Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e - Sem

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Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e - Sem
Alétheia – Revista de
Estudos sobre Antiguidade e
Medievo
Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ISSN: 1983-2087
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Alétheia – Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo
Volume 2/2, julho a dezembro de 2011
ISSN: 1983-2087
www.revistaaletheia.com
EXPEDIENTE
Conselho Editorial
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Maria Beatriz Borba Florenzano (USP)
Maria José Coscolla (Universidad de Buenos Aires - UBA)
Norberto Luiz Guarinello (USP)
Renata Senna Garraffoni (UFPR)
Imagem da capa: São Zenão exorcisando a filha de Galieno, de Fra Filippo Lippi (1455-60).
Galeria Nacional de Londres, Reino Unido.
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Sumário
Artigos
O Cristianismo e o Império Romano: tópicos sobre mobilidade espacial, identidade étnic a e
hibridismo cultural – Ludimila Caliman Santos ......................................................................... 4
Alexandre, uma visão plutarquiana a respeito dos bons costumes e de uma possível verdade
em história – Amanda da Cunha Conrado .............................................................................. 19
Estoicismo e magia em Medéia, de Sêneca - Erick Messias Costa Otto Gomes e Suiany Bueno
Silva ........................................................................................................................................ 27
Os perigos da navegação e a morte no mar: as representações dos poetas (séculos VIII ao VI
a.c) – Camila Alves Jourdan .................................................................................................... 41
Romanitas e hibridismo cultural na tripolitânia romana: a civitas de Oea segundo o
testemunho de Apuleio de Madaura - Belchior Monteiro Lima Neto ..................................... 50
El león y el asno en Phaed. 1.21: ¿inversión o mantenimiento de prototipos? Beatriz Carina
Meynet................................................................................................................................... 58
Eusébio de Cesaréia e a História Eclesiástica: um discurso identitário acerca da ortodoxia via
alteridade de heresias – Elisana Ribeiro Oliveira e Rosana Brito da Cruz ............................... 74
Tragédia, religiosidade, política e comunicação: uma análise da representação heroica na
pólis – Poliane da Paixão Gonçalves Pinto............................................................................. 83
Concepções sobre o Oriente Medieval: a erudição histórica de Ibn Khaldun (1332-1406) e
Michael Ducas (1400-1462) – Elaine Cristina Senko................................................................ 96
Lições de ‘Fisiologia’ – pelo médico-filósofo Empédocles de Agrigento – Rodrigo Siqueira
Batista, Andréia P. Gomes e Romulo S. Batista .................................................................... 105
El lector de La Odisea: Memoria e Identidad en Benhard Schlink – Marcela Ristorto y Clara
Racca .................................................................................................................................... 112
Resenhas
ASSMAN, Jan. Religion and Cultural Memory: ten studies. Translated by Rodney Livingstone.
Stanford: Stanford University Press, 2006 – Dênis Correa .................................................... 125
SAILOR, Dylan. Writing and Empire in Tacitus. Cambridge: Cambridge University Press, 2008 Willian Mancini .................................................................................................................... 129
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O CRISTIANISMO E O IMPÉRIO ROMANO: TÓPICOS SOBRE MOBILIDADE
ESPACIAL, IDENTIDADE ÉTNICA E HIBRIDISMO CULTURAL (SÉC. I-III)
Ludimila Caliman Santos1
Resumo: as temáticas sobre mobilidade espacial, formação de identidades e hibridismo
cultural têm despertado, nos últimos anos, bastante interesse não somente dos
pesquisadores do mundo pós-moderno, mas também daqueles que, como nós, se
debruçam sobre a compreensão do contexto sócio-cultural do mundo Antigo e
Medieval. Tendo isso em vista, nosso objetivo é fazer um breve debate no que concerne
à mobilidade espacial, etnicidade e hibridismo cultual no Império Romano. Para isso,
fizemos um estudo de caso do movimento cristão, em suas várias facetas, a fim melhor
elucidar o contexto imperial romano seguindo uma datação que se inicia no final do
século I até fins do século III.
Palavras-chave: Império Romano; Cristianismo; Hibridismo; Etnicidade.
Résumé: La thématique sur mobilité spatiale, la formation des identités et de l'hybridité
culturelle ont attiré ces dernières années, un intérêt considérable non seulement par des
chercheurs de monde post-moderne, mais aussi ceux qui, comme nous, ont abordé la
compréhension socio-culturel du monde ancienne et médiévale. Dans cet esprit, notre
objectif est de faire une brève discussion concernant la mobilité spatiale, l'ethnicité et de
l'hybridité de culte dans l'Empire romain. Pour cela, nous avons fait une étude de cas du
mouvement chrétien dans ses différentes facettes, afin de mieux élucider le contexte
impériale romaine après une rencontre qui débute à la fin du siècle jusqu'à la fin du
troisième siècle.
Mots-clé: L'Empire romain; Le christianisme; L'hybridité; Ethnicité.
No espaço geográfico do Império, no tempo Alto Imperial, houve mais emigração do
que imigração (HARRIS, 1999, p. 71). Um dos motivos esta no fato de o Império
Romano ser visto por alguns como um El dourado. Com uma identidade bastante
positivada, o Império, principalmente durante Pax Romana, era identificado como um
local em que se podia prosperar e viver em paz. 2
De acordo com Nova (2010, p. 280) a decisão de imigrar é basicamente a prova que
demonstra a capacidade que alguns indivíduos apresentam para solucionar os problemas
cotidianos de sobrevivência. Deste modo, a imigração se apresenta como uma
1
Ludimila Caliman Campos é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História Social das
Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo sob a orientação do Prof. Dr. Gilvan
Ventura da Silva. A doutoranda está desenvolvendo um projeto com o seguinte título: Devoção popular,
hibridismo cultural e conflito religioso: a emergência do marianismo no Império Romano (séc. II-V). O
projeto é financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
2
O século II ficou conhecido como um período de Pax Romana, definido por alguns autores como o
“Século de Ouro” ou como o “Império Humanístico” (PETIT, 1989).
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ferramenta eficaz a qual alguns levam a cabo dado à inexistência de algum recurso
(NOVA, 2010, p. 280). É possível identificar diversos motivos específicos que levavam
as pessoas a se deslocar para o Império e dentro dele. As famílias podiam se mudar a
fim de buscar melhores terras para o cultivo; muitos indivíduos saiam de suas terras a
fim de praticar a pirataria; alguns transitavam pelo Império por conta das práticas
comerciais que iam desde produtos alimentícios até agenciamento de escravos. Como
um impacto generalizado do imperialismo no século II, observou-se um grande
deslocamento espacial de pessoas das zonas rurais para as cidades (SCHEIDEL, 2004,
p. 64). Tais indivíduos traziam consigo aspectos da memória de suas localidades e
identidades étnicas próprias. Tudo isso modificou cidades como Roma, Antioquia,
Alexandria e Atenas, ao se tornarem grandes centros cosmopolitas. Este contexto
expressa a complexidade da sociedade imperial na qual imperialismo e mobilidade
espacial tornaram-se indissociados.
Sobre esse assunto, Scheidel (2004, p. 66-67) pontua que o imperalismo abriu terras
para desapropriação; criou novas fronteiras tanto de controle quanto de integração;
incentivou o reassentamento organizado; possibilitou a aquisição de milhões de
escravos estrangeiros, com verbas fruto das próprias conquistas militares e da
centralização política.
Com a mobilidade espacial, a sociedade imperial tornou-se, de certa forma,
cosmopolita. O cosmopolitismo denota a ideia de uma comunidade mundial na qual as
relações entre os indivíduos transendem as fronteiras de um Estado (MATHISEN,
2006). Na sociedade cosmopolista, as pessoas devem seguir um conjunto de regras
básicas para que todos os seus integrantes gozem daquilo que consideram como paz,
justiça, equidade e dignidade. 3
A utilização dos termos “cosmopolitismo e “cidadania mundial” já estavam presentes
na Antiguidade nas filosofias helenísticas dos seculos IV e III a.C. Diógenes, por
exemplo, afirmou que ser “um cosmopolita” era ser “um cidadão do mundo”. Os
estóicos acreditavam que o mundo inteiro constituia-se em uma única cidade verdadeira.
No Império Romano, no início do seculo II d.C., o filósofo estóico Epíteto também
falou de ser um cidadão “do mundo” (MATHISEN, 2006).
Uma das características de uma sociedade cosmopolista, a qual Roma pode ser
identificada, é a presença de poliglotas. Segundo Mattingly e Hitchener (1995, p. 10), os
estudos onomásticos têm apontado para um aumento do número de poliglotas nas
colônias romanas do norte da África, por exemplo.
Outro ponto digno de nota está no fato de que a maioria daqueles que circulavam
livremente no Império assim faziam pois eram cidadãos romanos. De fato, a mobilidade
espacial era uma característica do cidadão romano, sendo que a circulação de pessoas no
Império é um estatuto de cidadania. Ao longo do tempo, a média de freqüência de
deslocamento dos cidadãos romanos aumentou notavelmente.
3
Na sociedade atual este conjunto de regras, A Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi criado
em 10 de dezembro de 1948 pela ONU.
5
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Em Roma, o conceito de cidadania estava relacionado, quando referente a cidadania
individual, a capacidade de uma determinada pessoa de exercer direitos e cumprir
deveres políticos e civis, bem como a distinção entre aquele que possuíam essa
qualidade e os que não a possuíam (GARDNER, 2002). Nos primeiros séculos do
Império Romano, a cidadania denotava o status ocupado por uma elite que gozava de
certos direitos (no ambito público e privado), privilégios e obrigações asseguradas pela
lei. Os não-cidadãos, geralmente, permaneciam sujeitos aos sistemas legais das
comunidades provinciais provenientes. Com o tempo, a cidadania romana pôde ser
adquirida, por meio da compra, na integração do exército ou em conselhos municipais
(MATHISEN, 2006). Tal direito poderia ainda ser herdado. Ser cidadão romano era
motivo de grande honra e mérito. De fato, o estatuto de cidadania pode ser
compreendido como um objeto portador de significados e identidades capaz de servir
eficazmente como fonte para a compreensão de um ethos. 4
O cosmopolitismo no Império foi legitimado politicamente com o Edito de Caracala
(Constitutio Antoniniana de Civitate) de 212 d.C. Elaborado pelo imperador Marco
Aurélio Antonino (121-180) a fim de simplificar a administração pública, com o
aumento da arrecadação dos impostos e a inscrição de soldados nas legiões, tal decreto
concedeu cidadania romana a todos os moradores do orbe romano – com exceção dos
bárbaros vencidos, reinstalados no Império como colonos agrícolas e escravos
(GONÇALVES, 2006).
Vale frisar que todas as manifestações de cidadania puderam fornecer elementos
unificadores. Tais promoveram cooperação social e de identificação a fim de evitar uma
divisão racial, religiosa, bem como filiações étnicas (MATHISEN, 2006). A cidadania
romana, em especial, forneceu formas de identidade pessoal que não se restringiram a
população de uma determinada localidade.
Deste modo, integrando uma multidão de estrangeiros ao corpo de cidadãos romanos,
o Edito acabou por beneficiar os estrangeiros ao permitir-lhes imigrar livremente para
além das fronteiras e viver sob a égide de Roma. Mais do que isso, quando, por
exemplo, um visigodo tornava-se cidadão romano, este poderia migrar para a Sardenha
ou Egito e adquirir a cidadania local também. Assim, nenhum núcleo de habitação era
tão pequeno que não pudesse abrigar o mundo romano inteiro, se fosse necessário.
Além disso, a cidadania romana, mesmo depois de 212, continuou a desempenhar um
papel vital na definição da identidade pessoal e legal, constituindo um fator importante
de integração social, étnica e religiosa.
Com o fluxo de pessoas das mais variadas regiões do o Império, havia três tipos de
identificação com a cidadania romana. O primeiro grupo era de habitantes do orbe
romano, principalmente da elite provincial e romanos de etnia. Tais não se sentiam
cidadãos de determinada província, ou distrito, mas cidadãos do mundo. Unidos por
uma lealdade comum, eles compartilhavam o direito comum que os vinculavam a um
4
O conceito de ethos (advindo do grego – ética, hábito, costume e harmonia), nos estudos sociológicos, é,
basicamente, uma espécie de síntese dos costumes de um povo. Largamente utilizado para a compreensão
dos hábitos, sob o prisma social e cultural, tal conceito está presente nos estos das identidades sociais.
6
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mesmo Império (HERSCHEL, 1909). O segundo grupo era composto por pessoas que
não se identificaram como “cidadãos romanos”, mas, como cidadãos de suas respectivas
cidades e províncias, pois, muitas vezes, o vínculo étnico local era mais forte que o
Imperial (MATHISEN, 2006). Normalmente, essas pessoas compunham as camadas
médias e mais baixas da sociedade, muito ligadas aos aspectos tradicionais da cultura
regional. Há ainda um terceiro grupo paradigmático o qual transitou pelos dois
supracitados. Advindo da elite ou mesmo das camadas médias e baixas da sociedade,
esses foram os cristãos, caso quer será analisado logo a seguir.
Em um contexto de cosmopolitismo, percebeu-se, também um aumento do
individualismo. Pensamento defendido pelos filósofos epicureus, o indivíduo não era
mais considerado um membro inseparável do Estado, mas independente dele. Em uma
sociedade cosmopolita e heterotópica, com e de intenso fluxo de filosofias e pessoas,
cada cidadão poderia aderir àquilo que mais lhe servia. No âmbito religioso, isso pôde
ser observado com bastante clareza.
Este momento foi caracterizado pela diversidade de religiões e religiosidades, muitas
delas vivenciadas fora dos cultos oficiais do mos maiorum, expressão das novas
necessidades surgidas gradativamente em Roma e em seus domínios (SANZI, 2006). 3
De fato, foi um período de grande inquietação, marcado por um sentimento de
insuficiência das religiões tradicionais (PETIT, 1989). Além da consolidação do culto
ao imperador e da permanência das antigas tradições religiosas, houve uma grande
proliferação de religiões orientais, que coexistiram dentro do Império, entre elas o
cristianismo. 5 Este, crença nascida na província da Judéia, sobressaiu-se, em meio às
outras religiões, entre outros fatores, por seu caráter proselitista, o que determinou sua
expansão por todos os cantos do Império. Deve-se destacar que o contexto da Pax
Romana favoreceu o alargamento das fronteiras das religiões estrangeiras de um modo
geral. É fato que o cristianismo foi favorecido pela facilidade de contato entre as
províncias romanas e difundiu-se em meio ao livre trânsito de pessoas pelo Império.
Assim, as constantes e profícuas relações entre as comunidades foram fator
determinante, tanto para o estabelecimento de redes de comunicação e inter-relação,
quanto para a perpetuação do próprio cristianismo. Além disso, apesar da clara
heterogeneidade do Império, houve algumas tentativas de uniformização política e
cultural, sendo que o cristianismo desempenhou, posteriormente, sua função políticosocial na integração das massas (GUARINELLO, 2006).
A princípio, o Império Romano não se mostrou interessado nos cristãos, até porque,
politicamente, além da baixa capacidade de resistência dessa religião ao poder de Roma,
não se tem notícia de qualquer “ideologia” de inspiração cristã que tenha estimulado
algum tipo de ação subversiva contra o governo imperial (SILVA, 2006). Em sua carta à
5
Opondo-se às celebrações religiosas ritualísticas empreendidas por Roma, os cultos orientais exerceram
um grande fascínio por todo o Império, porque, por meio de doutrinas bem elaboradas, estes forneciam
respostas a algumas inquietações religiosas do homem romano. Os cultos de mistério, em especial, assim
como o próprio cristianismo, representavam uma forma de religião muito mais voltada para a esfera do
pessoal, cultivada pela relação entre deuses e homens, diferentemente dos cultos tradicionais romanos.
7
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comunidade de Roma, o apóstolo Paulo, por volta do ano 57, já revelava seu anseio de
que os cristãos não se rebelassem contra as autoridades instituídas. Veja-se o trecho a
seguir:
Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há
potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram
ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à
ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a
condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras,
mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem,
e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas,
se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é
ministro de Deus, e vingador para castigar o que faz o mal. Portanto é
necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo, mas
também pela consciência. Por esta razão também pagais tributos,
porque são ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo.
Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem
imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra (Rm
13:1-7).
O governo de Roma considerava os seguidores de Cristo como pertencentes a uma
das muitas correntes religiosas judaicas palestinas (CHEVITARESE, 2006). Aliás,
Roma via o cristianismo sem muita expressão política. Entretanto, essa
“despreocupação” não garantiu a aceitação do movimento. Ao longo do século II, o
poder eclesiástico foi grandemente perseguido e muitos mártires foram feitos. Contudo,
apesar de haver um precedente legal na lei romana que podia ser usado contra os
cristãos – a acusação de superstitio illicita – o governo demorou algum tempo para
distinguir os cristãos dos judeus. 6 Até o governo de Nero (54-68), não se fazia qualquer
separação entre eles, por parte das autoridades. E, mesmo posteriormente, alguns
equívocos eram cometidos a esse respeito.7 Deve-se frisar ainda que a maior hostilidade
nos primeiros séculos provinha, em grande parte, não das autoridades romanas, mas da
população local8.
6
Ao contrário do cristianismo, o judaísmo era uma religião muito antiga. Então, quando os romanos
entraram em contato com os judeus, apesar dos confrontos que havia entre eles no que concerne ao
espírito de liberdade e ao estilo judaico de existência sob o domínio imperial, estes foram considerados
uma religio licita pelos romanos – uma postura típica do tolerante paganismo vigente no Império
(FELDMAN, 2008).
7
Pode-se afirmar que a associação feita entre as duas religiões, nos séculos I e II, se dava, pois, além de o
cristianismo estar ainda formando sua própria identidade, havia, de fato, uma corrente judaizante dentro
da ekklesia, que motivava a manutenção de laços entre eles. Em algumas regiões, especialmente no
primeiro século, os cristãos, de um modo geral, conservavam fortes vínculos com os judeus, chegando a
utilizar até mesmo espaços judaicos como as sinagogas.
8
O cristianismo era visto como uma religião exótica pelos adeptos das outras religiões do Império. Isso se
deu tanto por seu monoteísmo inflexível, quanto pelo fato de as reuniões terem um caráter secreto, o que
fazia a população em geral conjeturar que ocorressem atos como canibalismo, relações promíscuas,
práticas necromânticas e a invocação do espírito de um criminoso supliciado (SILVA, 2006).
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Nos primeiros duzentos anos, o cristianismo pôde se expandir gradativamente,
favorecido pela clemência imperial (SILVA, 2006). Entretanto, algumas mudanças vão
ocorrer no Império ao longo do século III. A Anarquia Militar (235-284) será
instaurada, fruto de uma grande instabilidade, desencadeando uma série de perseguições
aos cristãos. Tal momento foi marcado por um agudo quadro de desequilíbrio político,
caracterizado pelas várias sucessões ao trono, bem como por um enfraquecimento da
imagem e do poder imperiais.
Da ascensão de Décio ao poder, no início do século III, até o início do século IV,
quando o Império esteve sob o comando de Diocleciano, com exceção do período
chamado de “Pequena Paz da Igreja” (260-303), qualquer ameaça à ordem imperial
passou a ser combatida vigorosamente, inclusive o cristianismo. 9 A partir do governo de
Décio, vários pronunciamentos serão realizados com o propósito de coibir o
cristianismo, mesmo porque alguns responsabilizavam os cristãos pela ruptura da pax
deorum. Em contrapartida, o culto aos deuses e ao imperador, bases simbólicas do
poder imperial, serão um dos recursos para o fortalecimento do poder central, bastante
desgastado. Os imperadores buscavam a todo o custo se manterem fieis ao mos
maiorum.
No século III, com a promulgação do Edito de Caracala, a vida dos cristãos sofrerá
um impacto tangível e duradouro mudando drasticamente. A partir desse decreto, muito
mais os cristãos estariam livres para transitar no Império. No entanto, foram muito mais
perseguidos, pois, como cidadãos de Roma, não podiam mais apelar aos tribunais do
Império como humiliores (não-cidadãos) e, nem mesmo como a antítese – honestiores
(cidadãos) – dignos de privilégios (KERESZTES, 1970). Além disso, como cidadãos,
foram, em muitos momentos, intimados a sacrificar aos deuses do Império. A igualdade
de direitos trouxe, de fato, muitos problemas para os cristãos do mundo romano.
É importante ressaltar que, no entanto, muito antes do Edito, qualquer cristão podia
transitar abertamente no Império. È sabido que o apóstolo Paulo, o qual era um cidadão
romano, fez três grandes viagens missionárias, visitando diversas localidades, a saber:
Jerusalém, Cesareia, Damasco, Antioquia (na Síria), Tarso, Chipre, Pafos, Derbe, Listra,
Icônio, Laodicéia, Colossos, Antioquia (da Pisídia), Mileto, Patmos, Éfeso, Trôade,
Filipos, Atenas, Corinto, Tessalônia, Beréia, Macedônia, Malta e Roma. 10 Além de
Paulo, é sabido que muitos outros cristãos, mesmo sem a cidadania, viajaram pelas mais
diversas províncias do Império.
9
Entre 260 a 303, temos a chamada “Pequena Paz da Igreja”, quando, por um breve momento, as
perseguições não ocorreram. Nesse momento, o cristianismo pôde ampliar suas bases livremente e
realizar grandes progressos no interior do Império. Sabemos que sob os governos de Cláudio, o Gótico, e
de Aureliano houve alguns mártires, contudo não podemos supor que isso tenha ocorrido devido a alguma
perseguição imperial, mas ao zelo excessivo de alguma autoridade provincial ou a alguma ação de
comunidades locais (SILVA, 2006).
10
Paulo foi, sem dúvida, o pregador mais influente entre os não-judeus no século I, sendo também o
principal expoente teológico do cristianismo gentílico. Segundo Mitchell (2008), quando Paulo fez sua
missão no mundo romano, este visitou e fundou diversas ekklesiae. Paulo não se detinha em cada pequena
cidade das vastas províncias do Império, mas buscava, passando pela rota romana da Via Sebaste, focar
sua atenção nos centros helenizados, ou seja, nos centros urbanos.
9
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A complexa cartografia dos trajetos do apóstolo fornece informações acerca do
público alvo evangelizado e, assim, de quais foram os primeiros cristãos fora da Judeia.
Ao se auto-intitular “apóstolo dos gentios”, Paulo se propôs a exercer a tarefa de
reavaliar e de renegociar os critérios da diferença entre o judaísmo e a cultura helênica,
a fim de levar o evangelho de Jesus aos não-judeus de fala grega, “incircuncisos”,
“adoradores de ídolos” e moradores de terras fora da Judeia. 11 Um judeu, a exemplo de
Paulo, deveria se mostrar capaz de ser, culturalmente, “ambidestro” para pensar em
termos do judaísmo, do cristianismo e do helenismo.
Toda a mobilidade espacial própria dos missionários cristãos é justificada tendo por
base os seguintes mandamentos de Jesus: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o
evangelho a toda criatura” (Mc 16:15); “Portanto ide, fazei discípulos de todas as
nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28:19);
“Mas recebereis a virtude do Espírito Santo, que há de vir sobre vós; e ser-me-eis
testemunhas, tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria, e até aos confins da
terra” (At 1:8).
O pensamento cristão dito “primitivo”, desde o início, defendia a idéia de
universidade e unidade étnica, cultural e social, algo nunca antes visto no Império. Na
polêmica entre cristãos judaizantes e cristãos gentios, observamos Paulo asseverar o
seguinte: “Onde não há grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita,
servo ou livre; mas Cristo é tudo em todos” (Col 3:11). Esse trecho traz as mais
importantes distinções sociais do mundo antigo de uma maneira intercalada – etnia,
religião ancestral e condição sociojurídica. Segundo o apóstolo, os cristãos não
deveriam ser identificados por tais classificações, mas pela fé em Jesus (WRIGHT,
1986). A ideia de se levar o evangelho aos gentios, na perspectiva paulina, era a de que
cada convertido se “despisse do velho homem” (Cl 3:9) seja ele qual fosse – que
abrange as condutas consideradas pecaminosas – a fim de aderir a uma religião que
recebia a todos, independentemente de sua origem étnica e do estrato sociocultural que
ocupasse. A visão geral do cristianismo gentílico estava, portanto, baseada na ótica
segundo a qual o movimento de Jesus era uma religião para todos aqueles que
estivessem dispostos a abdicar de suas religiões locais, bem como de suas práticas
pessoais que não se coadunassem com a doutrina cristã (prostituição, feitiçaria,
idolatria, embriaguez, ira, glutonaria, etc.) em prol de servir a Jesus pela simples fé nele.
A conduta cristã dos primeiros séculos ficou claramente expressa em um trecho da carta
de Diogneto no século II.
Os cristãos, de fato, não se distinguem dos outros homens, nem por
sua terra, nem por língua ou costumes. Com efeito, não moram em
cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo
especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao
11
Vale destacar que, entre o público gentílico de Paulo, estavam vários judeus da dispersão. Contudo,
muitos dos que se convertiam não eram judaizantes (cristão-judeus) e, portanto, se inserem no
cristianismo gentílico (BLASI, TURCOTTE, DUHAIME, 2002).
10
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talento e especulação de homens curiosos, nem professam, como
outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em
cidades gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptandose aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto,
testemunham um modo de vida social admirável e, sem dúvida,
paradoxal. Carta a Diogneto (5:1-4).
Observa-se neste testemunho um desapego a etnicidade. Quando nos referimos a
etnicidade, estamos lançamos mão de um conceito sociológico que permite definir um
objeto científico. Segundo alguns autores, tal conceito esta relacionado às diferenças
culturais regionais, tais como língua, religião, costumes (algo próximo a noção de
cultura ou ascendência comum, que distinguem grupos de pessoas no que concernem as
suas identidades. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). 12 Sobre esse assunto é
importante destacar que a etnicidade é não estática e pronta, mas dinâmica. Não é valido
considerar que a etnicidade não tenha tido nenhuma relevância nos círculos cristãos
“primitivos”, mas, foi legada a segundo plano, no âmbito de expansão do movimento.
Pensando na identidade cristã como algo fluido, percebe-se que, assim como observou
Stuart Hall (2001) ao analisar as identidades culturais na pós-modernidade, as
identidades na Antiguidade não eram estáveis e unificadas, mas bastante fragmentadas.
Isso porque o sujeito assumia diversos tipos de identidades nos mais diferentes
momentos. Vale destacar que o conceito de identidade é uma construção dinâmica, não
homogênea, que se configura com o tempo (REGAZZONI, 2011). Além da identidade
fluida e em construção, as comunidades migrantes sempre traziam consigo marcas de
hibridização na sua própria constituição, entendendo que o hibridismo cultural se
manifesta pelas interações culturais estabelecidas por meio do contato entre realidades
diastráticas, os quais são constituídos por uma composição de elementos culturais
heterogêneos, o que resulta em uma nova síntese cultural (HALL, 2003).
Destacamos ainda o fato de que os missionários cristãos, logo no início do
movimento, puderam evangelizar com relativa liberdade nas estradas e províncias do
Império sendo bem recebidos como “irmãos” por todos os integrantes da ekklesia
espalhados pelo Império os quais não se apropriaram de um sistema de pertencimento
étnico-cultural, mas de pertencimento a um sistema religioso. Vale frisar que a própria
sociedade romana, com sua característica cosmopolita e universalizante, composta por
pessoas que tendiam ao individualismo e identidades fluidas, beneficiou
consideravelmente o movimento cristão.
12
Tomaz Tadeu da Silva (2000) junto a outros teóricos propõe diversas apreciações acerca das oposições
binárias estabelecidas pelos conceitos sociológicos de identidade e diferença. De acordo com Silva, a
diferença, tal como a identidade, simplesmente existe e são inseparáveis. Ambos são conceitos
simbólicos, ativamente produzidos e “não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de
significação nos quais adquirem sentido” (p. 78, 2000). Além disso, a dinâmica identidade e diferença é
composta por relações sociais sujeitas às relações de poder, sendo ambas impostas e disputadas. È
importante perceber que, para Hall (2000), a identidade é um conceito estratégico e posicional que
emerge no jogo de poder e na exclusão. A identificação esta sempre em processo, em construção, e
sempre operando por meio da différance.
11
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
De fato, favorecido principalmente pelo imperialismo, o cristianismo empreendeu
suas missões com uma larga mobilidade espacial e afrouxamento étnico, o que cooperou
para a criação de novas práticas e hábitos. O imigrante que deixava sua cidade em
direção as mais diversas urbs romanas já estava profundamente influenciado por uma
cultura híbrida de imediato antes mesmo de partir. No entanto, enquanto há uma
centralização das identidades supra-locais, concomitantemente, ocorre um reforço das
identidades locais. Deste modo, em um contexto de negociação, surgem identidades
culturais em transição, ou seja, identidades híbridas (HALL, 2003). Em novas terras, os
imigrantes, em contato com a cultura local, resignificavam o seu próprio espaço criando
diversos nichos étnicos formados por agregadores (HERSCHEL, 1909).
Vale destacar que os missionários que migravam dentro e fora do Império se
utilizavam de um profícuo meio de comunicação para operacionalizar seus
empreendimentos e divulgar suas doutrinas: as cartas13. Hábito comum no mundo
greco-romano e herdado dos próprios apóstolos, a prática de se enviar correspondência
mantinha as comunidades em constante comunicação, mantendo vínculos mnemônicos
com aquele que escreveu. As cartas poderiam funcionar, para alguns imigrantes – em
especial os judeus conversos – como uma literatura de imigração. Tais tornavam-se um
elo de identificação comunitária (BENEDUZI, 2008).
As correspondências, por abarcarem vastas áreas geográficas, funcionavam ainda
como um eficaz instrumento de interação cultural no qual diversos líderes, com as mais
diversas identidades, vão cooperar para a formação de uma única comunidade 14. Além
disso, as epístolas terão um caráter político para o melhor exercício do poder e da
autoridade dentro das congregações, reforçando a posição de liderança daqueles que as
enviam.
Assim, no contexto de expansão do cristianismo, houve diversas manifestações
culturais híbridas, fruto da mobilidade espacial patrocinada pelo movimento. Entre
essas expressões, destacamos o culto mariano.
A história da exaltação e da devoção a Maria foi marcada por algumas definições
particulares acerca da personagem: Maria, a virgem perpétua; Maria, a mediadora da
graça; Maria, a mãe de Deus; Maria, a nova Eva; Maria, a assunta aos céus; Maria, a
13
A epístola, em grego epistolē, em latim epistula, é um documento escrito e assinado, elaborado sob a
forma de carta e classificada, de acordo com Bardin (2006), como uma comunicação dual escrita.
Dependendo das circunstâncias e do assunto, as cartas seguiam um modelo retórico comum, respeitando
regras precisas. Por esse motivo, grande parte das cartas na Antiguidade seguiu os termos gerais do
modelo clássico romano. Podem-se distinguir dois tipos básicos de cartas: as públicas e as privadas.
Desde os tempos apostólicos, a literatura cristã utiliza constantemente cartas públicas. No contexto do
mundo grego-romano, não era comum a circulação de textos entre indivíduos, mas, o habitual era que as
trocas de correspondências se fizessem entre instituições. A atividade de reprodução e distribuição de
textos entre os cristãos do século I e II era intensa.
14
Sobre esse assunto, observamos, por exemplo, uma carta de Pedro endereçada a uma determinada
comunidade, por nós desconhecida, a qual Paulo também havia escrito anteriormente. O trecho que atesta
esse fato diz o seguinte: “Considerai a longanimidade do Senhor com a nossa salvação, conforme também
o nosso irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada” (2 Pedro 3:15)
12
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
imaculada conceição. Todos esses títulos foram degraus de uma paulatina apoteose da
Maria que se forjou em dois níveis: o da piedade popular e o doutrinal-litúrgico.
No que concerne ao primeiro nível, no qual se manifestou um significativo
hibridismo cultural, transferiu-se a Maria muito do sentimento de devoção que se
expressava nos ambientes das culturas greco-romana e oriental. As origens da veneração
primitiva a Maria estão centradas na antiga adoração às deusas da fertilidade e mães da
terra, própria de um período pré-cristão. Frequentemente, diz-se que Maria é a
sobrevivência das figuras de deusas das religiões orientais. De fato, nas antigas culturas,
muitas figuras da deusa-mãe são encontradas. São pequenas estátuas esculpidas com
seus seios à mostra e mulheres grávidas. Tais sociedades caçadoras e coletoras não
detinham conhecimento de técnicas agrícolas e de irrigação, estando, assim, sujeitas a
todas as intempéries (BENKO, 2004). Destarte, o ato de dar à luz era tido como um
momento sobrenatural durante o qual a mulher se revestia de um poder misterioso. A
concepção era um símbolo para todas as forças da vida. A mulher como deusa é sempre
referida como "a mãe dos deuses e dos homens". A ideia do deus-rei dos céus associada
à deusa-mãe remete ao leste do Mediterrâneo entre 4000 e 2000 a.C. nas sociedades
urbanas do Egito, da Síria e da Ásia Menor, por exemplo, em figuras como Ísis e Ishtar
(RUETHER, 1977).
Na mitologia clássica greco-romana, também houve um significativo
desenvolvimento das figuras das deusas. Cada aspecto da grande deusa-mãe do Oriente
Médio foi retratado como uma figura feminina própria na religião clássica:
Ártemis/Diana, a poderosa deusa-virgem caçadora; Démeter/Ceres, a deusa da colheita;
Afrodite/Vênus, a deusa do amor e da beleza; Hera/Juno, a deusa-esposa; e outras.
Desse modo, tais religiões que traziam em seu panteão figuras como deusas-mães e
virgens tornaram-se representações de Maria numa interpretatio das deidades. A
hibridização delas na forma de uma interpretatio cristã empreendida no imaginário
cristão foi determinante tanto para a conversão dos gentios quanto para a assimilação da
doutrina cristã por eles.15 Ao tolerar a veneração a Maria, a ekklesia recebia mais
seguidores, agora identificados com a nova religião. Maria não foi, oficialmente, uma
deidade cristã; todavia, alguns documentos tendem a considerá-la com o poder e a
autoridade de uma divindade.
No século II, um autor cristão, cuja identidade é desconhecida, escreveu uma obra
“apócrifa” denominada Proto-Evangelho de Tiago. O intrigante documento dedica-se
inteiramente a contar a história de Maria, bem como a defender sua virgindade antes e
durante o parto de Jesus. Enquanto as histórias sobre o nascimento de Jesus traziam uma
mensagem escatológica de proclamação de uma nova era, o Proto-Evangelho de Tiago
15
A interpretatio é uma tendência comum dos escritores do mundo antigo em igualar os deuses
estrangeiros aos membros de um determinado panteão local. Heródoto, por exemplo, refere-se aos antigos
deuses egípcios Amon, Osíris e Ptah como “Zeus”, “Dionísio” e “Festo”, respectivamente (SMITH,
2001). Cunhamos o termo “interpretatio cristã” para tratar o comportamento do populus recém-converso
dos círculos gentios ao equiparar Maria a deusas gregas, romanas e orientais.
13
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
tem um caráter exclusivo de piedade pessoal, apontando para o ideal de perpétua
virgindade de Maria (KOSTER, 2004).
O Proto-Evangelho de Tiago foi um texto mariano muito influente nos círculos
cristãos, o que se observa, inclusive, nas representações imagéticas (KEARNS, 2008).
Muitos templos, títulos e uma iconografia clássica, dedicados anteriormente às deusas
greco-romanas e orientais foram transferidos a Maria. A iconografia, em especial, esta
representada de forma recorrente em catacumbas que também apresentam cenas
marianas como as imagens abaixo:
Afresco de Maria e Jesus menino (à direta), Maria e o anjo (centro) e Maria e os magos (à esquerda).
Catacumba de Santa Priscila. Via Salária, Roma. Século III.
A devoção pessoal tem seu lócus primário na arte sob a forma de piedade visual. Os
cristãos primitivos se expressavam artisticamente a fim de refletir sua opinião com
relação a Deus ao tentar comunicar mensagens com uma função educacional, memorial,
cultural e evangelística.
Vale destacar que as imagens, como parte de um monumento material, são formas
fluidas de representação, na qual aspectos de uma divindade foram destruídos, alguns
mantidos e outros ainda foram preservados. Deste modo, a base da identidade está em
elementos imateriais que são compostos de uma materialidade (no caso, as imagens das
catacumbas).
Tanto o Proto-Evangelho de Tiago quanto a iconografia são importantes, pois
revelam um cristianismo que podemos considerar de “fronteira”, pois, apesar da
roupagem cristã, ele apresenta expressões e valores híbridos, identificados com o
judaísmo e, principalmente, com a cultura helenística. 16 Muitos cristãos, não ligados às
16
O culto híbrido que estava sendo formado se apresentava na fronteira. Nas palavras de Guarinello, “as
fronteiras compõem a ordem todas as dimensões da realidade que não são efêmeras” (2010, p. 120).
É na fronteira que observamos o jogo de negociações e trocas. Nela, a ordem se altera ou se reproduz. O
ambiente de fronteira é marcado tanto pela competição quanto pela negociação. Há diversas fronteiras
cotidianas da ação social: as instituições, as crenças, as relações sociais o conhecimento, entre outras.
Boyarin (2004) afirma que as fronteiras são impostas e construídas artificialmente. As pessoas não só
cruzam as fronteiras, mas fronteiras cruzam as pessoas. Em nosso caso, apesar de um Cristianismo
normativo zelar para que as fronteiras não sejam cruzadas, há “contrabandos”, a todo o momento, ao
longo dela como provimento do cotidiano. É nas práticas difusas de hibridismo cultural que as fronteiras
são cruzadas. É possível notar que o culto mariano até o século IV encontrava-se na fronteira com um
suposto “paganismo”. Para que este culto saísse desta zona, foi preciso naturalizar a fronteira
empreendendo algumas negociações e acomodações como o Concílio de Efeso.
14
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
lideranças eclesiais, muitas vezes na fronteira entre o cristianismo e o “paganismo”,
inventavam histórias e faziam pinturas, expressando-se numa multiplicidade de meios
que davam vazão a demonstrações artísticas e culturais ligadas à tradição e à religião
greco-romanas. Assim, enquanto a literatura e a arte cristã são influenciadas por
aspectos da sociedade “pagã”, sua forma de culto também era modificada. E a exaltação
a Maria é uma das transformações, cujas expressões artísticas e literárias nos ajudam a
compreender a formação do cristianismo. O Proto-Evangelho de Tiago e as imagens
marianas nas catacumbas revelam que o hibridismo cultural foi um dos fatores
responsáveis por forjar o culto mariano. O fato de tais ideias terem se expressado
primeiramente em textos apócrifos e na arte revela, acima de tudo, que o lócus de
nascimento desta piedade era alheio à ambiência eclesiástica episcopal.
Apesar de terem sido dedicados afrescos e obras literárias cristãs a Maria, o culto a
ela ainda não poderia ser comprovado no século II. Contudo, no século III, algumas
transformações farão de Maria uma figura hibrida e de grande importância para a
ekklesia.
De fato, a formação híbrida do culto mariano está imbricada ao cosmopolitismo do
Império Romano. Tal foi marcado por uma ampla mobilidade espacial dos seus
cidadãos, principalmente depois do Edito de Caracala. Esta mobilidade e
cosmopolitismo trouxeram consigo um crescimento do individualismo e um aumento
das identidades fluidas com a afirmação de identidades locais, entendendo que a
identidade cultural nunca é fixa, mas sempre híbrida (HALL, 2003). No entanto, outro
processo paralelo e um tanto quanto inédito, fruto em maior escala do cristianismo, mas
não desconsiderando o próprio processo de romanização, foi a universalidade étnica.
O Império Romano agrupava sociedades bastante distintas em seu bojo. A grande
questão para o governo imperial romano era saber como lidar com a nascente
religiosidade cristã e ainda integrar uma multidão de imigrantes estrangeiros (chamados
“bárbaros”) com valores culturais heterotópicos sob uma mesma esfera. Assim, o
cosmopolitismo trouxe uma busca mais acentuada das identidades étnicas, que agora se
identificavam com o Império e com a religião emergente – o cristianismo. Vale ressaltar
que a identidade étnica era coletiva, pois, além de não se manifestar isoladamente, se
supunha o reconhecimento da pertença a um grupo ou coletividade, mas também o
pertencimento individual, por significar a pessoa na sociedade (SEYFERTH, 2009;
POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998). No caso do cristianismo, como uma
religião de caráter universalizante agremiava etnias sem distinção, este trouxe consigo,
associado ao cosmopolitismo romano, uma hibridização cultural, expressa, por
exemplo, na piedade popular com na veneração de Maria desde o século II, bem como
na formação do culto mariano a partir do século III.
15
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
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18
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ALEXANDRE, UMA VISÃO PLUTARQUIANA A RESPEITO DOS BONS
COSTUMES E DE UMA POSSÍVEL VERDADE EM HISTÓRIA
Amanda da Cunha Conrado 17
Resumo: Tendo como base as visões de Plutarco a cerca do mundo e de seus
biografados, pretende-se analisar a construção da biografia Alexandre, contida em
“Vidas Paralelas” do mesmo autor. Sendo historiador, assim definido por Maria
Aparecida de Oliveira Silva, carrega em si todos os atributos de um discurso
historiográfico, bem como sua objetividade e subjetividade. Ao ler a obra remete-nos
questionamentos interessantes a cerca da verdade em História, destacando a questão
sobre moralidade destacada por Plutarco ao retratar o rei macedônico, levando-nos
ainda a crer neste olhar plutarquiano a respeito da realidade ou questionando-nos sobre
seu fazer ver através de sua escrita.
Palavras-chave: Alexandre, Moralidade, História, Verdade.
Abstract: Based on Plutarch’s views about the world and on those that he biographer, is
intended to analyze the construction of the biography Alexander, contained in “Parallel
Lives” by the same author. As a historian, so defined by Maria Aparecida de Oliveira
Silva, carries in himself all the attributes of a historiographic discourse, as well as his
objectivity and subjectivity. By reading his book it bring us interesting questions about
the truth in History, highlighting the question of morality highlighted by Plutarch when
he describes the Macedonian king, leading us so to believe on this plutarch’s look about
the reality or questioning us about his way of see through his writing.
Key-words: Alexander, Morality, History, Truth.
Durante toda a existência do homem na História, este quis deixar suas marcas e
leituras de sua ou de outras épocas; Plutarco de Queroneia é um deles, nascido em 46 d.
C., durante o império romano de Claudio, foi ensaísta grego, biógrafo e historiador,
sendo essas duas últimas, alvo de grandes discussões, que mais a frente serão
abordadas. Viajou e conheceu muitos lugares, entre eles Roma e Egito, e foi sacerdote
de Apolo, em Delfos, no ano de 95 d. C. Sua idéia compreende que para alcançar a
felicidade e a paz, é necessário controlar os impulsos e as paixões. Mais moralista que
até mesmo filósofo e historiador (a moralidade é um ponto chave nas suas discussões e
na apresentação de suas personagens) foi um dos últimos representantes do helenismo 18,
durante a segunda sofística. Esta, por sua vez, foi um movimento de filósofos gregos, no
qual pretendiam fazer ver a cultura grega, resgatando-a, no contexto do Império
Romano. Nasce, à luz de tal contexto, a retórica grega (durante os séculos II, III e IV).
17
Graduanda do curso de História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail:
[email protected]
18
Legado da cultura grega clássica difundida principalmente por Alexandre Magno, para unir e
diferenciar-se em relação a outros povos.
19
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Plutarco ainda ocupou altos cargos públicos em sua cidade natal e estudou
matemática e filosofia em Atenas; participou, pois da Academia de Platão, fundada em
aproximadamente 387 a. C., em jardins localizados no subúrbio de Atenas, caracterizouse inicialmente, pelos trabalhos desenvolvidos pelos pitagóricos; é considerada a
primeira escola de filosofia e sobressaía-se pelo ensinamento dialético buscando
respostas no âmbito individual através de constantes questionamentos; sendo muito
influenciado pelas idéias de Platão, que aprendeu na Academia, sobre justiça, virtude,
política, educação, ligando-as a moralidade tratada por aquele.
Escreveu mais de duzentos livros, sendo os mais famosos deles a coleção “Vidas
Paralelas”, no qual compara militares, legisladores, governantes gregos e romanos em
suas especificidades, todos personagens de destaque em sua própria história e
sociedade. São mais de vinte pares, como por exemplo, Sólon e Valério, Teseu e
Rômulo, Lisandro e Sila, Agesilau e Pompeu, Alexandre e Júlio César, Demétrio
Policete e Marco Antônio. Nestas biografias tem-se a seguinte estrutura: a biografia de
um grego, inicialmente, depois a de um romano, sucessivamente, após a apresentação de
suas personagens, temos uma pequena comparação do escritor. Plutarco preocupa-se em
confrontar e equiparar os feitos e valores destes homens, emitindo suas próprias
concepções, como veremos mais a frente. Além destes, escreveu sobre Filosofia,
religião, pedagogia, moral e crítica literária. Influenciou o mundo espiritual direta e
indiretamente defendendo o dualismo do bem e do mal, remetendo-nos as idéias da
Academia. Faleceu em 126 d. C. na mesma região onde nasceu que atualmente
corresponde a região do Kaprena, na Beócia.
Plutarco tornou-se cada vez mais um autor grego sujeito de muitas pesquisas e
inúmeras possibilidades. No tocante as suas obras, são elencadas, como as tratadas pela
historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva 19 no seu livro Plutarco Historiador 20,
onde mostra que, ao longo do tempo, pesquisadores colocam em xeque a posição de
Plutarco acerca da História, devido a suas obras e ao que ele disse e viu. Seria ele um
historiador, ou um biógrafo? Ou ainda um mero autor importante para outras ciências
(associado à filosofia, à pedagogia, à religião, à literatura, à retórica)? Principalmente
com o Iluminismo, a obra de Plutarco passa a ser mais vista como obra literária,
ahistórica, até mesmo citando Wardman que avalia a vida de Alexandre, retratada pelo
autor grego, de acordo com suas virtudes.
A partir disso, pode-se questionar o que seria a verdade para Plutarco, já que é
notório, pelo menos no retrato sobre Alexandre, em que há somente a exaltação do
personagem remetendo-nos justamente a questão da moralidade 21, seria a intenção do
fazer ver aquilo que somente interessa a ele, condicionando nosso olhar aos olhos de
Plutarco; há nele a necessidade de persuadir seu leitor a cerca do que escreve, a fim de
19
Doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP.
SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Análises das Biografias Espartanas. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
21
palavra que vem do grego êthica, a qual possui dois sentidos: o de interioridade do ato humano e do
âmago do agir, para a intenção.
20
20
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
que seus registros sejam verdade. Baseando-se nisso, Pelling ainda reforça a idéia de
que Plutarco é apenas biógrafo, afirmando “estar alheio a veracidade de seus
registros”.22 Trata-se, pois de - deformando a realidade - características muito mais
filosóficas e literárias, com o objetivo de transmitir a moral para as gerações futuras.
Mais a frente, contudo, em seu texto, a historiadora Maria Aparecida de Oliveira
Silva apresenta fatores que provam o contrário. Segundo a autora, Plutarco deve sim ser
considerado um historiador. É nesta afirmação que os estudiosos do século XX se
detêm, haja vista que por trás da biografia, há uma história do contexto, da cidadeestado em que está inserido o seu personagem, mais que isso, há um método a ser
empreendido e desenvolvido. Vêem-se então historiadores como Hani propor uma nova
visão sobre a obra e a narrativa de Plutarco, afirmando que sua escrita é uma tentativa
de manter viva a religiosidade grega. Outros, como Delvaux, têm o autor grego com um
historiador regional, tendo seus escritos limitados a um cerco espaço, geralmente, como
a autor mesmo propõe um local do nascimento. Para Maria Aparecida de Oliveira Silva,
na própria obra de Alexandre, Plutarco deixa clara a diferença entre biografia e História,
sendo por ele considerado História os grandes fatos, como as guerras vividas por
Alexandre. Sua definição sobre História assemelha-se, pois, ao pensamento dos antigos
historiadores gregos. “O principal aspecto do gênero histórico sublinhado por Plutarco
foi a importância dada à busca da verdade dos fatos narrados.” (SILVA, 2006, p. 57) Já
o conceito de biografia, temos em Plutarco a idéia de procedimentos metodológicos de
busca, há pois uma “coleta, seleção e registro das informações”.
E mais uma vez esbarramos na questão do que é verdade em História, e mais, do que
é retratar a verdade para Plutarco. Remete-nos a questão da verdade na Escola
Metódica, do século XIX, que nos fala de uma verdade absoluta, sem subjetividades,
repetindo os fatos como eles são exatamente, fatos objetivamente corretos. Ou então nos
referimos a Nietzsche e sua verdade construída política e socialmente, uma verdade que
nega que o que é verdadeiro possa ser um elemento da linguagem, uma verdade que
contesta noções de verdadeiro e falso. Ou ainda Foucault, com a sua verdade
relacionada às relações de poder, um conceito que acaba por produzir, conduzir e
reproduzir efeitos novamente ligados ao poder. Sabemos que inserido em sua época,
Plutarco, consoante a Tucídides e Heródoto, destaca que o saber histórico é
exclusivamente o ver.
Proponho-me então, através da leitura da fonte, “Vidas Paralelas”, referente à
biografia de Alexandre, tratar da questão da moralidade destacada por Plutarco,
retratando como este relatou a vida do rei macedônico, levantando questionamentos a
respeito do olhar deste sobre a vida dos seus biografados e, do que realmente ele nos
queria fazer ver através de sua escrita.
VIDAS PARALELAS, ALEXANDRE E O OLHAR DE PLUTARCO
22
SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Análises das Biografias Espartanas. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. p. 41.
21
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Vidas Paralelas é uma compilação de biografias de homens ilustres da Grécia Antiga
e de Roma. Além dos vinte e três pares feitos por Plutarco, ainda há quatro biografias
sem pares. Esta obra é muito importante, não só pela informação, mas também pelos
dados da época retratados. Sendo esta a principal fonte que nos deu a visão atual de
Alexandre, há em Plutarco a intenção de revalorização de uma cultura grega, não só
através da vida deste rei, como também tendo como base o que o autor grego declarou
dele.
Antes de destacar pontos interessantes da obra de Plutarco sobre Alexandre, é
importante saber minimamente quem ele foi. Alexandre nasceu em 356 a. C. e faleceu
em 323 a. C. Foi príncipe e rei da Macedônia (com apenas vinte anos) além de um
grande conquistador da antiguidade, principalmente quando se tratava daquilo que os
helênicos entendiam como mundo, tendo Aristóteles como seu preceptor, foi tido por
muitos, como alguém de personalidade instável. Mesmo tendo influenciado todo o
mundo ocidental.
Plutarco o definiu como homem de virtudes, um ser invencível e de caráter reto,
aponta:
[...] sua temperança nos prazeres fez-se notar desde os primeiros
tempos da mocidade. Impetuoso e ardente em tudo o mais, era pouco
sensível a volúpia, à qual só se entregava com moderação. O amor à
glória, ao contrário, já se revelava nele, com uma força e uma
elevação de sentimentos bastante superiores à sua idade. Não amava,
porém, uma glória qualquer [...] (PLUTARCO, p.29).
Trata então um Alexandre que cheio de retas intenções era ainda corajoso para
enfrentar e conquistar o mundo que o rodeava, e mais o esperava. Vê-se neste trecho
também características de Plutarco de que é preciso controlar seus impulsos para o
alcance da felicidade, anteriormente abordada, o comedimento é um ponto bastante
abordado pelo autor em sua obra, tendo em vista que a todo momento remete-se a este
ponto. Um homem de virtudes para Plutarco refere-se a alguém que não se deixa levar
pelos seus desejos e concupiscências. Outro ponto interessante de se notar é a força e o
caráter difícil de governar de Alexandre, tratado por Plutarco. Tem-se ai a questão da
educação dada ao rei macedônico, que se deixava conduzir facilmente pela razão. Foi
educado, pois por Aristóteles, o qual “não o amava menos – dizia – que a seu pai,
porque devia a este apenas a vida, ao passo que a Aristóteles devia a possibilidade de
uma vida superior”,23 destaca Plutarco. Segundo a fonte, Alexandre estudou música,
artes liberais, filosofia, política, medicina, moral, ciências secretas e literatura, seria,
pois um homem completo e cheio de atributos.
Outro ponto que merece destaque é:
No momento em que iam para a mesa, foi-lhe anunciado que, entre os
cativos, estavam conduzindo a mãe e a esposa de Dario, com suas
23
PLUTARCO. Alexandre e César. In: Hélio Veja [tradutor]. São Paulo: Ediouro.[19--?] p.32.
22
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
filhas que, ao verem o arco e o carro de Dario, prorromperam em altas
lamentações desnudando os seios, na crença de que Dario tivesse
perecido. Alexandre, mais sensível à desventura delas que à sua
própria felicidade, depois de alguns momentos de silêncio, enviou
Leonato para comunicar-lhes que Dario não estava morto, e que elas
nada tinham que temer da parte de Alexandre; que este não fazia
guerra contra Dario senão pelo império, e que nada lhes faltaria das
honras com as quais estavam acostumadas enquanto Dario reinava.
[...] Mas o benefício mais belo e mais real que podiam receber em seu
cativeiro mulheres de coração nobre que sempre viveram castamente,
foi o de nunca terem ouvido uma só palavra desonesta, nem terem tido
ocasião de temer ou mesmo suspeitar algo da parte de Alexandre, que
soasse desrespeito a seu pudor. Encerradas num santuário virginal,
protegido por sentimentos de piedade, viveram, no meio do
acampamento inimigo, uma vida de completo isolamento e longe dos
olhares da multidão. Todavia, a esposa de Dario era, pelo que se
assevera, a mais bela das rainhas que existiram no mundo, assim como
o próprio Dario era o mais belo e bem feito de todos os homens; e
suas filhas eram parecidas com os pais. 24
Tratando mais uma vez da questão que envolve o caráter do rei e de seu bom
coração, remetendo-nos especificamente a moralidade (encontrada em todos os trechos
do autor, exaltando as virtudes de Alexandre), um questionamento pode ser feito: será
mesmo esta a verdade sobre o conquistador do mundo ocidental? Ou apenas uma face
da qual Plutarco quer nos fazer acreditar e enxergar? Até onde esta verdade retrata a
realidade de uma época ou apenas de um pensamento? Ou o autor nos condiciona a
sempre ver a moral e a ética para concordarmos com ele nesta discussão?
A questão abordada por Hani a respeito da tentativa de resgate de uma religiosidade
grega é presente sim através dos aspectos religiosos, quando Plutarco discorre a respeito
das consultas aos oráculos, ou quando descreve o fato de Alexandre ter sido chamado
por Júpiter de filho, ou pelo menos quer acreditar ter sido chamado assim. Há então uma
forte presença da religiosidade junto ao contexto e, por conseqüência, ao personagem,
havendo muito mais, com isso, o envolvimento das camadas populares. Outra questão a
ser destacada nesta análise refere-se à presença de fontes orais, as quais são usadas por
Plutarco para a construção de sua história, sua obra que é base nos fatos em que ele
presenciou, ou afirma ter presenciado, e aos relatos de pessoas que teve contato para
estruturar seus estudos a respeito não só do rei macedônico, mas de seus biografados.
Merece destaque ainda a relação entre Alexandre e os persas em vários trechos da
obra, no qual é notório o reconhecimento destes povos quanto ao poder e caráter do
conquistador macedônico, suas virtudes e de como trata seus inimigos de guerra e de
conquista, como vemos no trecho:
24
Idem. p. 44.
23
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Dario voltou, então, para junto de seus amigos e, com as mãos
levantadas para o céu, dirigiu aos deuses esta prece. ‘Deuses que
presidis ao nascimento dos homens e ao destino dos impérios,
concedei-me a graça de transferir a meus sucessores a grandeza dos
Persas ressurgida após a queda e devolvida ao esplendor em que
estava quando subi ao trono, a fim de que eu possa, vencedor de meus
inimigos, reconhecer os benefícios com os quais me cumulou
Alexandre em minha desgraça, com seu comportamento para com os
seres que eram para mim os mais queridos! Mas, se estivermos no
termo fixado pelo destino para a realização das vinganças divinas, se o
império dos Persas chegou a seu fim e se devemos adaptar-nos à
vicissitude dos acontecimentos humanos, não permitais que outro
senão Alexandre se sente no trono de Ciro’. 25
Mostra também, Alexandre sendo aos poucos absorvido pela cultura persa, os
bárbaros, assim chamados por Plutarco (abrindo a outra discussão aqui não
desenvolvida, já que não é o objetivo desta comunicação, a respeito da visão gregos e
bárbaros, identidade e alteridade no mundo antigo, como trata Hartog em seu livro O
espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro26), chega inclusive a casarse com uma persa - é interessante destacar que há uma mistura das culturas através do
rei macedônico, mas também sua difusão da cultura grega ao longo de todo o seu
território conquistado, um que é diretamente influenciado pelo outro, o grego que deixa
traços de seu legado clássico aos persas e estes por sua vez tratam de adentrar nessa
cultura grega - , como pode ser visto neste trecho extraído da fonte:
Então Alexandre aproximou-se ainda mais dos costumes dos bárbaros,
que ele também se esforçou em modificar mediante a introdução de
hábitos macedônios, com a ideia de que essa mistura e essa
comunicação recíproca de costumes dos dois povos, cimentando sua
mútua benevolência, contribuiria mais do que a força para solidificar
seu poder, quando se afastasse dos bárbaros. Por isso, escolheu entre
eles trinta mil crianças e mandou que lhes ensinassem o grego e as
instruíssem nos exercícios militares macedônios. Encarregou vários
professores de dirigir a sua educação. Quanto ao casamento com
Roxana, só o amor foi seu móvel. Conheceu-a em um festim, em casa
de Cortano e apaixonou-se por sua beleza e seus encantos. Essa
ligação pareceu bastante conveniente ao estado presente dos negócios:
inspirou aos bárbaros muito maior confiança em Alexandre; passaram
a estimá-lo, vendo-o seguir tão rigorosa continência que só se
25
Idem. p. 53.
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 1999.
26
24
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aproximou da única mulher pela qual se apaixonara, em virtude de
legítimo casamento. 27
A historiadora Maria Aparecida de Oliveira Silva, a fim de provar a idéia de que
Plutarco é historiador e de que seus fatos narrados são verdades, cita ainda a
importância que ele dá a organização cronológica de seus escritos, havendo uma
preocupação com a veracidade dos relatos e com a cronologia temporal. O outro ponto
relatado é a inserção que Plutarco faz aos seus personagens, não diferente com
Alexandre, num contexto social, concordando com a historicidade necessária a sua
escrita, transformando-a, como diz aquela, em História.
Remontando, uma visão plutarquiana vemos que ao mesmo tempo que o autor tenta
mostrar uma face idealizadora de Alexandre, isto é, o seu caráter comedido, ressalta que
em alguns momentos ele inverte esse comportamento e tem atitudes consideradas
desregradas, apesar de se arrepender depois. Como vemos no trecho abaixo:
Átalo, tio de Cleópatra, tendo bebido demais durante o festim,
convidava os Macedônios a rogar aos deuses o nascimento de um
herdeiro legítimo da realeza, filha de Cleópatra e de Filipe. ‘E eu,
então, oh celerado – gritou Alexandre, enfurecido pelo ultraje – seria
para ti apenas um bastardo?’ E, assim dizendo, atirou-lhe a taça na
cabeça [...] Depois desse insulto, feito sob a ação do vinho, levou sua
mãe Olimpíada para o Egito e se retirou para a Ilíria [...] Diante dessa
censura, Filipe caiu em si e enviou Demarato a Alexandre, que, em
virtude das razões do amigo, voltou para a casa paterna 28.
Remete-nos a historiadora Sônia Regina Rebel de Araújo, a falta de um
comportamento regrado vai de encontro a Plutarco. Nesse contexto, Alexandre é
construído e desenvolvido em sua narrativa.
Não quero, no entanto, voltar novamente às questões levantadas sobre a opinião de
verdade em História, afinal surgem muitas lacunas e perguntas as quais, requer um
maior aprofundamento, já que o trabalho discorrido é apenas remetido a leituras de
pequenos trechos interessantes da obra. O moralismo de Plutarco também é visto, mas
sabendo que não poderia ser diferente, devido ao contexto em que se encontra nosso
autor e toda a formação recebida por ele na Academia de Atenas.
Ao longo deste artigo, pretendo demonstrar o valor dos escritos de Plutarco nos
estudos sobre a vida da sociedade grega e romana durante o Império Romano. Sua
articulação entre as personagens seja Alexandre ou qualquer outro, remete-nos a um
importante quadro para o vislumbre de toda uma época, seja ela verdade objetivamente
ou subjetivamente, fruto de um tempo ou de um pensamento idealizado e como são
vistos os bons costumes, a moralidade e as virtudes.
27
28
Idem. p. 66-67.
Idem. p. 33-34.
25
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Sônia Renina Rebel de. Plutarco de Queroneia: entre a ética e a história. In:
ARAÚJO, Sônia Renina Rebel de [org.]; JOLY, Fábio Duarte [org.]; ROSA, Claudia
Beltrão da. [org]. Intelectuais, poder e política na Roma antiga. Rio de Janeiro: Nau:
FAPERJ, 2010.
DOSSE, François. O Historiador: um mestre de verdade. In: A História, Bauru,
EDUSC, 2003
HARTOG, François. O Espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
MAGALHÃES, Luiz Otávio de. Plutarco: historiografia e biografia na cultura grecoromana. Revista História da historiografia, Ouro Preto, n.03, p.181-187, set. 2009.
NETSABER BIOGRAFIAS. Biografia de Plutarco de Queronéia. Disponível em:
<HTTP://www.netsaber.com.br/biografias/ver_biografia_c_2937.html> Acesso em 06
de dezembro de 2010, às 16h20.
PLUTARCO. Alexandre e César. In: Hélio Veja [tradutor]. São Paulo: Ediouro.[19--?]
p.32.
REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e
verdade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
SILVA, Maria Aparecida Oliveira. Plutarco Historiador: Análises das Biografias
Espartanas. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
26
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ESTOICISMO E MAGIA EM MEDÉIA, DE SÊNECA
Erick Messias Costa Otto Gomes29
Suiany Bueno Silva30
Resumo: Sêneca foi um dos principais divulgadores da filosofia estóica na Roma
imperial do primeiro século. O autor escreveu quatorze obras filosóficas, uma sátira
menipeia e nove tragédias. Apesar de se inspirarem nos autores gregos, as tragédias
senequianas apresentam um traço peculiar, isto é, encerram em si os preceitos estóicos
defendidos pelo autor. A tragédia Medéia é um exempla das consequências advindas da
falta do cuidado de si, ou seja, o furor sentido por Medéia faz com que a protagonista
ceda ao impulso de usar a magia com fins maléficos, o que denota sua falta de domínio
da razão, ato contrário à ética estóica. Nesse sentido, observamos que a tragédia
senequiana assume uma função pedagógica, na medida em que emite uma mensagem
estóica aos seus ouvintes.
Palavras-chave: Sêneca; estoicismo; Medéia; magia; pedagogia.
Abstract: Seneca was one of the most important spreaders of Stoic philosophy in
Imperial Rome of the first century. The author wrote fourteen philosophical works, one
Menippean satire and nine tragedies. Though inspired in Greek authors, Seneca’s
tragedies have a peculiar trace, that is, they show the Stoic precepts defended by the
author. The tragedy Medea is one exemplum of the consequences caused by the lack of
attention with oneself, in other words, the furor felt by Medea leads the protagonist to
give in to the impulse of using magic with evil purposes, what shows her lack of
mastership over reason, act which opposes Stoic ethics. In this sense, we notice that
Seneca’s tragedies acquire a pedagogical function, as they send a Stoic message to their
listeners.
Keywords: Seneca; Stoicism; Medea; magic; pedagogy.
O objetivo do artigo pauta-se em analisar a tragédia Medéia através de uma leitura
dos princípios estoicos e desta forma pensar o teatro senequiano como detentor de uma
função didática, ou seja, Sêneca escreveu a tragédia com intuito de transmitir uma
mensagem estoica, sobretudo referente à moral. O artigo divide-se em três momentos: o
primeiro diz respeito a uma discussão sobre a filosofia estóica, para a qual, segundo a
interpretação de Cardoso, “a virtude humana seria a identificação com a natureza, a
integração perfeita no mundo natural. O equilíbrio, necessário à manutenção da ordem,
29
Aluno de graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Participa do Programa
Institucional de Bolsa de Iniciação Científica – PIBIC –, financiado pelo CNPq. Pesquisa sob orientação
da Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena. E-mail: [email protected]
30
Aluna de graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG). Participa do Programa
Institucional de Voluntário de Iniciação Científica – PIVIC –, sob orientação da Profa. Dra. Luciane
Munhoz de Omena. E-mail: [email protected]
27
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
consistiria no controle do irracional, dos impulsos e das paixões” (CARDOSO, 1999:
130). A partir dessas questões nos apoiamos na proposta de Florence Dupont, acerca da
conjugação dolor-furor-nefas, para analisarmos os comportamentos de Medéia. No
terceiro momento traçamos uma reflexão a respeito da magia praticada pela
protagonista, além de percebermos o porquê de essa prática ser contrária aos preceitos
estoicos defendidos por Sêneca. Por fim, desenvolveremos uma percepção da tragédia
senequiana como dotada de um caráter pedagógico por referimo-nos às peças de Sêneca
como um “exempla que ilustram as conseqüências do descontrole dos sentimentos e das
paixões. E as peças se prestam realmente a esse tipo de exemplificação” (CARDOSO,
1999: 130).
A filosofia proposta por Sêneca pretendia ultrapassar os limites da eloquência, para
só assim alcançar a prática da uirtus: o homem deveria retirar os preceitos da filosofia e
ocupar-se de temas válidos, para enfrentar as vicissitudes e combater os vícios, esse era
o caminho para atingir a felicidade, pois feliz era aquele quem confia à razão a gerência
de toda a vida (OMENA, 2009: 44). Agir de acordo com a razão e em conformidade
com a natureza, isto é, aceitar a ordem dos acontecimentos que expressam a vontade dos
deuses, era um princípio fundamental da filosofia estoica, a qual se apresentava como
um sistema integrado, mas dividido, por questões didáticas, em Lógica, Física e Ética.
A Lógica estoica determina a existência de uma lei que rege a vida humana, haja
vista que o racionalismo estoico estabelece implicações de relações temporais, além do
fato de que são estas relações que definem a sabedoria. Para a escola da stoa, o tempo é
não apenas a demonstração da sabedoria divina, mas também a expressão do dinamismo
da vida universal e de sua harmonia. A sabedoria é, dessa forma, submissão ao tempo, à
vida, ao mundo, aos deuses, e se apóia sobre o conhecimento da necessidade (BRUN,
1962: 21). Nesse sentido, a sabedoria implica a aceitação, fundada na razão, do
desenvolvimento dos acontecimentos, o que ocorre com a ajuda da dialética, a qual
ensina as implicações entre os acontecimentos, ou seja, “todos os fatos têm uma razão
de ser, devido à interdependência entre o fato que o antecede com o que o segue”
(GONÇALVES, 1996: 48). Assim, a Lógica pressupõe uma teoria da simpatia universal
segundo a qual todos os indivíduos se encontram em uma mútua interação, mostra o
modo como os acontecimentos implicam-se mutuamente, além de uma teoria do destino
que justifica os laços temporais de casualidade (BRUN, 1962: 26).
A Física ensina que as coisas e os seres estão ligados uns aos outros pela vontade dos
deuses. O mundo estoico é um sistema divino, isto é, o mundo é um ser vivo animado,
racional e inteligente, no qual todas as partes são distribuídas divinamente. Deste modo,
quando os filósofos da stoa falam acerca da divinização da natureza, seu objetivo é
oferecer ao homem a possibilidade de dar a sua vida uma significação ordenada. A
Física estoica tem a preocupação de nos fazer representar, pela imaginação, um mundo
que é dominado pela razão: não se encontra neste mundo nem a irracionalidade nem a
desordem.
O mundo é composto de indivíduos entre os quais não se encontram seres idênticos,
rigorosamente semelhantes; cada um possui uma qualidade própria. A partir de tal ponto
28
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
é que os estoicos defendem a individualidade como uma noção fundamental e
constitutiva do ser, na medida em que todo individuo é um corpo que se define por suas
próprias qualidades e tensões interiores. O mundo estoico é essencialmente um universo
de corpos que se acham em uma mutua interação; o universo é, pois, uno e contínuo.
Nesse sentido, o homem pode e deve formar uma unidade com o universo em que se
encontra, respeitando o destino e seguindo as vontades divinas, porque a razão humana
nada mais é que parte do espírito divino envolvido no corpo humano.
Diante do exposto acima podemos compreender o significado de destino para o
estoicismo. Para a filosofia do Pórtico, destino significa “uma realidade natural, ética e
teológica que se inscreve na estrutura do mundo, na vida que anima o universo e nos
seres” (BRUN, 1962: 33). Dito de outro modo, o destino não é o encadeamento das
causas e dos efeitos, mas sim a causa única, uma realidade natural que se traduz em um
poder que anima a simpatia universal, através da qual todas as coisas e seres encontramse em uma relação recíproca e equilibrada. O destino se refere a uma ordem natural que
jamais pode ser rompida, tudo o que acontece está de acordo com a natureza universal,
“tudo transcorre numa sequencia implacável, não havendo, pois, acaso” (ULLMANN,
2008: 9).
A leitura do destino feita pelos estoicos estabelece de imediato um problema: o
homem pode ser livre? Como conciliar a liberdade humana com o destino inexorável
imposto pela vontade divina? A questão é respondida pelos filósofos da stoa da seguinte
forma: em primeiro lugar é preciso reconhecer a existência da força do destino em todas
as coisas e, a partir disso, o homem pode e deve viver com obediência e aceitação,
submetendo-se àquilo que lhe é preparado pelas divindades. O homem deve ter
sabedoria, visto que somente através desta e guiando-se pela razão, o homem possui a
faculdade de apreciar o tempo e submeter-se aos acontecimentos, pois o tempo
representa a vontade divina. Dessa forma, somente o sábio é livre e feliz: aceita com
sabedoria o que o destino lhe ofereceu. De modo sucinto, se o homem não quer
obedecer, será forçado a fazer o que o destino lhe preparou (ULLMANN, 2008: 11).
Em resumo, a Moral estoica ensina as regras de conduta do sábio, se direciona aos
indivíduos em crescimento. Os seres vivos podem distinguir, desde que nascem, o que é
conforme com a natureza e o que lhe é contrário, ou seja, as primeiras inclinações
(instinto de conservação, saúde, bem estar e tudo a que isso pode servir) são a marca da
imanência da natureza em todos os seres, a expressão da simpatia universal e o signo da
harmonia das partes com o todo (BRUN, 1962: 45). Dessa forma, viver de acordo com
as primeiras tendências é viver de modo perfeitamente racional. O estoicismo afirma
que o bem é o útil, sendo este último, segundo Jean Brun (1962: 46), tudo o que se
orienta no sentido da vida, no sentido do destino, da vontade dos deuses.
Bem e virtude são, na filosofia estoica, inseparáveis, pois a virtude é a presença do
bem em uma pessoa, é o viver de acordo com a natureza. A virtude não é suscetível de
progresso, é una, pois quem tem uma virtude tem todas: ela tem um fim em si mesma,
não depende de algo exterior, apenas da conduta do homem, é completamente interna e
de acordo com si.
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As paixões turvam a alma e impedem a virtude e a felicidade, haja vista que se
opõem à razão e são contrárias à natureza. Por um lado, elas têm uma origem interna ao
homem, por outro, surgem na medida em que o meio social corrompe a criança, fazendo
com que suas inclinações primitivas se transformem em paixões. As paixões são
enfermidades da alma, as quais desviam o homem de uma conduta reta. Os estoicos
insistiram no fato de que as paixões dependem de nós, nascem do juízo e das opiniões
que temos das coisas. Por exemplo, “quando alguém te entristece ou te irrita, sabe que
não é ele que o faz, mas tua opinião” (BRUN, 1962: 50). Por isso o homem tem que se
esforçar para não se deixar dominar pela imaginação, deve-se rechaçar a opinião para se
libertar das paixões, e isso se faz através de uma meditação preventiva de tais juízos.
Tal conduta só é possível se o homem fizer uso contínuo da razão, e essa forma de agir
é, por excelência, própria do sábio.
O sábio é aquele que vive através de escolhas reflexivas e voluntárias, as quais são
conformes com a natureza universal. Viver assim significa viver de acordo com a razão.
O sábio aceita com reflexão os fatos que resultam do Destino, pois sabe, através do
conhecimento da Física, que tudo acontece segundo a razão universal. Só o sábio é feliz,
haja vista que “experimenta uma verdadeira felicidade em suportar tudo com coragem”
(BRUN, 1962: 52). Por agir de acordo com a vontade divina, ele não é afetado pelo
sofrimento, está isento das paixões, é o supremo conhecedor e não teme a morte, pois a
felicidade coloca o sábio acima das contingências (VEYNE, 1995: 53). Além disso,
aquele que possui a sabedoria é livre, é guiado pela razão e, dessa forma, vive segundo a
vontade divina, ou seja, “a liberdade consiste em agir segundo o inevitável ou, melhor
dizendo, consiste em querer, ou mesmo escolher, o inevitável” (NOVAK, 1999: 265).
Assim, o sábio é o que faz escolhas conforme o Destino.
Entretanto, os estoicos reconheceram que o sábio jamais existiu. A sabedoria é
inacessível ao homem. Mas, se não se pode ser mais ou menos sábio, pois não existem
escalas na sabedoria, ao menos se pode ser mais ou menos ignorante (BRUN, 1962: 54).
Para o homem comum, o apropriado é a busca das coisas que são conformes com a
natureza. “O progresso está no próprio exercitar-se que, em função da ascese, pode fazer
avançar aquele que se exercita na virtude” (GAZOLLA, 1999: 87). Segundo Rachel
Gazolla (1999: 91), nenhum homem será sempre insensato e sempre sábio, pois o sábio
e o insensato “podem ser pensados como “estados” da psyché do homem comum em
seu mover-se no mundo”.
Nesse sentido, aquele que deseja ser virtuoso deve estar em constante exercício para
saber “diferenciar entre bens e males escolhendo, entre os indiferentes 31, aquele que
convém” (GAZOLLA, 1999: 89). Tal exercício se baseia em refletir sobre as paixões da
31
O estoicismo estabelece distinções entre as coisas existentes: umas são boas, como a reflexão, a justiça,
a coragem, a sabedoria; outras são más, como a irreflexão, a injustiça, a covardia, etc. Outras, enfim, são
indiferentes, pois não são nem úteis nem nocivas, como a morte, a vida, a saúde, a enfermidade, o prazer,
a dor, a beleza, a vergonha, a força, a debilidade, a riqueza, a pobreza, a glória, a nobreza, a origem
humilde, etc. Todas essas coisas são qualificadas como indiferentes porque, por si mesmas, não nos
servem nem nos danam, mas o homem pode servir-se delas para danar ou para ser útil. Podem, em
consequência, trazer dor ou alegria, segundo o uso que fazemos delas. (BRUN, 1962: 46).
30
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alma e sobre a própria conduta, aquilo que Michel Foucault denominou de “cuidado de
si”. É preciso compreender que essa “cultura de si” caracteriza-se por um princípio
segundo o qual, é preciso “ter cuidados, respeito e atenção consigo mesmo”. Ao
estudarmos Sêneca podemos observar a recorrência pelo tema da aplicação a si próprio,
pois o homem é na natureza o ser que foi encarregado do cuidado de si próprio, tanto da
alma quanto do corpo. O equilíbrio, a harmonia e a satisfação, tanto quanto possível,
das necessidades, constituem um exercício constante que todos os homens devem
praticar para consigo mesmo na trajetória de suas vidas.
Assim sendo, quando os estoicos diziam que podíamos “ter sempre à nossa
disposição o indispensável, e que era preciso preservar-se de toda apreensão quando se
pensa nas privações possíveis” (FOUCAULT, 1985: 64), diziam, na verdade, a atenção
que devemos ter conosco mesmo, pois só assim conseguimos conter nossas más
tendências e impulsos realizados sem o correto domínio de nossa razão, como também,
através deste voltar-se para si, obtemos a capacidade de analisar nossas reais
necessidades materiais e espirituais, e a partir daí avaliarmos nossos exageros. Por
conseguinte, a prática da cultura de si é composta de princípios éticos e morais que
infundem mudanças nos comportamentos, sobretudo a confiança na razão como forma
de conduzir as boas ações, conforme indicado por Sêneca: "a razão não exige do homem
mais do que esta coisa facílima: viver segundo a sua própria natureza!” (Sêneca, Cartas
a Lucílio 41,8).
Em suma, o estoicismo configura-se como um sistema filosófico uno, no qual a
Lógica, a Física e a Ética encontram-se mutuamente integradas. Sêneca foi um dos
principais divulgadores dessa filosofia na Roma imperial. O autor fez parte do chamado
estoicismo romano, o qual carrega fortes pretensões moralizadoras, em detrimento da
Física e da Ética. Nos escritos de Sêneca encontramos várias referências à Moral
estóica, suas obras possuem uma função didática, nas quais o autor pretende difundir os
preceitos de uma vida guiada pela virtude e afastada dos vícios. As tragédias
senequianas não fogem a esse padrão, são um exempla de como as ações realizadas
enquanto se está tomado pela ira, não guiadas pela razão, podem causar uma
exarcebação das paixões, fato que provoca a desordem, o caos e o desequilíbrio.
As tragédias escritas por Sêneca são inspiradas nos modelos gregos, principalmente
de Eurípedes (CARDOSO, 1999; NOVAK, 1999). Entretanto, suas peças apresentam
traços distintivos, pois, para o autor, a influência dos deuses deve ser moderada. As
paixões que acometem os homens não são determinadas por forças exteriores a ele, no
entanto, desencadeiam-se devido à carência de controle, devido ao fato de o homem
ceder às paixões e repudiar a razão. “Para Sêneca a paixão não controlada, o furor, é o
principal elemento desencadeador da catástrofe.” (CARDOSO, 1999: 131).
Nas tragédias senequianas percebe-se a conjunção de três elementos que acometem
os protagonistas e que são essenciais à tragédia, quais sejam: dolor-furor-nefas
(DUPONT, 1995 apud CARDOSO, 1999: 131). Para Florence Dupont, o furor é
“determinado por um excesso de sofrimento (dolor); o furor leva ao nefas, o crime
hediondo, extraordinário, inexpiável, a profanação em seu grau mais alto.” (DUPONT,
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
1995 apud CARDOSO, 1999: 131). A realização do nefas sugere um atributo
claramente desumano, é o fator de transformação do comportamento, o qual já não se
encontra mais associado à razão. Zélia Cardoso, apoiando-se na obra de Dupont, Les
monstres de Sénèque, afirma que, para Dupont,
o sofrimento que gera o furor é sempre causado por um ferimento
doloroso, por uma perda irreparável, havendo sempre um culpado da
criação dessa situação. O acometido de dolor se sente “lesado em sua
integridade social, privado de seu prestígio, desconsiderado aos olhos
dos outros e a seus próprios olhos”. A dor excessiva leva à cólera e
esta evolui transformando-se no furor, a loucura trágica, a cegueira
total, a perda de todo o discernimento. (CARDOSO, 1999: 131).
Esses elementos são encontrados na tragédia Medéia, a qual narra a história de
Medéia que, com seus feitiços, ajuda Jasão a vingar a morte de seu pai e fugir para
Corinto, onde foram recebidos pelo rei Creonte. Entretanto, Jasão repudia Medéia e
quer desposar Creúsa, filha do rei de Corinto. É a partir desse momento que se
desenvolve a tragédia.
A dolor sentida por Médeia tem sua origem em um amor não correspondido que a
protagonista sente por Jasão, fato que desencadeia em Médeia um desequilíbrio e uma
ira que a conduz a realizar seu ato de vingança contra seu consorte, Creúsa e o rei
Creonte. Médeia é acometida de paixões, tais como: “dor”, “loucura”, “angústia”, “ira”,
desejo de vingança, coragem exacerbada para enfrentar o rei Creonte, etc. Estas paixões
“são agitações da alma, tendências exageradas” (GAZOLLA, 1999: 134). Tal
característica pode ser compreendida quando Medéia diz: “Oh! Quantas vezes eu
derramei criminosamente um infausto sangue! Mas nenhum desses crimes foi praticado
em momentos de ira: era o meu infeliz amor que me armava a mão” (Sêneca, Medéia,
135-137). Neste fragmento evidencia-se uma paixão desmedida, aquilo que Gazolla
denomina de uma forma de escravidão cujo dono é exterior a si mesmo; querer transpor
o próprio “eu” ao “outro” pressupõe, neste sentido, um egoísmo, uma conduta
possessiva, fato que leva a protagonista a praticar crimes. As paixões não permitem ao
homem encontrar a felicidade, pois esta só pode advir de uma vida em conformidade
com o lógos, o que não ocorre quando se é escravo de suas próprias paixões, as quais
são enfermidades da alma, contrarias a razão e a natureza (BRUN, 1962: 48).
A Ama tenta moderar os excessos de Medéia, mas sem sucesso. Assim, quando a
Ama fala a protagonista, tentando aconselhar-lhe, podemos observar os sentimentos e
atitudes de Medéia nada condizentes com os princípios morais da doutrina estoica:
“Silêncio! Eu te suplico: tua secreta dor deve chorar no âmago do coração [...] a cólera
dissimulada é prejudicial; o ódio abertamente declarado perde todo o meio para a
vingança” (Sên, Med, 150-152). Até mesmo para cometer um ato perverso, como a
vingança, as paixões desmedidas são prejudiciais!
Em outro momento a Ama ainda tenta aconselhar: “Cessa de falar, ó insensata, susta
tuas ameaças, teus pensamentos audazes: convém ceder perante as circunstâncias” (Sên,
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Med, 175-176). Neste fragmento percebemos claramente como Medéia aflige os
princípios estoicos, não cede perante as circunstâncias, pois a protagonista é guiada por
um movimento irracional da alma que reflete suas posteriores atitudes, inflige a ordem
da natureza e o destino, não age conforme a razão e não possui a sabedoria necessária
para se deixar guiar pela vontade divina, tal como se verifica num momento posterior,
quando Medéia afirma a Jasão: “Sempre dominei completamente a minha sorte” (Sên,
Med, 520). Medéia não consegue ser feliz, pois felicidade do homem deve ser a
indiferença, bem como a abdicação a todos os bens do mundo, externos a ele, vencendo
todas as paixões e buscando a tranquilidade da alma.
Para os estoicos, a felicidade é alcançada pela virtude, consiste em imitar um modelo
supremo, a natureza e os deuses. Há uma intenção organizadora na natureza, a qual deu
ao homem uma categoria superior, a de animal racional, e como privilégio a felicidade
que é dada aos deuses (VEYNE, 1995: 57). A solução para uma vida feliz consiste na
liberdade interior, na capacidade de aceitar voluntariamente as ordens do destino, pois a
natureza é providencial e feita para os homens, o que só se consegue com o uso da razão
(VEYNE, 1995: 61-62). Na interpretação de Veyne (1995), para Sêneca somente a
razão mostra o que é bom para o indivíduo, e o seu mau uso produz vícios na alma,
paixões que devem ser extirpadas por completo.
Como pontua Cardoso:
as paixões não dominadas acarretam catástrofe sobre catástrofe,
alastram-se, contaminam; o amor-paixão, como uma loucura ou uma
doença, levando o homem ao caminho do vício, é nocivo e deve ser
rigorosamente combatido, sobretudo quando se reveste de um caráter
criminoso (CARDOSO, 1999: 138).
Tal é o estado de Medéia, pois ela deixa-se dominar por um amor-paixão que
provoca uma dolor e esta passa ao estágio de furor justamente por ter um caráter
criminoso e vingativo.
O segundo episódio da tragédia inicia com a fala da Ama, e a partir desta o autor
apresenta o estado emocional de Medéia:
Para, reprime teus furores, contém teus ímpetos. [...] ela corre com
passo louco, levando no rosto todos os sinais da furiosa demência.
Suas faces são inflamadas; sua respiração é ofegante. Grita; pelos
olhos jorram lágrimas; serena-se: não há nenhuma paixão que ela não
experimente. Hesita, ameaça, arde, queixa-se, geme. Onde irá cair o
peso de seu ódio; onde irão parar suas ameaças; onde se quebrantará
esta agitação? Seu furor transborda. Não é um crime comum nem
medíocre o que ela está meditando: ela vai superar a si mesma, pois
conheço os sinais de suas precedentes cóleras. Alguma coisa de
grandioso se está preparando: alguma coisa atroz, inumana, ímpia.
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Vejo o indício do furor. Possam os deuses desmentir os meus
pressentimentos! (Sên, Med, 380-395, grifos nossos).
O furor sentido por Medéia espanta até mesmo a Ama, testemunha de seus crimes
passados. A protagonista promete a si mesma vingar a traição de Jasão: “[...] jamais o
meu furor de vingança poderá parar: aliás, cada vez se tornará maior. [...] Vai acontecer
neste dia, sim, vai acontecer um fato inolvidável. Irei até contra os deuses e tudo
revirarei.” (Sên, Med, 406-407, 424-425). Medéia não se vale da razão para avaliar a
situação, pois se deixa tomar por essa doença da alma que é a paixão cega, a qual
estimula seu ódio. Ela praticará o mal porque não tem sabedoria. Aqui o mal se origina
da insensatez da protagonista que se rebela contra a lei divina e se nega a viver de
acordo com a natureza, não aceita os acontecimentos e quer interferir na ordem do
destino. Nesse sentido, o mal é obra da insensatez e resultado da loucura humana
(BRUN, 1962: 36).
O estado de furor em que Medéia se encontra culmina na elaboração de um feitiço,
por parte desta, para se vingar de Creúsa e Creonte. O primeiro e o segundo episódio
preparam a catástrofe, visto que o rei concede à suplicante mais um dia para preparar o
exílio, tempo suficiente para a realização da vingança; além disso, Medéia promete atos
terríveis, apesar de, com Jasão, tentar solucionar a crise, pois lhe pede que fuja com ela,
pedido que lhe é negado. Já o terceiro episódio da tragédia é inteiramente dedicado à
realização da façanha mágica de Medéia.
É nossa hipótese central que a magia praticada por Medéia delineia-se como um ato
que é contrário aos preceitos estabelecidos pelo estoicismo; se trata de uma ação
antagônica à razão, às virtudes e à vontade divina, é oposta à natureza e ao destino.
Surgem, dessa forma, algumas questões que se fazem necessário responder: o que se
entende por magia? A magia é contrária à religião ou ambas formam um sistema
indissociável? Porque os romanos condenavam algumas práticas mágicas? Quais os
elementos mágicos de que Medéia se vale e como ela pratica os seus feitiços? Porque a
magia praticada pela protagonista é contrária aos princípios estóicos? Se o estoicismo
acredita na adivinhação, porque Sêneca representa a magia de Medéia como uma atitude
insana e causadora de males?
A magia pode ser definida como a tentativa de se mudar o curso natural dos
acontecimentos, mediante a prática correta de certos procedimentos, nos quais se utiliza
determinados objetos e, através disso, controla-se as forças sobrenaturais. É atribuído ao
pensamento mágico a capacidade de produzir sobre a realidade os efeitos desejados
(CANDIDO, 1999: 256). Trata-se de práticas que pertencem ao domínio da vontade e
do desejo, pois almejam alcançar fins pessoais. São sempre praticadas em segredo, na
medida em que se opõem aos ritos públicos, os quais possuem caráter comunitário, isto
é, se venera os deuses através de práticas coletivas, tendo-se em vista o equilíbrio e a
harmonia da sociedade como um todo.
Segundo Weber, a ação magicamente motivada está orientada para este mundo, é
precisamente uma ação que se orienta pelas regras da experiência. Neste sentido, a ação
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ou o pensamento mágico não podem ser apartados das ações cotidianas (WEBER, 1991:
279). A magia é um fenômeno integrante à vida social de uma dada comunidade
(CANDIDO, 1999: 257).
Entretanto, surge uma dúvida: é possível separar em esferas distintas as ações
mágicas e as ações religiosas? As primeiras tentativas de interpretação da magia
versavam pelo caminho dessa divisão, como demonstram os estudos de Frazer, o qual
pensava a magia sob a ótica evolucionista, ou seja, o autor “dedicou estudos
sistemáticos ao fenômeno da magia entendida como primeiro degrau da tensão
evolutiva que por meio da religião teria conduzido a humanidade à conquista da
ciência” (SANZI, 2006: 61). Mas esta concepção se torna perigosa na medida em que se
verifica que não somente os rituais religiosos contêm elementos mágicos, mas do
mesmo modo as práticas mágicas contam com princípios religiosos.
Gilvan Ventura da Silva, apoiado nos estudos de Marcel Mauss, afirma que “tanto as
crenças quanto as práticas de magia se situam na esfera dos fenômenos ditos religiosos,
ou seja, daqueles fenômenos que dizem respeito à relação do homem com o sagrado...”
(SILVA, 2003: 165). Dessa forma, não há como desligar a ação mágica do plano divino,
ou seja, o sistema religioso deve funcionar em conjunto, visto que as práticas de
devoção aos deuses e as práticas mágicas só podem ser interpretadas se inseridas em um
sistema religioso integral, o qual abrange todas as relações com o sagrado. A partir desta
interpretação, podemos afirmar a seguinte forma de divisão:
O sistema religioso se subdividiria em dois subsistemas básicos: o
subsistema devocional e o subsistema mágico. O primeiro aglutinaria
todas as cerimônias que têm por finalidade saudar os seres
sobrenaturais reverenciados pela sociedade, como observamos nos
ritos e votos de ação de graças pelos benefícios divinos dispensados
aos fiéis, tanto em âmbito individual quanto coletivo, ou nas preces
que exaltam atributos como a glória, a majestade, a onipotência e a
magnaminidade dos deuses. Já o segundo seria constituído por um
conjunto de procedimentos (encantamentos ou conjuros, símbolos
iconográficos, gestos e oferta de matéria mágica) denominado rito
mágico ou encanto, cuja finalidade não é tanto louvar ou agradecer às
entidades sobrenaturais, mas invocar o seu auxílio para produzir
alterações na realidade sensível e/ou romper com o encadeamento
presente/passado/futuro, de modo a apreender uma realidade difícil ou
mesmo impossível de ser alcançada por intermédio apenas das
faculdades intelectuais humanas. (SILVA, 2003: 165-166).
Mas o rito mágico não necessariamente é tido como subversivo, uma vez que é
possível distinguir várias formas de magia de acordo com sua finalidade.
Aqui delineiam-se as duas tendências fundamentais da magia: uma
consiste na busca de ajuda sobrenatural para lograr proteção – é uma
magia social e construtiva; a outra representa uma evasão contra a lei
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que impede toda a liberdade de ação e proíbe toda manifestação do
instinto – é uma forma de evasão anti-social e contra a legalidade
estabelecida. (NOGUEIRA, 2004: 27).
Dessa forma, a magia com fins terapêuticos, purificatórios ou defensivos, ou seja, a
magia com fins benéficos era tida como lícita e mesmo necessária. Por outro lado, a
ação mágica com fins maléficos era condenada pelas leis romanas.
Tais práticas mágicas eram condenadas no ambiente romano porque eram tidas como
uma potência subversiva para o equilíbrio cósmico, sobre o qual se funda a vida pública
dos romanos (SANZI, 2006: 59). A Lex Cornelia, de 81 a.C., condena os encantamentos
mágicos que provocam a morte de outras pessoas. Não se trata de uma reprovação à
prática mágica enquanto tal, mas a determinadas consequências de seu uso. Dito de
outra forma, essa lei combate “de modo formal todo uso de magia com fins maléficos,
uma vez que as enfermidades e a morte se acreditavam serem produzidos por atos
mágicos com bastante frequência.” (NOGUEIRA, 2004: 27). A magia condenada era a
que se baseia em uma prática particular, a qual diz respeito a problemas específicos,
concretos e detalhados da vida cotidiana, isto é, não se refere a questões coletivas, tal
qual o culto aos deuses oficiais.
Em resumo, o homem romano vive em um ambiente marcadamente religioso, haja
vista que sua própria existência depende da ligação com o divino. A ordem divina
conduz o mundo e ordena as relações sociais, isto porque não se pode separar em
esferas distintas a moral, a natureza, a divindade e o homem, uma vez que todas as
ações humanas, até as mais insignificantes, refletem a presença divina (NOGUEIRA,
2004: 23). Esta maneira de ver o mundo também é pertencente aos estoicos, pois, como
dissemos anteriormente, os filósofos da Stoa primavam pela noção da simpatia
universal. Nessa concepção de mundo, tudo se relaciona, constituindo o universo um
todo simpático (NOGUEIRA, 2004: 26).
A ligação com o mundo divino é realizada por meio dos cultos oficiais, os quais
garantem a manutenção da vida humana e a continuidade de seu mundo através de uma
relação de obediência com os deuses. Dito de outra forma, o homem depende da
vontade divina e, por isso mesmo, necessita da ritualidade, na medida em que são “os
rituais que garantem a continuidade da vida da comunidade por inteiro.” (ELIADE,
1992: 55). Nesse sentido, a magia nociva, compreendida como força particular atribuída
a determinadas pessoas que podiam atuar sobre os deuses e sobre o curso natural dos
acontecimentos, representa uma evasão contra a lei que impede toda a liberdade de ação
e proíbe toda manifestação das forças divinas, é uma forma de evasão anti-social e
contra a legalidade estabelecida (NOGUEIRA, 2004: 27) e que, por isso mesmo, é
condenada. É essa magia que a protagonista da tragédia, tomada de furor, emprega
como meio de vingança.
Vejamos, agora, em detalhes, quais os elementos mágicos utilizados por Medéia e
como ela realiza seus feitiços, bem como o motivo pelo qual sua prática é contrária aos
preceitos estoicos. Como dissemos, é no terceiro episódio que Sêneca apresenta a
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
façanha mágica da protagonista. Medéia pratica tais feitiços em um momento de ira e
furor, conforme constatamos na fala da Ama:
Minha alma está espantada, cheia de horror: é eminente uma grande
desgraça. Quanto mais cresce o seu desumano furor, tanto mais ela
mesma se exalta e encontra novamente a força que a animou no
passado. Amiúde vi Medéia, em delírio, atacar os deuses e suscitar a
ira do céu; mas o que ela agora medita é ainda mais extraordinário.
(Sên, Med, 670-675).
Medéia vai até o seu “funesto refúgio” e apanha diversos materiais, até mesmo
“objetos dos quais ela mesma tinha terror desde muito tempo, objetos misteriosos,
secretos, escondidos.” (Sên, Med, 677-678). Apanha todos os tipos de venenos, de
diversas partes do mundo e atrai, com seus encantamentos, todas as raças de répteis
venenosos. Entretanto, tamanho é o seu furor, que Medéia acredita que essas “são armas
fracas demais”. Buscando formas mais terríveis para realizar sua magia, ela pronuncia
as seguintes palavras:
São dardos demais comuns estes que a terra produz: quero pedir aos
céus os seus venenos. Chegou o tempo em que deve ser feito algo
mais grandioso do que os malefícios vulgares. Desça até aqui a
famosa serpente que se assemelha a um imenso rio e da qual a Ursa
Maior e a Menor sentem os monstruosos apertos [...]: a constelação do
Serpentário desaperte enfim as mãos e deixe o réptil cuspir veneno!
Às minhas magias aproximam-se Pitão, que ousou perseguir as
divindades gêmeas, e a Hidra com todos os seus répteis que a mão de
Hércules cortava e que imediatamente renasciam. Deixa a Cólquida, ó
dragão sempre vigilante, que eu pela primeira vez adormeci com os
meus encantamentos. (Sên, Med, 691-703).
A utilização de ervas e serpentes venenosas para a prática mágica ocorre porque às
“feiticeiras são essenciais às substâncias acreditadas como depositárias de propriedades
mágicas e a sua preparação – quanto mais não fosse para a confecção de venenos e
perfumes – para atingir o fim desejado...” (NOGUEIRA, 2004: 43). Além disso, “um
poder mágico era conferido a esses objetos por intermédio de sua associação com a
morte e catástrofe, bem como pela dificuldade de sua aquisição.” (OGDEN, 2004: 32).
Medéia reúne os materiais para o encantamento da seguinte forma:
Ela pega todas as ervas mortíferas: expreme o veneno dos répteis,
misturando os malefícios de sinistras aves, o coração de um lúgubre
mocho e as vísceras arrancadas à uivante coruja quando é ainda viva.
Estas são as magias reunidas por esta artista em matéria de crimes:
cada uma em seu lugar, tendo umas a força devoradora das chamas,
outras a força glacial de um frio que entorpece. A estes venenos ela
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
acrescenta as fórmulas mágicas não menos terríveis. (Sên, Med, 732737).
O ritual mágico se efetiva quando Medéia corta os braços e acrescenta o seu sangue à
mistura sinistra. Trata-se de um rito mágico de natureza sacrificial, comum às tragédias
senequianas, pois nestas “existe sempre um sacrifício, muito embora seu ritual seja
pervertido já que quem o realiza está acometido de furor, a loucura em que se converte a
paixão ou que com esta se identifica.” (CARDOSO, 1999: 121). A feiticeira impregna
uma capa com o conteúdo mágico preparado, com o intuito de mandá-la à Creúsa, a fim
de que, “logo que ela a tenha posto sobre o corpo, uma chama penetre nos seus ossos e a
devore até a medula.” (Sên, Med, 818-819). Medéia chama os seus filhos e faz com que
eles levem a capa amaldiçoada para Creúsa como forma de presente.
Pouco depois um mensageiro traz a notícia ao Coro de que um fogo voraz consome o
palácio do rei Creonte e ameaça destruir a cidade. Trata-se de um fogo mágico que é
alimentado até mesmo pela água!
A magia levada a cabo por Medéia se enquadra na definição da magia subversiva que
tratamos anteriormente. Trata-se de uma prática que é realizada sem o uso da razão, é
voltada para fins pessoais e é motivada por um fim maléfico, ou seja, é gerada pelo
desejo de vingança da protagonista e por um ódio que esta tem devido a um amor não
correspondido. O feitiço enveredado por Medéia é contrário aos preceitos estoicos,
aflige a vontade divina e o destino, além de se tratar de um ato contrário à simpatia
universal, uma vez que a magia dela corrompe o equilíbrio natural dos acontecimentos.
Entretanto, esta é apenas a primeira parte da vingança de Medéia, a protagonista
deseja castigar Jasão de forma mais terrível, e não se contenta apenas em deixá-lo
viúvo. Um dos traços característicos das peças de Sêneca, em relação às gregas, é a
possibilidade de escolha de suas personagens. “O teatrólogo romano, ao elaborar suas
personagens trágicas e ao colocá-las em situações de conflito, decorrentes da submissão
às paixões, permite-lhes a opção.” (CARDOSO, 1999: 136). “Inumana, posto que
feiticeira, poderia atingir a humanidade pela razão e pela uirtus. Mas, ao longo de toda a
peça, quer ser desumana, quer ser criminosa.” (NOVAK, 1999: 149). Ela escolhe
submeter-se aos vícios da alma e praticar crimes terríveis.
Essa característica criminosa é exaltada no Epílogo da peça, quando se realiza o
nefas, o crime hediondo contra a natureza. Nesse momento Medéia trava uma luta
interior consigo mesma, na qual os sentimentos de mãe se chocam com os sentimentos
de ira. Ela quer continuar fiel ao seu passado de crimes, luta com sua consciência, mas
os restos de sua humanidade vão sendo sobrepujados. Aqui interessa “os sentimentos
das personagens, a luta intensa dos impulsos contraditórios e da razão.” (NOVAK,
1999: 149). Medéia incita-se para ter coragem de conjurar o pior dos crimes, para se
tornar digna de si mesma e prepara sua alma para o crime supremo: matar os próprios
filhos para vingar-se de Jasão, pois para ele seus filhos são “a razão de vida, eles são a
consolação desta alma roída pelos sofrimentos.” (Sên, Med, 543-544). Ao pensar nesse
ato, a protagonista horroriza-se, seu sentimento materno reaparece e ela hesita: “Ó
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minha alma, tu vacilas. Por quê? Por que as lágrimas banham o meu rosto, por que sou
arrastada por impulsos contraditórios, entre ódio e amor?” (Sên, Med, 937-938).
Mas, por fim, os sentimentos de ódio e de vingança vencem, e Medéia mata um de
seus filhos. Fugindo dos guardas que querem matá-la, ela sobe ao alto do palácio com a
Ama, o outro filho e o corpo do filho morto. Agora Medéia quer matar o outro filho aos
olhos de Jasão, e ela o faz, jogando os cadáveres dos filhos aos seus pés. Trata-se de um
crime cometido contra a natureza, contra a lei divina. A protagonista foge com a Ama
em um carro puxado por serpentes que sobe ao ar e desaparece nas nuvens. A tragédia
encerra-se com a fala de Jasão: “Sim, vai pelos infinitos espaços do céu: para provar que
não há deuses lá onde tu te elevas.” (Sên, Med, 1026-1027). Ora, “se é verdade que o
homem se une a Deus pela uirtus, como pretende Sêneca, não pode mesmo haver
Deuses no caminho de Medéia.” (NOVAK, 1999: 152).
Dessa forma, após nossa discussão acerca dos princípios da filosofia estoica e da
análise da tragédia Medéia, podemos concluir que Sêneca a escreveu com o intuito de
divulgar alguns princípios filosóficos, como, por exemplo: os atos destituídos de razão e
sem o respeito pela natureza podem causar males ao equilíbrio da ordem do Cosmos;
atos irracionais, como ao praticados por Medéia, produzem angústia, desequilíbrio e
infelicidades; a magia praticada com fins maléficos, cheios de ira, causam catástrofes e
caos; as paixões desmedidas e o ódio exarcebado são obstáculos insuperáveis para
alcançar a tranquilidade da alma; somente a prática da uirtus conduz o homem ao
caminho divino e à felicidade. Sob tal ponto podemos compreender as peças de Sêneca
como um exempla que ilustra as consequências do descontrole dos sentimentos e das
paixões. Por fim, podemos atribuir uma função pedagógica às obras de Sêneca,
sobretudo a tragédia Medéia, a qual encerra em si, conforme dissemos, diversos
preceitos da doutrina estóica.
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
OS PERIGOS DA NAVEGAÇÃO E A MORTE NO MAR: AS REPRESENTAÇÕES
DOS POETAS (SÉCULOS VIII AO VI A.C)
Camila Alves Jourdan32
Resumo: O artigo consiste na análise de obras de poetas do período arcaico helênico,
procurando elucidar as representações construídas pelos helênicos acerca do mar e da
navegação, principalmente ao que se referem aos perigos, as dificuldades e a morte no
meio marinho. Assim, utilizaremos o conceito de “representações sociais” (Denise
Jodelet) e a metodologia de “grades de leitura” (François Frontisi-Ducroux).
Enveredamos, também, pela temática da noção métis, esta como meio de “solução” dos
problemas encontrados pelos navegantes (nautai).
Palavras-chave: Navegação – poesia – morte – métis
Résumé : L'article est l'analyse des œuvres des poètes de la période archaïque grecque,
cherchant à clarifier les représentations construites par les Hellènes sur la mer et la
navigation, surtout lorsqu'on se réfère aux dangers, les difficultés et la mort dans
l'environnement marin. Donc, nous utilisons le concept de “représentations sociale”
(Denise Jodelet) et la méthodologie de ”grilles de lecture" (François-Frontisi Ducroux).
Nous discuterons également de la question de la notion de métis, cette comme un moyen
de “solution” des problèmes rencontrés par les marins (nautai).
Mots-clés : Navigation - Poésie - la mort – métis
O mar e a navegação são representados pelos poetas do período arcaico como o lugar
do perigo iminente e local de aquisição do lucro, isto é, com características
ambivalentes. Assim, neste artigo, nos deteremos nos inúmeros perigos expostos por
esses autores, relacionando-os coma noção métis (ardil/astúcia). Esta representa –
dentre outras possibilidades – as habilidades necessárias para a superação das agruras
que se desenvolvem no mar e na prática da navegação.
Para tanto, buscando compreender as construções destas representações e sua
circulação, faremos uso do conceito de “representações sociais” delineado por Denise
Jodelet.
Deste modo, as representações se encontram circulando nos discursos, seja através
de palavras em mensagem ou de iconografias de grande circulação social, no qual se
nota uma cristalização da conduta dos indivíduos e sua organização material. Com esta
noção buscamos entender um mundo repleto de significações que fazem parte do
cotidiano, nos seus diversos elementos, como os valores, imagens, opiniões e crenças.
Em nossa pesquisa, compreendemos as representações sociais como meio de
simbolização de uma dada realidade, no qual atribui-se significados e interpretações.
32
Aluna de graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Núcleo de
Estudos de Representações e de Imagens da Antiguidade – NEREIDA /UFF, sob orientação do prof. Dr
Alexandre Carneiro Cerqueira Lima. Contato: [email protected]
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Isto é, tal conceito nos permite visualizar dois segmentos: a circulação que os discursos
dos poetas alcançavam e as representações que eles construíam acerca de determinada
temática.
Devemos, antes de nos atermos as passagens que iremos utilizar neste artigo, abordar
a questão do discurso e dos poetas. Afinal que vozes eram estas?
As obras que faremos usos são produções de poetas do século VIII e VI a.C., ou seja,
ideias e valores que estão circulando no Período Arcaico. Dentre os autores destacamos
Homero, Hesíodo, Arquíloco, Semônides e Sólon. Suas obras possuem características
diferentes umas das outras, uma vez que Homero apresenta a poesia épica (MOSSÉ,
2004) e que Sólon, por exemplo, produz elegias e poemas iâmbicos (ADRADOS,
1990).
Os discursos feitos por estes poetas representam ideais da elite, logo, afirmam ideias
que possuem um significado elitista nas diversas temáticas que abordam ao longo de
suas obras. Não obstante, os valores que são apresentados sobre o mar e a navegação
partem destes pressupostos sociais.
Assim, o mar e a navegação são desprestigiados em relação a terra e a agricultura. O
navegante, de igual modo, é rechaçado quando comparado ao grande proprietário de
terra, que usufrui do ócio. São diversas as representações sociais feitas pelos poetas
que circulam na sociedade ateniense, bem como em outras póleis.
Deste modo, o mar é representado como algo inconstante, no sentido de possuir
diversas qualificações. Não há, portanto, agregação de valor positivo ou valor negativo
somente, sendo um ou outro. O mar é um e outro, no mesmo momento. Enquanto o
lucro pode ser extraído através da navegação deste mar, o mesmo pode matar o
indivíduo.
Segundo Ana Livia Bomfim Vieira as representações sobre o mar podem ser
compreendidas como ambivalentes. Isto significa dizer que os poetas empregaram
valores positivos e negativos. As construções das representações que circulavam no
imaginário social políade acerca do mar e da navegação permeavam a intrínseca relação
da busca em compreender o “funcionamento” do mar e dos valores que a elite social
prestigiava como sendo as mais honrosas.
Como argumenta a supracitada autora, o conceito de ambivalência – concebido por
Marc Augé – pode ser aplicado ao mar, uma vez que compreende em “ser bom e mau,
honrado e vergonhoso ao mesmo tempo, tudo isso ligando-se a uma diversidade de
pontos de vista. É a coexistência de duas qualidades” (VIEIRA, 2008: 10).
Como podemos ver na documentação textual, é nesta base de múltiplas
representações que os poetas gregos do período arcaico pautam suas representações,
tanto sobre o mar quanto sobre a navegação, bem como os nautai.
Para este artigo, elegemos algumas passagens de obras de poetas dos séculos VIII e
VI a.C., como Homero, Hesíodo, Arquíloco, Semônides e Sólon.
Para concretizarmos a análise desta documentação fizemos uso da metodologia
proposta por Françoise Frontisi-Ducroux, as “grades de leitura”. Esta consiste na
isolação de termos referentes ao objeto de estudo, em nosso caso selecionamos como
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
“tema” o mar e a navegação. Para cada ocorrência o contexto nos fornecerá, de acordo
com a autora, dois tipos de dados: O primeiro consiste no significado do termo, o seu
emprego e os sentidos utilizados; o segundo refere-se a valores que são associados ao
termo e que comungam do mesmo âmbito de representações (FRONTISI-DUCROUX,
1975).
Ao optarmos pela utilização deste método, buscamos ir além de uma simples análise
das temáticas que perpassam nossa pesquisa, com este método podemos estender nosso
olhar sobre o verso, à frase ou mesmo à passagem inteira na qual a referência analisada
está presente, fazendo com que tenhamos um olhar mais amplo sobre as ideias presentes
nas obras.
Tomamos como pressuposto a ideia de que “O ponto de partida não é nem um
conceito nem uma só palavra.” (VIEIRA, 2005: 17), mas o conjunto que permeia o
entorno dos temas elencados.
Passamos, então, à análise das passagens por nós selecionadas. A primeira consiste
na obra homérica “Odisséia”.
Em seu canto I, Homero expõe uma “síntese” das problemáticas enfrentadas por
Odisseu. Entre seus apontamentos está o mar, local de sofrimentos para Odisseu. Neste
caso, o tema é o mar e a atribuição feita é de ser um local de sofrimento.
No mar, inúmeras dores feriram-lhe o coração, empenhado em salvar
a vida e garantir o regresso dos companheiros. (I, VV. 3-5)
Outra passagem acerca da periculosidade do mar pode ser vista nos versos 11 e 12 do
mesmo canto:
Os outros, todos os que tinham escapado da tenebrosa ruína, estavam
em casa, salvos da guerra e do mar. ( I ,VV. 11-12)
Nesta passagem, a periculosidade do mar é comparada ao da própria guerra, no caso
entende-se a ‘Guerra de Tróia’. Assim, aqueles que conseguiram regressar desta guerra
estavam salvaguardados dos perigos que a guerra e o mar possuíam. O mar é posto
como tão terrível quanto a guerra.
No canto III da “Odisséia”, Homero narra o momento em que Nestor expõe à
Telêmaco as notícias sobre os sobreviventes do regresso de Tróia. Esta passagem referese a Idomeneu, de Creta. Nesta, o mar e a navegação são evidenciadas como local e
prática perigosas.
O mar não lhe roubou nenhum. (III,v. 192)
Com a mesma ideia de periculosidade, Homero aborda, na passagem abaixo descrita,
o retorno de Menelau, segundo as palavras de Nestor. Apresentando o traçado usado por
Menelau, Nestor expõe a navegação como algo que infere perigo constante aos
navegadores, passando por caminhos tortuosos e constância da possibilidade de ocorrer
acidentes.
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O mar/ amontoa líquidos montes, curvados como dorsos/ de monstros.
Naves dispersas batem em Creta. (III, VV. 289-291)
Na passagem, contada por Homero, em que o arauto Médon conta à Penélope sobre a
empreitada de Telêmaco e a armadilha preparada pelos pretendentes, visando findar
com a vida de seu filho, a morte no mar é apresentada como o esquecimento, uma morte
sem honra:
Os cavalos marítimos/ arrastam para as profundezas do mar. Não lhe/
restará nem a lembrança do nome. (IV, VV. 708-710)
Por fim, dentre as passagens que elencamos na obra de Homero, destacamos a que
mostra o mar e seus malefícios. Nesta passagem, Laodamas – filho do rei Alcínoo –
convida Odisseu a participar dos eventos esportivos. Elogia o porte físico do herói, mas
considera que as dificuldades enfrentadas no mar poderiam ferir violentamente um
homem e com isso tê-lo enfraquecido. Isto nos evidencia o quão mal poderia fazer o
mar a um homem.
Males há muitos, mas mal algum supera os males/ do mar. Carcomem
o homem, mesmo que forte. (VIII, VV. 138-139)
Centrando-nos na obra de Hesíodo “Trabalhos e dias”, destacamos duas passagens,
uma que se refere a navegação e outra ao mar. Na primeira, Hesíodo inicia sua
abordagem à temática da navegação. Sua caracterização inicial contrapõe as atribuições
feitas anteriormente à agricultura, pois a navegação apresenta-se como ameaçadora. É,
assim, atribuída a representação de periculosidade.
perigosa navegação. (v. 618)
Na segunda passagem elencada por nós, o mar traz a morte sem glória. Com isto,
Hesíodo alerta sobre a navegação no período da primavera, apontando que este não é
um período propício aos sensatos, já que se arrisca a própria vida nesta navegação. A
navegação não vale a vida do indivíduo. Com isto, morrer torna-se um risco constante.
Morrer desta forma não é algo válido, honroso ao homem.
E é horrível morrer entre as ondas. (V. 687)
A partir dos fragmentos que dispomos do poeta Arquíloco, destacamos os versos 5 e
6, no qual a morte no mar significa a ausência de rituais fúnebres . Deste modo, não
seria possível conceder as honras fúnebres aos mortos no mar. Posidon ocultaria a dor
aos parentes, já que não poderiam ver os corpos sendo queimados na “chama de
Hefestos”.
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Se Hefesto tivesse envolvido em seu vestido a cabeça e os membros
dele. Oculta os dolorosos presentes o Senhor Poseidon. (VV. 5-6)
De igual maneira, selecionamos uma única passagem do poeta Semônides. O autor
aponta que o mar é local de morte.
Outros perecem no mar sob o ataque da tempestade e de inúmeras
ondas do ponto espumante quando eles não podem continuar a viver.
(2, VV.15-19)
Nesta, Semônides aborda a questão da morte como algo inevitável pelos mortais.
Com isto, passa a descrever a morte no mar. A morte cabe aos mortais, contrariamente o
que acontece aos deuses. No mar, a morte dos navegantes provém das dificuldades que
enfrentam cotidianamente.
A última passagem pela qual optamos remete-se ao poeta e legislador Sólon. Ao
refletir acerca das dificuldades pela qual passava a pólis dos atenienses, o autor utiliza
de uma metáfora e usa a as dificuldades da navegação para comparar aos problemas
enfrentados pela cidade.
Dentro de meu coração há uma grande dor ao ver a mais antiga terra
da Jônia que naufraga [...]. (4, VV. 40-42)
Assim, ao falar da crise que assola a cidade (stásis) e da falta de eunomia, Sólon faz
uma alusão à questão da navegação. Como um barco que naufraga, assim é a metáfora
utilizada pelo autor para abordar a crise ateniense.
Selecionamos algumas das passagens em que estes autores abordam o tema da
navegação e do mar. Nelas podemos ver que as “representações sociais” que
perpassavam o imaginário social apresentavam o reconhecimento das dificuldades pelas
quais os navegantes passavam. Muitos eram os perigos enfrentados nos “domínios de
Poseidon”.
Dentre as obras apresentadas, iremos nos centrar na questão da morte no mar. Este é,
sem dúvida, um dos principais perigos enfrentados pelos nautai na prática da
navegação. Sendo assim, Jean-Pierre Vernant afirma que, para os gregos, a “idéia que a
morte é um limiar intransponível, atrás do qual se encontra um mundo que é um mundo
de horror, de anonimato, um magma onde todos se perdem” (VERNANT, 2009).
A morte para os gregos está presente na “vida da polis”, isto é, a prática de cuidar
dos túmulos, renderem-lhes honras fúnebres, a existência de dias de festivais dedicados
aos mortos, ao ponto de ser uma preocupação de ordem econômica para os legisladores
da cidade. (BURKERT,1993: 376-379) . Dentro da ideologia elitista, a morte tem papel
relevante, uma vez que, de acordo com Walter Burkert, “A veneração dada aos
antepassados é esperada também dos descendentes: da recordação dos mortos cresce a
vontade de continuidade.” (BURKERT,1993: 380).
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Os rituais fúnebres fazem parte da vida social tanto do morto quanto dos vivos.
Claude Mossé nos informa que nos rituais o morto
Durante um dia ou dois ficava exposto na entrada da casa, enquanto as
mulheres de sua parentela choravam e entoavam um canto fúnebre, o
treno, arrancando-se os cabelos. O cadáver era então colocado em um
carro e um cortejo o seguia de sua casa ao cemitério, geralmente à
noite. O corpo era enterrado ou cremado. (MOSSÉ, 2004: 250).
Morrer adquire um status paradoxal: implica na morte do indivíduo, a sua “viagem
para o esquecimento”, mas a rememoração constante feita pelos vivos, seja pelo canto
dos poetas, seja pelo memorial funerário. Era fundamental, assim, que a singularidade
da existência do indivíduo, de seus feitos do que havia sido, permanecessem inscritos
para sempre na memória dos homens (VERNANT, 2009: 86).
Mas, e a morte no mar e a ausência do corpo?
Podemos ver, a partir da documentação que analisamos, que essa morte marinha se
coloca como o oposto da morte com seus rituais. O corpo se “perdeu” entre as ondas do
mar, foi danificado, não pode receber as honras fúnebres. Não é a “bela morte” de um
guerreiro em batalha – morte tão valorizada nos discursos –, mas a ausência do
indivíduo, no qual o corpo se decompõe no mar.
A morte no mar representa o “’ultraje ao cadáver’, ou seja, o tratamento que se quer
infligir aos inimigos mortos para que não se tornem memoráveis, para os deixar
apodrecer” (VERNANT,2009: 91). Não é somente o corpo, mas o esquecimento que o
indivíduo terá na memória dos vivos.
Os rituais fúnebres marcam a mnemosyne – Memória –, guardam a lembrança e a
mantém viva. Como destacamos na passagem da obra homérica, a morte no mar pode
representar o esquecimento: “Os cavalos marítimos arrastam para as profundezas do
mar. Não lhe restará nem a lembrança do nome” (Odisséia, canto IV, VV. 708-710).
Neste sentido, a navegação ficaria, minimante, mal quista socialmente por dois
motivos: primeiro porque a navegação não é um erga digno do cidadão políade; em
segundo lugar, a morte marinha é a morte desonrada, sem a glória.
A morte não é uma obrigatoriedade àqueles que navegam, mas uma possibilidade
cotidianamente presente. Não somente a morte, mas de todos os perigos, como as
mudanças climáticas e as mudanças das correntes, e das agruras de caráter mítico, como
as sereias que encurralam com suas vozes e seus saberes os navegantes incautos.
O mar é o lugar ambivalente, das rápidas mudanças, da inconstância. Neste meio
inóspito, os nautai precisam do conhecimento, dos saberes pertinentes à navegação. No
entanto, não só os saberes seriam capazes de salvaguardá-los, seria preciso ter a
habilidade do pensamento, do ardil, da astúcia. A esse conjunto de saberes práticos os
gregos nomearam de métis.
A noção métis nos conduz à uma pluralidade de possíveis traduções e compreensões.
Presente na documentação desde o período arcaico, a semântica da palavra se mantém
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estável do transcorrer do tempo, mesmo que nos apresente tal pluralidade de
concepções. A noção pode ser compreendida como ardil, astúcia, uma inteligência
prática capaz de agir diante de uma dificuldade prevendo até mesmo a resposta a sua
ação.
Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant definem métis como o uso de uma
inteligência ardilosa, onde as habilidades como a agência do espírito frente ao
desconhecido ou a um ato inesperado, a sagacidade, o senso de oportunidade e a
esperteza são utilizados. A métis não pode ser compreendida como um impulso
“leviano”, ao contrário, é um planejamento rápido, da ação do tempo de um relâmpago,
que ao mesmo tempo é paciente o suficiente para esperar a hora certa da ação.
Destarte, como ressalta a autora Ana Lívia Bomfim Vieira,
Um homem possuidor da métis tem uma sabedoria que é variada e que
lhe permite um grande leque de recursos, de desembaraços para as
situações críticas ou para o melhor exercício de um ofício. (VIEIRA,
2008)
Nada mais evidente do que pensarmos nesta noção para os navegantes, indivíduos
que convivem com as necessidades de agir rapidamente perante o desconhecido perigo.
Desta maneira, a métis do navegante se faz necessária para que ele possa se aperceber
das inúmeras situações que lhe são configuradas no meio marítimo. A astúcia e o ardil
lhe capacitavam para dominar e atuar efetivamente no meio marinho. Assim, a métis
torna-se uma “arma” para a superação dos medos, dos perigos e das dificuldades tão
presentes no mar e na prática da navegação.
Acreditamos que, mesmo com a circulação de ideias e valores nos discursos da elite,
a população afirmou-se na atuação direta com o mar, buscando compreendê-lo e
dominá-lo. E, para isto, a uso da métis tornou-se importante.
Mesmo sendo um lugar onde o perigo era constante, os atenienses se colocaram à
navegação, desenvolveram seus conhecimentos, dominaram suas técnicas. O mar, lugar
inóspito e, segundo os discursos da elite, o lugar mal visto socialmente, foi representado
durante um longo tempo, isto é, foram construídas representações sociais sobre o meio
marinho.
Acreditamos que, mesmo com os valores da elite social sendo exaltados e
apresentados por estes e outros poetas, a população mais pobre tornou este mar o seu
lugar de atuação e fez da navegação a sua forma de sobrevivência. Ainda que a
circulação de valores permeasse a população, onde o grande proprietário de terra era
exaltado, não era algo determinante nesta organização social. Os nautai eram tão
necessários quanto aqueles homens que permaneciam na terra.
“Eles se fizeram homens do mar” (VIEIRA,2005: 75) – desde a construção das
representações até o exercício de dominação –. Em nosso parecer, esta é a base da
relação entre os atenienses e o mar. Como nos expõe Ana Lívia Bomfim Vieira, os
atenienses construíram uma relação com o mar. Buscaram aprender sobre ele,
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imprimiram-lhe diversos sentidos e explicações, divinizaram este mar como morada de
diversas divindades, o rechaçaram pelas inúmeras agruras que podia causar.
Esta relação de proximidade e distanciamento, isto é, uma relação ambivalente, de
representações diversas, permitiu aos atenienses construir uma marinha de guerra
suficientemente poderosa que, no século V a.C, seria capaz de empreender uma
dominação no mar Egeu – a política thalassocrática.
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ROMANITAS E HIBRIDISMO CULTURAL NA TRIPOLITÂNIA ROMANA: A CIVITAS DE
OEA SEGUNDO O TESTEMUNHO DE APULEIO DE MADAURA
Belchior Monteiro Lima Neto
Resumo: Este artigo tem como principal intenção discutir o multiculturalismo relacionado ao
Império Romano. Para tanto, localizaremos nossa pesquisa na Tripolitânia romana, mais
precisamente na cidade de Oea. Tomaremos como fonte principal a obra Apologia, de Apuleio
de Madaura, dando ênfase aos conflitos gerados por seu casamento com uma rica matrona local,
Emília Pudentila. Aqui, tentaremos relacionar o imbróglio existente em torno do matrimônio de
Apuleio com as percepções da elite citadina de Oea acerca de casamento e de alianças
familiares, associando conceitos como cultura imperial, hibridismo cultural e multiculturalismo
como forma de compreender a realidade da sociedade romana provincial do II século.
Palavras-chave: Tripolitânia, Apuleio de Madaura, multiculturalismo, cultura imperial.
Abstract: This article has the intention to discuss multiculturalism related to the Roman
Empire. To do so will locate our research in Roman Tripolitania, more precisely in the city of
Oea. We will take as its primary source the Apologia of Apuleius of Madaura, emphasizing the
conflicts generated by his marriage with a wealthy matron local, Emilia Pudentila. Here, we try
to relate the existing mess around the marriage of Apuleius with the elite perceptions of the Oea
city about marriage and family alliances, involving concepts such as imperial culture, cultural
hybridity and multiculturalism as a way to understand the reality of roman provincial society in
II century.
Keywords: Tripolitania, Apuleius of Madaura, multiculturalism, imperial culture.
O Império Romano era uma realidade bastante diversa e de difícil definição. Vastas regiões
estavam sob a sua autoridade, constituindo territórios na Europa, no Norte da África e na Asia
Menor.33 Se nos limitarmos apenas à parte ocidental do império, espacialidade tratada neste
artigo, diversas etnias estavam submetidas ao imperium romanorum: líbios, púnicos, gauleses,
bretões, germanos, entre outros. 34 Roma englobava uma ampla gama de povos, costumes,
línguas e culturas, caracterizando-se como uma entidade multifacetada e plural.
O multiculturalismo inerente ao Império Romano, contudo, nos coloca numa encruzilhada.
Como conceber uma entidade plural e etnicamente diversa e ao mesmo tempo dar unidade,
coesão e homogeneidade cultural àquilo que designaríamos como ‘romano’? Em outras
palavras, como conceber a romanitas neste quadro geral de diversidades e diferenças culturais?
Uma resposta possível a estas perguntas é pensarmos o conceito de cultura a partir
dos pressupostos teóricos de Janet Huskinson (2000b), que a concebe como significados

Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da
Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação do Prof. Dr. Gilvan Ventura da Silva.
33
Grosso modo, poderíamos conceber o Império Romano, à época do Principado, como uma intrincada
rede de cidades submetidas a um Estado concêntrico – com epicentro em Roma – que exercia sua
hegemonia por meio de relações de troca de poder e de riqueza com as diversas elites que compunham a
chamada oikouméne romana (MENDES, 2004).
34
O imperium romanorum, o que poderíamos traduzir como “império dos romanos”, servia para designar,
acima de tudo, não só o espaço no interior do qual Roma exercia o seu poder, como este mesmo poder.
Na origem, a palavra imperium representava a força capaz de agir sobre o mundo, de o submeter à sua
vontade. A etimologia da palavra continha a ideia de ordenação, de imperativo (GRIMAL, 1993).
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partilhados pelos indivíduos que integram um mesmo sistema cultural e expressos em
práticas compartilhadas e no emprego de representações de uma identidade comum. Na
opinião de Huskinson (2000b), no período imperial romano houve uma autêntica cultura
imperial, comungada principalmente pelas diferentes elites que compunham o Império
Romano.35 O uso da língua e da escrita latina e grega36, a posse da cidadania romana e a
participação nos cargos públicos, nos cultos e nas festividades cívicas, o gozo das
benesses urbanas nos teatros, anfiteatros e termas e a difusão de uma educação baseada
na paideia greco-romana são elementos compartilhados que davam significado àquilo
que poderíamos denominar como ‘romano’. 37
Tal concepção, ademais, não invalida o quê de mestiçagem e de hibridismo que
devem ser levados em conta quando nos aproximamos das sociedades provinciais. 38 O
conceito de cultura imperial, nas palavras de Huskinson (2000 a, p. 121), “é plástica o
suficiente para agregar a diversidade”, posto que a existência de elementos
compartilhados identificadores daquilo que seria romano conviveria e se influenciaria
pelas culturas locais. É neste sentido que podemos concordar com as apreensões de
Mendes (2006, p. 250-251) no tocante à romanitas não ser uma identificação étnica ou
racial, mas um “processo de comunicação cultural de um status jurídico e legal”
disseminado pelas diversas províncias do orbis romanorum.39
Tendo em vista o quadro geral de diversidade cultural traçado acima, analisaremos
neste artigo uma localidade específica do Império Romano: a Tripolitânia. Acreditamos
que essa região no Norte da África seja fundamental para os interesses de nossa
pesquisa, pois nela observamos de forma bastante nítida a interação, o conflito e os
contatos entre uma população com um forte passado cultural púnico/líbico e os valores,
hábitos e costumes daquilo que conceituamos como cultura imperial romana. Para tanto,
tomaremos como fonte principal de nosso artigo o livro Apologia de Apuleio de
Madaura, escritor, sofista e filósofo norte-africano que entre os anos de 157 a 159 d.C.
vive, se casa e é julgado e absolvido da acusação de magia em Oea, uma das principais
civitates romanas na região.40
35
Utilizamos o termo elite a partir de uma conceituação relacionada à teoria das elites, que estipula que
em toda sociedade há sempre um grupo minoritário, melhor organizado e em condições privilegiadas em
termos de poder político, econômico e social, ao qual podemos designar como elite (BOBBIO, 1991).
36
Fizemos referência à língua e escrita latina e grega pelo fato de o Império Romano ser efetivamente
bilíngüe, com a parte ocidental do Estado utilizando o latim e a oriental o grego como idiomas oficiais.
37
Entendemos paideia como o conjunto de aprendizados literários, retóricos, oratórios, políticos,
filosóficos e mitológicos que instruíam, diferenciavam e identificavam os indivíduos pertencentes à elite
romana (BROWN, 1992).
38
Para Burke (2003), o termo hibridismo e mestiçagem culturais remete-nos a um fenômeno atual de
encontros e misturas culturais, em que novas formulações culturais (híbridas) são constituídas.
Entendemos que tal concepção, ademais, se adapte de forma bastante satisfatória à própria realidade
multifacetada do Império Romano, e por isso a utilizamos neste artigo.
39
Utilizaremos neste artigo o termo orbis romanorum como sinônimo de Império Romano, posto que o
termo também era denominado pelos próprios romanos ao se referirem às terras sob o seu domínio.
40
Neste artigo conceituamos o termo civitas (plural civitates), substantivo comumente traduzido por
cidade, como o estatuto sócio-jurídico de uma comunidade assentada num espaço urbano (urbs) e
alargada sobre uma área rural (ager), a qual é independente e cimentada nas leis (MENDES, 2001).
51
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
A Tripolitânia, chamada assim devido à existência de uma tríade de cidades
prósperas – Lepcis, Oea e Sabrata –, se localizava a leste de Cartago, a meio caminho
entre a capital púnica e a região da Sírtica. As cidades da Tripolitânia foram
originalmente colônias púnicas, e sua fundação remonta ao V século a.C. Antes da
chegada dos romanos, a região era conhecida como Emporia, sendo um importante
entreposto comercial cartaginês com o Egito e o Oriente (BIRLEY, 2002).
A conquista romana sobre a Tripolitânia se efetiva no final do I século a.C.
Inicialmente, as principais cidades foram agregadas ao imperium romanorum como
civitates libertae, isto é, cidades livres que, mesmo submetidas ao poder romano,
continuavam a ter uma grande margem de autonomia, com a manutenção de suas leis,
suas instituições e seus costumes locais (FRIJA, 2011). Em grande medida, até fins do I
século d.C., a região foi pouco tocada pelo processo de romanização em curso no Norte
da África, sendo um dos poucos territórios norte-africanos a não ter colônias fundadas
em suas terras e também a única a não receber levas de imigrantes vindos da Península
Itálica (MATTINGLY, 1994).41
Se tomarmos a civitas de Oea como exemplo, verificaremos que o processo de
elevação da cidade de peregrina 42 à colônia romana foi bastante lento, compreendendo
um período de tempo que se estendeu do início do I século a fins do II século d.C. 43
Essa ascensão de status é muito representativa do grau de romanização alcançado por
uma cidade e nos dá uma boa medida da tardia incorporação de Oea aos valores da
cultura imperial romana. Ao levarmos em consideração a epigrafia relacionada à cidade,
verificaremos que somente por volta do ano de 185 a civitas alcançou a categoria de
colônia romana44, fato que pode ser visto na dedicatória de um templo erigido em
homenagem ao Genius coloniae (INSCRIPTIONS OF ROMAN TRIPOLITANIA, 230).45
41
Compreendemos romanização “como um processo de mudança sociocultural, multifacetada em termos
de significados e de mecanismos, que teve início com a relação entre os padrões culturais romanos e a
diversidade cultural provincial em uma dinâmica de negociação bidirecional” (BUSTAMANTE;
DAVIDSON; MENDES, 2005, p. 25).
42
Entre as cidades peregrinas, estrangeiras de acordo com a denominação romana, há as consideradas
civitates libertae e as stipendiariae, sendo ambos os títulos referentes a cidades que, apesar do domínio
romano, se autogovernam segundo as suas próprias tradições (FRIJA, 2011).
43
A colônia romana era o grau mais elevado na hierarquia das civitates provinciais, sendo entendida com
uma continuação e um prolongamento da própria Roma. Nestas colônias, todos os cidadãos possuíam o
status da cidadania romana plena. A administração destas pequenas Urbs reproduzia as bases da
organização institucional da cidade de Roma, com um conselho local (curia), dois magistrados superiores
colegiados (duumviri) e os correspondentes colégios sacerdotais, tais como o dos pontífices e flâmines
(LIMA NETO, 2011).
44
A inscrição referente ao Gênio Colonial é a mais específica citação acerca do status de colônia romana
de Oea. Temos, contudo, outras referências mais antigas e que antecipam em cerca de uma década tal
elevação de categoria da cidade, tais como a menção de Apuleio em Apologia (51.6) à existência de um
questor público, ou as inscrições epigráficas que nos demonstram haver na cidade um muneris publici, um
rei publicae e um flamine perpetui (INSCRIPTIONS OF ROMAN TRIPOLITANIA, 232, 542, 233), todas
elas magistraturas típicas de uma colônia romana.
45
A inscrição latina tem o seguinte texto: “Imp(eratori) Caes(ari) M(arco) Aurelio Commodo Antonino
Aug(usto) Pio p(atri) p(atriae) L(ucius) Aemilius L(uci) fil(ius) Quir(ina tribu) [c]o(n)s(ul) proco(n)s(ul)
Asiae Genio Co[loniae ·· ? ··] item (sestertiis) X centena mil(ia) n(ummum) legauit ex cu[ius] s r is
sport lae ci i s et
[i ... darent]ur quod opus Sulla frater et [·· ? ··]” (INSCRIPTIONS OF ROMAN
TRIPOLITANIA, 230).
52
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
No II século, Oea era uma cidade romana de pequenas proporções, com uma
população que provavelmente não ultrapassava a casa dos 20 mil habitantes. Pouco
sabemos acerca de como era a cidade à época romana, exceto pela existência de alguns
monumentos, tais como fragmentos de uma antiga muralha citadina, uma terma na
região leste da cidade, uma inscrição de um possível monumento ao Gênio Colonial e o
denominado Arco de Marco Aurélio, na parte central da antiga civitas. Fora estas
diminutas relíquias e algumas inscrições em latim e neo-púnico que compõem o corpus
de Inscriptions of Roman Tripolitania, o que podemos inferir de Oea provém de
possíveis associações com Lepcis Magna e Sabrata, que no período romano não se
diferenciavam muito em tamanho nem em importância em relação a Oea, e do
testemunho de Apuleio de Madaura em Apologia, fonte primordial para a apreensão da
vida cotidiana da cidade (MATTINGLY, 1994).46
É em Oea que transcorrem a maioria dos acontecimentos narrados em Apologia, que
acreditamos terem ocorrido entre os anos de 157 a 159. 47 A estadia de Apuleio em Oea inicia-se
de maneira fortuita, posto que no caminho de uma de suas viagens a Alexandria, ele passa pela
cidade de Oea, onde adoece e estabelece pouso na casa de amigos (Apuleio, Apologia, 72.1-4).
Nesta cidade, o autor acaba se aproximando da rica viúva Emilia Pudentila, com quem se casa a
pedido de seu antigo amigo de estudos, Ponciano, filho mais velho de Pudentila (Apuleio,
Apologia, 73.2-4). Por causa de seu casamento, Apuleio se vê acusado por parte da elite citadina
local de assassinato e de ser praticante de magia. 48 Seus acusadores eram, principalmente, o
irmão do primeiro marido de Pudentila – Emiliano Sicínio – e o enteado mais novo de Apuleio
– Pudente –, fato que nos indica que o matrimônio do autor ia de encontro às tradicionais
relações de aliança entre duas das mais importantes famílias locais: os Sicinii e os Aemilii.
O matrimônio, ou as justae nuptiae, era uma das instituições romanas mais antigas,
permitido, nas províncias, apenas aos indivíduos que possuíssem a cidadania romana,
sendo um dos elementos principais da denominada cultura imperial. Grosso modo, era
um contrato privado acordado entre as famílias dos noivos, envolvendo o pagamento de
um dote e a concretização de relações recíprocas de amizade. 49 As heranças, os dotes e,
46
Oea é hoje a atual Trípoli, capital da Líbia, que foi construída sobre a antiga cidade romana. Ao
contrário dos sítios urbanos de Sabrata e Lepcis Magna, que foram abandonados após o período romano,
e por isso não passaram por processos de reconstrução e nos deixaram mais relíquias da época latina, Oea
manteve a ocupação urbana após as invasões muçulmanas e foi reconstruída, fato que explica a quase
inexistência de monumentos que remontam à sua Antiguidade.
47
Essas datas foram deduzidas a partir dos próprios relatos que Apuleio empreende em sua Apologia.
Nesta obra, ele nos diz que, após um ano vivendo na cidade de Oea, acaba se casando com Emilia
Pudentila. Como seu processo foi dois anos após o casamento e o julgamento ocorreu diante do procônsul
Cláudio Máximo, que conta o seu proconsulado entre os anos de 159/160, acreditamos que sua estadia em
Oea ocorreu por volta dos anos de 157 a 159, quando Apuleio se muda, com sua esposa, para Cartago.
48
Como resultado destas acusações, Apuleio é levado a julgamento na cidade de Sabrata, no tribunal
presidido pelo procônsul da África à época, Cláudio Máximo. Após advogar em causa própria e ser
inocentado das denúncias de exercício de goétia – isto é, práticas mágicas consideradas maléficas –,
Apuleio se estabelece na cidade de Cartago, capital da África Proconsular. Em Cartago, notabilizou-se
como filósofo platônico e como orador, encontrando a fama e recebendo homenagens oficiais e o cargo
de sacerdote provincial (Apuleio, Florida, 16).
49
As justae nuptiae, ou justum matrimonium, eram um ato privado estabelecido diante de um juiz e não
envolvia necessariamente qualquer ritual simbólico, embora fosse prática corrente entre as aristocracias
municipais a celebração de grandes festas públicas oferecidas ao corpo cívico de suas civitates (SILVA,
53
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
acima de tudo, as alianças políticas desempenhavam um papel fundamental na
concretização dos casamentos entre os membros das famílias abastadas das civitates
(VEYNE, 2007).
Por meio de Apologia, podemos observar que Emília Pudentila fora casada com
Sicínio Amico e dele tivera dois filhos, Ponciano e Pudente. Após a morte de seu
primeiro marido, a aliança entre as famílias não se rompera, sendo mantida por uma
ameaça feita pelo patriarca da família Sicinii: a de que se Pudentila se casasse com
alguém fora do âmbito dos Sicinii, seus filhos perderiam a parte que lhes caberia da
herança paterna (Apuleio, Apologia, 68.2-6). Juntamente com essa chantagem, a aliança
entre as famílias fora novamente fortalecida por um contrato de futuro casamento –
esposalia – entre Pudentila e o irmão mais novo de seu falecido esposo, seu cunhado
Sicínio Claro (Apuleio, Apologia, 63.5).50
Pode-se, até mesmo, inferir que a relação entre as duas famílias remontasse a épocas
mais antigas. Conforme a onomástica romana, o nome de um indivíduo era composto
por seu prenome, secundado pela alcunha gentílica e finalizado pelo da família, sendo,
no caso das mulheres, inexistente o prenome (VEYNE, 2007). Assim, Emília Pudentila
fazia parte da gens Emília e da família Pudente. Se observarmos que o outro irmão de
seu falecido marido se chamava Emiliano Sicínio – não sabemos qual seria o seu
prenome –, podemos conjecturar a hipótese de que os Aemilii e os Sicinii faziam parte
da mesma raiz gentílica, o que nos indica uma relação ainda mais duradoura e
tradicional entre as famílias (BRADLEY, 2000).
Foi esta tradicional aliança entre famílias que Apuleio, com seu matrimônio,
rompera. Seja como for, um novo casamento com membros de outras famílias que não a
do antigo cônjuge era um fenômeno bastante normal na sociedade romana. As alianças
entre as famílias e os casamentos iam e vinham, sendo muito comum o divórcio do
casal atender a interesses políticos de momento (VEYNE, 2007). Aparentemente, o
matrimônio de Apuleio em nada contrariava as tradições romanas. Todavia, em Oea,
este ato teve como consequência uma fortíssima oposição contra o autor de Apologia,
que foi levado a julgamento por atos relacionados ao crime de veneficium
(envenenamento com poções mágicas) e acusado de utilizar de magia negra para seduzir
a rica viúva Emília Pudentila.
Pode-se medir a gravidade das acusações imputadas contra Apuleio no fato de a
prática de goetia – conhecimentos mágicos considerados maléficos – poder ser punida
com a pena capital relacionada ao crime de veneficium (envenenamento). As leis que
disciplinavam o crime de magia no Principado romano foram a Lex Cornelia de Sicarii
et Veneficis, promulgada por Sila em 81 a.C.; o Edito de 11, formulado por Augusto; e
dois Senatusconsulta elaborados por Tibério (14-37). Tais leis determinavam como
2006). Em Apologia (88.1), Apuleio demonstra que seu casamento com Pudentila havia sido realizado
numa casa de campo, com o intuito de fugir dos custos de uma celebração realizada na cidade de Oea,
com o patrocínio de festas públicas.
50
A esposalia se caracterizava como um acordo verbal de casamento, constituía-se como um vínculo não
jurídico, podendo ser rompido unilateralmente por ambas as partes (MUNGUÍA, 1980).
54
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
castigo comumente aplicado pelo assassinato por intermédio de venenum a morte
(SILVA, 2003).
Ao lermos o texto de Apologia, deparamo-nos com um fenômeno bastante recorrente
em Oea: a de viúvas que são prometidas em casamento aos irmãos mais novos de seus
cônjuges mortos. Isso aconteceu com Pudentila – como acima já mencionamos –, mas
também com a filha de outro personagem importante de Oea, Herênio Rufino, cuja
filha, Rufina, fora esposa do enteado mais velho de Apuleio, Ponciano, que morrera no
regresso de uma viagem a Cartago (Apuleio, Apologia, 96.4-5). Esse fato, no entanto,
não rompeu a relação entre as famílias dos Aemilii e dos Herennii, já que o próprio
Apuleio nos indica que haveria uma aproximação, incentivada por Rufino e Emiliano,
entre Rufina e Pudente, irmão mais novo de Ponciano (Apuleio, Apologia, 97.6-7).
Tal procedimento, tanto quanto o imbróglio de Pudentila e Apuleio com os Sicinii,
demonstra um modelo local de casamentos intra-familiares, em que as novas bodas
permanecem limitadas a um círculo familiar mais estreito. Poderíamos conjecturar que o
principal interesse desse sistema matrimonial fosse o de concentrar os bens da família e
de evitar a dispersão das heranças da aristocracia citadina local. De todo modo, parecenos uma típica tradição tripolitânica de relacionamentos familiares, ainda em voga no II
século na civitas de Oea, provavelmente fruto de influências e de reminiscências que
remontam o passado púnico (fenício) da cidade (BRADLEY, 2000).51 Estas tradições
locais, ademais, se imiscuíam com a própria instituição romana do casamento,
tornando-a um híbrido cultural por natureza, um elemento mestiço que unia um padrão
cultural romano a um púnico-líbico, ressaltando o caráter multicultural e multifacetado
da sociedade romana imperial, e mais precisamente da civitas de Oea.
É, a partir deste ponto de vista, que podemos entender o porquê da fortíssima
oposição de alguns parentes de Pudentila em relação ao seu casamento com Apuleio. O
autor da Apologia, além de ser um estrangeiro na cidade, com modos e costumes, em
grande medida, diferentes daqueles dos habitantes de Oea, empreendera um grave
afronta às tradicionais alianças familiares locais. O seu matrimônio rompera com uma
relação muito antiga e há muito mantida entre duas das mais ricas e influentes famílias
da cidade, estando aí uma das principais causas de sua acusação de mago e assassino,
fato que o levou a ser julgado e, se condenado, poderia o sentenciar à pena capital.
O exemplo apresentado neste artigo é apenas um entre vários outros que poderíamos
analisar. O espaço limitado deste trabalho não nos permitiria aprofundar sobre diversos
casos. Só para mencionar mais um, poderíamos também citar o da latinização dos
sobrenomes locais. Se levarmos em consideração apenas o dos Aemilii, alcunha
gentílica da esposa de Apuleio, observaríamos que ele é uma adaptação para o latim de
um antigo sobrenome púnico, Himilis, fato que podemos examinar na epigrafia do I
século da cidade de Lepcis Magna, quando um certo Caphada Aemilius se diz filho de
Iddibal Himilis (INSCRIPTIONS OF ROMAN TRIPOLITANIA, 324). Nota-se como em
51
Keith Bradley (2000) nos informa que, provavelmente, o costume de casamentos intra-familiares era
uma prática oriental, posto que era um fenômeno comum nas mais antigas sociedades do Oriente
Próximo, tais como entre os judeus e fenícios.
55
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
apenas uma geração o nome púnico se adaptou às novas exigências da onomástica
romana, formando um híbrido em que a denominação do indivíduo possui um prenome
púnico misturado com sua nova gens latinizada. Provavelmente, Caphada Aemilius já
era um cidadão romano e teve que latinizar o seu sobrenome em função disto. 52
Vê-se, portanto, o quão plural e multifacetado era a Tripolitânia romana. As
principais cidades da região, tais como Lepcis Magna, Sabrata e Oea, eram, ao mesmo
tempo, civitas com um longo passado púnico-líbico, mas que se romanizavam e se
influenciavam em meados do II século por um novo modo de vida, por novos hábitos,
por aquilo que Janet Huskinson (2000a) definiu como cultura imperial. O testemunho de
Apuleio de Madaura em Apologia, por tudo isso, ao nos narrar eventos de uma cidade
localizada na Tripolitânia e nos apresentar de forma nítida o cotidiano de uma civitas
provincial, é um documento riquíssimo para podermos compreender e analisar o próprio
multiculturalismo romano, isto é, a interação entre os costumes e os valores de uma
cultura imperial com aqueles pertencentes às diversas etnias agregadas e submetidas ao
Império Romano.
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52
Para Matingly (1994), havia dois principais modos de latinização dos nomes de origem púnica ou líbica
na região da Tripolitânia: uma ao acaso, adotando nomes relacionados aos imperadores reinantes ou de
importantes patronos da cidade (como senadores importantes ou procônsules); a outra a partir de uma
tentativa de tradução dos nomes antigos para similares latinos, como no caso dos Aemilii tratado acima.
56
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
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57
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
EL LEÓN Y EL ASNO EN PHAED. 1.21: ¿INVERSIÓN O MANTENIMIENTO DE
PROTOTIPOS?
Beatriz Carina Meynet53
Resumen: El argumento de una fábula esópica puede tomar dos derroteros: los
personajes actúan de la manera esperada de acuerdo con sus rasgos característicos
(situación inmutable), o se da un cambio de fortuna recíproco (cambio de situación). En
Phaed. 1.21, los personajes intervinientes, el león y el asno, parecen responder a los
rasgos prototípicos asociados a sus figuras. Sin embargo, la historia genera un efecto de
inversión de dichos rasgos. Analizaremos los procedimientos que generan el efecto de
inversión y mantenimiento de prototipos, sobre la base de las características de la fábula
esópica en relación con puntos relevantes de la teoría de prototipos.
Palabras clave: Fábulas; Prototipos; León; Asno.
Abstract: The plot of an Aesopic fable can take two courses: the characters act as
expected according to their features (status unchanged), or there is a reciprocal change
of fortune (change of status). In Phaed. 1.21, the characters involved, the lion and the
ass, seem to respond to prototypical features associated with their figures. However, the
story generates an effect of reversal of such features. We will examine the operations
that generate the effect of reversal and maintenance of prototypes, on the basis of the
characteristics of Aesopic fables in connection with relevant points of prototype theory.
Keywords: Fables; Prototypes; Lion; Ass.
Introducción
La estructura típica de una fábula esópica 54 en la que interviene más de un
protagonista55 suele basarse en la oposición entre personajes antitéticos respecto de su
posición social, poder, fuerza, habilidades físicas, inteligencia, astucia, etc. A partir de
53
Universidad Nacional de Córdoba (Argentina) - CIECS (UE CoNICeT)
El adjetivo esópico se aplica no sólo a las fábulas atribuidas autoralmente a Esopo, sino a toda aquella
que, tomando a éstas como modelo, presenta una temática y estructura similar, sobre la cual hablaremos
enseguida. Así pueden catalogarse las fábulas de Babrio, de Fedro y de Aviano. Nótese, a propósito de
este punto, la conciencia que demuestra el propio Fedro en 4.prol.10-11, al distinguir entre el adjetivo
Aesopias y el sustantivo en genitivo Aesopi en relación con sus fábulas: éstas no son “de Esopo”, i.e., no
son meras traducciones, sino que son “esópicas”, “a la manera de Esopo”, i.e., retoman los temas de
aquél. Por esta razón, al referirnos a fábulas relevantes para explicar o comprender un fenómeno
prototípico, nos remitiremos no sólo al corpus de Fedro sino también al de los fabulistas antes
mencionados. - Sobre la relación Esopo-Fedro y la noción de aemulatio, cfr. MAÑAS NÚÑEZ (1996, pp.
323 ss.).
55
Por ejemplo, en la fábula 1.12 de Fedro (“El ciervo en la fuente”) interviene un solo personaje, el
ciervo. No obstante, se aprecia igualmente el conflicto opositivo entre belleza y utilidad, presente también
en otras fábulas, como 1.7 (“La zorra a la máscara de teatro”) o 3.17 (“Los árboles bajo la protección de
los dioses”).
54
58
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
estas características, el argumento puede tomar dos derroteros, a saber: o bien los
personajes actúan de la manera esperada de acuerdo con sus rasgos característicos,
manteniéndose la situación inicial, o bien se da un cambio de fortuna recíproco,
beneficiando al inicialmente inferior y perjudicando al característicamente superior. En
el primer caso, la moraleja suele apuntar a lo paradigmático de ciertas situaciones o
relaciones que se presentan como inmutables: así, el escorpión siempre va a picar al
sapo porque está en su naturaleza el hacerlo, el león siempre va a abusar de los animales
más débiles por ser el más fuerte, el lobo siempre va a devorar al cordero porque su
intrínseca maldad encontrará cualquier excusa para hacerlo. En el segundo caso, la
moraleja de las fábulas parece enseñar que es posible que se opere un cambio de
fortuna, dentro de las posibilidades que brinde la situación: así, la cigüeña logra
vengarse de la (siempre astuta) zorra, la oveja puede ver cómo el (siempre malvado)
lobo cae en una trampa, la zorra puede salvar a sus hijos de las garras de la (siempre
poderosa) águila. Denominaremos al primer tipo fábulas de situación inmutable, y al
segundo, fábulas de cambio de situación.
La fábula 1.21 de Fedro –“El león viejo, el jabalí, el toro y el asno”–, en este sentido,
resulta compleja de clasificar, dado que parece operar un efecto tanto de inversión como
de mantenimiento de prototipos. Así, si bien los personajes intervinientes parecen
responder a los rasgos prototípicos asociados a sus figuras, la historia genera un efecto
sorpresa por la aparente inversión de las características adjudicadas al león y al asno (el
primero, indefenso, es destruido por el segundo), lo cual la convertiría en una fábula del
tipo ‘cambio de situación’. Y, sin embargo, tanto la moraleja como las palabras finales
del león se encargan de resaltar el carácter inmutable de la naturaleza indecorosa del
asno, a la vez que posicionan al león en un lugar de superioridad moral propia del
personaje que prototípicamente encarna al rey de los animales: en este sentido, se
trataría de una fábula del tipo ‘situación inmutable’.
El efecto de inversión y mantenimiento de prototipos nos lleva a preguntarnos, en
primer lugar, cuáles son los roles desempeñados prototípicamente por el asno y el león
en el corpus de fábulas esópicas. En segundo lugar, si los rasgos explotados en esta
fábula en particular se avienen con esos rasgos prototípicos. En tercer lugar, y de
acuerdo con las respuestas que podamos ofrecer a las preguntas anteriores, si es posible
establecer dentro de cuál de los dos tipos de fábulas se puede enmarcar a Phaed. 1.21.
Es el objetivo de este trabajo intentar responder a estos interrogantes atendiendo a los
procedimientos utilizados en la fábula para generar el efecto de inversión y
mantenimiento del prototipo. Para ello nos proponemos, en primer lugar, llevar a cabo
un repaso de las características de la fábula esópica en general en relación con puntos de
la teoría de prototipos que consideramos resultan de central relevancia para el análisis
de las fábulas. En segundo lugar, estudiaremos los roles prototípicos del león y el asno
en el corpus de fábulas esópicas y particularmente en las de Fedro. Finalmente, nos
detendremos en los procedimientos que se vinculan con la generación del efecto
observado. Tales procedimientos serán de tipo léxico (principalmente, adjetivación),
sintáctico (uso del caso dativo, información semántica y argumental de los verbos), y
59
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lógico-narrativo (desarrollo lógico de un script narrativo a partir tanto de personajes
prototípicos como de la moraleja).
Antes de pasar al análisis mencionado, ofrecemos el texto de Phaed. 1.21 en latín 56 y
en su versión al castellano 57:
Leo senex, aper, taurus et asinus
Quicumque amisit dignitatem pristinam,
ignauis etiam iocus est in casu graui.
Defectus annis et desertus uiribus
leo cum iaceret spiritum extremum trahens,
aper fulmineis uenit ad eum dentibus 5
et uindicauit ictu ueterem iniuriam.
Infestis taurus mox confodit cornibus
hostile corpus. Asinus ut uidit ferum
impune laedi, calcibus frontem extudit.
At ille exspirans: “Fortis indigne tuli 10
mihi insultare; te naturae dedecus
quod ferre in morte cogor bis uideor mori”.
El león viejo, el jabalí, el toro y el asno
Todo aquel que ha perdido su primitiva respetabilidad, se convierte
en juguete, incluso de los cobardes, cuando la desgracia pende sobre
él.
Cierta vez que un león estaba postrado, agotado por los años y
carente de fuerza, a punto de exhalar el último aliento, arremetió
contra él un jabalí con sus fulmíneos colmillos y se vengó con tal
ataque de una antigua injuria. A continuación, un toro atravesó con
hostiles cuernos el cuerpo de su enemigo. Cuando el asno vio que la
fiera estaba siendo impunemente herida, le quebró la frente a coces.
Ante esto, el león, a p nto de expirar, dijo: “He soportado con
indignación el ultraje de los poderosos; pero tener que soportar el
tuyo, deshonra de la naturaleza, me parece que es como morir dos
veces”.
1. Fábula y prototipo
1.1.
Fábula
Por fábula esópica se entiende el tipo de fábula cuya estructura se compone
canónicamente de
56
57
La edición manejada es la de BRENOT (Les Belles Lettres, 1961).
Esta y las siguientes traducciones de Fedro corresponden a MAÑAS NÚÑEZ (1998).
60
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1) una situación de base, en la que se expone cierto conflicto entre dos figuras,
generalmente de animales; 2) la actuación de los personajes, que procede de una
libre decisión de los mismos, que eligen entre las posibilidades de la situación
dada, y 3) la evaluación del comportamiento elegido, que se refleja en el resultado
pragmático de su acción, calificada así de inteligente o necia. (GARCÍA GUAL,
1978, p. 14)
GARCÍA GUAL (1977, p. 315) destaca que, entre los rasgos característicos de los
diversos animales que protagonizan las fábulas, son dos los que se constituyen en los
vertebradores de la mayoría de los argumentos: la fuerza y la astucia. Así, mientras la
fuerza representa el elemento estático, fijado previamente a la acción narrada, la astucia
o inteligencia es el elemento dinámico, mediante el cual el más débil puede triunfar
sobre el más fuerte. “A la postre, es la inteligencia la que decide el conflicto y de ahí el
valor didáctico del género”58.
MAÑAS NÚÑEZ (1998, pp. 49 ss.) aborda los tópicos característicos de la fábula
antigua –y, particularmente, la fedriana– en clave de las temáticas propias de la filosofía
cínica y estoica-moralizante. Así, mientras la inmutabilidad de lo dado por naturaleza y
la preeminencia de la inteligencia son tópicos propiamente cínicos, la identificación de
la oposición fuerte-débil con las de malvado-bueno y culpable-inocente se reconoce
como de origen estoico. Fedro conjuga ambas vertientes para lograr un producto que al
mismo tiempo entretenga y adoctrine.
Mientras el entretenimiento está asociado al segmento narrativo de la fábula, la
explicitación del mensaje moral, transmitido casi siempre en tiempo verbal presente
(gnómico), está dada por la moraleja. Ésta consiste en una sentencia simple que resume
el sentido y finalidad de la narración, y puede encontrarse al principio o al final de la
fábula, denominándose promitio, en el primer caso, o epimitio, en el segundo 59. Esta
sentencia, que independientemente podría constituir una paremia 60, resume de manera
general e indeterminada lo que el contenido de la narración transmite de manera
concreta y específica, explicitando el mensaje moral que encierra el (aparente)
divertimento de la narración61. Esta mixtura entre fin placentero (divertimento) y fin
58
GARCÍA GUAL, 1978, p. 15). Nótese, sin embargo, que en la fábula 1.17 (“La oveja, el perro y el lobo”),
por ejemplo, es la providencia divina, según la interpretación de la oveja, la que castiga al lobo ('Haec'
inquit 'merces fraudis a superis datur', 1.17.9), si bien no cabría decir que el desenlace de la fábula
represente tanto un triunfo para el ‘débil-bueno’ cuanto un castigo para el ‘fuerte-malo’.
59
Cabe preguntarse, desde un punto de vista cognitivo, de qué manera puede repercutir el hecho de
conocer desde el primer momento la intención y contenido general de la narración que está por ser leída,
es decir, el caso de las fábulas con promitio. Volveremos más adelante sobre este punto.
60
Es de notar que las máximas y refranes suelen constituir fábulas condensadas (p.e., el refrán citado en
Ret. 1413a 19, “como el de Cárpatos con la liebre”, nacido de una narración popular, o la fábula de Esopo
sobre el asno que transporta la estatua de un dios (182 Perry), que da lugar a expresiones como la del v.
159 de Ranas, de Aristófanes, Νὴ τὸν Δί´ ἐγὼ γοῦν ὄνος ἄγω μυστήρια (“Soy el asno que carga misterios
divinos”) o al adagio 2.2.4 de Erasmo, “Asinus portans mysteria”. (Cfr. incluso Apul. Met. 8.25, donde
Lucio el asno es comprado por un sacerdote para transportar la estatua de una deidad siria.)
61
Nótese que los términos utilizados por Fedro para referir a sus composiciones remiten al campo
semántico del ‘juego’ o la ‘bagatela’: ioculare, ludimus, neniae, etc. (cfr. MAÑAS NÚÑEZ, 1996, pp. 325
ss.). Sin embargo, el fabulista insiste en aclarar que, en el fondo, tales aparentes bagatelas esconden
61
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didáctico (mensaje moral) constituye uno de los rasgos característicos del género, y es
explicitado por el propio Fedro en los versos 3-4 del prólogo del primer libro de fábulas:
Duplex libelli dos est: quod risum mouet / et quod prudentis uitam consilio monet
(“Doble es la utilidad de este librito: hacer reír y dar sabios consejos para la vida”) 62,
según el clásico requerimiento horaciano de delectando pariterque monendo63.
Así pues, considerando lo dicho acerca de la estructura de la narración, del papel de
la moraleja, y de la finalidad humorística-didáctica de la fábula esópica, es posible decir
que la simplicidad, reflejada a su vez en la brevedad64 del texto, parece ser una de las
principales características de este género. Esto se relaciona directamente con el hecho
de que los destinatarios de las fábulas no eran precisamente las clases elevadas de la
sociedad, sino “la clase de los marginados, la muchedumbre anónima rodeada de
problemas y preocupaciones y pacientemente callada ante las múltiples situaciones de
injusticia que sufría” (MAÑAS NÚÑEZ, 1998, p. 74)65. Y efectivamente, como ya lo había
observado Aristóteles (Ret. 1395b 1-3) en relación con las máximas66, su principal
sabios mensajes, que sólo el lector atento sabrá ver y comprender. Cfr. especialmente Phaed. 4.2.1-7:
Ioculare tibi videtur, et sane levi, / dum nihil habemus maius, calamo ludimus. / Sed diligenter intuere
has nenias: / quantam sub titulis utilitatem reperies! / Non semper ea sunt quae videntur; decipit / frons
prima multos: rara mens intellegit / quod interiore condidit cura angulo. (“Te parece cosa de broma y, en
verdad, mientras me faltan temas de mayor altura, juego a escribir cosas de poco empeño. Pero examina
con atención estas bagatelas. ¡Qué gran utilidad encontrarás bajo sus títulos! Las cosas no son siempre lo
que aparentan ser. El aspecto externo equivoca a primera vista a muchos; poca gente comprende lo que el
poeta ha escondido cuidadosamente en el rincón más secreto de su obra.”) Inmediatamente después de
estos versos, se cuenta la fábula de la comadreja que se oculta bajo la harina para atraer y atrapar a los
ratones, hasta que uno de ellos, más viejo y experimentado, descubre la trampa. Sin embargo, resulta
difícil catalogar los vv. 1-7 como mera introducción o promitio, no sólo porque el título de la fábula es
Poeta, sino porque los vv. 8-9 explicitan que la narración siguiente es un añadido: Hoc ne locutus sine
mercede existimer, / fabellam adiciam de mustela et muribus (“Para que no se piense que hablo
gratuitamente, añadiré la fábula de la comadreja y los ratones”).
62
Cfr. también Phaed. 2.prol.1-4: Exemplis continetur Aesopi genus; / nec aliud quicquam per fabellas
quaeritur / quam corrigatur error ut mortalium / acuatque sese diligens industria. / Quicumque fuerit
ergo narrandi iocus, / dum capiat aurem et seruet propositum suum, / re commendatur, non auctoris
nomine (“El género esópico se basa en ejemplos: mediante estas fábulas no se pretende más que corregir
los errores de los mortales y aguzar la energía del ingenio. Cualquiera que sea, pues, la gracia de la
narración, con tal de que seduzca los oídos y no se aparte de su propósito, es recomendable por su
contenido y no por el nombre del autor”).
63
Cfr. A.P. vv. 333-346. Si bien Horacio plantea esta condición para toda obra poética, en la fábula el
deleite parece estar asociado a lo cómico (quod risum mouet) y no sólo al placer estético más general, lo
cual nos permitiría calificar al género como spoudaiogéloion (“serio-cómico”). SCHERE (2009, p. 209, n.
16) nota que “Aristófanes considera las historias de Esopo como un género cómico. En Avispas 1259
Bdelicleón se refiere a ellas como Aisopikòn géloion”.
64
Cfr. las expresiones breuitas (Phaed. 2.prol.12) y parua fabella (Phaed. 1.15.3). Para la noción de
breuitas en relación con las de ueritas y uarietas, cfr. MAÑAS NÚÑEZ, 1996, pp. 330 ss.
65
Añade MAÑAS NÚÑEZ (1998, p. 74): “El propio realismo que el fabulista insufla a su obra se nota en la
imitación del lenguaje de la sociedad a que pertenece y en la utilización del senario yámbico, recurso
propio, como señala Cicerón (Or. 184), del lenguaje popular. Esta gran masa de desarraigados y
marginados, de la que el mismo Fedro se sentía parte, se veía identificada –no le quedaba otro remedio–
dentro de estos ideales cínicos de vivir de acuerdo a la naturaleza y el rechazo del poder, los honores, las
riquezas, etc. Y también tenía la esperanza del tinte estoico de que, por encima del poder, el dinero y el
abuso, la divinidad premiase en la vida ultraterrena la actitud virtuosa.” Recuérdese que el propio Fedro
(al igual que, según la tradición, Esopo) habría sido esclavo.
66
Cfr. supra, nota 8.
62
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utilidad retórica se basa en la rudeza (τὴν φορτικότητα) de los oyentes, “porque éstos se
sienten muy complacidos si alguien, que habla universalmente, da con opiniones que
ellos tienen sobre casos particulares” 67. Es precisamente esta última mención la que
lleva a pensar la mentada simplicidad de la fábula como de orden, también, lógico: el
valor que Aristóteles adjudica a las máximas se centra no en que sean socialmente
aceptadas, sino en que lo son porque constituyen una inferencia lógica racional68.
La posibilidad de establecer tal inferencia lógica se debe al carácter prototípico de
los personajes de las fábulas.
1.2.
Prototipo
Por prototipo se entiende “el ejemplar más idóneo, e incluso el mejor caso, el mejor
representante o caso central, de una categoría” (KLEIBER, 1995, p. 47). Resulta
pertinente recurrir a esta noción, toda vez que la fábula esópica consiste en representar,
con un fin didáctico-moralizante, ciertas coyunturas abstractas de la vida por medio de
casos concretos, y, en este sentido, los animales son, en general, los personajes que
ofrecen los modelos más eficaces, “porque presentan ciertas características famosas y
definidas por la naturaleza misma” 69: i.e., características prototípicas. Así, por ejemplo,
el león es el animal que prototípicamente encarna características –i.e., representa
categorías– como ‘fuerza’, ‘poder’, etc. De esta manera, la interpretación de un término
se ajusta normalmente a la combinación de los rasgos típicos de la categoría asociada a
ese término, tal que, en caso de darse un desvío en relación con el prototipo, éste suele
ser explícitamente señalado (KLEIBER, 1995, p. 106-107)70.
Lo prototípico puede estar asociado no sólo a características de individuos sino
también a acciones o series de acciones: es lo que se da en llamar esquemas mentales o
guiones (scripts)71, i.e., series prototípicas de acciones, secuenciadas según relaciones
de causalidad o contigüidad, propias de determinadas situaciones 72. En este sentido, la
moraleja, especialmente si constituye un promitio, puede entenderse además como un
marco orientador (cuando no creador) de un script, presentando de un modo intensivo
las categorías que, en el segmento narrativo de la fábula, se concretarán en un plano
extensivo.
Retomando la mención al carácter lógico inferencial propio de las máximas, ahora
podemos agregar que, si tal conclusión es válida para este tipo de paremias, que en sí
mismas constituyen un pensamiento de carácter general –del tipo, como ya se ha dicho,
67
Ret. 1359b 2-3. Traducción de Q. Racionero.
Cfr. nota 251 (pp. 409-410) de Racionero a la traducción de Gredos.
69
RAMORINO, 1946, pp. v, vi. (La traducción es nuestra.)
70
Tanto es así que, al momento de la traducción, representa un problema la versión “un león”, “un asno”,
etc., frente a “el león”, “el asno”, etc., toda vez que el artículo determinado (“el genérico”, en términos de
KLEIBER, 1995, p. 110) puede constituir una homogeneización de la categoría referencial.
71
Cfr. BELINCHÓN ET AL., 1992, pp. 517 ss.).
72
Por ejemplo, el script “lavar la ropa” constaría de las siguientes acciones prototípicas: tomar ropa sucia
/ seleccionar la ropa / poner la ropa en un cesto / poner la ropa en el lavarropas / seleccionar el programa
de lavado / poner en marcha el lavarropas…, etcétera.
68
63
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de la moraleja–, tanto más lo es para el segmento narrativo de la fábula, de carácter
particular, toda vez que “la indeterminación de la máxima moral se convierte así en una
serie de hechos determinados, protagonizados por animales, es decir, personajes
concretos y con rasgos específicos, conocidos y reconocibles para cualquiera” (SCHERE,
2009, p. 210). El hecho de que la fábula constituya un relato cuya fuerza demostrativa
procede por lógica inductiva se debe, pues, a que los personajes que la componen
presentan ciertas características reconocidas comúnmente como fijas y naturales.
En términos de la teoría de prototipos, esto equivale a decir que los miembros
prototípicos son categorizados más rápidamente que los miembros no prototípicos,
sirviendo así de punto de referencia cognitiva. Estos personajes “mecánicamente
alegóricos”73 se constituyen, entonces, tanto en actantes de una narración cuanto en
auténticos “operadores lógicos”74 de una inducción. Así, por ejemplo, la fábula del lobo
y el cordero (Phaed. 1.1), del tipo ‘situación inmutable’ (el lobo se come al cordero),
puede traducirse a la fórmula lógica ‘el malo-fuerte-culpable-injusto vence al buenodébil-inocente-justo’, mediante la intervención del rasgo prototípico ‘ferocidad’,
adjudicado comúnmente al lobo. El razonamiento inductivo que debiera operar para
extraer una conclusión por fuera de la narración particular queda expresada en la
moraleja: “esta fábula ha sido escrita para aquellos hombres que, bajo falsos pretextos,
oprimen a los inocentes” (Phaed. 1.1.14-15).
Sin embargo, es importante observar que los rasgos reconocidos como prototípicos
no se apoyan exclusivamente en características naturales, objetivamente observables.
Como señala GARCÍA GUAL (1978, p. 14, n.4),
Aunque puede advertirse que junto a una cierta referencia a la
naturaleza (por ejemplo, el león es el animal que encarna la fuerza, el
lobo es feroz, manso el cordero, etc.) interviene una convención
cultural muy notable (por ejemplo, el asno de Esopo se caracteriza
como envidioso, ansioso de mejorar su posición, como el grajo y el
mono; la serpiente es perversa, etc.). Pueden advertirse diferencias en
las caracterizaciones de animales entre Esopo y otros autores griegos.
Por ejemplo, el asno en el Yambo de las mujeres de Simónides de
Ceos, se define por su carácter resignado y lúbrico, muy diferente del
asno de las fábulas.
De modo que, si bien los rasgos prototípicos no son completamente arbitrarios, no
han de ser un conjunto cerrado de atributos o condiciones necesarias y suficientes75,
sino que constituyen, en gran parte, una construcción cultural que opera mediante la
selección de unos rasgos sobre otros. En efecto, un caso puede instalarse como prototipo
o ejemplar idóneo sólo a partir de un acuerdo colectivo convencional, de modo que el
prototipo debe ser concebido como el ejemplar comúnmente asociado a una categoría.
73
NØJGAARD, 1964, apud GARCÍA GUAL, 1978, p. 10.
LÉVI-STRAUSS, apud GARCÍA GUAL, 1978, p. 14, n. 4.
75
Cfr. GEERAERTS, 2006, p. 142.
74
64
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Es decir que un criterio que garantiza la pertinencia de un ejemplar como prototipo de
una categoría es su frecuencia: un personaje se convertirá en prototipo de una categoría
a partir del rol más común y frecuentemente desempeñado en las narraciones en que se
ve envuelto.
Así pues, ante la cuestión acerca de si la fábula 1.21 de Fedro puede catalogarse
dentro de las de tipo ‘cambio de situación’ o de las del tipo ‘situación inmutable’, se
hace necesario comprender antes cómo es prototípicamente cada uno de los personajes.
Para ello, a partir de un recorrido por el corpus de fábulas esópicas, intentaremos
rescatar los rasgos más característicos de los animales que integran la fábula 1.21,
especialmente del león y del asno.
2. El león y el asno en la fábula esópica 76
Si bien cada fábula conjuga varios rasgos prototípicos para cada personaje, es
posible agrupar series de fábulas según el rasgo predominante. Así 77, como fábulas que
destacan la ‘imagen intimidante’ del león, podemos mencionar Aesop. 10, 71, 132, 140,
146, 188, y Babr. 98, 139. El rasgo ‘ferocidad’ o ‘peligro’ se deja ver en Aesop. 49, 76,
142 y Avian. 24, mientras que el rasgo ‘engaño’ predomina en Aesop. 143, Babr. 44,
97, 103, y Avian. 18, 26. La ‘fortaleza’ física del león destaca en Aesop. 144, 147, 151,
255, y su ‘corpulencia’ en Babr. 101. El león se identifica con la ‘injusticia’ y el ‘abuso’
en Aesop. 149 y Babr. 67, 90, 105. Las fábulas que ponen en primer plano la figura del
león ligada a la ‘realeza’ son Aesop. 145, 150, 258, y Babr. 99, 106. Por último, es
importante observar que existen, sin embargo, algunas fábulas que destacan rasgos
positivos del león, como la ‘valentía’ (Aesop. 82, 259, 260, y Babr. 1), la ‘virtud’
(ἀρετή, Aesop. 257), y la ‘magnanimidad’ (Babr. 82, 102 y 107).
Por lo que respecta al asno, es posible reconocer dos facetas principales: una que lo
coloca como víctima de un ‘destino desgraciado’, y otra que destaca su costado de
‘indignidad’. La primera se deja ver en Aesop. 164, 179, 181, 183, 185, 190, y Babr.
141. Asociados al rasgo ‘indignidad’, encontramos los de ‘envidia’ (Aesop. 91, 184;
Babr. 125, 129), ‘pendencia’ (Aesop. 186), ‘engaño’ (Aesop. 187; Babr. 122), ‘flojera’
(Aesop. 189, 263; Babr. 7), ‘glotonería’ (Aesop. 237, 264; Babr. 133), y los de
‘jactancia’ e ‘ignorancia’ (Aesop. 82, 182 y 188, Babr. 111 y 139, y Avian. 5),
íntimamente relacionados entre sí, toda vez que se entiende que la vanidad y el orgullo
vano derivan del desconocimiento de la propia naturaleza. Es de notar que, de estas seis
últimas fábulas, cuatro involucran también la figura del león, generándose un claro
contraste entre ambos personajes.
76
Tal como indicáramos en la nota 2, se trabajó con el corpus de fábulas de Esopo (usaremos la
numeración de Perry), Babrio, Fedro y Aviano. La figura del león aparece en 45 fábulas (23 de Esopo, 15
de Babrio, 4 de Fedro y 2 de Aviano), y la del asno en 33 (19 de Esopo, 9 de Babrio, 4 de Fedro y 1 de
Aviano).
77
No tendremos en cuenta de momento las fábulas de Fedro, sobre las que nos detendremos en detalle
más adelante.
65
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Precisamente, LURIA (1934), en una contribución ya clásica, observaba cómo las
fábulas esópicas que tomaban el tema del asno en la piel del león podían esquematizarse
de la siguiente manera:
El último miembro de la sociedad, y al mismo tiempo el más odiado,
representa por algún tiempo la parte de su reconocido jefe, y así
asume todos los atributos (piel, vestido, etc.); pero pronto se descubre
la verdadera naturaleza del “trepador” (o por desnudarse el cuerpo, o
por desenmascararse por una acción indigna), tan pronto como,
privado de los atributos con los que se adornaba abusivamente, es
ridiculizado por algún animal astuto (...). (LURIA, 1934, p. 449-450)78
Esta caracterización podría ser entendida como un script prototípico de varias
fábulas, algunos de cuyos elementos pueden identificarse también en la que nos ocupa:
principalmente, el hecho de enfocarse en la antítesis entre el león, que personifica –en
términos del LURIA– “el valor, la belleza, la nobleza”, y el asno, que representa, en
cambio, “la impudicia, la fealdad, la vileza, la sensualidad, el ridículo” 79. Sin embargo,
si apelamos al criterio de frecuencia antes mencionado en relación con los personajes,
no resulta obvio que el león sea un animal noble, ni que el asno sea una figura vil. Más
bien por el contrario, del universo de fábulas esópicas que incluyen al león como
personaje, los aspectos más explotados resultan ser los de portar una imagen intimidante
(18% del total de fábulas) –rasgo que no necesariamente se relaciona con la nobleza o la
belleza–, y el de recurrir al engaño (13%) –rasgo más cercano a la vileza o la cobardía
que al valor 80–. Y el asno, por su parte, se muestra en un alto porcentaje de fábulas
(27%) como víctima de un destino desgraciado, antes bien que ignorante (6%) o
impúdico (3%). Es más: de entre las fábulas que reúnen a ambos personajes, podemos
identificar un par que destacan el carácter débil e ingenuo del asno frente al feroz
(Aesop. 191) y abusivo (Babr. 67) del león.
Esta aparente contradicción entre lo observado por LURIA y lo exhibido por las
fábulas se resuelve si tenemos en cuenta, en primer lugar, que cada personaje puede
caracterizarse por un rasgo a la vez abarcador y superador de las diversas facetas que
ese mismo rasgo comporta; y, en segundo lugar, que la selección y activación de una u
otra de estas facetas funcionará opositivamente, i.e., dependerá de la presencia de otro
personaje que, dentro de esa narración, se mostrará como su antítesis 81. Así, podemos
decir que el rasgo prototípico del león es el ‘poder’, que manifiesta tanto en las
narraciones que lo muestran abusivo (frente a la vaca, la cabra, la oveja) como en las
78
La traducción es nuestra.
Sobre este tópico también se expide BISANTI (2010, p. 12-13).
80
De hecho, el rasgo ‘engaño’ también caracteriza al asno en un par de fábulas del corpus (Aesop. 187 y
Babr. 122). Por cierto, dentro de los distintos rasgos que son destacados en cada fábula que involucra al
asno o al león, el del ‘engaño’ es el único presente en la colección de rasgos con los que se identifican
sendos personajes.
81
“Los personajes animales no poseen un valor fijo, sino sólo en cuanto referidos a una determinada
valoración recíproca dentro del conflicto (…).” GARCÍA GUAL, 1977, p. 316).
79
66
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
que lo muestran magnánimo (frente al ratón, la liebre, el hombre inocente). Y el rasgo
prototípico del asno ha de ser la ‘bajeza’, tanto en su sentido despectivo de ‘indignidad’
(frente al jabalí, el caballo, la mula) como en el desventurado de ‘inferioridad’ (frente al
cuervo, los sacerdotes, la zorra).
Veamos cómo se manifiesta este fenómeno dentro del corpus de Fedro, en relación
particularmente con la fábula I.21.
2.1.
El león y el asno en las fábulas de Fedro
Dentro del corpus de Fedro, el león y el asno aparecen, en total, en ocho fábulas: en
tres el león (1.5, 2.1 y 4.14), en otras tantas el asno (1.15, 1.29 y 4.1), y coexisten en dos
(1.11 y la que nos ocupa, 1.21). Repasaremos en primer lugar las características que se
aprecian en los textos que no los reúnen dentro de una misma narración para luego
observar el modo en que esos rasgos operan cuando los personajes interactúan.
En las tres fábulas donde participa el león –1.5 (“La vaca, la cabra, la oveja y el
león”), 2.1 (“El novillo, el león y el ladrón”) y 4.14 (“El león rey”)–, se destaca su
imagen de personaje poderoso, acentuándose en cada una un matiz particular del rasgo
‘poder’. Así, en la famosa fábula 1.5 82 este rasgo se nos muestra asociado al de ‘abuso’;
de hecho, el léxico utilizado resulta ilustrativo al respecto: además del término potens
(v. 1), el león se autodescribe como “fuerte” (fortis, v. 8), dice de sí mismo “soy
valiente” (ualeo, v. 9) y amenaza a sus socios con que “lo pasarán mal” (malo afficietur,
v. 10); finalmente, el desenlace de la historia resalta con una sinécdoque que es “la
maldad” (improbitas, v. 11) la que se quedó con la presa entera. Además, la
caracterización de la oveja como “resignada a la injusticia” (patiens ouis iniuriae, v. 3)
no hace sino resaltar por contraste el carácter abusivo del león 83. Que estas
características constituyen rasgos prototípicos privativos del león parece confirmarlo el
hecho de que la primera de las razones alegadas por éste para apropiarse de toda la
presa, paralelamente a las ya mencionadas, sea “porque me llamo león” (nominor quia
leo, v. 7). Esta ‘razón’ no sólo ilustra el rasgo de prepotente arbitrariedad que suelen
presentar los personajes más fuertes frente a los más débiles 84, sino que el nombre de
“león” parece encerrar en sí mismo los demás rasgos explicitados 85.
82
Esta fábula origina la expresión “quedarse con la parte del león”, de uso extendido aún en la actualidad.
Es de notar que lo imposible del hecho de que animales herbívoros como la vaca, la cabra y la oveja
cacen un ciervo no invalida la razón de la narración: ésta se vuelve verosímil precisamente por apelar
antes a los rasgos prototípicos de ‘pusilánime/débil’ y ‘prepotente/fuerte’ que a los naturales de
‘herbívoro’ y ‘carnívoro’. Cfr. GEERAERTS, 2006, p. 143: “the distinction between an encyclopedic and a
semantic level of categorial structure is untenable. For instance, given that the flexible extendibility of
prototypical concepts is a synchronic characteristic of linguistic structure, and given the fact that these
extensions may be based indiscriminately on allegedly encyclopedic or on allegedly semantic features,
the distinction between both kinds of information loses its synchronic relevance.”
84
Cfr., p.e., Phaed. 1.1, “El lobo y el cordero”.
85
Nótese que incluso en la actualidad, la mención al león suele aparecer en expresiones que refieren a
situaciones de abuso de poder (la ya mencionada frase “quedarse con la parte del león”), de condición
óptima para cierta actividad –idea de “rey”– (recuérdese el famoso jingle comercial “Soy un león
vendiendo Durax”), de irritabilidad y peligro (“está como león enjaulado”, “más difícil que peinar
83
67
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Es por este motivo que la fábula 2.1 resulta, al menos en un primer momento,
sorprendente. El león, sin dejar de hacer uso de su poder86, lo encamina en una dirección
de magnanimidad y nobleza, rechazando al ladrón (caracterizado como improbus, v.
487) y beneficiando al inocente. Sin embargo, la fiera mantiene su imagen intimidante,
lo que explica el temor del caminante al verla por primera vez (v. 6), y en su
condescendiente partida final (v. 10). Pero más importante aún en lo que respecta al
mantenimiento del prototipo es el epimitio, que, destacando el carácter extraordinario
(egregium, v. 11) del exemplum, aclara, sin embargo (uerum, v. 12), que en la vida real
no es así como ocurren las cosas. El mensaje de la moraleja es, pues, contrario al
contenido de la narración, llevándonos a pensar que la sorpresa causada ante su lectura,
en que los prototipos parecían invertirse (nótese el adjetivo placidus aplicado al león, en
v. 7), debe ser depuesta para conservar la prístina certidumbre en la inmutabilidad de la
naturaleza.
Y si alguna duda cabía al respecto, la fábula 4.14, aun en su estado fragmentario 88,
habrá de disiparla. Efectivamente, el mensaje principal de esta fábula, además del
político de que el rey se abusa de sus súbditos recurriendo al engaño (con lo cual se
destacan nuevamente los rasgos ‘poder’ y ‘abuso’), es que, por más que se intente
cambiar lo que la costumbre (consuetudine, v. 6) ha consagrado –en este caso,
queriendo comer alimentos livianos (v. 7) y así ganar fama de justo (v. 5)–, los instintos
naturales siempre habrán de aflorar (v. 9).
El asno, por su parte, aparece en las fábulas 1.15 (“El asno a un pastor anciano”),
1.29 (“El asno que se burlaba del jabalí”) y 4.1 (“El asno y los sacerdotes de Cibeles”),
en las que se explota el rasgo ‘bajeza’ tanto en el sentido de ‘indignidad’ como en el de
‘inferioridad’. Así, las fábulas 1.15 y 4.1 destacan este último sentido relacionado con la
leones”), etc. Cfr. GEERAERTS, 2006, p. 143 en relación con la cita de n. 31: “Take the case of metaphor:
before lion acquires the meaning ‘brave man’, the feature ‘brave’ is not structurally distinctive within the
semasiological structure of lion, and hence, it has to be considered encyclopedic according to structuralist
theories. But if it can be accepted (and this is of course the crucial point) that the metaphorical extension
of lion towards the concept ‘brave man’ is not just a question of diachronic change, but is merely an
effect of the synchronic flexibility of lexical items, the feature clearly acquires semantic status.”
86
En esta fábula, el verdadero conflicto se da entre el ladrón y el caminante: el león tiene un papel de juez
para castigar o premiar. Sin embargo, se destaca el hecho de que “el más fuerte es también el personaje
moralmente positivo, cosa rara en la fábula” (MAÑAS NÚÑEZ, 1998, p. 105), toda vez que el león premia
al hombre bueno y castiga al malo.
87
Cfr. Phaed. 1.5.11, donde el término improbitas está referido al león. El contraste entre estas dos
fábulas (1.5 y 2.1) es notable no sólo por la divergencia entre la figura del león en una y otra, sino porque
la situación que da pie a las acciones es la misma: la división de una presa en partes. Destaca en este
sentido la presencia en ambas fábulas de una estructura sintáctica de ablativo absoluto con sentido similar
(partibus factis en 1.5.6, diuiso tergore en 2.1.9) preludiando en cada caso un desenlace completamente
distinto.
88
La reconstrucción del argumento de la fábula es llevada a cabo por MAÑAS NÚÑEZ (1998, p. 130), a
partir de Rómulo 43, de la siguiente manera: “El león se decidió a ser justo rey de los animales. Intentó
corregir su natural afición a devorar a los demás, pero, no pudiendo hacerlo, empezó a preguntarles si le
olía mal la boca: fuera cual fuera la respuesta, los devoraba. Cuando le preguntó a un mono, éste le
respondió que olía como el cinamomo y el incienso del altar de los dioses. Entonces, el león fingió
ponerse enfermo y los médicos le recomendaron una comida ligera. Él eligió la carne de mono y, así,
también lo devoró.”
68
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idea de lo inmutable e ineludible del destino. En la primera, el promitio adelanta que los
pobres (pauperes, v. 2) no han de cambiar su suerte, y el asno se muestra resignado
(lentus, v. 7) a seguir sirviendo (seruiam, v. 10) sea cual fuere su amo. En la segunda, el
destino (fati, v. 3) quiere que el asno, que ha nacido para llevar cargas (baiulantem, v. 5)
y aguantar golpes (plagae, vv. 6 y 11), continúe después de muerto recibiendo golpes.
Es profuso en esta fábula el léxico relacionado con el campo semántico de la desgracia:
infelix (v. 1), tristem (v. 2), dura fati miseria (v. 3), labore et plagis (v. 6); incluso
delicio (v. 8), término aquí deliberadamente ambiguo, toda vez que refiere al
comportamiento sexual de los sacerdotes galos89.
La fábula 1.29, por su parte, destaca el costado necio, impúdico y vil del asno
(stulti, v. 1; demisso pene, v. 7; ignauo sanguine, v. 11), en contraste con la
superioridad física y moral del jabalí (indignans, v. 5; repressit iram, v. 10). La figura
del jabalí en esta fábula resultará de especial relevancia al momento de abordar Phaed.
1.21.
Esto nos lleva a considerar, al fin, las fábulas de Fedro que involucran a ambos
personajes: 1.11 (“El asno y el león cazando”) y la que nos compete, 1.21. En 1.11, el
asno se muestra jactancioso (iactans, v. 1) e insolente (insolens, v. 12), lo cual denota su
necedad, toda vez que cree que por el mero uso de su voz es digno de ser temido,
cuando en realidad carece de valor (uirtutis expers, v. 1). El león se define por contraste:
es el que actúa (horrendo impetu, v. 10) frente al que se maneja sólo por su voz (uoce
terreret feras, v. 5). Por lo tanto, ha de ser el valiente e inteligente frente al arrogante y
tonto en este ‘par cómico’90, figura de frecuente aparición en las fábulas, y tan explotada
en las comedias91.
2.2.
La fábula 1.21
Veamos qué ocurre, por fin, en la fábula 1.21. En primer lugar, cabe notar que ya
desde el título mismo la fábula exhibe una suerte de oxímoron al adjudicar al león una
característica relacionada prototípicamente con la debilidad y la decrepitud: el adjetivo
senex operaría a modo de “marcador de interpretación no prototípica”92 por cuanto no
constituye una cualidad esperable para un león. Esto estaría anticipando la lectura de
una fábula del tipo ‘cambio de situación’, toda vez que su lector, además de contar con
ideas previas asociadas a las figuras del león y del asno, es probable que ya presuponga
uno o más scripts en los que tales figuras suelen verse envueltas: p.e., situaciones de
abuso de poder por parte del más fuerte, o de ridiculización del tonto, en una narración
en donde operara la dupla del ‘par cómico’. De hecho, como ya hemos visto, dentro del
89
Cfr. nuevamente Apul. Met. 8.24-26.
Una vez más, el carácter opositivo del rasgo relevante es el que explica por qué no nos resulta curioso
que el león apele a estratagemas casi ligadas a la cobardía para lograr su presa, ni que mencione que
podría asustarse por un grito desconocido, cosa que en efecto ocurre en Aesop. 82.
91
Cfr. SCHERE, 2009).
92
Cfr. KLEIBER, 1995, p. 107, en referencia a la conjunción pero.
90
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
propio corpus fedriano encontramos la fábula 1.11, donde precisamente se da este tipo
de situación.
Sin embargo, como dijimos más arriba, el promitio se constituía en un generador o
activador de un script. De esta manera, las expresiones quicumque amisit dignitatem
pristinam e ignauis de la moraleja se encarnarán, respectivamente, en el león y el asno,
generando el marco de expectativas previas a la narración 93. Teniendo este punto en
consideración, cabe pensar que la inversión de los prototipos continúa gestándose en el
promitio, y se consolida con la aparición de los personajes prototípicos.
Efectivamente, es notorio el hecho de que las formas verbales asociadas al león son
pasivas, no volitivas y/o no agentivas (amisit, defectus, desertus, iaceret, trahens, laedi,
exspirans, tuli, cogor, uideor, mori), mientras las que refieren a los otros personajes
(auténticos “agentes” verbales, y no sólo narrativos) son activos, volitivos, agentivos
(uenit, uindicauit, confodit, uidit, extudit, insultare, ferre), con la única excepción de
dedecus (naturae), dirigido por el león al asno.
También resulta pertinente, en relación con el fenómeno de inversión de prototipos,
considerar la presencia de dos dativos de beneficio, el adjetivo ignauis94 (v. 2) –
dependiente del sustantivo iocus– y el pronombre personal de primera persona mihi (v.
11) –dependiente del verbo insultare–, de signos opuestos semánticamente, en tanto el
primero representa un provecho (el llamado dativo commodis) y el segundo un perjuicio
(dativo incommodis). La inversión de prototipos es notoria por cuanto ambos dativos
beneficiarios parecen haber trastocado completamente su rol de acuerdo a las
características prototípicas de los personajes: el león (mihi) es el que se ve perjudicado
mientras que los cobardes (ignauis) se benefician. Recordemos que la famosa fábula I.5
exhibe la relación entre el león y los demás animales (prototípicamente cobardes),
donde aparece un mihi claramente commodis, también dicho por el león: Secundam,
quia sum fortis, tribuetis mihi (v. 8)95.
En este punto, cabe preguntarse si el dativo ignauis incluye también a los otros dos
animales de esta fábula, el jabalí y el toro. Si bien en un sentido general la mención a
“tomar como un juguete” puede aplicarse a los tres animales que golpean al león, la
referencia a los cobardes (ignauis) no puede aplicarse, tanto desde una perspectiva
prototípica como lingüística, ni al jabalí ni al toro. Desde una perspectiva prototípica,
ambos animales suelen aparecer en fábulas en donde se erigen como personajes sensatos
93
En este sentido, resulta interesante Phaed. 2.1 (“El novillo, el león y el ladrón”) donde el mensaje de la
moraleja, esta vez un epimitio, es contrario al contenido de la narración. Cfr. supra, punto 2.1.
94
Desde un punto de vista semántico, podría pensarse que ignauis está en una relación de posesión
respecto de iocus –dativo simpatético, “juguete de los cobardes”– o de relatividad –dativo iudicantis,
“desde el punto de vista de los cobardes, un juguete”–. Sin embargo, el dativo simpatético suele aparecer
con términos que remiten a objetos concretos, tangibles (cfr. BAÑOS BAÑOS, 2009, p. 204), lo cual no es
el caso de iocus. Tampoco parecería tratarse del dativo iudicantis, toda vez que el relato no hace
referencia a la opinión que los cobardes se forman del fuerte venido a menos, sino del trato real que
llegan a darle por el hecho de haber venido realmente a menos, y no sólo desde su punto de vista. La
interpretación de una relación de beneficio (“juguete para [diversión/provecho/uso de] los cobardes”) está
dada, pues, por razones de índole lingüística (uso de los casos), narrativa (relación opositiva con mihi) y
prototípica (en relación con otras fábulas con los mismos personajes, como se verá enseguida).
95
Nótese la cláusula causal en relación con la cualidad de fortis.
70
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
y nobles: ya hemos visto en Phaed. 1.29 la conducta del jabalí frente al asno,
encarnando la idea estoica de que la ira debe ser dominada; y dentro del corpus esópico,
podemos ver al toro como el héroe de una fábula (Aesop. 143) que muestra que a las
personas sensatas no les pasan inadvertidas las artimañas de los malvados (donde el
personaje malvado es el león). Desde una perspectiva lingüística, el adjetivo ignauus
aparece sólo dos veces en el corpus de Fedro, siendo la otra ocurrencia en 1.29.11 en
referencia precisamente al asno –ignauo sanguine–. Es decir que si, promediando la
narración, parece que la estructura antitética es ‘león vs. jabalí y toro’, la aparición del
asno lleva a incluir a estos últimos en el grupo de los “fuertes”, junto con el león. En
realidad, como nota MAÑAS NÚÑEZ (1998, p. 99), “la verdadera situación del conflicto
se reduce a la oposición león/asno, fortis/naturae dedecus”, de modo que la presencia
del jabalí y el toro puede entenderse más con una función de contraste, para resaltar
opositivamente la vileza del asno, que verdaderamente actancial 96. El adverbio etiam
(“incluso”) del v. 2 del promitio, que modifica al adjetivo ignauis, funciona
indudablemente con el mismo fin contrastante y restrictivo de referir específicamente al
asno.
3. Conclusiones
Teniendo en cuenta lo dicho acerca de que el argumento típico de una fábula esópica
puede tomar dos derroteros, a saber, que los personajes actúen de la manera esperada de
acuerdo con sus rasgos característicos –tipo ‘situación inmutable’– o que se dé un
cambio de fortuna recíproco, beneficiando al inicialmente inferior y perjudicando al
característicamente superior –tipo ‘cambio de situación’–, cabe pensar que la fábula
1.21 de Fedro responde a esta última estructura. En efecto, hemos visto que, más allá de
las diversas facetas que puede adoptar un rasgo prototípico, el león representa en las
fábulas un papel de personaje poderoso, mientras el asno es característicamente un
personaje bajo; y sin embargo, es éste el que triunfa sobre aquél en esta fábula. Lo
llamativo es que en un script prototípico que involucre a estos dos animales como
personajes, lo esperable es que, tal como observaba LURIA (1934), fuera el asno el
personaje vencido y no el vencedor.
Por otra parte, de acuerdo con GARCÍA GUAL (1977), cuando la fábula es del tipo
‘cambio de situación’, el personaje débil triunfa sobre el fuerte acudiendo a la astucia.
No es el caso de la fábula 1.21: aquí, el eje vertebrador no pasa por la astucia sino por la
fuerza, donde el personaje que prototípicamente la posee está carente de ella, y el
personaje antitético se aprovecha de esta situación. Y ello es porque en esta fábula
“domina el tema del comportamiento vil del asno”, tal como observa MAÑAS NÚÑEZ
(1998, p. 99), añadiendo:
96
Cabe notar, además, que, al menos en lo que se refiere al jabalí, el hecho de golpear al león no sólo se
debe a aprovechar la debilidad de éste (a tomarlo como un juego) sino a sacar un provecho específico de
esa debilidad (el vengarse de una ofensa anterior). Esto también da la pauta de la idea de “beneficio” (la
venganza, en este caso) que se oculta en la de “tomar como un juguete”. Cfr. supra, nota 42.
71
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
No olvidemos que el asno representa la vileza, la envidia y la necedad,
vicios todos odiados por los cínicos y que tienen por madre a la
ignorancia. La versión de Fedro desvía la atención de la astucia del
león al de la caída del poderoso: Fedro no cuestiona el poder, pero
condena la vileza de quienes actúan cuando saben que no pueden ser
castigados.
En efecto, en esta fábula el débil triunfa sobre el fuerte, pero el final no es feliz ni,
mucho menos, cómico. Su valor didáctico no reside en que la inteligencia resuelve el
conflicto, como observa GARCÍA GUAL. De hecho, podemos decir que en 1.21 ni
siquiera hay conflicto, sino tan sólo una situación eminentemente pasiva: un león
decrépito. El valor didáctico reside en que el comportamiento vil es despreciable. Y esto
es así porque, de las diversas facetas que pueden cobrar los rasgos prototípicos del león
y del asno, el poder y la bajeza, aquí se activan las relacionadas con la respetabilidad
(dignitatem) y la cobardía (ignauis), y no la de la fuerza abusiva frente al personaje
destinado a la desgracia.
Así pues, la estructura de la fábula es extremadamente simple: no hay conflicto; el
asno se comporta vilmente; el león resiste y habla con grandeza. La inducción apela a
los operadores lógicos ‘león’ y ‘asno’, es decir, a los miembros prototípicos de las
categorías ‘poder’ y ‘bajeza’, para concluir lo que ya adelantó la promitio en su
inexorable presente gnómico. En tal sentido, la fábula se acerca ahora a un tipo
‘situación inmutable’.
Nuevamente, entonces, el interrogante: ¿a qué tipo corresponde esta fábula? Es decir,
¿existe o no un cambio de situación respecto de los personajes prototípicos?
De acuerdo con lo analizado, observamos que donde se opera un cambio no es tanto
en los rasgos de los personajes, quienes actúan según se espera prototípicamente de
ellos, activando opositivamente una faceta de tales rasgos. Más bien, el giro parece estar
dado en el modo en que se da el desenlace, i.e., en el script prototípico que se desarrolla
cuando entran en juego estos dos personajes, que es básicamente el planteado por LURIA
(1934). Este script no se adapta a la estructura de 1.21 por cuanto el personaje vil no es
castigado ni aleccionado. La condición de anciano del personaje poderoso, que ya se
adelanta en el título a modo de marcador de interpretación no prototípica, no resta
(incluso podría intensificar) su carácter respetable, acentuado por la presencia de otras
dos figuras nobles y fuertes.
De modo que, si bien en una primera lectura pareciera que estamos frente a una
fábula del tipo ‘cambio de situación’, en realidad podemos concluir que en ella no
acontece cambio alguno: por el contrario, la fábula enseña, en una simple conjunción de
la visión estoica y cínica del mundo, que la conducta del hombre que ignora su propia
naturaleza es opuesta a la del hombre de bien.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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de Aristófanes”. Argos, 2009, 32, pp. 203-218.
73
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
EUSÉBIO DE CESARÉIA E A HISTÓRIA ECLESIÁSTICA: UM DISCURSO
IDENTITÁRIO ACERCA DA ORTODOXIA VIA ALTERIDADE DAS HERESIAS
Elisana Ribeiro Oliveira97
Rosana Brito da Cruz98
Resumo: Este trabalho faz parte de um projeto de pesquisa que se propõe a estudar e
analisar comparativamente um conjunto de hagiografias, salientando principalmente os
discursos e as práticas presentes nestes textos, com o objetivo de verificar os processos
formadores de identidade através do contexto de escrita de cada obra. Sendo assim foi
analisada a obra História Eclesiástica do bispo Eusébio de Cesaréia, já que a mesma
possui elementos que serviram como modelo para os textos hagiográficos posteriores.
Essa obra foi o ponto de partida para elaboração deste artigo, no qual será analisado
mais precisamente um aspecto da obra, que pode ser observado como um discurso
formador de identidade e que se dá através da afirmação da ortodoxia pela alteridade
das heresias, buscando consolidar sua legitimidade.
Palavras- chave: Heresia, Ortodoxia, Identidade e Alteridade.
Abstract: This work is part of a research project that aims to study and analyze a set of
comparatively hagiographies, particularly highlighting the discourses and practices
present in these texts, in order to verify the identity formation processes through the
context of writing each work. Therefore we analyzed the work Ecclesiastical History of
Bishop Eusebius of Caesarea, as the same elements that have served as a model for later
hagiographic texts. This work was the starting point for writing this article, which will
be analyzed more precisely an aspect of the work, which can be seen as a speech teacher
identity and that is through the affirmation of orthodoxy by the otherness of heresies,
seeking to consolidate their legitimacy.
Keywords: Heresy, Orthodoxy, Identity and Otherness.
Introdução
Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla que se propõe a analisar os
discursos formadores de identidade a partir do estudo comparativo de diferentes textos
hagiográficos produzidos na antiguidade e no medievo. Sob a orientação do Prof. Msc.
Thiago de Azevedo Porto, elaboramos este artigo que tem como principal objeto de
97
Discente da Faculdade de História de Bragança, da Universidade Federal do Pará (UFPA), cursando
atualmente o 4º período. Pesquisadora vinculada ao projeto Identidade e Alteridade na Antiguidade e no
Medievo, coordenado pelo Prof. Msc. Thiago de Azevedo Porto e registrado pela PROPESP/UFPA.
98
Discente da Faculdade de História de Bragança, da Universidade Federal do Pará (UFPA), cursando
atualmente o 5º período. Pesquisadora vinculada ao projeto Identidade e Alteridade na Antiguidade e no
Medievo, coordenado pelo Prof. Msc. Thiago de Azevedo Porto e registrado pela PROPESP/UFPA.
74
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
análise a obra História Eclesiástica99 do bispo Eusébio de Cesáreia. Este texto foi
estudado e debatido no âmbito do projeto de pesquisa Identidade e Alteridade na
Antiguidade e no Medievo e aqui neste trabalho buscamos analisar um discurso de
relações de identidade presente na obra. Existem diversas possibilidades de se trabalhar
o conceito de identidade dentro da HE, mas nós fizemos uma escolha por analisar a
identidade formada em torno da ortodoxia e a importância do discurso sobre a heresia
na formação desta identidade, pois este é o foco do nosso trabalho.
Neste artigo vamos abordar alguns conceitos para uma melhor fundamentação da
análise que foi proposta. O primeiro conceito é o de identidade, entendido a partir da
observação de discursos que foram construídos historicamente, buscando consolidar
aspectos sociais e culturais dentro de um determinado grupo como forma de demarcar
uma identidade ao longo de uma época, que acaba se propagando para a posteridade. A
demarcação de uma identidade sempre parte da construção da diferença, isto é, só faz
sentido falar de identidade quando se encontra a alteridade, pois só existe uma a partir
da outra:
[...] A identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso
significa que sua definição — discursiva e lingüística — está sujeita a
vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente
definidas; elas são impostas. Elas não convivem harmoniosamente,
lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas são disputadas.100
Podemos perceber uma clara relação de poder, uma querendo sobrepor-se a outra, e
diante dessa presença de poder a prática de incluir e/ou excluir faz parte dessa
demarcação de fronteiras (“Eu” e “Os outros”). O que está dentro do “eu” busca sempre
negativar o que está nos “outros” para distinguir uma identidade especifica, isso
significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, avaliando
de forma negativa os elementos atribuídos as outras identidades.
Dessa forma se percebe que elas não são algo dado a espera de serem descobertas;
elas são ativamente produzidas, ou seja, fazem parte de um contexto das relações sociais
e culturais.
Partimos de uma concepção sociológica e não-essencialista de identidade que diz:
A perspectiva sociológica e não- essencialista, ou seja, a identidade é
formada na “interação” entre o “eu” e a sociedade, há uma continua
modificação do que sou com os mundos culturais “exteriores” e as
outras identidades que essas mudanças apresentam. 101
99
Ao longo do artigo, eventualmente, utilizaremos a sigla HE como substituto para História Eclesiástica.
Nas citações retiradas desta obra, as referências seguirão o seguinte modelo: HE, IV (Livro), 5 (Capítulo),
p. (página).
100
SILVA, Tomaz Tadeu da Apud. Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais, p. 81
101
Citado em CRUZ, Marcus Apud. Identidade e Historiografia na Alta Idade Média. p.2-3.
75
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Este “eu” sofre modificações exteriores, ele é influenciado pelo meio, e pelas várias
identidades instáveis que estão inseridas no contexto social.
Segundo José Carlos Reis, a identidade também pode ser definida como nãoessencialista, pois está em continua transformação.
Não-essencialista se dá pela descontinuidade, ou seja, a identidade é
construída historicamente, através das vivências, experiências do
discurso e das relações práticas. Está em constante transformação,
nunca se completa.102
Trata-se não daquilo que somos para sempre de forma estável, mas do que nos
tornamos diante da inconstância e influências sofridas pelo meio em que vivemos.
É importante salientar que a partir da análise dos discursos presentes na HE
conseguimos identificar algumas relações que se estabeleciam naquele contexto
histórico dos séculos III e IV, que visavam estabelecer modelos e normas de conduta
social ajustados aos valores cristãos e que acabavam contribuindo para o
comportamento da sociedade. Percebemos na obra que tais discursos não tratam apenas
de fenômenos religiosos, evidenciam-se aspectos econômicos, sociais, políticos e
culturais.
O segundo conceito é o de historiografia, para que nos possibilite compreender
melhor os processos históricos que ocorreram ao longo dos séculos III e IV, no qual
Eusébio aborda o seu discurso sobre o cristianismo, principalmente voltado para uma
demarcação de identidade.
Sobre a historiografia, assim como para o conceito de identidade, Marcus Cruz
apresenta varias definições. A primeira, de Jean Walch, em que o termo história designa
os fatos e eventos aos quais o historiador se refere. Isto é, o ato de escrever a história.
A partir desses conceitos podemos entender a historiografia como um lócus de
construção de identidade, um discurso identitário, ainda que não o único. Isso pode ser
verificado na historiografia eclesiástica do século IV, como na obra de Eusébio de
Cesaréia, que evidencia os discursos cristãos em relação a pagãos, judeus, hereges, entre
outros.
Nossa reflexão neste artigo terá como foco a problemática de observar no discurso
sobre heresias uma relação de identidade da ortodoxia, partindo-se da idéia de que só
existe ortodoxia pela alteridade das heresias, já que a identidade porta sempre o traço da
diferença.
EUSÉBIO DE CESARÉIA E SUA OBRA
Eusébio de Cesaréia foi bispo e viveu na cidade portuária de Cesaréia, ficou
conhecido como “pai da história eclesiástica” e viveu entre os séculos III e IV. Era um
102
REIS, José Carlos Apud; CRUZ, Marcus. Identidade e Historiografia na Alta Idade Média. p.3.
76
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
homem erudito envolvido em questões políticas e religiosas, um intelectual que exercia
bastante influência no contexto social em que vivia.
Eusébio fez seus primeiros estudos com um doutor sacerdote de Antioquia, Doroteu,
e, depois, com o sábio Pânfilo, um dos mais ardorosos seguidores de Orígenes. Em seus
escritos ele tinha o objetivo de atingir os novos cristãos, instruindo- os; os judeus, que
buscou refutar; os pagãos, a quem mostrou a fé cristã como verdadeira religião, e
polemizou com alguns teólogos de sua época.
Os seus escritos foram resultados de um trabalho intelectual, aludindo a documentos
da biblioteca cristã de Cesáreia e comentando-os. Eusébio testemunhou a perseguição
aos cristãos, e a união da igreja e império com Constantino, ele foi o primeiro a escrever
a história da igreja do ponto de vista do fiel, inaugurando uma nova vertente na
historiografia.
Por se tratar de um autor cristão Eusébio relata a trajetória da igreja de forma a
evidenciar suas inclinações, por vezes tendenciosas. Nesse sentido, podemos verificar
seu intento apologético na obra. O autor defende uma vertente do cristianismo e valoriza
suas fontes, que são autores cristãos, coloca em foco a identidade cristã, não demonstra
divisão, dúvidas com relação à fé, parece haver uma unidade.
A unidade que Eusébio procura salientar não deve ser vista como um fato, pois
naquele período isso ainda não estava claro no âmbito da Igreja. Para o autor o
problema da heresia é sempre contra a instituição eclesiástica, ele coloca isso sempre no
lado de fora. Não há divergência dentro da Igreja, sempre tenta mostrar a idéia de
unidade e fortaleza. Através da demarcação dos valores cristãos e apontando no outro o
desvio e o errado, Eusébio contribuiu para a afirmação de uma identidade cristã.
Ele se propôs a escrever uma nova corrente historiográfica, diferente da que
predominava em sua época, que se caracterizava por focalizar os grandes
acontecimentos políticos. Mesmo com essa nova perspectiva de escrita historiográfica,
Eusébio não deixa de relatar grandes feitos e acontecimentos, contudo ele seleciona
aqueles diretamente relacionados aos aspectos religiosos e à difusão das comunidades
cristãs. Uma de suas obras mais comentadas é a Historia Eclesiástica, que foi
justamente aquela que o tornou conhecido como “pai da Historia Eclesiástica”. Nessa
obra ele se propõe a escrever a história da Igreja, que começa com o nascimento de
Jesus e vai até o período contemporâneo ao autor, no século IV.
Eusébio de Cesaréia fala de assuntos variados na obra, pautando-se em várias
tradições de diferentes temáticas como: o castigo aos judeus, o relato de martírios,
perseguições dos pagãos aos cristãos, tem um discurso muito forte a respeito das
heresias e da ortodoxia. Nessa obra ele busca divulgar o cristianismo, mostrar uma
religião triunfante sobre as perseguições e a idéia de uma nação cristã, portadora da
verdadeira mensagem de Deus.
Antes de discutir sobre as heresias na HE, vamos fazer uma breve conceituação deste
termo, para um melhor entendimento do assunto tratado neste artigo.
77
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
O CONCEITO DE HERESIA
O termo Heresia vem do grego (haíresis) que significa escolha, é a doutrina contrária
ao que foi definido pela Igreja em matéria de fé, foi criado historicamente e ganhando
outros significados com o passar do tempo. Foi um instrumento fundamental para a
própria organização eclesiástica: definir quem eram os hereges era uma maneira de
demarcar o que era CERTO dentro da Igreja, ou seja, é uma maneira de demarcar um
aspecto particular da verdade pela escolha feita por determinados grupos cristãos ou
individualmente. Essas escolhas sempre irromperam conflitos, controvérsias e
desentendimentos desde o inicio das comunidades cristãs, pois não eram algo estável e
sem manchas, o que fez com que uma doutrina se sobressaísse sobre as demais.
A partir dessas escolhas a Igreja viu-se na necessidade de fazer questão da doutrina
tida como verdadeira, que era a única que possuía a verdade revelada pelos apóstolos,
apontando nas demais o ERRADO e denominando-as de heresias. O surgimento das
heresias não corresponde a uma visão pueril de que aos poucos a fé cristã tivesse sido
deturpada por falsas doutrinas, mas deve-se ao fato de que havia uma multiplicidade dos
testemunhos da fé, que resultaram em escolhas pessoais e na formação de comunidades
segregadas, desviando-se da doutrina fiel aos princípios, que com o passar do tempo se
teria a noção de ortodoxia. A heresia está estritamente ligada com a evolução do poder,
quanto mais forte ele é mais ela é identificada, condenada e perseguida.
Percebe-se isto a partir do momento em que se dá a aliança entre Igreja e Império
com Constantino, que não só legitimou o cristianismo como também as perseguições
feitas aos hereges, que foram cada vez mais identificados e perseguidos por meios mais
fortes e coercitivos.
As heresias, no entanto, sendo nomeadas como “desvios de conduta”, possuem
elementos positivos para a evolução da doutrina cristã e para aprofundar o mistério e
compreensão da fé, através de seus estudos. As heresias também são consideradas como
ocasião de progresso no seio da igreja.
O herege não é designado “herege” senão porque alguém investido de poder
eclesiástico e institucional classifica suas práticas ou idéias como contrárias a uma
ortodoxia tida como verdadeira. O herético tornou-se tal, do ponto de vista do outro, aos
olhos de outrem.
No judaísmo essas escolhas passaram a ser responsáveis pelas várias seitas que nele
existia, e com isso o termo recebe o significado pejorativo de heterodoxia, indicando
quem se afastava da verdadeira doutrina da tradição rabínica, sendo acusados de serem
os inimigos da fé.
Realmente, todas as religiões soçobram no hábito e acabam por
cansar. Cansam à medida que seus adeptos perdem fervor. A fé se
enfraquece, perde dinamismo. Deixa de ser contagiosa como era na
origem. O homem, pois, tem necessidade de ressuscitar-se a si mesmo,
de morrer e de reviver; daí serem necessárias as pulsões da novidade,
78
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
o empurrão das heresias, para retomar seu caminho em direção aos
cumes da perfeição. Por isso, São Paulo dizia que “É preciso que haja
heresias” (1Cor. 11,19)103.
Com o passar do tempo a Igreja buscou se fortalecer através das heresias, como uma
forma de reavivar a fé que muitas vezes se enfraquecia no âmbito da mesma. Assim
como no inicio do cristianismo a Igreja sempre buscou se consolidar e legitimar seu
poder através das heresias, identificando nelas o errado e se afirmando como a
verdadeira doutrina. Quando passava por algum enfraquecimento, buscava se fortalecer
identificando outras heresias.
O DISCURSO SOBRE AS HERESIAS NA HE
Para compreendermos todo esse discurso de afirmação de uma identidade cristã,
difundida por Eusébio de Cesaréia, é necessário analisarmos como essa idéia foi
construída ao longo de seus escritos.
Para legitimar a ortodoxia como verdadeira religião, ele identifica nas outras
interpretações do cristianismo o que está errado, sendo consideradas como heréticas,
atribuindo-lhes as piores obras e as identifica diretamente com o demônio. Por outro
lado, fala da ortodoxia como verdadeira obra de Deus, que se sobressai a todas as
perseguições:
[...] Ao invés, ia aumentando e crescendo o brilho da única verdadeira
Igreja católica, sempre com a mesma identidade, irradiando sobre
gregos e bárbaros o que há de respeitável, puro, livre, sábio, casto em
sua divina conduta e filosofia.
No decurso do tempo sumiram, portanto, as calúnias a nossos
ensinamentos e, vencedora, apenas a doutrina cristã subsistiu.
Reconheceu-se que ela superava de muito a todas, em respeitabilidade
e prudência, e por sua doutrina divina e filosófica. Assim, ninguém
ousa agora intentar contra nossa fé acusações vergonhosas, nem
calúnias semelhantes às que outrora gostavam de difundir os que se
haviam aliado contra nós.
Além do mais, na época de que tratamos, a verdade podia apresentar
numerosos defensores, em luta contra as heresias atéias, não somente
através de refutações orais, mas também por meio de demonstrações
escritas.104
Percebe-se nesse fragmento da obra que Eusébio fala da ortodoxia como religião
triunfante, que consegue permanecer intacta e inalterada, apesar de todas as
perseguições sofridas e dos movimentos heréticos. Segundo Eusébio a verdade
apresentava vários defensores, através de contestações orais e escritas.
103
104
JÚNIOR, João Ribeiro. Pequena História das Heresias. pg. 20
HE, IV, 13,14 e 15, p. 179.
79
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Podemos verificar que Eusébio conceitua as heresias através da passagem:
Eles utilizam, no entanto, a Lei, os profetas e os evangelhos,
interpretando de maneira peculiar os pensamentos das Escrituras
sagradas. Mas blasfemam contra o apóstolo Paulo, cujas cartas
rejeitam e igualmente não aceitam os Atos dos Apóstolos.105
Segundo o autor os hereges eram aqueles que interpretavam de forma errada as
Escrituras, ou seja, eles faziam uso da Lei, mas de uma forma deturpada, o que os
levava a se distanciar da doutrina tida como verdadeira. Podemos compreender que
Eusébio fala das heresias como doutrinas falsas e erradas para que não houvesse divisão
no cristianismo, mas procura demonstrar uma unidade que ainda não era definida no
âmbito da Igreja. Por isso fala das heresias como contrárias ao próprio cristianismo e
não como outras interpretações do mesmo, demonstrando com isso uma relação de
identidade, pois identifica na ortodoxia o correto e nas heresias o errado, justificando
uma pela diferença da outra e, com isso, legitimando sua postura conservadora.
Eusébio aponta Simão Mago como o primeiro herege, sendo aquele que incitado pelo
demônio propagou uma doutrina falsa para atrapalhar a ascensão da Igreja. Tudo que
não é tido como parte da Igreja passa a ser demonizado, para o autor tudo depende da
relação entre o bem e o mau, nesse caso as heresias eram as obras do mau. Percebemos
isso na passagem que fala de Menandro, o sucessor de Simão:
Menandro, pois, que mais acima afirmamos ter sido o sucessor de
Simão, teve um dinamismo, qual serpente de duas bocas e duas
cabeças, que produziu os chefes de duas heresias distintas: Saturnino,
oriundo de Antioquia, e Basílides de Alexandria. O primeiro
estabeleceu na Síria e o outro no Egito, respectivamente, uma escola
de heresias atéias.106
Fica evidente nesse trecho da obra o simbolismo usado por Eusébio de forma
negativa, sendo uma das formas de demonizar as heresias para divinizar e exaltar a
ortodoxia.
No decorrer da História Eclesiástica, Eusébio de Cesaréia fala de várias heresias:
heresia de Marcião, Cerinto, Ebionita, Simão Mago, entre outras. Todavia ele não se
preocupa em explicar essas heresias, em falar detalhadamente delas, até porque ele não
tem essa finalidade, pelo contrário fala delas apenas para demarcar o correto, que é a
ortodoxia no discurso dele. Por isso ele se preocupa somente em colocá-las como obra
do mau para atrapalhar a obra divina, ele não se preocupa em distinguir uma heresia da
outra, fala de todas da mesma forma, sem se aprofundar nos motivos e causas.
105
106
HE, IV, 5, p. 216.
HE, IV, 3, p. 177.
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Há uma valorização por parte do autor das fontes utilizadas. Dando ênfase na
documentação factual, ele faz uso de textos de autores fiéis da religião cristã, por
exemplo, Orígenes e os próprios Evangelhos:
Justino também, ao tratar de Simão, dá noticia dele, nos seguintes
termos: “Certo Menandro, também ele samaritano, vindo a Antioquia,
da aldeia de Caparatéia, tornou-se discípulo de Simão. Estamos
cientes de que igualmente estimulado pelo demônio, veio a Antioquia
e iludiu a muitos pela arte mágica. Persuadiu a seus sequazes de que
não morreriam. Ainda agora, existem os que garantem isso, apoiados
em suas pretensões” (I Apol. 26,4).
Ação diabólica era, certamente, aquele empenho em caluniar por meio
desses mágicos, encobertos com o nome de cristãos, o grande mistério
da piedade (1Tm 3,16), declarando-o magia, e dilacerar, por meio
deles, os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a
ressurreição dos mortos. Mas, subscrever os ditos desses salvadores é
decair, perder a verdadeira esperança.107
Eusébio cria argumentos de legitimidade através de textos bíblicos e de autores que
tem a mesma base teórica que ele, através dessas fundamentações ele procura defender
sua postura diante dos fatos que narra, dando licitude ao que diz.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos que Eusébio de Cesaréia trabalha em seu discurso a questão identitária,
que se dá a partir da alteridade. Aponta no herege o erro, para que se possa identificar o
correto na ortodoxia, dessa forma ao negativar as heresias ele afirma a ortodoxia
legitimando-a como sendo a única religião verdadeira. Não consegue perceber em outra
religião o caminho certo, mas somente o errado induzido pelo diabo, que está sempre à
espreita para incitar o “desvio” do povo de Deus.
Como já foi dito anteriormente através dessa postura o autor demarca uma identidade
cristã, que busca servir de modelo para um comportamento da sociedade frente à
instituição eclesial.
Através desse estudo também podemos perceber a importância do aprofundamento
sobre o tema das heresias. Embora pareça que são fatos guardados na história da Igreja,
são de fundamental importância para a compreensão dos processos históricos ocorridos
ao longo dos séculos desde o inicio da mesma.
A História Eclesiástica revela a preocupação em orientar os fiéis a seguirem uma
conduta, uma postura de lealdade à sua causa, o que significa instituir-se na fé junto às
fontes eclesiásticas, tais orientações tendem a marcar a busca por uma postura de
submissão à Igreja por parte dos fiéis.
107
H.E, III, 3 e 4, p. 150.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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REGIONAL DA ANPUH-RIO, 13, 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, RJ:
UFRRJ,
2008.
Disponível
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<www.encontro2008.rj.anpuh.org/.../1212970909_ARQUIVO_Identidadeehistoriogra
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Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2002. Vol. I, p.503-522.
82
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TRAGÉDIA, RELIGIOSIDADE, POLÍTICA E COMUNICAÇÃO: UMA ANÁLISE
DA REPRESENTAÇÃO HEROICA NA PÓLIS
Poliane da Paixão Gonçalves Pinto108
Resumo: A concepção da tragédia como uma mera narrativa, o qual seria encenada em
meio a pólis, apresentando os mitos somente, será deixada de lado nesta análise. Para se
tentar compreender um pouco mais da atuação das tragédias na Atenas Clássica, é
preciso alcançar uma abordagem mais ampla. Assim as obras trágicas, não podem ser
entendidas somente como um gênero literário, que seleciona seus temas nos mitos,
como diz Pierre Grimal (1978), mas como algo mais amplo. Para isto será proposto a
seguinte abordagem da obra trágica, em que esta é compreendida a partir de três
aspectos básicos: primeiro o âmbito religioso, em que o ato de narrar os mitos seria
capaz de levar o grupo a uma katharsis coletiva. Segundo o ponto político na
compreensão da comunidade grega do período clássico. E por fim, e não menos
importante, foi destacado a tragédia como um âmbito que alcançaria um espaço de
memória coletiva, com a função de gerar uma identidade através da comunicação,
formada a partir de aspectos próprios da polis. Essa divisão proposta não significa que a
realidade esteja dividida nestas camadas, mas para facilitar a abordagem, optou-se pela
divisão.
Abstract: The conception of tragedy as a mere narrative, which would best aged in the
midst of the polis, with only the myths will be left out in this analysis. To try to
understand a little more of the performance of tragedies in Classical Athens, it is
necessary to reach a broader approach. Thus the tragic works, can not be understood
only as a literary genre, which selects its themes in myth, says Pierre Grimal(1978), but
as something broader. To this will be proposed the following approach works tragic as
this is understood from three aspects: first the religious sphere, in which the act of
narrating the myths could lead the group to a collective katharsis. According to the
political point in the understanding of the Greek community of the classical period. And
last but not least, the tragedy was highlighted as a framework to reach a place of
collective memory with the function of generating an identity through communication,
formed themselves from aspects of the polis. This proposed division does not mean that
reality is divided into these layers, but to facilitate the approach, it was decided to split.
1 - Tragédia e religiosidade
Sobre a questão da religiosidade, é importante começar refletindo sobre o mito, que
não pode ser simplificado como um relato que narra uma “historinha” da maneira que
108
Mestranda pelo programa
[email protected]
de
pós-graduação
pela
Universidade
Federal
em
Goiás,
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deuses viviam em um passado distante. O mito cada vez que era recitado era entendido
como “uma história sagrada” (ELIADE, 2000; p.50), e vivenciado acompanhado assim
por toda uma conotação religiosa. Isto quer dizer que: a partir da narração do
acontecimento, o qual se acreditava ter realizado em um tempo primordial, de uma nova
realidade a qual passou a existir, a ação era revivida na representação trágica, com a
presenta da comunidade que agia de forma ativa.
O mythoi pode ser entendido como um conjunto de fragmentos, que era transferido
através de uma narrativa oral aos seus destinatários, alcançando adaptações ao contexto
dos narradores devido a característica da história ser contata e recontada a outros
espectadores, por diferentes narradores, que de uma maneira ou outra interferia na
narrativa mítica.
As tragédias tinham suas histórias inspiradas, em narrativas míticas, tendo seu
conteúdo constituído por uma suma de diversas variantes, e adaptado ao interesse da
mensagem que seria transferida pelo tragediógrafo. Não se deve pensar de forma
ingênua, que o tragediógrafo como um personagem o qual simplesmente apossava das
narrativas míticas, manipulando para alcançar seus objetivos egoístas, aqui ele será
colocado como aquele individuo que a partir de seleções constrói uma narrativa que
alcança um sentido na coletividade. Seria errôneo pensar também que os tragediógrafos
também colocaram suas obras apenas questões altruístas abandonando seus anseios
pessoais. Mas não cabe aqui julgar isto no momento, a questão colocada é: essas obras
são representadas a coletividade, a qual participava de forma ativa, devido a função
prática exercida pela tragédia no âmbito da religiosidade, para então manter a ordem na
vida da polis. Portanto o objetivo é analisar a função das tragédias para a comunidade.
Seguindo a linha de raciocínio de Jean-Pierre Vernant, sobre a compreensão do
“universo trágico”, tem-se a ideia de que este se encontraria situado entre dois
ambientes, o dos novos valores, que passariam a ser desenvolvidos no novo ambiente da
polis, e aquele que é dominado por uma tradição mítica. Assim, a tragédia abordaria
temas desses dois espaços, entendendo que o mito representado não era entendido como
algo fictício, e sim como um acontecimento que seria reatualizado em meio a polis.
Sobre a ideia de representação, neste texto se destaca dois pontos particulares do
conceito: primeiro, o performático que se insere no ritual religioso, envolvendo não
apenas aspectos de teatralidade, mas um acompanhamento realizado por músicas,
pantomimas, danças sagradas, máscaras e sacrifícios, capaz de proporcionar todo um
espaço que aproximaria os espectadores da ação realizada no palco. O segundo ponto
acerca de representação, que se tem nesta concepção, a qual é usada nesta abordagem,
se relaciona com os estudos de Roger Chartier, que a partir da análise de escritos
literários da modernidade, propõe uma interpretação sobre a organização social do
contexto estudado. Desta forma, esta perspectiva consegue alcançar uma compreensão
histórica, a qual busca interpretar uma série de imagens, neste caso, verbais imbuídas de
significados, nas produções humanas.
Sobre a representação, ainda, tem-se o aspecto destacado por Jörn Rüsen (2001), no
que tange as narrativas, estas partem de carências contemporâneas do sujeito o qual
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escreve, não se desvinculando de seu contexto, pois de certa forma “preso” encontra-se
ao seu período. Esta ideia se aproxima em partes da perspectiva de Michel Foucault
(1992), sobre sua noção de autor, no qual, este não escreve um texto somente colocando
suas ideias, pois o texto seria um conjunto de vozes que se interagem e se congregam
formulando um agregado de signos e que a cada nova leitura assume uma interpretação
particular, levando em consideração que cada leitor possui vivencias singulares que
propõe leituras de uma mesma realidade alcançando assim significados diferentes.
Desta forma nas narrativas encontramos algumas carências, ou mesmo anseios
daquele que escreve o texto, não sendo um sujeito que somente reproduz aquilo que é
contado através dos escritos. Ainda pensando nos pressupostos teóricos de RÜSEN
(2001) quando uma determinada história consegue se estabilizar uma identidade, ou
seja, criar significado a coletividade, o sentido dessa história conseguiu alcançar um
determinado êxito. Seguindo essa lógica, a tragédia se encaixaria nesta perspectiva, pois
alcança um sentido coletivo, ao utilizar em sua construção temas baseados em narrativas
míticas, portanto conhecidas pela maioria dos espectadores. Dando a estes uma ideia de
lembrança partilhada, ou seja, a constituição da noção de um passado comum aos
presentes, gerou uma identidade de pertencimento ao grupo, que dividia o espaço das
poleis.
Esta discussão toca no problema elencado por Paul Ricoeur (2007), do uso da
memória, já que esta quando usada na constituição da identidade, pode gerar tanto o
abuso do esquecimento, quanto da lembrança, isto dependerá da fragilidade do ideal
identitário que se deseja formular. A memória, como um elemento temporal, é o
responsável por fazer a ponte entre a lembrança (passado), e a situação presente, se o
intuito é criar uma identidade é necessário que esta esteja consolidada no grupo, essa
consolidação é comprovada a partir do momento que se volta a lembrança. Nos casos
que a memória traz algum tipo de trauma, têm-se duas soluções, o esquecimento ou a
substituição da lembrança.
Entre os motivos destacados por Paul Ricoeur (2007, p.75) como responsáveis pela
fragilidade, cabe aqui destacar a terceira característica: a fragilidade causada pela
herança da violência. Geralmente a sociedade a qual tem algum momento em que
vivenciou momento de guerras, ou de violência extrema, e com o passar do tempo se
aquele grupo social passa a regozijar pelo sofrimento de outrem, acaba existindo o
estabelecimento de feridas aquela comunidade. Normalmente esse grupo acaba gerando
traumas em sua memória, devido a lembrança criada através da violência sobre outros.
Entre os atenienses temos o momento após as Guerras Greco-Persas, na qual Atenas
passa a construir uma imagem da polis que venceu os Persas, portanto esta teria o
direito de proteger as outras poleis. Diante de uma lembrança de violência, aqui se tem
um aspecto de fortalecimento de uma polis forte e preparada para enfrentar invasões
externas na hélade, em vez de gerar um trauma no grupo, ocorreu um caminho inverso.
É percebida na tragédia a capacidade, no passado, de fortalecer ideais de identidades
pela lembrança, dos mitos foram vivenciados no passado, pois quando se representava
uma história das batalhas no palco, essas histórias geralmente faziam parte da memória
85
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daquela comunidade, o que a tornava um instrumento importante para estabilizar certa
identidade.
Refletindo nesta concepção da memória como capaz de gerar identidade é necessário
refletir sobre como o conceito aqui é apreendido. Stuart Hall (2000), apesar de tratar do
conceito na modernidade levanta alguns aspectos importante o qual vale a pena
destacar, para este as Identidades podem ser compreendidas como um tipo de
construções, que são formuladas e reformuladas historicamente, de acordo com as
particularidades do período, no qual apresenta carências próprias ao contexto. Em que
estes criam modelos que definam o grupo e aqueles que pertencem ao determinado
ajuntamento, levando os sujeitos a se reconhecerem como pertencentes a uma unidade.
Essas identidades se fundamentam, normalmente, no imaginário que retrata imagens
não apenas da realidade do grupo, mas também projeções de um ideal. Nada melhor
para criar uma imagem ideal, que uma representação relacionada com a religiosidade,
por esse motivo a apresentação do personagem heroico, acredita-se que foi capaz de
influenciar os moradores da polis criando valores identitários de uma vida em
comunidade. Na qual a impureza de um traria a desordem aos outros que partilhavam o
mesmo, sendo importante portanto a katharsis coletiva, para que tanto as impurezas de
cada um, quanto do grupo, fossem retiradas da vivência daquela comunidade.
Assim, a tragédia utiliza-se dos aspectos próprios da religiosidade grega, para
embasar seu conteúdo que será uma fonte de identidade e de memória ao grupo da polis.
Para aprofundar nessa questão da religiosidade, passará a se discutir como a política se
vinculou a narrativa trágica,
2 - Tragédia e política
Antes de analisar como se dava a interação entre a tragédia e a política, é necessário
buscar uma definição a alguns termos importantes para se perceber como era a relação
entre o morador da polis e sua organização.
Primeiramente se tem o termo polis, que segundo o dicionário de grego (PEREIRA,
Isidro. 1998, p.467) seu significado seria algo que abrangesse a ideia de cidade,
imediações da cidade, região habitada, reunião dos cidadãos e Estado. Portanto é
perceptível a existência da noção de coletividade, já que não seria possível existir uma
polis sem que haja um convívio entre pessoas que dividem um espaço comum.
Mas para ser considerada uma polis não era necessário apenas haver um aglomerado
de seres humanos, estes deveriam ser uma comunidade composta por politai (MOSSÉ,
Claude, 2004, p.240). Cada polis era autônoma, em sua administração, no caso
particular de Atenas, temos a formação de um modelo chamado democrático, em que os
moradores com direitos na polis, poderiam participar das tomadas de decisões, na
verdade o termo correto não seria “poderia” e sim “deveria”, pois aqui a questão é que
para fazer parte dessa coletividade seria necessário participar da vida política. A ideia é
que aqueles que não faziam parte, mas partilhavam do espaço, normalmente pertenciam
a um status social considerado inferior, ou seja, não possuíam direitos civis, pois ou
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
eram escravos ou estrangeiros, não podendo assim aproveitar de uma vida plena na
polis. Deixando de agir como um homem, segundo a concepção de Aristóteles (IV a.C),
já que o ser humano é chamado de um zoon politikon , ou seja, um animal político, se
existe alguém que não participa da politeia, perde seu status de homem político.
Politeia é outro termo que se vincula também a ideia de coletividade, este pode ser
traduzido, de forma aproximada, como o direito do cidadão, ou seu modo de vida
(PEREIRA, 1998, p. 467), já que política não será entendida como uma prática
administrativa somente, mas uma forma de se relacionar com o conjunto que compõe a
polis. O termo também alcança o significado de política e administração da polis . Desta
forma politeia é um substantivo que dá nome a prática de viver como um cidadão que
participa das decisões na vida pública. Participar da politeia é agir como politai,
integrando o grupo dos que tem direito. (MOSSÉ, 2004, p.241).
Por fim tem-se a noção de cidadão, que geralmente é usado pela tradução do verbo,
polites, interessante pensar neste primeiro aspecto, que ser cidadão não é um
substantivo, mas uma ação que lhe dá o status de ser chamado e, portanto ser
considerado como parte da comunidade. Normalmente aquele que nascia, por exemplo,
possuía o direito de participar da politeia, mas para fazer parte seria necessário agir
como um polite, compartilhando das decisões tomadas na eclesia.
Desta forma é possível visualizar, o ato de agir na polis, ao mesmo tempo que é uma
ação que cria agregação, gera também a exclusão, podendo assim ser considerado como
uma obra que gera identidade.
A tragédia, não apresentava apenas um aspecto religioso, esta também continha
particularidades ligadas a comunidade na qual era representada, ou seja, através da
representação da narrativa trágica tem-se o reforço de uma imagem identitária do grupo
e assim era transferida. Vale ressaltar aqui que para um grego do período clássico a
questão religiosa e política não estavam desligadas, já que dependendo da relação
existente entre o cidadão e as divindades, este poderia participar da politeia, ou não.
A tragédia, desta forma, teria uma função de purificar aquela comunidade, através do
alcance da katharsis, permitindo que pela visualização hamartia, do herói, pelo
reconhecimento dos espectadores no drama trágico, era possível se purificarem.
Podendo assim fazer parte daquela comunidade. Ideia que podemos perceber dentro da
própria narrativa da obra Héracles, atribuída ao tragediógrafo Eurípides. Na qual a peça
se inicia com a imagem da ausência do herói, que dá nome a peça, pois este estava a
realizar os doze labores, para que ao fim dos trabalhos pudesse voltar juntamente com
sua família a sua polis de origem. Já que se encontravam em terras estrangeiras, por
causa do crime realizado pelo pai humano de Héracles, Anfitrião, como percebemos no
trecho abaixo:
Meu filho deixou Tebas, onde me
estabeleci, Mégara e os sogros, e
nas argivas muralhas e cidades ciclópica
desejou viver, de onde estou exilado por matar
Eléctrion. Para amenizar meus infortúnios
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
e por querer viver na pátria, oferece pelo
nosso retorno grande paga a Euristeu:
livrar a terra de monstros (...) (EURÍPIDES, v.14 – 20)
Assim a família do herói não poderia fazer parte da politeia de sua cidade, perdendo
desta forma o direito de serem considerados como polites, desde o momento que eram
estrangeiros em terras desconhecidas, abandonavam os direitos na participação da vida
política da comunidade. Por isso a necessidade de se purificar, para então poder voltar a
viver na polis, com plenos direitos de participação.
É possível então perceber que a tragédia possui uma função cívica, que se retrata
também pelo espaço físico específico destinado ao local onde se realizava as
representações trágicas. O teatro de Dionísio em Atenas, por exemplo, foi construído
em um espaço que não alcançava uma posição onde poderia ser visualizado, mas que
ocupava uma posição estratégica que permitia ao cidadão, o qual se encontra no
ambiente do teatro, conseguisse visualizar a cidade como um todo. Alcançando assim
um status de monumento (ALMEIDA, J. E. L. 2010).
Isso nos demonstra que se um ambiente fora separado na polis especificamente para
a representação trágica, essa atividade teria que ter uma função a coletividade de
extrema importância, além de passar uma mensagem a todos, sobre esse aspecto da
comunicação através de monumentos e pela narrativa trágica, se tem o próximo tópico
que foca a particularidade da interação destes conceitos.
3 - Tragédia, comunicação, memória e identidade.
No texto, Identidades e Etnicidades: Conceitos e Preceitos (2006), escrito pelos
autores Ana Teresa Marques Gonçalves e Leandro Mendes Rocha, trata de uma questão
que vale destacar aqui, sobre a invenção da tradição, na qual os antepassados são
idealizados em um mundo, em que o ser humano passa a tê-lo como identificação, se
relacionando com ele através da comparação. Essa redescoberta do passado, parte do
processo de construção de identidade que é caracterizado pelo momento de conflito, de
crise, em que há a contestação das identidades. Transpondo essa questão da invenção e
reinvenção da tradição na antiguidade clássica, temos a utilização da imagem do herói,
que vem de uma tradição mítica, para atuar nesse novo espaço da pólis como um
elemento ordenador. Segundo Hugo Francisco Bauzá, geralmente o mito do herói, tanto
consciente quanto inconscientemente, tem uma “função social específica seja para
glorificar a um grupo ou a um individuo, seja para justificar um determinado estado das
coisas” (BAUZA, p.5). Assim, como já citado, a imagem do herói terá funções
ordenadoras na pólis, em que as ações heróicas seriam realizadas para um bem
comunitário dos cidadãos, mesmo que isso signifique a desventura de alguém, que no
caso será a do herói. Então o herói assumiria uma identidade ordenadora, em que suas
ações deveriam ser consideradas como ideal, de um passado mítico, que serviria de
exemplo para as ações do presente entre os atenienses.
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Outro questionamento que nos remete a questão da reinvenção das tradições está na
questão contextual. No momento em que as tragédias são elaboradas temos dois pontos
a destacar, primeiro as póleis passavam por um momento, em que ainda estavam se
estruturando como cidades estado, e o passado idealizado pelas narrativas míticas,
atuaram como um modelo para servir como um tipo de orientação para o presente
incerto. Segundo ponto, é necessário relembrarmos que o período clássico é marcado
pela Guerra do Peloponeso. Na qual as cidades gregas se viram envolvidas em uma
guerra, não com povos que desconheciam suas culturas, mas sim entre as poleis gregas,
que possuíam uma cultura próxima e o dialeto parecido, então para propor uma
diferenciação, acreditamos que o discurso baseado na religião, por meio das tragédias,
foi utilizado, para que assim uma justificativa da superioridade, através da proximidade
com as divindades.
O conceito utilizado de identidade por Tamar Hodos (2010) é útil para perceber
como esse termo poderá ser empregado num contexto da antiguidade clássica. Para esta:
“Identity may be defined as the collective aspect f the set of characteristics by which
something or someone is recognizable or known.” (HODOS, 2010, p.3) Desta forma, o
conjunto de características que são particulares em comparação a outrem é o que
distingue e gera uma identidade. Janet Huskinson (2005, p. 10) em análise de um
mosaico, o qual foi encontrado em uma das províncias do Império Romano, trata de
alguns traços da identidade, que vale a pena destacar. Mas vale aqui destacar sobre
como a identidade esta está ligada a aspectos sociais culturais, não apenas a traços
biológicos. Sendo formada assim, por um conjunto de perspectivas e contextos.
Tamar Holdos apresenta uma perspectiva sobre identidade, a qual vale destacar sobre
os materiais e as culturas visuais, que se tornam estratégias de comunicação, mediadoras
de códigos culturais que passam a ser compartilhados. Pode-se dizer que a tragédia
participa desse aspecto, pois a partir do momento que é representada, passa a mediar
códigos culturais, definidores de uma identidade da polis, além do próprio teatro como
citado anterior, como um monumento, passa a ser um veículo de comunicação.
As poleis no período clássico considerando que passavam por um momento de
construção de identidade, já que se encontrava envolvida em disputas entre si, devido a
Guerra do Peloponeso. Foi necessário fortalecer as identidades de cada polis, isso
poderia acontecer através do uso de monumentos cívicos ou atividades argumentativas,
que reforçasse um estilo cultural da polis. Assim qualquer instrumento de comunicação
coletiva seria um veículo de reiteração de uma identidade.
Sobre a comunicação, sabe-se que não se pode ser tratada só pelo seu aspecto verbal,
hoje o entendimento desta ideia já ultrapassou esta barreira. Segundo Richard Miles
(2005, p.29) a comunicação parte de dois pilares: a articulação das ideias e a
transmissão da mesma. Assim quando se tem uma organização de mensagens e busca
transferi-la seja pelo meio escrito ou visual, se tem a comunicação, ou seja, a
transmissão de uma mensagem.
Identidade e comunicação são dois termos que se acompanham, pois o primeiro não
é possível existir se não for divulgado a outros indivíduos, que partilham ou não das
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
mesmas bases identitárias. Pela vinculação, tem-se a questão do poder, que passa a
utilizar dos instrumentos capazes de mediar a comunicação, ao grupo, para transferir
bases de uma identidade que se dissemina na comunidade. Desta forma o ato de se
realizar a comunicação, é acompanhado por uma gama de elementos pertencentes ao
grupo que aquele que comunica se insere, tendo entre suas entrelinhas relações de poder
e identitárias. Assim um texto trágico quando chega à contemporaneidade está
carregado de significados culturais.
O autor Tonio Hölschier (2001), apresenta alguns aspectos importante da
comunicação, através da analise de imagens do período clássico em Atenas. Para este as
imagens, possuem duas funções: a primeira seria através dos monumentos públicos pela
criação de identidades políticas e o segundo seria a apresentação de práticas sociais, por
meio de um conceito ideal de sociedade. Já o monumento na vida pública teria
determinadas funções: primeiro a projeção de sinais de poder e superioridade. Segundo
ao ter seu lugar no espaço comum da comunidade, marca seu caráter público. Terceiro
os monumentos públicos geralmente provocam o grupo, seja suscitando consentimento,
seja provocando. Outro aspecto é a impossibilidade de indiferença a esses monumentos,
que proclamam uma mensagem pública. Por fim, existe a questão que essas construções
eram a representação concreta de uma identidade, que deseja ser comunicada ao grupo,
seja essa identidade comum ao grupo ou não.
É preciso destacar uma questão sobre a especificidade das artes ateniense, pois se
tem a ideia que esse conjunto de produções, de cunho político, que retrata certa
consciência política, no período clássico, fosse algo específico dos atenienses o que é
rebatido por Tonio Hölchier no seguinte trecho:
The Athenians made intensive use of images to create and strengthen
political and social identity. This function of images developed in
principle on two levels. On one, public monuments created political
identity; on another, objects of social life, especially equipment of
symposia and religious rituals, presented in their images the society's
ideal concepts and models. All this, however, was common practice in
Greece. But within this framework there developed in Athens, on both
levels, some characteristic features that were connected with the specific
political and social conditions of this city. (HÖLCHIER, T., 2001, p.155)
Assim as poleis tinham em seus espaços de vida pública, uma quantidade de
símbolos que expressavam reinvindicações política, a partir do período clássico, essas
imagens eram apresentadas através da representação de um comportamento político
digno de ser imitado. Segundo Tonio Hölchier, esta característica demonstra que pela
primeira vez de maneira expressa e consciente os polites desenvolveram uma identidade
política consciente (HÖLCHIER, 2001, p.157)
Mas qual seria a imagem para um morador de Atenas no período Clássico, que fosse
digna de ser imitada? Partindo dessa ideia tem-se entre os atenienses o uso de imagens
mitológicas como mediadoras de um conjunto de ideias, mas o uso dessas imagens não
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
eram só no campo das esculturas, ou seja, imagens físicas. Tem-se o uso também de
representações dentro das tragédias.
O herói dentro das representações trágicas tinha uma série de funções, como já foi
dito acima, mas a que se destaca é a expurgação de sua hybris, que através desta poderia
levar a purificação comunitária do grupo. Para visualizar esta perspectiva tem-se o
seguinte trecho da autora Rachel Gazolla:
A identidade de cada um é a do todo, de modo que o erro cometido
não é responsabilidade de um homem, mas é previsível por todos,
aceito e expurgado conjuntamente, apesar de praticado por
alguns.(GAZOLLA, 2001, p. 27)
Desta forma aquele que pratica a hamartia, traz a desordem a comunidade, enquanto
não conseguir se purificar da falta, o grupo sofre. Por esse motivo o herói se torna
importante, pois através de suas ações que buscava a katharsis a polis conseguia se
purificar. Ou seja, pela ação exemplar do herói, que estava sempre em busca da
apotheosis a comunidade começa a visualizar as condutas que valem ser repetidas e
aquelas que devem ser abandonadas.
A característica peculiar da imagem heroica proporciona o uso da representação
desta tanto para exemplo a ser seguido, quanto para ser abominado. O herói possuía
uma natureza híbrida, pois em sua maioria para fazer parte do grupo heroico ou eram
semideuses, ou tinham características divinas em sua natureza. Deste modo o ser
heroico, se torna um ser que marca sua jornada, pois está sempre em busca da
purificação da natureza humana, que em si é fraca causadora de sofrimento. Enquanto a
natureza divina é aquela a qual torna o herói um ser superior, aos outros mortais, digno
de ter seus feitos lembrados a posteridade. Assim quando o herói agia pela sua natureza,
humana acabava cometendo uma falha, trazendo desordem a comunidade, o que quando
buscava a ordem da polis agia pela sua parte divina.
Desta forma, a representação do herói na trágedia não apresentava um aspecto
religioso e político somente, sua imagem servia também de meio de comunicação de
ideais e padrões morais de certos grupos, que encontrava no ambiente da polis
aceitação, devido ao instrumento de legitimação que estaria na memória, ou seja, a
lembrança de um passado mítico que passa a ser comunitária. Por fim o próximo tópico
apresentará como a imagem do herói Héracles foi utilizada como veículo de
comunicação de ideias políades.
4 - Héracles e a pólis
Para finalizar é importante destacar como se realizou esse uso da imagem de
Héracles nas tragédias, no qual foi uma representação capaz fortalecer a identidade a
partir da memória comum aos espectadores da polis. Segundo Hölchier (2001), Héracles
foi um dos principais heróis, que teve suas imagens representadas, partilhando esse
prestígio com o herói Teseu. Aquele foi escolhido como o herói, o qual apresenta uma
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
imagem vinculada com a Atenas arcaica, significando ideais helênicos dos grupos
privilegiados na comunidade.
O herói se destacava por possuir uma natureza híbrida, que se transformou na marca
de Héracles, pertencente ao grupo dos semideuses, por ser filho de Zeus com a mortal
Alcmena. Devido a essa natureza ambígua, o herói era considerado como um ser
conflitivo, pois possuía uma natureza mortal, que o transformava em inferior aos
deuses, e outra divina, que o tornava também superior aos mortais. Para tentar eliminar
sua parte mortal, como já foi dito anteriormente, os heróis se encontravam sempre em
jornadas katharticas durante suas trajetórias. Entretanto, para passar por este processo
era necessário, segundo Walter Burkert (1993, p.164), vivenciar uma “situação de crise,
de loucura, de doença, de sentimento de culpa”. Ou seja, a purificação fazia parte do
trato com o sagrado, em que o indivíduo realizava este processo de acordo com a
situação que lhe era apresentada, geralmente por forças superiores, e cabia ao herói
transpor determinadas etapas, ao realizar trabalhos específicos, possíveis apenas a seres
sobre-humanos, para alcançar o objetivo. No caso do herói em questão, no fim de sua
jornada terrestre predestinada, ele alcança a apotheosis.
Desta forma, Héracles era considerado, tanto deus quanto herói, nos rituais em sua
homenagem, como afirma Burket, pois dois tipos de sacrifícios eram dedicados a ele:
um como herói e outro como deus (op. cit., p. 405). Ainda segundo este autor, a imagem
acerca de Héracles no primeiro momento foi construída pela visão mítica, para mais
tarde ser influenciada pelas narrativas trágicas que trouxeram novos elementos presentes
especificamente a polis. Na narrativa constituída por uma tradição mítica, segundo o
autor Hugo F. Bauzá, tem se uma representação de Héracles que o tornava um
“protótipo de herói civilizador” (BAUZA, 1998), isso pode ser notado a partir dos
trabalhos realizados pelo herói. Em que o primeiro grupo de labores, passava-se no
Peloponeso, dos quais a maior parte consistia na captura e abate de animais selvagens.
No segundo grupo, há uma expansão do espaço de atuação do herói, que chega ao limite
do mundo conhecido.
O herói possuía a função do bem comum, vinculado a sua representação
constantemente, foi elencado um trecho abaixo que destaca o esta aspecto apresentado
dentro da tragédia Héracles, para visualizar como está viver e buscar o bem do grupo
era apresentada na tragédia.
Héracles: (...)
Pois, a quem devo defender mais, senão esposa
e filhos e pai? Adeus trabalhos.
Mais vãos foram aqueles que realizei do que estes.
Devo morrer por eles, defendendo-os, se, de fato,
morreriam pelo pai. Ou em que diremos ser belo
ir em combate contra a hidra e o leão,
enviado por Euristeu, se não me empenhar
sobre a morte de meus filhos? Então, não seriei
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
chamado, como antes, o vitorioso Héracles. (EURÍPIDES, vv.574 –
581)
Este fragmento é uma fala do herói logo após a realização dos doze trabalhos, este
resolveu que não realizaria mais nenhum labor e a partir do momento cuidaria da
proteção de sua família apenas, deixando desta forma de cuidar da coletividade para
pensar apenas no seu núcleo familiar. Quando o herói abandona a comunidade, esta para
de oferecer proteção, forças externas passam a atuar e trazem a morte para aqueles que
Héracles tanto queria proteger, e o assassinato de Mégara e dos filhos vem pela mão do
próprio herói. Não foi apenas a ação do assassinato que condenou o herói, mas a
intenção de cuidar apenas do seu núcleo familiar. Desta forma temos a imagem do herói
que cometeu o erro no momento que abandona a coletividade da polis.
Considerações Finais
Assim, a tragédia não pode ser pensada como um mero instrumento de
entretenimento, ou mesmo contendo um aspecto somente religioso. O universo trágico
foi uma organização de representações, que narravam acontecimentos de um passado
mítico da polis. Mas que possuía em seu conteúdo discursos de grupos que desejavam
reforçar uma identidade, portanto o texto trágico está carregado de símbolos e
significados particulares.
O herói foi o personagem escolhido, para representar o ideal de comportamento
esperado às comunidades, mas esta imagem não possuía só uma função comunicativa,
esta também possuía funções religiosas juntamente com funções políticas.
O herói Héracles, foi um dos personagens mais utilizado, pela sua particularidade de
obter uma natureza híbrida, além da peculiaridade por ser o único do grupo dos
semideuses que foi retratado como o que alcançou a purificação completa, ou seja, a
apotheosis.
Desta forma ao representar a narrativa mítica, a tragédia revivia as histórias do
primórdio, só que uma novidade, os moradores da pólis viviam aquela realidade, não
tornando apenas um indivíduo que recebe a história de uma forma pacífica, mas que
atuava nos acontecimentos através de sua vivência, sentindo suas emoções e se
reconhecendo na narrativa, realizando assim o processo kathártico. Mas vale ressaltar
que ao passar por esse processo, o morador não passava sozinho e sim na companhia do
grupo, tornando aquele conjunto de cidadãos como um corpo políade que sofria a ação
da tragédia e se purificava conjuntamente, gerando uma memória compartilhada entre
os espectadores.
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95
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
CONCEPÇÕES SOBRE O ORIENTE MEDIEVAL: A ERUDIÇÃO HISTÓRICA EM
IBN KHALDUN (1332-1406) E MICHAEL DUCAS (1400-1462)
Elaine Cristina Senko109
Resumo: O Oriente Medieval ganha em nossos dias maior espaço nos estudos
históricos em território brasileiro. Nesse artigo pretendemos demonstrar como o estudo
da escrita da história islâmica e bizantina podem contribuir para as pesquisas dos
medievalistas. Destarte, sinalizamos neste panorama a escrita da história por dois
eruditos, Ibn Khaldun (1332-1406) e Michael Ducas (1400-1462). Herdeiros da
translatio studiorum são exemplos para comprovar a dinâmica sofisticada do
conhecimento medieval.
Abstract: The Medieval East win today more space in historical studies in brazilian
territory. In this article we intend to demonstrate how the study of writing the Byzantine
and Islamic history can contribute to the research of medievalists. Thus, signals at this
panorama of the history written by two scholars, Ibn Khaldun (1332-1406) and Michael
Ducas (1400-1462). Heirs of translatio studiorum are examples to demonstrate the
dynamic sophisticated medieval knowledge.
A Idade Média fomentou nossa concepção de História, herdeira dos gregos e
romanos, além de ser um tempo de encontros entre o Oriente e o Ocidente. Devemos
lembrar como elemento pertinente e decisivo para tal, do movimento erudito chamado
de translatio studiorum. Esse caminho do conhecimento chegou ao Ocidente pela
principal conexão Constantinopla/Bagdá-Córdoba/Toledo-Paris. De fato, o acesso ao
saber era restrito no medievo por conta do reduzido número de bibliotecas e sua difusão
limitada aos homens que permaneciam próximos ao poder e sua zona de influência, num
período marcado por transformações. Os historiadores medievais foram ávidos na busca
de diferentes fontes para definir melhor sua argumentação em seus escritos. O estudo
sobre o historiador islâmico Ibn Khaldun (1332-1406) e o bizantino Michael Ducas
(1400-1462), representantes do campo da sabedoria medieval, fazem parte fundamental
na desmistificação de uma “idade das trevas” e contribuinte de uma Idade Média
múltipla, enriquecedora e geradora de homens de saber.
No presente artigo apresentarei os principais resultados de minha pesquisa de
mestrado, que desenvolvo desde 2010, sobre a proposta historiográfica formulada pelo
historiador islâmico Ibn Khaldun (1332-1406) em sua obra Muqaddimah110
109
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, membro
do Núcleo de Estudos Mediterrânico e orientada pela Professora Doutora Marcella Lopes Guimarães. Email: [email protected]
110
KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I, II, III). Tradução
integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro
de Filosofia, 1958-1960. Segundo o historiador Josias Abdalla Duarte: “Vale registrar que entre nós Ibn
Khaldun foi traduzido de maneira integral e publicado entre os anos de 1958 e 1961. José Khoury,
96
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
(KHALDUN, 1958-1960), além disso aqui acrescento minha análise comparativa para
com a historiografia bizantina e um de seus exemplos, Michael Ducas (1400-1462),
com sua Historia Byzantina (DUCAE, 1834). Essas duas vertentes historiográficas
medievais poderão enriquecer o diálogo e iluminar os estudos do Medievo Oriente.
Ibn Khaldun é descendente de uma família originária da região de Hadramut, sul da
Arábia, a qual, seguindo o fluxo das conquistas muçulmanas, se estabeleceu por muito
tempo em Sevilha, na Península Ibérica. Foi educado principalmente por mestres
andaluzes, e por isso terá como herança cultural o legado dos falsafas, ou seja, daqueles
que debatiam os pressupostos gregos da filosofia. Khaldun foi um homem ativo,
desenvolvendo seu trabalho erudito ao mesmo tempo em que servia ao governante para
quem trabalhava. Por exemplo, em 1363, Muhammad V, sultão de Granada, enviou
Khaldun em uma especial missão diplomática para ratificar um tratado de paz entre o rei
Pedro, o Cruel, rei de Castela e os emires de Al-Andaluz que viviam em Granada. O
apogeu de sua vida pública, no entanto, ocorreu no momento em que chegou ao Cairo,
onde, em 1384, Barquq, sultão mameluco, nomeou Khaldun como professor de
jurisprudência malikita na Universidade de Al-Azhar, também lhe indicando uma
cadeira no Colégio d’Alcamha (colégio do direito malikita) e lhe concedendo o cargo de
Grande Cádi Malikita do Cairo. Claro, tamanho reconhecimento se deve ao trabalho
intelectual de Khaldun, conhecido por seus estudos no ramo da história e teoria da
historiografia presentes em sua obra Muqaddimah.
Assim, entrevemos, dentro das características metodológicas do fazer histórico de
Ibn Khaldun, um rigoroso critério investigativo que pretende, acima de tudo, possibilitar
o alcance da verdade em relação ao conhecimento dos fatos passados. Assim, enquanto
objetivo básico, Khaldun busca valorizar e reforçar a importância do conhecimento
histórico verdadeiro: o legítimo transmissor, aos homens do presente e do futuro, de
verdadeiros exemplos de conduta, ou seja, orientações dignas de memória. De fato, ao
observar atentamente seu contexto, Khaldun critica em sua obra o modo como
imigrante libanês, assumiu a difícil e hercúlea tarefa; concluiu os trabalhos no ano de 1956 e teve início a
difícil procura de uma editora que aceitasse publicá-lo. Visitou editores brasileiros e argentinos sem
sucesso e, no final, desfez-se de bens pessoais para que Ibn Khaldun fosse publicado numa versão integral
em língua portuguesa. Àquela altura, havia apenas uma tradução francesa realizada e publicada por
William Mac-Guckin de Slane entre 1862 e 1868 a partir de texto estabelecido na França em 1858, que,
por sua vez divergia daquele que, em 1857, fora editado no Egito. A tradução de Khoury, esgotada há
muito, foi vivamente saudada quando do seu lançamento, mas não teve leitores e pesquisadores que
aceitassem o desafio, isto é, não iniciou-se ali uma tradição brasileira de estudos sobre Ibn Khaldun; hoje,
esta tradução está esquecida, há mesmo uma desvalorização do trabalho de Khoury. No entanto, quando
atentamos para a inexistência de edições críticas dignas deste nome e para as traduções integrais até
àquela altura realizadas, percebemos melhor o trabalho de Khoury. A dificuldade terminológica, a
abrangência semântica foram tratadas com rigor por este tradutor e deveriam, certamente, apesar das
limitações desta tradução, aliás, drama comum a todas as disponíveis, fazer da sua obra peça presente na
biblioteca de todo estudioso de Ibn Khaldun e do pensamento árabo-islâmico. Não bastasse tamanho
empreendimento, Khoury seria ainda o tradutor de crônicas árabes escritas à época das Cruzadas. Como
se vê, noutros dias, o estudo da Idade Média”. DUARTE, Josias Abdalla. Notas sobre o pensamento
historiográfico de Ibn Khaldun (1332-1406). VII EIEM – Encontro Internacional de Estudos
Medievais: Idade Média: permanência, atualização, residualidade. Fortaleza: ABREM/UFC, p.402-403,
2007.
97
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
determinados “historiadores” islâmicos estavam atuando: confundindo fábulas com
história, reproduzindo informações sem critério ou averiguação. Nesse sentido,
desenvolvemos uma problemática que busca refletir e situar quais são as possíveis e
principais influências que afetaram Khaldun durante sua composição. Enquanto
hipótese, inovadora em relação aos estudos nacionais e internacionais, acreditamos no
resgate, apropriação e transformação de diversos princípios da crítica e metodologia
próprios da historiografia antiga, fato possível graças ao movimento da translatio
studiorum, responsável por difundir na cultura erudita muçulmana o conhecimento dos
clássicos. Ao mesmo tempo, situamos Ibn Khaldun em relação ao seu contexto
temporal, o século XIV, e espacial, o Norte de África e Península Ibérica, verificando de
que modo as circunstâncias de sua época, bem como as características de sua trajetória
de vida, o motivaram ao estudo da história e da teoria da historiografia.
Nesse sentido apresentaremos as primeiras lições aprendidas por Ibn Khaldun em
Túnis e que ele mesmo relata em sua Autobiografia, que fazem parte de sua infância e
adolescência, foram a respeito do Alcorão e acerca dos aspectos da gramática da língua
árabe. Ibn Khaldun nos demonstra no trecho anterior que foi introduzido já em sua
adolescência nos aspectos da jurisprudência, iniciando pelo resumo do Muwatta. O
Muwatta era um resumo das tradições islâmicas feita por Malik Ibn Anas (m.795) e que
se tornou base para o sistema de jurisprudência da escola sunita malikita. Vemos nisso a
introdução de Ibn Khaldun na escola malikita de formação islâmica e que marca o início
de sua juventude, pois a uma criança não caberia tal elevado ensinamento e uma
especialização que lhe garantiria seu futuro. Ibn Khaldun enfatiza um de seus mestres
que mais lhe influenciou, principalmente acerca do pensamento baseado na razão, o
mestre Abu Abd Allah Muhammad Ibn Ibrahim Al-Abelli (nativo de Abbela, norte da
Península Ibérica). Ibn Khaldun se utiliza também de uma técnica da falsafa intitulada
tahafut (refutação baseada na reflexão) para apresentar seus pensamentos, além de
conhecedor da escolástica islâmica. O filósofo que mais influenciou Ibn Khaldun em
sua escrita no século XIV, e que era um fenômeno de utilização para os eruditos
medievais desde o século XII, foi o grego Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.),
provavelmente advindo de leituras averroístas. Outros dois sábios que Ibn Khaldun
consultava para seus estudos e que fazem parte das Ciências Clássicas aprendidas por
ele foi Euclides (360 a.C.-295 a.C.) com sua obra Elementos de Geometria e Galeno
(129-217) com sua obra Sobre o uso dos membros ou Períkreías tón Anthrópu sómati
moríon. A geografia de Al Idrissi também fazia parte do repertório erudito de Ibn
Khaldun.
Ele faz um estudo literário sobre as odes (muachahat) e os zejeis, estes
que são poemas de origem andaluza. Já a ciência da Alquimia para Ibn Khaldun era
perniciosa, pois os homens que a praticavam buscavam a riqueza de uma forma muito
rápida e evitavam os meios de se obter naturalmente sustento pela agricultura, pelo
comércio ou na prática de alguma arte.
Ibn Khaldun quando nos relata que foi Grande Cádi Malikita no Cairo em 1383 e
professor de jurisprudência malikita na Universidade (Jarníah) de Al-Azhar e no
Colégio d’Alcamha nos convidou a pesquisar o desenvolvimento educacional de seu
98
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
período. A Universidade de Al-Azhar teve uma inicial centralização de sábios e por isso
foi necessário a construção paulatina de um número maior de madrasas no Norte de
África. Para se alçar como aluno da Universidade de Al-Azhar no século XIV, este
devia ter uma formação sunita (pois desde o século XII com Saladino a referida
instituição de ensino se torna sunita, pois anteriormente era xiita) e ter cumprido os sete
ramos da Hikmat (que pode ser traduzido por conhecimento geral), as quais eram
aprendidas em aulas particulares ou em grupo nas madrasas (escolas) anexas às
mesquitas: Lógica, Aritmética, Geometria, Astronomia, Música, Física e Metafísica. E,
além disso, o aluno deveria ter noções das Sete Leituras Corânicas e de aspectos
gramaticais da língua árabe (BISSIO, 2008: 131)111. Para depois, sem esquecer-se de ter
em conta as ciências da hikmat, se dedicar com mais afinco as seguintes áreas dentro da
Universidade: Jurisprudência, Teologia, Gramática, Estudos astronômicos
aprofundados, Filosofia (a História é um de seus ramos), Medicina e Lógica. Além de
ter prestado atenção maior à jurisprudência, Ibn Khaldun se dedicou aos ramos do
conhecimento da geografia, do sufismo e principalmente da História. Ibn Khaldun
encontrou por meio de sua formação erudita uma autenticidade quando conciliou sua fé
islâmica com seus estudos sobre a História. E esta conciliação foi entender que a
História é feita em sociedade pelos homens e que, ao mesmo tempo, Allah estaria
vigilante aos nossos passos. Ou seja, é através da idéia de livre arbítrio que Ibn Khaldun
entende as movimentações dos homens em sociedade, mas sem esquecer, o que a
jurisprudência o ensinou, que as práticas que fazemos podem ser julgadas por outros
homens em nome das palavras divinas. Além disso seu contato com homens poderosos,
como Muhammad V de Granada e Pedro, o Cruel de Castela. De fato, são diferentes
experiências, os quais demonstram o quanto a vida é dinâmica e como Ibn Khaldun
tornou-se um personagem único na história.
Pois bem, sobre a escrita e o sentido da História na Muqaddimah de Ibn Khaldun, é
o momento no qual analisamos o documento e levantamos nossa principal hipótese: a
possível influência do saber histórico helênico na proposta historiográfica de Ibn
Khaldun. Como justificar essa via de acesso por parte de Khaldun ao conhecimento
grego clássico? Devemos, nesse sentido, lembrar do movimento chamado translatio
studiorum, responsável por difundir na cultura e erudição muçulmana o legado do
conhecimento grego antigo, demonstrado principalmente no século XIV medieval.
Além disso, sabemos das duas etapas da historiografia islâmica: o período formativo
e o período clássico. O período formativo da escrita da história no Islã é iniciado a partir
da morte do Profeta Muhammad, em que floresceram as primeiras biografias históricas
111
Conforme Beatriz Bissio: “Lembre-se que a caligrafia é uma das artes mais reverenciadas pelo mundo
islâmico. O Corão revela que ‘o Senhor, com o cálamo, ensinou ao homem o que ele não sabia’. Para os
muçulmanos, foi Deus quem ditou o livro sagrado para Maomé, com o anjo Gabriel como intermediário,
falando em árabe, a língua da Revelação. Perenizada através da escrita, a língua árabe é considerada uma
dádiva divina por todos os seguidores do Islã”. BISSIO, Beatriz. Percepções do espaço no medievo
islâmico (séc. XIV): O exemplo de Ibn Khaldun e Ibn Batuta. 2008. Tese de Doutorado. Niterói: UFF,
2008, p.131.
99
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
sobre ele. Já o período clássico, a partir do século X, a escrita da história no Islã se
apresenta nos seguintes estilos narrativos: relatos de viagens, genealogias, mantém-se as
biografias e as crônicas de dinastias. Herdeiro das duas etapas, Ibn Khaldun propôs uma
inovadora metodologia da História. Entrevemos, nesta análise, uma série de diretrizes
que contemplariam o verdadeiro trabalho historiográfico na concepção de Khaldun: é
preciso que o historiador conheça a arte de governar para tornar útil o seu escrito;
verificar o verdadeiro caráter dos acontecimentos; as diferenças entre povos, suas
localidades, seus climas e seus tempos; conhecer os costumes (a conduta, opiniões, o
contexto, os sentimentos religiosos de um povo e toda circunstância que influencia uma
determinada sociedade); conhecer o presente para analisar o passado; usar da razão para
analogias ou diferenças; explicar sobre a origem de dinastias e religiões (a época em que
apareceram, as causas de seu surgimento, os fatos que dela advém e a biografia daqueles
que foram importantes para sua criação e manutenção); deve procurar a fundo as causas
de cada acontecimento (inclusive as fontes de cada informação) e a atenção à erudição
linguística de cada povo. Se um fato corresponder a essas indicações ele se tornará
autêntico, portanto, próximo da verdade. Assim, na proposta de Khaldun, ao
historiador cabe encontrar a verdade em seu estudo sobre os fatos passados – não se
deixando fiar em acontecimentos fabulosos, como muitos historiadores muçulmanos do
passado, a exemplo de Maçudi, estavam fazendo. Para honrar a verdade, o investigador
deve se utilizar dos procedimentos metodológicos corretos. Dentro desse aspecto é que
encontramos a técnica do tadil (averiguação dos testemunhos) e o uso da racionalidade,
da crítica e da reflexão prática.
De fato, não encontramos na obra de Khaldun uma referência direta, nomeada, para
com algum historiador grego da Antiguidade. No entanto, encontramos no subtexto de
suas formulações importantes aspectos que apontam para essa influência em seu tempo.
Constatamos também que, do ponto de vista da inteligibilidade do discurso histórico, há
uma relação paralela: a narrativa do passado, enquanto verdade, traria aos homens do
presente e do futuro exemplos de conduta, ou seja, orientações dignas de memória. Para
uma compreensão da metodologia da História que se aplique ao estudo da sociedade,
apresenta-se como uma ressonância do segundo, pois busca compreender de que modo a
proposta historiográfica de Khaldun responde ao seu contexto, o século XIV magrebino.
Através de sua metodologia da história, a qual possibilitou um estudo que encontrasse a
verdade e revelasse aspectos até então implícitos na trajetória dos povos, Khaldun
estabeleceu considerações, de caráter universal, sobre a civilização (a umran com
influência aristotélica) – que seria o estágio mais perfeito, o apogeu, da sociabilidade
humana. De fato, o historiador propôs um padrão geral de movimento inerente a todas
as sociedades, caracterizando diferentes e progressivas etapas pelas quais a história de
um povo teria seu desdobramento: ascensão, apogeu e desestruturação. O conceito
histórico que sustenta toda essa explicação é o de assabyia (espírito de grupo)
importante fator de coesão social que garantiria a manutenção de um corpo político. É
possível pensarmos que o declínio do poder muçulmano em seus territórios influenciou
Khaldun em sua proposta, uma tentativa de entendimento racional para a realidade que
100
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
vivia o Magreb no século XIV: uma época de declínio populacional por causa da
diminuição da produção agrícola, do nomadismo retornando, das cidades desaparecendo
e da diminuição dos homens de saber, bem como de fragmentação política. Portanto,
um panorama inconstante e frágil que certamente despertava nostalgia em relação aos
tempos passados, quando o califado, o modelo político defendido por Khaldun,
mantinha os muçulmanos em seu apogeu.
Ao mesmo tempo em que normatizava essa razão universal, Khaldun destacou e
fortaleceu o papel do erudito, mais especificamente do historiador, na sociedade,
orientando o poder em tempos difíceis. Possuindo o conhecimento histórico um fundo
utilitário, tal como nos clássicos gregos, o vínculo entre o historiador e o homem de
poder seria mais do que pertinente, pois o primeiro teria como responsabilidade
aconselhar com sabedoria o segundo, com base em seu conhecimento científico e
verdadeiro do passado, no que se refere às mais adequadas ações na prática do governo.
Assim, compreendendo tal proposta teórica e com base nos vários acontecimentos que
permeiam a vida de Ibn Khaldun, podemos levantar a idéia de que em sua época os
homens relacionados à política necessitavam manter, à sua volta, homens de saber.
No estudo do Medievo Oriente é salutar compreendermos como se deu os principais
movimentos também da historiografia bizantina, a qual apresentaremos alguns
importantes aspectos. O Império Bizantino, desde o século V, sempre manteve um
grande interesse em manter historiadores perto de si (KANDELLIS, 2010: 211-223). Os
historiadores bizantinos resgataram, principalmente, a historiografia clássica e
helenística no medievo. No século VI, ao lado da escrita de inspiração clássica
bizantina, surgiu uma historiografia baseada em um modelo cronístico. As influências
mais marcantes na historiografia bizantina são as obras de Heródoto, Tucídides, e ainda
mais Políbio (com seu sentido da História Universal) e Plutarco (como se redige uma
narrativa histórico-biográfica). A escrita da história em Bizâncio era realizada por
homens ligados ao poder, pois era feita pelos “diplomatas” e filhos da casa imperial.
Apresentaremos aqui um panorama dessa historiografia, a qual contribui para a visão
dialogada com a historiografia ocidental cristã e depois com a islâmica.
Um dos primeiros historiadores bizantinos foi Prisco de Pânio que seguiu
Maximiniano, “diplomata” de Teodósio II, para seu encontro com o líder político dos
hunos, Átila, em 448. Prisco de Pânio escreveu uma História Bizantina. De forma
cronística, a obra apresenta fatos do encontro de Maximiniano com Átila até o governo
de Zenão I (433-474). Logo em seguida, a historiografia bizantina, convida a conhecer
Procópio de Cesaréia (500-565), o qual escreveu as seguintes obras: História das
Guerras – com uma influência clássica marcante (Tucídides), História Secreta e De
aedificis. Ao lado de Procópio, podemos inferir os estudos do historiador Jordanes que
produziu sua obra Gética (551). Entre os séculos VII e VIII, destaca-se a Crônica do
historiador Hipólito de Tebas, o qual mantinha em foco seu interesse pelos fatos do
Antigo Testamento. Até o século X, os eruditos bizantinos estavam mais voltados para
a cronística de fundo religioso cristão do que preocupados com uma metodologia
clássica. O historiador que realizou o retorno da escrita clássica foi Michael Psellus
101
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
(1018-1078). Erudito de extremo alcance, Psellus escreveu um livro de memórias sobre
a corte bizantina de sua época, na qual resgatava a ação do testemunho da História,
intitulada como Chronografia. Psellus teve como sua leitora a princesa e historiadora
bizantina, Anna Comnena. Nascida em Constantinopla no ano de 1083, era filha do
imperador Alexius I Comneno (1057-1118) e completou a obra de seu marido
Nicephorus Bryennius. Portanto a partir de 1137, Anna Comnena intitula a obra como
Alexíada, em homenagem ao governo de seu pai (COMNENA, 2003). Essa é uma das
obras mais importantes para se compreender o movimento da Primeira Cruzada.
Inclusive, ao lado da obra do historiador islâmico Ibn Al-Qalanisi, tornam-se
obras/testemunhos desse início do Levante. Neste contexto das Cruzadas, o historiador e
alto funcionário imperial Nicetas Choniates (c.1155-1216), foi testemunha da Quarta
Cruzada (1202-1204). A sua obra continuou a partir do ponto final da Alexíada de Anna
Comnena, e tinha como título História. No século XIV a obra que mais se destacou no
território bizantino foi de seu próprio imperador, João VI Cantacuzeno (c.1292-1383), o
qual em seu retiro escreveu sua obra História. O citado livro trata das próprias
experiências governativas do imperador em seu tempo.
Nesse sentido do movimento da história do pensamento podemos nos remeter ao
historiador bizantino Michael Ducas (c. 1400 - c. 1462). Diante de um colapso do
Império Bizantino (1453) é uma das principais testemunhas da desestruturação de
Constantinopla e sua resignificação como Istambul. Nos momentos finais de Bizâncio,
sob o governo de Constantino XI Paleólogo, ocorreu a saída de sábios bizantinos da
cidade em direção aos territórios genoveses ou seguindo caminho para terras eslavas
(RUNCIMAN, 2002: 122). O historiador Ducas foi um deles. Michael Ducas, oriundo
de família imperial, depois da conquista de Constantinopla, seguiu para Lesbos onde
serviu a família dos Gateluzzi como “diplomata” para negociar junto com o poder
otomano. Primeiramente exerceu suas funções para Dorino Gateluzzi, príncipe de
Lesbos e depois ao seu filho, Domenico Gateluzzi. Somente em 1462, Lesbos foi
definitivamente conquistada pelo sultão turco-otomano Muhammad II (1432-1481). A
queda de Constantinopla se deveu a força militar do inimigo, os otomanos, e
principalmente a falta de ajuda do Ocidente. Diante dessa justificativa de Ducas,
podemos inferir que em seu contexto também ele era testemunha de uma forte assabya
dos turco-otomanos, os quais iriam suplantar os bizantinos112. Ducas foi um grande
112
Os otomanos obtiveram sua entrada na região da Anatólia especialmente por causa da ação de Osman.
“Aproveitando com inteligência suas oportunidades, ele havia transformado um pequeno emirado de
fronteira na principal potência entre os turcos e na ponta de lança dos ghazis no mundo cristão”. In:
RUNCIMAN, Steven, Sir. op. cit. p.39. “A defesa era confiada aos barões das fronteiras, os akritai,
homens que passavam a vida atacando terras de inimigos ou repelindo investidas destes. Eram homens
sem lei, independentes, que repudiavam qualquer tentativa de controle por parte do governo, recusando-se
a pagar impostos, esperando, isto sim, ser recompensados por seus serviços. (...) Desde algum tempo, os
barões de fronteira muçulmanos ostentavam o título de ghazi, guerreiro da fé, um equivalente aproximado
do cavaleiro cristão. Ao que parece, recebiam algum tipo de insígnia e faziam uma espécie de juramento a
um senhor, possivelmente o califa; e obedeciam à futuwa, o místico código de conduta moral que se
desenvolveu nos séculos X e XI e foi adotado pelas guildas e corporações do mundo islâmico”. ”. In:
RUNCIMAN, Steven, Sir. op. cit., p.31-34.
102
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
defensor da aliança bizantina para com o Ocidente, e o desagradava o sectarismo de
muitos de seus colegas eruditos, os quais defendiam a independência de Bizâncio da
Latinidade. Entre 1441 a 1462 escreveu sua Historia Byzantina em 45 capítulos
(DUCAE, 1834). O estilo da obra de Ducas segue o escrito cronístico a partir de Adão e
Eva, passando por relatos bíblicos, seguido pelas narrativas das dinastias bizantinas: de
Constantino, Justiniano, passando pelos Macedônios, os Comnenos até a de João V
Paleólogo (1332-1391). Além disso, apresenta aspectos posteriores como a conquista
otomana de Bizâncio e de sua própria estadia em Lesbos. A Historia Byzantina tem um
sentido universal, mas a obra possui uma descrição dos acontecimentos mais presente
do que com as causas que derivam nos fatos. O escrito de Ducas possui um traço
tucideano na preocupação em ressaltar seu momento de testemunha da História. O
destaque na obra de Ducas é sua preocupação em não ser um historiador parcial, pois
em sua narrativa ele apresenta aspectos do interesse dos turco-otomanos sobre
Constantinopla e um compromisso na busca pela verdade. O referido historiador
bizantino, por ter escrito a Historia Byzantina por toda sua vida nos legou um escrito
aprimorado e autêntico de um erudito bizantino, pois uniu o modelo cronístico com o
sentido tucideano de escrita da história.
Torna-se importante ressaltar também que os séculos XIV e XV em que Ibn
Khaldun e Michael Ducas estão inseridos, é considerado séculos de mudanças políticas
efetivas no Mediterrâneo, por conta do avanço do Império Turco-Otomano que tomou
Bizâncio e o anexou a outros territórios já conquistados, a Síria, o Norte de África e a
Arábia. Portanto, assinalo que meu estudo acerca da proposta historiográfica de Ibn
Khaldun e de Michael Ducas visa justamente desenvolver uma reflexão que
problematiza, do modo mais original possível, a escrita da história no Medievo Oriente
e salienta esse momento histórico de transformação, do englobamento do Império
Islâmico e o Império Bizantino para esfera turco-otomana de poder.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BISSIO, Beatriz. Percepções do espaço no medievo islâmico (séc. XIV): O exemplo
de Ibn Khaldun e Ibn Batuta. 2008. Tese de Doutorado. Niterói: UFF, p.417, 2008.
COMNENA, Anna. Alexiad. Edição de E.R.A. Sewter. London: Penguin Classics,
2003.
DUARTE, Josias Abdalla. Notas sobre o pensamento historiográfico de Ibn Khaldun
(1332-1406). VII EIEM – Encontro Internacional de Estudos Medievais: Idade
Média: permanência, atualização, residualidade. Fortaleza: ABREM/UFC, p.402-403,
2007.
DUCAE, Michaelis. Historia Byzantina. In: Corpus Scriptorum Historiae
Byzantinae. Editio Emendatior et Copiosior - Consilio B. G. Niebuhrii C. F. Instituta,
Academiae Litterarum Regiae Borussicae. Ed. 1834. Edição bilíngüe latim/grego.
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Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
KALDELLIS, Anthony. The corpus of Byzantine Historiography - an interpretive
essay. In: The Byzantine World. (edited Paul Stephenson). New York: Routledge,
2010, pp.211-223.
KHALDUN, Ibn. Autobiografia. In: Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I, II,
III). Tradução integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach
Khoury. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958-1960.
KHALDUN, Ibn. Muqaddimah – Os prolegômenos (tomo I, II, III). Tradução
integral e direta do árabe por José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury. São Paulo:
Instituto Brasileiro de Filosofia, 1958-1960.
RUNCIMAN, Steven, Sir. A Queda de Constantinopla, 1453. Tradução de Laura
Rumchinsky. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
104
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
LIÇÕES DE ‘FISIOLOGIA’ – PELO MÉDICO-FILÓSOFO
EMPÉDOCLES DE AGRIGENTO
Rodrigo Siqueira-Batista113
Andréia P. Gomes114
Rômulo S. Batista115
Resumo: O filósofo Empédocles de Agrigento é considerado, tradicionalmente, uma
figura central no pensamento pré-socrático. Devem ser também destacadas suas
relevantes contribuições à medicina grega antiga, as quais são usualmente menos
estudadas. Com base nestas breves conjecturas, o objetivo do presente artigo é
apresentar os principais aspectos da fisiologia empedocliana, enfatizando a teoria dos
poros.
Palavras chaves: Empédocles, Filosofia, Medicina.
Abstract: The philosopher Empedocles of Agrigento is traditionally regarded a central
figure in the presocratic thought. They should also be highlighted their outstanding
contributions to the ancient Greek medicine, which are usually less studied. Thus, the
objective of this paper is to present the main aspects of the Empedocles’ physiology,
emphasizing the theory of the pores.
Keywords: Empedocles, Philosophy, Medicine.
Ora, o verdadeiro pensamento de Empédocles é a
unidade de tudo aquilo que se ama: há em todas as
coisas um elemento que as impele a se misturar e a
se unir, mas também uma força hostil que as separa
brutalmente; esses dois instintos estão em luta.
Essa luta produz todo o vir-a-ser e toda destruição.
Friedrich Nietzsche
I
Empédocles de Agrigento viveu e escreveu no século V (por volta de 495-435
a.C.), na Sicília. Atuou de modo salutar na esfera política em sua cidade-estado116,

O presente artigo retoma questões originariamente apresentadas no livro SIQUEIRA-BATISTA, R.
Deuses e homens: mito, filosofia e medicina na Grécia antiga. São Paulo: Landy, 2003.
113
Universidade Federal de Viçosa. Avenida P. H. Rolfs s/n, Campus Universitário, Viçosa - MG, Brasil.
CEP 36571-000. E-mail: [email protected];
114
Universidade Federal de Viçosa. Avenida P. H. Rolfs s/n, Campus Universitário, Viçosa - MG, Brasil.
CEP 36571-000.
115
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro. Rua Pereira de Almeida, 88 Praça da Bandeira - Rio de Janeiro, RJ, Brasil CEP: 20260-100.
105
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mas adquiriu notoriedade na filosofia e na medicina. Diferentes fontes apontam para
o fato de Empédocles ter desenvolvido significativas ideias sobre a fisiologia,
mormente em relação às sensações e ao processo da respiração. Em suas
formulações, concebia a existência de poros subjacentes à capacidade de perceber.
No caso da respiração, uma explanação pormenorizada é apresentada no fragmento
100, no qual é explicitado o complexo mecanismo respiratório empedocliano,
destacando que o ar era, em verdade, uma substância. Com base nestas preliminares
considerações, o escopo do presente manuscrito é apresentar aspectos da vida e da
obra do médico-filósofo Empédocles de Agrigento, enfatizando a teoria dos poros,
cerne de sua fisiologia.
II
A dedicação de Empédocles à filosofia e à medicina é reconhecida desde a
Antiguidade, como no excerto do capítulo II, Livro VIII, das Vidas e doutrinas dos
filósofos ilustres117:
Aprenderás quantos são os remédios e quais são as defesas contra os
males da velhice, pois somente para ti farei tudo isso. Deterás a
violência dos ventos infatigáveis, que se levantando sobre a terra
devastam os campos com seu sopro; depois, se quiseres, conterás
novamente os sopros benéficos. Farás após chuvas tenebrosas uma
estiagem bem vinda aos homens, e provocarás também, após a seca
estival, torrentes de chuva que nutrem as árvores. Trarás à luz, de
volta do Hades, a força de um homem morto118.
Seus fragmentos que restaram – cento e quarenta e oito ao todo – referem-se a
duas obras: Da Natureza e Purificações, as quais continham juntas cerca de cinco
mil versos. O pensamento empedocliano pode ser caracterizado como uma arguta
síntese filosófica, a qual tem como características essenciais a substituição da ideia
de uma arkhe única, princípio primordial – conforme proposto pelos pensadores
jônios: Tales, Anaximandro e Anaxímenes119 – pela concepção das quatro raízes (ou
quatro elementos) – água, ar, fogo e terra120 –, a qual combina o ser de Parmênides
116
De acordo com John Burnet “Empédocles seguramente desempenhou um importante papel nos
acontecimentos políticos que se seguiram à morte de Terão. O historiador siciliano Timeu parece tê-los
abordado fartamente e conta algumas narrativas que são obviamente tradições autênticas, recolhidas
cerca de 150 anos mais tarde". Cf. BURNET, J. O despertar da filosofia grega. Trad. de Mauro Gama.
São Paulo: Siciliano, 1994, p. 163.
117
Cf. DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. do grego, introdução e
notas de Mario da Gama Kury. 2a ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1977. p. 242.
118
Cf. DIÔGENES LAÊRTIOS, op. cit., p. 242.
119
Cf. SIQUEIRA-BATISTA, R. O nascimento da filosofia: uma peça em três atos. Lugar comum, v. n.
33-34, p. 215-225, 2011.
120
De acordo com os fragmentos 6 e 17: “Ouve primeiro as quatro raízes de todas as coisas: o luminoso
Zeus, a alentadora Hera, Aidoneus e Néstis, cujas lágrimas são uma nascente para os mortais” (frag. 6);
106
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
com a perpétua transformação de Heráclito. De fato, cada raiz é imutável, mas capaz
de se combinar com as demais121, unindo-se e apartando-se, propriedade que explica
a multiplicidade e as modificações das coisas.
III
O pensador de Agrigento desenvolveu relevantes proposições fisiológicas – em
especial no que se refere às sensações –, as quais diziam respeito à existência de
poros subjacentes à capacidade de perceber, como assinalou Teofrasto no seu Da
Sensação:
Empédocles apresenta a mesma teoria acerca de todos os sentidos, ao
sustentar que a percepção surge quando alguma coisa se ajusta aos poros de
cada um dos sentidos. É por isso que um sentido não pode julgar os objetos
do outro, visto os poros de uns serem demasiado largos, e de outros
demasiado estreitos para o objeto percebido, de tal modo que algumas coisas
passam a direito através deles sem lhes tocar, ao passo que outras não são
capazes sequer de entrar.122
De acordo com a tradição filosófica, essa a é a pioneira explicação detalhada das
sensações, formulada por um pensador helênico. 123 Tal proposição se compõe, muito
provavelmente, ao fato do filósofo articular, em seu pensamento, uma genuína defesa
dos sentidos, os quais são capazes de produzir conhecimento verdadeiro, destacandose que se trata de uma tese oposta à defendida por Parmênides. 124 A percepção
humana se torna possível pelos poros dos sentidos, os quais são capazes de captar as
emanações produzidas pelos mais distintos objetos,125 como o exposto em seu
fragmento 89:
“(...) Mas vem, escuta as minhas palavras, pois é aprendendo que se dilata a sabedoria. Como disse
antes, quando os temas de meu discurso anunciei, contar-te-ei uma história duplicada. Uma vez ela
cresceu em conjunto para ser uma apenas dentre muitas, outra vez se partiu e repartiu para ser muitas
em vez de uma: Fogo e Água e Terra e a poderosa culminância do Ar (...)” (frag. 17). Cf. BURNET, J.,
op. cit., p. 168-170.
121
Para J. V. Luce, “Empédocles explicava seu significado [das raízes] com um símile adequado tirado da
pintura. Compara as quatro raízes com as quatro cores básicas na paleta de um artista. Elas podem ser
misturadas para dar qualquer matiz desejado e então aplicadas na tela em pinceladas da forma ou do
tamanho desejado. Dessa maneira, o artista pode produzir uma imagem de qualquer objeto usando
somente quatro pigmentos básicos. Ele pode fazer isso por causa das diferenças quantitativas entre os
pigmentos, e tam ém porq e estes podem ‘interpenetra-se'. Da mesma forma, pensou ele, os quatro
elementos possuem diferenças qualitativas e são infinitamente combináveis. São essas combinações que
produzem os vários objetos componentes do mundo." Cf. LUCE, J. V. Curso de filosofia grega. Trad.
Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994., p. 62.
122
Teofrasto de sensu 7 (DK 31 A 86). Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M. Os filósofos présocráticos: História crítica com seleção de textos. Trad. de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1994., p. 324.
123
Cf. BURNET, J. op. cit, p. 200-203.
124
Cf. KIRK, G.S., RAVEN, J.E., SCHOFIELD, M., op. cit., p. 298-299.
125
Cf. BARNES, J. Filósofos pré-socráticos. Trad. de Julio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.
211.
107
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Sabendo que de quantas (coisas) nasceram há emanações. 126
É importante destacar que as porções (emanações) emitidas permanentemente
pelos díspares objetos127 – também denominadas efluências128 – devem ser
adequadas às passagens – os poros – sem o que a percepção não se processa,
conforme bem apresentado no fragmento 107129. Os poros são, igualmente, o
fundamento da respiração, delimitando, com efeito, outro aspecto da fisiologia
empedocliana, discutida no fragmento 100:
Assim todas as coisas inspiram e expiram. Todos são providos de
canais de carne, pobres de sangue, sobre toda a superfície do corpo; e
em suas extremidades, a superfície extrema da pele é perfurada por
muitos poros, de modo a reterem o sangue, permitindo contudo a livre
passagem de ar. E quando o fino sangue se afasta (dos poros), penetra
neles impetuosamente o ar, para deles ser expirado novamente quando
o sangue retorna; assim como quando uma menina brinca com uma
clepsidra de brilhante bronze: enquanto conservar sua graciosa mão
sobre a boca (da clepsidra) e mergulhá-la no macio corpo da água
prateada, não entrará água no vasilhame, pois o peso do ar
comprimido contra os estreitos orifícios o impedirá, até que (a moça)
liberte a corrente de ar comprimida; então, deixa o ar um espaço
vazio, que é ocupado em igual medida pela água [...] 130.
No referido fragmento – citado na obra Da Respiração, de Aristóteles – é exposto
o intrincado mecanismo de respiração formulado pelo pensador de Agrigento,
tomando como premissa que o ar é, em verdade, uma substância. Desta feita,
Empédocles defende que o ar quente liberado pela cavidade oral é cambiado, na
intimidade do corpo, por ar fresco aspirado pelos poros presentes na pele da caixa
torácica. Tais estruturas, em um momento posterior, expelem o ar aquecido,
permitindo a entrada de novo ar pela boca; assim, tem-se um movimento cíclico de
entrada e saída de ar, o qual é promovido pelo calor do fogo interno.
O funcionamento é comparado a um objeto comum à época, a clepsidra,
empregada para servir líquidos. Observando-se com cuidado a articulação intrínseca
do fragmento, compreende-se que Empédocles toma uma concepção sua acerca da
respiração – baseada na substancialidade do ar e na existência de poros na superfície
do corpo – e, no momento a seguir, estabelece uma analogia com o funcionamento
da clepsidra, como se quisesse fundamentar o conceito – já proposto – através de
126
Cf. OS PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
p. 184.
127
Cf. LUCE, J. V., op. cit., p. 63.
128
Cf. BURNET, J. op. cit., p. 179.
129
Fragmento 107: “Pois destas todas as coisas são formadas e ajustadas umas as outras, e por estas os
homens efetivamente pensam, sentem prazer e dor”. Cf. BURNET, J. op. cit., p. 181.
130
Cf. BORNHEIM, G.A. Os filósofos pré-socráticos. 13.a ed., São Paulo: Cultrix, 1999, p. 77. O grifo é
nosso.
108
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
elementos obtidos pela observação. É fato que o filósofo chega à conclusão de que o
ar realmente consiste em certa substância – não sendo o vazio –, uma vez que a sua
saída do vasilhame é seguida, ato contínuo, pela entrada de água, mas sua
formulação é a priori, ou seja, a leitura atenta do fragmento dá a clara ideia de que a
observação é posterior ao conceito já formulado.131
IV
A concepção empedocliana tornou-se bastante popular em sua época, de modo
que Platão, quase cem anos mais tarde, utilizaria suas proposições para tratar da
fisiologia da visão – no Mênon – e da respiração, no Timeu:
Sócrates: Não é verdade que falais de certas emanações dos seres,
segundo a teoria de Empédocles?
Mênon: Certamente.
Sócrates: E também de poros, para os quais e através dos quais correm
as emanações?
Mênon: Perfeitamente.
Sócrates: E, dentre as emanações, não dizeis que algumas se adaptam
a alguns dos poros, enquanto outras são menores ou maiores?
Mênon: É assim.
Sócrates: E há também, não é?, algo que dás o nome de visão.
Mênon: Há.
Sócrates: A partir disso tudo então, “atende ao que digo”, como diz
Píndaro. A cor é pois uma emanação de figuras de dimensão
proporcionadas à visão e assim perceptível.
Mênon: Parece-me, Sócrates, teres dado, com esta, uma excelente
resposta.
Sócrates: É que talvez tenha sido dada da maneira que te é habitual; e
ao mesmo tempo, creio, percebes que serias capaz de, a partir dela,
dizer também o que é o som, bem como o odor e muitas outras dentre
as coisas deste tipo.
Mênon: Decididamente. 132
Voltemos a considerar o fenômeno da respiração, para estudar as
causas que o deixaram como presentemente se encontra. (...) sempre
que o peito e o pulmão jogam para fora o ar, enchem-se com ar que
envolve o corpo, o qual passa através das carnes porosas, em seu
movimento rotativo; e o oposto: quando esse ar é rejeitado e atravessa
131
Cf. SIQUEIRA-BATISTA, R. Deuses e homens: mito, filosofia e medicina na Grécia antiga. São
Paulo: Landy, 2003., p. 198-199.
132
Cf. PLATÃO. Mênon. Texto estabelecido e anotado por John Burnet. Trad. de Maura Iglésias. Rio de
Janeiro: Ed. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / Loyola, 2001. Passo 72 c-e.
109
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
o corpo, empurra para o interior do corpo o ar inspirado pelas
passagens da boca e das narinas133.
No Mênon, o funcionamento da visão é detalhadamente apresentado –
abrangendo, inclusive, a discriminação das cores –, constituindo-se uma base para o
entendimento dos outros sentidos – como a audição (o som) e o odor –, o que torna o
modelo, em última análise, uma genuína teoria da sensação. No Timeu – obra na qual
são apresentadas díspares concepções referentes ao funcionamento do organismo
humano134 – a proposta explicativa da fisiologia respiratória é bastante próxima
àquela descrita no fragmento 100 – anteriormente apresentado –, destacando-se a
questão da substancialidade do ar. Desta feita, as mesmas bases conceituais
originárias do pensamento de Empédocles encontram-se alinhavadas nos dois textos
platônicos, os quais expõem elementos atinentes às concepções fisiológicas vigentes
à época.
V
A influência de Empédocles no pensamento grego originário é extremamente
significativa, mormente ao se sopesar a medicina. De fato, o filósofo é considerado
por Galeno como fundador da escola médica italiana, tida pelo autor romano de
similar relevância às tradicionais escolas de Cós e de Cnidos. 135 As conjecturas
galênicas acerca da obra médica do siciliano, por si mesmas, já seriam suficientes
para justificar o estudo aprofundado dos fragmentos de Empédocles. Mas, vale
ressaltar, enfatizando tal perspectiva, que ideias empedoclianas – como a teoria das
emanações e dos poros – estarão presentes nos dois mais importantes pensadores do
período clássico – Platão e Aristóteles – ratificando, por conseguinte, todo o esforço
de apreensão de suas lições de fisiologia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARNES, J. Filósofos pré-socráticos. Trad. de Julio Fischer. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
BURNET, J. O despertar da filosofia grega. Trad. de Mauro Gama. São Paulo:
Siciliano, 1994.
BORNHEIM, G. A. Os filósofos pré-socráticos. 13.a ed., São Paulo: Cultrix, 1999.
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. do grego,
introdução e notas de Mario da Gama Kury. 2a ed. Brasília: Ed. Universidade de
Brasília, 1977.
133
Cf. PLATÃO. Timeu. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. Universidade Federal do Pará, 1977.
Passo 79 b-c. O grifo é nosso.
134
Cf. FRIAS, I. M. Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na Grécia clássica. Rio de
Janeiro / São Paulo: Ed. PUC-Rio / Edições Loyola, 2005.
135
Cf. BURNET, J. op .,cit, p. 165.
110
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
FRIAS, I. M. Doença do corpo, doença da alma: medicina e filosofia na Grécia
clássica. Rio de Janeiro / São Paulo: Ed. PUC-Rio / Edições Loyola, 2005.
KIRK, G. S., RAVEN, J. E., SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos: História
crítica com seleção de textos. Trad. de Carlos Alberto Louro Fonseca. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1994.
LUCE, J. V. Curso de filosofia grega. Trad. Mario da Gama Kury. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994.
OS PRÉ-SOCRÁTICOS. Fragmentos, doxografia e comentários. São Paulo: Nova
Cultural, 2000.
PLATÃO. Timeu. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. Universidade Federal do
Pará, 1977.
PLATÃO. Mênon. Trad. de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: Ed. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro / Loyola, 2001.
SIQUEIRA-BATISTA, R. Deuses e homens: mito, filosofia e medicina na Grécia
antiga. São Paulo: Landy, 2003.
SIQUEIRA-BATISTA, R. O nascimento da filosofia: uma peça em três atos. Lugar
comum, v. n. 33-34, p. 215-225, 2011.
111
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
EL LECTOR DE LA ODISEA: MEMORIA E IDENTIDAD EN BERNHARD
SCHLINK
Marcela Ristorto136
Clara Racca137
Resumen: En este trabajo trataremos de analizar cómo Schlink trabaja la cuestión de la
identidad y la memoria a partir de su lectura de la Odisea. Puede verse el tema del viaje,
del regreso a su propia patria, como un enfrentamiento con el Otro, pero que al mismo
permite alcanzar la percepción de la propia identidad. Así como Odiseo, quien en sus
viajes traza los contornos de una identidad griega, Michel inicia un viaje al pasado,
intentando aclarar su propia identidad. En El Lector, Michel debe enfrentarse a su
propio pasado, lo que implica cuestionar el pasado del pueblo alemán y su relación con
el Nacional Socialismo.
Palabras clave: Schlink, Homero, identidad, memoria.
Abstract: This paper will attempt to analyze how Schlink working the issue of identity
and memory from his reading of the Odyssey. You can be the subject of travel, return to
their homeland, as a confrontation with the Other, but achieves the same perception of
their own identity. Just as Odysseus, who in his travels trace the contours of a Greek
identity, Michel begins a journey to the past, trying to clarify its own identity. In The
Reader, Michel must confront his own past, which involves questioning the past of the
German people and its relationship to National Socialism.
Keywords: Schlink, Homer, identity, memory.
¿Es ése nuestro destino: enmudecer presa del espanto,
la vergüenza y la culpabilidad? ¿Con qué fin? 138 (SCHLINK: 2000: 99)
Al tratar de definir la identidad de un individuo, o tratar de tener una visión de
nuestra propia identidad, automáticamente surge la noción de memoria. Tal vez no
como concepto en sí mismo sino como recuerdos, vivencias, olores, sonidos, objetos;
cada cosa ocupa un lugar en nuestro cerebro, aunque ya no recordemos que allí se
encuentra, y puede emerger en cualquier momento y con premeditados o inesperados
motivos. La acumulación de todos esos elementos conforma la vida de cada uno, el
lugar desde donde nos situamos y hacia donde nos proyectamos.
Grosser (2010: 297) establece que “la memoria está presente como dato, como
dimensión de la identidad de cada uno, una identidad individual e identidades de
pertenencia, sin las cuales no habría sociedad”. Y acá se agrega un aspecto interesante
136
Universidad Nacional de Rosario.
Universidad Nacional de Rosario.
138
Scham und Schuld verstummen kann. Sollen wir nur in Entsetzen, Scham und Schuld verstummen?
Zu welchem Ende? (S. 100).
137
112
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
que es ‘la sociedad’. De acuerdo a Grosser, las identidades de pertenencia posibilitan la
existencia de una sociedad y, agregamos, proporcionan también el sentimiento de
seguridad de quienes forman parte de ella. Sin embargo, debe recordarse que la
memoria no sólo es un derecho de los hombres sino también un instrumento de poder,
dado que se rescata el pasado para servir al presente y al futuro.
La memoria, de un individuo o de una sociedad, es forzosamente una selección de
acontecimientos vividos. Es decir, no pervive la totalidad de lo que ha sucedido y
existido en el pasado, sino una selección realizada por los individuos o por las
sociedades, selección que conserva algunos rasgos y margina u olvida otros (Cf.
TODOROV, 2000: 16). Todorov sostiene que “Nada debe impedir la recuperación de la
memoria… Cuando los acontecimientos vividos por el individuo o por el grupo son de
naturaleza excepcional o trágica, tal derecho se convierte en un deber: el de acordarse,
el de testimoniar” (pp. 17-8).
Muchas veces los intereses del presente determinan la memoria, dado que, como
decíamos arriba, el pasado es un bien simbólico de gran valor. La memoria es
frecuentemente vaga y tendenciosa porque no implica una reconstrucción crítica del
pasado sino más bien una participación emotiva en éste. Schlink considera que existe en
cada época una manera diferente de vincularse con su pasado, sin embargo desaprueba
cómo los alemanes avanzaron atropelladamente por las ruinas de su historia, al convertir
el nazismo en un tema tabú que debía ocultarse.
En el cuento La circuncisión (SCHLINK, 2008), Schlink narra la historia de un joven
alemán becado en Estados Unidos quien entabla una relación amorosa con una joven
judía norteamericana. Los familiares de Sarah padecieron en carne propia el horror del
Holocausto. Ella y su familia basan sus relaciones y su ser en el mundo desde y con el
pasado. En un viaje que la pareja realiza a Alemania, antes de ir a visitar el campo de
concentración de Oranienburg, el tío del protagonista afirma:
Fue terrible, desde luego. ¿Pero eso quiere decir que la gente de
Oranienburg o de Dachau tenga que tener por fuerza un presente
terrible? ¿Es justo que la gente que nació muchos años después de la
guerra, y que nunca le ha hecho daño a nadie, tenga que aguantar que
recuerden y le echen en cara dos por tres el pasado singular del lugar
de donde vive? (Schlink 2008: 196)
En contraposición a la actitud de indiferencia y deseo de olvido de muchos alemanes,
la vida y los sentimientos de Sarah y de su familia están estrechamente vinculados con
su pasado. En relación al pasado y a la identidad Todorov (2000: 25-6) señala: “la
identidad actual y personal del sujeto está construida, entre otras, por imágenes que éste
posee del pasado”. Como expresábamos anteriormente, nuestra identidad surge de la
memoria, la que a su vez es responsable de nuestras convicciones y de nuestros
sentimientos139. El tópico de la identidad es una constante que surge una y otra vez en
139
Véase infra, p. 118.
113
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
las distintas obras de Schlink. Sus personajes son seres desgarrados por situaciones que
cuestionan permanentemente la identidad 140 y sus historias muestran hombres que
existen en el mundo sin habitarlo, justamente por un sentimiento de no pertenencia y de
eterno cuestionamiento. Los seres ficcionales creados por este autor alemán pertenecen,
viven, actúan, o se relacionan en una Alemania contemporánea y, en consecuencia,
cargan sobre sí el peso de la historia reciente. Los personajes se convierten en
narradores y cuentan su historia. Cruz en la “Introducción” a La condición humana de
Hannah Arendt (1996: XI) expone: “es a través de las historias contadas cómo el
protagonista de las acciones –quien las realiza- se identifica, se reconoce y recibe lo que
se denomina adecuadamente una identidad narrativa.” En este caso la identidad
narrativa es netamente ficcional, aunque podría argumentarse que todo relato
exteriorizado posee algo de ficción creada por quien lo manifiesta lingüísticamente. Un
concepto interesante a propósito de nuestro desarrollo es el de Erfahrung formulado por
Benjamin, el mismo establece que la experiencia vinculada con procedimientos tales
como la narración, implica un proceso de elaboración que no sólo se queda en las
palabras sino que también implica el pensamiento crítico y la acción. Lacapra (2006:
167) por su parte expone que la narrativa no ayuda a cambiar el pasado a través de una
dudosa reescritura de la historia sino a elaborarlo de una manera que abra futuros
posibles. Forster (2003: 54) asimismo señala que “el pasado regresa como ficción y
artilugio”; ese regreso puede presentar la forma de una narración. Posiblemente el
hombre y la sociedad necesiten escribir sus recuerdos para poder convivir con lo vivido.
Sin lugar a dudas Schlink es un autor que posibilita ampliamente el ejercicio de la
reflexión acerca de la identidad y la memoria.
Así en El lector la identidad del narrador y protagonista fue determinada por sus
experiencias del pasado. Michel Berg inicia el relato de su historia en la época de su
adolescencia; volviendo de la escuela se descompone y es socorrido por una mujer
adulta, Hanna Schmitz, con quien mantendrá una relación amorosa. Dentro del ritual
erótico-amoroso, la lectura constituye un elemento esencial. El rito de la lectura de los
clásicos de la literatura, se inicia con la Odisea de Homero en griego y Cicerón en latín,
ya que Hanna quería saber cómo “sonaban” estas lenguas. Repentinamente Hanna
desaparece y Michel la vuelve a ver cuando asiste, siendo estudiante de derecho, a un
juicio contra criminales de guerra. Su antiguo amor es una de las cinco acusadas por la
muerte de un centenar de prisioneras en el campo de concentración del que eran
guardianas. Desde entonces el protagonista queda atrapado entre el deseo de castigar y
condenar el pasado nazi de Hanna y de toda la sociedad alemana y el deseo de
comprender y exonerar a la mujer más importante de su vida.
La noción de experiencia, entendida como un proceso de elaboración y construcción
de la propia identidad, resulta de gran importancia para analizar el comportamiento del
protagonista de El lector (cf. LACAPRA 2006: 59). A partir del juicio a Hanna, Michel
comienza reflexionar sobre su pasado y el de su país, pero es recién después del suicidio
140
En El regreso, Peter De Bauer; en El Lector, Michel Berg; en “La niña de la lagartija”, el narrador.
114
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
de ella, cuando comienza a escribir su historia, que puede alcanzar una distancia crítica
de sus experiencias del pasado y de esta manera re-contextualizarlas de una manera que
le permita comprender y encarar de otro modo su presente.
Inmerso en una suerte de zozobra ética, Michel se plantea la problemática de la culpa
colectiva, la exigencia de examinar el pasado (p. 87):
La palabra clave era «revisión del pasado». Los estudiantes del
seminario nos considerábamos pioneros de la revisión del pasado.
Queríamos abrir las ventanas, que entrase el aire, que el viento
levantara por fin el polvo que la sociedad había dejado acumularse
sobre los horrores del pasado. Nuestra misión era crear un ambiente en
el que se pudiera respirar y ver con claridad141 (p. 87).
Lacapra (2009: 65) señala que en Alemania la cuestión de cómo responder a la
Shoah ha sido un dilema fundamental, tanto político como cultural. Esta necesidad de
examinar el pasado constituye un proceso que implica “un trabajo de la memoria exacto
y crítico con las exigencias de la acción deseable en el presente” (LACAPRA 2009: 58).
Es decir, el problema principal es el de la memoria colectiva y cómo debe contribuir a la
explicación de la identidad de una comunidad, logrando así su liberación. La
importancia de la memoria para la vida en sociedad radica en que, como señala Todorov
(2000: 26) “no es sólo responsable de nuestras convicciones sino también de nuestros
sentimientos”. La revelación de Michel y de sus compañeros de facultad durante el
juicio de los horrores del genocidio nazi y la toma de consciencia de la participación o
el silencio cómplice de sus mayores originaron su necesidad de “revisar el pasado”, lo
que conlleva “la obligación de reinterpretar radicalmente la imagen que uno se hacía de
sus allegados y de sí mismo, es una situación peligrosa que puede hacerse insoportable
y será rechazada con vehemencia” (Cf. TODOROV 2000: 26).
Esta temible exigencia de reinterpretación, que necesariamente lleva a un
cuestionamiento de todo lo conocido, hace que Michel objete el comportamiento de sus
compañeros de universidad, cuya preocupación era condenar el “pasado nacionalsocialista” (“der nationalsozialistischen Vergangenheit”, S. 160). El protagonista
considera que más que buscar justicia, era un modo de expresar conflictos
generacionales (pp. 158-9). Los sentimientos de culpabilidad y de vergüenza atraviesan
las vivencias de Michel, así como las de toda su generación:
La culpabilidad colectiva, se la acepte o no desde el punto de vista
moral y jurídico, fue de hecho una realidad para mi generación de
estudiantes. No sólo se alimentaba de la historia del Tercer Reich.
Había otras cosas que también nos llenaban de vergüenza, por más
141
“Aufarbeitung! Aufarbeitung der Vergangenheit! Wir Studenten des Seminars sahen uns als
Avantgarde der Aufarbeitung. Wir rissen die Fenster auf, ließen die Luft herein, den Wind, der endlich
den Staub aufwirbelte, den die Gesellschaft über die Furchtbarkeiten der Vergangenheit hatte sinken
lassen. Wir sorgten dafür, daß man atmen und sehen konnte”. (S. 87).
115
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
que pudiéramos señalar con el dedo a los culpables: las pintadas de
esvásticas en cementerios judíos; la multitud de antiguos nazis
apoltronada en los puestos más altos de la judicatura, la
Administración y las universidades; la negativa de la República
Federal Alemana a reconocer el Estado de Israel; la evidencia de que,
durante el nazismo, el exilio y la resistencia habían sido puramente
testimoniales, en comparación con el conformismo al que se había
entregado la nación entera (p.159)142.
La vergüenza que surge por los crímenes y los errores del pasado hace que los
compañeros de Michel participen activamente en la vida política universitaria. En
cambio el protagonista vive inmerso en una suerte de zozobra ética, ya que al
sentimiento de culpa y vergüenza hay que añadir el sentimiento de culpabilidad, “por
haber amado a una criminal” (p. 126). Es decir, el “pasado que invade el presente y
puede bloquear o anular las posibilidades en el futuro” (LACAPRA 2006: 83). El
recuerdo de sus relaciones amorosas con Hanna constituye para Michel una experiencia
traumática, dado que para el narrador el pasado no es historia pasada y superada sino
que continúa vivo y lo atormenta:
Quería comprender y al mismo tiempo condenar el crimen de Hanna.
Pero su crimen era demasiado terrible. Cuando intentaba
comprenderlo, tenía la sensación de no estar condenándolo como se
merecía. Cuando lo condenaba como se merecía, no quedaba espacio
para la comprensión. Pero al mismo tiempo quería comprender a
Hanna; no comprenderla significaba volver a traicionarla. No
conseguí resolver el dilema. Quería tener sitio en mi interior para
ambas cosas: la comprensión y la condena. Pero las dos cosas al
mismo tiempo no podían ser. (p. 148)143
A propósito de la comprensión Levi (1998: 208) sostiene que “quizá no se pueda
comprender todo lo que sucedió, o no se deba comprender, porque comprender casi es
justificar. Me explico: ‘comprender’ una proposición o un comportamiento humano
significa (incluso etimológicamente) contenerlo, contener al autor; ponerse en su lugar,
identificarse con él”. Pero esto es imposible, nadie puede identificarse con los verdugos.
142
Was immer es mit Kollektivschuld moralisch und juristisch auf sich haben oder nicht auf sich
haben mag – für meine Studentengeneration war sie eine erlebte Realität. Sie galt nicht nur dem, was
im Dritten Reich geschehen war. Daß jüdische Grabsteine mit Hakenkreuzen beschmiert wurden,
daß so viele alte Nazis bei den Gerichten, in der Verwaltung und an den Universitäten Karriere
gemacht hatten, daß die Bundesrepublik den Staat Israel nicht anerkannte, daß Emigration und
Widerstand weniger überliefert wurden als das Leben in der Anpassung … (S. 161).
143
“Ich wollte Hannas Verbrechen zugleich verstehen und verurteilen. Aber es war dafür zu furchtbar.
Wenn ich versuchte, es zu verstehen, hatte ich das Gefühl, es nicht mehr so zu verurteilen, wie es
eigentlich verurteilt gehörte. Wenn ich es so verurteilte, wie es verurteilt gehörte, blieb kein Raum fürs
Verstehen. Aber zugleich wollte ich Hanna verstehen; sie nicht zu verstehen, bedeutete, sie wieder zu
verraten. Ich bin damit nicht fertiggeworden. Beidem wollte ich mich stellen: dem Verstehen und dem
Verurteilen. Aber beides ging nicht”. (Ss. 151-2)
116
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Más adelante el escritor italiano afirma: “No podemos comprenderlo; pero podemos y
debemos comprender dónde nace, y estar en guardia. Si comprender es imposible,
conocer es necesario, porque lo sucedido puede volver a suceder, las conciencias
pueden ser seducidas y obnubiladas de nuevo: las nuestras también. Por ello, meditar
sobre lo que pasó es deber de todos”.
El protagonista, que en el momento del juicio y en su época de estudiante se siente
solo, aislado, logra reconciliarse con su pasado a partir de la lectura de la Odisea, obra
que había traducido en sus años de bachillerato:
Por entonces releí la Odisea, que había leído por primera vez en
bachillerato, y que recordaba como la historia de un regreso. Pero no
es la historia de un regreso. Los griegos, que sabían que nadie puede
bañarse dos veces en el mismo río, no creían en el regreso, por
supuesto. Ulises no regresa para quedarse, sino para volver a zarpar.
La Odisea es la historia de un movimiento, con objetivo y sin él al
mismo tiempo, provechoso e inútil. (p. 171)144.
La imposibilidad de detener el tiempo en el momento justo de la partida y
recomenzarlo al regresar, hacen de Odiseo y su canto, según la lectura de Michel, la
‘historia de un eterno movimiento’, en el que el lugar de destino se altera y el retorno se
transforma en una nueva partida. Hartog establece, con respecto al canto homérico que
“al fin y al cabo, la Odisea también cuenta que no basta con volver para que todo
recomience como antes. Canto del regreso, desplegado en el espacio, el poema termina
por tropezar con el tiempo.” (HARTOG, 1999: 30). A El personaje de Schlink también
siente la imposibilidad de regresar y frente eso se refugia en sus recuerdos y en la
literatura. Se puede hablar del efecto poético de la Odisea, es decir, “la capacidad que
tiene el texto de generar lecturas siempre distintas, sin agotarse jamás del todo”. Michel
no es un filólogo griego ni un profesor de literatura, simplemente el texto homérico le
permite reflexionar sobre su pasado personal y sobre el pasado de su país.
El poema homérico será el primero en leer a Hanna para enviarle a la cárcel: “Con la
Odisea empezó todo” (p. 172). Luego de su fracaso matrimonial Michel decide releer la
obra de Homero, la decisión de grabarla para Hanna y enviársela a la prisión surge
inmediatamente. Es la primera de una serie de cintas que reavivan en el protagonista el
ritual erótico de su adolescencia y pronto la lectura de obras ajenas se convierte en
lectura de escrituras propias:
Cuando empecé a escribir yo, le leía también cosas mías. (…) Hanna
se convertía en la entidad para la que ponía en juego todas mis
144
“Ich las damals die Odyssee wieder, die ich erstmals in der Schule gelesen und als die Geschichte
einer Heimkehr in Erinnerung behalten hatte. Aber es ist nicht die Geschichte einer Heimkehr. Wie
sollten die Griechen, die wissen, daß man nicht zweimal in denselben Fluß steigt, auch an Heimkehr
glauben. Odysseus kehrt nicht zurück, um zu bleiben, sondern um erneut aufzubrechen. Die Odyssee ist
die Geschichte einer Bewegung, zugleich zielgerichtet und ziellos, erfolgreich und vergeblich” (S. 173).
117
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
fuerzas, toda mi creatividad, toda mi fantasía crítica. Luego podía
enviar el manuscrito a la editorial (p. 174)145.
El ejercicio de la lectura-escritura posibilita al protagonista una nueva manera de
estar en su mundo y después de la muerte de Hanna decide narrar su historia. Esa
historia que fue escrita muchas veces en su mente, con imágenes y fragmentos distintos
cada vez, con retazos de memoria unidos por las palabras.
La escritura para el personaje opera como un medio para librarse de la penosa carga
de su pasado. Sin embargo, llega a la conclusión de que el pasado y el presente están
íntimamente interconectados (p. 170):
Pero el que huye no sólo se marcha de un lugar, sino que llega a otro.
Y el pasado al que llegué a través de mis estudios era tan vívido como
el presente. … Ser historiador significa tender puentes entre el pasado
y el presente, observar ambas orillas y tomar parte activa en ambas.
Una de mis áreas de investigación era el Derecho en la época del
Tercer Reich, y ahí se aprecia con especial claridad cómo el pasado y
el presente se funden en una sola realidad vital. Ahí, la manera de huir
no consiste en buscarle las vueltas al pasado, sino justamente en concentrarse sólo en un presente y un futuro ciegos a la herencia del
pasado, de la que estamos empapados y con la que tenemos que
vivir 146.
Forster (2011), refiriéndose a Benjamin señala que la relación con el pasado está
siempre determinada por las fuerzas que desde el presente lo convocan o lo rechazan.
“El pasado, al regresar, instituye nuevas relaciones, funda otras perspectivas que van
cuajando con lo contemporáneo” (FORSTER 2011: 40). Steiner señala que si se pierde
el pasado o se lo niega, la sociedad pierde también las posibilidades de realizaciones en
el futuro.
Así como Odiseo relata en la corte de los feacios (Od. IX, 12 y ss.) sus pesares y
aventuras, Michel narrará su historia. El Itaquense rememora y magnifica sus andanzas
con el objetivo de ganarse el respeto de Alcinoo y así obtener ayuda para regresar a su
patria. Odiseo en su relato presenta un universo que, de no ser por su palabra
ordenadora, sonaría extremadamente extraño a la corte feacia. Astutamente, el hijo de
145
“Als ich selbst zu schreiben begann, las ich ihr auch das vor. …Hanna wurde die Instanz, für die ich
noch mal alle meine Kräfte, alle meine Kreativität, alle meine kritische Phantasie bündelte. Danach
konnte ich das Manuskript an den Verlag schicken”. (S. 176).
146
“Nun ist Flucht nicht nur weglaufen, sondern auch ankommen. Und die Vergangenheit, in der
ich als Rechtshistoriker ankam, war nicht weniger lebensvoll als die Gegenwart. … Geschichte treiben
heißt Brücken zwischen Vergangenheit und Gegenwart schlagen und beide Ufer beobachten und an
beiden tätig werden. Eines meiner Forschungsgebiete wurde das Recht im Dritten Reich, und hier
ist
besonders augenfällig, wie Vergangenheit und Gegenwart in eine Lebenswirklichkeit
zusammenschießen. Flucht ist hier nicht die Beschäftigung mit der Vergangenheit, sondern gerade
die entschlossene Konzentration auf Gegenwart und Zukunft, die blind ist für das Erbe der
Vergangenheit, von dem wir geprägt sind und mit dem wir leben müssen” (S. 172).
118
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Laertes hilvana sus dichos a la manera de un aedo y otorga a cada experiencia un tiempo
y un lugar que la convierten en algo perfectamente perceptible. Escoge y selecciona de
su memoria aquellos elementos que sirven a su propósito: el regreso a Ítaca. En ningún
momento nadie del auditorio pone en duda sus experiencias y creemos que pocos de
nosotros, aún hoy leyendo Odisea, ponemos en duda su historia.
σοὶ δ' ἐμὰ κήδεα θυμὸς ἐπετράπετο στονόεντα
εἴρεσθ', ὄφρ' ἔτι μᾶλλον ὀδυρόμενος στεναχίζω.
τί πρῶτόν τοι ἔπειτα, τί δ' ὑστάτιον καταλέξω;
κήδε' ἐπεί μοι πολλὰ δόσαν θεοὶ Οὐρανίωνες.
Mas tu alma te incita a pedirme que cuente mis lutos y congojas, a fin
de que llore con más desconsuelo; ¿y por dónde empezar mi relato,
por dónde acabarlo, cuando tantos pesares me han dado los dioses
celestes? (Od. IX, 12-15)
En consonancia con lo que expresábamos arriba con respecto a la palabra ordenadora
de Odiseo, observamos en el texto griego la utilización del verbo καταλέξω que cuenta
en sus acepciones con el significado de “contar” y a la vez de “nombrar”. Este concepto
retiene nuestra atención por un momento puesto que el que nombra posibilita la
creación o la existencia de lo que es nombrado. Es decir, el hecho mismo de nombrar
otorga a lo nominado realidad. Entonces, la palabra del Laertíada no sólo ordena el
universo narrado sino que además lo crea, lo realiza. Por supuesto que su narración no
será de la totalidad sino del recorte que el narrador establezca en su memoria y esa
selección será la historia que los atentos feacios escuchen en boca de Odiseo. Aunque
esa narración no se efectuará con motivo de la búsqueda de su identidad puesto que el
héroe homérico es perfectamente consciente de quién es 147:
νῦν δ' ὄνομα πρῶτον μυθήσομαι, ὄφρα καὶ ὑμεῖς
εἴδετ', ἐγὼ δ' ἂν ἔπειτα φυγὼν ὕπο νηλεὲς ἦμαρ
ὑμῖν ξεῖνος ἔω καὶ ἀπόπροθι δώματα ναίων.
εἴμ' Ὀδυσεὺς Λαερτιάδης, ὃς πᾶσι δόλοισιν
ἀνθρώποισι μέλω, καί μευ κλέος οὐρανὸν ἵκει.
En seguida expondré mi primer nombre, para que ustedes lo sepan, y
si escapo furtivamente al implacable destino, que yo sea huésped de
ustedes aunque habite lejos de mis casas. Soy Odiseo Laertíada, el que
es conocido por todos los hombres por sus engaños, mi gloria llega
hasta el cielo. (Od. IX, 16-20)
Es cierto que Odiseo no busca conformar su identidad pero sí necesita recuperarla.
La errancia por sitios desconocidos y sin ley ocasionan en el héroe la reafirmación de su
147
Recuérdese además el episodio con el cíclope en donde Odiseo se hace llamar Οὖτις, “Ninguno”, IX
366.
119
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ser a partir de la confrontación con el otro. Hartog lo define como ‘un hombre-frontera’,
‘un hombre-memoria’ puesto que “en sus viajes y por el movimiento mismo de ese
retorno sin cesar contrariado y diferido, Ulises traza los contornos de una identidad
griega. La rodea. Marca fronteras (entre lo humano y lo divino, por ejemplo) o, mejor,
él, el Resistente, las experimenta y las prueba, a riesgo de perderse totalmente en ellas”
(HARTOG, 1999: 13). Ese otro al que se enfrenta el hijo de Laertes está siempre fuera
del círculo delimitado por los ‘comedores de pan’ 148 y el retorno de Odiseo a sí mismo
se producirá a pesar de ese otro (cf. HARTOG, 1999: 30). La otredad, en el relato
homérico, toma la forma de Polifemo, un ser salvaje que desconoce la ley:
ἔνθεν δὲ προτέρω πλέομεν ἀκαχήμενοι ἦτορ.
Κυκλώπων δ' ἐς γαῖαν ὑπερφιάλων ἀθεμίστων
ἱκόμεθ', οἵ ῥα θεοῖσι πεποιθότες ἀθανάτοισιν
οὔτε φυτεύουσιν χερσὶν φυτὸν οὔτ' ἀρόωσιν,
ἀλλὰ τά γ' ἄσπαρτα καὶ ἀνήροτα πάντα φύονται,
πυροὶ καὶ κριθαὶ ἠδ' ἄμπελοι, αἵ τε φέρουσιν
οἶνον ἐριστάφυλον, καί σφιν Διὸς ὄμβρος ἀέξει.
τοῖσιν δ' οὔτ' ἀγοραὶ βουληφόροι οὔτε θέμιστες,
ἀλλ' οἵ γ' ὑψηλῶν ὀρέων ναίουσι κάρηνα
ἐν σπέεσι γλαφυροῖσι, θεμιστεύει δὲ ἕκαστος
παίδων ἠδ' ἀλόχων, οὐδ' ἀλλήλων ἀλέγουσι.
Desde allí, afligidos en el corazón, seguimos navegando hasta
alcanzar la tierra de los feroces cíclopes, seres sin ley. Ciertamente
confiados en los dioses eternos, nada plantan, ni labran la tierra
fecunda, pues todo crece sin labrar ni sembrar: los granos de trigo, de
cebada y las vides que producen un vino generoso nutrido por la lluvia
de Zeus.
Los cíclopes no deciden en asambleas públicas ni en justicia, pues,
ciertamente ellos habitan las cimas de excelsas montañas, en sus
cuevas elegantes, cada cual es jefe de los niños y de las esposas y no
se ocupan de los otros. (Od. IX, 105-115)
Estos seres salvajes no sólo desconocen la ley y administran su propia justicia,
puesto que, de acuerdo al vocablo utilizado por Homero - θεμιστεύει -, tiene injerencia
en lo religioso. θεμιστεύω no sólo significa administrar justicia o ser jefe y gobernar
sino también pronunciar oráculos y anunciar u ordenar por medio de ellos. Observamos,
entonces que a los fines de la traducción debemos optar por una de estas acepciones
pero el término utilizado por el poeta posee un significado mucho más amplio y
148
Hartog interpreta el concepto homérico de ‘hombres comedores de pan’ definiéndolo como “mortal y
alimentado por el pan y la carne de los animales previamente sacrificados, el hombre marca su territorio,
efímero y al que siempre es menester reconquistar, entre los dioses y las bestias. Mientras que Ulises se
empeña por mantener siempre la distancia entre el hombre y el animal” (1999: 37).
120
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
significativo que posibilita una definición más acabada del ser que se está calificando.
Entonces la figura del cíclope es la que posibilita a Odiseo el juego entre el ser y el noser:
’Κύκλωψ, εἰρωτᾷς μ' ὄνομα κλυτόν; αὐτὰρ ἐγώ τοι
ἐξερέω· σὺ δέ μοι δὸς ξείνιον, ὥς περ ὑπέστης.
Οὖτις ἐμοί γ' ὄνομα· Οὖτιν δέ με κικλήσκουσι
μήτηρ ἠδὲ πατὴρ ἠδ' ἄλλοι πάντες ἑταῖροι.’
Cíclope, preguntas por mi célebre nombre y ciertamente te lo diré, tú
dame el regalo de hospitalidad, ciertamente de esta manera existes. En
efecto, Ninguno es mi nombre. Ninguno me llaman mi madre y mi
padre y todos los amigos. (Od. IX, 364-367)
’Κύκλωψ, αἴ κέν τίς σε καταθνητῶν ἀνθρώπων
ὀφθαλμοῦ εἴρηται ἀεικελίην ἀλαωτύν,
φάσθαι Ὀδυσσῆα πτολιπόρθιον ἐξαλαῶσαι,
υἱὸν Λαέρτεω, Ἰθάκῃ ἔνι οἰκί' ἔχοντα.’
Cíclope, si tal vez alguno de los hombre mortales te pregunta quién
ordenó la miserable ceguera, afirmas que Odiseo, destructor de
ciudades, hijo de Laertes y que administra la casa que está en Ítaca, te
dejó completamente ciego. (Od. IX, 502-505)
Οὖτις, Ninguno, posibilita al héroe el engaño al feroz cíclope y además plantea,
mediante un juego de palabras la disyuntiva que se maneja a lo largo de todo el Canto
IX y parte del X: el ser y el no-ser. Este personaje de un solo ojo desconoce no sólo la
justicia y lo relativo a las divinidades sino también uno de los lazos que aseguraba el
entramado de la sociedad helena: la hospitalidad. ὥς περ ὑπέστης, el hombre existe, es
en el mundo, mediante este tipo de relación con los demás.
En la narración la otredad también toma forma de divinidad. Circe representa, en el
polo opuesto, una frontera que puede ocasionar el olvido de sí. La diosa mediante una
mezcla de harina, miel y vino hace que los hombres de Odiseo no sólo olviden la patria
(X 233-6), sino también los transforma en animales con pensamientos humanos: οἱ δὲ
συῶν μὲν ἔχον κεφαλὰς φωνήν τε τρίχας τε /καὶ δέμας, αὐτὰρ νοῦς ἦν ἔμπεδος ὡς τὸ
πάρος περ. (“…tenían cabeza, voz y pelos de cerdos, incluso la figura, pero mantenían
el entendimiento como antes”, X 239-40; cf. vv233-40). Los lotófagos, por su parte, con
su manjar vegetal, producen el mismo efecto en los desafortunados viajeros, el olvido:
τῶν δ' ὅς τις λωτοῖο φάγοι μελιηδέα καρπόν,
οὐκέτ' ἀπαγγεῖλαι πάλιν ἤθελεν οὐδὲ νέεσθαι,
ἀλλ' αὐτοῦ βούλοντο μετ' ἀνδράσι Λωτοφάγοισι
λωτὸν ἐρεπτόμενοι μενέμεν νόστου τε λαθέσθαι.
121
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Ahora bien, el que comía el fruto del loto, dulce como la miel, no
deseaba llegar con noticias al suelo paterno, ni siquiera regresar, sino
deseaba permanecer entre los lotófagos, comer las flores del loto y
olvidar el regreso. (Od. IX, 94-97)
El olvido es el elemento común en estos ‘otros’ con los que se encuentra Odiseo. El
olvido de la tierra paterna, de los lazos de filiación, del pasado que lo ubica en el
presente, ese presente incierto pero que se volverá concreto al momento mismo que lo
vuelva relato. Citando nuevamente a Hartog (1999: 28): “El hecho de que Ulises se
acuerde no significa que haga un culto del pasado ni que se complazca en la
rememoración. Pretende conservar la memoria de lo que es, y en primer lugar de su
nombre. Recobrará finalmente su identidad y antes que nada su nombre (Nadie podrá
volver a ser Ulises); será nuevamente el rey legítimo de Ítaca, el marido de Penélope y
el padre de Telémaco”
El motivo de su relato superficialmente es la información, aunque el núcleo sea la
rememoración para la recuperación; además, conociendo la astucia del héroe, su
objetivo final es el impacto del auditorio a fin de lograr la ayuda necesaria para el
regreso.
Si bien Odiseo estuvo aislado de la sociedad y quiere retornar a ella, con su narración
no busca ni identidad ni exorcismo sino restablecer su ser como uno de los ‘hombres
comedores de pan’. En cambio la escritura para el protagonista de El Lector, su modo
de narrar, sí constituye un medio para exorcizar el recuerdo que lo atormenta y lo aísla:
“Al principio quería escribir nuestra historia para librarme de ella. Pero la memoria se
negó a colaborar” (p. 202)149.
Michel necesita exteriorizar sus vivencias para neutralizar los sentimientos de culpa,
traición y cobardía que lo agobian. De su historia emerge un actor y un autor creados
por el Michel narrador (Cfr. CRUZ, XI) y la escritura posibilita en él un encuentro con
el otro y en ese espacio-frontera, un nuevo comienzo, una revancha. El reencuentro con
esa historia inconclusa y con Hanna es el motivo para su posicionamiento en el
presente. La necesidad de reinterpretar el pasado, cuestionándolo, comienza a organizar
su propia identidad y a generar la posibilidad de ‘habitar’ su mundo, trocando la
angustia y la quietud por la acción y la reconciliación. Michel, a la manera de Odiseo,
regresa de ese viaje que imposibilitaba su ser y, al nominar lo visto-vivido, otorga
entidad a esa metáfora del viaje que es el pasado. A propósito Hartog (1999: 24)
establece: “esos viajeros (…) ¿no representan, dándole un rostro y una expresión, una
inquietud auténtica, pero también una respuesta a esa inquietud? ¿El relato de sus viajes
no es una manera de dejar lugar al otro o asignarle un lugar, aunque sea hablando (en
griego) en su lugar? Lo que equivale a decir que la frontera es al mismo tiempo cierre y
apertura, espacio entredós, donde los viajeros-traductores pueden obrar, para bien o para
149
“Zuerst wollte ich unsere Geschichte schreiben, um sie loszuwerden. Aber zu diesem Zweck haben
sich die Erinnerungen nicht eingestellt.” (S. 206).
122
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
mal.” Michel, el ‘viajero-traductor’, ha hecho las paces con sus orígenes 150:
Luego me di cuenta de que la historia se me escapaba, y quise
recuperarla por medio de la escritura, pero eso tampoco hizo surgir los
recuerdos. Desde hace unos años he dejado de darle vueltas a esta
historia. He hecho las paces con ella. Y ha vuelto por sí misma con
todo detalle, y tan redonda, cerrada y compuesta que ya no me entristece. (p. 203)151
El personaje, al narrar los recuerdos descoloridos por el paso del tiempo, puede
finalmente hacerse cargo de su pasado gracias a la re-significación que produce la
ficción. La recuperación de su memoria y, en su experiencia, de la memoria colectiva de
la sociedad alemana permite resemantizar las convicciones y los sentimientos, tan
importantes para la identidad de pertenencia, posibilitando la existencia de una sociedad
y el sentimiento de seguridad de quienes la conforman152.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHLINK, B. (2000). El lector. Barcelona, Editorial Anagrama.
150
Cobra mayor significación aquí el concepto de Erfahrung elaborado por Benjamin, véase supra, p.
114.
151
“Dann merkte ich, wie unsere Geschichte mir entglitt, und wollte sie durchs Schreiben zurückholen,
aber auch das hat die Erinnerung nicht hervorgelockt. Seit einigen Jahren lasse ich unsere Geschichte in
Ruhe. Ich habe meinen Frieden mit ihr gemacht. Und sie ist zurückgekommen, Detail um Detail und in
einer Weise rund, geschlossen und gerichtet, daß sie mich nicht mehr traurig macht” (S. 206).
152
Véase supra, p. 112.
123
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
SCHLINK, B. (2008). La circuncisión, en Amores en fuga. Barcelona, Editorial
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TODOROV, T. (2000). Los abusos de la memoria. Paidós Asterisco, Barcelona (Paris,
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124
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
ASSMANN, Jan. Religion and Cultural Memory: ten studies. Translated by Rodney
Livingstone. Stanford: Stanford University Press, 2006.
Denis Correa153
O egiptólogo alemão Jan Assmann, juntamente com sua esposa e também
pesquisadora Aleida Assmann, vem desenvolvendo nas últimas duas décadas o conceito
de “memória cultural”, sendo o volume “Religion and Cultural Memory” uma coletânea
de dez artigos sobre o tema, publicada originalmente em alemão (2000), e cuja tradução
para o inglês de 2006 é aqui resenhada. São poucos os historiadores do mundo antigo
que se aventuram numa incursão teórica que englobe campos do saber e períodos
históricos mais abrangentes do que seu próprio tema de estudos. Além das dificuldades
inerentes desse tipo de abordagem, o mundo antigo parece distante e desconhecido
demais, de forma que habitualmente faz-se a opção de ressaltar a alteridade do antigo
através de uma abordagem etnológica, ou então simplesmente fazer vistas grossas aos
problemas implicados na distância milenar como condição para a inteligibilidade desse
passado. No entanto, Assmann torna a transmissão de cultura pelos milênios o objeto de
sua atenção, descortinando assim as profundezas do tempo, e dando maior consistência
teórica ao estudo da antiguidade e sua memória ao longo dos séculos.
A obra de Assmann é caracterizada por rara capacidade de concisão e rígida
definição conceitual, além disso, suas assertivas são sempre argumentadas com base em
fenômenos ocorridos na história, e não em raciocínio puramente abstrato. Como
introdução ao seu instrumentário conceitual, é necessário ressaltar três distinções
realizadas ao longo da obra que culminam na definição de “memória cultural”:
Primeiro, Assmann define a teoria da memória cultural como um acréscimo à
hermenêutica, disciplina que a sustenta e a distingue simultaneamente. A hermenêutica
concentra-se na compreensão dos textos dos eventos memoráveis, enquanto a teoria da
memória cultural investiga, em contraste, as condições que permitem que o texto seja
estabelecido e transmitido, dando atenção às formas nas quais o passado se apresenta a
nós, assim como os motivos que impelem nosso recurso a ele. Dessa forma, reforça-se o
papel do texto, da tradição e da memória dentro da estrutura linguística decodificada
pela hermenêutica, apoiando-se principalmente no pensamento de Gadamer e sua
concepção da hermenêutica em que “todo entendimento é alimentado por um préentendimento que vem da memória” (ASSMANN, 2006: IX-X).
A segunda distinção consiste em manter clara a definição de memória social,
deixando de lado as dimensões neurais da memória, bem como as formas de memória
motora, envolvidas na ação de caminhar, nadar, andar de bicicleta, etc.. O
estabelecimento da memória como um fenômeno socialmente mediado, que remonta ao
sociólogo francês Maurice Halbwachs, é o ponto de partida para compreender a base
cultural da memória. No ato de lembrar-se não somente descemos nas profundezas da
153
Licenciado e Mestrando em História pela UFRGS. E-mail: [email protected] . Curriculum
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4212929P9
125
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nossa mais íntima vida interior, mas introduzimos uma ordem e estrutura nesta vida
interna socialmente condicionada e que nos liga ao mundo social (idem, 2006: 1-2).
Decorre daí que não há distinção clara entre memória individual e coletiva, pois a
memória cresce na relação com outras pessoas e as emoções cumprem um papel crucial
neste processo. Dentro da dimensão social do fenômeno, é necessário distinguir a
“memória comunicativa do cotidiano” – limitada ao círculo de algumas poucas gerações
capazes de transmitir memória através da oralidade – e a “memória cultural” – que
consiste em formas de cultura objetivada e cristalizada em textos, imagens, rituais,
monumentos, etc.154
A terceira definição consiste em compreender a “memória coletiva de ligação”, que
Assmann desenvolve em diálogo com as obras de Friedrich Nietzsche e Sigmund Freud.
Para estes pensadores, a cultura agia como uma camisa-de-força que treina, forma e
ajusta o indivíduo conforme determinados objetivos e funções. No entanto, Nietzsche e
Freud tinham uma visão pessimista desse processo, e ignoravam o lado oposto: o desejo
do indivíduo de pertencer a algo, em última análise, a dimensão política da “memória
coletiva de ligação” cuja função normativa e formativa não se limita a manipulações
maquiavélicas e políticas, mas faz parte da própria estrutura da vida em sociedade do
“animal político”. A “memória coletiva de ligação” é a inscrição que a sociedade faz de
si mesma na memória, com as suas normas e valores, criando no indivíduo o que Freud
chamou superego, e que é tradicionalmente conhecido como consciência (idem, 2006: p.
6-7). Este tipo de memória é suscetível às formas politizadas do lembrar-se, ilustradas
por slogans como: “Masada não deve cair novamente” ou “Auschwitz: nunca mais”.
Nestes casos, a memória é visivelmente “construída”: é o encontro da projeção de parte
do coletivo que deseja lembrar-se com o indivíduo que lembra para pertencer. Para tanto
se recorre ao arquivo cultural de tradições, o arsenal de formas simbólicas, o imaginário
de mitos e imagens, de grandes histórias, sagas e lendas, cenas e constelações que
vivem, ou podem ser revividas, dentro do tesouro de estórias de um povo. Este arquivo
monumental e milenar, e seu recurso como memória coletiva de ligação, correspondem
ao que Assmann entende por memória cultural.
Como reforço para o desejo do lembrar, criam-se as “memórias de ajuda”, como os
“lieux de memóire”, sítios nos quais se concentram a memória nacional ou religiosa de
uma nação, seus monumentos, rituais, dias de festas e costumes. Assmann procura
demonstrar a antiguidade deste tipo de fenômeno através do ritual instituído pelos
Assírios. Para evitar que seus vassalos se esqueçam do juramento de lealdade ao
Imperador Assurbanipal, o lembrar-se é corporificado através de um ritual repetido
regularmente, que marca o renascer de uma memória esquecida, ou do perigo
compreendido em ser esquecida (idem, 2006: 9-11). O ritual como “memória de ajuda”
com finalidades políticas fica instituído na sua transparência de objetivos.
154
Esta definição é analisada mais detalhadamente em outro artigo do autor: ASSMANN, Jan. “Collective
Memory and Cultural Identity”. Translated by John Czaplicka. New German Critique. Nº 65, Cultural
History/Cultural Studies (Spring-Summer, 1995), pp. 125-133.
126
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
Este tipo de memória coletiva e conectiva estabiliza uma identidade comum e um
ponto de vista, e não necessariamente está ligado à história. Assmann exemplifica com
as tradições dos ameríndios da América do Norte, e da China pré-moderna, remontando
à divisão de Lévi-strauss entre sociedades “quentes” e “frias”, isto é, sociedades com e
sem história. A mesma relação de uma tradição ou mito agindo como “sistema de
classificação” é observado no mito de Osíris no Egito Antigo, que periodicamente
reforça a unidade das diferentes regiões da terra do Nilo (cada uma delas sendo
responsável por guardar uma das partes do cadáver de Osíris), através do ritual que
abarca o ciclo natural das cheias e a ascensão do poder do Estado (idem, 2006: 13-5).
O exemplo mais completo, segundo o próprio Assmann, provém da Bíblia Sagrada,
quando Moisés, no Deuteronômio, expõe todo seu complexo mnemônico para fazer
com que a geração crescida no deserto lembre o Êxodo e mantenha as leis do Senhor na
Terra Prometida. Assmann descreve os vários procedimentos mnemônicos que visam
estabilizar toda uma cultura e uma identidade, revelando-se uma complexificação em
relação ao ritual Assírio, e, além disso, denota uma clara noção do papel da cultura neste
processo (idem, 2006: 16-20). O projeto de Moisés culmina na codificação e
canonização da memória, bem como da criação do grupo de pessoas especializados em
lembrar, transmitir e interpretar os textos sagrados.
Após esta concisa, mas riquíssima definição conceitual e exposição de exemplos,
Assmann conclui sobre o significado da teoria da memória cultural. Ela investiga a
cristalização, ou canonização, dos precipitados culturais que rompem as barreiras da
transmissão oral e do limite temporal de poucas gerações. Nesse processo a escrita
cumpre papel primordial, pois ela contém a possibilidade de transcender a memória de
ligação em favor da memória do aprendizado. Este é um dos objetivos do
Deuteronômio: impor ao fluxo de tradições um rígido controle e seleção. No entanto, a
escrita ao mesmo tempo liberta o indivíduo do constrangimento da memória de ligação,
na medida em que permite uma expansão indefinida do horizonte de memória, e
também permite ao indivíduo dispor livremente do seu estoque de memórias e garante a
ele a oportunidade de orientar-se em toda a sua extensão. A memória cultural liberta as
pessoas dos constrangimentos da memória de ligação (idem, 2006: 20-1).
Até aqui nos limitamos à definição de Assmann no primeiro texto do seu livro:
“Introduction: What is ‘Cultural Memory’?” Os outros noves artigos exploram demais
aspectos deste mesmo quadro de problemas, principalmente os que envolvem religião e
escrita dentro do campo conceitual da sua teoria da memória cultural.
Dentro dos artigos que abordam o primeiro tema, temos “Invisible Religion and
Cultural Memory” que aborda a relação da sua teoria com o conceito de “Religião
Invisível” de Thomas Luckmann, e avalia como o conceito de memória cultural interage
com esses universos simbólicos, principalmente com a distinção entre “religião visível”,
que se aproxima mais do significado comum do termo, a as “religiões invisíveis” que
significam um universo mais geral de ordem cósmica que independe de determinada
institucionalização. Além disso, há o capítulo “Monotheism, Memory, and Trauma:
Reflections on Freud’s Book on Moses” onde Assmann discute a pertinência da última
127
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
obra de Freud, que relaciona os temas de “trauma”, “culpa” e “memória” com a religião,
especialmente a monoteísta.
Os artigos que priorizam a questão das “mídias” da memória cultural, principalmente
a escrita e a canonização de textos, são os seguintes: “Five Stages on the Road to the
Canon: Tradition and Written Culture in Ancient Israel and Early Judaism”,
“Remembering in Order to Belong: Writing, Memory and Identity”, “Cultural Texts
Suspended Between Writing and Speech” e “A Life in Quotation: Thomas Mann and
the Phenomenology of Cultural Memory”. Por fim, há os artigos que abordam ambos os
temas, investigando dentro deste campo conceitual o papel das “mídias” da religião,
principalmente os rituais e textos sagradas: “Text and Ritual: The Meaning of the Media
for the History of religion” e “Officium Memoriae: Ritual as the Medium of Thought”.
O livro encerra com um capítulo que talvez seja a aplicação mais ambiciosa da teoria:
“Egypt in Western Memory”, que investiga o lugar do Egito Antigo na memória da
sociedade moderna.
Assmann possui a capacidade de reabilitar antigas questões com novas definições, de
uma forma clara e original. Em suma, sua perspectiva de trazer à tona a dimensão da
memória social com um novo olhar, enriquecido com leituras sociológicas e
hermenêuticas, e assim lançar uma contribuição objetiva ao problema das profundezas
do tempo e as condições de constituição de um cânone. Por outro lado, o seu método
pode facilmente desviar em incoerências se não levar em conta alguma das inúmeras
mídias e caminhos nos quais o complexo e múltiplo fenômeno da memória cultural
transcorre os milênios, mas este é o tipo de risco que se assume quando se propõe
compreender um fenômeno muito complexo. No entanto, sua contribuição ao debate é
notável, e vem somar-se às outras abordagens sobre o tema 155.
155
Penso especialmente na obra RICOEUR, P.. A Memória, a história, o esquecimento. Campinas:
Unicamp, 2007, que possui considerável relevância na academia brasileira.
128
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
SAILOR, Dylan. Writing and Empire in Tacitus. Cambridge: Cambridge University
Press, 2008.
Willian Mancini156
Públio Cornélio Tácito é reconhecido hoje como um dos maiores historiadores do
Principado. Considerando Ronald Haithwaite Martin 157 e Fábio Joly podemos afirmar
que, ao pensarmos sobre vida e obra de Tácito, percebemos que sua obra histórica
abarca o relato sobre as duas primeiras dinastias – dos Júlio-Claudianos e dos Flavianos
– e a guerra civil de 69. Além de obras do gênero histórico, Tácito escreveu outras obras
– Germânia, Agrícola e, possivelmente, Diálogo dos Oradores – e exerceu uma gama
de cargos políticos dentro do Principado, entre eles estãoo de questor em Roma, no ano
81, e de procurador na Germânia, ainda no mesmo ano. Suas obras teriam sido
compostas nos principados de Domiciano, Nerva e Trajano. Martin destaca ainda que os
escritos de Tácito foram de grande importância e influência para os autores de século III
e para os epitomadores dos séculos IV e V.
É na busca pela delimitação do estilo tacitista de escrita que Dylan Sailor compõe a
obra Writing and Empire in Tacitus. Nesse livro o autor tenta mostrar como as obras e o
estilo de Tácito são frutos de seu tempo e de sua carreira. Para isso , ao analisar as obras
de Tácito, Sailor mostra como se desenvolvia a produção literária no Principado, não
somente no tempo de Tácito, mas comparando com outros momentos da história do
Principado, como quando remete a Sêneca e a outros autores citados nas próprias obras
deTácito. É perceptível que, seguramente, a obra de Sailor segue a mesma linha de Sir
Ronald Syme (Tacitus, 1958), em que credita o estilo de escrita de Tácito à carreira
política e ao tempo em que escreveu. E que se contrapõe a O’ Gorman (Irony and
Misreading in the Annals of Tacitus. Cambridge University Press, 2000) e Haynes (The
history of make-believe: Tacitus on Imperial Rome. University of California Press,
2003) que creditariam o estilo taciteano a uma tradição em Roma, abalando o vínculo
entre Tácito, sua obra e a realidade mais imediata. Evidentemente, para esses dois
autores, Tácito estaria mais próximo de Tito Lívio, enquanto, para Syme e Sailor, um
bom marco comparativo seria Salústio. Notoriamente, podemos ver que a opção tomada
por Sailor parece mais adequada ao analisar a obra taciteana. Porém, ao contrário de
Salústio, Tácito é envolto pelo regime imperial. Um regime que oprime por vezes a
liberdade de se escrever o que pensa. A obra de Sailor aborda, de maneira muito
enfática e convincente, que não é possível analisar as obras de Tácito sem conseguir
enxergar o contexto de sua carreira, de sua obra literária e de sua vida social nas entre
linhas de suas obras historiográficas.
O livro é dividido em seis capítulos: “Introdução”, “Autonomia, autoridade e
representação do passado sob o Principado”, “Agrícola e a crise de representação”, “Os
156
Mestrando pela Universidade Federal de Ouro Preto, [email protected].
CF. MARTIN, R.H. Tacitus. In: Hornblower, Simon and Spawforth, Antony (Ed.). The Oxford
classical dictionary. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 1469-1471.
157
129
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
encargos de Histórias”, “Em outros lugares de Roma”, “Tácito e Cremutio” e
“Conclusão: conhecendo Tácito”. O autor constrói a sua obra mostrando como podemos
distinguir o autor, do político e do homem aristocrata nas obras de Tácito.
A opção de Sailor por iniciar o livro com um capítulo focando os conceitos sobre os
quais ele debate ao longo de sua obra parece ser a estratégia mais adequada. Isso porque
nesse capítulo o autor discute justamente o caminho pelo qual seguirão seus
argumentosao longo de sua obra. O autor começa o capítulo introdutório “Autonomia,
autoridade e representação do passado sob o Principado” se indagando sobre a
possibilidade de Tácito ter criticado tão claramente a hipocrisia do Principado - do qual
fez parte como deixa claro sua extensa carreira política. Nesse capítulo percebe-se que é
indispensável, para Sailor, termos em mente que, para os romanos, era essencial a
separação entre o autor e a voz narrativa da obra.
Esse primeiro capítulo nos permite entender que, para Sailor (assim como para
Ronald Syme) somente foi possível a Tácito exercitar esse distanciamento entre a
pessoa e a obra porque ele eraa membro de uma elite de origem provincial. Segundo
Sailor, as obras no mundo romano tinham várias funções, mas a principal seria se tornar
um monumentum tanto para o presente quanto para a posteridade, sendo algo
perdurável, simbólico com intenção de se tornar permanente. É a obra que dava peso ao
nome do autor e lhe propiciava a noção de "grande dever" cumprido. Sailor apresenta
nesse capítulo a ideia, que defende em toda em sua obra, de que Tácito, por estar
presente no principado, não age apenas como um simples escritor, mas também como
um agente social nesse meio. Essa ideia apresentada por Sailor, de que o historiador
também é um agente social é bem interessante, e também se adéqua a outras
personalidades do mundo romano que também registraram seus posicionamentos sobre
o poder enquanto estavam dentro das estruturas de poder.
Os demais capítulos seguem a mesma linha de raciocínio, porém, é notório que o
autor não aborda as questões conceituais como abordara no primeiro, tornando assim o
capítulo inicial de mais relevância à obra. No segundo capítulo, intitulado “Agrícola e a
crise de representação”, o autor comenta sobre o monopólio por parte da casa imperial
dos triunfos militares e sobre como era perigoso se destacar à frente do Imperador. Essa
crise das representações gera um processos de exageração das vitórias ou até mesmo a
fabricação dessas. A partir das narrativas de Tácito, Sailor interpreta que Agrícola teria
achado uma alternativa para esse processo, reconciliando realidade e representação. De
acordo com Sailor, em certa medida a obra Agrícola, de Tácito, 158 se preocupa tanto
com a representação quanto com o restabelecimento da verdade, ligada à negação do
triunfo à Agrícola. Desse ponto, surgem duas questões. Se é negado à elite e à não-elite
as honras pelo triunfo, o que as diferenciam? Se não existe mais o mérito pela honra, o
que poderia motivar os membros da sociedade romana a se esforçarem pelo Império?
Um dos pontos tocados pelo autor é a questão da virtude. Nesse momento do Império,
qual seria o caminho para os homens ilustres mostrarem suas virtudes? Em uma seção
158
Agrícola – obra de cunho biográfico que Tácito teria composto em louvor ao sogro ao qual o
Imperador Domiciano teria o negado o triunfo pelas campanhas na Bretanha
130
Alétheia Revista de Estudos sobre Antiguidade e Medievo – Volume 2/2, Julho a Dezembro de 2011
do capítulo, Sailor apresenta como era fácil em outros tempos apresentar as virtudes
para sociedade, e como era possível produzir esta noção de representação de modo
claro.
No terceiro capítulo “Os encargos de Histórias”, Sailor diferencia os objetivos e o
estilo de Agrícola e das Histórias. Sailor demonstra como ambas obras trazem a tona
problemas políticos, mas em Agrícola, Tácito visa a enaltecer a memória de seu sogro
em contraposição ao antagonista, Domiciano. Segundo a análise de Sailor, em Histórias
pode se notar um amadurecimento de Tácito ao comentar sobre a tirania que foi se
formando, até culminar no desfecho de Domiciano/Agrícola. Sailor aponta como a
história da escrita de Tácito se confunde com a história política de Roma por mostrar as
mudanças institucionais do Império e as reviravoltas que mudaram os poderes dentro da
sociedade. Ao mesmo tempo, Tácito descreve a relação entre o historiador e o príncipe.
Para Sailor, Tácito realizaria uma história da historiografia para explicar os motivos da
escrita de seu livro.
Primeiramente, Tácito aponta a mudança de poder quanto à escrita da história que, a
partir da batalha de Actium, esteve condicionada a uma pessoa: o príncipe. E que, após
isso, as histórias estiveram condicionadas a analisarem as res gestae deste homem. A
partir da instauração do principado há uma troca da eloquentia e libertas, comuns na
escrita da história antes da batalha de Actium, pelo servilismo que passa existir em
relação ao imperador. Outro ponto que o autor levanta é que as biografias realizadas até
então foram presas à adulatio. Parece sensato destacar um ponto bem abordado por
Sailor: nas Histórias, Tácito se livra da relação de poder entre súditos e imperador
(caracterizada por uma relação de servilismo) removendo a figura de Trajano do
prefácio. Assim, pode a Tácito ser configurada uma liberdade, que a meu ver é o grande
diferencial de Tácito para os demais autores da era imperial.
No quarto capítulo “Em outros lugares de Roma”, o autor discute a relação que existe
entre a história escrita por Tácito, o regime do Principado, a cidade de Roma, e os
demais componentes do Império. Para isso, Sailor analisa o uso da semiótica presente
na obra de Tácito contrapondo, princeps a súditos, escravos a senhores, romanos a
estrangeiros. O texto mostra como era a relação do princeps com a monumentalidade da
cidade de Roma através de passagem que mostra obras erguidas por imperadores. Sailor
mostra como Tácito trabalha com a crise da semiótica durante o período de Guerra Civil
e que possibilita que os romanos matem uns aos outros. Esse, a meu ver, é o capítulo
que Sailor tenta tirar Tácito de seu contexto político e o leva para o contexto social do
Império. Sailor mostra nesse capítulo como o historiador latino se relacionava com os
costumes dos antepassados e como os comparava com os do seu presente. É certo, pela
obra de Sailor, identificar a inquietação de Tácito ao exercer uma reflexão sobre seu
tempo.
No quinto capítulo “Tácito e Cremutio”, Sailor aponta para a dificuldade de recepção
das obras de Tácito em seu tempo. Valendo-se de uma análise da obra Anais, de Tácito,
demonstra os perigos existentes em se escrever tal tipo de obra, e os recursos utilizados
para demonstrar tal fato. Para Sailor, diante de tal contexto, a obra Anais serve para nos
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convencer de todas as dificuldades que rondavam a escrita do historiador, e o risco
destas obras despertarem desconfiança ou indiferença no contexto imperial. O que
Sailor aponta é que Tácito, através do exemplo de Cremutio, expõe que escrever sobre o
Principado era perigoso para o historiador, e que mesmo falando de imperadores mortos
(mesmo de uma linhagem já morta!) continuava sendo perigoso tanto para a obra quanto
para o autor. Esse capítulo faz um contraponto com o primeiro, quando discute a
questão do mártir. Sailor chega à conclusão de que a obra Anais é perigosa porque ajuda
os leitores da época a entenderem a natureza dos príncipes e os meios de tirar vantagem
deles.
Em “Conclusão: conhecendo Tácito”, o autor fecha com duas ideias em torno do
programático e da representação, que se cruzam constantemente na historiografia
taciteana. A primeira, sobre a representação do papel do historiador e da história dentro
da História, e, a segunda, das relações históricas de atores para obras do passado ou o
futuro da história. Tácito, de acordo com Sailor, buscaria mostrar a finalidade de sua
obra apresentando a representação do Império, da cidade ou até mesmo do julgamento
de Cremutio. Por outro lado, não se abstém de uma discussão programática de seu
ofício inserindo o leitor no contexto político que cerca a escrita de sua obra. O que
Sailor aponta com esses dois elementos é que a obra de Tácito apresenta como escrever
história poderia ser um modo de vida. A obra de Tácito teria permitido a ele se mostrar
em um meio público e ao mesmo tempo indicar como o historiador latino se postava
contra a ordem de poder existente.
Faço ainda duas ponderações sobre a obra de Sailor. A primeira é que, mesmo
abordando grandes obras como Agrícola, Histórias e Anais o autor se abstém de uma
análise de outras duas obras taciteanas: Germânia e Diálogo dos Oradores. Essas duas
obras poderiam fundamentar ainda mais a tese dele, já que a primeira trata justamente
do período em que Tácito esteve inserido como parte operante da política romana e que
a segunda trata de uma reflexão sobre a oratória em seu tempo (ainda que sua autoria
siga em debate). Nesse mesmo ponto, é visível que o autor se concentra por demais na
análise de Vida de Agrícola e História, o que empobreceu a análise sobre Anais, obra
com a mesma importância que as duas anteriores. A segunda ponderação, é que, em
muitos momentos de sua obra, Sailor não torna possível reconhecer que um conceito
usado na análise de uma obra se estende às demais. Por exemplo, se a mesma noção de
virtude em Agrícola está presente em Anais. Ele consegue deixari bem clara a ideia de
que todas as obras de Tácito são marcadas pela ambiguidade (porque o Principado é
ambíguo), masdeixa obscuro se as demais ideias seriam percepctíveis em todas obras.
Apesar disso, não vejodúvidas sobre o grande valor que a obra de Sailor traz aos
pesquisadores de história antiga e de historiografia porcontribuir gerando uma bem
fundada interpretação da escrita de Tácito.
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