II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
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II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades
II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Anais São Gonçalo Faculdade de Formação de Professores da UERJ 2012 2 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ Reitor: Prof. Dr. Ricardo Vieiralves de Castro Faculdade de Formação de Professores - FFP Diretor: Prof. Dr. Manoel Martins de Santana Filho Vice-Diretor: Prof. Dr. Rogério Carlos Novais Departamento de Ciências Humanas - DCH Chefe: Profª. Drª. Helenice Aparecida Bastos Rocha Sub-Chefe: Prof. Dr. Sydenham Lourenço Neto Coordenadora de Graduação: Profª. DrªMaria Aparecida Cabral Programa de Pós-Graduação em História Social (Mestrado em História Social) - PPGHS Coordenadora: Profª. Drª. Daniela Buono Calainho Coordenadora Adjunta: Profª. Drª. Maria Letícia Corrêa Comissão Organizadora Daniela Buono Calainho Maria Letícia Corrêa Camila de Freitas Silva Gelson Gomes Carneiro de Souza Leonardo Gonçalves Gomes Luiz Gustavo Mendel Souza Rozely Menezes Vigas Oliveira Thiago Rodrigues Nascimento Organização dos anais Daniela Buono Calainho Maria Letícia Corrêa Camila de Freitas Silva Gelson Gomes Carneiro de Souza Leonardo Gonçalves Gomes Luiz Gustavo Mendel Souza Rozely Menezes Vigas Oliveira Thiago Rodrigues Nascimento ISBN 978-85-88707-74-0 3 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades APRESENTAÇÃO A iniciativa de organização do II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades tem por finalidade promover o debate sobre investigações históricas e historiográficas, conjuntamente à reflexão sobre questões teóricas, práticas e metodológicas relacionadas às pesquisas dos pós-graduandos e mestres formados pelo Curso de Mestrado em História Social da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. Em sua segunda edição, o evento consolida-se como importante espaço de ampliação de debates, divulgação científica e qualificação acadêmica e profissional, ao promover o intercâmbio de experiências e o aprimoramento da produção científica dos alunos. Comissão Organizadora São Gonçalo, Outubro de 2012 4 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Índice dos trabalhos 1. Andréa Martins Alves Silva – O modelo de professora nos discursos de Rui Barbosa e José Veríssimo – final do século XIX p. 7 2. Camila de Freitas Silva – A República vira notícia: a Proclamação e seus ecos na imprensa brasileira (1889) p. 16 3. Felipe Augusto dos Santos Ribeiro – Pesquisando os “Operários à tribuna”: vereadores comunistas e trabalhadores têxteis de Magé/RJ p. 28 4. Gabriel Valladares Giesta – Das Cores da Música: Identidades, Cultura Popular e Samba Carioca no início do século XX (1917 – 1933) p. 40 5. Gelson Gomes C. de Souza – A busca de educação escolar pela população riobonitense (1977-1982) p. 49 6. Jussara França de Azevedo – O periódico O Industrial e a imprensa do Rio de Janeiro p. 60 7. Leonardo Gonçalves Gomes – Os simplicia do Reino: a lista de medicamentos simples da Farmacopeia Tubalense Químico-Galênica de 1735 8. Luiz Gustavo Mendel Souza – Memória das jornadas dos Santos Reis: em busca de um viés para a compreensão das representações e apropriações contidas nas profecias do mestre Fumaça p. 70 p. 80 9. Marcelo Nogueira de Siqueira – Estudantes x Polícia: as manifestações estudantis de 1964 a 1968 vistas pelo Correio da Manhã p. 90 10. Melissa de Miranda Natividade – A Questão Agrária no governo João Goulart p. 102 11. Natalia Azevedo Crivello – Fotografia, memória e paisagens urbanas: reflexões sobre cidade de Nova Iguaçu na década de 1930 p. 111 12. Rafael Reis Pereira Bandeira de Mello – A militância do Apostolado Positivista em favor da implantação de uma Ditadura Republicana no Brasil (1889-1891) 13. Renata Moreira Ribeiro – Ao tesoureiro da Alfândega: estudo da relação entre a Tesouraria da Real Fazenda e a Tesouraria Geral da Alfândega (c.1750-1777) 14. Rosane dos Santos Torres – Pelo Progresso da Nação! Discursos e projetos na ampliação do ensino público na capital federal (1892-1902) 15. Rosangela Torres da Silva – Entre o Sagrado e o Profano: estudo das Irmandades Religiosas na Paróquia de São José de Além Paraíba no contexto da Zona da Mata Mineira (1850-1900) p. 127 p. 136 p. 143 p. 151 16. Rozely Menezes Vigas Oliveira – Convento de Santa Mônica de Goa: um modelo de religiosidade feminina para o Oriente (1606-1636) p. 159 17. Sara Cesar Brito – A formação do estado do Guanabara nas páginas da imprensa: uma análise a partir do jornal O Globo p. 169 5 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades 18. Tatiane Rocha de Queiroz – Leituras da Revolta Liberal de 1842 em O Brasil. 19. Thiago Rodrigues Nascimento – A Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ e a Licenciatura Curta em Estudos Sociais: implantação, resistência e defesa entre os anos 1973-1987 20. Vinícius Gomes da Silva – Imprensa e abolição: Vassouras e a crise do trabalho escravo (1885 – 1888) p. 175 p. 185 p. 195 6 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades O modelo de professora nos discursos de Rui Barbosa e José Veríssimo – final do século XIX Andréa Martins Alves Silva* Resumo: Esta pesquisa visa analisar a entrada das mulheres no magistério primário no Rio de Janeiro no final do século XIX e início do século XX nos discursos de Rui Barbosa e José Veríssimo, ilustres representantes da elite brasileira e que se dedicaram à questão educacional. O recorte temporal corresponde a um período marcado pelos debates em torno da construção da nação brasileira e os problemas relacionados ao atraso do país frente às nações consideradas modernas, os debates sobre a escolarização ganharam maior visibilidade ao mesmo tempo em que se verifica um maior interesse das mulheres pelo exercício da profissão. A feminilização do magistério não se deu de forma tranquila, objeto de muitas disputas e polêmicas, a possibilidade de mulheres exercerem o magistério gerou preocupações e debates, principalmente, porque as mulheres se tornavam uma presença, no magistério, muito maior do que o desejado pela sociedade. Neste sentido os diversos discursos passaram a associar o magistério feminino à vocação, à missão e ao sacerdócio. Cabia às professoras o papel de moralizadoras e a responsabilidade de incutir nos alunos os ideais de nação moderna preconizados pela elite brasileira. Palavras-chave: Magistério feminino; Educação; Nação. Abstract: This study aims to analyze the theme of the onset of female participation in primary teaching in Rio de Janeiro in the late nineteenth century and early twentieth century in the speeches of Rui Barbosa and José Veríssimo, that were distinguished representatives of the Brazilian elite that were dedicated to education issues. The chronological framework of the analysis is the period that gave rise to the debate on the nation building in Brazil and on the problems related to the delay of this country when compared with nations considered modern. The debate on school attendance had gained then greater visibility and at the same time there was a major interest of women in the profession. The feminization of teaching did not occur smoothly, and it became the object of many disputes and controversies. These concerns and discussions have emerged because women gained a presence in teaching much higher than expected by society. In this context several discourses began to relate female teaching with vocation, mission and ministry. It was up to female teachers the task of moralizing and the responsibility to instill in students the ideals of modern nation advocated by the Brazilian elite. Keywords: Women's Magisterium; Education; Nation. Esta pesquisa de dissertação visa promover uma discussão sobre os debates que se travaram no Brasil, principalmente nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, em torno da idéia de construir uma nação moderna. O foco de atenção deste trabalho concentra-se na preocupação por parte de alguns membros da intelectualidade com a necessidade de ampliar, reformar e tornar a educação o fio condutor no processo de * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). 7 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades modernização da nação. Esse período registra também um amplo processo de feminilização do magistério primário, principalmente com a criação de escolas normais uma vez que se fazia urgente dar um melhor preparo técnico profissional aos professores de uma escola elementar que se expandia. Essas escolas vinham registrando um número crescente de meninas e uma diminuição paulatina do número de meninos (PRIMITIVO, 1940, p. 475), fator responsável por discursos favoráveis e desfavoráveis em torno da entrada das mulheres no mercado de trabalho. Neste sentido interessa a esta pesquisa investigar como os intelectuais Rui Barbosa e José Veríssimo, que se preocupavam ativamente com a questão educacional no país e com a entrada das mulheres no magistério, viam esse processo, e produziam com seus discursos um modelo de professora dentro de um momento de reflexões sobre a modernização da nação brasileira em fins do século XIX e início de XX. A entrada das mulheres no magistério foi um fenômeno que ocorreu ao longo do século XIX no Brasil e em grande parte dos países da Europa e nos Estados Unidos. No Brasil a lei de 15 de outubro de 1827 marca o início institucional para o acesso das mulheres à escola, garantindo o direito à educação, e previa um conjunto de conteúdos mínimos para a formação de meninas e regras para seu ingresso na profissão do magistério, o que, de certa forma, proporcionou um aumento relativo do número de mulheres e forjou um perfil da profissão ao demarcar aquilo que caberia à formação das meninas. Todavia, a partir de 1879 (Reforma Leôncio de Carvalho) foi instituída, nacionalmente, a equiparação salarial entre professores e professoras, em decorrência da admissão do ensino conjunto para crianças de ambos os sexos, e o fim da desigualdade de conteúdo curricular entre os dois sexos que, até então, justificava a diferenciação salarial, pelo menos na forma da lei. Este fato realça ainda mais o incentivo por parte do poder público em favor do magistério feminino na escola elementar, cabendo às professoras a nobre missão de ensinar e, por outro, lado valorizar a possibilidade de ingressar no espaço púbico com certo nível de aprovação social. Rui Barbosa foi relator em 1883 e 1884 dos Pareceres sobre a educação primária nos debates que se travaram no parlamento brasileiro sobre os rumos da instrução pública, que culminaram em um minucioso estudo sobre as condições da educação no Brasil, inclusive com dados de outros países considerados avançados e modernos que deveriam servir de modelo pela sociedade brasileira. Ao serem analisadas passagens dos discursos, observa-se em Rui Barbosa uma ênfase nos valores morais e maternais, consagrando a abnegação como uma das maiores qualidades da mulher professora: 8 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Seja qual for a opinião de cada um acerca da co-educação dos sexos, duas verdades há que parecerem hoje definitivamente adquiridas, inalienavelmente acrescentadas em domínio dos fatos de evidência universal: a preexistência da mulher como educadora da infância, a sua competência privativa na direção das escolas onde se reunirem os dois sexos(...)(BARBOSA, 1947, p. 33) Para aclimar a criança à escola empreendemos entregar à professora as classes elementares do sexo masculino. A mulher entesoira em si o instinto da educação, filha, irmã, esposa e mãe, está habituada à abnegação, ao sacrifício. Sua firmesa impregna de ternura cativa o menino. Sua inteligência penetrante e delicada prestase aos desejos da ingênua criança, sem lhe escravizar: assenhoreia-se, sem esforço, ou por um esforço amorável, de todos os impulsos de seu espírito e do seu coração.Opulenta em recursos, engenhosa , inventiva, sabe variar os seus meios de atividade. Adivinha o que lhe não ensinaram. Não enfada .(...) Qualquer, a poder de bons conselheiros conseguirá educar uma criança, dos dez anos em diante: mas até essa idade não há agudeza de preceitos, que baste: é mister gênio : e com esse embargo os homens não se sabem haver (BARBOSA, 1947, p. 36). A escola de primeiras letras é vista por Rui Barbosa como um local para acolher o aluno e moldá-lo dentro dos padrões de civilidade, porém o conteúdo deveria ser leve, ameno, superficial, caberia às mulheres a função de mesclar os interesses propostos pela sociedade de formar cidadãos, mas dentro dos padrões ligados aos valores do espaço privado ligados à paciência, ao amor e ao sacrifício. Podemos verificar a associação entre professora e mãe, abnegada e acostumada ao sacrifício. Esses adjetivos representam fator fundamental para educar as crianças nos princípios da moral e da submissão. Ao analisar os discursos desse letrado percebe-se a associação da mulher à figura e função materna, voltada para a doação, a missão e a vocação sacerdotal. A discussão se associa a outros discursos como nas formulações de Foucault ao perceber que o fato de que um enunciado não existe isolado, mas sempre em associação e correlação a outros enunciados, do mesmo discurso ou de outros discursos (missionário, religioso, maternal, e assim por diante), e, finalmente, da materialidade do enunciado às formas muito concretas com que ele aparece nas enunciações. Rui Barbosa, apoiando-se em modelos educacionais de países europeus e dos Estados Unidos, modelos estes que deveríamos seguir no Brasil, diz: Enunciadas por nós neste tom estas idéias, quantos as não taxariam de sentimentalismo e poesia? Valha-lhes, pois, a autoridade do maior, do mais prático, de todos os reformadores do ensino em França hoje conhece, se lhe não valer a eloqüência dos fatos que aduzimos, e que nos escusam de outra qualquer justificação, em apoio dos disposições que o projeto nesta parte estabelece: 1) Pertence exclusivamente à mulher a direção dos jardins de crianças e escolas do sexo feminino; 2) Exclusivamente lhe toca, outrossim , a direção das escolas mistas (7 - 9 anos e 9 - 11); 3) Para o magistério das escolas elementares do sexo masculino (7 - 9 anos) é permitida a nomeação de professoras (BARBOSA,1947, p. 37). 9 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades O autor atenta para a preparação dessas professoras a fim de estarem aptas para ministrar o ensino aos pequenos, bem como a existência de exames de vocação para tais profissionais: “cumpre que as professoras dos jardins de crianças, tanto quanto das escolas primárias, sejam adestradas a cursar um ensino normal, e a passar por exames, que configuram o diploma de capacidade”. (BARBOSA, 1947, p. 98) José Veríssimo foi autor de diversos estudos sobre a educação, tendo como destaque o livro A educação nacional, editado em 1894, reeditado e revisado em 1906, com uma terceira edição em 1985. Neste livro o autor faz um sério estudo sobre a instrução pública apontando caminhos a serem trilhados para promover uma radical mudança social via educação. As idéias discutidas nesse livro também serviram para um amplo debate sobre o tema na sociedade. Esses letrados também utilizavam a imprensa para divulgar suas posições sobre a sociedade brasileira no sentido de informar, colocando esse veículo como importante formador de opinião. Veríssimo aponta para os malefícios que a escravidão trouxera ao seio da família brasileira. Sendo assim, a mulher, por estar mais próxima dos filhos deveria ser retirada da ignorância e da superstição para cumprir a missão de moralizar a família e a sociedade, a partir de sua escolarização no espaço público e de sua preparação para o magistério primário. Segundo o autor: (...) o primeiro e principal educador do indivíduo, desde o seu nascimento e quiçá ainda em antes, até a sua morte, é a mulher, segue-se logicamente, necessariamente, que a educação da sociedade deve começar pela educação da mulher (VERÍSSIMO, 1906, p.139). Veríssimo faz uma crítica radical ao tratamento dado às mulheres, denunciando que tal reclusão e analfabetismo significavam um atraso para a modernização do país, pois não as habilitava a educarem seus filhos dentro dos princípios civilizatórios. Todavia, admite que as transformações sociais em curso naquele período proporcionavam maior libertação dos hábitos femininos, sendo por isso favorável ao seu paulatino ingresso nas escolas normais. Esses fatos, verificados pelo autor no decorrer da virada do século XIX, deveriam se aplaudidos pela sociedade e para o seu próprio bem, recomendando que o ensino ministrado a essas futuras mães deveria privilegiar conteúdos relativos à Geografia e a História do Brasil, bem como os valores nacionais, para que tais conteúdos fossem transmitidos às crianças ainda no seio de seus lares. Esse autor reconhece o sucesso e a importância das escolas normais por receberem as moças, antes enclausuradas e atrofiadas por falta de exercícios físicos. Com este ingresso 10 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades poderiam se deslocar para a escola, o que lhes proporcionariam um relativo movimento físico, além de poderem manter contato com o sexo masculino, já que em algumas delas ministravase o ensino simultâneo para moços e moças. Os dois sexos tinham sempre vivido separadamente “seqüestrados um do outro, como inimigos recíprocos”. Agora poderiam trocar idéias e aprenderem um do outro par o “bem da nação” (VERÍSSIMO, 1906, p. 161). No entanto, o educador exige a melhoria do sistema de ensino e das disciplinas a serem ministradas a essas moças. Defendia inclusive a criação de escolas superiores para reforçar o ensino das futuras professoras. Toda a orientação do autor se dirige para a preocupação com o conteúdo, que deveria ser elaborado segundo os preceitos da moral, da organização social e da valorização dos mecanismos que incutem a identidade nacional. Para tanto, a mulher deveria estar muito bem preparada a fim de transmitir aos filhos e aos alunos os mais variados valores morais e civilizatórios, base de uma nação moderna. Por estas análises tende-se a perceber que o olhar desses letrados sobre a mulher revela um maior investimento em representações de afeto e de abnegação, do que de capacidade intelectual, na medida em que são inseridas no espaço escolar segundo a conveniência de um padrão cultural civilizatório. Sendo assim, a facilidade de manipular a mulher tornaria essas professoras capazes de coadunar características dóceis e fraternais do espaço privado com a competitividade e agressividade do espaço público, promovendo, desta maneira, uma dupla inserção, que inclui no seio da família a pretendida civilização.1 Esses dois autores se assemelham quando defendem a educação como o caminho para a transformação e a modernização da sociedade, na defesa das mulheres no magistério de primeiras letras. No entanto o discurso de Barbosa aponta para uma educação mais acolhedora nesta fase do ensino, apesar de apresentar um currículo bastante avançado com disciplinas de ciências, arte, música etc. O papel da mulher está sempre associado à doação e ao lado maternal, trazendo para a esfera pública os valores afetuosos e subservientes do espaço privado. Já Veríssimo atenta para uma formação mais sólida para as mulheres como forma de tirar o atraso do modelo colonial e a herança portuguesa de enclausuramento das mulheres. A instrução feminina é pensada como a do cidadão, integral e enciclopédica. Todavia, para o autor isso não significava que a mulher deveria se aprofundar e se especializar nas ciências, tendo em vista que estava incapacitada por sua inteligência inferior a do homem, mas sim aprender o necessário ao cumprimento racional e proveitoso de sua função: “(...) ser mãe, 1 A oposição aqui expressa entre o público e o privado considera que o espaço privado ou natural está relacionado à mulher e ao seu papel no lar, na maternidade e no cuidado com a família, enquanto o espaço público ou cultural relaciona-se ao homem, lócus da produção social do trabalho. Ver Scott, 1990. 11 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades esposa, amiga e companheira do homem, sua aliada na luta da vida, criadora e primeira mestra de seus filhos, guia de sua prole” (VERÍSSIMO, 1985, p. 122). O autor defende então que, por sua missão na sociedade, para dar ao país uma posição proeminente no mundo, cumpriria melhorar a educação feminina, portanto: A educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua justificativa não se encontrava em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função social de educadora dos filhos ou, na linguagem republicana, na função de formadora dos futuros cidadãos (LOURO, 2001, p. 447). Segundo Saviani (2006, p. 28), no decorrer do século XIX houve um gradual processo de organização do sistema escolar “e da institucionalização da formação de professores e a consolidação das escolas normais no final do Império”. Neste sentido, a feminilização do magistério, também foi um legado do século XIX, e, com o advento da república, esse fenômeno foi se consolidando e só veio a aumentar significativamente nas décadas seguintes. Os ideais republicanos promoviam a necessidade de ampliação da rede educacional por ter sido pensada como capaz de disseminar princípios de disciplina e hábitos de trabalho, bem como formar cidadãos republicanos por meio do ensino da leitura, escrita e moral e cívica para fomentar a unidade nacional. Neste sentido, a universalização da escola e do papel da professora nesse processo perpassa a discussão em torno da modernidade, bastante em voga em fins do século XIX, sendo o de construir a pátria, a nação e ser responsável em transmitir ao cidadão um conjunto de ritos, tradições e mitos de origem, além de forjar no brasileiro o sentimento de amor a pátria e aos seus símbolos (que serão reelaborados com a república). Por exemplo, o mito de origem da nação, a bandeira, o hino, os heróis e os monumentos históricos (CARVALHO, 1990). Neste contexto a escola primária aparece como a responsável por transmitir esses ideais de civilização. Levantaram-se vozes em torno da relação educação-construção da nação. O aumento sensível do número de mulheres no magistério deu-se pelo número do aumento de vagas e pelo abandono por parte de homens desse campo profissional para cargos de comando dentro da educação, ou em busca de empregos mais rentáveis, possibilitando que seus lugares fossem ocupados pelas mulheres (APPLE, 1995, p. 53-71). Neste sentido o aumento da demanda de mulheres professoras correspondeu a uma visão ideológica que atribuía às mulheres o papel de regeneradoras morais da sociedade, o que se faria principalmente por meio de sua inserção no campo educacional. 12 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Palco de intensos debates, a cidade do Rio de janeiro abrigou uma intelectualidade preocupada com os problemas nacionais, que desde o movimento reformista da geração de 1870 vinha se preocupando como os rumos do país e utilizavam teorias em voga entre os integrantes da intelectualidade européia para explicar os motivos do atraso econômico e social do Brasil. Segundo Maciel de Barros, um conjunto de idéias que buscavam o progresso e a modernização tendo como elemento impulsionador a ciência (BARROS Apud SALLES, 1996). Para Alonso (2000, p. 51) “esse reformismo desenvolveu interpretações acerca dos principais problemas brasileiros e buscou instrumentos para intervir politicamente”. Todavia, como podemos perceber, os discursos sobre a mulher e sua inserção no magistério foram marcados pelo conservadorismo, associando à figura da mulher a de mãe redentora da nação, revestida de uma aura quase divina, comparando-a a virgem Maria que se sacrificou em favor da salvação da humanidade. Como assinala Müller (1999) as mulheres foram consideradas como seres dotados de uma espécie de dom natural para o magistério visto serem elas responsáveis, em casa, pela educação dos filhos seriam fundamentais para educar nas escolas. No entanto, esse caminho que se abria a mulher precisava ser controlado, normatizado, regulado, pois não se permitia uma completa autonomia da mulher considerada frágil e de inteligência pouco desenvolvida, além de preservar os altos valores morais da sociedade. Araújo (1993, p. 89) assim comenta: A castidade feminina era um valor inquestionável, acentuado pelo fato de a população brasileira ser maciçamente filiada à Igreja Católica, cujo culto à Virgem Maria elimina a possibilidade de quebrar o mito da virgindade. Preservar a castidade antes do casamento era um dever da mulher que sociedade controlava, utilizando os mais diversos mecanismos de punição quando a regra era infringida. O crime de sedução ocupa grande espaço no noticiário diário, onde a mulher é defendida quando vítima da violência masculina e culpada quando cede à fraqueza própria do sexo. Dentro dos valores morais que se delineavam a partir de um viés positivista e higienista, a família era base para sanear a sociedade. Era necessário detectar os agentes degeneradores da sociedade e normatizá-los. (COSTA, 1979, p. 68). Chegando a família alcançaria a criança, alvo privilegiado para regenerar a sociedade e, como a mulher, pertencente a esse mundo privado, necessitava também ser educada para preparar a família e, por conseqüência direta educar os pequenos na escola num processo de modernização e civilização da sociedade. O olhar dos letrados sobre a mulher nos revela um maior investimento em relações de afeto que representações de capacidade intelectual. Expressões como: “a mulher é mais dócil”, “a mulher é mais generosa”, “a mulher é mais delicada”, etc., presentes nos espaço privado da família, os atributos idealizados da maternidade, como a docilidade, a delicadeza e 13 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades a generosidade, precisam ser trazidas para a esfera pública e, desse modo, contribuem para a construção de padrões culturais civilizados, afeitos aos interesses e crenças das elites dirigentes. Utilizar a noção de discurso na análise desses textos requisita algumas considerações. O discurso não pode ser visto com algo transparente, deve-se admitir que as idéias de um texto dependam não apenas da escolha e uso de vocábulos, da linguagem e da semântica na qual elas se expressam, como analisam Cardoso e Vainfas (1997, p. 375-392). A perspectiva do discurso implica considerar os elementos da situação enunciativa, o contexto da enunciação no qual o discurso é produzido. Refletir sobre o discurso significa examinar as condições que presidem a sua elaboração: as condições de produção, o público receptor, determinações do lugar e da função desses intelectuais, as implicações sociais e literárias que possibilitam a sua construção. Dessa forma é importante conhecer como se dá a circulação das idéias do texto/discurso na sociedade, de que maneira as ideias do discurso modificam ou não a ordem estabelecida, isto é, relacionar o discurso às práticas sociais. Importante contribuição também é dada por Foucault (1986, p. 90) ao afirmar que para analisar os discursos, é preciso dar conta das relações históricas de práticas muito concretas, que estão no discurso, pois tudo está relacionado ao poder. Na utilização desses critérios metodológicos não se objetiva rigor quantitativo que mostre frequências de palavras para uma avaliação mais demonstrável, portanto, segura do discurso. Palavras importantes podem aparecer pouco, e, mesmo assim, serem de fundamental importância para os escritos. Por estas análises tende-se a perceber que o olhar desses letrados sobre a mulher revela um maior investimento em representações de afeto e de abnegação, do que de capacidade intelectual, na medida em que são inseridas no espaço escolar segundo a conveniência de um padrão cultural civilizatório. Sendo assim, a facilidade de manipular a mulher tornaria essas professoras capazes de coadunar características dóceis e fraternais do espaço privado com a competitividade e agressividade do espaço público, promovendo, desta maneira, uma dupla inserção, que inclui no seio da família a pretendida civilização. Todavia, independente das possíveis manipulações, como verificou Lúcia Müller (1996), o esforço dessas mulheres em se fazer presente no espaço público e contribuir a seu modo para o processo civilizatório permitiu abrir um caminho de fuga ao modelo imposto pelo preconceito e pela submissão, possibilitando o surgimento de mecanismos próprios de autonomia e de independência. A despeito de todo o controle, o fato é que as mulheres agarravam-se ao magistério com uma das únicas arenas onde poderiam exercer algum poder, mesmo ao preço de estarem 14 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades reforçando os estereótipos acerca da esfera feminina. Embora muitas mulheres estivessem tendo ganhado importantes em educação e emprego, a maioria ainda estava excluída de outras áreas ocupacionais, que não àquelas associadas ao ato de cuidar, como extensão da casa. O ato de sair de casa para estudar e depois trabalhar nas escolas primárias representava muito mais do que receber um salário: representava uma libertação do jugo masculino, mesmo que metaforicamente: representava perceberem-se como capazes de burlar, de alguma maneira, a posição histórica a que estavam submetidas. Não eram apenas submissas, haviam conquistado certo grau de autonomia, dentro de um universo antes predominantemente masculino, representado pelo espaço público da escola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO. Ângela. Crítica e contestação: o movimento reformista da geração de 1870. In. Revista Brasileira de Ciências Sociais. V. 15. N. 44, out. 2000, p. 35-54. BARBOSA. Rui. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1947 CARDOSO, Ciro. VAINFAS. Ronaldo. “História e análise de texto”. IN. Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus. 1997. pp.375-392. DAMÁSIO. Silvia. Retrato social do Rio de Janeiro na virada do século. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1993 FISCHER. Rosa Maria. Foucault e a análise do discurso em educação. Cadernos de Pesquisa. N. 115. p. 197-223. Novembro. 2002. LOURO. Guacira Lopes. “Gênero e magistério: identidade, historia e representação”. In: CATANI. Denise Bárbara. Docência, memória e gênero: estudos sobre formação. São Paulo: Escrituras, 1997. LOURO. Guacira Lopes. “Mulheres na sala de aula”. In. PRIORI. Mary Del. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Unesp. 2000. MULLER. Lúcia. As construtoras da nação: professoras primárias na primeira república. Niterói: Intertexto. 1990. NÓVOA. Antônio. Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1992. OLIVEIRA, Lucia Lippi. A questão nacional na Primeira República. São Paulo: Brasiliense,1990. RABELO, Amanda Oliveira. “Mulher e docência: historicizando a feminilização do magistério”. Revista do Mestrado de História, v. 9, n. 9, 2007. VERÍSSIMO. José. A educação nacional. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906. 15 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A República vira notícia: a Proclamação e seus ecos na imprensa brasileira (1889) Camila de Freitas Silva* Resumo: O objetivo do presente trabalho é analisar as notícias relativas ao 15 de novembro em diversos periódicos editados na cidade do Rio de Janeiro e em São Paulo. Como é de nosso interesse analisar o discurso imediato sobre o evento, focalizamos as notícias e artigos veiculados nos quinze dias subsequentes à Proclamação. Confirmando-se o apoio da maioria dos periódicos selecionados ao novo governo, partimos da premissa de que este posicionamento em relação ao novo regime, na imprensa, será uma das vias de sua legitimação, ainda que tenha resultado de um golpe militar. Palavras-Chaves: Imprensa; Proclamação da República; Legitimação. Abstract: The aim of this study is to analyze the news on the “15th November” in several newspapers published in the cities of Rio de Janeiro and Sao Paulo. As our interest is to analyze the immediate speech about the event, we focus on news and articles published within fifteen days after the Proclamation of the Republic. We perceive the support of most newspapers to the new regime, and we can assume that this support was a way of legitimizing it, even though it was the result of a military coup. Key-words: Press; Proclamation of Republic in Brazil; Legitimation. A Proclamação da República A Proclamação da República, no dia 15 de novembro de 1889, levou ao fim a monarquia que desde a independência se mantinha no Brasil. Para os republicanos, um passo inevitável. Para os monarquistas, a triste inserção do Brasil no quadro latino americano (CASTRO, 2000). Já da participação popular no episódio temos a visão tão difundida a partir da frase de Aristides Lobo, jornalista republicano, sobre o povo “bestializado” e, mais recentemente, a partir do livro de José Murilo de Carvalho, de um povo “bilontra”, que não se manifestou por vontade própria, por saber que também estaria vetado de participação no plano político-institucional (CARVALHO, 1987). Maria Tereza Chaves de Mello, em seu livro A República Consentida, critica tal posição. Segundo a autora, A construção historiográfica fez do bestializado não um surpreendido pelo fato, como quis dizer o autor da frase. Aristides referia-se a um novum, a um mínimo temporal, único e irreversível, a experiência de surpresa. O que está embutido na interpretação canônica é a não-participação popular no evento como sinal do desapreço do povo brasileiro pela República e, por derivação, sua vinculação à Monarquia (...) - a proclamação da República é explicada como um ato de força (MELLO, 2007, p.9). No dia 15 de novembro, no atual Campo de Santana, proclamou-se a República e caiu o último gabinete do império diante de um grande número de militares que se encontravam a * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista Capes. 16 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades postos, esperando ordens, dispostos a travar uma batalha, se necessário. Essa batalha, porém, nunca ocorreu. O mais perto que se chegou de um conflito foi uma troca de tiros entre um oficial e o Barão do Ladario que, em vão, tentou disparar sua arma. Para o seu azar, ela não funcionou e ele acabou ferido por três tiros. Ainda assim, nada grave. O fim de um regime político não ocorre de uma hora para outra, ao acaso. O Império já vinha perdendo prestígio há algum tempo. As constantes eleições fraudulentas; as reações dos militares após a guerra do Paraguai, que queriam mais direitos e maior reconhecimento; a abolição da escravidão (1888) que, se por um lado agradou a muitos, por outro desagradou a boa parte dos grandes fazendeiros do Vale do Paraíba fluminense; e a resistência do governo em implantar reformas foram questões que contribuíram para esse desfecho. Ainda assim, a República não era inevitável como afirma certa historiografia “tradicional”. Ao contrário, fo i um golpe audacioso, envolvendo certo risco político. Em seu livro A República Consentida, Maria Tereza Chaves de Mello afirma que, para além das questões políticas e econômicas, outro fator teve grande importância no processo de desestabilização da monarquia (MELLO, 2007). Segundo a autora, nos últimos anos de governo monárquico um movimento intelectual, impulsionado por uma nova cultura democrática e científica, passou a desqualificá-lo, atacando suas bases de sustentação, levantando polêmicas, provocando a “deslegitimação simbólica e teórica do regime” (MELLO, 2007, p.13). A imprensa, lugar de publicização por excelência, era então a arena de debate da maior parte dos intelectuais. Outro espaço de ampla divulgação para a autora foi a rua, que “alimentou” certos temas, o que retirou “a discussão de um círculo restrito e fechado e jogou-a em praça pública”, tornando possível a percepção por parte da população da crise monárquica. Tal fato, para Mello, auxiliou no “desafeiçoamento” do regime. Sua hipótese é a de que o povo teria “introjetado uma ideia de crise e decadência”. Antes mesmo de cair, a monarquia já havia ruído, teoricamente, o que facilitou a penetração das ideias republicanas (MELLO, 2007, p.13) Longe de um povo afastado da discussão política e que só reagia a pressões e ações contra seus interesses, Mello apresenta a ideia de uma discussão pública política que envolvia a população. A surpresa da população no dia 15 de novembro de 1889 não seria, portanto, sinal de apatia ou desapreço, apenas o choque diante de uma mudança inesperada; mudança esta que se deu de forma rápida e “sem sangue”. Ainda assim, era incerto o resultado do golpe e mais ainda o plano a seguir em caso de vitória. Para Castro, “o elemento surpresa e a falta de reação do governo levaram ao sucesso 17 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades do golpe e desencorajaram possíveis reações contrárias” (CASTRO, 2000, p.76), o que não significa dizer que não houve reação contra a proclamação. Há notícias de revoltas na Bahia, no Mato Grosso, no Desterro, atual Florianópolis, entre outras localidades do país. Os monarquistas, divididos em restauradores - que queriam a volta do regime monárquico - e adesistas – os que, apesar de monarquistas, aceitaram a instauração da República - formavam um grupo que esteve sempre envolvido nas disputas políticas nos primeiros anos republicanos, dificultando a consolidação do novo regime. Confiavam na possibilidade de rearticulação da sua força política diante das eleições para a Constituinte e queriam, por meio de um plebiscito, impedir que fosse referendada a ação dos militares ao instaurarem a República, torcendo para que novas crises levassem ao fim do regime e à restauração do anterior. Para além das questões concernentes à República, existiam ainda aquelas sobre a própria restauração. Era preciso lidar com o problema da sucessão monárquica, com a falta de reação do antigo governo, principalmente de Pedro II, diante da proclamação da República e, ainda, com o fracasso do último gabinete monárquico (OLIVEIRA, 1989, p.175). No dia posterior à Proclamação, 16 de novembro de 1889, as notícias sobre queda do gabinete do Visconde de Ouro Preto foram o assunto principal de todos os jornais da antiga Corte. O Brasil tornara-se uma República, e nossa questão encontra-se dentro desse universo de notícias. No momento que aqui tratamos, os jornais constituíram fonte de informação para a população e as notícias repercutiam entre as diversas folhas. Tendo ocorrido no Rio de Janeiro, a Proclamação da República foi noticiada nos jornais dos outros estados, primeiro por telegrama e depois, também, a partir de correspondentes e “amigos” que residiam na antiga Corte. Com os olhos voltados para o Rio, os periódicos buscavam novas informações a fim de repassá-las aos seus leitores. Isso não os impedia, porém, de elaborar seu próprio julgamento sobre os acontecimentos e de se reportarem a jornais cujas ideias fossem semelhantes. Para além de fonte de informação, os jornais foram também um meio de manifestação dos habitantes da cidade, que enviaram suas opiniões sobre a Proclamação às seções “A Pedidos”, que as reproduziam. Ainda depois de proclamada, a República era, no entanto, uma meta a se realizar. Analisando as comemorações em torno do aniversário da Proclamação, Carla Siqueira aponta a importância de “manter viva a ideia de República, como slogan organizador da sociedade” (SIQUEIRA, 1995, p.13). Apoiando-se nas reflexões sobre a função da cidade letrada apontadas por Angel Rama, a autora reafirma o papel da imprensa na construção de novo 18 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades imaginário social. Segundo Siqueira, “a imprensa sempre foi marcada por este espírito que, no geral, não difere muito do próprio caráter da educação, da Igreja, do refinamento intelectual, ou seja, o de criar adeptos para bandeiras e princípios” (SIQUEIRA, 1995, p.14). Imbuída de forma consciente dessa “potencialidade pedagógica”, a imprensa exercia a função de formadora da opinião pública, mediadora entre os acontecimentos e os leitores, participando ativamente da construção do real (SIQUEIRA, 1995, p.5). A partir destas reflexões podemos verificar a importância dos jornais e, mais que isto, das representações enunciadas em suas edições. Era um momento em que, como aponta Siqueira, “prevalece a ideia de que o jornalismo, assim como as demais atividades intelectuais, teria uma missão iluminadora, no sentido de promover o esclarecimento da sociedade” (SIQUEIRA, 1995, p.1). Nesse sentido, a imprensa teria a patriótica missão de guiar a opinião pública. A capacidade de apontar a verdade dos fatos estaria relacionada não a um posicionamento neutro, mas justamente a uma tomada de partido, no sentido de uma atitude patriótica, cívica (SIQUEIRA, 1995, p.2-3). Sendo assim, o discurso elaborado pela imprensa, que veiculou uma imagem favorável à Proclamação da República, foi uma das vias para legitimação do novo regime. A República vira notícia Rio de Janeiro Na cidade do Rio de Janeiro, epicentro do acontecimento, selecionamos três jornais Jornal do Commercio, Gazeta de Notícias e O Paiz - os quais, além da sua importância na imprensa período serão, também fonte de informações para os demais estados que, pela distancia da nova capital, buscavam neles notícias que esclarecessem certos aspectos do ocorrido. Analisando os editoriais de tais jornais podemos verificar que tanto a Gazeta de Noticias quanto O Paiz apresentaram um discurso favorável à República, exaltando o modo como que se deu a proclamação e seus atos oficiais. Já o Jornal do Commercio se pretendeu neutro, não veiculando um posicionamento explícito. Aceitou, porém, como irreversível a instauração do novo regime. O Jornal do Comércio, foi fundado em 1˚ de outubro de 1827, por Pierre Plancher sendo o mais antigo jornal em circulação na cidade (SODRÉ, 1999, p.126). Para Sodré, o jornal foi a expressão do conservadorismo que dominou a imprensa na segunda metade do 19 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades século XIX (SODRÉ, 1999, p.218), sendo um dos poucos jornais que sobreviveria ao crescimento efêmero de periódicos após a independência do Brasil. Segundo Marialva Barbosa, o Jornal do Comércio não tinha aspiração de ser popular, fazendo questão de acentuar o seu trânsito entre a classe dominante – orgulhava-se de ser ‘o jornal das classes conservadoras, lido pelos políticos, pelos homens de negócio, pelos funcionários graduados’ – o Jornal do Commercio era o periódico mais caro do Rio” (BARBOSA, 1996, p. 52-53). Com um perfil extremamente informativo, apresentou a instauração do regime republicano, porém parecia evitar emitir opinião sobre os fatos. A grande preocupação aparente do jornal é com a manutenção da ordem e da tranquilidade pública. Nos trechos a seguir, podemos ter uma noção sobre como eram estruturadas as notícias : O marechal, penetrando então no quartel com o seu estado maior, foi (sic) recebido com aclamações pela força ali postada e pouco depois, acompanhado por este regressou ao Campo, sendo de novo muito vitoriado. Foi em seguida o marechal Deodoro à sala onde se achavam os ministros demissionários e expôs longamente os motivos de queixa que o exército tinha do ministério que em sua opinião eram fundadas. Terminando a sua exposição, o marechal Deodoro deu ordem de prisão aos Srs. Visconde de Ouro Preto e Candido de Oliveira. Instantes depois a artilharia dava uma salva de 21 tiros (Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16/11/1889 p.1). Sendo um jornal de apoio à monarquia, não apresentava no entanto qualquer notícia que criticasse diretamente a República, nem mesmo que criticasse a forma como o regime foi instaurado. Vale ressaltar um trecho em que o periódico justifica sua posição diante do acontecimento: Não nos é possível neste momento ser historiador, apreciando os fatos em suas causas próximas ou remotas e emitindo juízo sobre casos que, para justo e imparcial julgamento, exigem a calma da reflexão. Vamos expor simplesmente os acontecimentos de ontem... (Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 16/11/1889 p.1). Ou seja, para que fizessem juízo do evento era preciso “a calma da reflexão”, o que não cabia ao momento, uma vez que ainda não se conheciam plenamente seus resultados não havia uma dimensão completa das causas e consequências das ações recentes. Já a Gazeta de Notícias, jornal fundado por Ferreira de Araújo, tinha um perfil liberal e popular. Max Leclerc, correspondente de um jornal parisiense no Brasil, comparando a Gazeta de Notícias com o Jornal do Comércio afirmara que: A Gazeta de Notícias em muito diferente; sua impassibilidade não consiste em registrar passivamente os acontecimentos; tem como redator-chefe o dr. Ferreira de Araújo e nisso está sua força. O dr. Araújo é um excelente jornalista; julga homens e coisas com condescendente ironia; escreve com precisão, elegância e sobriedade 20 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades raras. (...) Nas questões que debate, sua opinião é em geral decisiva. (SODRÉ, 1999, p.289). Segundo Marialva Barbosa, a Gazeta de Notícias iniciou a forma de “jornal barato, popular, fácil de fazer” (BARBOSA, 1996, p.61), empregando escritores queridos do período. Proclamava-se um jornal independente, não sendo filiado a grupos ou facções políticas (BARBOSA, 1999, p.63). A respeito da Proclamação, mostrou-se claramente a favor. Em seus artigos, louvava as ações dos republicanos, os militares e a mudança de regime. Em seu primeiro número sobre o evento preocupou-se especialmente em registrar que, com a proclamação, a ligação entre o exército e a monarquia já não existia mais. No dia 16 de novembro, noticiava a Gazeta: Toda força militar achou-se ontem unida em um pensamento único: o ministério foi deposto por intimação do Sr. Marechal Deodoro da Fonseca, e os gritos de viva à república ecoaram durante o dia na cidade inteira. Está quebrada toda e qualquer ligação entre o exército e a monarquia, pelo fato da unanimidade com que aquele se manifestou, e porque em questão d’esta ordem não se volta, depois de ter chegado a certo ponto (Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro 16/11/1889 p.1). Sobre a população, a Gazeta publicou: “o espanto, a surpresa e a ansiedade – eis o que se notava em todos os olhares, em todas as fisionomias”. (Gazeta de Notícias, 16 de novembro de 1889, p.1) Divergindo do Jornal do Comércio, para a Gazeta, ainda que os fatos não estivessem totalmente esclarecidos, era importante não abrir mão de publicar sua avaliação sobre o acontecimento de 15 de novembro. No dia 16 de novembro de 1889, quando foram publicadas as primeiras notícias sobre a proclamação nos jornais matutinos, saiu na Gazeta: A hora em que traçamos estas linhas, correm ainda boatos desencontrados sobre [ilegível], quer possamos ainda hoje dar aos nossos leitores notícias decisivas, quer fique ainda alguma coisa para se decidir, nós é que não nos julgamos com o direito de calar o nosso modo de ver as coisas (Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 16/11/1889 p.1). Os primeiros dias do Brasil republicano e as primeiras ações do novo governo foram saudados pelo periódico como momentos de grande alegria e de melhoria política. O novo ministério foi visto como uma espécie de salvador para o país que se encontrava com sérios problemas, diante do modo que o antigo regime tratava as questões nacionais. De acordo com os articulistas da Gazeta, A benéfica ditadura que assumiu a gestão dos negócios públicos, em tão poucos dias de brilhante exercício, tem-se já recomendado a benemerência pública (...) e tal é a confiança que inspiram os primeiros atos ditatoriais, que o espírito público prefere-a às incertezas de resultado de uma consulta eleitoral, tantas vezes estéril, quando não 21 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades nefasta, como o tem demonstrado a experiência no regime deposto (Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, 23/11/1889 p.1). Podemos observar que o jornal inferiu que a nova ordem, sendo uma ditadura, era preferível e haveria de alcançar mais resultados do que a espera, tantas vezes infrutífera, por uma ação da parte do regime monárquico. – as eleições no regime monárquico. Outro grande “amigo” do governo foi o jornal O Paiz, que começou a circular no dia 1˚ de outubro de 1884 e tinha como diretor e redator chefe Quintino Bocaiúva. O proprietário era João José dos Reis Júnior, o Conde São Salvador de Matosinhos. Em suas páginas, as notícias relativas à proclamação e aos dias subsequentes, exaltaram os militares, a República e também o povo, como participante do acontecimento. Fica clara a simpatia do periódico pela República, apontando para o caráter pacífico e ordeiro do povo carioca durante a derrubada do regime monárquico. Comentando o agrupamento das tropas no Campo da Aclamação, durante as horas que se seguiram à queda do gabinete Ouro Preto, o jornal publica: Não podia ser mais imponente o aspecto que apresentavam as forças de terra e mar, formadas no campo da Aclamação, desde o amanhecer, em frente ao quartel das primeiras, onde, situada a secretaria de guerra, conservava-se os prisioneiros do povo e dos militares o gabinete decaído. (...) Ali permanecendo durante horas, senhora da praça, a força levantava sucessivas vivas à liberdade, à nação brasileira, ao exército e armada, à republica salvadora (O Paiz, Rio de Janeiro, 16/11/1889 p.1). O regime havia mudado, as antigas instituições haviam ruído. Restava então uma única coisa a fazer: Desfizemos e vamos agora refazer. Destruir para construir é o lema moderno. Desapareceu a monarquia e hoje a forma do governo brasileiro é o da República Americana: o governo do povo, pelo povo e para o povo (O Paiz, Rio de Janeiro, 17/11/1889 p.1). Caíra o antigo regime e, para O Paiz, era a hora de começar um novo e reconstruir a nação nos novos moldes. São Paulo Em São Paulo selecionamos também dois importantes periódicos do período: Correio Paulistano e A Província de São Paulo – que, após a Proclamação, passou a chamar-se O Estado de São Paulo. Ambos mostraram-se favoráveis à instauração de um governo republicano, “geral aspiração de todo paulista, de todo brasileiro” (A Província de São Paulo, 17 de novembro de 1889). Para além de saudar o novo governo, uma questão particular 22 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades ocupou o espaço dos jornais paulistanos: o federalismo, encarado como principal ponto na instauração da República. A maior independência dos estados era uma questão cara aos paulistas que se consideravam mal representados na Corte, inversamente à sua importância para a economia do país. A Província de São Paulo tinha por redator-chefe Rangel Pestana – um dos membros do governo provisório do estado de São Paulo e que, por esse motivo, logo passaria a representante oficial do novo governo. Começou a circular em 1875, em período de grande tribulação para o país, depois do fim da Guerra do Paraguai, do lançamento do Manifesto Republicano e da formação do núcleo do Partido Republicano, em São Paulo, e da promulgação da Lei do Ventre Livre, que colocava a abolição da escravidão em um horizonte mais próximo. A intenção por trás de sua fundação era a de ser um jornal que “não sendo republicano extremado, viesse a discutir com serenidade os absorventes problemas do momento” (SODRÉ, 1999, p. 225). Ao longo dos dias que seguiram à Proclamação o jornal saudou longamente o regime republicano e a nova ordem que estava para se instaurar e exaltou o povo paulista, por sua conduta diante dos fatos. Logo após a chegada da notícia da mudança de governo a Câmara de São Paulo manifestou prontamente sua adesão e escolheu os membros José de Moraes Barros, Francisco Rangel Pestana e Joaquim de Souza Mursa para o governo do estado, diferentemente dos outros estados que esperaram a designação do governo provisório. O fato foi exaltado pelo jornal, que evidenciou a “alta capacidade dos paulistas para o regime republicano” (A Província de São Paulo, 20 de novembro de 1889, p. 1). Ainda sobre a escolha dos membros do governo provisório de São Paulo: Aclamados pelo povo, surgem na direção da sociedade paulista com poderes de organizadores da nova ordem de coisas três homens que se completam no trabalho político e administrativo e que desde logo levantaram em torno de suas pessoas as simpatias gerais, pouco depois, os aplausos, e afinal, as mais significativas provas de apoio (A Provincia de São Paulo, 20 de novembro de 1889, p.1). Se primeiramente é apontado que foram aclamados pelo povo, ao longo do artigo é possível inferir que esta “aclamação” aconteceu por etapas – primeiro o governo conquistou a simpatia do povo, depois aplausos e por fim provas de apoio - e não imediatamente. Outro tema abordado nos editoriais de A Província de São Paulo foi a ditadura militar. Em artigo do dia 22 de novembro de 1889, o jornal afirmara que não havia uma ditadura militar, uma vez que, “De oito membros [do governo provisório], apenas três são militares”. O jornal tranquilizava seus leitores quanto a essa hipótese, já que os integrantes militares do ministério estavam à frente de pastas relacionadas com as Forças Armadas e se apresentavam 23 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades como republicanos: “Tranquilizam-se os tímidos, descansam os receosos: Não há ditadura militar” (A Província de S. Paulo, 22 de novembro de 1889, p.1). No dia 28 de novembro de 1889, o editorial d’A Provincia de São Paulo tratou da questão da federação. O jornal respondia diretamente a editorial do Correio Paulistano, do dia anterior, no qual se questionava a manutenção do apoio ao governo provisório de São Paulo, uma vez que haviam corrido rumores de que seus integrantes, por não terem sido indicados pelo Governo do Provisório da República, seriam substituídos por nova junta governativa (Correio Paulistano, 27 de Novembro de 1889, p.1). Segundo A Provincia, no entanto, “nada (...) autoriza a desconfiar da soleníssima promessa que desceu do governo central para todos os ângulos do país” (A Provincia de São Paulo, 28 de novembro de 1889, p.1). Mais uma vez tranquilizando o Correio Paulistano e seus leitores, o jornal lembrava a proclamação recente e que a República encontrava-se ainda em fase de estabilização. O Correio Paulistano aparecera em 1854 e mantinha uma posição liberal. Segundo Sodré, houve entretanto uma grande flutuação na orientação política do jornal. O Correio Paulistano defendera os interesses do Partido Republicano Paulista em 1872 e, posteriormente, em 1874, tendo sido comprado por Leoncio de Carvalho, adotou uma linha “reformista”. Anos mais tarde, em 1887, mudaria novamente de posição no espectro político da monarquia, passando a defender os conservadores. A última mudança de orientação foi explicada também por Sodré: Em 1882 assumira a direção do Correio Paulistano Antonio Prado, que levaria o jornal, em 1887, a fazer-se abolicionista, para, em junho de 1889, com os liberais no poder, exercer severa oposição, mas na linha monarquista, e, com os acontecimentos de 15 de novembro na Corte, ser o primeiro órgão a considerar irreversível a República (SODRÉ, 1999, p. 225). Sendo assim, o Correio saudou o governo provisório e a instauração do novo regime. Fê-lo, porém, inicialmente com mais reservas que A Provincia de S. Paulo. Em editorial do dia 18 de novembro de 1889, assinado por Antonio Prado, o jornal expõe sua atitude frente aos acontecimentos e informa sua adesão ao novo regime. Aponta também a necessidade de aceitar como fato a Proclamação, devido à impossibilidade de uma restauração monárquica e também diante da aceitação popular do acontecimento (Correio Paulistano, 18 de novembro de 1889, p.1). Já no editorial do dia 21 de novembro, tratando da “substituição” de algumas tradições monárquicas, o mesmo jornal ponderava que “o povo brasileiro poderá não ter saudade de alguns governos que ocuparam o poder no regime da monarquia; seu ressentimento, porém, jamais atingirá a própria monarquia constitucional”. O editorial reafirmava seu apoio às medidas do novo governo que evitam posições “radicais”: 24 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Esse afã de reformar e substituir todas as tradições da monarquia, em nada incompatíveis com o novo regime, não corresponde, portanto, ao sentimento da maioria da nação. O governo provisório tem-no compreendido perfeitamente e, contrariando, talvez, bem cedo já as propensões radicais de uma exaltada minoria; tem sabido, por um complexo de medidas sábias e sagazes – atrair a simpatia popular e conquistar o franco e leal apoio das classes conservadoras. (Correio Paulistano, 21 de novembro de 1889, p.1). Ou seja, o jornal coloca-se contra as medidas mais exaltadas, pregando pela moderação e equilíbrio entre as tradições e o novo regime. O governo provisório, a seu ver, estava lidando de forma bem sucedida com esta questão, justamente por contrariar as medidas radicais. Por fim, retornaremos à questão do federalismo, já abordada pela Provincia e que também aparecerá no Correio. O federalismo era uma ideia muito cara especialmente para os paulistas, que desde a década de 1870, com a organização dos primeiros núcleos republicanos, reclamavam dá má distribuição dos cargos da Corte e da excessiva centralização. Considerando-se responsáveis pelo sustento econômico do país, levando nas costas as outras províncias decadentes, lembravam as poucas cadeiras que lhes eram destinadas na Assembleia Geral, incompatíveis com sua contribuição para o progresso do país. A esse respeito, o Correio Paulistano de 24 de novembro de 1889 inicia seu editorial com a seguinte reflexão D’ora em diante, sob o novo regime, passado esse primeiro período de organização fundamental, a marcha dos negócios de cada Estado terá geralmente, para os cidadãos que dele fizerem parte muito mais subido interesse que a política do governo nacional (...). Com a inauguração do sistema federal, toda a vida pública se concentrará nos Estados ou se localizará nas comunas. Ao governo da União não ficarão reservadas senão algumas atribuições referentes aos interesses de toda a coletividade. (Correio Paulistano, 24 de novembro de 1889, p.1). Os estados seriam mais importantes que a União, e o governo geral teria apenas algumas poucas atribuições, não interferindo no que seria de interesse estadual. Assim como a Provincia de São Paulo, o Correio Paulistano exaltou a aclamação e um governo provisório paulista que prescindiu da iniciativa do governo central. Segundo a folha “foi esse um exemplo isolado, extremamente honroso (...), em todo os vastos corpos da pátria brasileira” (Correio Paulistano, 24 de novembro de 1889, p.1). Sobre a nomeação de interventores pelo governo federal, declarou: A nomeação de governadores, pelo poder geral, para a administração dos Estados federados constitui uma verdadeira anomalia no regime político que se inicia; nem pode ser explicado, senão pela apatia dos habitantes daqueles Estados que, aceitando 25 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades a nova ordem das coisas, não souberam entretanto constituir um governo provisório que assumisse, sem demoras, as rédeas do poder (Correio Paulistano, 24 de novembro de 1889, p.1). Ou seja, não só a iniciativa paulista fora um exemplo honroso, mas era também o que deveria ter ocorrido nos outros estados. Sendo uma das bandeiras do novo governo o federalismo, deveriam os estados terem aclamado seus próprios governos, não o fazendo por “apatia” ou “inabilidade”. A leitura do editorial do Correio Paulistano nos auxilia na compreensão do editorial do dia 28 de novembro de 1889, de A Provincia de São Paulo, acima mencionado. Quando rumores se tornaram conhecidos de que o governo do Rio de Janeiro não reconheceria os membros aclamados para dirigirem o estado de São Paulo, por não terem sido por ele indicados, o Correio Paulistano pôs em dúvida a manutenção do federalismo. A intromissão do governo federal nas questões estaduais feria a autonomia destes últimos. E se isto de fato se concretizasse, desista-se, nesse caso, de contar com o concurso deste povo, ávido de liberdade, cioso de autonomia! Se o governo federal, provisório ou definitivo – se o congresso constituinte recusarem-nos [aos paulistas] as prerrogativas e os foros de – Estado de São Paulo: então outra será nossa ardente aspiração. A Pátria paulista terá a congregação de (...) forças e a dedicação de (...) esforços cívicos (Correio Paulistano, 28 de novembro de 1889, p.1). O discurso separatista é claro nesta passagem. Ou o governo federal reconheceria o governo paulista ou teria de lutar contra uma possível revolta. Essa medida extrema, todavia, não foi necessária. A República e seus ecos na imprensa Como pudemos observar, tanto na antiga corte quanto no estado de São Paulo jornais de considerável importância aceitaram, saudaram e, alguns, exaltaram a República, o governo provisório e a forma como se deu a “revolução”. Ainda que tendo algumas preocupações mais específicas, dentre os jornais analisado, notam-se posturas semelhantes frente à Proclamação. Emitindo, ou silenciando – o que significa tanto quanto – suas opiniões frente aos eventos, tais periódicos buscavam manter informados seus leitores e debateram tópicos cujo interesse julgavam ser nacional, ou, no caso paulista, estadual. De opinião majoritariamente favorável à República, ajudaram a construir uma imagem positiva do regime e dos membros do novo governo, sendo, a nosso ver, uma das vias para sua legitimação. Consideramos então que, neste momento, o discurso elaborado pela imprensa e sua busca por “guiar a opinião” foi 26 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades de extrema importância para a aceitação do regime pela população, tornando-se assim fundamental para sua conservação. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Marialva Carlos. Imprensa, poder e público: os diários do Rio de Janeiro (18801920). 1996. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio de Janeiro. CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. __________. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CASTRO, Celso. A Proclamação da República. 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História da Imprensa no Brasil. 4. ed (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 27 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Pesquisando os “Operários à tribuna”: Vereadores comunistas e trabalhadores têxteis de Magé/RJ Felipe Augusto dos Santos Ribeiro * Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a atuação dos vereadores comunistas eleitos na Câmara Municipal de Magé, estado do Rio de Janeiro, entre 1951 e 1964. Buscaremos relacionar as práticas desses legisladores com a época de efervescência comunista pós-1940, quando o PCB conseguiu, mesmo na clandestinidade, congregar um significativo contingente de operários mageenses em torno do partido, atuando em comissões de fábrica, sindicatos e na política institucional. Ao promoverem um elevado nível de organização e mobilização dos trabalhadores do município, os comunistas conseguiram eleger, por meio de outras legendas, um total de onze vereadores nesse período, grande parte deles operários têxteis. Portanto, acreditamos que, por meio desse estudo de caso, ancorado a outras pesquisas semelhantes, possamos ponderar, ou mesmo refutar, as interpretações que desqualificam a classe trabalhadora pré-1964, sobretudo aquelas influenciadas pela noção de “Sindicalismo Populista”, ainda bastante em voga nas Ciências Sociais. Palavras-chaves: Classe trabalhadora; Partido Comunista do Brasil; Sindicalismo; História Política; Município de Magé. Abstract: This paper aims to analyze the performance of communist councilors that were elected for the Chamber of Magé, in State of Rio de Janeiro, between 1951 and 1964. We relate the practices of these legislators with the context of post-1940, when the Partido Comunista do Brasil, although in hiding, managed to bring together a significant number of workers in Magé around the party, in factory committees, unions and other politic institutions. By promoting a high level of organization and mobilization of workers in the city, the communists were able to elect a total of eleven councilors, through other political parties, during this period, many of them textile workers. Therefore, we believe that through this case study, anchored to other surveys on the same subject, we may reconsider, or even refute, social science interpretations which disqualify the working class role pre-1964, especially those influenced by the notion of "populist unionism". Keywords: Working class; Communist Party of Brazil; Unionism; Political History; City of Magé. O presente artigo tem por objetivo apresentar o projeto que deu origem à dissertação de mestrado intitulada “Operários à tribuna: vereadores comunistas e trabalhadores têxteis de Magé (1951-1964)”, defendida em 2009 e premiada com o terceiro lugar no Concurso de Monografias do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) – edição 2011. * Doutorando em História, Política e Bens Culturais pelo CPDOC/FGV e mestre em História Social pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). E-mail: [email protected]. 28 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A referida dissertação buscou reconstituir e analisar a atuação dos vereadores comunistas eleitos na Câmara Municipal de Magé, estado do Rio de Janeiro, mais precisamente no período compreendido entre 1951 e 1964. A escolha desse eixo cronológico se explica na medida em que está inserido em uma época de muitas conquistas para a classe trabalhadora mageense. Na década de 1940, a presença do médico sanitarista Irun Sant’Anna em Magé, em virtude da epidemia de malária que assolava o município, contribuiu sobremaneira para a formação política dos operários têxteis daquela região. Filiado ao Partido Comunista do Brasil (PCB) desde 1935, Dr. Irun Sant’Anna buscou aproximar o partido ao movimento operário local, dando assistência política aos militantes. Por ocasião de sua chegada, Magé contava com duas entidades sindicais, o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e Tecelagem de Inhomirim, com sede em Pau Grande, fundado em 1935; e o Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Fiação e Tecelagem de Santo Aleixo e Magé, com sede em Santo Aleixo, fundado em 1941. Inseridos inicialmente em um contexto de forte enquadramento sindical promovido pelo Estado Novo, 2 essas entidades tornaram-se paulatinamente em importantes instrumentos de reivindicação e conquista do operariado mageense. Atuando paralelamente ao movimento sindical, o PCB de Magé conseguiu congregar um significativo contingente de trabalhadores têxteis, chegando inclusive a eleger representantes operários na Câmara Municipal de Magé em 1947, através da legenda do PTB, devido à cassação do partido em maio do mesmo ano. No ano seguinte, porém, esses vereadores tiveram seus mandatos interrompidos. Mesmo na ilegalidade, o partido manteve sua atuação em Magé, conseguindo eleger, nas décadas subsequentes até 1962, vereadores comunistas em todos os pleitos municipais, a maioria deles operários, utilizando a legenda de outros partidos. 3 2 Fundado num período de intenso estreitamento dos laços entre o Estado e o movimento operário, via representação sindical, o Sindicato de Santo Aleixo logo se enquadrou à doutrina do Estado Novo, requisito, aliás, básico para o reconhecimento e autorização de funcionamento da entidade, materializados através da Carta Sindical. Mas ressaltamos que esse enquadramento promovido pelo governo brasileiro não buscava um mero controle do operariado, como também sua adesão e mobilização em favor de sua doutrina, difundida a partir de um discurso político voltado exclusivamente para os trabalhadores. Cf. GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas (FGV), 2005. 3 ed. 3 Em 1947, foram eleitos pelo PTB o médico Irun Sant’Anna, o comerciante e ex-operário têxtil José Muniz de Melo (licenciado durante o mandato), os tecelões Feliciano Costa e Agenor dos Santos, e o ex-operário da Fábrica de Pólvora Argemiro da Cruz Araújo (suplente empossado durante o mandato). Em 1950, elegeram-se pelo PTN o eletricitário José Aquino de Santana, o tecelão Petronilho Alves (diplomado e empossado somente no final do mandato) e a tecelã Ilza Gouvea (suplente empossada no início do mandato). Em 1954, foi eleito pelo PSB o líder camponês e ex-operário têxtil Manoel Ferreira de Lima. Em 1958 e 1962, foram eleitos e reeleitos pelo PSB os operários Astério dos Santos e Darcy Câmara. 29 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Portanto, a questão central da dissertação foi compreender a relação entre os vereadores comunistas e o operariado têxtil de Magé, na medida em que ambos se constituíram como atores políticos importantes no município, principalmente a partir da década de 1940, quando começaram a se estabelecer conexões entre as entidades sindicais e a política institucional, na Câmara de Vereadores, visando tanto a garantia, quanto a ampliação de conquistas sociais, por meio da eleição de representantes comunistas no parlamento mageense. Para tal empreendimento, analisamos as atuações dos vereadores comunistas em Magé e suas relações com o movimento operário local, basicamente sob inspiração dos trabalhos do sociólogo francês Pierre Bourdieu.4 Ao abordar a relação de forças na luta política, o referido autor formulou a noção de “campo político”, definido por ele como o lugar onde há uma concorrência pelo poder, travada por intermédio do monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade dos profanos (os cidadãos comuns), ou seja, o que conhecemos basicamente como política institucional, baseada na representação. Para melhor entender essa concorrência pelo poder, Bourdieu trabalhou com o conceito de “capital político”, que seria a força das idéias atuantes nesse campo. Nesse sentido, ele salientou que a força das idéias propostas no campo político mede-se, sobretudo, pela capacidade de mobilização que elas encerram e pela força do grupo que as reconhece, onde o papel do homem político, do porta-voz, do agente mobilizador do grupo constitui-se como um fator importante. (...) O homem político deve a sua autoridade específica no campo político, (...) à força de mobilização que ele detém quer a título pessoal, quer por delegação, como mandatário de uma organização (partido, sindicato) detentora de um capital político acumulado no decurso das lutas passadas(...).5 (grifo nosso). O autor ainda recomendou que, para compreender completamente os discursos políticos que são oferecidos no campo político, é preciso analisar todo o seu processo de produção ideológica desde a “marcação”, ou melhor, partindo de um momento específico fundamental que desencadeou todo o processo. Desse modo, entendemos o ambiente político em Magé nas décadas de 1940, 50 e 60 como um “campo político” bastante interessante, sobretudo na medida em que o movimento operário organizado, via sindicatos, começava a se estabelecer, nesse período, como um importante instrumento de reivindicação e conquista para a classe trabalhadora mageense. 4 Cf. BOURDIEU, Pierre. A representação política: elementos para uma teoria do campo político. In: ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. 2 ed. 5 Ibid. p.190. 30 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Observamos que a partir da década de 40 os operários têxteis passaram a constituir um eleitorado bastante significativo no município, sendo disputado por diversas forças políticas, no afã de conquistar sua adesão. Neste contexto, verificamos que a aproximação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) junto ao operariado mageense tornou-se bastante intensa e profícua. Também nesse período, intensificava-se a atuação do PCB em Magé, com forte penetração nas regiões industriais de Santo Aleixo e Pau Grande. Ao eleger quatro vereadores na Câmara Municipal em 1947, sendo dois deles trabalhadores têxteis e um ex-tecelão, o PCB fez com que a eleição de comunistas em Magé se tornasse uma constante em todos os pleitos municipais até 1962. Resolvemos também trabalhar com o conceito de “processo de acumulação política”, partindo de uma expressão utilizada por István Jancsó 6 e depurada por Denis Antônio de Mendonça Bernardes. 7 Ao analisar o contexto de Crise do Antigo Regime na América portuguesa, no século XVIII, Jancsó apontou o surgimento de ações revoltosas organizadas contra o Trono visando a revolução, definidas por ele como “sedições”. Partindo desse conceito, o autor analisou os movimentos conhecidos como “Inconfidência Mineira” e “Conjuração Baiana”, ocorridos em 1789 e 1798, respectivamente. Aprofundando-se, principalmente, no estudo dos principais personagens e ideias que permeavam aqueles movimentos, István Jancsó concluiu que as ações sediciosas em Minas Gerais e na Bahia marcaram o início de um processo de acumulação de experiência política que originou a construção do Estado nacional brasileiro.8 Na realidade, o autor utilizou apenas uma vez em seu trabalho a expressão “processo de acumulação política”, não explicando-a. Entretanto, Denis Bernardes, baseando-se no próprio Jancsó, apesar de não utilizar explicitamente sua expressão, conseguiu desenvolvê-la, ao trabalhar conceitos como identidade, memória e experiência política coletiva. Analisando o movimento conhecido como “Insurreição Pernambucana”, ocorrido em 1817, Bernardes destacou elementos essenciais na constituição das identidades coletivas que balizaram o recorte político por ele pesquisado em torno de Pernambuco: a territorialidade, a 6 Cf. JANCSÓ, István. A Sedução da Liberdade. In: SOUZA, Laura de Mello e (org.). História da Vida Privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 1 v. pp.387-472. 7 Cf. BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. Pernambuco e o Império (1822-1824): sem constituição soberana não há união. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo: FAPESP, 2003. pp.219-249. 8 JANCSÓ, op.cit., pp.435-436. 31 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades memória e a ação política. Partindo desse esquema, o autor afirmou que a capitania de Pernambuco “vincou desde cedo uma identidade espacialmente referenciada, que o processo histórico reforçaria como memória e experiência política (...), reivindicando e afirmando uma diferenciação”.9 Para ele, a referida capitania teria na ocupação holandesa (1630-1654) e na saga da restauração pernambucana o ponto forte da gradativa cristalização de sua identidade. Apesar da inspiração suscitada em uma bibliografia que estuda um espaço-tempo totalmente distinto do proposto neste trabalho, consideramos que o conceito de processo de acumulação política tornou-se bastante viável para analisarmos a atuação dos vereadores do PCB em Magé e sua liderança. Ressaltamos que o foco de nossa pesquisa foi a trajetória do movimento operário mageense, sobretudo nas décadas de 1940, 50 e 60, onde identificamos a proeminência da militância do PCB, que conseguiu eleger diversos representantes na Câmara de Vereadores com significativo apoio do operariado têxtil local. Nesse sentido, a atuação dos comunistas só nos interessou devido a sua notabilidade junto aos trabalhadores mageenses. No entanto, não deixamos de apontar as demais correntes políticas que influenciaram o movimento operário no município. Assim sendo, foi possível relacionar adequadamente as proposições de Bourdieu ao conceito de processo de acumulação política proposto na dissertação, tendo em vista que eles se complementam. Nota-se que o próprio Bourdieu falou em “capital político acumulado no decurso das lutas passadas”. Por isso, analisamos de que forma os operários têxteis mageenses, vinculados ao PCB, inseriram-se no campo político e conquistaram um significativo capital político, tanto nos sindicatos, quanto na Câmara Municipal de Magé, onde a eleição de trabalhadores têxteis como vereadores tornou-se bastante simbólica. Por fim, devido a íntima relação do conceito de processo de acumulação política com as noções de memória e identidade, resolvemos também explorá-las. Dessa forma, os conceitos de memória e identidade tratados nesta pesquisa estão amparados basicamente nos trabalhos do sociólogo Michael Pollak. 10 Partindo do princípio de que a memória é seletiva e, sobretudo, um fenômeno construído social e coletivamente, Pollak buscou esquematizar tanto os tipos de memória, quanto os elementos que a constituem como tal. Em seus estudos, o autor observou a estreita 9 BERNARDES, op.cit., p.222. Cf. POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos. v. 2. n.3. pp.03-15.1989; ______. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos. v. 5, n.10. pp.200-212. 1992. 10 32 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades ligação entre a memória e a identidade, na medida em que a própria memória é considerada um elemento constituinte do sentimento de identidade. (...) A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade (...).11 Outro trabalho importante, também baseado em Michael Pollak, foi o da historiadora Dulce Pandolfi, que forneceu reflexões significativas acerca do processo de construção de identidade e da memória, sobretudo porque tem como objeto de estudo o próprio PCB. (...) Em qualquer processo de busca de identidade, a memória exerce um papel fundamental, pois além de fortalecer o sentimento de pertencimento e a continuidade temporal, uma de suas funções essenciais é manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um determinado grupo tem em comum. Em última instância, ela é que dá unidade aos membros do grupo. Daí a estreita ligação entre memória e identidade (...). Estudar a identidade de um determinado ator é estudar também a sua memória (...).12 Apresentadas nossas opções metodológicas, trataremos agora da organização do presente trabalho, que está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado “A primeira eleição municipal pós-Estado Novo”, abordamos o início do período democrático pós-1945 e a campanha da eleição municipal de 1947, justamente no momento em que a classe trabalhadora brasileira despontou como eleitor. Por isso, entendemos como fundamental a reconstituição de “lutas passadas” do operariado mageense, resgatando experiências importantes, anteriores inclusive ao eixo cronológico deste trabalho, na medida em que elas contribuíram para o desenvolvimento de novas práticas políticas, por meio de continuidades e contingências. Abordamos essas diversas influências político-partidárias no movimento operário e suas principais ideias-força, sobretudo, através da História Oral e de fontes da imprensa da época. Já no segundo capítulo, “Epidemia Comunista”, abordamos a chegada do médico sanitarista Irun Sant’Anna em Magé e seus principais desdobramentos, considerando-os como um momento bastante específico e fundamental na história dos trabalhadores locais: a organização de um grupo significativo de operários, intimamente ligado às diretrizes do PCB, que adquiriu proporções avassaladoras, articulada a partir da atuação desse médico, que era 11 Id. Memória, Esquecimento, Silêncio. op.cit., p.7. PANDOLFI, Dulce Chaves. Camaradas e Companheiros: história e memória do PCB. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 1995. p.15. 12 33 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades militante do partido, mas que chegou ao município com o propósito inicial de combater a malária. Recorrendo novamente à obra do sociólogo Pierre Bourdieu, caracterizamos esse momento específico como “marcação”, uma espécie de marco no processo da produção ideológica, a partir do qual se supõe uma preparação especial, uma aprendizagem necessária em que se adquire saberes específicos, produzidos e acumulados através de processos históricos do presente e do passado, para uma participação mais efetiva no campo político.13 Por fim, nos capítulos três e quatro, analisamos a estratégia dos comunistas em eleger vereadores, sua força de mobilização junto aos operários e a atuação política de seus representantes no município. Ao todo, foram quatro legislaturas analisadas (1951-1954, 19551958, 1959-1962 e 1963-1964), sendo as duas primeiras abordadas no capítulo três, intitulado “Partido vivo na clandestinidade”; e as seguintes no capítulo quatro, sob o título “Protagonismo dos comunistas em Magé”. A relação de forças no campo político foi entendida, inicialmente, a partir da atuação dos sindicatos no processo eleitoral no município, já que essas entidades possuíam, via de regra, o monopólio do direito de falar e de agir em nome dos tecelões. Observamos que, paralelamente, também foram sendo estabelecidas fronteiras simbólicas que distinguiam os principais grupos político-sindicais em Magé, basicamente os comunistas e o grupo dos primeiros dirigentes sindicais, bastante articulado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, desde o período do Estado Novo. Em seguida, partimos mais propriamente para a análise do processo eleitoral no município de Magé e a atuação dos vereadores comunistas na Câmara. Para tal empreendimento, analisamos tanto o resultado eleitoral, visando relacionar a quantidade de votos com o eleitorado municipal e a quantidade de operários em Magé; quanto os discursos, projetos e relações político-sindicais desses parlamentares durante seus mandatos, a partir dos anais da Câmara. Advertimos, porém, que não foi enfocada a primeira legislatura dos comunistas (19471950). Sobre esse período, utilizamos periódicos, documentos da polícia política estadual e depoimentos, pois o livro de atas referente a essa legislatura não se encontra na Câmara Municipal de Magé e não se sabe onde encontrá-lo, talvez devido ao complicado processo de cassação movido contra os vereadores comunistas no ano seguinte à eleição. 13 BOURDIEU, op.cit., p.170. 34 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Consideramos que a atuação desses vereadores comunistas despontou como um fator de liderança no município, fazendo surgir o “homem político”, fruto de um capital político acumulado no decurso de lutas passadas e tendo sua formação ideológica forjada desde a chegada do médico Irun Sant’Anna a Magé, momento específico fundamental que desencadeou todo esse processo por nós estudado. Acerca das fontes, elas foram reunidas e analisadas em sua diversidade, não apenas para realizarmos o cruzamento de dados, como também para traçar um bom panorama da trajetória operária e política mageense. Utilizamos desde documentos de Estado, tidos como clássicos para a pesquisa histórica, configurando tradicionalmente como uma espécie de “história oficial”; até periódicos, sobretudo aqueles que mantinham uma circulação semanal ou diária, contendo informações preciosas sobre o cotidiano social no período focado neste estudo. Nossas principais fontes orais foram as entrevistas realizadas pelo autor do presente trabalho, tanto por ocasião de sua monografia de graduação,14 quanto em pesquisas anteriores; depoimentos concedidos ao Grupo Centenário, por ocasião da comemoração dos cem anos de criação do distrito de Santo Aleixo, em 1992 (acervo de Ademir Calixto de Oliveira); e entrevistas concedidas às historiadoras Juçara da Silva Barbosa de Mello, Sandra Scheidegger de Azevedo e Joana Lima Figueiredo em suas pesquisas, 15 gentilmente disponibilizadas por elas. Ressaltamos que o recurso da história oral, após resultados práticos em países como o Reino Unido, Estados Unidos, México, Itália e França, tem adquirido bastante relevância no meio acadêmico, especialmente no Brasil. Por estarem estreitamente relacionados aos conceitos de memória e identidade, os trabalhos de história oral têm posto em xeque a tradição historiográfica centrada em documentos oficiais. Ao mesmo tempo, esse recurso também requer uma certa precaução metodológica, onde a crítica e o cruzamento documental 14 Cf. RIBEIRO, Felipe Augusto dos Santos. Astério dos Santos, o operário: processo de acumulação política, memória e identidade dos trabalhadores têxteis de Santo Aleixo (1941-1964). São Gonçalo: monografia de graduação em História apresentada à Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP/UERJ), 2006. 15 Cf. MELLO, Juçara da Silva Barbosa de. O compasso da vida no ritmo da fábrica: identidade e memória do cotidiano operário em Santo Aleixo. São Gonçalo: monografia de graduação em História apresentada à FFP/UERJ, 2005; ______. Identidade, memória e história em Santo Aleixo: aspectos do cotidiano operário na construção de uma cultura fabril. São Gonçalo: Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-Graduação em História Social da FFP/UERJ, 2008; AZEVEDO, Sandra Scheidegger de. A memória do movimento artístico nas manifestações contra a Ditadura Militar em Santo Aleixo, distrito de Magé-RJ, na década de 1970. Niterói: monografia de graduação em História apresentada à Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO), 2007; FIGUEIREDO, Joana Lima. Fábrica Santo Aleixo: Magé, Arte e Patrimônio da Industrialização (1847-1979). Niterói: Dissertação de Mestrado apresentada à Pós-Graduação em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF), 2008. 35 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades tornam-se fundamentais. Desse modo, a história oral constitui-se como um recurso moderno utilizado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudo referentes à experiência social de pessoas e de grupos.16 Além das entrevistas, utilizamos documentos de Estado. Entretanto, acreditamos que, assim como qualquer outro documento, eles são limitados, provocando o historiador a buscar diversas outras fontes, não apenas para realizar o cruzamento de dados, como também para traçar um melhor panorama daquilo que se pretende pesquisar. No caso das atas da Câmara Municipal de Magé, elas reúnem diversos discursos, pronunciamentos e projetos apresentados pelos vereadores comunistas naquele município. Portanto, essas atas configuraram como fonte essencial da pesquisa. Salientamos que nosso intuito foi analisar especificamente os discursos e projetos dos vereadores comunistas e o grau de relacionamento que eles mantinham com seus pares, os demais grupos políticos e os movimentos sociais, sobretudo o movimento operário. De forma complementar, também utilizamos reportagens veiculadas na imprensa brasileira, principalmente nos jornais Tribuna Popular, Imprensa Popular e O Fluminense, além de outros periódicos que publicaram, eventualmente, reportagens atinentes ao espaço-tempo proposto neste trabalho. Todos esses periódicos foram obtidos na seção de Periódicos da Biblioteca Nacional. O jornal que utilizamos com mais frequência foi o Tribuna Popular, tendo em vista que o Arquivo da Câmara Municipal de Magé não possui o livro de atas referente ao mandato da primeira bancada comunista mageense, eleita em 1947. Vale ressaltar que os jornais Tribuna Popular e Imprensa Popular estão intimamente ligados à imprensa operária, ambos editados pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), entre as décadas de 1940 e 50. Inicialmente com o nome de Tribuna Popular e, após o seu fechamento, em 1948 (devido à cassação do PCB), ressurgiu com o nome de Imprensa Popular. Em Magé, particularmente, estes jornais serviram como um importante instrumento de agitação operária para o PCB, no afã de conquistar espaço político nos sindicatos locais e eleger vereadores comunistas, sobretudo operários. Já o periódico O Fluminense foi um dos principais jornais do estado do Rio de Janeiro antes da fusão com o estado da Guanabara, realizando diversas reportagens nos municípios do interior, inclusive Magé. Bastante ligado ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, o referido jornal foi analisado a partir de suas reportagens sobre os sindicatos dos têxteis e o cotidiano 16 Cf. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. 3 ed.. São Paulo: Edições Loyola, 1996; ALBERTI, Verena. Manual de história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2004. 36 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades dos operários mageenses, sempre buscando realizar um contra-ponto às reportagens da imprensa operária. Com este mesmo objetivo, de contraponto, utilizamos documentos da antiga Divisão de Ordem Política Social (DOPS), órgão da polícia política do estado do Rio de Janeiro, subordinado a Secretaria de Segurança Pública. Esses documentos encontram-se no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ). Durante a presente pesquisa, o médico Irun Sant’Anna nos cedeu uma cópia autenticada do seu prontuário individual, obtida pelo próprio junto ao APERJ. Identificado como um dos principais líderes comunistas em Magé, Dr. Irun apresentou em seu prontuário uma série de documentos interessantes relativos ao tema, valorizando bastante o presente trabalho, tendo em vista o ineditismo dessas fontes na pesquisa histórica. Apresentado o projeto de nossa dissertação de mestrado, acreditamos que ela poderá representar uma importante contribuição nos estudos sobre o movimento operário no Brasil, sobretudo referente ao período pré-1964, devido ao seu caráter inovador de eleger um objeto de pesquisa fora dos grandes centros industriais do país, já que a maioria das pesquisas relativas ao tema se restringe à capital do Rio de Janeiro e ao estado de São Paulo, sobretudo este último. Além disso, na ânsia de superar as dificuldades atravessadas por esse campo de pesquisa, buscamos inserir a presente dissertação no contexto de retomada do processo de renovação do estudo sobre história operária, iniciado nos anos de 1980 e intensificado nos últimos anos.17 No que tange à história do PCB, acreditamos que esta dissertação também poderá contribuir significativamente para o estudo referente ao tema, já que enfoca a atuação do partido para além do seu Comitê Central e de sua organização nas capitais do país, como também valoriza a atividade legislativa dos comunistas no Brasil, aspecto normalmente pouco abordado nesses estudos, que enfatizam somente as “ações diretas” dos militantes como forma de atuação política. Dessa forma, a hipótese da presente dissertação é de que a atuação do PCB em Magé na década de 1940, motivada principalmente pela chegada do médico comunista Irun Sant’Anna, intensificou um processo de acumulação política que imprimiu na atividade política dos operários têxteis de Magé uma forte noção de cidadania, a ponto de estabelecerem 17 Cf. BATALHA, Cláudio Henrique de Moraes. A historiografia da classe operária no Brasil: trajetória e tendências. In: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. pp.152-155. 37 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades conexões tanto nos sindicatos de trabalhadores têxteis quanto na Câmara Municipal. À época na ilegalidade, o PCB conseguiu institucionalizar o seu discurso por meio dessas duas destacadas instituições, mantendo assim o partido vivo no seio do operariado mageense. Simultaneamente, questionamos as análises de autores que caracterizam negativamente o operariado brasileiro no período pré-1964, como cupulista, sem trabalho de base, inconsciente, sem autonomia e desmobilizado. Acreditamos que, a partir do estudo da atuação do PCB junto ao movimento operário de Magé, ancorado em estudos relativos a outras organizações sindicais, outros grupos políticos e municípios, seja possível ponderar ou mesmo refutar as concepções de Populismo ou Sindicalismo Populista, ainda tão em voga nas Ciências Sociais. 18 Durante a pesquisa, localizamos artigos e trabalhos completos acerca da participação político-sindical de trabalhadores brasileiros, 19 de diferentes categorias profissionais, nas cidades de Santos e Marília, em São Paulo; Porto Alegre, no Rio Grande do Sul; do Nordeste (o artigo engloba a região como um todo); de São Gonçalo, Niterói e Paracambi, no Rio de Janeiro, além do próprio município de Magé. Inclusive, os referidos trabalhos atinentes a São Gonçalo e Niterói estão sendo elaborados por companheiros de turma do Mestrado, sob diferentes óticas, o que ampliará sobremaneira o diálogo acerca do tema. Todos esses trabalhos, aliados ao contato com as fontes que utilizamos, resultaram na elaboração de um importante banco de dados, que permitiu tanto o cruzamento de informações quanto a adequação da presente pesquisa, buscando situá-la no seio das 18 Cf. IANNI, Otávio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; WEFFORT, Francisco. op.cit. 19 Cf. SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo (orgs.). Trabalho e tradição sindical no Rio de Janeiro: a trajetória dos metalúrgicos. Rio de Janeiro: DP&A, 2001; TAVARES, Rodrigo Rodrigues. A “Moscouzinha” Brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930-1954). São Paulo: Humanitas, 2007; QUERINO, Rosimar Alves. Democracia inconclusa: militância comunista e repressão política no interior paulista (1945-1964). Araraquara: tese de Doutorado apresentada a Universidade Estadual Paulista (UNESP), 2006; PIMENTA, Ricardo Medeiros. Retalhos de Memórias: Trabalho e Identidade nas Falas de Operários Têxteis do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: dissertação de Mestrado em Memória Social apresentada a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2006; JAKOBY, Marcos André. A organização sindical dos trabalhadores metalúrgicos de Porto Alegre no período de 1960 a 1964. Rio de Janeiro: dissertação de Mestrado em História apresentada a UFF, 2008; FLORES, Marilda dos Santos Monteiro das. As Discussões da Câmara de Vereadores de São Gonçalo e seus Envolvimentos com o Ambiente Nacional (1961-1964). São Gonçalo: monografia de graduação em História apresentada a FFP/UERJ, 2001; GONÇALVES, Lúcio Marcos Alves. A atuação da bancada comunista na Câmara de Vereadores do Distrito Federal no ano de 1947. Rio de Janeiro: monografia de graduação em História apresentada a UFRJ, 2004; LIMA, Jacob Carlos; FERREIRA, Brasília Carlos. Trabalhadores Urbanos no Nordeste: trajetórias profissionais, mobilidade espacial e organização operária. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo: Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), n.30. Disponível em <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_30/rbc s30_09.htm>. Acessado em 28 de setembro de 2008. 38 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades discussões acadêmicas em nível nacional sobre o tema ou, ao menos, o mais abrangente possível. Além disso, a partir desses estudos, constatamos um considerável nível de organização e mobilização dos trabalhadores brasileiros nas décadas de 1950 e 60, o que contesta sobremaneira as interpretações que desqualificam o operariado desse período. Esse elevado nível de organização e mobilização também foi identificado entre os trabalhadores têxteis de Magé, o que favorece a relevância desse trabalho, ancorado em outros semelhantes, problematizando, destarte, aquelas generalizações históricas encontradas no quadro nacional. Nesse sentido, acreditamos que, apesar dos limites impostos por meio da estrutura oriunda do Estado Novo, a ação organizada dos trabalhadores brasileiros na virada dos anos de 1950 para os 60 adquiriu um impacto decisivo na conjuntura política do país, devido justamente à sua capacidade de mobilização. Portanto, atribuimos à classe trabalhadora um papel ativo como ator político, valorizando suas memórias e identidades, além de buscar o equilíbrio entre consenso e conflito no seio do operariado. Do mesmo modo, ressaltamos a importância que os documentos legislativos mageenses representaram para a nossa pesquisa, sobretudo na problematização dessas generalizações históricas encontradas no quadro nacional. Ademais, ao privilegiarmos a análise de documentos legislativos, visamos também intensificar os estudos sobre o parlamento no Brasil, na expectativa de incentivar a preservação, organização e acessibilidade de seus arquivos. 39 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Das Cores da Música: Identidades, Cultura Popular e Samba Carioca no início do século XX (1917 – 1933) Gabriel Valladares Giesta* Resumo: Este artigo tem o objetivo de pensar os processos e conflitos identitários em torno do Samba carioca entre o período de 1917 – 1933, fazendo algumas leituras básicas de forma relacional: trabalhos sobre relações raciais no Brasil; sobre Cultura Popular, Identidade e Diáspora; textos que trabalham a história do Rio de Janeiro e Brasil no início do século; e por fim, mas não menos importante, leituras sobre o Samba e fontes que tratem desta manifestação. Neste caso, não se pretende elaborar uma história da música popular e do samba por si próprio, nem muito menos uma pesquisa apenas sobre relações raciais, mas sim compreender o samba enquanto cultura popular, analisando-o dentro dos processos de relação de poder em que esteve inserido durante seu momento de ascensão na sociedade carioca. Desta forma, pode-se dar luz a diversos conflitos étnico-raciais, culturais, sociais e políticos presentes no período estudado, consequentemente, na história do Brasil. Palavras-chave: Identidades; Samba; Cultura Popular. Abstract: This article aims to analyze identity processes and conflicts related to the samba of Rio de Janeiro between 1917 and 1933, through review of studies on race relations in Brazil; studies on Popular Culture, Identity and Diaspora; studies on History of Rio de Janeiro and studies on History of Brazil at the beginning of the XX century; and, last but not least, through the analysis of sources related to this cultural manifestation. In this sense, it is not our purpose to produce a history of popular music and of the samba, much less a search on race relations, but rather to understand the samba as popular culture, analyzing it within the power relations to which it was related during its rise in Rio de Janeiro society. Thus, we intend to clarify the ethnic, racial, cultural, social and political conflicts in that period, therefore, on History of Brazil. Key words: Identities; Samba; Popular Culture. Este trabalho tem como objetivo dar um breve panorama da pesquisa desenvolvida durante o mestrado em Historia Social da FFP. Neste caso, buscarei apresentar alguns elementos da dissertação, como as fontes usadas e principais hipóteses, objetivos e princípios teórico-metodológicos defendidos. Como se trata de um pequeno texto, a análise de fontes ficará restrita a alguns exemplos. De forma bem objetiva, podemos dizer que o principal objetivo da dissertação será trabalhar um tema (relações raciais, cidadania e cultura popular na cidade do Rio de Janeiro de 1917 a 1933) através de um objeto de pesquisa (música popular e samba). Pretende-se então analisar os diferentes conflitos identitários que surgem em torno do samba e da música popular, no seu momento de definição enquanto gênero, popularização e progressiva assimilação como símbolo da identidade nacional. Nestes termos, * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista da CAPES. e-mail: [email protected]. 40 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades o referencial de cultura popular que buscamos durante a pesquisa se baseia na definição de Stuart Hall: o princípio estruturador do ‘popular’ [...] são as tensões e oposições entre aquilo que pertence ao domínio central da elite ou da cultura dominante, e à cultura da ‘periferia’. É essa oposição que constantemente estrutura o domínio da cultura na categoria do ‘popular’ e do ‘não-popular’. Mas essas oposições não podem ser construídas de forma puramente descritiva, pois, de tempos em tempos, os conteúdos de cada categoria mudam. [...]. O princípio estruturador [...] consiste das forças e relações que sustentam a distinção e a diferença [...] (HALL, 2003, pág. 240). Sendo assim, não pretendemos analisar o conteúdo cultural do samba, as características da cultura popular, mas sim vê-los dentro de relações de poder, a partir de sua atuação, e como estas realçam conflitos étnico-raciais e sociais presentes na sociedade carioca do início do século XX. Neste caso, é preciso alternar escalas de análise entre micro e macro, ou seja, proceder a analise de forma a fazer dialogar o contexto histórico-social destacado pela historiografia com a pesquisa das trajetórias dos populares, o que não significa buscar determinações entre uma escala e outra, mas sim relacioná-las de forma a preencher lacunas que apenas uma instância não possa fazê-lo ou, até mesmo, encontrar contradições e novas possibilidades históricas. Ao analisarmos os diferentes discursos que constroem uma memória histórica relativa ao samba podemos perceber como esta manifestação cultural está intimamente ligada a debates envolvendo culturas históricas e políticas no Brasil, principalmente no que concerne à questão racial. Isto se deve ao fato de o samba se configurar enquanto gênero no processo de modernização nacional quando, durante a Primeira República, buscavam-se referenciais para uma identidade tipicamente brasileira. Neste caso, desde o início do século com alguns folcloristas, passando pelo movimento modernista (tendo Mario de Andrade como principal expoente) até os folcloristas urbanos, a música e cultura popular estarão no foco de debates sobre representações ideais do Brasil, nas quais a composição racial brasileira tem importante papel. Tal processo se configurava antes mesmo da publicação de Casa Grande e Senzala e do projeto de estado varguista, quando uma ideologia de valorização da mestiçagem será oficializada (ABREU e DANTAS, 2008). A partir de então, o samba carioca entrará na memória nacional de muitos brasileiros como símbolo máximo da identidade do país e de seu povo, que seriam, por excelência, racialmente misturados, democráticos e cordiais. Tais características seriam culturalmente representadas no Samba Carioca. Evidentemente, este quadro identitário é fruto de um processo histórico e da construção social de uma memória. 41 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Sobre a construção desta memória sobre o samba, a historiografia também tem seu papel, estando presentes nela questões étnico-raciais. Ao analisar a historiografia do samba, SANDRONI (2008) irá afirmar que dois paradigmas coexistem nas pesquisas e livros sobre o assunto: As crenças dos negros, ou de modo geral as práticas sociais e culturais que lhes eram próprias, teriam sido vítimas, num Brasil por três séculos escravocrata, de interdições e recalcamentos: tese repressiva. Essas práticas, no entanto, sobreviveram em certa medida, pois teriam sido encobertas e limitadas a determinados lugares onde os senhores não podiam descobri-las: concepção tópica” (SANDRONI, 2008, pág. 110). Estas concepções, presentes em autores como Arthur Ramos, Sérgio Cabral, José Ramos Tinhorão, Muniz Sodré e até mesmo na fala dos próprios sambistas, seriam “exageradas”, segundo Sandroni (2008), pois não conseguem enxergar as nuances nas relações entre classes dominantes e cultura popular. Tendo isto em mente, alguns pesquisadores contemporâneos buscam fugir destas concepções repressivas e tópicas ao fazerem suas análises. Um marco entre estes pesquisadores é o trabalho do antropólogo Hermano Vianna (2007), que expõe as relações do samba com autoridades e setores da elite do Rio de Janeiro. Vianna (2007) não deixa de citar conflitos em torno da música e de, em alguns momentos, reconhecer um lugar cultural específico para o Samba. Porém, o foco de sua pesquisa é a crítica à ideia de autenticidade, defendendo, assim, o caráter artificial e inventado do samba. Desta forma, Vianna rejeita as teses que vêem o samba como manifestação cultural negra, a qual teria sido expropriada pelos brancos e setores de classe média. O samba seria fruto da fluidez/circularidade do processo social do Rio de Janeiro, que proporcionava encontros entre diversos setores da sociedade. Porém, mesmo com o objetivo de não fazê-lo, Vianna (2007) não consegue fugir, em alguns momentos, de certa alternância entre repressão/valorização do samba. Portanto, entre circularidade e autenticidade, hibridismo e cultura negra, temos evidente um dilema em relação à identidade do samba sobre o qual é preciso definir um posicionamento. Neste caso, um melhor conhecimento sobre o conceito de diáspora africana defendido por Paul Gilroy e Stuart Hall pode indicar um caminho a se seguir, pois, como veremos, propõem-se a analisar a cultura popular colocando-a nos processos de conflito e relações de poder nos quais ela se insere. Tanto Hall (2006) quanto Gilroy (2000) defendem uma análise da diáspora contra qualquer tipo de essencialismo que defina as manifestações da diáspora africana de forma engessada. Neste sentido, a experiência da diáspora não se faz nem em uma África idealizada 42 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades (uma cultura autenticamente africana e/ou negra) nem no completo hibridismo/crioulização cultural. Para os dois autores, a diáspora se faz neste jogo entre transferências de aspectos culturais africanos para o ‘novo mundo’ e novas formas, adaptações, assimilações dentro do contexto que se inserem. Assim sendo, o que define a diáspora não são os elementos culturais por si só, mas sim uma experiência de conflito comum, que delimita uma diferença dentro da cultura hegemônica. Para explicar tais ideias, Gilroy (2000) afirma que o foco da análise sobre a diáspora deve ser o Atlântico enquanto uma unidade única e complexa numa perspectiva transnacional e intercultural. Toda a “Criatividade Transnacional do Atlântico Negro” seria marcada pela presença importante do Navio Negreiro. Este seria um elemento móvel que representaria os espaços de mudança, além de ser uma unidade cultural e política e, também, um modo de produção cultural distinto na middle passage. Portanto, Paul Gilroy (2000) propõe uma análise do Atlântico negro como metáfora para a experiência da Diáspora Africana, marcada pela diferença e hibridismo, sem perder sua importância na formação de identidades negras comuns, tendo em vista as experiências também comuns de exploração, escravidão, discriminação e racismo. Sendo assim, o Atlântico negro seria uma contracultura da modernidade e, dentro desta contracultura, temos as expressões da música negra, as quais sempre foram a espinha dorsal da cultura política dos escravos e seus descendentes no novo mundo, segundo Gilroy (2000). Tal cultura política marcada pela experiência da diáspora africana fica mais evidente ao analisarmos os espaços de negociação/afirmação cultural e identitária, como o samba em sua ascensão durante a Primeira República no Rio de Janeiro. Evidentemente, não há mais como traçar uma origem essencialmente africana para o samba (mesmo que seja possível fazer muitas conexões), porém podemos pensá-lo como cultura popular marcada pela diáspora africana. Isto fica claro quando gradualmente percebemos que ao analisar fatos, acontecimentos e processos envolvendo a ascensão do samba enquanto gênero musical e os debates identitários em torno deste processo evidencia-se uma série de conflitos envolvendo questões étnico-raciais e sociais marcantes da realidade brasileira da época. A presença do samba (e da música popular em geral) na indústria fonográfica surge, então, como espaço privilegiado para analisarmos estes conflitos. Aqui, partimos do princípio conceitual de Hall sobre Hegemonia Cultural. Segundo o autor, esta “nunca é uma questão de vitória ou dominação pura (...); sempre tem a ver com a mudança no equilíbrio de poder nas relações da cultura; trata-se sempre de mudar as disposições e configurações do poder cultural e não se retirar dele” (2006). 43 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Estas relações de poder ficam explícitas em alguns trabalhos atuais que mostram como o samba no Rio de Janeiro da Primeira República, ao mesmo tempo em que era perseguido por algumas autoridades policiais e políticas, também encontrou espaços de afirmação, como na recente Indústria Fonográfica do país, representada principalmente pela Casa Edison. Diversas foram as músicas registradas por esta gravadora, muitas delas tratando de temas relativos a afro-religiosidades, culturas e identidades negras. 20 Nesta relação, é importante ressaltar o fato da visibilidade que o samba ganha se configurar enquanto uma visibilidade controlada. A entrada gradual na lógica de produção e distribuição de mercado trouxe fortes restrições quanto aos batuques e formatos das músicas nas gravações. Sobre isto, importa ressaltar que o primeiro samba gravado que utilizará instrumentos de percussão 21 partiu de uma iniciativa do Bando de Tangarás apenas em 1930, grupo de classe média, brancos, portadores de capital simbólico que os proporciona maior liberdade para tal feito, como nos mostra Sandroni (2001). Diferentemente de sambistas negros que, por terem instrumentos apreendidos no passado (como nos conta João da Baiana em depoimento ao Museu da Imagem e do Som sobre o seu pandeiro) 22, provavelmente não se sentiriam a vontade de tomar a iniciativa de usá-los em uma gravadora, o que somente passa a acontecer na década de 1930. Ainda sobre a indústria fonográfica, podemos detectar certa disparidade entre letras gravadas e veiculadas nas festas. Ao analisar o samba “Pelo Telefone” de Donga, reconhecido como o primeiro samba gravado, Carlos Sandroni (2008) nos mostra como circulam duas versões da mesma música: (Versão gravada) (Versão Anônima/“oficiosa”) O chefe da folia O chefe da polícia Pelo Telefone Pelo telefone Manda me avisar Manda me avisar Que com Alegria Que na Carioca Não se questione Tem uma roleta 20 A guisaPara de exemplos, podemos citar, de Sinhô, “A favela vai abaixo”Para (1928), Gegê” (1922), “Alta se brincar se “Macumba jogar Madrugada” (1930), “Professor de Violão” (1931); de João da Baiana, temos “Dona Clara” (1927), “Que querê” (1931); de Pixinguinha, cito “Partido Alto” (1932), com Cícero de Almeida, e “Samba de Nego” (1928). 21 Trata-se do samba “Na Pavuna”, de Almirante e Doca da Anunciação, gravado em 1930. Alguns pesquisadores dizem que a introdução dos instrumentos de percussão característicos das escolas de samba nas músicas da indústria fonográfica apenas não se dava devido a restrições técnicas de captação de som. Porém, Sandroni (2001) mostra que a gravação elétrica foi introduzida no mercado fonográfico brasileiro em 1927, três anos antes de “Na Pavuna”, e que ao tentar introduzir os instrumentos na gravação desta música, Almirante teria sofrido restrições do diretor artístico para fazê-lo. Isto representa, fortemente, um conflito cultural com relação racial e social. 22 Ver “As vozes desassombradas do Museu”, publicado pelo MIS. 44 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Estas letras acima explicitam os conflitos vividos pelos populares no Rio de Janeiro. Em ambas as versões, fica clara a crônica das diversões das classes humildes serem objeto de perseguição. Porém, na versão gravada o jogo da roleta não aparece, se restringindo à busca para que “não se questione/para se brincar” e, na versão anônima, a alusão à negociação com o chefe da polícia nos mostra como, mesmo com a perseguição, os populares buscaram espaços de negociação com os delegados e autoridades em busca de afirmar suas práticas (“folia” ou o jogo da “roleta”, como dizem as letras). Na mesma linha, podemos pensar o carnaval como um meio diferenciado para perceber tais conflitos. Segundo Rachel Soihet (1998), durante os dias de folia fica evidente o contraste entre duas visões de mundo: uma construída a partir da reforma Pereira Passos, cujo principal símbolo era a Avenida Central, por onde transitava a alta sociedade com seu desfile de carros com flores; a outra, da Praça Onze, “ponto de concentração de sambistas e malandros, como o lugar da batucada e do samba duro” (SOIHET, 1998, P. 57), onde se localizava a casa da Tia Ciata, também. Entretanto, os populares não se restringiam apenas à Cidade Nova, comparecendo também à Avenida Central com pandeiros, violões, cordões e sambas considerados impróprios à cidade branca que se pretendia reproduzir. Assim, Rachel Soihet define cultura popular: canal privilegiado de expressão dos anseios e necessidades dos populares no Rio de Janeiro, por largo tempo excluídos da participação política, segundo os parâmetros tradicionais. Verifiquei que tais segmentos tiveram nessa cultura o principal veículo de coesão e de construção de uma identidade própria e, por meio dela, promoveram sua inclusão na vida pública da cidade, sendo o carnaval um momento privilegiado nesse processo (SOIHET, 1998, p.17). E é o próprio carnaval que nos mostra como os populares estavam longe de serem alienados sobre o contexto histórico em que estavam inseridos: “Nós somos gente. (...) Macaco é o outro!”, cantavam sambistas vestidos de macaco em um bloco de carnaval saído da famosa casa da Tia Ciata, em 1916. Tal manifestação explícita abordando a questão racial era feita em crítica ao influente teórico sobre a desigualdade das raças: o Conde Gobineau, que, em visita ao Brasil em meados do século XIX, comparou os brasileiros a macacos. Gobineau, ao reprovar a mistura de raças, afirmava que no Brasil havia uma “degenerescência do mais triste aspecto” (SOIHET, 1998). A própria e famosa casa da Tia Ciata também é um exemplo do conflito na cultura popular: a partir de redes de conhecimento (Tia Ciata era casada com um funcionário do gabinete do delegado) possibilitou-se a configuração de um espaço de encontro de sambistas e produção de samba. Porém, em sua própria organização arquitetônica podemos perceber o 45 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades conflito na cultura popular: exposto na frente da casa tocava-se apenas choro, e o batuque ficava reservado aos fundos. Este exemplo da casa da Tia Ciata deixa bem claro que estamos tratando de cultura popular, pois, assim como a própria música popular no Rio de Janeiro, podemos defini-la como: “um campo para a mudança e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentam reivindicações conflitantes, onde há sempre uma troca entre o dominante e o subordinado” (THOMPSON, 1998). Este conceito foi definido por E.P. Thompson em seu estudo sobre a Inglaterra dos séculos XVIII/XIX, no qual o autor situa a cultura plebéia longe dos consensos e essencialismos, mas “dentro de um equilíbrio particular de relações sociais, um ambiente de trabalho e exploração e resistência à exploração, de relações de poder (...). Desse modo, a ‘cultura popular’ é situada no lugar material que lhe corresponde” (THOMPSON, 1998). De fato, Thompson (1998) estava analisando um dado contexto diferente do que estudamos neste trabalho. Assim, é preciso adequar tais pressupostos teóricos à realidade do Rio de Janeiro do início do século XX, tarefa que é facilitada pela postura do autor ao negar rótulos fechados e homogêneos em relação à cultura popular. A partir desse pressuposto, é possível frisar que a música popular no Rio de Janeiro deve ser situada para além do lugar material que lhe corresponde (produzido pela população pobre em “ambiente de trabalho e exploração”), mas também em diálogo com processos de conflitos sócio-culturais que envolvem a presença afrodescendente no país (expressão dos setores populares em relação a um passado escravista e um presente de discriminações sociais e raciais, às quais se relacionam diretamente). Este dois “lugares” (material e sócio-cultural) estão longe de estarem separados na História do Brasil, onde o racismo sempre esteve diretamente relacionado com questões de classe. Porém, o discurso da “democracia racial” apaga os contrastes vividos e a ideologia do “embranquecimento”, fortemente presente durante a Primeira República. Sobre isto, talvez seja exagero dizer que o samba carioca em seu momento de ascensão botou a mão na ferida em tais problemáticas, deixando-as exposto para serem debatidas. Porém, podemos afirmar que, ao buscar por espaços de afirmação enquanto uma cultura da diáspora africana, o samba pode ter facilitado que tais questões se tornassem mais pronunciáveis, pois agora seria preciso lidar diretamente com a presença dos setores negros na composição cultural da sociedade brasileira, o que contrasta com os projetos voltados para sua exclusão social durante o pós-abolição. Para ilustrar essa situação, pode-se apresentar músicas nas quais os sambistas incluíam-se nos debates que tratavam de questões nacionais, entre elas 46 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades duas composições de Sinhô: “Fala, meu louro” (1919), criticando Rui Barbosa, e “Eu ouço falar (Seu Julinho)” (1929), onde se faz propaganda explícita de Julio Prestes. Portanto, a cidade do Rio de Janeiro no início do século foi palco de um crescente movimento por afirmação política, cultural e social de setores populares, que se utilizaram do samba enquanto meio para alcançar seus objetivos. O próprio samba se transformou neste processo, ou seja, ao mesmo tempo em que impôs marcas próprias e ganhou o seu lugar ao sol, também teve de adequar-se para que isso ocorresse, o que trouxe diversos conflitos (debates em torno da autoria ou sobre que tipo de música era o “verdadeiro samba”, o mais “amaxixado” da geração de Donga ou o samba do Estácio, defendido por Ismael Silva) 23. Porém, tais adequações e restrições não impediram a afirmação de um contra-discurso marcante da diáspora africana através do samba, envolvendo a afirmação da diferença: um estilo e estética em torno do repertório negro, a centralização na música em oposição à cultura escrita dominante e à valorização da corporeidade. Segundo Stuart Hall: esses repertórios da cultura popular negra – uma vez que fomos excluídos da corrente cultural dominante – eram freqüentemente os únicos espaços performáticos que nos restavam e que foram sobredeterminados de duas formas: parcialmente por suas heranças, e também determinados criticamente pelas condições diaspóricas nas quais as conexões foram forjadas. (HALL, 2003, p. 324). Concluindo, este trabalho buscou discutir um dos aspectos em torno da relação entre identidade e samba carioca na primeira república, de forma a dialogar com um suporte teórico de consistência. Objetivou-se aqui tratar do samba de uma forma não idealizada, mas sim dentro de sua complexidade. Neste caso, talvez seja importante frisar que, a música possibilitou dar voz a setores até então “apagados” na primeira república. Neste caso, as lutas por afirmação e busca por espaços de expressão destes populares com o samba foi de vital importância para que tais questões sejam colocadas na ordem do dia, e estes setores da sociedade sejam vistos como atores e integrantes da sociedade carioca na primeira república. Ou seja, uma forma de buscar a cidadania. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Martha e DANTAS, Carolina V. Música popular, folclore e nação no Brasil, 18901920. In: CARVALHO, José Murilo (org.). Nação e Cidadania no Oitocentos. São Paulo: Record, 2008. ANDREWS, George Reid. Afro-Latin America, 1800-2000. New York: Oxford University Press, 2004. CABRAL, Sergio. As escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1966. 23 Sobre isto, ver discussão entre Donga e Ismael citada por Cabral (1966). 47 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades CARVALHO, José Murilo de. Cidadania: tipos e percursos. Estudos históricos. Rio de Janeiro, nº18, 1996. CARVALHO, José Murilo. 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Observaremos, de um lado, as solicitações populares em favor de uma educação capaz de atender as suas necessidades escolares e, de outro, o executivo municipal que possui o poder de fazer. Palavras-Chaves: Território; Rio Bonito; Expansão escolar; Relações de poder. Abstract: In this paper we discuss the public school expansion at the city of Rio Bonito between 1976 and 1982, focusing on territory and on power relations, in order to initiate a new local history of education. This specific period drew our attention due to the reading of a headline of the newspaper A Tribuna Especial, published in 1980, that stated "More schools in three years than in 131 years of emancipation." As we can define territory as a privileged space of social and cultural relations that is marked by power relations, we discuss this concept in order to apprehend the power relations related to the expansion of public school in Rio Bonito. We will analyze, on the one hand, popular demands for education and, secondly, the city government that had the power to implement educational policies. Key-words: Territory; Rio Bonito; Schools expansion; Power relations. Introdução Neste trabalho, ainda em andamento, buscaremos discutir como se deu a ampliação da rede escolar pública municipal de Rio Bonito, no Rio de Janeiro, nos anos compreendidos entre 1977 e 1982, observando neste território as relações de poder necessárias para inaugurar uma “nova história” da educação local. Este período nos chamou a atenção a partir de uma desconfiança em relação ao discurso existente na cidade de que o prefeito, à época, era “bom” e, por esse motivo, teria investido na educação. Ao iniciarmos a pesquisa, nos deparamos com o Jornal A Tribuna Especial24 que publicou, entre outras, as seguintes manchetes: “Escolas: a arrancada secular” (1979); “Em * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). 49 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades três anos mais escolas que em 131 anos de emancipação” (1980), “A escola, a faculdade e a cidade mirim” (1981) e “Assim eram nossas escolas” (1982). Acreditamos que, para além do “querer fazer” do prefeito, outros três fatores tenham contribuído para realizar essa possível “arrancada secular” na educação local. Primeiro, a existência de uma demanda por parte da população, provocada pela inversão campo-cidade efetivada em 1970, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pelo crescimento do comércio local e pela propaganda de necessidade de mão-de-obra técnica, pelo governo militar (CUNHA, 1977). O segundo fator que pode ter contribuído para tal ampliação foi o projeto, manifestado pelo prefeito Aires A. Helayel, conforme nos declarou em entrevista, de construir um colégio que atendesse ao 1° e ao 2° Graus. Confrontando essa declaração com o documento “Rede Escolar Municipal”25, podemos contar dezessete escolas municipais no ano letivo de 1979, que ofereciam ensino de até a 4ª série, e uma escola que cumpria até a 5ª série do 1° Grau. Nossa hipótese é que, para realizar o “sonho” de construir o tal colégio, era necessário ampliar a rede escolar existente e, com isso, criar e/ou ampliar uma clientela com nível escolar suficiente para ingressar no novo empreendimento educacional. E, por último, acreditamos que o prefeito eleito em 1976 ambicionava um crescimento político na região. Para alcançar seus objetivos, buscou atender às “várias solicitações” de parte da população em prol de uma educação municipal mais ampla e, ao mesmo tempo, próxima das políticas nacionais de expansão do ensino médio profissionalizante, em curso desde a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 5.692/71. Enfim, buscaremos com este trabalho articular as contribuições da história política no contexto da ditadura militar e as relações de poder existentes nesse território com o objetivo mostrar uma relação política diferenciada existente entre o prefeito Aires Abdalla, que possuía ambições de crescimento político e, parte da população local que buscava uma escolarização melhor e ampla. 24 Este jornal é uma edição especial do jornal A Tribuna (de Niterói), disponível para consulta na Casa de Cultura de Rio Bonito. Possivelmente essas publicações especiais foram encomendadas pela administração do ex-prefeito Aires Abdalla Helayel. Além de anunciar as obras realizadas pela prefeitura, o jornal possui anúncios comerciais da cidade de Rio Bonito. Foram publicados quatro números especiais entre 1979 e 1982, todos no dia 7 de maio, aniversário da cidade. Não tivemos notícias da existência de outros números similares. Na primeira página desses jornais é omitido, com exceção do exemplar de 1980, o nome A Tribuna Especial, sobressaindo o nome “Rio Bonito: 1846 - 7 de maio - 1979” (1846 – ano da emancipação política e administrativa da cidade; 7 de maio – dia do aniversário da cidade; 1979 o ano da publicação do jornal) e a duração do governo (2 anos de Governo Aires Abdalla). Para este artigo iremos nos referir a este Jornal, sempre que necessário, como A Tribuna Especial. 25 Documento disponível na Secretaria do Colégio Municipal Dr. Astério Alves de Mendonça, em Rio Bonito. 50 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A educação brasileira no contexto da ditadura militar (1964-1985) Logo de início, destacavam-se a profundidade e o furor da repressão política, em particular contra o Trabalhismo e outras organizações de esquerda. Os sindicatos trabalhistas, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Universidade, bem como jornais e rádios, tiveram suas sedes ocupadas e destruídas, em evidente desrespeito à Constituição e aos direitos e garantias individuais. Ao mesmo tempo, a morte e o desaparecimento de inúmeras lideranças sindicais e camponesas, assim como a deposição de governadores eleitos, prenunciavam o que seriam os anos de Terror do regime militar (SILVA, 1990). Segundo Werebe (1994, p. 80) ocorreu um “progresso” na educação brasileira no período da ditadura militar iniciada com o Golpe de 1964. Segundo a autora, “houve projetos do ponto de vista quantitativos, com a expansão da rede de escolas dos três graus. Mesmo assim, não se conseguiu atender a todas as crianças em idade escolar” (Idem). A respeito da expansão escolar faremos um retorno à discussão feita por Romanelli (1985) na década de 1970, para entendermos a relação entre desenvolvimento econômico e escolarização. A autora destacou que o desenvolvimento econômico gerava a necessidade de mão-de-obra qualificada e, por sua vez, um sistema educacional adequado ao sistema econômico. Essa ligação entre desenvolvimento econômico e educação, destacada pela autora, ou, as exigências de uma economia modernizada frente ao sistema educacional, nos remetem ao período da ditadura militar no qual o Brasil experimentava a euforia do “milagre econômico”. Essa euforia se propagou por todo o país, afinal, as políticas econômicas dos militares alcançaram números surpreendentes, embora a distribuição da renda não tenha sido priorizada. Observou-se, no decorrer dos anos que a taxa de crescimento do PIB acelerou-se ao longo do tempo, elevando-se de 9,8% a.a. em 1968 para 14% a.a em 1973, a inflação, medida pelo Índice Geral de Preço (IGP), declinou de 25,5% para 15,6% durante o período [...]. [...] Também deve ser destacado que, em função do crescimento extraordinário das exportações, a relação dívida externa líquida/exportações declinou de 2,0 para 1,4 entre 1968 e 1973 (VELOSO; VILLELA; GIAMBIAGI, 2008, p. 224). Segundo a lógica empregada por Romanelli (1985), explicitada anteriormente, era preciso fazer com que a educação brasileira acompanhasse o desenvolvimento econômico, a fim de aumentar o número de pessoas preparadas pelo sistema educacional para ingressar nesse Brasil que crescia a taxas de 11,1% do PIB ao ano. O discurso de que era preciso modernizar a educação brasileira para que ela acompanhasse o desenvolvimento econômico é anterior à ditadura militar, visto que o Manifesto de 1932 já apontava nessa direção. Para os Pioneiros da Educação Nova não se 51 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades dissociava o desenvolvimento do país da modernização educacional, aliás, para eles, a modernização, a industrialização e o desenvolvimento econômico seriam conseqüências de uma educação pública, laica, gratuita e de qualidade. Assim, Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade (AZEVEDO, 1932, p. 125). Os militares não se afastaram dessa dimensão acreditando ser necessário formar uma mão-de-obra capaz de operar as novas tecnologias industriais, afinal, o Brasil crescia e se modernizava a passos largos com o “milagre econômico”. Desenvolveu-se uma educação para a formação de “capital humano”, uma formação para o mercado de trabalho (SHIROMA; MORAES; EVANGELISTA, 2000). As principais reformas implementadas pelo Regime Militar relacionadas ao ensino foram as do 1° e 2° Graus com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação n°. 5.692/71 e a Lei 5.540, que promoveu uma reforma no Ensino Superior. Com relação à primeira, foi estabelecida a obrigatoriedade do 2° Grau profissionalizante, e a segunda introduziu, entre outras medidas, a dedicação exclusiva dos professores, criou a estrutura dos departamentos e acabou com a cátedra. (SHIROMA, et al, p. 37). A educação passou a priorizar a formação para o trabalho, dando-se ao 2° Grau um caráter de terminalidade. A intenção era que “um grande contingente de alunos pudesse sair do sistema escolar mais cedo e ingressar no mercado de trabalho. Com isso, diminuiria a demanda para o ensino superior”, que na ocasião estava sendo muito procurada (GERMANO, 1994, p. 176). Além destas reformas educacionais, uma das primeiras medidas foi à substituição do Programa Nacional de Alfabetização do governo de João Goulart pelo Mobral – Movimento Brasileiro de Alfabetização. Segundo Werebe (1994) esse programa não atingiu seus objetivos, embora tenha recebido um grande enaltecimento com “estatísticas inexatas”. A autora destaca ainda que o Mobral “representou, sim, um desperdício enorme de recursos financeiros e de pessoal, não tendo conseguido sobreviver” (WEREBE, 1994, p. 229). Apesar de o Brasil ter conseguido alcançar exorbitantes taxas de crescimento econômico, “o bolo” não foi repartido igualmente entre todos os segmentos da população 52 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades brasileira, como expressou o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto. O que se viu foi uma grande concentração de renda nas mãos de poucos. A educação pública municipal de Rio Bonito: uma breve apresentação Caminhar pela história de Rio Bonito tem sido um navegar constante em águas desconhecidas (COSTA, 2009, p. 79). A rede escolar pública municipal de Rio Bonito possuía, até 1976, dezesseis salas de aula em quinze escolas26. Em 1977 a rede escolar pública local não contava com nenhuma escola de 2º Grau profissionalizante. Além disso, as escolas municipais existentes só ofereciam até a 4ª série do primeiro grau e, assim mesmo, não em todas as escolas. Duzentos e vinte oito alunos estavam matriculados em toda a rede municipal em 1976 27. As quatro edições da Tribuna Especial apresentam fotografias de escolas com prédios mal conservados, aparentemente sem condições de abrigar nenhuma escola. Segundo a edição de 1979, “todas as Unidades Escolares estavam com seus prédios em condições precárias de funcionamento, a maior parte nem possuíam instalação sanitárias”. A partir de 1977, houve investimentos significativos na educação municipal de Rio Bonito, com reformas e construção de novos prédios escolares, além da ampliação do número de alunos matriculados. Assim, oito escolas que já existiam receberam prédios novos, cinco foram reformados e ampliados e três novas escolas foram construídas, sendo uma delas o Colégio Municipal de Rio Bonito, com 28 salas de aulas e oferecendo o ensino de 2º Grau. A rede municipal passou a oferecer a Educação Infantil, o ensino de 5ª a 8ª séries e, também, o ensino de 2º Grau com os cursos profissionalizantes de Formação de Professores e Contabilidade, e posteriormente os técnicos de Mecânica, Enfermagem e Agronomia. De acordo com o Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1979, a rede municipal de ensino de Rio Bonito passava de 20 salas de aulas em 1977, para 38 salas em 1978, com um crescimento que representa quase 100% em número de salas de aula. O número de matriculados alcançava o total de 732 alunos em 1977, o que indica um crescimento de mais de 200% em relação ao número de matrículas para a rede de 1º Grau municipal em 197628. 26 Dados do Jornal A Tribuna Especial, 1979, p. 9, e do Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro, 1978, p. 345. 27 Cf. Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro, 1978, p. 353. 28 Idem, 1979, p. 129. 53 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A demanda local por escolarização: insatisfação e cobrança O crescimento da demanda social de educação pode ser tomado como outro indicador de necessidades do desenvolvimento, uma vez que ele revela aspectos sociais do desenvolvimento, por traduzir o aparecimento e crescimento de novas camadas, assim como a evolução de uma consciência social do valor da educação [...]. (ROMANELLI, 1985). Neste tópico, veremos como o conceito de território 29 nos ajuda a compreender as relações de poder estabelecidas entre o prefeito de Rio Bonito, Aires Abdalla Helayel30, eleito em 1976, e parte da população que demandava uma educação escolar municipal capaz de satisfazer as suas necessidades sociais. O que temos observado neste território é que parte da sociedade local não esteve “acomodada” no contexto de ditadura militar, como afirmou Reis (2000). Em sua análise sobre Claude Raffestin, Fernandes (2009) destaca dois tipos de poder existentes no território, um que se refere à soberania do Estado, e o outro “que está presente em cada relação, na curva de cada ação, que utiliza as fissuras sociais para se infiltrar” (GALVÃO et al, 2009, p.39 apud FERNANDES, 2009). Essa dimensão de poder (escrito com letra minúscula) esteve presente em Rio Bonito nos primeiros anos do governo iniciado em 1977. Inferimos que a demanda por escolarização municipal tenha se intensificado com o governo eleito em 1976, tornando-se mais evidente através das “várias solicitações” feitas diretamente ao prefeito Aires A. Helayel, conforme este nos informou em entrevista. Na busca de atender às muitas solicitações, o prefeito passou a exercer o seu Poder “de fazer” nesse território (poder com letra maiúscula) frente ao poder (com letra minúscula) do povo que utilizou as “fissuras sociais” possíveis (RAFFESTIN apud FERNANDES, 2009), no contexto do “furor e repressão política” exercida pelos governos dos militares após o golpe de 1964 (SILVA,1990), para fazer valer as suas necessidades de escolarização. Percebemos indícios de uma demanda por escolarização já na década de 1960. Em 1966, ano de eleições municipais, os candidatos do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) à prefeitura, José Bezerra e Leir Moraes31 (prefeito e vice-prefeito respectivamente), 29 Entendemos o território como sendo o lugar onde ocorrem as relações sócio-culturais marcadas pelas relações de poder. Concordamos com Haesbaert (2006, p. 55) que território possui um sentido “relacional”, isso significa “incorporar um conjunto de relações sociais, (...) de envolver uma relação complexa entre processos sociais e espaço material”. Assim, influenciados pela dimensão “relacional” do território nos distanciamos das discussões que buscam compreende-lo apenas como uma dimensão natural, social, econômico e/ou cultural. 30 Este prefeito governou a cidade de 1976 a 1982, período destacado para este trabalho. 31 Aqui se faz necessário um breve comentário sobre quem é Leir Moraes. Ele é riobonitense, formado em direto pela UFF, e jornalista por opção; atuava no MDB e era o jornalista responsável do Baixada Fluminense, que circulou na cidade de 1964 a 1968. Segundo informações do mesmo jornal, a candidatura “Bezerra – Leir” 54 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades anunciam, através do jornal Baixada Fluminense, a intenção, se eleitos, de instalarem no município uma escola profissional. Essa intenção dos candidatos nos indica a possibilidades. Primeiro, que os candidatos estavam antenados com as discussões sobre desenvolvimento nacional, propagadas pela ditadura militar, como vimos anteriormente. E, segundo, se não houvesse uma demanda por escolarização, os candidatos não estariam preocupados com essa questão da escolarização técnica. Segundo a mesma publicação: Não é preciso que enumeremos o grandioso serviço que poderá prestar a nossa mocidade, uma escola de formação profissional, principalmente aos mais pobres, que poderão aprender uma profissão, ao mesmo tempo que conseguem trabalho remunerado, o que, em nossos dias, cada vez está mais escasso. (Baixada Fluminense, n° 42, 1966). Como podemos perceber, há neste fragmento um indício da existência de uma demanda social por parte da mocidade em relação à escolarização, que neste caso é a formação técnica, tão importante para o “desenvolvimento nacional”. Ressaltamos que os votos dos familiares dessa mocidade estavam sendo disputados numa eleição municipal e, portanto, os candidatos não fariam tal pronunciamento se não houvesse uma demanda específica. No ano seguinte é publicado no mesmo jornal o artigo “Escola profissional” assinado pelo jornalista Leir Moraes (que em 1966 concorrera como vice-prefeito). No referido artigo, o jornalista volta a afirmar a necessidade de instalação de uma escola profissionalizante na cidade, argumentando que a “juventude riobonitense” precisava de tal formação para “ganhar a vida em outras plagas” se assim o desejassem (MORAES, 1967) Em entrevista, o jornalista Leir Moraes nos informou haver a necessidade na época de formar “mão-de-obra especializada e a juventude queria”, mas “não havia vontade política dos prefeitos” para promover essas ações. O que a memória deste jornalista nos faz pensar é que havia uma demanda, como tínhamos acreditado inicialmente, sobretudo quando lembra que “a juventude queria”. O que temos confirmado até agora é que havia uma demanda por escolarização, antes mesmo do recorte selecionado na pesquisa. Acreditamos que a intensificação da propaganda do “milagre econômico” e a propagação do desenvolvimento brasileiro tenham intensificado a busca pela escola pública municipal, também no nível local. Afinal, o governo militar investia obteve 2.228 votos contra 1.714 do outro candidato (Nhozinho Lopes). No entanto, “nove dias depois o pleito o Presidente da República Castelo Branco manda somar os votos das sublegendas, matéria já regulamentada pelo Ato Institucional nº 03”, o que leva á vitória o seu oponente. Ou seja, os primeiros ganharam a maioria dos votos, mas não foram eleitos. 55 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades em uma educação prioritariamente voltada para o trabalho (SHIROMA; MORAES e EVANGELISTA, 2000). Em agosto de 1977, pouco mais de cinco meses depois da implementação do novo governo municipal, é constituída uma “Comissão de Implantação de Escola de 1° e 2° Graus”, através da Portaria n° 61/197732. Entre outros objetivos, a comissão formada por quatro professores, deveria apresentar “sugestões quanto à localização, requisitos essenciais da área e características iniciais do imóvel a ser construído em razão da demanda escolar”33. O que observamos com essa Portaria é que houve uma intenção do prefeito de construir na “zona urbana desta cidade” uma escola que oferecesse o 1° e 2° Graus completos. Outro elemento que aponta para uma demanda por escolarização anterior a 1977 são as solicitações de bolsas de estudos. Como a rede municipal e a rede estadual de ensino não dispunham de educação escolar satisfatória, oferecendo ensino apenas até a 5ª série, a prefeitura era obrigada, por força da Deliberação n° 240/1963, a conceder bolsas de estudos para que os filhos de funcionários prosseguissem seus estudos nas escolas particulares da região. Além das “bolsas municipais”, havia as bolsas financiadas pelo governo federal, mas que não eram suficientes para satisfazer a demanda local. Em 1980, o executivo municipal elabora o documento “Implementação do Colégio Municipal”, destinado à população em geral, onde constam as justificativas para a construção do Colégio Municipal de Rio Bonito, dentre outras, a substituição das bolsas de estudos. A publicação informa que [...] em razão do elevado custo do ensino e do número sempre crescente de candidatos a bolsas, não permite a concessão de bolsas integrais – exceção feita aos filhos de funcionários por força de Lei Municipal – a Administração AIRES ABDALLA, após estudos realizados pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura, resolveu substituir totalmente as bolsas de estudos pela criação de uma unidade de ensino – COLÉGIO MUNICIPAL DE RIO BONITO – destinada ao 1° e 2° Graus [...]34. Diante do crescente número de solicitações por bolsas de estudo, o prefeito Abdalla declara a intenção de substituir as concessões pela construção de uma unidade escolar “destinada ao 1° e 2° Graus”, esta última modalidade de ensino fora de suas obrigações estabelecidas, de acordo com a Lei 5.692/71. 32 Portaria n° 061/77, disponível no Arquivo Geral da Prefeitura de Rio Bonito, no Centro Administrativo da Prefeitura no bairro da Praça Cruzeiro. 33 Infelizmente não encontramos nenhum relatório dessa comissão. 34 Documento “Implantação do Colégio Municipal”, disponível na Secretaria do Colégio Municipal Dr. Astério Alves de Mendonça. 56 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Outro fator que nos leva a acreditar na existência de uma demanda por parte da população em favor de uma educação escolar municipal mais satisfatória são as declarações de ex-alunos da época. Telma Rosa35, ex-aluna do Colégio Municipal de Rio Bonito, nos disse que seu pai “tinha conversado com o prefeito Bidinho 36 e depois o Aires para resolver esse problema de falta de um lugar pra gente estudar de graça. Só pagando é que se estudava na época”. Nessa mesma direção, a ex-aluna Aládia Duarte37 nos conta que a procura por uma educação pública municipal “Era geral. Porque a maioria das pessoas não tinha condições de pagar. Tanto é que quando Aires criou o Municipal, eu saí do Colégio Rio Bonito pra ir estudar lá”. Para todos os entrevistados a educação escolar municipal era insatisfatória, sobretudo quando se referiam à continuação dos estudos a partir da 5ª série, situação que se modificou quando o Colégio Estadual Barão do Rio Branco passa a oferecer a 5ª série38. Nesse sentido o ex-aluno Edson Jorge39 declara que estudar era muito difícil porque eu tinha que ajudar minha mãe a cuidar dos meus cinco irmãos, parei de estudar na 3ª série para trabalhar, mas não tinha muito mais o que estudar porque eu só poderia estudar até a 4ª série, o que terminei só em 1989 (...) Como minha mãe era muito amiga de Aires Abdalla eu cheguei a pedir a ele para ele investir mais na educação, eu não queria que meus filhos também tivessem que parar de estudar. A análise da documentação consultada, bem como as entrevistas de ex-alunos, permite a possível conclusão preliminar de que existia uma demanda por escolarização, em Rio Bonito, que extrapolava, inclusive, o período proposto para este trabalho. Portanto, a ampliação da rede escolar não seria resultado apenas do “querer fazer” do prefeito, mas de um consenso entre as intenções de segmentos da sociedade e as ambições do político no contexto da ditadura militar. 35 A ex-aluna Telma Rosa já tinha a formação de professora, pelo Ginásio Manuel Duarte, quando ingressou no curso de contabilidade do Colégio Municipal de Rio Bonito em 1982. 36 Bidinho é o apelido do prefeito Alcebíades Moraes Filho, da Arena, que antecedeu e sucedeu o prefeito Aires Abdalla Helayel. 37 A ex-aluna Aládia Duarte iniciou seus estudos no Colégio Rio Bonito como bolsista, recebia um desconto de 50% nas mensalidades do curso de Formação de Professores. Passou para o Colégio Municipal em 1982. 38 Segundo nos informou o Prof. Carlos Alberto de Moura Machado, diretor do Colégio Cenecista Monsenhor Antonio de Souza Gens (antigo Manuel Duarte) e professor aposentado da rede estadual, “a primeira turma de 5ª série do Ensino Fundamental da rede estadual de ensino começou a funcionar na Escola Estadual Barão do Rio Branco em 1976”. O ano é confirmado pelo Anuário Estatístico do Estado do Rio de Janeiro de 1978, p. 352. 39 Ex-aluno primário do Colégio Estadual Dyrceu Rodrigues da Costa. No ano de 1973 concluiu a 3ª série primária. 57 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades FONTES PRIMÁRIAS A Tribuna Especial. Disponível para consulta na Casa de Cultura de Rio Bonito. Publicações de 1979 a 1982. BRASIL. Lei 5.692, de 18/08/1971. Fixa as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República Federativa do Brasil. Brasília Senado Federal. Disponível em <www.senado.gov.br>, acessado em 21/04/08. 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Na primeira seção debruçará sobre o ‘Industrial’, que constará em elucidar o objetivo que o órgão tinha de informar e formar a esfera pública sobre a realidade da indústria no Império. Na segunda seção será desvendado a prélio do periódico quanto a sua posição e seus opositores. Palavras- chave: Associação Industrial; periódico. Abstract: This article intends to explain the role of the newspaper 'O Industrial' as an organ of the Industrial Association of Rio de Janeiro. We intend to highlight the struggle of this newspaper in the public sphere for seeing recognized its demands on protection for industry and also its relations with other newspapers at the time. The study focuses on articles compiled in the document "The National Labor and its opponents" of 1881, and on an article of Jornal do Commercio, which are considered relevant to report on the ideals and goals of Industrial Association and its position in favor of the domestic industry. In the first section it is presented the research on the 'O Industrial', in order to explain that the Association’s goal was to inform and to educate the public sphere about the situation of the industry under the Brazilian Empire. Keywords: Associação Industrial; newspaper. Introdução Este artigo tem o propósito de analisar o papel do periódico O Industrial como órgão da Associação Industrial do Rio de Janeiro. Apeteço evidenciar a luta junto à esfera pública, com o fito de serem reconhecidas suas ponderações quanto à indústria e a necessidade de proteção e, além disso, a sua relação com a imprensa opositora na época. Empregarei para tanto os artigos compilados no documento O Trabalho Nacional e seus Adversários, de 1881, e um artigo do Jornal do Commercio, que julgo serem relevantes para formar e informar sobre os ideários e objetivos desta entidade e sua posição favorável à indústria fabril nacional. * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). 60 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A primeira parte do artigo tratará da questão da propaganda, e o periódico O Industrial será nosso objeto, entendendo que foi através deste órgão da Associação Industrial que foi possível a divulgação da causa da indústria fabril. Na segunda parte, além da narrativa dos ideários e objetivos da Associação Industrial, serão expostas as divergências entre os jornais que apoiavam a causa industrialista e seus opositores Gazeta de Notícias e Rio News, trazendo assim a posição da Associação Industrial e a sua ação junto à esfera pública com a intenção de ganhar espaço no corpo social e político. O periódico O Industrial A diversificação da imprensa nos grandes centros urbanos na década de 1880 era um marco do período. Ao lado das edições dos jornais diários, proliferaram revistas mundanas, periódicos críticos e literários e impressos que falavam do mundo do trabalho comum em um momento de grande movimento político e social (BARBOSA, 2010, p. 118). No Rio de Janeiro, o movimento de ampliação da imprensa é muito expressivo. No ano de 1881, tivemos o aparecimento de 95 novos periódicos e, no ano seguinte, mais 64. Até o final da década esses números permanecem-nos mesmos níveis, e já em 1883 aparecem mais 56 novos jornais e no ano seguinte mais 37. Em 1888 o número aumentou para mais 45 novos jornais e revistas (FONSECA, 1941, p. 30). Dentre os objetivos definidos no Estatuto da Associação Industrial do Rio de Janeiro, como alvo a ser alcançado, destacava-se a confecção de um periódico que seria mensal, com características próprias, fazer a propaganda para a Associação e a defesa dos interesses da indústria. Segundo O Industrial: Com a publicação desta folha, a Associação Industrial procurou os meios mais eficazes de propaganda e defesa das indústrias e industriais do Brasil, revelando aos seus concidadãos o adiantamento das primeiras e reclamando dos poderes públicos a devida proteção aos seus legítimos interesses. 40 O Industrial objetivava discutir todos os assuntos relativos aos interesses da indústria e para tanto publicou artigos que questionavam a posição do Governo quanto à falta de apoio e incentivo para a indústria: “Nessa fonte o leitor encontrará minuciosas informações, às vezes repetidas pela necessidade de controvérsias que são dignas da sua reflexão e apreço antes de formular um juízo definitivo”.41 40 O Industrial. In: Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 155.Disponível em<: http: //memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010. 41 Prefácio. O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. XI. Disponível em <: http: //memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010. 61 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Nas argumentações apresentadas no documento, constam questões como: “O atual estado da indústria”; “Poderá entre nós vingar a Indústria?”; “Quais os embaraços que impedem o seu desenvolvimento?”; “Como combater seus obstáculos?”; que são respondidas com o fim de explicar a “situação da indústria” no Império. Neste artigo, antes de se referir à pergunta a ser respondida, há a intenção de explanar as bases para o progresso de qualquer indústria, que seguem: “1º matéria prima abundante e de preço módico, 2º Perfeição e barateza dos produtos, 3º existência de bons mercados consumidores” 42 . Sobre a primeira, a Associação Industrial, através de seu periódico, argumenta: Não basta, porém, que esta seja abundante, é também preciso que seu custo seja módico, e para isto convém que esteja, por assim dizer, ás portas das fábricas; portanto, se, para obtê- la, tiver o fabricante necessidade de fazer grandes despesas, não poderá, com certeza, introduzir no mercado produtos baratos, ficando destruída a segunda condição de progresso. Ainda não é tudo: se os produtos não tiverem também pronta saída, e ficarem acumulados nas fábricas, a conseqüência natural e inevitável será a falta de meios para continuarem os fabricantes a produção pela diminuição dos seus capitais.43 A circunstância assim narrada advém da preocupação quanto à venda dos produtos nacionais e a concorrência de produtos estrangeiros, razão da necessidade de expor a luta que a indústria jazia no Império, trazendo à esfera pública este tema com a perspectiva de possibilidade de mudança: “Se, para que a nossa indústria se desenvolva, fosse bastante somente à existência daquelas condições gerais, diríamos com toda a convicção: Sim, entre nós a indústria há de progredir.” 44 Outro artigo abordou o subseqüente tópico: “Há embaraços que impeçam o desenvolvimento da indústria nacional?” Pergunta pertinente quanto se almejava explicar os pontos de relevância para com a indústria nacional à esfera pública. Um dos embaraços que mais entorpecem, ou antes, convergem para o aniquilamento da indústria nacional, são as nossas tarifas aduaneiras que se encarregam de tributar com direitos calculados sob a mesma razão, tanto algumas matérias primas como os artefatos com ela fabricados. 45 O periódico O Industrial argumenta como a matéria prima estaria sujeito aos mesmos impostos, como fora de um artefato já concluído, questionando como uma indústria poderia 42 Tudo tem a sua época. Rio de Janeiro: 1881. p. 1112 .Disponível em <: http: //memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010. 43 Idem p.113. 44 Ibidem, p.115. 45 Ibidem, p. 118. 62 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades sobreviver com tão pesado imposto. Em suas indagações, continua em seu artigo a crítica para com o Governo Imperial. Mas, que importa aos nossos governos que a indústria desapareça que centenas de indivíduos, homens, mulheres e crianças, que tiram dela o seu sustento, fiquem sem pão e procurem na embriagues o esquecimento dos seus sofrimentos, ou na prostituição e no roubo os meios de satisfazer as mais imperiosas necessidades da vida, se as nossas alfândegas despejam mensalmente nos cofres do tesouro enormes somas.46 Outro embaraço para o progresso da indústria seria o calculo dos direitos da tarifa, feito de maneira a prejudicar a indústria fabril: “Entre nós, a base para o cálculo dos direitos têm sido promiscuamente os preços do mercado importador do Rio de Janeiro para uns gêneros, e o do exportador aumentado de todas as despesas para outros.” 47 O último ponto com relação às indagações até aqui expostas pelo periódico O Industrial seria: Como combater os obstáculos que impedem o desenvolvimento da indústria nacional? Na análise da Associação Industrial, era através da história de outras nações que, ao optarem pelo protecionismo, puderam incentivar suas indústrias e assim alcançar um desenvolvimento mais adequado, para com a competição de produtos estrangeiros em seu território. Quando mais atentamente lemos a história da indústria das outras nações, quanto mais aprofundamos o estudo das causa que lhe deram impulso, mais inabalável se torna em nosso espírito a intima convicção de que foi á sombra de sistema protetores que ela se desenvolveu e prosperou 48 Os países que se referem o periódico eram a Inglaterra, a França e os Estados Unidos da América, que na década de 1880 eram livre-cambistas, mas em sua história tiveram um passado protecionista e até proibitivo, como fora o caso dos Estados Unidos da América, que era exemplo para a Associação Industrial. No caso da Inglaterra o periódico alegou que sua mudança ocorrera mediante a organização e estruturação de suas indústrias para a competição com as demais nações. Conforme assegura O Industrial, o obstáculo a ser vencido seria a ideia livre cambista espalhada pela própria Inglaterra, que iria influenciar e dominar as nações novas. E para se evitar essas ideais se fazia necessário o entendimento de seu teor e a luta dos industriais pela proteção do mercado interno do Império. Para tanto o Governo teria que proteger as indústrias através de uma tarifa que garantiria a sobrevivência da indústria existente e incentivasse as 46 Idem, p. 119. Ibidem, p. 120. 48 O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 155. Disponível em<: http: //memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010. 47 63 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades que iriam florescer. Segundo Marco Morel, em seu livro As Transformações dos Espaços Públicos (2010): Quando se fala em educação e imprensa como canais dirigidos aos “Povos” (tomados aqui como objetos carentes de conhecimento ou entendimento), não é difícil verificar quem são os educadores e redatores. Os construtores dessa opinião pública são, em outras palavras, os membros da chamada República da Letras, os letrados, os esclareci dos (MOREL, 2010, p. 208). Os industriais utilizaram a imprensa como um meio para abordar o ‘povo’ de uma forma objetiva, dentro do costume da época, quando eram comuns exemplares de jornais fixados nas redações e os passantes comentavam em voz alta as últimas notícias (BARBOSA, 2010, p. 118). Artigos do periódico O Industrial também eram publicados em jornais importantes da Corte, como o Jornal do Commercio. Em 29 de dezembro de 1881 foi publicado um artigo sobre ‘A Nova Tarifa Alfandegária e a Indústria Nacional, que narra as dificuldades encontradas pela indústria nacional quando foi anunciada a revisão alfandegária de 1880, que reverteu os ganhos alcançados com a tarifa de 1879. O mesmo artigo menciona ainda as consequências que ocorreriam com as fábricas nacionais, afetadas pela a concorrência estrangeira. Veio então uma nova tarifa desfechar golpe certeiro nessa indústria facilitando de um modo inaudito a entrada aos chapéus de lã e lebre fabricados no estrangeiro com todas as aparências chapéus de lebre pura, e crendo uma insidiosa classe com o título de chapéus de Braga e semelhantes sob a qual se abriu campo às fraudes e a mais desleal concorrência a produção nacional. As conseqüências não se fizeram esperar, muitas de nossas fábricas tiveram de fechar as suas portas e grande cabedal de fortuna e de energia lá se foi por água abaixo, graças a tarifa. As 15 fábricas da Corte ficarão reduzidas a 10, e as províncias a 17, sendo RS 4, Santa Catarina 1, 5 na província de São Paulo, 2 em Minas Gerais, 2 na Bahia, 2 em Pernambuco, e 1 no Paraná.49 A revelação da realidade enfrentada pela indústria fabril tinha como alvo sensibilizar a esfera pública para as suas necessidades e sinalizar o crescimento e o desenvolvimento da mesma no Império. Podendo assim, expressar para o Governo as dificuldades encaradas pela indústria, com a intencionalidade de influenciar os homens da política. A forma encontrada para esta relação era a imprensa porque alcançava a esfera pública e a política ao mesmo tempo. A imprensa opositora da Associação Industrial Vejamos a relação entre o periódico O Industrial e o Rio News, opositor das idéias protecionistas ventiladas pela Associação Industrial. Causa admiração na Associação 49 A Nova Tarifa Alfandegária e a Indústria Nacional. O Industrial, 12 de Janeiro de 1882. 64 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Industrial o dito jornal ser contra o protecionismo, entendendo que o seu próprio redator, sendo americano, tinha conhecimento de que seu próprio país fora protetor em relação as suas indústrias, em um dado momento de sua história. O Rio News gemeu sob a impressão desagradável que lhe causou a nossa propaganda: fez inventario das misérias que vão levar o nosso país ao abismo, e, até denunciou que as taxas da tarifa de 1879 são protecionistas, ultra protecionista mesmo! O ilustre colega tudo receia, que o pão encareça, que as vestimentas, as casas, os confortos da vida, atinjam um preço fabuloso: que a renda do tesouro não possa mais fazer face às despesas; em fim no tinteiro do jornalista um só desses argumentos do velho mundo com que costumam aconselhar ás nações novas que se resignem á sorte de seus colonos...50 Em seguida O Industrial argumenta que a proteção de 30% exercida na tarifa de 1879 não protegeu a indústria nacional como se fazia necessário. E que os Estados Unidos da América fora proibitivos e não protecionistas, como rezavam as idéias da Associação: “É, pois, sem fundamento que o Rio News assevera que temos direitos protetores, visto como as indústrias nacionais têm de lutar com as semelhantes estrangeiras, que são protegidas pela nossa legislação aduaneira.” 51 Em todo o artigo do Rio News há um confronto de pensamento desse jornal e O Industrial, que julgo ser necessário apresentar para realçar o entendimento do que a Associação Industrial divulgava para esfera pública, com a intenção de informar e formar todos que pudessem ter acesso ao periódico. Como afirma José Murilo de Carvalho (1996, p. 341): Falar de grupos políticos, projetos e atuações políticas implicam, antes de tudo, em abordar a imprensa, que era o principal veículo de atuação e propaganda política no espaço público. Além disso, fornece preciosas informações sobre as atividades das associações, do Parlamento e das manifestações políticas. As críticas trocadas por ambas as partes percorrem um longo caminho. Exporei algumas delas com a intenção de configurar o conflito e demonstrar a luta que a Associação Industrial travou a fim de serem reconhecidas e ouvidas suas reivindicações. Órgão do comércio anglo-americano e principalmente interessado na importação de mercadorias estrangeiras desde as locomotivas Baldwin que não podemos tão cedo fabricar até os bancos para escola que alguns vereadores da Câmara Municipal preferem mandar buscar em New York, desde as máquinas da lavoura que tão úteis nos são até a salsaparrilha de Ayer que já podemos perfeitamente dispensar, graças ao Sr. Marques de Holanda, o Rio News não pode ser ao mesmo tempo agente consciencioso das fábricas americanas e inglesas e bom advogado da indústria brasileira. 52 50 Rio News. O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 55. Disponível em <: http: //memoria. nemesis.org.br>. 51 Idem, p.58. 52 Ibidem, p.63. 65 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Com a afirmação do periódico o ‘Industrial’, que o Rio News era um órgão associado ao comércio importador, pode se observar sua ponderação mediante seus interesses em particular. Segundo O Industrial, “O protecionismo direto só é conveniente quando necessário para o desenvolvimento industrial: convém a face embrionária da indústria, como uma circulação planetária.” 53 O periódico prossegue as considerações agora argumentando sobre o valor do posicionamento de nossa “irmã americana” que, ao proteger sua indústria, pode sair do controle que a Inglaterra exercia: “Reconhecendo que a proteção foi o estímulo da organização industrial da poderosa república nossa conterrânea, pergunta o Rio News qual seria o estado atual daquele país se o regime do livre câmbio houvesse presidido á sua evolução.” 54 A imprensa constitui neste período um instrumento de articulação política de defesa de propostas de grupos que pertencem à classe dominante. Poderemos verificar aqui o entrave entre industriais brasileiros e os importadores e as questões que estão explicitadas no embate destes grupos, isto é, o sistema protecionista e livre cambista. A imprensa cria condições necessárias ao desenvolvimento de um campo intelectual, cujos integrantes vão participar diretamente das instituições e dos grupos que irão exercer a própria dominação. A vida intelectual passa a ser dominada pela grande imprensa, que se constitui na principal instância de produção cultural, fornecendo a maioria das posições intelectuais (BARBOSA, 2010, p. 141). A Gazeta de Notícias era outro jornal que combatia a proposta protecionista da Associação Industrial, revelando sua disposição em discutir o assunto pela imprensa. Suas críticas eram referentes à falta da matéria prima para o desenvolvimento da indústria no Império. Com isso questionavam a necessidade de se ter uma indústria fabril e sua compreensão de que a doutrina livre cambista era a mais adequada para as novas nações. Eis seus argumentos: “A Gazeta diz: que a proteção chegou a tomar as proporções de um delírio, e sem estudo sem reflexão, todos se pronunciam por suas teorias, quer sejam industriais, quer sejam consumidores.” 55 Em seguida expõe O Industrial sua luta pela indústria a partir de suas prerrogativas. Por outro lado, se o Industrial se apresenta de frente, na luta das idéias propagadoras do desenvolvimento do trabalho do povo, e nesta gloriosa atitude, ele se mostra crente, tenaz e perseverante, é porque a convicção do seu apostolado está na altura 53 Ibidem, p.64. Ibidem, p.68. 55 O Industrial. O Trabalho Nacional e seus Adversários. Rio de Janeiro: 1881. p. 182. Disponível em<: http: //memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010. 54 66 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades da raiva dos importadores, receosos de perderem um freguês de ordem superior. É ele, o industrial, o primeiro que sente os efeitos da concorrência estrangeira, quem conhece mais a fundo os ardis de que ela se serve para lhe embargar os passos nas suas primeiras tentativas.56 Confirmando seu pensamento livre cambista a Gazeta de Notícias afirma que a riqueza de um país está em importar mais do que exportar e menciona o fato do Império não possuir matéria prima para abastecer suas fábricas. O Industrial faz um questionamento quanto a esta posição liberal: “A Gazeta é injusta com o país que a sustenta, apesar de suas contradições... Falta-nos a matéria prima perto de nós? O que é o Ferro? (...) Até o carvão, a Gazeta desconhece a sua existência neste solo onde tudo há de abundancia.” 57 O Industrial assegura que o que falta a essas matérias primas unicamente é a indústria que lhes dê o devido valor e utilidade e que há necessidade de quem as explore para o bom desenvolvimento da indústria no Império e proveito para a população. Note mais a Gazeta, que a tarifa de 1879, tendo dispensado, por este modo, uma diminuta proteção a certas indústrias do país, não está, contudo, no caso de dizer-se protetora, porque, além de outras razões, ela sobrecarrega também as matérias primas, ou semi-fabricadas de que se servem as nossas indústrias. Entretanto, onerando mais um pouco o fabricante estrangeiro, de modo que não lhe deixa margem para tornar-se arbitro absoluto dos preços da indústria nacional, quando lhe convenha guerreá-la, ou sob o pretexto da menor alteração de cambio, as fábricas do país podem contar com alguma estabilidade de existência e os consumidores com a maior justeza de preço. 58 O pensamento da Associação Industrial era moderado quanto à serventia da tarifa de 1879, pois apenas alguns ramos da indústria poderiam se beneficiar, aspirando uma nova tarifa que viesse a contribuir de uma forma mais adequada a todos os ramos de indústria existentes no Império. No artigo VIII, sobre a tese que desvenda as razões da defesa do protecionismo, a Associação Industrial considera que não tem sido compreendida por seus opositores, Gazeta de Notícias e Rio News. Em seu entendimento assegura que: Não queremos, no nosso país, a doutrina do livre câmbio, porque, para admiti-las seria necessário dar entrada livre aos artefatos estrangeiros, anulando a existência das alfândegas, de que resultariam dois grandes males, um na época presente, tal como privar repentinamente o Estado da sua maior renda, e o outro o aniquilamento da futura prosperidade da nação, que se nos impede pelo desenvolvimento gradual do trabalho das indústrias reunidas.59 A Associação Industrial fundamenta sua maneira de atuar discutindo as argumentações da Gazeta de Notícias, que compreendia o protecionismo empregado como: 1º A proteção 56 Idem, p.185. Idem, p. 186. 58 Idem, p.188. 59 Idem, p.195. 57 67 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades redunda em prejuízo do consumidor, 2º A proteção prejudica o Estado porque dá origem ao contrabando, 3º A proteção leva os fabricantes à falsificação dos seus produtos. Destacarei as argumentações dos dois lados, para configurar o debate. Eis o primeiro: A proteção redunda em prejuízo do consumidor, porque os fabricantes do país, garantidos pelo Estado, não deixariam de impor e exigir altos preços pelas suas mercadorias, e o consumidor, para beneficiar a poucos industriais, privava-se do seu bem estar, criando-se, assim, dificuldades.60 Conforme o periódico, “A proposição seria verdadeira se desse o fato de só existir um fabricante para o fornecimento da grande massa, que nenhuma concorrência lhe fosse permitida, resultando em monopólio”. 61 O corretivo para o monopólio seria a concorrência, porém esta deveria ser leal com níveis de desenvolvimento técnico compatível com os opositores. Com essa afirmação a Associação pretende demonstrar o entendimento que possuía sobre a doutrina liberal e seu desígnio de absorver os países novos, tornando-os dependentes e, portanto submissos aos seus ditames. Conforme demonstrado na pesquisa, a Associação Industrial do Rio de Janeiro utiliza a propaganda como um meio para divulgar suas ideias junto à esfera pública e ao governo Imperial. Ao confrontar-se com aos seus opositores, utiliza esta oportunidade para debater seu projeto junto à esfera pública, alcançando assim seu objetivo de trazer visibilidade à causa da indústria fabril no Império. FONTES A nova tarifa alfandegária e a indústria nacional. O Industrial, 12 de Janeiro de 1882. Disponível em:< http: //memoria. nemesis.org. br.> Acesso em: 20 mai 2010. O trabalho nacional e seus adversários. O Industrial. Rio de Janeiro: 1881. Ministério da Fazenda. Disponível em <:http: //memoria. nemesis.org.br>. Acesso em: 20 mai 2010. Rio News. O Industrial. Rio de Janeiro: 1881. Ministério da Fazenda. Disponível em <:http: //memoria. nemesis.org.br>. Acesso em: 20 mai 2010. Tudo tem a sua Época. O Industrial. Rio de Janeiro: 1881. Ministério da Fazenda. Disponível em <http: //memoria. nemesis.org.br>. Acesso em: 20 mai 2010. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania, tipos e percursos. Estudos Históricos. v. 9, n. 18. Rio de Janeiro, 1996. 60 61 Idem, p. 196. Idem, p. 197. 68 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades FONSECA, Godin Quaresma, 1941. da. Biografia do Jornalismo Carioca (1808-1908). Rio de Janeiro: MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, Atores Políticos e Sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840) São Paulo: Editora Hucitec, 2010. 69 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Os simplicia do Reino: a lista de medicamentos simples da Farmacopeia Tubalense Químico-Galênica de 1735 Leonardo Gonçalves Gomes Resumo: O período conhecido como barroco médico – séculos XVII e parte do XVIII – é singularmente transformador no que tange a prática fármaco-medicinal lusitana. A escolástica medieval e a medicina galênica passam a ser cada vez mais criticadas por alguns adeptos as descobertas europeias no campo da arte curativa. Paralelamente, um número ímpar de livros voltados ao saber curativo é publicado em todo o Reino português. Uma das obras mais fascinantes deste processo são as farmacopeias - manuais destinados ao ensino da fabricação e utilização de medicamentos – que alcançaram grande número de publicação e circulação entre Portugal e seus domínios. Dentre as farmacopeias portuguesas escritas no período a Tubalense Químico-Galênica de 1735 é uma das mais reveladoras do que era entendido como prática “farmacêutica” no Reino Lusitano. Além de apresentar um grande quantitativo de receitas medicamentosas, este livro descreve uma relação ímpar de simplicia– medicamentos a base de um único vegetal, animal ou mineral - mais utilizados no período. O estudo desta lista pode nos fornece um prisma sobre a identidade cultural fármaco medicinal lusitana durante a primeira metade do período setecentista. Palavras-Chave: Farmacopéia; medicina; medicamentos. Abstract: The period known as the medical baroque - part of the seventeenth and eighteenth centuries - is singularly transformative in the Lusitanian medicine and in the drug manufacturing practices. Medieval scholasticism and Galenic medicine have become increasingly criticized by some supporters of the European discoveries in the art of healing. Meanwhile, numerous books about this subject were published throughout the Portuguese Kingdom. The most fascinating works were the pharmacopoeias - teaching manuals for the manufacture and use of drugs - which reached a large number of editions and a wide circulation in Portugal and its dominions. Among them, the Pharmacopoeia Tubalense, written in 1735, was one of the most representatives of the healing practices in the Portugal’s Kingdom. In addition to presenting a large quantity of drug recipes, this book contains a unique list of the more used medicaments in that period based on a single plant, animal or mineral. The analysis of this list can give us a perspective on medical and drug practice and on cultural identity in Portugal during the first half of the eighteenth century. Keywords: Pharmacopoeia; Medicine; drugs. O período que se seguiu ao renascimento cultural marcou o mundo europeu com um desenvolvimento de conhecimentos relacionados à astronomia, a física, a química e as ciências naturais de forma singular. (DIAS, 2005: Pag. 50). Neste processo, o campo medicinal sofre diversas transformações, o que veio a mudar significativamente os conceitos e Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ); bolsista Faperj. 70 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades práticas da arte de curar. Paralelamente a reestruturação e criação de novos conceitos fármaco medicinais, os séculos XVI e XVII também experimentaram a proliferação de uma diversidade de novas ervas e drogas de efeito curativo por todo o continente europeu. (DIAS, 2005: 44 e 45). A maioria destas naturas vinha do oriente (árabes, hindus, chineses e outros), mas algumas eram originárias da África e da América. Além disto, também temos a crescente utilização de medicamentos químicos na Europa, que a princípio era proibido pela Igreja, pois o Santo Ofício associava à química a alquimia 62. Impulsionada pela intensa produção de conhecimentos sobre a prática médicofarmacêutica neste período, a publicação de obras literárias de cunho medicinal sofre um grande desenvolvimento. Várias farmacopeias - manuais de ensino sobre a prática médicofarmacêutica e da fabricação de drogas e composições medicamentosas, contendo a sistematização de diversas naturas utilizadas na produção de “remédios” bem como da finalidade curativa de cada um destes - são produzidas por diversos profissionais e estudiosos da medicina63. A crescente escrita de obras deste gênero vai influenciar diretamente na circulação de ervas e drogas medicinais pelo mundo conhecido, além de corroborar para uma tentativa de padronização e aperfeiçoamento da prática fármaco medicinal. Seguindo um caminho de aproximações e distanciamentos dos avanços científicos da modernidade, o Reino português mantém sua terapêutica apegada às tradições da medicina antiga, mesclada à escolástica medieval. Os efeitos da “efervescência científica” e o abandono a concepções medievais de cura são questões estudadas em Portugal por um grupo muito pequeno de profissionais medicinais, já que a maioria defendia veementemente o galenismo. Tamanha era à força destes conceitos na sociedade portuguesa que os adeptos as novidades da ciência europeia, em pleno início do século XVIII, eram chamados pejorativamente de “estrangeirados”. (RIBEIRO, 1997: Pag. 116). O próprio João Curvo Semedo, importante médico e Familiar do Santo Ofício, na virada do século XVII e início do XVIII, afirmou que em Portugal os tratamentos curativos resumiam-se a “sangrias, ajudas, ventosas, dieta, esfregações, água de papoilas, pedra Bazar, catolicão, Diaprunis, xarope Áureo, açúcar rosado, folhas de Sene e canafístula” e ainda, quando os médicos se alargavam muito, “uma tisana ou amendoada, umas fontes e uns banhos” (SEMEDO, 1697: Pag. 224). Tal fator não é 62 Os medicamentos químicos começam a serem produzidos a partir dos estudos de Paracelso no século XVI. Mas, neste primeiro momento, química e alquimia estavam intimamente ligadas. A Igreja sempre condenou a alquimia como uma prática de bruxaria e por esse motivo os remédios químicos serão vistos com maus olhos pelos clérigos. 63 Para maiores detalhes sobre as Farmacopeias ver os interessantes estudos sobre o assunto de: GUERRA, F. Carvalho. ALVES, A. Correia. Breve notícia histórica sobre as Farmacopéias portuguesas até o século XIX. In, História e Desenvolvimento da Ciência em Portugal. Org. Barbosa & Xavier. Lisboa, Lda-Braga. 1987. 71 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades motivo para afirmamos que no restante da Europa os conceitos curativos galênicos já haviam sido totalmente superados, mas sim que em Portugal o apego a estes saberes era muito maior. Apesar de não serem muito adeptos às transformações que estavam ocorrendo no campo medicinal europeu durante o período denominado por João Rui Pita como barroco médico64, os portugueses também investiram muito na catalogação de ervas e drogas de uso medicamento e na publicação de livros fármaco-medicinais que sistematizavam esses “novos” saberes. Desde a expansão marítima, estudiosos portugueses buscaram o conhecer sobre ervas, drogas e saberes curativos de diferentes regiões. Sendo os primeiros a realizarem este trabalho no Oriente, os lusos transmitiram ao mundo europeu, através dos escritos de Garcia da Orta65, uma infinidade de receitas medicamentos, ervas e minerais que a luz da medicina galênica em muito enriqueceram a terapêutica ocidental. Durante o barroco médico, é crescente o número de publicações em Portugal que corroboram para o desenvolvimento e circulação do saber médico-farmacêutico lusitano. Porém, estas obras, assim como a grande maioria dos livros deste período, eram escritos em latim, o que, segundo autores do período, limitava em grande escala o público que se utilizava delas66. Ao abrir-se o século XVIII, podemos observar uma intensificação do processo de produção de manuais da prática fármaco-medicinal lusitana. Conhecido como o século das farmacopeias no Reino, o período setecentista nos trouxe muitos livros deste gênero, todos eles publicados em língua vernácula (PITA, 2000: Pag. XVII-XVIII). Dentre os agentes que se propunham a escrever tais obras, podemos destacar aqui os boticários, que segundo a historiadora Vera Beltrão, eram homens que para curar se “valiam de todos os recursos”, lançando mão de conhecimentos que vinham de “Mezinheiros aos Pajés, passando por formulações desenvolvidas pelos jesuítas” (MARQUES, 1999: Pag. 29). Ao falar sobre o caráter intermediário destes profissionais na sociedade lusitana setecentista, José P. S. Dias diz que estes eram “simultaneamente mecânicos e distintos da maioria dos mecânicos” (DIAS, 2007: Pag. 02). Sendo considerados como importantes agentes da prática curativa, mas sem possuir a formação e o status que era creditado aos médicos, os boticários se tornaram figuras plurais da medicina portuguesa. 64 Este conceito é cunhado pelo autor em seus estudos sobre a conjuntura sociocultural da farmácia e medicina portuguesa nos séculos XVII e XVIII. Para maiores detalhes ver: PITA. João Rui. Historia da Farmácia. Coimbra, Minerva, 1998. 65 Colóquios dos simples e drogas da Índia. Lisboa: Imprensa Nacional, 1895. 66 Uma das principais justificativas utilizadas pelos autores de Farmacopeias e Tratados medicinais no século XVIII que queriam publicar suas obras em língua vernácula é que a maioria dos boticários e praticantes da arte fármaco curativa no Reino português não sabiam ler em Latim, o que limitava o acesso destes ao conhecimento mais apurado da arte, por isso cometiam muitos erros e abusos na prática do ofício. 72 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Entre as farmacopeias escritas por um boticário que obtiveram larga expressividade no Império português, podemos destacar aqui a Farmacopeia Tubalense Químico-Galênica. Seu autor foi Manoel Rodrigues Coelho, natural da Vila de Setúbal, tendo nascido em 1687. Foi examinado como boticário em Lisboa no ano de 1707, e aí se estabeleceu com botica na Correaria, junto ao Convento dos Carmelitas Descalços (DIAS, 2007: Pag. 103). Sua obra foi originalmente composta e dividida em dois blocos, com publicação em 1735 – sendo esta a que abordaremos aqui - tendo uma terceira parte sido publicada em 1751. Na primeira parte o autor trata, em 29 capítulos, das questões teóricas da medicina portuguesa, explicando o que era medicina e farmácia, ensinando a preparar os medicamentos galênicos e químicos mais utilizados em Portugal. Também apresenta um dicionário de termos medicinais do período, uma monografia sobre pesos e medidas, além de dedicar os capítulos XXVI, XXVII e XXVIII para descrever a origem geográfica e formas de reconhecer os diversos simples ou simplicias da natureza67. Ao falar de cada um desses simples, o autor segue a seguinte estrutura: apresentação em ordem alfabética, descrição da forma de se reconhecê-los na natureza, origem geográfica, qual o melhor tipo (cor, tamanho, sabor, cheiro, etc.) a ser escolhido para a medicina, as propriedades curativas, o peso e a medida a ser usada junto a outros simples e, em alguns casos, o livro e o autor de onde ele retirou estas informações. (COELHO, 1735: I PARTE). Na segunda parte o autor trata do que ele denomina de “seletas” composições medicamentosas e apresenta uma descrição dos pesos e medidas mais usuais no Império Português. Nesta parte, a obra descreve 961 medicamentos de origem química ou galênica, em cinquenta e seis capítulos. Em cada uma destas fórmulas é apresentado o autor da mesma, sendo estes, estudiosos de diversas épocas. (DIAS, 2007: Pag. 109). Assim, temos uma continuidade do ensino da técnica farmacêutica que o autor almejava de seus futuros leitores junto a uma demonstração de experiências pessoais no que ele denomina de “receitas seletas”, em um processo de permanências e rupturas de conceitos e práticas curativas. Na tentativa de tornar os profissionais medicinais do Reino, principalmente os boticários, grandes conhecedores drogas curativas, Coelho vai reunir uma grande lista de simplicia, a começar pelos animais, no capitulo XXVI de seu livro. Apesar de a flora de diversas partes do mundo ser a principal fonte de produtos medicamentosos, muitas receitas e drogas medicinais eram feitas utilizando partes de animais. Os boticários se valiam de animais 67 Simples ou simplicia é o termo utilizado no período para designar os medicamentos galênicos produzidos, teoricamente, a base de um único elemento da natureza. Para maiores esclarecimentos ver: ANTONIO, Caetano de Santo. Pharmacopea Lusitana. 1704. Edição Fac-similada. Org. e nota introdutória João Rui Pita. Coimbra. Minerva. 2000. Cap. I. 73 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades das mais variadas geografias e territórios (Índias orientais e ocidentais, China, Japão, África, Peru, México, Brasil, Grécia, Espanha, Portugal, etc.). (COELHO, 1735: Cap. XXVI). Além de descrever a origem da maioria dos 51 “produtos” curativos a base de animais, Manoel Rodrigues Coelho afirma que 03 itens da lista eram comercializados pelos holandeses, 01 pelos venezianos, 01 pelos portugueses e 01, o unicórnio marino, “era produzido em tão larga escala que, na época em que a obra foi escrita, este produto valia a milésima parte do seu valor no passado”. (COELHO, 1735: Pág. 179-180). No capítulo XXVII da Farmacopeia Tubalense são descritos os vegetais. Estes, como já foi dito acima, eram os produtos mais utilizados na fabricação de medicamentos no Reino português. Desde a antiguidade, ervas, frutos, raízes, plantas, etc., permeavam expressivamente a farmácia galênica e, ao longo do desenvolvimento da medicina na história, o número de drogas deste gênero só veio a crescer, com grande destaque para as oriundas das Índias Orientais. Apenas no Tratado XXVII do seu livro, Manoel Rodrigues Coelho apresenta 205 vegetais de uso medicamentoso, sendo 83 do Oriente e 32 do Brasil. (COELHO, 1735: Cap. XXVII). Mas, assim como no caso dos animais, muitas outras territorialidades de todos os continentes conhecidos aparecem como fornecedores de sua flora curativa. No caso da América é expressiva para o período a participação do Brasil, já que é consenso nas pesquisas sobre esta temática que é somente em fins do século XVIII que a colônia portuguesa na América vai alcançar maior presença na farmácia lusitana. Somente com os dados acima citados, podemos observar que a grande fonte primária dos medicamentos portugueses era os vegetais. Russel-Wood ao falar sobre a circulação das especiarias e ervas para uso curativo no Império português afirma que entre as que eram comercializadas no Reino estavam: pimenta, gengibre, maná, ruibarbo, cravo da índia, canela, âmbar, tamarindos, cevada, trigo, mel, etc. (RUSSEL-WOOD, 1992: Pag. 195-198). Outro expoente sobre estes estudos, o historiador Charles Boxer, diz que desde o século XVI, Portugal já era uma grande “plataforma de distribuição de especiarias que abasteciam diversos mercados europeus e no atlântico” (BOXER, 2001: Pag. 70). Em meio a esta circulação comercial, era grande a presença de simples curativos que enchiam os estoques de boticas espalhadas por todo o Reino e a inserção do Brasil neste contexto só veio a ampliar e fortalecer o comércio medicamentoso português. No capítulo XXVIII, Manoel Rodrigues Coelho vai trabalhar com os minerais e seus usos curativos. O autor descreve 60 simples onde, dentre estes encontramos: 6 sais, 4 a base de chumbo, 2 a base de mercúrio, 3 a base de algum tipo de terra, 3 feitos a partir do cobre, 2 fabricados a partir do ferro, 3 oriundos do arsênico e 5 pedras preciosas. De todos os itens 74 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades listados por Coelho, 5 o autor afirma que recebem influência de algum astro celeste e 2 recebem como uma das nomenclaturas o nome de algum corpo celestial, o que indica que estes também eram influenciados medicinalmente por estes elementos do céu. (COELHO, 1735: Cap. XXVIII). Muito apreciados pela química, mas também utilizados em larga escala pelos galênicos, os minerais eram parte essencial de qualquer botica ou loja de droguista do Reino português. Assim como nos casos dos animais e vegetais, os simples a base de elementos do mundo mineral carregavam uma gama de saberes, crendices e até superstições da cultura letrada e popular, misturados aos usos e práticas da farmácia química. Dos itens citados acima, 5 são pedras preciosas. A crença no poder curativo dos pós destas joias era muito corrente em Portugal e em outros Reinos europeus68. Sendo compartilha na quase totalidade por nobres e a alta burguesia, pois era caríssimo este tipo de medicamento, esta crendice será praticada por todo o século XVIII. Para, além disso, ainda existia a crença na astrologia e no poder curativo e/ou influenciador dos astros celestes (planetas, cometas, estrelas, etc.), que foi muito mais aceita na Idade Média e nos primeiros momentos da modernidade, mas que durante o período setecentista “continuava a fornecer explicações para os mais diversos fenômenos da natureza”. (ABREU, 2006: Pag. 82). A lista de minerais da Farmacopeia Tubalense, além de nos descrever a riqueza cultural da estrutura medicinal lusitana, também nos apresenta a circularidade comercial existente em torno destes produtos curativos. Dos 60 minerais citados por Rodrigues Coelho, apenas em 2 casos não é apresentada a origem geográfica do simples, e 14 são descritos como produzidos e comercializados internamente no Reino português ou com outras regiões do mundo. (COELHO, 1735: Cap. XXVIII). Tais dados corroboram na afirmação já dita aqui de que existia uma grande circulação comercial de drogas medicamentosas, simples e compostas, entre Portugal, seus domínios ultramarinos e diversas outras partes do mundo setecentista. Para além da circulação destas drogas medicinais, a Farmacopeia Tubalense nos traz um prisma sobre os saberes curativos que envolviam os medicamentos que circulavam no Reino. Tendo como coluna mestra a teoria dos humores69, as drogas medicamentosas eram 68 Para maiores detalhes sobre esta prática, ver o interessante estudo de: CARNEIRO, Henrique. Filtros, mezinhas e triacas: as drogas no mundo moderno. São Paulo: Xamã, 1994. 69 Teoria desenvolvida por Hipócrates e Galeno que pregava que o homem era interiormente dividido por quatro humores: a Bílis negra, a Bílis amarela, o Sangue e a Fleuma ou Linfa. A Bílis negra procedia do baço, a Bílis amarela procedia do fígado, o Sangue do coração e a Fleuma do cérebro. Cada um destes humores e região de origem possuía uma qualidade, sendo a Bílis negra fria e seca, a Bílis amarela quente e seca, o Sangue quente e úmido e a Fleuma fria e úmida. Conforme o desenvolvimento destes humores, um deles acabava se destacando no corpo vindo, a formar o tipo fisiológico do indivíduo, que poderia ser: melancólico, colérico, sanguíneo e fleumático. Para maiores detalhes ver: DIAS, José Pedro Souza. A Farmácia e a História: Uma introdução à 75 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades produzidas a partir do prisma de que deviam combater o humor em excesso no corpo, pois só assim curariam o enfermo. Termos como anódino, resolutivo, defecante, sudorífero e outros mais70, próprios da terapêutica humoral, estão presentes em todos os comentários que Rodrigues faz dos simples que relaciona em sua obra. Homem de seu tempo, este acreditava que as doenças eram originárias do desequilíbrio dos humores, que poderia ocorrer devido a influências naturais e sobrenaturais. Por isso, o medicamento utilizado devia ter poder contrário ao temperamento e estado do humor a se combater. Ou seja, se um determinado humor for frio, a receita medicamentosa deveria ser de natureza quente para que a harmonia do corpo fosse restabelecida e a doença expurgada. Ao longo da construção e enriquecimento da terapêutica galênica, alguns simples um tanto “exóticos” foram incorporados. Na lista de simplicius da farmacopeia Tubalense encontramos: chifres, testículos, partes do estômago, urina, dentes, ossos, minerais com “influência” dos astros, pó de pedras preciosas e até excremento humano e animal como poderoso remédio contra os males do corpo. Mas, um dos medicamentos mais “estranhos”, aos nossos olhos, da lista já citada, é o pó de múmia, indicado por Galeno na Grécia Antiga. (COELHO, 1735: Cap. XXVI e XXVIII). O corpo humano era considerado pela Igreja como algo sagrado. O uso de partes deste como uma droga com poder curativo era associado, em diversos casos, à feitiçaria e curandeirismo indígena e africano, ambos condenados pela Santa Inquisição 71. Deste modo, a indicação de um corpo humano não cristão e africano em um livro medicinal aprovado pelo Santo Ofício, é uma das muitas “singularidades” presentes na medicina setecentista. O autor ainda acrescenta que as melhores múmias eram os “corpos violentamente mortos, e não por enfermidades. Resplandecentes e negras” (COELHO, 1735: Pag. 170). Tal afirmação nos mostra o quanto que superstições e crendices populares se mesclavam a conhecimento médico-farmacêutico erudito português e europeu desde os primórdios da história. Outra manifestação do hibridismo cultural medicinal lusitano, presente na lista de simples curativos de Rodrigues Coelho, são os amuletos protetores. Dos simples de animais citados pelo autor, 4 são apontados como amuletos. O sentimento de insegurança tanto física como espiritual gerava uma necessidade generalizada de proteção de diversos males físicos, História da Farmácia, da Farmacologia e da Terapêutica. Disponível em: http://www.ff.ul.pt/paginas/jpsdias/histsocfarm/Farmacia-e-Historia.pdf. 70 Dicionários de termos medicinais, farmacêuticos e diversos nomes de medicamentos simples e compostos do século XVIII produzido por Manoel Rodrigues Coelho na primeira parte da Farmacopeia Tubalense. 71 Laura de Mello e Souza apresenta vários trabalhos que descrevem a mescla de práticas mágico-religiosas, feitiçarias e bruxarias na sociedade Luso-brasileira setecentista. Estas eram utilizadas para proteção, busca de favor, curas, etc. para maiores detalhes ver: SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil Colonial. São Paulo. Companhia das Letras, 1986. 76 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades sociais e espirituais. Segundo Daniela Calainho, o costume do uso de amuletos em Portugal foi corrente às primeiras décadas do século XVIII, envolvendo não apenas escravos, mas também homens brancos (CALAINHO, 2008: Pag.109-112). Feitas de couro, veludo, chita ou seda, as bolsas de Mandinga, maneira como muitos desses amuletos eram conhecidos, continham ingredientes variados, como ossos de defuntos, desenhos, orações católicas impressas, sementes, dentre outros apetrechos, mesclando diversas tradições culturais. Como o Reino não possuía profissionais medicinais suficientes para atender a população, “era comum à recorrência aos atos mágicos” em busca de cura. (RIBEIRO, 1997: Pág. 97). Toda esta miscelânea cultural ainda era marcada pela presença da Santa Inquisição, que era terminantemente contrária à utilização de magia e coisas do gênero na prática curativa, quando estas eram utilizadas por indivíduos “suspeitos” (índios, escravos, mouros, judeus, etc.). Pessoas pertencentes a culturas indígenas ou africanas, que utilizassem receitas medicamentosas de origem duvidosa provavelmente seriam presos pelo Santo Ofício. Mas, se tratando de um boticário de Lisboa, licenciado, tal condenação seria rara. Ou seja, uma das instituições religiosas que teoricamente era a mais contrária ao uso de produtos que ferissem os bons costumes, foi também grande influenciadora na mistura de conhecimentos letrados e saberes populares, configurando o que Ginzburg chamou de “circularidade cultural” 72 . Deste modo, como bem afirmou Keith Thomas, “era a presença ou a ausência da Igreja que determinava a propriedade de qualquer ação” (THOMAS, 1991: Pag. 53). Após analisarmos a lista de simples curativos de origem animal, vegetal e mineral da Farmacopeia Tubalense Químico-galênica, podemos concluir que durante o período setecentista existia no Império Lusitano uma forte circulação de drogas e saberes curativos que mesclavam conhecimentos de várias partes do Reino, oriundos de práticas populares e fontes eruditas. Tendo como premissa a terapêutica galênica, que possuía brechas para a presença de elementos mágico-religiosos, superstições e crendices populares, estes medicamentos misturavam culturas curativas da Europa, Ásia, África e América. A publicação de farmacopeias e tratados medicinais só veio a ampliar a circulação desses saberes e remédios pelo Reino, angariando riquezas para mercadores, boticários e droguistas. Podemos também perceber na Farmacopeia Tubalense que, apesar de o Oriente/Ásia ser a grande fonte portuguesa de simples e drogas medicinais, seguida pela África; a América portuguesa já começa a galgar importante espaço na terapêutica reinol com seus produtos de 72 Para um maior entendimento sobre este conceito desenvolvido por Ginzburg, ver o interessante trabalho: GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 77 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades efeito curativo. Com a crescente decadência do domínio português nas Índias orientais, o Brasil vai atrair cada vez mais os olhos das autoridades reinóis, transformando não somente a questões ligadas a administração política, mas também a própria dinâmica da farmácia portuguesa. Outro aspecto de do livro farmacêutico do boticário Manoel Rodrigues Coelho é a tentativa de construção de um padrão/modelo da produção e utilização de medicamentos. Analisando a estrutura e as informações da farmacopeia Tubalense, podemos perceber o desejo do autor em sintetizar e organizar os conhecimentos antigos e modernos da arte fármaco-medicinal, estabelecendo assim um conjunto de regras e normatizações a serem seguidas pelos boticários. Por esta razão, acreditamos que a lista dos simples indicados por Manoel Rodrigues Coelho, para além de demonstrar a existência da circulação de produtos medicamentosos no Império Lusitano, ela também nos fornece um prisma sobre rupturas e permanências do conhecimento médico curativo praticado no início do século XVIII em Portugal. FONTES PRIMÁRIAS ANTONIO, Caetano de Santo. Pharmacopea Lusitana. 1704. Edição Fac-similada. Org. e nota introdutória João Rui Pita. Coimbra: Minerva, 2000. COELHO, Manoel Rodrigues. 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Leon: Anisson, Posuel & Rigaud, 1978. 79 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Memória das jornadas dos Santos Reis: Em busca de um viés para a compreensão das representações e apropriações contidas nas profecias do mestre Fumaça Luiz Gustavo Mendel Souza Resumo: O objetivo deste artigo é a busca por um viés que nos possibilite a análise da cultura popular que não se esgote em apenas um modelo dicotômico entre sagrado e profano ou entre erudito e popular. Com base nas categorias de análise de Roger Chartier (representação e apropriação), compreender as Folias de Reis como uma manifestação cultural não isenta de conflitos na produção de seus discursos, ritos e memórias. E, a partir dos estudos das memórias do mestre Fumaça, entender estes folguedos como práticas que se formulam e reformulam relacionando o pedagógico e performático dentro das Folias de Reis. Perceber a complexidade da cultura como prática ritual nos faz abrir os olhos e retomarmos antigas problemáticas que são relevantes no estudo do popular. Estas práticas se mostram relevantes no momento que não se encerram em si mesmas, mas repercutem no meio social, criam laços de identidade, modificam a realidade social. Estes estudos se encontram nas memórias de um mestre da Folia de Reis Nova Flor do Oriente em São Gonçalo na segunda metade do século XX. Palavras-chave: Folias de Reis; discursos; representações. Abstract: The aim of this paper is to search for a path that allows the analysis of the popular culture which is not limited by a dichotomist model between sacred and profane or between classical and popular. Based on categories of analysis from Chartier (representation and appropriation), we take the Folias de Reis as cultural events that are not free from conflict in the production of its discourses, rituals and memories. From studies of memories of the Mestre Fumaça, we intend to analyze these amusements as practices that create and recreate themselves in relation to the pedagogical and performing dimensions within the Folias de Reis, as well as to apprehend the complexity of culture as a ritual practice that makes us open our eyes and resume old issues that are relevant to the study of popular. These practices are relevant because they are not closed in themselves as they have repercussions in social environment, they create bonds of identity and change social reality. This study focuses on memoirs of a master of the Folia de Reis Nova Flor do Oriente in São Gonçalo, Rio de Janeiro, in the second half of the twentieth century. Keywords: Folias de Reis; discourse; representation. “Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?” disse Alice. “Isso depende muito de onde você quer chegar”, respondeu o gato. Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas. O tópico começa com este singelo diálogo entre a Alice e o gato, mas que pode se tornar uma abordagem filosófica se tratando de cultura popular. Pois será estabelecendo primeiramente a nossa finalidade que poderemos escolher o caminho que devemos seguir, Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista da CAPES. 80 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades principalmente em relação ao nosso objeto de estudo: a Folia de Reis do mestre Antônio José da Silva, o mestre Fumaça. Pois para que possamos traçar a nossa rota de pesquisa, primeiramente precisamos saber exatamente onde queremos chegar. Ao nos referirmos à Folia de Reis como cultura popular, podemos começar com uma citação de Roger Chartier: “A cultura popular é uma categoria erudita” (CHARTIER, 1995, p. 179), ou seja, nessa pequena referência já podemos encontrar uma grande armadilha dos estudos sobre o popular, que resume este à apenas uma categoria do erudito. Enfatizar nesta característica mostra pelo menos dois caminhos que podem ser seguidos: o do delimitado (cultura popular) e o do delimitador (o erudito), trazendo a complexidade da abordagem do tema. Se nos enveredarmos pelo caminho do delimitador, ou seja, pela classe dominante, nos colocaremos na posição de compreender o valor destas tradições populares que escapam àqueles que as possuem (ORTIZ, 1985, p.27). Isso seria nos posicionar como um antiquário ou um folclorista, que limita o folclore a uma mera sobrevivência, ofuscando a possibilidade de trabalhar as folias sob um aspecto de um texto ritual inserido em um contexto social (THOMPSON, 2001, p. 238). Este tema se mostra muito intrincado, pois desde o início da formulação do termo folclore existem embates sobre sua legitimidade. O termo foi cunhado pelo inglês William John Thoms (1846) em um de seus artigos para uma revista referindo-se aos costumes e literaturas populares como um saber popular (Folk: povo; Lore: saber) e a forma de coletar, recolher e registrar os contos. Esses estudos nascem através destas coletas passando por vários períodos, desde os antiquários, perpassando por um investimento por parte dos românticos como oposição ao universalismo iluminista, através do historicismo do particular, o gosto pelo bizarro e pelo exotismo, sempre enfatizando as particularidades (ORTIZ, 1985). Será a partir da segunda metade do século XIX que os estudiosos da cultura popular vão se denominar de folcloristas, com a criação da disciplina Folclore embebida dos pensamentos das Ciências Sociais desse período, como exemplo o positivismo e a publicação do livro de Darwin, Origem das Espécies. Porém, sem os aparatos teóricos para trabalharem o método folclórico, essa disciplina acaba por encontrar vários obstáculos, como o fato de não haver delimitação entre objeto e disciplina, ou se restringir apenas no ato da coleta, tratando tradições populares como caráter científico, esvaziando-se de sentido. Terminando por cair no desuso: “Uma vez definido o campo epistemológico e as instituições legítimas nas Ciências Sociais, fica difícil para os folcloristas encontrarem espaço para o seu objeto de estudo” (ORTIZ, 1985, p. 45). 81 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades No Brasil este tema já foi palco de debates acirrados sobre o objeto folclore, travados entre os anos 50 e 60 para a comprovação da cientificidade do folclore como matéria acadêmica. Encontramos uma síntese destes conflitos entre os folcloristas e os cientistas sociais no artigo de Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti e Luís Rodolfo da Paixão Vilhena (VILHENA e CAVALCANTI, 1990, p. 75- 92). Dentro deste quadro complexo uma figura de destaque travará diálogos contra essa pretensão científica requisitada pelos folcloristas, seria o sociólogo Florestan Fernandes. Em seus artigos, não combatia o folclore nem os folcloristas, mas: “uma certa concepção que tomava a prática do folclore como ‘científica’” (Idem, p.82.). A base destes embates entre Florestan e os folcloristas estava na forma particular de estudar o objeto e não o folclore em si. Luís Rodolfo da Paixão Vilhena vai abordar as tentativas fracassadas da via de institucionalização do folclore pelos folcloristas brasileiros, mostrando que: “... a inexistência de uma estrutura institucional que garantisse uma relativa autonomia em relação ao plano político contribuiu para a ‘marginalização’ dos estudos de folclore” (VILHENA, 1997, p. 63). E como esta institucionalização é possivelmente o elo que produz a medição entre o intelectual e a sociedade inclusiva, a falta dele se mostra como um grande fator para os estudos deste tema se tornar objetos periféricos das ciências sociais. Com a exposição acima podemos compreender a complexidade deste caminho e os motivos óbvios para não tomá-lo como rota para este artigo. Vemos que, desde sua criação, o folclore se tornou um lugar de conflitos para inseri-lo nas instituições, mas nem mesmo em seu auge este tema conseguiu embasamento teórico metodológico para ser alicerçado como matéria acadêmica. Deixando o seu lugar social longe das instituições, e é importante ressaltar que para Michel de Certeau: “A instituição não dá apenas uma estabilidade social a uma ‘doutrina’. Ela a torna possível e a determina” (CERTEAU, 2007, p.70). Voltando a questão das coletas, registros e preservação destes saberes populares, é importante ressaltar que muitos destes estudos folclóricos foram na realidade coletados e classificados pela base elitista da cultura. Um trabalho que vai dar um panorama sobre essa questão é o de Jacques Revel junto a Michel de Certeau e Dominique Julia: A beleza do morto: o conceito de “cultura popular”. Nesta obra vemos que o investimento na preservação, por parte dos antiquários e folcloristas, era uma forma de compensar o viés de extinção das tradições populares. Na realidade todo esse esforço para conservação do folclore mostraria o outro caráter em jogo, o da censura. O olhar voltado para os campos e para a pureza do popular era, na realidade, um subterfúgio para desviar a atenção do perigo que as elites enfrentavam nas cidades: as classes trabalhadoras, que estavam se articulando para 82 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades poderem lutar por melhorias no ambiente de trabalho e por uma sociedade mais igualitária. Outro fator foi o investimento, na primeira metade do século XX, dos regimes populistas nesse caráter rústico do popular que fez com que os estudos sobre folclore caíssem em descrédito por parte dos pesquisadores. Espontâneo, ingênuo, o povo é, uma vez mais, a criança. Já não aquela criança vagamente ameaçadora e violenta que se quis mutilar: o filho pródigo regressa de longe e reveste-se dos atrativos do exotismo (REVEL, 1989, p.59). Podemos iluminar nosso caminho com através de uma análise que nos direcione para o viés do delimitado, do praticante de cultura popular. Para que possamos prosseguir por esse caminho, já temos em mente os perigos e ciladas que nos esperam, e podemos perceber que sob uma nova perspectiva compreenderemos o popular através de seus não-ditos, das construções de seus discursos (CERTEAU, 2007). Mas esta perspectiva só será validada no momento que interagirmos com as demais ciências humanas, como a sociologia e a antropologia (CHARTIER, 1990). A proposta deste artigo é entender as Folias de Reis, como um texto, como uma fonte. Este será o nosso objeto de pesquisa, um passo que poderá abrir um caminho para a compreensão das funções históricas que estão presentes nas realizações destas manifestações culturais. Refiro-me a estas ações culturais como funções históricas, pois elas se constroem de acordo com uma estrutura que tem como consequência a criação da consciência histórica do grupo (RÜSSEN, 2007). Esta estrutura gera, e é gerada, por uma prática cultural que se pauta em uma finalidade pedagógica, mostrando uma das faces da cultura popular: sua prática. Tais práticas se desenvolvem de acordo com sua capacidade de fazer o integrante sentir pertencente ao grupo, se retomássemos o estudo de Durkheim: Formas Elementares da Vida Religiosa, poderíamos validar o caráter gerador de emoções que há dentro da prática religiosa, como a crença e a ação. Certamente não resumiríamos esta prática a um simples fruto da reprodução da sociedade, pois dentro dela existiriam outras características das práticas culturais religiosas como a devoção, o lúdico, o divertido, o transgressor. No caminho da metodologia Neste trabalho, vamos nos guiar pelas narrativas do mestre da bandeira Nova Flor do Oriente de São Gonçalo, fundada no ano de 1977, pelo mestre Antônio José da Silva: o mestre Fumaça73. Nesta entrevista concedida pelo mestre temos os relatos sobre o seu conhecimento das profecias calcadas no fundamento das Folias de Reis. Uma análise mais apurada de sua 73 Pelo fato do mestre gostar de ser chamado por esta alcunha, nos referiremos a ele por mestre Fumaça. 83 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades tradição oral nos faz perceber que esta se constrói através de uma estrutura narrativa que muito se assemelha a estrutura de uma narrativa histórica e suas funções 74. Primeiramente vamos definir e diferenciar o fundamento e a profecia. O fundamento seria segundo Daniel Bitter: O fundamento, por sua vez, constitui uma base permanente, percebida como imutável, permitindo que seja materializado de diversas maneiras, em diversos tempos e espaços. Sua difusão e transmissão entre os homens se dá por meio das palavras, dos gestos, dos cantos, da música etc.” (BITTER, 2010,p. 154). Este autor está se referindo diretamente ao fundamento contido na materialidade dos objetos rituais contidos na Folia de Reis, pois essa seria a sua preocupação na produção do seu livro. Mas é importante ressaltar as demais extensões do fundamento, pois nela que poderemos validar esta pesquisa. Esse caráter imutável do fundamento, como tradição oral, permite que seja difundido e transmitido oralmente entre os homens. Isto nos permite trabalhamos esta como uma narrativa e suas estruturas. O exemplo da história dos reis magos tem sua descrição na bíblia e no Offictium Steallae: seu início no anúncio aos Reis, a viagem seguindo a estrela, o encontro com Herodes, a adoração ao menino, a entrega dos presentes, o sonho revelador e a volta por outro caminho, a narrativa histórica das profecias do mestre Fumaça também segue esta cronologia (RIOS, 2006, p. 65-76). Uma pequena citação trecho das profecias do mestre Fumaça mostra que ele estabelece esta mesma ordem cronológica: Ai nesse intermédio que o menino nasceu, o anjo caminhou pra...que o anjo caminhou pra Belém, pra avisar os pastor que esperava a tempo, que os pastor seguia, orava e pedia a Deus para quando o messias nascer eles queriam ver. (...) Ai agente vamos voltar... daí pra frente que vem a tradição dos magos. Que o anjo desceu aos pastor de Belém, adorando o menino, tratando visitando, foi avisar os magos lá no Oriente nas terra do Oriente. Ai já era coisa longe! Pra você ver, era tão perto que eles fizeram em doze dias, andaram por doze dias, fizeram montados em camelos (...) (...) Ai eles arriaram os camelos preparam. Eu sei que eles andaram noite e dia, ai quer dizer vamos supor assim, andaram as partes da Judéia, andaram as partes da Judéia até chegar em Jerusalém, na casa dos reis Herodes. (...) E eles foram e seguiram foram lá fizeram a adoração, adoram o menino, voltaram ai na volta o num caminho diferente. Além desta estrutura narrativa podemos ver nela os quatro eixos constituintes do sentido narrativo que são: percepção, a interpretação, a orientação e a motivação (LUCCINI, 74 Esta seria uma categoria de Jörn Rüssen para estudar as funções da história na prática de construção e reconstrução de identidades. As outras categorias seriam consciência histórica, formação histórica e a própria narrativa histórica. RÜSSEN, 2007, p. 85-133. 84 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades 2007, p.19-71). Será com a articulação desses quatro eixos que possibilitaria a constituição do sentido narrativo, e com as três condições que necessitam estar na narrativa histórica: a estrutura de uma história, a experiência do passado e a orientação da vida prática. Estas características nos ajudam a refletir sobre as relações que os foliões têm consigo mesmos e com o mundo. Sem mencionar como esta relação pode ser pensada na perspectiva do tempo. O eixo da motivação, que se entrelaça ao eixo da orientação para a vida prática, também pode ser encontrado com facilidade na narração do mestre Fumaça, pois, além do cunho religioso, esse folguedo teria sua origem mítica na missão entregue aos reis magos pelos anjos e que seria passada destes para os foliões, mas este será um assunto abordado mais a frente: Nós temos responsabilidade com o nome de Deus, o nome dos magos né, que nós rezamos para os três reis magos em nome de Jesus, que aquilo dali foi a visita de Jesus quando nasceu, quando veio ao mundo determinou, mandou o profeta Jeremias anunciar que seu filho vinha ao mundo para ensinar o povo o caminho da salvação. Estas funções da narrativa do mestre que podem ser analisadas pelos aparatos teóricometodológicos de Jörn Rüssen são utilizadas aqui para nos aproximarmos das apropriações deste mestre. Estas apropriações estariam ligadas aos ensinamentos da tradição oral ensinada pelos mestres de Folias de Reis transmitida para os foliões nas festas de arremate 75 e nos giros76. Estas apropriações nos revelam o caráter pedagógico destas tradições orais. A diferença entre o fundamento e as profecias seria que esta segunda não se enquadra em uma estrutura narrativa imutável. As profecias são formas de cantos ou formas de narrar os trechos do fundamento que, dependendo de cada mestre, concentram ênfases em determinadas partes do mito. Segundo Deuzimar Coutinho as profecias seriam: Cânticos entoados pelos integrantes dos grupos de Folias de Reis diante de presépios, oratórios, estampas ou imagens de santos; Os textos, geralmente em quadras, costumam ser tradicionais ou de autoria do próprio mestre e inspirados em histórias bíblicas do Antigo e do Novo Testamento. Alguns mestres costumam valerse de obras literárias relacionadas às figuras sagradas (COUTINHO, 2009, p.22). 75 O ‘Remate’ ou ‘Arremate’ encerra solenemente o ciclo anual de apresentações. Em dia escolhido, de comum acordo nos diversos grupos, há festa de comida farta, muita bebida e muitos convidados, entre parentes, amigos e outras Folias, que comparecem uniformizadas. Como de decorrência desta festividade, as apresentações dos grupos de Folia de Reis fluminenses acabam por estender-se por todo ano, extrapolando assim os limites do ciclo natalino. 76 Jornadas ou ‘giros’ as Folias de Reis percorrem cidades, vilas e povoados visitando casas, a convite, onde cantam as “profecias” em frente a presépios, oratórios ou imagens de santos. O ciclo s apresentação desses grupos começa à meia-noite do dia 24 de dezembro e vai até o dia 6 de janeiro, quando são louvados os Reis Magos. 85 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Dentro desse fator diferencial que vamos buscar o sujeito da narrativa. Pois, partindo do princípio que mapearemos a narrativa do mito através das formas estruturais que Rüssen propõem (estudar uma narrativa histórica e suas funções), encontraremos nas profecias as construções do discurso através das ênfases dadas em determinadas trechos do fundamento. Nestas ênfases estariam as representações dos mestres que também denotam suas apropriações do mito. As apropriações são percebidas no momento em que são colocadas em prática: “A noção de apropriação pode ser, desde logo, reformulada e recolocada no centro de uma abordagem de história cultural que se prende com práticas diferenciadas, com utilizações contrastadas” (CHARTIER, 1990, p. 26). As representações estariam permeadas de termos que denotariam o caráter lúdico presente nos santos deste folguedo religioso, sem estabelecer fronteiras entre o sagrado e o profano, ou então o erudito e o popular. Dentro das profecias do mestre Fumaça não vemos estas distinções entre os santos mitológicos, ascetas de caráter inalcançável, pelo contrário, o que encontramos são santos foliões que para se aproximar dos moradores e pedir informação eles teriam táticas bem populares: Mas quando eles (os três Reis Magos) saiam para a viagem, ai eu vou... mas ai falou assim: -Quem que vai dar sinal de quando chegarmos na cidade de nos reconhecer? Ai disse Baltazar: -Eu tenho aqui uma caixa, um triângulo e uma viola e ai nós fazemos assim que agente faz com os amigos! Ou então, para que pudessem continuar sua jornada sem denunciar o paradeiro do menino Jesus, estes se utilizam da sabedoria para respeitar o rei Herodes mesmo sendo subestimados: Ai ficou o outro guarda. Porque eram três guardas de plantão no palácio dele, porque no palácio dele tem três guardas... Ai o guarda foi lá e chamou, ai foi o nego: -Sim senhor, bom dia. Ele falou assim: -Até você nego, velho desse jeito cansado entrar nessa, nessa bobeira ai. E disse: -É que posso fazer minha conversa é nisso, minha conversa é a mesma. (...) -Como vocês fizeram pra chegar até aqui? Eles falou assim: -Até aqui a sua casa viemos seguindo a estrela. -Vieram seguindo a estrela?! Agora cadê essa estrela? -A não, até agora ela sumiu. Ai o que eles falou para eles então: -Já que vocês seguiram a estrela até aqui vocês voltam e seguem a sua estrela, se caso ela aparecer, e se vocês achá o novo rei e adorar ele, quando voltar avisa que eu também quero adorar. 86 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades E finalmente, para driblar o rei que estava disposto a matar Jesus, os magos do Oriente mostram sua esperteza “pagando na mesma moeda” respondendo a Herodes sem se comprometerem: Ele ficou... aí Herodes ficou pensando, ai falou assim: -Cume que eu faço (para encontrar o menino Jesus) ? -Ué tem que seguir a estrela por onde nós seguimos! E até amanhã seu rei, e muito obrigado pela atenção, que deu nós, obrigado pela atenção né, (ironia)... Mas não, ele zombou da cara deles, ai pagou com a mesma moeda. E os três reis ô, cantou peneu. Foram embora pro oriente, como se diz assim a volta dos três reis para o oriente. Os três Reis Magos são apresentados desta forma nas profecias do mestre Fumaça. São representados como santos foliões que se utilizam das sabedorias de santos e dos elementos divinos (como seguir a estrela), mas também denotam a esperteza popular para se aproximar das moradias ou até mesmo para tratarem com o rei Herodes. Estas representações dentro das narrativas mostram o popular dentro do folguedo religioso, mostram as marcas da identidade de quem realiza estas festas populares sem retirar sua devoção, este seria o caráter performático da linguagem77, um dos fatores na construção social da realidade, de suas representações, de suas identidades. Tanto os antropólogos quantos os folcloristas perceberam que os estudos fundamentados na performance correspondiam aos seus interesses em jogos, na construção social da realidade e na reflexividade. Uma das dimensões que estimulou de modo especial muitos pesquisadores foi a maneira como performances deslocam o uso de recursos estilísticos heterogêneos, significados suscetíveis ao contexto, e ideologias conflitantes, para uma arena onde estes podem ser examinados criticamente (BAUMAN e BRIGGS, 2008, p187-188). No caminho das jornadas A caminhada nunca termina. Para quem quer aprender, o ponto de chegada é apenas um ponto de repouso (MATTOS, 1991, p.94). Ao vermos tais aparatos teóricos metodológicos que abordam as mais variadas facetas da cultura popular dentro das narrativas sobre a Folia de Reis, temos a possibilidade de compreendê-la através de suas representações e apropriações. Percebemos que este caminho escolhido pode abrir um leque de possibilidades, pois este caminho nos trouxe a um ponto de chegada que não é um fim, mas na realidade um começo, o caminho se mostra na realidade uma jornada. Uma possibilidade, não apenas, de resolver determinados problemas, mas 77 Homi Bhabha, ao se referir ao elemento cultural como forma de entender e escrever a nação, nos oferece a possibilidade de encontrar a “ambivalência” (o local da cultura que se estabelece entre as diferenças culturais, nunca diversidade cultural) dentro do diálogo entre o pedagógico e o performático. BHABHA, 2010,p.198-238. 87 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades estabelecer novos questionamentos, tentar superar um modelo metodológico que delimite o que é cultura popular de uma forma acabada e dicotômica. Podemos ver que a Folia de Reis são práticas que são perpetuadas não como uma simples sobrevivência, pertinência, permanências e outros termos que denotam conseqüências, mas na realidade elas se tornariam “heranças de longa duração” causadas pelas suas capacidades de serem sentidas, vividas se tornando na realidade vivências e não sobrevivências (BRAUDEL, 1992). E para a sua perpetuação necessitaria de uma ligação com a vida dos participantes para que esses pudessem organizar e reorganizar determinados ritos, que só podem ser realizados se tiver alguma íntima relação com eles. Tais relações só podem ser enxergadas e analisadas se nos aproximarmos dos mestres e foliões para podermos dar voz a eles e estudar seus discursos, como são montados, como são submetidos, como são representados (CHARTIER, 1995, p.191). Não nos referindo a estas fontes como verdades, mas compreender a construção do discurso, suas ênfases, o que este se aproxima da vida dos participantes, nos aproximarmos do não-dito (CERTEAU, 2007). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMAN, R. e BRIGGS, C. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Revista Ilha, v. 8, n. 1 e 2, Florianópolis, UFSC, PPGAS, 2008. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 2007. BITTER, Daniel. 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Nestes primeiros anos de regime militar o movimento estudantil representou, de fato, a principal força de oposição ao governo, promovendo manifestações de protesto, passeatas, greves, comícios relâmpagos e uma diversificada forma de comunicação com a população, como pichações, distribuições de panfletos e a elaboração de pequenos jornais. A cobertura jornalística desses eventos também foi de fundamental importância para a difusão das idéias do movimento e da divulgação da violência repressiva do governo. Dentre essas coberturas destacou-se a fotojornalística do Correio da Manhã, principal jornal de oposição ao regime. Identificar e analisar o papel desempenhado por este jornal e a relação que foi estabelecida entre os atores sociais destes dois grupos (movimento estudantil e jornalistas do Correio da Manhã) é o segundo objetivo desta pesquisa. Palavras-Chave: Ditadura militar; movimento estudantil; Correio da Manhã. Abstract: One objective of this paper is to present the background of the student movement in Guanabara between 1964 and 1968, analyzing its political groups, ideologies, strategies and proposals for action. In these early years of military rule, the student movement had represented, in fact, the main opposition to the government, promoting protests, marches, strikes, rapid rallies, with various means of communication with the population such as graffiti, pamphlets and the small newspapers. The press coverage of these events was crucial for the dissemination of ideas of the movement and to the dissemination of knowledge about repressive violence from the government. The article highlights the photojournalistic cover of Correio da Manhã, the leading newspaper in opposition to the regime. The second objective of the study is to analyze the role played by this newspaper and the relationship between both groups of social actors (student movement and journalists of Correio da Manhã). Keywords: Military dictatorship; the student movement; Correio da Manhã. 1. Movimento Estudantil e suas manifestações de protesto A partir da década de 1960, o número de universidades no Brasil aumentou consideravelmente. Mesmo com o aumento de vagas e de cursos oferecidos, a procura foi bem superior, em virtude do crescimento populacional das cidades e da consolidação de uma classe média urbana, causando uma crescente tensão no meio estudantil secundarista que desejava ingressar na universidade. Com o surgimento dessas instituições e a criação de novos cursos, aumentou o número de estudantes universitários, proporcionando um crescimento de centros e diretórios acadêmicos, fortalecendo, assim, as organizações estudantis. * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). 90 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Nesse início de década o país vivia um processo de radicalização política, em razão da campanha pelas reformas de base propostas por João Goulart que congregava um amplo conjunto de forças progressistas, incluindo as organizações estudantis. A tensão entre propostas, interesses e modelos econômicos das forças conservadoras e progressistas culminou na deposição do presidente com a vitória dos grupos conservadores. Esse movimento, amplamente apoiado pelas forças militares, igreja, imprensa e classe média, não sofreu maiores resistências e foi rapidamente consumado com o apoio de grande parte dos setores políticos. Nos momentos seguintes ao golpe, uma onda repressora atingiu pessoas, entidades e associações civis e políticas identificadas com a frente nacionalista e de esquerda que dava sustentação ao projeto de governo de João Goulart. Vários dirigentes, sindicalistas, intelectuais e políticos foram presos, entidades fechadas e suas atividades proibidas. A sede da UNE foi incendiada e todas as organizações estudantis foram extintas e proibidas, porém, as atividades políticas dos estudantes continuaram de modo intenso. Se as lideranças foram perseguidas o mesmo não aconteceu com a base do movimento estudantil, propiciando a formação de uma nova geração e o surgimento de outros líderes. Havia três forças relevantes organizadas no movimento estudantil universitário a partir desse momento: a Ação Popular (AP), que se mantém após o golpe congregando segmentos moderados, mas com uma direção com tendências revolucionárias; as dissidências do Partido Comunista Brasileiro e a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária, a ORMPOLOP, que possuía forte estruturação teórica. Estudantes que militavam na Ação Popular iniciaram o processo de reorganização da UNE, promovendo reuniões e assembleias clandestinamente, da mesma forma que articulavam manifestações de protesto, greves e pequenas passeatas. Nas universidades e em entidades estaduais e regionais de organização estudantil havia grande luta pelo controle político, com disputas acirradas e divergências teóricas e metodológicas. Em março de 1965, na aula inaugural da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o presidente Castelo Branco foi vaiado por estudantes, causando a prisão de alguns deles. O episódio mexeu com os brios do movimento estudantil provocando solidariedade e mobilização dos diretórios acadêmicos e da União Metropolitana dos Estudantes (UFRJ, 2006, p. 31). No mesmo ano o CACO-Livre, centro acadêmico independente da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, iniciou uma série de manifestações de rua e uma greve pela melhoria do bandejão. Logo em seguida promoveu, juntamente com estudantes de filosofia da mesma universidade, o primeiro ato oficial do movimento contra o regime militar: um julgamento público do governo em plena Central do Brasil envolvendo estudantes e 91 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades trabalhadores. No ano seguinte, 1966, o governo militar firmou parceria com os Estados Unidos para a instalação de seu modelo educacional, o Acordo MEC-USAID, que sofreu ampla crítica do movimento estudantil que o considerava como ação imperialista. No congresso clandestino da UNE, em São Bernardo do Campo, houve a prisão de 178 estudantes, greves foram deflagradas em São Paulo, passeatas de protesto tomaram as ruas de Minas Gerais e no Rio de Janeiro foram suspensas as aulas na Faculdade Nacional de Direito. Esse contexto constituiu a fase inicial do processo que fez de setembro de 1966 um dos meses mais agitados e intensos do movimento estudantil (UFRJ, 2006, p. 49). No dia 22 de setembro, houve uma grande passeata de protesto contra o governo na praia Vermelha, em frente à Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ. Cerca de seiscentos estudantes ocuparam a FNM, de madrugada a polícia invadiu acabando violentamente com a ocupação com espancamentos e prisões. Esse episódio, o de maior violência até então contra estudantes e que seria um marco divisor do movimento estudantil, passou a ser conhecido como “Massacre da Praia Vermelha”. No início de 1967, o movimento estudantil estava se rearticulando, pois após o Massacre da Praia Vermelha o típico jovem que participava do movimento “virou vanguarda, liderança ou nunca mais participou de passeata” (PALMEIRA, 2008) Em janeiro o Congresso Nacional promulgava outra Constituição e uma nova Lei de Imprensa. Inicia-se uma mobilização estudantil em apoio aos excedentes do vestibular, com prisão de inúmeros estudantes. Após a posse de Costa e Silva, é decretada a extinção dos órgãos estudantis e a criação da Lei de Segurança Nacional. Em virtude dos protestos dos estudantes cerca de mil deles são presos na Guanabara. Em abril, mês do desmantelamento da Guerrilha do Caparaó, há inúmeras manifestações no Rio de Janeiro e no Distrito Federal. No mês seguinte, as manifestações e passeatas contra o acordo MEC-USAID tomam conta de diversas cidades pelo país. Em razão da demolição do antigo restaurante central dos estudantes e da inauguração de um novo, de forma precária, em outro local, várias passeatas e manifestações acontecem no Centro do Rio de Janeiro. O Calabouço, como era mais conhecido o restaurante, teve sua demolição sacramentada por causa da construção de um trevo viário e de obras locais de urbanismo. Em agosto aconteceu o Congresso da UNE em Campinas, São Paulo. No final do ano o movimento estudantil, já reorganizado, protestava contra as anuidades nas universidades por todo o país e, no Rio de Janeiro, contra as péssimas instalações do restaurante Calabouço. No início de 1968 o movimento estudantil, embora fortalecido e organizado, encontrase polarizado em dois blocos: a Ação Popular e as dissidências do Partido Comunista. As 92 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades reivindicações estudantis no Rio de Janeiro, nesse início de ano, concentravam-se nas questões dos alunos excedentes do vestibular, do acordo MEC-USAID e dos protestos contra as obras inacabadas do Calabouço. No dia 28 de março os estudantes se reuniram para protestar contra as condições do novo restaurante. Quando a PM chegou para acabar com a manifestação foi recebida com pedras, vaias e provocações. Na confusão instaurada, um policial atirou contra a multidão matando o estudante Edson Luís. Indignados, seus companheiros levaram o corpo do estudante à Assembleia Legislativa, na Cinelândia, ocupando-a e lá fazendo o velório. A notícia logo chegou a todos os cantos da cidade. Inúmeros estudantes, jornalistas e curiosos começaram a rumar para a Cinelândia para acompanhar o velório. Na manhã do dia 29 uma multidão, portando faixas e cartazes de protesto, aglomerava-se na Cinelândia. Uma multidão, estimada em cerca de trinta mil pessoas, acompanhou o cortejo até o cemitério São João Batista, em Botafogo. No decorrer da noite inúmeros confrontos aconteceram. As forças policiais, que durante o enterro não apareceram, reprimiram com violência as manifestações posteriores ao sepultamento. Por todo país houve protestos. A rebelião estudantil havia começado. Nos dias seguintes à morte de Edson Luís, o Rio de Janeiro presenciou intensas mobilizações de protesto, principalmente no 1º de abril, quarto aniversário da deposição de João Goulart. O Exército avisou que não iria tolerar qualquer tipo de manifestação política e o ministro da Justiça, Gama e Silva, solicitou que as forças policiais da cidade ficassem em total prontidão contra os protestos estudantis. Na manhã do dia 4 de abril, dia da missa de sétimo dia, tanques do Exército ocupavam trechos da avenida Presidente Vargas, militares vigiavam esquinas, agentes do DOPS em cima de edifícios observavam o movimento nas ruas, aviões da FAB cruzavam o céu e PMs a cavalo percorriam as imediações da Candelária. Durante todo o dia e, principalmente, após a missa inúmeros conflitos aconteceram, acarretando em espancamentos e prisões de estudantes. Depois desses acontecimentos, uma série de protestos estudantis aconteceu pela cidade, sempre com a repressão da polícia, contudo o movimento crescia e se articulava. A luta por mais verbas, por maior número de vagas nas universidades, pela reabertura do restaurante Calabouço e contra o acordo MEC-USAID estava cada vez mais associada à luta contra a ditadura, que semanas depois sancionou uma lei que responsabilizava criminalmente os menores de idade envolvidos em ação contra a segurança nacional. Em junho aumentou a intensidade dos protestos e a mobilização dos estudantes. O ministro da educação Tarso Dutra havia declarado que se dispunha a dialogar sobre as reivindicações do movimento, o que causou uma série de provocações dos estudantes. No dia 93 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades 18 de junho, o Correio da Manhã noticiou na terceira página que os estudantes estavam desafiando o ministro para que cumprisse sua palavra e dialogasse com eles. No dia seguinte, uma grande manifestação foi marcada para acontecer em frente ao MEC, ocupar seu pátio e forçar um encontro com Tarso Dutra. Cientes de que a polícia estava preparada para a repressão costumeira, os estudantes se municiaram com pedras e coquetéis molotov, criando pela primeira vez uma estratégia de enfrentamento explícito. Como a PM impediu a manifestação o confronto teve início e propagou-se por várias ruas do centro com grande violência. Um caminhão do Exército foi incendiado, e o líder estudantil Jean Marc Von der Weid foi preso, acusado de ter sido o autor do ato. No dia seguinte o movimento estudantil decidiu se concentrar no campus da praia Vermelha da Universidade Federal do Rio de Janeiro, local aonde o Conselho Universitário iria se reunir. Os estudantes marcaram, para a mesma data, local e horário, uma assembleia geral onde seriam cobradas mais verbas para o ensino, mais vagas nas universidades e as reformas curriculares. Contudo, em virtude dos acontecimentos do dia anterior, decidiram que também iriam protestar contra a violência policial e exigir a libertação dos estudantes presos. Cerca de dois mil estudantes tomaram as dependências do campus da praia Vermelha e, após invadir a reunião do Conselho Universitário, exigiram que reitor e professores descessem para o Teatro de Arena da Faculdade de Economia, onde estavam concentrados. Não houve violência, mas a pressão sobre os professores fez com que a maioria dos pontos defendidos pelos estudantes fosse aprovada pelo Conselho. A PM foi chamada e cercou o prédio criando grande tensão entre os estudantes. Quando estes tentaram fugir houve grande confusão e cerca de quatrocentos estudantes foram presos no campo do Botafogo, quase vizinho ao local. A polícia abusou da intimidação e da violência. A televisão apareceu no local e no noticiário da noite as imagens chocaram a cidade. No dia seguinte os jornais denunciaram a brutalidade e o Correio da Manhã publicou várias paginas e dezenas de fotografias sobre o episódio. O movimento estudantil, por intermédio de suas lideranças, articulou na noite de quinta-feira uma grande passeata de protesto para o dia seguinte no Centro do Rio de Janeiro. A polícia, em grande número, já os aguardava de prontidão. Durante todo o dia houve violento confronto, em proporções jamais vistas até então. Bombas de gás lacrimogêneo eram atiradas em todas as direções, tiros eram disparados a ermo, barricadas eram montadas, chuvas de pedras caíam a todo instante e das janelas dos prédios muitas pessoas jogavam objetos nos policiais. No final do dia a contagem oficial registrava 23 pessoas baleadas, quatro mortes, dezenas de indivíduos feridos, intoxicados e espancados e cerca de mil presos. A “Semana Sangrenta”, como foi nomeada a sequência dos dias 19, 20 e 21 de junho de 1968, 94 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades foi decisiva para a mudança dos rumos da oposição ao regime militar brasileiro. Em virtude da grande violência policial sobre os estudantes e da ampla cobertura da imprensa, a sociedade civil passou a contestar de forma mais veemente a ditadura que se instalara desde 1964. Logo após a “Sexta-Feira Sangrenta”, dia de maior violência nas ruas durante o período militar, uma grande mobilização foi articulada pelos estudantes e intelectuais como resposta ao que estava acontecendo. Almejavam uma grande passeata, onde a sociedade pudesse expor pacificamente seu desejo de democracia. Também não interessava ao governo que conflitos como os da semana anterior se repetissem, pois a cada incidente sua popularidade junto à classe média diminuía. Os governos estadual e federal liberaram a passeata, como forma de mostrar à população seu desejo de diálogo. Na verdade, foi um recuo estratégico, pois uma proibição resultaria em um confronto ainda maior. A data escolhida foi o dia 26 de junho, uma quarta-feira. O governador Negrão de Lima decretou ponto facultativo na esperança de esvaziar a cidade e, com isso, além de diminuir a importância da passeata, evitar possíveis confrontos. Na manhã do dia 26 um incontável número de pessoas se concentrava na Cinelândia, em frente à Assembleia Legislativa. Primeiro chegaram os estudantes e depois artistas, padres, freiras, trabalhadores, famílias, jornalistas e intelectuais. Pouco depois do meio-dia, com a chegada do líder estudantil Vladimir Palmeira, iniciaram-se os discursos. Em seguida, a multidão começou a passeata seguindo em direção à Candelária pela avenida Rio Branco, que ficou tomada de ponta a ponta. Sem a repressão policial e o clima de insegurança, o que se via eram pessoas sorridentes, de braços dados, gritando palavras de ordem e portando faixas de protesto. Das janelas dos prédios as pessoas batiam palmas e jogavam papel picado. No final da tarde, os estudantes se encaminharam até o Palácio Tiradentes para fazerem a última manifestação do dia. O sol já estava se pondo quando a passeata teve seu fim, contudo sua repercussão e simbolismo permaneceram para sempre na memória coletiva nacional. Foi criada uma comissão da passeata para negociar com o governo, mas esta não obteve sucesso. No dia 4 de julho, os estudantes se reuniram no pátio do MEC e, após uma série de discursos de protesto, saíram em passeata com destino ao prédio do Superior Tribunal Militar para exigir a libertação do líder estudantil Jean Marc Von der Weid (que seria solto semanas depois) e dos demais estudantes presos na “Semana Sangrenta”. Embora pacífica e sem incidentes, o governo decidiu, ao término da passeata, não autorizar outras manifestações deste tipo. 95 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A Passeata dos Cinquenta Mil, como ela ficou conhecida, foi a última grande passeata de 1968. Com as férias escolares, o incremento da atividade repressora e uma mudança na estratégia do movimento estudantil esse tipo de manifestação foi deixado de lado. Em setembro o deputado e ex-jornalista do Correio da Manhã, Márcio Moreira Alves, durante discurso no Congresso Nacional em que criticava a invasão da UnB, pergunta: “Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?” Em um segundo discurso, dias depois, Alves sugere ironicamente que as namoradas dos jovens militares os evitem e que sejam boicotados os desfiles de 7 de Setembro. Tais discursos desagradaram profundamente às Forças Armadas que se sentiram desrespeitadas por um notório adversário do regime. Em outubro foi realizado clandestinamente em Ibiúna, interior de São Paulo, o XXX Congresso da UNE, a polícia descobriu, invadiu o local e prendeu mais de mil estudantes de todo país, inclusive as principais lideranças. Houve algumas manifestações em favor da liberdade dos estudantes, coibida com grande repressão, como a ocorrida em 22 de outubro, em frente ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado da Guanabara (UEG), quando um estudante foi morto. Em novembro houve intensa pressão dos comandos militares para que o deputado Márcio Moreira Alves fosse licenciado pela Câmara dos Deputados para ser processado. Em 13 de dezembro, diante da recusa do Congresso Nacional em licenciar o deputado Márcio Moreira Alves para ser processado, o governo, utilizando tal fato como pretexto, decretou o ato institucional n. 5, fechando o Congresso, cassando mandados, decretando o estado de sítio, proibindo qualquer tipo de reunião e criando a censura prévia. A ditadura que era de fato tornara-se também de direito. O “golpe dentro do golpe” como muitos se referem ou a “revolução dentro da revolução” como alguns militares preferem, deu início aos “Anos de chumbo”, período de enfrentamento armado nas cidades e no campo, de prisões, sequestros, mortes, torturas, banimentos e desaparecimentos. Muitos estudantes que nos anos anteriores protestavam contra as condições do ensino e contra o governo, ingressaram na luta armada ou a apoiaram logisticamente. Inúmeros não sobreviveram, outros encontram-se desaparecidos até hoje. 2. O Correio da Manhã Entender o posicionamento político de um jornal é compreender sua história, métodos e objetivos. Analisar sua conduta diante de um determinado conjunto de fatos é perceber sua trajetória, necessidades e interesses. Conhecer sua dimensão é entender sua importância. 96 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades O Correio da Manhã representou um ideal, um “compromisso com a verdade” como dizia o título de seu primeiro editorial. Nasceu liberal, independente e legalista. Tornou-se conservador, cresceu como empresa e inovou o jornalismo. Transformou-se no jornal mais influente do país, decisivo em inúmeros momentos de nossa história. Em seus 73 anos de existência teve quatro administrações. Sua trajetória confunde-se com a história de seus diretores, editores, repórteres, fotógrafos e demais funcionários, bem como a de seus adversários e inimigos. Entender seu posicionamento diante do autoritarismo que se instalou no país a partir de 1964 só será possível se compreendermos sua história, analisando condutas e conhecendo a importância de seus personagens e, principalmente, de seus atos. Niomar Moniz Sodré Bittencourt assumiu o jornal em 1963 em meio a uma crise econômica. O Brasil vivia uma delicada crise política em virtude das posições defendidas por Jango, da crescente tensão nos meios militares e da insatisfação de parte da sociedade com os rumos do país. O Correio da Manhã, que segundo o jornalista Edmundo Moniz possuía à época uma linha editorial “liberal conservadora”, i fazia duras críticas a João Goulart. O jornal iniciou uma série de editoriais em março daquele ano pedindo a saída do presidente com base no princípio do respeito à Constituição, afirmando que Goulart governava o país por decretoslei e que pretendia em breve dissolver o Congresso. O ápice dessa campanha foram os emblemáticos editoriais “Chega!”, “Basta!” e “Fora!”. Jango foi deposto. Os militares tomaram o poder, o processo democrático não foi restabelecido e o Congresso não convocou eleições diretas. O Comando Supremo da Revolução baixa, em 9 de abril, o Ato Institucional, que suprimia direitos políticos, cassava mandatos eletivos, estabelecia eleições indiretas para presidente e dava ao chefe do Executivo poderes especiais, como a decretação do estado de sítio. Em 15 de abril de 1964 tomava posse como presidente, após eleições indiretas, o marechal Humberto Castelo Branco. Logo após o golpe, percebendo que o país caminhava para uma ditadura militar, o Correio da Manhã partiu em defesa da democracia iniciando uma série de editoriais contrários ao regime militar. Denunciou o incêndio do prédio da UNE, a depredação do jornal Última Hora e a intervenção de militares. No dia 2 de abril, publicou o editorial “Basta! E Fora!” que explicitava a posição do jornal. Está terminado o episódio mais inglório da história republicana do Brasil. Basta! Mas não só basta disso, também basta de aproveitamento reacionário do episódio. [...] Não toleramos, agora, o terrorismo nem o fanatismo da reação. Não combatemos a ilegalidade para alterar com outra ilegalidade. A reação já comete crimes piores que os cometidos. Depõe governadores, prende ministros e deputados, 97 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades incendeia prédios, persegue sob a desculpa de anticomunismo a tudo e a todos. Não admitiremos; a estes fanáticos e reacionários opomos a mesma atitude firme de ontem. A eles também diremos: Basta! E Fora! A partir deste instante o Correio da Manhã transformou-se no principal órgão de imprensa opositor ao regime militar. Suas reportagens, manchetes, editoriais e fotografias apresentavam diariamente críticas contundentes ao governo, provocando, como retaliação do regime, o corte de verbas publicitárias, asfixiando economicamente o jornal que mesmo assim prosseguia com suas denúncias e campanha contra a ditadura. A face mais clara deste posicionamento foi à ampla cobertura jornalística do movimento estudantil e suas manifestações de protesto. Além de uma coluna diária sobre educação o jornal abria grandes espaços para as reportagens sobre suas lideranças e objetivos, relatando quase que diariamente as reivindicações e as ações de efeito, sempre ficando ao lado dos estudantes. Além disso, a cobertura fotojornalística construía um discurso do olhar onde os estudantes eram a vanguarda, o novo, a possibilidade de contestação e a realidade do enfrentamento. Nenhum outro jornal do período publicou tantas fotografias sobre o confronto entre estudantes e policias como o Correio da Manhã. O olhar do jornal sobre os acontecimentos aqui narrados, mais do que uma simples cobertura de imprensa, possibilitou à sociedade, sobretudo a grande classe média, um amplo conhecimento da fase repressora do regime, tornando pública à luta contra a ditadura. Entre abril de 1964 e dezembro de 1968 o Correio da Manhã produziu mais de cinco mil fotografias sobre o movimento estudantil e suas manifestações de protesto, organizadas em mais de trinta dossiês. O mais famoso deles é o “Estudantes x Polícia”, nome de um dos 49.394 dossiês da Série Fotografia do Fundo Correio da Manhã, depositado no Arquivo Nacional. Esse dossiê, de 774 fotografias, traz imagens de passeatas, manifestações e dos conflitos entre estudantes e policiais nas ruas do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Brasília na década de 1960, sobretudo 1968. Este dossiê foi produzido pelos fotógrafos e jornalistas do Correio da Manhã concomitante aos acontecimentos, cada fotografia registrada dos embates e manifestações dos estudantes nas ruas da Guanabara era arquivada nas pastas deste dossiê, batizado pelos funcionários com o nome que melhor representava a época e a situação. Estudantes x Polícia é um dos dossiês mais consultados do referido Fundo, que por sua vez é o conjunto documental mais pesquisado do Arquivo Nacional. 98 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades 3. Conclusão Existem inúmeros estudos e interpretações sobre a importância e a consequência dos episódios aqui narrados, sobretudo os que aconteceram em 1968. Não é objetivo deste trabalho analisar o impacto das manifestações estudantis na condução da política de segurança interna do regime militar naquele momento, muito menos estabelecer um elo de causa e consequência desses protestos com o endurecimento do regime. Contudo, observando documentos secretos do governo em 1968, no ápice dos protestos de rua, percebemos a grande preocupação do regime militar em conter o crescimento “subversivo” em curso. O movimento estudantil, com suas passeatas e protestos, tornou-se o principal foco dessa preocupação e a imprensa, tida como local de infiltração comunista e de oposição ao governo, foi percebida como sensacionalista por fazer apologia às reivindicações estudantis, sobretudo nas manchetes e fotografias sobre as passeatas e conflitos entre estudantes e policiais nas ruas do Rio de Janeiro. Encontramos essa análise na 41ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional (CSN), órgão que tinha por finalidade o assessoramento ao presidente da República na formulação e condução da política de segurança nacional, presidido pelo próprio presidente e composto pelo vice-presidente, ministros de Estado, chefes do gabinete civil e militar da Presidência, chefes do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Estado-Maior das Forças Armadas e dos Estados-Maiores da Marinha, Exército e Aeronáutica. Essa sessão, iniciada em 1º de julho de 1968 e concluída no dia 11 do mesmo mês no Rio de Janeiro, ou seja, poucos dias depois da Semana Sangrenta e das Passeatas dos Cem e Cinquenta Mil, foi pautada pela grande preocupação do governo em relação ao agravamento da situação nas ruas, sobretudo no Rio de Janeiro. O secretário-geral do CSN, o general Jayme Portella de Mello, inicia a reunião analisando a conjuntura política do país destacando que a situação nacional estava sendo tumultuada pelas manifestações de massa, atos de terrorismo e sabotagem que caracterizavam atentados violentos à ordem publica e ao regime, causando apreensão nas forças armadas e sensação de insegurança na população. Para Portela era claro que a contra-revolução estava em curso, promovida, sobretudo, pela classe estudantil, que segundo sua análise era manipulada por extremistas de esquerda, como podemos perceber na página 7 da ata da 41ª Sessão do Conselho de Segurança Nacional. Concluída a explanação do secretário-geral, o presidente da República, marechal Artur da Costa e Silva, que também preside o Conselho de Segurança Nacional, distribuiu aos conselheiros um relatório sobre a questão de segurança interna em um resumo da conjuntura política do país, ressaltando a confidencialidade e a condição de ultra-secreto do que seria 99 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades exposto. Em seguida o chefe do SNI, general Emílio Garrastazu Médici, que viria a ser o próximo presidente da República, inicia o relato da Síntese da Conjuntura Nacional preparada pelo SNI e que analisa diversos temas como a Frente Ampla, a oposição ao regime, as atividades de civis cassados e militares reformados pelos atos institucionais, eclesiásticos, trabalhadores, grupos econômicos estrangeiros contrários ao governo, as atividades subversivas e a imprensa. Quanto ao movimento estudantil o chefe do SNI fez uma ampla explanação contextualizando sua atuação, práticas e objetivos, bem como descrevendo sua história recente. Para Médici o que se via nas ruas não eram reivindicações estudantis e sim um movimento para derrubar o governo revolucionário de 1964 através de atos terroristas que iriam desencadear a guerrilha urbana que serviria para implantação de uma revolução comunista. Fica claro ao observarmos tais análises que o governo encarava os fatos acontecidos como o início de uma guerrilha urbana subversiva, com o apoio de parte da imprensa. No decorrer da 41ª sessão todos os conselheiros, incluindo os ministros civis, reiteraram a necessidade do endurecimento do governo frente ao crescente clima de instabilidade política provocado pelas manifestações de rua. Segundo Carlos Fico, “a partir de então, a linha dura passou a agir de modo obviamente articulado no sentido de implantar um clima de terror visando à decretação do AI-5” (FICO, 2009: 235-236). As passeatas, manifestações e protestos dos estudantes a partir de 1964 e que teve como ápice 1968 foram decisivos para uma mudança de rumos do regime militar e dos movimentos de oposição. A cobertura jornalística do Correio da Manhã facilitou a divulgação destes atos, tornando pública a opção dos estudantes pela resistência e enfrentamento. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Alzira Alves de (coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. Rio de Janeiro: FGV, 2001. V. II. ARAUJO, Maria Paula. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Roberto Sebastião Marinho, 2007. CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL. 41ª ata. 1968. DIRCEU, José; PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a ditadura: o movimento de 68 contado por seus líderes. 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O primeiro documento refere-se ao texto elaborado pela comissão de reforma agrária do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O congresso foi organizado pela ULTAB (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil) e reuniu as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, e o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra) do Rio Grande do Sul. Teve apoio do governo federal e o seu encerramento foi marcado pela presença do próprio presidente João Goulart. O segundo documento é a Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963. O objetivo de analisar ambos os documentos é averiguar como a intensa disputa pela hegemonia no interior do movimento social rural – perceptível pela presença de diferentes atores no I Congresso Nacional Camponês – levou o Estado (entendido aqui em seu sentido restrito), nos anos 1960, a chamar para si a responsabilidade do atrelamento dos sindicatos rurais à máquina pública governamental. Palavras-Chaves: Governo João Goulart; Congresso Nacional Camponês; Estatuto do Trabalhador Rural. Abstract: This paper aims to analyze two documents: the Declaration of the I National Congress of Farmers and Farm Workers on Agrarian Reform and the Rural Worker Statute. The first document refers to the text drafted by the I National Congress of Farmers and Farm Workers, held in November, 1961, in Belo Horizonte, Minas Gerais, on the agrarian reform. The congress was promoted by the Union of Farmers and Agricultural Workers of Brazil, with the attendence of the Peasant Leagues under the leadership by Francisco Julião, and Landless Farmers' Movement of Rio Grande do Sul. This congress was supported by federal government and President João Goulart attended its closure. The second document is the Law n° 4214 of March 2nd, 1963. The purpose of the analysis is to verify how competition for hegemony within the rural social movements - noticeable by the presence of different unions and associations at the I National Congress of Peasants - led the State (understood here in its strict sense) in the 1960`s to draw upon itself the responsibility of linking rural unions with the government structure. Key-words: João Goulart administration; National Congress of Peasants; Rural Worker Statute. Este trabalho tem por objetivo analisar dois documentos que utilizo como fonte de pesquisa para elaboração de minha dissertação de Mestrado, quais sejam: Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma Agrária e o Estatuto do Trabalhador Rural. O primeiro documento refere-se ao texto * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense (PPGH/UFF). 102 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades elaborado pela comissão de reforma agrária do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, Minas Gerais. O congresso foi organizado pela União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab) e reuniu as Ligas Camponesas, de Francisco Julião, e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master), do Rio Grande do Sul. Teve apoio do governo federal e o seu encerramento foi marcado pela presença do próprio presidente João Goulart. O segundo é a Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963. O objetivo de analisar ambos os documentos é verificar como a intensa disputa pela hegemonia no interior do movimento social rural – perceptível pela presença de diferentes atores no I Congresso Nacional Camponês – levou o Estado, no início dos anos 1960, a chamar para si a responsabilidade do atrelamento dos sindicatos rurais à máquina pública governamental, assim como já havia feito com os sindicatos urbanos. Minha pesquisa de Mestrado tem por objetivo principal realizar uma análise crítica em torno da tramitação, no Congresso Nacional, dos diversos projetos de reforma agrária em pauta ao longo do Governo de João Goulart (1961-1964). Tal análise será empreendida tendo como base teórica a concepção ampliada de Estado de Antonio Gramsci (MENDONÇA, 2007, p. 1-12). Dessa forma, ao analisar o debate político em torno da questão agrária, não estarei partindo da ação do Estado restrito, porém da permanente interação existente entre Sociedade Civil e Sociedade Política. Ou seja, não partirei do Congresso Nacional ou das iniciativas do Executivo para entender a configuração do debate, mas sim tentarei mapear os diversos matizes desse debate levando em consideração o estudo da extração social e das propriedades de posição e trajetórias dos seus agentes e suas práticas. Partimos do pressuposto geral de que o projeto reformista em curso no Governo Goulart vai de encontro aos interesses de algumas frações da classe dominante do país. Nesse sentido, o movimento empreendido contra a aprovação de qualquer projeto identificado com o projeto de reforma agrária do governo se insere em um movimento maior, o de barrar as ações do Executivo e tentar conter o desenvolvimento da organização nacional da classe trabalhadora rural.78 Pretendo demonstrar, ao longo da pesquisa, o que estou chamando aqui de “movimento”. Isto é, analisar o campo de atuação dos agentes elaboradores dos projetos de oposição ao do governo 79 - campo de atuação este que passa pelo partido político ao qual 78 Assim, o estudo aqui esboçado, dos dois documentos citados, nos ajuda a entender algumas das configurações dessa tentativa de conter a organização dos trabalhadores do campo. 79 Não estamos apontando aqui uma homogeneidade das classes dominantes opositoras ao governo. 103 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades pertencem seus autores, pelas diversas associações de classe a que se encontram filiados, até a publicação de artigos em revistas especializadas e livros. Nesse sentido, a análise de ambos os documentos supra citados auxilia na corroboração de que, cada vez mais, as populações rurais estavam se organizando e buscando espaço no cenário político brasileiro, para reivindicar suas demandas. Além disso, os documentos também demonstram a disputa para deter a hegemonia no campo. Foi realizado em novembro de 1961, em Belo Horizonte, Minas Gerais, o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. A principal organizadora do evento foi a Ultab, porém o evento contou também com a participação das Ligas Camponesas, do Master, de integrantes do movimento sindical urbano, do movimento estudantil e políticos. Dentro deste último grupo, destacam-se o presidente da República João Goulart, seu primeiroministro, Tancredo Neves, e o governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto. O livro organizado por Luiz Flávio de Carvalho Costa, O Congresso Nacional Camponês (COSTA, 2010), retoma o evento realizado em Belo Horizonte, trazendo uma coletânea de documentos da época diretamente relacionados ao Congresso, inclusive reportagens do periódico Terra Livre, além de pequenos textos de lideranças que participaram do encontro. Durante o período democrático de 1945-1964, houve uma incorporação das demandas dos trabalhadores rurais aos diversos projetos políticos brasileiros. Causa e efeito dessa incorporação foi a intensa mobilização dos trabalhadores rurais, em torno da luta por melhores condições de vida e de trabalho e a luta pelo acesso a terra. Dessa forma, verifica-se uma intensa disputa pela hegemonia da organização e da direção dessas lutas do trabalhador rural. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e o governo são os principais atores nessa disputa de hegemonia. A primeira conferência da Ultab, organização fundada em 1954 pelo PCB, foi realizada em setembro de 1959. Nesta conferência foi elaborada uma resolução onde está presente a concepção de reforma agrária do PCB (COSTA, 2010, p. 22 e 23). Em 1961, a Ultab pretendia realizar a sua segunda conferência. No entanto, já desde setembro de 1959 alimentava-se a ideia da realização de um congresso nacional. Isso porque as lideranças dos movimentos entendiam que era necessária, naquele momento, uma manifestação viva da nova força sindical, a socialização das experiências particulares de luta, com o objetivo de traçar diretrizes gerais e dar unidade ao movimento dos trabalhadores do campo. O que realmente fez com que a Ultab abdicasse de sua segunda conferência, em nome de um encontro nacional, foi a possibilidade da aprovação, no Congresso Nacional, de um projeto de reforma agrária atendendo apenas a reivindicações parciais na agricultura. A Ultab 104 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades opta então por organizar um evento mais amplo, onde sua repercussão pudesse exercer pressão sobre o Congresso na aprovação de medidas que modificassem profundamente a estrutura agrária do país. Várias reuniões estaduais são realizadas para a preparação do Congresso Nacional Camponês - nome pelo qual ficou conhecido o I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas. Em 20 de maio de 1961, foi lançado, pela comissão organizadora presidida pelo deputado Hernanni Maia e secretariada pelo professor José Thiago Cintra, o manifesto de convocação do Congresso, que tinha como ordem do dia as soluções para a questão agrária e a elaboração de um programa de reivindicações e direitos dos trabalhadores do campo (COSTA, 2010, p. 24). Com a participação de, aproximadamente, 1.600 delegados eleitos em 13 encontros e congressos estaduais, em conferências municipais e pelas assembleias realizadas em fazendas, realizou-se finalmente, em novembro de 1961, o Congresso em Belo Horizonte. Em torno dos temas propostos foram formadas várias comissões, mas foi na II Comissão, a da reforma agrária, que se centrou o Congresso e se deram as discussões de maior repercussão. Integrada, entre outros, por Julião e pelos dirigentes comunistas Armênio Guedes, Dinarco Reis, Alberto Passos Guimarães, Heros Trench e Nestor Vera, dessa comissão saiu o principal documento do Congresso – que será utilizado no presente trabalho – intitulado Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma Agrária, assinado em Belo Horizonte em 17 de outubro de 1961 (COSTA, 2010, p. 24). É esclarecido logo na primeira frase da Declaração que a mesma fala em nome das massas camponesas, reunidas no congresso com o objetivo de “manifestar a sua decisão inabalável de lutar por uma reforma agrária radical” (COSTA, 2010, p. 60). Cabe aqui um parêntese: Francisco Julião, então líder das Ligas Camponesas, explica que, Muito embora a expressão radical seja tida até hoje como um fuzil apontado para o latifúndio, seu verdadeiro significado tem sido objeto de distorção. Mas quem, com isenção de ânimo, examine o seu conteúdo etimológico, perceberá que deriva de raiz. Apesar disso, tornou-se comum e corrente, na linguagem política, confundir radicalismo com sectarismo, como se fossem sinônimos.80 A Declaração buscou definir os elementos básicos que caracterizam a situação dos que vivem e/ou trabalham na terra81 e fixou os princípios gerais que devem nortear uma reforma agrária radical. A primeira e principal característica da situação agrária brasileira 80 Texto do próprio Francisco Julião, presente no livro de COSTA, L. F. de C., Op. cit., p.31. O termo camponês aparece diversas vezes na Declaração, porém, neste trabalho não o utilizaremos. Isso porque, em nossa concepção, para a realidade brasileira não cabe o uso do conceito de camponês. 81 105 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades citada pelo documento é a questão da concentração fundiária. A Declaração define que é o monopólio da terra o responsável pela baixa produtividade da agricultura, pelo alto custo de vida e pelos processos de uma exploração semifeudal. Ou seja, o que é chamado, pelo documento, como uma estrutura agrária caduca, constitui um entrave decisivo ao desenvolvimento nacional (COSTA, 2010, p. 61). Dessa forma, é estabelecido que para melhorar o nível de vida das populações rurais, suas condições de trabalho e superar o subdesenvolvimento econômico e social do campo brasileiro é necessária a “realização da reforma agrária que modifique radicalmente a atual estrutura de nossa economia agrária e as relações sociais imperantes no campo” (COSTA, 2010, p. 61). Podemos ver presente no documento ainda, a convocação para uma organização das massas trabalhadoras no campo tornarem-se protagonistas do movimento em prol da reforma agrária. Além disso, cita que essas massas devem ser ajudadas pelo proletariado das cidades, pela intelectualidade e pelas demais forças nacionalistas do país. Quando citam a reforma agrária que defendem, os autores da Declaração afirmam que aquela diverge e se opõe aos inúmeros projetos e proposições que busquem reformas ou revisões agrárias. Pois tais reformas são consideradas manobras elaboradas e apresentadas pelas forças sociais que se beneficiam e prosperam à base da manutenção da estrutura agrária vigente, uma vez que essas forças têm como objetivo e interesse essa manutenção. Seguindo em sua exposição, a Declaração esclarece que a reforma agrária pela qual luta tem como objetivo fundamental a completa liquidação do monopólio da terra exercido pelo latifúndio, uma vez que este último é o responsável pelo entrave ao desenvolvimento agrário do país. Dessa forma, defende uma reforma agrária que interesse efetivamente às massas trabalhadoras do campo e que solucione as principais questões, quais sejam: radical transformação da estrutura do país com a liquidação do monopólio da terra, através das desapropriações dos latifúndios, transformando-os em propriedade camponesa individual ou associada e a garantia máxima de acesso à posse e ao uso da terra pelos que nela desejam trabalhar. Além dessas questões relacionadas à mudança da estrutura agrária, apresenta também a necessidade de soluções que possam melhorar as atuais condições de vida e de trabalho das massas camponesas. Assim expõe: a – Respeito ao amplo, livre e democrático direito de organização independente dos camponeses, em suas associações de classe. b – Aplicação efetiva da parte da legislação trabalhista já existente e que se estende aos trabalhadores agrícolas, bem como imediatas providências governamentais no 106 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades sentido de impedir sua violação. Elaboração de Estatuto que vise a uma legislação trabalhista adequada aos trabalhadores rurais. c – Plena garantia à sindicalização livre e autônoma dos assalariados e semiassalariados do campo. Reconhecimento imediato dos sindicatos rurais. (COSTA, 2010, p. 63). Vemos na citação acima que se tratava de uma demanda do movimento das populações rurais, o reconhecimento de suas associações e sindicatos. Podemos ver também a demanda pela elaboração de um Estatuto para o trabalhador rural. Um último ponto que destacamos da Declaração é sua afirmação da necessidade da realização de uma eficaz e inadiável política agrária, capaz de dar solução às questões indispensáveis à plena realização da reforma agrária então defendida. Enumeram-se, então, doze medidas com aquele objetivo. Destacamos aqui a primeira delas: a modificação, pelo Congresso Nacional, do Artigo 141 da Constituição Federal, em seu parágrafo 16, que estabelece a exigência de “indenização prévia, justa e em dinheiro”, para os casos de desapropriação de terras por interesse social. Defendem então que esse dispositivo seja eliminado e reformulado, determinando que as indenizações sejam feitas mediante títulos do poder público, resgatáveis a prazo longo e a juros baixos. Tal mudança constitucional constituiu-se em verdadeira “queda de braço” entre o Executivo e o Legislativo brasileiros, e toda a discussão da questão agrária durante o governo de João Goulart girou basicamente em torno daquela alteração constitucional. É importante ressaltar que se iniciou ainda durante o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) o debate acerca do caráter que deveria assumir o desenvolvimento brasileiro, partindo das noções básicas de que o desenvolvimento, ou seja, a industrialização, era obstaculizada pelo atraso da agricultura e, muito especialmente, pela estrutura fundiária. Essa noção geral era quase unânime dentre as classes políticas do Brasil, e é claro que a solução apresentada para o problema agrário variaria muito do lugar social e político ocupado por seus enunciadores. O campo brasileiro tornava-se, assim, o centro das questões referentes ao desenvolvimento do país. No entanto, diferentemente do ocorrido no meio urbano, o sindicalismo rural nos moldes de uma estrutura corporativista somente foi implantado no Brasil na década de 1960. A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em março de 1963, que regulou as relações de trabalho no campo, que até então estivera à margem da legislação trabalhista, contribuiu também para a rápida sindicalização no campo. O Estatuto consistia em uma legislação que, além de estender alguns direitos trabalhistas ao campo, forneceu as bases para o sindicalismo rural nos moldes de atrelamento ao Estado. A demora desse atrelamento dos trabalhadores 107 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades rurais ao Estado (no sentido restrito) deveu-se a pressões por grupos da classe proprietária de terras, interessada na manutenção da estrutura fundiária. O Estatuto penara longos anos no Congresso, onde começou a ser discutido ainda em meados da década de 1950, em função da resistência de setores identificados aos proprietários de terras. Sua aprovação só se deu em uma nova conjuntura política, marcada pelo fim do parlamentarismo e por um processo crescente de pressões sobre o Congresso para a realização de uma reforma agrária. Tratava-se então, de um Congresso cuja composição havia sofrido alterações importantes por força das eleições de 1962. Destacamos aqui o aumento do número de cadeiras do PTB, que praticamente dobrou, passando de 66 para 116 e tornando-se a segunda maior bancada, ultrapassando a União Democrática Nacional (UDN) (GRYNSZPAN, 2006, p. 67). Partimos então, para o segundo documento a ser analisado neste trabalho, que tem caráter diverso do primeiro, trata-se da Lei nº 4.214 de 2 de março de 1963, que dispõe sobre o Estatuto do Trabalhador Rural. A lei tem o objetivo de reger as relações de trabalho no campo. Para isso, em seu Art. 2 define o que é trabalhador rural: Trabalhador rural para os efeitos desta é toda pessoa física que presta serviços a empregador rural, em propriedade rural ou prédio rústico, mediante salário pago em dinheiro ou "in natura", ou parte "in natura" e parte em dinheiro. 82 Tal definição foi considerada por importantes pensadores da época – como, por exemplo, Caio Prado Jr. – como insuficiente para compreender as diversas formas de relação de trabalho presentes no campo brasileiro (SANTOS, 2007, p. 119-120). Ainda segundo Caio Prado, os legisladores do Estatuto não levaram em consideração as diferenças profundas que existiam nas relações de trabalho no campo brasileiro, quando comparadas com as da indústria e comércio. As relações de trabalho e emprego no campo brasileiro assumiam, muitas vezes, grande complexidade, pois a remuneração do trabalhador se fazia por diferentes formas. Além disso, essas relações variavam consideravelmente no tempo e no espaço. Dessa forma, o Estatuto reduziu a um mínimo que não refletia e não previa de maneira adequada, as inúmeras situações que se apresentavam no campo brasileiro. Guardadas as devidas críticas ao Estatuto, este constituiu um importante avanço nas relações de trabalho no campo. Tomamos aqui como as principais disposições da lei: a instituição da Carteira Profissional de Trabalhador Rural, obrigatória para o exercício de trabalho rural (Art. 11); jornada de trabalho de oito horas diárias, com intervalo para repouso 82 Art. 2 do Estatuto do Trabalhador Rural. 108 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades ou alimentação (Art. 25); salário mínimo, pois fica instituído que nenhum trabalho rural assalariado poderá ser remunerado em base inferior ao salário mínimo regional (Art. 28); e férias remuneradas após cada período de doze meses de vigência de contrato de trabalho (Art. 43). Além das disposições da lei relacionadas às relações trabalhistas no campo, o Estatuto dispõe também sobre a organização sindical. Fica lícita então, a associação em sindicato aos empregadores e aos empregados rurais (Art. 114). Porém, para que uma entidade fosse reconhecida como sindicato, deveria receber carta assinada pelo Ministro do Trabalho e Previdência Social com tal reconhecimento (Art. 119). A expedição da carta de reconhecimento era dada à entidade que o requeresse, mediante prova de cumprimento das exigências estabelecidas no art. 117 do Estatuto. Apontamos aqui um dos requisitos previstos no art. 117, onde se pode ver como a lei atrelou os sindicatos ao Estado restrito: Parágrafo único. Os estatutos deverão conter: (...) c) a afirmação de que a entidade agirá como órgão de colaboração com os poderes públicos e as demais associações ou sindicatos no sentido da solidariedade social, do bem-estar dos associados e do Interesse nacional;(...).83 Seguiu-se a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, diversas novas portarias para regulamentar a questão, que traziam instruções sobre a organização e o reconhecimento das entidades sindicais rurais (GRYNSZPAN, 2006, p. 67). Além disso, a criação da SUPRA (Superintendência de Política Agrária) em outubro de 1962, já vinha exercendo grande influência sobre a sindicalização rural. 84 Pode-se observar então que o início dos anos 1960 é marcado por intensas disputas em torno da questão agrária brasileira. Cada vez mais os trabalhadores rurais se organizam e a disputa pela hegemonia no interior do movimento social rural se acirra. O PCB, a Igreja Católica, as Ligas Camponesas e o governo são os principais atores nessa disputa de hegemonia. Com o I Congresso Nacional Camponês, o PCB, através da ULTAB, tentou avançar na disputa. Porém, durante o Congresso, as Ligas Camponesas tiveram um papel protagonista. Com o desenvolvimento da organização dos trabalhadores rurais, e do processo de sindicalização destes, as diferenças entre o PCB e as Ligas Camponesas aumentaram. 85 83 Estatuto do Trabalhador Rural, Art. 117, grifos nossos. A SUPRA foi criada pelo Executivo para ser o seu principal instrumento de intervenção na questão agrária brasileira. 85 Observam-se, então, as diferentes condutas tomadas pelo PCB e pelas Ligas nos anos de 1960. Enquanto os comunistas defendiam uma revolução democrático-burguesa dentro dos marcos legais, as Ligas pregavam a instauração do socialismo. Além disso, as Ligas ressaltavam o papel primordial do campesinato para a mobilização da Revolução, enquanto o PCB pregava uma aliança operário-camponesa com o predomínio dos trabalhadores urbanos neste processo. 84 109 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Desde o V Congresso do Partido em 1960, quando foi sistematizada a proposta de um caminho pacífico para a revolução86, o PCB passou a adotar uma nova conduta política, baseada na idéia da conciliação e da acumulação de forças. Já as Ligas Camponesas, cada vez mais defendem uma luta protagonizada pelas populações rurais em prol do direito de acesso a terra, não por direitos trabalhistas. Diante deste cenário, o governo Goulart encaminhou o processo de sindicalização no campo, de forma similar ao realizado nos centos urbanos, ou seja, atrelado do Estado restrito. Dessa maneira, consegue desarticular os setores que lutavam por uma mudança radical na estrutura fundiária – protagonizados pelas Ligas Camponesas – pois atende parte das demandas de amplos setores de trabalhadores rurais. A Declaração do I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas sobre o Caráter da Reforma Agrária e o próprio Congresso Camponês, demonstram um cenário, no início do governo Goulart, de acumulação de forças em prol de uma mudança profunda na estrutura fundiária brasileira. A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural87, em 1963, demonstra, por sua vez, um redirecionamento das discussões em prol das relações trabalhistas no campo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA, Luiz Flávio de Carvalho. O Congresso Nacional Camponês. Trabalhadores rurais no processo político brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad X; Seropédica: EDUR, 2010. GRYNSZPAN, Mario. O período Jango e a questão agrária: luta política e afirmação de novos atores. In: FERREIRA, M. de M. (Org.) João Goulart: entre a memória e a história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. MENDONÇA, Sônia Regina de. Estado e políticas públicas: considerações políticoconceituais. In: Outros Tempos, v. 1, 2007, p.1-12. RAMOS, Carolina. Sindicato Patronal Rural e Reforma Agrária no Brasil; uma análise da atuação da Confederação Nacional da Agricultura frente às políticas governamentais voltadas para a questão fundiária (1961-1970). Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGH/UFF, Niterói, 2006. SANTOS, Raimundo & COSTA, Luiz Flavio Carvalho. Camponeses e Política no pré-1964. In: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: CPDA, abril de 1997, n. 8. ______. Agraristas Políticos Brasileiros. Brasília: Fundação Astrojildo Pereira, 2007. 86 Textos divulgados no V Congresso de autoria de Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Jr defendiam a idéia de uma política gradualista e de aliança com a burguesia nacional para, depois, implantar o socialismo. Cf; SANTOS, Raimundo & COSTA, Luiz Flavio Carvalho. Camponeses e Política no pré-1964. IN: Estudos Sociedade e Agricultura. Rio de Janeiro: CPDA, abril de 1997, n. 8. 87 E a série de portarias que são aprovadas a seguir regulamentando a matéria. 110 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Fotografia, memória e paisagens urbanas: reflexões sobre cidade de Nova Iguaçu na década de 1930 Natalia Azevedo Crivello * Resumo: Descrições a respeito de cidades estão sempre presentes nos escritos de viajantes. Descrições de bairros, referências a certos lugares e áreas são constantes nos relatos de memorialistas e textos de literatos. Pontos de referência ao leitor, bem como algo relacionado à sua permanência ou formas de traçado urbano e edificações, ou mesmo de sua rápida transformação, fazem da materialidade dos núcleos urbanos um suporte à memória, recorte preciso com contornos apreensíveis, capaz de orientar o conhecimento ou o reconhecimento dos que por elas passam ou moram (BRESCIANNI, 2003, p. 238). Ao tentar perceber as relações que se travam em uma cidade – Nova Iguaçu – no período delimitado – 1930 a 1940 – não nos propomos conceber as transformações da cidade que deixa de ser essencialmente agrária e transforma-se gradativamente em núcleo urbano, numa tentativa de opor a urbe a uma suposta vida campestre idealizada. O objetivamos entender a localidade dentro de sua lógica própria, as relações de poder, bem como as representações simbólicas efetuadas. Para tal utilizaremos como fontes imagens fotográficas de Nova Iguaçu da década de 1930. Palavras-Chave: Nova Iguaçu; Fotografias; transformações urbanas. Abstract: Descriptions of cities are always present in the writings of travelers. Descriptions of neighborhoods and references to certain places and areas are listed in the reports and in memoirs in literary texts. Points of reference to the reader, as something related to his stay or to forms of urban layout and buildings or even its rapid change, they make from the materiality of an urban core a memory support, that is cut precisely within apprehensible contours, capable of guiding knowledge or recognition to those who live or pass by them (BRESCIANNI, 2003, p. 238). As we try to apprehend the relations that are created in a city Nova Iguaçu – in a limited period - 1930 to 1940 - we do not propose to consider the transformations of a city that ceases to be essentially agrarian and becomes gradually an urban core, in an attempt to oppose the metropolis to a supposed ideal country life. We aim to understand the local within its own logic, the power relations and the symbolic representations related to it. For this purpose, we will use as sources photographs of Nova Iguaçu in the 1930’s. Keywords: Nova Iguaçu; Photographs; urban transformation. Este artigo é resultado das discussões e reflexões realizadas na disciplina “Imagem, memória e paisagens urbanas: reflexões sobre a prática historiográfica entre arte e cidade”, ministrada pela professora Andrea Casanova Maia no PPGHIS IFICS-UFRJ. A partir desses debates, também serão discutidas e relacionadas com a bibliografia do curso algumas questões pertinentes encontradas no projeto de Mestrado “Os laranjais da cidade de Nova Iguaçu: testemunhos fotográficos de uma transformação (1930-1940)”, que está em fase de finalização, no PPGHS da Faculdade de Formação de Professores da UERJ. * Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da UERJ (PPGHS-UERJ). 111 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A pesquisa em curso se propõe analisar o processo de transformações que o município citricultor de Nova Iguaçu passa no recorte temporal de 1930 a 1940, momento em que a lavoura de cítricos dá lugar ao espaço citadino. Estão em disputa no campo político 88 municipal os representantes da fração de classe citricultora. Estes indivíduos são retratados em várias fotografias, que são as fontes de nossa pesquisa, amparadas pela bibliografia da história local. Através dessas imagens, sustentamos a hipótese de que é possível perceber como a ‘crise’ dos laranjais propiciou as transformações urbanas do centro da cidade; a partir dessas transformações, a fração de classe dominante na localidade – os laranjeiros – apropriam-se de um repertório89 político intelectual de serem os representantes da modernidade. Desta maneira é perceptível no município, por parte deste grupo, em Nova Iguaçu, a construção de identidades de maneira a fortalecer o imaginário em torno do “mito da idade de ouro” local. As coleções de fotografias que se constituem como fontes desta pesquisa foram gentilmente cedidas pelo Instituto Histórico e geográfico de Nova Iguaçu. Neste exato momento, iniciamos nossa discussão. Toda pesquisa histórica é amparada por fontes, que desta maneira são selecionadas pelo historiador. Em nossa pesquisa, selecionamos uma coleção de imagens. Mas o que exatamente é uma coleção? Qual o seu objetivo? Krzysztof Pomian define ‘coleção’ como “qualquer conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporária ou definitivamente fora do circuito das atividades econômicas, sujeitos a uma proteção especial num local fechado preparado para este fim, e expostos ao olhar público”90 (1997, p.53). O homem é desde cedo um produtor de utensílios, habitações, entretanto de um tempo mais recente desenvolveu um instinto de propriedade, uma propensão a acumular coisas, objetos, com a finalidade de guardá-los para que em determinado momento fossem expostos ao olhar, com determinado fim; assim surgem as primeiras coleções. Na coleção em questão, a fotografia é banida de sua função - de estar num portaretratos de prata decorando um aparador e sempre trazendo à lembrança de quem passa ou 88 Conferir a definição de ‘campo’ em: Bordieu, P. O poder simbólico. RJ: Bertrand Brasil, 2010, p. 59 Um repertório é o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo: padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagem; conceitos e metáforas (Swidler, 1986). Não importa a consistência teórica entre os elementos que o compõem. Seu arranjo é histórico e prático. Cf. em A. Critica e contestação: o movimento reformista da geração de 1870. RBCS. Vol. 15, n. 44, outubro, 2000. 90 Os objetos de colecionados são denominados pelo autor de semióforos, “objetos que não têm uma utilidade no sentido de serem consumidos ou servir para obterem-se bens de subsistência, ou transformar matérias brutas de modo a torná-las consumíveis, entretanto são dotados de um significado, são representações de um invisível”, Cf. em POMIAN, K., 1997, p.71. 89 112 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades indicando a quem chega determinado momento importante: foi eleita entre tantas para ocupar tal posição, em vez de estar encerrada num álbum – e se transforma num objeto de análise em uma pesquisa histórica. Continuará a ser exposta ao olhar, entretanto um olhar nada inocente, que a explora, especula e objetiva a descortinar as minúcias justapostas nas entrelinhas. Deste modo, as coleções custodiadas por Arquivos e Institutos encontram nestes órgãos a função de as colocar em segurança, recolher classificar, conservar, guardar e tornar acessíveis estes documentos, os quais tendo perdido a sua antiga utilidade são considerados supérfluos nas repartições e nos depósitos, merecerem ser resguardados. (BUCHALSKI et al., 1952 apud POMIAN, 1997, p.53). Interessante para nós é essa função que é atribuída tanto às coleções, quanto às fotografias (sejam elas integrantes ou não de coleções). Ambas são alvo de uma relação de representação, sempre relativa a um observador. E nesse sentido, estabelecem uma oposição entre o invisível e o visível, entre o passado que se foi e o(s) objeto(s) representante(s) deste passado no presente. Engendram o invisível, porque seu próprio funcionamento, num mundo onde aparecem fantasmas, onde se morre e acontecem mudanças, impõem a convicção de que o que se vê é apenas uma parte do que existe (POMIAN, 1997, p. 68 e 71), no caso da fotografia de um momento que existiu. No que se refere à quantidade de objetos necessários para formar uma coleção, não se tem uma resposta, obviamente é uma questão abstrata, não se possui uma regra. Disto dependem do local em que são acumuladas, da sociedade, do modo de vida, das intenções de cada um. Isso nos sugere um caráter fragmentário do ato de colecionar. Excetuando-se as coleções limitadas produzidas para este fim por editoras e empresas do tipo, o ato de colecionar pode constituir-se em obsessão. Não se pode colecionar o mundo inteiro, isto foge totalmente de nossas mãos. Igualmente as fotografias possuem essa característica, são fragmentárias enquanto registros de representações de um passado bem como quando constituem coleções. As imagens fotográficas são resultado da interrupção do tempo no momento que o fotógrafo dispara a câmera, em que o fragmento selecionado daquela realidade será fixado com auxílio de reações físico-químicas na superfície plana do papel. Busquemos amparo metodológico para tratar nossa coleção de imagens em um autor caracterizado justamente por sua obra considerada fragmentária e incompleta (GINZBURG, 1989, P. 47) o historiador da arte alemão Aby Warburg 91 e o seu Atlas mnemosyne. Na 91 Abraham Moritz Warburg mais conhecido como Aby Warburg (Hamburgo, 13 de junho de 1866 — 26 de outubro, 1929) foi um historiador da arte alemão, célebre por seus estudos sobre o ressurgimento do paganismo 113 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Mitologia Grega, Atlas era um Titã, que como castigo por ter enfrentado os deuses juntamente com seu irmão Prometeu foi obrigado a sustentar com seus ombros o peso da abóbada celeste inteira, o que lhe fez adquirir grande conhecimento e sabedoria. Deste modo teria sido o precursor dos astronautas, geógrafos, e há quem diga foi o primeiro dos filósofos (DIDIHUBERMAN, 2011). Deste modo, chamamos atlas a formas visuais de conhecimento: inicialmente um conjunto de mapas geográficos, reunidos em volumes, em livros de imagens que têm como objetivo nos oferecer sistemática ou problematicamente uma variedade de coisas reunidas por afinidades eletivas. (DIDI- HUBERMAN, 2011) O Atlas Mnemosyne reúne os objetos de sua pesquisa (imagens, fotos, figuras) em um dispositivo de painéis móveis constantemente montados, desmontados, remontados. Segundo Didi-Huberman (2011) é considerado como uma história documental do imaginário ocidental e como uma ferramenta para compreender a violência política nas imagens da história. “Mnemosyne foi sua paradoxal obra prima e seu testamento metodológico. Com ele Warburg transformou o modo de compreender as imagens” (DIDI- HUBERMAN, 2011). Essa forma de tratar as imagens é bem significante para nossa pesquisa. Primeiramente porque seu Atlas expressa todas as características de uma coleção. Segundo que o fato de montar esse corpus de imagens em painéis confere a ele toda uma mobilidade, uma possibilidade de transformação. Assim sendo, sempre que um historiador constitui suas fontes, está criando seu próprio atlas, seu corpus documental. Isso nos faz ter a consciência de nosso ofício. Na sua oficina, que é a sociedade no tempo, o historiador organiza, reconfigura a ordem das coisas e dos lugares de forma que suas inquietações e indagações a respeito de determinado tempo sejam respondidos. Deste modo percebemos a insuficiência do método de constituição de fontes, pois na tentativa de recomposição do mundo as informações são sempre incompletas e sempre resultado de representações relativas a um observador. São classificadas, posicionadas, no renascimento italiano. Ficou conhecido também pela Biblioteca referencial que levava seu nome, e que reunia uma grande coleção sobre ciências humanas e que, ao ser transferida para Londres em 1933, tornou-se a base para a constituição do Instituto Warburg (sua única obra realmente acabada) O Bilderatlas Mnemosyne (Atlas de Imagens Mnemosine), em seu nome, homenageia a musa grega da memória, Mnemosine. Era o projeto mais ambicioso de Warburg, que pretendia estabelecer "cadeias de transporte de imagens", linhas de transmissão de características visuais através dos tempos, que carregariam consigo o pathos, emoções básicas engendradas no nascimento da civilização ocidental, nessas imagens. O projeto foi interrompido com a morte do historiador, mas, segundo seu biógrafo, E.H. Gombrich, o projeto estava destinado a ser inconcluso, devido à sua enorme ambição e abrangência temporal. "Mnemosyne", em grego, era a palavra gravada na entrada da Biblioteca Warburg, em Hamburgo. 114 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades reconfiguradas de acordo com um olhar, ou seja, são construídas arbitrariamente, de maneira que respondam às indagações de quem as analisa. Outro assunto relevante à pesquisa é a relação entre linguagem e imagem. Existirá sempre uma insuficiência da ‘tradução de imagens’, produzindo-se uma espécie de hiato entre aquilo que se vê e aquilo que se fala ou se escreve sobre o que se é visto. Nesse sentido a relação entre imagem e linguagem é infinita e também prolífera. Segundo Gruzinski (2006, p.14), no que tange a imagem “o maior paradoxo seria estarmos num mundo de proliferação de imagens e continuando a pensar que estamos sob o poder do texto”. Os próprios textos não deixam de ser ou expressar uma imagem. Nestes termos, o ‘simples olhar’ não existe, os olhos estão sempre à procura de algo que exerça sobre si um enredamento. Assim, “precisamos nos habituar” nos diz Merleau-Ponty,” a pensar que todo visível é talhado no tangível, todo ser tátil prometido de certo modo à visibilidade, e que há invasão, encavalgamento, não apenas entre o tocado e quem toca, mas também entre o visível e o que está incrustado nele”. (PONTY apud DIDI-HUBERMAN, 1998, p.30) A imagem fotográfica é portadora de história e tempo e carrega saberes inacessíveis que nos escapam. A metodologia de Warburg no tratamento de imagens é bastante rica para nós, com a ressalva de que o autor trabalhava em geral com obras de arte. Mas isso não é problema, pois as obras de arte são imagens bens como as fotografias, que também podem ser consideradas arte. Apesar de não ser esta a nossa discussão, o que interessa é justamente que o estudioso alemão recusava-se a realizar leituras puramente ‘impressionistas’ e estetizantes das obras de arte. Em suas pesquisas, o crítico considerava as suas imagens à luz de testemunhos históricos, de qualquer tipo e nível, em condições de esclarecer sua gênese e seu significado, de outra forma, a própria imagem deveria ser interpretada como fonte sui generis para a reconstrução histórica (GINZBURG, 1989, P. 56). Note-se que ele percebe a idéia de reconstrução, afinal de contas, a história é uma construção social ocorrida em determinada época. Além do fato da existência de uma incompatibilidade entre a imagem e a linguagem _ sendo irredutíveis uma à outra “por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aqueles a que as sucessões da sintaxe definem” (FOUCAULT, 1999, p.12) _ existe a questão de sua apropriação e manipulação. Assim, do mesmo modo que a palavra e o texto, a fotografia pode ser veículo de todos os poderes e todas as resistências (GRUZINSKI, 2006, p.17); ela é 115 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades possível de ser manipulada em várias instâncias, e nesse caso sofre seleção por vários filtros culturais. Entre a simples foto e aquele que a vê existe um mundo de intenções incógnito e pronto para ser desvendado. Entre os filtros culturais temos todos os indivíduos e trajetórias pelos quais o fotograma passou: o fotógrafo que capturou o momento; a pessoa retratada; aquele quem mandou retratar; o fato de o retrato ter sido escolhido ou descartado, ser exposto no porta-retratos ou ficar recluso num álbum ou mesmo enclausurado longos anos num baú; o fato de ser reencontrado como tesouro ou jogado no lixo, ser restaurado ou vendido numa feira de antiguidades, ou doado a um instituto de pesquisa; se foi comprado ou se faz parte de um corpus documental com objetivo de ser analisado por um estudioso. Tudo isso caracteriza seleção, construção, arbitrariedade, intenção. Importante lembrar sempre que a foto é uma representação de uma realidade. Em nossa pesquisa as imagens fotográficas são as fontes que retratam as representações das transformações em uma cidade _ Nova Iguaçu. Para compreender as transformações na cidade, concebemo-la como um palimpsesto92. O espaço é escrito, apagado, reescrito como os textos nos pergaminhos antigos. Desta forma. Nova Iguaçu sucessivamente tem seu espaço transformado, entretanto é possível recuperar em nestes espaços caracteres de seu passado: primeiramente sua sede é transportada das margens do rio que dá nome ao local para o Arraial de Maxambomba - às margens da Estrada de ferro Central do Brasil. Maxambomba tem seu nome modificado para Iguaçu e posteriormente para Nova Iguaçu. O território iguaçuano, vê através dos séculos serem inscritas nas suas terras culturas de cana de açúcar, café, gêneros alimentícios de subsistência e Laranjas. Cada espaço da cidade testemunhou esses processos históricos sobrepondo-se uns aos outros. A título de demonstrar essa sobreposição de tempos indicamos duas fotos do que hoje é a Região central em dois momentos distintos: décadas de 1930 e 1940. 92 O palimpsesto é uma imagem arquetípica para a leitura do mundo. Palavra grega surgida no século V a.c., depois da adoção do pergaminho para o uso da escrita, palimpsesto veio a significar um pergaminho do qual se apagou a primeira escritura para reaproveitamento por outro texto. A escassez de pergaminhos os séculos de VII a IX generalizou os palimpsestos, que se apresentavam como os pergaminhos nos quais se apresentava a escrita sucessiva de textos superpostos, mas onde a raspagem de um não conseguia apagar todos os caracteres antigos doa outros precedentes, que se mostravam, por vezes, ainda visíveis, possibilitando uma recuperação. (PESAVENTO, S.) Cf. em HUYSSEN, A. Present Pasts. Urban palimpsests and the politics of memory. Stanford: Stanford University Press, 2003 116 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Imagem 1: Centro de Nova Iguaçu: 1930 Note-se que a foto é tirada pelo lado da Serra de Madureira e mostra a área mais plana onde ocorreu a expansão da cidade. Todo o espaço retratado na fotografia é hoje ocupado por casas, lojas, edifícios etc. Percebem-se os pés de laranja no primeiro plano à direita e mais ao fundo tomando toda a área inclusive atrás da Igreja de Santo Antônio de Jacutinga. Percebemse construções, porém um número reduzido e o traçado urbano indefinido. A Igreja ainda com suas duas torres. A linha férrea, apesar de não poder ser vista nesta imagem, passa em linha reta à frente da Igreja. Vemos uma única rua aparentemente não pavimentada bem ao centro da fotografia. Observamos que o que predomina nesta fotografia é o território cultivado, repleto de laranjais. Vejamos na próxima imagem a re-escritura deste palimpsesto que é a cidade de Nova Iguaçu. Imagem 2: Centro de Nova Iguaçu: 1940 117 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Pode-se observar que a foto panorâmica é tirada na posição oposta à Imagem 1. Percebemos ao fundo a Serra de Madureira que contém a expansão da ocupação habitacional, entretanto vemos em seu sopé pés plantações de cítricos. Em relação à imagem anterior, predominam as construções. Note-se que na área dos lados e fundos da igreja, os laranjais deram lugar a edificações. Percebemos o início da transformação da lavoura de cítrico - que predominava na região do centro – em espaço urbano incipiente. O que mais chama atenção nesta foto é o traço das ruas que é mais forte e geométrico em relação à imagem anterior onde não apareciam. Percebemos, ainda, em frente à Igreja – neste momento com a configuração que perdura até os dias atuais – da estrada de ferro e das duas principais ruas da cidade, num traçado retilíneo. Perpendicularmente a partir da ferrovia outras ruas vão surgindo abrindo caminho para a expansão. Laranjais ainda são visto no primeiro plano à direita da imagem, cedendo lugar às construções. No que tange a questões referentes à urbanística, organização e expressão de funcionalidade, encontramos pela primeira vez – após o fim do mundo clássico - de forma consciente e orgânica a problematização da cidade pela cultura humanista do Renascimento, que contribuíram para o desenvolvimento das cidades a partir daquele período. Neste momento surge de fato uma ciência da cidade, a urbanística. Levemos em consideração que a existência de uma teoria ou ciência urbanística pura e simplesmente não é suficiente para realizar transformações radicais, entretanto é um fator que influi efetivamente nas transformações urbanas produzidas sob a pressão das exigências sociais econômicas e políticas. (ARGAN, 1997, p.56). Em Iguaçu, como um dos motivos para as transformações, percebemos como pressão de exigências sociais e econômicas a reorientação da cidade para atender à expansão da metrópole capital, Rio de Janeiro. (Apesar de a fração de classe dominante – a saber os citricultores - apropriarem-se de uma ideia de processo civilizador do qual seriam protagonistas). Assim, nos tratados de arquitetura dos séculos XV e XVI estão repletos de cidades ideais, apesar de possivelmente elas não terem saído do papel. Não queremos e seria impossível situar as transformações em Iguaçu neste patamar, afinal 500 anos nos separam e cada localidade tem sua lógica e suas peculiaridades. Entretanto naquele período se pensou de forma mais organizada, e partir de então se desenvolveram as cidades modernas. Assim percebemos a transformação de Iguaçu, dentro de uma lógica urbana. Partimos do pressuposto da cidade enquanto organismo sócio-econômico e que se constitui uma entidade política, em cujo campo forças em contraste estão em embate nas disputas pelo poder. 118 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Retomando a Imagem 2, a cidade não é mais um agregado denso de construções desordenadamente distribuídas pelo espaço urbano, com ruas tortuosas e quase imperceptíveis por serem estreitas; as próprias plantações ainda aparentes são ordenadas, entretanto chama atenção ´traçado’ geométrico das ruas o surgimento dos primeiros loteamentos. Argan (1999, p.57) nos chama atenção de que nas transformações para a cidade moderna, pode ser observada uma separação bastante nítida entre as áreas de representação e de resistência senhoril, onde se exerce a direção e administração e moradias. Na Imagem 2 isto pode ser indicado. A ferrovia foi originariamente estabelecida bem próxima ao sopé do maciço do Gericinó-Medanha- a Serra de Madureira vista ao fundo – pois o solo iguaçuano é demasiado úmido e em algumas áreas alagadiço e pantanoso. Havia necessidade de implantar a ferrovia sobre um solo seco e firme para não ocorrerem acidentes. Com a mudança da sede do Município para as margens da ferrovia, as áreas em seu entorno valorizaram, principalmente a área de declives do lado da serra de Madureira. Nas ‘ladeiras’ firmes e secas estabeleceram-se os solares das famílias de posse da localidade, que, sobretudo no período da laranja, eram proprietários dos barracões de beneficiamento dos frutos. Logo, no sopé da Serra de Madureira estabeleceu-se uma área nobre da localidade – até hoje nesta área encontram-se habitações com preços mais elevados – voltada para moradias e escritórios para atividades liberais. É neste ‘lado’ também, que é construído o hospital, fundado em 1935, numa área bastante espaçosa e de clima bem ameno. Na fotografia abaixo, Imagem 3, foto da inauguração do hospital. Ao fundo, à esquerda, trecho do Maciço do Gericinó. Vale destacar na imagem, no canto superior esquerdo a fiação elétrica, na área considerada mais nobre da cidade. O hospital, contou na sua inauguração, com a presença do Chefe do Executivo Nacional, Presidente Getúlio Vargas. A rua sobe perpendicular à ferrovia e culmina na praça onde o hospital foi erguido. Na ocasião a rua teve seu trajeto pavimentado e o nome mudado, para Rua Getúlio Vargas (Imagem 4), em homenagem ao Presidente. 119 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Imagem 3: Inauguração do Hospital Iguaçu Ao fundo na Imagem 4 temos trecho da serra de Madureira ocupado por laranjais. Percebe-se que a rua segue subindo até fazer uma curva, onde encontrará o Hospital Iguaçu. Notamos as calçadas bem largas para os passantes, com árvores ainda pequenas o que nos indicam que esse visual é recente (hoje as árvores estão altas e frondosas e produzem um ar bem nostálgico, pois rua ainda tem algumas das construções antigas). Atenção que esta é uma das ruas onde vivem famílias abastadas. Imagem 4: Rua Getúlio Vargas 120 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Segundo Argan (1999, p. 57) enquanto forma visível a cidade não expressa mais os ideais e interesses de uma comunidade cívica, mas os valores e princípios e que o poder político se sustenta e justifica. Desta forma torna-se clara a distinção entre as ruas principais, onde se concentra a administração e as ruas secundárias. Neste sentido, cresce o número e a imponência dos edifícios de caráter representativo. Voltando à Imagem 2, a Rua localizada entre a Igreja de Santo Antônio de Jacutinga e a ferrovia, é a Av. Mal Floriano, melhor identificada na Imagem 5. Ao longo da via, encontram-se estabelecidas algumas packinghouses, ou barracões de beneficiamento das laranjas; o fato de alguns barracões serem ‘vizinhos’ à estação de trem agilizava o embarque dos frutos. Estavam ali estabelecidos de forma estratégica. Nesta Avenida cujo nome permanece atualmente, fervilhava a vida no município. Ela segue a ferrovia em suas duas direções. Ao longo desta avenida encontram-se várias construções, muitas lojas com sobrados onde moram os comerciantes proprietários (diferentemente da Rua Getúlio Vargas da Imagem 4 onde vemos casas e solares). Nela encontravam-se padarias, casas bancárias, cafés, empórios: era a rua onde os moradores realizavam suas compras, bem como onde os trabalhadores cansados da jornada do trem faziam um pouso antes de voltarem para suas casas nas regiões mais distantes do município. Na imagem pode perceber que avenida é bem extensa. Logo à direita o Café e Bilhares Elite, ponto de encontro dos rapazes e dos intelectuais locais. Note-se que a Av. Marechal Floriano não é arborizada como a Rua Getúlio Vargas, caracterizada principalmente por residências. As árvores cedem lugar aos postes de energia elétrica. Imagem 5. Av. Mal Floriano. 121 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades O traçado urbano indica a nova ordem hierárquica que é estabelecida na cidade. No mesmo espaço urbano, encontra-se mais de uma cidade, esboçando-se a distinção entre as frações de classes dominantes e dominadas, o que é traduzido na relação centro-periferia. Ressalte-se que as imagens até agora mostradas retratam o centro, onde está localizado o comércio, as relações político-administrativas e as habitações das classes mais ricas. As áreas onde vivem os trabalhadores localizam-se bem distantes desse centro de Nova Iguaçu. Algo bastante curioso: nos arquivos em que as fotografias foram pesquisadas não encontramos retratos destes bairros. Esses indivíduos simplesmente transitam pelas áreas retratadas e voltam para suas moradas que se estabeleceram nas áreas periféricas de Nova Iguaçu. A respeito da citricultura em Nova Iguaçu, detectamos um fenômeno bastante peculiar na história da localidade. Algo que chama atenção é o fato de destaque do período em que nas terras iguaçuanas cultivavam-se laranjas, entre as décadas de 1930 e 1940. Isso num município cujas terras foram desbravadas ainda no início da colonização no século XVI 93. Enquanto a Região do Recôncavo Guanabarino (Iguaçu, até a primeira metade do século XX abrangia toda essa área) com seus múltiplos caminhos ligando o interior do país ao centro do RJ escoando grande parte da riqueza – ouro, café e gêneros de subsistência – e deixando no seu rastro grandes comerciantes e fortunas, quilombos, tribos indígenas, imigrantes anônimos, uma cultura rica e diversificada o que resplandece na memória local é a história dos laranjais. Partimos do pressuposto que a memória é seletiva. Michel Pollack (1992, p.2) nos indica que entre os elementos constitutivos da memória individual e coletiva, existem aqueles “vividos por tabela”. Esses são os acontecimentos que a pessoa talvez não tenha vivido, mas que no imaginário, tomaram grande relevo, de maneira que o indivíduo não consegue discernir se viveu ou não. A idéia que nos interessa aqui é o momento em que determinado momento tome tamanho relevo na história coletiva, no caso de Nova Iguaçu, esse período citricultor. Segundo o proposto por Pollack (1992, p.2), é possível que por meio de socialização política, ou histórica, ocorra o fenômeno de projeção ou identificação com determinado passado de forma que exista uma memória quase herdada. É construído em Nova Iguaçu um mito da idade de ouro, que busca resgatar a história citricultora com objetivos de produzir identidades em relação a esse passado considerado 93 “Durante muito tempo as terras que formaram Iguaçu, ficaram abandonadas até que seus rios desembocando na baia da Guanabara, foram, aos poucos, penetradas por colonos. Daí datam as primeiras sesmarias, na metade do século XVI”. “Em 1577, Cristóvão de Barros recebia de Mem de Sá (...) uma légua de terra desde o salgado pelo rio acima e meia de largo para cada parte do Rio Iguaçu, ficando este no meio” Cf. em PEREIRA, Waldick. A mudança da Vila (história iguaçuana) Nova Iguaçu-RJ: FGV, 1970. p. 11. 122 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades áureo por determinado grupo – a saber, os reminiscentes da fração de classe citricultora. Para compreendermos esse fenômeno, buscaremos apoio na obra de Svetlana Boym. Em seu ‘The Future of Nostalgia’, Boym realiza estudo sobre nostalgia. O termo foi utilizado durante o século XVII para diagnosticar uma doença curável que acometia pessoas causando o que entendemos como saudade, bem como um desejo de retorno ao lar, uma espécie de sentimento de perda. Num senso amplo, nostalgia é uma espécie de rebelião contra a idéia moderna de tempo, o tempo da história e do progresso. Entretanto, em finais do século XIX esse fenômeno deixou de ser uma doença e transformou-se numa condição incurável moderna. Nostalgia é um sintoma de nossa época, uma emoção histórica. A autora diferencia dois exemplos de nostalgia – ‘restorative’ ou restauradora e ‘reflective’ ou refletiva. Ambas estabelecem uma relação com o passado, com uma comunidade imaginada94, com o lar. A nostagia restauradora nos interessa pois está no cerne dos recentes ‘revivals’ nacionais e religiosos. Deste modo nostalgia restauradora enfatiza o ‘nostos’ - ou retorno ao lar – propondo a reconstrução da pátria perdida e a correção de falhas de memória. Ela é exercida principalmente na criação de um mito da idade de outro. Manifesta-se em reconstruções de momentos do passado. É assim que percebemos esse fenômeno em Nova Iguaçu. É criado um mito da idade de ouro numa tentativa por parte de alguns moradores locais de trazer à tona a fase áurea da lavoura citricultora. O mito é perpetuado pela classe citricultora e seus descendentes com objetivo de resguardar sua história e em torno desta paira uma espécie de aura dos anos dourados da cidade perfume. Dos mais clássicos exemplos da exploração desse mito, apresentamos o hino municipal95, cuja letra remete de maneira saudosista a história recente do município, enaltecendo a os ‘encantos da cidade’ desde os ‘tempos de outrora’ numa representação na qual o atual município aparece como expoente no cenário fluminense, relembrando o período dos engenhos de açúcar nela existentes no período colonial, e sutilmente aludindo à cidade dos ‘doirados laranjais’. Apesar de o hino mencionar o momento da cana de açúcar que é 94 Benedict Anderson, na definição do termo nação, a estabelece enquanto uma comunidade política imaginada, limitada e soberana. (ANDERSON, 2008, p.32). Nos apropriamos deste termo – comunidade imaginada - para caracterizar a localidade em questão - Nova Iguaçu. 95 Instituído pelo Decreto-Lei nº 102 de 19/06/79, Letra de Paulo da Costa Navega e Música de Tereza Stella Pinheiro Lopes : “Nova Iguaçu! Nova Iguaçu,/ Terra linda e encantadora,/Desde os tempos de outrora,/Dos meus velhos ancestrais,/ Tens uma história/Cheia de belezas mil,/O encanto fluminense/ É orgulho do Brasil/A Maxambomba/ Dos engenhos do passado,/ Nova Iguaçu/Dos dourados laranjais./Hoje feliz,/Com teu rico alvorecer,/ Com teu progresso e beleza,/ Fiz consulta à natureza/ És grande desde o nascer.” Disponível em http://www.novaiguacu.rj.gov.br/simbolos.php, acesso em 15/11/2010. 123 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades considerada uma riqueza do estado do Rio de Janeiro, o que predomina nas representações locais é a citricultura. O hino é um símbolo através do qual se cultua e exalta a pátria, a nação, neste caso a municipalidade. Quando ele é cantado, de certo modo traz um anseio de comunhão, identificando, homogeneizando a todos num sentimento único. Ao se cantar o hino municipal se recriam e reproduzem as lealdades a um sujeito coletivo [que] não se dissolve magicamente no município, como que experimenta o município em si mesmo 96 (ESTÉVEZ, apud BERG, 2008, p.755). Assim o Hino Municipal tenta idealizar em sua musicalidade a cidade de forma bucólica. Outro exemplo da difusão do mito da laranja é encontrado no livro de memórias ‘Laranjas brasileiras’ de Iracema Baroni de Carvalhos, filha de um dos mais prósperos produtores de laranjas em Nova Iguaçu, o Comendador Francisco Baroni - O “rei da laranja”. Logo na primeira página do livro, numa espécie de ‘carta ao leitor’ segue a frase: “Escreve-se a História não para adulação mas para o testemunho da verdade”(CARVALHO, 1997, p. 09). De acordo com Boym (2001, p. 41) os acometidos por essa categoria de nostalgia não se entendem desta maneira, acreditam que seu projeto é sobre a verdade. Iracema Baroni nos indica uma tênue relação com a historiografia tradicional, apesar de não ser uma historiadora e sim uma memorialista, o que é percebido quando a autora relata que no livro “não couberam todas as lembranças e saudades que parecem ter nascido comigo” (op. cit., p.09). Deste modo Iracema Baroni já no início realiza uma crítica pois acredita que os acontecimentos referentes ao passado citricultor citricultura não são valorizados como devem: “Existem enganos e controvérsias, dentro das interpretações que não colocam em seus devidos lugares (...) os acontecimentos do tempo da Cidade Perfume” (op. cit., p.09). A autora continua nos indicando e louvando este tempo “impregnado de paz e felicidades, inesquecíveis, que prenunciava a chegada do século XX que em suas primeiras três décadas daria a Nova Iguaçu as alegrias em forma de prêmios dulcificando três séculos” (op. cit., p.09). A moradora saudosista ainda compôs músicas enaltecendo a sua terra natal; segue trecho de uma valseta de sua autoria: “Já não sinto o perfume/Do teu laranjal/Outrora tão florido/Mas não deixarás de ser/Dentro do coração/Nova Iguaçu Florido” (CARVALHO 1997, p.65). Não estamos aqui julgando ou desmerecendo essa exaltação, entretanto em nossa 96 Leia-se a transcrição original do texto, no qual optamos trocar nação por município de maneira que não ocorra nenhuma alteração no sentido da frase: “ao se cantar o hino nacional se recriam e reproduzem as lealdades a um sujeito coletivo [..., que] não se dissolve magicamente na nação, como que experimenta a nação em si mesmo”. (ESTÉVEZ, apud BERG, 2008, p.755) 124 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades pesquisa não encontramos louvores e elogios por parte dos grupos de trabalhadores, dos que trabalhavam nas lavouras e nos barracões. Ou ainda livros e músicas narrando seus feitos e sua luta. Percebemos, neste caso, tentativa de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais. Este retorno ao passado com a intenção de manter a coesão de grupos e instituições que formam uma sociedade para definir seu lugar respectivo são funções da memória (POLLACK, 1989, p. 09). Ao estudar a cidade de Nova Iguaçu e suas relações políticas e transformações urbanas, nos remetemos à retórica que, segundo Aristóteles, é o germe da política. (ARGAN, 1997, p.38). A política é exercida na polis – a cidade antiga – que se funda originariamente sobre a possibilidade de persuasão recíproca. A cidade, cuja sede é deslocada para as margens da ferrovia, abriga o centro de poder local, e ao seu redor desenvolve-se o projeto de avenidas que correspondem ao transito e à necessidade de comunicação. Essa comunicação ainda se dá de forma contínua com o centro principal – a cidade do Rio de Janeiro - através da ferrovia. O esquema urbanístico se baseia na perspectiva da função do pensamento que pensa o espaço, mesmo que inconscientemente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, A. Critica e contestação: o movimento reformista da geração de 1870. RBCS. v. 15, n. 44, outubro, 2000. ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. ARGAN, G. Clássico anticlássico. O renascimento de Brunelleschi a Bruegel. SP: Cia das Letras, 1999. BERG, Tiago José. Paisagem e hinos nacionais: uma narrativa da nação 1° SIMPGEO/SP, Rio Claro, 2008. BOURDIEU, P. O poder simbólico. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. BOYM, Svetlana. The Future of Nostalgia. New York: Basic, 2001. CARVALHO, Iracema Baroni de. Laranjas brasileiras. Nova Iguaçu, 1999. DIDI-HUBERMAN. O que vemos, nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. _________________. Como levar o mundo nas costas. Disponível em http://museoreinasofia.es/exposiciones/actuales/atlas.html. Consultado em março de 2011 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. SP: Martins Fontes, 1999. GINZBURG, C. Mitos emblemas e sinais. Morfologia e história. SP: Cia das letras, 1989. HUYSSEN, A. Present Past. Urban palimpsests and the politics of memory. Stanford: Stanford University Press, 2003. 125 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades PEREIRA, Waldick. Cana, café e laranja: história econômica de Nova Iguaçu. FGV-SEECRJ, 1977. PESAVENTO, S. Com os olhos no passado: a cidade como palimpsesto. Revista Esboços, n. 11, UFSC. POLLACK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, 1989. POMIAN, K. Coleção. In: Enciclopédia Einaudi. v. 1. Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. 126 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A militância do Apostolado Positivista em favor da implantação de uma Ditadura Republicana no Brasil (1889-1891) Rafael Reis Pereira Bandeira de Mello * Resumo: Este trabalho tem como objetivo destacar a militância política dos membros do Apostolado Positivista do Brasil no alvorecer da república brasileira. Buscaremos compreender o motivo do Apostolado não ter conseguido que seu projeto de implantar uma ditadura republicana fosse o modelo adotado para nortear a primeira constituição republicana do Brasil, mesmo com a forte influência do positivismo em diferentes segmentos de nossa sociedade. Surgida na França no século XIX e fruto do pensamento de Augusto Comte a doutrina positivista chegou ao Brasil por intermédio do intercâmbio de estudantes da Escola politécnica e da Escola Militar do Brasil da então capital da corte imperial: o Rio de Janeiro, e pensadores franceses da Escola Politécnica Francesa. O pensamento se alastrou com significativa influência por outros estados do Brasil com destaque para o Rio Grande do Sul que chegou a ter uma constituição de estado pautada nos princípios positivistas no governo de Júlio de Castilhos. Foi no Rio de Janeiro, no entanto, que foi construída a Igreja Positivista do Brasil que sob a liderança de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes tornou-se uma instituição que militou intensamente para que o Brasil se encaminhasse para a “Ditadura Republicana”. Palavras-chave: Positivismo; República; Constituição. Abstract: This paper aims to highlight the political activism of the members of the Positivist Apostolate of Brazil at the dawn of the Brazilian republic. We will seek to understand why the Apostolate has failed to implement its project of a dictatorial republic as a model to guide the first republican constitution of Brazil, even with its strong influence on different segments of our society. Created in France in the nineteenth century, as an outcome of Auguste Comte's work, positivist doctrine came to Brazil through the exchange of students from the Polytechnic School and the Military School at the capital of the Brazilian Empire, the city of Rio de Janeiro, and politicians and thinkers linked to Ecole Polytechnique of Paris. Positivism has spread with significant influence by other provinces of Brazil and especially in Rio Grande do Sul, which, after de Republic, approved a constitution based on positivist principles, during Julio de Castilhos' administration in state. It was in Rio de Janeiro, however, that was built the Positivist Church of Brazil, under the leadership of Miguel Lemos and Raimundo Teixeira Mendes, an institution that militated for the "republican dictatorship". Keywords: Positivism; Republic; Constitution. O Apostolado Positivista do Brasil teve uma considerável influência política no Brasil nos primeiros anos da República. A instituição foi fundada por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes em 1881, que antes de se tornarem adeptos do positivismo e se tornarem os líderes da ortodoxia desta doutrina no Brasil, já haviam se colocado ao lado do partido republicano quando este ainda estava se organizando. O positivismo na vida de ambos * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/FFP-UERJ). 127 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades apareceu como uma doutrina que muito além de criticar o sistema monárquico, trazia aspectos em si que, adaptados à realidade brasileira, poderiam nortear uma nova ordem política ao país. A origem do positivismo aqui estudado remonta-nos à França, onde nasceu seu mentor Augusto Comte, em Montpellier, no dia 19 de janeiro de 1798. Seu pensamento sofreu a influência de pensadores como Condorcet, o físico Turgot, e de Saint Simon. O primeiro foi decisivo na formação de Comte com a obra Esboço de um Quadro Histórico dos Progressos do Espírito Humano, que defendia a idéia de aperfeiçoamento do espírito humano de forma progressiva. Para elaborar a “Lei dos três Estados”, explicitada em uma de suas obras clássicas, o Curso de Filosofia Positiva, Comte foi influenciado pela obra de Turgot – Plano de Dois Discursos sobre a História Universal (1751) que, segundo Ribeiro Junior “... entrevira a Lei dos Três Estados na definição da História Universal como o estudo dos progressos sucessivos do gênero humano e o exame particular das causas que contribuíram para eles” (RIBEIRO JÚNIOR, 2003, p. 4). A lei dos três estados é fundamental para entender o pensamento de Comte. Nela a humanidade estaria fadada a passar por três fases: o estado teológico (provisório e preparatório), o estado metafísico (transitório), para enfim chegar ao estado positivo. Nesse estado o pensamento crítico perde força perante a verdade incontestável desses fatos. Positivar as fontes na pesquisa era na perspectiva de Comte muito mais observar e constatar o que as mesmas dizem do que problematizá-las. Antes de elaborar a “lei dos três estados”, muito de seu amadurecimento no ambiente intelectual ocorreu quando entre os anos de 1818 e 1823 foi secretário de Saint-Simon. Para Saint-Simon “o encargo da organização da sociedade deverá ser cedido aos mais capazes – a classe industrial -, já que o filósofo não aceita ajuda por parte do Estado” (RIBEIRO JÚNIOR, 2003, p. 8). Isso significava uma substituição de um governo político por um governo econômico consagrando a elite industrial da época. Este predomínio de autoridade influenciou o pensamento de Comte que politicamente viria a defender um regime autoritário pautado por princípios morais incontestáveis. Em 1845 Comte conheceu casualmente Charlotte Clotilde Josephine Marie de Vaux, irmã de um antigo aluno. Comte apaixonou-se por Clotilde pelo fato de que mesmo tendo desaparecido há muitos anos seu marido, ela não deixava que a sua relação com o filósofo passasse de uma forte amizade. Com a morte de Clotilde em 5 de abril de 1846, Comte “pretendeu transformá-la em nova Beatriz, a musa de Dante” (CARVALHO, 1990, p. 8). Usando Clotilde como “modelo ideal”, o filósofo passou a considerar no seu pensamento a superioridade feminina, por ser 128 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades moralmente mais digna que o homem. No entanto, essa valorização da figura da mulher foi aplicada reafirmando seu papel de trabalhadora do lar, concatenando com os princípios da época. A mãe por ser moralmente superior deveria cuidar do crescimento dos seus filhos no lar para a melhor evolução moral da sociedade. A fase religiosa de seu pensamento traz à tona expressões que se tornaram lema de sua doutrina como, por exemplo, “O amor por princípio; a ordem por base; o progresso por fim” ou “Viver para outrem”. A partir dessa nova fase Comte passa a enxergar as diversas religiões como encaminhamentos para a religião final e universal, a positivista. Esta religião passa a ser dotada de ritos, sacramentos e festas. Emile Littré, até então o grande discípulo de Comte, rompe com seu mestre por discordar do acréscimo dos princípios religiosos à doutrina, tornando-se líder de um grupo dissidente. Inaugura-se com isso uma distinção clássica entre os positivistas. Os seguidores de Littré passaram a ser chamados de positivistas heterodoxos, já os que concordavam com as transformações que incluíam a criação da nova religião passaram a ser chamados de positivistas ortodoxos. O discípulo de Comte que liderou este grupo foi Pierre Laffite. No Brasil, o positivismo foi disseminado rapidamente em instituições de ensino, como a Escola Militar e a Escola Politécnica, na cidade do Rio de Janeiro. A primeira obra de caráter positivista produzida no Brasil, como destacou Giannoti (1978), foi uma tese de doutoramento em ciências físicas e naturais defendida por Manuel Joaquim Pereira de Sá na Escola Militar no ano de 1850. O positivismo cresceu de forma bastante fragmentada no Brasil. A geração de intelectuais de 1870 que Alonso apresentou na obra Ideias em movimento (2002) era composta por pensadores atuantes na política brasileira. Em sua obra, Alonso mencionou a influência das correntes de pensamento surgidas na Europa no século XIX sobre a geração de 1870 incluindo o positivismo de Augusto Comte. Os dois grandes líderes da ortodoxia positivista na transição da monarquia para a república: Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes foram destacados na obra referida como membros desta geração. Uma característica dessa geração foi à capacidade de apropriar 97 teorias surgidas na Europa à realidade brasileira. Com isso a geração criou um repertório intelectual para contestar o regime monárquico. A classificação dos positivistas em duas vertentes não leva em consideração as especificidades da difusão das idéias positivistas no Brasil que ocorreu de forma bastante fragmentada e através de múltiplas apropriações e ressignificações. Assim 97 Angela Alonso recorre ao conceito de “apropriação” de Chartier para explicar a forma com que os intelectuais da geração de 1870 do Brasil incorporavam e aplicavam as teorias emergidas da Europa. 129 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades como observou Alonso, existiram grupos distintos de republicanos influenciados pelo positivismo. Podemos destacar, por exemplo, a juventude militar da capital federal influenciada pelas aulas de Benjamin Constant, além do grupo da Escola do Recife e dos positivistas federalistas do Rio Grande do Sul. A amizade entre Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes iniciou-se quando estudaram juntos na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Miguel Lemos nascido em Niterói no ano de 1855 ingressou na Escola Politécnica aos dezenove anos. Já Raimundo Teixeira Mendes nasceu na cidade de Caxias, no Maranhão, e chegou ao Rio de Janeiro aos doze anos de idade. Após um ano de permanência no Colégio St. Louis, dos Padres Franceses, foi transferido para “o internato D. Pedro II” (AZZI, 1980, p. 16). Nesse período, passou a combater as relações entre o governo monárquico e a Igreja católica, de acordo com os princípios republicanos que abraçara. Ao ingressar na Politécnica e iniciar sua amizade com Miguel Lemos que havia se matriculado na instituição em 1873, Teixeira Mendes vinha amadurecendo seu pensamento crítico ao regime monárquico, antes de aderir ao positivismo já se mostrara fiel às idéias republicanas, inclusive recusando o título de bacharel em letras ao término do curso do Colégio Pedro II, (...) porque não queria fazer o juramento de praxe, cujo texto era o seguinte: Juro manter a religião do Estado, obedecer e defender a S. M. o Imperador D. Pedro II, e as instituições pátrias; concorrer, quanto me for possível, para a prosperidade do Império e satisfazer com lealdade as obrigações que me forem incumbidas (AZZI, 1980, p. 18). Unidos a princípio pelos ideais de liberdade e república e posteriormente pela adoção do positivismo, Miguel Lemos e Teixeira Mendes foram expulsos da Escola Politécnica em 1876 por escreverem um artigo contra o Visconde do Rio Branco, então diretor da instituição. Neste artigo, criticaram o ensino e a forma como eram escolhidos os mestres da Politécnica. Ambos foram adeptos das concepções de Littré, que como vimos, discordavam dos acréscimos religiosos incorporados à doutrina por Comte. Após o contato de Lemos com as idéias de Laffite, passou juntamente com Mendes a adotar os princípios religiosos, criticando Littré. Sobre o fato de terem aderido inicialmente à orientação de Littré, ressalta Miguel Lemos que: Por desgraça minha, o exemplar do Sistema de Filosofia Positiva, que o Sr. José Magalhães me havia emprestado, pertencia a uma das edições patrocinadas pelo pseudodiscípulo Emile Littré, que julgou dever profanar o livro antepondo-lhe um prefácio de sua lavra. A leitura desse prefácio, na situação em que me achava então, inteiramente alheio à história do positivismo, ainda com todos os defeitos e prejuízos da fase revolucionária, fez com que desde logo, sem exame direto, 130 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades repelisse as últimas obras de Augusto Comte, isto é, o positivismo religioso (LEMOS, 1881, p. 245). Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes haviam pertencido à primeira Sociedade Positivista do Brasil, criada em 1876, na qual figurou Benjamin Constant dentre outros positivistas da época. Em 5 de setembro de 1878 houve na Sociedade uma sessão comemorativa da morte de Augusto Comte e nela ficou decidida a fundação de outra associação denominada de Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, com a intenção de difundir o positivismo em todos os meios possíveis. Miguel Lemos anunciou sua intenção de associar-se à Sociedade Positivista do Rio de Janeiro em junho de 1879, já após a sua conversão ao positivismo ortodoxo: “... Em outubro, proposto por Benjamin Constant, Álvaro de Oliveira e Oscar de Araújo, foi aceito como sócio, iniciando intensa militância no sentindo da ampliação dos quadros da associação” (LEMOS, 1999, p. 245). Até então, a fidelidade de Miguel Lemos e Laffite fez com que recebesse do mesmo o sacramento da destinação sacerdotal. Em fevereiro de 1881, Lemos regressou ao Rio de Janeiro iniciando intensa militância para ampliar os quadros sociais da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro. Em 11 de maio Joaquim Ribeiro de Mendonça renunciou à presidência da Sociedade, que passou a ser dirigida por Miguel Lemos que, ao assumir o cargo, transformou a instituição em Igreja Positivista do Brasil. As reuniões da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro ocorriam na rua do Carmo no n° 14 e no mesmo ano passaram a ser realizadas na Rua do Ouvidor. O Apostolado ainda se transferiria posteriormente para a rua do Lavradio, o que determinou o lançamento de um empréstimo em 1891 para a construção do templo que foi inaugurado em 1894, na rua Benjamin Constant, no bairro da Glória, atual sede do Apostolado. Em 3 de dezembro de 1881, Miguel Lemos emitiu uma circular informando a criação do subsídio a ser pago pelos membros da Igreja. O ex-tesoureiro Álvaro de Oliveira não concordou dessa decisão e se desligou da instituição e posteriormente Benjamin Constant seguiu o mesmo rumo. Álvaro Oliveira acreditava que a nova postura intolerante da direção do Apostolado Positivista do Brasil limitaria a expansão da doutrina, pois proclamar a ciência como única religião em um país de fortes raízes cristãs seria muita ambição. A preocupação com a ação marcava a conduta de Lemos, muitas vezes precipitada. Tanto que recebeu de Laffite em diversas oportunidades conselhos que atentavam a diversas atitudes que tomou sem ter maturidade suficiente. Em 1883, Miguel Lemos passa admitir publicamente a separação definitiva do Apostolado com Laffite, adjetivando-o de “... falso 131 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades sucessor de Augusto Comte” 98. Ao comunicar a Laffite sobre o desligamento de sua direção, declarou que por consequência do ato renunciava aos dois títulos que dele recebera: o de Aspirante ao sacerdócio da Humanidade e o de Diretor do Positivismo no Brasil. Lemos informou que agora ficaria apenas com o título de Presidente da Sociedade Positivista do Rio de Janeiro, por ele transformada em Igreja Positivista do Brasil. O Apostolado abraçou duas causas: o republicanismo e o abolicionismo. No entanto, não com a proposta democrática e liberal de muitos membros do Partido Republicano e sim com a pretensão de implantar uma nova ordem de acordo com os princípios defendidos por Comte na obra Appel aux conservateurs, publicada em 1855. Conforme observou José Murilo de Carvalho, (...) o conceito de conservador provinha de sua visão particular da Revolução, que procurava fugir, de um lado, ao jacobinismo robespierrista, rousseauniano, chamado de metafísico, e, de outro, ao reacionarismo do restauracionismo clerical. Era conservador, na visão de Comte, aquele que conseguia conciliar o progresso trazido pela revolução com a ordem necessária para apressar a transição para a sociedade normal, ou seja, para a sociedade positivista baseada na Religião da Humanidade (CARVALHO, 1990, p. 21). A extinção do sistema escravista representaria um passo fundamental para a sonhada incorporação do proletariado na sociedade moderna, como desejava Comte. Não deveria simplesmente se abolir a escravidão, mas também, incorporar econômica e moralmente, como membros da nação, os ex-escravos. O salário significava um subsídio da sociedade ao trabalhador para este poder manter a família, muita valorizada no positivismo. Outra característica peculiar do Apostolado Positivista foi interpretar a diferença de raças por um viés sociológico, “... africanos e indígenas estariam no estado fetichista por razões sociais que poderiam ser superadas” (ALONSO, 2002, p. 219). Assim o grupo elaborou uma teoria própria de defesa de uma miscigenação racial que difere inclusive da perspectiva de Comte, embora aproprie algo deste. O otimismo da mestiçagem dos positivistas do Apostolado se opunha ao “darwinismo social” que enxergava de forma pessimista a miscigenação, “... sendo todo cruzamento, por princípio, entendido como um erro” (SCHWARTZ, 1993, p. 58). A mestiçagem é sinônima por essa perspectiva de degeneração não só racial como social, pois, o tipo puro que é enaltecido nesta “teoria das raças”. 98 Cartas de Miguel Lemos a R. Teixeira Mendes, Rio de Janeiro, 1965, p. 18. 132 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Nos últimos anos do império, a ação do Apostolado objetivava convencer tanto os republicanos democratas quanto os monarquistas de que o melhor regime a se adotar seria a ditadura republicana. Proclamada a república em 1889, Miguel Lemos, que ocupava a posição de líder da Igreja Positivista escreveu um ofício 99 ao então Ministro do Interior, Aristides Lobo, no qual, pediu exoneração do cargo de secretário da Biblioteca Nacional para se dedicar exclusivamente à direção do Apostolado Positivista. A recomendação doutrinária de que na posição de “esclarecidos”, os positivistas ortodoxos deveriam rejeitar os cargos políticos para assim facilitar o caminho para a incorporação do proletariado na sociedade, fez com que, não tivessem a oportunidade de aproveitar a considerável influência da doutrina para atuarem de forma mais direta pela implantação da ditadura almejada. O novo regime republicano havia abandonado os critérios monárquicos em seu espaço de organização, o que “inaugurou um período de dilatada incerteza política” (LESSA, 1988, p. 50). A multiplicidade de ordens possíveis só aumentava a insegurança sobre o rumo do regime recém-iniciado. "A ameaça de ordem no grupo militar do Governo Provisório residia nos conflitos entre deodoristas e mocidade militar”100. Se os militares não representavam um grupo homogêneo, os civis também não. O Conselho de Ministros implantado pelo Governo Provisório do Presidente Deodoro apontava o reflexo da heterogeneidade das reivindicações entre os intelectuais e os políticos do Brasil. O Apostolado militou levantando algumas “bandeiras” ao longo do Governo Provisório na intenção de aumentar sua influência na política do país. Uma delas foi a separação entre Estado e Igreja, que foi defendida pelo Ministro da Agricultura, Demétrio Ribeiro, seguindo as exigências do Apostolado. Até então, Demétrio era um aliado da Igreja Positivista do Brasil. Os positivistas ortodoxos eram favoráveis a uma ruptura menos radical com as instituições religiosas na separação entre a Igreja e o Estado, o que era contemplado na proposta de Demétrio que foi o principal responsável em forçar do Conselho de Ministros a mudança no projeto defendido por Rui Barbosa do artigo que passaria os bens da Igreja para o Estado. Outra “bandeira” do Apostolado foi a arte positivista, manifestada nas obras produzidas por Décio Villares e Eduardo Sá, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, que era caracterizada por um teor fortemente cívico. A arte era para o positivismo capaz de trazer um sentido de identidade imaginária capaz de legitimar o ideal republicano entre a população. 99 Ofício enviado por Miguel Lemos ao Ministro do Interior no dia 22 janeiro de 1890. Termos utilizados por Renato Lemos (1999). 100 133 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A intenção foi atrelar a doutrina de Comte por intermédio dos monumentos que exaltavam o civismo, com dizeres positivistas ao novo regime republicano. Em dezembro de 1890, o Apostolado publicou propostas de normas para o ensino das artes, pregando a inclusão dos artistas dos segmentos sociais de baixo poder aquisitivo que, segundo sua avaliação foram extremamente discriminados ao longo da monarquia. Dentre as reivindicações encaminhadas ao ministro Aristides Lobo a legitimação da inclusão social no meio artístico é constantemente reafirmada. O Projeto de reforma no ensino das artes plásticas, apresentada ao cidadão Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Interior por Monteiro Cordeiro, Aurélio de Figueiredo e Décio Villares, salientava que competia ao governo popularizar os rudimentos das artes. Vale lembrar ainda, que Décio Villares recebeu de Benjamin Constant, quando este ainda ocupava o ministério da Instrução Pública, um importante auxílio no valor de oito contos de réis para pintar a Epopeia Africana no Brasil. Essa obra tem um significado de rompimento com os artistas do status quo, Imperial por exaltar o papel da raça negra no Brasil. O Apostolado foi alvo de críticas de intelectuais pertencentes à geração de 1870. Silvio Romero, em sua obra Doutrina contra doutrina, publicada em 1894, acusava os ortodoxos de se apropriarem de conquistas que formalizadas na primeira constituição republicana, como a separação da Igreja e Estado, que em sua opinião era uma consequência do predomínio do pensamento liberal. Silvio Romero desqualificava o Apostolado Positivista, acusando-o de compor uma minoria de sistemáticos idólatras de uma doutrina contestável. Tendo como referência a preocupação central no sentido de incluir o proletariado na sociedade moderna, Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes elaboraram os fundamentos sobre os quais os ortodoxos deviam se pautar. As normas incluíam a recomendação de não ocupar cargos públicos na fase empírica de transição para o estado positivo; e de não exercer funções acadêmicas. O Apostolado elaborou também um projeto 101 em favor do proletariado que estabelecia renda fixa e gratificação variável; jornada de trabalho de no máximo sete horas diárias; descanso aos domingos e dias de festa nacional; licença em caso de moléstia; proibição de demissão após sete anos de serviço; aposentadoria aos 63 anos com o recebimento proporcional a renda fixa; e direito a férias remuneradas. No Rio de Janeiro, o principal representante da corrente positivista foi o torneiro mecânico e armeiro Francisco 101 Raimundo Teixeira Mendes. A incorporação do proletariado na sociedade moderna. Rio de Janeiro: Igreja positivista do Brasil. 134 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Juvêncio Sadock de Sá102. O apoio à candidatura de operários aos cargos políticos pautou a ação dos positivistas ortodoxos. Apesar dos atritos com o Apostolado, Benjamin Constant, por intermédio do decreto n.° 6, propôs a adoção da bandeira Republicana, idealizada por Raimundo Teixeira Mendes em colaboração com Miguel Lemos e desenhada por Décio Villares. A medida foi aprovada logo no princípio da República, no dia 19 de novembro, e acabou sendo a proposta de Benjamin Constant que mais favoreceu o interesse do grupo ortodoxo, pois ao longo da atuação do Conselho de Ministros o posicionamento de Constant foi muito mais próximo ao de um estadista liberal-democrata do que de defensor de uma ditadura. O que norteou a ação dos positivistas ortodoxos nos primeiros anos da república foi à defesa da implantação da “Ditadura Republicana”, essa seria a forma de governabilidade que permitiria ao Apostolado a viabilização de suas reivindicações. O grupo, não conseguindo que seu projeto político fosse aplicado, passou a defender o cumprimento de artigos da constituição de 1891 que por diferentes motivos tivessem aspectos que se assemelhavam com a política tida pelo Apostolado como adequada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALONSO, A. Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e. Terra, 2002. AZZI, R. A concepção da ordem social segundo o positivismo ortodoxo brasileiro. São Paulo: Loyola, 1980. BATALHA, C. O movimento operário na primeira república. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 2000. CARVALHO, J. M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CORDEIRO, J. M; FIGUEIREDO, A; VILLARES, D. Projecto de reforma no ensino das artes plásticas. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1890. JUNIOR, J. R. Augusto Comte e o positivismo. São Paulo: Ed Campinas, 2003. LEMOS, R. Benjamin Constant: vida e história. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. 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Âmbitos econômicos e sociais com a formação de sociedades, definição dos preços diretamente relacionados com as redes de sociabilidade, acumulação de capital material e imaterial e a sua captação. A definição do contrato, tal como era realizado no século XVIII, sua aplicabilidade e meandros que foram utilizados para a prática da economia de mercês e sua captação realizada pelos oficiais régios. Palavras-Chave: Casa da Moeda; Brasil colonial; Mercês. Abstract: The aim of this study is to define what would be a contract as a practice of unburdening the State as well as a means of giving benefits (“mercês”) to those who were at "the service of Your Majesty." To do so, we review politic matters such as the definition of “Corporate Monarchy”, the practice of benefits, and the practices of “gift and counter-gift”. The study is also concerned with economic and social matters such as the creation of companies, pricing process related to social networks, tangible capital accumulation and intangible capital accumulation and its raising; and the definitions of contract in the eighteenth century, its applicability and the means by which it was used at benefits' economy and by royal officials. Keywords: Casa da Moeda; colonial Brazil; benefit (Mercê). A monarquia do Antigo Regime Português cedia contratos a particulares desonerandose de custos de um aparelhamento burocrático mais amplo. Os contratos referiam-se ao direito de cobrar impostos, possuir o monopólio de produtos ou prover o abastecimento de alguma região; assim podemos dizer que a cobrança de impostos fazia parte das atividades mercantis dentro do contexto do Império luso. As arrematações dos contratos eram feitas por licitação com direitos de propostas e contra propostas ou por licitação fechada, com a duração de três anos (OSÓRIO, 2001). Tais arrematações de contratos eram um aspecto importante, visto que esta era uma forma de acumulação de capital e de influência dentro do corpo mercantil (PEDREIRA, s.d, p. 154). O membro da elite mercantil que optasse por investir em contratos não necessariamente participaria diretamente da arrematação, podendo efetuar sociedades com * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/FFP-UERJ). 136 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades outros negociantes ou arrendar parte do contrato. Estes mecanismos para a participação nas escrituras de contrato demonstravam o caráter diversificado dos homens de negócio que estariam ampliando seus lucros, diminuindo os seus riscos e dividindo ambos com terceiros (SAMPAIO, 2001, p. 100). Quanto ao preço dos contratos não podemos dizer que ele aumentava proporcionalmente com o índice de produção, uma vez que não havia racionalidade econômica em sua determinação (LEVI, 2000). Acreditamos que os arrematantes de contrato eram uma elite mercantil dentro da própria elite mercantil existente, porque nem todos possuíam acesso às arrematações e a relação entre a Coroa e eles era deveras privilegiada. Os contratadores possuíam uma acumulação de capital considerável, visto que lucravam com a diferença entre o preço do contrato e os gastos da arrecadação. Nas duas primeiras décadas do século XVIII contabilizava-se em média 10 contratos, as clausulas destas arrematações variavam e permitiam a monopolização de um mercado, elemento que reforçava a cadeia de endividamento, na qual os homens de negócio estavam em posição privilegiada. Outra forma seria com o pagamento da arrematação que se dava ao longo dos três anos de vigência do contrato, que podia ser pago por letras, dinheiro ou até mesmo mercadorias adquiridas no período do contrato e entregues à Coroa pelo preço de venda. Ou seja, a relação de capital era de pagamento segundo mencionado e seu único gasto eram as despesas relativas à cobrança do imposto. Com a diversificação das suas atividades os homens de negócio conseguiam acumular capital e fazer com que dinheiro fosse transformado em dinheiro (D-M-D), comprando para vender, segundo os preceitos de Marx. O contrato da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro foi um dos mais importantes no século XVIII, visto que a cidade teve seu grau de importância aumentado com a descoberta das Minas e a conseqüente abertura para o Caminho Novo e alçou paulatinamente o posto de principal porto do Atlântico Sul. Este contrato, por sua vez, consistia na cobrança de uma taxa de dez por cento em cima de todos os gêneros que entrassem no porto do Rio de Janeiro. Já na primeira metade do século XVIII, Sampaio constatou um aumento nos preços dos contratos da dízima da Alfândega do Rio de Janeiro, o que ratifica a importância das arrematações, em virtude da função de porto redistribuidor da América Portuguesa, o que não foi dissonante na segunda metade do século XVIII, devido às produções e importações de gêneros incentivadas pelo Marquês de Pombal que eram escoados pelo porto da capitania do Rio de Janeiro. Entretanto, não esqueçamos que a variação de preços não teve um cunho 137 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades exclusivamente econômico, visto que as relações sociais eram levadas em consideração no valor do preço da arrematação. Tabela 1: Valores das arrematações dos contratos da dízima da Alfândega (1700-1751) Ano Valor 1700 14:968$273 1712 53:200$000 1721 66:600$000 1724 97:200$000 1729 122:100$000 1732 107:600$000 1734 160:000$000 1738 194:805$000 1742 208:400$000 1745 209:600$000 1748 202:400$000 1751 202:400$000 Fontes: 1700, AHU, doc. 2400; 1712- AHU, cód. 1269, p.20, 23,25; 1721 – AHU, doc. n. 4013; 1724 – AHU, doc. 5377; 1729 – AHU, doc. 5885; 1732 – AHU, doc. 7389/7390; 1734/1738 – livro 2º das Ordens da Alfândega do Rio de Janeiro, respectivamente p.31-33v e 75v-78. Coleção Vice- Reinado; 1742 a 1748 – Livro 3º das Ordens da Alfândega do Rio de Janeiro, respectivamente p.2-5, e folhas avulsas, s/n; 1751 – AHU, doc. 17803. Apud. SAMPAIO, Antônio Carlos Jucá de. Na Encruzilhada do Império. Hierarquias sociais e conjunturas econômicas no Rio de Janeiro (c.1650-c.1750). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. p. 86. A formação de sociedades para a arrematação de contratos era uma prática recorrente, uma vez que tanto a elite lisboeta como os homens de negócio da praça carioca não faziam disposição de todo o seu capital aplicável. As escrituras de companhia e sociedade capacitavam os homens de negócio a intervir nos eixos mercantis do Império Ultramarino 138 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Português. Primeiramente com a divisão dos riscos e futura divisão dos lucros. E ainda nos trazem a divisão entre capital e trabalho, uma vez havia os sócios que participavam com dinheiro e outros que trabalhavam e também possuíam parte dos rendimentos (SAMPAIO, 2003, p. 254-256). Esta coadunação de custos e riscos permitia um maior acesso a esse comércio, entretanto não devemos nos esquecer do que nos diz Pedreira acerca da manutenção dos homens de negócio no topo da elite mercantil: A mobilidade explicar-se-á, então, quer pela existência de dispositivos de recrutamento relativamente flexíveis, que não levantavam grandes obstáculos à entrada numa ocupação aberta a novos talentos, quer por um conjunto de circunstâncias que determinavam uma apertada seleção após o ingresso (PEDREIRA, s.d, p. 136). Braudel chamou a atenção para as características dos investimentos em sociedades pré-capitalistas, que não buscavam apenas acumulação material e sim reprodução da hierarquia social pré-existente (BRAUDEL, 1995). O mesmo podemos ver com os contratadores, que já eram membros da elite colonial e por meio de suas redes de relações sociais com níveis hierárquicos superiores aos seus conseguiam ter acesso ao processo licitatório; mas acumulavam capital material, de forma progressiva; e capital imaterial, pois conseguiam ser arrematantes de contrato possuindo uma distinção “costumeira” dos outros membros da elite, reproduzindo a hierarquia existente. João Fragoso aborda em seu livro Homens de Grossa Aventura (FRAGOSO, 1998) os homens de grosso trato que primeiramente se constituíam como elite econômica e, a posteriori, através dos seus cabedais e da sua rede de relações sociais, iniciavam suas propensões a estar a serviço do Rei lembrando que a partir daí se constituíam como indivíduos pertencentes à elite local. Acreditamos que este seja o meio percorrido pelo homem de negócio para que ele seja um arrematante. Devemos ressaltar que os homens de Antigo Regime não eram cônscios de sua condição, mas também temos que pensar que não havia passividade na delineação das suas estratégias de ascensão social. Até aqui, propomos que a Coroa, para não despender funcionários e, por conseguinte, desonerar-se da cobrança dos tributos, concedeu estes direitos a terceiros. A Monarquia possuía um caráter corporativo, no qual o Rei obtinha a função de dirimir os conflitos e administrar o bem comum dos povos e dos súditos. As elites locais auxiliavam na governabilidade do território e, como “vassalos Del Rei”, estavam ao serviço de Vossa Majestade, ainda que isso significasse estar trabalhando dentro de uma ótica particularista, seguindo o direito costumeiro. Este período, segundo José Subtil, estava relacionado à fragmentação e pulverização de centros de controle e arrecadação de receitas, isto é, os 139 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades elementos de uma administração particularista. Esta sociedade possuía a concepção de que era um conjunto de corpos que gravitavam em torno da figura do monarca, agregado pela idéia de cooperação, a graça, a mercê e o direito consuetudinário. Haveria dispensa de lei, desde que esta não ferisse os pactos estabelecidos entre o Rei e seus súditos. O monarca deveria ter prudência para equilibrar a fiscalidade (SUBTIL, 2006). A economia de mercês e privilégios exigia um mínimo de controle e registro régio das graças e das despesas para que o aparelhamento administrativo pudesse ficar equilibrado. Outro período é iniciado pelo terremoto de 1755 e a ascensão política do Marquês de Pombal, iniciando assim uma transformação, na qual o governo passou a ser de todos e não o governo de cada um. Isso se deu devido aos problemas circunstanciais e aqueles que pudessem ser previstos. Foi feita assim uma remodelação do sistema de gestão financeira de grandes massas de indivíduos. Tal fato insere o Império Português em uma visão moderna, por possuir um sistema disciplinar financeiro. Para prosseguirmos com o nosso raciocínio, no que tange a essa economia do dom e direito costumeiro, precisamos explicitar estes conceitos. A economia do dom está inserida dentro da tríade do “dar”, “receber” e “restituir”, em uma dada relação que envolva um polo dominante e um polo inferior e exista entre eles uma “amizade”, ou seja, existia entre eles o ato de dar e retribuir, pois esta é uma situação quotidiana que faz parte da natureza das estruturas sociais, sendo vista como uma norma: “a comunicação pelo dom introduzia o benfeitor e o beneficiado numa economia de favores. Estes eram de natureza diversa e variavam consoante a posição dos atores nos vários planos do social” (HESPANHA, 1997). Assim, observamos a formação de redes clientelares (HESPANHA, 1998) que têm como pressuposto básico a reciprocidade. Esta reciprocidade é realizada entre desiguais, na qual o pólo dominante desta relação é o soberano, assim garantindo o domínio sobre os seus vassalos que prestam serviços retribuídos através da liberalidade régia. Os serviços desde o fim do século XVI, para a Monarquia Pluricontinental foram regulamentados e remunerados dentro da ótica da economia do dom, da graça, das mercês que serviriam de atrativo das gentes para os territórios de conquistas. Complementaridade e dependência foram palavras chaves para que os agentes institucionais e individuais se identificassem e reconhecessem e também contribuíssem para a redefinição e reconfiguração das hierarquias dos espaços do império. A Fazenda Real fazia suas comunicações de despesas, materiais e distribuições monetárias com a Alfândega através de portarias escritas em um “livro que há de servir na Casa da Moeda”. Desde obras até pagamentos de ordenados da Alfândega eram escritos neste livro. A permanência da Tesouraria Geral da Fazenda Real, no documento chamou-nos a 140 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades atenção, pois havia permanentemente o envio de quantias para pagamento dos ordenados da Tesouraria Geral Da Alfândega, algo que poderia ser considerado absolutamente normal, uma vez que os oficiais régios dedicavam-se a diversas funções dentro da instituição. Entretanto, neste mesmo livro, vimos uma dissensão acerca da cobrança dos impostos da Nau de Guarda Costa e Dízima da Alfândega, neste ponto o documento menciona que o primeiro imposto não foi cobrado corretamente, pois estes não haviam sido informados da forma pela qual deveria ser feita esta cobrança. O oficial régio mencionou ainda que o imposto da dízima da Alfândega já era cobrado corriqueiramente e por este motivo foi à cobrança realizada. O contrato só seria possível de ser operacionado com a ótica de uma Monarquia Corporativa, dentro de uma lógica de acumulação de capital material e imaterial. Servir a Vossa Majestade era um dever do vassalo do Rei, o tipo de serviço variava segundo as redes de sociabilidade e o contrato que se arrematava. Sabe-se que arrematar a dízima da Alfândega era um ato de distinção, devido à importância do contrato e o rendimento que este proporcionava. Mas se a Coroa precisava desonerar-se do aparelhamento burocrático na cobrança de impostos, supunha-se em um primeiro momento que tal cobrança era realizada pelos arrematantes, e ulteriormente percebemos que não eram realizadas desta forma. As portarias da Casa da Moeda coadunadas com os registros de Ordem da Alfândega demonstram claramente que a captação da dízima perpassou a prática de mercês, uma vez que não houve subtração no gasto com funcionários e seus respectivos ordenados. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAUDEL, Fernand. 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Procura-se destacar a ressonância que as propostas de regulamentação do ensino público alcançaram em outros espaços produtores e disseminadores de debates – em particular, a imprensa carioca –, enfatizando-se as diferentes tensões que marcaram o cotidiano do ensino na municipalidade nesse período. Palavras-chave: Instrução Pública; Conselho Municipal; Imprensa Carioca. Abstract: This paper presents a study on Public Education in the city of Rio de Janeiro through analysis of decisions made by the members of the City Council between 1892 and 1902. It analyses the speeches of members of the Rio de Janeiro legislative assembly, related to teaching's spread, and highlights the linking between those initiatives and other politic elements of the city. In addition, it presents the impact of proposals on public education regulation in debates held in other public spaces – especially in the Rio de Janeiro's newspapers – focusing on the different tensions which affected the scholar routine in the municipality during that period. Keywords: Public Education; City Council; Rio de Janeiro press. Apresentação Disseminar bons costumes, ordenar a sociedade, fazer progredir a nação. Discursos como esses, almejando a conquista da Ordem e do Progresso nacionais, não devem ser vistos como uma característica exclusiva do tempo presente na fala de brasileiros muitas vezes considerados otimistas quanto ao futuro do país. No alvorecer da República, representantes do poder legislativo municipal carioca já chamavam a atenção de seus pares para a importância de se formar “bons brasileiros, [cidadãos] que amem a sua pátria e possam, embora na mais humilde posição, colaborar para o seu progresso moral e material” 103. E, mesmo antes, alguns dirigentes do Estado Imperial brasileiro já acalentavam preocupações quanto ao rompimento das “manifestações desordeiras que pudessem prejudicar a unidade do país” 104. Mestre pelo Programa de História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP. Atualmente, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais, Sociedade e Política (GEPISP). 103 Anais do Conselho Municipal. 1ª sessão ordinária de 03/12/1892 a 02/02/1893, p. 221. 104 No contexto de fortalecimento e legitimação do Estado Imperial brasileiro, não faltaram argumentos que apontassem para a necessidade de o país assegurar a Ordem e difundir a Civilização. Diretamente relacionada a 143 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Interessados em fazer “progredir a nação”, coube a esses representantes do poder político, seja durante o Estado Imperial ou no decorrer da experiência republicana, levantar debates e encaminhar projetos, através dos quais eram apontados os benefícios oriundos da ampliação do ensino, sobretudo se “derramado entre as camadas mais pobres da população”. Em seus discursos observa-se a ênfase na necessidade de ordenar a sociedade, incutindo-lhe bons hábitos e costumes. E, nesse sentido, atribuía-se um papel fundamental à “educação”, pois esta atuaria nos focos de desordem pública e garantiria resultados fecundos na formação do caráter dos indivíduos. Isto porque, ao despertar nos alunos o apreço pelo país, ela garantiria a emergência de uma sociedade civilizada, de acordo com os padrões burgueses europeus. É a partir dessa perspectiva, então, que se orienta a realização desse trabalho. Nessa pesquisa procuro acompanhar dois movimentos distintos, mas ao mesmo tempo complementares. Por um lado, busco perceber o modo como nos primeiros anos republicanos a Instrução Pública foi utilizada como uma das bandeiras na questão do progresso moral e material do país; e por outro, interessa-me compreender como esse discurso, encampado por representantes do poder público municipal105, encontrava ecos em outros espaços produtores e disseminadores de debates. Pretendo, assim, perceber o quanto os debates e discursos envolvendo a instrução/educação excediam o espaço da tribuna e se diluíam no dia a dia da cidade. “Legislando para o progresso, educando para a civilização” No decorrer do século XIX inúmeras foram as ações voltadas para a área da Instrução Pública. Durante os primeiros anos republicanos, a temática do ensino público redundou em diferentes medidas, entre as quais destacamos os projetos de reforma e as leis educacionais que tinham a intenção de intervir na organização e no perfil do ensino oferecido nas escolas essa perspectiva estava a instrução pública. Instruir todas as classes significava romper com as trevas do atraso e da barbárie. Como exemplo de discursos dessa ordem, destacamos algumas defesas proferidas por importantes representantes políticos do Império, como é o caso do Ministro João Alfredo Correia de Oliveira. Nomeado Ministro do Império em setembro de 1870, atuou por quatro anos consecutivos. Sua defesa caminhou no sentido de definir a instrução como uma obrigação do Estado, o qual não deveria medir esforços em generalizá-la entre todas as classes (ainda que o ensino ministrado não fosse o mesmo para todas elas). Para ele, a difusão e o aperfeiçoamento das instituições promotoras de ensino garantiriam o desenvolvimento moral, social e econômico do país. Para uma maior discussão a esse respeito ver, entre outros: MARTINEZ, Alessandra Frota. Educar e Instruir: a instrução pública na Corte imperial. 1870 a 1889. Dissertação de Mestrado em História. Niterói: UFF, 1997; MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. A formação do Estado Imperial. São Paulo: Hucitec, 1994. 105 Ressalte-se, porém, que esse movimento encontrou acolhida tanto entre os dirigentes do Estado quanto entre representantes da Igreja e da sociedade civil. 144 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades da cidade do Rio de Janeiro, locus de investigação nessa pesquisa106. Transformada em uma preocupação social, ministros e intendentes viam a “educação” como um importante mecanismo de intervenção na organização da sociedade, de maneira que, em seus discursos, propunham oferecer à população, sobretudo às classes populares, os meios de inserção no mundo letrado, que, consequentemente, possibilitaria seu engajamento no mercado de trabalho assalariado. Articuladas aos ideais de progresso e de civilização da sociedade brasileira, iniciativas como essas tinham uma dupla perspectiva: se, por um lado, sua tarefa era favorecer o desenvolvimento econômico da cidade – por meio do fomento às indústrias, às fábricas e ao comércio em geral –, por outro, expressavam as expectativas das autoridades em conter o avanço das “ameaças” sociais, em que pesavam os males provenientes da “ociosidade”, da “mendicância”, da “criminalidade” e da “pobreza”. Vista de forma associada, a preparação intelectual e moral dos alunos tornava-se o caminho possível para impulsionar o desenvolvimento material do país e permitir a regeneração social de sua população, sobre a qual recaíam as “heranças de seu passado colonial”, as consequências de sua condição “mestiça” e os efeitos de sua “localização intertropical”. Os “cuidados com a classe laboriosa” eram assim expressos: [é nas] escolas [noturnas] que os operários, sem prejuízo do trabalho de onde tiram as suas subsistências, vão aprender alguma coisa. São essas escolas, até certo ponto, a repressão de vadios e vagabundos. Por isso que, nas horas que se entregam a esse trabalho deixam de entregarem-se à vagabundagem e à ociosidade. 107 Assumida com um “dever do Estado”, nas propostas de regulamentação do ensino, defendidas pelos intendentes do Conselho Municipal, a difusão da instrução também era vista como um meio de a população mais pobre desempenhar seus deveres de “cidadãos”. Nesse tipo de visão são muito significativas as aproximações feitas entre a instrução e os processos eleitorais, de maneira que aquela passava a ser vista como um elemento indispensável na formação de um homem mais “consciente politicamente”. Uma percepção que fica muito clara nas palavras que seguem: (...) é pelas municipalidades que se deve começar a campanha de difusão do ensino; (...) é deste recinto que deve-se [sic] começar a mostrar a necessidade que o povo tem de ser instruído (...), e sem instrução o cidadão não pode bem exercer sua 106 É necessário lembrar que a elaboração de projetos educacionais não foi uma ação exclusiva dos grupos ligados à cidade do Rio de Janeiro, seja como Corte do Império ou como Capital Federal. Esse movimento foi presente nas demais províncias/estados, que apresentaram processos próprios de disputa pela implementação de escolas. 107 Anais do Conselho Municipal. 41ª sessão ordinária em 31 de janeiro de 1893, p. 261. 145 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades função eleitoral, a qual conforme for exercida [pode] produzir o bem ou o mal, qual uma espada de dois gumes (...). 108 Mas apesar de haver nesse período um grande movimento em favor da expansão do ensino – no qual as “consequências positivas” dessa medida serviam de base para sustentar a validade do projeto –, há que se lembrar que todo incentivo dedicado à obra veio marcado por algumas contradições. Os mesmos discursos que apontavam a instrução dos alunos como um direito de cada “cidadão”, estabeleciam profundas distinções na sua oferta aos diversos segmentos sociais. Às classes trabalhadoras foram destinados os saberes mais elementares, que, seguidos da aprendizagem de um ofício, já eram considerados como suficientes para que os alunos exercessem bem seu papel de colaboradores na “construção da nação”. Nesse sentido, podemos dizer que com a chegada da República a oferta de ensino para a população não perdeu seu caráter excludente e hierárquico, percebido nos anos anteriores. Mais uma vez, a proposta de instruir “todas as classes” não significou, necessariamente, uma igualdade de acesso aos diferentes níveis de ensino. Destinavam-se públicos específicos para a aquisição de saberes também específicos. Nesse caso, às camadas mais pobres da população foi reservada a instrução primária, por meio da qual os alunos aprenderiam, basicamente, a ler, a escrever e a contar. Além desses saberes, a maior parte dos intendentes destacava também a importância de serem difundidos os conteúdos do ensino profissional, de onde os alunos retirariam a formação necessária para assumirem postos nas manufaturas, nas indústrias, nas oficinas, nas fábricas e no comércio da cidade. Em seu entendimento, essa era a fórmula que lhes garantiria um sustento digno para si próprios e para sua família. A tirar pelos efeitos “positivos” associados à difusão do ensino, é possível perceber o quanto a instrução ocupou um lugar importante nas ações dos intendentes 109. Mas embora importante, ela não chegou a conquistar o papel principal. Nas disputas e aproximações estabelecidas entre os intendentes com outros atores políticos da cidade, as questões envolvendo o ensino público apresentaram muitas nuanças. Se comparada às demais temáticas utilizadas pelos membros na tessitura de seus acordos e alianças com grupos políticos da cidade, embora reunisse um número significativo de projetos de lei, a temática do ensino municipal não assumiu a preferência; esta ficou a cargo das diferentes intervenções no 108 Anais do Conselho Municipal. 12ª sessão extraordinária em 22 de fevereiro de 1893, p. 126. De acordo com Marcelo Magalhães, entre os anos de 1892 e 1902 foram apresentados, discutidos e votados na casa legislativa 1872 projetos de lei, dos quais cerca de 3,9% referiam-se à temática do ensino. Ressalte-se, porém, que nesse conjunto não estão incluídos os funcionários municipais ligados à instrução, incorporados no grupo do funcionalismo. Cf. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. Ecos da política: a capital federal, 1892-1902. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004. 109 146 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades espaço físico da cidade. Ao que tudo indica, a questão das obras públicas representou o principal instrumento para os membros da casa tecerem suas redes clientelares 110. Tratando ainda dos efeitos “positivos”, uma outra questão que parece fundamental nesse contexto é o lugar ocupado pela instrução na política dos intendentes. Embora tenham sido recorrentes os discursos em torno dos benefícios sociais e morais provenientes da expansão do ensino, na maior parte das vezes essa perspectiva esteve suplantada pelos encargos financeiros que essa promoção acarretaria aos cofres municipais. Nitidamente, os déficits orçamentários foram motivo de acirradas contendas entre os dirigentes municipais, que inúmeras vezes utilizaram os gastos com a instrução para culpabilizar seu “outro imediato” – ou seja, os intendentes ou o prefeito, dependendo de quem fazia a acusação – pelo agravamento das despesas. Ao que parece, uma das consequências imediatas dessa questão foi a tentativa de barateamento dos custos, expressa, sobretudo, pelas restrições aos níveis de ensino que deveriam ser expandidos à população pobre da cidade. Assim expressou o intendente João Baptista Capelli a esse respeito: Os verdadeiros Kingarden, conforme os imaginou Froebel, não podem ser adotados por ora entre nós, não só porque demandam grandes despesas como também porque exigem de um pessoal especialmente habilitado, sem o que não poderão prestar os serviços a que se propõe essa bela instituição. 111 De acordo com sua perspectiva, os investimentos nessa área não demandavam grande “necessidade”, visto que levaria muito tempo até que a criança se desenvolvesse e estivesse pronta para desempenhar atividades que fossem úteis à sociedade e à família. Além disso, a criação desses espaços exigia a contratação de pessoal habilitado, a disposição de um lugar adequado e a aquisição de materiais pedagógicos apropriados, o que só contribuiria para o aumento dos gastos municipais – sem que houvesse, em contrapartida, um retorno imediato. Compreende-se, assim, que havia todo um investimento retórico em favor da ampliação do ensino para a população. No entanto, esse investimento vinha acompanhado por várias restrições. Articulada às disputas políticas da administração municipal, as críticas direcionadas ao papel da instrução no agravamento das despesas municipais – para além de uma certa 110 De acordo com distribuição percentual feita pelo autor, as temáticas seguem a seguinte distribuição: obras públicas: 23,1%; funcionalismo municipal: 19,2%; posturas municipais: 12,9%; impostos: 6,9; orçamento: 5,6%; transporte público: 5%; comemorações e homenagens: 4,2%; administração pública: 4%; ensino municipal: 3,9%; abastecimento: 2,9%; patrimônio municipal: 1,8; limpeza urbana: 1,2%; loteria: 1%; empréstimos e operações de crédito: 0,6%; iluminação pública: 0,6%; indenização e restituição: 0,5%; desconhecido e outros: 6,7%. 111 Anais do Conselho Municipal. 12ª sessão extraordinária em 22 de fevereiro de 1893, p. 124. 147 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades secundarização imposta ao ensino – jogam luz para um outro aspecto importante das tensões mapeadas no período: os embates travados entre o legislativo e executivo municipal. No campo das disputas administrativas, as acusações direcionadas aos gastos “exagerados” e “incoerentes” no campo do ensino foram utilizadas como instrumento para que ambas as partes – Conselho e Prefeitura – denunciassem o acúmulo de práticas clientelistas no exercício da política municipal. Críticas assim tinham a intenção de demonstrar o quanto a parte acusada estava se valendo da administração pública para satisfazer “interesses pessoais” e estabelecer “alianças políticas”, a partir da indicação e nomeação de “afilhados” para o preenchimento de cargos públicos municipais. Práticas como essas são fundamentais para percebermos a pluralidade de questões envolvendo o ensino municipal e os diferentes “usos políticos” que dele foram feitos na costura de acordos e no estabelecimento de alianças entre os atores envolvidos em sua administração e regulamentação. Contudo, se as disputas em torno da instrução são um elemento importante para a compreensão das aproximações e distanciamentos estabelecidos entre os intendentes e o prefeito, tão fundamental quanto é a participação da imprensa nesse processo. Na medida em que os projetos de lei voltados para a regulamentação do ensino público na Capital Federal alcançaram grande repercussão em outros espaços produtores e divulgadores de debates, os jornais cariocas representam um outro campo vital para acompanharmos os diferentes interesses e posicionamentos que se fizeram presentes nos debates educacionais do período. Além, é claro, de demonstrarem o quanto o movimento em favor da instrução popular redundou em diferentes perspectivas e contou com o envolvimento de diversos setores da sociedade. Com uma participação ativa em cada discussão encaminhada, alguns periódicos112 interagiram objetivamente com os representantes da administração municipal, a quem demonstravam apoio ou expressavam sua oposição. De forma opinativa, durante a tramitação de cada projeto de lei relativo à reforma de ensino, cada folha se ocupou em definir seu posicionamento sobre o assunto113. Nesse contexto influíam fatores de ordem política, econômica, social, ideológica e cultural. Um bom exemplo dessa tensão foi a repercussão que alguns projetos de lei ganharam nas páginas de determinados periódicos veiculados na cidade, os quais redundaram em acalorados embates entre as partes envolvidas. 112 Na pesquisa foram analisados três periódicos: a Gazeta de Notícias, O Paiz e A Notícia. Entre os anos de 1893 e 1902 encontramos, pelo menos, quatro projetos de lei voltados para a regulamentação do ensino público na Capital Federal. São eles: Projeto nº. 79, de 1893, Regula o ensino público municipal; Projeto nº. 96, de 1897, Regulamenta o ensino público do Distrito Federal; Projeto nº. 151, de 1899, Reforma o ensino público do Distrito Federal; e Projetos 130 e 130A, de 1901, Regulam a instrução primária e normal. 113 148 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Um debate que chama atenção nesse sentido é o referente ao projeto nº. 79, de janeiro de 1893 – Regula o ensino público municipal. Enquanto a Gazeta de Notícias manteve uma avaliação favorável à proposta encaminhada pela Comissão de Instrução, considerando-a um desdobramento “positivo da reforma promovida por Benjamin Constant”, o jornal O Paiz, embora “reconhecesse as boas intenções” de seus autores, não o reconhecia como uma intervenção consistente na educação municipal; enquanto a Gazeta de Notícias, durante os dias que publicou seu andamento, permanecia negando qualquer contradição (do projeto de lei) com os interesses da democracia brasileira, O Paiz conservava uma postura defensiva, contrária à execução do plano estabelecido pela Comissão de Instrução (seus autores), contra o qual elencava uma série de fatores – todos dispostos a convencer a opinião pública da falta de coerência da proposta. Assim, pode-se dizer que, ao analisar conjuntamente as tensões que marcaram esse período, tanto os embates quanto as alianças constituídas no movimento de escolarização da população carioca, devem ser compreendidos a partir de suas múltiplas relações, sem que para isso tenhamos que estabelecer uma simples oposição entre os lugares ocupados por seus participantes. Essa percepção fica bem representada se levarmos em conta, por exemplo, o posicionamento de cada intendente sobre a “melhor” forma de “educar a infância carioca” e a postura diferenciada que se manifestou na imprensa a esse respeito. Impressões concorrentes foram expressas, independentemente de seus defensores pertencerem ao Conselho Municipal ou escreverem em nome de algum jornal carioca. Portanto, acredito que o limite que os separa (e/ou os aproxima) está intimamente ligado aos interesses com os quais cada grupo analisado estava comprometido. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, Philippe. 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The study of these brotherhoods is linked to the analysis of social and political context in that region, being the coffee plantations and slave labor the bases for its development. Keywords: Brotherhood; slavery; culture. Tendo como enfoque a pesquisa da história social sob uma perspectiva religiosa, este trabalho apresenta como personagem principal, alvo de nossas pesquisas ainda em andamento, as Irmandades Religiosas, poderosas instituições que no contexto da colonização atendiam as finalidades religiosas e assistenciais, exercendo funções importantes no território mineiro, já que estas precederam à própria Igreja, enquanto o Estado estabelecia os seus tentáculos nos limites litorâneos da Serra do Mar. Assim, o afluxo de “toda espécie de gente”, na virada do século XVII para o XVIII, se direcionava para o interior da região que viria posteriormente a se constituir na Capitania de Minas Gerais. Ocupação acelerada, que à cata do ouro nos rios, conduziu-nos às encostas das montanhas ou em qualquer outra direção que o sonho de riqueza fácil apontava. Desapartados da Igreja pelo próprio Estado que proibiu a entrada de religiosos regulares nesta região, temendo o extravio do ouro e o não pagamento de impostos, estes aventureiros encontraram abrigo espiritual nestas Irmandades, organizadas inicialmente por leigos, responsáveis pelas diretrizes religiosas e sociais tão fundamentais e determinantes numa sociedade ainda em fase embrionária, que se desenvolve sob a proteção destas instituições que, assumindo os encargos religiosos atuou no sentido de preencher a lacuna * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). 151 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades deixada pelo Estado, adquirindo, por isto, um forte caráter assistencial que garantiu socorro e amparo a seus associados. Sendo assim, era difícil imaginar a vida fora da rede protetora das Irmandades, tecida pela própria necessidade de criar mecanismos de integração neste espaço marcado pela dispersão. Refletindo esta paisagem social, as Irmandades Mineiras ganharam a diversificação que a sociedade produziu em seu próprio interior, ora se consagrando como espaços privilegiados onde as elites locais e regionais reafirmavam o seu domínio que se estendia do campo real para o simbólico, ora representando espaços importantes para os negros escravizados refazerem suas redes de sociabilidades e construírem canais de atuação a partir do próprio sistema, já que estas instituições se tornaram as únicas organizações legais representativas deste segmento. Neste trabalho, utilizamos uma redução na escala de observação do objeto a ser analisado, adotando por isto um recorte espacial centrado inicialmente na então chamada Paróquia de São José de Além Paraíba, hoje, Além Paraíba, localizada na parte sul da Zona da Mata, região situada a meio caminho entre a outrora importante zona mineradora central da Capitania de Minas Gerais e o Rio de Janeiro. Em função desta localização intermediária entre estes dois centros de grande importância econômica, o processo de desenvolvimento da região da zona da mata atrelou-se intimamente aos acontecimentos que marcaram a vida social, econômica, política e religiosa da região mineradora central e da província do Rio de Janeiro. As descobertas das datas auríferas no final do século XVII levaram o Estado Português a bloquear os caminhos de acesso à capitania, tornando as terras do sul “áreas proibidas” excluídas do processo de colonização. Mais tarde, a necessidade de criar uma ligação direta entre as zonas auríferas e o Rio de Janeiro levou à abertura do Caminho Novo em 1720. Esta estreita artéria, porém única, numa longa extensão promoverá o primeiro surto importante de povoamento nesta região das matas, tornando-se intensa a circulação de tropas, pessoas e mercadorias, conduzindo à formação de núcleos embrionários de povoamento e a instalação de Registros, verdadeiras alfândegas internas reveladora da prática fiscalista e tributária montada pelo Estado Metropolitano. Uma segunda corrente migratória ocorreu a partir de 1817. Quando se deu o esgotamento dos aluviões auríferos os grandes proprietários de datas dos municípios de Ouro Preto e São João Del Rei ocuparam as terras da zona da mata sul, apropriando-se de um vasto patrimônio agrário para onde transferiram capitais e o plantel de escravos, conduzidos agora 152 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades para as lavouras de café que em 1870 encontraria na ferrovia o meio privilegiado de transporte e fator impulsionador do desenvolvimento econômico da região. Se os imigrantes oriundos da região mineradora sustentaram grande parte do desenvolvimento do sul da zona da mata, é incontestável que este processo de ocupação territorial tenha sido fundamental na edificação de Irmandades que ganharam espaços importantes neste momento. Refletindo a própria heterogeneidade desta população, as devoções adotadas revelariam as distinções entre os segmentos luso-brasileiro oriundos do centro de Minas, superpostos à camada escrava, que juntamente com os mestiços, integravam o quadro social da época, imperando assim, a lógica da distribuição e distinção social, econômica e racial que se revelava no campo religioso através das invocações eleitas por segmentos ciosos do espaço que ocupavam no âmbito real ou simbólico desta sociedade. Ciente da importância do tema e da vital necessidade de estudá-lo em consonância com o processo histórico que marcou esta região que se elegeu para estudo tomamos como limites, flexibilizados sempre que necessário, a segunda metade do século XIX quando se deu a fundação da mais antiga Irmandade desta Paróquia de São José de Além Paraíba, a Irmandade do Santíssimo, agregadora de uma elite identificada como a “nobreza do café”, uma classe formada por senhores rurais sem títulos nobiliárquicos, mas detentores dos mecanismos eficientes no controle da vida econômica, política e social da região. Esta Irmandade, esvaziada de sua “nobreza”, ainda hoje se faz presente na sua antiga sede, a Igreja Matriz de São José, que também hospedou outra Irmandade, a do Rosário de São Benedito, devoção adotada principalmente por negros livres ou escravizados, cujos “rastros” de existência documental se tornaram escassos, tornando o seu resgate, neste momento, um desafio para as nossas pesquisas. A baliza final da pesquisa é o ano de 1900, quando já era evidente o declínio da produtividade dos cafeeiros, marcado pelo envelhecimento destas plantas, a diminuição da qualidade do solo, culminando com a abolição da escravidão em 1888. Com a decadência da produção cafeeira na região do Vale do Paraíba instala-se um horizonte de crise que se estende para além da esfera econômica, atingindo a vida religiosa que se organizava em torno das Irmandades que, assim, não escaparam dos escombros produzidos pela crise que atingiu profundamente este sociedade, que por tanto tempo se abrigara nas sombras de intermináveis cafezais. A base empírica de nossa pesquisa consiste na leitura de fontes manuscritas e impressas tais como o Compromisso das Irmandades, livros de tombos da Igreja de São José, 153 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades além de depoimentos que vão revelando parte desta memória local e obras publicadas por autores que pormenorizaram o estudo das Irmandades Mineiras, com destaque para os trabalhos de Fritz Teixeira Salles, Julita Scarano, Marcos Magalhães de Aguiar, João Camilo de Oliveira Torres, Célia Maia Borges e Caio César Bosch, autores cujas obras representam leitura fundamental para o entendimento do fenômeno confrarial mineiro. Como se trata de um pequeno artigo optei por dar um destaque ao texto que integra o primeiro capítulo desta dissertação, advertindo que esta pesquisa encontra-se em andamento e passa por reformulações. Nele uma pergunta se faz necessária em relação a estas Irmandades: seriam elas espaços de resistência ou instrumento de controle e dominação? Para o historiador João José Reis (1991) que investigou o complexo universo cultural afro-brasileiro, tais instituições se apresentavam como espaços importantes na preservação de elementos africanos, servindo mesmo de incubadoras de diversas religiões e outras tradições culturais. Em sua obra A Morte é uma festa (1991) afirma que a escravidão não eliminou na comunidade africana daqui as hierarquias trazidas da África. Fidalgos africanos assumiam posições de importância dentro das Irmandades e recebiam funerais de dignitários ao estilo africano. Nesta obra são inúmeros os funerais negros descritos em detalhes, comprovando a manutenção de costumes mortuários da África tão bem preservados no acervo imaginário destes filhos da diáspora. João Reis (1991) lamenta ainda não ter para a Bahia as excelentes descrições feitas por Kidder e Debret de funerais cariocas de negros escravos e libertos que, segundo ele, do velório à porta da igreja, predominavam os elementos africanos. Tanta exibição pública de um ritual tão pouco católico despertou o medo dos brancos, assustados com a subversão não só da ordem religiosa, mas também da ordem social e passaram a proibir estes eventos tão representativos de uma espiritualidade africana. Corroborando com esta visão sobre as Irmandades, a historiadora Julita Scarano (1978) em sua obra Devoção e Escravidão atesta esta função importante atribuída às Irmandades: “As confrarias serviram de veículo de transmissão de diversas tradições africanas, que se conservaram pela frequência dos contatos, pela conservação da língua e outras razões semelhantes”. Encontraremos concordância também em Caio César Bosch (1986, p. 156) ao afirmar que “[...] ao permitir e incitar certas práticas religiosas africanas no interior das Irmandades, os brancos contribuíram para que elas se tornassem um veículo de preservação dessas originais manifestações culturais africanas [...]”. 154 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Há uma enorme concordância entre os historiadores e pesquisadores do tema sobre a importância destas Irmandades em relação aos elementos que indicam preservação, manutenção, sobrevivência e resistência de elementos que se inserem no campo da cultura africana. Tal importância, no entanto, é diluída na crítica que se faz a estas instituições por se manterem distanciadas de ações ou intenções de combate ao escravismo. O historiador Caio Bosch (1986) afirma mesmo que estas não somente aceitaram a escravidão, mais do que isso, ratificaram o regime escravocrata e sua estrutura social marcadamente hierarquizada. Enfocando as Irmandades Mineiras, o historiador, confronta-as com os quilombos em Minas Gerais, onde provavelmente ocorreu a maior concentração deles no período colonial, afirmando: Ao contrário dos quilombos, as Irmandades acabaram se tornando uma forma de manifestação adesiva, passiva e conformista das camadas inferiores, onde não se formou uma consciência de classe e, por conseguinte onde inexistiu uma consciência política (BOSCHI, 1986, p. 156). A isto se seguem associações de idéias que apresentam as Irmandades como aliadas ao Estado e à Igreja no seu projeto de enquadramento do negro aos padrões estabelecidos pelos brancos. O que também se constata em Eduardo Hoornaert (2008, 386), quando este afirma: A presença do homem branco junto ao negro era niveladora (no sentido que nivelava a diversidade das nações africanas existentes no Brasil) e hierarquizadora (no sentido que introduzia a ética do privilégio e conseguia desta forma atrair os pretos para o sistema). No papel de benfeitor, protetor ou representante jurídico, a função do branco junto ao preto sempre foi a mesma, nas confrarias, nos compadrios, nos apadrinhamentos de batismo ou casamento: a de atrair o homem preto para o mundo do branco. Desta forma fica bem claro que as Irmandades provocaram em parte a progressiva integração dos africanos na sociedade colonial. Estabelece-se assim um contraponto interessante que tais considerações produzem ao realçar o aspecto peculiar que estas instituições apresentaram, não só na defesa de práticas religiosas africanas mas, principalmente, por constituírem-se nas únicas organizações que cuidavam dessas populações, atuando como entidades coletivas numa sociedade onde o negro escravizado não possuía identidade jurídica, sendo que ao mesmo tempo, são condenadas por anularem estas mesmas individualidades, inibindo iniciativas mais radicais, promovendo assim a alienação deste segmento. Tal desqualificação feita às Irmandades nos levaria a concluir que as mesmas prestaram um desserviço aos negros, imbricadas que estavam nas engrenagens do próprio sistema colonial escravista. Por outro lado, parte destas críticas residem no fato destes negros agregados nas Irmandades sob o manto protetor dos santos e santas cristãos, buscarem a 155 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades satisfação de interesses próprios, “menores”, ligados ao seu cotidiano, distanciado da luta maior e do verdadeiro ideal de liberdade coletiva, idealizado por muitos. Na tentativa de superar tais ideias contraditórias, busco entender estas Irmandades dentro do contexto onde atuaram, ou seja, numa sociedade que se pretendia branca embora se evidenciasse o crescimento acelerado de uma população negra e mestiça, marcada profundamente por desigualdades sociais e preconceito de cor, cujo povo livre era em sua grande maioria pobre e praticante de um catolicismo popular ou barroco que misturava ritos católicos com práticas pagãs experimentadas também pelos demais setores da população. Uma sociedade marcada pelo encontro e desencontro de povos distintos que aceitaram o desafio de recriarem novos códigos de comportamento, estabelecendo fronteiras diante do “outro” na busca por sua própria identidade, tão ameaçada pela escravidão e dificilmente reconstituída na diáspora. O estudo das Irmandades só é possível mediante o entendimento das estruturas e da dinâmica que embalou a sociedade para onde foram transplantadas e se mantiveram atuantes até o Brasil Império. Funcionando como força complementar ou mesmo, substituindo a Igreja aonde esta não chegava, tais instituições refletiam o sistema mercantilista fundeado na escravidão, no projeto colonialista e evangelizador adotado pelo Estado em parceria íntima com a Igreja e no complexo sistema de hierarquia e mestiçagem que marcou ou “manchou” a sociedade colonial. Assim, negando o caráter passivo e adesista atribuído a estas Irmandades, busco entendê-las no contexto mais amplo onde foram geradas, integradas ao conjunto maior da sociedade onde se estabeleceram, criadora não só de práticas simbólicas mas, principalmente de ações práticas que se configuravam em estratégias válidas contra a exclusão e as pressões sociais a que foram expostos cotidianamente estes enormes contingentes de negros. É certo, porém, que tal resistência não se faria em termos de contestação para a derrubada do sistema escravista, afinal, as Irmandades não reuniam negros aquilombados, eram espaços criados para a prática do culto cristão no interior de uma comunidade que não fazia a distinção entre a sociedade civil e religiosa, em que a religião era inseparável da política, onde o Estado se esforçava para impor sua civilização metropolitana, suas instituições e sua cosmologia. Na finalização deste texto, utilizo o conceito criado por Benedict Anderson (2008) para definir as nações em sua obra “Comunidades Imaginadas”, publicado pela primeira vez em 1983. Rompendo com a idéia de estabilidade e de controle absoluto exercido pelo governo, a nação, para este historiador, se baseia na etérea imagem de uma “invenção”, algo 156 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades imaginado e desejado por muitos; algo que passando por um processo seletivo seria capaz de criar um novo passado e novas tradições que entrelaçariam seus participantes promovendo a solidez da comunidade. Pretende-se empregar tal conceito para a análise destes negros escravizados, fragmentados em múltiplos segmentos que se reagrupam em função dessa nova realidade social para onde foram transferidos. Ao mesmo tempo, precisam decifrar os códigos que regem esta sociedade, percebê-la como espaço orgânico, mutável, capaz de acomodar novas experiências redefinindo, através de invenções, as fronteiras do seu próprio mundo, seja criando parentescos simbólicos, substitutos da família consangüínea desbaratada pela escravidão, ou entronizando reis e rainhas negros como monarcas fictícios, mas reais o bastante para preservar suas hierarquias sociais e valores culturais ou até mesmo, aceitando os santos negros inventados pelos setores da Igreja empenhados no projeto de cristianização. Assim, criaram-se histórias e tradições que vai de Santa Ifigênia, princesa núbia convertida ao cristianismo e batizada pelo apóstolo Mateus, à Nossa Senhora Aparecida, recolhida pela rede de três pescadores no rio Paraíba, em 1717 e alçada como símbolo da identidade nacional, deixando claro que o que alimentava o imaginário do negro, alimentaria o do branco também. Nações que nascem, segundo Benedict Anderson (2008), sob símbolos que dão sentido e legitimidade à sua existência, que independentemente das hierarquias e desigualdades existentes, são concretizadoras de um sonho coletivo. Estendendo tal conceito às estratégias de sobrevivências adotadas pelos negros escravizados, ou mesmo livres, mas sob o domínio de um sistema opressor, encontraremos no mesmo espaço idéias divergentes de nação; a que se impõe a partir de um Estado Absoluto, que através de mecanismos de vigilância e punição deseja implantar uma ordem social calcada nos padrões culturais europeus, e aquela desejada pelos grupos subalternos, vítimas de guerras e do tráfico em suas Áfricas, sobreviventes da travessia do Atlântico e desafiados a redefinirem suas fronteiras étnicas e estabelecer novas marcas de identidade em solo americano. Apesar das diferenças e das tensões encontradas, o desejo de resistir e reconstruir a sua própria humanidade conduziu a uma solidariedade capaz de recrutar novos membros, entrelaçados no sonho de fazer desta terra, também a terra deles, encontrando nas Irmandades a incubadora que gestou estes primeiros lampejos de nação. 157 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras,2008. ANDRADE, Rômulo Garcia de. Escravidão e cafeicultura em Minas Gerais: o caso da Zona da Mata. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.11, n. 22. 1991. BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. 3ª ed. São Paulo: Livraria Pioneira, 1989. BORGES, Célia Maia. Escravos e Libertos nas Irmandades do Rosário: devoção e solidariedade em Minas Gerais – Século XVIII e XIX. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. BOSCHI, Caio César. 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Tinha como objetivo sanar os males da sociedade cristã no Oriente, principalmente das mulheres, juntamente com os recolhimentos para as órfãs e para as convertidas. Na presente apresentação pretende-se entender o convento como um território de representação de um modelo de religiosidade feminina para o Oriente Português, já que os conventos femininos do Barroco representaram um discurso reformador da Igreja Católica, afirmado pelo Concílio de Trento, em que o ideal de perfeição feminina se dava a partir da regulamentação do matrimônio e da proposta de um confinamento mais rigoroso. Para tal também é necessário tratar um pouco dos conceitos chaves de território e representatividade. Palavras-Chaves: Goa; D. Frei Aleixo de Meneses; Convento de Santa Mônica; Religiosidade; século XVII. Abstract: In the early seventeenth century, Goa was the "Rome of East", territory of representation of power distant from India: Lisbon (in the secular structure) and Rome (in the ecclesiastical structure) through the person of the viceroy or governor and of the bishop or archbishop, respectively. However, the city was seen by many, among clerics and chroniclers, as morally decadent, women being accused of adultery have died or had their husbands killed by their lovers. In this background, in 1606, it was founded, by D. Frei Aleixo de Menezes archbishop of Goa and governor of India - the Convent of Santa Monica in Goa, the first female cloister in the Portuguese overseas empire. The convent was intended to remedy the ills of Christian society in the East, especially those of women, along with the care for the orphans and for the converted. In this paper we present the convent as a territory of representation of a Portuguese model of female religiosity to the East, in relation to the baroque discourse that represented the reform of the Catholic Church, as stated by the Council of Trent, in which the ideal of feminine perfection would be given by regulation of marriage and proposal for a more rigorous confinement. For this purpose, it will be necessary to review the key concepts of territory and representativeness. Keywords: Goa; D. Frei Aleixo de Meneses; Convent of Santa Monica; Religiosity, the seventeenth century. * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista CAPES. 159 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Reflexão sobre os conceitos de território e representatividade Koselleck, em seu livro Futuro Passado (2006), trabalha as relações entre linguagem e história, dando ênfase ao exemplo alemão, sendo assim, um dos principais construtores da História dos Conceitos. Para ele, “a história dos conceitos é, em primeiro lugar, um método especializado da crítica de fontes que atenta para o emprego de termos relevantes do ponto de vista social e político e que analisa com particular emprenho expressões fundamentais de conteúdo social ou político” (KOSELLECK, 2006, p. 103). Logo, a história dos conceitos estaria interligada à história social, pois as palavras mesmo permanecendo no vocabulário até os dias atuais perdem significados e adquirem outros através dos tempos e dos contextos históricos. Com base nesta concepção da importância de compreender melhor os conceitos utilizados, tentar-se-á nas próximas linhas fazer uma breve discussão sobre os conceitos de representação e território. O conceito de representação está ligado ao surgimento da terceira geração dos Annales, nos anos 60/70, em que traziam novas abordagens, temas e objetos às questões históricas sociais, inspiradas nas ideias fundadoras da primeira geração. Ao tentar entender o homem como um ser complexo, esta nova vertente historiográfica forma um novo campo, chamado História das mentalidades. No entanto, o conceito de representação busca ir além do de mentalidades, já que neste conceito um único imaginário caracteriza toda a sociedade, como se todos compartilhassem de um mesmo imaginário, desprezando assim a pluralidade social. Por outro lado, a representação valoriza a história do plural, das diferenças, dos laços sociais e das identidades (GUARATO, 2010). Essa nova vertente, conhecida como História das Representações teve contribuição de autores como: Paul Ricoeur, que a via como substituta das mentalidades; Michel Foucault, que, grosseiramente falando, tentou compreender não só a existência das diferenças, mas também sua origem; Michel de Certeau, que em seu estudo sobre desvios e apropriações analisou a questão do sujeito que fala e para quem ele fala. No entanto, nos deteremos ao conceito de representações desenvolvido pelo historiador Roger Chartier (1990, p. 17). As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas. Para o autor, tanto as práticas como as representações são construídas socialmente a partir dos interesses de um ou mais grupos. A partir da ideia de que os discursos não são neutros, procura compreender as representações como construções determinadas pelas 160 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades práticas dos grupos. Deste modo, as práticas sociais só são passíveis de entendimento enquanto representações, ou melhor, o real só existe a partir do momento que é representado. Trazendo este conceito para o âmbito da sociedade do Antigo Regime, é possível observá-la repleta de símbolos, mescla de representação com o real. Melhor dizendo, uma sociedade teatralizada onde “a identidade do ser não [era] outra coisa senão a aparência da representação” (CHARTIER, 1990, p. 21). O indivíduo seria aquilo que ele exibia, sua aparência valia pelo real. Logo, esta realidade era construída visando o reconhecimento de uma identidade social que demonstrasse seu modo de estar no mundo, definindo simbolicamente o estatuto e a posição do indivíduo na sociedade. No que tange ao conceito de Território, Ademir Terra indica que a origem do conceito – diferente do senso comum que credita-o à Geografia – está na Biologia e Zoologia, ao analisar os comportamentos específicos dos animais na determinação do local em que vivem, reproduzem-se e caçam. A Geografia adotou o conceito em suas análises enfatizando a materialidade do território. No entanto, há outras apropriações deste mesmo conceito, como o da Ciência Política, que o utiliza para analisar a concepção de Estado através das relações de poder; da Sociologia que o emprega como agente nas relações sociais; e a Antropologia que ressalta sua dimensão simbólica (TERRA, 2009, p. 5-7). Atualmente, com a Geografia Crítica, o conceito foi ressignificado devido à necessidade de se compreender as transformações econômicas, divergências sociais e as novas organizações territoriais. Ao falar das funções da territorialidade, Marcel Roncayolo (s/d), em seu texto Território, desenvolve um conceito amplo de território em que este está ligado à formação de uma identidade, não só individual, mas principalmente social. “A ligação a um território não é facilmente separável de um conjunto de relações sociais, de hábitos, de ritos, de crenças” (RONCAYOLO, [s.d], p. 267). Assim, seria um novo território que se afasta do significado antigo referente ao espaço geográfico e se aproxima mais da cultura das sociedades, criando um sentimento de pertença a um determinado grupo. Ele ultrapassa o sentido do terreno propriamente dito e ganha valores políticos e sociais. Rogério Haesbaert (2006) também trabalha o conceito de Território de uma forma ampla. Ele divide-o em perspectivas: a materialista em que relaciona a sociedade com a natureza, reconhecendo as ações comportamentais do homem com seu ambiente; na idealista, o território é dotado de identidade, carrega significados simbólicos e subjetivos. Mas, ele vai além, e traz uma perspectiva integradora, em que o território é agente da interação entre as dimensões política, econômica, natural, social e cultural (HAESBAERT, 2006, p. 46-53). Sob o ponto de vista da perspectiva idealista ou simbólica, o autor reforça sua dimensão enquanto 161 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades representação. Em sociedades do Antigo Regime, ou “pré-industriais” – segundo termo do autor –, o território se define a partir do sentimento de pertencimento e de uma identificação cultural com o território (HAESBAERT, 2006, p. 49). E mais, o lugar também pode ser ocupado mais intensamente pela “apropriação simbólico religiosa”, aprofundando mais ainda o sentimento de pertencimento. Assim, o território é visto como um “construtor de identidade” (HAESBAERT, 2006, p. 50). Para analisar o convento das Mônicas de Goa, este conceito será apropriado como construtor de um modelo, um ideal. Um território capaz de construir modelos de representação de um ideal cristão católico para as mulheres no Oriente Português. Convento de Santa Mônica de Goa: território representativo do modelo de religiosidade feminina O Convento de Santa Mônica foi o primeiro claustro feminino do Império Ultramarino Português, fundado por Frei Aleixo de Menezes, um agostiniano de origem nobre que no período entre 1595 e 1610 foi arcebispo de Goa, acumulando o cargo de governador da Índia de 1606 a 1609. Recebeu o nome de um exemplo de virtude, a mãe de Santo Agostinho, fundador da ordem. Aliás, este é o nome dado à grande maioria dos conventos femininos dos agostinhos. A justificativa dada ao rei para obter a autorização para a fundação do convento estava inserida na preocupação com a preservação e garantia da virtude feminina. O convento seria uma resposta para a dificuldade dos fidalgos encontrarem um bom marido para suas filhas, já que os candidatos deveriam ser homens dignos e fidalgos também e não soldados em busca de fortuna. Um outro motivo apresentado foi a grande quantidade de mulheres que eram assassinadas por seus maridos acusadas de adultério. “Citam que no espaço de aproximadamente dois anos se contaram 52 mulheres mortas à ‘espada’, acusadas de adultério” (GONÇALVES, 2005, p. 65). A cidade de Goa era considerada, tanto por viajantes quanto pelos clérigos, uma sociedade desregrada e desvirtuosa. Em seu artigo, Propércia de Figueiredo nos mostra que os relatos de viajantes como Garcia da Orta e João Huighens van Linschoten indicavam esta característica da sociedade em Goa – que mesclava diversas culturas numa só ilha, como indianos, portugueses, judeus e mulçumanos – e a sua desmoralização, inclusive da parte feminina (FIGUEIREDO, 1928-1931, p. 6). Num trecho da História do Real Convento de Santa Mónica de Goa, podemos ver como a cidade era vista pelos religiosos: 162 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Era entre as molheres daquelle Estado muito grande a devassidão, e também igual prejuízo, que della resultava, não só ao serviço de Deos, mas à República; vendo-se cada dia acabarem muitas por adúlteras às mãos de seus maridos, e os maridos perecerem às mãos daquelles que eram culpados no delito de suas molheres, para ficarem com ellas mais soltos no seu pecado (SANTA MARIA, 1699, p. 2). Logo, para conservar a honra dessas mulheres eram necessárias instituições que as salvaguardassem. E este foi o objetivo de frei Aleixo – como homem representante do espírito reformador presente em alguns clérigos da época e das determinações de Trento – ao fundar os recolhimentos e o convento. Após seu retorno a Portugal, o arcebispo encarregou frei Diogo de Santa Ana da administração do convento. Este religioso – que também era funcionário do Santo Ofício – além de administrador, foi um dos confessores das freiras e seu maior defensor perante os ataques da Câmara Municipal – que por questões econômicas requeria ao rei a extinção do convento. Frei Diogo, em defesa do convento, escreveu ao rei uma longa carta, intitulada Resposta por parte do Insigne Mosteiro de Santa Mônica. Em todo o documento ele glorifica as virtudes e qualidades das freiras que lá viviam (SANTA ANA, 1636), podendo assim perceber como ele utiliza o território do convento para difundir um modelo de virtude e santidade. Num sermão escrito para a inauguração da igreja do convento frei Diogo também coloca as figuras das freiras como exemplos de vida: [...] todos viram o grande e raro exemplo que estas pessoas davam a todo este povo, vivendo angelicamente, e assistindo na nossa igreja [Igreja de Nossa Senhora da Graça pertencente ao convento dos agostinhos] todos os dias, desde que se começavam, as missas até que se acabavam, e confessando-se, e comungando de ordinário duas vezes, na semana, e além disso pelas festas do ano, e em sua casa tendo larguíssimos exercícios de oração mental, e de jejuns, e abstinências de modo que a todos admiravam, e edificavam, com o mais que deixamos de dizer (SANTA ANA, 1627, fl.8). Outra obra em que é possível observar esta exaltação e valorização da vida das freiras é a obra redigida por frei Agostinho de Santa Maria (1699) – mencionada anteriormente – a partir de trechos do manuscrito de frei Diogo de Santa Ana e de depoimentos das freiras e confessores, em que versa sobre os primeiros trinta anos da instituição até o recebimento do título real, em 1636. A obra teve como objetivo divulgar e ressaltar os feitos dos agostinianos no Oriente e, sendo assim, foi composta a partir de um relato da vida do fundador do convento, Frei Aleixo de Menezes, e mais quatro livros sobre o convento e suas componentes, em que relata as experiências espirituais e o estilo de vida levado pelas freiras. Já no Prólogo o autor exalta as qualidades dessas mulheres. Verdadeiramente a vida, os exemplos, as virtudes, e a santidade das religiosas do Convento de Santa Monica de Goa, são de forte, que (como se verá em toda esta história) temos muito de que nos admirar, e não pouco de que nos confundir os que 163 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades vivemos na Europa, vendo fácil aquilo, que se julgou por muito impossível na Ásia (SANTA MARIA, 1699, prólogo). O convento no olhar dos agostinianos, aqui representados pelas palavras de Santa Ana e Santa Maria, foi formador de um modelo de virtude a ser seguido pelas mulheres católicas no Oriente, fossem elas cristãs-velhas ou convertidas. Para alcançar tal intuito, frei Aleixo contou com o exemplo de vida de uma viúva e sua filha: D. Filipa Ferreira e Maria de Sá. Tanta era a modéstia, e o recolhimento exterior desta serva de Deus, e de sua filha, que todas as Donzelas, e mulheres nobres daquela Cidade, que concorriam à Igreja de N. Senhora da Graça, se desejavam chegar a elas, estimando em muito a sua companhia, trato e comunicação. Esta foi a primeira vez que na Índia se viu a virtude postada publicamente (SANTA MARIA, 1699, p. 497). Como podemos observar neste trecho e em quase todo o livro, Santa Maria explora a figura de Filipa e sua filha como modelo de virtude feminina para as mulheres de Goa e de todo o Estado da Índia, já que a fama do convento transpassou os muros da cidade. As donzelas que professavam no convento eram provenientes de vários lugares do Oriente Português, inclusive de locais onde Portugal não exercia seu domínio (COATES, 2002, p. 6781). Filipa Ferreira, professa sob o nome de Filipa da Trindade, era moradora da cidade de Tana – situada no Norte da Índia – onde conheceu D. Frei Aleixo de Menezes em uma de suas visitas pastorais. Chegou a Goa, em 1604, onde teria ficado responsável pelas órfãs mesmo antes do recolhimento ter sido construído (PINTO, 2006, p. 301). Segundo Margareth Gonçalves (2005, p. 66-69), ela foi a regente do recolhimento da Serra. Depois de instituído o convento e após o período de noviciado, Filipa da Trindade recebeu o título de superiora do convento e sua filha – que adotou o nome de Maria do Espírito Santo – e outras quinze donzelas professaram votos. As vidas dessas religiosas são relatadas como exemplos de vocação e de vida em santidade; de virtudes como a humildade, caridade e modéstia; e de trajetória de perseverança na fé diante das tentações e forças demoníacas. A fama das vidas dessas freiras chegou rapidamente ao Reino, tanto que Frei Luís dos Anjos, em 1626, no seu Jardim de Portugal – em que compila vidas de santas, de religiosas e de mulheres virtuosas – retratou a figura de Soror Maria do Espírito Santo, sendo ela “a primeira donzela que nas partes da Índia Oriental [...] se dedicou em mosteiro solenemente a Deus” tendo “sido mui perfeita em todo gênero de virtudes” (ANJOS, 1999, p. 342-343). Tanto mãe quanto filha seriam figuras representativas do discurso pregado pela igreja católica reformadora – por sua vez representada aqui por frei Aleixo e frei Diogo – no Oriente sobre o ideal de virtude feminina. 164 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A partir dos conceitos de território desenvolvidos por Roncayolo e Haesbaert, a partir de uma perspectiva simbólica é possível pensar no convento como um território formador de uma identidade coletiva feminina religiosa. Katryn Burns (1999, p. 106), ao dissertar sobre os conventos de Peru, compara-os a verdadeiras cidades dentro dos muros, pois possuíam uma grande estrutura para atender as necessidades das freiras. Uma forte organização política foi desenvolvida dentro dos conventos, partindo dos cargos superiores das abadessas ou prioresas e passando por um conselho de madres que auxiliavam as abadessas no governo dos conventos. Havia também cargos, como de porteira, sacristã, vigária do coro, mestra das noviças, supervisora da cozinha, enfermeira e outros. Ainda dentro de suas celas cada freira tinha seu próprio complexo familiar colonial. Com suas escravas, servas e crianças abandonadas formavam novas formas familiares autorizadas pelas abadessas e prioresas, que adaptavam os protocolos do claustro para tal fim. Desta forma, o território conventual não só definia a identidade das freiras com suas leituras, orações, cantos, cultos e atividades manuais, mas também deveria influenciar a vida das pessoas seculares com os exemplos de virtude e santidade representados pelas freiras mais espirituais e ascéticas. Neste sentido, o convento das Mônicas pode ser visto não só como um lugar de residência enclausurada de mulheres, mas também de existência de tradições religiosas, de um grupo organizado e hierarquizado. Um território que “desde seus princípios tem creado espíritos excelentes sendo aquella casa verdadeiramente Seminario de santidade, e escola de virtudes.” (SANTA MARIA, 1699, p. 41). Um território de construção de identidade religiosa e de modelos de santidade. E mais, o convento estaria representando os ideais da Igreja Católica reformadora sobre as qualidades (virtudes) que deveriam ser seguidas pelas mulheres nobres no Oriente através dos exemplos de vidas de suas freiras. O que nos leva a entender o quão importante foi para os religiosos o papel desenvolvido pelo Convento das Mônicas na manutenção da fé católica em territórios tão distantes no Oriente. FONTES ANJOS, Fr. Luís dos. Jardim de Portugal (1626). Porto: Campo das Letras, 1999. SANTA ANA, Fr. Diogo de. Resposta por parte do Insigne Mosteiro de Freiras de Santa Mônica de Goa. 1636. ANTT, Manuscritos da Livraria nº 0816. ______. Sermão que o padre frei Diogo de Santa Ana natural da cidade de Bragança, religioso da ordem dos Eremitas do grande Patriarca Santo Agostinho e provincial nela e deputado do Santo Ofício e da segunda instancia das ordens militares pregou em dezenove de dezembro de mil e seiscentos e vinte e sete, na dedicação da nova Igreja do insigne mosteiro 165 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades da gloriosa Santa Mônica da cidade de Goa metrópole do estado da Índia oriental, em missa pontifical do Illmo. e Rmo. Sr. Dom fr. Sebastião de São Pedro digníssimo Arcebispo Primaz do Oriente e religioso da mesma ordem e prelado do mesmo mosteiro. 1628. ANTT, Manuscritos da Livraria n.º 1869. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Inquisição de Goa – 25, 1 SANTA MARIA, Fr. Agostinho de. História da Fundação do Real Convento de Santa Mónica da Cidade de Goa. Lisboa, 1699. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALGRANTI, Leila. 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Capital desde a era mineradora do Brasil, o Rio vê-se na iminência de perder o papel de centro de decisões e adentra numa crise intelectual e política de abandono e esvaziamento de políticas e práticas institucionais. A pergunta que frequentemente ecoava pela imprensa carioca mostrava essa preocupação com “O que será do Rio?”. O principal periódico que se posiciona como um líder na defesa do Rio de Janeiro é O Globo que divulga suas idéias a respeito do que se tratava no Congresso Nacional a respeito do futuro do Distrito Federal: Guanabara ou fusão? Divisão em distritos ou um estado único? E é através desse jornal que nos focaremos na análise desse conturbado período da história fluminense. Palavras-Chaves: O Globo; Guanabara; história política. Abstract: The building of a new capital for Brazilian nation, in the 1950’s, represented for Rio de Janeiro citizens a loss of status. Capital since the mining era in Brazil, in XVIII century, Rio found itself then on the verge of losing the position as decision making center and in a political and intellectual crisis due to the possibility of institutional vacuum and loss of policies practices. This concern echoed in Rio de Janeiro’s press in the question "What will be of Rio?". The leading newspaper in Rio de Janeiro's defense was O Globo, that frequently had disclosed its concern on what was going in National Congress, related to future of former "Federal District": the proposal of creating a new state, Guanabara, or the incorporating of city of Rio de Janeiro in the Rio de Janeiro state? In this paper, we focus on analysis of this troubled period in the history of Rio de Janeiro. Keywords: O Globo; Guanabara; political history. Introdução Por 15 anos, a República Federativa do Brasil contou com mais uma estrela na bandeira nacional, que representava o estado da Guanabara. Essa unidade da federação correspondia ao que hoje é a cidade do Rio de Janeiro e onde, até 1960, se localizava a Capital Federal Brasileira. Após a perda da capitalidade o recém-criado Estado da Guanabara deveria se constituir como unidade federativa, porém em decorrência de seu passado como “vitrine nacional”, o feito não é dos mais fáceis. Dividimos essa comunicação em duas partes, então: a primeira parte em que será realizada uma contextualização da idéia dessa * Mestranda do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS-UERJ). 169 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades transferência; e a segunda parte que será a formação desse novo Estado segundo as análises e notícias difundidas pelo O Globo, principal periódico sediado no Rio de Janeira e de divulgação nacional. Entendendo a transferência A ideia de transferir a Capital Federal para o interior do Brasil surge pela primeira vez durante a Inconfidência Mineira, um dos primeiros movimentos brasileiros no século XVIII visivelmente influenciados pelos ideais de independência que buscava proclamar uma república e assassinar o governador da província devido à aprovação de um ato de Marquês de Pombal chamado Derrama e que consistia na cobrança de impostos atrasados em toda região das Minas. Essa insurreição foi frustrada por conta da delação de um dos participantes que culminou na condenação ao exílio de todos e no enforcamento e esquartejamento do alferes Joaquim José da Silva Xavier, conhecido também por Tiradentes, para servir de exemplo para todos que quisessem atentar contra a Coroa Portuguesa. Porém, nos Autos da Devassa desse movimento pode ser visto que um dos objetivos era retirar a capital do Rio de Janeiro e levála para Minas Gerais, por ser o lugar da onde saía a riqueza do país. Tal questão referente à interiorização da capital só reapareceria mais tarde, proposta pelo deputado José Bonifácio na Assembleia Legislativa do Império do Brasil em 1824. Com o nome de Brasília, o deputado indicava a comarca de Paracatu em Minas Gerais para sede do governo imperial, já que assim eliminava o risco de invasões que facilmente poderiam inutilizar o centro de decisões do Império por ficar no litoral. Além disso, desejava-se uma maior integração do território, marcado por grandes vazios demográficos, com a população, em seu maior número, instalada na região costeira do país. A proposta não avançou devido ao aumento da insatisfação para com o primeiro imperador do Brasil, D. Pedro I, tendo sido abandonada depois de um desentendimento entre esse e Bonifácio, que acabou exilado para a França, apenas retornando anos depois para tutoriar Pedro de Alcântara, futuro imperador D. Pedro II. A transferência retorna ao plano político com a Proclamação da República em 1889. Lembrada em emenda ao projeto constitucional de 1890, torna-se oficial com a sua presença na seção 'Organização do País' da Constituição Federal outorgada em 24 de Fevereiro de 1891. Essa idéia era justificada por certas características que a capital possuía e que não eram simpáticas aos ideais da República que se iniciava naquele momento, como relata Marly Motta (2004:19): 170 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A implantação da ordem, considerada elemento-chave do projeto republicano, parecia bastante comprometida pela 'maléfica influência' que emanaria da antiga capital imperial, em função do caráter 'agitado' e 'revolucionário' de sua população, que teria marcado a cidade como espaço da improvisação, da ação direta e inesperada e, por isso mesmo extremamente ameaçadora. (...) A essa fama de turbulenta, aliava-se a imagem de uma cidade estrangeira, antinacional. Naquele início dos anos de 1890, a população da capital era de 522.651 habitantes, (...) desse total, um quarto era de estrangeiros. Cosmopolita e tumultuosa eram características negativas para o centro político nacional. Buscou-se então no Planalto Central o lugar para a construção do novo Distrito Federal. Localizado em um território que, apesar de ainda desconhecido, podia ser considerado o coração do Brasil, tornava-se o lugar ideal para a construção da nova sede de governo. Para dar início aos trabalhos relativos à mudança, uma Comissão foi criada para tratar do assunto e uma expedição foi enviada ao interior com o objetivo de mapear o território e buscar a melhor localização para a demarcação dos 14.440 km reservados a futura capital. A dita expedição foi nomeada de Missão Cruls e teve grande importância para o reconhecimento do interior e descobrimento de diferentes espécies biológicas nacionais que, até então, eram desconhecidas. Apesar de ser considerado um sucesso, não foi dado prosseguimento ao caso por inúmeros motivos, dentre eles a crise do café, principal produto brasileiro para exportação, e a nova política empreendida pelo presidente Campos Salles, definida segundo a ideia de que “nos estados se fazia política; na capital se administrava.” (MOTTA 2004:24). Diante do novo pacto de governo, que se aliava à chamada “Política dos Governadores” – acordo entre os governos estaduais e o federal destinada a controlar as sucessões – a construção de uma nova capital se tornaria muito onerosa, ficando esquecida no plano político até 1946. Ainda na Primeira República, porém, o Rio de Janeiro recebia inúmeros investimentos a fim de se tornar a Belacap, o remodelamento e alargamento de suas vias, a derrubada de cortiços, abertura de ruas e a revitalização do porto buscava fazer do Rio de Janeiro, uma capital aos moldes europeus – integrada e saneada. Por exemplo, foi nesse momento que foi construído o Palácio Monroe na Cinelândia, a fim de representar o Brasil na Conferência Pan-Americana que ocorreria na cidade e, assim, mostrar o quão belo e “europeizado” era o Distrito Federal. Apenas com a Constituinte de 1946, após o Estado Novo, a proposta da transferência do Distrito Federal volta à pauta, sendo incluída nas Disposições Transitórias. Mais uma vez, é criada uma Comissão para analisar o caso e a viabilidade da proposta que só se efetuaria 14 anos mais tarde, com a eleição de Juscelino Kubitschek para presidente. Ele incorpora a proposta de construção de Brasília no Planalto Central – a Novacap - a seu Plano de Governo, composto por 30 metas de ação nos setores de energia, transporte, indústria, alimentação e 171 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades educação num grande projeto de Integração Nacional. Para Juscelino, desenvolver o Brasil, transformando-o em potência capaz de participar do 'Concerto das Nações' era sinônimo de integrar esse país, eliminando os vazios demográficos. Brasília tornou-se a meta-síntese do Programa de Metas. A transferência aos olhos de O Globo Tem-se a impressão de por vezes estarmos sob o comando de loucos. Um país que constrói, em uma região deserta, uma nova Capital só por insanidade pode condenar a decadência irremediável a sua segunda cidade, até aqui sede do seu governo. Se há dinheiro para construir Brasília, por que não há de haver para preservar o Rio? (O Globo, 04/03/1960). Em março de 1960, o jornal O Globo exibiu um longo editorial, em sua primeira página, criticando o governo federal e seu braço no Distrito Federal, o prefeito Sá Freire Alvim - a prefeitura do distrito federal era provida pela nomeação do presidente da República - pelas paralisações que estavam acontecendo nas várias obras pela cidade. Obras de cunho urbano (saneamento, asfaltamento, dentre outras) estariam sofrendo com as greves dos trabalhadores, por falta de pagamento. A alegação dos trabalhadores levou ao descobrimento de um rombo no orçamento da cidade, provocado pela negativa de empréstimo do Banco do Brasil e do governo federal às obras de “preservação” da cidade. Esse episódio aumentou o tom das críticas que esse periódico já vinha dirigindo de longa data ao governo e à sua meta principal relativa à construção de Brasília. O jornal O Globo foi fundado em 1925 por Irineu Marinho, porém esse veio a falecer um mês depois de sua fundação, cabendo ao seu filho, Roberto Marinho, a sua condução. Este apenas veio a tomar as rédeas do periódico em 1931, transformando-o, a partir dessa data, numa grande empresa de notícias, possuindo também emissora de rádio. O perfil do jornal desde sua criação era conservador, tendo esse enfoque se acentuado ao longo do tempo. Ficou conhecido por suas críticas a Vargas e a todos aqueles que surgiam como seus herdeiros políticos. As críticas a Kubitschek foram menos diretas, pois a concessão da autorização para lançamento da mídia televisiva Rede Globo foi dada por esse presidente em 1957, centrandose na questão da capitalidade. Por ter sua sede localizada na capital da República, foi um dos jornais que participou ativamente dos debates a respeito da transferência da capital. Os mais conhecidos e estudados para análise desse período são o Correio da Manhã e a Tribuna da Imprensa, tendo todos eles conduzido campanhas contrárias a dita transferência. Porém o que mais nos interessa no jornal da família Marinho foi o fato de ele ter tomado para si a tarefa da defesa do Rio de 172 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Janeiro, realizando conferências, reuniões, conclames no auditório de sua sede, para discutir os rumos a serem tomados quando finalmente a capital se transferisse do Rio de Janeiro. O editorial acima citado sugere o sentimento que se instalara na população carioca nesse momento iminente da perda de capitalidade. Nos periódicos e manifestações, notava-se a preocupação com o provável abandono da cidade que por tanto tempo exerceu a função de “vitrine da nação”. Transformar o Rio de Janeiro em uma simples unidade da federação ou ainda em uma cidade incorporada ao estado fluminense era propostas controversas devido à extrema politização então existente naquele momento. O debate era grande, e as soluções pouco acessíveis, sendo a unanimidade costumeiramente embargada nas longas reuniões da Câmara, por conta das rivalidades entre os principais partidos políticos – PTB e UDN. Três foram as propostas então debatidas sobre o futuro lugar do Rio de Janeiro na federação: território da Guanabara; estado da Guanabara; município do Rio de Janeiro, incorporado ao Estado do Rio. Muito mais polêmico que a discussão sobre a transferência da capital para Brasília, o debate sobre o futuro do ex-Distrito Federal revelou os impasses e as contradições que acompanhavam a definição de uma nova identidade para a cidade, bem como de seu papel como um novo ente federativo. Daí a questão: Que será do Rio?.(MOTTA 2001:7). Além de tornar possível a percepção da grita carioca a respeito das questões futuras a transferência, o papel mais importante de O Globo é o político. Como já foi mencionado antes, o jornal não só noticiava o que estava acontecendo no Congresso, ou a visão de seus jornalistas a respeito do polêmico futuro, ele participava ativamente das ações em prol da Guanabara – nome proposto na Constituição para a futura unidade da federação a ser criada. As reuniões que envolviam personalidades políticas importantes e conferências a respeito da questão eram conclamadas nas capas do jornal, assegurando-se a presença de um bom número de populares através da entrada franca ao auditório-principal do periódico. Enquanto Carlos Lacerda, na Tribuna, conduzia a oposição ao governo, os jornalistas de O Globo se responsabilizavam em “mostrar a população o que estavam tentando fazer com o Rio de Janeiro” (O Globo, fevereiro de 1960). As lideranças das associações de moradores de todos os bairros da antiga capital foram convocadas a participar das reuniões realizadas por O Globo, facilitando o contato do dito jornal com a população carioca. Exerceram um canal importante para os fins desejados pela empresa já que, nesse momento, eram órgãos fortalecidos e atuantes politicamente. Em uma das reuniões ocorridas em fevereiro de 1960, ficou estabelecida a criação de uma junta para a “orientação da opinião pública” que mobilizaria os órgãos de imprensa para levar a população a “verdade” a respeito do futuro da cidade. Foram realizadas pesquisas de opinião e colocadas faixas por toda a cidade, buscando trazer a população para um lado do debate que 173 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades estava sendo desenvolvido: o lado de que a Guanabara deveria ser criada e mantida como um estado, um ente federativo, porém não-esvaziado de suas funções de capital. Apontava-se, portanto para a criação de um estado-capital no Brasil. E a Guanabara foi criada e recebida com festa no antigo Distrito Federal. Festa organizada pelo jornal que contou com escolas de sambas, sirenes do Corpo de Bombeiro, fogos de artifício e apitaço nas ruas. A meia noite do dia 21 de Abril, dia marcado para a transferência acontecer, a festa de “Boas Vindas” a nova unidade da federação teve como trilha sonora a música “Cidade Maravilhosa” e novas marchinhas e sambas a respeito do novo estado. Em todas, porém, a alusão da capitalidade é mantida. A Guanabara se formava com um Estatuto criado e aprovado na semana anterior à transferência, e com a maior parte das instituições federais ainda presentes e em funcionamento até a década de 1970, quando finalmente sofre o esvaziamento prometido e acaba sendo incorporada ao estado do Rio de Janeiro. O Globo não só noticiou a formação da Guanabara, como participou ativamente de seu processo de concepção, noticiando as informações da forma como seria mais bem acatada aos seus propósitos pela população carioca e nacional. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERNANDES, Florestan. 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(Coleção Descobrindo o Brasil). 174 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Leituras da Revolta Liberal de 1842 em O Brasil Tatiane Rocha de Queiroz * Resumo: O presente artigo consiste no estudo e na análise de algumas matérias do periódico O Brasil que tiveram como tema: a Revolta Liberal de 1842. O nosso objetivo é demonstrar como esta revolta possibilitou um desenho mais alinhado e definido das identidades políticas dos grupos que viriam a ser conhecidos como conservadores e liberais. Entendemos que, após os conflitos armados nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, podemos verificar que as identidades anteriores já alteradas pelos embates da antecipação da Maioridade do jovem príncipe foram rearranjadas e reformuladas no curso do processo de debate e enfrentamento que culminou com a confrontação armada, um ‘esgotamento da palavra’, que para alguns quis justificar a ação revolucionária, na ótica dos que a protagonizaram. Palavras-Chaves: Imprensa; Identidade; Partido. Abstract: This article presents an analysis of some editions of the newspaper "Brazil," related to the theme of the Liberal Revolt of 1842. Our goal is to demonstrate how this uprising made possible a narrow definition of the political identities of the groups that became known, later, as conservatives and liberals. We assume that the identities that arose at the time of the Majority of the young prince (Emperor Pedro II) were rewritten and re-elaborated during the debates and conflicts that culminated in armed confrontations in the provinces of São Paulo and Minas Gerais, a "break out of the word" that, to some contemporaries, may have justified the revolutionary uprising. Key Words: Press; Identity; Party. Neste artigo desenvolvemos uma ponderação acerca da conformação da identidade política do grupo conservador frente à Revolta Liberal de 1842, em São Paulo e Minas Gerais. Para tal analisaremos alguns artigos do periódico O Brasil (1841 a 1842) que nos forneçam não só informações acerca dos acontecimentos, mas também nos ajudem a compreender o caminho encontrado por Justiniano J. da Rocha na defesa dos valores e princípios do grupo político ao qual ele era filiado: partido regressista, futuro partido conservador. Dessa forma, estaremos resgatando, através da análise dos discursos argumentativos do jornal, uma das maneiras possíveis tanto de regulação da práxis política quanto de conformação de suas identidades políticas. Entendemos que, após os conflitos armados nas localidades de São Paulo e Minas Gerais, podemos encontrar um desenho mais polarizado das identidades partidárias dos que * Mestre pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da UERJ (PPGHS-UERJ). 175 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades passaram a ser denominados de “liberais” e de “conservadores”. As identidades anteriores, na oposição entre “regressistas” e “progressistas”, já alteradas pelos embates da antecipação da maioridade do imperador, foram rearranjadas e reformuladas no curso do processo de debate e enfrentamento que culminou com a confrontação armada, um “esgotamento da palavra”, que para alguns quis justificar a ação revolucionária, na ótica dos que a protagonizaram. Do debate às armas Os ecos de uma possível revolta nas províncias de São Paulo e Minas Gerais, por parte dos partidários dos liberais já eram propagados na imprensa e na Câmara desde 1841, após a queda do gabinete ministerial maiorista. A possibilidade de dissolução do gabinete de representação liberal, já era aludida desde 1840 nas reportagens do O Brasil quando seu redator Justiniano J. da Rocha comentava criticamente tanto acerca dos componentes deste grupo, quanto de seus procedimentos políticos na administração do Estado Imperial. Dessa forma, percebemos que a queda do gabinete maiorista em 1841 e a sua pronta substituição por outro de cunho conservador significou não só um momento de inversão de forças políticas, mas a possibilidade de conclusão de projetos políticos dos regressistas, como a aprovação da Lei de Reforma do Código do Processo e da Restauração do Conselho de Estado. Tais mudanças, contudo, abriram caminho para novas tensões políticas que vieram a desembocar na Revolta Liberal de 1842 em, São Paulo e Minas Gerais. Nas considerações do historiador Erik Hörner (2007) a Revolta Liberal representou apenas uma das consequências decorrentes da oposição entre os diferentes projetos de estado e dos diferentes entendimentos do jogo político. No início de 1842, ocorreu em São Paulo a mudança do Presidente da Província. Em 20 de janeiro de 1842 assumiu a presidência da Província José da Costa Carvalho, o Barão de Monte Alegre, homem de confiança do gabinete ministerial de 23 de março, que tinha a missão de pôr em prática as mudanças estabelecidas para reforma do Código do Processo, o que de certa forma explicaria a resistência encontrada por ele na administração da província. Às vésperas de sua posse, no dia 20 de janeiro, já estava redigido e foi apresentado à Assembleia Provincial o projeto de organização de uma possível comissão representativa que teria o objetivo de ir ter com a Sua Majestade pedir a demissão do atual ministério e cessar a execução da Reforma do Código do Processo. Os objetivos desta deputação foram baseados na proposta apresentada em 18 de janeiro, na 9° Sessão Ordinária da Assembleia Provincial Paulista. Apesar da proeminência 176 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades dada a Criação do Conselho de Estado, a maior preocupação dos deputados provinciais recaíra sobre a nova organização da justiça e da polícia nas províncias. Depois de longas discussões, os deputados que formavam a maioria da Assembleia Provincial Paulista, muitos sendo amigos Tobias de Aguiar, conseguiram a aprovação da representação em apenas três sessões e no tempo mínimo possível: entre 19 e 27 de janeiro. Restava apenas a escolha do nome de três deputados que pudessem compor a comissão que deveria ser nomeada no dia 28 de janeiro. Os deputados escolhidos foram: Nicolau Pereira de C. Vergueiro, Brigadeiro Bernardo José Gavião Peixoto e Coronel Francisco Antonio de Souza Queiroz114. No dia 29 de Janeiro de 1842 esta Comissão chegava a Corte, não sendo recebida pelo Imperador. A negativa do Augusto Imperador em recebê-la, foi bastante comentada na Câmara e nos Periódicos que, ou rechaçavam a atitude dos representantes paulistas, ou os elogiavam (HÖRNER, 2010, p. 122). O fim de toda essa trama acerca da representação paulista foi comentada na matéria do dia 08 de fevereiro em O Brasil. Nela podemos encontrar tanto a transcrição do requerimento por parte da deputação paulista solicitando ter uma audiência com o jovem imperador, quanto à justificativa oficial do governo endereçada diretamente ao Senador Vergueiro, na qual se relatavam os motivos da deputação não ter sido recebida por Sua Majestade Imperial. A justificativa do governo foi dada na forma de aviso, no dia 05 de fevereiro, um dia depois da tentativa de entrega da mensagem. A argumentação do Ministro do Império, Araújo Vianna, era de que a representação feria a constituição do Império, especialmente os artigos 9, 10 e 11. Como no episódio da antecipação da maioridade, os regressistas, a fim de justificar suas ações, buscavam na carta constitucional a base de sua defesa. Perante esses eventos temos que entender não só os argumentos levantados por ambos os lados – governo e representação -, mas também o significado de todo esse jogo de forças. A grande questão é não pensarmos na Comissão Representativa como um simples grupo opositor que tinha o intuito de pressionar o governo a retroceder em suas decisões e atitudes em troca de sua fidelidade, mas sim como um grupo articulado, inserido em um contexto ampliado de luta política que, legal ou não, se fez representar, sendo constatado o fato de que 114 Esta Comissão representativa era composta por um Senador, um ex-presidente de Província e um Deputado provincial eleito sucessivamente desde a primeira reunião da Assembleia. Além de suas carreiras e grupo político em comum, esses homens possuíam ainda laços de parentescos estabelecidos através de casamentos. Cf.: HÖRNER, Erik.: Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838 – 1844). Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas, Universidade de São Paulo, SP, 2010, p. 121. 177 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades mesmo não sendo recebidos pelo Imperador eles conseguiram se articular na Câmara Provincial em torno de seus objetivos. Um outro ponto importante foi o fato da Câmara Legislativa eleita no final de 1840 sob os auspícios do gabinete maiorista ter sido dissolvida em maio de 1842. Os argumentos a favor da dissolução da Câmara giravam em torno da questão de que esta era ilegítima, tendo sido composta através de fraudes e irregularidades elaboradas pelo antigo ministério quando este estava no governo. No entanto estando dissolvida a Câmara, se exacerbaram os ânimos de alguns partidários do grupo progressista, que desde a aprovação da Lei do Código do Processo Criminal e da reorganização do Conselho de Estado já bradavam o apego às armas. A suspensão da Câmara que estava composta em sua maioria de partidários dos progressistas nas sessões preparatórias, serviu de pólvora para a eclosão da chamada Revolta Liberal de 1842, ocorrida nas províncias de São Paulo e Minas Gerais. Por trás das insatisfações alardeadas e utilizadas como bandeira política pelos revoltosos, estava o significado e a restrição que estas ditas leis acarretariam na administração e na ingerência dos negócios públicos, o que para eles, só acabaria com a dissolução do gabinete regressista empossado em 23 de março de 1841 e com a suspensão da lei de reforma do Código do Processo Criminal. A eclosão da dita revolta não se deu apenas por causa das chamadas leis opressoras e sim por toda uma rearticulação administrativa e jurídica que já vinha ocorrendo desde 1840 com a promulgação da Lei Interpretativa do Ato Adicional. Neste contexto de protesto e insatisfações no dia 17 de maio Rafael Tobias de Aguiar foi aclamado presidente interino da província paulista, 115 logo reconhecido pelas vilas de Itapetininga e Faxina, organizando-se então a Coluna Libertadora. Entre os revoltosos estava o ex-regente do império Diogo Antonio Feijó e o Senador Nicolau de Campos Vergueiro, integrantes da representação paulista que não foi recebida pelo Imperador. Como presidente interino, coube a Rafael Tobias montar toda uma máquina administrativa que lhe ajudasse a alcançar seus objetivos de se manter no poder. Nesse momento o principal objetivo de Rafael Tobias era o de conquistar a capital da província para logo depois destituir o presidente da província nomeado pelo governo imperial, o Barão de Monte Alegre. 115 O ingresso de Tobias na vida pública da Província Paulista se deu em 1821 quando de Sorocaba o enviaram a Itu e de Itu a São Paulo, no complicado processo de eleição de deputados as Cortes de Lisboa. Em 1827 foi conselheiro do Governo provincial, depois deputado provincial e geral várias vezes e presidente da Província paulista em 1831-1834 e em 1840-1841. Cf: ALMEIDA, Aluisio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944, p. 53. 178 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades No mesmo dia da conflagração sediciosa em Sorocaba, o Barão de Monte Alegre comunicou ao Cel. José Olinto, através de ofício, o fato ocorrido, ao mesmo tempo em que exigia auxílio militar para combater a sedição. Desde sua posse em janeiro de 1842, o Barão de Monte Alegre já vinha comunicando à Corte o clima de instabilidade e insatisfação que estava predominando na Assembleia Provincial Paulista, a ponto dele estabelecer algumas mudanças que agilizassem tanto a comunicação com a Corte, quanto evitassem o desvio das correspondências oficiais. De acordo com Eri Hörner (2010), a comunicação constante e recorrente era de fundamental importância dentro de toda província, independente da esfera administrativa. 116 Dessa feita, enquanto em Sorocaba era aclamado presidente interino da Província o rebelde Rafael Tobias de Aguiar, na Corte eram destinadas a Santos as primeiras tropas que iriam compor o Exército Pacificador. Seu comandante seria o Brigadeiro Luís Alves de Lima e Silva, o Barão de Caxias. O Barão de Caxias ausentou-se da Província do Rio de Janeiro no dia 19 de maio, chegando ao porto de Santos no dia 21 de maio, indo direto para a capital da província, a fim de organizar a tropa que iria combater os revoltosos que tinham planos de conquistar a capital da província paulista. Após vários embates travados entre os legalistas e as forças rebeldes no dia 21 de junho, o Barão de Caxias entrou vitorioso em Sorocaba a frente das tropas vitoriosas (VAINFAS, 2008, p. 648). Entre principais chefes rebeldes ficara na cidade o ex-regente Diogo Feijó que, depois de manter uma breve correspondência com o comandante do exército, entregou-se, indo preso juntamente com o senador Nicolau P. de C. Vergueiro para a prisão do Espírito Santo. Tendo assim suas imunidades parlamentares violadas. No entanto, Rafael Tobias desde o dia 15 de junho já tinha fugido rumo ao Sul do Império. Ele só foi preso em novembro de 1842, sendo levado um mês depois para o Rio de Janeiro onde ficou preso na Fortaleza Lage até 1844 (ALMEIDA, 1944, p. 197). Depois da retomada da capital sorocabana pelo Barão de Caxias, restava ainda dominar a revolta no Vale do Paraíba, entre Taubaté e Areias. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda (HOLANDA, 1972, p. 535), inspirados no exemplo de Sorocaba, os revoltosos da 116 Erik Horner nos chama a atenção para este fato, pois foi uma importante mudança de dinamização de troca de mensagens e informações entre províncias, o que era crucial quando se corria contra o tempo na tentativa de se antecipar algo ou alguém. Cf: HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838 – 1844). Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas, Universidade de São Paulo, SP, 2010, p. 110. 179 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades região de Taubaté e Areias aderiram ao combate. No entanto, no dia 24 de junho depois de intensa batalha travada as tropas legalistas conseguiram pacificar esta região. Depois desse combate, outro enfrentamento entre os revoltosos e legalistas se deu em Silveiras no dia 12 de julho. O ataque aos revoltosos que dominavam esta região ocorreu sob o comando do Capitão Manuel Antonio da Silva, oriundo do Rio de Janeiro. Mais uma vez os legalistas saíram vitoriosos. Após a batalha na cidade de Silveiras, o comandante Barão de Caxias já se encontrava em Taubaté, indo para a Cidade de Pindamonhangaba. Uma semana depois, o Barão de Caxias já desembarcava na Corte, tendo deixado a província paulista totalmente apaziguada. Sua missão tornou-se então a pacificação da província mineira que desde junho encontrava-se sublevada. Salvaguardando as peculiaridades locais de cada província e a diferença de quase um mês de sublevação de ambas, os motivos alarmados pelos revoltosos paulistas e mineiros para justificar suas atitudes eram os mesmos: dissolução do ministério regressista e sustação das leis promulgadas por eles. Não obstante, não podemos ignorar que em relação à província paulista a revolta liberal mineira assumiu proporções bem maiores, como por exemplo, de quarenta e dois municípios quinze aderiram à revolta. 117 Considerar também o tempo de duração da mesma revolta, que em São Paulo durou quase dois meses em Minas Gerais durou quase quatro meses. Dessa forma afirmamos que respeitando as diferenças já relatadas, consideramos as revoltas ocorridas em São Paulo e Minas Gerais como articuladas de forma a contribuírem para a definição e conformação das identidades políticas tanto dos regressistas quanto dos progressistas. Em Minas Gerais, a revolta começou em Barbacena, propagando-se para as localidades vizinhas. No dia 10 de junho, reuniu-se a Câmara de Barbacena, apoiada pela Guarda Nacional, sob a presidência de Manuel Ribeiro, aclamando como presidente interino o Tenente Coronel José Feliciano Pinto Coelho da Cunha, sobrinho do Marquês de Itanhaém, ex-tutor imperial. 118 Assumia a chefia militar da revolta mineira Antonio Nunes Galvão, alguns dias depois coadjuvado pelo político progressista Teófilo Ottoni. Em circular as 117 O autor Aluísio o de Almeida relata que foram quatorze Províncias: Barbacena, Pomba, São João del Rei, são José del-Rei, Larvras, Oliveira, Santa Bárbara, Queluz, Bonfim, Aiuruoca, Baependí, Sabará, Caeté e Curvelo. Cf: ALMEIDA, Aluisio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: livraria José Olympio Editora, 1944, p. 156. 118 Estavam presentes na Câmara os vereadores Pedro Teixeira de carvalho e Azevedo, Francisco de Paula Camilo de Araújo, Dr. Camilo Maria Ferreira, Lino José Ferreira Armonde e Joaquim Rodrigues de Araújo e Oliveira, secretariados por José Gonçalves Gomes e Souza. Desses vereadores quatros estavam suspensos de suas funções desde 10 de dezembro de 1841, por haverem assinado uma representação ao Imperador. Cf: ALMEIDA, Aluisio de. A Revolução Liberal de 1842. Rio de Janeiro: livraria José Olympio Editora, 1944, p. 151. 180 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Câmaras Municipais, o governo rebelde ordenava que se anunciasse por editais a não obrigatoriedade em obedecer às autoridades criadas pela Lei da Reforma do Código do Processo. Da mesma forma que substituiu os oficiais civis e militares, ao mesmo tempo em que criou um novo corpo de guardas municipais. Assim como o Barão de Monte Alegre escrevera e mandara um oficio a Corte informando da conflagração da revolta em Sorocaba; o presidente da província mineira Bernardo Jacinto da Veiga tomou a mesma medida informando ao ministro da justiça que se esperava em Barbacena algum plano dos deputados ali reunidos, para auxiliar os rebeldes de São Paulo (ALMEIDA, 1944, p. 151). Logo a notícia do levante de Barbacena chegou à Capital do Império. Honório Hermeto Carneiro Leão, presidente do Rio de Janeiro, mandou as primeiras forças em auxilio ao governo de Minas Gerais. O governo do Império também convocou a Guarda Nacional às armas, ao mesmo tempo em que cogitou ampliar o dispositivo legal do Código Criminal sobre os bens dos insurgentes. As adesões e combates podiam ser verificados em diferentes pontos, mas a grande batalha se deu em 4 de Julho em Queluz, local onde os insurgentes se aglutinaram. Nesse dia, os revoltosos comandados pelo Cel. Antonio Nunes Galvão, conseguiram com que os legalistas recuassem. Apesar da vitória alcançada no campo de batalha, houve um desentendimento entre os revoltosos quanto à marcha para Ouro Preto, capital da província. Eles decidiram ir para Sabará e depois para Santa Luzia. Nesse momento houve a mudança da presidência interina de José Feliciano a Teófilo Ottoni, um dos principais representantes do grupo liberal. Tendo mais uma vez cabido ao Barão de Caxias o comando das forças legalistas, na grande batalha final, ele empregou da mesma estratégia utilizada em São Paulo: tomar a capital o mais rápido possível, o que ocorreu em 6 de agosto. Nessa data, quase todos os focos de rebeldes já estavam praticamente pacificados. A batalha final se daria em Santa Luzia, no dia 20 de agosto. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, o exército legalista conseguiu vencer a batalha, pacificando a província mineira. Depois desses acontecimentos, foi enviado para dirigir a província Francisco José de Sousa Soares de Andréia, aliado ministério regressista. Os revoltossos mineiros foram presos e processados, no entanto o Tribunal do Juri que os julgou concedeu a todos liberade. Porem os chefes da revolta: Teófilo Ottoni e Camilo Maria Ferreira Armond foram enviados a pé para a prisão de Ouro Preto, onde ficaram até 1844, ano em que o Imperador decretou a anistia a todos os revoltosos. 181 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Enfim, a derrota da facção progressista para os regressistas em 1842, fez com que eles passassem a ser denominados de Luzias. Apelido que os acompanharia por toda a sua trajetória política; era a eterna lembrança de sua derrota. Em contraponto aos regressistas que conformaram a sua imagem e identidade em torno do projeto de centralização e conservação da ordem política e administrativa do Império do Brasil. Mais explicitamente em torno da aprovação e promulgação de leis que tivessem como principio a centralização como, por exemplo: a Lei Interpretativa do Ato Adicional de 1840, a Lei da Reforma do Código do Processo Criminal e a recomposição do Conselho de Estado ambas promulgadas em 1841. Neste contexto de rearticulação políticas, rearranjo de forças coube ao periódico O Brasil o papel de construir, elaborar e reforçar os princípios políticos que pudessem ser alinhados e agregados às identidades de ambos os grupos: regressistas futuros conservadores e progressistas futuros liberais. Pois, na medida em que Justiniano J. da Rocha defendia os princípios e idéias dos regressistas ele também delineava a identidade política pejorativa dos regressistas. Que nas páginas do O Brasil eram sempre denominados de facção, desordeiros, inimigos da ordem. Apesar do redator do O Brasil afirmar e construir toda uma rede argumentativa de que a causa maior da Revolta Liberal perpetrada em São Paulo e Minas Gerais não foi política, e sim movida pelo desejo de poder, mais uma vez reiteramos que não podemos apontar uma única causa e sim um encadeamento de acontecimentos políticos e administrativos que gerou o fim do debate; do esgotamento da palavra. O apelo às armas não foi a primeira opção de seus líderes, eles fizeram alusão a essa ação caso não conseguissem brecar os avanços das mudanças políticas e administrativas promovidas pelo grupo regressista, futuros conservadores. Como também temos que observar que a revolta se deu no limite entre os meios legais e ilegais quando da tentativa frustrada da deputação paulista. O que os revoltosos não esperavam era a pronta mobilização do governo em detê-los. Não podemos nos esquecer de que os líderes da Revolta Liberal, em Minas e São Paulo, eram homens que sempre estiveram envolvidos na direção do Estado. O seu principal interesse era não perder a autonomia provincial defendida ardorosamente por eles em seus discursos. Autonomia provincial criada e estabelecida através de intensas negociações políticas entre os partidos, que não queriam perder seus espaços de atuação através das mudanças estabelecidas pela Lei de Reforma do Código do Processo de 1841. Lei que representava o fortalecimento do poder central e do aumento de suas possibilidades de intervir nas províncias. 182 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades De acordo com Erik Horner (2010, p. 335), São Paulo e Minas Gerais estavam intimamente ligados à produção de gêneros alimentícios para o mercado interno do Império. Era o caso de Rafael Tobias, líder da revolta paulista. Ele mantinha negócios em diversas regiões da província de São Paulo e com os representantes comerciais estabelecidos na praça do Rio de Janeiro. Como já elaboramos no primeiro capítulo, a conformação da identidade partidária dos grupos políticos se deu no mesmo momento em que esses grupos se rearticulavam em torno de suas ideias e projetos de leis que estavam sendo discutidas e promulgadas na segunda metade do século XIX. Essas leis agregavam em si toda uma visão de mundo, que deveria predominar frente a outros projetos. Dessa feita percebemos que a Revolta Liberal de 1842 não foi um mero confronto armado e sim um confronto de projetos de ação política que, tendo esgotado todas as suas possibilidades ‘’legais’’, usou o recurso do apelo às armas, possibilitando o afloramento e melhor delineamento de identidades políticas que de certa forma já não comportavam mais seus novos significados. Era o momento crucial que requeria uma maior delimitação tanto dos campos de atuação quanto de redefinição de suas identidades políticas. Como já dissemos anteriormente, a Revolta Liberal de 1842 possibilitou muito mais a definição da identidade dos futuros liberais na medida, em que sua derrota para os conservadores fez com que eles passassem a ser apelidados de Luzias. Apelido altamente pejorativo, imbuído da eterna lembrança de sua perda. No entanto, apesar da identidade política do partido progressista ir se constituindo na unidade da perda, ainda assim podemos encontrar certa fragmentação desta identidade, na medida em que no âmbito nacional ainda não havia um discurso político que agregasse seus correligionários. Da mesma forma que a identidade política partidária regressista que também apresentava certa fragmentação. O que temos que perceber é que ao longo do processo de disputa e debates essas identidades vão sendo reformuladas e rearticuladas ao ponto delas produzirem novos significados e conformarem suas identidades políticas. FONTES O Brasil. RJ: Tipografia Americana, 1840 -1841. O Brasil. Tipografia Imparcial de Paula Brito, 1842 a 22 de abril de 1845. 183 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Aluisio de. A revolução liberal de 1842. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944. HÖRNER, Erik. Em defesa da Constituição: a guerra entre rebeldes e governistas (1838 – 1844). Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciência Humanas, Universidade de São Paulo, SP, 2010. HOLANDA, Sérgio Buarque de. (Dir.). História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difel, 1972. t. II, v.2. VAINFAS, Ronaldo (org) A Revoltas Liberais de 1842. In: Dicionário do Brasil Imperial (1822 -1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. 184 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades A Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ e a Licenciatura Curta em Estudos Sociais: implantação, resistência e defesa entre os anos 1973-1987 Thiago Rodrigues Nascimento * Resumo: Nos anos seguintes ao golpe civil-militar de 1964 ocorreram importantes modificações na política educacional brasileira, que podem ser observadas na Reforma Universitária (Lei 5.540/68 de 28/11/1968) e na Reforma do Ensino de 1º e 2º graus (Lei 5.692/71 de 11/08/1971). Reformas que abarcaram os diferentes níveis de ensino e que impuseram profundas mudanças na forma como se processavam a formação de professores e o Ensino de História até então vigentes. Foram criadas as licenciaturas de curta duração e a disciplina escolar Estudos Sociais substituiu a História e a Geografia no ensino de primeiro grau. Neste artigo, analisamos, a partir da trajetória do curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais, oferecido pela Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ (FFP) entre 1973 e 1986, o processo de implantação das Licenciaturas Curtas em Estudos Sociais, durante os anos 1970, e as discussões que levaram à gradativa extinção deste curso ao longo dos anos 1980 e 1990. Por meio dos currículos, ementas e depoimentos de ex-docentes desta instituição objetivamos compreender as nuances deste processo na FFP. Palavras-Chaves: Regime civil-militar; Estudos Sociais; formação de professores. Abstract: In the years following the civil-military coup of 1964, there were significant changes in the Brazilian educational policy that can be noted in the University Reform Law (Law 5.540/68 of 28.11.1968) and in Reform of Primary and Secondary School - First and Second Degrees - Law (Law 5.692/71 of 11/08/1971). These reforms encompassed different levels of education and imposed profound changes in teacher’s training and in History teaching at that time. There were created new degrees on short-term courses and the discipline "Social Studies" has replaced both History and Geography in primary education. This article analyzes, from the trajectory of the Short Term Course for the Degree in Social Studies, offered at the Faculdade de Formação de Professores of São Gonçalo / RJ (FFP) between 1973 and 1986, the process of implementation of Short Term Courses for the Degree in Social Studies during the 1970’s, and the discussions that led to its gradual extinction over the 1980’s and the 1990’s. The study aims to apprehend the particularities of this process in FFP through analysis of curricula, summaries of disciplines and testimonials from former teachers of this institution. Key Words: Civil-military regime; Social Studies; Teacher training. Neste artigo apresentamos em linhas gerais aspectos da pesquisa que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A partir da trajetória do curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais, oferecido pela Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ (FFP), entre 1973 e 1986, analisamos o processo de implantação das Licenciaturas Curtas em Estudos Sociais, durante os anos 1970, e alguns aspectos das discussões que levaram a gradativa extinção deste * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGHS/UERJ). Bolsista da Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). 185 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades curso ao longo dos anos 1980 e 1990. Por meio dos currículos, ementas e depoimentos de exdocentes desta instituição objetivamos compreender as nuances deste processo na FFP. A formação de professores, fruto das políticas públicas em educação, passou nas últimas décadas, por dilemas, lutas, mudanças e impasses (MESQUITA e FONSECA, 2006, p. 334). A discussão sobre a formação de professores na legislação educacional tem ocupado um importante lugar nas pesquisas de historiadores e educadores ao longo das últimas duas décadas. A historiadora Flávia Eloísa Caimi (2001, p. 99) adverte que “nenhum período histórico recebeu tantas críticas no que se refere às políticas educacionais implementadas pela ação governamental quanto a do chamado Regime Militar [1964 – 1985]”. Clarice Nunes (2004, p. 351) destaca que: a ditadura militar instaurada no país a partir de 1964, sob a justificativa da necessidade de modernização econômica da sociedade, operou uma intervenção de grande envergadura no sistema educacional brasileiro, atingindo todos os seus níveis de ensino (primário, médio e superior), todos os seus ramos (acadêmico e profissional) e o seu funcionamento, através de medidas de reestruturação administrativa, planejamento, treinamento de pessoal docente e técnico. Após o golpe civil-militar de 1964, que derrubou o presidente João Goulart, se processaram importantes modificações na política educacional brasileira, que podem ser observadas na Reforma Universitária (Lei 5.540/68 de 28/11/1968) e na Reforma de Ensino de 1º e 2º graus (Lei 5.692/71 de 11/08/1971). Segundo Elza Nadai (1993, p. 157), “modificações legais impuseram ainda profundas transformações no projeto de formação de professores que vinha sendo realizado, tornando-o de ‘curta duração’, pobre em conteúdo científico, aligeirado e polivalente”. Negou-se à História o seu caráter autônomo, a partir da inclusão dos Estudos Sociais, componente curricular que integrava a História e a Geografia, no currículo do Ensino de 1º grau e a diminuição da carga horária da disciplina no Ensino de 2º grau. De acordo com Caimi (2001, p. 42), sob a alegação de que havia uma demanda social e educacional pela formação do professor polivalente, capacitado a ministrar todos os conteúdos subsumidos pela genérica denominação de Estudos Sociais, proliferaram cursos de licenciatura curta em diferentes regiões do Brasil. Em 18 de abril de 1969, amparado pelo Ato Institucional n° 5, decretado em dezembro de 1968, o governo autorizou, através do Decreto-Lei n° 547, a organização e funcionamento dos cursos profissionais superiores de curta duração (FONSECA, 2010, p. 26) 119. A 119 Em 1948, o primeiro projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, já previa a criação de cursos de curta duração para formação de professores, “a fim de minimizar a demanda em relação à oferta”. “É importante, também [destacar], que a idéia – e mesmo a experiência – do curso superior de curta duração não é tão nova no Brasil. Os cursos de curta duração, no país, surgiram no final do século XIX nas áreas de 186 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades “proliferação de cursos de licenciatura curta” não significou o fim dos cursos de Licenciatura Plena em História e Geografia. Contudo, muitos cursos surgiram ou se estruturaram para atender as demandas colocadas pela Lei 5.692/71. Este é o caso do curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais da Faculdade de Formação de Professores de São Gonçalo/RJ (FFP). A FFP tem sua origem na década de 1970 com a criação, pelo Poder Público Estadual, conforme Lei n° 6.598 de 20 de agosto de 1971, da Fundação Centro de Treinamento de Professores do Estado do Rio de Janeiro – CETRERJ que se constitui na sua primeira mantenedora. O objetivo inicial desta instituição era o aperfeiçoamento e atualização do professorado da rede estadual de ensino. De acordo com Ana Cléa Ayres (2005, p. 73) “para abrigar o CETRERJ foi construída uma estrutura física bastante ampla, em uma área de 40.850 metros quadrados, localizada no bairro do Patronato” em São Gonçalo. Na estrutura deste Centro foi criada a FFP que, segundo esta pesquisadora, passou a funcionar em setembro de 1973, oferecendo as Licenciaturas Curtas em Estudos Sociais, Ciências e Letras. Neste sentido, a faculdade foi estruturada em quatro departamentos: Educação, Letras, Ciências Exatas e da Natureza e Estudos Sociais, sendo os três últimos responsáveis pelo curso correspondente, e o primeiro responsável por oferecer as disciplinas pedagógicas a todos os [outros] cursos (AYRES, 2005, p. 73). Em 1975, com a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, a FFP passou a pertencer à Fundação Centro de Desenvolvimento de Recursos Humanos da Secretaria de Estado de Educação e Cultura do Rio de Janeiro – CDHR. O reconhecimento dos cursos foi feito pelo Decreto Federal n° 79.679/77 de 10 de maio de 1977, com base no Parecer n° 243/1976 do Conselho de Estadual de Educação do Rio de Janeiro. Mais tarde, em consonância com a legislação então em vigor, os cursos foram convertidos em Licenciaturas Plenas mediante processo próprio de plenificação 120. No período que compreende os anos de 1973 a 1985, a FFP ofereceu o curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais. A partir de 1986 o Curso de Estudos Sociais se converte em Licenciatura Plena com habilitação em História e Geografia121. E, no início dos anos noventa ocorre a separação definitiva entre os cursos de História e Geografia. engenharia, medicina e direito com o objetivo de formar mão de obra para tarefas específicas”. Entretanto, estes cursos funcionaram por pouco tempo. Ver: FERREIRA, 1982, p. 06. 120 O termo “plenificação” aparece na documentação de reconhecimento do curso de Licenciatura Plena em Estudos Sociais com Habilitação em História e Geografia, e se refere ao processo de transformação da licenciatura curta para plena. 121 Parecer número 751/85 do CEDERJ e pela Portaria Ministerial número 264 de 23 de abril de 1986. 187 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades O primeiro currículo a que tivemos acesso foi implantado a partir de 1979. Este currículo de Licenciatura Curta em Estudos Sociais se estruturava em cinco períodos letivos onde estavam distribuídas as disciplinas de conteúdo específico (História e Geografia) – ministradas pelo Departamento de Estudos Sociais – e as disciplinas pedagógicas – oferecidas pelo Departamento de Educação (Dedu). Com o objetivo de formar professores polivalentes, habilitados a ministrar os diversos conteúdos agregados nos Estudos Sociais, o currículo era extenso, para o período de duração do curso (cinco períodos), e ao mesmo tempo superficial, na medida em que englobava diferentes disciplinas de História e Geografia, além de disciplinas relativas à Sociologia, Antropologia, Política e Economia 122 . De acordo com uma das professoras do curso ministrado na FFP, estes aspectos não impediam que se construísse com o futuro professor uma postura profissional diferenciada: Acho que ser professor é uma coisa muito séria, muito difícil, muito bonita. É como médico, um médico pode matar ou salvar e um professor também. Um professor trabalha com crianças, adolescentes que estão em formação, então aquilo que você passa [e] faz é muito importante para ele. Ainda mais para quem trabalha com Ciências Humanas, você trabalha com formação de opinião, com conteúdos que são vivenciados em nosso dia a dia. Postura profissional é muito importante. Era isso que queria passar para os alunos da FFP, uma visão crítica daquilo que você está estudando. Você não quer apenas transmitir, você quer que aquele outro construa o seu próprio conhecimento, isso que eu acho que é importante. Por isso é difícil ser professor... Mas ninguém substitui um bom professor, porque é ele que faz o aluno construir seu próprio conhecimento, você dá a base para o aluno fazer isso. Mas construir o conhecimento, crítico, reflexivo, analítico, que ele queira buscar mais, que ele queira saber mais (Professora Dalva). 123 O curso de Licenciatura Curta em Estudos Sociais, com uma carga horária reduzida, se comparada com a Licenciatura Plena, formava professores habilitados a ministrar diferentes disciplinas escolares. Esta formação aligeirada descaracterizava o conteúdo específico das disciplinas da área de Ciências Humanas, ao englobar em um mesmo curso conteúdos de História, Geografia, e Sociologia, dentre outras áreas do conhecimento, formando professores “com carga horária teórica reduzida, embasada em métodos e técnicas de ensino, mas com pouca ênfase nos conteúdos” (MIMESSE, 2007, p. 195). Os anos 1970 foram marcados pelos acirrados debates em torno da manutenção ou extinção deste tipo de licenciatura. O governo 122 A Resolução n° 8, de 9 de agosto de 1972 estabelecia como currículo mínimo, para a Licenciatura de Estudos Sociais as áreas: História, Geografia, Ciências Sociais, Filosofia, Ciência Política, Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e as obrigatórias: Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB), Educação Física e a área pedagógica. Quanto à duração, as licenciaturas curtas e longas deveriam ser de respectivamente, 1.200 horas (equivalente há um ano e meio) e 2.200 (três anos). FONSECA, 2010, p. 27. 123 Neste trabalho utilizaremos trechos dos depoimentos de dois docentes que atuaram como Chefe e Sub-chefe do Departamento de Estudos Sociais nos anos 1970 e 1980. No trabalho final trabalharemos com um número maior de entrevistas. Entrevista realizada com a professora Dalva das Graças Fernandes de Sá, em sua residência, no dia 12/11/2010. A professora autorizou a transcrição e a utilização de sua entrevista para fins acadêmicos. Professora, formada em Filosofia, lecionou por mais de duas décadas na FFP/Uerj nas licenciaturas curta em Estudos Sociais, Plena em História, Plena em Geografia. 188 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades militar insistia na manutenção do curso, enquanto as associações de professores de História e Geografia (Associação Nacional de História/Anpuh e Associação dos Geógrafos do Brasil/AGB) se organizavam e defendiam a extinção das licenciaturas curtas em encontros e publicações. Déa Fenelon (1984) considera o ano de 1976 como marco na luta contra os Estudos Sociais 124. A autora argumenta que, Estava visível ao observador menos atento o total fracasso da implantação de Estudos Sociais nas instituições de ensino superior, especialmente no setor privado, encarregado de suprir a maior parte da demanda que se supunha existir para este tipo de formação: faculdades fechavam portas, umas após outras, ou seus cursos de Estudos Sociais, por absoluta falta de interesse nessas licenciaturas, curtas ou plenas (FENELON, 1984: 16 – grifos nossos). No entanto, a professora Dalva das Graças Fernandes de Sá, professora da FFP entre 1977 e 2000 nos relata que “quando entrei [na faculdade], as salas eram grandes, as turmas eram grandes, chegavam ter 60/70 alunos. Tive pelo menos duas turmas grandes (...)”. No ano de 1977, o curso contava com um total de 256 alunos matriculados nos cinco períodos 125 ,o que demonstra interesse dos alunos por tal formação. O perfil deste aluno, de acordo com a professora Dalva, caracterizava-se pela busca de um diploma para permanecer lecionando, isto é, o professor leigo que já atuava no magistério, mas não possuía formação específica e diploma 126 . No caso da instituição em análise o declínio pela procura da Licenciatura Curta em Estudos Sociais ocorrerá somente a partir dos anos 1980. De acordo com Caimi (2001, p. 43), A despeito de toda a repressão e censura a que foram submetidos durante o regime militar, os professores de História, especialmente os que se mantiveram ligados ao meio acadêmico, conseguiram revitalizar o debate que se iniciara antes de 1964. O ensino de História, a exemplo de outras áreas do conhecimento, fez da década de 1980 a Era do Repensando. Desde o final da década de 1970, com o clima de abertura política do regime militar, ocorrera uma rearticulação dos movimentos sociais e profissionais. No que concerne à História, os anos 1980 foram marcados pelos debates em prol da extinção dos cursos de Estudos Sociais em faculdades e universidades, pela reivindicação do 124 De acordo com Fenelon (1984), pode-se dividir este processo em dois momentos principais: 1) As medidas que possibilitaram a implantação dos Estudos Sociais nos diferentes níveis de ensino acarretam de imediato a necessidade de reação das áreas atingidas por tais reformas (p.16), uma luta que só se mostrava organizada e sistematizada quando emergiam questões concretas, como concursos públicos para ingresso no magistério. 2) A partir, de 1974, a luta que estava restrita as Ciências Humanas, amplia “a área de abrangência do movimento”, através da criação Licenciatura de Curta duração em Ciências (Resolução n° 30 do Conselho Federal de Educação). 125 Dados disponíveis no trabalho de OLIVEIRA, 1978. 126 Segundo a depoente: “Tinha alunos muito mais velhos que eu na época, por que eram justamente professores já lecionavam e que precisavam de um diploma de um curso superior para poder lecionar aquelas matérias. Então naquela época acho que foi um imediatismo muito grande, como eu vou explicar isso para você? Por exemplo, eu vou estudar isso por que preciso deste diploma....”. 189 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades retorno das disciplinas de Geografia e História nas escolas de ensino fundamental e “pelas discussões de questões teórico-metodológicas relacionadas ao ensino e à pesquisa de história e da história como disciplina escolar, para e na formação de professores” (MESQUITA e ZAMBONI, 2008, p. 133). Novo embate ocorreu em agosto de 1980, quando o Conselheiro Paulo Nathanael tornou público parecer de sua autoria que propunha mudanças na Licenciatura em Estudos Sociais (NADAI, 1988, p. 13). O parecer propunha um novo currículo para a Licenciatura em Estudos Sociais, “com habilitações plenas de História, Geografia, Educação Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil”. Na prática, o conselheiro sugeria a extinção dos cursos de História e Geografia, que eram cursos avulsos (GLEZER, 1982, p. 121). Diante da reação ao parecer, expressa em certa medida nos documentos coletados por Glezer (1982), o conselheiro acabou retirando o projeto, alegando que se tratava de um “estudo preliminar” (NADAI, 1988, p. 13). As associações científicas de geógrafos e historiadores, AGB e Anpuh, “assumiram o discurso no sentido de por fim aos cursos superiores de Estudos Sociais, licenciaturas curtas e plenas, do país” (MESQUITA e ZAMBONI, 2008, p. 134) 127 . Durante o XII Simpósio da Anpuh, realizado em Salvador, em 1984, é aprovada uma moção pela extinção dos Estudos Sociais baseada nos seguintes termos: a - pela extinção das licenciaturas curtas e plenas de Estudos Sociais e suas habilitações no ensino de 3º grau; b – pela redistribuição do conteúdo e da carga horária de OSPB entre as disciplinas de Geografia e História; c – pela substituição de Estudos Sociais por Geografia e História, nas quatro séries finais do ensino de 1º grau, em qualquer condição que seja ministrada e, consequentemente, a necessária ampliação da carga horária. (Apud FENELON, 1984, p. 19). A partir de 1982, com o retorno das eleições diretas para os governos estaduais e a vitória de partidos de oposição à ditadura em muitos estados, iniciou-se um processo de reformulação curricular e dos objetivos do ensino de História. Segundo Ilka Miglio de Mesquita e Selva Guimarães Fonseca (2006, p. 335), a partir deste momento, os princípios da política educacional da era militar passaram a ser superados e tornou-se imperioso o resgate do papel da História nos currículos, tanto na formação do profissional docente, quanto na disciplina nas escolas de Ensino Fundamental e Médio. A “Era do Repensando”, usando a expressão de Caimi (2001), foi marcada pela reestruturação dos currículos dos Cursos Superiores de Estudos Sociais e das Licenciaturas 127 Para um balanço da atuação da Anpuh na luta contra os Estudos Sociais ver a entrevista da professora Déa Fenelon a pesquisadora Selva Guimarães (FONSECA, 2006: 75 – 87). 190 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades em História. Na FFP ocorre uma reforma curricular que põe fim ao currículo adotado a partir de 1979 e ao curso de Licenciatura curta em Estudos Sociais, estabelecendo a Licenciatura Plena em Estudos Sociais com habilitação em História e em Geografia. O secretário de Educação, do Estado do Rio de Janeiro, Darcy Ribeiro, vice-governador durante o primeiro governo Leonel Brizola, decretou o fim da Licenciatura Curta em Estudos Sociais no Estado do Rio de Janeiro em 1984 128 . Se, nas diferentes Unidades da Federação, como demonstra o grande número de manifestos e panfletos de repúdio a Licenciatura em Estudos Sociais, publicado na Revista Brasileira de História (GLEZER, 1982), os debates eram acirrados, esta discussão parece não ter tido muita força no Departamento de Estudos Sociais da FFP. Vinculada a diferentes instâncias do governo do estado do Rio de Janeiro, entre a sua fundação e a incorporação à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a estrutura que vigorou na FFP até o final dos anos oitenta, era a dos professores horistas, isto é, recebiam pelas aulas ministradas. Sobre suas atividades, a professora Dalva destaca que: A única coisa que posso dizer para você é que éramos professores horistas. Então não tinha aquela coisa de você realizar trabalhos fora de sala de aula, não tinha não. Você ia para a Faculdade apenas para dar aula e ganhava em função da sua carga horária. A Uerj não, aí você já tinha um plano de carreira em que se podia ser professor 20 ou 40 horas. Então, tinha uma determinada quantidade de tempo dedicado à sala de aula e a outra para você fazer pesquisa, ter conversas com seus orientandos, participar de projetos de pesquisa, é bem diferente. Mas quando eu entrei lá, como professora, o curso de Estudos Sociais era horista, a gente ganhava de acordo com a quantidade de aulas ministradas... Através do depoimento desta professora, fica explícito que até a vinculação à Uerj, o espaço de discussão para além da sala de aula era limitado, para não dizer inexistente. Em 1980, a FFP passou a ter outra mantenedora, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ, permanecendo nesta estrutura até 1987 quando foi incorporada definitivamente à UERJ. Desta forma, anos 1980 foram caracterizados pela instabilidade pela qual passava a instituição, isto é, a instabilidade quanto ao futuro e manutenção da FFP como centro de formação de professores. Esta questão ocupava o centro das discussões entre os professores do Departamento de Estudos Sociais. A professora Dalva argumenta que “a questão da manutenção da Faculdade pesava mais...”. Paralelamente a esta questão, os professores do Departamento constroem um discurso sobre a formação em Estudos Sociais. Neste sentido, os antigos docentes defendem que esta era, e talvez continue sendo, o melhor tipo de formação. De acordo com a professora Dalva, 128 Fonte: Atas do Departamento de Estudos Sociais, ano 1984, p. 55. 191 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Lutamos muito pela interdisciplinaridade e não conseguimos. Eu acho que perdeu mesmo, e é uma pena. O objetivo era a integração e isso ficou estanque (...) Na época dos Estudos Sociais, por ser um curso menor, isso acontecia. Tínhamos mais contato, apesar de ir para dar duas aulas só. Os próprios professores. O Neymar [um os primeiros docentes do curso] tinha muito de História, neste aspecto de sentar com a gente e combinar as coisas, discutir as questões da História ligadas a Geografia. Porque como você formava professores de História e Geografia as coisas já estavam meio que interligadas, e quando houve a separação dos cursos cada grupo de professores foi para um lado... O curso de Estudos Sociais dava uma maior margem para esta integração porque você formava para atuar nas duas áreas. O professor Almir da Silva Oliveira 129 , um dos fundadores da Faculdade e professor, que durante os anos iniciais de sua carreira lecionou como leigo, argumenta que é melhor um professor com formação aligeirada do que um que não tenha formação alguma. E vai além ao defender a integração, em sua opinião, existente entre a História e a Geografia, nos cursos de Estudos Sociais. A licenciatura curta tinha como principal objetivo suprir a carência e a falta de professores, a falta de mão-de-obra. Então, entre ter um professor leigo e ter um professor formado na licenciatura curta, era dez vezes melhor o de licenciatura curta. E teve um efeito muito bom porque se espalhou este programa da licenciatura curta pelo Brasil todo, em vários estados, principalmente no Nordeste, que passaram a ter as faculdades de licenciatura curta com um custo operacional mais barato do que a licenciatura plena, o fator econômico foi preponderante nisso, na proliferação da licenciatura curta e depois dava a chance do cara que fez a licenciatura curta de completar a sua formação estudando mais um ou dois anos se formando na licenciatura plena, aí o governo remunerava melhor, ele tinha mais chances, além de adquirir mais conhecimentos. Acho que a licenciatura curta foi maravilhosa, uma criação que revolucionou, acabou praticamente com o professor leigo (aquele que ia lá dentro de sala e dizia “Olha, não sou professor não, me pediram para vir aqui dar uma aula para vocês”). A licenciatura curta foi um caminho certo... Não entendia (e ainda não entendo) como um professor de História podia ser professor de História sem saber Geografia (...) diziam que professor de História é um e professor de Geografia é outro, não, não é, é o mesmo, as ciências se completam. Chega ali a diante e elas se encaixam... Assim, num momento em que historiadores de diferentes regiões do país e a Anpuh defendiam firmemente o fim desta licenciatura, os professores da FFP se mostram pouco sensíveis a este debate e ainda hoje defendem esta formação como a mais completa em termos de interdisciplinaridade, por exemplo. Se o curso formava um professor polivalente, o formador deste profissional possuía uma perspectiva polivalente como fica evidente na fala do professor Almir: “não se pode admitir que um professor só entenda determinado assunto”. Com a vinculação da FFP à Uerj, instituição que não oferecia o curso de Estudos Sociais, “permitiu ao corpo docente da FFP reavaliar suas atividades a fim de reestruturar-se 129 Entrevista realizada com o professor Almir da Silva Oliveira, em sua residência, no dia 24 de fevereiro de 2011. O professor autorizou a transcrição e a utilização de sua entrevista para fins acadêmicos. Bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense, onde também obteve o grau de Mestre em História da América em 1978. 192 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades internamente, adequando-se aos padrões vigorantes na Universidade que passou a integrar” (Apud Parecer 116/94). FONTES Entrevistas: Professora Eliane Riffald Almeida Ribeiro. Entrevista concedida em 11 de novembro de 2010. Período em que lecionou na FFP: 1978 – 2003. Professora Dalva das Graças Fernandes de Sá. Entrevista concedida em 12 de novembro de 2010. Período em que lecionou na FFP: 1977 – 2000. Professor Almir da Silva Oliveira. Entrevista concedida em 24 de fevereiro de 2011. Período em que lecionou na FFP: 1973 – 1993. Legislação principal: BRASIL. Decreto n° 79.679, de 10 de maio de 1977. Concede reconhecimento aos cursos de Estudos Sociais, de Letras e de Ciências da Faculdade de Formação de Professores, com sede na cidade de São Gonçalo, Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1970-1979/D79679impressao.htm>. Acesso em: 17 de abril de 2011. RIO DE JANEIRO. Lei ° 6. 597, de 20 de agosto de 1971. Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro. DISPÕE sobre a criação do CETRERJ. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AYRES, Ana Cléa B. M. Tensão entre matrizes: um estudo a partir do Curso de Ciências Biológicas da Faculdade de Formação de Professores/UERJ. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, UFF, 2005. CAIMI, Flávia Eloísa. Conversas e Controvérsias: o ensino de História no Brasil (1980 – 1998). 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Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, UFF, 1978. 194 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Imprensa e abolição: Vassouras e a crise do trabalho escravo (1885 – 1888) Vinícius Gomes da Silva* Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar como a imprensa da cidade de Vassouras cidade localizada na parte sul da província do Rio de Janeiro – participou e se comportou mediante o advento do processo histórico que culminou com a lei Áurea (1888), libertando os escravos do cativeiro no Brasil. A cidade de Vassouras é escolhida por ser importante pólo do café no Brasil, possuindo diversas fazendas e, com isso, um plantel numeroso de escravos, além de contar com uma importante bibliografia acerca de sua história. O recorte temporal deste trabalho está situado entre os anos de 1885 a 1888, além de a década de oitenta do século XIX ser, para boa parte dos historiadores do tema, o momento em que o movimento pela abolição ganha maiores proporções, lutando agora contra a legitimidade da posse escrava. Entendendo ser o jornal um importante veículo formador de opinião, possibilitando a compreensão não somente da opinião dos jornalistas, mas da sociedade vassourense, ou pelo menos de um substrato dessa sociedade. Palavras-Chaves: Imprensa; Abolição; Vassouras. Abstract: This paper aims to analyze how the press of Vassouras - a town in the south of province of Rio de Janeiro - participated and acted on the historical process that led to the Lei Áurea (1888) that freed slaves in Brazil. The city of Vassouras is chosen due to its role as a center of coffee plantations region in Brazil, with several farms and, therefore, with a large number of slaves, and also because of the relevance of research held on the town’s History. The chronological frame of this work is situated between the years 1885 and 1888, which was, for most of the historians, when the movement for abolition gained major proportions, in fighting against the defense of legitimacy of slave ownership. The analysis highlights the role of the newspaper on public opinion production, what enables the understanding of opinion of journalists, and also of one part of Vassouras' society. Key-words: Press; Slavery Abolition; Vassouras. Muitos são os trabalhos historiográficos relacionados ao tema da abolição do trabalho escravo no Brasil, mas em grande parte, estes trabalhos têm por referência a cidade do Rio de Janeiro, ou importantes cidades cafeeiras da província de São Paulo. Este artigo busca promover uma análise de como esse debate ocorreu na região que compreendia a cidade de Vassouras, importante região de produção de café, que no período mais efervescente do debate abolicionista, e que culminou com a Lei Áurea 1888, passava por um momento de decadência econômica, mas que nem por isso deixou de ser um centro importante do debate abolicionista, pois ainda possuía um enorme contingente de trabalhadores em condições de escravos. * Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social da Faculdade de Formação de Professores da UERJ (PPGHS-UERJ). 195 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades I - Vassouras: Breve história sobre a “Princesa do Vale” Segundo o historiador Flávio dos Santos Gomes, até fins do século XVIII, a região de Vassouras tinha sido escassamente povoada. A área era ocupada por algumas pequenas roças e pequenos ranchos na beira das estradas e dos caminhos que cortavam a região, servindo como trilha para tropeiros provenientes das zonas auríferas de Minas Gerais, sendo local de abastecimento de tropas de mulas que ali passavam com gêneros de primeira necessidade. O rápido povoamento da região de Vassouras deu-se, principalmente, nas primeiras décadas do século XIX, determinado pela expansão cafeeira, para qual contribuíram a exaustão das regiões auríferas de Minas Gerais e a eliminação de grupos indígenas que habitavam a região (Gomes, 1995). O surgimento e desenvolvimento da cidade de Vassouras foi algo bastante peculiar, em 1819 funda-se a vila de Valença e em 1833 a vila de Vassouras. Em 1857, já então em seu auge, Vassouras foi elevada à condição de cidade. Como especificidade, Vassouras concentra o núcleo urbano mais importante do Vale no período do Império, com grandes fortunas, grandes fazendas e numerosa população escrava, tendo por consequência a concentração também de boa parte da camada superior da boa sociedade imperial (Salles, 2008). Apesar de grande proeminência econômica e social, Vassouras passou por diversos momentos de instabilidade social, devido principalmente ao seu enorme contingente de mãode-obra escrava. A década de 30 foi marcada por atos de violência entre senhores e escravos, sendo o mais importante do período o Levante de Manoel Congo em 1835, com participação estimada de 400 escravos de duas fazendas da região. Em outros diversos momentos, a cidade de Vassouras e região, sofrem com esses diversos levantes, tentativas e até mesmo, especulações. Em 1848 houve a notícia de uma tentativa de “insurreição geral dos escravos do município”. Nas décadas de 50 e 60, os temores revigoraram, sendo em 1856 na cidade de Vassouras e em 1865 em Valença, Paraíba do Sul e Barra Mansa. Em 05 de agosto de 1854, fazendeiros alarmados de Vassouras, deliberaram sobre a nomeação de uma “Comissão Permanente”, recomendações e instruções que visavam combater possíveis surpresas, como insurreições parciais. A propriedade escrava nasceu concentrada em Vassouras, abastecida por cativos africanos num curto período de tempo, mantendo-se concentrada e disseminada até períodos próximos ao fim da escravidão, sendo uma diferença de Vassouras para as demais regiões, a maior concentração de cativos por parte dos megaproprietários, proprietários com um número 196 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades superior a 100 escravos, mesmo que essa concentração não fosse resultado de uma concentração “qualitativa” de mão-de-obra escrava (Salles, 2008). Além da questão da concentração da mão-de-obra, outro fator peculiar na história de Vassouras, fator este resultado da pesquisa do historiador Ricardo Salles, é a questão da reprodução natural positiva dos plantéis de escravos na região. Em finais da década de 1860, surge em Vassouras um novo perfil para escravidão, os plantéis e as comunidades de senzala passaram a tender à estabilidade, sendo nessa situação, um maior ganho de segurança para as famílias de cativos, fosse pela pressão que os próprios cativos exerciam em sua defesa contra a lógica de mercado, lógica essa que tendia a concentrar a mão-de-obra escrava com idades entre 13 e 49 anos, idade produtiva para o trabalho e que também era facilitado pelo grande fluxo proporcionado pelo intenso tráfico internacional de escravos, fosse porque passaram a ser mais valorizadas pelos senhores como base para a expansão ou manutenção numérica dos plantéis. Os casamentos ou uniões estáveis entre os escravos de Vassouras eram uma realidade que repousava, por um lado, sobre o cada vez maior equilíbrio entre os sexos e a maior estabilidade dos plantéis e, por outro, resultava em um número crescente de filhos entre estes cativos. Todo este processo de crescimento da população cativa de forma natural na região de Vassouras é, possivelmente, acompanhado de melhoria nas condições de vida dos escravos, principalmente, a partir da extinção do tráfico internacional de escravos. Com isso, tem-se a percepção de que a lei de 28 de setembro de 1871 teve impacto sobre uma região escravista que, mantidas as condições sociais e demográficas engendradas durante a década de 1860, apresentava plenas condições de se auto-reproduzir de forma estável, sem grandes aportes externos de mão-de-obra por um longo tempo. A lei de 1871 ocorreu num momento em que a cidade de Vassouras ainda vivia um período de prosperidade, mesmo já sofrendo um declínio na produção de café. Segundo Ricardo Salles, a fusão de seus interesses, no caso da cidade de Vassouras, com o Estado Imperial, que havia alicerçado a expansão da classe senhorial a partir da década de 1840, começou a se desfazer. Em face da montante opinião pública, nacional e internacional abolicionista, os senhores do sudeste não conseguiram evitar a aprovação da lei, sendo projetada pela primeira vez para os fazendeiros da região de Vassouras e também do restante do Império, uma lei que determina um prazo para o fim da escravidão. A partir de 1880 a cidade de Vassouras passa para uma fase de decadência, que já havia dado seus indícios anteriormente, como no caso da diminuição da produção de café e sua perda de influência, como classe senhorial, para com a política Imperial. Mas ainda sim, 197 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades esta região é detentora de numerosos plantéis de escravos, remanescentes desta fase gloriosa e importantes senhores de escravos, totalmente ligados no debate que ocorre sobre a extinção do trabalho escravo no Brasil. II- Imprensa e abolicionismo Apesar de serem objetos diferentes e possuidores de histórias também diferentes, principalmente, no que se refere ao final do século XIX e, mais especificamente, às décadas de 1870 e 1880, tanto a imprensa, quanto o movimento abolicionista, ganharam contornos na história do Brasil, na qual ambos estarão intimamente ligados, proporcionando desenvolvimento para ambos e promovendo uma transformação que abalará as bases de uma instituição que se parecia já consolidada, a escravidão. A imprensa tem seu “nascimento” no Brasil somente no século XIX, mais especificamente em 1808, com a vinda da Família Real para o Brasil e a criação da Imprensa Régia. Segundo Humberto Machado (2008), antes da década de 1870 e, mais especificamente, na década de 1880 no Brasil, não se pode afirmar que a imprensa seja uma instituição forte e capaz de fomentar uma opinião pública, adquirindo, assim, poder de interferir nas decisões da sociedade do momento. Porém, o que se percebe, é que ela sofre alguns “surtos” de crescimento, como no momento da independência do Brasil, com o aumento significativo no número de periódicos a circularem no Brasil. Outro momento de crescimento e desenvolvimento da imprensa no Brasil foi à década de 1860, em que os jornais brasileiros, especialmente os da Corte, podiam exprimir-se livremente. Com o início da década de 1870, a imprensa no Brasil alcança um desenvolvimento muito grande, que só tende a aumentar com o passar do tempo, sofrendo uma drástica mudança e passando a exercer uma função cada vez mais atuante e poderosa na sociedade brasileira. Segundo Marialva Barbosa (1996), diversos são os fatores que proporcionam essa nova fase da imprensa no Brasil, tendo como principal veículo os jornais, mas também proporcionando a produção de revistas, folhetins e outras publicações. A autora também afirma que essas transformações foram mais intensamente sentidas na cidade do Rio de Janeiro, capital do Império. O jornal neste período era lido em voz alta nas rodas noturnas familiares e, pelo menos, quatro pessoas tomavam conhecimento do conteúdo de um único número, sendo o jornal possuidor de muito mais ouvintes que leitores. Suas diversas ilustrações possibilitavam um parcial entendimento da informação por parte de pessoas analfabetas; os textos literários, que cada vez mais tomavam espaço nos periódicos, também eram uma forma de 198 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades popularização destes jornais; histórias infantis e artigos sobre moda atraíam cada vez mais o público jovem e as mulheres; e os espaços reservados às queixas do cidadão, que poderiam ser dirigidas tanto a instituições, como para outras pessoas, promoviam um campo extremamente vasto de leitores e ouvintes desses jornais, acrescentando-se dos já antigos leitores oriundos das elites e dos militares, somando-se agora os militares de baixa patente. Com essa amplificação do espaço de influência dos jornais, a leitura desses periódicos passa a se tornar cada vez mais um hábito para uma parte das pessoas, tornando-se muito frequente nos bondes, nas casas, nos trens, nas calçadas, compondo as horas livres do dia. Toda a vida intelectual passou a ser dominada pela grande imprensa que se constituía na principal instância de produção cultural. Cria-se uma verdadeira “opinião pública” urbana, que ansiava pela orientação dos homens de letras (Barbosa, 1996). A partir de 1880 os diários do Rio de Janeiro se constituíram em verdadeiras “fábricas de notícias”, cuja principal função era, sem dúvida, formular e sedimentar ideologias 130. Seu discurso visava à legitimação do próprio poder público e da perpetuação das classes dominantes. Sempre destacando a importância do progresso, da civilização, da disciplinarização, visava informar, mas, sobretudo, orientar a opinião pública, sendo seu objetivo sempre atingir o leitor, angariando assim, cada vez mais poder (Barbosa, 1996). Com todo esse aparato, o sucesso desses periódicos foi algo visível nesta sociedade, buscando para si diversos títulos como protetor e fiscalizador. Valorizaram notícias de violência e questões do cotidiano, exatamente por que agradava cada vez mais os leitores. Outro tema que foi amplamente discutido pelos jornais, principalmente na década de 1880 e que, nesse caso, promoveu benefícios para ambos, tornando-os cada vez mais populares, foi o discurso abolicionista. Segundo Humberto Machado, o discurso abolicionista foi capaz de formar dois campos opostos na imprensa do Brasil. Enquanto uma parte queria romper o “dique da escravidão” de diferentes formas e por diferentes motivos, outros insistiam na sua preservação. Já a autora Marialva Barbosa afirma que, os temas abolicionistas e republicanos desenvolvidos nos periódicos surgidos no decorrer de 1870 a 1889, prepararam terreno para 130 “ A ideologia é, assim, uma forma de dominação, gerando uma falsa consciência ilusória, que se produz através de mecanismos pelos quais se objetificam certas representações (as da classe dominante) como sendo a verdadeira realidade, tudo isso produzindo uma aparente legitimação das condições existentes numa determinada sociedade em um período histórico determinado. Produz-se com isso uma forma de alienação da consciência humana de sua situação real de existência (as relações de produção). A ideologia é produto de uma estrutura social profundamente desigual, e portanto não-transparente, já que esta desigualdade não pode explicitar-se no nível da consciência. Evitar que isso aconteça é tarefa da ideologia”. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora. 11º edição, 2007, pág 236. 199 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades um novo jornalismo que seguirá os passos da polêmica até a primeira década do século XX, sendo a campanha em prol da abolição um movimento urbano popular, que atingiu vários segmentos da sociedade. Entrando no tema abolicionismo, segundo Robert Conrad o primeiro golpe sério contra a escravidão no Brasil, só ocorreu em 1851 e 1852, pela supressão do tráfico africano, quando, então, a sua fonte de abastecimento foi cortada. Apesar de ser um marco na história do fim da escravatura no Brasil, a lei Eusébio de Queirós (1850), que extingue de vez o tráfico transatlântico de escravos, não foi obra repentina ou uma suposta ação do movimento abolicionista brasileiro, mas, sim, ocorreu devido a pressões estrangeiras. Pressões essas promovidas, basicamente, pela coroa britânica. Foram, mais ou menos, quarenta anos de campanha contra o tráfico internacional de escravos no Brasil, sendo negociados diversos tratados com o governo do Brasil e de Portugal entre 1810 e 1826, tendo sido todos eles recebidos com grande relutância por parte dos governantes brasileiros (Conrad, 1979). Em 1831, o governo Regencial decreta uma lei proibindo o tráfico negreiro para o Brasil, declarando livres os escravos que aqui chegassem e punindo severamente os importadores. Apesar da ameaça de pesados castigos, tanto para importadores quanto para os compradores, o tráfico continuou entre 1831 a 1848, sendo fortemente combatido por incursões britânicas nos portos do Império, ocasionando a captura e destruição de diversos navios negreiros brasileiros, até mesmo em águas territoriais brasileiras. Enfrentando ameaças à navegação legal do Império, com conflitos militares e mesmo um bloqueio de portos brasileiros, o governo do Império foi obrigado, em julho de 1850, a ceder ante as exigências britânicas em troca da promessa de suspender os ataques navais (Conrad, 1979). Como efeito quase que imediato da supressão do tráfico internacional de escravos para o Brasil, surge a migração forçada dos escravos brasileiros oriundos das regiões norte, oeste e extremo sul, rumo às plantações do sudeste, basicamente os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, para alimentar a expansão da lavoura do café. Tal fato acorre, essencialmente, pela maior capacidade financeira dos plantadores de café, em concorrência com outros brasileiros, por uma mercadoria que se tornou escassa. Algumas propostas para solucionar essa escassez de mão-de-obra ou, pelo menos, tentar manter plantéis com número razoável de escravos foram levantadas, como a tentativa de promover a reprodução natural, tendo como o exemplo os Estados Unidos. Tal solução fracassou em quase todos os lugares, sendo Vassouras, como foi exposto anteriormente neste trabalho, segundo o historiador Ricardo Salles, uma das exceções a conseguir êxito nesta empreitada. Outras soluções também foram propostas como, a promoção da imigração 200 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades chinesa, europeia e africana, sendo a imigração, até pouco tempo antes da abolição, uma alternativa que nunca conseguiu se desenvolver suficientemente no que se refere a satisfazer as necessidades de mão-de-obra das plantações. A década de 1860 é permeada de diversos acontecimentos que vão influir diretamente na escravatura brasileira. Externamente, a libertação dos escravos nos Impérios português, francês e dinamarquês; a libertação dos servos russos em 1861 e a Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865). Em 1865, apenas a Espanha, com suas colônias de Cuba e Porto Rico, acompanhava o Brasil como uma importante nação escravocrata. Internamente, o desenvolvimento de um movimento emancipacionista significante; o evento que ficou conhecido como o “caso Christie”, rompimento diplomático com a Inglaterra, que resultou numa represália britânica a navegação brasileira e um bloqueio naval de seis dias na cidade do Rio de Janeiro; e talvez o grande acontecimento desta década que é a Guerra do Paraguai (1864 – 1870), que retarda o debate sobre as leis emancipacionistas na década de 1860, mas promove mudanças drásticas na sociedade brasileira (Conrad, 1979). A partir da década de 1870, surgem debates sobre a legitimidade da escravidão e o direito a indenização da propriedade escrava. Nesse momento, em alguns lugares, passa-se a perceber a escravidão como uma empresa de risco. Áreas cafeeiras do oeste paulista surgem no cenário nacional como violentas, acreditando-se que o motivo para este fato seja a região receber massas de escravos desenraizados, provenientes do tráfico interprovincial. Segundo Evaristo de Moraes, a lei de 28 de setembro (lei do Ventre Livre), fora posta em execução em meio a tremendas apreensões dos que lhe tinham combatido o projeto e das exageradas esperanças dos que a haviam preparado e defendido perante o corpo legislativo e a opinião pública. O perigo com a insurreição geral de escravos, desordem e anarquia social não aconteceu. Por outro lado, a marcha da libertação gradual que a lei confiara ao fundo de emancipação e a generosidade dos particulares se revelava lenta e ineficaz. A intenção da lei Ventre Livre, era estabelecer um estágio de evolução para um sistema de trabalho livre, sem causar grande mudança imediata na agricultura ou nos interesses econômicos. Fora planejada para re-estabilizar a vida econômica e social do país; para corrigir os estragos que a disputa sobre a escravatura infligiria na agricultura; para restaurar a confiança dos plantadores e para revitalizar o crédito agrícola (Moraes, 1986). Segundo Joaquim Nabuco, a terceira fase do movimento de libertação escrava - a qual ele classifica como o verdadeiro abolicionismo e que incide no combate direto ao direito de posse, contra a legalidade e legitimidade da escravidão, quando realmente se busca dar liberdade a esses escravizados - inicia-se em 5 de março de 1879, no seu viés parlamentar, 201 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades que precedeu a popular. A verdade é que na década de 1880, o movimento em prol do fim da escravatura no Brasil toma contornos irreversíveis, que culminaram com o fim da escravidão no Brasil. Já descontentes com as consequências causadas pelo tráfico interprovincial e a lei Rio Branco, que causaram escassez de mão-de-obra, além de fazer cair o preço dos escravos e torná-los uma mercadoria não lucrativa, alguns fazendeiros do norte do Brasil começaram a se colocar opostos à escravatura, sugerindo reformas que pudessem atrair a população ociosa. A seca, particularmente séria no Ceará, causara um aumento incisivo no fluxo de escravos fora da província, sendo tais fatores catalisadores do rápido emancipacionismo da província cearense, tendo como principais atores, os jangadeiros de Fortaleza, que se recusaram a transportar os escravos, mas também houve forte apoio popular. Além do Ceará, destacam-se como províncias que desenvolveram rápido movimento abolicionista, o Amazonas e o Rio Grande do Sul (Conrad, 1979). A década de 1880, na verdade, é marcada por uma cada vez maior adesão ao movimento em prol da abolição e também de uma reação cada vez mais violenta e opressora dos ainda remanescentes proprietários escravocratas, que tinham a intenção de proteger os interesses da grande lavoura, principalmente, a do café, da qual eles julgavam ser totalmente depende da mão-de-obra escrava africana. Em 1883, surge a Confederação Abolicionista, criada na redação da Gazeta da Tarde, no município da Corte, com o objetivo de unir os já diversos movimentos abolicionistas espalhados pelo Império. Em agosto de 1883, o Manifesto da Confederação abolicionista, escrito por André Rebouças e José do Patrocínio, foi lido perante quase duas mil pessoas no teatro D. Pedro II do Rio de Janeiro. A partir de 1884, o abolicionismo da capital do Império tomou pela primeira vez o caráter de movimento de massas. Também na mesma data, a província do Ceará praticamente aboliu a escravidão. Cidadãos das classes média e superior mostram-se particularmente ativos no movimento, bem como o vasto setor imigrante, composto por alemães e italianos, manifestando-se opostos a escravatura. Províncias do norte, além de Goiás, Paraná e Rio Grande do Sul, têm o espocar de grupos ligados ao interesse de acabar com a escravidão do Império. Cidades com grande concentração de escravos e propriedades voltadas para o mercado externo sofrem cada vez mais com os ataques dos grupos abolicionistas e com a rebeldia cada vez maior dos escravos. Todo este movimento tem por consequência, provocar a ira e a insatisfação dos proprietários de terras e escravos, que buscam proteger seus bens e direitos, imprimindo forte e violenta repressão. A criação do Centro de Lavoura e Commercio foi uma demonstração de 202 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades oposição ao crescimento do movimento em prol da abolição, sendo clara a resposta de que a reação pró-escravatura não ia ficar somente nas declarações de políticos. Essas associações agrícolas que foram criadas, principalmente, as da região Centro-Sul, funcionavam como poderosos grupos de pressão, dirigindo suas petições às autoridades públicas contra o movimento abolicionista, defendendo agora a Lei Rio Branco, antes motivo de suas insatisfações, e agora vista como a única solução para a questão da escravatura. Devido a esta forte pressão em torno do tema da emancipação da escravatura, em 1884, tem-se início o Ministério Dantas, cujo objetivo principal era dar uma solução ao problema da escravidão no Brasil. A escravidão nesse momento já era rejeitada por boa parte da opinião pública, sendo defendida ativamente apenas por uma pequena parte da população, que era, basicamente, os proprietários ligados a lavoura do café. O Projeto do ministério Dantas, não foi recebido com muito entusiasmo pelos que eram verdadeiramente comprometidos com a causa abolicionista, sendo também alvo de duras críticas dos escravocratas. O Projeto Dantas tinha como medidas para resolver o problema da escravatura a libertação dos escravos acima de sessenta anos, com a obrigação por parte dos senhores de sustentar esses libertos em troca de alguns serviços gratuitos; acabar com o tráfico interprovincial; introduzir novo registro nacional, libertando os escravos que não fossem registrados; estabelecer valores máximos para a tabela do fundo de emancipação; promover deslocamento de mão-de-obra escrava das cidades para a zona rural, através do aumento de impostos; aumentar a atuação do fundo de emancipação; promover a obrigação dos emancipados de ficarem determinado tempo na região em que viviam, para evitar a fuga de mão-de-obra; e promover incentivos para que emancipados e ingênuos, se tornassem donos da terra em que trabalhavam. No ministério do Barão de Cotegipe, político conservador, promulgou-se a lei dos Sexagenários (1885), favorável aos interesses escravocratas, em sua maior parte. Sendo classificada como uma lei complexa e retrógrada pelos abolicionistas, ela, inicialmente, cumpre com seu objetivo, que é o de frear o ímpeto do movimento de libertação. Mas apesar de relativo sucesso, no que se refere a frear o movimento abolicionista, este sucesso torna-se passageiro e muito curto. O início de 1887, marca a derrocada da escravidão enquanto instituição e regime de trabalho. Os escravos não mais estavam dispostos a se submeterem a tratamentos que lembrassem a escravidão, sendo este período marcado por forte violência e repressão. Este momento também é o de maior exposição dos abolicionistas, principalmente, devido à 203 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades conjuntura mais favorável. Abolicionistas, além de incitar fugas, passam a escoltar os fugitivos até um lugar de refúgio, sendo, principalmente, a cidade de Santos, com seu imenso quilombo do Jabaquara, o principal refúgio (Machado, 1994). O movimento de fugas e abandono do eito de trabalho por parte dos escravos provocou mudanças significativas no quadro político, econômico e social do Império, em meados de 1887. Uma das modificações mais expressivas foi a rápida transformação da província de São Paulo, que como citado anteriormente, era um dos berços da resistência à abolição, em emancipacionista, incluindo aí seus fazendeiros e políticos, todos dispostos a conceder a liberdade aos seus escravos. O emancipacionismo dos fazendeiros de São Paulo, não deve ser entendido como um ato de generosidade, mas, sim, uma tentativa de defender interesses econômicos ameaçados; um esforço bem sucedido para apanhar as migalhas de um sistema em desintegração. A fuga dos escravos, mais do que a chegada dos italianos, convenceu, finalmente, os senhores de São Paulo de que o momento de libertação chegara. Sua inserção às fileiras do movimento abolicionista foi tardia, mas significou a rápida conversão das outras províncias (Conrad, 1979). Os únicos defensores importantes da escravatura em 1888 eram o ministério Cotegipe e os fazendeiros da província do Rio de Janeiro. Esta resistência da província do Rio se deu pelo fato dos escravos nessa região ainda serem numerosos e, também, porque os fazendeiros tinham empobrecido. O valor nominal de escravos excedia o valor das terras e, assim, a abolição ameaçava os fazendeiros, particularmente os do Vale do Paraíba, da ruína financeira (Conrad, 1979). [A lei de 13 de maio] “limitou-se a reconhecer e confirmar um fato preexistente, evitando com esse reconhecimento as maiores perturbações e desordem, se não terríveis calamidades. A emancipação estava feita no dia em que os ex-escravos recusaram marchar para o eito e começaram o êxodo das fazendas. A lei confirmou-a, deu-lhe sanção dos poderes públicos, mas sem a lei não deixaria de ser um fato que se impunha contra todas as resistências”, ponderava o Jornal do Commercio em outubro de 1888 (Castro, 1997). III- Nas colunas do Vassourense Na década de 1880, o principal meio de comunicação a circular na cidade é o jornal. Como principal jornal da cidade no período e objeto de análise deste artigo, destaca-se o jornal “O Vassourense”, fundado em 1882 por Lucindo Filho. Apesar da importância do jornal “O Vassourense”, esse não era o único jornal da cidade. O jornal cita em uma de suas edições, no ano de 1885, à existência de mais seis jornais na cidade, sendo eles “O Porvir”, 204 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades “Labaro”, “Canario”, “Quinzena”, “Tentamen” e “Beija Flor”. Lucindo Filho era o redator e também o proprietário do jornal “O Vassourense”, sendo além de jornalista, médico, musicista, poeta, professor e político. Sua atividade jornalística começou em 1873, quando fundou o periódico “O Município”, e só findou com sua morte, ocorrida em 1896. Exerceu diversos cargos públicos, entre eles o de suplente de Juiz Municipal e de Órfãos, de jurado no tribunal do júri e de delegado de polícia substituto (Martins, 2007). “O Vassourense” possui diversas características, características essas que demonstram, o quanto este periódico estava atrelado ao desenvolvimento da imprensa jornalística do período. Essas características são o papel de fiscalizador, o de intermediário entre o público e o poder, o de defensor dos fracos e oprimidos; ligado intimamente à política, política essa, não só restrita à cidade de Vassouras, mas atenta ao que ocorre na política Imperial da década de 1880; também separa espaços para histórias, no mínimo curiosas, demonstrando as formas de pensamento desta sociedade e seus preconceitos; além de fazer a parte comercial com editais e propaganda de produtos e serviços. Embora busque uma pretensa neutralidade e imparcialidade, ao promover debates em relação à cultura do café, ao trabalho realizado por mão-de-obra escrava e à política exercida por parte daqueles que estão no poder, o jornal “O Vassourense”, por intermédio de seus redatores, deixa escapar algumas de suas preferências e prováveis soluções, as quais acreditam ser mais eficazes. Suas posições não são estáticas, apoiando ora uma posição, outrora outra e, às vezes, duas ou mais posições diferentes. Isso demonstra quão variadas eram as soluções propostas para a resolução da crise do fim do século XIX e que, apesar de supostamente apenas uma ter triunfado, a imigrantista, outras propostas foram levantadas. Nos debates desenvolvidos pelo “O Vassourense”, percebe-se certa inclinação à questão da colonização por parte do trabalhador nacional livre, principalmente os ex-escravos. Algumas colunas do periódico foram designadas para demonstrar os benefícios da manutenção da mão-de-obra já existente na localidade, sempre com o argumento de que como não é mais possível manter a escravidão, que pelo menos esse trabalhador permaneça na região, evitando a escassez de braços para o trabalho. Apesar da intenção de se aproveitar o trabalhador nacional, o projeto de colonização européia também foi defendido pelo periódico, que lhes dedica amplos espaços. Muito se fala sobre a província de São Paulo, delegando a ela os maiores êxitos na política de atração do imigrante europeu. Mas também há exemplos da província do Rio de Janeiro, da Corte e de Minas Gerais. 205 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades Além da questão de colonos nacionais ou imigrantes, o jornal também destaca outros fatores como a lei dos Sexagenários e suas atribuições, a data do pagamento dos impostos relativos à posse de escravos, a busca da modernidade, algo que muitos acreditavam ser difícil de conquistar tendo a escravidão como regime de trabalho. Também é de se destacar a importância de se desenvolver uma educação “profissional” para as classes menos favorecidas, que incluía os cativos, item este que para alguns abolicionistas era um fator de suma importância; além da proposta de desenvolver outras culturas, como a cana, o trigo e a uva, diversificando a produção brasileira, que para muitas sofria com o exclusivismo da cultura cafeeira. Há de se estranhar no periódico, a falta de relatos sobre fugas em massa e abandono do eito de trabalho com recusa a retornar, mesmo nos anos de 1887 e 1888, onde boa parte da historiografia sobre o tema afirma ser um período de instabilidade na organização do trabalho nas lavouras do Centro-Sul do Império. Pode-se pensar que a região viveu certa “paz” neste momento de crise, ou certa omissão do jornal em publicar esses casos, sendo este um fator a se analisar. Com o aproximar do fim da década de 1880 e a certeza, cada vez maior, do fim da escravatura, um ato que era muito comum por parte dos senhores de escravos, sendo utilizado como válvula de escape e auxiliando, de certa forma, no controle da escravaria, a concessão de liberdade, ou a entrega de cartas de alforria, tomam uma nova proporção e um novo sentido. Nos anos de 1887 e, principalmente, no início de 1888, elas crescem de forma assustadora em números e torna-se agora uma conquista ou, às vezes, uma única saída para o proprietário, deixando o seu caráter de concessão. Com a abolição cada vez mais próxima, muitos acreditavam ser ela a única maneira de segurar essas pessoas no local de trabalho, outros acreditavam que era a coisa certa a se fazer e muitos não viram outra opção, pois mesmo se negasse a carta, essas pessoas já haviam conseguido a sua liberdade “na marra”. O jornal “o Vassourense” e a própria sociedade da cidade de Vassouras, não passam imunes a esta “avalanche” de liberdades, sendo o jornal um portal para anunciar as abolições que ocorrem na região e no entorno. Sempre tomada como algo positivo e digno de festa, o periódico publica esses casos de forma entusiástica e coloca-as como exemplo a ser seguido pelo restante da sociedade. Com a proximidade do 13 de Maio, o periódico passa a praticamente fazer propaganda abolicionista, de forma moderada, espaços são cada vez mais dedicados à causa da abolição e até se apela para o lado humano das pessoas. No periódico do dia 13 de maio, fica declarado o apoio do jornal ao fim da escravidão no Brasil. Nesta edição ele declara as etapas que a lei 206 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades percorreu e a possível assinatura da lei ainda no mesmo dia ou quem sabe no dia seguinte, sendo este ato, um ato que levará a nação a aspirar ares de “civilização moderna”. E exatamente no dia 20 de maio de 1888, o jornal publica a tal calorosa e interessante Lei áurea, que pôs fim à escravidão no Brasil. Conclusão Este trabalho, através do periódico “O Vassourense”, buscou entender como essa sociedade reagiu, e mais precisamente, como se posicionaram determinados grupos desta sociedade, ante ao fato da crise da escravatura e seu possível fim. Se analisarmos somente os jornais publicados em 1888, mais exatamente entre os meses de março e maio, fica muito fácil responder essa pergunta. O jornal é amplamente favorável à questão da abolição, dedicando enormes espaços de suas publicações à defesa da causa, enaltecendo cada cidadão que comete um ato de generosidade, ao libertar um escravo do cativeiro. Mas tendo acesso ao periódico desde o ano 1885, encontramos em suas colunas, alguns anúncios que dão notícias sobre escravos fugidos, venda de escravos e reuniões do Club de Lavoura, onde os interesses mais nobres são o de manutenção da propriedade e da riqueza para as elites já existentes. Essas características não condizem com o movimento abolicionista que Joaquim Nabuco dirigiu; com as idéias de José do Patrocínio; com as atitudes tomadas pelos periódicos da província do Ceará, ou com a campanha promovida pela Confederação Abolicionista no Rio de Janeiro e o movimento Caifaz em São Paulo. Demonstrando assim, um caráter emancipacionista no sentido de apoiar a abolição devido a sua inevitabilidade, não colocando em questão, outros fatores de suma importância, como o futuro deste enorme contingente de pessoas, ou especificamente falando, como inserir e melhorar a condição de vida desses agora “libertos”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Marialva. Imprensa, poder e público (os diários do Rio de Janeiro – 1880 1920). Tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense: Niterói, 1996. CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CASTRO, Hebe Mattos de. Laços de família e direitos no final da escravidão. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (org.). História da vida privada no Brasil, v. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 207 II Seminário de História Social: Relações de Poder e Identidades CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil. 2º ed.. 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