Do Recolhimento das Órfãs ao Instituto de São Pedro de

Transcrição

Do Recolhimento das Órfãs ao Instituto de São Pedro de
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
Do Recolhimento
das Órfãs
ao Instituto
de São Pedro
de Alcântara
Dois estabelecimentos
de ensino com distintos projetos
pedagógicos, destinados
à educação e formação
de jovens do sexo feminino.
Texto de Luísa Colen
[HISTORIADORA, DIREÇÃO DA CULTURA_SCML]
EDÍFICIOS E LEGADOS
Recolhimento das Órfãs foi fundado
por iniciativa da Misericórdia de Lisboa, mercê do legado de D. Antónia
de Castro, falecida em 15871. A intenção da testadora era a criação de um hospital
para peregrinos estrangeiros pobres, dando-lhes
comida e cama por cinco dias. Além dos bens legados, a benfeitora entrega à Misericórdia umas
casas junto à Sé de Lisboa, para a instalação do
dito hospital.
Como existissem na cidade diversos hospícios
ou albergarias onde os peregrinos eram acolhi-
O
1. D. Antónia de Castro, mulher de Diogo Lopes de Sousa, antigo governador do Reino, faleceu a 26 de setembro de 1587.
Cf. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e
Provisões da Mesa pertencentes ao Recolhimento, Livro 1, fls. 2-8,
Traslado do Testamento de D. Antónia de Castro, 1602-05-04;
testamento de 1587-09-06, aberto em 1587-09-26.
138
Edifício do extinto Convento de S. Pedro de Alcântara, onde funcionou o
Recolhimento das Órfãs / Instituto de S. Pedro da Alcântara, entre 1834 e 2012
139
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
dos, na sua maioria quase desertos, foi solicitada
a Roma a comutação da cláusula do testamento
de D. Antónia. O Papa Clemente VIII2 concede à
Irmandade da Misericórdia de Lisboa a substituição solicitada, aplicando-se as verbas deste legado à fundação de um recolhimento destinado “a
donzelas pobres, órfãs e outras mulheres quase
desamparadas, algumas viúvas honestas ou mulheres casadas cujos maridos partiam para muito
longe, as quais não podiam sustentar-se, nem viver nas suas próprias casas”3.
O Recolhimento começou a funcionar provavelmente no ano de 1594, instalado nas referidas casas. Em 27 de junho de 16544, as órfãs do
Recolhimento são transferidas para o edifício da
sede da Misericórdia, na Ribeira, devido à ruína
em que se encontravam as casas legadas por
D. Antónia.
Outro benemérito, Manuel Rodrigues da Costa,
falecido em 16845, lega à Misericórdia uma verba
avultada, destinada à concretização de diversas
obras pias, incluindo a criação, edificação e sustento de um recolhimento para quarenta meninas
órfãs e a concessão de dotes às mesmas, após
o período de recolhimento. Com este importante
legado, a Irmandade da Misericórdia pôde reedificar e aumentar as acomodações das órfãs no
edifício da Ribeira.
Com o terramoto de 1755, que destruiu a sede
da Misericórdia de Lisboa na Ribeira, o Recolhimento foi-se instalando em moradas provisórias
até à doação do edifício de São Roque (antiga
Casa Professa dos Jesuítas), para onde se mudaram as órfãs em 8 de dezembro de 17686. O
edifício do extinto Convento de São Pedro de Alcântara, que pertencia à Ordem dos Frades Menores Reformados de Santa Maria da Arrábida,
secularizado em 18337, passou para a posse da
Misericórdia no ano seguinte, sendo para aqui
transferidas as órfãs e todo o pessoal do Recolhimento, deixando mais espaço para o Hospital dos
Expostos no edifício de São Roque.
ADMISSÃO DAS EDUCANDAS:
NÚMERO E REQUISITOS
No Compromisso da Misericórdia de Lisboa de
1618 estabelecera-se8 que seriam 13 as meninas
órfãs a acolher no Recolhimento, devendo estas,
à data de entrada, ter mais de 12 anos e menos
de 20, permanecendo no estabelecimento durante quatro anos9, sendo obrigadas a dar fiança de
que seriam retiradas após esse período, ou sempre que a Mesa o ordenasse.
O número de órfãs admitidas foi acrescentado posteriormente com os legados de Sebastião
Perestrelo10, com mais cinco órfãs e do inquisidor
Bartolomeu da Fonseca11, com mais uma órfã.
A partir de 1690, com a instituição do Recolhimento de Manuel Rodrigues da Costa, passaram
a admitir-se mais quarenta órfãs. Em 1748 a Misericórdia de Lisboa resolveu12, face ao rendimento restante dos vários legados que sustentavam
2. A Bula Apostólica do Papa Clemente VIII foi confirmada por Carta de Sentença de Comutação de D. Miguel de Castro, arcebispo de Lisboa, em 18 de maio de 1594. Cf. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e Provisões da Mesa pertencentes
ao Recolhimento, Livro 1, fls. 9-14, Traslado da Sentença de Comutação do Legado de D. Antónia de Castro, 1602-06-06.
3. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e Provisões da Mesa…, Livro 1, fl. 11 v.
4. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de assentos e fianças das órfãs do Recolhimento, Livro 2 da Administração da fazenda de
Manuel Rodrigues da Costa, fl. 1 v.
5. Cf. AHSCML, Cartório, Testamentos, mç. 14, proc. 38; Idem, Execuções, mç. 5, proc. 8, Certidão do testamento de Manuel Rodrigues
da Costa.
6. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e Provisões da Mesa…, Livro 1, fl. 154 v.
7. Decreto de 31 de dezembro de 1833.
8. Collecção chronológica da legislação portugueza, José Justino de Andrade e Silva (comp. e anot.), Lisboa, Imprensa de J.J.A. Silva,
2.º vol. (1613-1619), pp. 299-301, Compromisso da Misericórdia de Lisboa de 1618, Capítulo XX – Governo e officiaes da Casa do recolhimento das donzellas. O Arquivo Histórico da SCML possui dois exemplares com o texto do Compromisso, impressos por Pedro
Craesbeek, em 1619 [cotas L.A.XVII.0688 e 0689].
9. Até essa altura, o tempo de permanência das órfãs no Recolhimento estava limitado a dois anos.
10. Cf. AHSCML, Cartório, Testamentos, mç. 5, proc. 44, Cópia do testamento de Sebastião Perestrelo, feito em 31 de agosto de 1634.
11. Cf. AHSCML, Cartório, Testamentos, mç. 2, proc. 1, Certidão do testamento do Inquisidor Bartolomeu da Fonseca, feito a 14 de abril de 1620.
12. Por Ordem da Junta Pequena de 16 de outubro de 1748. Cf. AHSCML, Recolhimento das Órfãs. Diversos, Cx. 1, proc. n.º 1.
140
as chamadas “Órfãs da Casa”, reduzir o seu número para onze, sendo sete do legado de D. Antónia de Castro, um do inquisidor Bartolomeu da
Fonseca e três de Sebastião Perestrelo, sustentadas pelos seus respetivos rendimentos e pelos
remanescentes dos legados de Margarida Dias e
Joana da Costa.
Para a sua admissão as órfãs necessitavam de
fazer um requerimento à Mesa e esta, através
dos irmãos Visitadores e dos Oficiais do Recolhimento, procedia a indagações sobre a sua virtude, idade, saúde e desamparo. Os párocos da
sua zona de residência tinham de emitir certidão
atestando a sua orfandade e pobreza, bem como
a honestidade e recolhimento em que viviam.
De entre as órfãs admitidas a concurso anual
e que possuíam, portanto, os requisitos indispensáveis de serem órfãs, solteiras, pobres e na
idade exigida, eram selecionadas as que iriam ser
providas nas vagas existentes, por uma ordem
de critérios que privilegiava as que fossem órfãs
de pai e mãe, as naturais de Lisboa, as filhas de
irmãos da Irmandade da Misericórdia, as que se
encontrassem em maior desamparo pela pobreza
extrema, família numerosa, ausência de familiares, entre outros. Para o Recolhimento entravam
também algumas meninas expostas, que viviam
no Hospital dos Expostos ou se encontravam em
casa de suas amas ou protetores, mas que mostravam inclinação para os estudos.
No Recolhimento das Órfãs da Santa Casa foi
inicialmente permitida a entrada de mulheres solteiras, casadas ou viúvas, na qualidade de porcionistas13, que teriam de ser obrigatoriamente virtuosas
e, sendo casadas, autorizadas por seus maridos,
sujeitando-se, como as órfãs, a ser objeto de inquirição. A partir de 1740 a Santa Casa interdita a entrada de porcionistas para o Recolhimento das Órfãs14,
continuando a receber esporadicamente algumas
porcionistas solteiras e de menor idade.
O RECOLHIMENTO
COMEÇOU A FUNCIONAR
PROVAVELMENTE
NO ANO DE 1594,
INSTALADO
NAS CASAS LEGADAS
PELA BENFEITORA
D. ANTÓNIA DE CASTRO,
JUNTO À SÉ DE LISBOA”
Processo de órfã
provida – requerimento
e informação
(Concurso de 1806,
proc. 25)
13. As porcionistas pagavam uma “porção” para a sua sustentação no Recolhimento, que inicialmente era de 25 mil réis anuais,
pagos adiantados, e que se destinava a despesas de alojamento e alimentação. Não estava definido qualquer limite de tempo de
recolhimento para as porcionistas.
14. Cf. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e Provisões da Mesa…, Livro 1, fl. 147.
141
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
das donzelas, que tinha a seu cargo as compras
destinadas ao Recolhimento das Órfãs.
O governo interno da casa das órfãs estava
confiado a uma regente e o ensino a mestras que,
juntamente com a porteira, a despenseira, a enfermeira e as serventes, constituíam as funcionárias residentes no estabelecimento.
Com a nomeação da Comissão Administrativa
da Santa Casa, em 1834, a direção dos estabelecimentos do Hospital dos Expostos e do Recolhimento das Órfãs é confiada a um administrador
e, a partir de 185116, é criado o lugar de diretor do
Hospital dos Expostos e do Recolhimento das Órfãs. Cada um destes estabelecimentos continuou,
internamente, a ser governado por uma regente.
Este sistema de administração manteve-se até
ao século xx.
Processo de órfã
provida – requerimento
e informação
(Concurso de 1806,
proc. 25)
ADMINISTRAÇÃO DO RECOLHIMENTO
A Irmandade de Lisboa elegia todos os anos dois
irmãos nobres, um para tesoureiro e outro para
escrivão do Recolhimento, que tinham o dever
de ir todos os dias ao Recolhimento, ordenando
o que fosse necessário. Deviam também comunicar à Mesa “do que lhes parecer que convém
para melhor governo e clausura do dito Recolhimento”15. Era também eleito mensalmente pela
Mesa um irmão para servir de mordomo da bolsa
EDUCAÇÃO E ENSINO
A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML)
apoiava as órfãs recolhidas através da educação
e instrução ministrada ao longo dos quatro anos
de internamento e da concessão de um dote para
facilitar o seu casamento, após a saída da instituição. Além do ensino de ler e costurar, ministrado no Recolhimento desde o seu início, órfãs
e porcionistas deviam participar nas tarefas domésticas, varrendo as casas, servindo à vez na
sacristia e noutros lugares, conforme a regente
determinasse.
Ao longo do século xviii menciona-se, em provimentos das mestras para o Recolhimento, na
parte relativa às suas obrigações, que estas deviam “ensinar as órfãs a ler e escrever, bordar,
fazer rendas e todas as mais artes liberais que
podem fazer perfeita uma mulher” e ter ainda o
“cuidado de as industriar na Doutrina Cristã e
atos de virtude”17.
A partir de 1789 a Mesa da Santa Casa reformulou o sistema de ensino, solicitando a vinda de
15. Compromisso da Misericórdia de Lisboa de 1618… p. 299.
16. Decreto de 22 de outubro de 1851.
17. Cf., por exemplo, AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e Provisões da Mesa…, Livro 1, fl. 42, Provisão de
Joaquina Rita para Mestra do Recolhimento, 1766-04-29.
142
Alunas, mestras
e ajudantes do
Recolhimento de
São Pedro de Alcântara
em 1894
uma regente e mestras do Colégio das Ursulinas
de Pereira para se dedicarem à educação e instrução das órfãs do Recolhimento18. Passa então
a existir duas aulas, uma de ler, escrever e contar
e outra de manufaturas, distribuindo as alunas
por várias classes, segundo o seu adiantamento.
Especifica-se ainda que as mestras ensinarão às
órfãs a doutrina cristã, a ler, escrever, contar, fiar,
coser, engomar, fazer meia, redes, coifas, bolsas,
bordar de branco, matiz e ouro e a trabalhar na
cozinha19.
Em 1875 é estabelecido um novo regulamento
relativo à educação das órfãs no Recolhimento de
São Pedro de Alcântara, dividindo-a igualmente em
duas secções: uma literária e a outra no ensino dos
PARA A SUA ADMISSÃO AS
ÓRFÃS NECESSITAVAM DE FAZER
UM REQUERIMENTO À MESA
E ESTA, ATRAVÉS DOS IRMÃOS
VISITADORES E DOS OFICIAIS
DO RECOLHIMENTO, PROCEDIA
A INDAGAÇÕES SOBRE A SUA
VIRTUDE, IDADE, SAÚDE E
DESAMPARO”
18. A Companhia de Santa Úrsula, fundada por Ângela Merici, era um instituto secular feminino que tinha por objetivos a assistência aos enfermos e o ensino do sexo feminino. Foi reconhecido pela Santa Sé em 1544. A Congregação das Ursulinas espalhou-se
e fundou conventos e colégios ao longo dos séculos xvii e xviii por vários países da Europa e da América. Em Portugal estabeleceu três colégios: o de Pereira, perto de Coimbra (1753), em Viana (1778) e em Braga (1784/1786). Por solicitação da Mesa da
Irmandade da Misericórdia de Lisboa, um grupo de sete religiosas provenientes do Colégio de Pereira veio para Lisboa ensinar as
meninas órfãs do Recolhimento da Santa Casa.
19. Cf. AHSCML, Recolhimento das Órfãs, Registo de Despachos e Provisões da Mesa…, Livro 2, fls. 25 v.-32, Instruções para o Governo
do Recolhimento, 1789-04-23.
143
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
Em 1927 a Mesa da SCML determinou que se
desse início no Recolhimento a um Curso Elementar do Comércio, com o programa dos Cursos das Escolas Comerciais22, ordenando que
o tempo de permanência no estabelecimento
passasse de quatro para cinco anos, dando uma
tolerância às educandas que perdessem um ano.
As órfãs que tivessem vocação continuavam a ter
aulas de música e todas recebiam uma “educação
propriamente feminina”, nas áreas de economia
doméstica e governo da casa23.
A manutenção do ensino em regime de internato,
para alunas e professoras, criou dificuldades no provimento de certas disciplinas do curso. As saídas
profissionais para este tipo de estudos eram muito
limitadas (desempenhavam funções auxiliares de
comércio e escritório), tinham uma grande concorrência e eram mal remuneradas, não permitindo às
órfãs obter e manter uma independência económica após a saída da instituição. Perante esta situação, a Mesa da Misericórdia de Lisboa resolveu, em
1943, fazer cessar no Recolhimento de São Pedro de
Alcântara o Ensino Comercial24.
Regulamento para
a educação das órfãs
do Recolhimento
(1875)
A PARTIR DE 1789 A MESA
DA SANTA CASA REFORMULOU O
SISTEMA DE ENSINO, SOLICITANDO
A VINDA DE UMA REGENTE E
MESTRAS DO COLÉGIO DAS
URSULINAS DE PEREIRA PARA
SE DEDICAREM À EDUCAÇÃO
E INSTRUÇÃO DAS ÓRFÃS DO
RECOLHIMENTO”
lavores “mais comuns e próprios de mulher”20.
A educação literária restringia-se às matérias indicadas no programa oficial de admissão aos liceus
nacionais, constando de leitura e escrita – caligrafia,
noções elementares de gramática portuguesa, matemática elementar, noções abreviadas de geografia e cronologia, divisões gerais da história, noções
resumidas da história pátria e religião católica. Em
189721 o ensino de línguas – francês e inglês – entretanto instituído, passa de um para dois anos.
As órfãs iam realizar os exames do ensino primário e os de línguas estrangeiras no Liceu Central de
Lisboa, como alunas externas e, no Conservatório de
Lisboa, os exames de rudimentos de música e piano.
A partir de 1906, ano da criação do primeiro liceu feminino em Lisboa – o Liceu Maria Pia –, as alunas do
Recolhimento passaram a realizar os exames finais
neste estabelecimento de ensino.
20. AHSCML, Órgãos da Administração, Registo de Despachos e Ordens da Administração, Livro 7, fls. 86v.-88v., Regulamento relativo à educação das órfãs do Recolhimento de São Pedro de Alcântara, 1875-11-27.
21. AHSCML, Órgãos da Administração, Actas das sessões da Mesa da SCML, Livro 18, fls. 242 v.-243, Deliberação de 1897-11-06.
144
O INSTITUTO LUÍSA PAIVA DE ANDRADA
Em 12 de dezembro de 1908 é fundado por
D. Carolina Augusta Picaluga Paiva de Andrada
um internato para raparigas – designado Instituto
Luísa Paiva de Andrada em memória da sua filha,
já falecida –, que se localizava na sua casa de residência, na Rua de São Boaventura, em Lisboa.
Em 1912, em virtude do testamento de D. Carolina e por seu falecimento em 23 de outubro desse ano, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é
nomeada herdeira dos seus bens, sendo o primei-
ro e especial encargo a manutenção do Instituto,
para o que a benfeitora deixa o prédio da Rua de
São Boaventura.
O Instituto Luísa Paiva de Andrada constituía um
internato para 22 educandas, admitindo raparigas
entre os 9 e os 12 anos de idade, escolhendo-se entre as famílias que mais tivessem descido na escala
social, como tinha sido determinado pela benfeitora. As internadas recebiam uma educação esmerada que incluía, além da instrução primária, as aulas
de português, francês, inglês, ensino doméstico,
costura, lavores e música.
EM 1875 É ESTABELECIDO UM
NOVO REGULAMENTO RELATIVO
À EDUCAÇÃO DAS ÓRFÃS,
DIVIDINDO-A EM DUAS SECÇÕES:
UMA LITERÁRIA E A OUTRA NO
ENSINO DOS LAVORES “MAIS
COMUNS E PRÓPRIOS DE MULHER”
A CONGREGAÇÃO DA APRESENTAÇÃO
DE MARIA E OS INSTITUTOS
DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
Em visita oficial a uma obra assistencial e educativa situada em Setúbal, fundada pela Congregação das Irmãs da Apresentação de Maria25 em
1938, o então subsecretário de Estado da Assistência Social, Dr. Joaquim Dinis da Fonseca26,
22. Estabelecido pela Lei n.º 1822, de 14 de outubro de 1925, e com os programas definidos pelo Decreto n.º 11490, de 19 de março de
1926.
23. AHSCML, Órgãos da Administração, Actas das sessões da Mesa da SCML, Livro 23, pp. 265-266, Deliberação de 1927-10-25.
24. AHSCML, Órgãos da Administração, Despachos Ministeriais, Livro 4, Acta da Mesa de 1943-09-30, Deliberação 57.ª aprovada por
Despacho do Subsecretário de Estado da Assistência, Dr. Joaquim Dinis da Fonseca, de 1943-10-15.
25. A Congregação da Apresentação de Maria foi fundada pela Beata Anne Marie Rivier em França, em 1796, tendo como especial
missão a do ensino da Igreja, pela educação cristã da juventude (Regra de Vida, C 7). Em 1925 é fundada a primeira comunidade da
Apresentação de Maria em Portugal, no Funchal, Madeira.
26. Joaquim Dinis da Fonseca (1887-1958) era licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra. Foi membro do Centro Católico
Português e fez a sua carreira profissional como administrador da Companhia dos Diamantes de Angola. A sua atividade política desenvolveu-se como deputado entre 1922 e 1926, assumindo o cargo de subsecretário de Estado da Assistência Social entre 1940 e 1944 e
subsecretário de Estado das Finanças entre 1944 e 1950. Foi ainda membro da Junta Consultiva da União Nacional entre 1945 e 1957.
145
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
Madre Maria
da Santíssima
Trindade, tratada
pelas Irmãs e alunas
simplesmente por Irmã
Trindade [Arquivo da
Congregação das Irmãs
da Apresentação
de Maria]
tomou contacto com a obra desta Congregação
e com a sua superiora, a Irmã Trindade27, ficando impressionado com os bons resultados pedagógicos obtidos no Colégio da Apresentação de
Maria e com as qualidades educativas da superiora, por quem nutriu verdadeira admiração, que
foi intensificando em contactos posteriores.
A Irmã Trindade considerava que o programa oficial dos estudos secundários, que tinham
obrigatoriamente de cumprir nas suas obras
educativas, estava pouco adequado à verdadeira
formação. “Aspirava a um plano de estudos em
que Educação e Instrução se interpenetrassem
intimamente e, utilizando métodos adequados
e num ambiente propício à formação do sentido
de responsabilidade e do espírito de iniciativa, se
chegasse a um pleno e equilibrado desenvolvimento da personalidade das educandas.”28
Com a colaboração das Irmãs Maria de Jesus
e Maria da Pureza, a Irmã Trindade elaborou um
programa de estudos secundários, com um projeto pedagógico próprio29, para ser aplicado em
experiências futuras. O Dr. Dinis da Fonseca,
tomando conhecimento da sua existência e depois de o estudar, promete dar à Irmã Trindade a
possibilidade de o aplicar. No verão de 1943 chama a Irmã Trindade: resolvera confiar a educação e ensino das internadas do Recolhimento de
São Pedro de Alcântara às religiosas da sua
Congregação30.
Em outubro de 1943 a Irmã Trindade, acompanhada por 12 das suas primeiras noviças, vem
para Lisboa, para dar início à obra em São Pedro
de Alcântara. A Mesa da Santa Casa promove
então a reorganização do ensino no Recolhimento de São Pedro de Alcântara e no Instituto Luísa
Paiva de Andrada, reunindo os dois estabelecimentos sob a designação comum de Institutos
de São Pedro de Alcântara, passando a funcionar
ambos no edifício do convento.
No acordo celebrado entre a Santa Casa e a
Congregação, que tem efeito a partir de janeiro
de 194431, o número de internadas dos Institutos
é fixado em 62 educandas, pertencendo 40 ao
Recolhimento das Órfãs e 22 ao Instituto Luísa
Paiva de Andrada, tal como se praticava anteriormente. A Misericórdia continuava a selecionar as
27. A Madre Maria da Santíssima Trindade, com o nome de batismo Leontina Trindade de Ornelas e Vasconcelos (1893-1974) era
tratada pelas suas Irmãs e alunas simplesmente por Irmã Trindade. Foi a fundadora da Província Portuguesa da Congregação das Irmãs
da Apresentação de Maria.
28. PUREZA, Ir. Maria da, A.M., Em tudo a vontade de Deus. Vida da Madre Maria da Santíssima Trindade, fundadora da Província
Portuguesa da Congregação das Irmãs da Apresentação de Maria, s.l., s.d., p. 206.
29. Cf. Carta da Irmã Trindade à Casa-Mãe, maio de 1944, Cit. por PUREZA, Ir. Maria da, A.M., Em tudo a vontade de Deus…, p. 212.
30. Cf. PUREZA, Ir. Maria da, A.M., Em tudo a vontade de Deus…, p. 207.
31. Cf. AHSCML, Órgãos da Administração, Despachos Ministeriais, Livro 4, Termo do Acordo de Cooperação entre a Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa e a Congregação da Apresentação de Maria, respeitante à execução dos Serviços de S. Pedro de Alcântara (Órfãs e
Luiza Paiva de Andrada), celebrado a 31 de dezembro de 1943.
146
Recreio e aula no
Instituto de São Pedro
de Alcântara [Arquivo
da Congregação das
Irmãs da Apresentação
de Maria]
meninas, mas segundo critérios que foram sendo
adaptados ao longo do tempo, tendo em conta
as novas funções a que se destinou o Instituto.
As admissões passaram a ter um âmbito nacional, sendo precedidas de inscrição, entrevista e
avaliação sociofamiliar, segundo os critérios dos
instituidores dos dois estabelecimentos: orfandade (Recolhimento das Órfãs) e pertencerem a
famílias que, tendo decaído na sua posição social
por razões financeiras, não tivessem meios de dar
sólida educação e ensinamentos práticos, literários e profissionais, com que pudessem ficar habilitadas a exercer uma profissão de acordo com
a sua posição social (Instituto Luísa Paiva de Andrada). Podiam ainda ser admitidas outras situações, após avaliação, no caso de existirem vagas.
147
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
Alunas da Escola
de Auxiliares Sociais
de São Pedro de
Alcântara [Arquivo da
Congregação das Irmãs
da Apresentação de
Maria]
Coro das Alunas do
Instituto de São Pedro
de Alcântara [Arquivo
da Congregação das
Irmãs da Apresentação
de Maria]
À Congregação cabia o desempenho completo
dos serviços de assistência educativa. “A organização da vida escolar foi sabiamente delineada
pela Irmã Trindade mediante uma série de técnicas simples […] orientadas para a educação dos
dons pessoais, para despertar e desenvolver o
sentido de responsabilidade, o espírito de criatividade e de iniciativa, bem como o de colaboração
no trabalho em equipas.”32
Mas, sem dúvida, o grande segredo do êxito
da sua atuação foi o amor. Um amor que soube
“corrigir sem ferir”, soube com respeito e delicadeza “endireitar o que estava torto e levantar o que estava caído”, que “perscrutava, para
além das aparências, o íntimo dos corações” e
que “estimulava, comunicando coragem, alegria
e paz”33. Dizia muitas vezes às suas educandas:
“Sois as meninas dos meus olhos…”, expressão
32. PUREZA, Ir. Maria da, A.M., Em tudo a vontade de Deus…, p. 213.
33. Idem, ibidem.
148
de ternura que as alunas mais antigas ainda hoje
recordam, comovidas.
A par dos programas académicos era
ministrada a todas as educandas uma educação
artística, estética e espiritual em que a música
assumiu especial relevo. As aulas de canto coral
foram instituídas, desde 1945, pela professora
Olga Violante34 e o Coro das Alunas do Instituto
de São Pedro de Alcântara foi considerado o
melhor coro feminino de Lisboa de entre os coros
dos vários colégios existentes na época. Também
o canto gregoriano e polifónico era cultivado no
Instituto, tendo como mestra de canto a Irmã
Nuno de Santa Maria35. O canto gregoriano
era praticado diariamente por todas as alunas,
durante cerca de meia hora, antes do começo
NO VERÃO DE 1943, O
SUBSECRETÁRIO DE ESTADO
DA ASSISTÊNCIA SOCIAL, DINIS
DA FONSECA, RESOLVE CONFIAR
A EDUCAÇÃO E ENSINO DAS
INTERNADAS DO RECOLHIMENTO
DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
ÀS RELIGIOSAS DA CONGREGAÇÃO
DA APRESENTAÇÃO DE MARIA”
34. A professora Olga Violante (1902-1969) viria a criar o Coro da Fundação Gulbenkian em 1964 e chegou a gravar em disco com
o Coro das Alunas do Instituto de São Pedro de Alcântara e a Orquestra de Câmara da Universidade Clássica de Lisboa o Stabat
Mater de Pergolesi, dando vários concertos com esta obra em várias igrejas de Lisboa e na televisão.
35. A Irmã Nuno de Santa Maria foi uma brilhante aluna do Centro de Estudos Gregorianos, onde estudou sob a orientação de
Júlia d’Almendra (1904-1992).
149
| HISTÓRIA E CULTURA |
| EDUCAÇÃO |
SOB A ORIENTAÇÃO
DA CONGREGAÇÃO DA
APRESENTAÇÃO DE MARIA
ESTABELECEU-SE NO INSTITUTO DE
SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA, ALÉM
DO CURSO GERAL, UM CURSO
PARA VISITADORAS E OUTRAS
AGENTES DE ASSISTÊNCIA SOCIAL,
ORGANIZADO LOGO EM 1944”
das aulas, para preparar as peças gregorianas da
missa dominical36.
Sob a orientação da Congregação da Apresentação de Maria estabeleceu-se, além do curso
geral, um curso para visitadoras e outras agentes de assistência social, organizado em 194437.
As alunas que terminavam o curso geral podiam
ingressar no de assistência social, caso desejassem e mostrassem vocação. No ano letivo de
1946/47 o número de alunas do curso geral secundário passa a cem e as do curso de auxiliares
sociais a sessenta38.
O desempenho das auxiliares sociais formadas
pelo Instituto de São Pedro de Alcântara foi de tal
forma reconhecido e apreciado que, quando o Ministério do Interior decidiu criar uma Escola Oficial
de Auxiliares Sociais, foi proposto à Congregação da
Apresentação de Maria a elevação do curso existente a escola oficial. A Escola de Auxiliares Sociais de
São Pedro de Alcântara foi criada em 195339, competindo à Congregação, além da representação na
comissão diretiva da Escola, a responsabilidade da
sua direção técnica. A Congregação mantinha-se
ainda como responsável pela direção e ensino do
curso geral, equiparado ao 2.º ciclo dos Liceus, assim
como pelo internato das alunas que frequentavam a
Escola de Auxiliares Sociais e que não tinham residência em Lisboa.
A Escola de Auxiliares Sociais funcionou até
1974, altura em que foram suspensas as atividades escolares por decisão governamental40. Procedeu-se a uma reforma do acordo estabelecido
em 1943 entre a Misericórdia e a Congregação,
principiando as internadas do Instituto de São
Pedro de Alcântara a frequentar o ensino oficial
nas escolas públicas da área. O Instituto passou
a funcionar, nesse ano letivo de 1974/75, como
um “Lar para jovens que estudam ou que iniciam
a sua vida de trabalho”41.
A partir de 1974, as Irmãs da Apresentação
de Maria continuaram a sua obra de educação,
acompanhando as meninas que frequentavam as
aulas do 5.º ao 12.º ano de escolaridade, apoiando-as nos seus estudos e orientando a sua formação humana, nas suas vertentes moral e cristã, social e cultural, visando uma educação integral. O enquadramento pedagógico e educativo
era realizado em pequenos “grupos de vida”, sob
a orientação de uma educadora por cada grupo.
36. Algumas das alunas do Instituto aprofundaram os seus estudos na área da música e canto, como Idalete Giga, que fundou,
em 1985, o Coro Capela Gregoriana Laus Deo, que incorpora ainda atualmente algumas ex-alunas do Instituto de São Pedro de
Alcântara. Este coro participou no disco que está integrado no catálogo do Fundo Musical da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
(editado em 1995).
37. AHSCML, Órgãos da Administração, Actas das sessões da Mesa da SCML, Livro 30, pp. 411-413, Acta de 1944-01-07, 16.ª deliberação.
38. AHSCML, Órgãos da Administração, Despachos Ministeriais, Livro 6, Despacho de 1946-10-22, que aprova a 11.ª deliberação
da Sessão de Mesa da SCML de 1946-10-10.
39. Ver Portaria n.º 14 391, de 19 de maio de 1953, que cria a Escola de Auxiliares Sociais de São Pedro de Alcântara e a Portaria
n.º 14 452, de 9 de julho de 1953, que aprova o respetivo Regulamento.
40. A Escola de Auxiliares Sociais de São Pedro de Alcântara foi suspensa por despacho do secretário de Estado da Segurança
Social em 27 de setembro de 1974 e oficialmente extinta por Portaria n.º 150/83 de 14 de fevereiro, da Secretaria de Estado da
Segurança Social.
41. Revisão do Acordo de Cooperação entre a Misericórdia de Lisboa e a Congregação da Apresentação de Maria para administração do
Instituto de S. Pedro de Alcântara, de 1974-08-20.
150
Os critérios de admissão passaram a considerar, para além dos já referidos anteriormente,
mais dois, a saber: a privação – temporária ou
permanente – da família natural e a situação de
desamparo, por motivo de trabalho de ambos os
pais fora de casa, ou por dificuldades de acesso
ao local de ensino. A Congregação da Apresentação de Maria manteve-se à frente do Instituto
de São Pedro de Alcântara até 2012, ano em que
se rescindiu o acordo de cooperação entre aquela
Congregação e a Misericórdia de Lisboa.
A Santa Casa, agradecida pela atividade das Irmãs em favor das cerca de duas mil jovens que ao
longo de 69 anos “formaram para uma cidadania
activa, desenvolvendo competências humanas,
sociais, culturais e morais”42, prestou uma justa
homenagem pública à Congregação, realizada em
julho de 2012. O Instituto Luísa Paiva de Andrada
e as jovens assistidas pela Santa Casa foram instalados num outro edifício, também propriedade
da SCML, localizado em Lisboa.
As Irmãs assumiram outros projetos, noutras
obras assistenciais e educativas, sempre fiéis à
missão da Congregação de “participar na missão do ensino da Igreja, pela educação cristã
da juventude”43.
Ensaio de dança
no claustro de São
Pedro de Alcântara
[Arquivo da
Congregação das Irmãs
da Apresentação
de Maria]
42. 311.ª deliberação de Mesa, 20.ª Sessão Ordinária, de 2012-02-16.
43. Congregação da Apresentação de Maria, Regra de Vida, C 7.
151