonte a fala do Presidente da Província. Já o nosso estudo teve como fonte os ofícios dos bispos. Não é de se estranhar que o Presidente e os bispos, o primeiro associado ao Estado e os outros à Igreja, tenham exposto pareceres divergentes ou conflitantes. A falta de sacerdotes parece ter sido intensa na primeira metade do século XIX. O primeiro seminário da diocese do Maranhão surgiu apenas ao final da década de 1830, após um longo período de insistência por parte de D. Marcos Antônio de Sousa. Notamos nos ofícios que eram numerosas as solicitações das freguesias do interior da província por ministros do altar. D. Marcos, quando diante de uma demanda da Vila da Tutoia, disse o seguinte: É muito atendível o que representa o corpo Municipal sobre a falta de Sacerdotes para administração dos Sacramentos naquela freguesia, mas quando os habitantes daquele município auxiliarem a vocação de seus filhos para o estado Sacerdotal, quando as Municipalidades da Província requererem às Autoridades constituídas o estabelecimento de colégios Eclesiásticos para abrigo, e educação da mocidade, os quais Seminários os Poderes Nacionais se prestarão a manter em respeito as Leis existentes, e cumprimento da proteção jurada a Religião Católica, Apostólica Romana, não haverá tão sensível carência de obreiros Evangélicos [...]. Sem sacerdócio não pode haver Religião, nem conservar-se a Moral, principio da ordem social, e tranquilidade Pública 250. Neste fragmento, diretamente D. Marcos associa a carência de sacerdotes à ausência de um seminário que os forme: “Não há sacerdotes, por que apesar de todas as minhas diligencias não tenho podido organizar um Seminário tão recomendado pelo Concílio de Trento [...]” 251. Assim, o problema da falta de sacerdotes deve-se à falta de um seminário que lhes dê instrução e educação para tal finalidade. Além do mais, segundo o parecer do mesmo bispo, é importante que o pretendente a sacerdote seja nascido na província ou na localidade na qual exercerá seu ofício “[...] porque estes seriam os mais próprios ministros, e 249 SANTOS, Lyndon de Araújo. As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira república brasileira. São Luís: EDUFMA; São Paulo: Editora ABHR, 2006, p. 99. 250 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Joaquim Vieira da Silva e Souza, 04/03/1833, Setor de Avulsos, APEM. 251 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de Araujo Vianna, 23/02/1832, Setor de Avulsos, APEM. 75 mais bem quistos do povo na opinião de S. Thomas de Aquino” 252 . Essa é a tendência geral que observamos nos ofícios de D. Marcos quando responde às municipalidades que solicitam párocos e sacerdotes. Entre as referidas municipalidades estão, entre outras: a Vila de São Bernardo “queixando-se da falta de socorros espirituais por não haverem sacerdotes que os administrem” 253 ; a Povoação de São José “[...] privada dos socorros do Sacramento” 254 ; os habitantes da Vila do Buriti (ofício de 16/10/1833) e a Vila do Brejo (ofício de 06/05/1837). Foi somente “na tarde de 17 de abril de 1838, [que] inaugurou o Pastor o seu Seminário, no Convento de Santo Antônio, diante do Presidente Vicente Thomaz Pires de Figueiredo Camargo, do Clero e de numerosas autoridades” 255 . Dessa forma, pode-se dizer que D. Marcos de Sousa procurou orientar-se pelas determinações tridentinas “que impõem aos Bispos Diocesanos a obrigação de criar seminários, onde possam ser formados, na prática dos bons costumes e no estudo das ciências e das artes, os aspirantes do sacerdócio” 256. Mas a fundação de um seminário, por si só, era algo que nada poderia garantir sem a necessária estruturação. O seminário de Santo Antônio subsistiria com numerosas dificuldades e minguados recursos. Nesse sentido, disse Felipe Condurú Pacheco que “só D. Marcos, com sacrifícios e um parco auxílio da Assembleia Provincial, [pôde] fundar o Seminário de Santo Antônio em um dormitório do mesmo Convento, cedido para esse fim, e que não comporta mais de 25 a 30 alunos internos” 257. O problema apenas parcialmente havia sido resolvido: no convento de Santo Antônio funcionaria o Seminário Diocesano. Mas a modicidade de recursos disponibilizados pelo Governo, acrescida à insuficiência de candidatos ao estado eclesiástico terminou por figurar, em parte, como outro óbice ao culto público. D. Antônio Cândido de Alvarenga acresceu mais um agravante a esse contexto. Disse ele que: 252 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de Araujo Vianna, 23/02/1832, Setor de Avulsos, APEM. 253 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Cândido José de Araujo Vianna, 23/02/1832, Setor de Avulsos, APEM. 254 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Joaquim Vieira da Silva e Sousa, 07/03/1833, Setor de Avulsos, APEM. 255 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 147-148. 256 RODRIGUEZ, Angel Veiga. Crítica ao positivismo na imprensa católica maranhense. São Luís: SECMA, 1982, p. 32. 257 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 288. 76 Não havendo verdadeiros sentimentos religiosos nas famílias que dispõem de recursos para educar seus filhos, preferem os pais destiná-los a outras carreiras e profissões civis, sem consagrarem um deles ao serviço de Deus, não sendo raros os casos dos próprios pais afastarem seus filhos da carreira eclesiástica, quando percebem neles alguma inclinação e vocação para ela 258. Se na década de 1830 acreditava-se que a escassez de sacerdotes se devia à falta de um seminário que os formasse e os instruísse, com o correr dos anos e com a persistência da carência, percebeu D. Antônio de Alvarenga que o reduzido número de padres era um dos corolários dos “sentimentos do século”. A falta de sacerdotes, que muito se faz sentir nesta diocese, é a razão de estarem vagas 16 paróquias [...]. Diversas são as causas que concorrem para a diminuição do clero nesta diocese, das quais a principal é a indiferença religiosa que se observa nos tempos atuais 259. Observamos, portanto, que aquela discussão feita no segundo capítulo acerca do indiferentismo religioso é bem pertinente. É claro que a escassez de sacerdotes figurou no rol das carências enfrentadas pelo culto católico no Maranhão oitocentista. Essa foi uma das mais relevantes carências enfrentadas pela Igreja, mas não parece ter sido a principal, isso tomando por base os ofícios. O estado de ruína dos templos da província, bem como a falta de paramentos e alfaias constituíram como que o cerne de todos os impasses postos à realização do culto 260 . Na província do Maranhão, “os Templos em quase sua totalidade ou não existem, ou pedem urgentes providências” 261. Foi neste sentido que D. Luis da Conceição se posicionou. Bem decadente vai o culto público entre nós prendendo-se as suas causas a tempos mais ou menos distantes e circunstâncias diversas, a todas sobressaindo a qual falta de Igrejas matrizes pelo interior da Diocese, onde raríssimas existem com a devida 258 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM. 259 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM. 260 Vide o Quadro III anexado ao final da dissertação. Esse quadro apresenta as freguesias cujas igrejas matrizes estavam desestruturadas ou necessitadas de sacerdotes para os serviços espirituais. As respectivas informações adicionais acerca de cada matriz, vila ou freguesia são oriundas dos ofícios. 261 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM. 77 decência ao respeito reclamado pelo culto católico, muitas a desmoronarem-se, e não poucas freguesias sem elas! 262 A Constituição do Arcebispado da Bahia ordenava a ereção das igrejas paroquiais em lugares decentes, de forma a se compatibilizarem com o seu alto valor de casa de oração. Determinava a Constituição Sinodal da Bania que as mesmas igrejas não fossem motivo de “[...] escândalo pela pouca decência, e ornato delas” 263 . Mandava ainda “[...] que em cada uma das Igrejas haja precisamente ornamentos, e móveis para se celebrar com decência, e limpeza [a missa]” 264 . Para que a missa se realize é necessário minimamente que haja templos, devidamente aparelhados para tal finalidade. Mas no Maranhão havia se tornado comum “[...] o estado de completa ruína da maioria dos Templos da Província, a ponto de muitos Párocos exercerem as funções de seu ministério e celebrarem os Mistérios Sacrossantos da Religião Católica, até em choupanas de palha” 265. Para D. Luis da Conceição, o Estado tinha grande parcela de culpa no que se referia a desestrutura do culto público. Em seu relatório, datado de 10 de outubro de 1863 e acompanhado de um “Mapa das Necessidades urgentes das Matrizes da Província do Maranhão”, ele disse que os Poderes do Estado têm de alguma sorte concorrido para a atual decadência, porque os meios de que dispõem o Bispo e os párocos não bastam para as palpitantes necessidades (completa ruína de muitas paróquias, o desconcerto de quase todas e a falta de alfaias, e paramentos, ainda os mais estritamente precisos para a decência do cultos) 266. Em 21/04/1865 D. Luis da Conceição enviou ao Presidente da Província um ofício com o seguinte teor: “Não desconheço, Excelentíssimo Senhor, o estado decadente do Catolicismo não só nesta diocese, mas nas de todas do Império”. Isso, segundo o bispo, 262 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Alves de Sousa Carvalho, 29/03/1867, Setor de Avulsos, APEM. 263 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 254 (Livro Quarto, Título XIX das Constituições). 264 VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 258. (Livro Quarto, Título XXII das Constituições). 265 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Lafayette Rodrigues Pereira, 23/06/1865, Setor de Avulsos, APEM. 266 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 302. 78 [...] demonstra o abandono, em que está o culto público, e a impossibilidade de se exercer como exige a honra a Deus ou pelas ruínas e desconsertos das Paróquias, ou pela falta de alfaias, e paramentos ainda os mais estritamente precisos. E sendo o culto público o mais edificante objeto, o elemento mais forte para moralizar a sociedade, porque mesmo constitui o primordial objeto do Catolicismo, não é possível que [o culto público] continue a ser tratado num País Católico e civilizado, como principal objeto de indiferença política e religiosa! 267 Já o Marquês de Olinda, ministro do Império, se posicionava sobre isso dizendo: “tudo se espera do Estado, que não tem meios de acudir a tudo” 268 . Sobre esse assunto, considerou Lyndon Santos que “o governo tinha dificuldades no sustento do culto oficial, principalmente quanto aos recursos financeiros para o pagamento do clero, construção e reforma dos templos” 269. A própria Catedral do Maranhão, primeira das igrejas da província, seguia o compasso das carências: [...] a [Catedral] experimenta necessidades, que, pela diminuta renda, que o Governo Imperial dá a sua Fábrica, não posso remedia. Grande parte de suas alfaias estão dilaceradas e indecentes para servirem à majestade do Culto. Sua Sacristia, que foi acometida pelos cupins, em virtude das madeiras velhas do antigo Paço Episcopal, que foram amontoadas a seu lado, precisa de sérios reparos. A mitra, já sobrecarregada com as muitas necessidades, e sustentação das festividades, que se fazem na mesma Catedral, não pode provê-las por suas pequenas rendas [...] 270. Necessitada de constantes reparos durante praticamente todo o século XIX, só com D. Antônio Cândido de Alvarenga, em 1886, será empreendida uma reforma estrutural com a verba de 30:000$000 a qual o Governo havia dotado a obra. Em relatório de 10 de março de 1886, descreveu D. Alvarenga que de 1º de julho de 1853 até 5 de março de 1886 dera-se a empreitada sendo concluída “durante 2 anos e 7 meses com algumas interrupções”271. E também o prédio do Paço Episcopal, abalado estruturalmente, fora definitivamente demolido em 1859 por ordem do Governo, o qual “votou dez contos de réis 267 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Ambrosio Leitão da Cunha, 21/04/1865, Setor de Avulsos, APEM. 268 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 302. 269 SANTOS, Lyndon de Araújo. As outras faces do sagrado: protestantismo e cultura na primeira república brasileira. São Luís: EDUFMA; São Paulo: Editora ABHR, 2006, p. 99. 270 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM. 271 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 381-382. 79 anuais para a construção do novo prédio” 272. A nova construção, no entanto, não logrou êxito e, assim, os bispos passaram a residir em casa alugada, não mais funcionando o Episcopado em edifício próprio. “Quase meio século lutaram os Pastores da Igreja do Maranhão, para terem sua residência própria” 273. O novo Paço Episcopal só foi inaugurado em 1905, findado o Império e separado o Estado da Igreja Católica. O que podemos considerar então é que o assunto do culto público modicamente chamava a atenção do poder civil provincial. As solicitações dos bispos por melhorias foram frustradas e improfícuas até a década de 1850. No entanto, mesmo consciente “da pouca proteção que este objeto tem merecido dos poderes da província” e que tal displicência “[...] tem poderosamente agravado o mal, em que atualmente permanece” 274 , D. Frei Luis da Conceição considerava que a religião não poderia dispensar o auxílio do Estado, sobretudo porque pobre, como é, nosso País, e não podendo agenciar meios entre os Fiéis, que na maior parte das freguesias precisam de fortuna, como prescindir da proteção sincera dos poderes públicos, para a construção dos Templos que em quase sua totalidade ou não existem, ou pedem urgentes providências? 275 O auxílio pecuniário do governo provincial para a finalidade de reparo das igrejas matrizes é mais nitidamente observado apenas na segunda metade do século XIX. Alguns valores foram disponibilizados pelos cofres provinciais para o referido fim, entre eles: 8:000$000 “[...] consignados na Lei vigente do Orçamento Provincial Nº 404 de 21 de Julho de 1855 Art. 10 § 2 para paramentos das Igrejas Matrizes, e Capelas” 276 ; 16:000$000 previstos “[...] na Lei Provincial nº 404 de 21 de Julho de 1855, [...] para construção, e reparo das Matrizes mais necessitadas” 272 277 ; 14:000$000 “posta a minha disposição por Ofício da PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 303. PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 320. 274 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM. 275 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 09/04/1864, Setor de Avulsos, APEM. 276 Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Cândido da Cruz Machado, 04/08/1856, Setor de Avulsos, APEM. 277 Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Cândido da Cruz Machado, 04/08/1856, Setor de Avulsos, APEM. 273 80 Presidência de 14 de Agosto de 1858” 278 e 12:000$000 destinados pela Lei Provincial nº 687 de 25 de junho de 1864 para construção das matrizes do interior da província. Mesmos estes auxílios se mostraram insuficientes. Nesse sentido, disse D. Luis da Conceição “[...] que é certo e bem lamentável que ache-se gasta uma verba bem importante [12:000$000] e nenhum fruto haja auferido à população da província [...] e nem à Igreja Maranhense, que continua a lamentar a falta de Igrejas Matrizes”. E ele continua: É forçoso confessar que não pequenas quantias têm sido despendidas pelos cofres provinciais para construir novas Igrejas Matrizes e reparar as arruinadas, as quais, tendo sido entregues às Comissões parciais, de nenhuma utilidade têm servido, porque à exceção da Igreja Matriz da vila do Rosário e de mais duas ou três [o bispo não as especifica], jaz a província ainda sem templos, e os povos em constantes reclamações por uma casa de oração, onde possam reunir-se orar em comum 279. Da forma como D. Luis se explica em outro momento, percebe-se que o Governo, na administração daquelas quantias, não confiava inteiramente no bispo. E isso tanto é dessa forma que “[...] na aplicação das diferentes verbas à construção e reparo das Igrejas Matrizes, elas [foram] entregues por ordem do governo da província às Comissões, por cuja conta corre toda fiscalização de tais quantias, não tendo o Bispo a menor ingerência a respeito” 280 . Acresce-se a isso que aquela quantia de doze contos de réis, “[...] à minha disposição posta para distribuí-la nos reparos das Matrizes e aplicá-la como melhor entendesse”, efetivamente não foi administrada pelo Bispo uma vez que [...] as Instruções que V. Exª. fez baixar em data de 22 de Junho findo, cujo fim era assegurar a aplicação real dos dinheiros da província proporcionaram a ocasião de declinar de mim toda e qualquer responsabilidade na aplicação desses dinheiros, e aquela confiança [...] 281. 278 Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão João Lustosa da Cunha Paranaguá, 29/03/1859, Setor de Avulsos, APEM. 279 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Braz Florentino Henriques de Sousa, 10/07/1869, Setor de Avulsos, APEM. 280 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Braz Florentino Henriques de Sousa, 10/07/1869, Setor de Avulsos, APEM. 281 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Lafayete Rodrigues Pereira, 23/11/1865, Setor de Avulsos, APEM. 81 Os dinheiros das verbas destinadas ao reparo e construção das matrizes foram postos à disposição de comissões que organizaram a aplicação efetiva das somas. Mas em seus ofícios, D. Luis demonstra que não confiava na idoneidade das comissões. A direção que se tem dado às obras das matrizes, tem sido pelo juízo de pessoas não suspeitas declarada má. [...] Falta um centro de unidade administrativa, principal objeto da crítica de todas as pessoas sensatas, que comigo têm falado a semelhante respeito. Estejam, pois, os dinheiros, neste sistema, em qualquer depósito e nas mãos de quem quer que seja, e nada se remediará. [...] Desde que tomei posse da diocese que ouvi comentar e censurar-se os desvios, que tiveram certos dinheiros dados para as obras das matrizes 282. Vê-se, desse modo, que há sinais de corrupção dentro das comissões destinadas ao reparo e construção das igrejas. Sem dúvida, podemos supor que os desvios das verbas minoraram a possível eficácia das quantias no sentido de remediar as carências que incidiam sobre culto público. À possível corrupção no trato das somas destinadas ao provimento da aparelhagem do culto, associava-se a insuficiência das mesmas quantias para solucionar igualmente os problemas de todas as freguesias da capital e do interior da província. Isso é observável, por exemplo, na quantia de duzentos mil réis destinada às obras de reparo na Matriz de São Francisco Xavier de Monção a qual “[...] o Vigário respondeu que aquela quantia aplicada era insuficiente para a dita obra” 283. Há ainda o caso da igreja matriz de São Sebastião da Manga do Iguará, “[...] que havendo-se esgotado a pequena subvenção de 500//000 réis concedida para as ditas obras, estavam elas paradas sem haver meios de continuar [...]” 284. Mesmo após a disponibilização das quantias para o reparo, notou D. Manuel Joaquim da Silveira que [...] no que respeita ao material dos Templos, se não estão as coisas em pior estado, como não tenho o menor escrúpulo de asseverar, [é] porque as tenho apalpado por 282 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Vice-Presidente da Província do Maranhão Desembargador Miguel Joaquim Ayres do Nascimento, 19/05/1864, Setor de Avulsos, APEM. 283 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Francisco de Paula Pereira Duarte, 23/04/1842, Setor de Avulsos, APEM. 284 Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Antônio Cândido da Cruz Machado, 12/06/1856, Setor de Avulsos, APEM. 82 assim dizer com as minhas próprias mãos, com toda a certeza melhora alguma se tem dado 285. Se antes o problema estava na falta de recursos que auxiliassem na construção ou reconstrução das matrizes e no provimento de paramentos e alfaias, agora, com a subvenção provincial, tem-se o indício de que as quantias ou foram insuficientes para as obras, ou foram desviadas pelas Comissões delas encarregadas, ou as duas coisas juntas. Em nosso ponto de vista, os problemas enfrentados pelo culto na diocese do Maranhão expressam o próprio relacionamento entre Igreja Católica e Estado, repleto de desentendimentos, de rupturas, de dissensões. Trata-se, portanto, não de algo próprio do Maranhão, mas, próximo àquilo que disse D. Luis da Conceição: “Não desconheço, Exmo. Senhor, o estado decadente do Catolicismo não só nesta diocese, mas nas de todas do Império” 286 . Assim é que também no Maranhão oitocentista houve um tipo de tratamento destinado à Igreja Católica que se assemelhava de modo mais geral ao contexto nacional e internacional, qual seja: o paulatino abandono por parte do poder civil. Citemos outra vez outra vez um trecho de D. Luis da Conceição que, sem dúvida, resume esse contexto: “A falta de alfaias, e paramentos, ainda os mais estritamente precisos para a decência do culto, indicam sensível indiferença, e imenso abandono pelas coisas de Deus” 287. Agora podemos compreender com maior precisão aquele dever previsto na Constituição de “manter a religião católica”. Prover as paróquias de sacerdotes, templos, paramentos e alfaias é o essencial, o vital para a viabilização do culto e, portanto, para a manutenção da religião. Assim é que D. Marcos de Sousa se dizia “[...] convencido que não pode existir religião sem ministros, e templos [...]” 288. Ocorre que na província do Maranhão, o culto público coexistiu e se adaptou ao desaparelhamento, fez-se com ele. As mazelas, o problema da desestrutura física e material das igrejas matrizes atravessou o século XIX. Em 1886, dizia D. Antônio Cândido de Alvarenga: 285 Ofício do Bispo Dom Manoel Joaquim da Silveira ao Presidente da Província do Maranhão Eduardo Olímpio Machado, 03/04/1855, Setor de Avulsos, APEM. 286 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Ambrosio Leitão da Cunha, 21/04/1865, Setor de Avulsos, APEM 287 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 303. 288 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente e Comandante das Armas da Província do Maranhão, o Coronel Luis Alvares de Lima, 27/11/1840, Setor de Avulsos, APEM. 83 Em geral o que aqui chama-se igreja paroquial ou igreja matriz são pequenas capelas que só admitem no seu recinto um limitado número de pessoas; sem os compartimentos e acomodações necessárias a uma igreja paroquial propriamente dita, quase sempre de uma construção fraca, sem o asseio preciso, e desprovidas de paramentos, alfaias, vasos sagrados e outros objetos necessários ao culto (...). Há paróquias onde os atos religiosos são celebrados em pardieiros sem forma alguma de templo [...] 289. Mas o interessante a se notar é que mesmo diante da falta do indispensável o culto não deixa de acontecer. Seja em igrejas arruinadas e desabadas, seja em casas particulares, choupanas, pardieiros, em casas de palha ou sem “[...] Igreja alguma, [onde] o altar se achava colocado em um edifício que então servia de cadeia” 290, aí mesmo o culto acontecia. Como dissemos num momento anterior da dissertação, mesmo diante da possível displicência da parte do Governo, não há qualquer sinal nos ofícios dos bispos do Maranhão que nos faça concluir que eles almejassem a separação entre a Igreja e o Estado. Conscientes da pobreza material da diocese maranhense, os bispos enxergavam nas subvenções do Estado um módico, mas útil recurso. Da discussão que foi feita aqui e no capítulo anterior, podemos vislumbrar a existência de duas cosmovisões, uma da Igreja e a outra do Estado. A Igreja via-se como braço útil à estabilidade do Império e, por isso, deveria o Estado salvaguardá-la mantendo, entre outras coisas, o culto oficial. Já o Estado, pelo que foi visto nos ofícios, comportou-se com aparente negligência no que concerne ao culto oficial. Desse modo, parece que na província do Maranhão a manutenção da Igreja Católica esteve atrelada à sua capacidade adaptativa, à capacidade de contornar empecilhos e a sobreviver mediante entraves e até em consonância com eles. No século XIX, a Igreja se depara com a falta do que é básico ao culto. É por isso que falar em ascensão e decadência do culto público na província do Maranhão é, no mínimo, uma imprudência. Ora, se no século XIX o grande problema dizia respeito à falta daquilo que é estritamente básico para a existência do culto, como não terá sido antes disso? Será possível dizer que os bispos do Maranhão estiveram imbuídos de um desejo de reforma ou de um espírito ultramontano? Teriam os prelados maranhenses das últimas décadas do século XIX recebido influxos do ultramontanismo? Sim, evidentemente isso pode 289 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão João Capistrano Bandeira de Mello, 09/01/1886, Setor de Avulsos, APEM. 290 Ofício do Bispo Dom Marcos Antônio de Sousa ao Presidente da Província do Maranhão Francisco Bibiano de Castro, 26/08/1837, Setor de Avulsos, APEM. 84 ter sido possível. Mas quando se está diante da falta daquilo que é indispensável, é bem difícil ter outras preocupações que não sejam aquelas mais imediatas. Na parte inicial deste capítulo discutimos acerca daquilo que chamamos de “contexto geral das dissidências”. As dissidências se deram num cenário em que se pode vislumbrar um certo abandono do culto público por parte do poder civil da província. O que foi dito nesta primeira parte serve como que uma “chave de compreensão” para as dissidências que serão abordadas mais a seguir. Antes disso, trataremos sobre um dos protagonistas das dissidências. 3.2 Um pouco sobre D. Frei Luis da Conceição Saraiva, 18º bispo do Maranhão Digamos que esta parte do nosso trabalho funciona como uma grande nota explicativa que não foi colocada no rodapé por ser relativamente longa. Pelo fato de D. Saraiva ter sido protagonista nas duas dissidências a serem discutidas, pensamos ser conveniente apresentar algumas informações sobre ele. É claro que está fora de propósito fazer aqui um pormenorizado estudo biográfico de D. Saraiva. As breves linhas que serão aqui escritas sobre ele servem apenas como contextualização, isso justamente pelo fato de ter sido ele o bispo que protagonizou os dois episódios de conflito com o poder civil da província. O texto inteiro sobre D. Saraiva está baseado nas considerações de D. Francisco de Paula e Silva, D. Felipe Condurú Pacheco e de Mário Meireles. D. Luis nasceu na diocese da Bahia, em dezembro de 1824. Aos 17 anos entrou para o Mosteiro de São Bento, na Bahia, onde cursou Humanidades e Teologia. Recebeu as ordens sacras de D. Romualdo Seixas, passando para o Rio de Janeiro com o propósito de aprofundar seus estudos em Teologia. Mais tarde foi ordenado presbítero e obteve o grau de mestre em Teologia Sacra 291. Por duas vezes foi eleito abade do Mosteiro do Rio de Janeiro, a primeira em 1857 292. Em 14 de janeiro de 1861, um decreto imperial o nomeou bispo do Maranhão. O consistório pontifício de 24 de julho do mesmo ano corroborou essa escolha, sendo expedida 291 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 287. 292 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 283-284. 85 a bula confirmativa em 10 de agosto. D. Luis foi sagrado bispo em 20 de outubro de 1861, na igreja de São Bento, no Rio de Janeiro 293 . Em 21 de março de 1862, fez D. Luis sua entrada solene e tomou posse de sua diocese 294. Acima de tudo, foi na parte material que D. Saraiva dedicou maior atenção e desenvolveu suas atividades 295 . “Aos 37 anos completos assumira o governo do Bispado e dedicara-se desde logo a reconstruir prédios e neles instalar colégios masculinos e femininos”296. Em maio de 1863, almejou ele fundar uma biblioteca católica: “Convindo que haja nesta Diocese uma Biblioteca Católica, donde todos os Fiéis, especialmente o Clero, possam receber os sãos princípios, e as doutrinas isentas de erro”. E, ainda em 1863, fundou a Sociedade Eclesiástica de Socorro ás Famílias dos Militares que partiram para a guerra do Paraguai 297, “[...] que, até 1869 quando foi extinta, prestou relevantes serviços assistenciais as vítimas indiretas da luta” 298. Assim, diz D. Pacheco sobre D. Saraiva: Mais promissoras credenciais não traria para o seu sólio outro Pastor de almas. Nem mais auspicioso início se poderia desejar para uma administração episcopal. – Criado em meio rural e religioso, com sólida formação monástica, todo dedicado a estudos e ao ensino da juventude, veio o novo Prelado guiar o Rebanho Maranhense, dotado de ótimas características, [entre elas] inteligência lúcida e culta [...] 299. D. Saraiva também se voltou para a educação da mocidade, e intentou fundar um colégio. Para isso, eram necessários recursos e um prédio para abrigar o colégio. Como prédio encontrou as ruínas do Convento das Mercês, onde, com grandes custos, preparou o estabelecimento que recebeu o nome de Seminário de Nossa Senhora das Mercês, que começou a funcionar em fevereiro de 1863 300. Mário Meireles destacou outros feitos de D. Saraiva. O prelado, por meio de ofício de 20 de fevereiro de 1863, protestou junto ao Governo Imperial contra a decisão de 293 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 284. PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 288. 295 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 288. 296 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 361. 297 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 295. 298 MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 242. 299 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 361. 300 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 289. 294 86 ficar na alçada do Presidente da Província o licenciamento dos párocos, isto feito sem o concurso do poder espiritual 301 . Sobre essa questão do licenciamento dos párocos, existe um ofício de D. Luis muito esclarecedor de seu ponto de vista. Veremos seu teor a seguir. Em 09 de dezembro de 1870 o presidente Augusto Olímpio Gomes de Castro enviou a D. Luis um ofício no qual pedia explicações acerca da portaria episcopal que concedia licença de dois meses, com vencimentos, ao vigário da freguesia de São Vicente de Ferrer de Cajapió, o padre Fabrício Alexandrino da Costa Leite. A resposta de D. Saraiva foi bem clara: “[...] os Bispos [são] competentes para conceder licença aos Párocos como além da legislação canônica o dizem com clareza diversas decisões do Governo Imperial, sem dependência da Autoridade civil” 302. Neste mesmo ofício, ainda que indiretamente, adentrava na “assaz e debatida questão” sobre “se os Párocos podem ou devem ser contemplados na classe de empregados públicos e até de empregados civis”. D. Luis é de opinião que os párocos [...] não são empregados públicos, posto que algumas vezes tal denominação se lhes haja dado, sem reparar-se na impropriedade da expressão [...] cuja discordância bem mostra a gravidade desta questão e a variação de opiniões na classificação imprópria de empregados públicos civis que se pretende dar a tais funcionários da Igreja, com o mais evidente desvirtuamento das especiais funções que lhes incumbe desempenhar em virtude do múnus paroquial e coadjuvação que prestam ao Bispo na distribuição do pasto espiritual 303. Disse ainda D. Saraiva nesse mesmo ofício que os padres, diante desse contexto [...] mais parecem exercer cargos e empregos civis do que eclesiásticos, com a mais patente inversão dos princípios da legislação canônica e terminantes disposições da Igreja; sobrevindo por tais motivos o bem visível enfraquecimento da disciplina eclesiástica, e não poucas vezes vê-se o Bispo privado de ocorrer de pronto às necessidades espirituais pelo estorvo que tais disposições causam ao livre exercício de Direitos que têm sua derivação da instituição divina e da ordem hierárquica da Igreja, que lhe são peculiares. 301 MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 241. 302 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 14/12/1870, Setor de Avulsos, APEM. 303 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 14/12/1870, Setor de Avulsos, APEM. 87 Dentre os esforços de D. Saraiva, destaca-se também a fundação do periódico A Fé, que surgiu após o desaparecimento de O Eclesiástico e de O Cristianismo. O primeiro número de A Fé circulou a 05 de junho de 1864, e teve como redator-chefe o próprio Vigário Geral. Por fim, já em 1865, deu D. Saraiva nova organização ao Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, transformando-o num colégio, e incorporando a ele o Asilo de Santa Teresa 304. Apesar disso, tanto D. Francisco de Paula como D. Felipe e Mário Meireles foram unânimes em afirmar que o bispado de D. Saraiva foi um malogro. Disse D. Francisco sobre D. Saraiva que “a sua atividade, o seu prestígio, a sua dedicação, o seu zelo averiguavam o mal, sem poder, todavia, impedir-lhe os efeitos” 305. “E se tanto fez, por que fracassou?”. Para Mário Meireles a razão do insucesso do bispado de D. Luis pode ser vislumbrada [...] dentro do ambiente da indisciplina reinante do clero, circunstância de, sendo ele filho de família importante e abastada, politicamente influente, ter levado para o convento o orgulho e a vaidade de sua origem e de seu nome e esquecido, ao retornar ao século como bispo, de deixar no claustro esses sentimentos que, com a grandeza do status emprestado pela mitra, voltaram a assaltá-lo e vieram a prejudicálo [...] 306. Para D. Francisco de Paula e Silva, a debilidade de D. Saraiva esteve associada principalmente à sua grande tolerância no lidar com o clero, especialmente com o cabido diocesano. O Cabido, que é o senado do Bispo e que deve ser o espelho onde se mire o clero paroquial, andava empanado em muitos de seus membros, que faziam parte de sociedades secretas, condenadas pela Igreja; em outros, pela sua vida menos regular; em quase todos, pelo arrefecimento do zelo sacerdotal, suplantado pelo comodismo utilitário e egoísta, fruto podre das épocas de decadência 307. 304 MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 242. 305 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 281. 306 MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 243. 307 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 382. 88 Caberia à D. Saraiva ter pulso firme nesse contexto, uma vez que ele sabia o estado do seu cabido. Tanto é assim que “[...] o próprio Bispo diz ser esse estado a fonte de onde nascem todos os males da Diocese” 308 . A mansidão e a tolerância são características apreciáveis nas pessoas em geral; mas quando é essa pessoa a primeira autoridade eclesiástica da província, tais características podem facilmente culminar em fraqueza e trazer graves consequências. Pode-se ocasionar com isso uma conveniência culpada, que não arranca o mal pela raiz. “A autoridade é sempre mão de ferro, calçada com luva de pelica, mas sempre de ferro” 309. D. Saraiva também não visitou a diocese; confiou este dever a auxiliares seus que, no ponto de vista de D. Francisco, ou não foram bem escolhidos ou não estava à altura de tal missão. Em qualquer dos dois casos, foram desastrosos os resultados. Por vezes, até parece que D. Luis da Conceição descuidou-se completamente do seu rebanho, confiando-o a prepostos que podiam até ser talentosos e hábeis, mas que eram carentes de virtudes sacerdotais, isso para não dizer que lhes faltavam sentimentos cristãos, posto que dois deles, mais íntimos de D. Luis, pertenciam à maçonaria, onde ocupavam cargos importantes 310 . Um deles era o arcediago Manuel Tavares da Silva, que fora Vigário Capitular do Bispado e Cavaleiro da Ordem Maçônica da Rosa-Cruz 311. Disse D. Francisco que “os últimos anos da vida do sr. D. Luis foram amaríssimos” 312 . O próprio papa Pio IX enviou-lhe uma carta anatematizando sua conduta. Vejamos um trecho dela, que consta no livro de D. Felipe Condurú: Desde muito tempo chegam até Nós a teu respeito queixas que dificilmente podem ser acreditadas de um Bispo. Como, porém, cada dia sejam elas confirmadas pela autoridade de novas testemunhas, não queremos por mais tempo faltar ao nosso dever em defesa da Igreja e da salvação das almas confiadas ao teu zelo. Devo repreender muito severamente o Bispo que, há doze anos já à frente do Rebanho, nunca o visitou e cuidou das suas necessidades. [...]. Há, porém, coisas mais graves. Confiaste o teu Seminário a mestres corrompidos que pervertem o clero novo desde sua formação com doutrinas ímpias e abomináveis. Entregaste o governo da tua Diocese a um clérigo filiado – seita maçônica, na qual dizem ocupar o grau de “Rosa-Cruz”. Assim, por meio desse cônego e dos educadores do teu clero, 308 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 297. Itálico do autor. 309 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 293. 310 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 297-299. 311 MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 247. 312 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306. 89 trabalhas com a maçonaria para a destruição da Igreja. [...]. Ignoras que haverá um julgamento severíssimo para quem governa? – Se ainda conservas a fé católica, por que amontoas a ira divina contra ti no dia das contas? – Não sabeis que serás julgado, não só pelos teus crimes, mas também por todos aqueles que se cometem por tua negligência, por teu escândalo ou por tua cooperação 313. Segundo D. Francisco, as acusações contra D. Saraiva contidas na carta “[...] acharam fundamento, menos na realidade dos fatos, do que na sua nímia bondade, quase fraqueza, que tudo deixou fazer, sem arcar nunca com a corrente que o avassalava e submergia” 314. E D. Francisco prossegue dizendo que aqueles que cercavam D. Luis mais de perto e ocupavam os cargos de maior confiança eram os culpados dos vícios e ele atribuídos: eram “[...] consciências esquecidas de seus sacrossantos deveres, unindo, num hibridismo monstruoso, o caráter sacerdotal [...] ao procedimento condenado num simples cristão” 315 . Para D. Francisco, era impossível que o Prelado não visse tamanha irregularidade, a não ser que se lhe suponha uma imbecilidade que estaria em inteira contradição com a inteligência que sempre mostrou. E, sabendo do escândalo e não agindo contra ele, tolerando-o, mais do que isto, coonestando-o com a decidida proteção e confiança prestada aos causadores, não há dúvida de que ele cavava para si a própria ruína e abria porta larga a todas as maquinações da calúnia, que não se fez esperar e veio suja, infame, coleante como serpe, morder-lhe o nome e envenenar-lhe a existência 316. Conclui D. Francisco dizendo que a caridade de D. Saraiva “foi horrivelmente explorada” e que ele foi “abusado na grandeza de seu coração”. “A bondade excessiva do Pastor era conhecida e [...] o bom Prelado não sabia recusar” 317. Foi assim que D. Saraiva, [...] desgostoso, traumatizado, desmoralizado, embarcou, no dia 7/2/1876, de volta a sua terra natal, onde se recolheria humildemente ao claustro de seu Mosteiro de São 313 PACHECO, Felipe Condurú. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969, p. 363-364. PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306. 315 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306. 316 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 306-307. 317 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 299-310. 314 90 Bento, em Salvador, até que a morte, no dia 26 de abril desse mesmo ano, o viesse buscar para o julgamento eterno 318. Como dissemos, nossa intenção nesta parte do trabalho não foi fazer um estudo biográfico de D. Luis. Foi somente porque ele foi um dos protagonistas das duas dissidências a serem discutidas que julgamos oportuno oferecer algumas considerações sobre o referido prelado. Isso posto, podemos passar ao momento final do nosso estudo. 3.3 A dissidência entre D. Luis da Conceição e o Inspetor da Tesouraria da Fazenda O que será exposto a partir daqui é a parte central da nossa pesquisa. Novamente reafirmamos que esta parte deve ser lida em diálogo com as demais. Na verdade, nós até poderíamos construir o último capítulo da dissertação como um texto só, sem subtópicos. Mas achamos mais prudente e didático separar o texto em compartimentos, sendo que todos eles estão mutuamente associados. Tudo neste capítulo poderia ter sido abordado de forma contínua, em texto corrido e sem subitens, mas uma opção didática inclinou-nos a organizar o capítulo da forma como ele está. Com isso queremos dizer que esta parte central da dissertação é o corolário das considerações anteriormente feitas, isso seja no que se refere ao padroado, ao beneplácito e à Constituição de 1824 de um modo geral. No Maranhão provincial, como dissemos, aliava-se a esse contexto geral aquilo que os bispos chamaram de “decadência do culto público”. A questão do culto público foi como que o pano de fundo em frente ao qual ocorreram vários desentendimentos entre a Igreja e o Estado no Maranhão. É tomando as considerações feitas sobre o padroado, o beneplácito, a Constituição de 1824 e a “decadência do culto público” que poderemos entender a controvérsia havida entre D. Luis e o Inspetor da Tesouraria da Fazenda. A abordagem das dissidências constitui o cerne da nossa pesquisa. Isso não significa prolixidade na discussão, pelo contrário. Todos os elementos essenciais à compreensão das dissidências estão distribuídos ao longo de todo o trabalho. Assim sendo, a 318 MEIRELES, Mário M. História da arquidiocese de São Luís do Maranhão: no tricentenário da criação da diocese. São Luís: Universidade do Maranhão/SIOGE, 1977, p. 247. 91 abordagem aqui será bem objetiva. Aqui podemos inserir mais uma metáfora que explica nossa intenção. Imaginemos um fruto. Existem frutos que são envoltos por uma polpa dentro da qual existe um caroço, um núcleo compacto. Entre essa polpa e o caroço existe uma série de liames e de fibras que os mantêm associados. A polpa é muitas vezes a parte maior do fruto, a parte mais avantajada e de maior extensão. O caroço termina sendo aquele âmago compacto mais reduzido em relação à polpa, porém essencial ao fruto. Mantidas as devidas ponderações, essa metáfora explica nossa intenção nessa parte final do trabalho. A “polpa” da nossa dissertação é tudo aquilo que foi discutido até aqui e que, sem dúvida, é a porção mais extensa do trabalho. Já o “caroço” é esta última parte do nosso texto, parte essencial, porém, bem mais objetiva em relação à “polpa”. A dissensão havida entre D. Saraiva e o Inspetor da Tesouraria da Fazenda fundamentou-se em atos do bispo voltados à administração de bens tanto da Igreja em si como de estabelecimentos religiosos. Trata-se, em linhas gerais, da [...] denúncia injuriosa [...] que dirigiu contra mim o probidoso Inspetor da Tesouraria da Fazenda desta província acerca da venda autorizada por mim dos bens do patrimônio de São Bento de Bacurituba, dos que pertencem ao Recolhimento de N. Senhora d’Anunciação e Remédios e dos fatos relativos ao convento de N. S. das Mercês 319. Analisemos essa dissensão por partes, isso feito, é claro, com o auxílio das próprias palavras de D. Saraiva em seus ofícios. Disse D. Luis que Francisco José Gomes Pereira, o Inspetor da Tesouraria da Fazenda, dirigiu contra ele uma denúncia motivada na alienação, feita pelo bispo, de bens pertencentes ao patrimônio de São Bento de Bacurituba e ao Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios. Acresceu-se a isso alguns “fatos relativos ao convento de N. S. das Mercês” que explicaremos mais adiante. Discordando das atitudes de D. Saraiva, enviou o Inspetor Francisco José um ofício ao Presidente da Província onde dizia que: [...] entendi de meu dever [...] opor à essas alienações a ação do Fisco; e, por isso, me dirijo a V. Exª., para que se digne de colher, donde convier, os esclarecimentos precisos quanto aos fatos mencionados, e transmitir-nos, afim de que possa ordenar 319 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 92 ao Procurador Fiscal que, intervindo nessas questões, trate de salvaguardar ou de reivindicar os direitos e interesses da Fazenda Nacional 320. O primeiro fato de que se ocupou o Inspetor em sua denúncia foi [...] que o Exmo. Bispo Diocesano, em data de 2 de Junho do corrente ano, autorizara o Reverendo Pároco da Freguesia de São Bento de Bacurituba, Padre Satyro Celestino da Costa Leite, a vender dez reses da Fazenda de gado vaccum pertencente ao patrimônio do mesmo Santo, a fim de aplicar a importância do produto à compra de alfaias e paramentos necessários à Matriz da referida Freguesia321. Daí se nota que a venda dos gados do patrimônio de São Bento de Bacurituba foi motivada por necessidades relativas ao suprimento de materiais do culto público da referida freguesia. A capela de São Bento de Bacurituba foi criada pela Lei provincial nº 843 de 10 de Julho de 1868, e até o ano de 1870 estava ela desprovida de paramentos e alfaias. Nota-se, portanto, que essa igreja matriz seguia a tendência geral das carências relacionadas ao culto público. Foi por isso, isto é, por não ter “[...] sido ministrado para a nova Matriz as alfaias, paramentos e vasos sagrados necessários para o serviço do Culto divino” que aprouve a D. Saraiva “[...] prestar-se a venda de dez rezes ao suprimento das mais urgentes necessidades do Culto divino”. Disse ainda D. Luis que “[...] achei conveniente e que estava nas minhas atribuições autorizar semelhante venda” 322. O segundo fato em que se fundou a denúncia do Inspetor da Tesouraria foi o posicionamento de D. Saraiva [...] em data de 3 daquele mesmo mês [junho], oficiara ao Reverendo Administrador da Fazenda de gado do Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios sita nos campos de Pirapendiba, termo de São Vicente Férrer de Cajapió, comunicando-lhe haver autorizado o Reverendo Cônego Magistral Manoel Tavareo da Silva a contratar com o Dr. Pompeu Ascenso de Sá, não só a venda de todo o gado pertencente a dita fazenda ao preço de dezoito mil réis por cabeça, sendo incluídas nesse número todas as crias de seis meses para cima, mas também a venda dos escravos vaqueiros de nomes Agostinho e Raymundo 323. 320 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 321 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 322 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 323 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 93 Mas novamente D. Luis, ao contrário do Inspetor, entendeu que estava na órbita de suas atribuições proceder à alienação dos gados pertencentes ao Recolhimento. Para tanto, justificou-se o bispo no documento fundador do Recolhimento, através do qual o dito estabelecimento “[...] ficou sujeito à jurisdição do Ordinário”. E D. Luis suscitou mais um argumento: Há nove anos tenho lutado com a administração desta fazenda de gado vaccum do Recolhimento de N. S. d’Anunciação e Remédios, sem que ele haja auferido lucros, apesar dos mais reiterados esforços, sendo este fato público e notório, principalmente no termo de São Vicente de Férrer. Impotente para lutar com os ladrões de gado tanto de fora da cidade como de dentro dela e para salvaguardar as relíquias desse pequeno patrimônio, contratei a venda do respectivo gado na forma citada pelo referido Inspetor por ser a oferta mais vantajosa que pôde se obter sobre outras 324. Diante desse contexto, disse D. Saraiva: “me parece que o Inspetor da Tesouraria da Fazenda deseja que destes pequenos bens todos sejam donos, menos o próprio dono, por ser como já disse de pública notoriedade os furtos de gado desta fazendinha”. E não ficou o bispo com a quantia oriunda da venda: Quando as Câmaras Legislativas autorizam aos Prelados Regulares pela lei nº 1764 de 28 de Junho último a converter grandes propriedades e imóveis e semoventes em apólices da dívida pública interna; me parece que não exorbitei mandando proceder a semelhante venda com o intuito de converter o seu produto naqueles títulos, para o que já se acha depositado no Banco do Maranhão a juros de 7% a quantia de 6:566:230 réis [...] 325. “Quanto aos dois escravos Agostinho e Raymundo”, explicou-se D. Saraiva no mesmo ofício dizendo que “proferi a sua liberdade à venda deles e nem podia ser outro o meu procedimento”. 324 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 325 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 94 O terceiro fato que sustentou a dissensão entre o Inspetor e D. Luis foi “[...] o que me consta a respeito do Convento de Nossa Senhora das Mercês desta Cidade” 326. O Inspetor era partidário da opinião de que todos os bens da referida Ordem deveriam passar para o domínio do Estado, e isso porque [...] existindo hoje em dia unicamente um frade da Ordem Mercenária, Frei Manoel Rufino de Sant’Anna Freitas, o qual entretanto acha-se, por determinação do Ordinário, fora da administração e gerência desses bens, nenhum mais resta que toma conta dos mesmos bens, os quais, por tal motivo, se devam considerar bens de Ordem extinta, ou senão, vagos, para passarem ao Estado 327. Para Francisco Pereira, era interessante que os bens da Ordem fossem todos incorporados pelo Estado: “Esse convento que é muito rico em bens de raiz e de outra natureza, pois que, além de datas de terras do interior, possui para mais de cento e cinquenta escravos, deveria – com tudo o que lhe pertence – ser incorporado aos Próprios Nacionais”328. Além disso, o Inspetor disse em seu ofício que “[...] o Exmo. Prelado, segundo estou informado, chamando a si a posse e usufruto desses bens, estabeleceu no Convento uma Casa de educação com a denominação de Pequeno Seminário das Mercês, não sei se com a precisa licença do Governo” 329. Como sabemos, D. Saraiva havia mandado erguer sobre a ruína do Convento das Mercês o Seminário de Nossa Senhora das Mercês, isso ainda em 1863. É estranho que só em 1870 a Tesouraria da Fazenda tenha se apercebido do fato de que D. Luis havia estabelecido um seminário no local do antigo convento. O próprio D. Saraiva disse que “admira, que só depois de 8 anos, fosse despertado o zelo do Inspetor da Tesouraria da Fazenda para dirigir a V. Exª. a denúncia a que respondo” 330. Esse silêncio da Tesouraria durante oito anos é ainda mais estranho tendo em vista que desde a fundação do referido Seminário “[...] levei tudo ao conhecimento do Governo Imperial ao qual enviei os respectivos estatutos, solicitando ao 326 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 327 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 328 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 329 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 330 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 95 mesmo tempo sua proteção a favor do mesmo estabelecimento”. Foi por isso que disse D. Luis que era evidente “[...] que os escravos e o rico patrimônio da Ordem de N. Senhora das Mercês não está no meu usufruto e nem podia está” 331. Da forma como D. Saraiva se expressou no ofício de 15 de novembro de 1870, percebe-se a dificuldade da administração e manutenção dos bens da Ordem das Mercês. Talvez tenha sido por isso que o bispo resolveu erguer no local do convento o Seminário de N. S. das Mercês. Continuando no mesmo terreno, tenho lutado até hoje. Em 10 de Outubro de 1863 e depois por diversas vezes tenho levado ao conhecimento do Governo Imperial e da Nunciatura Apostólica o estado em que se acha esta Ordem, as providências que achei prudente tomar para amparar da voragem dos especuladores os bens do patrimônio dela, que apostados se assoberbavam para devorá-los, revelando o desassossego que me traz semelhante administração [...]. A denúncia do Inspetor da Tesouraria era para D. Saraiva descabida e infundada, entre outras coisas, porque V. Exª. perfeitamente sabe, por que a província não ignora, qual o estado lamentável em que se achava o edifício, hoje pequeno Seminário; geralmente arruinado e quase inabitável, ameaçava próximo desmoronamento pelo abandono, em que o tinham deixado cair. Há 8 anos, luto sem ser pesado aos Cofres públicos, para reerguer essas ruínas; tendo-o conseguido, pude aplicá-lo ao fim, a que está destinado, sendo obra que não pode deixar de ser louvada pelos homens que pensam retamente e que tenho certeza de ser apreciada pelo governo Imperial, que desejando o alargamento da instrução, ardentemente deseja a regeneração da educação do clero [...] 332. Essa controvérsia com o Inspetor parece ter sido muito desgastante para D. Luis: “Excelentíssimo Senhor, a denúncia do Inspetor da Tesouraria da Fazenda [...] me contristou sobremaneira. Ela me colocou em um estado muito doloroso porque me obrigou a descer onde o mesmo Inspetor subiu” 331 333 . A denúncia foi recebida pelo bispo como um atentado à sua Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 332 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 333 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 15/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 96 honra e moral: “[...] um tal juízo feriu muito de perto aos meus brios de homem e a minha honra de Bispo” 334. Tanto foi assim que D. Saraiva quis mesmo levar o assunto aos tribunais: [...] suponha V. Exª. que um homem quer oficialmente quer não asseverasse que V. Exª. tinha chamado a si a posse e usufruto das rendas do Tesouro ou de quaisquer bens ou próprios nacionais e que até remetia escravos para fora da província, dandolhes o destino que, como no caso sujeito, o Inspetor não declarou! Pergunto: V. Exª. tão injustamente ferido na sua bem justificada altivez e provada probidade o que faria ou qualquer homem honesto vendo-se por tal maneira infamado? Estou persuadido que V. Exª. não se limitaria a chamar tal provocação uma denúncia injuriosa e muito menos se satisfaria a pedir mansa e pacificamente uma justificação da queixa só por motivo poderoso de honra; faria com certeza mais; usaria de todos os recursos legais que mostrando em toda pureza a sua probidade, confundiria aquele que de um modo tão descomunal se arrojara fazer semelhante acusação; encontraria disposições na legislação do País, especialmente no Código Criminal, para arrastar esse homem às barras dos Tribunais e levaria aos poderes competentes, quando esse homem fosse empregado público, uma queixa repassada de dor acerba e indignação profunda, para ser na forma da lei punido por ter atentatoriamente ferido a reputação e violado as garantias do cidadão 335. Pelo que consta no ofício do Inspetor, a denúncia instaurada por ele esteve baseada nas declarações de informantes acerca da forma como D. Luis procedeu na administração dos bens pertencentes ao patrimônio de São Bento de Bacurituba, ao Recolhimento de N. S. da Anunciação e Remédios e ao Convento das Mercês. Mas em nenhum momento, e mesmo após expressa ordem de especificação dos informantes, não disse o Inspetor quem eram seus informantes. Para que o Inspetor da Tesouraria da Fazenda pudesse observar a V. Exª., era mister que pessoa ou pessoas lhe prestassem os precisos dados de semelhantes abusos praticados por mim; pelo que vou instantemente rogar a V. Exª. em nome dos interesses sociais, no interesse da minha honra, da de V. Exª e da do Inspetor da Tesouraria da Fazenda, que V. Exª. se digne ouvir o mesmo Inspetor, a fim de que ele declare, quais os informantes que o habilitaram a formar um tal juízo que feriu muito de perto aos meus brios de homem e a minha honra de Bispo [...] 336. Assim sendo, disse D. Saraiva que não tinha “[...] a Tesouraria de Fazenda dados que a autorizassem a aventar semelhante acusação, toda ela inexata, e não sendo lícito àquela 334 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 21/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 335 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 336 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olímpio Gomes de Castro, 21/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 97 repartição ir além dos limites da Ordem do Tesouro Nacional nº 81 de 15 de Março de 1853”337. Para D. Luis, portanto, “é fora de dúvida que a questão foi deslocada”, pois “todos os anos dou ao Governo Imperial relatórios e informações diretas de tudo quanto ocorre na administração desta diocese [...]” 338. Disse ainda que [...] nem foram remetidos escravos da mesma para fora da província, com exceção dos que marcharam para a guerra do Paraguai. Assim, pois, não sei o que possa justificar o ardente zelo do Inspetor da Tesouraria movendo uma questão que tanto tem de desagradável quanto é ela balda de fundamento e causa de escândalo 339. Procedendo à alienação daqueles bens, estava D. Luis convicto de que agia dentro da esfera religiosa e, por isso, “quanto ao ter eu obrado na esfera da lei ou fora dela, me parece que sendo independente dos Poderes Provinciais quando obro dentro da esfera religiosa só à Sé Apostólica e ao Governo Imperial tenho como competentes para exigirem as razões dos meus atos” 340. Ao referido ofício episcopal de 23 de novembro de 1870, respondeu o presidente Augusto Olímpio Gomes de Castro em 26 do mesmo mês dizendo que D. Saraiva expendeu opiniões que “[...] são elas filhas de considerações pessoais e estranhas à matéria” 341 . Essas “considerações pessoais e estranhas à matéria” as quais o presidente da província se refere são precisamente aquelas em que D. Luis dizia que era independente dos Poderes Provinciais em assuntos da órbita religiosa. Notamos, assim, que a divergência estava ganhando maiores proporções. O ponto de vista de D. Saraiva começou a conflitar com o do presidente Augusto Olímpio. Vejamos as palavras de D. Luis sobre isso: A esta resposta dignou-se V. Exª. declarar-me que não aceitava, por contrária à lei, a doutrina por mim expendida, a qual envolvia completa e absoluta independência, em que pretende colocar o Bispo, do que eu chamo poderes provinciais, deduzindo V. Exª. que com esta doutrina intento contrariar o preceito do art. 1º da lei de 3 de 337 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 338 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente Olímpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 339 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente Olimpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 340 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente Olímpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 341 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente Olímpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. da Província do Maranhão Augusto da Província do Maranhão Augusto da Província do Maranhão Augusto da Província do Maranhão Augusto da Província do Maranhão Augusto 98 Outubro de 1834 que soa assim: “A primeira autoridade é o Presidente da província, a quem são subordinados todos os que nela se acharem”. Não pretendo alimentar esta questão no terreno em que V. Exª. colocou; porquanto em primeiro lugar eu não recusei e nem era lícito recusar quaisquer esclarecimentos, que V. Exª. me pedisse na órbita dos seus poderes; e em segundo não tenho a menor intenção de disputar jerarquia de autoridade acerca do citado art. 1º da lei de 3 de Outubro de 1834 342. Observamos então que, para o presidente Gomes de Castro, era infundado o ponto de vista de D. Saraiva, isso porque a própria lei determinava que o Presidente era a principal autoridade da província, devendo a ele se subordinar todas as demais autoridades, sejam elas civis ou eclesiásticas. Mais clara expressão de regalismo não se pode ter. Prosseguindo na exposição de suas justificativas, teceu D. Saraiva algumas linhas sobre o Recolhimento de N. S. da Anunciação e Remédios. Disse ele que o Recolhimento, pelo próprio documento constitutivo, era um estabelecimento sob a jurisdição do Bispo Diocesano. Além de que, havendo o fundador do recolhimento Padre Missionário Gabriel Malagrida, por termo assinado em 21 de Fevereiro de 1752, perante um dos meus Antecessores, Dom frei Francisco de Santiago, sujeitado em tudo e por tudo à jurisdição diocesana o mesmo Recolhimento, com a cláusula de que [se] a mesma obra [...] não conseguisse o desejado fim e complemento, ou depois de concluída pelo decurso do tempo a mesma instituição deixasse de existir por qualquer circunstância, passarem à Mitra, podendo o Diocesano dispor do solo, materiais, mais bens e direitos a ele pertencentes, como for mais do agrado de Deus [...] 343. Foi por isso que, para D. Luis, pareceu acertada a decisão de vender os “gados que estão na fazendinha Pirapendiba” 344 , pois “[...] julguei que deviam ser vendidos não só porque me era impossível administrar e fazer auferir lucros em benefício do dito estabelecimento; senão também porque não tenho e nem podia ter [como fazer] progredir esses poucos bens” 345. 342 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 343 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 23/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 344 Gados esses que pertenciam ao Recolhimento da Anunciação e Remédios. 345 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 99 Pensava o Inspetor da Tesouraria que o Recolhimento “deve ser considerado como Corporação de mão-morta” 346 . D. Saraiva discordava desse entendimento. Disse o bispo que “[...] o Recolhimento de N. Senhora da Anunciação e Remédios não pertence à classe das Ordens Regulares; porquanto a sua instituição e fins são muito diferentes; [...] [e] o mesmo Recolhimento não pode também ser considerado Corporação de mão-morta” 347 .E isto, na visão de D. Luis, se justificava pelo seguinte: Para reconhecer que o Recolhimento de N. Senhora da Anunciação e Remédios não é Ordem Regular basta ponderar que “sendo o estado religioso a promessa que alguém faz de tender à perfeição cristã, emitindo para isto os votos solenes de obediência, castidade e pobreza, e vivendo comum e estavelmente sob uma regra aprovada pela Igreja”, é este o único adotado pelas Ordens propriamente Regulares e que como tais as caracteriza; estado que se não encontra nas Recolhidas de N. Senhora da Anunciação e Remédios, que nem mesmo tem a este respeito nenhuma das qualidades de um instituto quase regular. A natureza do Recolhimento de N. Senhora da Anunciação e Remédios está perfeitamente definida pelo meu muito ilustrado e digno Antecessor, o Senhor Dom Marcos Antônio de Sousa na sua exposição de motivos que precede os Estatutos daquele estabelecimento, [...] assim se exprime: “a suma deste Regulamento dirigirá a cultura de mimosas plantas neste precioso jardim, do qual, ao depois transplantadas a outros terrenos produzirão frutos deliciosos de virtudes cristãs: deste abrigo de educandas sairão mães de famílias que darão cidadãos úteis ao Estado, defensores da Pátria, ministros zelosos e edificantes do Altíssimo e farão a felicidade das gerações futuras” 348. “Na classe de Ordem Regular não pode seguramente o Recolhimento ser considerado”, dizia D. Luis. Por isso, afirmava o prelado: [...] não posso deixar de tornar sensível o desacordo que me parece haver entre o modo como V. Exª. considera a natureza da mesma instituição, entendendo ser ela pertencente à classe das ordens Regulares, ao passo que o Inspetor da Tesouraria de Fazenda em um tópico do seu ofício de 10 do corrente mês dirigido a V. Exª. propende a considerar o Recolhimento como Corporação de mão-morta [...] 349. 346 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olympio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 347 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 348 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 349 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 100 Foi com base nesses argumentos, e por conta da dificuldade em manter salvaguardados os gados alocados na fazenda Pirapendiba, que D. Saraiva procedeu à alienação dos animais. Reconhecendo, como já disse a V. Exª., que os gados da fazenda Pirapendiba não produziam o fruto desejado, entendi que o devia reduzir todo a dinheiro, aplicando o produto à compra de apólices da dívida pública, sem me apropriar de tal produto, nem usufruí-lo, achando-se ele, como se acha, depositado no Banco do Maranhão [...] 350. Sobre a questão relativa aos bens do Convento de Nossa Senhora das Mercês, era de interesse do Inspetor da Tesouraria que estes “[...] se devam considerar bens de Ordem extinta, ou senão, vagos, para passarem ao Estado” 351 . Mas, D. Saraiva fundamento em “algumas Constituições Apostólicas referidas por Morelli nos seus Fasti novi orbis”, disse que “[...] o maior ou menor número de Religiosos em nada influi para conservação ou extinção da Ordem”. E, além disso, “é certo que existem ainda dois representantes da sobredita Ordem de N. Senhora das Mercês e não um só como declara a Tesouraria de Fazenda” 352. Para se proceder à extinção da Ordem das Mercês, era necessário o concurso do Bispo Diocesano, bem como a observância dos meios previstos no documento fundador da Ordem. Não competia à Tesouraria de Fazenda realizar tal extinção; cabia-lhe apenas verificar se o meio de extinção fora idôneo. Foi assim que se expressou D. Luis ao dizer que: [...] para a extinção da Ordem Mercenária é necessário que seja a medida tomada pela competência de meios da sua criação, a que por certo permanece completamente estranha à Tesouraria de Fazenda, que só pode intervir depois de regularmente decretada a extinção da Ordem para observar o meio, que lhe foi indicado [...] 353. 350 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 351 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olympio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 352 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 353 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 101 Diante desse contexto, é certo que D. Saraiva corroborou seu entendimento no princípio da autoridade. Disse ele que todos os seus atos estiveram fundamentados em sua autoridade de Bispo Diocesano e de Delegado da Santa Sé. Como não poderia deixar de ser, D. Saraiva representou a si mesmo e a sua posição dentro da Igreja. Nem é para estranhar que eu interviesse na administração dos bens da referida Ordem a fim de os conservar nomeando uma Comissão administrativa para o desempenho de semelhante encargo, por isso que, além da minha jurisdição de Diocesano, acresce-me a tal respeito a de Delegado da Santa Sé Apostólica, em cujo exercício tenho atribuições para ingerir-me em todos os negócios da mesma Ordem [...] 354. Não sabemos qual foi o desfecho da dissidência entre D. Saraiva e o Inspetor da Tesouraria da Fazenda. Após este ofício de 30 de novembro de 1870, nenhum outro tratou do assunto. Ao que nos parece, isso não prejudicou nossa análise. Notamos ao longo da abordagem pontos que eram característicos das relações entre o Estado e Igreja no Brasil imperial. Vimos como as fronteiras entre a jurisdição temporal e espiritual eram fluidas no regime de associação entre a Igreja e o Estado. Vimos na dissensão entre D. Saraiva e Francisco J. G. Pereira um dos muitos casos em que as autoridades da Igreja estiveram numa situação de fragilidade. Vimos, enfim, as proporções da ingerência do Estado nos negócios da Igreja. Através da dissidência havida entre D. Luis e o Inspetor da Tesouraria podemos vislumbrar um pouco da situação jurídica dos bens eclesiásticos no contexto imperial. A legislação imperial impôs aos institutos religiosos a proibição de adquirir, possuir a qualquer título e alienar bens de raiz sem a devida licença do Governo, estabelecendo a devolução ao Estado caso fosse verificada a infração de tal disposição. De acordo com a lei de 4 de julho de 1768 e de 9 de setembro de 1796, essa determinação se fundamentava no fato de que “tendo afluído às igrejas e aos mosteiros imensa abundância de bens de raiz, mostrou a experiência a necessidade de pôr limite a esta exorbitante riqueza e ao consequente poder dos eclesiásticos, que lhes dava uma preponderância nociva à ordem pública” 355 . Foi talvez imbuído desse entendimento que o Inspetor procedeu daquela forma. 354 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 30/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 355 SCAMPINI, José. “A liberdade religiosa nas constituições brasileiras: estudo filosófico-jurídico comparado”. Primeira parte – A liberdade religiosa no Brasil império. In: Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 11, nº 41, jan./mar. 1974, p. 91. 102 Uma frase do Inspetor naquele contexto nos permite ainda vislumbrar a forma como as autoridades civis entendiam o poder do Estado em fins do século XIX. Disse o Inspetor que “[...] a esta Tesouraria cumpre tomar conhecimento de tudo” 356 . Ao Estado, portanto, cabe tomar às contas de tudo. Em certo sentido, isso expressa algo que Lacerda de Almeida percebeu no início do século XX. Trata-se de “[...] uma religião nova e muito em moda, a autolatria do Estado; o Estado é a sua própria divindade, cultua a sua onipotência” 357. Por sua vez, D. Saraiva disse algo que, em certo sentido, certifica o malogro e o desgaste que era o regime de associação entre Igreja e Estado. Para D. Luis, a denúncia impetrada pelo Inspetor da Tesouraria “[...] colocou em um estado muito doloroso porque me obrigou a descer onde o mesmo Inspetor subiu”. Num regime onde o Estado, na pessoa do Imperador, era titular do direito de padroado e beneplácito, a Igreja muitas vezes teve que descer onde o Estado subiu. 3.4 A controvérsia acerca do artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís que modificou a disciplina dos dobres de sino Este foi mais um caso de conflito de jurisdição entre o poder civil da província e a autoridade episcopal, representada por D. Luis da Conceição. Logo no início do ano de 1872, a Câmara Municipal de São Luís expendeu uma medida legislativa que pretendera abolir um antigo costume da Igreja. A controvérsia teve sua origem no “[...] artigo de Postura da Câmara Municipal da capital, proibindo os dobres de sino para finados em todas as Igrejas, com exceção do dia de finados”. Tal artigo determinava “[...] que só dobrem os sinos pelos mortos uma vez durante o ano, no dia da Comemoração dos fiéis defuntos” 358. Ao receber o ofício do Presidente da Província de 10 de fevereiro de 1872, no qual veio anexada a cópia do artigo de postura da Câmara, a resposta de D. Saraiva não foi outra: 356 Ofício do Inspetor da Tesouraria de Fazenda Francisco José Gomes Pereira ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olympio Gomes de Castro, 10/11/1870, Setor de Avulsos, APEM. 357 ALMEIDA, Lacerda de. op. cit., p. 181. 358 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 103 Em resposta, cabe-me ponderar a V. Exª. que pretendendo a Câmara Municipal da capital extinguir, por uma vez, com a dita Postura, o antigo e louvável costume autorizado pelas leis da Igreja e sancionado pela piedade dos Fiéis de darem os sinos sinais ou dobres pelos defuntos “assim para que os Fiéis se lembrem de encomendar suas almas a Deus Nosso Senhor, como para que se incite e avive neles a memória da morte, com a qual nos reprimimos e nos abstemos dos pecados”, parece-me que uma tão importante medida deveria achar-se acompanhada de uma exposição de motivos, que [...] legitimassem a pretendida proibição de tão velhas e boas práticas religiosas 359. Ao “[...] formular um artigo de Postura tão restritivo”, acreditava D. Saraiva que a Câmara Municipal estava exorbitando no limite de suas atribuições, pois que “[...] este assunto, julgo da competência do Poder eclesiástico” Não pode, na visão de D. Luis, um objeto disciplinar da religião e inerente ao culto público ser modificado pela legislação temporal, isto porque “[...] desde que a Igreja começou a usar do sino, o que remonta pelo menos ao 4º século, para convocar os Fiéis no Templo e marcar as horas dos Ofícios Divinos, logo apartou este instrumento do serviço e uso profano” 360. Os sinos, disse D. Saraiva, constituem objetos inerentes ao múnus da religião, e por isso, a disciplina que os comanda não pode ser alterada ou abolida sem o concurso da autoridade religiosa. Disse ele que “a Câmara Municipal da capital, formulando o artigo de Postura aludido, ultrapassa as suas atribuições, que se acham definidas pela Lei de 1º de Outubro de 1828 e fere ainda leis gerais do país que estão em pleno vigor”. E também suscitou o bispo diocesano um argumento destacando o fato de ser o catolicismo a religião oficial do Império: deveria a Câmara Municipal, ao editar o dito artigo de postura, “[...] acatar as [leis] disciplinares da Igreja cuja religião é a do Estado, pelo que goza de plena liberdade em tudo quanto é relativo ao seu culto público e às suas sagradas cerimônias e ritos”. Amparando-se na Constituição de 1824, disse D. Saraiva que [...] sendo certo [...] que a Religião Católica goza no Império de toda a proteção, que firmando-se no nosso Pacto Político, a resguarda de ser tolhida no livre exercício de seu culto público e solene; devo afirmar a V. Exª. que me parece não caber nas atribuições das Câmaras Municipais a imposição de medidas, como a contida no artigo de Postura de que me ocupo 361. 359 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 360 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 361 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 104 Por isso, questionou-se D. Saraiva: “não ficará assim bem visível a interferência que com o referido artigo de Postura quer ter a Câmara Municipal naquilo que é inerente à administração das coisas da Igreja?” 362 . Vemos daí que as considerações feitas no capítulo anterior e na primeira parte deste capítulo estão em consonância com o que está sendo dito nessa última parte da dissertação. Isso se observa na questão de os bispos do Maranhão, seja D. Luis sejam seus predecessores e sucessores, sempre terem evocado a Constituição de 1824 quando se viram diante de uma controvérsia com o poder civil da província. E não foi apenas a Constituição de 1824. As Constituições Sinodais da Bahia foram invocadas muitas vezes pelos bispos no sentido de reforçar seus argumentos. Ocorreu assim quando D. Saraiva mostrou sua discordância em relação ao artigo de postura da Câmara que proibia os dobres de sino. Disse ele que “[...] há uma lei expressa que, reservando à autoridade eclesiástica o meio de regular os dobres pelos defuntos, não pode ser considerada como não existente. Esta Lei é a Constituição do Arcebispado da Bahia nos números 828 a 830 [...]” 363. Por tudo isso, era irretorquível para D. Luis o fato de ser o sino um objeto disciplinar da órbita religiosa; de ser o sino um dos tópicos intrínsecos ao culto público. Os sinos são [...] instrumentos essencialmente religiosos, os quais, ora simbolizando a voz de Deus e ora as trombetas da Igreja militante, devem deixar vibrar os seus misteriosos sons em todas as peripécias da vida do homem, desde que aos seus festivos repiques, abrem-se-lhe os olhos à fé pelas águas do batismo, até que prostrado no leito da dor e da agonia, com suas badaladas acentuadas e graves o convida ao arrependimento e à reconciliação, excitando ao mesmo tempo a caridade para com os que sofrem 364. Este foi o apelo que fez D. Saraiva aos sentimentos religiosos do presidente Augusto Olímpio Gomes de Castro. Disse o bispo que os sinos são como que uma exortação à lembrança de Deus e das coisas eternas, isso porque “[...] os misteriosos efeitos produzidos pelos sons dos sinos, que vibrando no espaço, têm sua linguagem poética e religiosa, que sabe falar ao coração”. Os sons que deles retumbam constituem um convite ao arrependimento e um conforto para os que sentem as dores da agonia da morte. É como se fosse a voz de Deus que, diante das “peripécias da vida do homem”, nos recorda de sua existência e da existência 362 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 363 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 364 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 105 de uma vida vindoura. Assim é que ao sino se relaciona um importante exercício: o lembrar, o recordar. Tomemos aqui uma importante consideração de Jacques Le Goff nesse sentido: Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo, religiões radicadas histórica e teologicamente na história, como “religiões da recordação” [...]. E isto em diferentes aspectos: porque atos divinos de salvação situados no passado formam o conteúdo da fé e o objeto do culto, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental 365. Pode-se dizer que os sinos funcionam como um desses “aspectos essenciais” que insistem “na necessidade da lembrança como tarefa religiosa fundamental”. Para D. Saraiva, os repiques dos sinos são como um convite à recordação dos preceitos cristãos, como um convite ao encontro com Deus, como um convite à espiritualidade cristã. Quem há que possa negar as sensações, um não sei que inexprimível que excita no coração do Cristão os sons vibrados por este misterioso instrumento? Quem não desperta-se e reflete ao tríplice toque das Ave Marias e não fica com o coração saturado da saudade, que deixa impressa na alma esses melancólicos sons que nos anunciam o termo do dia? Que coração não se converterá cheio de caridade para com o moribundo, cujos últimos instantes de vida são denunciados pelo gemido compassado do sino da paróquia, que convida aos Fiéis a orarem pelo agonizante? Quem ouvindo os sons plangentes do sino deixará de elevar o pensamento ao Trono de Deus e com o coração ungido de amor do próximo não enviará ao Supremo Juiz as doces preces da caridade pelo irmão que se finou e desapareceu da vida presente?366 Nesse trecho de D. Luis fica mais evidente o aspecto dos dobres de sino como uma forma de lembrar os mortos e de oferecer-lhes sufrágios. O parecer dado pelo bispo nesse ofício manifesta uma sensibilidade, a sensibilidade cristã no lidar com a morte e com os mortos. Esta sensibilidade foi consagrada por um dispositivo específico das Constituições Sinodais da Bahia. Trata-se do número 828, referido por D. Saraiva em seu ofício. Nesse dispositivo, consta o seguinte: 365 LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 1990, p. 438. Aspas do autor. Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 366 106 Justamente se introduziu na Igreja Católica o uso, e sinais pelos defuntos; assim para que os fiéis se lembrem de encomendar suas almas a Deus nosso Senhor, como para que se incite, e avive neles a memória da morte, com a qual nos reprimimos, e abstemos dos pecados 367. Ao proibir os dobres de sino diários pelos defuntos, parece que a Câmara de São Luís esteve imbuída de uma outra sensibilidade, de uma outra forma de lidar e de pensar sobre a morte e sobre os mortos. O artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís conteve um posicionamento que divergiu do entendimento de D. Saraiva acerca dos dobres de sino. O artigo de postura proibiu os dobres de sino sob o argumento “[...] de promover e manter a tranquilidade e segurança, saúde e comodidade dos habitantes” e sob o “[...] pretexto de comodidade e segurança pública” 368. Pensando assim os membros da Câmara Municipal, podemos supor que eles seguiram uma tendência que muito bem foi discutida por João José Reis. De modo geral, essa tendência quis afastar os mortos e a lembrança dos mortos do quotidiano dos vivos. “Mortos e vivos deviam ficar separados. A novidade vinha da Europa, e foi divulgada no Brasil por meio de uma campanha que fazia da opinião dos higienistas o testemunho da civilização” 369. O que se quis com essa campanha foi romper qualquer “[...] relação de proximidade entre vivos e mortos”, uma vez que estava ocorrendo uma mudança no comportamento dos homens em relação à morte e também diante dos mortos 370. “Durante o século XVIII desenvolveu-se uma atitude hostil à proximidade com o moribundo e o morto, que os médicos recomendavam fossem evitados por motivos de saúde pública” 367 371 . Foi por conta dessa forma de pensar que surgiu um verdadeiro processo de VIDE, Sebastião Monteiro da. Constituições primeiras do arcebispado da Bahia: feitas, e ordenadas pelo ilustríssimo e reverendíssimo D. Sebastião Monteiro da Vide. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 291. (Livro Quarto, Título XLVIII das Constituições). 368 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 369 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 24. 370 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 73-74. 371 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 75. 107 descristianização da morte. A partir daí os mortos passaram a ser encarados como um tabu público 372, sobretudo porque os mortos representavam um sério problema de saúde pública. Os velórios, os cortejos fúnebres e outros usos funerários seriam focos de doença, só mantidos pela resistência de uma mentalidade atrasada e supersticiosa, que não combinava com os ideais civilizatórios da nação que se formava. Uma organização civilizada do espaço urbano requeria que a morte fosse higienizada, sobretudo que os mortos fossem expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios extramuros 373. Em linhas gerais, isto foi o que João José Reis chamou de um cenário de “medicalização da morte”. No dizer do autor, foi a medicalização da morte uma das principais responsáveis pela revolta da Cemiterada, ocorrida em Salvador no ano de 1836. Por certo que foram os médicos que capitanearam o movimento que procurou “medicalizar” a morte. Eles “[...] propunham tirar os mortos do meio da agitação dos vivos, pregavam uma destinação moderna para eles: cemitérios espacialmente equilibrados e a boa distância da vida social”. O primeiro passo nesse sentido foi “dessacralizar a morte” 374. Os médicos conseguiram vencer a batalha pela credibilidade em alguns meios importantes. Eles chegaram a se tornar vereadores, deputados provinciais, representantes na Assembleia Geral, conselheiros e ministros de Estado 375 . Sendo assim, é bem possível que muitos membros da Câmara Municipal de São Luís fossem partidários das teses higienistas. A vigilância auditiva se tornou um dos lemas da campanha médica. Os médicos se opuseram aos funerais ruidosos, especialmente contra o mais típico de seus sons: o dobre de sinos. A morte postulada pelos médicos devia ser inodora e silenciosa. Já em 1830 um relatório da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro mostrava-se contra o dobre excessivo de sinos por considerá-lo perturbador do repouso público, e como prejudicial aos doentes. Em 1833 surgiu um estudo mais detalhado sobre assunto, cujo autor era o dr. Cláudio Luís da Costa. Para ele, os sinos eram prejudiciais justamente porque deles promanavam os sons que 372 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 74. 373 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 247. 374 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 262. 375 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 251. 108 anunciavam a morte aos vivos. E ainda na visão de dr. Costa, os dobres de sino pelos defuntos eram um tormento para os vivos 376. Neste contexto, a morte não devia ser lembrada [...]. Os médicos contrariavam o tradicional dever de lembrança da morte do próximo como ato de preparação para a própria morte. Para eles, o fim da vida devia apresentar-se como surpresa – porque a medicina prometia a possibilidade de adiá-lo –, o que implicava abolir a necessidade do indivíduo de prevê-lo e de prevenir-se 377. É bem provável que a Câmara de São Luís, ao proibir os dobres de sino diários pelos defuntos, estivesse imbuída desse entendimento que propugnava a medicalização da morte. Ora, vimos pelo ofício de D. Luis que a Câmara justificou sua decisão sob a alegação “[...] de promover e manter a tranquilidade e segurança, saúde e comodidade dos habitantes”. D. Luis em tom sarcástico responde a essa decisão dizendo: E mesmo não sei por que há de ser tão prejudicial à salubridade e comodidade pública os dobres de sino, sem que ao mesmo tempo sejam: os toques musicais, o rebombo do canhão em dias de funerais, o toque das cornetas e o rufo dos tambores?! 378 Da forma como se expressou em seu ofício, D. Saraiva parece não compreender a associação, alegada pelos membros da Câmara, entre os dobres de sino e a saúde e comodidade dos habitantes de São Luís. “Os sinos em todos os tempos têm sido amigos e inimigos, como diz o sábio Alexandre Herculano; mas não podem sofrer a pena de coisas inúteis e prejudiciais, porque a liturgia da Igreja justifica a sua utilidade [...]” 379. Para D. Luis, longe de serem os sinos prejudiciais, são eles revestidos de um salutar caráter simbólico: [...] os seus sons ou toques têm uma significação simbólica e harmônica com as cerimônias e ritos da Igreja e são um dos modos, por que a mesma Igreja desenvolve o seu culto público e desperta nos corações dos Fiéis práticas de piedade, já fazendolhes renascer na alma as alegrias de que estão privados pelo abatimento dos 376 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 264-265. 377 REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 266. 378 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 379 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 109 corações, e já fazendo reaparecer neles a doce esperança e já acordando-lhes o temor religioso adormecido pela voragem das paixões 380. O simbolismo proveniente dos sons dos sinos remete-nos, segundo D. Saraiva, a memórias e lembranças específicas. Os sinos nos remetem a Deus, à morte, ao temor religioso, à prática da piedade e das demais virtudes cristãs. Sendo assim, por que então não dizer que os sinos e seus sons funcionam como uma espécie de lugar de memória? Os lugares de memória, no dizer de Pierre Nora, têm uma finalidade pragmática: “a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial [...]” 381 . Parece-nos que foi basicamente guiado por essas premissas que D. Luis redigiu o referido ofício. Em 10 de setembro de 1887, a Câmara Municipal de São Luís, talvez motivada pela inobservância do artigo de postura de 1872, editou uma outra postura [...] proibindo os dobres de sinos pelos defuntos em todas as igrejas por ocasião de Missas e enterros, exceto na Igreja de São José da Misericórdia (São Pantaleão) em que só poderá haver um dobre por ocasião de passar cada enterro, isso mesmo de duração não maior de um minuto, e impondo aos contraventores a multa de 50//000 réis e o dobro nas reincidências 382. Nessa época já havia D. Saraiva falecido, e o bispo Maranhão era D. Antônio Cândido de Alvarenga. D. Alvarenga basicamente reafirmou a postura de sua predecessor: [...] penso que a postura ora organizada pela Câmara Municipal é ilegal por falta de competência da Câmara para decretar tal proibição, porque o rito da Bênção dos sinos, o seu número em cada igreja, quando e como se poderá usar deles são coisas que pertencem ao culto divino, estão determinadas no direito canônico e nos livros litúrgicos, e portanto às autoridades eclesiásticas exclusivamente pertence regular o uso dos sinos das igrejas 383. 380 Ofício do Bispo Dom Frei Luis da Conceição Saraiva ao Presidente da Província do Maranhão Augusto Olimpio Gomes de Castro, 29/02/1872, Setor de Avulsos, APEM. 381 NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, nº 10, dezembro de 1993, p. 22. 382 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão José Bento de Araujo, 06/10/1887, Setor de Avulsos, APEM. 383 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão José Bento de Araujo, 06/10/1887, Setor de Avulsos, APEM. 110 E, além disso, para D. Cândido de Alvarenga, “[...] o ato da Câmara Municipal, votando a postura de que se trata, por ser uma violência senão um atentado contra as crenças, as consciências e os direitos dos habitantes católicos do Município da capital” 384. A divergência dos bispos com relação ao artigo de postura da Câmara foi mais um daqueles casos exemplares da ingerência excessiva do poder civil sobre assuntos exclusivamente inerentes à esfera religiosa. Dizemos “ingerência excessiva” porque o padroado e o beneplácito por si mesmos já configuravam uma ingerência. Esse caso do artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís proibindo os dobres de sino evidencia que as autoridades civis foram bem além da “ingerência constitucionalizada” (padroado e beneplácito) ao pretenderem legislar sobre assuntos e objetos estritamente religiosos. O que parece é que os membros da Câmara de São Luís, ao editarem o ato de postura proibitivo dos dobres de sino, consideraram a Igreja como uma repartição do Estado. Nessa ótica, sendo a Igreja uma repartição estatal, deveria ela assentir com as determinações estatais, ainda que o assunto em questão seja essencialmente religioso. As duas dissidências que estudamos são como que exemplos da turbulenta e conflitosa relação entre a Igreja e o Estado no período imperial brasileiro. À medida que se aproximava o fim do século XIX mais se acirravam os desentendimentos. Com a eclosão da Questão Religiosa, ficou evidente que o “casamento” entre os dois poderes estava próximo do fim. O divórcio chegou provisoriamente por meio de decreto, e se consolidou terminantemente em 1891 com a primeira Constituição da República. 384 Ofício do Bispo Dom Antônio Cândido de Alvarenga ao Presidente da Província do Maranhão José Bento de Araujo, 06/10/1887, Setor de Avulsos, APEM. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS Partimos da noção de que os ofícios dos bispos diocesanos do Maranhão constituem uma espécie de palco de representações. Em suas correspondências oficiais ao Presidente da Província, os bispos delinearam uma cosmovisão; eles fizeram uma apologia da Igreja, eles representaram a si próprios e a sociedade sob a ótica do catolicismo. Não houve confusão ou indecisão teórico-metodológica em nosso trabalho. Ficou evidente ao longo da dissertação que fizemos um estudo de representações pautado na análise do discurso. Mas isto não impediu que estabelecêssemos similitudes e paralelos com outras correntes teóricas e metodológicas. Os direcionamentos teórico-metodológicos do nosso estudo ficaram postos no primeiro capítulo da dissertação. Fizemos, em seguida, uma discussão que mostrou como foi avesso ao cristianismo o século XIX. Não só o catolicismo, mas o cristianismo por inteiro foi abalado. A estrutura de crença e de sociedade proposta pelo cristianismo foi incisivamente questionada e desacreditada durante esse período. As críticas mais ácidas provieram da filosofia. Ela desligou-se definitivamente da teologia no século XIX e abandonou a hipótese de Deus, por considerá-la infundada e incoerente com os saberes da época. Vimos os posicionamentos de Feuerbach e de Nietzsche neste sentido. Este último deu um novo sentido e uma nova roupagem à expressão “morte de Deus”. O cristianismo, a autoridade religiosa e a Igreja foram seriamente criticados e desacreditados durante todo o século XIX. Neste século chegou a termo um processo de secularização iniciado desde a época dos iluministas. Este processo esvaziou paulatinamente a autoridade religiosa. Com isso, o Estado foi se assenhoreando das atribuições outrora pertencentes à religião. Quem nega que algo parecido com isso tenha ocorrido no Brasil imperial? O terceiro capítulo da dissertação esteve orientado no sentido de estabelecer uma ponte com o segundo capítulo e, assim, responder a esse questionamento. Sublinhamos quão contraditória fora a Constituição Imperial de 1824. O Estado elaborou esse documento no qual tomava para si todos os poderes civis. Foi o Estado mais além disso e deu ao Imperador os direitos de padroado e beneplácito sobre a Igreja. O catolicismo era, pelos ditames constitucionais, a religião oficial do Império. Vimos que essa posição advinda da oficialidade não foi confortável para a Igreja Católica no Brasil. O art. 5º 112 da Constituição de 1824 foi como um aguilhão de ouro que manteve a Igreja sob a ingerência do Estado. Após essa discussão, adentramos na parte final da dissertação. Apresentamos as carências do culto público católico na província como o cenário em frente ao qual foram desencadeadas as dissidências entre D. Luis da Conceição e as mencionadas autoridades civis. Na província do Maranhão, pode-se dizer que o problema mais sensível enfrentado pela Igreja Católica durante o século XIX esteve relacionado ao aparelhamento e estrutura do culto público. Em seus ofícios, todos os bispos do Maranhão durante o século XIX traçaram para Igreja Católica maranhense um cenário que lhe foi desfavorável. Longe de gozar das possíveis prerrogativas oriundas do fato de ser a religião oficial do império, o catolicismo no Maranhão em muitos casos figura como refém da própria condição, quase sempre sujeito à mercê dos chamados poderes provinciais. “Era”, conforme disse D. Francisco de Paula, “um mal semelhante ao impaludismo, que mina longamente o organismo, degenerando-lhe o sangue, até chegar a uma crise aguda da qual a pessoa sai vitoriosa e convalesce ou então morre” 385. Prosseguindo, notamos através da análise das duas dissidências os exemplos de como o regime de associação entre Igreja e Estado culminava inevitavelmente na confusão de competências. O caso do artigo de postura da Câmara Municipal de São Luís evidencia, além disso, uma espécie de choque de mentalidades entre a autoridade episcopal e os membros da Câmara. O que sabemos hoje é que venceu o entendimento da Câmara. Os dobres de sino são raros atualmente. Lacerda de Almeida disse algo interessante nesse sentido: O agnosticismo de nossas instituições, acompanhando-nos além da morte, suprimiu todos os emblemas que despertam a piedade e a crença numa outra vida, suprimiu até a cruz; a simples cruz dos desgraçados desapareceu dos caixões mortuários da classe pobre, e o carro que lhes conduz os cadáveres confunde-se com as carroças que levam mantimentos aos batalhões nos quartéis 386. As autoridades civis muitas vezes invadiram o domínio da religião. Quando isso ocorria, iam os bispos corroborar seus pontos de vista na Constituição de 1824, no Concílio de Trento e nas Constituições do Arcebispado da Bahia. 385 PAULA E SILVA, Francisco de. Apontamentos para a história eclesiástica do Maranhão. Bahia: Typographia de S. Francisco, 1922, p. 268-269. 386 ALMEIDA, Lacerda de. op. cit., p. 179-180. 113 Nas divergências havidas entre a autoridade episcopal e o poder civil da província do Maranhão, D. Saraiva pôde reagir somente com o auxílio do apelo aos sentimentos religiosos das autoridades civis. Não dispunha o bispo de outros meios de reação. Com razão disse Delumeau que “[...] as Igrejas oficiais foram na maior parte das vezes tímidas em relação ao Estado” 387. O recurso que a Igreja Católica encontrou para contornar essa situação de fragilidade frente aos poderes do Estado e frente aos demais desafios do século XIX, foi a reafirmação da ortodoxia eclesiástica a partir de um amplo projeto reformador que teve no ultramontanismo uma de suas principais diretrizes. A Igreja do final do século XIX se pretende enquanto um “[...] recinto fechado onde o mundo não entra” 388. À medida que avançava o século XIX, “a mútua concórdia do império com o sacerdócio” 389 tornava-se algo irremediavelmente obsoleto e inviável. Gradualmente se aproximava o fim de uma cultura política e de um sistema político; se aproximava o fim de uma forma de pensar e de representar o poder. 387 DELUMEAU, Jean. Nascimento e afirmação da reforma. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1989, p. 354. 388 GUARDINI, Romano. Os sinais sagrados. 2. ed. São Paulo: Quadrante, 1995, p. 57. 389 GREGÓRIO XVI. “Mirari vos”. Condenação do indiferentismo religioso e da liberdade de consciência, de imprensa e de pensamento. In: Documentos de Gregório XVI e de Pio IX (1831-1878). São Paulo: Paulus, 1999, p. 39. 114 REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. A Trindade. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008. ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru: EDUSC, 2007. ALMEIDA, Lacerda de. A egreja e o estado: suas relações no direito brazileiro. Exposição da materia em face da legislação e da jurisprudencia nacional. Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunaes, 1924. AMADO, Janaína. “O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral”. In: Revista de História da Universidade Estadual Paulista. vol. 14. São Paulo: UNESP, 1995. 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Setor de Documentos Avulsos, Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). 123 ANEXOS 124 ANEXO A QUADRO I - Ofícios do Bispo Diocesano do Maranhão - 1800 a 1914 ANO QUANTIDADE DE OFÍCIOS ANO QUANTIDADE DE OFÍCIOS ANO QUANTIDADE DE OFÍCIOS 1800 02 ofícios 1848 02 ofícios 1875 27 ofícios 1805 02 ofícios 1853 30 ofícios 1876 23 ofícios 1830 11 ofícios 1854 78 ofícios 1878 10 ofícios 1831 37 ofícios 1855 103 ofícios 1879 13 ofícios 1832 48 ofícios 1856 50 ofícios 1881 14 ofícios 1833 22 ofícios 1857 74 ofícios 1882 07 ofícios 1834 26 ofícios 1858 50 ofícios 1883 05 ofícios 1835 15 ofícios 1859 60 ofícios 1884 09 ofícios 1836 12 ofícios 1861 19 ofícios 1885 11 ofícios 1837 43 ofícios 1862 24 ofícios 1887 07 ofícios 1838 22 ofícios 1863 26 ofícios 1888 12 ofícios 1839 42 ofícios 1864 35 ofícios 1889 14 ofícios 1840 75 ofícios 1865 23 ofícios 1890 04 ofícios 1841 84 ofícios 1866 02 ofícios 1891 08 ofícios 1842 57 ofícios 1867 59 ofícios 1895 04 ofícios 1844 17 ofícios 1868 26 ofícios 1897 02 ofícios 1845 22 ofícios 1869 44 ofícios 1901 01 ofício 1846 18 ofícios 1870 69 ofícios 1904 03 ofícios 1847 15 ofícios 1872 47 ofícios 1905* e 1914** 01* e 02** ofícios TOTAL DE OFÍCIOS: 1.568 Fonte: Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Quadro elaborado pelo autor, São Luís, 2011. 125 ANEXO B QUADRO II - Sucessão dos bispos do Maranhão – 1826 a 1898 BISPO Dom Luis de Brito Homem, 13º Bispo do Maranhão Dom Frei Joaquim de Nossa Senhora de Nazareth, 14º Bispo do Maranhão PERÍODO 1802-1813 1820-1823 Dom Marcos Antônio de Sousa, 15º Bispo do Maranhão 1826-1842 Dom Frei Carlos de São José e Souza, 16º Bispo do Maranhão 1844-1850 Dom Manoel Joaquim da Silveira, 17º Bispo do Maranhão 1851-1861 Dom Frei Luis da Conceição Saraiva, 18º Bispo do Maranhão Dom Antônio Candido de Alvarenga, 19º Bispo do Maranhão 1861-1876 1878-1898 NOTAS Desde 1º de maio de 1791 Bispo de Angola. Natural de Fundão, no Bispado da Guarda, clérigo secular e formado em Cânones pela Universidade de Coimbra. Muito doente, concentrado e tímido, fez o governo de um enfermo, sem cor, sem agitação, sem medida alguma, além do despacho de papeis. Nascera em Nazareth, termo da vila de Pederneiras, comarca de Leiria, em Portugal. Aos 15 anos entrou para a Ordem Franciscana de Santa Maria da Arrábida, estudando em Mafra, em cujo convento veio a ser professor de teologia. “Nascido na Capital da Bahia, a 10 de fevereiro de 1771. Sacerdote aos 23 anos, pouco depois pároco colado da Vitória, onde nascera, e examinador sinodal, seus talentos e virtudes o fizeram Secretário do Governo da Província [da Bahia] e o elegeram deputados às Cortes de Lisboa, em 1820. Gênio dedicado às letras, conhecia profundamente o grego, o inglês, o francês e o italiano. Consagrou-se à oratória sagrada, exercendo-a sempre com aplauso e subida reputação. Nascido em Recife a 4 de novembro de 1777, professou na Ordem Carmelita a 4 de dezembro de 1797. Sacerdote, ocupou diversos cargos, entre os quais o de professor de filosofia e teologia em seu convento [Carmelita], mestre de noviços, examinador sinodal, Visitador Geral da Ordem e Governador da Diocese de Olinda. O Governo o nomeou Diretor do Colégio dos Órfãos de Olinda, após Professor de Filosofia, Diretor e Reformador do Liceu de Recife, sendo muito estimado pela juventude pernambucana. Nascido de pais modestos, no Rio de Janeiro, a 11 de abril de 1807, fez seus estudos superiores no Seminário de São José, da mesma Cidade. Sacerdote, a 2 de maio de 1830, preterido por motivos políticos em concursos para vigário da Candelária e de Santa Rita, foi nomeado professor de teologia e, em 1838, Reitor do mesmo Seminário que reparou e ampliou; restaurou-lhe as finanças e lhe reformou os estudos. Nasceu, a 25 de dezembro de 1824, na Paróquia de Rio Fundo, da Província da Bahia. Estudou as primeiras letras na cidade de Santo Amaro. Órfão de pai, aos dez anos, a 5 de março de 1841 foi recebido no Mosteiro de São Bento, em Salvador, onde fez todos os estudos secundários e superiores, professou em 1842 e recebeu as ordens sacras. Nasceu em São Paulo, a 22 de abril de 1836. Dado o seu notável pendor, colocaram-no como menino do coro na Catedral, onde provou ótimo comportamento e boas qualidades de cantor. Matriculou-se entre os primeiros alunos do Seminário de São Paulo, frequentando já as aulas de Dogma e de Moral. A 25 de março de 1860 foi-lhe conferido o presbiterato. Continuou no Seminário como professor de português, latim e canto gregoriano até 1865, sendo então nomeado coadjutor de Taubaté e, após, da Serra Branca. Em fevereiro de 1870 provisionado Vigário de Mogi das Cruzes, aí ficou até 4 de julho de 1876. Quadro elaborado pelo autor, São Luís, 2013. Baseado no livro de Felipe Condurú Pacheco. História eclesiástica do Maranhão. São Luís: SENEC, 1969. 126 ANEXO C QUADRO III - Igrejas matrizes arruinadas e necessitadas de sacerdotes (1831-1868) Matriz de Monção Vila de São Bernardo “Povoação de São José e suas imediações” Vila da Tutoia Curato do Buriti Freguesia de São João Baptista de Vinhais Freguesia de São Joaquim da Bacanga Matriz de São Bento de Pastos Bons Vila da Chapada na margem do Grajaú Vila do Brejo São José da Vila de Guimarães São João de Cortes Vila do Paço do Lumiar São José do Lugar dos Índios e São Joaquim do Bacanga Cururupu e ItapecuruMirim Vila do Rosário Igreja Catedral “[...] [seu] lamentável estado prova a necessidade de um Pároco, que vigie sobre a conservação, decência, e ornato da casa do Senhor”. (Ofício de 11/06/1831) “[...] falta socorros espirituais por não haverem sacerdotes que os administrem, havendo somente um vice-pároco, que adoecendo, como tinha acontecido, ou achando-se fora [...] careciam os povos da consolação do Santo Sacrifício da Missa, e ainda do Sacramento da enfermidade”. (Ofício de 23/02/1832) “[...] estão privados dos socorros do Sacramento, porque o seu R. Pároco, que é o da Vila de Caxias, não vai, nem manda outro Sacerdote em seu lugar para lhes administrar o pasto espiritual, e [...] ficando a cargo dos representantes pagar ao Sacerdote [...]”. (Ofício de 07/03/1833) “[...] falta Sacerdote para a administração dos Sacramentos naquela freguesia”. (Ofício de 04/03/1833) “[...] a casa é grande, e os operários poucos”. (Ofício de 16/10/1833) “[...] achei em um estado lamentável, porque não tendo Igreja alguma, o altar se achava colocado em um edifício muito arruinado, que então servia de cadeia”. (Ofício de 26/08/1837) “[...] somente tem uma Igreja de palha, e por isso indecente para a celebração do Santo Sacrifício da Missa”. (Ofício de 26/08/1837) “[...] precisa de um sino”. (Ofício de 26/08/1837) “[...] precisa de alguns ornamentos”. (Ofício de 26/08/1837) “[...] falta sacerdotes”. (Ofício de 06/05/1837) “[...] [precisa] ser edificada a Matriz [cujo] edifício ameaça grandes ruínas”. (Ofício de 27/11/1840) “A Matriz [é] [...] coberta de palha, e indecente para os ofícios Divinos”. (Ofício de 27/11/1840) “[...] ameaça ruína; além disso acha-se tão imunda que não devia consentir, que nela se celebrasse os tremendos Mistérios da nossa Santa Religião”. (Ofício de 03/04/1855) “[...] não têm Igrejas; os Ofícios Divinos são celebrados em casas de palha”. (Ofício de 03/04/1855) “[...] os Vigários reformaram as Igrejas Matrizes de suas Freguesias, que se achavam em completo estado de ruína, por meio de esmolas, e zelo, que empregaram [...]”. (Ofício de 10/09/1862) “[...] o estado de ruína da Igreja Matriz se acha a ponto de não poder de forma alguma continuar a prestar-se ao alto fim, a que é destinada, sem comprometimento da veneração e respeito, que todos devemos à Casa do Senhor [...]”. (Ofício de 21/04/1865) “[...] [seu] estado precário reclama melhoramentos”. (Ofício de 08/06/1868) Fonte: Arquivo Público do Estado do Maranhão (APEM). Quadro elaborado pelo autor, São Luís, 2012.