II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades

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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
II Seminário de História Social:
Relações de Poder e Identidades
Anais
São Gonçalo
Faculdade de Formação de Professores da UERJ
2012
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
Reitor: Prof. Dr. Ricardo Vieiralves de Castro
Faculdade de Formação de Professores - FFP
Diretor: Prof. Dr. Manoel Martins de Santana Filho
Vice-Diretor: Prof. Dr. Rogério Carlos Novais
Departamento de Ciências Humanas - DCH
Chefe: Profª. Drª. Helenice Aparecida Bastos Rocha
Sub-Chefe: Prof. Dr. Sydenham Lourenço Neto
Coordenadora de Graduação: Profª. DrªMaria Aparecida Cabral
Programa de Pós-Graduação em História Social
(Mestrado em História Social) - PPGHS
Coordenadora: Profª. Drª. Daniela Buono Calainho
Coordenadora Adjunta: Profª. Drª. Maria Letícia Corrêa
Comissão Organizadora
Daniela Buono Calainho
Maria Letícia Corrêa
Camila de Freitas Silva
Gelson Gomes Carneiro de Souza
Leonardo Gonçalves Gomes
Luiz Gustavo Mendel Souza
Rozely Menezes Vigas Oliveira
Thiago Rodrigues Nascimento
Organização dos anais
Daniela Buono Calainho
Maria Letícia Corrêa
Camila de Freitas Silva
Gelson Gomes Carneiro de Souza
Leonardo Gonçalves Gomes
Luiz Gustavo Mendel Souza
Rozely Menezes Vigas Oliveira
Thiago Rodrigues Nascimento
ISBN 978-85-88707-74-0
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
APRESENTAÇÃO
A iniciativa de organização do II Seminário de História Social: Relações de Poder e
Identidades tem por finalidade promover o debate sobre investigações históricas e
historiográficas, conjuntamente à reflexão sobre questões teóricas, práticas e metodológicas
relacionadas às pesquisas dos pós-graduandos e mestres formados pelo Curso de Mestrado em
História Social da Faculdade de Formação de Professores da UERJ.
Em sua segunda edição, o evento consolida-se como importante espaço de ampliação
de debates, divulgação científica e qualificação acadêmica e profissional, ao promover o
intercâmbio de experiências e o aprimoramento da produção científica dos alunos.
Comissão Organizadora
São Gonçalo, Outubro de 2012
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Índice dos trabalhos
1. Andréa Martins Alves Silva – O modelo de professora nos discursos de Rui
Barbosa e José Veríssimo – final do século XIX
p. 7
2. Camila de Freitas Silva – A República vira notícia: a Proclamação e seus
ecos na imprensa brasileira (1889)
p. 16
3. Felipe Augusto dos Santos Ribeiro – Pesquisando os “Operários à
tribuna”: vereadores comunistas e trabalhadores têxteis de Magé/RJ
p. 28
4. Gabriel Valladares Giesta – Das Cores da Música: Identidades, Cultura
Popular e Samba Carioca no início do século XX (1917 – 1933)
p. 40
5. Gelson Gomes C. de Souza – A busca de educação escolar pela população
riobonitense (1977-1982)
p. 49
6. Jussara França de Azevedo – O periódico O Industrial e a imprensa do Rio
de Janeiro
p. 60
7. Leonardo Gonçalves Gomes – Os simplicia do Reino: a lista de
medicamentos simples da Farmacopeia Tubalense Químico-Galênica de
1735
8. Luiz Gustavo Mendel Souza – Memória das jornadas dos Santos Reis: em
busca de um viés para a compreensão das representações e apropriações
contidas nas profecias do mestre Fumaça
p. 70
p. 80
9. Marcelo Nogueira de Siqueira – Estudantes x Polícia: as manifestações
estudantis de 1964 a 1968 vistas pelo Correio da Manhã
p. 90
10. Melissa de Miranda Natividade – A Questão Agrária no governo João
Goulart
p. 102
11. Natalia Azevedo Crivello – Fotografia, memória e paisagens urbanas:
reflexões sobre cidade de Nova Iguaçu na década de 1930
p. 111
12. Rafael Reis Pereira Bandeira de Mello – A militância do Apostolado
Positivista em favor da implantação de uma Ditadura Republicana no Brasil
(1889-1891)
13. Renata Moreira Ribeiro – Ao tesoureiro da Alfândega: estudo da relação
entre a Tesouraria da Real Fazenda e a Tesouraria Geral da Alfândega
(c.1750-1777)
14. Rosane dos Santos Torres – Pelo Progresso da Nação! Discursos e projetos
na ampliação do ensino público na capital federal (1892-1902)
15. Rosangela Torres da Silva – Entre o Sagrado e o Profano: estudo das
Irmandades Religiosas na Paróquia de São José de Além Paraíba no
contexto da Zona da Mata Mineira (1850-1900)
p. 127
p. 136
p. 143
p. 151
16. Rozely Menezes Vigas Oliveira – Convento de Santa Mônica de Goa: um
modelo de religiosidade feminina para o Oriente (1606-1636)
p. 159
17. Sara Cesar Brito – A formação do estado do Guanabara nas páginas da
imprensa: uma análise a partir do jornal O Globo
p. 169
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18. Tatiane Rocha de Queiroz – Leituras da Revolta Liberal de 1842 em O
Brasil.
19. Thiago Rodrigues Nascimento – A Faculdade de Formação de Professores
de São Gonçalo/RJ e a Licenciatura Curta em Estudos Sociais:
implantação, resistência e defesa entre os anos 1973-1987
20. Vinícius Gomes da Silva – Imprensa e abolição: Vassouras e a crise do
trabalho escravo (1885 – 1888)
p. 175
p. 185
p. 195
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O modelo de professora nos discursos de Rui Barbosa e José Veríssimo –
final do século XIX
Andréa Martins Alves Silva*
Resumo: Esta pesquisa visa analisar a entrada das mulheres no magistério primário no Rio de
Janeiro no final do século XIX e início do século XX nos discursos de Rui Barbosa e José
Veríssimo, ilustres representantes da elite brasileira e que se dedicaram à questão educacional.
O recorte temporal corresponde a um período marcado pelos debates em torno da construção
da nação brasileira e os problemas relacionados ao atraso do país frente às nações
consideradas modernas, os debates sobre a escolarização ganharam maior visibilidade ao
mesmo tempo em que se verifica um maior interesse das mulheres pelo exercício da profissão.
A feminilização do magistério não se deu de forma tranquila, objeto de muitas disputas e
polêmicas, a possibilidade de mulheres exercerem o magistério gerou preocupações e debates,
principalmente, porque as mulheres se tornavam uma presença, no magistério, muito maior do
que o desejado pela sociedade. Neste sentido os diversos discursos passaram a associar o
magistério feminino à vocação, à missão e ao sacerdócio. Cabia às professoras o papel de
moralizadoras e a responsabilidade de incutir nos alunos os ideais de nação moderna
preconizados pela elite brasileira.
Palavras-chave: Magistério feminino; Educação; Nação.
Abstract: This study aims to analyze the theme of the onset of female participation in primary
teaching in Rio de Janeiro in the late nineteenth century and early twentieth century in the
speeches of Rui Barbosa and José Veríssimo, that were distinguished representatives of the
Brazilian elite that were dedicated to education issues. The chronological framework of the
analysis is the period that gave rise to the debate on the nation building in Brazil and on the
problems related to the delay of this country when compared with nations considered modern.
The debate on school attendance had gained then greater visibility and at the same time there
was a major interest of women in the profession. The feminization of teaching did not occur
smoothly, and it became the object of many disputes and controversies. These concerns and
discussions have emerged because women gained a presence in teaching much higher than
expected by society. In this context several discourses began to relate female teaching with
vocation, mission and ministry. It was up to female teachers the task of moralizing and the
responsibility to instill in students the ideals of modern nation advocated by the Brazilian
elite.
Keywords: Women's Magisterium; Education; Nation.
Esta pesquisa de dissertação visa promover uma discussão sobre os debates que se
travaram no Brasil, principalmente nas últimas décadas do século XIX e início do século XX,
em torno da idéia de construir uma nação moderna. O foco de atenção deste trabalho
concentra-se na preocupação por parte de alguns membros da intelectualidade com a
necessidade de ampliar, reformar e tornar a educação o fio condutor no processo de
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ).
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modernização da nação. Esse período registra também um amplo processo de feminilização
do magistério primário, principalmente com a criação de escolas normais uma vez que se
fazia urgente dar um melhor preparo técnico profissional aos professores de uma escola
elementar que se expandia.
Essas escolas vinham registrando um número crescente de meninas e uma diminuição
paulatina do número de meninos (PRIMITIVO, 1940, p. 475), fator responsável por discursos
favoráveis e desfavoráveis em torno da entrada das mulheres no mercado de trabalho. Neste
sentido interessa a esta pesquisa investigar como os intelectuais Rui Barbosa e José
Veríssimo, que se preocupavam ativamente com a questão educacional no país e com a
entrada das mulheres no magistério, viam esse processo, e produziam com seus discursos um
modelo de professora dentro de um momento de reflexões sobre a modernização da nação
brasileira em fins do século XIX e início de XX.
A entrada das mulheres no magistério foi um fenômeno que ocorreu ao longo do
século XIX no Brasil e em grande parte dos países da Europa e nos Estados Unidos. No Brasil
a lei de 15 de outubro de 1827 marca o início institucional para o acesso das mulheres à
escola, garantindo o direito à educação, e previa um conjunto de conteúdos mínimos para a
formação de meninas e regras para seu ingresso na profissão do magistério, o que, de certa
forma, proporcionou um aumento relativo do número de mulheres e forjou um perfil da
profissão ao demarcar aquilo que caberia à formação das meninas.
Todavia, a partir de 1879 (Reforma Leôncio de Carvalho) foi instituída,
nacionalmente, a equiparação salarial entre professores e professoras, em decorrência da
admissão do ensino conjunto para crianças de ambos os sexos, e o fim da desigualdade de
conteúdo curricular entre os dois sexos que, até então, justificava a diferenciação salarial, pelo
menos na forma da lei. Este fato realça ainda mais o incentivo por parte do poder público em
favor do magistério feminino na escola elementar, cabendo às professoras a nobre missão de
ensinar e, por outro, lado valorizar a possibilidade de ingressar no espaço púbico com certo
nível de aprovação social.
Rui Barbosa foi relator em 1883 e 1884 dos Pareceres sobre a educação primária nos
debates que se travaram no parlamento brasileiro sobre os rumos da instrução pública, que
culminaram em um minucioso estudo sobre as condições da educação no Brasil, inclusive
com dados de outros países considerados avançados e modernos que deveriam servir de
modelo pela sociedade brasileira. Ao serem analisadas passagens dos discursos, observa-se
em Rui Barbosa uma ênfase nos valores morais e maternais, consagrando a abnegação como
uma das maiores qualidades da mulher professora:
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Seja qual for a opinião de cada um acerca da co-educação dos sexos, duas verdades
há que parecerem hoje definitivamente adquiridas, inalienavelmente acrescentadas
em domínio dos fatos de evidência universal: a preexistência da mulher como
educadora da infância, a sua competência privativa na direção das escolas onde se
reunirem os dois sexos(...)(BARBOSA, 1947, p. 33)
Para aclimar a criança à escola empreendemos entregar à professora as classes
elementares do sexo masculino. A mulher entesoira em si o instinto da educação,
filha, irmã, esposa e mãe, está habituada à abnegação, ao sacrifício. Sua firmesa
impregna de ternura cativa o menino. Sua inteligência penetrante e delicada prestase aos desejos da ingênua criança, sem lhe escravizar: assenhoreia-se, sem esforço,
ou por um esforço amorável, de todos os impulsos de seu espírito e do seu
coração.Opulenta em recursos, engenhosa , inventiva, sabe variar os seus meios de
atividade. Adivinha o que lhe não ensinaram. Não enfada .(...) Qualquer, a poder de
bons conselheiros conseguirá educar uma criança, dos dez anos em diante: mas até
essa idade não há agudeza de preceitos, que baste: é mister gênio : e com esse
embargo os homens não se sabem haver (BARBOSA, 1947, p. 36).
A escola de primeiras letras é vista por Rui Barbosa como um local para acolher o
aluno e moldá-lo dentro dos padrões de civilidade, porém o conteúdo deveria ser leve, ameno,
superficial, caberia às mulheres a função de mesclar os interesses propostos pela sociedade de
formar cidadãos, mas dentro dos padrões ligados aos valores do espaço privado ligados à
paciência, ao amor e ao sacrifício.
Podemos verificar a associação entre professora e mãe, abnegada e acostumada ao
sacrifício. Esses adjetivos representam fator fundamental para educar as crianças nos
princípios da moral e da submissão. Ao analisar os discursos desse letrado percebe-se a
associação da mulher à figura e função materna, voltada para a doação, a missão e a vocação
sacerdotal. A discussão se associa a outros discursos como nas formulações de Foucault ao
perceber que o fato de que um enunciado não existe isolado, mas sempre em associação e
correlação a outros enunciados, do mesmo discurso ou de outros discursos (missionário,
religioso, maternal, e assim por diante), e, finalmente, da materialidade do enunciado às
formas muito concretas com que ele aparece nas enunciações.
Rui Barbosa, apoiando-se em modelos educacionais de países europeus e dos Estados
Unidos, modelos estes que deveríamos seguir no Brasil, diz:
Enunciadas por nós neste tom estas idéias, quantos as não taxariam de
sentimentalismo e poesia? Valha-lhes, pois, a autoridade do maior, do mais prático,
de todos os reformadores do ensino em França hoje conhece, se lhe não valer a
eloqüência dos fatos que aduzimos, e que nos escusam de outra qualquer
justificação, em apoio dos disposições que o projeto nesta parte estabelece:
1)
Pertence exclusivamente à mulher a direção dos jardins de crianças e escolas
do sexo feminino;
2)
Exclusivamente lhe toca, outrossim , a direção das escolas mistas (7 - 9 anos
e 9 - 11);
3)
Para o magistério das escolas elementares do sexo masculino (7 - 9 anos) é
permitida a nomeação de professoras (BARBOSA,1947, p. 37).
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O autor atenta para a preparação dessas professoras a fim de estarem aptas para
ministrar o ensino aos pequenos, bem como a existência de exames de vocação para tais
profissionais: “cumpre que as professoras dos jardins de crianças, tanto quanto das escolas
primárias, sejam adestradas a cursar um ensino normal, e a passar por exames, que
configuram o diploma de capacidade”. (BARBOSA, 1947, p. 98)
José Veríssimo foi autor de diversos estudos sobre a educação, tendo como destaque o
livro A educação nacional, editado em 1894, reeditado e revisado em 1906, com uma terceira
edição em 1985. Neste livro o autor faz um sério estudo sobre a instrução pública apontando
caminhos a serem trilhados para promover uma radical mudança social via educação. As
idéias discutidas nesse livro também serviram para um amplo debate sobre o tema na
sociedade. Esses letrados também utilizavam a imprensa para divulgar suas posições sobre a
sociedade brasileira no sentido de informar, colocando esse veículo como importante
formador de opinião.
Veríssimo aponta para os malefícios que a escravidão trouxera ao seio da família
brasileira. Sendo assim, a mulher, por estar mais próxima dos filhos deveria ser retirada da
ignorância e da superstição para cumprir a missão de moralizar a família e a sociedade, a
partir de sua escolarização no espaço público e de sua preparação para o magistério primário.
Segundo o autor:
(...) o primeiro e principal educador do indivíduo, desde o seu nascimento e quiçá
ainda em antes, até a sua morte, é a mulher, segue-se logicamente, necessariamente,
que a educação da sociedade deve começar pela educação da mulher (VERÍSSIMO,
1906, p.139).
Veríssimo faz uma crítica radical ao tratamento dado às mulheres, denunciando que tal
reclusão e analfabetismo significavam um atraso para a modernização do país, pois não as
habilitava a educarem seus filhos dentro dos princípios civilizatórios. Todavia, admite que as
transformações sociais em curso naquele período proporcionavam maior libertação dos
hábitos femininos, sendo por isso favorável ao seu paulatino ingresso nas escolas normais.
Esses fatos, verificados pelo autor no decorrer da virada do século XIX, deveriam se
aplaudidos pela sociedade e para o seu próprio bem, recomendando que o ensino ministrado a
essas futuras mães deveria privilegiar conteúdos relativos à Geografia e a História do Brasil,
bem como os valores nacionais, para que tais conteúdos fossem transmitidos às crianças ainda
no seio de seus lares.
Esse autor reconhece o sucesso e a importância das escolas normais por receberem as
moças, antes enclausuradas e atrofiadas por falta de exercícios físicos. Com este ingresso
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
poderiam se deslocar para a escola, o que lhes proporcionariam um relativo movimento físico,
além de poderem manter contato com o sexo masculino, já que em algumas delas ministravase o ensino simultâneo para moços e moças. Os dois sexos tinham sempre vivido
separadamente “seqüestrados um do outro, como inimigos recíprocos”. Agora poderiam
trocar idéias e aprenderem um do outro par o “bem da nação” (VERÍSSIMO, 1906, p. 161).
No entanto, o educador exige a melhoria do sistema de ensino e das disciplinas a
serem ministradas a essas moças. Defendia inclusive a criação de escolas superiores para
reforçar o ensino das futuras professoras. Toda a orientação do autor se dirige para a
preocupação com o conteúdo, que deveria ser elaborado segundo os preceitos da moral, da
organização social e da valorização dos mecanismos que incutem a identidade nacional. Para
tanto, a mulher deveria estar muito bem preparada a fim de transmitir aos filhos e aos alunos
os mais variados valores morais e civilizatórios, base de uma nação moderna.
Por estas análises tende-se a perceber que o olhar desses letrados sobre a mulher revela
um maior investimento em representações de afeto e de abnegação, do que de capacidade
intelectual, na medida em que são inseridas no espaço escolar segundo a conveniência de um
padrão cultural civilizatório. Sendo assim, a facilidade de manipular a mulher tornaria essas
professoras capazes de coadunar características dóceis e fraternais do espaço privado com a
competitividade e agressividade do espaço público, promovendo, desta maneira, uma dupla
inserção, que inclui no seio da família a pretendida civilização.1
Esses dois autores se assemelham quando defendem a educação como o caminho para
a transformação e a modernização da sociedade, na defesa das mulheres no magistério de
primeiras letras. No entanto o discurso de Barbosa aponta para uma educação mais acolhedora
nesta fase do ensino, apesar de apresentar um currículo bastante avançado com disciplinas de
ciências, arte, música etc. O papel da mulher está sempre associado à doação e ao lado
maternal, trazendo para a esfera pública os valores afetuosos e subservientes do espaço
privado. Já Veríssimo atenta para uma formação mais sólida para as mulheres como forma de
tirar o atraso do modelo colonial e a herança portuguesa de enclausuramento das mulheres. A
instrução feminina é pensada como a do cidadão, integral e enciclopédica. Todavia, para o
autor isso não significava que a mulher deveria se aprofundar e se especializar nas ciências,
tendo em vista que estava incapacitada por sua inteligência inferior a do homem, mas sim
aprender o necessário ao cumprimento racional e proveitoso de sua função: “(...) ser mãe,
1
A oposição aqui expressa entre o público e o privado considera que o espaço privado ou natural está
relacionado à mulher e ao seu papel no lar, na maternidade e no cuidado com a família, enquanto o espaço
público ou cultural relaciona-se ao homem, lócus da produção social do trabalho. Ver Scott, 1990.
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esposa, amiga e companheira do homem, sua aliada na luta da vida, criadora e primeira
mestra de seus filhos, guia de sua prole” (VERÍSSIMO, 1985, p. 122).
O autor defende então que, por sua missão na sociedade, para dar ao país uma posição
proeminente no mundo, cumpriria melhorar a educação feminina, portanto:
A educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua justificativa
não se encontrava em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função
social de educadora dos filhos ou, na linguagem republicana, na função de
formadora dos futuros cidadãos (LOURO, 2001, p. 447).
Segundo Saviani (2006, p. 28), no decorrer do século XIX houve um gradual processo
de organização do sistema escolar “e da institucionalização da formação de professores e a
consolidação das escolas normais no final do Império”. Neste sentido, a feminilização do
magistério, também foi um legado do século XIX, e, com o advento da república, esse
fenômeno foi se consolidando e só veio a aumentar significativamente nas décadas seguintes.
Os ideais republicanos promoviam a necessidade de ampliação da rede educacional por ter
sido pensada como capaz de disseminar princípios de disciplina e hábitos de trabalho, bem
como formar cidadãos republicanos por meio do ensino da leitura, escrita e moral e cívica
para fomentar a unidade nacional.
Neste sentido, a universalização da escola e do papel da professora nesse processo
perpassa a discussão em torno da modernidade, bastante em voga em fins do século XIX,
sendo o de construir a pátria, a nação e ser responsável em transmitir ao cidadão um conjunto
de ritos, tradições e mitos de origem, além de forjar no brasileiro o sentimento de amor a
pátria e aos seus símbolos (que serão reelaborados com a república). Por exemplo, o mito de
origem da nação, a bandeira, o hino, os heróis e os monumentos históricos (CARVALHO,
1990). Neste contexto a escola primária aparece como a responsável por transmitir esses
ideais de civilização. Levantaram-se vozes em torno da relação educação-construção da
nação.
O aumento sensível do número de mulheres no magistério deu-se pelo número do
aumento de vagas e pelo abandono por parte de homens desse campo profissional para cargos
de comando dentro da educação, ou em busca de empregos mais rentáveis, possibilitando que
seus lugares fossem ocupados pelas mulheres (APPLE, 1995, p. 53-71).
Neste sentido o aumento da demanda de mulheres professoras correspondeu a uma
visão ideológica que atribuía às mulheres o papel de regeneradoras morais da sociedade, o que
se faria principalmente por meio de sua inserção no campo educacional.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Palco de intensos debates, a cidade do Rio de janeiro abrigou uma intelectualidade
preocupada com os problemas nacionais, que desde o movimento reformista da geração de
1870 vinha se preocupando como os rumos do país e utilizavam teorias em voga entre os
integrantes da intelectualidade européia para explicar os motivos do atraso econômico e social
do Brasil. Segundo Maciel de Barros, um conjunto de idéias que buscavam o progresso e a
modernização tendo como elemento impulsionador a ciência (BARROS Apud SALLES,
1996). Para Alonso (2000, p. 51) “esse reformismo desenvolveu interpretações acerca dos
principais problemas brasileiros e buscou instrumentos para intervir politicamente”.
Todavia, como podemos perceber, os discursos sobre a mulher e sua inserção no
magistério foram marcados pelo conservadorismo, associando à figura da mulher a de mãe
redentora da nação, revestida de uma aura quase divina, comparando-a a virgem Maria que se
sacrificou em favor da salvação da humanidade. Como assinala Müller (1999) as mulheres
foram consideradas como seres dotados de uma espécie de dom natural para o magistério
visto serem elas responsáveis, em casa, pela educação dos filhos seriam fundamentais para
educar nas escolas. No entanto, esse caminho que se abria a mulher precisava ser controlado,
normatizado, regulado, pois não se permitia uma completa autonomia da mulher considerada
frágil e de inteligência pouco desenvolvida, além de preservar os altos valores morais da
sociedade. Araújo (1993, p. 89) assim comenta:
A castidade feminina era um valor inquestionável, acentuado pelo fato de a
população brasileira ser maciçamente filiada à Igreja Católica, cujo culto à Virgem
Maria elimina a possibilidade de quebrar o mito da virgindade. Preservar a castidade
antes do casamento era um dever da mulher que sociedade controlava, utilizando os
mais diversos mecanismos de punição quando a regra era infringida. O crime de
sedução ocupa grande espaço no noticiário diário, onde a mulher é defendida quando
vítima da violência masculina e culpada quando cede à fraqueza própria do sexo.
Dentro dos valores morais que se delineavam a partir de um viés positivista e
higienista, a família era base para sanear a sociedade. Era necessário detectar os agentes
degeneradores da sociedade e normatizá-los. (COSTA, 1979, p. 68). Chegando a família
alcançaria a criança, alvo privilegiado para regenerar a sociedade e, como a mulher,
pertencente a esse mundo privado, necessitava também ser educada para preparar a família e,
por conseqüência direta educar os pequenos na escola num processo de modernização e
civilização da sociedade.
O olhar dos letrados sobre a mulher nos revela um maior investimento em relações de
afeto que representações de capacidade intelectual. Expressões como: “a mulher é mais
dócil”, “a mulher é mais generosa”, “a mulher é mais delicada”, etc., presentes nos espaço
privado da família, os atributos idealizados da maternidade, como a docilidade, a delicadeza e
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
a generosidade, precisam ser trazidas para a esfera pública e, desse modo, contribuem para a
construção de padrões culturais civilizados, afeitos aos interesses e crenças das elites
dirigentes.
Utilizar a noção de discurso na análise desses textos requisita algumas considerações.
O discurso não pode ser visto com algo transparente, deve-se admitir que as idéias de um
texto dependam não apenas da escolha e uso de vocábulos, da linguagem e da semântica na
qual elas se expressam, como analisam Cardoso e Vainfas (1997, p. 375-392). A perspectiva
do discurso implica considerar os elementos da situação enunciativa, o contexto da
enunciação no qual o discurso é produzido. Refletir sobre o discurso significa examinar as
condições que presidem a sua elaboração: as condições de produção, o público receptor,
determinações do lugar e da função desses intelectuais, as implicações sociais e literárias que
possibilitam a sua construção. Dessa forma é importante conhecer como se dá a circulação das
idéias do texto/discurso na sociedade, de que maneira as ideias do discurso modificam ou não
a ordem estabelecida, isto é, relacionar o discurso às práticas sociais.
Importante contribuição também é dada por Foucault (1986, p. 90) ao afirmar que para
analisar os discursos, é preciso dar conta das relações históricas de práticas muito concretas,
que estão no discurso, pois tudo está relacionado ao poder. Na utilização desses critérios
metodológicos não se objetiva rigor quantitativo que mostre frequências de palavras para uma
avaliação mais demonstrável, portanto, segura do discurso. Palavras importantes podem
aparecer pouco, e, mesmo assim, serem de fundamental importância para os escritos.
Por estas análises tende-se a perceber que o olhar desses letrados sobre a mulher revela
um maior investimento em representações de afeto e de abnegação, do que de capacidade
intelectual, na medida em que são inseridas no espaço escolar segundo a conveniência de um
padrão cultural civilizatório. Sendo assim, a facilidade de manipular a mulher tornaria essas
professoras capazes de coadunar características dóceis e fraternais do espaço privado com a
competitividade e agressividade do espaço público, promovendo, desta maneira, uma dupla
inserção, que inclui no seio da família a pretendida civilização.
Todavia, independente das possíveis manipulações, como verificou Lúcia Müller
(1996), o esforço dessas mulheres em se fazer presente no espaço público e contribuir a seu
modo para o processo civilizatório permitiu abrir um caminho de fuga ao modelo imposto
pelo preconceito e pela submissão, possibilitando o surgimento de mecanismos próprios de
autonomia e de independência.
A despeito de todo o controle, o fato é que as mulheres agarravam-se ao magistério
com uma das únicas arenas onde poderiam exercer algum poder, mesmo ao preço de estarem
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
reforçando os estereótipos acerca da esfera feminina. Embora muitas mulheres estivessem
tendo ganhado importantes em educação e emprego, a maioria ainda estava excluída de outras
áreas ocupacionais, que não àquelas associadas ao ato de cuidar, como extensão da casa. O
ato de sair de casa para estudar e depois trabalhar nas escolas primárias representava muito
mais do que receber um salário: representava uma libertação do jugo masculino, mesmo que
metaforicamente: representava perceberem-se como capazes de burlar, de alguma maneira, a
posição histórica a que estavam submetidas. Não eram apenas submissas, haviam conquistado
certo grau de autonomia, dentro de um universo antes predominantemente masculino,
representado pelo espaço público da escola.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 15. N. 44, out. 2000, p. 35-54.
BARBOSA. Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da
instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1947
CARDOSO, Ciro. VAINFAS. Ronaldo. “História e análise de texto”. IN. Domínios da
História. Rio de Janeiro: Campus. 1997. pp.375-392.
DAMÁSIO. Silvia. Retrato social do Rio de Janeiro na virada do século. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 1993
FISCHER. Rosa Maria. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de
Pesquisa. N. 115. p. 197-223. Novembro. 2002.
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15
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A República vira notícia: a Proclamação e seus ecos na imprensa brasileira (1889)
Camila de Freitas Silva*
Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar as notícias relativas ao 15 de novembro
em diversos periódicos editados na cidade do Rio de Janeiro e em São Paulo. Como é de
nosso interesse analisar o discurso imediato sobre o evento, focalizamos as notícias e artigos
veiculados nos quinze dias subsequentes à Proclamação. Confirmando-se o apoio da maioria
dos periódicos selecionados ao novo governo, partimos da premissa de que este
posicionamento em relação ao novo regime, na imprensa, será uma das vias de sua
legitimação, ainda que tenha resultado de um golpe militar.
Palavras-Chaves: Imprensa; Proclamação da República; Legitimação.
Abstract: The aim of this study is to analyze the news on the “15th November” in several
newspapers published in the cities of Rio de Janeiro and Sao Paulo. As our interest is to
analyze the immediate speech about the event, we focus on news and articles published within
fifteen days after the Proclamation of the Republic. We perceive the support of most
newspapers to the new regime, and we can assume that this support was a way of legitimizing
it, even though it was the result of a military coup.
Key-words: Press; Proclamation of Republic in Brazil; Legitimation.
A Proclamação da República
A Proclamação da República, no dia 15 de novembro de 1889, levou ao fim a
monarquia que desde a independência se mantinha no Brasil. Para os republicanos, um passo
inevitável. Para os monarquistas, a triste inserção do Brasil no quadro latino americano
(CASTRO, 2000). Já da participação popular no episódio temos a visão tão difundida a partir
da frase de Aristides Lobo, jornalista republicano, sobre o povo “bestializado” e, mais
recentemente, a partir do livro de José Murilo de Carvalho, de um povo “bilontra”, que não se
manifestou por vontade própria, por saber que também estaria vetado de participação no plano
político-institucional (CARVALHO, 1987). Maria Tereza Chaves de Mello, em seu livro A
República Consentida, critica tal posição. Segundo a autora,
A construção historiográfica fez do bestializado não um surpreendido pelo fato,
como quis dizer o autor da frase. Aristides referia-se a um novum, a um mínimo
temporal, único e irreversível, a experiência de surpresa. O que está embutido na
interpretação canônica é a não-participação popular no evento como sinal do
desapreço do povo brasileiro pela República e, por derivação, sua vinculação à
Monarquia (...) - a proclamação da República é explicada como um ato de força
(MELLO, 2007, p.9).
No dia 15 de novembro, no atual Campo de Santana, proclamou-se a República e caiu
o último gabinete do império diante de um grande número de militares que se encontravam a
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista Capes.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
postos, esperando ordens, dispostos a travar uma batalha, se necessário. Essa batalha, porém,
nunca ocorreu. O mais perto que se chegou de um conflito foi uma troca de tiros entre um
oficial e o Barão do Ladario que, em vão, tentou disparar sua arma. Para o seu azar, ela não
funcionou e ele acabou ferido por três tiros. Ainda assim, nada grave.
O fim de um regime político não ocorre de uma hora para outra, ao acaso. O Império
já vinha perdendo prestígio há algum tempo. As constantes eleições fraudulentas; as reações
dos militares após a guerra do Paraguai, que queriam mais direitos e maior reconhecimento; a
abolição da escravidão (1888) que, se por um lado agradou a muitos, por outro desagradou a
boa parte dos grandes fazendeiros do Vale do Paraíba fluminense; e a resistência do governo
em implantar reformas foram questões que contribuíram para esse desfecho. Ainda assim, a
República não era inevitável como afirma certa historiografia “tradicional”. Ao contrário, fo i
um golpe audacioso, envolvendo certo risco político.
Em seu livro A República Consentida, Maria Tereza Chaves de Mello afirma que, para
além das questões políticas e econômicas, outro fator teve grande importância no processo de
desestabilização da monarquia (MELLO, 2007). Segundo a autora, nos últimos anos de
governo monárquico um movimento intelectual, impulsionado por uma nova cultura
democrática e científica, passou a desqualificá-lo, atacando suas bases de sustentação,
levantando polêmicas, provocando a “deslegitimação simbólica e teórica do regime”
(MELLO, 2007, p.13). A imprensa, lugar de publicização por excelência, era então a arena de
debate da maior parte dos intelectuais.
Outro espaço de ampla divulgação para a autora foi a rua, que “alimentou” certos
temas, o que retirou “a discussão de um círculo restrito e fechado e jogou-a em praça
pública”, tornando possível a percepção por parte da população da crise monárquica. Tal fato,
para Mello, auxiliou no “desafeiçoamento” do regime. Sua hipótese é a de que o povo teria
“introjetado uma ideia de crise e decadência”. Antes mesmo de cair, a monarquia já havia
ruído, teoricamente, o que facilitou a penetração das ideias republicanas (MELLO, 2007,
p.13)
Longe de um povo afastado da discussão política e que só reagia a pressões e ações
contra seus interesses, Mello apresenta a ideia de uma discussão pública política que envolvia
a população. A surpresa da população no dia 15 de novembro de 1889 não seria, portanto,
sinal de apatia ou desapreço, apenas o choque diante de uma mudança inesperada; mudança
esta que se deu de forma rápida e “sem sangue”.
Ainda assim, era incerto o resultado do golpe e mais ainda o plano a seguir em caso de
vitória. Para Castro, “o elemento surpresa e a falta de reação do governo levaram ao sucesso
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
do golpe e desencorajaram possíveis reações contrárias” (CASTRO, 2000, p.76), o que não
significa dizer que não houve reação contra a proclamação. Há notícias de revoltas na Bahia,
no Mato Grosso, no Desterro, atual Florianópolis, entre outras localidades do país.
Os monarquistas, divididos em restauradores - que queriam a volta do regime
monárquico - e adesistas – os que, apesar de monarquistas, aceitaram a instauração da
República - formavam um grupo que esteve sempre envolvido nas disputas políticas nos
primeiros anos republicanos, dificultando a consolidação do novo regime. Confiavam na
possibilidade de rearticulação da sua força política diante das eleições para a Constituinte e
queriam, por meio de um plebiscito, impedir que fosse referendada a ação dos militares ao
instaurarem a República, torcendo para que novas crises levassem ao fim do regime e à
restauração do anterior. Para além das questões concernentes à República, existiam ainda
aquelas sobre a própria restauração. Era preciso lidar com o problema da sucessão
monárquica, com a falta de reação do antigo governo, principalmente de Pedro II, diante da
proclamação da República e, ainda, com o fracasso do último gabinete monárquico
(OLIVEIRA, 1989, p.175).
No dia posterior à Proclamação, 16 de novembro de 1889, as notícias sobre queda do
gabinete do Visconde de Ouro Preto foram o assunto principal de todos os jornais da antiga
Corte. O Brasil tornara-se uma República, e nossa questão encontra-se dentro desse universo
de notícias.
No momento que aqui tratamos, os jornais constituíram fonte de informação para a
população e as notícias repercutiam entre as diversas folhas. Tendo ocorrido no Rio de
Janeiro, a Proclamação da República foi noticiada nos jornais dos outros estados, primeiro por
telegrama e depois, também, a partir de correspondentes e “amigos” que residiam na antiga
Corte. Com os olhos voltados para o Rio, os periódicos buscavam novas informações a fim de
repassá-las aos seus leitores. Isso não os impedia, porém, de elaborar seu próprio julgamento
sobre os acontecimentos e de se reportarem a jornais cujas ideias fossem semelhantes. Para
além de fonte de informação, os jornais foram também um meio de manifestação dos
habitantes da cidade, que enviaram suas opiniões sobre a Proclamação às seções “A Pedidos”,
que as reproduziam.
Ainda depois de proclamada, a República era, no entanto, uma meta a se realizar.
Analisando as comemorações em torno do aniversário da Proclamação, Carla Siqueira aponta
a importância de “manter viva a ideia de República, como slogan organizador da sociedade”
(SIQUEIRA, 1995, p.13). Apoiando-se nas reflexões sobre a função da cidade letrada
apontadas por Angel Rama, a autora reafirma o papel da imprensa na construção de novo
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
imaginário social. Segundo Siqueira, “a imprensa sempre foi marcada por este espírito que, no
geral, não difere muito do próprio caráter da educação, da Igreja, do refinamento intelectual,
ou seja, o de criar adeptos para bandeiras e princípios” (SIQUEIRA, 1995, p.14).
Imbuída de forma consciente dessa “potencialidade pedagógica”, a imprensa exercia a
função de formadora da opinião pública, mediadora entre os acontecimentos e os leitores,
participando ativamente da construção do real (SIQUEIRA, 1995, p.5). A partir destas
reflexões podemos verificar a importância dos jornais e, mais que isto, das representações
enunciadas em suas edições. Era um momento em que, como aponta Siqueira, “prevalece a
ideia de que o jornalismo, assim como as demais atividades intelectuais, teria uma missão
iluminadora, no sentido de promover o esclarecimento da sociedade” (SIQUEIRA, 1995, p.1).
Nesse sentido,
a imprensa teria a patriótica missão de guiar a opinião pública. A capacidade de
apontar a verdade dos fatos estaria relacionada não a um posicionamento neutro,
mas justamente a uma tomada de partido, no sentido de uma atitude patriótica,
cívica (SIQUEIRA, 1995, p.2-3).
Sendo assim, o discurso elaborado pela imprensa, que veiculou uma imagem favorável
à Proclamação da República, foi uma das vias para legitimação do novo regime.
A República vira notícia
Rio de Janeiro
Na cidade do Rio de Janeiro, epicentro do acontecimento, selecionamos três jornais Jornal do Commercio, Gazeta de Notícias e O Paiz - os quais, além da sua importância na
imprensa período serão, também fonte de informações para os demais estados que, pela
distancia da nova capital, buscavam neles notícias que esclarecessem certos aspectos do
ocorrido.
Analisando os editoriais de tais jornais podemos verificar que tanto a Gazeta de
Noticias quanto O Paiz apresentaram um discurso favorável à República, exaltando o modo
como que se deu a proclamação e seus atos oficiais. Já o Jornal do Commercio se pretendeu
neutro, não veiculando um posicionamento explícito. Aceitou, porém, como irreversível a
instauração do novo regime.
O Jornal do Comércio, foi fundado em 1˚ de outubro de 1827, por Pierre Plancher
sendo o mais antigo jornal em circulação na cidade (SODRÉ, 1999, p.126). Para Sodré, o
jornal foi a expressão do conservadorismo que dominou a imprensa na segunda metade do
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
século XIX (SODRÉ, 1999, p.218), sendo um dos poucos jornais que sobreviveria ao
crescimento efêmero de periódicos após a independência do Brasil. Segundo Marialva
Barbosa, o Jornal do Comércio não tinha aspiração de ser popular,
fazendo questão de acentuar o seu trânsito entre a classe dominante – orgulhava-se
de ser ‘o jornal das classes conservadoras, lido pelos políticos, pelos homens de
negócio, pelos funcionários graduados’ – o Jornal do Commercio era o periódico
mais caro do Rio” (BARBOSA, 1996, p. 52-53).
Com um perfil extremamente informativo, apresentou a instauração do regime
republicano, porém parecia evitar emitir opinião sobre os fatos. A grande preocupação
aparente do jornal é com a manutenção da ordem e da tranquilidade pública. Nos trechos a
seguir, podemos ter uma noção sobre como eram estruturadas as notícias :
O marechal, penetrando então no quartel com o seu estado maior, foi (sic) recebido
com aclamações pela força ali postada e pouco depois, acompanhado por este
regressou ao Campo, sendo de novo muito vitoriado.
Foi em seguida o marechal Deodoro à sala onde se achavam os ministros
demissionários e expôs longamente os motivos de queixa que o exército tinha do
ministério que em sua opinião eram fundadas. Terminando a sua exposição, o
marechal Deodoro deu ordem de prisão aos Srs. Visconde de Ouro Preto e Candido
de Oliveira.
Instantes depois a artilharia dava uma salva de 21 tiros (Jornal do Commercio, Rio
de Janeiro, 16/11/1889 p.1).
Sendo um jornal de apoio à monarquia, não apresentava no entanto qualquer notícia
que criticasse diretamente a República, nem mesmo que criticasse a forma como o regime foi
instaurado. Vale ressaltar um trecho em que o periódico justifica sua posição diante do
acontecimento:
Não nos é possível neste momento ser historiador, apreciando os fatos em suas
causas próximas ou remotas e emitindo juízo sobre casos que, para justo e imparcial
julgamento, exigem a calma da reflexão. Vamos expor simplesmente os
acontecimentos de ontem... (Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16/11/1889 p.1).
Ou seja, para que fizessem juízo do evento era preciso “a calma da reflexão”, o que
não cabia ao momento, uma vez que ainda não se conheciam plenamente seus resultados não
havia uma dimensão completa das causas e consequências das ações recentes.
Já a Gazeta de Notícias, jornal fundado por Ferreira de Araújo, tinha um perfil liberal
e popular. Max Leclerc, correspondente de um jornal parisiense no Brasil, comparando a
Gazeta de Notícias com o Jornal do Comércio afirmara que:
A Gazeta de Notícias em muito diferente; sua impassibilidade não consiste em
registrar passivamente os acontecimentos; tem como redator-chefe o dr. Ferreira de
Araújo e nisso está sua força. O dr. Araújo é um excelente jornalista; julga homens e
coisas com condescendente ironia; escreve com precisão, elegância e sobriedade
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
raras. (...) Nas questões que debate, sua opinião é em geral decisiva. (SODRÉ, 1999,
p.289).
Segundo Marialva Barbosa, a Gazeta de Notícias iniciou a forma de “jornal barato,
popular, fácil de fazer” (BARBOSA, 1996, p.61), empregando escritores queridos do período.
Proclamava-se um jornal independente, não sendo filiado a grupos ou facções políticas
(BARBOSA, 1999, p.63).
A respeito da Proclamação, mostrou-se claramente a favor. Em seus artigos, louvava
as ações dos republicanos, os militares e a mudança de regime. Em seu primeiro número sobre
o evento preocupou-se especialmente em registrar que, com a proclamação, a ligação entre o
exército e a monarquia já não existia mais. No dia 16 de novembro, noticiava a Gazeta:
Toda força militar achou-se ontem unida em um pensamento único: o ministério foi
deposto por intimação do Sr. Marechal Deodoro da Fonseca, e os gritos de viva à
república ecoaram durante o dia na cidade inteira. Está quebrada toda e qualquer
ligação entre o exército e a monarquia, pelo fato da unanimidade com que aquele se
manifestou, e porque em questão d’esta ordem não se volta, depois de ter chegado a
certo ponto (Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro 16/11/1889 p.1).
Sobre a população, a Gazeta publicou: “o espanto, a surpresa e a ansiedade – eis o que
se notava em todos os olhares, em todas as fisionomias”. (Gazeta de Notícias, 16 de
novembro de 1889, p.1)
Divergindo do Jornal do Comércio, para a Gazeta, ainda que os fatos não estivessem
totalmente esclarecidos, era importante não abrir mão de publicar sua avaliação sobre o
acontecimento de 15 de novembro. No dia 16 de novembro de 1889, quando foram publicadas
as primeiras notícias sobre a proclamação nos jornais matutinos, saiu na Gazeta:
A hora em que traçamos estas linhas, correm ainda boatos desencontrados sobre
[ilegível], quer possamos ainda hoje dar aos nossos leitores notícias decisivas, quer
fique ainda alguma coisa para se decidir, nós é que não nos julgamos com o direito
de calar o nosso modo de ver as coisas (Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro,
16/11/1889 p.1).
Os primeiros dias do Brasil republicano e as primeiras ações do novo governo foram
saudados pelo periódico como momentos de grande alegria e de melhoria política. O novo
ministério foi visto como uma espécie de salvador para o país que se encontrava com sérios
problemas, diante do modo que o antigo regime tratava as questões nacionais. De acordo com
os articulistas da Gazeta,
A benéfica ditadura que assumiu a gestão dos negócios públicos, em tão poucos dias
de brilhante exercício, tem-se já recomendado a benemerência pública (...) e tal é a
confiança que inspiram os primeiros atos ditatoriais, que o espírito público prefere-a
às incertezas de resultado de uma consulta eleitoral, tantas vezes estéril, quando não
21
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
nefasta, como o tem demonstrado a experiência no regime deposto (Gazeta de
Noticias, Rio de Janeiro, 23/11/1889 p.1).
Podemos observar que o jornal inferiu que a nova ordem, sendo uma ditadura, era
preferível e haveria de alcançar mais resultados do que a espera, tantas vezes infrutífera, por
uma ação da parte do regime monárquico. – as eleições no regime monárquico.
Outro grande “amigo” do governo foi o jornal O Paiz, que começou a circular no dia
1˚ de outubro de 1884 e tinha como diretor e redator chefe Quintino Bocaiúva. O proprietário
era João José dos Reis Júnior, o Conde São Salvador de Matosinhos.
Em suas páginas, as notícias relativas à proclamação e aos dias subsequentes,
exaltaram os militares, a República e também o povo, como participante do acontecimento.
Fica clara a simpatia do periódico pela República, apontando para o caráter pacífico e ordeiro
do povo carioca durante a derrubada do regime monárquico.
Comentando o agrupamento das tropas no Campo da Aclamação, durante as horas que
se seguiram à queda do gabinete Ouro Preto, o jornal publica:
Não podia ser mais imponente o aspecto que apresentavam as forças de terra e mar,
formadas no campo da Aclamação, desde o amanhecer, em frente ao quartel das
primeiras, onde, situada a secretaria de guerra, conservava-se os prisioneiros do
povo e dos militares o gabinete decaído. (...) Ali permanecendo durante horas,
senhora da praça, a força levantava sucessivas vivas à liberdade, à nação brasileira,
ao exército e armada, à republica salvadora (O Paiz, Rio de Janeiro, 16/11/1889
p.1).
O regime havia mudado, as antigas instituições haviam ruído. Restava então uma
única coisa a fazer:
Desfizemos e vamos agora refazer.
Destruir para construir é o lema moderno.
Desapareceu a monarquia e hoje a forma do governo brasileiro é o da República
Americana: o governo do povo, pelo povo e para o povo (O Paiz, Rio de Janeiro,
17/11/1889 p.1).
Caíra o antigo regime e, para O Paiz, era a hora de começar um novo e reconstruir a
nação nos novos moldes.
São Paulo
Em São Paulo selecionamos também dois importantes periódicos do período: Correio
Paulistano e A Província de São Paulo – que, após a Proclamação, passou a chamar-se O
Estado de São Paulo. Ambos mostraram-se favoráveis à instauração de um governo
republicano, “geral aspiração de todo paulista, de todo brasileiro” (A Província de São Paulo,
17 de novembro de 1889). Para além de saudar o novo governo, uma questão particular
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
ocupou o espaço dos jornais paulistanos: o federalismo, encarado como principal ponto na
instauração da República. A maior independência dos estados era uma questão cara aos
paulistas que se consideravam mal representados na Corte, inversamente à sua importância
para a economia do país.
A Província de São Paulo tinha por redator-chefe Rangel Pestana – um dos membros
do governo provisório do estado de São Paulo e que, por esse motivo, logo passaria a
representante oficial do novo governo. Começou a circular em 1875, em período de grande
tribulação para o país, depois do fim da Guerra do Paraguai, do lançamento do Manifesto
Republicano e da formação do núcleo do Partido Republicano, em São Paulo, e da
promulgação da Lei do Ventre Livre, que colocava a abolição da escravidão em um horizonte
mais próximo. A intenção por trás de sua fundação era a de ser um jornal que “não sendo
republicano extremado, viesse a discutir com serenidade os absorventes problemas do
momento” (SODRÉ, 1999, p. 225).
Ao longo dos dias que seguiram à Proclamação o jornal saudou longamente o regime
republicano e a nova ordem que estava para se instaurar e exaltou o povo paulista, por sua
conduta diante dos fatos. Logo após a chegada da notícia da mudança de governo a Câmara de
São Paulo manifestou prontamente sua adesão e escolheu os membros José de Moraes Barros,
Francisco Rangel Pestana e Joaquim de Souza Mursa para o governo do estado,
diferentemente dos outros estados que esperaram a designação do governo provisório. O fato
foi exaltado pelo jornal, que evidenciou a “alta capacidade dos paulistas para o regime
republicano” (A Província de São Paulo, 20 de novembro de 1889, p. 1). Ainda sobre a
escolha dos membros do governo provisório de São Paulo:
Aclamados pelo povo, surgem na direção da sociedade paulista com poderes de
organizadores da nova ordem de coisas três homens que se completam no trabalho
político e administrativo e que desde logo levantaram em torno de suas pessoas as
simpatias gerais, pouco depois, os aplausos, e afinal, as mais significativas provas de
apoio (A Provincia de São Paulo, 20 de novembro de 1889, p.1).
Se primeiramente é apontado que foram aclamados pelo povo, ao longo do artigo é
possível inferir que esta “aclamação” aconteceu por etapas – primeiro o governo conquistou a
simpatia do povo, depois aplausos e por fim provas de apoio - e não imediatamente.
Outro tema abordado nos editoriais de A Província de São Paulo foi a ditadura militar.
Em artigo do dia 22 de novembro de 1889, o jornal afirmara que não havia uma ditadura
militar, uma vez que, “De oito membros [do governo provisório], apenas três são militares”.
O jornal tranquilizava seus leitores quanto a essa hipótese, já que os integrantes militares do
ministério estavam à frente de pastas relacionadas com as Forças Armadas e se apresentavam
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
como republicanos: “Tranquilizam-se os tímidos, descansam os receosos: Não há ditadura
militar” (A Província de S. Paulo, 22 de novembro de 1889, p.1).
No dia 28 de novembro de 1889, o editorial d’A Provincia de São Paulo tratou da
questão da federação. O jornal respondia diretamente a editorial do Correio Paulistano, do dia
anterior, no qual se questionava a manutenção do apoio ao governo provisório de São Paulo,
uma vez que haviam corrido rumores de que seus integrantes, por não terem sido indicados
pelo Governo do Provisório da República, seriam substituídos por nova junta governativa
(Correio Paulistano, 27 de Novembro de 1889, p.1). Segundo A Provincia, no entanto, “nada
(...) autoriza a desconfiar da soleníssima promessa que desceu do governo central para todos
os ângulos do país” (A Provincia de São Paulo, 28 de novembro de 1889, p.1). Mais uma vez
tranquilizando o Correio Paulistano e seus leitores, o jornal lembrava a proclamação recente
e que a República encontrava-se ainda em fase de estabilização.
O Correio Paulistano aparecera em 1854 e mantinha uma posição liberal. Segundo
Sodré, houve entretanto uma grande flutuação na orientação política do jornal. O Correio
Paulistano defendera os interesses do Partido Republicano Paulista em 1872 e,
posteriormente, em 1874, tendo sido comprado por Leoncio de Carvalho, adotou uma linha
“reformista”. Anos mais tarde, em 1887, mudaria novamente de posição no espectro político
da monarquia, passando a defender os conservadores. A última mudança de orientação foi
explicada também por Sodré:
Em 1882 assumira a direção do Correio Paulistano Antonio Prado, que levaria o
jornal, em 1887, a fazer-se abolicionista, para, em junho de 1889, com os liberais no
poder, exercer severa oposição, mas na linha monarquista, e, com os acontecimentos
de 15 de novembro na Corte, ser o primeiro órgão a considerar irreversível a
República (SODRÉ, 1999, p. 225).
Sendo assim, o Correio saudou o governo provisório e a instauração do novo regime.
Fê-lo, porém, inicialmente com mais reservas que A Provincia de S. Paulo.
Em editorial do dia 18 de novembro de 1889, assinado por Antonio Prado, o jornal
expõe sua atitude frente aos acontecimentos e informa sua adesão ao novo regime. Aponta
também a necessidade de aceitar como fato a Proclamação, devido à impossibilidade de uma
restauração monárquica e também diante da aceitação popular do acontecimento (Correio
Paulistano, 18 de novembro de 1889, p.1). Já no editorial do dia 21 de novembro, tratando da
“substituição” de algumas tradições monárquicas, o mesmo jornal ponderava que “o povo
brasileiro poderá não ter saudade de alguns governos que ocuparam o poder no regime da
monarquia; seu ressentimento, porém, jamais atingirá a própria monarquia constitucional”. O
editorial reafirmava seu apoio às medidas do novo governo que evitam posições “radicais”:
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Esse afã de reformar e substituir todas as tradições da monarquia, em nada
incompatíveis com o novo regime, não corresponde, portanto, ao sentimento da
maioria da nação.
O governo provisório tem-no compreendido perfeitamente e, contrariando, talvez,
bem cedo já as propensões radicais de uma exaltada minoria; tem sabido, por um
complexo de medidas sábias e sagazes – atrair a simpatia popular e conquistar o
franco e leal apoio das classes conservadoras. (Correio Paulistano, 21 de novembro
de 1889, p.1).
Ou seja, o jornal coloca-se contra as medidas mais exaltadas, pregando pela
moderação e equilíbrio entre as tradições e o novo regime. O governo provisório, a seu ver,
estava lidando de forma bem sucedida com esta questão, justamente por contrariar as medidas
radicais. Por fim, retornaremos à questão do federalismo, já abordada pela Provincia e que
também aparecerá no Correio.
O federalismo era uma ideia muito cara especialmente para os paulistas, que desde a
década de 1870, com a organização dos primeiros núcleos republicanos, reclamavam dá má
distribuição dos cargos da Corte e da excessiva centralização. Considerando-se responsáveis
pelo sustento econômico do país, levando nas costas as outras províncias decadentes,
lembravam as poucas cadeiras que lhes eram destinadas na Assembleia Geral, incompatíveis
com sua contribuição para o progresso do país.
A esse respeito, o Correio Paulistano de 24 de novembro de 1889 inicia seu editorial
com a seguinte reflexão
D’ora em diante, sob o novo regime, passado esse primeiro período de organização
fundamental, a marcha dos negócios de cada Estado terá geralmente, para os
cidadãos que dele fizerem parte muito mais subido interesse que a política do
governo nacional (...).
Com a inauguração do sistema federal, toda a vida pública se concentrará nos
Estados ou se localizará nas comunas. Ao governo da União não ficarão reservadas
senão algumas atribuições referentes aos interesses de toda a coletividade. (Correio
Paulistano, 24 de novembro de 1889, p.1).
Os estados seriam mais importantes que a União, e o governo geral teria apenas
algumas poucas atribuições, não interferindo no que seria de interesse estadual.
Assim como a Provincia de São Paulo, o Correio Paulistano exaltou a aclamação e
um governo provisório paulista que prescindiu da iniciativa do governo central. Segundo a
folha “foi esse um exemplo isolado, extremamente honroso (...), em todo os vastos corpos da
pátria brasileira” (Correio Paulistano, 24 de novembro de 1889, p.1). Sobre a nomeação de
interventores pelo governo federal, declarou:
A nomeação de governadores, pelo poder geral, para a administração dos Estados
federados constitui uma verdadeira anomalia no regime político que se inicia; nem
pode ser explicado, senão pela apatia dos habitantes daqueles Estados que, aceitando
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
a nova ordem das coisas, não souberam entretanto constituir um governo provisório
que assumisse, sem demoras, as rédeas do poder (Correio Paulistano, 24 de
novembro de 1889, p.1).
Ou seja, não só a iniciativa paulista fora um exemplo honroso, mas era também o que
deveria ter ocorrido nos outros estados. Sendo uma das bandeiras do novo governo o
federalismo, deveriam os estados terem aclamado seus próprios governos, não o fazendo por
“apatia” ou “inabilidade”.
A leitura do editorial do Correio Paulistano nos auxilia na compreensão do editorial
do dia 28 de novembro de 1889, de A Provincia de São Paulo, acima mencionado. Quando
rumores se tornaram conhecidos de que o governo do Rio de Janeiro não reconheceria os
membros aclamados para dirigirem o estado de São Paulo, por não terem sido por ele
indicados, o Correio Paulistano pôs em dúvida a manutenção do federalismo. A intromissão
do governo federal nas questões estaduais feria a autonomia destes últimos. E se isto de fato
se concretizasse,
desista-se, nesse caso, de contar com o concurso deste povo, ávido de liberdade,
cioso de autonomia!
Se o governo federal, provisório ou definitivo – se o congresso constituinte
recusarem-nos [aos paulistas] as prerrogativas e os foros de – Estado de São Paulo:
então outra será nossa ardente aspiração. A Pátria paulista terá a congregação de (...)
forças e a dedicação de (...) esforços cívicos (Correio Paulistano, 28 de novembro de
1889, p.1).
O discurso separatista é claro nesta passagem. Ou o governo federal reconheceria o
governo paulista ou teria de lutar contra uma possível revolta. Essa medida extrema, todavia,
não foi necessária.
A República e seus ecos na imprensa
Como pudemos observar, tanto na antiga corte quanto no estado de São Paulo jornais
de considerável importância aceitaram, saudaram e, alguns, exaltaram a República, o governo
provisório e a forma como se deu a “revolução”. Ainda que tendo algumas preocupações mais
específicas, dentre os jornais analisado, notam-se posturas semelhantes frente à Proclamação.
Emitindo, ou silenciando – o que significa tanto quanto – suas opiniões frente aos
eventos, tais periódicos buscavam manter informados seus leitores e debateram tópicos cujo
interesse julgavam ser nacional, ou, no caso paulista, estadual. De opinião majoritariamente
favorável à República, ajudaram a construir uma imagem positiva do regime e dos membros
do novo governo, sendo, a nosso ver, uma das vias para sua legitimação. Consideramos então
que, neste momento, o discurso elaborado pela imprensa e sua busca por “guiar a opinião” foi
26
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
de extrema importância para a aceitação do regime pela população, tornando-se assim
fundamental para sua conservação.
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SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed (atualizada). Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.
27
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Pesquisando os “Operários à tribuna”:
Vereadores comunistas e trabalhadores têxteis de Magé/RJ
Felipe Augusto dos Santos Ribeiro *
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a atuação dos vereadores comunistas
eleitos na Câmara Municipal de Magé, estado do Rio de Janeiro, entre 1951 e 1964.
Buscaremos relacionar as práticas desses legisladores com a época de efervescência
comunista pós-1940, quando o PCB conseguiu, mesmo na clandestinidade, congregar um
significativo contingente de operários mageenses em torno do partido, atuando em comissões
de fábrica, sindicatos e na política institucional. Ao promoverem um elevado nível de
organização e mobilização dos trabalhadores do município, os comunistas conseguiram
eleger, por meio de outras legendas, um total de onze vereadores nesse período, grande parte
deles operários têxteis. Portanto, acreditamos que, por meio desse estudo de caso, ancorado a
outras pesquisas semelhantes, possamos ponderar, ou mesmo refutar, as interpretações que
desqualificam a classe trabalhadora pré-1964, sobretudo aquelas influenciadas pela noção de
“Sindicalismo Populista”, ainda bastante em voga nas Ciências Sociais.
Palavras-chaves: Classe trabalhadora; Partido Comunista do Brasil; Sindicalismo; História
Política; Município de Magé.
Abstract: This paper aims to analyze the performance of communist councilors that were
elected for the Chamber of Magé, in State of Rio de Janeiro, between 1951 and 1964. We
relate the practices of these legislators with the context of post-1940, when the Partido
Comunista do Brasil, although in hiding, managed to bring together a significant number of
workers in Magé around the party, in factory committees, unions and other politic institutions.
By promoting a high level of organization and mobilization of workers in the city, the
communists were able to elect a total of eleven councilors, through other political parties,
during this period, many of them textile workers. Therefore, we believe that through this case
study, anchored to other surveys on the same subject, we may reconsider, or even refute,
social science interpretations which disqualify the working class role pre-1964, especially
those influenced by the notion of "populist unionism".
Keywords: Working class; Communist Party of Brazil; Unionism; Political History; City of
Magé.
O presente artigo tem por objetivo apresentar o projeto que deu origem à dissertação
de mestrado intitulada “Operários à tribuna: vereadores comunistas e trabalhadores têxteis
de Magé (1951-1964)”, defendida em 2009 e premiada com o terceiro lugar no Concurso de
Monografias do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) – edição 2011.
*
Doutorando em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV e mestre em História Social pelo
Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). E-mail: [email protected].
28
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A referida dissertação buscou reconstituir e analisar a atuação dos vereadores
comunistas eleitos na Câmara Municipal de Magé, estado do Rio de Janeiro, mais
precisamente no período compreendido entre 1951 e 1964. A escolha desse eixo cronológico
se explica na medida em que está inserido em uma época de muitas conquistas para a classe
trabalhadora mageense.
Na década de 1940, a presença do médico sanitarista Irun Sant’Anna em Magé, em
virtude da epidemia de malária que assolava o município, contribuiu sobremaneira para a
formação política dos operários têxteis daquela região. Filiado ao Partido Comunista do Brasil
(PCB) desde 1935, Dr. Irun Sant’Anna buscou aproximar o partido ao movimento operário
local, dando assistência política aos militantes.
Por ocasião de sua chegada, Magé contava com duas entidades sindicais, o Sindicato
dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e Tecelagem de Inhomirim, com sede em Pau
Grande, fundado em 1935; e o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e
Tecelagem de Santo Aleixo e Magé, com sede em Santo Aleixo, fundado em 1941. Inseridos
inicialmente em um contexto de forte enquadramento sindical promovido pelo Estado Novo, 2
essas entidades tornaram-se paulatinamente em importantes instrumentos de reivindicação e
conquista do operariado mageense.
Atuando paralelamente ao movimento sindical, o PCB de Magé conseguiu congregar
um significativo contingente de trabalhadores têxteis, chegando inclusive a eleger
representantes operários na Câmara Municipal de Magé em 1947, através da legenda do PTB,
devido à cassação do partido em maio do mesmo ano. No ano seguinte, porém, esses
vereadores tiveram seus mandatos interrompidos. Mesmo na ilegalidade, o partido manteve
sua atuação em Magé, conseguindo eleger, nas décadas subsequentes até 1962, vereadores
comunistas em todos os pleitos municipais, a maioria deles operários, utilizando a legenda de
outros partidos. 3
2
Fundado num período de intenso estreitamento dos laços entre o Estado e o movimento operário, via
representação sindical, o Sindicato de Santo Aleixo logo se enquadrou à doutrina do Estado Novo, requisito,
aliás, básico para o reconhecimento e autorização de funcionamento da entidade, materializados através da Carta
Sindical. Mas ressaltamos que esse enquadramento promovido pelo governo brasileiro não buscava um mero
controle do operariado, como também sua adesão e mobilização em favor de sua doutrina, difundida a partir de
um discurso político voltado exclusivamente para os trabalhadores. Cf. GOMES, Angela de Castro. A invenção
do trabalhismo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2005. 3 ed.
3
Em 1947, foram eleitos pelo PTB o médico Irun Sant’Anna, o comerciante e ex-operário têxtil José Muniz de
Melo (licenciado durante o mandato), os tecelões Feliciano Costa e Agenor dos Santos, e o ex-operário da
Fábrica de Pólvora Argemiro da Cruz Araújo (suplente empossado durante o mandato). Em 1950, elegeram-se
pelo PTN o eletricitário José Aquino de Santana, o tecelão Petronilho Alves (diplomado e empossado somente
no final do mandato) e a tecelã Ilza Gouvea (suplente empossada no início do mandato). Em 1954, foi eleito pelo
PSB o líder camponês e ex-operário têxtil Manoel Ferreira de Lima. Em 1958 e 1962, foram eleitos e reeleitos
pelo PSB os operários Astério dos Santos e Darcy Câmara.
29
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Portanto, a questão central da dissertação foi compreender a relação entre os
vereadores comunistas e o operariado têxtil de Magé, na medida em que ambos se
constituíram como atores políticos importantes no município, principalmente a partir da
década de 1940, quando começaram a se estabelecer conexões entre as entidades sindicais e a
política institucional, na Câmara de Vereadores, visando tanto a garantia, quanto a ampliação
de conquistas sociais, por meio da eleição de representantes comunistas no parlamento
mageense.
Para tal empreendimento, analisamos as atuações dos vereadores comunistas em Magé
e suas relações com o movimento operário local, basicamente sob inspiração dos trabalhos do
sociólogo francês Pierre Bourdieu.4
Ao abordar a relação de forças na luta política, o referido autor formulou a noção de
“campo político”, definido por ele como o lugar onde há uma concorrência pelo poder,
travada por intermédio do monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou
da totalidade dos profanos (os cidadãos comuns), ou seja, o que conhecemos basicamente
como política institucional, baseada na representação.
Para melhor entender essa concorrência pelo poder, Bourdieu trabalhou com o
conceito de “capital político”, que seria a força das idéias atuantes nesse campo. Nesse
sentido, ele salientou que a força das idéias propostas no campo político mede-se, sobretudo,
pela capacidade de mobilização que elas encerram e pela força do grupo que as reconhece,
onde o papel do homem político, do porta-voz, do agente mobilizador do grupo constitui-se
como um fator importante.
(...) O homem político deve a sua autoridade específica no campo político, (...) à
força de mobilização que ele detém quer a título pessoal, quer por delegação, como
mandatário de uma organização (partido, sindicato) detentora de um capital político
acumulado no decurso das lutas passadas(...).5 (grifo nosso).
O autor ainda recomendou que, para compreender completamente os discursos
políticos que são oferecidos no campo político, é preciso analisar todo o seu processo de
produção ideológica desde a “marcação”, ou melhor, partindo de um momento específico
fundamental que desencadeou todo o processo.
Desse modo, entendemos o ambiente político em Magé nas décadas de 1940, 50 e 60
como um “campo político” bastante interessante, sobretudo na medida em que o movimento
operário organizado, via sindicatos, começava a se estabelecer, nesse período, como um
importante instrumento de reivindicação e conquista para a classe trabalhadora mageense.
4
Cf. BOURDIEU, Pierre. A representação política: elementos para uma teoria do campo político. In: ______. O
poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 2 ed.
5
Ibid. p.190.
30
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Observamos que a partir da década de 40 os operários têxteis passaram a constituir um
eleitorado bastante significativo no município, sendo disputado por diversas forças políticas,
no afã de conquistar sua adesão. Neste contexto, verificamos que a aproximação do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) junto ao operariado mageense tornou-se bastante intensa e
profícua.
Também nesse período, intensificava-se a atuação do PCB em Magé, com forte
penetração nas regiões industriais de Santo Aleixo e Pau Grande. Ao eleger quatro vereadores
na Câmara Municipal em 1947, sendo dois deles trabalhadores têxteis e um ex-tecelão, o PCB
fez com que a eleição de comunistas em Magé se tornasse uma constante em todos os pleitos
municipais até 1962.
Resolvemos também trabalhar com o conceito de “processo de acumulação política”,
partindo de uma expressão utilizada por István Jancsó 6 e depurada por Denis Antônio de
Mendonça Bernardes. 7
Ao analisar o contexto de Crise do Antigo Regime na América portuguesa, no século
XVIII, Jancsó apontou o surgimento de ações revoltosas organizadas contra o Trono visando
a revolução, definidas por ele como “sedições”. Partindo desse conceito, o autor analisou os
movimentos conhecidos como “Inconfidência Mineira” e “Conjuração Baiana”, ocorridos em
1789 e 1798, respectivamente.
Aprofundando-se, principalmente, no estudo dos principais personagens e ideias que
permeavam aqueles movimentos, István Jancsó concluiu que as ações sediciosas em Minas
Gerais e na Bahia marcaram o início de um processo de acumulação de experiência política
que originou a construção do Estado nacional brasileiro.8
Na realidade, o autor utilizou apenas uma vez em seu trabalho a expressão “processo
de acumulação política”, não explicando-a. Entretanto, Denis Bernardes, baseando-se no
próprio Jancsó, apesar de não utilizar explicitamente sua expressão, conseguiu desenvolvê-la,
ao trabalhar conceitos como identidade, memória e experiência política coletiva.
Analisando o movimento conhecido como “Insurreição Pernambucana”, ocorrido em
1817, Bernardes destacou elementos essenciais na constituição das identidades coletivas que
balizaram o recorte político por ele pesquisado em torno de Pernambuco: a territorialidade, a
6
Cf. JANCSÓ, István. A Sedução da Liberdade. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada
no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 1 v.
pp.387-472.
7
Cf. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. Pernambuco e o Império (1822-1824): sem constituição
soberana não há união. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: FAPESP,
2003. pp.219-249.
8
JANCSÓ, op.cit., pp.435-436.
31
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
memória e a ação política. Partindo desse esquema, o autor afirmou que a capitania de
Pernambuco “vincou desde cedo uma identidade espacialmente referenciada, que o processo
histórico reforçaria como memória e experiência política (...), reivindicando e afirmando
uma diferenciação”.9 Para ele, a referida capitania teria na ocupação holandesa (1630-1654) e
na saga da restauração pernambucana o ponto forte da gradativa cristalização de sua
identidade.
Apesar da inspiração suscitada em uma bibliografia que estuda um espaço-tempo
totalmente distinto do proposto neste trabalho, consideramos que o conceito de processo de
acumulação política tornou-se bastante viável para analisarmos a atuação dos vereadores do
PCB em Magé e sua liderança. Ressaltamos que o foco de nossa pesquisa foi a trajetória do
movimento operário mageense, sobretudo nas décadas de 1940, 50 e 60, onde identificamos a
proeminência da militância do PCB, que conseguiu eleger diversos representantes na Câmara
de Vereadores com significativo apoio do operariado têxtil local. Nesse sentido, a atuação dos
comunistas só nos interessou devido a sua notabilidade junto aos trabalhadores mageenses.
No entanto, não deixamos de apontar as demais correntes políticas que influenciaram o
movimento operário no município.
Assim sendo, foi possível relacionar adequadamente as proposições de Bourdieu ao
conceito de processo de acumulação política proposto na dissertação, tendo em vista que eles
se complementam. Nota-se que o próprio Bourdieu falou em “capital político acumulado no
decurso das lutas passadas”. Por isso, analisamos de que forma os operários têxteis
mageenses, vinculados ao PCB, inseriram-se no campo político e conquistaram um
significativo capital político, tanto nos sindicatos, quanto na Câmara Municipal de Magé,
onde a eleição de trabalhadores têxteis como vereadores tornou-se bastante simbólica.
Por fim, devido a íntima relação do conceito de processo de acumulação política com
as noções de memória e identidade, resolvemos também explorá-las. Dessa forma, os
conceitos de memória e identidade tratados nesta pesquisa estão amparados basicamente nos
trabalhos do sociólogo Michael Pollak. 10
Partindo do princípio de que a memória é seletiva e, sobretudo, um fenômeno
construído social e coletivamente, Pollak buscou esquematizar tanto os tipos de memória,
quanto os elementos que a constituem como tal. Em seus estudos, o autor observou a estreita
9
BERNARDES, op.cit., p.222.
Cf. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. v. 2. n.3. pp.03-15.1989;
______. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. v. 5, n.10. pp.200-212. 1992.
10
32
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
ligação entre a memória e a identidade, na medida em que a própria memória é considerada
um elemento constituinte do sentimento de identidade.
(...) A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do
passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou
menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras
sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas,
aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc. A referência ao passado serve para
manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade (...).11
Outro trabalho importante, também baseado em Michael Pollak, foi o da historiadora
Dulce Pandolfi, que forneceu reflexões significativas acerca do processo de construção de
identidade e da memória, sobretudo porque tem como objeto de estudo o próprio PCB.
(...) Em qualquer processo de busca de identidade, a memória exerce um papel
fundamental, pois além de fortalecer o sentimento de pertencimento e a continuidade
temporal, uma de suas funções essenciais é manter a coesão interna e defender as
fronteiras daquilo que um determinado grupo tem em comum. Em última instância,
ela é que dá unidade aos membros do grupo. Daí a estreita ligação entre memória e
identidade (...). Estudar a identidade de um determinado ator é estudar também a sua
memória (...).12
Apresentadas nossas opções metodológicas, trataremos agora da organização do
presente trabalho, que está dividido em quatro capítulos.
No primeiro capítulo, intitulado “A primeira eleição municipal pós-Estado Novo”,
abordamos o início do período democrático pós-1945 e a campanha da eleição municipal de
1947, justamente no momento em que a classe trabalhadora brasileira despontou como eleitor.
Por isso, entendemos como fundamental a reconstituição de “lutas passadas” do operariado
mageense, resgatando experiências importantes, anteriores inclusive ao eixo cronológico deste
trabalho, na medida em que elas contribuíram para o desenvolvimento de novas práticas
políticas, por meio de continuidades e contingências. Abordamos essas diversas influências
político-partidárias no movimento operário e suas principais ideias-força, sobretudo, através
da História Oral e de fontes da imprensa da época.
Já no segundo capítulo, “Epidemia Comunista”, abordamos a chegada do médico
sanitarista Irun Sant’Anna em Magé e seus principais desdobramentos, considerando-os como
um momento bastante específico e fundamental na história dos trabalhadores locais: a
organização de um grupo significativo de operários, intimamente ligado às diretrizes do PCB,
que adquiriu proporções avassaladoras, articulada a partir da atuação desse médico, que era
11
Id. Memória, Esquecimento, Silêncio. op.cit., p.7.
PANDOLFI, Dulce Chaves. Camaradas e Companheiros: história e memória do PCB. Rio de Janeiro:
Fundação Roberto Marinho, 1995. p.15.
12
33
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
militante do partido, mas que chegou ao município com o propósito inicial de combater a
malária.
Recorrendo novamente à obra do sociólogo Pierre Bourdieu, caracterizamos esse
momento específico como “marcação”, uma espécie de marco no processo da produção
ideológica, a partir do qual se supõe uma preparação especial, uma aprendizagem necessária
em que se adquire saberes específicos, produzidos e acumulados através de processos
históricos do presente e do passado, para uma participação mais efetiva no campo político.13
Por fim, nos capítulos três e quatro, analisamos a estratégia dos comunistas em eleger
vereadores, sua força de mobilização junto aos operários e a atuação política de seus
representantes no município. Ao todo, foram quatro legislaturas analisadas (1951-1954, 19551958, 1959-1962 e 1963-1964), sendo as duas primeiras abordadas no capítulo três, intitulado
“Partido vivo na clandestinidade”; e as seguintes no capítulo quatro, sob o título
“Protagonismo dos comunistas em Magé”.
A relação de forças no campo político foi entendida, inicialmente, a partir da atuação
dos sindicatos no processo eleitoral no município, já que essas entidades possuíam, via de
regra, o monopólio do direito de falar e de agir em nome dos tecelões. Observamos que,
paralelamente, também foram sendo estabelecidas fronteiras simbólicas que distinguiam os
principais grupos político-sindicais em Magé, basicamente os comunistas e o grupo dos
primeiros dirigentes sindicais, bastante articulado ao Ministério do Trabalho, Indústria e
Comércio, desde o período do Estado Novo.
Em seguida, partimos mais propriamente para a análise do processo eleitoral no
município de Magé e a atuação dos vereadores comunistas na Câmara. Para tal
empreendimento, analisamos tanto o resultado eleitoral, visando relacionar a quantidade de
votos com o eleitorado municipal e a quantidade de operários em Magé; quanto os discursos,
projetos e relações político-sindicais desses parlamentares durante seus mandatos, a partir dos
anais da Câmara.
Advertimos, porém, que não foi enfocada a primeira legislatura dos comunistas (19471950). Sobre esse período, utilizamos periódicos, documentos da polícia política estadual e
depoimentos, pois o livro de atas referente a essa legislatura não se encontra na Câmara
Municipal de Magé e não se sabe onde encontrá-lo, talvez devido ao complicado processo de
cassação movido contra os vereadores comunistas no ano seguinte à eleição.
13
BOURDIEU, op.cit., p.170.
34
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Consideramos que a atuação desses vereadores comunistas despontou como um fator
de liderança no município, fazendo surgir o “homem político”, fruto de um capital político
acumulado no decurso de lutas passadas e tendo sua formação ideológica forjada desde a
chegada do médico Irun Sant’Anna a Magé, momento específico fundamental que
desencadeou todo esse processo por nós estudado.
Acerca das fontes, elas foram reunidas e analisadas em sua diversidade, não apenas
para realizarmos o cruzamento de dados, como também para traçar um bom panorama da
trajetória operária e política mageense. Utilizamos desde documentos de Estado, tidos como
clássicos para a pesquisa histórica, configurando tradicionalmente como uma espécie de
“história oficial”; até periódicos, sobretudo aqueles que mantinham uma circulação semanal
ou diária, contendo informações preciosas sobre o cotidiano social no período focado neste
estudo.
Nossas principais fontes orais foram as entrevistas realizadas pelo autor do presente
trabalho, tanto por ocasião de sua monografia de graduação,14 quanto em pesquisas anteriores;
depoimentos concedidos ao Grupo Centenário, por ocasião da comemoração dos cem anos de
criação do distrito de Santo Aleixo, em 1992 (acervo de Ademir Calixto de Oliveira); e
entrevistas concedidas às historiadoras Juçara da Silva Barbosa de Mello, Sandra Scheidegger
de Azevedo e Joana Lima Figueiredo em suas pesquisas, 15 gentilmente disponibilizadas por
elas.
Ressaltamos que o recurso da história oral, após resultados práticos em países como o
Reino Unido, Estados Unidos, México, Itália e França, tem adquirido bastante relevância no
meio acadêmico, especialmente no Brasil. Por estarem estreitamente relacionados aos
conceitos de memória e identidade, os trabalhos de história oral têm posto em xeque a
tradição historiográfica centrada em documentos oficiais. Ao mesmo tempo, esse recurso
também requer uma certa precaução metodológica, onde a crítica e o cruzamento documental
14
Cf. RIBEIRO, Felipe Augusto dos Santos. Astério dos Santos, o operário: processo de acumulação política,
memória e identidade dos trabalhadores têxteis de Santo Aleixo (1941-1964). São Gonçalo: monografia de
graduação em História apresentada à Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (FFP/UERJ), 2006.
15
Cf. MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. O compasso da vida no ritmo da fábrica: identidade e memória do
cotidiano operário em Santo Aleixo. São Gonçalo: monografia de graduação em História apresentada à
FFP/UERJ, 2005; ______. Identidade, memória e história em Santo Aleixo: aspectos do cotidiano operário na
construção de uma cultura fabril. São Gonçalo: Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-Graduação em
História Social da FFP/UERJ, 2008; AZEVEDO, Sandra Scheidegger de. A memória do movimento artístico nas
manifestações contra a Ditadura Militar em Santo Aleixo, distrito de Magé-RJ, na década de 1970. Niterói:
monografia de graduação em História apresentada à Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), 2007;
FIGUEIREDO, Joana Lima. Fábrica Santo Aleixo: Magé, Arte e Patrimônio da Industrialização (1847-1979).
Niterói: Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal
Fluminense (UFF), 2008.
35
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
tornam-se fundamentais. Desse modo, a história oral constitui-se como um recurso moderno
utilizado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudo referentes à experiência
social de pessoas e de grupos.16
Além das entrevistas, utilizamos documentos de Estado. Entretanto, acreditamos que,
assim como qualquer outro documento, eles são limitados, provocando o historiador a buscar
diversas outras fontes, não apenas para realizar o cruzamento de dados, como também para
traçar um melhor panorama daquilo que se pretende pesquisar. No caso das atas da Câmara
Municipal de Magé, elas reúnem diversos discursos, pronunciamentos e projetos apresentados
pelos vereadores comunistas naquele município. Portanto, essas atas configuraram como fonte
essencial da pesquisa.
Salientamos que nosso intuito foi analisar especificamente os discursos e projetos dos
vereadores comunistas e o grau de relacionamento que eles mantinham com seus pares, os
demais grupos políticos e os movimentos sociais, sobretudo o movimento operário.
De forma complementar, também utilizamos reportagens veiculadas na imprensa brasileira,
principalmente nos jornais Tribuna Popular, Imprensa Popular e O Fluminense, além de
outros periódicos que publicaram, eventualmente, reportagens atinentes ao espaço-tempo
proposto neste trabalho. Todos esses periódicos foram obtidos na seção de Periódicos da
Biblioteca Nacional.
O jornal que utilizamos com mais frequência foi o Tribuna Popular, tendo em vista
que o Arquivo da Câmara Municipal de Magé não possui o livro de atas referente ao mandato
da primeira bancada comunista mageense, eleita em 1947.
Vale ressaltar que os jornais Tribuna Popular e Imprensa Popular estão intimamente
ligados à imprensa operária, ambos editados pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), entre as
décadas de 1940 e 50. Inicialmente com o nome de Tribuna Popular e, após o seu
fechamento, em 1948 (devido à cassação do PCB), ressurgiu com o nome de Imprensa
Popular. Em Magé, particularmente, estes jornais serviram como um importante instrumento
de agitação operária para o PCB, no afã de conquistar espaço político nos sindicatos locais e
eleger vereadores comunistas, sobretudo operários.
Já o periódico O Fluminense foi um dos principais jornais do estado do Rio de Janeiro
antes da fusão com o estado da Guanabara, realizando diversas reportagens nos municípios do
interior, inclusive Magé. Bastante ligado ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, o referido
jornal foi analisado a partir de suas reportagens sobre os sindicatos dos têxteis e o cotidiano
16
Cf. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 3 ed.. São Paulo: Edições Loyola, 1996;
ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
36
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
dos operários mageenses, sempre buscando realizar um contra-ponto às reportagens da
imprensa operária.
Com este mesmo objetivo, de contraponto, utilizamos documentos da antiga Divisão
de Ordem Política Social (DOPS), órgão da polícia política do estado do Rio de Janeiro,
subordinado a Secretaria de Segurança Pública. Esses documentos encontram-se no Arquivo
Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Durante a presente pesquisa, o médico Irun
Sant’Anna nos cedeu uma cópia autenticada do seu prontuário individual, obtida pelo próprio
junto ao APERJ. Identificado como um dos principais líderes comunistas em Magé, Dr. Irun
apresentou em seu prontuário uma série de documentos interessantes relativos ao tema,
valorizando bastante o presente trabalho, tendo em vista o ineditismo dessas fontes na
pesquisa histórica.
Apresentado o projeto de nossa dissertação de mestrado, acreditamos que ela poderá
representar uma importante contribuição nos estudos sobre o movimento operário no Brasil,
sobretudo referente ao período pré-1964, devido ao seu caráter inovador de eleger um objeto
de pesquisa fora dos grandes centros industriais do país, já que a maioria das pesquisas
relativas ao tema se restringe à capital do Rio de Janeiro e ao estado de São Paulo, sobretudo
este último.
Além disso, na ânsia de superar as dificuldades atravessadas por esse campo de
pesquisa, buscamos inserir a presente dissertação no contexto de retomada do processo de
renovação do estudo sobre história operária, iniciado nos anos de 1980 e intensificado nos
últimos anos.17
No que tange à história do PCB, acreditamos que esta dissertação também poderá
contribuir significativamente para o estudo referente ao tema, já que enfoca a atuação do
partido para além do seu Comitê Central e de sua organização nas capitais do país, como
também valoriza a atividade legislativa dos comunistas no Brasil, aspecto normalmente pouco
abordado nesses estudos, que enfatizam somente as “ações diretas” dos militantes como forma
de atuação política.
Dessa forma, a hipótese da presente dissertação é de que a atuação do PCB em Magé
na década de 1940, motivada principalmente pela chegada do médico comunista Irun
Sant’Anna, intensificou um processo de acumulação política que imprimiu na atividade
política dos operários têxteis de Magé uma forte noção de cidadania, a ponto de estabelecerem
17
Cf. BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e
tendências. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto,
1998. pp.152-155.
37
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
conexões tanto nos sindicatos de trabalhadores têxteis quanto na Câmara Municipal. À época
na ilegalidade, o PCB conseguiu institucionalizar o seu discurso por meio dessas duas
destacadas instituições, mantendo assim o partido vivo no seio do operariado mageense.
Simultaneamente,
questionamos
as
análises
de
autores
que
caracterizam
negativamente o operariado brasileiro no período pré-1964, como cupulista, sem trabalho de
base, inconsciente, sem autonomia e desmobilizado. Acreditamos que, a partir do estudo da
atuação do PCB junto ao movimento operário de Magé, ancorado em estudos relativos a
outras organizações sindicais, outros grupos políticos e municípios, seja possível ponderar ou
mesmo refutar as concepções de Populismo ou Sindicalismo Populista, ainda tão em voga nas
Ciências Sociais. 18
Durante a pesquisa, localizamos artigos e trabalhos completos acerca da participação
político-sindical de trabalhadores brasileiros, 19 de diferentes categorias profissionais, nas
cidades de Santos e Marília, em São Paulo; Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; do Nordeste
(o artigo engloba a região como um todo); de São Gonçalo, Niterói e Paracambi, no Rio de
Janeiro, além do próprio município de Magé. Inclusive, os referidos trabalhos atinentes a São
Gonçalo e Niterói estão sendo elaborados por companheiros de turma do Mestrado, sob
diferentes óticas, o que ampliará sobremaneira o diálogo acerca do tema.
Todos esses trabalhos, aliados ao contato com as fontes que utilizamos, resultaram na
elaboração de um importante banco de dados, que permitiu tanto o cruzamento de
informações quanto a adequação da presente pesquisa, buscando situá-la no seio das
18
Cf. IANNI, Otávio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968;
WEFFORT, Francisco. op.cit.
19
Cf. SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo (orgs.). Trabalho e tradição sindical no Rio de
Janeiro: a trajetória dos metalúrgicos. Rio de Janeiro: DP&A, 2001; TAVARES, Rodrigo Rodrigues. A
“Moscouzinha” Brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930-1954). São Paulo:
Humanitas, 2007; QUERINO, Rosimar Alves. Democracia inconclusa: militância comunista e repressão
política no interior paulista (1945-1964). Araraquara: tese de Doutorado apresentada a Universidade Estadual
Paulista (UNESP), 2006; PIMENTA, Ricardo Medeiros. Retalhos de Memórias: Trabalho e Identidade nas
Falas de Operários Têxteis do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: dissertação de Mestrado em Memória Social
apresentada a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2006; JAKOBY, Marcos André. A
organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Rio de
Janeiro: dissertação de Mestrado em História apresentada a UFF, 2008; FLORES, Marilda dos Santos Monteiro
das. As Discussões da Câmara de Vereadores de São Gonçalo e seus Envolvimentos com o Ambiente Nacional
(1961-1964). São Gonçalo: monografia de graduação em História apresentada a FFP/UERJ, 2001;
GONÇALVES, Lúcio Marcos Alves. A atuação da bancada comunista na Câmara de Vereadores do Distrito
Federal no ano de 1947. Rio de Janeiro: monografia de graduação em História apresentada a UFRJ, 2004;
LIMA, Jacob Carlos; FERREIRA, Brasília Carlos. Trabalhadores Urbanos no Nordeste: trajetórias profissionais,
mobilidade espacial e organização operária. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), n.30. Disponível em
<http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbc s30_09.htm>. Acessado em 28 de setembro de
2008.
38
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
discussões acadêmicas em nível nacional sobre o tema ou, ao menos, o mais abrangente
possível.
Além disso, a partir desses estudos, constatamos um considerável nível de organização
e mobilização dos trabalhadores brasileiros nas décadas de 1950 e 60, o que contesta
sobremaneira as interpretações que desqualificam o operariado desse período. Esse elevado
nível de organização e mobilização também foi identificado entre os trabalhadores têxteis de
Magé, o que favorece a relevância desse trabalho, ancorado em outros semelhantes,
problematizando, destarte, aquelas generalizações históricas encontradas no quadro nacional.
Nesse sentido, acreditamos que, apesar dos limites impostos por meio da estrutura oriunda do
Estado Novo, a ação organizada dos trabalhadores brasileiros na virada dos anos de 1950 para
os 60 adquiriu um impacto decisivo na conjuntura política do país, devido justamente à sua
capacidade de mobilização.
Portanto, atribuimos à classe trabalhadora um papel ativo como ator político,
valorizando suas memórias e identidades, além de buscar o equilíbrio entre consenso e
conflito no seio do operariado. Do mesmo modo, ressaltamos a importância que os
documentos legislativos mageenses representaram para a nossa pesquisa, sobretudo na
problematização dessas generalizações históricas encontradas no quadro nacional. Ademais,
ao privilegiarmos a análise de documentos legislativos, visamos também intensificar os
estudos sobre o parlamento no Brasil, na expectativa de incentivar a preservação, organização
e acessibilidade de seus arquivos.
39
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Das Cores da Música: Identidades, Cultura Popular e Samba Carioca no início do século
XX (1917 – 1933)
Gabriel Valladares Giesta*
Resumo: Este artigo tem o objetivo de pensar os processos e conflitos identitários em torno
do Samba carioca entre o período de 1917 – 1933, fazendo algumas leituras básicas de forma
relacional: trabalhos sobre relações raciais no Brasil; sobre Cultura Popular, Identidade e
Diáspora; textos que trabalham a história do Rio de Janeiro e Brasil no início do século; e por
fim, mas não menos importante, leituras sobre o Samba e fontes que tratem desta
manifestação. Neste caso, não se pretende elaborar uma história da música popular e do
samba por si próprio, nem muito menos uma pesquisa apenas sobre relações raciais, mas sim
compreender o samba enquanto cultura popular, analisando-o dentro dos processos de relação
de poder em que esteve inserido durante seu momento de ascensão na sociedade carioca.
Desta forma, pode-se dar luz a diversos conflitos étnico-raciais, culturais, sociais e políticos
presentes no período estudado, consequentemente, na história do Brasil.
Palavras-chave: Identidades; Samba; Cultura Popular.
Abstract: This article aims to analyze identity processes and conflicts related to the samba of
Rio de Janeiro between 1917 and 1933, through review of studies on race relations in Brazil;
studies on Popular Culture, Identity and Diaspora; studies on History of Rio de Janeiro and
studies on History of Brazil at the beginning of the XX century; and, last but not least,
through the analysis of sources related to this cultural manifestation. In this sense, it is not our
purpose to produce a history of popular music and of the samba, much less a search on race
relations, but rather to understand the samba as popular culture, analyzing it within the power
relations to which it was related during its rise in Rio de Janeiro society. Thus, we intend to
clarify the ethnic, racial, cultural, social and political conflicts in that period, therefore, on
History of Brazil.
Key words: Identities; Samba; Popular Culture.
Este trabalho tem como objetivo dar um breve panorama da pesquisa desenvolvida
durante o mestrado em Historia Social da FFP. Neste caso, buscarei apresentar alguns
elementos da dissertação, como as fontes usadas e principais hipóteses, objetivos e princípios
teórico-metodológicos defendidos. Como se trata de um pequeno texto, a análise de fontes
ficará restrita a alguns exemplos. De forma bem objetiva, podemos dizer que o principal
objetivo da dissertação será trabalhar um tema (relações raciais, cidadania e cultura popular
na cidade do Rio de Janeiro de 1917 a 1933) através de um objeto de pesquisa (música
popular e samba). Pretende-se então analisar os diferentes conflitos identitários que surgem
em torno do samba e da música popular, no seu momento de definição enquanto gênero,
popularização e progressiva assimilação como símbolo da identidade nacional. Nestes termos,
*
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista da CAPES. e-mail: [email protected].
40
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
o referencial de cultura popular que buscamos durante a pesquisa se baseia na definição de
Stuart Hall:
o princípio estruturador do ‘popular’ [...] são as tensões e oposições entre aquilo que
pertence ao domínio central da elite ou da cultura dominante, e à cultura da
‘periferia’. É essa oposição que constantemente estrutura o domínio da cultura na
categoria do ‘popular’ e do ‘não-popular’. Mas essas oposições não podem ser
construídas de forma puramente descritiva, pois, de tempos em tempos, os
conteúdos de cada categoria mudam. [...]. O princípio estruturador [...] consiste das
forças e relações que sustentam a distinção e a diferença [...] (HALL, 2003, pág.
240).
Sendo assim, não pretendemos analisar o conteúdo cultural do samba, as
características da cultura popular, mas sim vê-los dentro de relações de poder, a partir de sua
atuação, e como estas realçam conflitos étnico-raciais e sociais presentes na sociedade carioca
do início do século XX. Neste caso, é preciso alternar escalas de análise entre micro e macro,
ou seja, proceder a analise de forma a fazer dialogar o contexto histórico-social destacado pela
historiografia com a pesquisa das trajetórias dos populares, o que não significa buscar
determinações entre uma escala e outra, mas sim relacioná-las de forma a preencher lacunas
que apenas uma instância não possa fazê-lo ou, até mesmo, encontrar contradições e novas
possibilidades históricas.
Ao analisarmos os diferentes discursos que constroem uma memória histórica relativa
ao samba podemos perceber como esta manifestação cultural está intimamente ligada a
debates envolvendo culturas históricas e políticas no Brasil, principalmente no que concerne à
questão racial. Isto se deve ao fato de o samba se configurar enquanto gênero no processo de
modernização nacional quando, durante a Primeira República, buscavam-se referenciais para
uma identidade tipicamente brasileira. Neste caso, desde o início do século com alguns
folcloristas, passando pelo movimento modernista (tendo Mario de Andrade como principal
expoente) até os folcloristas urbanos, a música e cultura popular estarão no foco de debates
sobre representações ideais do Brasil, nas quais a composição racial brasileira tem importante
papel.
Tal processo se configurava antes mesmo da publicação de Casa Grande e Senzala e
do projeto de estado varguista, quando uma ideologia de valorização da mestiçagem será
oficializada (ABREU e DANTAS, 2008). A partir de então, o samba carioca entrará na
memória nacional de muitos brasileiros como símbolo máximo da identidade do país e de seu
povo, que seriam, por excelência, racialmente misturados, democráticos e cordiais. Tais
características seriam culturalmente representadas no Samba Carioca. Evidentemente, este
quadro identitário é fruto de um processo histórico e da construção social de uma memória.
41
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Sobre a construção desta memória sobre o samba, a historiografia também tem seu
papel, estando presentes nela questões étnico-raciais. Ao analisar a historiografia do samba,
SANDRONI (2008) irá afirmar que dois paradigmas coexistem nas pesquisas e livros sobre o
assunto:
As crenças dos negros, ou de modo geral as práticas sociais e culturais que lhes eram
próprias, teriam sido vítimas, num Brasil por três séculos escravocrata, de
interdições e recalcamentos: tese repressiva. Essas práticas, no entanto,
sobreviveram em certa medida, pois teriam sido encobertas e limitadas a
determinados lugares onde os senhores não podiam descobri-las: concepção tópica”
(SANDRONI, 2008, pág. 110).
Estas concepções, presentes em autores como Arthur Ramos, Sérgio Cabral, José
Ramos Tinhorão, Muniz Sodré e até mesmo na fala dos próprios sambistas, seriam
“exageradas”, segundo Sandroni (2008), pois não conseguem enxergar as nuances nas
relações entre classes dominantes e cultura popular.
Tendo isto em mente, alguns pesquisadores contemporâneos buscam fugir destas
concepções repressivas e tópicas ao fazerem suas análises. Um marco entre estes
pesquisadores é o trabalho do antropólogo Hermano Vianna (2007), que expõe as relações do
samba com autoridades e setores da elite do Rio de Janeiro. Vianna (2007) não deixa de citar
conflitos em torno da música e de, em alguns momentos, reconhecer um lugar cultural
específico para o Samba. Porém, o foco de sua pesquisa é a crítica à ideia de autenticidade,
defendendo, assim, o caráter artificial e inventado do samba. Desta forma, Vianna rejeita as
teses que vêem o samba como manifestação cultural negra, a qual teria sido expropriada pelos
brancos e setores de classe média. O samba seria fruto da fluidez/circularidade do processo
social do Rio de Janeiro, que proporcionava encontros entre diversos setores da sociedade.
Porém, mesmo com o objetivo de não fazê-lo, Vianna (2007) não consegue fugir, em alguns
momentos, de certa alternância entre repressão/valorização do samba.
Portanto, entre circularidade e autenticidade, hibridismo e cultura negra, temos
evidente um dilema em relação à identidade do samba sobre o qual é preciso definir um
posicionamento. Neste caso, um melhor conhecimento sobre o conceito de diáspora africana
defendido por Paul Gilroy e Stuart Hall pode indicar um caminho a se seguir, pois, como
veremos, propõem-se a analisar a cultura popular colocando-a nos processos de conflito e
relações de poder nos quais ela se insere.
Tanto Hall (2006) quanto Gilroy (2000) defendem uma análise da diáspora contra
qualquer tipo de essencialismo que defina as manifestações da diáspora africana de forma
engessada. Neste sentido, a experiência da diáspora não se faz nem em uma África idealizada
42
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
(uma cultura autenticamente africana e/ou negra) nem no completo hibridismo/crioulização
cultural. Para os dois autores, a diáspora se faz neste jogo entre transferências de aspectos
culturais africanos para o ‘novo mundo’ e novas formas, adaptações, assimilações dentro do
contexto que se inserem. Assim sendo, o que define a diáspora não são os elementos culturais
por si só, mas sim uma experiência de conflito comum, que delimita uma diferença dentro da
cultura hegemônica.
Para explicar tais ideias, Gilroy (2000) afirma que o foco da análise sobre a diáspora
deve ser o Atlântico enquanto uma unidade única e complexa numa perspectiva transnacional
e intercultural. Toda a “Criatividade Transnacional do Atlântico Negro” seria marcada pela
presença importante do Navio Negreiro. Este seria um elemento móvel que representaria os
espaços de mudança, além de ser uma unidade cultural e política e, também, um modo de
produção cultural distinto na middle passage. Portanto, Paul Gilroy (2000) propõe uma
análise do Atlântico negro como metáfora para a experiência da Diáspora Africana, marcada
pela diferença e hibridismo, sem perder sua importância na formação de identidades negras
comuns, tendo em vista as experiências também comuns de exploração, escravidão,
discriminação e racismo. Sendo assim, o Atlântico negro seria uma contracultura da
modernidade e, dentro desta contracultura, temos as expressões da música negra, as quais
sempre foram a espinha dorsal da cultura política dos escravos e seus descendentes no novo
mundo, segundo Gilroy (2000).
Tal cultura política marcada pela experiência da diáspora africana fica mais evidente
ao analisarmos os espaços de negociação/afirmação cultural e identitária, como o samba em
sua ascensão durante a Primeira República no Rio de Janeiro. Evidentemente, não há mais
como traçar uma origem essencialmente africana para o samba (mesmo que seja possível
fazer muitas conexões), porém podemos pensá-lo como cultura popular marcada pela diáspora
africana. Isto fica claro quando gradualmente percebemos que ao analisar fatos,
acontecimentos e processos envolvendo a ascensão do samba enquanto gênero musical e os
debates identitários em torno deste processo evidencia-se uma série de conflitos envolvendo
questões étnico-raciais e sociais marcantes da realidade brasileira da época.
A presença do samba (e da música popular em geral) na indústria fonográfica surge,
então, como espaço privilegiado para analisarmos estes conflitos. Aqui, partimos do princípio
conceitual de Hall sobre Hegemonia Cultural. Segundo o autor, esta “nunca é uma questão de
vitória ou dominação pura (...); sempre tem a ver com a mudança no equilíbrio de poder nas
relações da cultura; trata-se sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural
e não se retirar dele” (2006).
43
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Estas relações de poder ficam explícitas em alguns trabalhos atuais que mostram como
o samba no Rio de Janeiro da Primeira República, ao mesmo tempo em que era perseguido
por algumas autoridades policiais e políticas, também encontrou espaços de afirmação, como
na recente Indústria Fonográfica do país, representada principalmente pela Casa Edison.
Diversas foram as músicas registradas por esta gravadora, muitas delas tratando de temas
relativos a afro-religiosidades, culturas e identidades negras. 20
Nesta relação, é importante ressaltar o fato da visibilidade que o samba ganha se
configurar enquanto uma visibilidade controlada. A entrada gradual na lógica de produção e
distribuição de mercado trouxe fortes restrições quanto aos batuques e formatos das músicas
nas gravações. Sobre isto, importa ressaltar que o primeiro samba gravado que utilizará
instrumentos de percussão 21 partiu de uma iniciativa do Bando de Tangarás apenas em 1930,
grupo de classe média, brancos, portadores de capital simbólico que os proporciona maior
liberdade para tal feito, como nos mostra Sandroni (2001). Diferentemente de sambistas
negros que, por terem instrumentos apreendidos no passado (como nos conta João da Baiana
em depoimento ao Museu da Imagem e do Som sobre o seu pandeiro) 22, provavelmente não
se sentiriam a vontade de tomar a iniciativa de usá-los em uma gravadora, o que somente
passa a acontecer na década de 1930.
Ainda sobre a indústria fonográfica, podemos detectar certa disparidade entre letras
gravadas e veiculadas nas festas. Ao analisar o samba “Pelo Telefone” de Donga, reconhecido
como o primeiro samba gravado, Carlos Sandroni (2008) nos mostra como circulam duas
versões da mesma música:
(Versão gravada)
(Versão Anônima/“oficiosa”)
O chefe da folia
O chefe da polícia
Pelo Telefone
Pelo telefone
Manda me avisar
Manda me avisar
Que com Alegria
Que na Carioca
Não se questione
Tem uma roleta
20
A guisaPara
de exemplos,
podemos citar, de Sinhô, “A favela vai abaixo”Para
(1928),
Gegê” (1922), “Alta
se brincar
se “Macumba
jogar
Madrugada” (1930), “Professor de Violão” (1931); de João da Baiana, temos “Dona Clara” (1927), “Que querê”
(1931); de Pixinguinha, cito “Partido Alto” (1932), com Cícero de Almeida, e “Samba de Nego” (1928).
21
Trata-se do samba “Na Pavuna”, de Almirante e Doca da Anunciação, gravado em 1930. Alguns
pesquisadores dizem que a introdução dos instrumentos de percussão característicos das escolas de samba nas
músicas da indústria fonográfica apenas não se dava devido a restrições técnicas de captação de som. Porém,
Sandroni (2001) mostra que a gravação elétrica foi introduzida no mercado fonográfico brasileiro em 1927, três
anos antes de “Na Pavuna”, e que ao tentar introduzir os instrumentos na gravação desta música, Almirante teria
sofrido restrições do diretor artístico para fazê-lo. Isto representa, fortemente, um conflito cultural com relação
racial e social.
22
Ver “As vozes desassombradas do Museu”, publicado pelo MIS.
44
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Estas letras acima explicitam os conflitos vividos pelos populares no Rio de Janeiro.
Em ambas as versões, fica clara a crônica das diversões das classes humildes serem objeto de
perseguição. Porém, na versão gravada o jogo da roleta não aparece, se restringindo à busca
para que “não se questione/para se brincar” e, na versão anônima, a alusão à negociação com
o chefe da polícia nos mostra como, mesmo com a perseguição, os populares buscaram
espaços de negociação com os delegados e autoridades em busca de afirmar suas práticas
(“folia” ou o jogo da “roleta”, como dizem as letras).
Na mesma linha, podemos pensar o carnaval como um meio diferenciado para
perceber tais conflitos. Segundo Rachel Soihet (1998), durante os dias de folia fica evidente o
contraste entre duas visões de mundo: uma construída a partir da reforma Pereira Passos, cujo
principal símbolo era a Avenida Central, por onde transitava a alta sociedade com seu desfile
de carros com flores; a outra, da Praça Onze, “ponto de concentração de sambistas e
malandros, como o lugar da batucada e do samba duro” (SOIHET, 1998, P. 57), onde se
localizava a casa da Tia Ciata, também. Entretanto, os populares não se restringiam apenas à
Cidade Nova, comparecendo também à Avenida Central com pandeiros, violões, cordões e
sambas considerados impróprios à cidade branca que se pretendia reproduzir. Assim, Rachel
Soihet define cultura popular:
canal privilegiado de expressão dos anseios e necessidades dos populares no Rio de
Janeiro, por largo tempo excluídos da participação política, segundo os parâmetros
tradicionais. Verifiquei que tais segmentos tiveram nessa cultura o principal veículo
de coesão e de construção de uma identidade própria e, por meio dela, promoveram
sua inclusão na vida pública da cidade, sendo o carnaval um momento privilegiado
nesse processo (SOIHET, 1998, p.17).
E é o próprio carnaval que nos mostra como os populares estavam longe de serem
alienados sobre o contexto histórico em que estavam inseridos: “Nós somos gente. (...)
Macaco é o outro!”, cantavam sambistas vestidos de macaco em um bloco de carnaval saído
da famosa casa da Tia Ciata, em 1916. Tal manifestação explícita abordando a questão racial
era feita em crítica ao influente teórico sobre a desigualdade das raças: o Conde Gobineau,
que, em visita ao Brasil em meados do século XIX, comparou os brasileiros a macacos.
Gobineau, ao reprovar a mistura de raças, afirmava que no Brasil havia uma “degenerescência
do mais triste aspecto” (SOIHET, 1998).
A própria e famosa casa da Tia Ciata também é um exemplo do conflito na cultura
popular: a partir de redes de conhecimento (Tia Ciata era casada com um funcionário do
gabinete do delegado) possibilitou-se a configuração de um espaço de encontro de sambistas e
produção de samba. Porém, em sua própria organização arquitetônica podemos perceber o
45
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
conflito na cultura popular: exposto na frente da casa tocava-se apenas choro, e o batuque
ficava reservado aos fundos.
Este exemplo da casa da Tia Ciata deixa bem claro que estamos tratando de cultura
popular, pois, assim como a própria música popular no Rio de Janeiro, podemos defini-la
como: “um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos
apresentam reivindicações conflitantes, onde há sempre uma troca entre o dominante e o
subordinado” (THOMPSON, 1998). Este conceito foi definido por E.P. Thompson em seu
estudo sobre a Inglaterra dos séculos XVIII/XIX, no qual o autor situa a cultura plebéia longe
dos consensos e essencialismos, mas “dentro de um equilíbrio particular de relações sociais,
um ambiente de trabalho e exploração e resistência à exploração, de relações de poder (...).
Desse modo, a ‘cultura popular’ é situada no lugar material que lhe corresponde”
(THOMPSON, 1998).
De fato, Thompson (1998) estava analisando um dado contexto diferente do que
estudamos neste trabalho. Assim, é preciso adequar tais pressupostos teóricos à realidade do
Rio de Janeiro do início do século XX, tarefa que é facilitada pela postura do autor ao negar
rótulos fechados e homogêneos em relação à cultura popular. A partir desse pressuposto, é
possível frisar que a música popular no Rio de Janeiro deve ser situada para além do lugar
material que lhe corresponde (produzido pela população pobre em “ambiente de trabalho e
exploração”), mas também em diálogo com processos de conflitos sócio-culturais que
envolvem a presença afrodescendente no país (expressão dos setores populares em relação a
um passado escravista e um presente de discriminações sociais e raciais, às quais se
relacionam diretamente).
Este dois “lugares” (material e sócio-cultural) estão longe de estarem separados na
História do Brasil, onde o racismo sempre esteve diretamente relacionado com questões de
classe. Porém, o discurso da “democracia racial” apaga os contrastes vividos e a ideologia do
“embranquecimento”, fortemente presente durante a Primeira República.
Sobre isto, talvez seja exagero dizer que o samba carioca em seu momento de
ascensão botou a mão na ferida em tais problemáticas, deixando-as exposto para serem
debatidas. Porém, podemos afirmar que, ao buscar por espaços de afirmação enquanto uma
cultura da diáspora africana, o samba pode ter facilitado que tais questões se tornassem mais
pronunciáveis, pois agora seria preciso lidar diretamente com a presença dos setores negros na
composição cultural da sociedade brasileira, o que contrasta com os projetos voltados para sua
exclusão social durante o pós-abolição. Para ilustrar essa situação, pode-se apresentar músicas
nas quais os sambistas incluíam-se nos debates que tratavam de questões nacionais, entre elas
46
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
duas composições de Sinhô: “Fala, meu louro” (1919), criticando Rui Barbosa, e “Eu ouço
falar (Seu Julinho)” (1929), onde se faz propaganda explícita de Julio Prestes.
Portanto, a cidade do Rio de Janeiro no início do século foi palco de um crescente
movimento por afirmação política, cultural e social de setores populares, que se utilizaram do
samba enquanto meio para alcançar seus objetivos. O próprio samba se transformou neste
processo, ou seja, ao mesmo tempo em que impôs marcas próprias e ganhou o seu lugar ao
sol, também teve de adequar-se para que isso ocorresse, o que trouxe diversos conflitos
(debates em torno da autoria ou sobre que tipo de música era o “verdadeiro samba”, o mais
“amaxixado” da geração de Donga ou o samba do Estácio, defendido por Ismael Silva) 23.
Porém, tais adequações e restrições não impediram a afirmação de um contra-discurso
marcante da diáspora africana através do samba, envolvendo a afirmação da diferença: um
estilo e estética em torno do repertório negro, a centralização na música em oposição à cultura
escrita dominante e à valorização da corporeidade. Segundo Stuart Hall:
esses repertórios da cultura popular negra – uma vez que fomos excluídos da
corrente cultural dominante – eram freqüentemente os únicos espaços performáticos
que nos restavam e que foram sobredeterminados de duas formas: parcialmente por
suas heranças, e também determinados criticamente pelas condições diaspóricas nas
quais as conexões foram forjadas. (HALL, 2003, p. 324).
Concluindo, este trabalho buscou discutir um dos aspectos em torno da relação entre
identidade e samba carioca na primeira república, de forma a dialogar com um suporte teórico
de consistência. Objetivou-se aqui tratar do samba de uma forma não idealizada, mas sim
dentro de sua complexidade. Neste caso, talvez seja importante frisar que, a música
possibilitou dar voz a setores até então “apagados” na primeira república. Neste caso, as lutas
por afirmação e busca por espaços de expressão destes populares com o samba foi de vital
importância para que tais questões sejam colocadas na ordem do dia, e estes setores da
sociedade sejam vistos como atores e integrantes da sociedade carioca na primeira república.
Ou seja, uma forma de buscar a cidadania.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABREU, Martha e DANTAS, Carolina V. Música popular, folclore e nação no Brasil, 18901920. In: CARVALHO, José Murilo (org.). Nação e Cidadania no Oitocentos. São Paulo:
Record, 2008.
ANDREWS, George Reid. Afro-Latin America, 1800-2000. New York: Oxford University
Press, 2004.
CABRAL, Sergio. As escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1966.
23
Sobre isto, ver discussão entre Donga e Ismael citada por Cabral (1966).
47
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
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Janeiro, nº18, 1996.
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48
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A busca de educação escolar pela população riobonitense (1977-1982)
Gelson Gomes C. de Souza*
Resumo: Neste trabalho buscaremos discutir como se deu a expansão da Rede Escolar
Municipal de Rio Bonito nos anos de 1976 a 1982, observando neste território as relações de
poder necessárias para inaugurar uma nova história da educação local. Este período nos
chamou a atenção a partir da manchete do Jornal A Tribuna Especial publicado em 1980 que
anunciava: “Em 3 anos mais escolas que em 131 anos de emancipação”. Entendemos o
território como sendo o lugar privilegiado das relações sócio-culturais marcadas pelas
relações de poder. Assim, partiremos da discussão do conceito de território para
compreendermos as relações de poder envolvidas no processo de expansão da educação
escolar municipal de Rio Bonito. Observaremos, de um lado, as solicitações populares em
favor de uma educação capaz de atender as suas necessidades escolares e, de outro, o
executivo municipal que possui o poder de fazer.
Palavras-Chaves: Território; Rio Bonito; Expansão escolar; Relações de poder.
Abstract: In this paper we discuss the public school expansion at the city of Rio Bonito
between 1976 and 1982, focusing on territory and on power relations, in order to initiate a
new local history of education. This specific period drew our attention due to the reading of a
headline of the newspaper A Tribuna Especial, published in 1980, that stated "More schools
in three years than in 131 years of emancipation." As we can define territory as a privileged
space of social and cultural relations that is marked by power relations, we discuss this
concept in order to apprehend the power relations related to the expansion of public school in
Rio Bonito. We will analyze, on the one hand, popular demands for education and, secondly,
the city government that had the power to implement educational policies.
Key-words: Territory; Rio Bonito; Schools expansion; Power relations.
Introdução
Neste trabalho, ainda em andamento, buscaremos discutir como se deu a ampliação da
rede escolar pública municipal de Rio Bonito, no Rio de Janeiro, nos anos compreendidos
entre 1977 e 1982, observando neste território as relações de poder necessárias para inaugurar
uma “nova história” da educação local. Este período nos chamou a atenção a partir de uma
desconfiança em relação ao discurso existente na cidade de que o prefeito, à época, era “bom”
e, por esse motivo, teria investido na educação.
Ao iniciarmos a pesquisa, nos deparamos com o Jornal A Tribuna Especial24 que
publicou, entre outras, as seguintes manchetes: “Escolas: a arrancada secular” (1979); “Em
*
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ).
49
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
três anos mais escolas que em 131 anos de emancipação” (1980), “A escola, a faculdade e a
cidade mirim” (1981) e “Assim eram nossas escolas” (1982).
Acreditamos que, para além do “querer fazer” do prefeito, outros três fatores tenham
contribuído para realizar essa possível “arrancada secular” na educação local. Primeiro, a
existência de uma demanda por parte da população, provocada pela inversão campo-cidade
efetivada em 1970, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
pelo crescimento do comércio local e pela propaganda de necessidade de mão-de-obra
técnica, pelo governo militar (CUNHA, 1977).
O segundo fator que pode ter contribuído para tal ampliação foi o projeto, manifestado
pelo prefeito Aires A. Helayel, conforme nos declarou em entrevista, de construir um colégio
que atendesse ao 1° e ao 2° Graus. Confrontando essa declaração com o documento “Rede
Escolar Municipal”25, podemos contar dezessete escolas municipais no ano letivo de 1979,
que ofereciam ensino de até a 4ª série, e uma escola que cumpria até a 5ª série do 1° Grau.
Nossa hipótese é que, para realizar o “sonho” de construir o tal colégio, era necessário ampliar
a rede escolar existente e, com isso, criar e/ou ampliar uma clientela com nível escolar
suficiente para ingressar no novo empreendimento educacional.
E, por último, acreditamos que o prefeito eleito em 1976 ambicionava um crescimento
político na região. Para alcançar seus objetivos, buscou atender às “várias solicitações” de
parte da população em prol de uma educação municipal mais ampla e, ao mesmo tempo,
próxima das políticas nacionais de expansão do ensino médio profissionalizante, em curso
desde a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5.692/71.
Enfim, buscaremos com este trabalho articular as contribuições da história política no
contexto da ditadura militar e as relações de poder existentes nesse território com o objetivo
mostrar uma relação política diferenciada existente entre o prefeito Aires Abdalla, que possuía
ambições de crescimento político e, parte da população local que buscava uma escolarização
melhor e ampla.
24
Este jornal é uma edição especial do jornal A Tribuna (de Niterói), disponível para consulta na Casa de
Cultura de Rio Bonito. Possivelmente essas publicações especiais foram encomendadas pela administração do
ex-prefeito Aires Abdalla Helayel. Além de anunciar as obras realizadas pela prefeitura, o jornal possui anúncios
comerciais da cidade de Rio Bonito. Foram publicados quatro números especiais entre 1979 e 1982, todos no dia
7 de maio, aniversário da cidade. Não tivemos notícias da existência de outros números similares. Na primeira
página desses jornais é omitido, com exceção do exemplar de 1980, o nome A Tribuna Especial, sobressaindo o
nome “Rio Bonito: 1846 - 7 de maio - 1979” (1846 – ano da emancipação política e administrativa da cidade;
7 de maio – dia do aniversário da cidade; 1979 o ano da publicação do jornal) e a duração do governo (2 anos
de Governo Aires Abdalla). Para este artigo iremos nos referir a este Jornal, sempre que necessário, como A
Tribuna Especial.
25
Documento disponível na Secretaria do Colégio Municipal Dr. Astério Alves de Mendonça, em Rio Bonito.
50
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A educação brasileira no contexto da ditadura militar (1964-1985)
Logo de início, destacavam-se a profundidade e o furor da repressão política, em
particular contra o Trabalhismo e outras organizações de esquerda. Os sindicatos
trabalhistas, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Universidade, bem como
jornais e rádios, tiveram suas sedes ocupadas e destruídas, em evidente desrespeito à
Constituição e aos direitos e garantias individuais. Ao mesmo tempo, a morte e o
desaparecimento de inúmeras lideranças sindicais e camponesas, assim como a
deposição de governadores eleitos, prenunciavam o que seriam os anos de Terror do
regime militar (SILVA, 1990).
Segundo Werebe (1994, p. 80) ocorreu um “progresso” na educação brasileira no
período da ditadura militar iniciada com o Golpe de 1964. Segundo a autora, “houve projetos
do ponto de vista quantitativos, com a expansão da rede de escolas dos três graus. Mesmo
assim, não se conseguiu atender a todas as crianças em idade escolar” (Idem).
A respeito da expansão escolar faremos um retorno à discussão feita por Romanelli
(1985) na década de 1970, para entendermos a relação entre desenvolvimento econômico e
escolarização. A autora destacou que o desenvolvimento econômico gerava a necessidade de
mão-de-obra qualificada e, por sua vez, um sistema educacional adequado ao sistema
econômico.
Essa ligação entre desenvolvimento econômico e educação, destacada pela autora, ou,
as exigências de uma economia modernizada frente ao sistema educacional, nos remetem ao
período da ditadura militar no qual o Brasil experimentava a euforia do “milagre econômico”.
Essa euforia se propagou por todo o país, afinal, as políticas econômicas dos militares
alcançaram números surpreendentes, embora a distribuição da renda não tenha sido
priorizada. Observou-se, no decorrer dos anos que
a taxa de crescimento do PIB acelerou-se ao longo do tempo, elevando-se de 9,8%
a.a. em 1968 para 14% a.a em 1973, a inflação, medida pelo Índice Geral de Preço
(IGP), declinou de 25,5% para 15,6% durante o período [...].
[...] Também deve ser destacado que, em função do crescimento extraordinário das
exportações, a relação dívida externa líquida/exportações declinou de 2,0 para 1,4
entre 1968 e 1973 (VELOSO; VILLELA; GIAMBIAGI, 2008, p. 224).
Segundo a lógica empregada por Romanelli (1985), explicitada anteriormente, era
preciso fazer com que a educação brasileira acompanhasse o desenvolvimento econômico, a
fim de aumentar o número de pessoas preparadas pelo sistema educacional para ingressar
nesse Brasil que crescia a taxas de 11,1% do PIB ao ano.
O discurso de que era preciso modernizar a educação brasileira para que ela
acompanhasse o desenvolvimento econômico é anterior à ditadura militar, visto que o
Manifesto de 1932 já apontava nessa direção. Para os Pioneiros da Educação Nova não se
51
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
dissociava o desenvolvimento do país da modernização educacional, aliás, para eles, a
modernização, a industrialização e o desenvolvimento econômico seriam conseqüências de
uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade. Assim,
Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e
gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar
a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do
sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível
desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das
forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são
os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade (AZEVEDO,
1932, p. 125).
Os militares não se afastaram dessa dimensão acreditando ser necessário formar uma
mão-de-obra capaz de operar as novas tecnologias industriais, afinal, o Brasil crescia e se
modernizava a passos largos com o “milagre econômico”. Desenvolveu-se uma educação para
a formação de “capital humano”, uma formação para o mercado de trabalho (SHIROMA;
MORAES; EVANGELISTA, 2000).
As principais reformas implementadas pelo Regime Militar relacionadas ao ensino
foram as do 1° e 2° Graus com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n°. 5.692/71 e a Lei
5.540, que promoveu uma reforma no Ensino Superior. Com relação à primeira, foi
estabelecida a obrigatoriedade do 2° Grau profissionalizante, e a segunda introduziu, entre
outras medidas, a dedicação exclusiva dos professores, criou a estrutura dos departamentos e
acabou com a cátedra. (SHIROMA, et al, p. 37).
A educação passou a priorizar a formação para o trabalho, dando-se ao 2° Grau um
caráter de terminalidade. A intenção era que “um grande contingente de alunos pudesse sair
do sistema escolar mais cedo e ingressar no mercado de trabalho. Com isso, diminuiria a
demanda para o ensino superior”, que na ocasião estava sendo muito procurada (GERMANO,
1994, p. 176).
Além destas reformas educacionais, uma das primeiras medidas foi à substituição do
Programa Nacional de Alfabetização do governo de João Goulart pelo Mobral – Movimento
Brasileiro de Alfabetização. Segundo Werebe (1994) esse programa não atingiu seus
objetivos, embora tenha recebido um grande enaltecimento com “estatísticas inexatas”. A
autora destaca ainda que o Mobral “representou, sim, um desperdício enorme de recursos
financeiros e de pessoal, não tendo conseguido sobreviver” (WEREBE, 1994, p. 229).
Apesar de o Brasil ter conseguido alcançar exorbitantes taxas de crescimento
econômico, “o bolo” não foi repartido igualmente entre todos os segmentos da população
52
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
brasileira, como expressou o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto. O que se viu foi uma
grande concentração de renda nas mãos de poucos.
A educação pública municipal de Rio Bonito: uma breve apresentação
Caminhar pela história de Rio Bonito tem sido um navegar constante em águas
desconhecidas (COSTA, 2009, p. 79).
A rede escolar pública municipal de Rio Bonito possuía, até 1976, dezesseis salas de
aula em quinze escolas26.
Em 1977 a rede escolar pública local não contava com nenhuma escola de 2º Grau
profissionalizante. Além disso, as escolas municipais existentes só ofereciam até a 4ª série do
primeiro grau e, assim mesmo, não em todas as escolas. Duzentos e vinte oito alunos estavam
matriculados em toda a rede municipal em 1976 27.
As quatro edições da Tribuna Especial apresentam fotografias de escolas com prédios
mal conservados, aparentemente sem condições de abrigar nenhuma escola. Segundo a edição
de 1979, “todas as Unidades Escolares estavam com seus prédios em condições precárias de
funcionamento, a maior parte nem possuíam instalação sanitárias”.
A partir de 1977, houve investimentos significativos na educação municipal de Rio
Bonito, com reformas e construção de novos prédios escolares, além da ampliação do número
de alunos matriculados. Assim, oito escolas que já existiam receberam prédios novos, cinco
foram reformados e ampliados e três novas escolas foram construídas, sendo uma delas o
Colégio Municipal de Rio Bonito, com 28 salas de aulas e oferecendo o ensino de 2º Grau. A
rede municipal passou a oferecer a Educação Infantil, o ensino de 5ª a 8ª séries e, também, o
ensino de 2º Grau com os cursos profissionalizantes de Formação de Professores e
Contabilidade, e posteriormente os técnicos de Mecânica, Enfermagem e Agronomia.
De acordo com o Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1979, a rede
municipal de ensino de Rio Bonito passava de 20 salas de aulas em 1977, para 38 salas em
1978, com um crescimento que representa quase 100% em número de salas de aula. O número
de matriculados alcançava o total de 732 alunos em 1977, o que indica um crescimento de
mais de 200% em relação ao número de matrículas para a rede de 1º Grau municipal em
197628.
26
Dados do Jornal A Tribuna Especial, 1979, p. 9, e do Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro, 1978, p.
345.
27
Cf. Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro, 1978, p. 353.
28
Idem, 1979, p. 129.
53
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A demanda local por escolarização: insatisfação e cobrança
O crescimento da demanda social de educação pode ser tomado como outro
indicador de necessidades do desenvolvimento, uma vez que ele revela aspectos
sociais do desenvolvimento, por traduzir o aparecimento e crescimento de novas
camadas, assim como a evolução de uma consciência social do valor da educação
[...]. (ROMANELLI, 1985).
Neste tópico, veremos como o conceito de território 29 nos ajuda a compreender as
relações de poder estabelecidas entre o prefeito de Rio Bonito, Aires Abdalla Helayel30, eleito
em 1976, e parte da população que demandava uma educação escolar municipal capaz de
satisfazer as suas necessidades sociais. O que temos observado neste território é que parte da
sociedade local não esteve “acomodada” no contexto de ditadura militar, como afirmou Reis
(2000).
Em sua análise sobre Claude Raffestin, Fernandes (2009) destaca dois tipos de poder
existentes no território, um que se refere à soberania do Estado, e o outro “que está presente
em cada relação, na curva de cada ação, que utiliza as fissuras sociais para se infiltrar”
(GALVÃO et al, 2009, p.39 apud FERNANDES, 2009). Essa dimensão de poder (escrito
com letra minúscula) esteve presente em Rio Bonito nos primeiros anos do governo iniciado
em 1977.
Inferimos que a demanda por escolarização municipal tenha se intensificado com o
governo eleito em 1976, tornando-se mais evidente através das “várias solicitações” feitas
diretamente ao prefeito Aires A. Helayel, conforme este nos informou em entrevista.
Na busca de atender às muitas solicitações, o prefeito passou a exercer o seu Poder “de
fazer” nesse território (poder com letra maiúscula) frente ao poder (com letra minúscula) do
povo que utilizou as “fissuras sociais” possíveis (RAFFESTIN apud FERNANDES, 2009),
no contexto do “furor e repressão política” exercida pelos governos dos militares após o golpe
de 1964 (SILVA,1990), para fazer valer as suas necessidades de escolarização.
Percebemos indícios de uma demanda por escolarização já na década de 1960. Em
1966, ano de eleições municipais, os candidatos do Movimento Democrático Brasileiro
(MDB) à prefeitura, José Bezerra e Leir Moraes31 (prefeito e vice-prefeito respectivamente),
29
Entendemos o território como sendo o lugar onde ocorrem as relações sócio-culturais marcadas pelas relações
de poder. Concordamos com Haesbaert (2006, p. 55) que território possui um sentido “relacional”, isso significa
“incorporar um conjunto de relações sociais, (...) de envolver uma relação complexa entre processos sociais e
espaço material”. Assim, influenciados pela dimensão “relacional” do território nos distanciamos das discussões
que buscam compreende-lo apenas como uma dimensão natural, social, econômico e/ou cultural.
30
Este prefeito governou a cidade de 1976 a 1982, período destacado para este trabalho.
31
Aqui se faz necessário um breve comentário sobre quem é Leir Moraes. Ele é riobonitense, formado em direto
pela UFF, e jornalista por opção; atuava no MDB e era o jornalista responsável do Baixada Fluminense, que
circulou na cidade de 1964 a 1968. Segundo informações do mesmo jornal, a candidatura “Bezerra – Leir”
54
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
anunciam, através do jornal Baixada Fluminense, a intenção, se eleitos, de instalarem no
município uma escola profissional.
Essa intenção dos candidatos nos indica a possibilidades. Primeiro, que os candidatos
estavam antenados com as discussões sobre desenvolvimento nacional, propagadas pela
ditadura militar, como vimos anteriormente. E, segundo, se não houvesse uma demanda por
escolarização, os candidatos não estariam preocupados com essa questão da escolarização
técnica. Segundo a mesma publicação:
Não é preciso que enumeremos o grandioso serviço que poderá prestar a nossa
mocidade, uma escola de formação profissional, principalmente aos mais pobres,
que poderão aprender uma profissão, ao mesmo tempo que conseguem trabalho
remunerado, o que, em nossos dias, cada vez está mais escasso. (Baixada
Fluminense, n° 42, 1966).
Como podemos perceber, há neste fragmento um indício da existência de uma
demanda social por parte da mocidade em relação à escolarização, que neste caso é a
formação técnica, tão importante para o “desenvolvimento nacional”. Ressaltamos que os
votos dos familiares dessa mocidade estavam sendo disputados numa eleição municipal e,
portanto, os candidatos não fariam tal pronunciamento se não houvesse uma demanda
específica.
No ano seguinte é publicado no mesmo jornal o artigo “Escola profissional” assinado
pelo jornalista Leir Moraes (que em 1966 concorrera como vice-prefeito). No referido artigo,
o jornalista volta a afirmar a necessidade de instalação de uma escola profissionalizante na
cidade, argumentando que a “juventude riobonitense” precisava de tal formação para “ganhar
a vida em outras plagas” se assim o desejassem (MORAES, 1967)
Em entrevista, o jornalista Leir Moraes nos informou haver a necessidade na época de
formar “mão-de-obra especializada e a juventude queria”, mas “não havia vontade política
dos prefeitos” para promover essas ações. O que a memória deste jornalista nos faz pensar é
que havia uma demanda, como tínhamos acreditado inicialmente, sobretudo quando lembra
que “a juventude queria”.
O que temos confirmado até agora é que havia uma demanda por escolarização, antes
mesmo do recorte selecionado na pesquisa. Acreditamos que a intensificação da propaganda
do “milagre econômico” e a propagação do desenvolvimento brasileiro tenham intensificado a
busca pela escola pública municipal, também no nível local. Afinal, o governo militar investia
obteve 2.228 votos contra 1.714 do outro candidato (Nhozinho Lopes). No entanto, “nove dias depois o pleito o
Presidente da República Castelo Branco manda somar os votos das sublegendas, matéria já regulamentada pelo
Ato Institucional nº 03”, o que leva á vitória o seu oponente. Ou seja, os primeiros ganharam a maioria dos
votos, mas não foram eleitos.
55
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
em uma educação prioritariamente voltada para o trabalho (SHIROMA; MORAES e
EVANGELISTA, 2000).
Em agosto de 1977, pouco mais de cinco meses depois da implementação do novo
governo municipal, é constituída uma “Comissão de Implantação de Escola de 1° e 2° Graus”,
através da Portaria n° 61/197732. Entre outros objetivos, a comissão formada por quatro
professores, deveria apresentar “sugestões quanto à localização, requisitos essenciais da área e
características iniciais do imóvel a ser construído em razão da demanda escolar”33.
O que observamos com essa Portaria é que houve uma intenção do prefeito de
construir na “zona urbana desta cidade” uma escola que oferecesse o 1° e 2° Graus completos.
Outro elemento que aponta para uma demanda por escolarização anterior a 1977 são
as solicitações de bolsas de estudos. Como a rede municipal e a rede estadual de ensino não
dispunham de educação escolar satisfatória, oferecendo ensino apenas até a 5ª série, a
prefeitura era obrigada, por força da Deliberação n° 240/1963, a conceder bolsas de estudos
para que os filhos de funcionários prosseguissem seus estudos nas escolas particulares da
região. Além das “bolsas municipais”, havia as bolsas financiadas pelo governo federal, mas
que não eram suficientes para satisfazer a demanda local.
Em 1980, o executivo municipal elabora o documento “Implementação do Colégio
Municipal”, destinado à população em geral, onde constam as justificativas para a construção
do Colégio Municipal de Rio Bonito, dentre outras, a substituição das bolsas de estudos. A
publicação informa que
[...] em razão do elevado custo do ensino e do número sempre crescente de
candidatos a bolsas, não permite a concessão de bolsas integrais – exceção feita aos
filhos de funcionários por força de Lei Municipal – a Administração AIRES
ABDALLA, após estudos realizados pela Secretaria Municipal de Educação e
Cultura, resolveu substituir totalmente as bolsas de estudos pela criação de uma
unidade de ensino – COLÉGIO MUNICIPAL DE RIO BONITO – destinada ao 1° e
2° Graus [...]34.
Diante do crescente número de solicitações por bolsas de estudo, o prefeito Abdalla
declara a intenção de substituir as concessões pela construção de uma unidade escolar
“destinada ao 1° e 2° Graus”, esta última modalidade de ensino fora de suas obrigações
estabelecidas, de acordo com a Lei 5.692/71.
32
Portaria n° 061/77, disponível no Arquivo Geral da Prefeitura de Rio Bonito, no Centro Administrativo da
Prefeitura no bairro da Praça Cruzeiro.
33
Infelizmente não encontramos nenhum relatório dessa comissão.
34
Documento “Implantação do Colégio Municipal”, disponível na Secretaria do Colégio Municipal Dr. Astério
Alves de Mendonça.
56
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Outro fator que nos leva a acreditar na existência de uma demanda por parte da
população em favor de uma educação escolar municipal mais satisfatória são as declarações
de ex-alunos da época. Telma Rosa35, ex-aluna do Colégio Municipal de Rio Bonito, nos
disse que seu pai “tinha conversado com o prefeito Bidinho 36 e depois o Aires para resolver
esse problema de falta de um lugar pra gente estudar de graça. Só pagando é que se estudava
na época”. Nessa mesma direção, a ex-aluna Aládia Duarte37 nos conta que a procura por uma
educação pública municipal “Era geral. Porque a maioria das pessoas não tinha condições de
pagar. Tanto é que quando Aires criou o Municipal, eu saí do Colégio Rio Bonito pra ir
estudar lá”.
Para todos os entrevistados a educação escolar municipal era insatisfatória, sobretudo
quando se referiam à continuação dos estudos a partir da 5ª série, situação que se modificou
quando o Colégio Estadual Barão do Rio Branco passa a oferecer a 5ª série38.
Nesse sentido o ex-aluno Edson Jorge39 declara que
estudar era muito difícil porque eu tinha que ajudar minha mãe a cuidar dos meus
cinco irmãos, parei de estudar na 3ª série para trabalhar, mas não tinha muito mais o
que estudar porque eu só poderia estudar até a 4ª série, o que terminei só em 1989
(...) Como minha mãe era muito amiga de Aires Abdalla eu cheguei a pedir a ele
para ele investir mais na educação, eu não queria que meus filhos também tivessem
que parar de estudar.
A análise da documentação consultada, bem como as entrevistas de ex-alunos, permite
a possível conclusão preliminar de que existia uma demanda por escolarização, em Rio
Bonito, que extrapolava, inclusive, o período proposto para este trabalho. Portanto, a
ampliação da rede escolar não seria resultado apenas do “querer fazer” do prefeito, mas de um
consenso entre as intenções de segmentos da sociedade e as ambições do político no contexto
da ditadura militar.
35
A ex-aluna Telma Rosa já tinha a formação de professora, pelo Ginásio Manuel Duarte, quando ingressou no
curso de contabilidade do Colégio Municipal de Rio Bonito em 1982.
36
Bidinho é o apelido do prefeito Alcebíades Moraes Filho, da Arena, que antecedeu e sucedeu o prefeito Aires
Abdalla Helayel.
37
A ex-aluna Aládia Duarte iniciou seus estudos no Colégio Rio Bonito como bolsista, recebia um desconto de
50% nas mensalidades do curso de Formação de Professores. Passou para o Colégio Municipal em 1982.
38
Segundo nos informou o Prof. Carlos Alberto de Moura Machado, diretor do Colégio Cenecista Monsenhor
Antonio de Souza Gens (antigo Manuel Duarte) e professor aposentado da rede estadual, “a primeira turma de 5ª
série do Ensino Fundamental da rede estadual de ensino começou a funcionar na Escola Estadual Barão do Rio
Branco em 1976”. O ano é confirmado pelo Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1978, p. 352.
39
Ex-aluno primário do Colégio Estadual Dyrceu Rodrigues da Costa. No ano de 1973 concluiu a 3ª série
primária.
57
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
FONTES PRIMÁRIAS
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de 1979 a 1982.
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Presidência da República Federativa do Brasil. Brasília Senado Federal. Disponível em
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CENSO DEMOGRÁFICO DO IBGE. Anos: 1950, 1960, 1970 e 1980.
Deliberação n° 240/63. Disponível no Arquivo da Câmara Municipal de Rio Bonito.
ENTREVISTA realizada em 02/05/2008 com o Sr. Leir Moraes (Escritor, jornalista e poeta
de Rio Bonito).
ENTREVISTA realizada em 08/05/2008 com o Sr. Aires Abdalla Helayel (ex-prefeito de Rio
Bonito).
Implementação do Colégio Municipal. Disponível na Secretaria do Colégio Municipal Dr.
Astério Alves de Mendonça.
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59
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
O periódico O Industrial e a imprensa do Rio de Janeiro
Jussara França de Azevedo *
Resumo: Com este artigo pretendo explanar sobre o papel do periódico ‘O Industrial’ como
órgão da Associação Industrial do Rio de Janeiro. Apeteço evidenciar a luta junto à esfera
pública, com o fito de serem reconhecidas suas ponderações quanto à indústria e a
necessidade de proteção e, além disso, a sua relação com a imprensa opositora na época.
Empregarei para tanto os artigos compilados no documento “O Trabalho Nacional e seus
Adversários” de 1881, e um artigo do Jornal do Comércio que julgo serem relevante para
formá-la e informar sobre os ideários e objetivos desta entidade e sua posição favorável a
indústria nacional. Na primeira seção debruçará sobre o ‘Industrial’, que constará em elucidar
o objetivo que o órgão tinha de informar e formar a esfera pública sobre a realidade da
indústria no Império. Na segunda seção será desvendado a prélio do periódico quanto a sua
posição e seus opositores.
Palavras- chave: Associação Industrial; periódico.
Abstract: This article intends to explain the role of the newspaper 'O Industrial' as an organ of
the Industrial Association of Rio de Janeiro. We intend to highlight the struggle of this
newspaper in the public sphere for seeing recognized its demands on protection for industry
and also its relations with other newspapers at the time. The study focuses on articles
compiled in the document "The National Labor and its opponents" of 1881, and on an article
of Jornal do Commercio, which are considered relevant to report on the ideals and goals of
Industrial Association and its position in favor of the domestic industry. In the first section it
is presented the research on the 'O Industrial', in order to explain that the Association’s goal
was to inform and to educate the public sphere about the situation of the industry under the
Brazilian Empire.
Keywords: Associação Industrial; newspaper.
Introdução
Este artigo tem o propósito de analisar o papel do periódico O Industrial como órgão
da Associação Industrial do Rio de Janeiro. Apeteço evidenciar a luta junto à esfera pública,
com o fito de serem reconhecidas suas ponderações quanto à indústria e a necessidade de
proteção e, além disso, a sua relação com a imprensa opositora na época. Empregarei para
tanto os artigos compilados no documento O Trabalho Nacional e seus Adversários, de 1881,
e um artigo do Jornal do Commercio, que julgo serem relevantes para formar e informar
sobre os ideários e objetivos desta entidade e sua posição favorável à indústria fabril nacional.
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ).
60
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A primeira parte do artigo tratará da questão da propaganda, e o periódico O Industrial
será nosso objeto, entendendo que foi através deste órgão da Associação Industrial que foi
possível a divulgação da causa da indústria fabril.
Na segunda parte, além da narrativa dos ideários e objetivos da Associação Industrial,
serão expostas as divergências entre os jornais que apoiavam a causa industrialista e seus
opositores Gazeta de Notícias e Rio News, trazendo assim a posição da Associação Industrial
e a sua ação junto à esfera pública com a intenção de ganhar espaço no corpo social e político.
O periódico O Industrial
A diversificação da imprensa nos grandes centros urbanos na década de 1880 era um
marco do período. Ao lado das edições dos jornais diários, proliferaram revistas mundanas,
periódicos críticos e literários e impressos que falavam do mundo do trabalho comum em um
momento de grande movimento político e social (BARBOSA, 2010, p. 118).
No Rio de Janeiro, o movimento de ampliação da imprensa é muito expressivo. No
ano de 1881, tivemos o aparecimento de 95 novos periódicos e, no ano seguinte, mais 64. Até
o final da década esses números permanecem-nos mesmos níveis, e já em 1883 aparecem
mais 56 novos jornais e no ano seguinte mais 37. Em 1888 o número aumentou para mais 45
novos jornais e revistas (FONSECA, 1941, p. 30).
Dentre os objetivos definidos no Estatuto da Associação Industrial do Rio de Janeiro,
como alvo a ser alcançado, destacava-se a confecção de um periódico que seria mensal, com
características próprias, fazer a propaganda para a Associação e a defesa dos interesses da
indústria. Segundo O Industrial:
Com a publicação desta folha, a Associação Industrial procurou os meios mais
eficazes de propaganda e defesa das indústrias e industriais do Brasil, revelando aos
seus concidadãos o adiantamento das primeiras e reclamando dos poderes públicos a
devida proteção aos seus legítimos interesses. 40
O Industrial objetivava discutir todos os assuntos relativos aos interesses da indústria e
para tanto publicou artigos que questionavam a posição do Governo quanto à falta de apoio e
incentivo para a indústria: “Nessa fonte o leitor encontrará minuciosas informações, às vezes
repetidas pela necessidade de controvérsias que são dignas da sua reflexão e apreço antes de
formular um juízo definitivo”.41
40
O Industrial. In: Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 155.Disponível em<: http:
//memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010.
41
Prefácio. O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. XI. Disponível em <: http:
//memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010.
61
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Nas argumentações apresentadas no documento, constam questões como: “O atual
estado da indústria”; “Poderá entre nós vingar a Indústria?”; “Quais os embaraços que
impedem o seu desenvolvimento?”; “Como combater seus obstáculos?”; que são respondidas
com o fim de explicar a “situação da indústria” no Império.
Neste artigo, antes de se referir à pergunta a ser respondida, há a intenção de explanar
as bases para o progresso de qualquer indústria, que seguem: “1º matéria prima abundante e
de preço módico, 2º Perfeição e barateza dos produtos, 3º existência de bons mercados
consumidores”
42
. Sobre a primeira, a Associação Industrial, através de seu periódico,
argumenta:
Não basta, porém, que esta seja abundante, é também preciso que seu custo seja
módico, e para isto convém que esteja, por assim dizer, ás portas das fábricas;
portanto, se, para obtê- la, tiver o fabricante necessidade de fazer grandes despesas,
não poderá, com certeza, introduzir no mercado produtos baratos, ficando destruída
a segunda condição de progresso. Ainda não é tudo: se os produtos não tiverem
também pronta saída, e ficarem acumulados nas fábricas, a conseqüência natural e
inevitável será a falta de meios para continuarem os fabricantes a produção pela
diminuição dos seus capitais.43
A circunstância assim narrada advém da preocupação quanto à venda dos produtos
nacionais e a concorrência de produtos estrangeiros, razão da necessidade de expor a luta que
a indústria jazia no Império, trazendo à esfera pública este tema com a perspectiva de
possibilidade de mudança: “Se, para que a nossa indústria se desenvolva, fosse bastante
somente à existência daquelas condições gerais, diríamos com toda a convicção: Sim, entre
nós a indústria há de progredir.” 44
Outro artigo abordou o subseqüente tópico: “Há embaraços que impeçam o
desenvolvimento da indústria nacional?” Pergunta pertinente quanto se almejava explicar os
pontos de relevância para com a indústria nacional à esfera pública.
Um dos embaraços que mais entorpecem, ou antes, convergem para o aniquilamento
da indústria nacional, são as nossas tarifas aduaneiras que se encarregam de tributar
com direitos calculados sob a mesma razão, tanto algumas matérias primas como os
artefatos com ela fabricados. 45
O periódico O Industrial argumenta como a matéria prima estaria sujeito aos mesmos
impostos, como fora de um artefato já concluído, questionando como uma indústria poderia
42
Tudo tem a sua época. Rio de Janeiro: 1881. p. 1112 .Disponível em <: http: //memoria. nemesis.org. br.>
Acesso em: 20 mai 2010.
43
Idem p.113.
44
Ibidem, p.115.
45
Ibidem, p. 118.
62
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
sobreviver com tão pesado imposto. Em suas indagações, continua em seu artigo a crítica para
com o Governo Imperial.
Mas, que importa aos nossos governos que a indústria desapareça que centenas de
indivíduos, homens, mulheres e crianças, que tiram dela o seu sustento, fiquem sem
pão e procurem na embriagues o esquecimento dos seus sofrimentos, ou na
prostituição e no roubo os meios de satisfazer as mais imperiosas necessidades da
vida, se as nossas alfândegas despejam mensalmente nos cofres do tesouro enormes
somas.46
Outro embaraço para o progresso da indústria seria o calculo dos direitos da
tarifa, feito de maneira a prejudicar a indústria fabril: “Entre nós, a base para o cálculo dos
direitos têm sido promiscuamente os preços do mercado importador do Rio de Janeiro para
uns gêneros, e o do exportador aumentado de todas as despesas para outros.” 47
O último ponto com relação às indagações até aqui expostas pelo periódico O
Industrial seria: Como combater os obstáculos que impedem o desenvolvimento da indústria
nacional? Na análise da Associação Industrial, era através da história de outras nações que, ao
optarem pelo protecionismo, puderam incentivar suas indústrias e assim alcançar um
desenvolvimento mais adequado, para com a competição de produtos estrangeiros em seu
território.
Quando mais atentamente lemos a história da indústria das outras nações, quanto
mais aprofundamos o estudo das causa que lhe deram impulso, mais inabalável se
torna em nosso espírito a intima convicção de que foi á sombra de sistema protetores
que ela se desenvolveu e prosperou 48
Os países que se referem o periódico eram a Inglaterra, a França e os Estados Unidos
da América, que na década de 1880 eram livre-cambistas, mas em sua história tiveram um
passado protecionista e até proibitivo, como fora o caso dos Estados Unidos da América, que
era exemplo para a Associação Industrial. No caso da Inglaterra o periódico alegou que sua
mudança ocorrera mediante a organização e estruturação de suas indústrias para a competição
com as demais nações.
Conforme assegura O Industrial, o obstáculo a ser vencido seria a ideia livre cambista
espalhada pela própria Inglaterra, que iria influenciar e dominar as nações novas. E para se
evitar essas ideais se fazia necessário o entendimento de seu teor e a luta dos industriais pela
proteção do mercado interno do Império. Para tanto o Governo teria que proteger as indústrias
através de uma tarifa que garantiria a sobrevivência da indústria existente e incentivasse as
46
Idem, p. 119.
Ibidem, p. 120.
48
O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 155. Disponível em<: http: //memoria.
nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010.
47
63
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
que iriam florescer. Segundo Marco Morel, em seu livro As Transformações dos Espaços
Públicos (2010):
Quando se fala em educação e imprensa como canais dirigidos aos “Povos”
(tomados aqui como objetos carentes de conhecimento ou entendimento), não é
difícil verificar quem são os educadores e redatores. Os construtores dessa opinião
pública são, em outras palavras, os membros da chamada República da Letras, os
letrados, os esclareci dos (MOREL, 2010, p. 208).
Os industriais utilizaram a imprensa como um meio para abordar o ‘povo’ de uma
forma objetiva, dentro do costume da época, quando eram comuns exemplares de jornais
fixados nas redações e os passantes comentavam em voz alta as últimas notícias (BARBOSA,
2010, p. 118). Artigos do periódico O Industrial também eram publicados em jornais
importantes da Corte, como o Jornal do Commercio. Em 29 de dezembro de 1881 foi
publicado um artigo sobre ‘A Nova Tarifa Alfandegária e a Indústria Nacional, que narra as
dificuldades encontradas pela indústria nacional quando foi anunciada a revisão alfandegária
de 1880, que reverteu os ganhos alcançados com a tarifa de 1879. O mesmo artigo menciona
ainda as consequências que ocorreriam com as fábricas nacionais, afetadas pela a
concorrência estrangeira.
Veio então uma nova tarifa desfechar golpe certeiro nessa indústria facilitando de
um modo inaudito a entrada aos chapéus de lã e lebre fabricados no estrangeiro com
todas as aparências chapéus de lebre pura, e crendo uma insidiosa classe com o
título de chapéus de Braga e semelhantes sob a qual se abriu campo às fraudes e a
mais desleal concorrência a produção nacional. As conseqüências não se fizeram
esperar, muitas de nossas fábricas tiveram de fechar as suas portas e grande cabedal
de fortuna e de energia lá se foi por água abaixo, graças a tarifa. As 15 fábricas da
Corte ficarão reduzidas a 10, e as províncias a 17, sendo RS 4, Santa Catarina 1, 5
na província de São Paulo, 2 em Minas Gerais, 2 na Bahia, 2 em Pernambuco, e 1 no
Paraná.49
A revelação da realidade enfrentada pela indústria fabril tinha como alvo sensibilizar a
esfera pública para as suas necessidades e sinalizar o crescimento e o desenvolvimento da
mesma no Império. Podendo assim, expressar para o Governo as dificuldades encaradas pela
indústria, com a intencionalidade de influenciar os homens da política. A forma encontrada
para esta relação era a imprensa porque alcançava a esfera pública e a política ao mesmo
tempo.
A imprensa opositora da Associação Industrial
Vejamos a relação entre o periódico O Industrial e o Rio News, opositor das idéias
protecionistas ventiladas pela Associação Industrial. Causa admiração na Associação
49
A Nova Tarifa Alfandegária e a Indústria Nacional. O Industrial, 12 de Janeiro de 1882.
64
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Industrial o dito jornal ser contra o protecionismo, entendendo que o seu próprio redator,
sendo americano, tinha conhecimento de que seu próprio país fora protetor em relação as suas
indústrias, em um dado momento de sua história.
O Rio News gemeu sob a impressão desagradável que lhe causou a nossa
propaganda: fez inventario das misérias que vão levar o nosso país ao abismo, e, até
denunciou que as taxas da tarifa de 1879 são protecionistas, ultra protecionista
mesmo! O ilustre colega tudo receia, que o pão encareça, que as vestimentas, as
casas, os confortos da vida, atinjam um preço fabuloso: que a renda do tesouro não
possa mais fazer face às despesas; em fim no tinteiro do jornalista um só desses
argumentos do velho mundo com que costumam aconselhar ás nações novas que se
resignem á sorte de seus colonos...50
Em seguida O Industrial argumenta que a proteção de 30% exercida na tarifa de 1879
não protegeu a indústria nacional como se fazia necessário. E que os Estados Unidos da
América fora proibitivos e não protecionistas, como rezavam as idéias da Associação: “É,
pois, sem fundamento que o Rio News assevera que temos direitos protetores, visto como as
indústrias nacionais têm de lutar com as semelhantes estrangeiras, que são protegidas pela
nossa legislação aduaneira.” 51
Em todo o artigo do Rio News há um confronto de pensamento desse jornal e O
Industrial, que julgo ser necessário apresentar para realçar o entendimento do que a
Associação Industrial divulgava para esfera pública, com a intenção de informar e formar
todos que pudessem ter acesso ao periódico. Como afirma José Murilo de Carvalho (1996, p.
341):
Falar de grupos políticos, projetos e atuações políticas implicam, antes de tudo, em
abordar a imprensa, que era o principal veículo de atuação e propaganda política no
espaço público. Além disso, fornece preciosas informações sobre as atividades das
associações, do Parlamento e das manifestações políticas.
As críticas trocadas por ambas as partes percorrem um longo caminho. Exporei
algumas delas com a intenção de configurar o conflito e demonstrar a luta que a Associação
Industrial travou a fim de serem reconhecidas e ouvidas suas reivindicações.
Órgão do comércio anglo-americano e principalmente interessado na importação de
mercadorias estrangeiras desde as locomotivas Baldwin que não podemos tão cedo
fabricar até os bancos para escola que alguns vereadores da Câmara Municipal
preferem mandar buscar em New York, desde as máquinas da lavoura que tão úteis
nos são até a salsaparrilha de Ayer que já podemos perfeitamente dispensar, graças
ao Sr. Marques de Holanda, o Rio News não pode ser ao mesmo tempo agente
consciencioso das fábricas americanas e inglesas e bom advogado da indústria
brasileira. 52
50
Rio News. O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 55. Disponível em <: http:
//memoria. nemesis.org.br>.
51
Idem, p.58.
52
Ibidem, p.63.
65
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Com a afirmação do periódico o ‘Industrial’, que o Rio News era um órgão associado
ao comércio importador, pode se observar sua ponderação mediante seus interesses em
particular. Segundo O Industrial, “O protecionismo direto só é conveniente quando necessário
para o desenvolvimento industrial: convém a face embrionária da indústria, como uma
circulação planetária.” 53
O periódico prossegue as considerações agora argumentando sobre o valor do
posicionamento de nossa “irmã americana” que, ao proteger sua indústria, pode sair do
controle que a Inglaterra exercia: “Reconhecendo que a proteção foi o estímulo da
organização industrial da poderosa república nossa conterrânea, pergunta o Rio News qual
seria o estado atual daquele país se o regime do livre câmbio houvesse presidido á sua
evolução.” 54
A imprensa constitui neste período um instrumento de articulação política de defesa de
propostas de grupos que pertencem à classe dominante. Poderemos verificar aqui o entrave
entre industriais brasileiros e os importadores e as questões que estão explicitadas no embate
destes grupos, isto é, o sistema protecionista e livre cambista.
A imprensa cria condições necessárias ao desenvolvimento de um campo intelectual,
cujos integrantes vão participar diretamente das instituições e dos grupos que irão
exercer a própria dominação. A vida intelectual passa a ser dominada pela grande
imprensa, que se constitui na principal instância de produção cultural, fornecendo a
maioria das posições intelectuais (BARBOSA, 2010, p. 141).
A Gazeta de Notícias era outro jornal que combatia a proposta protecionista da
Associação Industrial, revelando sua disposição em discutir o assunto pela imprensa. Suas
críticas eram referentes à falta da matéria prima para o desenvolvimento da indústria no
Império. Com isso questionavam a necessidade de se ter uma indústria fabril e sua
compreensão de que a doutrina livre cambista era a mais adequada para as novas nações. Eis
seus argumentos: “A Gazeta diz: que a proteção chegou a tomar as proporções de um delírio,
e sem estudo sem reflexão, todos se pronunciam por suas teorias, quer sejam industriais, quer
sejam consumidores.” 55 Em seguida expõe O Industrial sua luta pela indústria a partir de suas
prerrogativas.
Por outro lado, se o Industrial se apresenta de frente, na luta das idéias propagadoras
do desenvolvimento do trabalho do povo, e nesta gloriosa atitude, ele se mostra
crente, tenaz e perseverante, é porque a convicção do seu apostolado está na altura
53
Ibidem, p.64.
Ibidem, p.68.
55
O Industrial. O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 182. Disponível em<: http:
//memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010.
54
66
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
da raiva dos importadores, receosos de perderem um freguês de ordem superior. É
ele, o industrial, o primeiro que sente os efeitos da concorrência estrangeira, quem
conhece mais a fundo os ardis de que ela se serve para lhe embargar os passos nas
suas primeiras tentativas.56
Confirmando seu pensamento livre cambista a Gazeta de Notícias afirma que a riqueza
de um país está em importar mais do que exportar e menciona o fato do Império não possuir
matéria prima para abastecer suas fábricas. O Industrial faz um questionamento quanto a esta
posição liberal: “A Gazeta é injusta com o país que a sustenta, apesar de suas contradições...
Falta-nos a matéria prima perto de nós? O que é o Ferro? (...) Até o carvão, a Gazeta
desconhece a sua existência neste solo onde tudo há de abundancia.” 57
O Industrial assegura que o que falta a essas matérias primas unicamente é a indústria
que lhes dê o devido valor e utilidade e que há necessidade de quem as explore para o bom
desenvolvimento da indústria no Império e proveito para a população.
Note mais a Gazeta, que a tarifa de 1879, tendo dispensado, por este modo, uma
diminuta proteção a certas indústrias do país, não está, contudo, no caso de dizer-se
protetora, porque, além de outras razões, ela sobrecarrega também as matérias
primas, ou semi-fabricadas de que se servem as nossas indústrias. Entretanto,
onerando mais um pouco o fabricante estrangeiro, de modo que não lhe deixa
margem para tornar-se arbitro absoluto dos preços da indústria nacional, quando lhe
convenha guerreá-la, ou sob o pretexto da menor alteração de cambio, as fábricas do
país podem contar com alguma estabilidade de existência e os consumidores com a
maior justeza de preço. 58
O pensamento da Associação Industrial era moderado quanto à serventia da tarifa de
1879, pois apenas alguns ramos da indústria poderiam se beneficiar, aspirando uma nova
tarifa que viesse a contribuir de uma forma mais adequada a todos os ramos de indústria
existentes no Império.
No artigo VIII, sobre a tese que desvenda as razões da defesa do protecionismo, a
Associação Industrial considera que não tem sido compreendida por seus opositores, Gazeta
de Notícias e Rio News. Em seu entendimento assegura que:
Não queremos, no nosso país, a doutrina do livre câmbio, porque, para admiti-las
seria necessário dar entrada livre aos artefatos estrangeiros, anulando a existência
das alfândegas, de que resultariam dois grandes males, um na época presente, tal
como privar repentinamente o Estado da sua maior renda, e o outro o aniquilamento
da futura prosperidade da nação, que se nos impede pelo desenvolvimento gradual
do trabalho das indústrias reunidas.59
A Associação Industrial fundamenta sua maneira de atuar discutindo as argumentações
da Gazeta de Notícias, que compreendia o protecionismo empregado como: 1º A proteção
56
Idem, p.185.
Idem, p. 186.
58
Idem, p.188.
59
Idem, p.195.
57
67
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
redunda em prejuízo do consumidor, 2º A proteção prejudica o Estado porque dá origem ao
contrabando, 3º A proteção leva os fabricantes à falsificação dos seus produtos. Destacarei as
argumentações dos dois lados, para configurar o debate. Eis o primeiro:
A proteção redunda em prejuízo do consumidor, porque os fabricantes do país,
garantidos pelo Estado, não deixariam de impor e exigir altos preços pelas suas
mercadorias, e o consumidor, para beneficiar a poucos industriais, privava-se do seu
bem estar, criando-se, assim, dificuldades.60
Conforme o periódico, “A proposição seria verdadeira se desse o fato de só existir um
fabricante para o fornecimento da grande massa, que nenhuma concorrência lhe fosse
permitida, resultando em monopólio”. 61 O corretivo para o monopólio seria a concorrência,
porém esta deveria ser leal com níveis de desenvolvimento técnico compatível com os
opositores. Com essa afirmação a Associação pretende demonstrar o entendimento que
possuía sobre a doutrina liberal e seu desígnio de absorver os países novos, tornando-os
dependentes e, portanto submissos aos seus ditames.
Conforme demonstrado na pesquisa, a Associação Industrial do Rio de Janeiro utiliza
a propaganda como um meio para divulgar suas ideias junto à esfera pública e ao governo
Imperial. Ao confrontar-se com aos seus opositores, utiliza esta oportunidade para debater seu
projeto junto à esfera pública, alcançando assim seu objetivo de trazer visibilidade à causa da
indústria fabril no Império.
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61
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69
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Os simplicia do Reino: a lista de medicamentos simples da Farmacopeia Tubalense
Químico-Galênica de 1735
Leonardo Gonçalves Gomes
Resumo: O período conhecido como barroco médico – séculos XVII e parte do XVIII – é
singularmente transformador no que tange a prática fármaco-medicinal lusitana. A escolástica
medieval e a medicina galênica passam a ser cada vez mais criticadas por alguns adeptos as
descobertas europeias no campo da arte curativa. Paralelamente, um número ímpar de livros
voltados ao saber curativo é publicado em todo o Reino português. Uma das obras mais
fascinantes deste processo são as farmacopeias - manuais destinados ao ensino da fabricação e
utilização de medicamentos – que alcançaram grande número de publicação e circulação entre
Portugal e seus domínios. Dentre as farmacopeias portuguesas escritas no período a Tubalense
Químico-Galênica de 1735 é uma das mais reveladoras do que era entendido como prática
“farmacêutica” no Reino Lusitano. Além de apresentar um grande quantitativo de receitas
medicamentosas, este livro descreve uma relação ímpar de simplicia– medicamentos a base de
um único vegetal, animal ou mineral - mais utilizados no período. O estudo desta lista pode
nos fornece um prisma sobre a identidade cultural fármaco medicinal lusitana durante a
primeira metade do período setecentista.
Palavras-Chave: Farmacopéia; medicina; medicamentos.
Abstract: The period known as the medical baroque - part of the seventeenth and eighteenth
centuries - is singularly transformative in the Lusitanian medicine and in the drug
manufacturing practices. Medieval scholasticism and Galenic medicine have become
increasingly criticized by some supporters of the European discoveries in the art of healing.
Meanwhile, numerous books about this subject were published throughout the Portuguese
Kingdom. The most fascinating works were the pharmacopoeias - teaching manuals for the
manufacture and use of drugs - which reached a large number of editions and a wide
circulation in Portugal and its dominions. Among them, the Pharmacopoeia Tubalense,
written in 1735, was one of the most representatives of the healing practices in the Portugal’s
Kingdom. In addition to presenting a large quantity of drug recipes, this book contains a
unique list of the more used medicaments in that period based on a single plant, animal or
mineral. The analysis of this list can give us a perspective on medical and drug practice and
on cultural identity in Portugal during the first half of the eighteenth century.
Keywords: Pharmacopoeia; Medicine; drugs.
O período que se seguiu ao renascimento cultural marcou o mundo europeu com um
desenvolvimento de conhecimentos relacionados à astronomia, a física, a química e as
ciências naturais de forma singular. (DIAS, 2005: Pag. 50). Neste processo, o campo
medicinal sofre diversas transformações, o que veio a mudar significativamente os conceitos e

Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ); bolsista Faperj.
70
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
práticas da arte de curar. Paralelamente a reestruturação e criação de novos conceitos fármaco
medicinais, os séculos XVI e XVII também experimentaram a proliferação de uma
diversidade de novas ervas e drogas de efeito curativo por todo o continente europeu. (DIAS,
2005: 44 e 45). A maioria destas naturas vinha do oriente (árabes, hindus, chineses e outros),
mas algumas eram originárias da África e da América. Além disto, também temos a crescente
utilização de medicamentos químicos na Europa, que a princípio era proibido pela Igreja, pois
o Santo Ofício associava à química a alquimia 62.
Impulsionada pela intensa produção de conhecimentos sobre a prática médicofarmacêutica neste período, a publicação de obras literárias de cunho medicinal sofre um
grande desenvolvimento. Várias farmacopeias - manuais de ensino sobre a prática médicofarmacêutica e da fabricação de drogas e composições medicamentosas, contendo a
sistematização de diversas naturas utilizadas na produção de “remédios” bem como da
finalidade curativa de cada um destes - são produzidas por diversos profissionais e estudiosos
da medicina63. A crescente escrita de obras deste gênero vai influenciar diretamente na
circulação de ervas e drogas medicinais pelo mundo conhecido, além de corroborar para uma
tentativa de padronização e aperfeiçoamento da prática fármaco medicinal.
Seguindo um caminho de aproximações e distanciamentos dos avanços científicos da
modernidade, o Reino português mantém sua terapêutica apegada às tradições da medicina
antiga, mesclada à escolástica medieval. Os efeitos da “efervescência científica” e o abandono
a concepções medievais de cura são questões estudadas em Portugal por um grupo muito
pequeno de profissionais medicinais, já que a maioria defendia veementemente o galenismo.
Tamanha era à força destes conceitos na sociedade portuguesa que os adeptos as novidades da
ciência europeia, em pleno início do século XVIII, eram chamados pejorativamente de
“estrangeirados”. (RIBEIRO, 1997: Pag. 116). O próprio João Curvo Semedo, importante
médico e Familiar do Santo Ofício, na virada do século XVII e início do XVIII, afirmou que
em Portugal os tratamentos curativos resumiam-se a “sangrias, ajudas, ventosas, dieta,
esfregações, água de papoilas, pedra Bazar, catolicão, Diaprunis, xarope Áureo, açúcar
rosado, folhas de Sene e canafístula” e ainda, quando os médicos se alargavam muito, “uma
tisana ou amendoada, umas fontes e uns banhos” (SEMEDO, 1697: Pag. 224). Tal fator não é
62
Os medicamentos químicos começam a serem produzidos a partir dos estudos de Paracelso no século XVI.
Mas, neste primeiro momento, química e alquimia estavam intimamente ligadas. A Igreja sempre condenou a
alquimia como uma prática de bruxaria e por esse motivo os remédios químicos serão vistos com maus olhos
pelos clérigos.
63
Para maiores detalhes sobre as Farmacopeias ver os interessantes estudos sobre o assunto de: GUERRA, F.
Carvalho. ALVES, A. Correia. Breve notícia histórica sobre as Farmacopéias portuguesas até o século XIX. In,
História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. Org. Barbosa & Xavier. Lisboa, Lda-Braga. 1987.
71
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
motivo para afirmamos que no restante da Europa os conceitos curativos galênicos já haviam
sido totalmente superados, mas sim que em Portugal o apego a estes saberes era muito maior.
Apesar de não serem muito adeptos às transformações que estavam ocorrendo no
campo medicinal europeu durante o período denominado por João Rui Pita como barroco
médico64, os portugueses também investiram muito na catalogação de ervas e drogas de uso
medicamento e na publicação de livros fármaco-medicinais que sistematizavam esses “novos”
saberes. Desde a expansão marítima, estudiosos portugueses buscaram o conhecer sobre
ervas, drogas e saberes curativos de diferentes regiões. Sendo os primeiros a realizarem este
trabalho no Oriente, os lusos transmitiram ao mundo europeu, através dos escritos de Garcia
da Orta65, uma infinidade de receitas medicamentos, ervas e minerais que a luz da medicina
galênica em muito enriqueceram a terapêutica ocidental. Durante o barroco médico, é
crescente o número de publicações em Portugal que corroboram para o desenvolvimento e
circulação do saber médico-farmacêutico lusitano. Porém, estas obras, assim como a grande
maioria dos livros deste período, eram escritos em latim, o que, segundo autores do período,
limitava em grande escala o público que se utilizava delas66.
Ao abrir-se o século XVIII, podemos observar uma intensificação do processo de
produção de manuais da prática fármaco-medicinal lusitana. Conhecido como o século das
farmacopeias no Reino, o período setecentista nos trouxe muitos livros deste gênero, todos
eles publicados em língua vernácula (PITA, 2000: Pag. XVII-XVIII). Dentre os agentes que
se propunham a escrever tais obras, podemos destacar aqui os boticários, que segundo a
historiadora Vera Beltrão, eram homens que para curar se “valiam de todos os recursos”,
lançando mão de conhecimentos que vinham de “Mezinheiros aos Pajés, passando por
formulações desenvolvidas pelos jesuítas” (MARQUES, 1999: Pag. 29). Ao falar sobre o
caráter intermediário destes profissionais na sociedade lusitana setecentista, José P. S. Dias
diz que estes eram “simultaneamente mecânicos e distintos da maioria dos mecânicos”
(DIAS, 2007: Pag. 02). Sendo considerados como importantes agentes da prática curativa,
mas sem possuir a formação e o status que era creditado aos médicos, os boticários se
tornaram figuras plurais da medicina portuguesa.
64
Este conceito é cunhado pelo autor em seus estudos sobre a conjuntura sociocultural da farmácia e medicina
portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Para maiores detalhes ver: PITA. João Rui. Historia da Farmácia.
Coimbra, Minerva, 1998.
65
Colóquios dos simples e drogas da Índia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1895.
66
Uma das principais justificativas utilizadas pelos autores de Farmacopeias e Tratados medicinais no século
XVIII que queriam publicar suas obras em língua vernácula é que a maioria dos boticários e praticantes da arte
fármaco curativa no Reino português não sabiam ler em Latim, o que limitava o acesso destes ao conhecimento
mais apurado da arte, por isso cometiam muitos erros e abusos na prática do ofício.
72
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Entre as farmacopeias escritas por um boticário que obtiveram larga expressividade no
Império português, podemos destacar aqui a Farmacopeia Tubalense Químico-Galênica. Seu
autor foi Manoel Rodrigues Coelho, natural da Vila de Setúbal, tendo nascido em 1687. Foi
examinado como boticário em Lisboa no ano de 1707, e aí se estabeleceu com botica na
Correaria, junto ao Convento dos Carmelitas Descalços (DIAS, 2007: Pag. 103). Sua obra foi
originalmente composta e dividida em dois blocos, com publicação em 1735 – sendo esta a
que abordaremos aqui - tendo uma terceira parte sido publicada em 1751.
Na primeira parte o autor trata, em 29 capítulos, das questões teóricas da medicina
portuguesa, explicando o que era medicina e farmácia, ensinando a preparar os medicamentos
galênicos e químicos mais utilizados em Portugal. Também apresenta um dicionário de
termos medicinais do período, uma monografia sobre pesos e medidas, além de dedicar os
capítulos XXVI, XXVII e XXVIII para descrever a origem geográfica e formas de reconhecer
os diversos simples ou simplicias da natureza67. Ao falar de cada um desses simples, o autor
segue a seguinte estrutura: apresentação em ordem alfabética, descrição da forma de se
reconhecê-los na natureza, origem geográfica, qual o melhor tipo (cor, tamanho, sabor, cheiro,
etc.) a ser escolhido para a medicina, as propriedades curativas, o peso e a medida a ser usada
junto a outros simples e, em alguns casos, o livro e o autor de onde ele retirou estas
informações. (COELHO, 1735: I PARTE).
Na segunda parte o autor trata do que ele denomina de “seletas” composições
medicamentosas e apresenta uma descrição dos pesos e medidas mais usuais no Império
Português. Nesta parte, a obra descreve 961 medicamentos de origem química ou galênica,
em cinquenta e seis capítulos. Em cada uma destas fórmulas é apresentado o autor da mesma,
sendo estes, estudiosos de diversas épocas. (DIAS, 2007: Pag. 109). Assim, temos uma
continuidade do ensino da técnica farmacêutica que o autor almejava de seus futuros leitores
junto a uma demonstração de experiências pessoais no que ele denomina de “receitas seletas”,
em um processo de permanências e rupturas de conceitos e práticas curativas.
Na tentativa de tornar os profissionais medicinais do Reino, principalmente os
boticários, grandes conhecedores drogas curativas, Coelho vai reunir uma grande lista de
simplicia, a começar pelos animais, no capitulo XXVI de seu livro. Apesar de a flora de
diversas partes do mundo ser a principal fonte de produtos medicamentosos, muitas receitas e
drogas medicinais eram feitas utilizando partes de animais. Os boticários se valiam de animais
67
Simples ou simplicia é o termo utilizado no período para designar os medicamentos galênicos produzidos,
teoricamente, a base de um único elemento da natureza. Para maiores esclarecimentos ver: ANTONIO, Caetano
de Santo. Pharmacopea Lusitana. 1704. Edição Fac-similada. Org. e nota introdutória João Rui Pita. Coimbra.
Minerva. 2000. Cap. I.
73
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
das mais variadas geografias e territórios (Índias orientais e ocidentais, China, Japão, África,
Peru, México, Brasil, Grécia, Espanha, Portugal, etc.). (COELHO, 1735: Cap. XXVI).
Além de descrever a origem da maioria dos 51 “produtos” curativos a base de animais,
Manoel Rodrigues Coelho afirma que 03 itens da lista eram comercializados pelos
holandeses, 01 pelos venezianos, 01 pelos portugueses e 01, o unicórnio marino, “era
produzido em tão larga escala que, na época em que a obra foi escrita, este produto valia a
milésima parte do seu valor no passado”. (COELHO, 1735: Pág. 179-180).
No capítulo XXVII da Farmacopeia Tubalense são descritos os vegetais. Estes, como
já foi dito acima, eram os produtos mais utilizados na fabricação de medicamentos no Reino
português. Desde a antiguidade, ervas,
frutos, raízes, plantas, etc., permeavam
expressivamente a farmácia galênica e, ao longo do desenvolvimento da medicina na história,
o número de drogas deste gênero só veio a crescer, com grande destaque para as oriundas das
Índias Orientais. Apenas no Tratado XXVII do seu livro, Manoel Rodrigues Coelho apresenta
205 vegetais de uso medicamentoso, sendo 83 do Oriente e 32 do Brasil. (COELHO, 1735:
Cap. XXVII). Mas, assim como no caso dos animais, muitas outras territorialidades de todos
os continentes conhecidos aparecem como fornecedores de sua flora curativa. No caso da
América é expressiva para o período a participação do Brasil, já que é consenso nas pesquisas
sobre esta temática que é somente em fins do século XVIII que a colônia portuguesa na
América vai alcançar maior presença na farmácia lusitana.
Somente com os dados acima citados, podemos observar que a grande fonte primária
dos medicamentos portugueses era os vegetais. Russel-Wood ao falar sobre a circulação das
especiarias e ervas para uso curativo no Império português afirma que entre as que eram
comercializadas no Reino estavam: pimenta, gengibre, maná, ruibarbo, cravo da índia, canela,
âmbar, tamarindos, cevada, trigo, mel, etc. (RUSSEL-WOOD, 1992: Pag. 195-198). Outro
expoente sobre estes estudos, o historiador Charles Boxer, diz que desde o século XVI,
Portugal já era uma grande “plataforma de distribuição de especiarias que abasteciam diversos
mercados europeus e no atlântico” (BOXER, 2001: Pag. 70). Em meio a esta circulação
comercial, era grande a presença de simples curativos que enchiam os estoques de boticas
espalhadas por todo o Reino e a inserção do Brasil neste contexto só veio a ampliar e
fortalecer o comércio medicamentoso português.
No capítulo XXVIII, Manoel Rodrigues Coelho vai trabalhar com os minerais e seus
usos curativos. O autor descreve 60 simples onde, dentre estes encontramos: 6 sais, 4 a base
de chumbo, 2 a base de mercúrio, 3 a base de algum tipo de terra, 3 feitos a partir do cobre, 2
fabricados a partir do ferro, 3 oriundos do arsênico e 5 pedras preciosas. De todos os itens
74
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
listados por Coelho, 5 o autor afirma que recebem influência de algum astro celeste e 2
recebem como uma das nomenclaturas o nome de algum corpo celestial, o que indica que
estes também eram influenciados medicinalmente por estes elementos do céu. (COELHO,
1735: Cap. XXVIII).
Muito apreciados pela química, mas também utilizados em larga escala pelos
galênicos, os minerais eram parte essencial de qualquer botica ou loja de droguista do Reino
português. Assim como nos casos dos animais e vegetais, os simples a base de elementos do
mundo mineral carregavam uma gama de saberes, crendices e até superstições da cultura
letrada e popular, misturados aos usos e práticas da farmácia química. Dos itens citados
acima, 5 são pedras preciosas. A crença no poder curativo dos pós destas joias era muito
corrente em Portugal e em outros Reinos europeus68. Sendo compartilha na quase totalidade
por nobres e a alta burguesia, pois era caríssimo este tipo de medicamento, esta crendice será
praticada por todo o século XVIII. Para, além disso, ainda existia a crença na astrologia e no
poder curativo e/ou influenciador dos astros celestes (planetas, cometas, estrelas, etc.), que foi
muito mais aceita na Idade Média e nos primeiros momentos da modernidade, mas que
durante o período setecentista “continuava a fornecer explicações para os mais diversos
fenômenos da natureza”. (ABREU, 2006: Pag. 82).
A lista de minerais da Farmacopeia Tubalense, além de nos descrever a riqueza
cultural da estrutura medicinal lusitana, também nos apresenta a circularidade comercial
existente em torno destes produtos curativos. Dos 60 minerais citados por Rodrigues Coelho,
apenas em 2 casos não é apresentada a origem geográfica do simples, e 14 são descritos como
produzidos e comercializados internamente no Reino português ou com outras regiões do
mundo. (COELHO, 1735: Cap. XXVIII). Tais dados corroboram na afirmação já dita aqui de
que existia uma grande circulação comercial de drogas medicamentosas, simples e compostas,
entre Portugal, seus domínios ultramarinos e diversas outras partes do mundo setecentista.
Para além da circulação destas drogas medicinais, a Farmacopeia Tubalense nos traz
um prisma sobre os saberes curativos que envolviam os medicamentos que circulavam no
Reino. Tendo como coluna mestra a teoria dos humores69, as drogas medicamentosas eram
68
Para maiores detalhes sobre esta prática, ver o interessante estudo de: CARNEIRO, Henrique. Filtros,
mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994.
69
Teoria desenvolvida por Hipócrates e Galeno que pregava que o homem era interiormente dividido por quatro
humores: a Bílis negra, a Bílis amarela, o Sangue e a Fleuma ou Linfa. A Bílis negra procedia do baço, a Bílis
amarela procedia do fígado, o Sangue do coração e a Fleuma do cérebro. Cada um destes humores e região de
origem possuía uma qualidade, sendo a Bílis negra fria e seca, a Bílis amarela quente e seca, o Sangue quente e
úmido e a Fleuma fria e úmida. Conforme o desenvolvimento destes humores, um deles acabava se destacando
no corpo vindo, a formar o tipo fisiológico do indivíduo, que poderia ser: melancólico, colérico, sanguíneo e
fleumático. Para maiores detalhes ver: DIAS, José Pedro Souza. A Farmácia e a História: Uma introdução à
75
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
produzidas a partir do prisma de que deviam combater o humor em excesso no corpo, pois só
assim curariam o enfermo. Termos como anódino, resolutivo, defecante, sudorífero e outros
mais70, próprios da terapêutica humoral, estão presentes em todos os comentários que
Rodrigues faz dos simples que relaciona em sua obra. Homem de seu tempo, este acreditava
que as doenças eram originárias do desequilíbrio dos humores, que poderia ocorrer devido a
influências naturais e sobrenaturais. Por isso, o medicamento utilizado devia ter poder
contrário ao temperamento e estado do humor a se combater. Ou seja, se um determinado
humor for frio, a receita medicamentosa deveria ser de natureza quente para que a harmonia
do corpo fosse restabelecida e a doença expurgada.
Ao longo da construção e enriquecimento da terapêutica galênica, alguns simples um
tanto “exóticos” foram incorporados. Na lista de simplicius da farmacopeia Tubalense
encontramos: chifres, testículos, partes do estômago, urina, dentes, ossos, minerais com
“influência” dos astros, pó de pedras preciosas e até excremento humano e animal como
poderoso remédio contra os males do corpo. Mas, um dos medicamentos mais “estranhos”,
aos nossos olhos, da lista já citada, é o pó de múmia, indicado por Galeno na Grécia Antiga.
(COELHO, 1735: Cap. XXVI e XXVIII).
O corpo humano era considerado pela Igreja como algo sagrado. O uso de partes deste
como uma droga com poder curativo era associado, em diversos casos, à feitiçaria e
curandeirismo indígena e africano, ambos condenados pela Santa Inquisição 71. Deste modo, a
indicação de um corpo humano não cristão e africano em um livro medicinal aprovado pelo
Santo Ofício, é uma das muitas “singularidades” presentes na medicina setecentista. O autor
ainda acrescenta que as melhores múmias eram os “corpos violentamente mortos, e não por
enfermidades. Resplandecentes e negras” (COELHO, 1735: Pag. 170). Tal afirmação nos
mostra o quanto que superstições e crendices populares se mesclavam a conhecimento
médico-farmacêutico erudito português e europeu desde os primórdios da história.
Outra manifestação do hibridismo cultural medicinal lusitano, presente na lista de
simples curativos de Rodrigues Coelho, são os amuletos protetores. Dos simples de animais
citados pelo autor, 4 são apontados como amuletos. O sentimento de insegurança tanto física
como espiritual gerava uma necessidade generalizada de proteção de diversos males físicos,
História
da
Farmácia,
da
Farmacologia
e
da
Terapêutica.
Disponível
em:
http://www.ff.ul.pt/paginas/jpsdias/histsocfarm/Farmacia-e-Historia.pdf.
70
Dicionários de termos medicinais, farmacêuticos e diversos nomes de medicamentos simples e compostos do
século XVIII produzido por Manoel Rodrigues Coelho na primeira parte da Farmacopeia Tubalense.
71
Laura de Mello e Souza apresenta vários trabalhos que descrevem a mescla de práticas mágico-religiosas,
feitiçarias e bruxarias na sociedade Luso-brasileira setecentista. Estas eram utilizadas para proteção, busca de
favor, curas, etc. para maiores detalhes ver: SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz.
Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1986.
76
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
sociais e espirituais. Segundo Daniela Calainho, o costume do uso de amuletos em Portugal
foi corrente às primeiras décadas do século XVIII, envolvendo não apenas escravos, mas
também homens brancos (CALAINHO, 2008: Pag.109-112). Feitas de couro, veludo, chita ou
seda, as bolsas de Mandinga, maneira como muitos desses amuletos eram conhecidos,
continham ingredientes variados, como ossos de defuntos, desenhos, orações católicas
impressas, sementes, dentre outros apetrechos, mesclando diversas tradições culturais. Como
o Reino não possuía profissionais medicinais suficientes para atender a população, “era
comum à recorrência aos atos mágicos” em busca de cura. (RIBEIRO, 1997: Pág. 97).
Toda esta miscelânea cultural ainda era marcada pela presença da Santa Inquisição,
que era terminantemente contrária à utilização de magia e coisas do gênero na prática
curativa, quando estas eram utilizadas por indivíduos “suspeitos” (índios, escravos, mouros,
judeus, etc.). Pessoas pertencentes a culturas indígenas ou africanas, que utilizassem receitas
medicamentosas de origem duvidosa provavelmente seriam presos pelo Santo Ofício. Mas, se
tratando de um boticário de Lisboa, licenciado, tal condenação seria rara. Ou seja, uma das
instituições religiosas que teoricamente era a mais contrária ao uso de produtos que ferissem
os bons costumes, foi também grande influenciadora na mistura de conhecimentos letrados e
saberes populares, configurando o que Ginzburg chamou de “circularidade cultural”
72
. Deste
modo, como bem afirmou Keith Thomas, “era a presença ou a ausência da Igreja que
determinava a propriedade de qualquer ação” (THOMAS, 1991: Pag. 53).
Após analisarmos a lista de simples curativos de origem animal, vegetal e mineral da
Farmacopeia Tubalense Químico-galênica, podemos concluir que durante o período
setecentista existia no Império Lusitano uma forte circulação de drogas e saberes curativos
que mesclavam conhecimentos de várias partes do Reino, oriundos de práticas populares e
fontes eruditas. Tendo como premissa a terapêutica galênica, que possuía brechas para a
presença de elementos mágico-religiosos, superstições e crendices populares, estes
medicamentos misturavam culturas curativas da Europa, Ásia, África e América. A
publicação de farmacopeias e tratados medicinais só veio a ampliar a circulação desses
saberes e remédios pelo Reino, angariando riquezas para mercadores, boticários e droguistas.
Podemos também perceber na Farmacopeia Tubalense que, apesar de o Oriente/Ásia
ser a grande fonte portuguesa de simples e drogas medicinais, seguida pela África; a América
portuguesa já começa a galgar importante espaço na terapêutica reinol com seus produtos de
72
Para um maior entendimento sobre este conceito desenvolvido por Ginzburg, ver o interessante trabalho:
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
77
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
efeito curativo. Com a crescente decadência do domínio português nas Índias orientais, o
Brasil vai atrair cada vez mais os olhos das autoridades reinóis, transformando não somente a
questões ligadas a administração política, mas também a própria dinâmica da farmácia
portuguesa.
Outro aspecto de do livro farmacêutico do boticário Manoel Rodrigues Coelho é a
tentativa de construção de um padrão/modelo da produção e utilização de medicamentos.
Analisando a estrutura e as informações da farmacopeia Tubalense, podemos perceber o
desejo do autor em sintetizar e organizar os conhecimentos antigos e modernos da arte
fármaco-medicinal, estabelecendo assim um conjunto de regras e normatizações a serem
seguidas pelos boticários. Por esta razão, acreditamos que a lista dos simples indicados por
Manoel Rodrigues Coelho, para além de demonstrar a existência da circulação de produtos
medicamentosos no Império Lusitano, ela também nos fornece um prisma sobre rupturas e
permanências do conhecimento médico curativo praticado no início do século XVIII em
Portugal.
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79
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Memória das jornadas dos Santos Reis:
Em busca de um viés para a compreensão das representações e apropriações contidas
nas profecias do mestre Fumaça
Luiz Gustavo Mendel Souza
Resumo: O objetivo deste artigo é a busca por um viés que nos possibilite a análise da cultura
popular que não se esgote em apenas um modelo dicotômico entre sagrado e profano ou entre
erudito e popular. Com base nas categorias de análise de Roger Chartier (representação e
apropriação), compreender as Folias de Reis como uma manifestação cultural não isenta de
conflitos na produção de seus discursos, ritos e memórias. E, a partir dos estudos das
memórias do mestre Fumaça, entender estes folguedos como práticas que se formulam e
reformulam relacionando o pedagógico e performático dentro das Folias de Reis. Perceber a
complexidade da cultura como prática ritual nos faz abrir os olhos e retomarmos antigas
problemáticas que são relevantes no estudo do popular. Estas práticas se mostram relevantes
no momento que não se encerram em si mesmas, mas repercutem no meio social, criam laços
de identidade, modificam a realidade social. Estes estudos se encontram nas memórias de um
mestre da Folia de Reis Nova Flor do Oriente em São Gonçalo na segunda metade do século
XX.
Palavras-chave: Folias de Reis; discursos; representações.
Abstract: The aim of this paper is to search for a path that allows the analysis of the popular
culture which is not limited by a dichotomist model between sacred and profane or between
classical and popular. Based on categories of analysis from Chartier (representation and
appropriation), we take the Folias de Reis as cultural events that are not free from conflict in
the production of its discourses, rituals and memories. From studies of memories of the
Mestre Fumaça, we intend to analyze these amusements as practices that create and recreate
themselves in relation to the pedagogical and performing dimensions within the Folias de
Reis, as well as to apprehend the complexity of culture as a ritual practice that makes us open
our eyes and resume old issues that are relevant to the study of popular. These practices are
relevant because they are not closed in themselves as they have repercussions in social
environment, they create bonds of identity and change social reality. This study focuses on
memoirs of a master of the Folia de Reis Nova Flor do Oriente in São Gonçalo, Rio de
Janeiro, in the second half of the twentieth century.
Keywords: Folias de Reis; discourse; representation.
“Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?” disse
Alice.
“Isso depende muito de onde você quer chegar”, respondeu o gato.
Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas.
O tópico começa com este singelo diálogo entre a Alice e o gato, mas que pode se
tornar uma abordagem filosófica se tratando de cultura popular. Pois será estabelecendo
primeiramente a nossa finalidade que poderemos escolher o caminho que devemos seguir,

Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista da CAPES.
80
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
principalmente em relação ao nosso objeto de estudo: a Folia de Reis do mestre Antônio José
da Silva, o mestre Fumaça. Pois para que possamos traçar a nossa rota de pesquisa,
primeiramente precisamos saber exatamente onde queremos chegar.
Ao nos referirmos à Folia de Reis como cultura popular, podemos começar com uma
citação de Roger Chartier: “A cultura popular é uma categoria erudita” (CHARTIER, 1995, p.
179), ou seja, nessa pequena referência já podemos encontrar uma grande armadilha dos
estudos sobre o popular, que resume este à apenas uma categoria do erudito. Enfatizar nesta
característica mostra pelo menos dois caminhos que podem ser seguidos: o do delimitado
(cultura popular) e o do delimitador (o erudito), trazendo a complexidade da abordagem do
tema.
Se nos enveredarmos pelo caminho do delimitador, ou seja, pela classe dominante, nos
colocaremos na posição de compreender o valor destas tradições populares que escapam
àqueles que as possuem (ORTIZ, 1985, p.27). Isso seria nos posicionar como um antiquário
ou um folclorista, que limita o folclore a uma mera sobrevivência, ofuscando a possibilidade
de trabalhar as folias sob um aspecto de um texto ritual inserido em um contexto social
(THOMPSON, 2001, p. 238).
Este tema se mostra muito intrincado, pois desde o início da formulação do termo
folclore existem embates sobre sua legitimidade. O termo foi cunhado pelo inglês William
John Thoms (1846) em um de seus artigos para uma revista referindo-se aos costumes e
literaturas populares como um saber popular (Folk: povo; Lore: saber) e a forma de coletar,
recolher e registrar os contos. Esses estudos nascem através destas coletas passando por vários
períodos, desde os antiquários, perpassando por um investimento por parte dos românticos
como oposição ao universalismo iluminista, através do historicismo do particular, o gosto
pelo bizarro e pelo exotismo, sempre enfatizando as particularidades (ORTIZ, 1985). Será a
partir da segunda metade do século XIX que os estudiosos da cultura popular vão se
denominar de folcloristas, com a criação da disciplina Folclore embebida dos pensamentos
das Ciências Sociais desse período, como exemplo o positivismo e a publicação do livro de
Darwin, Origem das Espécies. Porém, sem os aparatos teóricos para trabalharem o método
folclórico, essa disciplina acaba por encontrar vários obstáculos, como o fato de não haver
delimitação entre objeto e disciplina, ou se restringir apenas no ato da coleta, tratando
tradições populares como caráter científico, esvaziando-se de sentido. Terminando por cair no
desuso: “Uma vez definido o campo epistemológico e as instituições legítimas nas Ciências
Sociais, fica difícil para os folcloristas encontrarem espaço para o seu objeto de estudo”
(ORTIZ, 1985, p. 45).
81
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
No Brasil este tema já foi palco de debates acirrados sobre o objeto folclore, travados
entre os anos 50 e 60 para a comprovação da cientificidade do folclore como matéria
acadêmica. Encontramos uma síntese destes conflitos entre os folcloristas e os cientistas
sociais no artigo de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Luís Rodolfo da Paixão
Vilhena (VILHENA e CAVALCANTI, 1990, p. 75- 92). Dentro deste quadro complexo uma
figura de destaque travará diálogos contra essa pretensão científica requisitada pelos
folcloristas, seria o sociólogo Florestan Fernandes. Em seus artigos, não combatia o folclore
nem os folcloristas, mas: “uma certa concepção que tomava a prática do folclore como
‘científica’” (Idem, p.82.). A base destes embates entre Florestan e os folcloristas estava na
forma particular de estudar o objeto e não o folclore em si.
Luís Rodolfo da Paixão Vilhena vai abordar as tentativas fracassadas da via de
institucionalização do folclore pelos folcloristas brasileiros, mostrando que: “... a inexistência
de uma estrutura institucional que garantisse uma relativa autonomia em relação ao plano
político contribuiu para a ‘marginalização’ dos estudos de folclore” (VILHENA, 1997, p. 63).
E como esta institucionalização é possivelmente o elo que produz a medição entre o
intelectual e a sociedade inclusiva, a falta dele se mostra como um grande fator para os
estudos deste tema se tornar objetos periféricos das ciências sociais.
Com a exposição acima podemos compreender a complexidade deste caminho e os
motivos óbvios para não tomá-lo como rota para este artigo. Vemos que, desde sua criação, o
folclore se tornou um lugar de conflitos para inseri-lo nas instituições, mas nem mesmo em
seu auge este tema conseguiu embasamento teórico metodológico para ser alicerçado como
matéria acadêmica. Deixando o seu lugar social longe das instituições, e é importante ressaltar
que para Michel de Certeau: “A instituição não dá apenas uma estabilidade social a uma
‘doutrina’. Ela a torna possível e a determina” (CERTEAU, 2007, p.70).
Voltando a questão das coletas, registros e preservação destes saberes populares, é
importante ressaltar que muitos destes estudos folclóricos foram na realidade coletados e
classificados pela base elitista da cultura. Um trabalho que vai dar um panorama sobre essa
questão é o de Jacques Revel junto a Michel de Certeau e Dominique Julia: A beleza do
morto: o conceito de “cultura popular”. Nesta obra vemos que o investimento na
preservação, por parte dos antiquários e folcloristas, era uma forma de compensar o viés de
extinção das tradições populares. Na realidade todo esse esforço para conservação do folclore
mostraria o outro caráter em jogo, o da censura. O olhar voltado para os campos e para a
pureza do popular era, na realidade, um subterfúgio para desviar a atenção do perigo que as
elites enfrentavam nas cidades: as classes trabalhadoras, que estavam se articulando para
82
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
poderem lutar por melhorias no ambiente de trabalho e por uma sociedade mais igualitária.
Outro fator foi o investimento, na primeira metade do século XX, dos regimes populistas
nesse caráter rústico do popular que fez com que os estudos sobre folclore caíssem em
descrédito por parte dos pesquisadores.
Espontâneo, ingênuo, o povo é, uma vez mais, a criança. Já não aquela criança
vagamente ameaçadora e violenta que se quis mutilar: o filho pródigo regressa de
longe e reveste-se dos atrativos do exotismo (REVEL, 1989, p.59).
Podemos iluminar nosso caminho com através de uma análise que nos direcione para o
viés do delimitado, do praticante de cultura popular. Para que possamos prosseguir por esse
caminho, já temos em mente os perigos e ciladas que nos esperam, e podemos perceber que
sob uma nova perspectiva compreenderemos o popular através de seus não-ditos, das
construções de seus discursos (CERTEAU, 2007). Mas esta perspectiva só será validada no
momento que interagirmos com as demais ciências humanas, como a sociologia e a
antropologia (CHARTIER, 1990).
A proposta deste artigo é entender as Folias de Reis, como um texto, como uma fonte.
Este será o nosso objeto de pesquisa, um passo que poderá abrir um caminho para a
compreensão das funções históricas que estão presentes nas realizações destas manifestações
culturais. Refiro-me a estas ações culturais como funções históricas, pois elas se constroem de
acordo com uma estrutura que tem como consequência a criação da consciência histórica do
grupo (RÜSSEN, 2007). Esta estrutura gera, e é gerada, por uma prática cultural que se pauta
em uma finalidade pedagógica, mostrando uma das faces da cultura popular: sua prática. Tais
práticas se desenvolvem de acordo com sua capacidade de fazer o integrante sentir
pertencente ao grupo, se retomássemos o estudo de Durkheim: Formas Elementares da Vida
Religiosa, poderíamos validar o caráter gerador de emoções que há dentro da prática religiosa,
como a crença e a ação. Certamente não resumiríamos esta prática a um simples fruto da
reprodução da sociedade, pois dentro dela existiriam outras características das práticas
culturais religiosas como a devoção, o lúdico, o divertido, o transgressor.
No caminho da metodologia
Neste trabalho, vamos nos guiar pelas narrativas do mestre da bandeira Nova Flor do
Oriente de São Gonçalo, fundada no ano de 1977, pelo mestre Antônio José da Silva: o mestre
Fumaça73. Nesta entrevista concedida pelo mestre temos os relatos sobre o seu conhecimento
das profecias calcadas no fundamento das Folias de Reis. Uma análise mais apurada de sua
73
Pelo fato do mestre gostar de ser chamado por esta alcunha, nos referiremos a ele por mestre Fumaça.
83
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
tradição oral nos faz perceber que esta se constrói através de uma estrutura narrativa que
muito se assemelha a estrutura de uma narrativa histórica e suas funções 74.
Primeiramente vamos definir e diferenciar o fundamento e a profecia. O fundamento
seria segundo Daniel Bitter:
O fundamento, por sua vez, constitui uma base permanente, percebida como
imutável, permitindo que seja materializado de diversas maneiras, em diversos
tempos e espaços. Sua difusão e transmissão entre os homens se dá por meio das
palavras, dos gestos, dos cantos, da música etc.” (BITTER, 2010,p. 154).
Este autor está se referindo diretamente ao fundamento contido na materialidade dos
objetos rituais contidos na Folia de Reis, pois essa seria a sua preocupação na produção do seu
livro. Mas é importante ressaltar as demais extensões do fundamento, pois nela que
poderemos validar esta pesquisa.
Esse caráter imutável do fundamento, como tradição oral, permite que seja difundido e
transmitido oralmente entre os homens. Isto nos permite trabalhamos esta como uma narrativa
e suas estruturas. O exemplo da história dos reis magos tem sua descrição na bíblia e no
Offictium Steallae: seu início no anúncio aos Reis, a viagem seguindo a estrela, o encontro
com Herodes, a adoração ao menino, a entrega dos presentes, o sonho revelador e a volta por
outro caminho, a narrativa histórica das profecias do mestre Fumaça também segue esta
cronologia (RIOS, 2006, p. 65-76). Uma pequena citação trecho das profecias do mestre
Fumaça mostra que ele estabelece esta mesma ordem cronológica:
Ai nesse intermédio que o menino nasceu, o anjo caminhou pra...que o anjo
caminhou pra Belém, pra avisar os pastor que esperava a tempo, que os pastor
seguia, orava e pedia a Deus para quando o messias nascer eles queriam ver.
(...)
Ai agente vamos voltar... daí pra frente que vem a tradição dos magos. Que o anjo
desceu aos pastor de Belém, adorando o menino, tratando visitando, foi avisar os
magos lá no Oriente nas terra do Oriente. Ai já era coisa longe! Pra você ver, era tão
perto que eles fizeram em doze dias, andaram por doze dias, fizeram montados em
camelos (...)
(...)
Ai eles arriaram os camelos preparam. Eu sei que eles andaram noite e dia, ai quer
dizer vamos supor assim, andaram as partes da Judéia, andaram as partes da Judéia
até chegar em Jerusalém, na casa dos reis Herodes.
(...)
E eles foram e seguiram foram lá fizeram a adoração, adoram o menino, voltaram ai
na volta o num caminho diferente.
Além desta estrutura narrativa podemos ver nela os quatro eixos constituintes do
sentido narrativo que são: percepção, a interpretação, a orientação e a motivação (LUCCINI,
74
Esta seria uma categoria de Jörn Rüssen para estudar as funções da história na prática de construção e reconstrução de identidades. As outras categorias seriam consciência histórica, formação histórica e a própria
narrativa histórica. RÜSSEN, 2007, p. 85-133.
84
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
2007, p.19-71). Será com a articulação desses quatro eixos que possibilitaria a constituição do
sentido narrativo, e com as três condições que necessitam estar na narrativa histórica: a
estrutura de uma história, a experiência do passado e a orientação da vida prática. Estas
características nos ajudam a refletir sobre as relações que os foliões têm consigo mesmos e
com o mundo. Sem mencionar como esta relação pode ser pensada na perspectiva do tempo.
O eixo da motivação, que se entrelaça ao eixo da orientação para a vida prática,
também pode ser encontrado com facilidade na narração do mestre Fumaça, pois, além do
cunho religioso, esse folguedo teria sua origem mítica na missão entregue aos reis magos
pelos anjos e que seria passada destes para os foliões, mas este será um assunto abordado mais
a frente:
Nós temos responsabilidade com o nome de Deus, o nome dos magos né, que nós
rezamos para os três reis magos em nome de Jesus, que aquilo dali foi a visita de
Jesus quando nasceu, quando veio ao mundo determinou, mandou o profeta
Jeremias anunciar que seu filho vinha ao mundo para ensinar o povo o caminho da
salvação.
Estas funções da narrativa do mestre que podem ser analisadas pelos aparatos teóricometodológicos de Jörn Rüssen são utilizadas aqui para nos aproximarmos das apropriações
deste mestre. Estas apropriações estariam ligadas aos ensinamentos da tradição oral ensinada
pelos mestres de Folias de Reis transmitida para os foliões nas festas de arremate 75 e nos
giros76. Estas apropriações nos revelam o caráter pedagógico destas tradições orais.
A diferença entre o fundamento e as profecias seria que esta segunda não se enquadra
em uma estrutura narrativa imutável. As profecias são formas de cantos ou formas de narrar
os trechos do fundamento que, dependendo de cada mestre, concentram ênfases em
determinadas partes do mito. Segundo Deuzimar Coutinho as profecias seriam:
Cânticos entoados pelos integrantes dos grupos de Folias de Reis diante de
presépios, oratórios, estampas ou imagens de santos; Os textos, geralmente em
quadras, costumam ser tradicionais ou de autoria do próprio mestre e inspirados em
histórias bíblicas do Antigo e do Novo Testamento. Alguns mestres costumam valerse de obras literárias relacionadas às figuras sagradas (COUTINHO, 2009, p.22).
75
O ‘Remate’ ou ‘Arremate’ encerra solenemente o ciclo anual de apresentações. Em dia escolhido, de comum
acordo nos diversos grupos, há festa de comida farta, muita bebida e muitos convidados, entre parentes, amigos e
outras Folias, que comparecem uniformizadas. Como de decorrência desta festividade, as apresentações dos
grupos de Folia de Reis fluminenses acabam por estender-se por todo ano, extrapolando assim os limites do ciclo
natalino.
76
Jornadas ou ‘giros’ as Folias de Reis percorrem cidades, vilas e povoados visitando casas, a convite, onde
cantam as “profecias” em frente a presépios, oratórios ou imagens de santos. O ciclo s apresentação desses
grupos começa à meia-noite do dia 24 de dezembro e vai até o dia 6 de janeiro, quando são louvados os Reis
Magos.
85
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Dentro desse fator diferencial que vamos buscar o sujeito da narrativa. Pois, partindo
do princípio que mapearemos a narrativa do mito através das formas estruturais que Rüssen
propõem (estudar uma narrativa histórica e suas funções), encontraremos nas profecias as
construções do discurso através das ênfases dadas em determinadas trechos do fundamento.
Nestas ênfases estariam as representações dos mestres que também denotam suas
apropriações do mito. As apropriações são percebidas no momento em que são colocadas em
prática: “A noção de apropriação pode ser, desde logo, reformulada e recolocada no centro de
uma abordagem de história cultural que se prende com práticas diferenciadas, com utilizações
contrastadas” (CHARTIER, 1990, p. 26).
As representações estariam permeadas de termos que denotariam o caráter lúdico
presente nos santos deste folguedo religioso, sem estabelecer fronteiras entre o sagrado e o
profano, ou então o erudito e o popular. Dentro das profecias do mestre Fumaça não vemos
estas distinções entre os santos mitológicos, ascetas de caráter inalcançável, pelo contrário, o
que encontramos são santos foliões que para se aproximar dos moradores e pedir informação
eles teriam táticas bem populares:
Mas quando eles (os três Reis Magos) saiam para a viagem, ai eu vou... mas ai falou
assim:
-Quem que vai dar sinal de quando chegarmos na cidade de nos reconhecer?
Ai disse Baltazar:
-Eu tenho aqui uma caixa, um triângulo e uma viola e ai nós fazemos assim que
agente faz com os amigos!
Ou então, para que pudessem continuar sua jornada sem denunciar o paradeiro do
menino Jesus, estes se utilizam da sabedoria para respeitar o rei Herodes mesmo sendo
subestimados:
Ai ficou o outro guarda. Porque eram três guardas de plantão no palácio dele, porque
no palácio dele tem três guardas... Ai o guarda foi lá e chamou, ai foi o nego:
-Sim senhor, bom dia.
Ele falou assim:
-Até você nego, velho desse jeito cansado entrar nessa, nessa bobeira ai.
E disse:
-É que posso fazer minha conversa é nisso, minha conversa é a mesma.
(...)
-Como vocês fizeram pra chegar até aqui?
Eles falou assim:
-Até aqui a sua casa viemos seguindo a estrela.
-Vieram seguindo a estrela?! Agora cadê essa estrela?
-A não, até agora ela sumiu.
Ai o que eles falou para eles então:
-Já que vocês seguiram a estrela até aqui vocês voltam e seguem a sua estrela, se
caso ela aparecer, e se vocês achá o novo rei e adorar ele, quando voltar avisa que eu
também quero adorar.
86
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
E finalmente, para driblar o rei que estava disposto a matar Jesus, os magos do Oriente
mostram sua esperteza “pagando na mesma moeda” respondendo a Herodes sem se
comprometerem:
Ele ficou... aí Herodes ficou pensando, ai falou assim:
-Cume que eu faço (para encontrar o menino Jesus) ?
-Ué tem que seguir a estrela por onde nós seguimos! E até amanhã seu rei, e
muito obrigado pela atenção, que deu nós, obrigado pela atenção né, (ironia)...
Mas não, ele zombou da cara deles, ai pagou com a mesma moeda. E os três reis ô,
cantou peneu. Foram embora pro oriente, como se diz assim a volta dos três reis
para o oriente.
Os três Reis Magos são apresentados desta forma nas profecias do mestre Fumaça. São
representados como santos foliões que se utilizam das sabedorias de santos e dos elementos
divinos (como seguir a estrela), mas também denotam a esperteza popular para se aproximar
das moradias ou até mesmo para tratarem com o rei Herodes. Estas representações dentro das
narrativas mostram o popular dentro do folguedo religioso, mostram as marcas da identidade
de quem realiza estas festas populares sem retirar sua devoção, este seria o caráter
performático da linguagem77, um dos fatores na construção social da realidade, de suas
representações, de suas identidades.
Tanto os antropólogos quantos os folcloristas perceberam que os estudos
fundamentados na performance correspondiam aos seus interesses em jogos, na
construção social da realidade e na reflexividade. Uma das dimensões que estimulou
de modo especial muitos pesquisadores foi a maneira como performances deslocam
o uso de recursos estilísticos heterogêneos, significados suscetíveis ao contexto, e
ideologias conflitantes, para uma arena onde estes podem ser examinados
criticamente (BAUMAN e BRIGGS, 2008, p187-188).
No caminho das jornadas
A caminhada nunca termina. Para quem quer aprender, o ponto de chegada é apenas
um ponto de repouso (MATTOS, 1991, p.94).
Ao vermos tais aparatos teóricos metodológicos que abordam as mais variadas facetas
da cultura popular dentro das narrativas sobre a Folia de Reis, temos a possibilidade de
compreendê-la através de suas representações e apropriações. Percebemos que este caminho
escolhido pode abrir um leque de possibilidades, pois este caminho nos trouxe a um ponto de
chegada que não é um fim, mas na realidade um começo, o caminho se mostra na realidade
uma jornada. Uma possibilidade, não apenas, de resolver determinados problemas, mas
77
Homi Bhabha, ao se referir ao elemento cultural como forma de entender e escrever a nação, nos oferece a
possibilidade de encontrar a “ambivalência” (o local da cultura que se estabelece entre as diferenças culturais,
nunca diversidade cultural) dentro do diálogo entre o pedagógico e o performático. BHABHA, 2010,p.198-238.
87
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
estabelecer novos questionamentos, tentar superar um modelo metodológico que delimite o
que é cultura popular de uma forma acabada e dicotômica.
Podemos ver que a Folia de Reis são práticas que são perpetuadas não como uma
simples
sobrevivência,
pertinência,
permanências
e
outros termos
que
denotam
conseqüências, mas na realidade elas se tornariam “heranças de longa duração” causadas
pelas suas capacidades de serem sentidas, vividas se tornando na realidade vivências e não
sobrevivências (BRAUDEL, 1992). E para a sua perpetuação necessitaria de uma ligação com
a vida dos participantes para que esses pudessem organizar e reorganizar determinados ritos,
que só podem ser realizados se tiver alguma íntima relação com eles. Tais relações só podem
ser enxergadas e analisadas se nos aproximarmos dos mestres e foliões para podermos dar voz
a eles e estudar seus discursos, como são montados, como são submetidos, como são
representados (CHARTIER, 1995, p.191). Não nos referindo a estas fontes como verdades,
mas compreender a construção do discurso, suas ênfases, o que este se aproxima da vida dos
participantes, nos aproximarmos do não-dito (CERTEAU, 2007).
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88
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89
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Estudantes x Polícia:
As manifestações estudantis de 1964 a 1968 vistas pelo Correio da Manhã
Marcelo Nogueira de Siqueira *
Resumo: Um dos objetivos desta comunicação é a contextualização do movimento estudantil
na Guanabara entre 1964 e 1968, analisando seus grupos políticos, ideologias, propostas e
estratégias de ação. Nestes primeiros anos de regime militar o movimento estudantil
representou, de fato, a principal força de oposição ao governo, promovendo manifestações de
protesto, passeatas, greves, comícios relâmpagos e uma diversificada forma de comunicação
com a população, como pichações, distribuições de panfletos e a elaboração de pequenos
jornais. A cobertura jornalística desses eventos também foi de fundamental importância para a
difusão das idéias do movimento e da divulgação da violência repressiva do governo. Dentre
essas coberturas destacou-se a fotojornalística do Correio da Manhã, principal jornal de
oposição ao regime. Identificar e analisar o papel desempenhado por este jornal e a relação
que foi estabelecida entre os atores sociais destes dois grupos (movimento estudantil e
jornalistas do Correio da Manhã) é o segundo objetivo desta pesquisa.
Palavras-Chave: Ditadura militar; movimento estudantil; Correio da Manhã.
Abstract: One objective of this paper is to present the background of the student movement
in Guanabara between 1964 and 1968, analyzing its political groups, ideologies, strategies and
proposals for action. In these early years of military rule, the student movement had
represented, in fact, the main opposition to the government, promoting protests, marches,
strikes, rapid rallies, with various means of communication with the population such as
graffiti, pamphlets and the small newspapers. The press coverage of these events was crucial
for the dissemination of ideas of the movement and to the dissemination of knowledge about
repressive violence from the government. The article highlights the photojournalistic cover of
Correio da Manhã, the leading newspaper in opposition to the regime. The second objective
of the study is to analyze the role played by this newspaper and the relationship between both
groups of social actors (student movement and journalists of Correio da Manhã).
Keywords: Military dictatorship; the student movement; Correio da Manhã.
1.
Movimento Estudantil e suas manifestações de protesto
A partir da década de 1960, o número de universidades no Brasil aumentou
consideravelmente. Mesmo com o aumento de vagas e de cursos oferecidos, a procura foi
bem superior, em virtude do crescimento populacional das cidades e da consolidação de uma
classe média urbana, causando uma crescente tensão no meio estudantil secundarista que
desejava ingressar na universidade. Com o surgimento dessas instituições e a criação de novos
cursos, aumentou o número de estudantes universitários, proporcionando um crescimento de
centros e diretórios acadêmicos, fortalecendo, assim, as organizações estudantis.
*
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ).
90
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Nesse início de década o país vivia um processo de radicalização política, em razão da
campanha pelas reformas de base propostas por João Goulart que congregava um amplo
conjunto de forças progressistas, incluindo as organizações estudantis. A tensão entre
propostas, interesses e modelos econômicos das forças conservadoras e progressistas
culminou na deposição do presidente com a vitória dos grupos conservadores. Esse
movimento, amplamente apoiado pelas forças militares, igreja, imprensa e classe média, não
sofreu maiores resistências e foi rapidamente consumado com o apoio de grande parte dos
setores políticos. Nos momentos seguintes ao golpe, uma onda repressora atingiu pessoas,
entidades e associações civis e políticas identificadas com a frente nacionalista e de esquerda
que dava sustentação ao projeto de governo de João Goulart. Vários dirigentes, sindicalistas,
intelectuais e políticos foram presos, entidades fechadas e suas atividades proibidas. A sede da
UNE foi incendiada e todas as organizações estudantis foram extintas e proibidas, porém, as
atividades políticas dos estudantes continuaram de modo intenso. Se as lideranças foram
perseguidas o mesmo não aconteceu com a base do movimento estudantil, propiciando a
formação de uma nova geração e o surgimento de outros líderes.
Havia três forças relevantes organizadas no movimento estudantil universitário a partir
desse momento: a Ação Popular (AP), que se mantém após o golpe congregando segmentos
moderados, mas com uma direção com tendências revolucionárias; as dissidências do Partido
Comunista Brasileiro e a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária, a ORMPOLOP, que possuía forte estruturação teórica. Estudantes que militavam na Ação Popular
iniciaram o processo de reorganização da UNE, promovendo reuniões e assembleias
clandestinamente, da mesma forma que articulavam manifestações de protesto, greves e
pequenas passeatas. Nas universidades e em entidades estaduais e regionais de organização
estudantil havia grande luta pelo controle político, com disputas acirradas e divergências
teóricas e metodológicas.
Em março de 1965, na aula inaugural da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), o presidente Castelo Branco foi vaiado por estudantes, causando a prisão de alguns
deles. O episódio mexeu com os brios do movimento estudantil provocando solidariedade e
mobilização dos diretórios acadêmicos e da União Metropolitana dos Estudantes (UFRJ,
2006, p. 31). No mesmo ano o CACO-Livre, centro acadêmico independente da Faculdade
Nacional de Direito da UFRJ, iniciou uma série de manifestações de rua e uma greve pela
melhoria do bandejão. Logo em seguida promoveu, juntamente com estudantes de filosofia da
mesma universidade, o primeiro ato oficial do movimento contra o regime militar: um
julgamento público do governo em plena Central do Brasil envolvendo estudantes e
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
trabalhadores. No ano seguinte, 1966, o governo militar firmou parceria com os Estados
Unidos para a instalação de seu modelo educacional, o Acordo MEC-USAID, que sofreu
ampla crítica do movimento estudantil que o considerava como ação imperialista.
No congresso clandestino da UNE, em São Bernardo do Campo, houve a prisão de
178 estudantes, greves foram deflagradas em São Paulo, passeatas de protesto tomaram as
ruas de Minas Gerais e no Rio de Janeiro foram suspensas as aulas na Faculdade Nacional de
Direito. Esse contexto constituiu a fase inicial do processo que fez de setembro de 1966 um
dos meses mais agitados e intensos do movimento estudantil (UFRJ, 2006, p. 49). No dia 22
de setembro, houve uma grande passeata de protesto contra o governo na praia Vermelha, em
frente à Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ. Cerca de seiscentos estudantes ocuparam
a FNM, de madrugada a polícia invadiu acabando violentamente com a ocupação com
espancamentos e prisões. Esse episódio, o de maior violência até então contra estudantes e
que seria um marco divisor do movimento estudantil, passou a ser conhecido como “Massacre
da Praia Vermelha”.
No início de 1967, o movimento estudantil estava se rearticulando, pois após o
Massacre da Praia Vermelha o típico jovem que participava do movimento “virou vanguarda,
liderança ou nunca mais participou de passeata” (PALMEIRA, 2008) Em janeiro o Congresso
Nacional promulgava outra Constituição e uma nova Lei de Imprensa. Inicia-se uma
mobilização estudantil em apoio aos excedentes do vestibular, com prisão de inúmeros
estudantes. Após a posse de Costa e Silva, é decretada a extinção dos órgãos estudantis e a
criação da Lei de Segurança Nacional. Em virtude dos protestos dos estudantes cerca de mil
deles são presos na Guanabara. Em abril, mês do desmantelamento da Guerrilha do Caparaó,
há inúmeras manifestações no Rio de Janeiro e no Distrito Federal. No mês seguinte, as
manifestações e passeatas contra o acordo MEC-USAID tomam conta de diversas cidades
pelo país. Em razão da demolição do antigo restaurante central dos estudantes e da
inauguração de um novo, de forma precária, em outro local, várias passeatas e manifestações
acontecem no Centro do Rio de Janeiro. O Calabouço, como era mais conhecido o
restaurante, teve sua demolição sacramentada por causa da construção de um trevo viário e de
obras locais de urbanismo. Em agosto aconteceu o Congresso da UNE em Campinas, São
Paulo. No final do ano o movimento estudantil, já reorganizado, protestava contra as
anuidades nas universidades por todo o país e, no Rio de Janeiro, contra as péssimas
instalações do restaurante Calabouço.
No início de 1968 o movimento estudantil, embora fortalecido e organizado, encontrase polarizado em dois blocos: a Ação Popular e as dissidências do Partido Comunista. As
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reivindicações estudantis no Rio de Janeiro, nesse início de ano, concentravam-se nas
questões dos alunos excedentes do vestibular, do acordo MEC-USAID e dos protestos contra
as obras inacabadas do Calabouço. No dia 28 de março os estudantes se reuniram para
protestar contra as condições do novo restaurante. Quando a PM chegou para acabar com a
manifestação foi recebida com pedras, vaias e provocações. Na confusão instaurada, um
policial atirou contra a multidão matando o estudante Edson Luís. Indignados, seus
companheiros levaram o corpo do estudante à Assembleia Legislativa, na Cinelândia,
ocupando-a e lá fazendo o velório. A notícia logo chegou a todos os cantos da cidade.
Inúmeros estudantes, jornalistas e curiosos começaram a rumar para a Cinelândia para
acompanhar o velório. Na manhã do dia 29 uma multidão, portando faixas e cartazes de
protesto, aglomerava-se na Cinelândia. Uma multidão, estimada em cerca de trinta mil
pessoas, acompanhou o cortejo até o cemitério São João Batista, em Botafogo. No decorrer da
noite inúmeros confrontos aconteceram. As forças policiais, que durante o enterro não
apareceram, reprimiram com violência as manifestações posteriores ao sepultamento. Por
todo país houve protestos. A rebelião estudantil havia começado.
Nos dias seguintes à morte de Edson Luís, o Rio de Janeiro presenciou intensas
mobilizações de protesto, principalmente no 1º de abril, quarto aniversário da deposição de
João Goulart. O Exército avisou que não iria tolerar qualquer tipo de manifestação política e o
ministro da Justiça, Gama e Silva, solicitou que as forças policiais da cidade ficassem em total
prontidão contra os protestos estudantis. Na manhã do dia 4 de abril, dia da missa de sétimo
dia, tanques do Exército ocupavam trechos da avenida Presidente Vargas, militares vigiavam
esquinas, agentes do DOPS em cima de edifícios observavam o movimento nas ruas, aviões
da FAB cruzavam o céu e PMs a cavalo percorriam as imediações da Candelária. Durante
todo o dia e, principalmente, após a missa inúmeros conflitos aconteceram, acarretando em
espancamentos e prisões de estudantes.
Depois desses acontecimentos, uma série de protestos estudantis aconteceu pela
cidade, sempre com a repressão da polícia, contudo o movimento crescia e se articulava. A
luta por mais verbas, por maior número de vagas nas universidades, pela reabertura do
restaurante Calabouço e contra o acordo MEC-USAID estava cada vez mais associada à luta
contra a ditadura, que semanas depois sancionou uma lei que responsabilizava criminalmente
os menores de idade envolvidos em ação contra a segurança nacional.
Em junho aumentou a intensidade dos protestos e a mobilização dos estudantes. O
ministro da educação Tarso Dutra havia declarado que se dispunha a dialogar sobre as
reivindicações do movimento, o que causou uma série de provocações dos estudantes. No dia
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18 de junho, o Correio da Manhã noticiou na terceira página que os estudantes estavam
desafiando o ministro para que cumprisse sua palavra e dialogasse com eles. No dia seguinte,
uma grande manifestação foi marcada para acontecer em frente ao MEC, ocupar seu pátio e
forçar um encontro com Tarso Dutra. Cientes de que a polícia estava preparada para a
repressão costumeira, os estudantes se municiaram com pedras e coquetéis molotov, criando
pela primeira vez uma estratégia de enfrentamento explícito. Como a PM impediu a
manifestação o confronto teve início e propagou-se por várias ruas do centro com grande
violência. Um caminhão do Exército foi incendiado, e o líder estudantil Jean Marc Von der
Weid foi preso, acusado de ter sido o autor do ato.
No dia seguinte o movimento estudantil decidiu se concentrar no campus da praia
Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro, local aonde o Conselho Universitário
iria se reunir. Os estudantes marcaram, para a mesma data, local e horário, uma assembleia
geral onde seriam cobradas mais verbas para o ensino, mais vagas nas universidades e as
reformas curriculares. Contudo, em virtude dos acontecimentos do dia anterior, decidiram que
também iriam protestar contra a violência policial e exigir a libertação dos estudantes presos.
Cerca de dois mil estudantes tomaram as dependências do campus da praia Vermelha e, após
invadir a reunião do Conselho Universitário, exigiram que reitor e professores descessem para
o Teatro de Arena da Faculdade de Economia, onde estavam concentrados. Não houve
violência, mas a pressão sobre os professores fez com que a maioria dos pontos defendidos
pelos estudantes fosse aprovada pelo Conselho. A PM foi chamada e cercou o prédio criando
grande tensão entre os estudantes. Quando estes tentaram fugir houve grande confusão e cerca
de quatrocentos estudantes foram presos no campo do Botafogo, quase vizinho ao local. A
polícia abusou da intimidação e da violência. A televisão apareceu no local e no noticiário da
noite as imagens chocaram a cidade. No dia seguinte os jornais denunciaram a brutalidade e o
Correio da Manhã publicou várias paginas e dezenas de fotografias sobre o episódio.
O movimento estudantil, por intermédio de suas lideranças, articulou na noite de
quinta-feira uma grande passeata de protesto para o dia seguinte no Centro do Rio de Janeiro.
A polícia, em grande número, já os aguardava de prontidão. Durante todo o dia houve
violento confronto, em proporções jamais vistas até então. Bombas de gás lacrimogêneo eram
atiradas em todas as direções, tiros eram disparados a ermo, barricadas eram montadas,
chuvas de pedras caíam a todo instante e das janelas dos prédios muitas pessoas jogavam
objetos nos policiais. No final do dia a contagem oficial registrava 23 pessoas baleadas,
quatro mortes, dezenas de indivíduos feridos, intoxicados e espancados e cerca de mil presos.
A “Semana Sangrenta”, como foi nomeada a sequência dos dias 19, 20 e 21 de junho de 1968,
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
foi decisiva para a mudança dos rumos da oposição ao regime militar brasileiro. Em virtude
da grande violência policial sobre os estudantes e da ampla cobertura da imprensa, a
sociedade civil passou a contestar de forma mais veemente a ditadura que se instalara desde
1964.
Logo após a “Sexta-Feira Sangrenta”, dia de maior violência nas ruas durante o
período militar, uma grande mobilização foi articulada pelos estudantes e intelectuais como
resposta ao que estava acontecendo. Almejavam uma grande passeata, onde a sociedade
pudesse expor pacificamente seu desejo de democracia. Também não interessava ao governo
que conflitos como os da semana anterior se repetissem, pois a cada incidente sua
popularidade junto à classe média diminuía. Os governos estadual e federal liberaram a
passeata, como forma de mostrar à população seu desejo de diálogo. Na verdade, foi um recuo
estratégico, pois uma proibição resultaria em um confronto ainda maior. A data escolhida foi
o dia 26 de junho, uma quarta-feira. O governador Negrão de Lima decretou ponto facultativo
na esperança de esvaziar a cidade e, com isso, além de diminuir a importância da passeata,
evitar possíveis confrontos.
Na manhã do dia 26 um incontável número de pessoas se concentrava na Cinelândia,
em frente à Assembleia Legislativa. Primeiro chegaram os estudantes e depois artistas, padres,
freiras, trabalhadores, famílias, jornalistas e intelectuais. Pouco depois do meio-dia, com a
chegada do líder estudantil Vladimir Palmeira, iniciaram-se os discursos. Em seguida, a
multidão começou a passeata seguindo em direção à Candelária pela avenida Rio Branco, que
ficou tomada de ponta a ponta. Sem a repressão policial e o clima de insegurança, o que se via
eram pessoas sorridentes, de braços dados, gritando palavras de ordem e portando faixas de
protesto. Das janelas dos prédios as pessoas batiam palmas e jogavam papel picado. No final
da tarde, os estudantes se encaminharam até o Palácio Tiradentes para fazerem a última
manifestação do dia. O sol já estava se pondo quando a passeata teve seu fim, contudo sua
repercussão e simbolismo permaneceram para sempre na memória coletiva nacional. Foi
criada uma comissão da passeata para negociar com o governo, mas esta não obteve sucesso.
No dia 4 de julho, os estudantes se reuniram no pátio do MEC e, após uma série de discursos
de protesto, saíram em passeata com destino ao prédio do Superior Tribunal Militar para
exigir a libertação do líder estudantil Jean Marc Von der Weid (que seria solto semanas
depois) e dos demais estudantes presos na “Semana Sangrenta”. Embora pacífica e sem
incidentes, o governo decidiu, ao término da passeata, não autorizar outras manifestações
deste tipo.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A Passeata dos Cinquenta Mil, como ela ficou conhecida, foi a última grande passeata
de 1968. Com as férias escolares, o incremento da atividade repressora e uma mudança na
estratégia do movimento estudantil esse tipo de manifestação foi deixado de lado.
Em setembro o deputado e ex-jornalista do Correio da Manhã, Márcio Moreira Alves,
durante discurso no Congresso Nacional em que criticava a invasão da UnB, pergunta:
“Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?” Em um segundo discurso, dias
depois, Alves sugere ironicamente que as namoradas dos jovens militares os evitem e que
sejam boicotados os desfiles de 7 de Setembro. Tais discursos desagradaram profundamente
às Forças Armadas que se sentiram desrespeitadas por um notório adversário do regime. Em
outubro foi realizado clandestinamente em Ibiúna, interior de São Paulo, o XXX Congresso
da UNE, a polícia descobriu, invadiu o local e prendeu mais de mil estudantes de todo país,
inclusive as principais lideranças.
Houve algumas manifestações em favor da liberdade dos estudantes, coibida com
grande repressão, como a ocorrida em 22 de outubro, em frente ao Hospital Universitário
Pedro Ernesto, da Universidade do Estado da Guanabara (UEG), quando um estudante foi
morto. Em novembro houve intensa pressão dos comandos militares para que o deputado
Márcio Moreira Alves fosse licenciado pela Câmara dos Deputados para ser processado. Em
13 de dezembro, diante da recusa do Congresso Nacional em licenciar o deputado Márcio
Moreira Alves para ser processado, o governo, utilizando tal fato como pretexto, decretou o
ato institucional n. 5, fechando o Congresso, cassando mandados, decretando o estado de
sítio, proibindo qualquer tipo de reunião e criando a censura prévia. A ditadura que era de fato
tornara-se também de direito. O “golpe dentro do golpe” como muitos se referem ou a
“revolução dentro da revolução” como alguns militares preferem, deu início aos “Anos de
chumbo”, período de enfrentamento armado nas cidades e no campo, de prisões, sequestros,
mortes, torturas, banimentos e desaparecimentos. Muitos estudantes que nos anos anteriores
protestavam contra as condições do ensino e contra o governo, ingressaram na luta armada ou
a apoiaram logisticamente. Inúmeros não sobreviveram, outros encontram-se desaparecidos
até hoje.
2.
O Correio da Manhã
Entender o posicionamento político de um jornal é compreender sua história, métodos
e objetivos. Analisar sua conduta diante de um determinado conjunto de fatos é perceber sua
trajetória, necessidades e interesses. Conhecer sua dimensão é entender sua importância.
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O Correio da Manhã representou um ideal, um “compromisso com a verdade” como
dizia o título de seu primeiro editorial. Nasceu liberal, independente e legalista. Tornou-se
conservador, cresceu como empresa e inovou o jornalismo. Transformou-se no jornal mais
influente do país, decisivo em inúmeros momentos de nossa história.
Em seus 73 anos de existência teve quatro administrações. Sua trajetória confunde-se
com a história de seus diretores, editores, repórteres, fotógrafos e demais funcionários, bem
como a de seus adversários e inimigos. Entender seu posicionamento diante do autoritarismo
que se instalou no país a partir de 1964 só será possível se compreendermos sua história,
analisando condutas e conhecendo a importância de seus personagens e, principalmente, de
seus atos.
Niomar Moniz Sodré Bittencourt assumiu o jornal em 1963 em meio a uma crise
econômica. O Brasil vivia uma delicada crise política em virtude das posições defendidas por
Jango, da crescente tensão nos meios militares e da insatisfação de parte da sociedade com os
rumos do país. O Correio da Manhã, que segundo o jornalista Edmundo Moniz possuía à
época uma linha editorial “liberal conservadora”, i fazia duras críticas a João Goulart. O jornal
iniciou uma série de editoriais em março daquele ano pedindo a saída do presidente com base
no princípio do respeito à Constituição, afirmando que Goulart governava o país por decretoslei e que pretendia em breve dissolver o Congresso. O ápice dessa campanha foram os
emblemáticos editoriais “Chega!”, “Basta!” e “Fora!”.
Jango foi deposto. Os militares tomaram o poder, o processo democrático não foi
restabelecido e o Congresso não convocou eleições diretas. O Comando Supremo da
Revolução baixa, em 9 de abril, o Ato Institucional, que suprimia direitos políticos, cassava
mandatos eletivos, estabelecia eleições indiretas para presidente e dava ao chefe do Executivo
poderes especiais, como a decretação do estado de sítio. Em 15 de abril de 1964 tomava posse
como presidente, após eleições indiretas, o marechal Humberto Castelo Branco.
Logo após o golpe, percebendo que o país caminhava para uma ditadura militar, o
Correio da Manhã partiu em defesa da democracia iniciando uma série de editoriais contrários
ao regime militar. Denunciou o incêndio do prédio da UNE, a depredação do jornal Última
Hora e a intervenção de militares. No dia 2 de abril, publicou o editorial “Basta! E Fora!” que
explicitava a posição do jornal.
Está terminado o episódio mais inglório da história republicana do Brasil. Basta!
Mas não só basta disso, também basta de aproveitamento reacionário do episódio.
[...] Não toleramos, agora, o terrorismo nem o fanatismo da reação. Não
combatemos a ilegalidade para alterar com outra ilegalidade. A reação já comete
crimes piores que os cometidos. Depõe governadores, prende ministros e deputados,
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
incendeia prédios, persegue sob a desculpa de anticomunismo a tudo e a todos. Não
admitiremos; a estes fanáticos e reacionários opomos a mesma atitude firme de
ontem. A eles também diremos: Basta! E Fora!
A partir deste instante o Correio da Manhã transformou-se no principal órgão de
imprensa opositor ao regime militar. Suas reportagens, manchetes, editoriais e fotografias
apresentavam diariamente críticas contundentes ao governo, provocando, como retaliação do
regime, o corte de verbas publicitárias, asfixiando economicamente o jornal que mesmo assim
prosseguia com suas denúncias e campanha contra a ditadura.
A face mais clara deste posicionamento foi à ampla cobertura jornalística do
movimento estudantil e suas manifestações de protesto. Além de uma coluna diária sobre
educação o jornal abria grandes espaços para as reportagens sobre suas lideranças e objetivos,
relatando quase que diariamente as reivindicações e as ações de efeito, sempre ficando ao lado
dos estudantes. Além disso, a cobertura fotojornalística construía um discurso do olhar onde
os estudantes eram a vanguarda, o novo, a possibilidade de contestação e a realidade do
enfrentamento. Nenhum outro jornal do período publicou tantas fotografias sobre o confronto
entre estudantes e policias como o Correio da Manhã. O olhar do jornal sobre os
acontecimentos aqui narrados, mais do que uma simples cobertura de imprensa, possibilitou à
sociedade, sobretudo a grande classe média, um amplo conhecimento da fase repressora do
regime, tornando pública à luta contra a ditadura.
Entre abril de 1964 e dezembro de 1968 o Correio da Manhã produziu mais de cinco
mil fotografias sobre o movimento estudantil e suas manifestações de protesto, organizadas
em mais de trinta dossiês. O mais famoso deles é o “Estudantes x Polícia”, nome de um dos
49.394 dossiês da Série Fotografia do Fundo Correio da Manhã, depositado no Arquivo
Nacional. Esse dossiê, de 774 fotografias, traz imagens de passeatas, manifestações e dos
conflitos entre estudantes e policiais nas ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Brasília na década de 1960, sobretudo 1968. Este dossiê foi produzido pelos
fotógrafos e jornalistas do Correio da Manhã concomitante aos acontecimentos, cada
fotografia registrada dos embates e manifestações dos estudantes nas ruas da Guanabara era
arquivada nas pastas deste dossiê, batizado pelos funcionários com o nome que melhor
representava a época e a situação. Estudantes x Polícia é um dos dossiês mais consultados do
referido Fundo, que por sua vez é o conjunto documental mais pesquisado do Arquivo
Nacional.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
3.
Conclusão
Existem inúmeros estudos e interpretações sobre a importância e a consequência dos
episódios aqui narrados, sobretudo os que aconteceram em 1968. Não é objetivo deste
trabalho analisar o impacto das manifestações estudantis na condução da política de segurança
interna do regime militar naquele momento, muito menos estabelecer um elo de causa e
consequência desses protestos com o endurecimento do regime. Contudo, observando
documentos secretos do governo em 1968, no ápice dos protestos de rua, percebemos a
grande preocupação do regime militar em conter o crescimento “subversivo” em curso. O
movimento estudantil, com suas passeatas e protestos, tornou-se o principal foco dessa
preocupação e a imprensa, tida como local de infiltração comunista e de oposição ao governo,
foi percebida como sensacionalista por fazer apologia às reivindicações estudantis, sobretudo
nas manchetes e fotografias sobre as passeatas e conflitos entre estudantes e policiais nas ruas
do Rio de Janeiro.
Encontramos essa análise na 41ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional (CSN),
órgão que tinha por finalidade o assessoramento ao presidente da República na formulação e
condução da política de segurança nacional, presidido pelo próprio presidente e composto
pelo vice-presidente, ministros de Estado, chefes do gabinete civil e militar da Presidência,
chefes do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Estado-Maior das Forças Armadas e dos
Estados-Maiores da Marinha, Exército e Aeronáutica. Essa sessão, iniciada em 1º de julho de
1968 e concluída no dia 11 do mesmo mês no Rio de Janeiro, ou seja, poucos dias depois da
Semana Sangrenta e das Passeatas dos Cem e Cinquenta Mil, foi pautada pela grande
preocupação do governo em relação ao agravamento da situação nas ruas, sobretudo no Rio
de Janeiro. O secretário-geral do CSN, o general Jayme Portella de Mello, inicia a reunião
analisando a conjuntura política do país destacando que a situação nacional estava sendo
tumultuada pelas manifestações de massa, atos de terrorismo e sabotagem que caracterizavam
atentados violentos à ordem publica e ao regime, causando apreensão nas forças armadas e
sensação de insegurança na população. Para Portela era claro que a contra-revolução estava
em curso, promovida, sobretudo, pela classe estudantil, que segundo sua análise era
manipulada por extremistas de esquerda, como podemos perceber na página 7 da ata da 41ª
Sessão do Conselho de Segurança Nacional.
Concluída a explanação do secretário-geral, o presidente da República, marechal Artur
da Costa e Silva, que também preside o Conselho de Segurança Nacional, distribuiu aos
conselheiros um relatório sobre a questão de segurança interna em um resumo da conjuntura
política do país, ressaltando a confidencialidade e a condição de ultra-secreto do que seria
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exposto. Em seguida o chefe do SNI, general Emílio Garrastazu Médici, que viria a ser o
próximo presidente da República, inicia o relato da Síntese da Conjuntura Nacional preparada
pelo SNI e que analisa diversos temas como a Frente Ampla, a oposição ao regime, as
atividades de civis cassados e militares reformados pelos atos institucionais, eclesiásticos,
trabalhadores, grupos econômicos estrangeiros contrários ao governo, as atividades
subversivas e a imprensa. Quanto ao movimento estudantil o chefe do SNI fez uma ampla
explanação contextualizando sua atuação, práticas e objetivos, bem como descrevendo sua
história recente. Para Médici o que se via nas ruas não eram reivindicações estudantis e sim
um movimento para derrubar o governo revolucionário de 1964 através de atos terroristas que
iriam desencadear a guerrilha urbana que serviria para implantação de uma revolução
comunista.
Fica claro ao observarmos tais análises que o governo encarava os fatos acontecidos
como o início de uma guerrilha urbana subversiva, com o apoio de parte da imprensa. No
decorrer da 41ª sessão todos os conselheiros, incluindo os ministros civis, reiteraram a
necessidade do endurecimento do governo frente ao crescente clima de instabilidade política
provocado pelas manifestações de rua. Segundo Carlos Fico, “a partir de então, a linha dura
passou a agir de modo obviamente articulado no sentido de implantar um clima de terror
visando à decretação do AI-5” (FICO, 2009: 235-236). As passeatas, manifestações e
protestos dos estudantes a partir de 1964 e que teve como ápice 1968 foram decisivos para
uma mudança de rumos do regime militar e dos movimentos de oposição. A cobertura
jornalística do Correio da Manhã facilitou a divulgação destes atos, tornando pública a opção
dos estudantes pela resistência e enfrentamento.
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Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos
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VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988.
101
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A Questão Agrária no governo João Goulart
Melissa de Miranda Natividade*
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise dos textos: Declaração do
I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da
Reforma Agrária e o Estatuto do Trabalhador Rural. O primeiro documento refere-se ao
texto elaborado pela comissão de reforma agrária do I Congresso Nacional dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas, realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
O congresso foi organizado pela ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas
do Brasil) e reuniu as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, e o Master (Movimento dos
Agricultores Sem Terra) do Rio Grande do Sul. Teve apoio do governo federal e o seu
encerramento foi marcado pela presença do próprio presidente João Goulart. O segundo
documento é a Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963. O objetivo de analisar ambos os
documentos é averiguar como a intensa disputa pela hegemonia no interior do movimento
social rural – perceptível pela presença de diferentes atores no I Congresso Nacional
Camponês – levou o Estado (entendido aqui em seu sentido restrito), nos anos 1960, a chamar
para si a responsabilidade do atrelamento dos sindicatos rurais à máquina pública
governamental.
Palavras-Chaves: Governo João Goulart; Congresso Nacional Camponês; Estatuto do
Trabalhador Rural.
Abstract: This paper aims to analyze two documents: the Declaration of the I National
Congress of Farmers and Farm Workers on Agrarian Reform and the Rural Worker Statute.
The first document refers to the text drafted by the I National Congress of Farmers and Farm
Workers, held in November, 1961, in Belo Horizonte, Minas Gerais, on the agrarian reform.
The congress was promoted by the Union of Farmers and Agricultural Workers of Brazil,
with the attendence of the Peasant Leagues under the leadership by Francisco Julião, and
Landless Farmers' Movement of Rio Grande do Sul. This congress was supported by federal
government and President João Goulart attended its closure. The second document is the Law
n° 4214 of March 2nd, 1963. The purpose of the analysis is to verify how competition for
hegemony within the rural social movements - noticeable by the presence of different unions
and associations at the I National Congress of Peasants - led the State (understood here in its
strict sense) in the 1960`s to draw upon itself the responsibility of linking rural unions with
the government structure.
Key-words: João Goulart administration; National Congress of Peasants; Rural Worker
Statute.
Este trabalho tem por objetivo analisar dois documentos que utilizo como fonte de
pesquisa para elaboração de minha dissertação de Mestrado, quais sejam: Declaração do I
Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma
Agrária e o Estatuto do Trabalhador Rural. O primeiro documento refere-se ao texto
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF).
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
elaborado pela comissão de reforma agrária do I Congresso Nacional dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas, realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, Minas Gerais.
O congresso foi organizado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil
(Ultab) e reuniu as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, e o Movimento dos Agricultores
Sem Terra (Master), do Rio Grande do Sul. Teve apoio do governo federal e o seu
encerramento foi marcado pela presença do próprio presidente João Goulart. O segundo é a
Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963.
O objetivo de analisar ambos os documentos é verificar como a intensa disputa pela
hegemonia no interior do movimento social rural – perceptível pela presença de diferentes
atores no I Congresso Nacional Camponês – levou o Estado, no início dos anos 1960, a
chamar para si a responsabilidade do atrelamento dos sindicatos rurais à máquina pública
governamental, assim como já havia feito com os sindicatos urbanos.
Minha pesquisa de Mestrado tem por objetivo principal realizar uma análise crítica em
torno da tramitação, no Congresso Nacional, dos diversos projetos de reforma agrária em
pauta ao longo do Governo de João Goulart (1961-1964). Tal análise será empreendida tendo
como base teórica a concepção ampliada de Estado de Antonio Gramsci (MENDONÇA,
2007, p. 1-12). Dessa forma, ao analisar o debate político em torno da questão agrária, não
estarei partindo da ação do Estado restrito, porém da permanente interação existente entre
Sociedade Civil e Sociedade Política. Ou seja, não partirei do Congresso Nacional ou das
iniciativas do Executivo para entender a configuração do debate, mas sim tentarei mapear os
diversos matizes desse debate levando em consideração o estudo da extração social e das
propriedades de posição e trajetórias dos seus agentes e suas práticas.
Partimos do pressuposto geral de que o projeto reformista em curso no Governo
Goulart vai de encontro aos interesses de algumas frações da classe dominante do país. Nesse
sentido, o movimento empreendido contra a aprovação de qualquer projeto identificado com o
projeto de reforma agrária do governo se insere em um movimento maior, o de barrar as ações
do Executivo e tentar conter o desenvolvimento da organização nacional da classe
trabalhadora rural.78 Pretendo demonstrar, ao longo da pesquisa, o que estou chamando aqui
de “movimento”. Isto é, analisar o campo de atuação dos agentes elaboradores dos projetos de
oposição ao do governo 79 - campo de atuação este que passa pelo partido político ao qual
78
Assim, o estudo aqui esboçado, dos dois documentos citados, nos ajuda a entender algumas das configurações
dessa tentativa de conter a organização dos trabalhadores do campo.
79
Não estamos apontando aqui uma homogeneidade das classes dominantes opositoras ao governo.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
pertencem seus autores, pelas diversas associações de classe a que se encontram filiados, até a
publicação de artigos em revistas especializadas e livros.
Nesse sentido, a análise de ambos os documentos supra citados auxilia na
corroboração de que, cada vez mais, as populações rurais estavam se organizando e buscando
espaço no cenário político brasileiro, para reivindicar suas demandas. Além disso, os
documentos também demonstram a disputa para deter a hegemonia no campo.
Foi realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, Minas Gerais, o I Congresso
Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. A principal organizadora do evento foi a
Ultab, porém o evento contou também com a participação das Ligas Camponesas, do Master,
de integrantes do movimento sindical urbano, do movimento estudantil e políticos. Dentro
deste último grupo, destacam-se o presidente da República João Goulart, seu primeiroministro, Tancredo Neves, e o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto.
O livro organizado por Luiz Flávio de Carvalho Costa, O Congresso Nacional
Camponês (COSTA, 2010), retoma o evento realizado em Belo Horizonte, trazendo uma
coletânea de documentos da época diretamente relacionados ao Congresso, inclusive
reportagens do periódico Terra Livre, além de pequenos textos de lideranças que participaram
do encontro. Durante o período democrático de 1945-1964, houve uma incorporação das
demandas dos trabalhadores rurais aos diversos projetos políticos brasileiros. Causa e efeito
dessa incorporação foi a intensa mobilização dos trabalhadores rurais, em torno da luta por
melhores condições de vida e de trabalho e a luta pelo acesso a terra. Dessa forma, verifica-se
uma intensa disputa pela hegemonia da organização e da direção dessas lutas do trabalhador
rural. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e o
governo são os principais atores nessa disputa de hegemonia.
A primeira conferência da Ultab, organização fundada em 1954 pelo PCB, foi
realizada em setembro de 1959. Nesta conferência foi elaborada uma resolução onde está
presente a concepção de reforma agrária do PCB (COSTA, 2010, p. 22 e 23). Em 1961, a
Ultab pretendia realizar a sua segunda conferência. No entanto, já desde setembro de 1959
alimentava-se a ideia da realização de um congresso nacional. Isso porque as lideranças dos
movimentos entendiam que era necessária, naquele momento, uma manifestação viva da nova
força sindical, a socialização das experiências particulares de luta, com o objetivo de traçar
diretrizes gerais e dar unidade ao movimento dos trabalhadores do campo.
O que realmente fez com que a Ultab abdicasse de sua segunda conferência, em nome
de um encontro nacional, foi a possibilidade da aprovação, no Congresso Nacional, de um
projeto de reforma agrária atendendo apenas a reivindicações parciais na agricultura. A Ultab
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
opta então por organizar um evento mais amplo, onde sua repercussão pudesse exercer
pressão sobre o Congresso na aprovação de medidas que modificassem profundamente a
estrutura agrária do país.
Várias reuniões estaduais são realizadas para a preparação do Congresso Nacional
Camponês - nome pelo qual ficou conhecido o I Congresso Nacional de Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas. Em 20 de maio de 1961, foi lançado, pela comissão organizadora
presidida pelo deputado Hernanni Maia e secretariada pelo professor José Thiago Cintra, o
manifesto de convocação do Congresso, que tinha como ordem do dia as soluções para a
questão agrária e a elaboração de um programa de reivindicações e direitos dos trabalhadores
do campo (COSTA, 2010, p. 24).
Com a participação de, aproximadamente, 1.600 delegados eleitos em 13 encontros e
congressos estaduais, em conferências municipais e pelas assembleias realizadas em fazendas,
realizou-se finalmente, em novembro de 1961, o Congresso em Belo Horizonte. Em torno dos
temas propostos foram formadas várias comissões, mas foi na II Comissão, a da reforma
agrária, que se centrou o Congresso e se deram as discussões de maior repercussão. Integrada,
entre outros, por Julião e pelos dirigentes comunistas Armênio Guedes, Dinarco Reis, Alberto
Passos Guimarães, Heros Trench e Nestor Vera, dessa comissão saiu o principal documento
do Congresso – que será utilizado no presente trabalho – intitulado Declaração do I
Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma
Agrária, assinado em Belo Horizonte em 17 de outubro de 1961 (COSTA, 2010, p. 24).
É esclarecido logo na primeira frase da Declaração que a mesma fala em nome das
massas camponesas, reunidas no congresso com o objetivo de “manifestar a sua decisão
inabalável de lutar por uma reforma agrária radical” (COSTA, 2010, p. 60). Cabe aqui um
parêntese: Francisco Julião, então líder das Ligas Camponesas, explica que,
Muito embora a expressão radical seja tida até hoje como um fuzil apontado para o
latifúndio, seu verdadeiro significado tem sido objeto de distorção. Mas quem, com
isenção de ânimo, examine o seu conteúdo etimológico, perceberá que deriva de
raiz. Apesar disso, tornou-se comum e corrente, na linguagem política, confundir
radicalismo com sectarismo, como se fossem sinônimos.80
A Declaração buscou definir os elementos básicos que caracterizam a situação dos
que vivem e/ou trabalham na terra81 e fixou os princípios gerais que devem nortear uma
reforma agrária radical. A primeira e principal característica da situação agrária brasileira
80
Texto do próprio Francisco Julião, presente no livro de COSTA, L. F. de C., Op. cit., p.31.
O termo camponês aparece diversas vezes na Declaração, porém, neste trabalho não o utilizaremos. Isso
porque, em nossa concepção, para a realidade brasileira não cabe o uso do conceito de camponês.
81
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
citada pelo documento é a questão da concentração fundiária. A Declaração define que é o
monopólio da terra o responsável pela baixa produtividade da agricultura, pelo alto custo de
vida e pelos processos de uma exploração semifeudal. Ou seja, o que é chamado, pelo
documento, como uma estrutura agrária caduca, constitui um entrave decisivo ao
desenvolvimento nacional (COSTA, 2010, p. 61). Dessa forma, é estabelecido que para
melhorar o nível de vida das populações rurais, suas condições de trabalho e superar o
subdesenvolvimento econômico e social do campo brasileiro é necessária a “realização da
reforma agrária que modifique radicalmente a atual estrutura de nossa economia agrária e as
relações sociais imperantes no campo” (COSTA, 2010, p. 61).
Podemos ver presente no documento ainda, a convocação para uma organização das
massas trabalhadoras no campo tornarem-se protagonistas do movimento em prol da reforma
agrária. Além disso, cita que essas massas devem ser ajudadas pelo proletariado das cidades,
pela intelectualidade e pelas demais forças nacionalistas do país.
Quando citam a reforma agrária que defendem, os autores da Declaração afirmam que
aquela diverge e se opõe aos inúmeros projetos e proposições que busquem reformas ou
revisões agrárias. Pois tais reformas são consideradas manobras elaboradas e apresentadas
pelas forças sociais que se beneficiam e prosperam à base da manutenção da estrutura agrária
vigente, uma vez que essas forças têm como objetivo e interesse essa manutenção.
Seguindo em sua exposição, a Declaração esclarece que a reforma agrária pela qual
luta tem como objetivo fundamental a completa liquidação do monopólio da terra exercido
pelo latifúndio, uma vez que este último é o responsável pelo entrave ao desenvolvimento
agrário do país. Dessa forma, defende uma reforma agrária que interesse efetivamente às
massas trabalhadoras do campo e que solucione as principais questões, quais sejam: radical
transformação da estrutura do país com a liquidação do monopólio da terra, através das
desapropriações dos latifúndios, transformando-os em propriedade camponesa individual ou
associada e a garantia máxima de acesso à posse e ao uso da terra pelos que nela desejam
trabalhar.
Além dessas questões relacionadas à mudança da estrutura agrária, apresenta também
a necessidade de soluções que possam melhorar as atuais condições de vida e de trabalho das
massas camponesas. Assim expõe:
a – Respeito ao amplo, livre e democrático direito de organização independente dos
camponeses, em suas associações de classe.
b – Aplicação efetiva da parte da legislação trabalhista já existente e que se estende
aos trabalhadores agrícolas, bem como imediatas providências governamentais no
106
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
sentido de impedir sua violação. Elaboração de Estatuto que vise a uma legislação
trabalhista adequada aos trabalhadores rurais.
c – Plena garantia à sindicalização livre e autônoma dos assalariados e
semiassalariados do campo. Reconhecimento imediato dos sindicatos rurais.
(COSTA, 2010, p. 63).
Vemos na citação acima que se tratava de uma demanda do movimento das
populações rurais, o reconhecimento de suas associações e sindicatos. Podemos ver também a
demanda pela elaboração de um Estatuto para o trabalhador rural.
Um último ponto que destacamos da Declaração é sua afirmação da necessidade da
realização de uma eficaz e inadiável política agrária, capaz de dar solução às questões
indispensáveis à plena realização da reforma agrária então defendida. Enumeram-se, então,
doze medidas com aquele objetivo. Destacamos aqui a primeira delas: a modificação, pelo
Congresso Nacional, do Artigo 141 da Constituição Federal, em seu parágrafo 16, que
estabelece a exigência de “indenização prévia, justa e em dinheiro”, para os casos de
desapropriação de terras por interesse social. Defendem então que esse dispositivo seja
eliminado e reformulado, determinando que as indenizações sejam feitas mediante títulos do
poder público, resgatáveis a prazo longo e a juros baixos. Tal mudança constitucional
constituiu-se em verdadeira “queda de braço” entre o Executivo e o Legislativo brasileiros, e
toda a discussão da questão agrária durante o governo de João Goulart girou basicamente em
torno daquela alteração constitucional.
É importante ressaltar que se iniciou ainda durante o segundo governo de Getúlio
Vargas (1951-1954) o debate acerca do caráter que deveria assumir o desenvolvimento
brasileiro, partindo das noções básicas de que o desenvolvimento, ou seja, a industrialização,
era obstaculizada pelo atraso da agricultura e, muito especialmente, pela estrutura fundiária.
Essa noção geral era quase unânime dentre as classes políticas do Brasil, e é claro que a
solução apresentada para o problema agrário variaria muito do lugar social e político ocupado
por seus enunciadores. O campo brasileiro tornava-se, assim, o centro das questões referentes
ao desenvolvimento do país.
No entanto, diferentemente do ocorrido no meio urbano, o sindicalismo rural nos
moldes de uma estrutura corporativista somente foi implantado no Brasil na década de 1960.
A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em março de 1963, que regulou as relações
de trabalho no campo, que até então estivera à margem da legislação trabalhista, contribuiu
também para a rápida sindicalização no campo. O Estatuto consistia em uma legislação que,
além de estender alguns direitos trabalhistas ao campo, forneceu as bases para o sindicalismo
rural nos moldes de atrelamento ao Estado. A demora desse atrelamento dos trabalhadores
107
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
rurais ao Estado (no sentido restrito) deveu-se a pressões por grupos da classe proprietária de
terras, interessada na manutenção da estrutura fundiária.
O Estatuto penara longos anos no Congresso, onde começou a ser discutido ainda em
meados da década de 1950, em função da resistência de setores identificados aos proprietários
de terras. Sua aprovação só se deu em uma nova conjuntura política, marcada pelo fim do
parlamentarismo e por um processo crescente de pressões sobre o Congresso para a realização
de uma reforma agrária. Tratava-se então, de um Congresso cuja composição havia sofrido
alterações importantes por força das eleições de 1962. Destacamos aqui o aumento do número
de cadeiras do PTB, que praticamente dobrou, passando de 66 para 116 e tornando-se a
segunda
maior
bancada,
ultrapassando
a
União
Democrática
Nacional
(UDN)
(GRYNSZPAN, 2006, p. 67).
Partimos então, para o segundo documento a ser analisado neste trabalho, que tem
caráter diverso do primeiro, trata-se da Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963, que dispõe sobre
o Estatuto do Trabalhador Rural.
A lei tem o objetivo de reger as relações de trabalho no campo. Para isso, em seu Art.
2 define o que é trabalhador rural:
Trabalhador rural para os efeitos desta é toda pessoa física que presta serviços a
empregador rural, em propriedade rural ou prédio rústico, mediante salário pago em
dinheiro ou "in natura", ou parte "in natura" e parte em dinheiro. 82
Tal definição foi considerada por importantes pensadores da época – como, por
exemplo, Caio Prado Jr. – como insuficiente para compreender as diversas formas de relação
de trabalho presentes no campo brasileiro (SANTOS, 2007, p. 119-120). Ainda segundo Caio
Prado, os legisladores do Estatuto não levaram em consideração as diferenças profundas que
existiam nas relações de trabalho no campo brasileiro, quando comparadas com as da
indústria e comércio. As relações de trabalho e emprego no campo brasileiro assumiam,
muitas vezes, grande complexidade, pois a remuneração do trabalhador se fazia por diferentes
formas. Além disso, essas relações variavam consideravelmente no tempo e no espaço. Dessa
forma, o Estatuto reduziu a um mínimo que não refletia e não previa de maneira adequada, as
inúmeras situações que se apresentavam no campo brasileiro.
Guardadas as devidas críticas ao Estatuto, este constituiu um importante avanço nas
relações de trabalho no campo. Tomamos aqui como as principais disposições da lei: a
instituição da Carteira Profissional de Trabalhador Rural, obrigatória para o exercício de
trabalho rural (Art. 11); jornada de trabalho de oito horas diárias, com intervalo para repouso
82
Art. 2 do Estatuto do Trabalhador Rural.
108
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
ou alimentação (Art. 25); salário mínimo, pois fica instituído que nenhum trabalho rural
assalariado poderá ser remunerado em base inferior ao salário mínimo regional (Art. 28); e
férias remuneradas após cada período de doze meses de vigência de contrato de trabalho (Art.
43).
Além das disposições da lei relacionadas às relações trabalhistas no campo, o Estatuto
dispõe também sobre a organização sindical. Fica lícita então, a associação em sindicato aos
empregadores e aos empregados rurais (Art. 114). Porém, para que uma entidade fosse
reconhecida como sindicato, deveria receber carta assinada pelo Ministro do Trabalho e
Previdência Social com tal reconhecimento (Art. 119). A expedição da carta de
reconhecimento era dada à entidade que o requeresse, mediante prova de cumprimento das
exigências estabelecidas no art. 117 do Estatuto. Apontamos aqui um dos requisitos previstos
no art. 117, onde se pode ver como a lei atrelou os sindicatos ao Estado restrito:
Parágrafo único. Os estatutos deverão conter:
(...) c) a afirmação de que a entidade agirá como órgão de colaboração com os
poderes públicos e as demais associações ou sindicatos no sentido da solidariedade
social, do bem-estar dos associados e do Interesse nacional;(...).83
Seguiu-se a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, diversas novas portarias
para regulamentar a questão, que traziam instruções sobre a organização e o reconhecimento
das entidades sindicais rurais (GRYNSZPAN, 2006, p. 67). Além disso, a criação da SUPRA
(Superintendência de Política Agrária) em outubro de 1962, já vinha exercendo grande
influência sobre a sindicalização rural. 84
Pode-se observar então que o início dos anos 1960 é marcado por intensas disputas em
torno da questão agrária brasileira. Cada vez mais os trabalhadores rurais se organizam e a
disputa pela hegemonia no interior do movimento social rural se acirra. O PCB, a Igreja
Católica, as Ligas Camponesas e o governo são os principais atores nessa disputa de
hegemonia. Com o I Congresso Nacional Camponês, o PCB, através da ULTAB, tentou
avançar na disputa. Porém, durante o Congresso, as Ligas Camponesas tiveram um papel
protagonista. Com o desenvolvimento da organização dos trabalhadores rurais, e do processo
de sindicalização destes, as diferenças entre o PCB e as Ligas Camponesas aumentaram. 85
83
Estatuto do Trabalhador Rural, Art. 117, grifos nossos.
A SUPRA foi criada pelo Executivo para ser o seu principal instrumento de intervenção na questão agrária
brasileira.
85
Observam-se, então, as diferentes condutas tomadas pelo PCB e pelas Ligas nos anos de 1960. Enquanto os
comunistas defendiam uma revolução democrático-burguesa dentro dos marcos legais, as Ligas pregavam a
instauração do socialismo. Além disso, as Ligas ressaltavam o papel primordial do campesinato para a
mobilização da Revolução, enquanto o PCB pregava uma aliança operário-camponesa com o predomínio dos
trabalhadores urbanos neste processo.
84
109
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Desde o V Congresso do Partido em 1960, quando foi sistematizada a proposta de um
caminho pacífico para a revolução86, o PCB passou a adotar uma nova conduta política,
baseada na idéia da conciliação e da acumulação de forças. Já as Ligas Camponesas, cada vez
mais defendem uma luta protagonizada pelas populações rurais em prol do direito de acesso a
terra, não por direitos trabalhistas.
Diante deste cenário, o governo Goulart encaminhou o processo de sindicalização no
campo, de forma similar ao realizado nos centos urbanos, ou seja, atrelado do Estado restrito.
Dessa maneira, consegue desarticular os setores que lutavam por uma mudança radical na
estrutura fundiária – protagonizados pelas Ligas Camponesas – pois atende parte das
demandas de amplos setores de trabalhadores rurais.
A Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas
sobre o Caráter da Reforma Agrária e o próprio Congresso Camponês, demonstram um
cenário, no início do governo Goulart, de acumulação de forças em prol de uma mudança
profunda na estrutura fundiária brasileira. A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural87,
em 1963, demonstra, por sua vez, um redirecionamento das discussões em prol das relações
trabalhistas no campo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
COSTA, Luiz Flávio de Carvalho. O Congresso Nacional Camponês. Trabalhadores rurais no
processo político brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica: EDUR, 2010.
GRYNSZPAN, Mario. O período Jango e a questão agrária: luta política e afirmação de
novos atores. In: FERREIRA, M. de M. (Org.) João Goulart: entre a memória e a história.
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e políticas públicas: considerações políticoconceituais. In: Outros Tempos, v. 1, 2007, p.1-12.
RAMOS, Carolina. Sindicato Patronal Rural e Reforma Agrária no Brasil; uma análise da
atuação da Confederação Nacional da Agricultura frente às políticas governamentais
voltadas para a questão fundiária (1961-1970). Dissertação de Mestrado apresentada ao
PPGH/UFF, Niterói, 2006.
SANTOS, Raimundo & COSTA, Luiz Flavio Carvalho. Camponeses e Política no pré-1964.
In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: CPDA, abril de 1997, n. 8.
______. Agraristas Políticos Brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2007.
86
Textos divulgados no V Congresso de autoria de Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr defendiam a idéia
de uma política gradualista e de aliança com a burguesia nacional para, depois, implantar o socialismo. Cf;
SANTOS, Raimundo & COSTA, Luiz Flavio Carvalho. Camponeses e Política no pré-1964. IN: Estudos
Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: CPDA, abril de 1997, n. 8.
87
E a série de portarias que são aprovadas a seguir regulamentando a matéria.
110
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Fotografia, memória e paisagens urbanas: reflexões sobre cidade de Nova Iguaçu na
década de 1930
Natalia Azevedo Crivello *
Resumo: Descrições a respeito de cidades estão sempre presentes nos escritos de viajantes.
Descrições de bairros, referências a certos lugares e áreas são constantes nos relatos de
memorialistas e textos de literatos. Pontos de referência ao leitor, bem como algo relacionado
à sua permanência ou formas de traçado urbano e edificações, ou mesmo de sua rápida
transformação, fazem da materialidade dos núcleos urbanos um suporte à memória, recorte
preciso com contornos apreensíveis, capaz de orientar o conhecimento ou o reconhecimento
dos que por elas passam ou moram (BRESCIANNI, 2003, p. 238). Ao tentar perceber as
relações que se travam em uma cidade – Nova Iguaçu – no período delimitado – 1930 a 1940
– não nos propomos conceber as transformações da cidade que deixa de ser essencialmente
agrária e transforma-se gradativamente em núcleo urbano, numa tentativa de opor a urbe a
uma suposta vida campestre idealizada. O objetivamos entender a localidade dentro de sua
lógica própria, as relações de poder, bem como as representações simbólicas efetuadas. Para
tal utilizaremos como fontes imagens fotográficas de Nova Iguaçu da década de 1930.
Palavras-Chave: Nova Iguaçu; Fotografias; transformações urbanas.
Abstract: Descriptions of cities are always present in the writings of travelers. Descriptions
of neighborhoods and references to certain places and areas are listed in the reports and in
memoirs in literary texts. Points of reference to the reader, as something related to his stay or
to forms of urban layout and buildings or even its rapid change, they make from the
materiality of an urban core a memory support, that is cut precisely within apprehensible
contours, capable of guiding knowledge or recognition to those who live or pass by them
(BRESCIANNI, 2003, p. 238). As we try to apprehend the relations that are created in a city Nova Iguaçu – in a limited period - 1930 to 1940 - we do not propose to consider the
transformations of a city that ceases to be essentially agrarian and becomes gradually an urban
core, in an attempt to oppose the metropolis to a supposed ideal country life. We aim to
understand the local within its own logic, the power relations and the symbolic
representations related to it. For this purpose, we will use as sources photographs of Nova
Iguaçu in the 1930’s.
Keywords: Nova Iguaçu; Photographs; urban transformation.
Este artigo é resultado das discussões e reflexões realizadas na disciplina “Imagem,
memória e paisagens urbanas: reflexões sobre a prática historiográfica entre arte e cidade”,
ministrada pela professora Andrea Casanova Maia no PPGHIS IFICS-UFRJ. A partir desses
debates, também serão discutidas e relacionadas com a bibliografia do curso algumas questões
pertinentes encontradas no projeto de Mestrado “Os laranjais da cidade de Nova Iguaçu:
testemunhos fotográficos de uma transformação (1930-1940)”, que está em fase de
finalização, no PPGHS da Faculdade de Formação de Professores da UERJ.
*
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
UERJ (PPGHS-UERJ).
111
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A pesquisa em curso se propõe analisar o processo de transformações que o município
citricultor de Nova Iguaçu passa no recorte temporal de 1930 a 1940, momento em que a
lavoura de cítricos dá lugar ao espaço citadino. Estão em disputa no campo político 88
municipal os representantes da fração de classe citricultora. Estes indivíduos são retratados
em várias fotografias, que são as fontes de nossa pesquisa, amparadas pela bibliografia da
história local.
Através dessas imagens, sustentamos a hipótese de que é possível perceber como a
‘crise’ dos laranjais propiciou as transformações urbanas do centro da cidade; a partir dessas
transformações, a fração de classe dominante na localidade – os laranjeiros – apropriam-se de
um repertório89 político intelectual de serem os representantes da modernidade. Desta maneira
é perceptível no município, por parte deste grupo, em Nova Iguaçu, a construção de
identidades de maneira a fortalecer o imaginário em torno do “mito da idade de ouro” local.
As coleções de fotografias que se constituem como fontes desta pesquisa foram
gentilmente cedidas pelo Instituto Histórico e geográfico de Nova Iguaçu. Neste exato
momento, iniciamos nossa discussão.
Toda pesquisa histórica é amparada por fontes, que desta maneira são selecionadas
pelo historiador. Em nossa pesquisa, selecionamos uma coleção de imagens. Mas o que
exatamente é uma coleção? Qual o seu objetivo? Krzysztof Pomian define ‘coleção’ como
“qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente
fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local
fechado preparado para este fim, e expostos ao olhar público”90 (1997, p.53).
O homem é desde cedo um produtor de utensílios, habitações, entretanto de um tempo
mais recente desenvolveu um instinto de propriedade, uma propensão a acumular coisas,
objetos, com a finalidade de guardá-los para que em determinado momento fossem expostos
ao olhar, com determinado fim; assim surgem as primeiras coleções.
Na coleção em questão, a fotografia é banida de sua função - de estar num portaretratos de prata decorando um aparador e sempre trazendo à lembrança de quem passa ou
88
Conferir a definição de ‘campo’ em: Bordieu, P. O poder simbólico. RJ: Bertrand Brasil, 2010, p. 59
Um repertório é o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo: padrões
analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de
linguagem; conceitos e metáforas (Swidler, 1986). Não importa a consistência teórica entre os elementos que o
compõem. Seu arranjo é histórico e prático. Cf. em A. Critica e contestação: o movimento reformista da geração
de 1870. RBCS. Vol. 15, n. 44, outubro, 2000.
90
Os objetos de colecionados são denominados pelo autor de semióforos, “objetos que não têm uma utilidade no
sentido de serem consumidos ou servir para obterem-se bens de subsistência, ou transformar matérias brutas de
modo a torná-las consumíveis, entretanto são dotados de um significado, são representações de um invisível”,
Cf. em POMIAN, K., 1997, p.71.
89
112
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
indicando a quem chega determinado momento importante: foi eleita entre tantas para ocupar
tal posição, em vez de estar encerrada num álbum – e se transforma num objeto de análise em
uma pesquisa histórica. Continuará a ser exposta ao olhar, entretanto um olhar nada inocente,
que a explora, especula e objetiva a descortinar as minúcias justapostas nas entrelinhas.
Deste modo, as coleções custodiadas por Arquivos e Institutos encontram nestes
órgãos a função de as colocar em segurança, recolher classificar, conservar, guardar e tornar
acessíveis estes documentos, os quais tendo perdido a sua antiga utilidade são considerados
supérfluos nas repartições e nos depósitos, merecerem ser resguardados. (BUCHALSKI et al.,
1952 apud POMIAN, 1997, p.53).
Interessante para nós é essa função que é atribuída tanto às coleções, quanto às
fotografias (sejam elas integrantes ou não de coleções). Ambas são alvo de uma relação de
representação, sempre relativa a um observador. E nesse sentido, estabelecem uma oposição
entre o invisível e o visível, entre o passado que se foi e o(s) objeto(s) representante(s) deste
passado no presente. Engendram o invisível, porque seu próprio funcionamento, num mundo
onde aparecem fantasmas, onde se morre e acontecem mudanças, impõem a convicção de que
o que se vê é apenas uma parte do que existe (POMIAN, 1997, p. 68 e 71), no caso da
fotografia de um momento que existiu.
No que se refere à quantidade de objetos necessários para formar uma coleção, não se
tem uma resposta, obviamente é uma questão abstrata, não se possui uma regra. Disto
dependem do local em que são acumuladas, da sociedade, do modo de vida, das intenções de
cada um. Isso nos sugere um caráter fragmentário do ato de colecionar. Excetuando-se as
coleções limitadas produzidas para este fim por editoras e empresas do tipo, o ato de
colecionar pode constituir-se em obsessão. Não se pode colecionar o mundo inteiro, isto foge
totalmente de nossas mãos.
Igualmente as fotografias possuem essa característica, são fragmentárias enquanto
registros de representações de um passado bem como quando constituem coleções. As
imagens fotográficas são resultado da interrupção do tempo no momento que o fotógrafo
dispara a câmera, em que o fragmento selecionado daquela realidade será fixado com auxílio
de reações físico-químicas na superfície plana do papel.
Busquemos amparo metodológico para tratar nossa coleção de imagens em um autor
caracterizado justamente por sua obra considerada fragmentária e incompleta (GINZBURG,
1989, P. 47) o historiador da arte alemão Aby Warburg 91 e o seu Atlas mnemosyne. Na
91
Abraham Moritz Warburg mais conhecido como Aby Warburg (Hamburgo, 13 de junho de 1866 — 26 de
outubro, 1929) foi um historiador da arte alemão, célebre por seus estudos sobre o ressurgimento do paganismo
113
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Mitologia Grega, Atlas era um Titã, que como castigo por ter enfrentado os deuses juntamente
com seu irmão Prometeu foi obrigado a sustentar com seus ombros o peso da abóbada celeste
inteira, o que lhe fez adquirir grande conhecimento e sabedoria. Deste modo teria sido o
precursor dos astronautas, geógrafos, e há quem diga foi o primeiro dos filósofos (DIDIHUBERMAN, 2011).
Deste modo, chamamos atlas a formas visuais de conhecimento: inicialmente um
conjunto de mapas geográficos, reunidos em volumes, em livros de imagens que têm como
objetivo nos oferecer sistemática ou problematicamente uma variedade de coisas reunidas por
afinidades eletivas. (DIDI- HUBERMAN, 2011)
O Atlas Mnemosyne reúne os objetos de sua pesquisa (imagens, fotos, figuras) em um
dispositivo de painéis móveis constantemente montados, desmontados, remontados. Segundo
Didi-Huberman (2011) é considerado como uma história documental do imaginário ocidental
e como uma ferramenta para compreender a violência política nas imagens da história.
“Mnemosyne foi sua paradoxal obra prima e seu testamento metodológico. Com ele
Warburg transformou o modo de compreender as imagens” (DIDI- HUBERMAN, 2011).
Essa forma de tratar as imagens é bem significante para nossa pesquisa. Primeiramente
porque seu Atlas expressa todas as características de uma coleção. Segundo que o fato de
montar esse corpus de imagens em painéis confere a ele toda uma mobilidade, uma
possibilidade de transformação.
Assim sendo, sempre que um historiador constitui suas fontes, está criando seu próprio
atlas, seu corpus documental. Isso nos faz ter a consciência de nosso ofício. Na sua oficina,
que é a sociedade no tempo, o historiador organiza, reconfigura a ordem das coisas e dos
lugares de forma que suas inquietações e indagações a respeito de determinado tempo sejam
respondidos.
Deste modo percebemos a insuficiência do método de constituição de fontes, pois na
tentativa de recomposição do mundo as informações são sempre incompletas e sempre
resultado de representações relativas a um observador. São classificadas, posicionadas,
no renascimento italiano. Ficou conhecido também pela Biblioteca referencial que levava seu nome, e que reunia
uma grande coleção sobre ciências humanas e que, ao ser transferida para Londres em 1933, tornou-se a base
para a constituição do Instituto Warburg (sua única obra realmente acabada) O Bilderatlas Mnemosyne (Atlas de
Imagens Mnemosine), em seu nome, homenageia a musa grega da memória, Mnemosine. Era o projeto mais
ambicioso de Warburg, que pretendia estabelecer "cadeias de transporte de imagens", linhas de transmissão de
características visuais através dos tempos, que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no
nascimento da civilização ocidental, nessas imagens. O projeto foi interrompido com a morte do historiador,
mas, segundo seu biógrafo, E.H. Gombrich, o projeto estava destinado a ser inconcluso, devido à sua enorme
ambição e abrangência temporal. "Mnemosyne", em grego, era a palavra gravada na entrada da Biblioteca
Warburg, em Hamburgo.
114
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
reconfiguradas de acordo com um olhar, ou seja, são construídas arbitrariamente, de maneira
que respondam às indagações de quem as analisa.
Outro assunto relevante à pesquisa é a relação entre linguagem e imagem. Existirá
sempre uma insuficiência da ‘tradução de imagens’, produzindo-se uma espécie de hiato entre
aquilo que se vê e aquilo que se fala ou se escreve sobre o que se é visto. Nesse sentido a
relação entre imagem e linguagem é infinita e também prolífera.
Segundo Gruzinski (2006, p.14), no que tange a imagem “o maior paradoxo seria
estarmos num mundo de proliferação de imagens e continuando a pensar que estamos sob o
poder do texto”. Os próprios textos não deixam de ser ou expressar uma imagem. Nestes
termos, o ‘simples olhar’ não existe, os olhos estão sempre à procura de algo que exerça sobre
si um enredamento. Assim, “precisamos nos habituar” nos diz Merleau-Ponty,” a pensar que
todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que
há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o
visível e o que está incrustado nele”. (PONTY apud DIDI-HUBERMAN, 1998, p.30) A
imagem fotográfica é portadora de história e tempo e carrega saberes inacessíveis que nos
escapam.
A metodologia de Warburg no tratamento de imagens é bastante rica para nós, com a
ressalva de que o autor trabalhava em geral com obras de arte. Mas isso não é problema, pois
as obras de arte são imagens bens como as fotografias, que também podem ser consideradas
arte. Apesar de não ser esta a nossa discussão, o que interessa é justamente que o estudioso
alemão recusava-se a realizar leituras puramente ‘impressionistas’ e estetizantes das obras de
arte. Em suas pesquisas, o crítico considerava as suas imagens à luz de testemunhos
históricos, de qualquer tipo e nível, em condições de esclarecer sua gênese e seu significado,
de outra forma, a própria imagem deveria ser interpretada como fonte sui generis para a
reconstrução histórica (GINZBURG, 1989, P. 56). Note-se que ele percebe a idéia de
reconstrução, afinal de contas, a história é uma construção social ocorrida em determinada
época.
Além do fato da existência de uma incompatibilidade entre a imagem e a linguagem _
sendo irredutíveis uma à outra “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja
jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, o lugar
onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles a que as
sucessões da sintaxe definem” (FOUCAULT, 1999, p.12) _ existe a questão de sua
apropriação e manipulação. Assim, do mesmo modo que a palavra e o texto, a fotografia pode
ser veículo de todos os poderes e todas as resistências (GRUZINSKI, 2006, p.17); ela é
115
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
possível de ser manipulada em várias instâncias, e nesse caso sofre seleção por vários filtros
culturais.
Entre a simples foto e aquele que a vê existe um mundo de intenções incógnito e
pronto para ser desvendado. Entre os filtros culturais temos todos os indivíduos e trajetórias
pelos quais o fotograma passou: o fotógrafo que capturou o momento; a pessoa retratada;
aquele quem mandou retratar; o fato de o retrato ter sido escolhido ou descartado, ser exposto
no porta-retratos ou ficar recluso num álbum ou mesmo enclausurado longos anos num baú; o
fato de ser reencontrado como tesouro ou jogado no lixo, ser restaurado ou vendido numa
feira de antiguidades, ou doado a um instituto de pesquisa; se foi comprado ou se faz parte de
um corpus documental com objetivo de ser analisado por um estudioso. Tudo isso caracteriza
seleção, construção, arbitrariedade, intenção. Importante lembrar sempre que a foto é uma
representação de uma realidade.
Em nossa pesquisa as imagens fotográficas são as fontes que retratam as
representações das transformações em uma cidade _ Nova Iguaçu. Para compreender as
transformações na cidade, concebemo-la como um palimpsesto92. O espaço é escrito,
apagado, reescrito como os textos nos pergaminhos antigos. Desta forma. Nova Iguaçu
sucessivamente tem seu espaço transformado, entretanto é possível recuperar em nestes
espaços caracteres de seu passado: primeiramente sua sede é transportada das margens do rio
que dá nome ao local para o Arraial de Maxambomba - às margens da Estrada de ferro
Central do Brasil. Maxambomba tem seu nome modificado para Iguaçu e posteriormente para
Nova Iguaçu. O território iguaçuano, vê através dos séculos serem inscritas nas suas terras
culturas de cana de açúcar, café, gêneros alimentícios de subsistência e Laranjas. Cada espaço
da cidade testemunhou esses processos históricos sobrepondo-se uns aos outros.
A título de demonstrar essa sobreposição de tempos indicamos duas fotos do que hoje
é a Região central em dois momentos distintos: décadas de 1930 e 1940.
92
O palimpsesto é uma imagem arquetípica para a leitura do mundo. Palavra grega surgida no século V a.c.,
depois da adoção do pergaminho para o uso da escrita, palimpsesto veio a significar um pergaminho do qual se
apagou a primeira escritura para reaproveitamento por outro texto. A escassez de pergaminhos os séculos de VII
a IX generalizou os palimpsestos, que se apresentavam como os pergaminhos nos quais se apresentava a escrita
sucessiva de textos superpostos, mas onde a raspagem de um não conseguia apagar todos os caracteres antigos
doa outros precedentes, que se mostravam, por vezes, ainda visíveis, possibilitando uma recuperação.
(PESAVENTO, S.) Cf. em HUYSSEN, A. Present Pasts. Urban palimpsests and the politics of memory.
Stanford: Stanford University Press, 2003
116
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Imagem 1:
Centro de Nova Iguaçu: 1930
Note-se que a foto é tirada pelo lado da Serra de Madureira e mostra a área mais plana
onde ocorreu a expansão da cidade. Todo o espaço retratado na fotografia é hoje ocupado por
casas, lojas, edifícios etc. Percebem-se os pés de laranja no primeiro plano à direita e mais ao
fundo tomando toda a área inclusive atrás da Igreja de Santo Antônio de Jacutinga. Percebemse construções, porém um número reduzido e o traçado urbano indefinido. A Igreja ainda com
suas duas torres. A linha férrea, apesar de não poder ser vista nesta imagem, passa em linha
reta à frente da Igreja. Vemos uma única rua aparentemente não pavimentada bem ao centro
da fotografia. Observamos que o que predomina nesta fotografia é o território cultivado,
repleto de laranjais. Vejamos na próxima imagem a re-escritura deste palimpsesto que é a
cidade de Nova Iguaçu.
Imagem 2:
Centro de Nova Iguaçu: 1940
117
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Pode-se observar que a foto panorâmica é tirada na posição oposta à Imagem 1.
Percebemos ao fundo a Serra de Madureira que contém a expansão da ocupação habitacional,
entretanto vemos em seu sopé pés plantações de cítricos. Em relação à imagem anterior,
predominam as construções. Note-se que na área dos lados e fundos da igreja, os laranjais
deram lugar a edificações. Percebemos o início da transformação da lavoura de cítrico - que
predominava na região do centro – em espaço urbano incipiente. O que mais chama atenção
nesta foto é o traço das ruas que é mais forte e geométrico em relação à imagem anterior onde
não apareciam. Percebemos, ainda, em frente à Igreja – neste momento com a configuração
que perdura até os dias atuais – da estrada de ferro e das duas principais ruas da cidade, num
traçado retilíneo. Perpendicularmente a partir da ferrovia outras ruas vão surgindo abrindo
caminho para a expansão. Laranjais ainda são visto no primeiro plano à direita da imagem,
cedendo lugar às construções.
No que tange a questões referentes à urbanística, organização e expressão de
funcionalidade, encontramos pela primeira vez – após o fim do mundo clássico - de forma
consciente e orgânica a problematização da cidade pela cultura humanista do Renascimento,
que contribuíram para o desenvolvimento das cidades a partir daquele período. Neste
momento surge de fato uma ciência da cidade, a urbanística. Levemos em consideração que a
existência de uma teoria ou ciência urbanística pura e simplesmente não é suficiente para
realizar transformações radicais, entretanto é um fator que influi efetivamente nas
transformações urbanas produzidas sob a pressão das exigências sociais econômicas e
políticas. (ARGAN, 1997, p.56). Em Iguaçu, como um dos motivos para as transformações,
percebemos como pressão de exigências sociais e econômicas a reorientação da cidade para
atender à expansão da metrópole capital, Rio de Janeiro. (Apesar de a fração de classe
dominante – a saber os citricultores - apropriarem-se de uma ideia de processo civilizador do
qual seriam protagonistas).
Assim, nos tratados de arquitetura dos séculos XV e XVI estão repletos de cidades
ideais, apesar de possivelmente elas não terem saído do papel. Não queremos e seria
impossível situar as transformações em Iguaçu neste patamar, afinal 500 anos nos separam e
cada localidade tem sua lógica e suas peculiaridades. Entretanto naquele período se pensou de
forma mais organizada, e partir de então se desenvolveram as cidades modernas.
Assim percebemos a transformação de Iguaçu, dentro de uma lógica urbana. Partimos
do pressuposto da cidade enquanto organismo sócio-econômico e que se constitui uma
entidade política, em cujo campo forças em contraste estão em embate nas disputas pelo
poder.
118
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Retomando a Imagem 2, a cidade não é mais um agregado denso de construções
desordenadamente distribuídas pelo espaço urbano, com ruas tortuosas e quase imperceptíveis
por serem estreitas; as próprias plantações ainda aparentes são ordenadas, entretanto chama
atenção ´traçado’ geométrico das ruas o surgimento dos primeiros loteamentos. Argan (1999,
p.57) nos chama atenção de que nas transformações para a cidade moderna, pode ser
observada uma separação bastante nítida entre as áreas de representação e de resistência
senhoril, onde se exerce a direção e administração e moradias.
Na Imagem 2 isto pode ser indicado. A ferrovia foi originariamente estabelecida bem
próxima ao sopé do maciço do Gericinó-Medanha- a Serra de Madureira vista ao fundo – pois
o solo iguaçuano é demasiado úmido e em algumas áreas alagadiço e pantanoso. Havia
necessidade de implantar a ferrovia sobre um solo seco e firme para não ocorrerem acidentes.
Com a mudança da sede do Município para as margens da ferrovia, as áreas em seu entorno
valorizaram, principalmente a área de declives do lado da serra de Madureira. Nas ‘ladeiras’
firmes e secas estabeleceram-se os solares das famílias de posse da localidade, que, sobretudo
no período da laranja, eram proprietários dos barracões de beneficiamento dos frutos. Logo,
no sopé da Serra de Madureira estabeleceu-se uma área nobre da localidade – até hoje nesta
área encontram-se habitações com preços mais elevados – voltada para moradias e escritórios
para atividades liberais. É neste ‘lado’ também, que é construído o hospital, fundado em 1935,
numa área bastante espaçosa e de clima bem ameno.
Na fotografia abaixo, Imagem 3, foto da inauguração do hospital. Ao fundo, à
esquerda, trecho do Maciço do Gericinó. Vale destacar na imagem, no canto superior
esquerdo a fiação elétrica, na área considerada mais nobre da cidade. O hospital, contou na
sua inauguração, com a presença do Chefe do Executivo Nacional, Presidente Getúlio Vargas.
A rua sobe perpendicular à ferrovia e culmina na praça onde o hospital foi erguido. Na
ocasião a rua teve seu trajeto pavimentado e o nome mudado, para Rua Getúlio Vargas
(Imagem 4), em homenagem ao Presidente.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Imagem 3:
Inauguração do
Hospital Iguaçu
Ao fundo na Imagem 4 temos trecho da serra de Madureira ocupado por laranjais.
Percebe-se que a rua segue subindo até fazer uma curva, onde encontrará o Hospital Iguaçu.
Notamos as calçadas bem largas para os passantes, com árvores ainda pequenas o que nos
indicam que esse visual é recente (hoje as árvores estão altas e frondosas e produzem um ar
bem nostálgico, pois rua ainda tem algumas das construções antigas). Atenção que esta é uma
das ruas onde vivem famílias abastadas.
Imagem 4:
Rua Getúlio Vargas
120
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Segundo Argan (1999, p. 57) enquanto forma visível a cidade não expressa mais os
ideais e interesses de uma comunidade cívica, mas os valores e princípios e que o poder
político se sustenta e justifica. Desta forma torna-se clara a distinção entre as ruas principais,
onde se concentra a administração e as ruas secundárias. Neste sentido, cresce o número e a
imponência dos edifícios de caráter representativo. Voltando à Imagem 2, a Rua localizada
entre a Igreja de Santo Antônio de Jacutinga e a ferrovia, é a Av. Mal Floriano, melhor
identificada na Imagem 5. Ao longo da via, encontram-se estabelecidas algumas packinghouses, ou barracões de beneficiamento das laranjas; o fato de alguns barracões serem
‘vizinhos’ à estação de trem agilizava o embarque dos frutos. Estavam ali estabelecidos de
forma estratégica.
Nesta Avenida cujo nome permanece atualmente, fervilhava a vida no município. Ela
segue a ferrovia em suas duas direções. Ao longo desta avenida encontram-se várias
construções, muitas lojas com sobrados onde moram os comerciantes proprietários
(diferentemente da Rua Getúlio Vargas da Imagem 4 onde vemos casas e solares). Nela
encontravam-se padarias, casas bancárias, cafés, empórios: era a rua onde os moradores
realizavam suas compras, bem como onde os trabalhadores cansados da jornada do trem
faziam um pouso antes de voltarem para suas casas nas regiões mais distantes do município.
Na imagem pode perceber que avenida é bem extensa. Logo à direita o Café e Bilhares Elite,
ponto de encontro dos rapazes e dos intelectuais locais. Note-se que a Av. Marechal Floriano
não é arborizada como a Rua Getúlio Vargas, caracterizada principalmente por residências.
As árvores cedem lugar aos postes de energia elétrica.
Imagem 5.
Av. Mal Floriano.
121
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
O traçado urbano indica a nova ordem hierárquica que é estabelecida na cidade. No
mesmo espaço urbano, encontra-se mais de uma cidade, esboçando-se a distinção entre as
frações de classes dominantes e dominadas, o que é traduzido na relação centro-periferia.
Ressalte-se que as imagens até agora mostradas retratam o centro, onde está localizado o
comércio, as relações político-administrativas e as habitações das classes mais ricas. As áreas
onde vivem os trabalhadores localizam-se bem distantes desse centro de Nova Iguaçu. Algo
bastante curioso: nos arquivos em que as fotografias foram pesquisadas não encontramos
retratos destes bairros. Esses indivíduos simplesmente transitam pelas áreas retratadas e
voltam para suas moradas que se estabeleceram nas áreas periféricas de Nova Iguaçu.
A respeito da citricultura em Nova Iguaçu, detectamos um fenômeno bastante peculiar
na história da localidade. Algo que chama atenção é o fato de destaque do período em que nas
terras iguaçuanas cultivavam-se laranjas, entre as décadas de 1930 e 1940. Isso num
município cujas terras foram desbravadas ainda no início da colonização no século XVI 93.
Enquanto a Região do Recôncavo Guanabarino (Iguaçu, até a primeira metade do século XX
abrangia toda essa área) com seus múltiplos caminhos ligando o interior do país ao centro do
RJ escoando grande parte da riqueza – ouro, café e gêneros de subsistência – e deixando no
seu rastro grandes comerciantes e fortunas, quilombos, tribos indígenas, imigrantes anônimos,
uma cultura rica e diversificada o que resplandece na memória local é a história dos laranjais.
Partimos do pressuposto que a memória é seletiva. Michel Pollack (1992, p.2) nos
indica que entre os elementos constitutivos da memória individual e coletiva, existem aqueles
“vividos por tabela”. Esses são os acontecimentos que a pessoa talvez não tenha vivido, mas
que no imaginário, tomaram grande relevo, de maneira que o indivíduo não consegue
discernir se viveu ou não. A idéia que nos interessa aqui é o momento em que determinado
momento tome tamanho relevo na história coletiva, no caso de Nova Iguaçu, esse período
citricultor. Segundo o proposto por Pollack (1992, p.2), é possível que por meio de
socialização política, ou histórica, ocorra o fenômeno de projeção ou identificação com
determinado passado de forma que exista uma memória quase herdada.
É construído em Nova Iguaçu um mito da idade de ouro, que busca resgatar a história
citricultora com objetivos de produzir identidades em relação a esse passado considerado
93
“Durante muito tempo as terras que formaram Iguaçu, ficaram abandonadas até que seus rios desembocando
na baia da Guanabara, foram, aos poucos, penetradas por colonos. Daí datam as primeiras sesmarias, na metade
do século XVI”. “Em 1577, Cristóvão de Barros recebia de Mem de Sá (...) uma légua de terra desde o salgado
pelo rio acima e meia de largo para cada parte do Rio Iguaçu, ficando este no meio” Cf. em PEREIRA, Waldick.
A mudança da Vila (história iguaçuana) Nova Iguaçu-RJ: FGV, 1970. p. 11.
122
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
áureo por determinado grupo – a saber, os reminiscentes da fração de classe citricultora. Para
compreendermos esse fenômeno, buscaremos apoio na obra de Svetlana Boym.
Em seu ‘The Future of Nostalgia’, Boym realiza estudo sobre nostalgia. O termo foi
utilizado durante o século XVII para diagnosticar uma doença curável que acometia pessoas
causando o que entendemos como saudade, bem como um desejo de retorno ao lar, uma
espécie de sentimento de perda. Num senso amplo, nostalgia é uma espécie de rebelião contra
a idéia moderna de tempo, o tempo da história e do progresso. Entretanto, em finais do século
XIX esse fenômeno deixou de ser uma doença e transformou-se numa condição incurável
moderna. Nostalgia é um sintoma de nossa época, uma emoção histórica.
A autora diferencia dois exemplos de nostalgia – ‘restorative’ ou restauradora e
‘reflective’ ou refletiva. Ambas estabelecem uma relação com o passado, com uma
comunidade imaginada94, com o lar. A nostagia restauradora nos interessa pois está no cerne
dos recentes ‘revivals’ nacionais e religiosos.
Deste modo nostalgia restauradora enfatiza o ‘nostos’ - ou retorno ao lar – propondo a
reconstrução da pátria perdida e a correção de falhas de memória. Ela é exercida
principalmente na criação de um mito da idade de outro. Manifesta-se em reconstruções de
momentos do passado. É assim que percebemos esse fenômeno em Nova Iguaçu. É criado um
mito da idade de ouro numa tentativa por parte de alguns moradores locais de trazer à tona a
fase áurea da lavoura citricultora.
O mito é perpetuado pela classe citricultora e seus descendentes com objetivo de
resguardar sua história e em torno desta paira uma espécie de aura dos anos dourados da
cidade perfume. Dos mais clássicos exemplos da exploração desse mito, apresentamos o hino
municipal95, cuja letra remete de maneira saudosista a história recente do município,
enaltecendo a os ‘encantos da cidade’ desde os ‘tempos de outrora’ numa representação na
qual o atual município aparece como expoente no cenário fluminense, relembrando o período
dos engenhos de açúcar nela existentes no período colonial, e sutilmente aludindo à cidade
dos ‘doirados laranjais’. Apesar de o hino mencionar o momento da cana de açúcar que é
94
Benedict Anderson, na definição do termo nação, a estabelece enquanto uma comunidade política imaginada,
limitada e soberana. (ANDERSON, 2008, p.32). Nos apropriamos deste termo – comunidade imaginada - para
caracterizar a localidade em questão - Nova Iguaçu.
95
Instituído pelo Decreto-Lei nº 102 de 19/06/79, Letra de Paulo da Costa Navega e Música de Tereza Stella
Pinheiro Lopes : “Nova Iguaçu! Nova Iguaçu,/ Terra linda e encantadora,/Desde os tempos de outrora,/Dos meus
velhos ancestrais,/ Tens uma história/Cheia de belezas mil,/O encanto fluminense/ É orgulho do Brasil/A
Maxambomba/ Dos engenhos do passado,/ Nova Iguaçu/Dos dourados laranjais./Hoje feliz,/Com teu rico
alvorecer,/ Com teu progresso e beleza,/ Fiz consulta à natureza/ És grande desde o nascer.” Disponível em
http://www.novaiguacu.rj.gov.br/simbolos.php, acesso em 15/11/2010.
123
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
considerada uma riqueza do estado do Rio de Janeiro, o que predomina nas representações
locais é a citricultura.
O hino é um símbolo através do qual se cultua e exalta a pátria, a nação, neste caso a
municipalidade. Quando ele é cantado, de certo modo traz um anseio de comunhão,
identificando, homogeneizando a todos num sentimento único. Ao se cantar o hino municipal
se recriam e reproduzem as lealdades a um sujeito coletivo [que] não se dissolve magicamente
no município, como que experimenta o município em si mesmo 96 (ESTÉVEZ, apud BERG,
2008, p.755). Assim o Hino Municipal tenta idealizar em sua musicalidade a cidade de forma
bucólica.
Outro exemplo da difusão do mito da laranja é encontrado no livro de memórias
‘Laranjas brasileiras’ de Iracema Baroni de Carvalhos, filha de um dos mais prósperos
produtores de laranjas em Nova Iguaçu, o Comendador Francisco Baroni - O “rei da laranja”.
Logo na primeira página do livro, numa espécie de ‘carta ao leitor’ segue a frase: “Escreve-se
a História não para adulação mas para o testemunho da verdade”(CARVALHO, 1997, p. 09).
De acordo com Boym (2001, p. 41) os acometidos por essa categoria de nostalgia não se
entendem desta maneira, acreditam que seu projeto é sobre a verdade. Iracema Baroni nos
indica uma tênue relação com a historiografia tradicional, apesar de não ser uma historiadora
e sim uma memorialista, o que é percebido quando a autora relata que no livro “não couberam
todas as lembranças e saudades que parecem ter nascido comigo” (op. cit., p.09).
Deste modo Iracema Baroni já no início realiza uma crítica pois acredita que os
acontecimentos referentes ao passado citricultor citricultura não são valorizados como devem:
“Existem enganos e controvérsias, dentro das interpretações que não colocam em seus
devidos lugares (...) os acontecimentos do tempo da Cidade Perfume” (op. cit., p.09). A autora
continua nos indicando e louvando este tempo “impregnado de paz e felicidades,
inesquecíveis, que prenunciava a chegada do século XX que em suas primeiras três décadas
daria a Nova Iguaçu as alegrias em forma de prêmios dulcificando três séculos” (op. cit.,
p.09).
A moradora saudosista ainda compôs músicas enaltecendo a sua terra natal; segue
trecho de uma valseta de sua autoria: “Já não sinto o perfume/Do teu laranjal/Outrora tão
florido/Mas não deixarás de ser/Dentro do coração/Nova Iguaçu Florido” (CARVALHO
1997, p.65). Não estamos aqui julgando ou desmerecendo essa exaltação, entretanto em nossa
96
Leia-se a transcrição original do texto, no qual optamos trocar nação por município de maneira que não
ocorra nenhuma alteração no sentido da frase: “ao se cantar o hino nacional se recriam e reproduzem as
lealdades a um sujeito coletivo [..., que] não se dissolve magicamente na nação, como que experimenta a
nação em si mesmo”. (ESTÉVEZ, apud BERG, 2008, p.755)
124
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
pesquisa não encontramos louvores e elogios por parte dos grupos de trabalhadores, dos que
trabalhavam nas lavouras e nos barracões. Ou ainda livros e músicas narrando seus feitos e
sua luta. Percebemos, neste caso, tentativa de reforçar sentimentos de pertencimento e
fronteiras sociais. Este retorno ao passado com a intenção de manter a coesão de grupos e
instituições que formam uma sociedade para definir seu lugar respectivo são funções da
memória (POLLACK, 1989, p. 09).
Ao estudar a cidade de Nova Iguaçu e suas relações políticas e transformações
urbanas, nos remetemos à retórica que, segundo Aristóteles, é o germe da política. (ARGAN,
1997, p.38). A política é exercida na polis – a cidade antiga – que se funda originariamente
sobre a possibilidade de persuasão recíproca. A cidade, cuja sede é deslocada para as margens
da ferrovia, abriga o centro de poder local, e ao seu redor desenvolve-se o projeto de avenidas
que correspondem ao transito e à necessidade de comunicação. Essa comunicação ainda se dá
de forma contínua com o centro principal – a cidade do Rio de Janeiro - através da ferrovia. O
esquema urbanístico se baseia na perspectiva da função do pensamento que pensa o espaço,
mesmo que inconscientemente.
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Nacional-Casa da Moeda, 1984.
126
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A militância do Apostolado Positivista em favor da implantação de uma Ditadura
Republicana no Brasil (1889-1891)
Rafael Reis Pereira Bandeira de Mello *
Resumo: Este trabalho tem como objetivo destacar a militância política dos membros do
Apostolado Positivista do Brasil no alvorecer da república brasileira. Buscaremos
compreender o motivo do Apostolado não ter conseguido que seu projeto de implantar uma
ditadura republicana fosse o modelo adotado para nortear a primeira constituição republicana
do Brasil, mesmo com a forte influência do positivismo em diferentes segmentos de nossa
sociedade. Surgida na França no século XIX e fruto do pensamento de Augusto Comte a
doutrina positivista chegou ao Brasil por intermédio do intercâmbio de estudantes da Escola
politécnica e da Escola Militar do Brasil da então capital da corte imperial: o Rio de Janeiro, e
pensadores franceses da Escola Politécnica Francesa. O pensamento se alastrou com
significativa influência por outros estados do Brasil com destaque para o Rio Grande do Sul
que chegou a ter uma constituição de estado pautada nos princípios positivistas no governo de
Júlio de Castilhos. Foi no Rio de Janeiro, no entanto, que foi construída a Igreja Positivista do
Brasil que sob a liderança de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes tornou-se uma
instituição que militou intensamente para que o Brasil se encaminhasse para a “Ditadura
Republicana”.
Palavras-chave: Positivismo; República; Constituição.
Abstract: This paper aims to highlight the political activism of the members of the Positivist
Apostolate of Brazil at the dawn of the Brazilian republic. We will seek to understand why the
Apostolate has failed to implement its project of a dictatorial republic as a model to guide the
first republican constitution of Brazil, even with its strong influence on different segments of
our society. Created in France in the nineteenth century, as an outcome of Auguste Comte's
work, positivist doctrine came to Brazil through the exchange of students from the
Polytechnic School and the Military School at the capital of the Brazilian Empire, the city of
Rio de Janeiro, and politicians and thinkers linked to Ecole Polytechnique of Paris. Positivism
has spread with significant influence by other provinces of Brazil and especially in Rio
Grande do Sul, which, after de Republic, approved a constitution based on positivist
principles, during Julio de Castilhos' administration in state. It was in Rio de Janeiro,
however, that was built the Positivist Church of Brazil, under the leadership of Miguel Lemos
and Raimundo Teixeira Mendes, an institution that militated for the "republican dictatorship".
Keywords: Positivism; Republic; Constitution.
O Apostolado Positivista do Brasil teve uma considerável influência política no Brasil
nos primeiros anos da República. A instituição foi fundada por Miguel Lemos e Raimundo
Teixeira Mendes em 1881, que antes de se tornarem adeptos do positivismo e se tornarem os
líderes da ortodoxia desta doutrina no Brasil, já haviam se colocado ao lado do partido
republicano quando este ainda estava se organizando. O positivismo na vida de ambos
*
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/FFP-UERJ).
127
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
apareceu como uma doutrina que muito além de criticar o sistema monárquico, trazia aspectos
em si que, adaptados à realidade brasileira, poderiam nortear uma nova ordem política ao país.
A origem do positivismo aqui estudado remonta-nos à França, onde nasceu seu mentor
Augusto Comte, em Montpellier, no dia 19 de janeiro de 1798. Seu pensamento sofreu a
influência de pensadores como Condorcet, o físico Turgot, e de Saint Simon. O primeiro foi
decisivo na formação de Comte com a obra Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos
do Espírito Humano, que defendia a idéia de aperfeiçoamento do espírito humano de forma
progressiva. Para elaborar a “Lei dos três Estados”, explicitada em uma de suas obras
clássicas, o Curso de Filosofia Positiva, Comte foi influenciado pela obra de Turgot – Plano
de Dois Discursos sobre a História Universal (1751) que, segundo Ribeiro Junior “...
entrevira a Lei dos Três Estados na definição da História Universal como o estudo dos
progressos sucessivos do gênero humano e o exame particular das causas que contribuíram
para eles” (RIBEIRO JÚNIOR, 2003, p. 4).
A lei dos três estados é fundamental para entender o pensamento de Comte. Nela a
humanidade estaria fadada a passar por três fases: o estado teológico (provisório e
preparatório), o estado metafísico (transitório), para enfim chegar ao estado positivo. Nesse
estado o pensamento crítico perde força perante a verdade incontestável desses fatos. Positivar
as fontes na pesquisa era na perspectiva de Comte muito mais observar e constatar o que as
mesmas dizem do que problematizá-las.
Antes de elaborar a “lei dos três estados”, muito de seu amadurecimento no ambiente
intelectual ocorreu quando entre os anos de 1818 e 1823 foi secretário de Saint-Simon. Para
Saint-Simon “o encargo da organização da sociedade deverá ser cedido aos mais capazes – a
classe industrial -, já que o filósofo não aceita ajuda por parte do Estado” (RIBEIRO
JÚNIOR, 2003, p. 8). Isso significava uma substituição de um governo político por um
governo econômico consagrando a elite industrial da época. Este predomínio de autoridade
influenciou o pensamento de Comte que politicamente viria a defender um regime autoritário
pautado por princípios morais incontestáveis.
Em 1845 Comte conheceu casualmente Charlotte Clotilde Josephine Marie de Vaux,
irmã de um antigo aluno. Comte apaixonou-se por Clotilde pelo fato de que mesmo tendo
desaparecido há muitos anos seu marido, ela não deixava que a sua relação com o filósofo
passasse de uma forte amizade.
Com a morte de Clotilde em 5 de abril de 1846, Comte “pretendeu transformá-la em
nova Beatriz, a musa de Dante” (CARVALHO, 1990, p. 8). Usando Clotilde como “modelo
ideal”, o filósofo passou a considerar no seu pensamento a superioridade feminina, por ser
128
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
moralmente mais digna que o homem. No entanto, essa valorização da figura da mulher foi
aplicada reafirmando seu papel de trabalhadora do lar, concatenando com os princípios da
época. A mãe por ser moralmente superior deveria cuidar do crescimento dos seus filhos no
lar para a melhor evolução moral da sociedade.
A fase religiosa de seu pensamento traz à tona expressões que se tornaram lema de sua
doutrina como, por exemplo, “O amor por princípio; a ordem por base; o progresso por fim”
ou “Viver para outrem”. A partir dessa nova fase Comte passa a enxergar as diversas religiões
como encaminhamentos para a religião final e universal, a positivista. Esta religião passa a ser
dotada de ritos, sacramentos e festas.
Emile Littré, até então o grande discípulo de Comte, rompe com seu mestre por
discordar do acréscimo dos princípios religiosos à doutrina, tornando-se líder de um grupo
dissidente. Inaugura-se com isso uma distinção clássica entre os positivistas. Os seguidores de
Littré passaram a ser chamados de positivistas heterodoxos, já os que concordavam com as
transformações que incluíam a criação da nova religião passaram a ser chamados de
positivistas ortodoxos. O discípulo de Comte que liderou este grupo foi Pierre Laffite.
No Brasil, o positivismo foi disseminado rapidamente em instituições de ensino, como
a Escola Militar e a Escola Politécnica, na cidade do Rio de Janeiro. A primeira obra de
caráter positivista produzida no Brasil, como destacou Giannoti (1978), foi uma tese de
doutoramento em ciências físicas e naturais defendida por Manuel Joaquim Pereira de Sá na
Escola Militar no ano de 1850.
O positivismo cresceu de forma bastante fragmentada no Brasil. A geração de
intelectuais de 1870 que Alonso apresentou na obra Ideias em movimento (2002) era
composta por pensadores atuantes na política brasileira. Em sua obra, Alonso mencionou a
influência das correntes de pensamento surgidas na Europa no século XIX sobre a geração de
1870 incluindo o positivismo de Augusto Comte. Os dois grandes líderes da ortodoxia
positivista na transição da monarquia para a república: Miguel Lemos e Raimundo Teixeira
Mendes foram destacados na obra referida como membros desta geração.
Uma característica dessa geração foi à capacidade de apropriar 97 teorias surgidas na
Europa à realidade brasileira. Com isso a geração criou um repertório intelectual para
contestar o regime monárquico. A classificação dos positivistas em duas vertentes não leva
em consideração as especificidades da difusão das idéias positivistas no Brasil que ocorreu de
forma bastante fragmentada e através de múltiplas apropriações e ressignificações. Assim
97
Angela Alonso recorre ao conceito de “apropriação” de Chartier para explicar a forma com que os intelectuais
da geração de 1870 do Brasil incorporavam e aplicavam as teorias emergidas da Europa.
129
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
como observou Alonso, existiram grupos distintos de republicanos influenciados pelo
positivismo. Podemos destacar, por exemplo, a juventude militar da capital federal
influenciada pelas aulas de Benjamin Constant, além do grupo da Escola do Recife e dos
positivistas federalistas do Rio Grande do Sul.
A amizade entre Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes iniciou-se quando
estudaram juntos na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Miguel Lemos nascido em Niterói
no ano de 1855 ingressou na Escola Politécnica aos dezenove anos. Já Raimundo Teixeira
Mendes nasceu na cidade de Caxias, no Maranhão, e chegou ao Rio de Janeiro aos doze anos
de idade. Após um ano de permanência no Colégio St. Louis, dos Padres Franceses, foi
transferido para “o internato D. Pedro II” (AZZI, 1980, p. 16). Nesse período, passou a
combater as relações entre o governo monárquico e a Igreja católica, de acordo com os
princípios republicanos que abraçara.
Ao ingressar na Politécnica e iniciar sua amizade com Miguel Lemos que havia se
matriculado na instituição em 1873, Teixeira Mendes vinha amadurecendo seu pensamento
crítico ao regime monárquico, antes de aderir ao positivismo já se mostrara fiel às idéias
republicanas, inclusive recusando o título de bacharel em letras ao término do curso do
Colégio Pedro II,
(...) porque não queria fazer o juramento de praxe, cujo texto era o seguinte: Juro
manter a religião do Estado, obedecer e defender a S. M. o Imperador D. Pedro II, e
as instituições pátrias; concorrer, quanto me for possível, para a prosperidade do
Império e satisfazer com lealdade as obrigações que me forem incumbidas (AZZI,
1980, p. 18).
Unidos a princípio pelos ideais de liberdade e república e posteriormente pela adoção
do positivismo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes foram expulsos da Escola Politécnica em
1876 por escreverem um artigo contra o Visconde do Rio Branco, então diretor da instituição.
Neste artigo, criticaram o ensino e a forma como eram escolhidos os mestres da Politécnica.
Ambos foram adeptos das concepções de Littré, que como vimos, discordavam dos
acréscimos religiosos incorporados à doutrina por Comte. Após o contato de Lemos com as
idéias de Laffite, passou juntamente com Mendes a adotar os princípios religiosos, criticando
Littré. Sobre o fato de terem aderido inicialmente à orientação de Littré, ressalta Miguel
Lemos que:
Por desgraça minha, o exemplar do Sistema de Filosofia Positiva, que o Sr. José
Magalhães me havia emprestado, pertencia a uma das edições patrocinadas pelo
pseudodiscípulo Emile Littré, que julgou dever profanar o livro antepondo-lhe um
prefácio de sua lavra. A leitura desse prefácio, na situação em que me achava então,
inteiramente alheio à história do positivismo, ainda com todos os defeitos e
prejuízos da fase revolucionária, fez com que desde logo, sem exame direto,
130
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
repelisse as últimas obras de Augusto Comte, isto é, o positivismo religioso
(LEMOS, 1881, p. 245).
Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes haviam pertencido à primeira Sociedade
Positivista do Brasil, criada em 1876, na qual figurou Benjamin Constant dentre outros
positivistas da época. Em 5 de setembro de 1878 houve na Sociedade uma sessão
comemorativa da morte de Augusto Comte e nela ficou decidida a fundação de outra
associação denominada de Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, com a intenção de
difundir o positivismo em todos os meios possíveis.
Miguel Lemos anunciou sua intenção de associar-se à Sociedade Positivista do Rio de
Janeiro em junho de 1879, já após a sua conversão ao positivismo ortodoxo: “... Em outubro,
proposto por Benjamin Constant, Álvaro de Oliveira e Oscar de Araújo, foi aceito como
sócio, iniciando intensa militância no sentindo da ampliação dos quadros da associação”
(LEMOS, 1999, p. 245).
Até então, a fidelidade de Miguel Lemos e Laffite fez com que recebesse do mesmo o
sacramento da destinação sacerdotal. Em fevereiro de 1881, Lemos regressou ao Rio de
Janeiro iniciando intensa militância para ampliar os quadros sociais da Sociedade Positivista
do Rio de Janeiro. Em 11 de maio Joaquim Ribeiro de Mendonça renunciou à presidência da
Sociedade, que passou a ser dirigida por Miguel Lemos que, ao assumir o cargo, transformou
a instituição em Igreja Positivista do Brasil. As reuniões da Sociedade Positivista do Rio de
Janeiro ocorriam na rua do Carmo no n° 14 e no mesmo ano passaram a ser realizadas na Rua
do Ouvidor.
O Apostolado ainda se transferiria posteriormente para a rua do Lavradio, o que
determinou o lançamento de um empréstimo em 1891 para a construção do templo que foi
inaugurado em 1894, na rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, atual sede do
Apostolado. Em 3 de dezembro de 1881, Miguel Lemos emitiu uma circular informando a
criação do subsídio a ser pago pelos membros da Igreja. O ex-tesoureiro Álvaro de Oliveira
não concordou dessa decisão e se desligou da instituição e posteriormente Benjamin Constant
seguiu o mesmo rumo. Álvaro Oliveira acreditava que a nova postura intolerante da direção
do Apostolado Positivista do Brasil limitaria a expansão da doutrina, pois proclamar a ciência
como única religião em um país de fortes raízes cristãs seria muita ambição.
A preocupação com a ação marcava a conduta de Lemos, muitas vezes precipitada.
Tanto que recebeu de Laffite em diversas oportunidades conselhos que atentavam a diversas
atitudes que tomou sem ter maturidade suficiente. Em 1883, Miguel Lemos passa admitir
publicamente a separação definitiva do Apostolado com Laffite, adjetivando-o de “... falso
131
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
sucessor de Augusto Comte” 98. Ao comunicar a Laffite sobre o desligamento de sua direção,
declarou que por consequência do ato renunciava aos dois títulos que dele recebera: o de
Aspirante ao sacerdócio da Humanidade e o de Diretor do Positivismo no Brasil. Lemos
informou que agora ficaria apenas com o título de Presidente da Sociedade Positivista do Rio
de Janeiro, por ele transformada em Igreja Positivista do Brasil.
O Apostolado abraçou duas causas: o republicanismo e o abolicionismo. No entanto,
não com a proposta democrática e liberal de muitos membros do Partido Republicano e sim
com a pretensão de implantar uma nova ordem de acordo com os princípios defendidos por
Comte na obra Appel aux conservateurs, publicada em 1855. Conforme observou José Murilo
de Carvalho,
(...) o conceito de conservador provinha de sua visão particular da Revolução, que
procurava fugir, de um lado, ao jacobinismo robespierrista, rousseauniano, chamado
de metafísico, e, de outro, ao reacionarismo do restauracionismo clerical. Era
conservador, na visão de Comte, aquele que conseguia conciliar o progresso trazido
pela revolução com a ordem necessária para apressar a transição para a sociedade
normal, ou seja, para a sociedade positivista baseada na Religião da Humanidade
(CARVALHO, 1990, p. 21).
A extinção do sistema escravista representaria um passo fundamental para a sonhada
incorporação do proletariado na sociedade moderna, como desejava Comte. Não deveria
simplesmente se abolir a escravidão, mas também, incorporar econômica e moralmente, como
membros da nação, os ex-escravos. O salário significava um subsídio da sociedade ao
trabalhador para este poder manter a família, muita valorizada no positivismo.
Outra característica peculiar do Apostolado Positivista foi interpretar a diferença de
raças por um viés sociológico, “... africanos e indígenas estariam no estado fetichista por
razões sociais que poderiam ser superadas” (ALONSO, 2002, p. 219). Assim o grupo
elaborou uma teoria própria de defesa de uma miscigenação racial que difere inclusive da
perspectiva de Comte, embora aproprie algo deste.
O otimismo da mestiçagem dos positivistas do Apostolado se opunha ao “darwinismo
social” que enxergava de forma pessimista a miscigenação, “... sendo todo cruzamento, por
princípio, entendido como um erro” (SCHWARTZ, 1993, p. 58). A mestiçagem é sinônima
por essa perspectiva de degeneração não só racial como social, pois, o tipo puro que é
enaltecido nesta “teoria das raças”.
98
Cartas de Miguel Lemos a R. Teixeira Mendes, Rio de Janeiro, 1965, p. 18.
132
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Nos últimos anos do império, a ação do Apostolado objetivava convencer tanto os
republicanos democratas quanto os monarquistas de que o melhor regime a se adotar seria a
ditadura republicana.
Proclamada a república em 1889, Miguel Lemos, que ocupava a posição de líder da
Igreja Positivista escreveu um ofício 99 ao então Ministro do Interior, Aristides Lobo, no qual,
pediu exoneração do cargo de secretário da Biblioteca Nacional para se dedicar
exclusivamente à direção do Apostolado Positivista. A recomendação doutrinária de que na
posição de “esclarecidos”, os positivistas ortodoxos deveriam rejeitar os cargos políticos para
assim facilitar o caminho para a incorporação do proletariado na sociedade, fez com que, não
tivessem a oportunidade de aproveitar a considerável influência da doutrina para atuarem de
forma mais direta pela implantação da ditadura almejada.
O novo regime republicano havia abandonado os critérios monárquicos em seu espaço
de organização, o que “inaugurou um período de dilatada incerteza política” (LESSA, 1988,
p. 50). A multiplicidade de ordens possíveis só aumentava a insegurança sobre o rumo do
regime recém-iniciado. "A ameaça de ordem no grupo militar do Governo Provisório residia
nos conflitos entre deodoristas e mocidade militar”100. Se os militares não representavam um
grupo homogêneo, os civis também não. O Conselho de Ministros implantado pelo Governo
Provisório do Presidente Deodoro apontava o reflexo da heterogeneidade das reivindicações
entre os intelectuais e os políticos do Brasil.
O Apostolado militou levantando algumas “bandeiras” ao longo do Governo
Provisório na intenção de aumentar sua influência na política do país. Uma delas foi a
separação entre Estado e Igreja, que foi defendida pelo Ministro da Agricultura, Demétrio
Ribeiro, seguindo as exigências do Apostolado. Até então, Demétrio era um aliado da Igreja
Positivista do Brasil. Os positivistas ortodoxos eram favoráveis a uma ruptura menos radical
com as instituições religiosas na separação entre a Igreja e o Estado, o que era contemplado na
proposta de Demétrio que foi o principal responsável em forçar do Conselho de Ministros a
mudança no projeto defendido por Rui Barbosa do artigo que passaria os bens da Igreja para o
Estado.
Outra “bandeira” do Apostolado foi a arte positivista, manifestada nas obras
produzidas por Décio Villares e Eduardo Sá, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, que
era caracterizada por um teor fortemente cívico. A arte era para o positivismo capaz de trazer
um sentido de identidade imaginária capaz de legitimar o ideal republicano entre a população.
99
Ofício enviado por Miguel Lemos ao Ministro do Interior no dia 22 janeiro de 1890.
Termos utilizados por Renato Lemos (1999).
100
133
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A intenção foi atrelar a doutrina de Comte por intermédio dos monumentos que exaltavam o
civismo, com dizeres positivistas ao novo regime republicano.
Em dezembro de 1890, o Apostolado publicou propostas de normas para o ensino das
artes, pregando a inclusão dos artistas dos segmentos sociais de baixo poder aquisitivo que,
segundo sua avaliação foram extremamente discriminados ao longo da monarquia. Dentre as
reivindicações encaminhadas ao ministro Aristides Lobo a legitimação da inclusão social no
meio artístico é constantemente reafirmada. O Projeto de reforma no ensino das artes
plásticas, apresentada ao cidadão Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Interior
por Monteiro Cordeiro, Aurélio de Figueiredo e Décio Villares, salientava que competia ao
governo popularizar os rudimentos das artes.
Vale lembrar ainda, que Décio Villares recebeu de Benjamin Constant, quando este
ainda ocupava o ministério da Instrução Pública, um importante auxílio no valor de oito
contos de réis para pintar a Epopeia Africana no Brasil. Essa obra tem um significado de
rompimento com os artistas do status quo, Imperial por exaltar o papel da raça negra no
Brasil.
O Apostolado foi alvo de críticas de intelectuais pertencentes à geração de 1870.
Silvio Romero, em sua obra Doutrina contra doutrina, publicada em 1894, acusava os
ortodoxos de se apropriarem de conquistas que formalizadas na primeira constituição
republicana, como a separação da Igreja e Estado, que em sua opinião era uma consequência
do predomínio do pensamento liberal. Silvio Romero desqualificava o Apostolado Positivista,
acusando-o de compor uma minoria de sistemáticos idólatras de uma doutrina contestável.
Tendo como referência a preocupação central no sentido de incluir o proletariado na
sociedade moderna, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes elaboraram os fundamentos
sobre os quais os ortodoxos deviam se pautar. As normas incluíam a recomendação de não
ocupar cargos públicos na fase empírica de transição para o estado positivo; e de não exercer
funções acadêmicas. O Apostolado elaborou também um projeto 101 em favor do proletariado
que estabelecia renda fixa e gratificação variável; jornada de trabalho de no máximo sete
horas diárias; descanso aos domingos e dias de festa nacional; licença em caso de moléstia;
proibição de demissão após sete anos de serviço; aposentadoria aos 63 anos com o
recebimento proporcional a renda fixa; e direito a férias remuneradas. No Rio de Janeiro, o
principal representante da corrente positivista foi o torneiro mecânico e armeiro Francisco
101
Raimundo Teixeira Mendes. A incorporação do proletariado na sociedade moderna. Rio de Janeiro: Igreja
positivista do Brasil.
134
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Juvêncio Sadock de Sá102. O apoio à candidatura de operários aos cargos políticos pautou a
ação dos positivistas ortodoxos.
Apesar dos atritos com o Apostolado, Benjamin Constant, por intermédio do decreto
n.° 6, propôs a adoção da bandeira Republicana, idealizada por Raimundo Teixeira Mendes
em colaboração com Miguel Lemos e desenhada por Décio Villares. A medida foi aprovada
logo no princípio da República, no dia 19 de novembro, e acabou sendo a proposta de
Benjamin Constant que mais favoreceu o interesse do grupo ortodoxo, pois ao longo da
atuação do Conselho de Ministros o posicionamento de Constant foi muito mais próximo ao
de um estadista liberal-democrata do que de defensor de uma ditadura.
O que norteou a ação dos positivistas ortodoxos nos primeiros anos da república foi à
defesa da implantação da “Ditadura Republicana”, essa seria a forma de governabilidade que
permitiria ao Apostolado a viabilização de suas reivindicações. O grupo, não conseguindo que
seu projeto político fosse aplicado, passou a defender o cumprimento de artigos da
constituição de 1891 que por diferentes motivos tivessem aspectos que se assemelhavam com
a política tida pelo Apostolado como adequada.
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102
Cf. Claudio Batalha. O movimento operário na primeira república, p.26.
135
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Ao tesoureiro da Alfândega:
Estudo da relação entre a Tesouraria da Real Fazenda e a Tesouraria Geral da
Alfândega (c.1750-1777)
Renata Moreira Ribeiro *
Resumo: O objetivo deste trabalho é definir o que seria um contrato como uma prática tanto
de desoneração do Estado, quanto como um meio de praticar mercês com aqueles que
estavam a “serviço de Vossa Majestade”. Para isso perpassamos âmbitos políticos como a
definição de Monarquia Corporativa, com as práticas de mercês, de dom e contra-dom.
Âmbitos econômicos e sociais com a formação de sociedades, definição dos preços
diretamente relacionados com as redes de sociabilidade, acumulação de capital material e
imaterial e a sua captação. A definição do contrato, tal como era realizado no século XVIII,
sua aplicabilidade e meandros que foram utilizados para a prática da economia de mercês e
sua captação realizada pelos oficiais régios.
Palavras-Chave: Casa da Moeda; Brasil colonial; Mercês.
Abstract: The aim of this study is to define what would be a contract as a practice of
unburdening the State as well as a means of giving benefits (“mercês”) to those who were at
"the service of Your Majesty." To do so, we review politic matters such as the definition of
“Corporate Monarchy”, the practice of benefits, and the practices of “gift and counter-gift”.
The study is also concerned with economic and social matters such as the creation of
companies, pricing process related to social networks, tangible capital accumulation and
intangible capital accumulation and its raising; and the definitions of contract in the
eighteenth century, its applicability and the means by which it was used at benefits' economy
and by royal officials.
Keywords: Casa da Moeda; colonial Brazil; benefit (Mercê).
A monarquia do Antigo Regime Português cedia contratos a particulares desonerandose de custos de um aparelhamento burocrático mais amplo. Os contratos referiam-se ao direito
de cobrar impostos, possuir o monopólio de produtos ou prover o abastecimento de alguma
região; assim podemos dizer que a cobrança de impostos fazia parte das atividades mercantis
dentro do contexto do Império luso. As arrematações dos contratos eram feitas por licitação
com direitos de propostas e contra propostas ou por licitação fechada, com a duração de três
anos (OSÓRIO, 2001).
Tais arrematações de contratos eram um aspecto importante, visto que esta era uma
forma de acumulação de capital e de influência dentro do corpo mercantil (PEDREIRA, s.d,
p. 154). O membro da elite mercantil que optasse por investir em contratos não
necessariamente participaria diretamente da arrematação, podendo efetuar sociedades com
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/FFP-UERJ).
136
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
outros negociantes ou arrendar parte do contrato. Estes mecanismos para a participação nas
escrituras de contrato demonstravam o caráter diversificado dos homens de negócio que
estariam ampliando seus lucros, diminuindo os seus riscos e dividindo ambos com terceiros
(SAMPAIO, 2001, p. 100).
Quanto ao preço dos contratos não podemos dizer que ele aumentava
proporcionalmente com o índice de produção, uma vez que não havia racionalidade
econômica em sua determinação (LEVI, 2000).
Acreditamos que os arrematantes de contrato eram uma elite mercantil dentro da
própria elite mercantil existente, porque nem todos possuíam acesso às arrematações e a
relação entre a Coroa e eles era deveras privilegiada.
Os contratadores possuíam uma acumulação de capital considerável, visto que
lucravam com a diferença entre o preço do contrato e os gastos da arrecadação. Nas duas
primeiras décadas do século XVIII contabilizava-se em média 10 contratos, as clausulas
destas arrematações variavam e permitiam a monopolização de um mercado, elemento que
reforçava a cadeia de endividamento, na qual os homens de negócio estavam em posição
privilegiada. Outra forma seria com o pagamento da arrematação que se dava ao longo dos
três anos de vigência do contrato, que podia ser pago por letras, dinheiro ou até mesmo
mercadorias adquiridas no período do contrato e entregues à Coroa pelo preço de venda. Ou
seja, a relação de capital era de pagamento segundo mencionado e seu único gasto eram as
despesas relativas à cobrança do imposto. Com a diversificação das suas atividades os homens
de negócio conseguiam acumular capital e fazer com que dinheiro fosse transformado em
dinheiro (D-M-D), comprando para vender, segundo os preceitos de Marx.
O contrato da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro foi um dos mais importantes no
século XVIII, visto que a cidade teve seu grau de importância aumentado com a descoberta
das Minas e a conseqüente abertura para o Caminho Novo e alçou paulatinamente o posto de
principal porto do Atlântico Sul. Este contrato, por sua vez, consistia na cobrança de uma taxa
de dez por cento em cima de todos os gêneros que entrassem no porto do Rio de Janeiro.
Já na primeira metade do século XVIII, Sampaio constatou um aumento nos preços
dos contratos da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro, o que ratifica a importância das
arrematações, em virtude da função de porto redistribuidor da América Portuguesa, o que não
foi dissonante na segunda metade do século XVIII, devido às produções e importações de
gêneros incentivadas pelo Marquês de Pombal que eram escoados pelo porto da capitania do
Rio de Janeiro. Entretanto, não esqueçamos que a variação de preços não teve um cunho
137
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
exclusivamente econômico, visto que as relações sociais eram levadas em consideração no
valor do preço da arrematação.
Tabela 1: Valores das arrematações dos contratos da dízima da Alfândega (1700-1751)
Ano
Valor
1700
14:968$273
1712
53:200$000
1721
66:600$000
1724
97:200$000
1729
122:100$000
1732
107:600$000
1734
160:000$000
1738
194:805$000
1742
208:400$000
1745
209:600$000
1748
202:400$000
1751
202:400$000
Fontes: 1700, AHU, doc. 2400; 1712- AHU, cód. 1269, p.20, 23,25; 1721 – AHU, doc. n. 4013; 1724 – AHU,
doc. 5377; 1729 – AHU, doc. 5885; 1732 – AHU, doc. 7389/7390; 1734/1738 – livro 2º das Ordens da
Alfândega do Rio de Janeiro, respectivamente p.31-33v e 75v-78. Coleção Vice- Reinado; 1742 a 1748 – Livro
3º das Ordens da Alfândega do Rio de Janeiro, respectivamente p.2-5, e folhas avulsas, s/n; 1751 – AHU, doc.
17803. Apud. SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias sociais e
conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 86.
A formação de sociedades para a arrematação de contratos era uma prática recorrente,
uma vez que tanto a elite lisboeta como os homens de negócio da praça carioca não faziam
disposição de todo o seu capital aplicável. As escrituras de companhia e sociedade
capacitavam os homens de negócio a intervir nos eixos mercantis do Império Ultramarino
138
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Português. Primeiramente com a divisão dos riscos e futura divisão dos lucros. E ainda nos
trazem a divisão entre capital e trabalho, uma vez havia os sócios que participavam com
dinheiro e outros que trabalhavam e também possuíam parte dos rendimentos (SAMPAIO,
2003, p. 254-256). Esta coadunação de custos e riscos permitia um maior acesso a esse
comércio, entretanto não devemos nos esquecer do que nos diz Pedreira acerca da
manutenção dos homens de negócio no topo da elite mercantil:
A mobilidade explicar-se-á, então, quer pela existência de dispositivos de
recrutamento relativamente flexíveis, que não levantavam grandes obstáculos à
entrada numa ocupação aberta a novos talentos, quer por um conjunto de
circunstâncias que determinavam uma apertada seleção após o ingresso
(PEDREIRA, s.d, p. 136).
Braudel chamou a atenção para as características dos investimentos em sociedades
pré-capitalistas, que não buscavam apenas acumulação material e sim reprodução da
hierarquia social pré-existente (BRAUDEL, 1995). O mesmo podemos ver com os
contratadores, que já eram membros da elite colonial e por meio de suas redes de relações
sociais com níveis hierárquicos superiores aos seus conseguiam ter acesso ao processo
licitatório; mas acumulavam capital material, de forma progressiva; e capital imaterial, pois
conseguiam ser arrematantes de contrato possuindo uma distinção “costumeira” dos outros
membros da elite, reproduzindo a hierarquia existente. João Fragoso aborda em seu livro
Homens de Grossa Aventura (FRAGOSO, 1998) os homens de grosso trato que
primeiramente se constituíam como elite econômica e, a posteriori, através dos seus cabedais
e da sua rede de relações sociais, iniciavam suas propensões a estar a serviço do Rei lembrando que a partir daí se constituíam como indivíduos pertencentes à elite local.
Acreditamos que este seja o meio percorrido pelo homem de negócio para que ele seja um
arrematante. Devemos ressaltar que os homens de Antigo Regime não eram cônscios de sua
condição, mas também temos que pensar que não havia passividade na delineação das suas
estratégias de ascensão social.
Até aqui, propomos que a Coroa, para não despender funcionários e, por conseguinte,
desonerar-se da cobrança dos tributos, concedeu estes direitos a terceiros. A Monarquia
possuía um caráter corporativo, no qual o Rei obtinha a função de dirimir os conflitos e
administrar o bem comum dos povos e dos súditos. As elites locais auxiliavam na
governabilidade do território e, como “vassalos Del Rei”, estavam ao serviço de Vossa
Majestade, ainda que isso significasse estar trabalhando dentro de uma ótica particularista,
seguindo o direito costumeiro. Este período, segundo José Subtil, estava relacionado à
fragmentação e pulverização de centros de controle e arrecadação de receitas, isto é, os
139
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
elementos de uma administração particularista. Esta sociedade possuía a concepção de que era
um conjunto de corpos que gravitavam em torno da figura do monarca, agregado pela idéia de
cooperação, a graça, a mercê e o direito consuetudinário. Haveria dispensa de lei, desde que
esta não ferisse os pactos estabelecidos entre o Rei e seus súditos. O monarca deveria ter
prudência para equilibrar a fiscalidade (SUBTIL, 2006). A economia de mercês e privilégios
exigia um mínimo de controle e registro régio das graças e das despesas para que o
aparelhamento administrativo pudesse ficar equilibrado. Outro período é iniciado pelo
terremoto de 1755 e a ascensão política do Marquês de Pombal, iniciando assim uma
transformação, na qual o governo passou a ser de todos e não o governo de cada um. Isso se
deu devido aos problemas circunstanciais e aqueles que pudessem ser previstos. Foi feita
assim uma remodelação do sistema de gestão financeira de grandes massas de indivíduos. Tal
fato insere o Império Português em uma visão moderna, por possuir um sistema disciplinar
financeiro.
Para prosseguirmos com o nosso raciocínio, no que tange a essa economia do dom e
direito costumeiro, precisamos explicitar estes conceitos. A economia do dom está inserida
dentro da tríade do “dar”, “receber” e “restituir”, em uma dada relação que envolva um polo
dominante e um polo inferior e exista entre eles uma “amizade”, ou seja, existia entre eles o
ato de dar e retribuir, pois esta é uma situação quotidiana que faz parte da natureza das
estruturas sociais, sendo vista como uma norma: “a comunicação pelo dom introduzia o
benfeitor e o beneficiado numa economia de favores. Estes eram de natureza diversa e
variavam consoante a posição dos atores nos vários planos do social” (HESPANHA, 1997).
Assim, observamos a formação de redes clientelares (HESPANHA, 1998) que têm como
pressuposto básico a reciprocidade. Esta reciprocidade é realizada entre desiguais, na qual o
pólo dominante desta relação é o soberano, assim garantindo o domínio sobre os seus vassalos
que prestam serviços retribuídos através da liberalidade régia. Os serviços desde o fim do
século XVI, para a Monarquia Pluricontinental foram regulamentados e remunerados dentro
da ótica da economia do dom, da graça, das mercês que serviriam de atrativo das gentes para
os territórios de conquistas. Complementaridade e dependência foram palavras chaves para
que os agentes institucionais e individuais se identificassem e reconhecessem e também
contribuíssem para a redefinição e reconfiguração das hierarquias dos espaços do império.
A Fazenda Real fazia suas comunicações de despesas, materiais e distribuições
monetárias com a Alfândega através de portarias escritas em um “livro que há de servir na
Casa da Moeda”. Desde obras até pagamentos de ordenados da Alfândega eram escritos neste
livro. A permanência da Tesouraria Geral da Fazenda Real, no documento chamou-nos a
140
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
atenção, pois havia permanentemente o envio de quantias para pagamento dos ordenados da
Tesouraria Geral Da Alfândega, algo que poderia ser considerado absolutamente normal, uma
vez que os oficiais régios dedicavam-se a diversas funções dentro da instituição. Entretanto,
neste mesmo livro, vimos uma dissensão acerca da cobrança dos impostos da Nau de Guarda
Costa e Dízima da Alfândega, neste ponto o documento menciona que o primeiro imposto não
foi cobrado corretamente, pois estes não haviam sido informados da forma pela qual deveria
ser feita esta cobrança. O oficial régio mencionou ainda que o imposto da dízima da
Alfândega já era cobrado corriqueiramente e por este motivo foi à cobrança realizada.
O contrato só seria possível de ser operacionado com a ótica de uma Monarquia
Corporativa, dentro de uma lógica de acumulação de capital material e imaterial. Servir a
Vossa Majestade era um dever do vassalo do Rei, o tipo de serviço variava segundo as redes
de sociabilidade e o contrato que se arrematava.
Sabe-se que arrematar a dízima da Alfândega era um ato de distinção, devido à
importância do contrato e o rendimento que este proporcionava. Mas se a Coroa precisava
desonerar-se do aparelhamento burocrático na cobrança de impostos, supunha-se em um
primeiro momento que tal cobrança era realizada pelos arrematantes, e ulteriormente
percebemos que não eram realizadas desta forma. As portarias da Casa da Moeda coadunadas
com os registros de Ordem da Alfândega demonstram claramente que a captação da dízima
perpassou a prática de mercês, uma vez que não houve subtração no gasto com funcionários e
seus respectivos ordenados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XVI-XVIII. II.
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praça mercantil do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
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HESPANHA, Antônio Manuel. História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa:
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LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
OSÓRIO, Helen. As elites econômicas e a arrematação de contratos reais: o exemplo do Rio
Grande do Sul (século XVIII). In: BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João Luis
Ribeiro e GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial
portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
141
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PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio da praça de Lisboa de Pombal ao vintismo (17551822). Diferenciação, reprodução e identificação de um grupo social. Lisboa: Faculdade de
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SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias sociais e
conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2003.
______. Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação nos quadros do Império
Português (1701-1750). In: BICALHO, Maria Fernanda; FRAGOSO, João e GOUVÊA,
Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos
XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
SUBTIL, José. O governo das Fazendas e das Finanças. (1750-1974). In: CRUZ, M. P.. Dos
Secretários de Estado dos Negócios da Fazenda aos Ministros das Finanças - 1788-2006:
uma iconografia. Lisboa: Secretaria-Geral do Ministério das Finanças e da Administração
Pública, 2006.
142
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Pelo Progresso da Nação!
Discursos e projetos na ampliação do ensino público
na capital federal (1892-1902)
Rosane dos Santos Torres
Resumo: O presente trabalho constitui um estudo acerca da Instrução Pública na cidade do
Rio de Janeiro, a partir das ações realizadas pelos intendentes do Conselho Municipal, entre
os anos de 1892 e 1902. Busca-se analisar os discursos produzidos pelos membros da casa
legislativa carioca, relativos à expansão do ensino, tentando perceber as relações que essas
iniciativas mantiveram com outros atores políticos da cidade. Procura-se destacar a
ressonância que as propostas de regulamentação do ensino público alcançaram em outros
espaços produtores e disseminadores de debates – em particular, a imprensa carioca –,
enfatizando-se as diferentes tensões que marcaram o cotidiano do ensino na municipalidade
nesse período.
Palavras-chave: Instrução Pública; Conselho Municipal; Imprensa Carioca.
Abstract: This paper presents a study on Public Education in the city of Rio de Janeiro
through analysis of decisions made by the members of the City Council between 1892 and
1902. It analyses the speeches of members of the Rio de Janeiro legislative assembly, related
to teaching's spread, and highlights the linking between those initiatives and other politic
elements of the city. In addition, it presents the impact of proposals on public education
regulation in debates held in other public spaces – especially in the Rio de Janeiro's
newspapers – focusing on the different tensions which affected the scholar routine in the
municipality during that period.
Keywords: Public Education; City Council; Rio de Janeiro press.
Apresentação
Disseminar bons costumes, ordenar a sociedade, fazer progredir a nação. Discursos
como esses, almejando a conquista da Ordem e do Progresso nacionais, não devem ser vistos
como uma característica exclusiva do tempo presente na fala de brasileiros muitas vezes
considerados otimistas quanto ao futuro do país. No alvorecer da República, representantes do
poder legislativo municipal carioca já chamavam a atenção de seus pares para a importância
de se formar “bons brasileiros, [cidadãos] que amem a sua pátria e possam, embora na mais
humilde posição, colaborar para o seu progresso moral e material” 103. E, mesmo antes, alguns
dirigentes do Estado Imperial brasileiro já acalentavam preocupações quanto ao rompimento
das “manifestações desordeiras que pudessem prejudicar a unidade do país” 104.

Mestre pelo Programa de História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP. Atualmente,
integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais, Sociedade e Política (GEPISP).
103
Anais do Conselho Municipal. 1ª sessão ordinária de 03/12/1892 a 02/02/1893, p. 221.
104
No contexto de fortalecimento e legitimação do Estado Imperial brasileiro, não faltaram argumentos que
apontassem para a necessidade de o país assegurar a Ordem e difundir a Civilização. Diretamente relacionada a
143
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Interessados em fazer “progredir a nação”, coube a esses representantes do poder
político, seja durante o Estado Imperial ou no decorrer da experiência republicana, levantar
debates e encaminhar projetos, através dos quais eram apontados os benefícios oriundos da
ampliação do ensino, sobretudo se “derramado entre as camadas mais pobres da população”.
Em seus discursos observa-se a ênfase na necessidade de ordenar a sociedade, incutindo-lhe
bons hábitos e costumes. E, nesse sentido, atribuía-se um papel fundamental à “educação”,
pois esta atuaria nos focos de desordem pública e garantiria resultados fecundos na formação
do caráter dos indivíduos. Isto porque, ao despertar nos alunos o apreço pelo país, ela
garantiria a emergência de uma sociedade civilizada, de acordo com os padrões burgueses
europeus.
É a partir dessa perspectiva, então, que se orienta a realização desse trabalho. Nessa
pesquisa procuro acompanhar dois movimentos distintos, mas ao mesmo tempo
complementares. Por um lado, busco perceber o modo como nos primeiros anos republicanos
a Instrução Pública foi utilizada como uma das bandeiras na questão do progresso moral e
material do país; e por outro, interessa-me compreender como esse discurso, encampado por
representantes do poder público municipal105, encontrava ecos em outros espaços produtores e
disseminadores de debates. Pretendo, assim, perceber o quanto os debates e discursos
envolvendo a instrução/educação excediam o espaço da tribuna e se diluíam no dia a dia da
cidade.
“Legislando para o progresso, educando para a civilização”
No decorrer do século XIX inúmeras foram as ações voltadas para a área da Instrução
Pública. Durante os primeiros anos republicanos, a temática do ensino público redundou em
diferentes medidas, entre as quais destacamos os projetos de reforma e as leis educacionais
que tinham a intenção de intervir na organização e no perfil do ensino oferecido nas escolas
essa perspectiva estava a instrução pública. Instruir todas as classes significava romper com as trevas do atraso e
da barbárie. Como exemplo de discursos dessa ordem, destacamos algumas defesas proferidas por importantes
representantes políticos do Império, como é o caso do Ministro João Alfredo Correia de Oliveira. Nomeado
Ministro do Império em setembro de 1870, atuou por quatro anos consecutivos. Sua defesa caminhou no sentido
de definir a instrução como uma obrigação do Estado, o qual não deveria medir esforços em generalizá-la entre
todas as classes (ainda que o ensino ministrado não fosse o mesmo para todas elas). Para ele, a difusão e o
aperfeiçoamento das instituições promotoras de ensino garantiriam o desenvolvimento moral, social e econômico
do país. Para uma maior discussão a esse respeito ver, entre outros: MARTINEZ, Alessandra Frota. Educar e
Instruir: a instrução pública na Corte imperial. 1870 a 1889. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF,
1997; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec,
1994.
105
Ressalte-se, porém, que esse movimento encontrou acolhida tanto entre os dirigentes do Estado quanto entre
representantes da Igreja e da sociedade civil.
144
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
da cidade do Rio de Janeiro, locus de investigação nessa pesquisa106. Transformada em uma
preocupação social, ministros e intendentes viam a “educação” como um importante
mecanismo de intervenção na organização da sociedade, de maneira que, em seus discursos,
propunham oferecer à população, sobretudo às classes populares, os meios de inserção no
mundo letrado, que, consequentemente, possibilitaria seu engajamento no mercado de
trabalho assalariado.
Articuladas aos ideais de progresso e de civilização da sociedade brasileira, iniciativas
como essas tinham uma dupla perspectiva: se, por um lado, sua tarefa era favorecer o
desenvolvimento econômico da cidade – por meio do fomento às indústrias, às fábricas e ao
comércio em geral –, por outro, expressavam as expectativas das autoridades em conter o
avanço das “ameaças” sociais, em que pesavam os males provenientes da “ociosidade”, da
“mendicância”, da “criminalidade” e da “pobreza”. Vista de forma associada, a preparação
intelectual e moral dos alunos tornava-se o caminho possível para impulsionar o
desenvolvimento material do país e permitir a regeneração social de sua população, sobre a
qual recaíam as “heranças de seu passado colonial”, as consequências de sua condição
“mestiça” e os efeitos de sua “localização intertropical”.
Os “cuidados com a classe laboriosa” eram assim expressos:
[é nas] escolas [noturnas] que os operários, sem prejuízo do trabalho de onde tiram
as suas subsistências, vão aprender alguma coisa. São essas escolas, até certo ponto,
a repressão de vadios e vagabundos. Por isso que, nas horas que se entregam a esse
trabalho deixam de entregarem-se à vagabundagem e à ociosidade. 107
Assumida com um “dever do Estado”, nas propostas de regulamentação do ensino,
defendidas pelos intendentes do Conselho Municipal, a difusão da instrução também era vista
como um meio de a população mais pobre desempenhar seus deveres de “cidadãos”. Nesse
tipo de visão são muito significativas as aproximações feitas entre a instrução e os processos
eleitorais, de maneira que aquela passava a ser vista como um elemento indispensável na
formação de um homem mais “consciente politicamente”. Uma percepção que fica muito
clara nas palavras que seguem:
(...) é pelas municipalidades que se deve começar a campanha de difusão do ensino;
(...) é deste recinto que deve-se [sic] começar a mostrar a necessidade que o povo
tem de ser instruído (...), e sem instrução o cidadão não pode bem exercer sua
106
É necessário lembrar que a elaboração de projetos educacionais não foi uma ação exclusiva dos grupos
ligados à cidade do Rio de Janeiro, seja como Corte do Império ou como Capital Federal. Esse movimento foi
presente nas demais províncias/estados, que apresentaram processos próprios de disputa pela implementação de
escolas.
107
Anais do Conselho Municipal. 41ª sessão ordinária em 31 de janeiro de 1893, p. 261.
145
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
função eleitoral, a qual conforme for exercida [pode] produzir o bem ou o mal, qual
uma espada de dois gumes (...). 108
Mas apesar de haver nesse período um grande movimento em favor da expansão do
ensino – no qual as “consequências positivas” dessa medida serviam de base para sustentar a
validade do projeto –, há que se lembrar que todo incentivo dedicado à obra veio marcado por
algumas contradições. Os mesmos discursos que apontavam a instrução dos alunos como um
direito de cada “cidadão”, estabeleciam profundas distinções na sua oferta aos diversos
segmentos sociais. Às classes trabalhadoras foram destinados os saberes mais elementares,
que, seguidos da aprendizagem de um ofício, já eram considerados como suficientes para que
os alunos exercessem bem seu papel de colaboradores na “construção da nação”.
Nesse sentido, podemos dizer que com a chegada da República a oferta de ensino para
a população não perdeu seu caráter excludente e hierárquico, percebido nos anos anteriores.
Mais uma vez, a proposta de instruir “todas as classes” não significou, necessariamente, uma
igualdade de acesso aos diferentes níveis de ensino. Destinavam-se públicos específicos para
a aquisição de saberes também específicos. Nesse caso, às camadas mais pobres da população
foi reservada a instrução primária, por meio da qual os alunos aprenderiam, basicamente, a
ler, a escrever e a contar. Além desses saberes, a maior parte dos intendentes destacava
também a importância de serem difundidos os conteúdos do ensino profissional, de onde os
alunos retirariam a formação necessária para assumirem postos nas manufaturas, nas
indústrias, nas oficinas, nas fábricas e no comércio da cidade. Em seu entendimento, essa era
a fórmula que lhes garantiria um sustento digno para si próprios e para sua família.
A tirar pelos efeitos “positivos” associados à difusão do ensino, é possível perceber o
quanto a instrução ocupou um lugar importante nas ações dos intendentes 109. Mas embora
importante, ela não chegou a conquistar o papel principal. Nas disputas e aproximações
estabelecidas entre os intendentes com outros atores políticos da cidade, as questões
envolvendo o ensino público apresentaram muitas nuanças. Se comparada às demais
temáticas utilizadas pelos membros na tessitura de seus acordos e alianças com grupos
políticos da cidade, embora reunisse um número significativo de projetos de lei, a temática do
ensino municipal não assumiu a preferência; esta ficou a cargo das diferentes intervenções no
108
Anais do Conselho Municipal. 12ª sessão extraordinária em 22 de fevereiro de 1893, p. 126.
De acordo com Marcelo Magalhães, entre os anos de 1892 e 1902 foram apresentados, discutidos e votados
na casa legislativa 1872 projetos de lei, dos quais cerca de 3,9% referiam-se à temática do ensino. Ressalte-se,
porém, que nesse conjunto não estão incluídos os funcionários municipais ligados à instrução, incorporados no
grupo do funcionalismo. Cf. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Ecos da política: a capital federal, 1892-1902.
Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
109
146
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
espaço físico da cidade. Ao que tudo indica, a questão das obras públicas representou o
principal instrumento para os membros da casa tecerem suas redes clientelares 110.
Tratando ainda dos efeitos “positivos”, uma outra questão que parece fundamental
nesse contexto é o lugar ocupado pela instrução na política dos intendentes. Embora tenham
sido recorrentes os discursos em torno dos benefícios sociais e morais provenientes da
expansão do ensino, na maior parte das vezes essa perspectiva esteve suplantada pelos
encargos financeiros que essa promoção acarretaria aos cofres municipais. Nitidamente, os
déficits orçamentários foram motivo de acirradas contendas entre os dirigentes municipais,
que inúmeras vezes utilizaram os gastos com a instrução para culpabilizar seu “outro
imediato” – ou seja, os intendentes ou o prefeito, dependendo de quem fazia a acusação –
pelo agravamento das despesas. Ao que parece, uma das consequências imediatas dessa
questão foi a tentativa de barateamento dos custos, expressa, sobretudo, pelas restrições aos
níveis de ensino que deveriam ser expandidos à população pobre da cidade.
Assim expressou o intendente João Baptista Capelli a esse respeito:
Os verdadeiros Kingarden, conforme os imaginou Froebel, não podem ser adotados
por ora entre nós, não só porque demandam grandes despesas como também porque
exigem de um pessoal especialmente habilitado, sem o que não poderão prestar os
serviços a que se propõe essa bela instituição. 111
De acordo com sua perspectiva, os investimentos nessa área não demandavam grande
“necessidade”, visto que levaria muito tempo até que a criança se desenvolvesse e estivesse
pronta para desempenhar atividades que fossem úteis à sociedade e à família. Além disso, a
criação desses espaços exigia a contratação de pessoal habilitado, a disposição de um lugar
adequado e a aquisição de materiais pedagógicos apropriados, o que só contribuiria para o
aumento dos gastos municipais – sem que houvesse, em contrapartida, um retorno imediato.
Compreende-se, assim, que havia todo um investimento retórico em favor da ampliação do
ensino para a população. No entanto, esse investimento vinha acompanhado por várias
restrições.
Articulada às disputas políticas da administração municipal, as críticas direcionadas ao
papel da instrução no agravamento das despesas municipais – para além de uma certa
110
De acordo com distribuição percentual feita pelo autor, as temáticas seguem a seguinte distribuição: obras
públicas: 23,1%; funcionalismo municipal: 19,2%; posturas municipais: 12,9%; impostos: 6,9; orçamento: 5,6%;
transporte público: 5%; comemorações e homenagens: 4,2%; administração pública: 4%; ensino municipal:
3,9%; abastecimento: 2,9%; patrimônio municipal: 1,8; limpeza urbana: 1,2%; loteria: 1%; empréstimos e
operações de crédito: 0,6%; iluminação pública: 0,6%; indenização e restituição: 0,5%; desconhecido e outros:
6,7%.
111
Anais do Conselho Municipal. 12ª sessão extraordinária em 22 de fevereiro de 1893, p. 124.
147
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
secundarização imposta ao ensino – jogam luz para um outro aspecto importante das tensões
mapeadas no período: os embates travados entre o legislativo e executivo municipal. No
campo das disputas administrativas, as acusações direcionadas aos gastos “exagerados” e
“incoerentes” no campo do ensino foram utilizadas como instrumento para que ambas as
partes – Conselho e Prefeitura – denunciassem o acúmulo de práticas clientelistas no exercício
da política municipal. Críticas assim tinham a intenção de demonstrar o quanto a parte
acusada estava se valendo da administração pública para satisfazer “interesses pessoais” e
estabelecer “alianças políticas”, a partir da indicação e nomeação de “afilhados” para o
preenchimento de cargos públicos municipais. Práticas como essas são fundamentais para
percebermos a pluralidade de questões envolvendo o ensino municipal e os diferentes “usos
políticos” que dele foram feitos na costura de acordos e no estabelecimento de alianças entre
os atores envolvidos em sua administração e regulamentação.
Contudo, se as disputas em torno da instrução são um elemento importante para a
compreensão das aproximações e distanciamentos estabelecidos entre os intendentes e o
prefeito, tão fundamental quanto é a participação da imprensa nesse processo. Na medida em
que os projetos de lei voltados para a regulamentação do ensino público na Capital Federal
alcançaram grande repercussão em outros espaços produtores e divulgadores de debates, os
jornais cariocas representam um outro campo vital para acompanharmos os diferentes
interesses e posicionamentos que se fizeram presentes nos debates educacionais do período.
Além, é claro, de demonstrarem o quanto o movimento em favor da instrução popular
redundou em diferentes perspectivas e contou com o envolvimento de diversos setores da
sociedade.
Com uma participação ativa em cada discussão encaminhada, alguns periódicos112
interagiram objetivamente com os representantes da administração municipal, a quem
demonstravam apoio ou expressavam sua oposição. De forma opinativa, durante a tramitação
de cada projeto de lei relativo à reforma de ensino, cada folha se ocupou em definir seu
posicionamento sobre o assunto113. Nesse contexto influíam fatores de ordem política,
econômica, social, ideológica e cultural. Um bom exemplo dessa tensão foi a repercussão que
alguns projetos de lei ganharam nas páginas de determinados periódicos veiculados na cidade,
os quais redundaram em acalorados embates entre as partes envolvidas.
112
Na pesquisa foram analisados três periódicos: a Gazeta de Notícias, O Paiz e A Notícia.
Entre os anos de 1893 e 1902 encontramos, pelo menos, quatro projetos de lei voltados para a regulamentação
do ensino público na Capital Federal. São eles: Projeto nº. 79, de 1893, Regula o ensino público municipal;
Projeto nº. 96, de 1897, Regulamenta o ensino público do Distrito Federal; Projeto nº. 151, de 1899, Reforma o
ensino público do Distrito Federal; e Projetos 130 e 130A, de 1901, Regulam a instrução primária e normal.
113
148
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Um debate que chama atenção nesse sentido é o referente ao projeto nº. 79, de janeiro
de 1893 – Regula o ensino público municipal. Enquanto a Gazeta de Notícias manteve uma
avaliação favorável à proposta encaminhada pela Comissão de Instrução, considerando-a um
desdobramento “positivo da reforma promovida por Benjamin Constant”, o jornal O Paiz,
embora “reconhecesse as boas intenções” de seus autores, não o reconhecia como uma
intervenção consistente na educação municipal; enquanto a Gazeta de Notícias, durante os
dias que publicou seu andamento, permanecia negando qualquer contradição (do projeto de
lei) com os interesses da democracia brasileira, O Paiz conservava uma postura defensiva,
contrária à execução do plano estabelecido pela Comissão de Instrução (seus autores), contra
o qual elencava uma série de fatores – todos dispostos a convencer a opinião pública da falta
de coerência da proposta.
Assim, pode-se dizer que, ao analisar conjuntamente as tensões que marcaram esse
período, tanto os embates quanto as alianças constituídas no movimento de escolarização da
população carioca, devem ser compreendidos a partir de suas múltiplas relações, sem que para
isso tenhamos que estabelecer uma simples oposição entre os lugares ocupados por seus
participantes. Essa percepção fica bem representada se levarmos em conta, por exemplo, o
posicionamento de cada intendente sobre a “melhor” forma de “educar a infância carioca” e a
postura diferenciada que se manifestou na imprensa a esse respeito. Impressões concorrentes
foram expressas, independentemente de seus defensores pertencerem ao Conselho Municipal
ou escreverem em nome de algum jornal carioca. Portanto, acredito que o limite que os separa
(e/ou os aproxima) está intimamente ligado aos interesses com os quais cada grupo analisado
estava comprometido.
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150
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Entre o Sagrado e o Profano: estudo das Irmandades Religiosas na Paróquia de São José
de Além Paraíba no contexto da Zona da Mata Mineira (1850-1900)
Rosangela Torres da Silva*
Resumo: Este artigo apresenta uma breve análise sobre a função e a importância das
Irmandades Religiosas que atuaram no território mineiro na chamada Zona da Mata no século
XIX. O estudo destas Irmandades se fará interligado ao contexto social-político que marcou a
região onde encontraria no café e no trabalho escravo os elementos vitais para o seu
desenvolvimento.
Palavras-chave: Irmandade; escravidão; cultura.
Abstract: This article presents a brief analysis on functions and relevance of religious
brotherhoods settled in Minas Gerais, at the territory called Zona da Mata, in nineteenth
century. The study of these brotherhoods is linked to the analysis of social and political
context in that region, being the coffee plantations and slave labor the bases for its
development.
Keywords: Brotherhood; slavery; culture.
Tendo como enfoque a pesquisa da história social sob uma perspectiva religiosa, este
trabalho apresenta como personagem principal, alvo de nossas pesquisas ainda em andamento,
as Irmandades Religiosas, poderosas instituições que no contexto da colonização atendiam as
finalidades religiosas e assistenciais, exercendo funções importantes no território mineiro, já
que estas precederam à própria Igreja, enquanto o Estado estabelecia os seus tentáculos nos
limites litorâneos da Serra do Mar. Assim, o afluxo de “toda espécie de gente”, na virada do
século XVII para o XVIII, se direcionava para o interior da região que viria posteriormente a
se constituir na Capitania de Minas Gerais. Ocupação acelerada, que à cata do ouro nos rios,
conduziu-nos às encostas das montanhas ou em qualquer outra direção que o sonho de riqueza
fácil apontava.
Desapartados da Igreja pelo próprio Estado que proibiu a entrada de religiosos
regulares nesta região, temendo o extravio do ouro e o não pagamento de impostos, estes
aventureiros encontraram abrigo espiritual nestas Irmandades, organizadas inicialmente por
leigos, responsáveis pelas diretrizes religiosas e sociais tão fundamentais e determinantes
numa sociedade ainda em fase embrionária, que se desenvolve sob a proteção destas
instituições que, assumindo os encargos religiosos atuou no sentido de preencher a lacuna
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ).
151
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
deixada pelo Estado, adquirindo, por isto, um forte caráter assistencial que garantiu socorro e
amparo a seus associados. Sendo assim, era difícil imaginar a vida fora da rede protetora das
Irmandades, tecida pela própria necessidade de criar mecanismos de integração neste espaço
marcado pela dispersão.
Refletindo esta paisagem social, as Irmandades Mineiras ganharam a diversificação
que a sociedade produziu em seu próprio interior, ora se consagrando como espaços
privilegiados onde as elites locais e regionais reafirmavam o seu domínio que se estendia do
campo real para o simbólico, ora representando espaços importantes para os negros
escravizados refazerem suas redes de sociabilidades e construírem canais de atuação a partir
do próprio sistema, já que estas instituições se tornaram as únicas organizações legais
representativas deste segmento.
Neste trabalho, utilizamos uma redução na escala de observação do objeto a ser
analisado, adotando por isto um recorte espacial centrado inicialmente na então chamada
Paróquia de São José de Além Paraíba, hoje, Além Paraíba, localizada na parte sul da Zona da
Mata, região situada a meio caminho entre a outrora importante zona mineradora central da
Capitania de Minas Gerais e o Rio de Janeiro.
Em função desta localização intermediária entre estes dois centros de grande
importância econômica, o processo de desenvolvimento da região da zona da mata atrelou-se
intimamente aos acontecimentos que marcaram a vida social, econômica, política e religiosa
da região mineradora central e da província do Rio de Janeiro.
As descobertas das datas auríferas no final do século XVII levaram o Estado
Português a bloquear os caminhos de acesso à capitania, tornando as terras do sul “áreas
proibidas” excluídas do processo de colonização. Mais tarde, a necessidade de criar uma
ligação direta entre as zonas auríferas e o Rio de Janeiro levou à abertura do Caminho Novo
em 1720. Esta estreita artéria, porém única, numa longa extensão promoverá o primeiro surto
importante de povoamento nesta região das matas, tornando-se intensa a circulação de tropas,
pessoas e mercadorias, conduzindo à formação de núcleos embrionários de povoamento e a
instalação de Registros, verdadeiras alfândegas internas reveladora da prática fiscalista e
tributária montada pelo Estado Metropolitano.
Uma segunda corrente migratória ocorreu a partir de 1817. Quando se deu o
esgotamento dos aluviões auríferos os grandes proprietários de datas dos municípios de Ouro
Preto e São João Del Rei ocuparam as terras da zona da mata sul, apropriando-se de um vasto
patrimônio agrário para onde transferiram capitais e o plantel de escravos, conduzidos agora
152
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
para as lavouras de café que em 1870 encontraria na ferrovia o meio privilegiado de
transporte e fator impulsionador do desenvolvimento econômico da região.
Se os imigrantes oriundos da região mineradora sustentaram grande parte do
desenvolvimento do sul da zona da mata, é incontestável que este processo de ocupação
territorial tenha sido fundamental na edificação de Irmandades que ganharam espaços
importantes neste momento.
Refletindo a própria heterogeneidade desta população, as devoções adotadas
revelariam as distinções entre os segmentos luso-brasileiro oriundos do centro de Minas,
superpostos à camada escrava, que juntamente com os mestiços, integravam o quadro social
da época, imperando assim, a lógica da distribuição e distinção social, econômica e racial que
se revelava no campo religioso através das invocações eleitas por segmentos ciosos do espaço
que ocupavam no âmbito real ou simbólico desta sociedade.
Ciente da importância do tema e da vital necessidade de estudá-lo em consonância
com o processo histórico que marcou esta região que se elegeu para estudo tomamos como
limites, flexibilizados sempre que necessário, a segunda metade do século XIX quando se deu
a fundação da mais antiga Irmandade desta Paróquia de São José de Além Paraíba, a
Irmandade do Santíssimo, agregadora de uma elite identificada como a “nobreza do café”,
uma classe formada por senhores rurais sem títulos nobiliárquicos, mas detentores dos
mecanismos eficientes no controle da vida econômica, política e social da região.
Esta Irmandade, esvaziada de sua “nobreza”, ainda hoje se faz presente na sua antiga
sede, a Igreja Matriz de São José, que também hospedou outra Irmandade, a do Rosário de
São Benedito, devoção adotada principalmente por negros livres ou escravizados, cujos
“rastros” de existência documental se tornaram escassos, tornando o seu resgate, neste
momento, um desafio para as nossas pesquisas.
A baliza final da pesquisa é o ano de 1900, quando já era evidente o declínio da
produtividade dos cafeeiros, marcado pelo envelhecimento destas plantas, a diminuição da
qualidade do solo, culminando com a abolição da escravidão em 1888.
Com a decadência da produção cafeeira na região do Vale do Paraíba instala-se um
horizonte de crise que se estende para além da esfera econômica, atingindo a vida religiosa
que se organizava em torno das Irmandades que, assim, não escaparam dos escombros
produzidos pela crise que atingiu profundamente este sociedade, que por tanto tempo se
abrigara nas sombras de intermináveis cafezais.
A base empírica de nossa pesquisa consiste na leitura de fontes manuscritas e
impressas tais como o Compromisso das Irmandades, livros de tombos da Igreja de São José,
153
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
além de depoimentos que vão revelando parte desta memória local e obras publicadas por
autores que pormenorizaram o estudo das Irmandades Mineiras, com destaque para os
trabalhos de Fritz Teixeira Salles, Julita Scarano, Marcos Magalhães de Aguiar, João Camilo
de Oliveira Torres, Célia Maia Borges e Caio César Bosch, autores cujas obras representam
leitura fundamental para o entendimento do fenômeno confrarial mineiro.
Como se trata de um pequeno artigo optei por dar um destaque ao texto que integra o
primeiro capítulo desta dissertação, advertindo que esta pesquisa encontra-se em andamento e
passa por reformulações. Nele uma pergunta se faz necessária em relação a estas Irmandades:
seriam elas espaços de resistência ou instrumento de controle e dominação?
Para o historiador João José Reis (1991) que investigou o complexo universo cultural
afro-brasileiro, tais instituições se apresentavam como espaços importantes na preservação de
elementos africanos, servindo mesmo de incubadoras de diversas religiões e outras tradições
culturais. Em sua obra A Morte é uma festa (1991) afirma que a escravidão não eliminou na
comunidade africana daqui as hierarquias trazidas da África. Fidalgos africanos assumiam
posições de importância dentro das Irmandades e recebiam funerais de dignitários ao estilo
africano.
Nesta obra são inúmeros os funerais negros descritos em detalhes, comprovando a
manutenção de costumes mortuários da África tão bem preservados no acervo imaginário
destes filhos da diáspora. João Reis (1991) lamenta ainda não ter para a Bahia as excelentes
descrições feitas por Kidder e Debret de funerais cariocas de negros escravos e libertos que,
segundo ele, do velório à porta da igreja, predominavam os elementos africanos.
Tanta exibição pública de um ritual tão pouco católico despertou o medo dos brancos,
assustados com a subversão não só da ordem religiosa, mas também da ordem social e
passaram a proibir estes eventos tão representativos de uma espiritualidade africana.
Corroborando com esta visão sobre as Irmandades, a historiadora Julita Scarano
(1978) em sua obra Devoção e Escravidão atesta esta função importante atribuída às
Irmandades: “As confrarias serviram de veículo de transmissão de diversas tradições
africanas, que se conservaram pela frequência dos contatos, pela conservação da língua e
outras razões semelhantes”.
Encontraremos concordância também em Caio César Bosch (1986, p. 156) ao afirmar
que “[...] ao permitir e incitar certas práticas religiosas africanas no interior das Irmandades,
os brancos contribuíram para que elas se tornassem um veículo de preservação dessas
originais manifestações culturais africanas [...]”.
154
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Há uma enorme concordância entre os historiadores e pesquisadores do tema sobre a
importância destas Irmandades em relação aos elementos que indicam preservação,
manutenção, sobrevivência e resistência de elementos que se inserem no campo da cultura
africana. Tal importância, no entanto, é diluída na crítica que se faz a estas instituições por se
manterem distanciadas de ações ou intenções de combate ao escravismo. O historiador Caio
Bosch (1986) afirma mesmo que estas não somente aceitaram a escravidão, mais do que isso,
ratificaram o regime escravocrata e sua estrutura social marcadamente hierarquizada.
Enfocando as Irmandades Mineiras, o historiador, confronta-as com os quilombos em Minas
Gerais, onde provavelmente ocorreu a maior concentração deles no período colonial,
afirmando:
Ao contrário dos quilombos, as Irmandades acabaram se tornando uma forma de
manifestação adesiva, passiva e conformista das camadas inferiores, onde não se
formou uma consciência de classe e, por conseguinte onde inexistiu uma consciência
política (BOSCHI, 1986, p. 156).
A isto se seguem associações de idéias que apresentam as Irmandades como aliadas ao
Estado e à Igreja no seu projeto de enquadramento do negro aos padrões estabelecidos pelos
brancos. O que também se constata em Eduardo Hoornaert (2008, 386), quando este afirma:
A presença do homem branco junto ao negro era niveladora (no sentido que nivelava
a diversidade das nações africanas existentes no Brasil) e hierarquizadora (no
sentido que introduzia a ética do privilégio e conseguia desta forma atrair os pretos
para o sistema). No papel de benfeitor, protetor ou representante jurídico, a função
do branco junto ao preto sempre foi a mesma, nas confrarias, nos compadrios, nos
apadrinhamentos de batismo ou casamento: a de atrair o homem preto para o mundo
do branco. Desta forma fica bem claro que as Irmandades provocaram em parte a
progressiva integração dos africanos na sociedade colonial.
Estabelece-se assim um contraponto interessante que tais considerações produzem ao
realçar o aspecto peculiar que estas instituições apresentaram, não só na defesa de práticas
religiosas africanas mas, principalmente, por constituírem-se nas únicas organizações que
cuidavam dessas populações, atuando como entidades coletivas numa sociedade onde o negro
escravizado não possuía identidade jurídica, sendo que ao mesmo tempo, são condenadas por
anularem estas mesmas individualidades, inibindo iniciativas mais radicais, promovendo
assim a alienação deste segmento.
Tal desqualificação feita às Irmandades nos levaria a concluir que as mesmas
prestaram um desserviço aos negros, imbricadas que estavam nas engrenagens do próprio
sistema colonial escravista. Por outro lado, parte destas críticas residem no fato destes negros
agregados nas Irmandades sob o manto protetor dos santos e santas cristãos, buscarem a
155
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
satisfação de interesses próprios, “menores”, ligados ao seu cotidiano, distanciado da luta
maior e do verdadeiro ideal de liberdade coletiva, idealizado por muitos.
Na tentativa de superar tais ideias contraditórias, busco entender estas Irmandades
dentro do contexto onde atuaram, ou seja, numa sociedade que se pretendia branca embora se
evidenciasse o crescimento acelerado de uma população negra e mestiça, marcada
profundamente por desigualdades sociais e preconceito de cor, cujo povo livre era em sua
grande maioria pobre e praticante de um catolicismo popular ou barroco que misturava ritos
católicos com práticas pagãs experimentadas também pelos demais setores da população.
Uma sociedade marcada pelo encontro e desencontro de povos distintos que aceitaram o
desafio de recriarem novos códigos de comportamento, estabelecendo fronteiras diante do
“outro” na busca por sua própria identidade, tão ameaçada pela escravidão e dificilmente
reconstituída na diáspora.
O estudo das Irmandades só é possível mediante o entendimento das estruturas e da
dinâmica que embalou a sociedade para onde foram transplantadas e se mantiveram atuantes
até o Brasil Império. Funcionando como força complementar ou mesmo, substituindo a Igreja
aonde esta não chegava, tais instituições refletiam o sistema mercantilista fundeado na
escravidão, no projeto colonialista e evangelizador adotado pelo Estado em parceria íntima
com a Igreja e no complexo sistema de hierarquia e mestiçagem que marcou ou “manchou” a
sociedade colonial.
Assim, negando o caráter passivo e adesista atribuído a estas Irmandades, busco
entendê-las no contexto mais amplo onde foram geradas, integradas ao conjunto maior da
sociedade onde se estabeleceram, criadora não só de práticas simbólicas mas, principalmente
de ações práticas que se configuravam em estratégias válidas contra a exclusão e as pressões
sociais a que foram expostos cotidianamente estes enormes contingentes de negros.
É certo, porém, que tal resistência não se faria em termos de contestação para a
derrubada do sistema escravista, afinal, as Irmandades não reuniam negros aquilombados,
eram espaços criados para a prática do culto cristão no interior de uma comunidade que não
fazia a distinção entre a sociedade civil e religiosa, em que a religião era inseparável da
política, onde o Estado se esforçava para impor sua civilização metropolitana, suas
instituições e sua cosmologia.
Na finalização deste texto, utilizo o conceito criado por Benedict Anderson (2008)
para definir as nações em sua obra “Comunidades Imaginadas”, publicado pela primeira vez
em 1983. Rompendo com a idéia de estabilidade e de controle absoluto exercido pelo
governo, a nação, para este historiador, se baseia na etérea imagem de uma “invenção”, algo
156
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
imaginado e desejado por muitos; algo que passando por um processo seletivo seria capaz de
criar um novo passado e novas tradições que entrelaçariam seus participantes promovendo a
solidez da comunidade.
Pretende-se empregar tal conceito para a análise destes negros escravizados,
fragmentados em múltiplos segmentos que se reagrupam em função dessa nova realidade
social para onde foram transferidos. Ao mesmo tempo, precisam decifrar os códigos que
regem esta sociedade, percebê-la como espaço orgânico, mutável, capaz de acomodar novas
experiências redefinindo, através de invenções, as fronteiras do seu próprio mundo, seja
criando parentescos simbólicos, substitutos da família consangüínea desbaratada pela
escravidão, ou entronizando reis e rainhas negros como monarcas fictícios, mas reais o
bastante para preservar suas hierarquias sociais e valores culturais ou até mesmo, aceitando os
santos negros inventados pelos setores da Igreja empenhados no projeto de cristianização.
Assim, criaram-se histórias e tradições que vai de Santa Ifigênia, princesa núbia
convertida ao cristianismo e batizada pelo apóstolo Mateus, à Nossa Senhora Aparecida,
recolhida pela rede de três pescadores no rio Paraíba, em 1717 e alçada como símbolo da
identidade nacional, deixando claro que o que alimentava o imaginário do negro, alimentaria
o do branco também.
Nações que nascem, segundo Benedict Anderson (2008), sob símbolos que dão
sentido e legitimidade à sua existência, que independentemente das hierarquias e
desigualdades existentes, são concretizadoras de um sonho coletivo.
Estendendo tal conceito às estratégias de sobrevivências adotadas pelos negros
escravizados, ou mesmo livres, mas sob o domínio de um sistema opressor, encontraremos no
mesmo espaço idéias divergentes de nação; a que se impõe a partir de um Estado Absoluto,
que através de mecanismos de vigilância e punição deseja implantar uma ordem social
calcada nos padrões culturais europeus, e aquela desejada pelos grupos subalternos, vítimas
de guerras e do tráfico em suas Áfricas, sobreviventes da travessia do Atlântico e desafiados a
redefinirem suas fronteiras étnicas e estabelecer novas marcas de identidade em solo
americano. Apesar das diferenças e das tensões encontradas, o desejo de resistir e reconstruir
a sua própria humanidade conduziu a uma solidariedade capaz de recrutar novos membros,
entrelaçados no sonho de fazer desta terra, também a terra deles, encontrando nas Irmandades
a incubadora que gestou estes primeiros lampejos de nação.
157
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
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158
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Convento de Santa Mônica de Goa: um modelo de religiosidade feminina para o Oriente
(1606-1636)
Rozely Menezes Vigas Oliveira*
Resumo: No início do século XVII, Goa era a “Roma do Oriente”, território de representação
dos poderes ausentes na longínqua Índia: Lisboa (na estrutura secular) e Roma (na estrutura
eclesiástica) através das figuras do vice-rei ou governador e do bispo ou arcebispo,
respectivamente. Entretanto, uma cidade vista por muitos, entre clérigos e cronistas, como
decadente moralmente. Onde mulheres morriam acusadas de adultério ou tinham seus
maridos mortos por seus amantes. Nesse ambiente foi fundado, em 1606, pelo D. Frei Aleixo
de Meneses – arcebispo de Goa e governador do Estado da Índia – o Convento de Santa
Mônica de Goa, primeiro claustro feminino em todo o Império Ultramarino Português. Tinha
como objetivo sanar os males da sociedade cristã no Oriente, principalmente das mulheres,
juntamente com os recolhimentos para as órfãs e para as convertidas. Na presente
apresentação pretende-se entender o convento como um território de representação de um
modelo de religiosidade feminina para o Oriente Português, já que os conventos femininos do
Barroco representaram um discurso reformador da Igreja Católica, afirmado pelo Concílio de
Trento, em que o ideal de perfeição feminina se dava a partir da regulamentação do
matrimônio e da proposta de um confinamento mais rigoroso. Para tal também é necessário
tratar um pouco dos conceitos chaves de território e representatividade.
Palavras-Chaves: Goa; D. Frei Aleixo de Meneses; Convento de Santa Mônica;
Religiosidade; século XVII.
Abstract: In the early seventeenth century, Goa was the "Rome of East", territory of
representation of power distant from India: Lisbon (in the secular structure) and Rome (in the
ecclesiastical structure) through the person of the viceroy or governor and of the bishop or
archbishop, respectively. However, the city was seen by many, among clerics and chroniclers,
as morally decadent, women being accused of adultery have died or had their husbands killed
by their lovers. In this background, in 1606, it was founded, by D. Frei Aleixo de Menezes archbishop of Goa and governor of India - the Convent of Santa Monica in Goa, the first
female cloister in the Portuguese overseas empire. The convent was intended to remedy the
ills of Christian society in the East, especially those of women, along with the care for the
orphans and for the converted. In this paper we present the convent as a territory of
representation of a Portuguese model of female religiosity to the East, in relation to the
baroque discourse that represented the reform of the Catholic Church, as stated by the Council
of Trent, in which the ideal of feminine perfection would be given by regulation of marriage
and proposal for a more rigorous confinement. For this purpose, it will be necessary to review
the key concepts of territory and representativeness.
Keywords: Goa; D. Frei Aleixo de Meneses; Convent of Santa Monica; Religiosity, the
seventeenth century.
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista CAPES.
159
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Reflexão sobre os conceitos de território e representatividade
Koselleck, em seu livro Futuro Passado (2006), trabalha as relações entre linguagem e
história, dando ênfase ao exemplo alemão, sendo assim, um dos principais construtores da
História dos Conceitos. Para ele, “a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método
especializado da crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de
vista social e político e que analisa com particular emprenho expressões fundamentais de
conteúdo social ou político” (KOSELLECK, 2006, p. 103). Logo, a história dos conceitos
estaria interligada à história social, pois as palavras mesmo permanecendo no vocabulário até
os dias atuais perdem significados e adquirem outros através dos tempos e dos contextos
históricos. Com base nesta concepção da importância de compreender melhor os conceitos
utilizados, tentar-se-á nas próximas linhas fazer uma breve discussão sobre os conceitos de
representação e território.
O conceito de representação está ligado ao surgimento da terceira geração dos
Annales, nos anos 60/70, em que traziam novas abordagens, temas e objetos às questões
históricas sociais, inspiradas nas ideias fundadoras da primeira geração. Ao tentar entender o
homem como um ser complexo, esta nova vertente historiográfica forma um novo campo,
chamado História das mentalidades. No entanto, o conceito de representação busca ir além do
de mentalidades, já que neste conceito um único imaginário caracteriza toda a sociedade,
como se todos compartilhassem de um mesmo imaginário, desprezando assim a pluralidade
social. Por outro lado, a representação valoriza a história do plural, das diferenças, dos laços
sociais e das identidades (GUARATO, 2010).
Essa nova vertente, conhecida como História das Representações teve contribuição de
autores como: Paul Ricoeur, que a via como substituta das mentalidades; Michel Foucault,
que, grosseiramente falando, tentou compreender não só a existência das diferenças, mas
também sua origem; Michel de Certeau, que em seu estudo sobre desvios e apropriações
analisou a questão do sujeito que fala e para quem ele fala. No entanto, nos deteremos ao
conceito de representações desenvolvido pelo historiador Roger Chartier (1990, p. 17).
As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto
reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas.
Para o autor, tanto as práticas como as representações são construídas socialmente a
partir dos interesses de um ou mais grupos. A partir da ideia de que os discursos não são
neutros, procura compreender as representações como construções determinadas pelas
160
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
práticas dos grupos. Deste modo, as práticas sociais só são passíveis de entendimento
enquanto representações, ou melhor, o real só existe a partir do momento que é representado.
Trazendo este conceito para o âmbito da sociedade do Antigo Regime, é possível observá-la
repleta de símbolos, mescla de representação com o real. Melhor dizendo, uma sociedade
teatralizada onde “a identidade do ser não [era] outra coisa senão a aparência da
representação” (CHARTIER, 1990, p. 21). O indivíduo seria aquilo que ele exibia, sua
aparência valia pelo real. Logo, esta realidade era construída visando o reconhecimento de
uma identidade social que demonstrasse seu modo de estar no mundo, definindo
simbolicamente o estatuto e a posição do indivíduo na sociedade.
No que tange ao conceito de Território, Ademir Terra indica que a origem do conceito
– diferente do senso comum que credita-o à Geografia – está na Biologia e Zoologia, ao
analisar os comportamentos específicos dos animais na determinação do local em que vivem,
reproduzem-se e caçam. A Geografia adotou o conceito em suas análises enfatizando a
materialidade do território. No entanto, há outras apropriações deste mesmo conceito, como o
da Ciência Política, que o utiliza para analisar a concepção de Estado através das relações de
poder; da Sociologia que o emprega como agente nas relações sociais; e a Antropologia que
ressalta sua dimensão simbólica (TERRA, 2009, p. 5-7).
Atualmente, com a Geografia Crítica, o conceito foi ressignificado devido à
necessidade de se compreender as transformações econômicas, divergências sociais e as
novas organizações territoriais. Ao falar das funções da territorialidade, Marcel Roncayolo
(s/d), em seu texto Território, desenvolve um conceito amplo de território em que este está
ligado à formação de uma identidade, não só individual, mas principalmente social. “A
ligação a um território não é facilmente separável de um conjunto de relações sociais, de
hábitos, de ritos, de crenças” (RONCAYOLO, [s.d], p. 267). Assim, seria um novo território
que se afasta do significado antigo referente ao espaço geográfico e se aproxima mais da
cultura das sociedades, criando um sentimento de pertença a um determinado grupo. Ele
ultrapassa o sentido do terreno propriamente dito e ganha valores políticos e sociais.
Rogério Haesbaert (2006) também trabalha o conceito de Território de uma forma
ampla. Ele divide-o em perspectivas: a materialista em que relaciona a sociedade com a
natureza, reconhecendo as ações comportamentais do homem com seu ambiente; na idealista,
o território é dotado de identidade, carrega significados simbólicos e subjetivos. Mas, ele vai
além, e traz uma perspectiva integradora, em que o território é agente da interação entre as
dimensões política, econômica, natural, social e cultural (HAESBAERT, 2006, p. 46-53). Sob
o ponto de vista da perspectiva idealista ou simbólica, o autor reforça sua dimensão enquanto
161
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
representação. Em sociedades do Antigo Regime, ou “pré-industriais” – segundo termo do
autor –, o território se define a partir do sentimento de pertencimento e de uma identificação
cultural com o território (HAESBAERT, 2006, p. 49). E mais, o lugar também pode ser
ocupado mais intensamente pela “apropriação simbólico religiosa”, aprofundando mais ainda
o sentimento de pertencimento. Assim, o território é visto como um “construtor de
identidade” (HAESBAERT, 2006, p. 50).
Para analisar o convento das Mônicas de Goa, este conceito será apropriado como
construtor de um modelo, um ideal. Um território capaz de construir modelos de
representação de um ideal cristão católico para as mulheres no Oriente Português.
Convento de Santa Mônica de Goa: território representativo do modelo de religiosidade
feminina
O Convento de Santa Mônica foi o primeiro claustro feminino do Império Ultramarino
Português, fundado por Frei Aleixo de Menezes, um agostiniano de origem nobre que no
período entre 1595 e 1610 foi arcebispo de Goa, acumulando o cargo de governador da Índia
de 1606 a 1609. Recebeu o nome de um exemplo de virtude, a mãe de Santo Agostinho,
fundador da ordem. Aliás, este é o nome dado à grande maioria dos conventos femininos dos
agostinhos.
A justificativa dada ao rei para obter a autorização para a fundação do convento estava
inserida na preocupação com a preservação e garantia da virtude feminina. O convento seria
uma resposta para a dificuldade dos fidalgos encontrarem um bom marido para suas filhas, já
que os candidatos deveriam ser homens dignos e fidalgos também e não soldados em busca de
fortuna. Um outro motivo apresentado foi a grande quantidade de mulheres que eram
assassinadas por seus maridos acusadas de adultério. “Citam que no espaço de
aproximadamente dois anos se contaram 52 mulheres mortas à ‘espada’, acusadas de
adultério” (GONÇALVES, 2005, p. 65).
A cidade de Goa era considerada, tanto por viajantes quanto pelos clérigos, uma
sociedade desregrada e desvirtuosa. Em seu artigo, Propércia de Figueiredo nos mostra que os
relatos de viajantes como Garcia da Orta e João Huighens van Linschoten indicavam esta
característica da sociedade em Goa – que mesclava diversas culturas numa só ilha, como
indianos, portugueses, judeus e mulçumanos – e a sua desmoralização, inclusive da parte
feminina (FIGUEIREDO, 1928-1931, p. 6). Num trecho da História do Real Convento de
Santa Mónica de Goa, podemos ver como a cidade era vista pelos religiosos:
162
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Era entre as molheres daquelle Estado muito grande a devassidão, e também igual
prejuízo, que della resultava, não só ao serviço de Deos, mas à República; vendo-se
cada dia acabarem muitas por adúlteras às mãos de seus maridos, e os maridos
perecerem às mãos daquelles que eram culpados no delito de suas molheres, para
ficarem com ellas mais soltos no seu pecado (SANTA MARIA, 1699, p. 2).
Logo, para conservar a honra dessas mulheres eram necessárias instituições que as
salvaguardassem. E este foi o objetivo de frei Aleixo – como homem representante do espírito
reformador presente em alguns clérigos da época e das determinações de Trento – ao fundar
os recolhimentos e o convento. Após seu retorno a Portugal, o arcebispo encarregou frei
Diogo de Santa Ana da administração do convento. Este religioso – que também era
funcionário do Santo Ofício – além de administrador, foi um dos confessores das freiras e seu
maior defensor perante os ataques da Câmara Municipal – que por questões econômicas
requeria ao rei a extinção do convento. Frei Diogo, em defesa do convento, escreveu ao rei
uma longa carta, intitulada Resposta por parte do Insigne Mosteiro de Santa Mônica. Em todo
o documento ele glorifica as virtudes e qualidades das freiras que lá viviam (SANTA ANA,
1636), podendo assim perceber como ele utiliza o território do convento para difundir um
modelo de virtude e santidade. Num sermão escrito para a inauguração da igreja do convento
frei Diogo também coloca as figuras das freiras como exemplos de vida:
[...] todos viram o grande e raro exemplo que estas pessoas davam a todo este povo,
vivendo angelicamente, e assistindo na nossa igreja [Igreja de Nossa Senhora da
Graça pertencente ao convento dos agostinhos] todos os dias, desde que se
começavam, as missas até que se acabavam, e confessando-se, e comungando de
ordinário duas vezes, na semana, e além disso pelas festas do ano, e em sua casa
tendo larguíssimos exercícios de oração mental, e de jejuns, e abstinências de modo
que a todos admiravam, e edificavam, com o mais que deixamos de dizer (SANTA
ANA, 1627, fl.8).
Outra obra em que é possível observar esta exaltação e valorização da vida das freiras
é a obra redigida por frei Agostinho de Santa Maria (1699) – mencionada anteriormente – a
partir de trechos do manuscrito de frei Diogo de Santa Ana e de depoimentos das freiras e
confessores, em que versa sobre os primeiros trinta anos da instituição até o recebimento do
título real, em 1636. A obra teve como objetivo divulgar e ressaltar os feitos dos agostinianos
no Oriente e, sendo assim, foi composta a partir de um relato da vida do fundador do
convento, Frei Aleixo de Menezes, e mais quatro livros sobre o convento e suas componentes,
em que relata as experiências espirituais e o estilo de vida levado pelas freiras. Já no Prólogo
o autor exalta as qualidades dessas mulheres.
Verdadeiramente a vida, os exemplos, as virtudes, e a santidade das religiosas do
Convento de Santa Monica de Goa, são de forte, que (como se verá em toda esta
história) temos muito de que nos admirar, e não pouco de que nos confundir os que
163
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
vivemos na Europa, vendo fácil aquilo, que se julgou por muito impossível na Ásia
(SANTA MARIA, 1699, prólogo).
O convento no olhar dos agostinianos, aqui representados pelas palavras de Santa Ana
e Santa Maria, foi formador de um modelo de virtude a ser seguido pelas mulheres católicas
no Oriente, fossem elas cristãs-velhas ou convertidas. Para alcançar tal intuito, frei Aleixo
contou com o exemplo de vida de uma viúva e sua filha: D. Filipa Ferreira e Maria de Sá.
Tanta era a modéstia, e o recolhimento exterior desta serva de Deus, e de sua filha,
que todas as Donzelas, e mulheres nobres daquela Cidade, que concorriam à Igreja
de N. Senhora da Graça, se desejavam chegar a elas, estimando em muito a sua
companhia, trato e comunicação. Esta foi a primeira vez que na Índia se viu a
virtude postada publicamente (SANTA MARIA, 1699, p. 497).
Como podemos observar neste trecho e em quase todo o livro, Santa Maria explora a
figura de Filipa e sua filha como modelo de virtude feminina para as mulheres de Goa e de
todo o Estado da Índia, já que a fama do convento transpassou os muros da cidade. As
donzelas que professavam no convento eram provenientes de vários lugares do Oriente
Português, inclusive de locais onde Portugal não exercia seu domínio (COATES, 2002, p. 6781). Filipa Ferreira, professa sob o nome de Filipa da Trindade, era moradora da cidade de
Tana – situada no Norte da Índia – onde conheceu D. Frei Aleixo de Menezes em uma de suas
visitas pastorais. Chegou a Goa, em 1604, onde teria ficado responsável pelas órfãs mesmo
antes do recolhimento ter sido construído (PINTO, 2006, p. 301). Segundo Margareth
Gonçalves (2005, p. 66-69), ela foi a regente do recolhimento da Serra. Depois de instituído o
convento e após o período de noviciado, Filipa da Trindade recebeu o título de superiora do
convento e sua filha – que adotou o nome de Maria do Espírito Santo – e outras quinze
donzelas professaram votos. As vidas dessas religiosas são relatadas como exemplos de
vocação e de vida em santidade; de virtudes como a humildade, caridade e modéstia; e de
trajetória de perseverança na fé diante das tentações e forças demoníacas.
A fama das vidas dessas freiras chegou rapidamente ao Reino, tanto que Frei Luís dos
Anjos, em 1626, no seu Jardim de Portugal – em que compila vidas de santas, de religiosas e
de mulheres virtuosas – retratou a figura de Soror Maria do Espírito Santo, sendo ela “a
primeira donzela que nas partes da Índia Oriental [...] se dedicou em mosteiro solenemente a
Deus” tendo “sido mui perfeita em todo gênero de virtudes” (ANJOS, 1999, p. 342-343).
Tanto mãe quanto filha seriam figuras representativas do discurso pregado pela igreja católica
reformadora – por sua vez representada aqui por frei Aleixo e frei Diogo – no Oriente sobre o
ideal de virtude feminina.
164
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A partir dos conceitos de território desenvolvidos por Roncayolo e Haesbaert, a partir
de uma perspectiva simbólica é possível pensar no convento como um território formador de
uma identidade coletiva feminina religiosa. Katryn Burns (1999, p. 106), ao dissertar sobre os
conventos de Peru, compara-os a verdadeiras cidades dentro dos muros, pois possuíam uma
grande estrutura para atender as necessidades das freiras. Uma forte organização política foi
desenvolvida dentro dos conventos, partindo dos cargos superiores das abadessas ou prioresas
e passando por um conselho de madres que auxiliavam as abadessas no governo dos
conventos. Havia também cargos, como de porteira, sacristã, vigária do coro, mestra das
noviças, supervisora da cozinha, enfermeira e outros. Ainda dentro de suas celas cada freira
tinha seu próprio complexo familiar colonial. Com suas escravas, servas e crianças
abandonadas formavam novas formas familiares autorizadas pelas abadessas e prioresas, que
adaptavam os protocolos do claustro para tal fim. Desta forma, o território conventual não só
definia a identidade das freiras com suas leituras, orações, cantos, cultos e atividades manuais,
mas também deveria influenciar a vida das pessoas seculares com os exemplos de virtude e
santidade representados pelas freiras mais espirituais e ascéticas.
Neste sentido, o convento das Mônicas pode ser visto não só como um lugar de
residência enclausurada de mulheres, mas também de existência de tradições religiosas, de um
grupo organizado e hierarquizado. Um território que “desde seus princípios tem creado
espíritos excelentes sendo aquella casa verdadeiramente Seminario de santidade, e escola de
virtudes.” (SANTA MARIA, 1699, p. 41). Um território de construção de identidade religiosa
e de modelos de santidade. E mais, o convento estaria representando os ideais da Igreja
Católica reformadora sobre as qualidades (virtudes) que deveriam ser seguidas pelas mulheres
nobres no Oriente através dos exemplos de vidas de suas freiras. O que nos leva a entender o
quão importante foi para os religiosos o papel desenvolvido pelo Convento das Mônicas na
manutenção da fé católica em territórios tão distantes no Oriente.
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religioso da ordem dos Eremitas do grande Patriarca Santo Agostinho e provincial nela e
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dezembro de mil e seiscentos e vinte e sete, na dedicação da nova Igreja do insigne mosteiro
165
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
da gloriosa Santa Mônica da cidade de Goa metrópole do estado da Índia oriental, em missa
pontifical do Illmo. e Rmo. Sr. Dom fr. Sebastião de São Pedro digníssimo Arcebispo Primaz
do Oriente e religioso da mesma ordem e prelado do mesmo mosteiro. 1628. ANTT,
Manuscritos da Livraria n.º 1869.
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168
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A formação do estado do Guanabara nas páginas da imprensa:
uma análise a partir do jornal O Globo
Sara Cesar Brito *
Resumo: A construção da nova capital representou para os cariocas a perda de status perante
a nação brasileira. Capital desde a era mineradora do Brasil, o Rio vê-se na iminência de
perder o papel de centro de decisões e adentra numa crise intelectual e política de abandono e
esvaziamento de políticas e práticas institucionais. A pergunta que frequentemente ecoava
pela imprensa carioca mostrava essa preocupação com “O que será do Rio?”. O principal
periódico que se posiciona como um líder na defesa do Rio de Janeiro é O Globo que divulga
suas idéias a respeito do que se tratava no Congresso Nacional a respeito do futuro do Distrito
Federal: Guanabara ou fusão? Divisão em distritos ou um estado único? E é através desse
jornal que nos focaremos na análise desse conturbado período da história fluminense.
Palavras-Chaves: O Globo; Guanabara; história política.
Abstract: The building of a new capital for Brazilian nation, in the 1950’s, represented for
Rio de Janeiro citizens a loss of status. Capital since the mining era in Brazil, in XVIII
century, Rio found itself then on the verge of losing the position as decision making center
and in a political and intellectual crisis due to the possibility of institutional vacuum and loss
of policies practices. This concern echoed in Rio de Janeiro’s press in the question "What will
be of Rio?". The leading newspaper in Rio de Janeiro's defense was O Globo, that frequently
had disclosed its concern on what was going in National Congress, related to future of former
"Federal District": the proposal of creating a new state, Guanabara, or the incorporating of
city of Rio de Janeiro in the Rio de Janeiro state? In this paper, we focus on analysis of this
troubled period in the history of Rio de Janeiro.
Keywords: O Globo; Guanabara; political history.
Introdução
Por 15 anos, a República Federativa do Brasil contou com mais uma estrela na
bandeira nacional, que representava o estado da Guanabara. Essa unidade da federação
correspondia ao que hoje é a cidade do Rio de Janeiro e onde, até 1960, se localizava a
Capital Federal Brasileira. Após a perda da capitalidade o recém-criado Estado da Guanabara
deveria se constituir como unidade federativa, porém em decorrência de seu passado como
“vitrine nacional”, o feito não é dos mais fáceis. Dividimos essa comunicação em duas partes,
então: a primeira parte em que será realizada uma contextualização da idéia dessa
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS-UERJ).
169
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
transferência; e a segunda parte que será a formação desse novo Estado segundo as análises e
notícias difundidas pelo O Globo, principal periódico sediado no Rio de Janeira e de
divulgação nacional.
Entendendo a transferência
A ideia de transferir a Capital Federal para o interior do Brasil surge pela primeira vez
durante a Inconfidência Mineira, um dos primeiros movimentos brasileiros no século XVIII
visivelmente influenciados pelos ideais de independência que buscava proclamar uma
república e assassinar o governador da província devido à aprovação de um ato de Marquês de
Pombal chamado Derrama e que consistia na cobrança de impostos atrasados em toda região
das Minas. Essa insurreição foi frustrada por conta da delação de um dos participantes que
culminou na condenação ao exílio de todos e no enforcamento e esquartejamento do alferes
Joaquim José da Silva Xavier, conhecido também por Tiradentes, para servir de exemplo para
todos que quisessem atentar contra a Coroa Portuguesa. Porém, nos Autos da Devassa desse
movimento pode ser visto que um dos objetivos era retirar a capital do Rio de Janeiro e levála para Minas Gerais, por ser o lugar da onde saía a riqueza do país.
Tal questão referente à interiorização da capital só reapareceria mais tarde, proposta
pelo deputado José Bonifácio na Assembleia Legislativa do Império do Brasil em 1824. Com
o nome de Brasília, o deputado indicava a comarca de Paracatu em Minas Gerais para sede do
governo imperial, já que assim eliminava o risco de invasões que facilmente poderiam
inutilizar o centro de decisões do Império por ficar no litoral. Além disso, desejava-se uma
maior integração do território, marcado por grandes vazios demográficos, com a população,
em seu maior número, instalada na região costeira do país. A proposta não avançou devido ao
aumento da insatisfação para com o primeiro imperador do Brasil, D. Pedro I, tendo sido
abandonada depois de um desentendimento entre esse e Bonifácio, que acabou exilado para a
França, apenas retornando anos depois para tutoriar Pedro de Alcântara, futuro imperador D.
Pedro II.
A transferência retorna ao plano político com a Proclamação da República em 1889.
Lembrada em emenda ao projeto constitucional de 1890, torna-se oficial com a sua presença
na seção 'Organização do País' da Constituição Federal outorgada em 24 de Fevereiro de
1891. Essa idéia era justificada por certas características que a capital possuía e que não eram
simpáticas aos ideais da República que se iniciava naquele momento, como relata Marly
Motta (2004:19):
170
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A implantação da ordem, considerada elemento-chave do projeto republicano,
parecia bastante comprometida pela 'maléfica influência' que emanaria da antiga
capital imperial, em função do caráter 'agitado' e 'revolucionário' de sua população,
que teria marcado a cidade como espaço da improvisação, da ação direta e
inesperada e, por isso mesmo extremamente ameaçadora. (...) A essa fama de
turbulenta, aliava-se a imagem de uma cidade estrangeira, antinacional. Naquele
início dos anos de 1890, a população da capital era de 522.651 habitantes, (...) desse
total, um quarto era de estrangeiros.
Cosmopolita e tumultuosa eram características negativas para o centro político
nacional. Buscou-se então no Planalto Central o lugar para a construção do novo Distrito
Federal. Localizado em um território que, apesar de ainda desconhecido, podia ser
considerado o coração do Brasil, tornava-se o lugar ideal para a construção da nova sede de
governo. Para dar início aos trabalhos relativos à mudança, uma Comissão foi criada para
tratar do assunto e uma expedição foi enviada ao interior com o objetivo de mapear o
território e buscar a melhor localização para a demarcação dos 14.440 km reservados a futura
capital. A dita expedição foi nomeada de Missão Cruls e teve grande importância para o
reconhecimento do interior e descobrimento de diferentes espécies biológicas nacionais que,
até então, eram desconhecidas.
Apesar de ser considerado um sucesso, não foi dado prosseguimento ao caso por
inúmeros motivos, dentre eles a crise do café, principal produto brasileiro para exportação, e a
nova política empreendida pelo presidente Campos Salles, definida segundo a ideia de que
“nos estados se fazia política; na capital se administrava.”
(MOTTA 2004:24).
Diante do novo
pacto de governo, que se aliava à chamada “Política dos Governadores” – acordo entre os
governos estaduais e o federal destinada a controlar as sucessões – a construção de uma nova
capital se tornaria muito onerosa, ficando esquecida no plano político até 1946. Ainda na
Primeira República, porém, o Rio de Janeiro recebia inúmeros investimentos a fim de se
tornar a Belacap, o remodelamento e alargamento de suas vias, a derrubada de cortiços,
abertura de ruas e a revitalização do porto buscava fazer do Rio de Janeiro, uma capital aos
moldes europeus – integrada e saneada. Por exemplo, foi nesse momento que foi construído o
Palácio Monroe na Cinelândia, a fim de representar o Brasil na Conferência Pan-Americana
que ocorreria na cidade e, assim, mostrar o quão belo e “europeizado” era o Distrito Federal.
Apenas com a Constituinte de 1946, após o Estado Novo, a proposta da transferência
do Distrito Federal volta à pauta, sendo incluída nas Disposições Transitórias. Mais uma vez,
é criada uma Comissão para analisar o caso e a viabilidade da proposta que só se efetuaria 14
anos mais tarde, com a eleição de Juscelino Kubitschek para presidente. Ele incorpora a
proposta de construção de Brasília no Planalto Central – a Novacap - a seu Plano de Governo,
composto por 30 metas de ação nos setores de energia, transporte, indústria, alimentação e
171
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
educação num grande projeto de Integração Nacional. Para Juscelino, desenvolver o Brasil,
transformando-o em potência capaz de participar do 'Concerto das Nações' era sinônimo de
integrar esse país, eliminando os vazios demográficos. Brasília tornou-se a meta-síntese do
Programa de Metas.
A transferência aos olhos de O Globo
Tem-se a impressão de por vezes estarmos sob o comando de loucos. Um país que
constrói, em uma região deserta, uma nova Capital só por insanidade pode condenar
a decadência irremediável a sua segunda cidade, até aqui sede do seu governo. Se há
dinheiro para construir Brasília, por que não há de haver para preservar o Rio? (O
Globo, 04/03/1960).
Em março de 1960, o jornal O Globo exibiu um longo editorial, em sua primeira
página, criticando o governo federal e seu braço no Distrito Federal, o prefeito Sá Freire
Alvim - a prefeitura do distrito federal era provida pela nomeação do presidente da República
- pelas paralisações que estavam acontecendo nas várias obras pela cidade. Obras de cunho
urbano (saneamento, asfaltamento, dentre outras) estariam sofrendo com as greves dos
trabalhadores, por falta de pagamento. A alegação dos trabalhadores levou ao descobrimento
de um rombo no orçamento da cidade, provocado pela negativa de empréstimo do Banco do
Brasil e do governo federal às obras de “preservação” da cidade. Esse episódio aumentou o
tom das críticas que esse periódico já vinha dirigindo de longa data ao governo e à sua meta
principal relativa à construção de Brasília.
O jornal O Globo foi fundado em 1925 por Irineu Marinho, porém esse veio a falecer
um mês depois de sua fundação, cabendo ao seu filho, Roberto Marinho, a sua condução. Este
apenas veio a tomar as rédeas do periódico em 1931, transformando-o, a partir dessa data,
numa grande empresa de notícias, possuindo também emissora de rádio. O perfil do jornal
desde sua criação era conservador, tendo esse enfoque se acentuado ao longo do tempo. Ficou
conhecido por suas críticas a Vargas e a todos aqueles que surgiam como seus herdeiros
políticos. As críticas a Kubitschek foram menos diretas, pois a concessão da autorização para
lançamento da mídia televisiva Rede Globo foi dada por esse presidente em 1957, centrandose na questão da capitalidade.
Por ter sua sede localizada na capital da República, foi um dos jornais que participou
ativamente dos debates a respeito da transferência da capital. Os mais conhecidos e estudados
para análise desse período são o Correio da Manhã e a Tribuna da Imprensa, tendo todos eles
conduzido campanhas contrárias a dita transferência. Porém o que mais nos interessa no
jornal da família Marinho foi o fato de ele ter tomado para si a tarefa da defesa do Rio de
172
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Janeiro, realizando conferências, reuniões, conclames no auditório de sua sede, para discutir
os rumos a serem tomados quando finalmente a capital se transferisse do Rio de Janeiro.
O editorial acima citado sugere o sentimento que se instalara na população carioca
nesse momento iminente da perda de capitalidade. Nos periódicos e manifestações, notava-se
a preocupação com o provável abandono da cidade que por tanto tempo exerceu a função de
“vitrine da nação”. Transformar o Rio de Janeiro em uma simples unidade da federação ou
ainda em uma cidade incorporada ao estado fluminense era propostas controversas devido à
extrema politização então existente naquele momento. O debate era grande, e as soluções
pouco acessíveis, sendo a unanimidade costumeiramente embargada nas longas reuniões da
Câmara, por conta das rivalidades entre os principais partidos políticos – PTB e UDN.
Três foram as propostas então debatidas sobre o futuro lugar do Rio de Janeiro na
federação: território da Guanabara; estado da Guanabara; município do Rio de
Janeiro, incorporado ao Estado do Rio. Muito mais polêmico que a discussão sobre a
transferência da capital para Brasília, o debate sobre o futuro do ex-Distrito Federal
revelou os impasses e as contradições que acompanhavam a definição de uma nova
identidade para a cidade, bem como de seu papel como um novo ente federativo. Daí
a questão: Que será do Rio?.(MOTTA 2001:7).
Além de tornar possível a percepção da grita carioca a respeito das questões futuras a
transferência, o papel mais importante de O Globo é o político. Como já foi mencionado
antes, o jornal não só noticiava o que estava acontecendo no Congresso, ou a visão de seus
jornalistas a respeito do polêmico futuro, ele participava ativamente das ações em prol da
Guanabara – nome proposto na Constituição para a futura unidade da federação a ser criada.
As reuniões que envolviam personalidades políticas importantes e conferências a respeito da
questão eram conclamadas nas capas do jornal, assegurando-se a presença de um bom número
de populares através da entrada franca ao auditório-principal do periódico. Enquanto Carlos
Lacerda, na Tribuna, conduzia a oposição ao governo, os jornalistas de O Globo se
responsabilizavam em “mostrar a população o que estavam tentando fazer com o Rio de
Janeiro” (O Globo, fevereiro de 1960).
As lideranças das associações de moradores de todos os bairros da antiga capital foram
convocadas a participar das reuniões realizadas por O Globo, facilitando o contato do dito
jornal com a população carioca. Exerceram um canal importante para os fins desejados pela
empresa já que, nesse momento, eram órgãos fortalecidos e atuantes politicamente. Em uma
das reuniões ocorridas em fevereiro de 1960, ficou estabelecida a criação de uma junta para a
“orientação da opinião pública” que mobilizaria os órgãos de imprensa para levar a
população a “verdade” a respeito do futuro da cidade. Foram realizadas pesquisas de opinião e
colocadas faixas por toda a cidade, buscando trazer a população para um lado do debate que
173
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
estava sendo desenvolvido: o lado de que a Guanabara deveria ser criada e mantida como um
estado, um ente federativo, porém não-esvaziado de suas funções de capital. Apontava-se,
portanto para a criação de um estado-capital no Brasil.
E a Guanabara foi criada e recebida com festa no antigo Distrito Federal. Festa
organizada pelo jornal que contou com escolas de sambas, sirenes do Corpo de Bombeiro,
fogos de artifício e apitaço nas ruas. A meia noite do dia 21 de Abril, dia marcado para a
transferência acontecer, a festa de “Boas Vindas” a nova unidade da federação teve como
trilha sonora a música “Cidade Maravilhosa” e novas marchinhas e sambas a respeito do novo
estado. Em todas, porém, a alusão da capitalidade é mantida. A Guanabara se formava com
um Estatuto criado e aprovado na semana anterior à transferência, e com a maior parte das
instituições federais ainda presentes e em funcionamento até a década de 1970, quando
finalmente sofre o esvaziamento prometido e acaba sendo incorporada ao estado do Rio de
Janeiro. O Globo não só noticiou a formação da Guanabara, como participou ativamente de
seu processo de concepção, noticiando as informações da forma como seria mais bem acatada
aos seus propósitos pela população carioca e nacional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
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O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
GOMES, Ângela de Castro. 2ª ed. O Brasil de JK. Rio de Janeiro, Ed. FGV, 2002.
KUBITSCHEK. Juscelino. Como Construí Brasília.
(Coleção Brasil 500 Anos).
Brasília: Senado Federal, 2000.
MOTTA, Marly Silva da. O lugar da cidade do Rio de Janeiro na federação brasileira: uma
questão em três momentos. Rio de Janeiro: CPDOC, 2001.
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______. Rio, cidade-capital. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. (Coleção Descobrindo o
Brasil).
174
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Leituras da Revolta Liberal de 1842 em O Brasil
Tatiane Rocha de Queiroz *
Resumo: O presente artigo consiste no estudo e na análise de algumas matérias do periódico
O Brasil que tiveram como tema: a Revolta Liberal de 1842. O nosso objetivo é demonstrar
como esta revolta possibilitou um desenho mais alinhado e definido das identidades políticas
dos grupos que viriam a ser conhecidos como conservadores e liberais. Entendemos que, após
os conflitos armados nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, podemos verificar que as
identidades anteriores já alteradas pelos embates da antecipação da Maioridade do jovem
príncipe foram rearranjadas e reformuladas no curso do processo de debate e enfrentamento
que culminou com a confrontação armada, um ‘esgotamento da palavra’, que para alguns quis
justificar a ação revolucionária, na ótica dos que a protagonizaram.
Palavras-Chaves: Imprensa; Identidade; Partido.
Abstract: This article presents an analysis of some editions of the newspaper "Brazil," related
to the theme of the Liberal Revolt of 1842. Our goal is to demonstrate how this uprising made
possible a narrow definition of the political identities of the groups that became known, later,
as conservatives and liberals. We assume that the identities that arose at the time of the
Majority of the young prince (Emperor Pedro II) were rewritten and re-elaborated during the
debates and conflicts that culminated in armed confrontations in the provinces of São Paulo
and Minas Gerais, a "break out of the word" that, to some contemporaries, may have justified
the revolutionary uprising.
Key Words: Press; Identity; Party.
Neste artigo desenvolvemos uma ponderação acerca da conformação da identidade
política do grupo conservador frente à Revolta Liberal de 1842, em São Paulo e Minas Gerais.
Para tal analisaremos alguns artigos do periódico O Brasil (1841 a 1842) que nos forneçam
não só informações acerca dos acontecimentos, mas também nos ajudem a compreender o
caminho encontrado por Justiniano J. da Rocha na defesa dos valores e princípios do grupo
político ao qual ele era filiado: partido regressista, futuro partido conservador. Dessa forma,
estaremos resgatando, através da análise dos discursos argumentativos do jornal, uma das
maneiras possíveis tanto de regulação da práxis política quanto de conformação de suas
identidades políticas.
Entendemos que, após os conflitos armados nas localidades de São Paulo e Minas
Gerais, podemos encontrar um desenho mais polarizado das identidades partidárias dos que
*
Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da UERJ
(PPGHS-UERJ).
175
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
passaram a ser denominados de “liberais” e de “conservadores”. As identidades anteriores, na
oposição entre “regressistas” e “progressistas”, já alteradas pelos embates da antecipação da
maioridade do imperador, foram rearranjadas e reformuladas no curso do processo de debate e
enfrentamento que culminou com a confrontação armada, um “esgotamento da palavra”, que
para alguns quis justificar a ação revolucionária, na ótica dos que a protagonizaram.
Do debate às armas
Os ecos de uma possível revolta nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, por parte
dos partidários dos liberais já eram propagados na imprensa e na Câmara desde 1841, após a
queda do gabinete ministerial maiorista. A possibilidade de dissolução do gabinete de
representação liberal, já era aludida desde 1840 nas reportagens do O Brasil quando seu
redator Justiniano J. da Rocha comentava criticamente tanto acerca dos componentes deste
grupo, quanto de seus procedimentos políticos na administração do Estado Imperial.
Dessa forma, percebemos que a queda do gabinete maiorista em 1841 e a sua pronta
substituição por outro de cunho conservador significou não só um momento de inversão de
forças políticas, mas a possibilidade de conclusão de projetos políticos dos regressistas, como
a aprovação da Lei de Reforma do Código do Processo e da Restauração do Conselho de
Estado. Tais mudanças, contudo, abriram caminho para novas tensões políticas que vieram a
desembocar na Revolta Liberal de 1842 em, São Paulo e Minas Gerais. Nas considerações do
historiador Erik Hörner (2007) a Revolta Liberal representou apenas uma das consequências
decorrentes da oposição entre os diferentes projetos de estado e dos diferentes entendimentos
do jogo político.
No início de 1842, ocorreu em São Paulo a mudança do Presidente da Província. Em
20 de janeiro de 1842 assumiu a presidência da Província José da Costa Carvalho, o Barão de
Monte Alegre, homem de confiança do gabinete ministerial de 23 de março, que tinha a
missão de pôr em prática as mudanças estabelecidas para reforma do Código do Processo, o
que de certa forma explicaria a resistência encontrada por ele na administração da província.
Às vésperas de sua posse, no dia 20 de janeiro, já estava redigido e foi apresentado à
Assembleia Provincial o projeto de organização de uma possível comissão representativa que
teria o objetivo de ir ter com a Sua Majestade pedir a demissão do atual ministério e cessar a
execução da Reforma do Código do Processo.
Os objetivos desta deputação foram baseados na proposta apresentada em 18 de
janeiro, na 9° Sessão Ordinária da Assembleia Provincial Paulista. Apesar da proeminência
176
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
dada a Criação do Conselho de Estado, a maior preocupação dos deputados provinciais
recaíra sobre a nova organização da justiça e da polícia nas províncias.
Depois de longas discussões, os deputados que formavam a maioria da Assembleia
Provincial Paulista, muitos sendo amigos Tobias de Aguiar, conseguiram a aprovação da
representação em apenas três sessões e no tempo mínimo possível: entre 19 e 27 de janeiro.
Restava apenas a escolha do nome de três deputados que pudessem compor a comissão que
deveria ser nomeada no dia 28 de janeiro. Os deputados escolhidos foram: Nicolau Pereira de
C. Vergueiro, Brigadeiro Bernardo José Gavião Peixoto e Coronel Francisco Antonio de
Souza Queiroz114.
No dia 29 de Janeiro de 1842 esta Comissão chegava a Corte, não sendo recebida pelo
Imperador. A negativa do Augusto Imperador em recebê-la, foi bastante comentada na
Câmara e nos Periódicos que, ou rechaçavam a atitude dos representantes paulistas, ou os
elogiavam (HÖRNER, 2010, p. 122).
O fim de toda essa trama acerca da representação paulista foi comentada na matéria do
dia 08 de fevereiro em O Brasil. Nela podemos encontrar tanto a transcrição do requerimento
por parte da deputação paulista solicitando ter uma audiência com o jovem imperador, quanto
à justificativa oficial do governo endereçada diretamente ao Senador Vergueiro, na qual se
relatavam os motivos da deputação não ter sido recebida por Sua Majestade Imperial. A
justificativa do governo foi dada na forma de aviso, no dia 05 de fevereiro, um dia depois da
tentativa de entrega da mensagem. A argumentação do Ministro do Império, Araújo Vianna,
era de que a representação feria a constituição do Império, especialmente os artigos 9, 10 e 11.
Como no episódio da antecipação da maioridade, os regressistas, a fim de justificar suas
ações, buscavam na carta constitucional a base de sua defesa.
Perante esses eventos temos que entender não só os argumentos levantados por ambos
os lados – governo e representação -, mas também o significado de todo esse jogo de forças.
A grande questão é não pensarmos na Comissão Representativa como um simples grupo
opositor que tinha o intuito de pressionar o governo a retroceder em suas decisões e atitudes
em troca de sua fidelidade, mas sim como um grupo articulado, inserido em um contexto
ampliado de luta política que, legal ou não, se fez representar, sendo constatado o fato de que
114
Esta Comissão representativa era composta por um Senador, um ex-presidente de Província e um Deputado
provincial eleito sucessivamente desde a primeira reunião da Assembleia. Além de suas carreiras e grupo
político em comum, esses homens possuíam ainda laços de parentescos estabelecidos através de casamentos. Cf.:
HÖRNER, Erik.: Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838 – 1844). Tese
(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas, Universidade de São Paulo,
SP, 2010, p. 121.
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
mesmo não sendo recebidos pelo Imperador eles conseguiram se articular na Câmara
Provincial em torno de seus objetivos.
Um outro ponto importante foi o fato da Câmara Legislativa eleita no final de 1840
sob os auspícios do gabinete maiorista ter sido dissolvida em maio de 1842. Os argumentos a
favor da dissolução da Câmara giravam em torno da questão de que esta era ilegítima, tendo
sido composta através de fraudes e irregularidades elaboradas pelo antigo ministério quando
este estava no governo. No entanto estando dissolvida a Câmara, se exacerbaram os ânimos
de alguns partidários do grupo progressista, que desde a aprovação da Lei do Código do
Processo Criminal e da reorganização do Conselho de Estado já bradavam o apego às armas.
A suspensão da Câmara que estava composta em sua maioria de partidários dos
progressistas nas sessões preparatórias, serviu de pólvora para a eclosão da chamada Revolta
Liberal de 1842, ocorrida nas províncias de São Paulo e Minas Gerais. Por trás das
insatisfações alardeadas e utilizadas como bandeira política pelos revoltosos, estava o
significado e a restrição que estas ditas leis acarretariam na administração e na ingerência dos
negócios públicos, o que para eles, só acabaria com a dissolução do gabinete regressista
empossado em 23 de março de 1841 e com a suspensão da lei de reforma do Código do
Processo Criminal. A eclosão da dita revolta não se deu apenas por causa das chamadas leis
opressoras e sim por toda uma rearticulação administrativa e jurídica que já vinha ocorrendo
desde 1840 com a promulgação da Lei Interpretativa do Ato Adicional.
Neste contexto de protesto e insatisfações no dia 17 de maio Rafael Tobias de Aguiar
foi aclamado presidente interino da província paulista,
115
logo reconhecido pelas vilas de
Itapetininga e Faxina, organizando-se então a Coluna Libertadora. Entre os revoltosos estava
o ex-regente do império Diogo Antonio Feijó e o Senador Nicolau de Campos Vergueiro,
integrantes da representação paulista que não foi recebida pelo Imperador.
Como presidente interino, coube a Rafael Tobias montar toda uma máquina
administrativa que lhe ajudasse a alcançar seus objetivos de se manter no poder. Nesse
momento o principal objetivo de Rafael Tobias era o de conquistar a capital da província para
logo depois destituir o presidente da província nomeado pelo governo imperial, o Barão de
Monte Alegre.
115
O ingresso de Tobias na vida pública da Província Paulista se deu em 1821 quando de Sorocaba o enviaram a
Itu e de Itu a São Paulo, no complicado processo de eleição de deputados as Cortes de Lisboa. Em 1827 foi
conselheiro do Governo provincial, depois deputado provincial e geral várias vezes e presidente da Província
paulista em 1831-1834 e em 1840-1841. Cf: ALMEIDA, Aluisio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944, p. 53.
178
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
No mesmo dia da conflagração sediciosa em Sorocaba, o Barão de Monte Alegre
comunicou ao Cel. José Olinto, através de ofício, o fato ocorrido, ao mesmo tempo em que
exigia auxílio militar para combater a sedição. Desde sua posse em janeiro de 1842, o Barão
de Monte Alegre já vinha comunicando à Corte o clima de instabilidade e insatisfação que
estava predominando na Assembleia Provincial Paulista, a ponto dele estabelecer algumas
mudanças que agilizassem tanto a comunicação com a Corte, quanto evitassem o desvio das
correspondências oficiais. De acordo com Eri Hörner (2010), a comunicação constante e
recorrente era de fundamental importância dentro de toda província, independente da esfera
administrativa. 116
Dessa feita, enquanto em Sorocaba era aclamado presidente interino da Província o
rebelde Rafael Tobias de Aguiar, na Corte eram destinadas a Santos as primeiras tropas que
iriam compor o Exército Pacificador. Seu comandante seria o Brigadeiro Luís Alves de Lima
e Silva, o Barão de Caxias.
O Barão de Caxias ausentou-se da Província do Rio de Janeiro no dia 19 de maio,
chegando ao porto de Santos no dia 21 de maio, indo direto para a capital da província, a fim
de organizar a tropa que iria combater os revoltosos que tinham planos de conquistar a capital
da província paulista. Após vários embates travados entre os legalistas e as forças rebeldes no
dia 21 de junho, o Barão de Caxias entrou vitorioso em Sorocaba a frente das tropas vitoriosas
(VAINFAS, 2008, p. 648).
Entre principais chefes rebeldes ficara na cidade o ex-regente Diogo Feijó que, depois
de manter uma breve correspondência com o comandante do exército, entregou-se, indo preso
juntamente com o senador Nicolau P. de C. Vergueiro para a prisão do Espírito Santo. Tendo
assim suas imunidades parlamentares violadas. No entanto, Rafael Tobias desde o dia 15 de
junho já tinha fugido rumo ao Sul do Império. Ele só foi preso em novembro de 1842, sendo
levado um mês depois para o Rio de Janeiro onde ficou preso na Fortaleza Lage até 1844
(ALMEIDA, 1944, p. 197).
Depois da retomada da capital sorocabana pelo Barão de Caxias, restava ainda
dominar a revolta no Vale do Paraíba, entre Taubaté e Areias. De acordo com Sérgio Buarque
de Holanda (HOLANDA, 1972, p. 535), inspirados no exemplo de Sorocaba, os revoltosos da
116
Erik Horner nos chama a atenção para este fato, pois foi uma importante mudança de dinamização de troca de
mensagens e informações entre províncias, o que era crucial quando se corria contra o tempo na tentativa de se
antecipar algo ou alguém. Cf: HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas
(1838 – 1844). Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas,
Universidade de São Paulo, SP, 2010, p. 110.
179
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
região de Taubaté e Areias aderiram ao combate. No entanto, no dia 24 de junho depois de
intensa batalha travada as tropas legalistas conseguiram pacificar esta região.
Depois desse combate, outro enfrentamento entre os revoltosos e legalistas se deu em
Silveiras no dia 12 de julho. O ataque aos revoltosos que dominavam esta região ocorreu sob
o comando do Capitão Manuel Antonio da Silva, oriundo do Rio de Janeiro. Mais uma vez os
legalistas saíram vitoriosos. Após a batalha na cidade de Silveiras, o comandante Barão de
Caxias já se encontrava em Taubaté, indo para a Cidade de Pindamonhangaba. Uma semana
depois, o Barão de Caxias já desembarcava na Corte, tendo deixado a província paulista
totalmente apaziguada. Sua missão tornou-se então a pacificação da província mineira que
desde junho encontrava-se sublevada.
Salvaguardando as peculiaridades locais de cada província e a diferença de quase um
mês de sublevação de ambas, os motivos alarmados pelos revoltosos paulistas e mineiros para
justificar suas atitudes eram os mesmos: dissolução do ministério regressista e sustação das
leis promulgadas por eles. Não obstante, não podemos ignorar que em relação à província
paulista a revolta liberal mineira assumiu proporções bem maiores, como por exemplo, de
quarenta e dois municípios quinze aderiram à revolta. 117 Considerar também o tempo de
duração da mesma revolta, que em São Paulo durou quase dois meses em Minas Gerais durou
quase quatro meses. Dessa forma afirmamos que respeitando as diferenças já relatadas,
consideramos as revoltas ocorridas em São Paulo e Minas Gerais como articuladas de forma a
contribuírem para a definição e conformação das identidades políticas tanto dos regressistas
quanto dos progressistas.
Em Minas Gerais, a revolta começou em Barbacena, propagando-se para as
localidades vizinhas. No dia 10 de junho, reuniu-se a Câmara de Barbacena, apoiada pela
Guarda Nacional, sob a presidência de Manuel Ribeiro, aclamando como presidente interino o
Tenente Coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, sobrinho do Marquês de Itanhaém,
ex-tutor imperial. 118 Assumia a chefia militar da revolta mineira Antonio Nunes Galvão,
alguns dias depois coadjuvado pelo político progressista Teófilo Ottoni. Em circular as
117
O autor Aluísio o de Almeida relata que foram quatorze Províncias: Barbacena, Pomba, São João del Rei, são
José del-Rei, Larvras, Oliveira, Santa Bárbara, Queluz, Bonfim, Aiuruoca, Baependí, Sabará, Caeté e Curvelo.
Cf: ALMEIDA, Aluisio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: livraria José Olympio Editora, 1944,
p. 156.
118
Estavam presentes na Câmara os vereadores Pedro Teixeira de carvalho e Azevedo, Francisco de Paula
Camilo de Araújo, Dr. Camilo Maria Ferreira, Lino José Ferreira Armonde e Joaquim Rodrigues de Araújo e
Oliveira, secretariados por José Gonçalves Gomes e Souza. Desses vereadores quatros estavam suspensos de
suas funções desde 10 de dezembro de 1841, por haverem assinado uma representação ao Imperador. Cf:
ALMEIDA, Aluisio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: livraria José Olympio Editora, 1944, p.
151.
180
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Câmaras Municipais, o governo rebelde ordenava que se anunciasse por editais a não
obrigatoriedade em obedecer às autoridades criadas pela Lei da Reforma do Código do
Processo. Da mesma forma que substituiu os oficiais civis e militares, ao mesmo tempo em
que criou um novo corpo de guardas municipais.
Assim como o Barão de Monte Alegre escrevera e mandara um oficio a Corte
informando da conflagração da revolta em Sorocaba; o presidente da província mineira
Bernardo Jacinto da Veiga tomou a mesma medida informando ao ministro da justiça que se
esperava em Barbacena algum plano dos deputados ali reunidos, para auxiliar os rebeldes de
São Paulo (ALMEIDA, 1944, p. 151).
Logo a notícia do levante de Barbacena chegou à Capital do Império. Honório
Hermeto Carneiro Leão, presidente do Rio de Janeiro, mandou as primeiras forças em auxilio
ao governo de Minas Gerais. O governo do Império também convocou a Guarda Nacional às
armas, ao mesmo tempo em que cogitou ampliar o dispositivo legal do Código Criminal sobre
os bens dos insurgentes.
As adesões e combates podiam ser verificados em diferentes pontos, mas a grande
batalha se deu em 4 de Julho em Queluz, local onde os insurgentes se aglutinaram. Nesse dia,
os revoltosos comandados pelo Cel. Antonio Nunes Galvão, conseguiram com que os
legalistas recuassem. Apesar da vitória alcançada no campo de batalha, houve um
desentendimento entre os revoltosos quanto à marcha para Ouro Preto, capital da província.
Eles decidiram ir para Sabará e depois para Santa Luzia. Nesse momento houve a mudança da
presidência interina de José Feliciano a Teófilo Ottoni, um dos principais representantes do
grupo liberal.
Tendo mais uma vez cabido ao Barão de Caxias o comando das forças legalistas, na
grande batalha final, ele empregou da mesma estratégia utilizada em São Paulo: tomar a
capital o mais rápido possível, o que ocorreu em 6 de agosto. Nessa data, quase todos os focos
de rebeldes já estavam praticamente pacificados. A batalha final se daria em Santa Luzia, no
dia 20 de agosto. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, o exército legalista conseguiu
vencer a batalha, pacificando a província mineira. Depois desses acontecimentos, foi enviado
para dirigir a província Francisco José de Sousa Soares de Andréia, aliado ministério
regressista.
Os revoltossos mineiros foram presos e processados, no entanto o Tribunal do Juri que
os julgou concedeu a todos liberade. Porem os chefes da revolta: Teófilo Ottoni e Camilo
Maria Ferreira Armond foram enviados a pé para a prisão de Ouro Preto, onde ficaram até
1844, ano em que o Imperador decretou a anistia a todos os revoltosos.
181
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Enfim, a derrota da facção progressista para os regressistas em 1842, fez com que eles
passassem a ser denominados de Luzias. Apelido que os acompanharia por toda a sua
trajetória política; era a eterna lembrança de sua derrota. Em contraponto aos regressistas que
conformaram a sua imagem e identidade em torno do projeto de centralização e conservação
da ordem política e administrativa do Império do Brasil. Mais explicitamente em torno da
aprovação e promulgação de leis que tivessem como principio a centralização como, por
exemplo: a Lei Interpretativa do Ato Adicional de 1840, a Lei da Reforma do Código do
Processo Criminal e a recomposição do Conselho de Estado ambas promulgadas em 1841.
Neste contexto de rearticulação políticas, rearranjo de forças coube ao periódico O
Brasil o papel de construir, elaborar e reforçar os princípios políticos que pudessem ser
alinhados e agregados às identidades de ambos os grupos: regressistas futuros conservadores e
progressistas futuros liberais. Pois, na medida em que Justiniano J. da Rocha defendia os
princípios e idéias dos regressistas ele também delineava a identidade política pejorativa dos
regressistas. Que nas páginas do O Brasil eram sempre denominados de facção, desordeiros,
inimigos da ordem.
Apesar do redator do O Brasil afirmar e construir toda uma rede argumentativa de que
a causa maior da Revolta Liberal perpetrada em São Paulo e Minas Gerais não foi política, e
sim movida pelo desejo de poder, mais uma vez reiteramos que não podemos apontar uma
única causa e sim um encadeamento de acontecimentos políticos e administrativos que gerou
o fim do debate; do esgotamento da palavra. O apelo às armas não foi a primeira opção de
seus líderes, eles fizeram alusão a essa ação caso não conseguissem brecar os avanços das
mudanças políticas e administrativas promovidas pelo grupo regressista, futuros
conservadores. Como também temos que observar que a revolta se deu no limite entre os
meios legais e ilegais quando da tentativa frustrada da deputação paulista. O que os revoltosos
não esperavam era a pronta mobilização do governo em detê-los.
Não podemos nos esquecer de que os líderes da Revolta Liberal, em Minas e São
Paulo, eram homens que sempre estiveram envolvidos na direção do Estado. O seu principal
interesse era não perder a autonomia provincial defendida ardorosamente por eles em seus
discursos. Autonomia provincial criada e estabelecida através de intensas negociações
políticas entre os partidos, que não queriam perder seus espaços de atuação através das
mudanças estabelecidas pela Lei de Reforma do Código do Processo de 1841. Lei que
representava o fortalecimento do poder central e do aumento de suas possibilidades de intervir
nas províncias.
182
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
De acordo com Erik Horner (2010, p. 335), São Paulo e Minas Gerais estavam
intimamente ligados à produção de gêneros alimentícios para o mercado interno do Império.
Era o caso de Rafael Tobias, líder da revolta paulista. Ele mantinha negócios em diversas
regiões da província de São Paulo e com os representantes comerciais estabelecidos na praça
do Rio de Janeiro.
Como já elaboramos no primeiro capítulo, a conformação da identidade partidária dos
grupos políticos se deu no mesmo momento em que esses grupos se rearticulavam em torno
de suas ideias e projetos de leis que estavam sendo discutidas e promulgadas na segunda
metade do século XIX. Essas leis agregavam em si toda uma visão de mundo, que deveria
predominar frente a outros projetos. Dessa feita percebemos que a Revolta Liberal de 1842
não foi um mero confronto armado e sim um confronto de projetos de ação política que, tendo
esgotado todas as suas possibilidades ‘’legais’’, usou o recurso do apelo às armas,
possibilitando o afloramento e melhor delineamento de identidades políticas que de certa
forma já não comportavam mais seus novos significados.
Era o momento crucial que requeria uma maior delimitação tanto dos campos de
atuação quanto de redefinição de suas identidades políticas. Como já dissemos anteriormente,
a Revolta Liberal de 1842 possibilitou muito mais a definição da identidade dos futuros
liberais na medida, em que sua derrota para os conservadores fez com que eles passassem a
ser apelidados de Luzias. Apelido altamente pejorativo, imbuído da eterna lembrança de sua
perda. No entanto, apesar da identidade política do partido progressista ir se constituindo na
unidade da perda, ainda assim podemos encontrar certa fragmentação desta identidade, na
medida em que no âmbito nacional ainda não havia um discurso político que agregasse seus
correligionários. Da mesma forma que a identidade política partidária regressista que também
apresentava certa fragmentação.
O que temos que perceber é que ao longo do processo de disputa e debates essas
identidades vão sendo reformuladas e rearticuladas ao ponto delas produzirem novos
significados e conformarem suas identidades políticas.
FONTES
O Brasil. RJ: Tipografia Americana, 1840 -1841.
O Brasil. Tipografia Imparcial de Paula Brito, 1842 a 22 de abril de 1845.
183
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Aluisio de. A revolução liberal de 1842. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1944.
HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838 –
1844). Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência
Humanas, Universidade de São Paulo, SP, 2010.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. (Dir.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo:
Difel, 1972. t. II, v.2.
VAINFAS, Ronaldo (org) A Revoltas Liberais de 1842. In: Dicionário do Brasil Imperial
(1822 -1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
184
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
A Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ e a Licenciatura Curta em
Estudos Sociais: implantação, resistência e defesa entre os anos 1973-1987
Thiago Rodrigues Nascimento *
Resumo: Nos anos seguintes ao golpe civil-militar de 1964 ocorreram importantes
modificações na política educacional brasileira, que podem ser observadas na Reforma
Universitária (Lei 5.540/68 de 28/11/1968) e na Reforma do Ensino de 1º e 2º graus (Lei
5.692/71 de 11/08/1971). Reformas que abarcaram os diferentes níveis de ensino e que
impuseram profundas mudanças na forma como se processavam a formação de professores e
o Ensino de História até então vigentes. Foram criadas as licenciaturas de curta duração e a
disciplina escolar Estudos Sociais substituiu a História e a Geografia no ensino de primeiro
grau. Neste artigo, analisamos, a partir da trajetória do curso de Licenciatura Curta em
Estudos Sociais, oferecido pela Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ
(FFP) entre 1973 e 1986, o processo de implantação das Licenciaturas Curtas em Estudos
Sociais, durante os anos 1970, e as discussões que levaram à gradativa extinção deste curso ao
longo dos anos 1980 e 1990. Por meio dos currículos, ementas e depoimentos de ex-docentes
desta instituição objetivamos compreender as nuances deste processo na FFP.
Palavras-Chaves: Regime civil-militar; Estudos Sociais; formação de professores.
Abstract: In the years following the civil-military coup of 1964, there were significant
changes in the Brazilian educational policy that can be noted in the University Reform Law
(Law 5.540/68 of 28.11.1968) and in Reform of Primary and Secondary School - First and
Second Degrees - Law (Law 5.692/71 of 11/08/1971). These reforms encompassed different
levels of education and imposed profound changes in teacher’s training and in History
teaching at that time. There were created new degrees on short-term courses and the discipline
"Social Studies" has replaced both History and Geography in primary education. This article
analyzes, from the trajectory of the Short Term Course for the Degree in Social Studies,
offered at the Faculdade de Formação de Professores of São Gonçalo / RJ (FFP) between
1973 and 1986, the process of implementation of Short Term Courses for the Degree in Social
Studies during the 1970’s, and the discussions that led to its gradual extinction over the
1980’s and the 1990’s. The study aims to apprehend the particularities of this process in FFP
through analysis of curricula, summaries of disciplines and testimonials from former teachers
of this institution.
Key Words: Civil-military regime; Social Studies; Teacher training.
Neste artigo apresentamos em linhas gerais aspectos da pesquisa que está sendo
desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. A partir da trajetória do curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais,
oferecido pela Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ (FFP), entre 1973 e
1986, analisamos o processo de implantação das Licenciaturas Curtas em Estudos Sociais,
durante os anos 1970, e alguns aspectos das discussões que levaram a gradativa extinção deste
*
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPGHS/UERJ). Bolsista da Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
185
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
curso ao longo dos anos 1980 e 1990. Por meio dos currículos, ementas e depoimentos de exdocentes desta instituição objetivamos compreender as nuances deste processo na FFP.
A formação de professores, fruto das políticas públicas em educação, passou nas
últimas décadas, por dilemas, lutas, mudanças e impasses (MESQUITA e FONSECA, 2006,
p. 334). A discussão sobre a formação de professores na legislação educacional tem ocupado
um importante lugar nas pesquisas de historiadores e educadores ao longo das últimas duas
décadas. A historiadora Flávia Eloísa Caimi (2001, p. 99) adverte que “nenhum período
histórico recebeu tantas críticas no que se refere às políticas educacionais implementadas pela
ação governamental quanto a do chamado Regime Militar [1964 – 1985]”. Clarice Nunes
(2004, p. 351) destaca que:
a ditadura militar instaurada no país a partir de 1964, sob a justificativa da
necessidade de modernização econômica da sociedade, operou uma intervenção de
grande envergadura no sistema educacional brasileiro, atingindo todos os seus níveis
de ensino (primário, médio e superior), todos os seus ramos (acadêmico e
profissional) e o seu funcionamento, através de medidas de reestruturação
administrativa, planejamento, treinamento de pessoal docente e técnico.
Após o golpe civil-militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, se
processaram importantes modificações na política educacional brasileira, que podem ser
observadas na Reforma Universitária (Lei 5.540/68 de 28/11/1968) e na Reforma de Ensino
de 1º e 2º graus (Lei 5.692/71 de 11/08/1971). Segundo Elza Nadai (1993, p. 157),
“modificações legais impuseram ainda profundas transformações no projeto de formação de
professores que vinha sendo realizado, tornando-o de ‘curta duração’, pobre em conteúdo
científico, aligeirado e polivalente”. Negou-se à História o seu caráter autônomo, a partir da
inclusão dos Estudos Sociais, componente curricular que integrava a História e a Geografia,
no currículo do Ensino de 1º grau e a diminuição da carga horária da disciplina no Ensino de
2º grau. De acordo com Caimi (2001, p. 42),
sob a alegação de que havia uma demanda social e educacional pela formação do
professor polivalente, capacitado a ministrar todos os conteúdos subsumidos pela
genérica denominação de Estudos Sociais, proliferaram cursos de licenciatura curta
em diferentes regiões do Brasil.
Em 18 de abril de 1969, amparado pelo Ato Institucional n° 5, decretado em dezembro
de 1968, o governo autorizou, através do Decreto-Lei n° 547, a organização e funcionamento
dos cursos profissionais superiores de curta duração (FONSECA, 2010, p. 26) 119. A
119
Em 1948, o primeiro projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, já previa a criação de cursos
de curta duração para formação de professores, “a fim de minimizar a demanda em relação à oferta”. “É
importante, também [destacar], que a idéia – e mesmo a experiência – do curso superior de curta duração não é
tão nova no Brasil. Os cursos de curta duração, no país, surgiram no final do século XIX nas áreas de
186
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
“proliferação de cursos de licenciatura curta” não significou o fim dos cursos de Licenciatura
Plena em História e Geografia. Contudo, muitos cursos surgiram ou se estruturaram para
atender as demandas colocadas pela Lei 5.692/71. Este é o caso do curso de Licenciatura
Curta em Estudos Sociais da Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ
(FFP).
A FFP tem sua origem na década de 1970 com a criação, pelo Poder Público Estadual,
conforme Lei n° 6.598 de 20 de agosto de 1971, da Fundação Centro de Treinamento de
Professores do Estado do Rio de Janeiro – CETRERJ que se constitui na sua primeira
mantenedora. O objetivo inicial desta instituição era o aperfeiçoamento e atualização do
professorado da rede estadual de ensino. De acordo com Ana Cléa Ayres (2005, p. 73) “para
abrigar o CETRERJ foi construída uma estrutura física bastante ampla, em uma área de
40.850 metros quadrados, localizada no bairro do Patronato” em São Gonçalo. Na estrutura
deste Centro foi criada a FFP que, segundo esta pesquisadora, passou a funcionar em
setembro de 1973, oferecendo as Licenciaturas Curtas em Estudos Sociais, Ciências e Letras.
Neste sentido,
a faculdade foi estruturada em quatro departamentos: Educação, Letras, Ciências
Exatas e da Natureza e Estudos Sociais, sendo os três últimos responsáveis pelo
curso correspondente, e o primeiro responsável por oferecer as disciplinas
pedagógicas a todos os [outros] cursos (AYRES, 2005, p. 73).
Em 1975, com a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, a FFP passou a
pertencer à Fundação Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Secretaria de
Estado de Educação e Cultura do Rio de Janeiro – CDHR. O reconhecimento dos cursos foi
feito pelo Decreto Federal n° 79.679/77 de 10 de maio de 1977, com base no Parecer n°
243/1976 do Conselho de Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Mais tarde, em
consonância com a legislação então em vigor, os cursos foram convertidos em Licenciaturas
Plenas mediante processo próprio de plenificação 120. No período que compreende os anos de
1973 a 1985, a FFP ofereceu o curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais. A partir de
1986 o Curso de Estudos Sociais se converte em Licenciatura Plena com habilitação em
História e Geografia121. E, no início dos anos noventa ocorre a separação definitiva entre os
cursos de História e Geografia.
engenharia, medicina e direito com o objetivo de formar mão de obra para tarefas específicas”. Entretanto, estes
cursos funcionaram por pouco tempo. Ver: FERREIRA, 1982, p. 06.
120
O termo “plenificação” aparece na documentação de reconhecimento do curso de Licenciatura Plena em
Estudos Sociais com Habilitação em História e Geografia, e se refere ao processo de transformação da
licenciatura curta para plena.
121
Parecer número 751/85 do CEDERJ e pela Portaria Ministerial número 264 de 23 de abril de 1986.
187
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
O primeiro currículo a que tivemos acesso foi implantado a partir de 1979. Este
currículo de Licenciatura Curta em Estudos Sociais se estruturava em cinco períodos letivos
onde estavam distribuídas as disciplinas de conteúdo específico (História e Geografia) –
ministradas pelo Departamento de Estudos Sociais – e as disciplinas pedagógicas – oferecidas
pelo Departamento de Educação (Dedu). Com o objetivo de formar professores polivalentes,
habilitados a ministrar os diversos conteúdos agregados nos Estudos Sociais, o currículo era
extenso, para o período de duração do curso (cinco períodos), e ao mesmo tempo superficial,
na medida em que englobava diferentes disciplinas de História e Geografia, além de
disciplinas relativas à Sociologia, Antropologia, Política e Economia
122
. De acordo com uma
das professoras do curso ministrado na FFP, estes aspectos não impediam que se construísse
com o futuro professor uma postura profissional diferenciada:
Acho que ser professor é uma coisa muito séria, muito difícil, muito bonita. É como
médico, um médico pode matar ou salvar e um professor também. Um professor
trabalha com crianças, adolescentes que estão em formação, então aquilo que você
passa [e] faz é muito importante para ele. Ainda mais para quem trabalha com
Ciências Humanas, você trabalha com formação de opinião, com conteúdos que são
vivenciados em nosso dia a dia. Postura profissional é muito importante. Era isso
que queria passar para os alunos da FFP, uma visão crítica daquilo que você
está estudando. Você não quer apenas transmitir, você quer que aquele outro
construa o seu próprio conhecimento, isso que eu acho que é importante. Por
isso é difícil ser professor... Mas ninguém substitui um bom professor, porque é ele
que faz o aluno construir seu próprio conhecimento, você dá a base para o aluno
fazer isso. Mas construir o conhecimento, crítico, reflexivo, analítico, que ele queira
buscar mais, que ele queira saber mais (Professora Dalva). 123
O curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais, com uma carga horária reduzida, se
comparada com a Licenciatura Plena, formava professores habilitados a ministrar diferentes
disciplinas escolares. Esta formação aligeirada descaracterizava o conteúdo específico das
disciplinas da área de Ciências Humanas, ao englobar em um mesmo curso conteúdos de
História, Geografia, e Sociologia, dentre outras áreas do conhecimento, formando professores
“com carga horária teórica reduzida, embasada em métodos e técnicas de ensino, mas com
pouca ênfase nos conteúdos” (MIMESSE, 2007, p. 195). Os anos 1970 foram marcados pelos
acirrados debates em torno da manutenção ou extinção deste tipo de licenciatura. O governo
122
A Resolução n° 8, de 9 de agosto de 1972 estabelecia como currículo mínimo, para a Licenciatura de Estudos
Sociais as áreas: História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia, Ciência Política, Organização Social e Política
do Brasil (OSPB) e as obrigatórias: Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), Educação Física e a área
pedagógica. Quanto à duração, as licenciaturas curtas e longas deveriam ser de respectivamente, 1.200 horas
(equivalente há um ano e meio) e 2.200 (três anos). FONSECA, 2010, p. 27.
123
Neste trabalho utilizaremos trechos dos depoimentos de dois docentes que atuaram como Chefe e Sub-chefe
do Departamento de Estudos Sociais nos anos 1970 e 1980. No trabalho final trabalharemos com um número
maior de entrevistas. Entrevista realizada com a professora Dalva das Graças Fernandes de Sá, em sua
residência, no dia 12/11/2010. A professora autorizou a transcrição e a utilização de sua entrevista para fins
acadêmicos. Professora, formada em Filosofia, lecionou por mais de duas décadas na FFP/Uerj nas licenciaturas
curta em Estudos Sociais, Plena em História, Plena em Geografia.
188
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
militar insistia na manutenção do curso, enquanto as associações de professores de História e
Geografia (Associação Nacional de História/Anpuh e Associação dos Geógrafos do
Brasil/AGB) se organizavam e defendiam a extinção das licenciaturas curtas em encontros e
publicações. Déa Fenelon (1984) considera o ano de 1976 como marco na luta contra os
Estudos Sociais 124. A autora argumenta que,
Estava visível ao observador menos atento o total fracasso da implantação de
Estudos Sociais nas instituições de ensino superior, especialmente no setor
privado, encarregado de suprir a maior parte da demanda que se supunha existir para
este tipo de formação: faculdades fechavam portas, umas após outras, ou seus
cursos de Estudos Sociais, por absoluta falta de interesse nessas licenciaturas,
curtas ou plenas (FENELON, 1984: 16 – grifos nossos).
No entanto, a professora Dalva das Graças Fernandes de Sá, professora da FFP entre
1977 e 2000 nos relata que “quando entrei [na faculdade], as salas eram grandes, as turmas
eram grandes, chegavam ter 60/70 alunos. Tive pelo menos duas turmas grandes (...)”. No ano
de 1977, o curso contava com um total de 256 alunos matriculados nos cinco períodos
125
,o
que demonstra interesse dos alunos por tal formação. O perfil deste aluno, de acordo com a
professora Dalva, caracterizava-se pela busca de um diploma para permanecer lecionando,
isto é, o professor leigo que já atuava no magistério, mas não possuía formação específica e
diploma
126
. No caso da instituição em análise o declínio pela procura da Licenciatura Curta
em Estudos Sociais ocorrerá somente a partir dos anos 1980.
De acordo com Caimi (2001, p. 43),
A despeito de toda a repressão e censura a que foram submetidos durante o regime
militar, os professores de História, especialmente os que se mantiveram ligados ao
meio acadêmico, conseguiram revitalizar o debate que se iniciara antes de 1964. O
ensino de História, a exemplo de outras áreas do conhecimento, fez da década de
1980 a Era do Repensando. Desde o final da década de 1970, com o clima de
abertura política do regime militar, ocorrera uma rearticulação dos movimentos
sociais e profissionais.
No que concerne à História, os anos 1980 foram marcados pelos debates em prol da
extinção dos cursos de Estudos Sociais em faculdades e universidades, pela reivindicação do
124
De acordo com Fenelon (1984), pode-se dividir este processo em dois momentos principais: 1) As medidas
que possibilitaram a implantação dos Estudos Sociais nos diferentes níveis de ensino acarretam de imediato a
necessidade de reação das áreas atingidas por tais reformas (p.16), uma luta que só se mostrava organizada e
sistematizada quando emergiam questões concretas, como concursos públicos para ingresso no magistério. 2) A
partir, de 1974, a luta que estava restrita as Ciências Humanas, amplia “a área de abrangência do movimento”,
através da criação Licenciatura de Curta duração em Ciências (Resolução n° 30 do Conselho Federal de
Educação).
125
Dados disponíveis no trabalho de OLIVEIRA, 1978.
126
Segundo a depoente: “Tinha alunos muito mais velhos que eu na época, por que eram justamente professores
já lecionavam e que precisavam de um diploma de um curso superior para poder lecionar aquelas matérias.
Então naquela época acho que foi um imediatismo muito grande, como eu vou explicar isso para você? Por
exemplo, eu vou estudar isso por que preciso deste diploma....”.
189
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
retorno das disciplinas de Geografia e História nas escolas de ensino fundamental e “pelas
discussões de questões teórico-metodológicas relacionadas ao ensino e à pesquisa de história
e da história como disciplina escolar, para e na formação de professores” (MESQUITA e
ZAMBONI, 2008, p. 133). Novo embate ocorreu em agosto de 1980, quando o Conselheiro
Paulo Nathanael tornou público parecer de sua autoria que propunha mudanças na
Licenciatura em Estudos Sociais (NADAI, 1988, p. 13). O parecer propunha um novo
currículo para a Licenciatura em Estudos Sociais, “com habilitações plenas de História,
Geografia, Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil”. Na prática, o
conselheiro sugeria a extinção dos cursos de História e Geografia, que eram cursos avulsos
(GLEZER, 1982, p. 121). Diante da reação ao parecer, expressa em certa medida nos
documentos coletados por Glezer (1982), o conselheiro acabou retirando o projeto, alegando
que se tratava de um “estudo preliminar” (NADAI, 1988, p. 13).
As associações científicas de geógrafos e historiadores, AGB e Anpuh, “assumiram o
discurso no sentido de por fim aos cursos superiores de Estudos Sociais, licenciaturas curtas e
plenas, do país” (MESQUITA e ZAMBONI, 2008, p. 134)
127
. Durante o XII Simpósio da
Anpuh, realizado em Salvador, em 1984, é aprovada uma moção pela extinção dos Estudos
Sociais baseada nos seguintes termos:
a - pela extinção das licenciaturas curtas e plenas de Estudos Sociais e suas
habilitações no ensino de 3º grau;
b – pela redistribuição do conteúdo e da carga horária de OSPB entre as disciplinas
de Geografia e História;
c – pela substituição de Estudos Sociais por Geografia e História, nas quatro séries
finais do ensino de 1º grau, em qualquer condição que seja ministrada e,
consequentemente, a necessária ampliação da carga horária. (Apud FENELON,
1984, p. 19).
A partir de 1982, com o retorno das eleições diretas para os governos estaduais e a
vitória de partidos de oposição à ditadura em muitos estados, iniciou-se um processo de
reformulação curricular e dos objetivos do ensino de História. Segundo Ilka Miglio de
Mesquita e Selva Guimarães Fonseca (2006, p. 335), a partir deste momento,
os princípios da política educacional da era militar passaram a ser superados e
tornou-se imperioso o resgate do papel da História nos currículos, tanto na formação
do profissional docente, quanto na disciplina nas escolas de Ensino Fundamental e
Médio.
A “Era do Repensando”, usando a expressão de Caimi (2001), foi marcada pela
reestruturação dos currículos dos Cursos Superiores de Estudos Sociais e das Licenciaturas
127
Para um balanço da atuação da Anpuh na luta contra os Estudos Sociais ver a entrevista da professora Déa
Fenelon a pesquisadora Selva Guimarães (FONSECA, 2006: 75 – 87).
190
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
em História. Na FFP ocorre uma reforma curricular que põe fim ao currículo adotado a partir
de 1979 e ao curso de Licenciatura curta em Estudos Sociais, estabelecendo a Licenciatura
Plena em Estudos Sociais com habilitação em História e em Geografia. O secretário de
Educação, do Estado do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, vice-governador durante o primeiro
governo Leonel Brizola, decretou o fim da Licenciatura Curta em Estudos Sociais no Estado
do Rio de Janeiro em 1984
128
. Se, nas diferentes Unidades da Federação, como demonstra o
grande número de manifestos e panfletos de repúdio a Licenciatura em Estudos Sociais,
publicado na Revista Brasileira de História (GLEZER, 1982), os debates eram acirrados, esta
discussão parece não ter tido muita força no Departamento de Estudos Sociais da FFP.
Vinculada a diferentes instâncias do governo do estado do Rio de Janeiro, entre a sua
fundação e a incorporação à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a estrutura
que vigorou na FFP até o final dos anos oitenta, era a dos professores horistas, isto é,
recebiam pelas aulas ministradas. Sobre suas atividades, a professora Dalva destaca que:
A única coisa que posso dizer para você é que éramos professores horistas. Então
não tinha aquela coisa de você realizar trabalhos fora de sala de aula, não tinha não.
Você ia para a Faculdade apenas para dar aula e ganhava em função da sua carga
horária. A Uerj não, aí você já tinha um plano de carreira em que se podia ser
professor 20 ou 40 horas. Então, tinha uma determinada quantidade de tempo
dedicado à sala de aula e a outra para você fazer pesquisa, ter conversas com seus
orientandos, participar de projetos de pesquisa, é bem diferente. Mas quando eu
entrei lá, como professora, o curso de Estudos Sociais era horista, a gente ganhava
de acordo com a quantidade de aulas ministradas...
Através do depoimento desta professora, fica explícito que até a vinculação à Uerj, o
espaço de discussão para além da sala de aula era limitado, para não dizer inexistente. Em
1980, a FFP passou a ter outra mantenedora, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro – FAPERJ, permanecendo nesta estrutura até 1987 quando foi incorporada
definitivamente à UERJ. Desta forma, anos 1980 foram caracterizados pela instabilidade pela
qual passava a instituição, isto é, a instabilidade quanto ao futuro e manutenção da FFP como
centro de formação de professores. Esta questão ocupava o centro das discussões entre os
professores do Departamento de Estudos Sociais. A professora Dalva argumenta que “a
questão da manutenção da Faculdade pesava mais...”. Paralelamente a esta questão, os
professores do Departamento constroem um discurso sobre a formação em Estudos Sociais.
Neste sentido, os antigos docentes defendem que esta era, e talvez continue sendo, o melhor
tipo de formação. De acordo com a professora Dalva,
128
Fonte: Atas do Departamento de Estudos Sociais, ano 1984, p. 55.
191
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Lutamos muito pela interdisciplinaridade e não conseguimos. Eu acho que
perdeu mesmo, e é uma pena. O objetivo era a integração e isso ficou estanque
(...) Na época dos Estudos Sociais, por ser um curso menor, isso acontecia.
Tínhamos mais contato, apesar de ir para dar duas aulas só. Os próprios professores.
O Neymar [um os primeiros docentes do curso] tinha muito de História, neste
aspecto de sentar com a gente e combinar as coisas, discutir as questões da História
ligadas a Geografia. Porque como você formava professores de História e Geografia
as coisas já estavam meio que interligadas, e quando houve a separação dos cursos
cada grupo de professores foi para um lado... O curso de Estudos Sociais dava uma
maior margem para esta integração porque você formava para atuar nas duas áreas.
O professor Almir da Silva Oliveira
129
, um dos fundadores da Faculdade e professor,
que durante os anos iniciais de sua carreira lecionou como leigo, argumenta que é melhor um
professor com formação aligeirada do que um que não tenha formação alguma. E vai além ao
defender a integração, em sua opinião, existente entre a História e a Geografia, nos cursos de
Estudos Sociais.
A licenciatura curta tinha como principal objetivo suprir a carência e a falta de
professores, a falta de mão-de-obra. Então, entre ter um professor leigo e ter um
professor formado na licenciatura curta, era dez vezes melhor o de licenciatura
curta. E teve um efeito muito bom porque se espalhou este programa da licenciatura
curta pelo Brasil todo, em vários estados, principalmente no Nordeste, que passaram
a ter as faculdades de licenciatura curta com um custo operacional mais barato do
que a licenciatura plena, o fator econômico foi preponderante nisso, na proliferação
da licenciatura curta e depois dava a chance do cara que fez a licenciatura curta de
completar a sua formação estudando mais um ou dois anos se formando na
licenciatura plena, aí o governo remunerava melhor, ele tinha mais chances, além de
adquirir mais conhecimentos. Acho que a licenciatura curta foi maravilhosa, uma
criação que revolucionou, acabou praticamente com o professor leigo (aquele
que ia lá dentro de sala e dizia “Olha, não sou professor não, me pediram para
vir aqui dar uma aula para vocês”). A licenciatura curta foi um caminho
certo...
Não entendia (e ainda não entendo) como um professor de História podia ser
professor de História sem saber Geografia (...) diziam que professor de História é
um e professor de Geografia é outro, não, não é, é o mesmo, as ciências se
completam. Chega ali a diante e elas se encaixam...
Assim, num momento em que historiadores de diferentes regiões do país e a Anpuh
defendiam firmemente o fim desta licenciatura, os professores da FFP se mostram pouco
sensíveis a este debate e ainda hoje defendem esta formação como a mais completa em termos
de interdisciplinaridade, por exemplo. Se o curso formava um professor polivalente, o
formador deste profissional possuía uma perspectiva polivalente como fica evidente na fala do
professor Almir: “não se pode admitir que um professor só entenda determinado assunto”.
Com a vinculação da FFP à Uerj, instituição que não oferecia o curso de Estudos Sociais,
“permitiu ao corpo docente da FFP reavaliar suas atividades a fim de reestruturar-se
129
Entrevista realizada com o professor Almir da Silva Oliveira, em sua residência, no dia 24 de fevereiro de
2011. O professor autorizou a transcrição e a utilização de sua entrevista para fins acadêmicos. Bacharel e
licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense, onde também obteve o grau de Mestre em
História da América em 1978.
192
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
internamente, adequando-se aos padrões vigorantes na Universidade que passou a integrar”
(Apud Parecer 116/94).
FONTES
Entrevistas:
Professora Eliane Riffald Almeida Ribeiro. Entrevista concedida em 11 de novembro de 2010.
Período em que lecionou na FFP: 1978 – 2003.
Professora Dalva das Graças Fernandes de Sá. Entrevista concedida em 12 de novembro de
2010. Período em que lecionou na FFP: 1977 – 2000.
Professor Almir da Silva Oliveira. Entrevista concedida em 24 de fevereiro de 2011. Período
em que lecionou na FFP: 1973 – 1993.
Legislação principal:
BRASIL. Decreto n° 79.679, de 10 de maio de 1977. Concede reconhecimento aos cursos de
Estudos Sociais, de Letras e de Ciências da Faculdade de Formação de Professores, com sede
na cidade de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D79679impressao.htm>. Acesso
em: 17 de abril de 2011.
RIO DE JANEIRO. Lei ° 6. 597, de 20 de agosto de 1971. Diário Oficial do Estado do Rio de
Janeiro. DISPÕE sobre a criação do CETRERJ.
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193
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194
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
Imprensa e abolição: Vassouras e a crise do trabalho escravo (1885 – 1888)
Vinícius Gomes da Silva*
Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar como a imprensa da cidade de Vassouras cidade localizada na parte sul da província do Rio de Janeiro – participou e se comportou
mediante o advento do processo histórico que culminou com a lei Áurea (1888), libertando os
escravos do cativeiro no Brasil. A cidade de Vassouras é escolhida por ser importante pólo do
café no Brasil, possuindo diversas fazendas e, com isso, um plantel numeroso de escravos,
além de contar com uma importante bibliografia acerca de sua história. O recorte temporal
deste trabalho está situado entre os anos de 1885 a 1888, além de a década de oitenta do
século XIX ser, para boa parte dos historiadores do tema, o momento em que o movimento
pela abolição ganha maiores proporções, lutando agora contra a legitimidade da posse
escrava. Entendendo ser o jornal um importante veículo formador de opinião, possibilitando a
compreensão não somente da opinião dos jornalistas, mas da sociedade vassourense, ou pelo
menos de um substrato dessa sociedade.
Palavras-Chaves: Imprensa; Abolição; Vassouras.
Abstract: This paper aims to analyze how the press of Vassouras - a town in the south of
province of Rio de Janeiro - participated and acted on the historical process that led to the Lei
Áurea (1888) that freed slaves in Brazil. The city of Vassouras is chosen due to its role as a
center of coffee plantations region in Brazil, with several farms and, therefore, with a large
number of slaves, and also because of the relevance of research held on the town’s History.
The chronological frame of this work is situated between the years 1885 and 1888, which
was, for most of the historians, when the movement for abolition gained major proportions, in
fighting against the defense of legitimacy of slave ownership. The analysis highlights the role
of the newspaper on public opinion production, what enables the understanding of opinion of
journalists, and also of one part of Vassouras' society.
Key-words: Press; Slavery Abolition; Vassouras.
Muitos são os trabalhos historiográficos relacionados ao tema da abolição do trabalho
escravo no Brasil, mas em grande parte, estes trabalhos têm por referência a cidade do Rio de
Janeiro, ou importantes cidades cafeeiras da província de São Paulo. Este artigo busca
promover uma análise de como esse debate ocorreu na região que compreendia a cidade de
Vassouras, importante região de produção de café, que no período mais efervescente do
debate abolicionista, e que culminou com a Lei Áurea 1888, passava por um momento de
decadência econômica, mas que nem por isso deixou de ser um centro importante do debate
abolicionista, pois ainda possuía um enorme contingente de trabalhadores em condições de
escravos.
*
Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da
UERJ (PPGHS-UERJ).
195
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
I - Vassouras: Breve história sobre a “Princesa do Vale”
Segundo o historiador Flávio dos Santos Gomes, até fins do século XVIII, a região de
Vassouras tinha sido escassamente povoada. A área era ocupada por algumas pequenas roças
e pequenos ranchos na beira das estradas e dos caminhos que cortavam a região, servindo
como trilha para tropeiros provenientes das zonas auríferas de Minas Gerais, sendo local de
abastecimento de tropas de mulas que ali passavam com gêneros de primeira necessidade. O
rápido povoamento da região de Vassouras deu-se, principalmente, nas primeiras décadas do
século XIX, determinado pela expansão cafeeira, para qual contribuíram a exaustão das
regiões auríferas de Minas Gerais e a eliminação de grupos indígenas que habitavam a região
(Gomes, 1995).
O surgimento e desenvolvimento da cidade de Vassouras foi algo bastante peculiar,
em 1819 funda-se a vila de Valença e em 1833 a vila de Vassouras. Em 1857, já então em seu
auge, Vassouras foi elevada à condição de cidade. Como especificidade, Vassouras concentra
o núcleo urbano mais importante do Vale no período do Império, com grandes fortunas,
grandes fazendas e numerosa população escrava, tendo por consequência a concentração
também de boa parte da camada superior da boa sociedade imperial (Salles, 2008).
Apesar de grande proeminência econômica e social, Vassouras passou por diversos
momentos de instabilidade social, devido principalmente ao seu enorme contingente de mãode-obra escrava. A década de 30 foi marcada por atos de violência entre senhores e escravos,
sendo o mais importante do período o Levante de Manoel Congo em 1835, com participação
estimada de 400 escravos de duas fazendas da região. Em outros diversos momentos, a cidade
de Vassouras e região, sofrem com esses diversos levantes, tentativas e até mesmo,
especulações.
Em 1848 houve a notícia de uma tentativa de “insurreição geral dos escravos do
município”. Nas décadas de 50 e 60, os temores revigoraram, sendo em 1856 na cidade de
Vassouras e em 1865 em Valença, Paraíba do Sul e Barra Mansa. Em 05 de agosto de 1854,
fazendeiros alarmados de Vassouras, deliberaram sobre a nomeação de uma “Comissão
Permanente”, recomendações e instruções que visavam combater possíveis surpresas, como
insurreições parciais.
A propriedade escrava nasceu concentrada em Vassouras, abastecida por cativos
africanos num curto período de tempo, mantendo-se concentrada e disseminada até períodos
próximos ao fim da escravidão, sendo uma diferença de Vassouras para as demais regiões, a
maior concentração de cativos por parte dos megaproprietários, proprietários com um número
196
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
superior a 100 escravos, mesmo que essa concentração não fosse resultado de uma
concentração “qualitativa” de mão-de-obra escrava (Salles, 2008).
Além da questão da concentração da mão-de-obra, outro fator peculiar na história de
Vassouras, fator este resultado da pesquisa do historiador Ricardo Salles, é a questão da
reprodução natural positiva dos plantéis de escravos na região. Em finais da década de 1860,
surge em Vassouras um novo perfil para escravidão, os plantéis e as comunidades de senzala
passaram a tender à estabilidade, sendo nessa situação, um maior ganho de segurança para as
famílias de cativos, fosse pela pressão que os próprios cativos exerciam em sua defesa contra
a lógica de mercado, lógica essa que tendia a concentrar a mão-de-obra escrava com idades
entre 13 e 49 anos, idade produtiva para o trabalho e que também era facilitado pelo grande
fluxo proporcionado pelo intenso tráfico internacional de escravos, fosse porque passaram a
ser mais valorizadas pelos senhores como base para a expansão ou manutenção numérica dos
plantéis. Os casamentos ou uniões estáveis entre os escravos de Vassouras eram uma
realidade que repousava, por um lado, sobre o cada vez maior equilíbrio entre os sexos e a
maior estabilidade dos plantéis e, por outro, resultava em um número crescente de filhos entre
estes cativos.
Todo este processo de crescimento da população cativa de forma natural na região de
Vassouras é, possivelmente, acompanhado de melhoria nas condições de vida dos escravos,
principalmente, a partir da extinção do tráfico internacional de escravos. Com isso, tem-se a
percepção de que a lei de 28 de setembro de 1871 teve impacto sobre uma região escravista
que, mantidas as condições sociais e demográficas engendradas durante a década de 1860,
apresentava plenas condições de se auto-reproduzir de forma estável, sem grandes aportes
externos de mão-de-obra por um longo tempo.
A lei de 1871 ocorreu num momento em que a cidade de Vassouras ainda vivia um
período de prosperidade, mesmo já sofrendo um declínio na produção de café. Segundo
Ricardo Salles, a fusão de seus interesses, no caso da cidade de Vassouras, com o Estado
Imperial, que havia alicerçado a expansão da classe senhorial a partir da década de 1840,
começou a se desfazer. Em face da montante opinião pública, nacional e internacional
abolicionista, os senhores do sudeste não conseguiram evitar a aprovação da lei, sendo
projetada pela primeira vez para os fazendeiros da região de Vassouras e também do restante
do Império, uma lei que determina um prazo para o fim da escravidão.
A partir de 1880 a cidade de Vassouras passa para uma fase de decadência, que já
havia dado seus indícios anteriormente, como no caso da diminuição da produção de café e
sua perda de influência, como classe senhorial, para com a política Imperial. Mas ainda sim,
197
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
esta região é detentora de numerosos plantéis de escravos, remanescentes desta fase gloriosa e
importantes senhores de escravos, totalmente ligados no debate que ocorre sobre a extinção
do trabalho escravo no Brasil.
II- Imprensa e abolicionismo
Apesar de serem objetos diferentes e possuidores de histórias também diferentes,
principalmente, no que se refere ao final do século XIX e, mais especificamente, às décadas
de 1870 e 1880, tanto a imprensa, quanto o movimento abolicionista, ganharam contornos na
história do Brasil, na qual ambos estarão intimamente ligados, proporcionando
desenvolvimento para ambos e promovendo uma transformação que abalará as bases de uma
instituição que se parecia já consolidada, a escravidão.
A imprensa tem seu “nascimento” no Brasil somente no século XIX, mais
especificamente em 1808, com a vinda da Família Real para o Brasil e a criação da Imprensa
Régia. Segundo Humberto Machado (2008), antes da década de 1870 e, mais especificamente,
na década de 1880 no Brasil, não se pode afirmar que a imprensa seja uma instituição forte e
capaz de fomentar uma opinião pública, adquirindo, assim, poder de interferir nas decisões da
sociedade do momento. Porém, o que se percebe, é que ela sofre alguns “surtos” de
crescimento, como no momento da independência do Brasil, com o aumento significativo no
número de periódicos a circularem no Brasil. Outro momento de crescimento e
desenvolvimento da imprensa no Brasil foi à década de 1860, em que os jornais brasileiros,
especialmente os da Corte, podiam exprimir-se livremente.
Com o início da década de 1870, a imprensa no Brasil alcança um desenvolvimento
muito grande, que só tende a aumentar com o passar do tempo, sofrendo uma drástica
mudança e passando a exercer uma função cada vez mais atuante e poderosa na sociedade
brasileira. Segundo Marialva Barbosa (1996), diversos são os fatores que proporcionam essa
nova fase da imprensa no Brasil, tendo como principal veículo os jornais, mas também
proporcionando a produção de revistas, folhetins e outras publicações. A autora também
afirma que essas transformações foram mais intensamente sentidas na cidade do Rio de
Janeiro, capital do Império.
O jornal neste período era lido em voz alta nas rodas noturnas familiares e, pelo
menos, quatro pessoas tomavam conhecimento do conteúdo de um único número, sendo o
jornal possuidor de muito mais ouvintes que leitores. Suas diversas ilustrações possibilitavam
um parcial entendimento da informação por parte de pessoas analfabetas; os textos literários,
que cada vez mais tomavam espaço nos periódicos, também eram uma forma de
198
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
popularização destes jornais; histórias infantis e artigos sobre moda atraíam cada vez mais o
público jovem e as mulheres; e os espaços reservados às queixas do cidadão, que poderiam
ser dirigidas tanto a instituições, como para outras pessoas, promoviam um campo
extremamente vasto de leitores e ouvintes desses jornais, acrescentando-se dos já antigos
leitores oriundos das elites e dos militares, somando-se agora os militares de baixa patente.
Com essa amplificação do espaço de influência dos jornais, a leitura desses periódicos
passa a se tornar cada vez mais um hábito para uma parte das pessoas, tornando-se muito
frequente nos bondes, nas casas, nos trens, nas calçadas, compondo as horas livres do dia.
Toda a vida intelectual passou a ser dominada pela grande imprensa que se constituía na
principal instância de produção cultural. Cria-se uma verdadeira “opinião pública” urbana,
que ansiava pela orientação dos homens de letras (Barbosa, 1996).
A partir de 1880 os diários do Rio de Janeiro se constituíram em verdadeiras “fábricas
de notícias”, cuja principal função era, sem dúvida, formular e sedimentar ideologias 130. Seu
discurso visava à legitimação do próprio poder público e da perpetuação das classes
dominantes. Sempre destacando a importância do progresso, da civilização, da
disciplinarização, visava informar, mas, sobretudo, orientar a opinião pública, sendo seu
objetivo sempre atingir o leitor, angariando assim, cada vez mais poder (Barbosa, 1996).
Com todo esse aparato, o sucesso desses periódicos foi algo visível nesta sociedade,
buscando para si diversos títulos como protetor e fiscalizador. Valorizaram notícias de
violência e questões do cotidiano, exatamente por que agradava cada vez mais os leitores.
Outro tema que foi amplamente discutido pelos jornais, principalmente na década de 1880 e
que, nesse caso, promoveu benefícios para ambos, tornando-os cada vez mais populares, foi o
discurso abolicionista.
Segundo Humberto Machado, o discurso abolicionista foi capaz de formar dois
campos opostos na imprensa do Brasil. Enquanto uma parte queria romper o “dique da
escravidão” de diferentes formas e por diferentes motivos, outros insistiam na sua
preservação. Já a autora Marialva Barbosa afirma que, os temas abolicionistas e republicanos
desenvolvidos nos periódicos surgidos no decorrer de 1870 a 1889, prepararam terreno para
130
“ A ideologia é, assim, uma forma de dominação, gerando uma falsa consciência ilusória, que se produz
através de mecanismos pelos quais se objetificam certas representações (as da classe dominante) como sendo a
verdadeira realidade, tudo isso produzindo uma aparente legitimação das condições existentes numa determinada
sociedade em um período histórico determinado. Produz-se com isso uma forma de alienação da consciência
humana de sua situação real de existência (as relações de produção). A ideologia é produto de uma estrutura
social profundamente desigual, e portanto não-transparente, já que esta desigualdade não pode explicitar-se no
nível da consciência. Evitar que isso aconteça é tarefa da ideologia”. MARCONDES, Danilo. Iniciação à
história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 11º edição, 2007,
pág 236.
199
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
um novo jornalismo que seguirá os passos da polêmica até a primeira década do século XX,
sendo a campanha em prol da abolição um movimento urbano popular, que atingiu vários
segmentos da sociedade.
Entrando no tema abolicionismo, segundo Robert Conrad o primeiro golpe sério
contra a escravidão no Brasil, só ocorreu em 1851 e 1852, pela supressão do tráfico africano,
quando, então, a sua fonte de abastecimento foi cortada. Apesar de ser um marco na história
do fim da escravatura no Brasil, a lei Eusébio de Queirós (1850), que extingue de vez o tráfico
transatlântico de escravos, não foi obra repentina ou uma suposta ação do movimento
abolicionista brasileiro, mas, sim, ocorreu devido a pressões estrangeiras. Pressões essas
promovidas, basicamente, pela coroa britânica. Foram, mais ou menos, quarenta anos de
campanha contra o tráfico internacional de escravos no Brasil, sendo negociados diversos
tratados com o governo do Brasil e de Portugal entre 1810 e 1826, tendo sido todos eles
recebidos com grande relutância por parte dos governantes brasileiros (Conrad, 1979).
Em 1831, o governo Regencial decreta uma lei proibindo o tráfico negreiro para o
Brasil, declarando livres os escravos que aqui chegassem e punindo severamente os
importadores. Apesar da ameaça de pesados castigos, tanto para importadores quanto para os
compradores, o tráfico continuou entre 1831 a 1848, sendo fortemente combatido por
incursões britânicas nos portos do Império, ocasionando a captura e destruição de diversos
navios negreiros brasileiros, até mesmo em águas territoriais brasileiras. Enfrentando ameaças
à navegação legal do Império, com conflitos militares e mesmo um bloqueio de portos
brasileiros, o governo do Império foi obrigado, em julho de 1850, a ceder ante as exigências
britânicas em troca da promessa de suspender os ataques navais (Conrad, 1979).
Como efeito quase que imediato da supressão do tráfico internacional de escravos para
o Brasil, surge a migração forçada dos escravos brasileiros oriundos das regiões norte, oeste e
extremo sul, rumo às plantações do sudeste, basicamente os estados do Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais, para alimentar a expansão da lavoura do café. Tal fato acorre,
essencialmente, pela maior capacidade financeira dos plantadores de café, em concorrência
com outros brasileiros, por uma mercadoria que se tornou escassa.
Algumas propostas para solucionar essa escassez de mão-de-obra ou, pelo menos,
tentar manter plantéis com número razoável de escravos foram levantadas, como a tentativa
de promover a reprodução natural, tendo como o exemplo os Estados Unidos. Tal solução
fracassou em quase todos os lugares, sendo Vassouras, como foi exposto anteriormente neste
trabalho, segundo o historiador Ricardo Salles, uma das exceções a conseguir êxito nesta
empreitada. Outras soluções também foram propostas como, a promoção da imigração
200
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
chinesa, europeia e africana, sendo a imigração, até pouco tempo antes da abolição, uma
alternativa que nunca conseguiu se desenvolver suficientemente no que se refere a satisfazer
as necessidades de mão-de-obra das plantações.
A década de 1860 é permeada de diversos acontecimentos que vão influir diretamente
na escravatura brasileira. Externamente, a libertação dos escravos nos Impérios português,
francês e dinamarquês; a libertação dos servos russos em 1861 e a Guerra Civil nos Estados
Unidos (1861-1865). Em 1865, apenas a Espanha, com suas colônias de Cuba e Porto Rico,
acompanhava o Brasil como uma importante nação escravocrata. Internamente, o
desenvolvimento de um movimento emancipacionista significante; o evento que ficou
conhecido como o “caso Christie”, rompimento diplomático com a Inglaterra, que resultou
numa represália britânica a navegação brasileira e um bloqueio naval de seis dias na cidade do
Rio de Janeiro; e talvez o grande acontecimento desta década que é a Guerra do Paraguai
(1864 – 1870), que retarda o debate sobre as leis emancipacionistas na década de 1860, mas
promove mudanças drásticas na sociedade brasileira (Conrad, 1979).
A partir da década de 1870, surgem debates sobre a legitimidade da escravidão e o
direito a indenização da propriedade escrava. Nesse momento, em alguns lugares, passa-se a
perceber a escravidão como uma empresa de risco. Áreas cafeeiras do oeste paulista surgem
no cenário nacional como violentas, acreditando-se que o motivo para este fato seja a região
receber massas de escravos desenraizados, provenientes do tráfico interprovincial.
Segundo Evaristo de Moraes, a lei de 28 de setembro (lei do Ventre Livre), fora posta
em execução em meio a tremendas apreensões dos que lhe tinham combatido o projeto e das
exageradas esperanças dos que a haviam preparado e defendido perante o corpo legislativo e a
opinião pública. O perigo com a insurreição geral de escravos, desordem e anarquia social não
aconteceu. Por outro lado, a marcha da libertação gradual que a lei confiara ao fundo de
emancipação e a generosidade dos particulares se revelava lenta e ineficaz. A intenção da lei
Ventre Livre, era estabelecer um estágio de evolução para um sistema de trabalho livre, sem
causar grande mudança imediata na agricultura ou nos interesses econômicos. Fora planejada
para re-estabilizar a vida econômica e social do país; para corrigir os estragos que a disputa
sobre a escravatura infligiria na agricultura; para restaurar a confiança dos plantadores e para
revitalizar o crédito agrícola (Moraes, 1986).
Segundo Joaquim Nabuco, a terceira fase do movimento de libertação escrava - a qual
ele classifica como o verdadeiro abolicionismo e que incide no combate direto ao direito de
posse, contra a legalidade e legitimidade da escravidão, quando realmente se busca dar
liberdade a esses escravizados - inicia-se em 5 de março de 1879, no seu viés parlamentar,
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
que precedeu a popular. A verdade é que na década de 1880, o movimento em prol do fim da
escravatura no Brasil toma contornos irreversíveis, que culminaram com o fim da escravidão
no Brasil.
Já descontentes com as consequências causadas pelo tráfico interprovincial e a lei Rio
Branco, que causaram escassez de mão-de-obra, além de fazer cair o preço dos escravos e
torná-los uma mercadoria não lucrativa, alguns fazendeiros do norte do Brasil começaram a se
colocar opostos à escravatura, sugerindo reformas que pudessem atrair a população ociosa. A
seca, particularmente séria no Ceará, causara um aumento incisivo no fluxo de escravos fora
da província, sendo tais fatores catalisadores do rápido emancipacionismo da província
cearense, tendo como principais atores, os jangadeiros de Fortaleza, que se recusaram a
transportar os escravos, mas também houve forte apoio popular. Além do Ceará, destacam-se
como províncias que desenvolveram rápido movimento abolicionista, o Amazonas e o Rio
Grande do Sul (Conrad, 1979).
A década de 1880, na verdade, é marcada por uma cada vez maior adesão ao
movimento em prol da abolição e também de uma reação cada vez mais violenta e opressora
dos ainda remanescentes proprietários escravocratas, que tinham a intenção de proteger os
interesses da grande lavoura, principalmente, a do café, da qual eles julgavam ser totalmente
depende da mão-de-obra escrava africana. Em 1883, surge a Confederação Abolicionista,
criada na redação da Gazeta da Tarde, no município da Corte, com o objetivo de unir os já
diversos movimentos abolicionistas espalhados pelo Império. Em agosto de 1883, o
Manifesto da Confederação abolicionista, escrito por André Rebouças e José do Patrocínio,
foi lido perante quase duas mil pessoas no teatro D. Pedro II do Rio de Janeiro.
A partir de 1884, o abolicionismo da capital do Império tomou pela primeira vez o
caráter de movimento de massas. Também na mesma data, a província do Ceará praticamente
aboliu a escravidão. Cidadãos das classes média e superior mostram-se particularmente ativos
no movimento, bem como o vasto setor imigrante, composto por alemães e italianos,
manifestando-se opostos a escravatura. Províncias do norte, além de Goiás, Paraná e Rio
Grande do Sul, têm o espocar de grupos ligados ao interesse de acabar com a escravidão do
Império. Cidades com grande concentração de escravos e propriedades voltadas para o
mercado externo sofrem cada vez mais com os ataques dos grupos abolicionistas e com a
rebeldia cada vez maior dos escravos.
Todo este movimento tem por consequência, provocar a ira e a insatisfação dos
proprietários de terras e escravos, que buscam proteger seus bens e direitos, imprimindo forte
e violenta repressão. A criação do Centro de Lavoura e Commercio foi uma demonstração de
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oposição ao crescimento do movimento em prol da abolição, sendo clara a resposta de que a
reação pró-escravatura não ia ficar somente nas declarações de políticos. Essas associações
agrícolas que foram criadas, principalmente, as da região Centro-Sul, funcionavam como
poderosos grupos de pressão, dirigindo suas petições às autoridades públicas contra o
movimento abolicionista, defendendo agora a Lei Rio Branco, antes motivo de suas
insatisfações, e agora vista como a única solução para a questão da escravatura.
Devido a esta forte pressão em torno do tema da emancipação da escravatura, em
1884, tem-se início o Ministério Dantas, cujo objetivo principal era dar uma solução ao
problema da escravidão no Brasil. A escravidão nesse momento já era rejeitada por boa parte
da opinião pública, sendo defendida ativamente apenas por uma pequena parte da população,
que era, basicamente, os proprietários ligados a lavoura do café. O Projeto do ministério
Dantas, não foi recebido com muito entusiasmo pelos que eram verdadeiramente
comprometidos com a causa abolicionista, sendo também alvo de duras críticas dos
escravocratas.
O Projeto Dantas tinha como medidas para resolver o problema da escravatura a
libertação dos escravos acima de sessenta anos, com a obrigação por parte dos senhores de
sustentar esses libertos em troca de alguns serviços gratuitos; acabar com o tráfico
interprovincial; introduzir novo registro nacional, libertando os escravos que não fossem
registrados; estabelecer valores máximos para a tabela do fundo de emancipação; promover
deslocamento de mão-de-obra escrava das cidades para a zona rural, através do aumento de
impostos; aumentar a atuação do fundo de emancipação; promover a obrigação dos
emancipados de ficarem determinado tempo na região em que viviam, para evitar a fuga de
mão-de-obra; e promover incentivos para que emancipados e ingênuos, se tornassem donos da
terra em que trabalhavam.
No ministério do Barão de Cotegipe, político conservador, promulgou-se a lei dos
Sexagenários (1885), favorável aos interesses escravocratas, em sua maior parte. Sendo
classificada como uma lei complexa e retrógrada pelos abolicionistas, ela, inicialmente,
cumpre com seu objetivo, que é o de frear o ímpeto do movimento de libertação. Mas apesar
de relativo sucesso, no que se refere a frear o movimento abolicionista, este sucesso torna-se
passageiro e muito curto.
O início de 1887, marca a derrocada da escravidão enquanto instituição e regime de
trabalho. Os escravos não mais estavam dispostos a se submeterem a tratamentos que
lembrassem a escravidão, sendo este período marcado por forte violência e repressão. Este
momento também é o de maior exposição dos abolicionistas, principalmente, devido à
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conjuntura mais favorável. Abolicionistas, além de incitar fugas, passam a escoltar os
fugitivos até um lugar de refúgio, sendo, principalmente, a cidade de Santos, com seu imenso
quilombo do Jabaquara, o principal refúgio (Machado, 1994).
O movimento de fugas e abandono do eito de trabalho por parte dos escravos
provocou mudanças significativas no quadro político, econômico e social do Império, em
meados de 1887. Uma das modificações mais expressivas foi a rápida transformação da
província de São Paulo, que como citado anteriormente, era um dos berços da resistência à
abolição, em emancipacionista, incluindo aí seus fazendeiros e políticos, todos dispostos a
conceder a liberdade aos seus escravos.
O emancipacionismo dos fazendeiros de São Paulo, não deve ser entendido como um
ato de generosidade, mas, sim, uma tentativa de defender interesses econômicos ameaçados;
um esforço bem sucedido para apanhar as migalhas de um sistema em desintegração. A fuga
dos escravos, mais do que a chegada dos italianos, convenceu, finalmente, os senhores de São
Paulo de que o momento de libertação chegara. Sua inserção às fileiras do movimento
abolicionista foi tardia, mas significou a rápida conversão das outras províncias (Conrad,
1979).
Os únicos defensores importantes da escravatura em 1888 eram o ministério Cotegipe
e os fazendeiros da província do Rio de Janeiro. Esta resistência da província do Rio se deu
pelo fato dos escravos nessa região ainda serem numerosos e, também, porque os fazendeiros
tinham empobrecido. O valor nominal de escravos excedia o valor das terras e, assim, a
abolição ameaçava os fazendeiros, particularmente os do Vale do Paraíba, da ruína financeira
(Conrad, 1979). [A lei de 13 de maio] “limitou-se a reconhecer e confirmar um fato
preexistente, evitando com esse reconhecimento as maiores perturbações e desordem, se não
terríveis calamidades. A emancipação estava feita no dia em que os ex-escravos recusaram
marchar para o eito e começaram o êxodo das fazendas. A lei confirmou-a, deu-lhe sanção
dos poderes públicos, mas sem a lei não deixaria de ser um fato que se impunha contra todas
as resistências”, ponderava o Jornal do Commercio em outubro de 1888 (Castro, 1997).
III- Nas colunas do Vassourense
Na década de 1880, o principal meio de comunicação a circular na cidade é o jornal.
Como principal jornal da cidade no período e objeto de análise deste artigo, destaca-se o
jornal “O Vassourense”, fundado em 1882 por Lucindo Filho. Apesar da importância do
jornal “O Vassourense”, esse não era o único jornal da cidade. O jornal cita em uma de suas
edições, no ano de 1885, à existência de mais seis jornais na cidade, sendo eles “O Porvir”,
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“Labaro”, “Canario”, “Quinzena”, “Tentamen” e “Beija Flor”. Lucindo Filho era o redator e
também o proprietário do jornal “O Vassourense”, sendo além de jornalista, médico,
musicista, poeta, professor e político. Sua atividade jornalística começou em 1873, quando
fundou o periódico “O Município”, e só findou com sua morte, ocorrida em 1896. Exerceu
diversos cargos públicos, entre eles o de suplente de Juiz Municipal e de Órfãos, de jurado no
tribunal do júri e de delegado de polícia substituto (Martins, 2007).
“O Vassourense” possui diversas características, características essas que demonstram,
o quanto este periódico estava atrelado ao desenvolvimento da imprensa jornalística do
período. Essas características são o papel de fiscalizador, o de intermediário entre o público e
o poder, o de defensor dos fracos e oprimidos; ligado intimamente à política, política essa,
não só restrita à cidade de Vassouras, mas atenta ao que ocorre na política Imperial da década
de 1880; também separa espaços para histórias, no mínimo curiosas, demonstrando as formas
de pensamento desta sociedade e seus preconceitos; além de fazer a parte comercial com
editais e propaganda de produtos e serviços.
Embora busque uma pretensa neutralidade e imparcialidade, ao promover debates em
relação à cultura do café, ao trabalho realizado por mão-de-obra escrava e à política exercida
por parte daqueles que estão no poder, o jornal “O Vassourense”, por intermédio de seus
redatores, deixa escapar algumas de suas preferências e prováveis soluções, as quais
acreditam ser mais eficazes. Suas posições não são estáticas, apoiando ora uma posição,
outrora outra e, às vezes, duas ou mais posições diferentes. Isso demonstra quão variadas
eram as soluções propostas para a resolução da crise do fim do século XIX e que, apesar de
supostamente apenas uma ter triunfado, a imigrantista, outras propostas foram levantadas.
Nos debates desenvolvidos pelo “O Vassourense”, percebe-se certa inclinação à
questão da colonização por parte do trabalhador nacional livre, principalmente os ex-escravos.
Algumas colunas do periódico foram designadas para demonstrar os benefícios da
manutenção da mão-de-obra já existente na localidade, sempre com o argumento de que como
não é mais possível manter a escravidão, que pelo menos esse trabalhador permaneça na
região, evitando a escassez de braços para o trabalho.
Apesar da intenção de se aproveitar o trabalhador nacional, o projeto de colonização
européia também foi defendido pelo periódico, que lhes dedica amplos espaços. Muito se fala
sobre a província de São Paulo, delegando a ela os maiores êxitos na política de atração do
imigrante europeu. Mas também há exemplos da província do Rio de Janeiro, da Corte e de
Minas Gerais.
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Além da questão de colonos nacionais ou imigrantes, o jornal também destaca outros
fatores como a lei dos Sexagenários e suas atribuições, a data do pagamento dos impostos
relativos à posse de escravos, a busca da modernidade, algo que muitos acreditavam ser difícil
de conquistar tendo a escravidão como regime de trabalho. Também é de se destacar a
importância de se desenvolver uma educação “profissional” para as classes menos
favorecidas,
que incluía os cativos, item este que para alguns abolicionistas era um fator de
suma importância; além da proposta de desenvolver outras culturas, como a cana, o trigo e a
uva, diversificando a produção brasileira, que para muitas sofria com o exclusivismo da
cultura cafeeira.
Há de se estranhar no periódico, a falta de relatos sobre fugas em massa e abandono do
eito de trabalho com recusa a retornar, mesmo nos anos de 1887 e 1888, onde boa parte da
historiografia sobre o tema afirma ser um período de instabilidade na organização do trabalho
nas lavouras do Centro-Sul do Império. Pode-se pensar que a região viveu certa “paz” neste
momento de crise, ou certa omissão do jornal em publicar esses casos, sendo este um fator a
se analisar.
Com o aproximar do fim da década de 1880 e a certeza, cada vez maior, do fim da
escravatura, um ato que era muito comum por parte dos senhores de escravos, sendo utilizado
como válvula de escape e auxiliando, de certa forma, no controle da escravaria, a concessão
de liberdade, ou a entrega de cartas de alforria, tomam uma nova proporção e um novo
sentido. Nos anos de 1887 e, principalmente, no início de 1888, elas crescem de forma
assustadora em números e torna-se agora uma conquista ou, às vezes, uma única saída para o
proprietário, deixando o seu caráter de concessão. Com a abolição cada vez mais próxima,
muitos acreditavam ser ela a única maneira de segurar essas pessoas no local de trabalho,
outros acreditavam que era a coisa certa a se fazer e muitos não viram outra opção, pois
mesmo se negasse a carta, essas pessoas já haviam conseguido a sua liberdade “na marra”.
O jornal “o Vassourense” e a própria sociedade da cidade de Vassouras, não passam
imunes a esta “avalanche” de liberdades, sendo o jornal um portal para anunciar as abolições
que ocorrem na região e no entorno. Sempre tomada como algo positivo e digno de festa, o
periódico publica esses casos de forma entusiástica e coloca-as como exemplo a ser seguido
pelo restante da sociedade.
Com a proximidade do 13 de Maio, o periódico passa a praticamente fazer propaganda
abolicionista, de forma moderada, espaços são cada vez mais dedicados à causa da abolição e
até se apela para o lado humano das pessoas. No periódico do dia 13 de maio, fica declarado o
apoio do jornal ao fim da escravidão no Brasil. Nesta edição ele declara as etapas que a lei
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percorreu e a possível assinatura da lei ainda no mesmo dia ou quem sabe no dia seguinte,
sendo este ato, um ato que levará a nação a aspirar ares de “civilização moderna”. E
exatamente no dia 20 de maio de 1888, o jornal publica a tal calorosa e interessante Lei áurea,
que pôs fim à escravidão no Brasil.
Conclusão
Este trabalho, através do periódico “O Vassourense”, buscou entender como essa
sociedade reagiu, e mais precisamente, como se posicionaram determinados grupos desta
sociedade, ante ao fato da crise da escravatura e seu possível fim. Se analisarmos somente os
jornais publicados em 1888, mais exatamente entre os meses de março e maio, fica muito fácil
responder essa pergunta. O jornal é amplamente favorável à questão da abolição, dedicando
enormes espaços de suas publicações à defesa da causa, enaltecendo cada cidadão que comete
um ato de generosidade, ao libertar um escravo do cativeiro.
Mas tendo acesso ao periódico desde o ano 1885, encontramos em suas colunas,
alguns anúncios que dão notícias sobre escravos fugidos, venda de escravos e reuniões do
Club de Lavoura, onde os interesses mais nobres são o de manutenção da propriedade e da
riqueza para as elites já existentes. Essas características não condizem com o movimento
abolicionista que Joaquim Nabuco dirigiu; com as idéias de José do Patrocínio; com as
atitudes tomadas pelos periódicos da província do Ceará, ou com a campanha promovida pela
Confederação Abolicionista no Rio de Janeiro e o movimento Caifaz em São Paulo.
Demonstrando assim, um caráter emancipacionista no sentido de apoiar a abolição devido a
sua inevitabilidade, não colocando em questão, outros fatores de suma importância, como o
futuro deste enorme contingente de pessoas, ou especificamente falando, como inserir e
melhorar a condição de vida desses agora “libertos”.
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