eduardo festugato
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EDUARDO FESTUGATO A MESA DAS REFEIÇÕES RECEITAS DA COLÔNIA ITALIANA EDITORA DA UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Rua Sinimbu, 387 - Bairro de Lourdes - CEP 95020-001 - Caxias do Sul - RS - Brasil Ou: Caixa Postal 1352 - CEP 95001-970 - Caxias do Sul - RS - Brasil Telefone: (054) 222 7667 - Telefax (054) 222 7667 - Home-Page www.ucs.tche.br CAPA: Genoveva Finkler REVISÃO: Izabete Polidoro Lima ILUSTRAÇÕES: Eduardo Festugato - Beatriz Balem - Rita Brugger Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL UCS - BICE - Processamento Técnico F418m Eduardo Festugato A Mesa das Refeições: receitas da colônia italiana / Eduardo Festugato. - Caxias do Sul: EDUCS, 1997. p. 191: il. 1. Preparação de alimentos e refeições 2. Culinária 3. Culinária italiana I. Título. Índice para o catálogo sistemático 1. Preparação de alimentos e refeições 641.5 2. Culinária 641.5 3. Culinária Italiana 641.5 Catalogação na Fonte elaborada pela Bibliotecária Fabiane Pacheco Martino - CRB 10/07-97 2 Sumário I - A MESA DAS REFEIÇÕES Apresentação ...................................................................................... 9 “Chimarrão” ................................................................................... 15 A mesa das refeições ........................................................................ 18 Agressividade na alimentação e especialização alimentar ............... 21 Especialização - um beco sem saída ................................................ 27 O direito de matar ............................................................................ 29 “O diabo tira os dentes, mas Deus alarga as goelas” ....................... 32 A imprecisão das receitas ................................................................. 35 “Formaio gratá” ............................................................................... 38 Três amigos importantes .................................................................. 46 Água ................................................................................................. 49 Álcool............................................................................................... 52 Álcool e sexo ....................................................................... 52 Alcoolismo .......................................................................... 55 Ressaca ................................................................................ 56 Efeitos do álcool (gráfico) ................................................... 57 Principais danos causados pelo álcool ................................ 58 Teor alcoólico de diversas bebidas ..................................... 58 Com os pés no chão............................................................. 59 “E no entanto, ela se move!” ............................................... 60 Graus de embriaguez ........................................................... 61 Alcoolemia .......................................................................... 63 Papagaio, macaco, leão e porco .......................................... 63 As vinhas do diabo .............................................................. 64 Em defesa do vinho .......................................................................... 66 Vinho na sopa .................................................................................. 69 Vinho e cama ................................................................................... 72 II - RECEITAS DE BEBIDAS Moscatel ........................................................................................... 75 Vinho - a receita que falta ................................................................ 76 Vinho de laranjas ............................................................................. 77 3 III - RECEITAS DE COMIDAS Algumas medidas úteis na cozinha .................................................. 81 Arroz com charque ........................................................................... 82 Arroz com galinha caipira ................................................................ 83 Risoto ............................................................................................... 84 Bacalhau à vó Emília ....................................................................... 86 Brodo................................................................................................ 88 Cabrito.............................................................................................. 90 Cabrito no espeto ............................................................................. 90 Cabrito ao forno ............................................................................... 91 Charque ............................................................................................ 92 “Crema” ........................................................................................... 95 Galeto ............................................................................................... 96 Espagueti “al sugo” - massa caseira ................................................. 97 Espagueti à Carbonara ..................................................................... 98 “Fonghi”......................................................................................... 100 “Gnochi” de batata-doce ................................................................ 102 Molho básico de carne ................................................................... 104 Panada ............................................................................................ 106 Pão ................................................................................................. 107 Passarinhada................................................................................... 109 Pastéis ............................................................................................ 111 Pato ................................................................................................ 113 Polenta............................................................................................ 114 Queijo “parmesão”, caseiro............................................................ 115 Rã ................................................................................................... 117 Rã à doré ........................................................................................ 117 Rã à milanesa ................................................................................. 118 “Radite” com bacon ....................................................................... 119 Recheio do agnolin ........................................................................ 120 Recheio do ravioli .......................................................................... 122 Recheio do tortel toscano ............................................................... 124 Sopa de Calendri ............................................................................ 126 Sopa de feijão ................................................................................. 127 Sopa de leite ................................................................................... 128 Sopa minestrone ............................................................................. 129 Sopa de mocotó .............................................................................. 130 Sopa Reale ..................................................................................... 131 “Strozzapretti a la rabiata” ............................................................. 133 4 Tatu recheado na panela ................................................................. 134 Tatu mulita ..................................................................................... 136 Tripada do Severino Bôrtolo Peteffi .............................................. 138 Vitelo ao forno ............................................................................... 141 “Zuchetti” fritos à doré .................................................................. 143 “Zuchetti” refogados na manteiga.................................................. 144 5 6 Apresentação A arte culinária é uma manifestação de cultura de um povo e o termômetro que mede o seu grau de desenvolvimento. Desde o “Homem de Pequim”,1 que assava um naco de carne chamuscada na ponta de um galho, até aprender a preparar o pato laqueado dos chineses ou o agnolini da vó Emília, medeiam um milhão e meio de anos de evolução! O homem é o único animal que prepara o seu alimento. E o único que o come, mesmo que seja com as mãos, mas em companhia de outros homens e não escondido num canto como um cão, com medo de ter roubado o seu pedaço sangrento de carne. Os próprios canibais africanos devoravam os seus inimigos num grande banquete festivo. (O talher não faz parte da culinária, mas da etiqueta, que não deixa de ser um ramo da cultura. Certamente foi invenção de velhos que, sem dentes, se viram obrigados a serem hábeis com garfos e facas). Nas páginas deste livro estão algumas das receitas mais típicas da cultura italiana, trazida pelos colonizadores que há mais de cento e cinqüenta anos desbravaram o Sul do nosso País, derrubaram matas, plantaram roças, construíram cidades e indústrias. É certo que acabaram com os pinheirais que cobriam noventa por cento do território serrano, exterminando, com eles, os bugios, as gralhas, as caturritas, os papagaios, as pombas e tantas outras espécies de animais que ali viviam. Deixaram, porém, a sua sólida cultura baseada na religiosidade e no trabalho árduo de arrancar da terra a subsistência. De uma terra selvagem e pedregosa como era, tantos frutos surgiram, e a única explicação plausível é que o suor do trabalho é o melhor dos adubos (O sangue não. Se sangue fosse adubo, Charqueadas, no Rio Grande do Sul, onde foram sangradas milhões de rezes, seria a região mais desenvolvida do planeta). Porém, mais que cidades e indústrias, mais que lavouras e fábricas, foi o amor à Deus, à família e ao trabalho a melhor herança que os colonos deixaram. E a sua arte culinária. Os segredos dos embutidos de porco e das comidas da colônia que estão neste livro foram trazidos por eles. Os primeiros são herança do saudoso Tio Joanim – João Festugato – que, há mais de meio século, com a sua receita do salame, conquistou o primeiro lugar numa das primeiras exposições coloniais de Caxias do Sul. Os segundos são as receitas de comidas 1 O Homo pequinensis foi, há 1.500.000 anos, o descobridor do fogo. 7 com sabor e aroma de lar paterno, de cozinha aquecida por fogões à lenha sempre acesos e pelo calor que vem do coração materno. *** Durante muitos anos o tio Joanim foi o químico prático do Frigorífico Petteffi, quando o óleo de soja ainda não havia destronado a banha e acabado com a perdiz (em cultura de soja a perdiz, envenenada pelos pesticidas, não se cria). Nessa época, a carne de porco era um produto secundário do frigorífico. O salame, vendido para São Paulo em caixas de cinqüenta quilos, e a banha, vendida em latas de dezoito quilos, eram os produtos principais. Dentre tantas histórias que o tio Joanim contava daquela época, uma ficou inesquecível. É a seguinte: O José Castelano era o entregador das encomendas do frigorífico. A cada quinze ou vinte dias levava um caminhão de banha para São Paulo. Como acontece hoje em dia, a sonegação da nota fiscal proporcionava um lucro extra e era prática comum. Um dia - conta o tio Joanim - o José Castelano foi para são Paulo entregar uma carga de banha, sem nota. Não se sabe como, foi denunciado. Ao chegar no local da entrega, depois do seu ajudante ter descarregado menos de dez latas de banha, chegaram os fiscais: - “Cadê a nota?” - indaga um deles, carrancudo. O José Castelano, imperturbável e de uma presença de espírito incrível, respondeu: - “Te acalma, homem! Deixa eu terminar de carregar o caminhão que depois eu tiro a nota”. O auxiliar, que ia levando no ombro uma lata para o depósito, fez meia-volta e recolocou-a no caminhão, onde estava. *** Este modesto trabalho é uma homenagem ao tio Joanim. É para lembrar os velhos tempos quando, na sua motocicleta Monark de doze cavalos, ia pelo interior das regiões colonial e serrana, com sua sacola cheia de temperos e suas facas afiadas, preparar os embutidos de porcos tão apreciados e que hoje não fazem mais. Valorizava tanto a boa companhia e a boa mesa, tinha tanto prazer em viver, tanta alegria no convívio com os amigos, que nada o fazia esmore8 cer. Nos anos e anos que com ele convivi, jamais o ouvi falar mal de alguém ou externar alguma mágoa. Sua filosofia de vida era aproveitar ao máximo, sem prejudicar ninguém: viver e deixar viver, dizia ele, mas de barriga cheia. Nunca esperar muito dos outros, para não sofrer decepções, era o seu conselho: “Scarpa cómoda e goto pien, tor el mondo como che’el vien”.2 Aceitar o mundo como ele vem, este é o segredo! Se a gente pudesse seguir este conselho, quantas úlceras, quantos enfartes se evitariam! Verdadeiro epicurista, para o Tio Joanim uma boa comida se resumia em poucas coisas: o capricho e o prazer em prepará-la; a escolha dos ingredientes de primeira qualidade e o ponto certo do cozimento. Ninguém faz nada bem-feito se não faz por prazer. Nem roubar. Por isso, dizia ele, “desconfie sempre de cozinheira magra. Se ela não gosta de comer bem, provavelmente ela não gosta de cozinhar”. Jamais perdoava alguém deixar queimar uma comida. Para ele, a combinação dos alimentos e dos temperos era o toque artístico do cozinheiro, e o seu maior segredo. O tio Joanin jamais abusava dos temperos. O melhor tempero, dizia ele, é a qualidade do alimento. “Quando se prepara uma galinha caipira, a sua carne é tão gostosa que a gente só usa sal. Já com o frango de granja, insosso, além do sal vai o alho, a pimenta, a sálvia, a manjerona, o toicinho... e mesmo assim, nunca fica bom. Ainda que mal comparando, é como a mulher: a bonita não precisa se produzir. É bonita desde que acorda. Já a feia... as pinturas e os penteados disfarçam a feiúra, fica simpática, agradável, mas nunca bonita. Por ocasião de um churrasco, que prepara com maestria, só usava sal e mais nada. - “Sal e o que mais?” - “Uma salmourinha...” - “Mais nada?” - “Mais nada”. Diante da perplexidade do interlocutor, que esperava segredos bemguardados, acrescentava ele: - “Se quiser, um ou dois dentes de alho...” - “E o segredo, então?” - “O segredo é a carne! Carne e capricho”. - “Quer dizer que o senhor nunca usa tempero?” - “Nunca, é muito tempo!” - dizia ele. “Cada prato tem o seu tempero e o seu acompanhamento. Onde já se viu comer feijão sem o arroz bran2 “Sapato cômodo e barriga cheia; aceitar o mundo como ele vem”. 9 co? O bife, sem a batatinha frita? A ovelha assada sem a batata-doce, o arroz ou o aipim? Goiabada casa bem com o queijo. O mesmo acontece com os temperos: sálvia vai bem nas aves - frangos, perdizes, pombas. Não dá para imaginar um frango à passarinho sem a sálvia não é verdade? Já o vitelo pede alecrim; a feijoada e o porco pedem louro; a pizza pede orégano. Pro meu gosto, não dá para comer língua de gado sem ser recheada com ovos e temperada com dois ou três cravos-da-índia”. Diante da expressão de admiração dos amigos, continuava ele: - “Mas, nada de fanatismos! Se não tem mangerona, vai alecrim, ou sálvia mesmo... ou apenas sal. É mais importante a qualidade da comida e o capricho no seu preparo do que qualquer tempero que se adicione. Completava com os seus famosos ditados: O Franza o Spagna, basta que se magna!”3 Desprezava as comidas rápidas dos Mc Donalds da vida e não admitia os “completos”. “Prato não é coxo onde se mistura todo o tipo de comida, sem distinguir o gosto de nenhuma”. Em Santa Lúcia do Piaí, no alto da serra, antes de descer para Tunas Baixas para carnear porcos e fabricar embutidos, costumava estourar um foguete avisando a sua chegada. Dava tempo para o colono mandar matar a galinha que já estava confinada no “caponér”4 a água, pasto verde e milho, e preparar o tão cobiçado e saboroso brodo para o “filó”. Se o dia era de extravagâncias - carneação, vinho e carnes gordas - à noite a janta deveria ser leve para não prejudicar o sono. “Cena longa, vita curta; cena curta, vita longa”5 - dizia ele, com sabedoria.6 Estes tempos já se foram, assim como o Tio Joanim. A mecanização acabou com a arte ao eliminar o trabalho artesanal... e o tempo acabou com o homem. 3 “Ou França ou Espanha, basta que se coma” - ditado italiano. “Caponér” = gaiola feita de sarrafos onde era confinada a galinha destinada ao consumo da casa. 4 5 “Ceia longa, vida curta; ceia curta, vida longa”. 6 Havia dois locais em que o tio Joanim tinha uma especial preferência para fazer carneações de porcos: na residência do Joanim Rech, interior de Santa Lúcia e na fazenda do Carlos Cesa, um grande “expert” em arte culinária. Dizer que o Carlos Cesa gostava dos embutidos fabricados pelo Joanim já era uma indicação da mais alta qualidade. 10 As suas receitas eram segredo que ele guardava muito bem. Nem a mim, seu sobrinho predileto que sempre o levava em pescarias e caçadas, permitiu que as copiasse. Poucos anos antes de falecer, numa carneação em 11 Santa Lúcia do Piaí, no interior de Caxias do Sul, depois de beber um bom vinho Barbera como tanto apreciava, consentiu gravar uma fita com as suas magistrais revelações. Aqui vão elas. Servirão para tornar a nossa vida mais gostosa ao seguir o seu conselho de não se lamentar, de não chorar o leite derramado, mas aceitar o mundo como ele vem. O que podemos e devemos fazer é aproveitar a vida, sem prejudicar ninguém, usar sapatos confortáveis para não sentir dor nos calos dos pés, e encher a barriga para não passar fome: “scarpa comoda e goto pien...” O autor. 12 “Chimarrão” “O primeiro ou um dos primeiros matadouros de suínos de Caxias do Sul foi do meu falecido avô paterno, Giuseppe Festugato (nonno Bepi), lá no Bairro de Lourdes. Devido à imensa prática que havia adquirido, o tio Joanim era considerado o melhor carneador do frigorífico. Depois do porco abatido, pelado e dependurado, em menos de um minuto ele abria o animal, removia todas as vísceras desde o ânus à boca, deixando a carcaça limpinha. A faca, na sua mão, “alumiava”, como diziam. Como éramos muito amigos - sempre que podia eu o levava comigo em acampamentos de caça convidei-o para fazer a carneação do porco que ganhei do Antônio Doce, de presente. Num sábado de sol, às margens do arroio que cruza a propriedade do Sirilo Sartori, fizemos a carneação. Conosco foi também o Valter Mirim, nosso leiteiro e amigo, para aprender com o meu tio como é que se carneia um porco. Sempre brincalhão, o Valter alegrava qualquer ambiente em que estivesse presente. O pessoal gostava de brincar com ele, dizendo que haviam encontrado, no leite, um cardume de lambaris. Pura gozação, pois o Valter Mirim vendia o melhor leite de Torres: nos seus tarros de alumínio sempre havia dois dedos de nata amarelada sobrenadando, logo transformada em saborosíssima manteiga. Hoje, deve estar no céu, contando piadas para as santas e fazendo churrasco para os anjos. Com o porco carneado e pelado, foi separada a costela inteira, temperada com sal, pimenta-do-reino, vinagre e alho, e colocada bem alto sobre o braseiro: era o nosso almoço. O rádio, a todo o volume, sintonizado na Rádio Maristela, alegrava o ambiente com músicas nativas. Deixei o pessoal trabalhando e me preparei para o meu passatempo predileto: o costumeiro tiro-ao-alvo. Sem limite na compra de balas calibre 38, como era na época e, principalmente, mais baratas como sempre parecem ser os bens que adquirimos no passado (a distância diminui estaturas), gastava caixas e mais caixas praticando tiro-ao-alvo de revólver semanalmente. Por isso, não era de admirar ter adquirido excelente pontaria. Longe uns quinze passos, de cada dez tiros dados em direção a uma tampinha de garrafa de cerveja acertava nove. Olho bom e pulso firme, dizia o velho “Capitão” Jovino, avô da minha esposa. E muito prazer em acertar, acrescento eu. Quem faz o que 13 gosta, geralmente faz bem feito, tanto o bem como o mal: mentir, roubar ou matar. Depois de acertar em diminutos alvos, pedi para a Iara, então namorada, segurar uma garrafa de cerveja vazia a uns dez passos de distância. Já havia feito esta loucura inúmeras vezes. (Não sei por que, depois de casada, ficou com medo e não quis segurar mais...) Até a minha futura sogra segurou, certa feita, em Cambará do Sul, na fazendo de um parente, um copinho de cachaça vazio. Foi nesta ocasião que eu aparei as unhas da bela filha do Carmindo, a Renilda, à bala! Entusiasmada pelo clima de festa, naquele dia de sol, churrasco e cerveja, fez questão de segurar um cigarro. Era Holywood, ainda recordo. Ao fazer a pontaria, percebi que ela tremia levemente. Depois dela apoiar a mão num pessegueiro, o alvo firme, detonei o tiro. A bala atingiu perto da brasa e ela, numa demonstração de coragem (ou loucura), com o isqueiro acendeu o toco que sobrou. “Quero ver acertar agora!” desafiou. Novo tiro e o susto que me esfriou o estômago: vi quando sacudiu a mão, assustada. A bala havia atingido o cigarro junto ao filtro, perto dos dedos, atorando suas unhas tão compridas como era moda na época, sem tocar na pele. Eu tinha tanta confiança que parecia colocar a bala no alvo com a mão, tal o treino que havia adquirido. Hoje, jamais faria isso: o pulso, o olho e a cabeça já não são os mesmos. É loucura própria da juventude que, como outras, passa e não volta mais. Quando o pessoal viu a Iara segurando a garrafa, tentou dissuadirme. Porém, depois de ver a precisão dos tiros, calaram curiosos. O único cuidado era com os estilhaços do vidro. Ela precisava proteger o rosto com uma mão, para evitar algum ferimento. Lá pelas tantas, chamei a Iara de lado e combinei a brincadeira. Peguei uma folhinha de eucalipto e, com uma cápsula vazia fiz um orifício bem no centro. Depois, pedi para cruzar o arroio e se postar na outra margem, a uns quinze ou vinte metros de distância. Não precisa dizer que todo o mundo queria me dissuadir da loucura. O tio Joanim chegou a apelar para o sentimentalismo: “Se tu gostas mesmo de mim, não faça isso!” Porém, como eu era o dono da festa, aliás, o dono do porco, mandei a Iara afastarse cada vez para mais longe. Quando estava a uns trinta metros e nem se enxergava direito a folhinha, levantei o revólver, apontei a uns cem metros acima dela, nas nuvens e, debaixo de um silêncio sepulcral, detonei o tiro. Quando chegou perto de nós e mostrou o alvo, um outro tipo de silêncio, o de admiração e respeito, baixou sobre o grupo: havia um perfeito furo bem no meio da diminuta folhinha de eucalipto! 14 Como recordação e prova do acontecido, o falecido tio Joanim guardou a folha na carteira durante o resto da sua vida, como uma relíquia. Estava tão entusiasmado, tão admirado, que nunca tive a coragem de contar-lhe a verdade. Por que acabar com o encantamento, se é ele quem dá colorido à nossa vida?”7 7 FESTUGATO, Eduardo. Recorrida - Memórias de um Médico do Interior. Caxias do Sul: Gráfica da Universidade de Caxias do Sul, 1996, p. 125. 15 A mesa das refeições (Ao Paulo Roberto dos Santos) Quando criança, na época dos caquis e figos maduros, nosso quintal era um viveiro de pássaros barulhentos. Dezenas de sanhaçus se alimentavam dessas frutas, enchendo o ar com seus cantos de uma nota só, parecidos com um chiado, porém melodiosos. Os galhos dos caquizais sem folhas, desnudados pelo outono, cobriam-se de bolinhas azuis feitas de penas, que se alimentavam de outras bolas maiores e vermelhas - os translúcidos caquis de manteiga. Ao serem abatidos, com uma silenciosa carabina de pressão, via-se a gordura amarela sob suas penas azuladas. A caça e a limpeza eram por nossa conta. Depois, a mãe se encarregava de fritá-los na panela de ferro, tendo cada um, dentro da barriga, um pedacinho de toicinho enrolado numa folha de sálvia. Não me lembro de comida mais gostosa... *** Matéria, vida e alma, três degraus como a Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Ou como céu, inferno e purgatório. Primeiro, veio a matéria, como o Pai; depois, a vida, como o Filho; e por fim, a alma, como o Espírito Santo. O homem é um animal com alma. Entretanto, a sua condição animalesca o onera com o peso dos instintos. Como o porco, o homem nasce, se alimenta, reproduz e morre. Mas, além de muitas outras diferenças, como a impossibilidade de olhar para cima, para o alto, devido à rigidez do pescoço, o que mais nos diferencia dele é que “el cerdo come hasta los hijos” (J. Hernández). Nós, mesmo sendo canibais como na verdade somos - um vive devorando o outro, na árdua disputa por um lugar ao sol - quando acossados pelo risco existencial da fome, livramos, ao menos, os filhos. Tudo o que tem vida pode nos servir de alimento. Por que se pode comer peixe e não passarinho? Risco de extinção? Mentira! O interesse econômico é que determina quem e o que será extinto.8 Agressão à beleza? Então, por que ceifar o trigo maduro, lago de ouro ondulado pelo vento? “Se o boi e o cavalo não tivessem valor econômico para o homem, já teriam sido extintos ou talvez sobrariam alguns tristes exemplares em zoológicos.” - José Lutzemberger. 8 16 O que diferencia os seres vivos, entre tantas outras coisas, são os seus hábitos alimentares. Há os que comem madeira e papel, como o cupim e a barata; alpiste, como os passarinhos; lixo, como o porco e o cachorro; carniça, como o abutre; flores como as abelhas e os colibris. Outros, alimentamse de caviar, como o homem; ambrosia, como os deuses. Há também os que vivem de amores, como as mães e os amantes, ou de beleza e de sonhos, como os poetas. Porém, mais importante do que aquilo que come, é como come. Diga-me como comes e te direi quem és. Basta oferecer comida a um grupo, para descobrir se são animais, homens ou deuses. Os animais devoram e tomam água; os homens comem e bebem cerveja; os deuses se banqueteiam e prelibam vinho. A mais eficiente maneira que os gregos acharam para humanizar os seus deuses foi introduzir os banquetes no Olimpo. A voracidade é um sentimento essencial a todo o ser vivo. No homem, nasce por ocasião da fecundação do óvulo pelo espermatozóide quando devora as reservas alimentares do ovo, e só termina com a morte. Até certo ponto é benéfica, porque faz parte do instinto de conservação. Comer é incorporar matéria, é viver: quem come, vive; quem não come, morre! O fundamento da voracidade é a agressividade, que nada mais é do que um potencial para a agressão a serviço da espécie. Impossível conceber vida sem ela. Porém, nos seres humanos, é convenientemente disfarçada para encobrir a feiúra desse impulso tão primitivo, comum a todos os animais, desde a lombriga ao Papa. A racionalização é importante para ocultar a crueldade que há por detrás das condutas humanas e que alimentam os instintos básicos, como o de se alimentar. Fica patente desde a amamentação, quando o nenê, literalmente, devora a mãe ao sugar o seu leite, e só termina quando o indivíduo falece. Não é por nada que um grande sinal de doença é a inapetência. Na estruturação da nossa personalidade, a crueldade é convenientemente disfarçada em racionalização ou sublimação. É pela racionalização que o psiquismo administra o fato de ter que matar para viver, explicando condutas aparentemente cruéis, como o temor das famílias pobres de que o vovô demore muito a morrer, aumentando, assustadoramente, a conta do hospital. Dizem, e é verdade, que é melhor para ele ficar na sua casa onde é mais bem-atendido, com a sua comidinha predileta e, principalmente, com o carinho da família.9 Também justifica a criação de um animal para servir de 9 Segundo Richard Leackey, o segredo da sobrevivência de uma espécie é fazer com o que é bom para o indivíduo seja bom para o grupo: comer, copular. Na crônica 17 alimento e ameniza, em parte, o horror dos matadouros e a morte dos que nos servem de consumo. Um dos instrumentos desta racionalização é a ritualística, que é o conjunto de regras, códigos, usos, modas, cultos, cerimônias, costumes que cercam a realização de determinado ato: nascimento - iniciação, batizado; alimentação - colheita, vindima, festa; maturidade - “debut”; casamento acasalamento, fecundação. E o mais rico de todos, o ritual da morte, que em alguns povos ficou mais importante do que a própria vida, como os túmulos dos faraós. Com a ritualização esconde-se, convenientemente, a crueza dos instintos básicos do homem. Ficam mais digeríveis, mais civilizados. Quem irá perceber a crueldade que existe no ato de comer um galeto que até há bem pouco tempo estava vivo, num alegre almoço dominical da colônia italiana? Nele, a mesa da refeição é promovida a altar de comunhão, com sua alegria e seus cânticos. Mesmo as almas mais sensíveis hão de convir que comer significa matar. Mas, diferentemente dos demais animais, o homem divide o seu alimento no meio do seu grupo familiar ou social, em forma de refeição em conjunto. “Dividir e não acumular foi o que nos fez humanos!” adverte Leakey. 10 É uma maneira de racionalizar a crueldade implícita que há na voracidade inata que nos mantém vivos, até chegar à sublimação, na Santa Comunhão onde se come a carne e se bebe o sangue de Cristo, a forma mais preciosa e mais elaborada que a mente humana descobriu para atenuar o canibalismo. acima, o que é bom para o vovozinho (ficar em casa em vez de ir para o hospital), é bom também para a família (evita a ruína econômica). Freud confirma isso ao ensinar que a finalidade da vida é a busca do prazer que existe na satisfação de um instinto. E que a violência nada mais é do que um instinto contrariado. Se comer e copular fosse um sacrifício, nós já teríamos sido extintos há milhões de anos. Os maiores crápulas da história tinham problemas sexuais. Sob este prisma, talvez o Viagra venha a diminuir a violência na humanidade... 10 Os animais jamais dividem o alimento, mesmo vendo o pai morrer de fome. Eles simplesmente abandonam as sobras depois da barriga cheia. A exceção é a mãe no puerpério, a única ocasião em que o instinto materno prevalece sobre a fome, ambos a serviço do maior de todos eles: o da conservação. 18 Agressividade na alimentação e especialização alimentar Quando clinicava em Torres, entre tantos animais que ganhei, presentes de clientes do interior, havia um cabritinho de poucas semanas. Na época, eu era solteiro. Sem lugar para deixá-lo, dei-o de presente à noiva, a Iara, que o batizou com o nome de Beco. Como era muito novinho, durante os primeiros meses de vida foi alimentado, por ela, com leite na mamadeira. Quando o Beco estava adulto - um belo cabrito bem tratado, pêlo lustroso do milho, carnudo e gordo que me despertava idéias assassinas deveria ser castrado para, mais tarde, ser carneado e comido. Quem disse que a Iara permitia? Seria mais fácil terminar com o noivado do que deixar que alguém molestasse o Beco! *** Para viver é preciso matar. Todos os animais, inclusive o homem, alimentam-se de seres vivos ou de seus subprodutos. O próprio açúcar é produto da cana. Para obtê-lo, é preciso que ela morra esmagada na moenda. O leite, tirado da vaca, faz falta ao terneiro. O mel é roubado da abelha, o seu alimento do inverno. Só os vegetais sintetizam os seus alimentos através das raízes e das folhas. O ato de comer é tão agressivo que a gente não come os seres muito conhecidos, que ingressaram no rol dos nossos afetos, como o animalzinho de estimação criado guacho, com a mamadeira. Pelo mesmo motivo, ao cardiologista repugna comer corações. É quase um tabu. Se a população assistisse uma carneação bovina, com seus horrores e seu sangue, muitos deixariam de comer carne de gado, tão apreciada. A carneação é infinitamente mais cruel do que uma caçada, porque tolhe qualquer esperança da fuga. E é a esperança que nos faz viver ao afastar, sempre para mais longe, as nuvens negras que toldam o horizonte, prenunciando o nosso entardecer. 19 Carneação Ojeriza alimentar Um infalível sinal de neurose é a ojeriza por determinadas comidas. Quanto mais complicado o indivíduo, maior é a lista dos alimentos que detesta. Até o ponto máximo da anorexia psicótica, a abulemia, quando é necessária a nutrição parenteral para não morrer de inanição. A barata, o animal vivo mais velho da face da Terra, provavelmente contemporânea dos dinossauros, dura há tanto tempo porque come de tudo, desde o filé ao lixo. O coala australiano, que vivia de brotos de eucalipto, com a derrubada das matas, está quase extinto. Não conseguiu habituar-se com outro tipo de comida. Excesso de especialização alimentar é uma vulnerabilidade muito perigosa. Se “os sobreviventes dos Andes” tivessem escrúpulos em comer carne humana, não seriam sobreviventes. Papillon sobrevi- 20 veu nas masmorras insalubres da Guiana, porque não tinha nojo de comer baratas e lacraias. A repulsa em comer um ser vivo conhecido se estende para o simbolismo da vida qüotidiana. É muito mais fácil “comer” um adversário desconhecido do que um do nosso relacionamento. As violências feitas contra desconhecidos são mais fáceis de serem manuseadas pelo psiquismo e melhor aceitas. O motivo é muito simples: não causam nenhum sentimento de culpa, nenhum remorso. É por este motivo que, nas grandes cidades, onde a luta pela vida é mais renhida, devido à competição exacerbada causada pela superpopulação, é interessante e desejável desconhecer até os vizinhos do apartamento ao lado. Assim, fica mais fácil lidar com a agressividade explícita e implícita que há na concorrência, na disputa pelo poder. Trai-se menos os irmãos do que os estranhos. Neste caso, o sentimento de culpa é menor. A última casa a ser roubada é a dos vizinhos, amigos e parentes, porque o sentimento de clã (solidariedade na família, bando e horda) - é muito forte na espécie humana. Este sentimento de clã que visa beneficiar parentes próximos e que existe também nos animais, não tem nenhum segredo. É natural eu proteger o meu irmão, pois ele reparte, comigo, metade dos genes que herdei dos meus pais; já o meu primo, um oitavo. Provavelmente não existe nenhum indivíduo, neste mundo, que não tenha um gene comum com os outros. Criase uma hierarquia de valores, visando a preservação: “Eu, contra o meu irmão; eu e o meu irmão, contra o meu primo; eu, meu irmão e o meu primo, contra o meu vizinho; eu, meu irmão, meu primo e o meu vizinho, contra os outros” diz a sabedoria árabe. Mais importante do que evitar o sentimento de culpa causado pela agressão é a identificação do inimigo. Só assim poderemos nos proteger da ansiedade gerada pelo medo do desconhecido, o nosso arquiinimigo. Acontece quando somos crianças e dividimos o mundo bom e mau, mocinho e bandido. Um exemplo elucidativo da exacerbação da agressividade advinda do aumento da concorrência é dado pela mudança radical da ética profissional. Quando o número de médicos não era tão grande, quando não havia tanta concorrência como existe atualmente, nenhum deles cobrava honorários profissionais de colegas nem dos seus dependentes. Hoje em dia, nem as mães escapam! A verdade é que é muito fácil ser magnânimo e cavalheiro quando se tem a barriga cheia. Na prática, a fome termina com a nobreza, a moral, o 21 altruísmo, as leis, os códigos e a ética. Acaba até com a ecologia: “cuando la hambre se siente, el hombre le clava el diente a todo lo que se mueve”.11 É a necessidade premente de produzir cada vez mais alimentos para uma população sempre mais faminta, que tornou o homem o predador mor do universo ao exterminar as baleias e os bisontes, destruir as florestas e os campos, drenar os banhados, aterrar o mar. A humanidade moderna precisa cada vez mais de grãos para se alimentar, muito mais fáceis e baratos de serem produzidos do que as carnes, tornando o vegetarianismo altamente conveniente. As passarinhadas que os imigrantes italianos preparavam na época do inverno, aliás gostosíssimas, foram aprendidas por necessidade de subsistência numa terra que tanto suor exigia para extrair dela o sustento. Na colônia italiana, há apenas cinqüenta anos, só se comia carne de gado uma ou duas vezes por mês, quando a gente ou algum vizinho carneava uma rês, o que era raro. Além da pobreza - o solo era todo aproveitado para produzir grãos -, não existiam os refrigeradores. A imoralidade desta prática - caça aos passarinhos - se fundamenta no risco de extinção destes animais, logo descaracterizada diante da possibilidade de um manejo inteligente da fauna, multiplicando os indivíduos como o homem fez com o galo silvestre, o porco, o boi e todos os animais domésticos que há poucos anos eram selvagens. Se o grande ecologista José Lutzemberger deparasse com um bando de caturritas caindo sobre a sua lavoura de milho, plantada com o sacrifício dos agricultores pobres, certamente não condenaria a sua caça. As passarinhadas da zona colonial italiana do nosso estado eram verdadeiras comunhões de parentes e vizinhos. Reuniam-se depois da missa dominical, nas cantinas, ao redor da mesa, cantando, bebendo, jogando cartas - bisca, escova, escovão, trissete, truco, canastra - e comendo passarinhos com polenta. Os preferidos eram os tico-ticos, sanhaçus, rolinhas e sabiás amarelos de graxa de tanto comer frutas domésticas e nativas e, principalmente, os produtos das suadas lavouras de subsistência, plantadas nas mais íngremes encostas pedregosas da serra, sem maquinaria nenhuma, transportando a colheita nas costas. Depois de depenados e limpos, eram enfiados em espetos finos, alternando-os com fatias de toicinho e folhas de sálvia. Ficavam girando lenta e demoradamente ao lado do brasedo, tendo, por baixo, uma fôrma de lata recoberta com fatias de polenta onde caíam os pingos da gordura, misturando o seu aroma com o aroma do vinho da cantina. É o me“Quando a fome se sente, o homem crava o dente em tudo o que se move”. HERNÁNDEZ, José, Martín Fierro. 11 22 narosto. Acompanhava o radite temperado com alho, vinagre, sal e torresmo ou toicinho frito, tudo regado com o generoso vinho tinto e cantorias italianas: Il Cacciatore del Bosco, La Bella Violeta, El Capitan de la Companhia, Mérica, La Virginella, Volete Sapere e tantas outras que levavam os corações para além do mar distante, rever, no pensamento, suas longínquas vilas natais, seus lares, seus parentes... enchendo de água os olhos e enrouquecendo vozes de emoção. Pombas, jacus, inhambus e os apreciados becaccini (narcejas) eram fritos na panela de ferro com banha de porco, sobre o fogão à lenha, e refogados com cebola e tomate, preparando os gostosíssimos molhos para spaghetti, tortéi, ravioli, maltaiai, tagliarini que só de lembrá-los, a boca se enche de água e o coração... de saudade. Esta repugnância em alimentar-se de afetos, programada no código genético da célula animal, é fundamental para a preservação das espécies. Faz com que o canibalismo seja execrado pela maioria dos animais, porque comer o semelhante é o mesmo que comer a si mesmo. A autofagia não existe nos indivíduos normais, com exceção do lagarto que, com fome, come a própria cauda. Os povos canibais comiam seus inimigos como vingança, ou como ritual mágico para incorporar suas qualidades, raramento para se nutrirem. O fundamento do tabu do incesto e a instituição da exogamia, segundo Freud, fundamentam-se no canibalismo dos filhos que se reuniram para devorar o pai com a intenção de identificar-se com ele ao incorporar uma parte do seu corpo. “Entretanto, depois de terem satisfeito o seu ódio matando o pai, surgiram os sentimentos carinhosos - que estavam reprimidos - dando lugar ao remorso e ao sentimento de culpa. O pai, morto, adquiriu um poder ainda maior do que quando estava vivo. Os irmãos, renunciaram a recolher os frutos do seu crime, abstendo-se de ter contato sexual com as mulheres da horda. Daí nasceu o tabu do incesto e a instituição da exogamia”.12 As espécies francamente canibais já devem ter sido extintas. O horror ao canibalismo e à autofagia explica a repulsa que as mulheres têm pelas carnes malpassadas, sangrentas, repulsa esta francamente exacerbada durante o período gestacional. Em trinta anos de exercício da obstetrícia, vi poucas mulheres grávidas apreciarem carnes malpassadas. O sangue, para a maioria delas, ficou ligado ao sentimento de pavor, ou pelo 12 GRIMBERG, Leon. Culpa y Depresion - Estudio Psicoanalitico. 2. ed. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1971, p. 19. 23 menos medo,13 ao constatar a primeira menstruação, acontecimento este freqüentemente mal resolvido por pais despreparados diante da sexualidade nascente das filhas. O sangue animal é muito parecido com o humano. Comer sangue é comer a si mesmo. Situação parecida acontece com o menino que foi assustado pela mãe por ocasião do seu primeiro ferimento. O pânico que lhe foi condicionado fará com que deteste, por toda a vida, carnes malpassadas: “Cachorro mordido de cobra, tem medo até de lingüiça” ou “cachorro queimado por água quente, tem medo de água fria” diz o gaúcho do interior, na sua sabedoria de xucro, sem nunca ter lido Freud. O vegetarianismo não deixa de ser um exemplo de repulsa à agressão ao conhecido, talvez uma forma mais evoluída de perfeição, de espiritualização do ser humano. Os vegetais não têm individualidade como os animais. Estes, para dificultar a identificação, quando são levados à mesa, vão, geralmente, sem as cabeças. A cabeça é a parte de um corpo que mais o identifica, que causa maior repulsa para ser comida. Há muita gente que não come galinha, mesmo estando morrendo de fome; outros comem somente o peito - sem forma definida que o caracterize, apenas um pedaço de carne branca, sem sangue - mas não existe ninguém que não goste de batatinhas fritas. Acontece que o alimento deve ser generalizado e nunca particularizado. Come-se verduras e não o boi Ferdinando, porque ao individualizar este animal, incluímo-lo no rol dos nossos afetos. Em escala muito menor, é como comer um filho. Quando o nosso antepassado troglodita aprendeu que um ser vivo morria ao perder o seu sangue, associou este sangue à vida e aos seus mistérios mais profundos. Aí está a origem dos sacrifícios sangrentos, desde os povos bíblicos até os maias, certamente a civilização mais sanguinária de todas as Américas, chegando ao ponto da destruição total.14 Curiosamente, eram preferentemente vegetarianos. 13 Antes do ano de 1800 da nossa era, mais de cinqüenta por cento das mortes de parturientes eram devidas às hemorragias. Devido a isto e à infecção, é que a cesariana terapêutica (e não com finalidade religiosa de batizar o feto, como permitia a lei de Numa Pompílio) tem pouco mais de um século. 14 Os maias fizeram as guerras contra seus vizinhos mesmo sem necessidade de conquistas territoriais, motivados apenas por interesses místico-religiosos. Sedentos de sangue humano, arrasaram outros povos, soldados, camponeses e cidadãos pacatos, sem piedade e, depois de muita tortura, sangravam os seus Reis em rituais terríveis. No oitavo século da nossa era, foram arrasados, e a sua capital Dospila, sepultada pela mata numa mortalha de terra, folhas podres e árvores. 24 Especialização - um beco sem saída Parece que toda a evolução das espécies se baseia na especialização. Nas comunidades em nível de horda, havia somente catadores de alimento, presumivelmente sem líderes. A moderna antropologia se inclina para a idéia da ausência de líderes nas comunidades primitivas. O sistema social era regido pelo matriarcalismo: o domínio do estrogênio (amor e coração) no lugar da testosterona (músculo e cérebro), sem disputas nem agressões, o verdadeiro paraíso terrestre. O crescimento demográfico levou à contínua divisão do trabalho. De pagé a especialista transcorreram milhões de anos. Entretanto, a especialização leva uma espécie a um beco sem saída. O coala australiano, que se especializou em comer brotos de eucalipto, com a derrubada das matas, quase desapareceu da face da terra. Não conseguiu se adaptar a nenhum outro alimento. Entre as abelhas, a morte da rainha significa a morte da colmeia, pois ela é a única que tem a capacidade de procriar. O mesmo acontece com as formigas e os cupins. Vem confirmar a afirmativa de William Asmar: “Quanto mais o Homem cria estruturas ordenadas artificiais (fuga da natureza), mais desorganiza estruturas ordenadas naturais. Quanto mais luta pela ordem, mais traz a desordem. Quanto mais luta pela ‘vida’, mais traz a ‘morte”.15 Todos os animais no topo da especialização estão em risco de extinção. A crescente dificuldade na obtenção do néctar na natureza acabará com os beija-flores. Os peixes de escamas, mais especializados que os de couro, suportam muito mal as condições pobres em oxigênio. Todo o pescador sabe que um jundiá vive muito mais tempo fora da água do que uma truta. A barata e o homem sobreviveram exatamente por não serem especialistas. O índio sobrevive na selva, porque come larvas e raízes; o homem moderno nem sabe como encontrá-las. Isso vem confirmar as palavras de Richard E. Leakey no seu livro O Povo do Lago: “O verdadeiro segredo evolutivo da humanidade sempre foi conservar seus recursos biológicos simplificados e adaptáveis, ao invés de se especializar numa única direção sem saída”. 15 ASMAR, William. Por que o homem destrói o meio ambiente. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991, p. 95. 25 O homem é um animal onívoro. Seus dentes comprovam esta verdade biológica: há caninos poderosos guarnecendo a sua boca, feitos para rasgar. Mas, também há molares, semelhantes aos dos ruminantes que, como mós de moinhos, moem vegetais e sementes. O vegetarianismo puro é um exagero, com muito de neurose onde se misturam patofobia com messianismo, esquecendo que até Jesus Cristo ceou carne de cordeiro. É uma especialização alimentar perigosa para a sobrevivência da espécie humana. 26 O direito de matar Os animais matam por dois motivos apenas: fome e medo. Os homens, além da fome (comer ou ocupar espaços) e do medo (defesa, sacrifícios), matam também por ódio, vingança, roubo, castigo e até por prazer. Impossível separar da caça esportiva o sadismo, que pode até inexistir na caça de subsistência e mesmo na profissional. A maior especialização do cérebro humano foi no sentido de descobrir maneiras cada vez mais eficientes de matar, desde o dente ao veneno, desde a pólvora à bomba atômica. Há os que matam por engano e há os que matam por pena. Os milhões de judeus assassinados foram vítimas da loucura. Caim matou por inveja; Otelo, movido por ciúme. As desgraças dos outros podem ser as nossas alegrias. A vida se manifesta de mil formas diversas, como um caleidoscópio multicor. É alma de muitos corpos que despe e veste como uma roupa. Ora é o verme que viceja na matéria decomposta, ora é o condor que sobrevoa os píncaros dos Andes. A duração da vida é inversamente proporcional ao seu brilho. Raros são os homens que conseguem preservar a juventude até a idade avançada. Cristo morreu aos trinta e três anos de idade; o maior dos faraós, aos dezoito. Dos homens que deixaram marca na História, raros ultrapassaram os quarenta anos de vida. Envelhecer é perder brilho ao substituir, gradativamente, a força pela experiência, a coragem pela prudência e o romantismo pelo juízo. Se Leônidas não fosse jovem, não teria morrido, heroicamente, na Termópilas, na frente dos seus poucos soldados gregos, lutando contra vinte mil inimigos persas. Mas, também não seria lembrado. Milhares de anos vive a sequóia gigante, poucas dias dura uma orquídea. A vida é como uma mulher muito vaidosa que põe um vestido agora, para trocar logo em seguida. Parece que o Criador deu a cada ser vivo, animal ou vegetal, uma quota de beleza para gastar: uns gastam a sua em poucos dias, como o colibri revoando num jardim florido; outros, demoram quase cem anos, como a tartaruga, tristemente escondida no escuro, debaixo de uma pedra do mesmo jardim. Que desígnios divinos, tão misteriosos, envolvem na morte de uma criança? 27 O boi e a alface perecem para que nós vivamos. Por que morreu Cristo senão para nos salvar? E o Seu corpo não é devorado e o Seu sangue não é bebido quotidianamente na Santa Comunhão? Mesmo que a maioria dos ecologistas não concordem, há uma sagrada hierarquia de valores. Não era, José, o filho predileto de Jacó? Até Deus tem suas preferências: “Tu és o meu filho muito amado em quem pus todas as minhas complacências”. Qual é o pai que não é complacente com as diabruras do filho dileto? Há vidas que são muito mais valiosas do que outras. A afirmação de que todas elas são importantes na cadeia biológica está correta, mas o valor de cada uma depende da ótica em que é vista: para a galinha choca, a vida mais preciosa é a do seu pintinho, talvez na mesma intensidade que tem a aranha pelos seus filhotes. Bilhões de espécies de vida desapareceram, extintas que foram pela Seleção Natural. A Seleção Artificial, filha da Inteligência, poderá interferir beneficamente no equilíbrio ecológico da Terra. Como uma faca, dependerá da mão que a maneja. O homem não precisa dos seus predadores para limitar seu crescimento populacional: basta-lhe o simples controle da fertilidade. Assim, a guerra e a doença poderiam ser perfeitamente dispensadas. Não é difícil entender que os gafanhotos, que destroem lavouras inteiras, as formigas carnívoras e até os ratos que consomem uma quinta parte da produção de alimentos de um mundo, onde há milhões de pessoas morrendo de fome, possam servir de fontes de proteína animal. O Salvatore, do filme “O Nome da Rosa”, não é o único que aprecia comer ratos “grossi cosi”. Há muita gente que encontra neles uma iguaria finíssima. Gafanhotos alimentavam, outrora, eremitas no deserto, e a formiga é um prato bastante apreciado por certas culturas orientais. A cozinha mais variada sempre foi a dos povos superpopulosos, porque a fome obriga a comer de tudo. Mas, até hoje, a minha insignificante sabedoria não alcança o porquê da existência das cobras peçonhentas e dos animais causadores dos sofrimentos e das doenças. Talvez por eu ter assistido, há muitos anos, a morte de um menino picado por uma jararaca. O drama é inesquecível: o sangue flui por todos os poros, por todos os orifícios do corpo, até pelas picadas das agulhas. Aparece no suor, manchando o lençol de vermelho; na urina, na saliva e até na própria lágrima! Em cada gota perdida, um pouco de vida se esvai. “Sangue é vida! Como seria fácil operar se não houvesse sangue!” dizia o falecido Dr. Benito Rota ao comentar a ansiedade causada pelas hemorragias transoperatórias. Não consigo entender por que preservar e não exterminar os vírus que tornam crianças paralíticas, que matam seus próprios hospedeiros como 28 faz o vírus da AIDS, o bacilo do tétano e tantos outros. Não me seduzem estes seres programados para matar. Este instinto mortal é uma obsessão tão cega que chega a ser suicida: mesmo morrendo, não deixam de matar. É escorpião que não consegue resistir à compulsão patológica de picar o sapo que o transporta na travessia do rio profundo. Morre o sapo e o escorpião com ele! Não quero saber se a Ciência vai extrair insulina das amebas patogênicas como garante o Dr. João Meneghini. Antes que ataquem o Dudu, a Júlia ou o Pedrinho, meus netos, e lhes causem Amebíase Intestinal ou Hepática, quero que morram todas as amebas do mundo, pois não valem nem as unhas dos seus dedos mindinhos! 29 “O diabo tira os dentes, mas Deus alarga as goelas” A primeira lei natural de todos os seres vivos é esta: “Para viver é preciso comer”. Tanto é verdade, que ninguém desconhece aquela piada do protuguês que queria ensinar o seu burro a viver sem comida: quando estava quase acostumado, morreu. Os vegetais alimentam-se através das raízes e das folhas. As amebas englobam a sua comida. A maioria dos vermes aproveita alimentos já elaborados no hospedeiros, ou sugam o seu sangue como fazem os parasitas externos: pulgas, piolhos, carrapatos, sanguessugas. Os mamíferos nutrem-se de alimentos sólidos. Apenas o sangue e o mel são líquidos em estado natural. E ovos, mas em pequena quantidade e somente na época dos ninhos. O leite só é usado na primeira infância, portanto, fora do alcance dos adultos.16 Os demais alimentos precisam ser triturados e mastigados. Para estes seres, perder os dentes significa morrer. Atrás de cada perda de função há uma tragédia: a tragédia de não justificar a própria existência. A faca que não corta e o carro que não anda são inúteis. O pasarinho que quebrou a asa e o cavalo, a pata, morrem e desaparecem sem fazer falta, porque não mais justificam os seus viveres que é voar e correr. Nada é mais triste que um casal sem filhos, nem mais repelente do que uma boca escura, sem dentes. “Para um homem sem dinheiro, até o rastro é triste” dizia o saudoso Enedir Pereira de Quadros. *** Menopausa é o período de vida que vai do fim da idade fértil até a morte da mulher. Por significar a perda da função procriativa com sujestão de ocaso, quase sempre causa depressão. 16 O falecido Dr. Paschoal Gorése tinha uma teoria muito interessante sobre o câncer. O homem é o único animal que consome leite depois de adulto. Este alimento estimula a reprodução celular indispensável ao crescimento dos mamíferos jovens. Segundo ele, o leite, usado na fase adulta, continuaria estimulando a divisão celular, originando as neoplasias. O adultos devem tomar vinho! - dizia ele. E, algumas vezes, água. 30 A menopausa só existe na espécie humana e é relativamente recente.17 Os animais não têm menopausa, porque morrem antes de chegar à idade em que acontece este fenômeno biológico do envelhecimento dos ovários. A égua, a cadela, a vaca, a macaca e a maioria das fêmeas procriam até a véspera da morte. A única fêmea que chega à idade provecta de sobreviver à falência dos seus ovários é a mulher atual. E por um único motivo: consegue alimentar-se depois de perder os dentes. A menopausa é uma conquista da evolução tecnológica. Sem ela, a grande maioria de nós não estaríamos aqui neste mundo. Uma vez que evoluir significa burlar leis naturais, o bicho homem, graças a uma força tão poderosa quão misteriosa - a inteligência - conseguiu contornar tambén esta que manda morrer ao ficar sem dentes. Graças às descobertas e às invenções, tornou-se possível viver mesmo desdentado. O fogo, a faca, o pilão e as ciências biológicas conseguiram duplicar ou quiçá triplicar a vida média do homem. O primeiro marco, o maior de todos, foi a descoberta do fogo. Com ele, o nosso antepassado conseguiu amolecer alimentos e até torná-los pastosos ou líquidos, permitindo a deglutição aos desdentados. Descobriu as papas, as sopas, os cremes, e a fervura amoleceu carnes e tubérculos. A faca de pedra, no longínquo neolítico inferior, permitiu que um desdentado pudesse comer uma caça ou uma fruta, reduzindo-a a pequenas porções possíveis de serem engolidas sem mastigar. Originou o talher, o verdadeiro símbolo da cultura. Permitiu a divisão da presa a todos os membros do grupo, mesmo aos que não tinham dentes para arrancar o seu pedaço sangrento de carne. Daí nasceu o altruísmo! “Dividir e não juntar, foi o que nos fez humanos!” (Richard Leackey - O Povo do Lago). O talher foi a semente da etiqueta, certamente invenção de velhos que, sem dentes, se viram obrigados a ser hábeis com garfos e facas. A maioria das invenções foi motivada pela necessidade, exceto a roupa. A roupa é filha da vergonha e da vaidade e não do frio. Se não fosse assim, nos ambientes aquecidos andaríamos nús. É por isso que as crianças pequenas não lhe dão importância, nem os loucos nem os anjos nem os nudistas. As vestimentas, nas pinturas de Miguel Ângelo, foram mandadas pintar por papas indecentes (os inocentes não têm vergonha nem pudor), contaminados pelo pecado de quererem ser eternos como Deus. 18 O maior 17 A antropologia calcula que a vida média da mulher, na pré-história, não chegava aos vinte e cinco anos. Nenhuma vivia até a menopausa. 18 As obras faraônicas foram erigidas para perpetuar memórias. 31 castigo para o orgulhoso é a vergonha. É por este motivo que a literatura infantil, a mais verdadeira das literaturas, fez o orgulhoso rei andar nu. O marco mais curioso e que aparece em quase toda as culturas é o pilão. Se a proporção de idosos indica o grau de evolução de um povo, nas comunidades atrasadas o pilão é o fiel dessa balança. Quanto mais atrasada menos dentes e também menos velhos. Porém, naquelas que usam o pilão, maior é o contingente de idosos. Com ele, os alimentos sólidos são transformados em farinha ou pasta. É o avô do nosso liqüidificador. Com o surgimento das ciências biológicas, um gigantesco passo foi dado na preservação da capacidade mastigativa do homem. A cura das doenças dentárias, como todas as outras, sempre antecedeu à prevenção, pois para prevenir é preciso, antes, conhecer os mecanismos dos fenômenos patológicos. Não é esta a teoria de Rasputin? Trataram-se cáries e doenças periodontais, inventaram-se dentaduras, pontes móveis e fixas, e o implante de titânio tenta imitar um dente são. Na Medicina, a nutrição parenteral (líquidos alimentícios injetados nas veias) virou superespecialidade (que o diga o Dr. Francisco Karkow). Porém, tanto na Odontologia como na Medicina, o futuro é a preservação: prolongar o mais possível o usufruto de um bem que sabemos perecível - a saúde. “Talheres” - Litogravura de Genoveva Finkler. 32 A imprecisão das receitas Decididamente, Arte e Matemática não combinam. Aquela, morre sufocada quando cercada pelas regras e limitações das precisões frias dos números. Precisa da liberdade desorganizada da inspiração, dos conceitos aparentemente imprecisos, rebeldes às restrições da disciplina como é a criança sadia, o potro indomável na flor dos anos, ou como o poeta. A alma não se rege por regras imutáveis, esterilizadoras de engenhos, túmulos das inovações e do romantismo. O entusiasmo juvenil, e sem ele não há vida, existindo mesmo no ancião, desdenha a ordenada segurança dos rastejos e a luz clara do meio-dia. Prefere a emoção dos vôos, mesmo inseguros... e os mistérios dos luares. Levar a precisão da matemática dentro da culinária é tirar a possibilidade da arte que a caracteriza e enobrece. As grandes receitas jamais foram exatas: tantos gramas disto, tantos gramas daquilo. Vale mais a pitada, o punhado, a porção, o respingo, o tantinho. Para começar, não é possível medir, com precisão, um produto natural composto, como a pimenta, por exemplo. Há milhões de variáveis numa colher das de chá de pimenta verde moída, conforme a qualidade, o tempo de armazenamento, o tamanho dos pedaços, a umidade do ar, a temperatura ambiente, tudo influi. Até o sal de cozinha, apenas cloreto de sódio, pode variar conforme a saturação higroscópica e a granulação dos seus cristais. É impossível repetir, exatamente o mesmo prato. Mas, mesmo que o fosse, o verdadeiro cozinheiro tratará de inventar variações, liberando a sua inspiração criadora. Como todo artista, tem horror à réplica monótona e impessoal da produção em série das cópias. A monotonia que esfria desejos e fenece amores, na culinária, vulgariza comidas pelo embotamento do paladar. Um dos maiores artistas da arte culinária que conheço, Alexander Bedin, nas suas preciosas receitas diz simplesmente: “Adiciono uma pitada de pimenta... Jogo uma noz de manteiga... Salpico um raminho de mangerona... Corrijo o sal”. Ele sabe que a precisão das medidas esfria entusiasmos e mata a poesia. É como cortar as asas da andorinha azul e branca que revoa, alegre, nos céus de verão. É quando a Culinária deixa de ser arte para se 33 transformar na profissão enfadonha do trabalho escravo em cozinhas fumacentas.19 Vasco José Dani, “o filho do Güerino”. Vasco Dani, ex-professor de Contabilidade do Colégio do Carmo e também de Basquete, foi o decano dos cozinheiros-artistas de Caxias do Sul. Ninguém soube casar, como ele, arte culinária com humorismo. Quando éramos jovens, e a vida era uma risada contínua - envelhecer é perder, gradativamente, a capacidade de rir - ele fundou o Clube dos Comilões, onde o presidente, o secretário, o tesoureiro e também o cozinheiro era ele mesmo. Localizado nas vizinhanças do matadouro Petteffi, na BR 116, tinha um estatuto bem-sucinto, com três artigos apenas. Primeiro: “Comer bem não é comer muito”; segundo: “Ence a bariga, mas não me ence o saco” e terceiro: “É proibido ficar triste, discutir política e religião”. Na parede da peça de madeira que servia de cozinha e refeitório havia um quadro pendurado na parede com um menino mijando num enorme lago. Por baixo, escritas, estas palavras: “É por isso que eu não bebo água!” Nas ocasiões em que eu vinha de Porto Alegre, onde estudava Medicina na URGS e comia no Restaurante Universitário com a fome eterna dos remadores, me entupia de risos e bígolis feitos pelo Vasco, onde o molho era o maior segredo. Suas receitas tinham a imprecisão do verdadeiro artista: jamais repetiu o mesmo sabor. “Com a manteiga”, ensinava ele, “tu faz assim, presta atenção: quando o molho estiver pronto, olha para os lados e, se 19 “Culinária requintada é a das abelhas: fazem o cardápio das flores” - Cesarini. 34 não tiver ninguém olhando, larga, dentro, uma ou duas colheres, disfarçadamente. Tampa a panela, espera um pouquinho e pode servir”. O que sobrou de tudo isso? As bebidas e o vinho deixaram muitas ressacas e algumas dores de cabeça; as comidas, indigestões e pesadelos. Mas, as piadas do Vasco, as risadas... até hoje trazem alegrias ao lembrarmos daqueles tempos de irresponsabilidades de paraísos. 35 “Formaio gratá”20 Queijo Talvez nenhuma outra cultura, das que colonizaram o Sul do nosso País, tenha valorizado tanto o queijo como a italiana. Nas cantinas de pedras, nos porões obscurecidos, debaixo dos parreirais, nas lavouras, o queijo era consumido puro ou acompanhado com pão, polenta ou salame. (Ah! O salame da colônia! Que saudade do salame da colônia! Aquele, com generosos pedaços de toicinho picado à faca, entremeados com a massa, aparecendo a pimenta-do-reino, moída grosso, e todo coberto do mofo branco-esverdeado dos úmidos porões. Ao cortar uma fatia, escorria um óleo tão cheiroso que fazia escorrer água da boca. Junto com um pedaço de pão caseiro e um copo de vinho tinto, era a melhor das iguarias). Nas espaçosas cozinhas dos nossos avós, sobre fogões à lenha, o queijo era “brustolado”21 na chapa, derretido em forma de “foundie”, frito à milanesa ou com cebola e ovos na conhecida “fortaia”. Em todos os dias, tanto nos de trabalho como nos de festa, era espalhado, ralado sobre massas, risotos e sopas, dando o perfume e o sabor característico da comida italiana. Depois da primeira missa dos domingos e feriados religiosos, bem cedinho, ainda escuro, no salão paroquial, ao lado da igreja, temperava fumegantes pratos de “tripada”, 22 enquanto os sinos chamavam para a próxima missa. E como descia bem um bom vinho Barbera! O “formaio gratá”, como era chamado o queijo ralado, não podia faltar em nenhuma mesa. Tanto popularizou-se, que até nas canções populares ele aparece. Nos tempos de menino, quando algum companheiro de brinquedos exigia um juramento como garantia de veracidade, o nosso era sempre o 20 21 Esta crônica faz parte do livro Vento da Serra, de Eduardo Festugato. “Brustolado” = sapecado. “Tripada” = Prato tradicional da colônia italiana. Consiste em estômago bovino cortado em fitas e refogado com cebola, tomate e temperos. Nos domingos e feriados, depois da primeira missa, os colonos o saboreavam da seguinte maneira: num prato fundo, quase cheio de caldo de galinha, colocavam duas ou três fatias de pão caseiro. Por cima ia uma concha de “tripada” e generosas porções de queijo ralado. Sempre acompanhado de vinho tinto seco, “coel del ciodo”. 22 36 mesmo: “Juro, polenta dura, formaio gratá, jura ti che mi gó benche jurá!” 23 Era uma maneira que nossos pais, tão religiosos, nos ensinaram a jurar sem pronunciar o santo nome de Deus em vão. O queijo ralado imiscuía-se até nos assuntos sagrados! Salão paroquial Domingo chuvoso de inverno. Nesse ano, o primeiro domingo de setembro que é o dia da festa de São Caetano, em Tunas Altas, Santa Lúcia do Piaí, interior do município de Caxias do Sul, caiu no dia primeiro. A missa está quase no fim. Já passou o Ofertório. Faltava o bemvindo “ite, missa est” para começar a festa. Os homens, nos fundos da igreja, perto da porta, chapéus nas mãos, alternam o peso do corpo ora sobre uma perna, ora sobre outra, impacientes, olhando, com olhar pidão, o barzinho instalado no galpão ainda deserto, localizado ao lado da modesta capela de madeira. É o salão paroquial destinado para as festas religiosas, os bailes dominicais, as quermesses, as festas de casamento e as reuniões dos moradores para discutir assuntos de interesse da comunidade. Apenas algumas crianças, em trajos domingueiros - a idefectível fatiota azul-marinho, camisa branca e sapatos ringideiros24 - correm por entre as mesas ainda desertas, transbordando alegria. Acabada a missa, o salão fica lotado de gente. Tomando vinho da colônia, os homens conversam em dialeto, em voz alta, rindo estrepitosamente, esperando o almoço ser servido. Agora, os mais velhos estão comentando o tempo de antigamente, quando não havia tantos venenos para serem espalhados nas videiras, apenas o “verdarame”.25 A produção de uvas era menor, sem dúvida, mas a qualidade, o gosto... ou será que é a saudade do passado que tanto adoça as nossas lembranças? 23 “Juro, polenta dura, queijo ralado. Jura tu que eu já tenho jurado!” 24 Os sapatos de festa dos colonos nunca são gastos, são sempre novos, ringem sempre. De casa até as proximidades da igreja, são levados na mão. Um novo par é comprado somente quando o antigo já não servir nos pés em crescimento. Servirá para o irmão mais jovem. “Verdarame” = caldo de sulfato de cobre e cal usado para combater as doenças da videira. 25 37 Um dos presentes é o Derví Brancher, morador de São Giácomo, localidade vizinha de Caxias do Sul. Ajudado pelo pai, cultiva a parreira apenas poucos hectares - e explora uma pedreira desde o tempo do seu avô. As mulheres - a esposa e a mãe - criam algumas vacas de leite e galinhas para o gasto; na horta, ao lado da casa, colhem todo tipo de hortaliças onde nunca falta a sálvia e o “radice co la coa”. Comenta ele, com a satisfação dos vencedores: - “Três anos sem Gramoxone!26 Nos dois primeiros anos, a produção de uva caiu pela metade. Agora, no terceiro, já chegou a oitenta por cento de quando se usava venenos a torto e direito”. Entusiasmado, o Derví conta que houve um espantoso aumento da vida animal debaixo e ao redor dos parreirais. Minhocas, que pareciam ter sumido da terra, agora qualquer cavocada com a pá descobre dezenas delas: pretas, vermelhas, lustrosas, escorregadias. Vê-se, por toda a parte, lagartixas, sapos, rãs. E até as lebres que pareciam ter sumido, de noite são encontradas nas roças e nas estradas da colônia.27 Noutro dia, ao levantar uma pedra, encontrou, debaixo dela, uma porção de pequenos insetos parecidos com tatuzinhos, coisa que não via deste os tempos de menino. Nos dias ensolarados de verão, a algazarra das cigarras se esparrama pelos montes e vales de São Giácomo, enchendo de paz a alma dos moradores. À noite, uma sinfonia de insetos noturnos ressoa nos pastos e no mato, com centenas de vagalumes luzindo na escuridão. Como a vida é bonita sem venenos! É que os venenos são sempre destrutivos: o que para uma espécie é a vida, para outra é a morte. Esperando o almoço ficar pronto O aroma da cozinha invade o ambiente, misturando os odores da comida - “brodo”28 de galinha e carne assada - com o fedor da fumaça de palheiro.29 26 Herbicida. 27 A proibição cega da caça, que faz o colono matar a lebre porque come o seu pasto e sua horta, acabará com as espécies. Se ele pudesse vender a sua carne no mercado, trataria de plantar mais pasto para ela. 28 “Brodo” = caldo. 29 Palheiro = cigarro feito com palha de milho e fumo picado à faca, na mão. 38 Há cheiros inconfundíveis que trazem evocações saudosas da infância na colônia: de estrebaria, com o agradável odor dos herbívoros - vacas e cavalos - tão diferentes das catingas dos carnívoros; de feno ceifado e estocado no paiol; de pão recém-tirado do forno, fumegando no ar fresco da serra; de café sendo torrado no pátio, com sua fumaça perfumando o ambiente; de parreiral carregado de uvas Isabel, maduras, aveludadas pelo sereno, e o cheiro de festa em salão paroquial. Circulando por entre as mesas lotadas de gente conversando, moças e moços vendem números de rifa em raquetes de madeira, com quatro números cada uma. Deve ser herança cultural dos seus antepassados que não dispunham de impressoras para confeccionar números em papéis. Assim, além de poupar gastos com gráficas, simplificam a tarefa a que se propõem: fica mais difícil extraviar os números adquiridos e não existe confusões com séries. No meio da balbúrdia geral são sorteados frangos e leitões, assados, tortas coloridas, caixas de frutas da estação e, quando a festa é muito grande, capões de ovelha, terneiros e até bois. O burburinho, antes tímido, agora animado pelo vinho e pela cerveja, faz o galpão se parecer com um enxame de abelhas zumbindo. Beber e comer em companhia é uma atividade que desenvolve a sociabilidade e a alegria de qualquer espécie animal. Diante de uma mesa farta, há uma trégua, e a beligerância se some. Foi por haver comida em abundância que reinava a paz no Paraíso Terrestre. A fome nunca aproximou ninguém. Pelo contrário: fomenta a crueldade, cria desavenças, concorrentes e inimigos. “Quando falta o milho, as galinhas se bicam” diz um ditado popular italiano. As faces enrugadas dos homens rudes, curtidas pelos ventos e sóis das intempéries, agora estão sorridentes e vermelhas. Os olhos brilham da satisfação dada pelo álcool e pela alegria do recreio merecido, descansando da árdua labuta nesta terra tão avara - mãe sem leite - que tanto exige para ceder os seus parcos frutos. As mulheres, sérias e dóceis, sentadas ao lado dos seus maridos, vigiam, como atentas galinhas chocas, o bando de crianças irrequietas que, como andorinhas pressurosas voejam por todo o lado, desfrutando a alegria de viver. Não raro, uma criança leva um tabefe da mãe, como castigo por ter se machucado ou sujado a roupa domingueira. Então, o choro se mistura com as gargalhadas e o vozerio, mas por pouco tempo, porque logo voltam a correr e a brincar como antes, esbaforidas, faces rosadas das pinturas de Rubens. 39 Cantorias italianas No fundo do salão obscurecido pelo dia chuvoso, um grupo de homens, de pé, em semicírculo, forma um coro, cantando a todo o pulmão músicas populares italianas trazidas pelos seus antepassados. No momento estão cantando “Sul Mare Luccica”, pondo, nos versos, todo o sentimento que levam na alma, de nostalgia pela sua terra natal de além-mar. Os olhos emocionados dos colonos dizem que alguma brasa reviveu das cinzas do passado. Uma miragem? Quanta saudade há nos versos: “Tu sei l’impero / del’armonia!... / Santa Lucia, Santa Lucia!” O império da harmonia! A idéia que todos os imigrantes faziam da América antes de embarcar rumo ao seu sonho: a terra da “cucagna” 30 de que fala a canção: um barquinho em meio ao mar, ondas plácidas e vento próspero, banhado de luar. Ou a poética comparação com o ramalhete de flores da conhecida “Da l’Italia noi siamo partiti”: “Merica, Merica, Merica, cossa sará la sta Merica? Merica, Merica, Merica, un mazzolino di fior”.31 A “Merica” idealizada é a sua Santa Lúcia do Piaí onde hoje vivem, porém sem mares serenos, nem ramalhetes de flores; sem ilusões, como atestam suas mãos calosas, seus rostos sofridos, gastos na dura luta pela sobrevivência. Quando chegaram, há mais de um século, a grande decepção da realidade: “Não encontramos nem palha nem feno / Dorminos sobre o nu terreno / Como animais repousamos”. Esta é a sua terra de verdade, sem utopias, pois é nela onde enterraram seus avós, seus pais, um filho... e é nela onde também serão enterrados, na certeza de que um dia voltarão numa videria, numa uva, num vinho rubro como o sangue que irá correr em outras veias, aquecendo almas e corações num eterno renascer. Os últimos versos da canção ainda ressoam no ambiente aconchegante do salão quando iniciam a maliciosa “Volete Sapere”.32 A melodia, bem-afinada, rola pelos morros de Tunas Altas até as margens do rio, levando, nas asas do vento, junto com o perfume das acácias, caneleiras e canjera30 “Cucagna” = mamata, abundância, prosperidade, riqueza fácil. “América, América, América, o que será esta América? América, América, América, um ramalhete de flores”. 31 Resumindo: “Quereis saber? Quereis saber o que fazem as mulheres quando o marido sai de casa? Elas se penteiam e se fazem belas e depois elas vão ao convento dos frades (“Frá”). Tocam a campainha do portão e o frei mais belo vem abri-lo... etc.” Termina com a expressão “formaio gratá,” rimando com “convento dei Frá”. 32 40 nas reanimadas pela chuva, frases como esta: “...al convento dei Frá”. Termina rimando, debaixo de gargalhadas, com “... for-ma-io gra-tá...” “Nonno” Lazarotto De repente, caminhando ligeiro entre os longos bancos de tábuas, lotados de gente faminta - ainda não haviam servido a sopa de “agnolini” um homem jovem e forte se aproxima de um velhinho que parecia ter desmaiado sobre a mesa e toma-o ao colo com carinho, como se fosse uma criança pequena. - “É o meu pai!” - diz ele, semblante preocupado, destoando dos presentes. O “nonno” Lazarotto, velho, magro, consumido pelos anos duros da colônia - mais de oitenta - só pele e ossos, já sem carnes, parecia uma criança desnutrida. Tão frágil, o pobrezinho, assemelhava-se a um filhote de sabiá, implume. Deveria ter sofrido uma crise hipoglicêmica,33 com certeza. Lá fora, no frio do estimulante ar serrano, reanimou-se. Cercado por parentes e amigos, tomou uma xícara de água com açúcar (queria vinho, que é o leite dos velhos, mas não lhe deram) e, logo, logo voltou a cor na face antes tão pálida. - “De repente, me deu uma tontura, fiquei ‘storno’34 e já não enxerguei mais nada” - informa ele, amparado pelos braços do filho. Como a vida é curiosa e enternecedora! Há menos de três décadas, quem estava no colo deste homem, outrora forte, no verdor dos anos, era o seu filho, então uma criança pequenina. Hoje, inverteram-se os papéis: é o filho quem segura o pai no colo, protegendo-o como era protegido. Vem demonstrar que a educação daquela família foi a certa: nunca erra quem prega o amor e o respeito pelos mais velhos, cumprindo o mandamento divino do filho honrar o seu pai e a sua mãe. Um dia, meu filho, tu também irás ser pai! E olha bem o que eu te digo: a gente sempre colhe o que semeia. 33 Hipoglicemia = queda do nível de glicose do sangue. Devido ao jejum prolongado, antigamente exigido para os que queriam comungar, vez por outra uma pessoa, geralmente mulher, desmaiava e era levada para fora da igreja. 34 “Storno” = tonto (Dialeto vêneto). 41 O almoço Quando o pessoal, já impaciente, fica olhando insistentemente para a porta da cozinha, então é servido o almoço. A “entrada” é sempre a mesma: sopa de “fidelini”35 ou de “agnoli36 ni” temperadas com queijo parmesão ralado, o indispensável “formaio gratá” (O bom, mesmo, é o que “spussa a calcagno”37). Acompanha carne de frango caipira e ponta-de-peito de gado, a lessas, com “cren”,38 saladas de radite com toicinho ou torresmo, fritos; alface, tomate, pimentão, repolho em conserva e outras verduras. Tudo seguido do churrasco de gado e frango a passarinho - assado nas brasas em pequenos pedaços, espetados intercalados com sálvia e toicinho. As fatias de polenta, fritas na banha, douradas e crocantes, muitas vezes recheadas com queijo, são servidas à vontade, conforme a fome ou a gula de cada um. E por cima de tudo, vinho goela abaixo: “Zo vin, zo vin, compare! Perche la ácqua me fá male, il vino me fá cantare...”39 Fim de tarde Fim da tarde. O chuvisqueiro continua caindo, insistente, sobre o galpão quase vazio. As primeiras sombras da noite se acocoram junto às macegas, acumulam-se nas baixadas, semeando a noite. As mulheres, as crianças e a grande maioria dos homens foram embora. Voltaram para suas casas na labuta de todos os dias, mesmo domingos e feriados: recolher as vacas, apartá-las dos terneiros para poder ter leite na manhã seguinte, fechar as galinhas no galinheiro, fora do alcance dos gambás e graxains; tratar com milho e feno os animais “estabulados”. Depois de lavar os pés na “mastela”,40 preparar a janta frugal para compensar os exageros do almoço: uma “escudela”41 com café-com-leite, 35 “Fidelini” = massa bem-fininha, conhecida como “cabelo de anjo”. “Agnolini”, “capeletti” = “Chapeuzinhos”: semelhante a um minúsculo pastel de miúdos de galinha. 36 37 “Spussa a calcagno” = fede a chulé. “Cren” = raiz amarga, ralada e conservada no vinagre e sal. Os colonos acreditam ser afrodisíaca. 38 39 “Vinho pra baixo, compadre! Porque a água me faz mal, o vinho me faz cantar...” 40 “Mastela” = bacia feita de madeira que se usa para lavar os pés. 42 pão, açúcar e talvez algumas fatias finas de salame. A janta tem que ser leve, aconselhavam os antigos: “Sena curta, vita longa”. No salão quase deserto, próximas ao balcão, algumas mesas estão ocupadas por gente jogando cartas com baralhos espanhóis: três setes, escova, bisca, quatrilho. Num canto, um grupo de homens sorridentes continua cantando velhas canções italianas, faces afogueadas pelo entusiasmo e pelo vinho. Entre eles está o “nonno” Lazarotto, agora com a face corada, rosto emoldurado pelos cabelos e a barba brancos, olhos brilhando de malícia, veias do pescoço entumecidas, acompanhando o coro bem-afinado. Está ajudando a esparramar beleza e melodia por sobre os montes da sua terra, como antigamente espalhava o “verdarame” sobre as vinhas, como hoje espalha o queijo sobre a sopa: “... for-ma-io gra-tá...” “Formaio gratá...” - Desenho de Rita Brugger. “Escudela” = vasilha parecida com uma grande xícara, feita de madeira, usada para tomar o caldo da sopa com queijo ralado, ou o pão embebido no café-com-leite. 41 43 Três amigos importantes Darcy Azambuja, o poeta de campo e céu que melhor captou a sensibilidade da alma gaúcha e conseguiu vertê-la, pura, nos seus livros, pela boca do “tio” Alexandre, nos dá a sua receita de felicidade: “Duas coisas neste mundo Juntas dão felicidade. E aqui les deixo o segredo: São o amor e a liberdade”.42 A valorização de um bem, geralmente tem relação direta com o preço que por ele se paga. Conquistas sem suor não são conquistas, mas esmolas. O amor faz parte de todas as receitas de ser feliz, que também precisa ser conquistado, pois “não se arrendam as doçuras, não se emprestam os amores”. (Larralde) A opçao que o poeta fez pela liberdade reflete a situação política daqueles tempos, onde o Rio Grande do Sul convivia com sangrentas revoluções libertadoras. A liberdade era um bem tão valioso e tão desejado que valia a pena até morrer. Hoje, cada vez mais, o crescimento da pobreza, por um lado, e da força da propaganda embutida na mídia, por outro, vão acabando com a liebrdade por reduzir escolhas. Assim, fica cada vez mais difícil consegui-la. O segundo ingrediente da receita, o amor, já é bem mais fácil de encontrar: basta ter sentimento, porque de gente carente o mundo anda lotado. Sendo assim, talvez devamos buscar a tal de felicidade noutros rumos. Quem sabe, na segurança do poder e no epicurismo dos prazeres, os ideais clássicos da Grécia e da Roma antigas? Para um homem ser feliz deve ter, pelo menos, três amigos de confiança: um advogado que lhe dê a segurança; um médico, a saúde e um açougueiro, o prazer da mesa. Apesar do folclore da colônia italiana ridicularizar o advogado e o médico - “Un vilán mezo a dô avocatti, un sorze in mezo a dô gati, um malà AZAMBUJA, Darci. No Galpão. 7. ed., Porto Alegre: Globo, 1955, p. 110. “Tio” Alexandre é personagem do conto Querência. 42 44 in mezo a dô dotori: chi sta pezo de lori?”43 o primeiro é o mais importante dos três, pois “é sempre bom ter um palanque onde coçar-se” já dizia o Hernández há mais de um século. É ele quem nos livra dos problemas com a Justiça, nos orienta nas dificuldades, instrui nossas condutas, faz inventários... O difícil é escolhê-lo com acerto. Há advogados tão inteligentes que fazem até um cão pasar por gato, mas que têm suas espinhas flexíveis, vivendo da arte e do engano, como diz outro provérbio italiano: “Co l’arte e co l’ingano se vive mezo ano; co l’ingano e co l’arte se vive l’altra parte”.44 Há também os de condutas honradas, mas meio-curtos de vista... Felizmente, não são raros os que casam a competência com a integridade, como um Percy de Abreu e Lima, outro Vargas, um Coruja, um Biglia,45 e tantos outros que conheço. O produto mais importante da educação não é a esperteza, mas o caráter - rocha dura qual diamante, onde se alicerça o respeito e a confiança. O médico amigo é o que nos socorre nas horas mortas das madrugadas de dores, nos atende nos fins de semana desassistidos, ouve nossas queixas com carinho e com paciência. É o pai que nos protege dos nossos medos e das hipocondrias. Só o suicida não teme a morte, mas, mesmo ele tem medo do sofrimento. Porém, ninguém pode prescindir de um amigo açougueiro! Aquele que é tão fiel que pode dizer sem rodeios: “Hoje não tem carne pra ti. É muito dura e magra. (Carne magra nunca foi bom sinal. Ou é de gado doente ou criando sem sal, em campo pobre de barba-de-bode ou carqueja). Amanhã chegará uma mui especial, lá de Bom Jesus dos Campos de Cima da Serra”. Sempre é bom ter onde mandar uma criança comprar bifes sem receio de que ela volte com uma carne de paleta por alcatra. Ou contar com alguém que te telefona, no meio do expediente da tarde, avisando que acaba de chegar uma carninha irresistível, lá do Uruguai, daquela da graxa branca e da costela tão fina como costela de ovelha. Que me paralise a gota, que me suba o colesterol, mas jamais deixarei de comer uma carne de primeira! Pelo menos enquanto eu puder comprála e tiver dentes. Daquelas que se desmancham na boca e engraxam o bigo“Um vilão em meio a dois advogados, um rato em meio a dois gatos, um doente em meio a dois doutores: que estará pior do que eles?” 44 “Com a arte e como engano, vive-se meio-ano; com o engano e com a arte, vivese a outra parte” Livro: “... e cantavam...”, de vários autores, publicado pela Cibaí Migrações, Porto Alegre, 1958. 43 45 Referência aos advogados Dr. Pedro Vargas, Dr. Sérgio Coruja e Dr. Waldemar Biglia. 45 de, deixando um laivo de saudade dos campos da Fronteira, de Bom Jesus, da Vacaria, dos Ausentes, de São Chico ou do Campestre. Não de gado leiteiro como é costuma na colônia, mas do gado bom, de corte, do poliango46 pequeno e preto, do pampa cara-branca,47 do devon vermelho-rubi, ou mesmo do charolês da carne marmórea, que tem a gordura entremeada com as fibras musculares. Dessas que não se esquece pelo gosto bom que têm, à custa das pastagens finas de flechilha48 e missioneira.49 É por isso que tanto estimo o Romeu Susin e o Laurindo. A ambos quero bem, mas fico sempre torcento que tenham ao menos uma dor de barriga, só para eu servi-los com meus préstimos de médico. Assim aumentará o crédito que tenho com eles, e a dívida que eles comigo têm. Que espero ser toda paga em dicas, não descontos, de carnes finas para churrascos macanudos... 46 Poliando = gado bovino da raça Polled-angus. Trata-se de um animal preto, de baixa estatura, mas de uma ótima proporção de carne. 47 Pampa = gado bovino da raça Hereford. Flechilha = “Grama ou capim muito comum em várias zonas do Estado do Rio Grande do Sul (Stipa neesiana). É de superior qualidade para a criação do gado”. CARDOSO NUNES, Zeno; CARDOSO NUNES, Rui. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Martins Livreiro, 1982, p. 192. 48 49 Missioneira = variedade de capim de alto teor protéico. Excelente alimento para o gado. 46 Água Dois átomos de hidrogênio ligados a um átomo de oxigênio. Isto é água, a substância fundamental da vida, a sua essência. Sem ela, só haveria desertos secos, inóspitos, improdutivos como a lua, como a caatinga do Nordeste, como o Saara, o Gobi ou como o Deserto da Morte onde nem os escorpiões sobrevivem. Porém, tem tanta força a vida que basta um pouquinho de chuva para fazer rebrotar sementes que estavam adormecidas, cobrindo tudo de verde e de flores. A água, na forma líquida, é relativamente recente na história da Terra, tornando o planeta mais rico do universo – o único que tem água.50 Existe apenas há cinco bilhões de anos, quando o vapor da atmosfera esfriou, condensando em forma de água, na chuva, originando os mares, os rios, os lagos e os mananciais, dando as condições ideais para o surgimento da vida ao formar-se nela a molécula inicial. Há águas boa, como as das nascentes da Serra, e as más, como as dos arroios poluídos que envenenam animais e até a grama. Há as claras e as escuras, as barrentas, as cristalinas, as espumantes das cachoeiras que se desmancham em véus de neblina. Umas, são calmas como as fontes, outras caudalosas como as torrentes que vêm dos montes depois das chuvaradas de agosto. Há as frescas e as chocas, as inodoras e as fétidas dos esgotos pestilentos. Umas, são geladas como as que vêm dos Alpes e dos Andes, outras são mornas como as águas termais ou ferventes que jorram dos géiseres do Yelostone. A água tem vida. Dorme, silenciosa, nos poços e nas poças. Quando acorda, ela se muda. Nas chuvaradas de verão conversa ora alto, ora baixo ao cair sobre o teto de zinco, tão preguiçosa e hipnótica que faz a gente adormecer mesmo sem sono. Nos ouvidos das folhas das árvores despenteadas pelos ventos, a água é chuva sussurrando segredos de comadres, farfalhantes. Quando é riacho, murmura suave ao correr por entre as pedras cobertas de limo, carregando no seu dorso as folhas secas das lembranças. Por vezes ela se altera: grita e chora no estrondo da cachoeira e no vozerio do mar enraivecido, espumando, raivoso, pela boca das grandes ondas. No fenômeno da 50 Dos 1,4 milhões de quilômetros cúbicos de água que existe na Terra, 97% é salgada. Dos 3% restante, 70% estão congeladas nas calotas polares e 29% são subterrâneas. Sobra, então, 1% de água potável. (Revista “rimed”, ano III, nº 12, jun/jul 2000). 47 Pororoca é trovão assustador, espalhando seu bramido por quilômetros de distância. Insípida, inodora e incolor, a água não tem forma definida. Como a alma, toma a forma do recipiente que a contém. Quando o frio do inverno a transforma em flocos, enfeitando galhos dos pinheiro araucária ou das pitangueiras, ou quando cai do céu em lento ziguezague qual pluma, então é neve. Alva como garça, pousa na grama, suave e serena qual espuma de sabão. Quando congela nas superfícies das poças em meio ao barro da estrada, ou semeadas no campo, solidifica em forma de gelo, parecendo espelhos quebrados, espalhados, a esmo, pelo chão. Nas manhãs de primavera torna-se pérola ao brilhar, iridescente como orvalho numa teia de aranha esticada em meio ao pasto ou nas pétalas das flores. Nas madrugadas de verão molha os campos com brilhantes gotas de sereno; nas de inverno, cobre os mesmos campos com o lençol da geada que o sol logo desmancha numa profusão de córregos gelados de “Pastorais” de Beethowen. Água doce, água salgada, água de cheiro, água de coco, água que passarinho não bebe, água ardente, água benta, água pura, água contaminada – todas são formas da mesma essência, conforme as roupagens que as veste: noiva branca, no leite; rubra, no vinho das bodas de Caná ou no sangue dos pecadores e dos justos – uma simples emulsão de hemoglobina. Na planta é seiva, no homem faz parte dos quatro humores vitais dos velhos gregos: sangue, fel, linfa e urina. Quando brota dos olhos, copiosa, ou quando escorre lentamente, silenciosa, então é lágrima sentida da dor de uma ausência, quando lembra de alguém que já se foi. Quando verte da testa é suor; da boca do cão raivoso escorre como saliva pegajosa – então é morte; mas diarréias das crianças desidratadas arrasta com ela a vida, liquidificando carnes, murchando peles, afundando fontanelas e olhos que por fim se apagam, vítreos e secos, nos comas profundos que antecedem a morte. Tem tanto compromisso com a vida que participa do batismo e não da extrema-unção. Mas, assim como o bem e como o mal, a água é uma só: H2O. *** Três quartas partes da superfície do globo terrestre são água. Mas, no meio do Oceano Pacífico pode-se morrer de sede. Devido ao seu poder de dissolver, pode ser o veículo da vida como também da morte. A água que leva oxigênio e glicose aos tecidos, também pode levar monóxido de carbono, cianetos, metais pesados e arsênico. Graças à sua capacidade de transportar – é o veículo por excelência –, pode matar um ser humano contaminandoo com uma salmonela, o cólera ou o vírus da hepatite. Para os humanos e todos o seres vivos, a água é muito mais impor48 tante do que a energia elétrica e a luz artificial.51 Sem ela nem uma batata existe. Infelizmente, com a degradação ambiental dada pela superpopulação do planeta, as águas potáveis ficarão cada vez mais raras. A poluição e o lixo envenenarão nascentes e rios, comprometendo mananciais, irremediavelmente. Segundo o cacique pele-vermelha Seathl, falecido há mais de cento e cinqüenta anos, o homem acabará sufocado pelos seus próprios dejetos. Nos tempos de moço, quando viajava com o padrinho Odair Fumagali pelo interior do Rio Grande do Sul, mais de uma vez ele observou com tristeza: “As águas estão se sumindo”. A destruição das matas, as drenagens dos banhados para aproveitamento de áreas para a agricultura, cada vez mais necessário devido à verdade inegável de que a terra é limitada e a demanda pelo alimento aumenta cada vez mais, fatalmente acabarão com as reserva hídricas do planeta. Assim, com a destruição dos habitates, mais cedo ou mais tarde as espécies animais e vegetais sem interesse econômico desaparecerão da face da Terra, porque o homo sapiens é inimigo mortal da natureza. A inteligência é uma força alienígena, trazida pela serpente. É sabido que só se valoriza um bem quando se o perde. Isso acontece com os pais, os amigos, a esposa, o dinheiro, a juventude, a saúde, a inocência, a felicidade, o tempo... e também com a água. Quando há racionamento de água é que se dá valor a ela. Calcula-se que no mundo inteiro há um bilhão de pessoas que não têm acesso a esse líquido vital. “Nos acampamentos, a água é um tesouro! Se para buscá-la se deve descer um barranco, caminhar dezenas de metros, então ela vale ouro. Na cozinha ou no banho, é poupada com avareza. Então se percebe, com clareza, quando se desperdiça água nas nossas residências! Por um insignificante filete da grossura de um lápis, durante um dia escorre oitocentos litros de água! A torneira aberta, ao escovar os dentes, consome mais de quinze litros. A mesma quantidade de uma única descarga de privada.”52 51 A dependência do homem moderno à energia elétrica, devido à vida cada vez mais artificial devido aos aparelhos domésticos, máquinas, computadores, vai afastando-o da natureza, levando-o infalivelmente à depressão, à “secura de sentimentos” como refere o Professor Cyro Martins. 52 FESTUGATO, Eduardo. A mesa das refeições. Caxias do Sul: Gráfica EDUCS, 1998. p.49. 49 Álcool A bactéria Sacaromyces colheu a uva madura, esmagou-a com os pés e fez o vinho que embriagou Noé do Antigo Testamento. Do malte fez o uísque, da beterraba, aguardente; do trigo, arroz e a cevada fez desde a vodka à cerveja; do milho e do aipim fez o bruto cauim fermentado com saliva de velhas índias tapuias. Depois de descoberta a América, pegou a cana-deaçúcar e fabricou a cachaça. O álcool tem mil pais. Todos os cereais dão o amido que, transformado em açúcar, pela ação dos fermentos, transmuta-se em álcool. Muda, então, de figura e até de temperamento: de doce, torna-se ardente; de manso, fica violento. O álcool é uma droga que faz parte da civilização. Se consumido com moderação - e aí está o segredo - certamente não fará mal. Infelizmente, a angústia gerada pelo desconhecido e pela morte leva o homem ao fanatismo comportamental, nefasto como são todos os fanatismos: “Se eu não beber nem uma gota de bebida alcoólica, não fumar nem um cigarro; se dormir sempre cedo e acordar também cedo; se não comer demais, nem comer gordura nem carne vermelha; se fizer exercícios diários, não morrerei jamais”.53 Não sabem, estes infelizes, que não estarão vivendo, mas apenas durando, como uma tartaruga, uma barata ou uma pedra. Viver com paixão implica risco e, principalmente, consumo: cada minuto é pago com instantes preciosos de vida, alimentada de energia como o deus Baal se alimentava de crianças. É a certeza da morte que tanto valoriza a vida. ÁLCOOL E SEXO Para a sexualidade, o álcool está parcialmente contra-indicado. Em doses altas provoca impotência sexual ao anestesiar a pele e as mucosas através do bloqueio da condução dos impulsos nervosos. Depois de certo O fanatismo dos ecologistas que fizeram “lobby” para criar a lei da inanfiançabilidade nas contravenções da caça - matar uma cobra significava a cadeia, mesmo para o Presidente da República - é o mesmo fanatismo que levava ao enforcamento os vassalos da realeza que matavam um cervo para alimentar os filhos. 53 50 tempo de uso, no alcoolismo crônico, causa danos irreversíveis aos nervos (desmielinização) e às artérias, levando, entre outras patologias, à impotência sexual permanente.54 Segundo a revista “Centaurus”, Volume 1, Número 3, p. 18, “o acetildeído (o primeiro produto da subdivisão do álcool etílico) é extremamente tóxico para todos os tecidos orgânicos, inclusive para os órgãos que constituem o eixo hipotalâmico-gonadal. Consequentemente, um determinado grau de hipogonadismo está presente em todos os homens com alcoolismo moderado a severo”. Em doses pequenas pode ser benéfico ao causar relaxamento do estresse e da ansiedade pelo bloqueio dos impulsos inibitórios do cérebro, evitando, assim, a produção, pelas supra-renais, das substâncias que dificultam a ereção do pênis (adrenalina, catecolaminas, compostos F, etc.). O dramático do álcool, como de todas as outras drogas, é que esta pequena dose que desinibe, também relaxa a fiscalização do ego, removendo limites, fazendo beber mais e mais. Sem esta normal e utilíssima ação inibitória do cérebro, desaparece o medo saudável que nos protege dos acidentes.55 A vida, então, entra numa espiral para o nada, para o fundo do poço sem fundo onde moram a escuridão, a depressão e a morte. Morte do corpo pela deterioração celular; morte da alma pela desintegração do caráter. Aqui está a grande diferença com o fumo: o fumo acaba com o indivíduo; o álcool acaba com os bens e os afetos. Em doses elevadas ou no alcoolismo crônico, o álcool alimenta a ansiedade do ser humano, causando depressão,56 como todas as outras drogas. O primeiro sinal é a insônia. Acordar, sistematicamente, antes das quatro horas da madrugada, é um forte indício de depressão. 54 Em certa ocasião - um domingo à noite - voltando de uma caçada, paramos na venda de um amigo, em Lajeado Grande, perto de Caxias do Sul. O dono, que era um alcoolista crônico, insistiu para que jantássemos com ele. Depois da janta, ainda na mesa, o homem mais pra lá do que pra cá, perguntou: “O senhor não tem remédio pra impotência?” A sua esposa que estava tirando a mesa, uma bela mulata vinte anos mais jovem do que ele, parou no meio do caminho e falou: “O doutor é bom, mas não é milagroso. Onde é que tu viu levantar defunto?” 55 É por desaparecer estes benéficos impulsos inibitórios que o alcoolista está sempre machucado. Fica tão desibinido que desaparece o medo e a precaução. 25% dos acidentes de trabalho são causados pelo álcool. 56 Na primeira fase há uma excitação, seguida de depressão cada vez mais intensa, conforme o grau de dependência, chegando, em alguns casos, a levar ao suicídio. 51 No campo da sexualidade se observa que grande parte dos alcoolistas crônicos demoram para ejacular e apresentam distúrbios de ereção e diminuição do desejo sexual. Bastam, porém, menos de cento e vinte dias de abstinência desta droga para tudo voltar ao normal. O jovem é sexualmente mais potente do que o velho, porque a cabeça lhe pesa menos, as artérias são mais limpas, mas, também, porque ainda não deixou que o hábito da bebida nutrisse a ansiedade ao ponto de criar, na sua alma, as sombras da insegurança e da depressão. *** Parece que a vulnerabilidade de um ser vivo está ligada ao seu grau de desenvolvimento filogenético. As espécies muito especializadas estão sempre em risco de extinção. Se ninguém der forragem ao valiosíssimo touro Hereford que tirou o primeiro lugar na exposição, morre de fome. Solto no campo, no rigor das intempéries, acaba vitimado pelo inverno. O que se ganha em rendimento, perde-se em rusticidade. A vulnerabilidade que o porco tem às doenças, não existe para o seu ancestral javali. O mesmo acontece com as células animais: quanto mais especializadas, mais vulneráveis elas se tornam. As células mais nobres do nosso organismo, os neurônios, são as mais sensíveis à ação deletéria da anóxia e do álcool. Bastam cinco minutos sem oxigênio para o neurônio morrer. A barba, as unhas e o cabelo, ao invés, continuam crescendo, durante horas, mesmo depois do indivíduo ter morrido. A preferência do álcool pelas células do cérebro se deve à elevada proporção de água que estas células contêm. Segundo Heber Soares Vargas, “o álcool age como adstringente, lesando a célula, precipitando e desidratando o protoplasma, sendo por isso utilizado para endurecer os tecidos na preparação de cortes histológicos”.57 Já o grande Jelinek afirma que o álcool não aumenta a capacidade mental nem física, embora o indivíduo se convença de que sua atividade esteja melhor. Testes confirmaram que dirigir um automóvel, escrever à máquina, praticar tiro ao alvo e fazer complicados exercícios mentais ficam muito prejudicados depois de ingerir certa quantidade de álcool. Para atenuar a sentença contra esta bebida, diz ele que o álcool, ingerido em pequenas quantidades, pode propiciar certa melhora de atuação quando as ini57 SOARES VARGAS, Heber. Repercussões do álcool e do alcoolismo. 2. ed. São Paulo : Fundo Editorial Byk, 1988, p. 28. 52 bições mentais de uma pessoa a impedem de executar tarefa para a qual está habilitada. ALCOOLISMO O álcool é um catalizador positivo dos estados da alma: intensifica os sentimentos. Beber para esquecer é aumentar a memória; para ficar alegre, é aumentar a depressão, mesmo que num primeiro momento pareça o contrário: “faz o deprimido ficar mais deprimido ainda; o humorista, virar palhaço; o pródigo, dar de presente até a roupa do corpo; o violento, tornar-se agressivo. Beber por desilusão amorosa leva a um estado de alma bem diferente do que beber por ganhar na Loteria”. (Festugato, Eduardo. RECORRIDA. Caxias do Sul: Gráfica da UCS, 1994. p 115). Esta ação catalizadora dos estados da alma explica o aumento da ansiedade após beber certa quantidade de bebida alcoólica. Este aumento da ansiedade é causado pelo reavivamento dos fatos que geraram esta ansiedade. O álcool faz menos mal quando se o bebe sem precisar dele. A ansiedade parece estar ligada ao alcoolismo. É ela que faz uma pessoa começar a beber, e é ela que não a deixa parar. Como nenhum vício acaba onde começa, como já observou Hernández, pois assim não seria vício, a ansiedade tem característica remuniciadora: quanto mais intenso o vício, mais intensa ela se torna. Usar drogas para combater a depressão própria do alcoolista é a maneira mais segura de perpetuar a doença. As drogas inibem os mecanismos fisiológicos do amadurecimento do luto, impedindo ou retardando a catabolização dos produtos desta verdadeira intoxicação. Sob a sua ação, o cérebro não reage, não se defende, cronificando este mal tão tenebroso.58 Parece não haver outro caminho senão o amor, o trabalho, a coragem e, principalmente, o desenvolvimento da auto-estima. Libertar-se, através da solidariedade (e é aí que está o enorme valor dos AA), dos medos que acossam o ser humano desde os tempos das cavernas: do escuro, do desconheci- 58 As drogas psicotrópicas são justificadas quando há distúrbios de conduta, com risco de suicídio. Mesmo assim, somente nas fases agudas da doença, ou enquanto persistirem os fatores desencadeantes. 53 do, do ridículo, do fracasso, da dor, da fome e da morte. Não se render, nunca! “encuanto hay sangre en las venas”... porque tem alguém ao meu lado. O abandono do alcoolismo traz enorme gratificação: lubrifica o coração e enche a alma de confiança. Disse um ex-alcoolista amigo, outrora praticante de mergulho, o que sentiu ao parar de beber: - “Parecia que eu estava subindo de um mergullho profundo: quanto mais perto da superfície, mais luminosidade eu enxergava, como uma luz no fim do túnel, como uma Estrela de Belém indicando o rumo da esperança. A vida ganha sentido e vai pegando, de novo, cor”. RESSACA As noites de bebedeira são noites longas, de insônia. Há tambores de guerra retumbando na cabeça, ruflando em ritmo cardíaco, espantando o sono pra longe. Parecem mais com tinidos de demônios enfurecidos, martelando grandes bigornas nas profundezas do inferno. Esses brilhos que no escuro faíscam por todo o lado se parecem com fagulhas nascidas ao martelar o ferro feito uma brasa. Lá no sistema límbico, há um pintor impressionista pintando quadros medonhos num alto contraste tão forte onde não existe os meio-tons e os claros quase se somem. No escuro mais tenebroso das noites negras, sem lua, os rumores se parecem com trovões tonitroando em pores-de-sol escondidos atrás de horizontes de chumbo. Há também um feiticeiro que agranda as sombras que moram dentro das almas. Com sua varinha mágica, desperta a angústia e o medo que dormem como um cachorro. Como dóem as suas mordidas! Talvez por terem salivas contaminadas por raiva. Venha logo, meu deus sol, acabar com tudo isso. Mande a noite pra longe e que leve a morte com ela. Ao pintar mil arco-íris, nas pérolas de orvalho que enfeitam as teias de aranha, numa aurora de julho, tu és o riso da criança em reunião de velório. Toda Sexta-feira Santa tem seu Sábado de Aleluia. 54 EFEITOS DO ÁLCOOL Vasoconstricção/Vasodilatação Cérebro Vasopressina Cefaléia Hormônio. Antidiurético (Rins) reabsorção tubular da água Irritação química Degener. neuronal Diurese Sede Delírio Coma Depressão Depres. sistema reticular autoconf. racioc.equilíbrio Nervos periféricos Desmielinização Polineurites Bloqueio da condução Anestesia Irrit. celular Impotência sexual Perda da elasticidade Rugas, estrias Pele Vasodil. Calor Rubor Suor HipotDesmaio Rins Renina Plasm.Ativid. Renina-Angiot.-Aldosterona Hipertensão arterial Coração Miocardiopatia alcoólica, Coronariopatia Arritmias cardíacas Pênis Degener. vascular Distúrbio ereção Impot. sexual Estômago Irritação mucosas Gastrites ÚlcerasEnteritesGlossites Fígado Irrit. quím. Destr. hepatócitoHepatite Cirrose Músculos esqueléticos força física Atrofia muscular PRINCIPAIS DANOS CAUSADOS PELO ÁLCOOL 55 Danos cerebrais Distúrbios de conduta Degeneração das funções psíquicas Degeneração do caráter Danos sexuais Distúrbios da ereção peniana Retardo da ejaculação Impotência sexual Danos cutâneos Perda da sensibilidade da pele Neurites periféricas Danos digestivos Estômago: gastrite, úlceras, enterites, glossites Fígado: hepatite alcoólica, Ca, Cirrose de Laenec Danos circulatórios Arritmias cardíacas Insuficiência cardíaca Hipertensão arterial Danos renais Aumento da angiotensina com hipertensão arterial Danos musculares Perda da força física Atrofias musculares TEOR ALCOÓLICO DE DIVERSAS BEBIDAS59 Cerveja .............................................................. 3,5 a 6% Vinho de mesa.................................................. 10 a 14% Cida ................................................................. 5,66 a 6% Champanhe ...................................................... 10 a 15% Vinho do Porto ......................................................... 20% Vinho Madeira ................................................. 19 a 24% Cachaça ............................................................ 38 a 53% Uísque .............................................................. 40 a 50% Conhaque ......................................................... 45 a 48% Kirsch ....................................................................... 50% Absinto ..................................................................... 59% Benedictine .............................................................. 52% 59 Idem. p. 22. 56 Chartreuse ................................................................ 43% Licores em geral ....................................................... 50% Coca-Cola .................................................................. 0%60 COM OS PÉS NO CHÃO Na teoria tudo isto é muito bonito, mas, na prática, não é assim que funciona. A vida é muito mais complexa do que supõe a nossa ingenuidade presunçosa. Na vida real, os efeitos que parecem maléficos podem ser, na verdade, benéficos. O cigarro, por exemplo, contém um alcalóide chamado nicotina que causa vasoconstricção, diminuindo, teoricamente, o aporte de sangue para os corpos cavernosos do pênis, prejudicando a ereção. Entretanto, este efeito, que na verdade acontece, pode ser amplamente compensado pelo bloqueio do mais poderoso de todos os broxantes, que é a adrenalina desencadeada pelo cérebro animal agindo sobre as glândulas supra-renais. Se um cigarro ajuda um homem a ficar menos tenso, menos ansioso, certamente haverá uma melhoria no seu desempenho sexual, mais do que se se abstivesse de fumar. Assim, a sedação causada pela nicotina pode melhorar, pelo menos temporariamente, o desempenho mental de uma pessoa. Seria um efeito paradoxal? É por isso que, antes de ser desencadeada a campanha mundial contra o tabagismo, a grande maioria dos melhores repórteres de jornais, fumava. O distúrbio de ereção que aparece no grande fumante não é só devido ao fumo, mas à ansiedade que o leva a fumar cada vez mais. Por outro lado, há de se considerar, também, a dose da droga usada. Todos os medicamentos, em altas doses, são maléficos. O próprio arsênico, Em Cruz Alta, lá pelos anos de 1952 ou 53, não lembro bem, um peão do “seu” Pedro Fumagalli, o “tio” Lima, participava de um aniversário. Se não me engano, era o aniversário do Moacir, filho do “seu” Pedro. O Lima nunca tinha tomado Coca-Cola. Ao lhe oferecerem uma garrafinha, recusou, educadamente, informando que não ingeria bebida alcoólica, “de jeito e maneira”. Garantiram que não havia álcool, mas, escondido, adicionaram uma dose de conhaque. O “tio” Lima ia bebendo e ficando cada vez mais alegre. “Eta bebidinha gostosa” - dizia ele. E dê-lhe Coca-Cola! Terminou numa bebedira tão grande que tiveram de levá-lo para casa. No dia seguinte, intrigado com o acontecido, assim justificava ele: “Vai ver que uma só garrafa não embebeda, mas com tantas que eu tomei...” Na sua ingenuidade de gaúcho do interior, jamais pensou em maldade. 60 57 um dos venenos mais potentes que existe, em pequenas quantidades cura a sífilis (Salvarsan) e aumenta a longevidade do ser humano.61 A irradiação atômica que destruiu Iroshima e Nagasaki é a mesma que salva da morte milhões de seres humanos condenados pelo câncer. A própria glicose, a fonte de energia dos animais, quando em demasia, causa o coma diabético; quando de menos, o coma hipoglicêmico. Ambos podendo ser mortais. Tudo o que foi dito acima pode ser dito também com referência ao álcool. Para que o álcool cause anestesia e alteração (despolarização) do impulso nervoso, a quantidade a ser ingerida deve ser muito grande. Na prática, a dose ideal de bebida alcoólica varia com a resistência e o hábito de cada um e, principalmente, com o estado de espírito na ocasião. Porque, como já vimos, o álcool é um catalizador positivo dos estados da alma. O alcoolista crônico tem distúrbios de ereção não tanto por causa da bebida, mas devido à da ansiedade que o faz beber sempre mais: “Carrego tanta mágoa / dentro do peito / que o fogo desta cachaça / já não me faz mais efeito”. Como o álcool causa ansiedade, cria-se um círculo vicioso: quanto mais ansiedade, mais álcool; quanto mais álcool, mais ansiedade. Os dois grandes males das drogas, tanto do fumo como da maconha e do álcool são a dependência que causa e as ações deletérias sobre as células nervosas e vasculares que aparecem a longo prazo. Somente o médico inexperiente em medicina e, principalmente, em comportamento humano, irá proibir o seu paciente, em fase final de carcinoma prostático, de tomar o seu cálice de vinho a que estava acostumado há tantos anos. “E NO ENTANTO, ELA SE MOVE!” Para não ser queimado na fogueira da Santa Inquisição, ou ser condenado à prisão perpétua nas masmorras do Vaticano, Galileu teve que desmentir a sua teoria que a Terra se movia e não era o centro do universo, imóvel. Vinha ao encontro do dogma católico do geocentrismo. Depois de abjurar solenemente a sua tese, conta a História, ele pronunciou em voz baixa esta frase: “No entanto, ela se move!” 61 Fazendo uma pesquisa sobre a causa da longevidade dos moradores de uma cidade da Europa, os pesquisadores encontraram, nessa localidade, uma taxa de arsênico muito superior à encontrada em outros locais, sem, porém, atingir níveis tóxicos. 58 O mesmo acontece com o álcool. Por mais que se queira defendê-lo aquece, desinibe, alegra - a longo prazo é uma substância essencialmente maléfica, como o veneno. Daria para imitar Galileu: depois de ler as páginas anteriores, defendendo o álcool, dizer em voz baixa, mas convicto: “No entanto, ele faz mal!” Imediatamente após ingerir a bebida alcoólica, ocorre uma moderada queda da pressão arterial à custa da vasodilatação periférica. Entretanto, na forma crônica do alcoolismo, observa-se acentuada elevação das pressões tanto máximas como mínimas. Esta elevação é mais evidente a partir dos 55 anos e, principalmente, nos homens. O grau de hipertensão depende da quantidade de álcool ingerida diariamente e, como é lógico, com a graduação alcoólica da bebida: causa mais hipertensão aos bebedores de cachaça, uísque, conhaque do que aos que ingerem cerveja, vinho, licor. Felizmente, após certo período de tempo de abstenção do álcool, na grande maioria dos casos, a pressão arterial volta ao normal. De tudo o que foi exposto parece que não existe nenhuma dúvida de que as conseqüências do alcoolismo crônico são devastadoras. Diferente do cigarro que só causa prejuízos ao usuário, o álcool, que corrói o corpo e a alma do viciado, também desmantela a sua família. “É sempre, em toda ocasião, O trago o pior inimigo Com carinho eu vos digo, Recordem com cuidado O que ofende embriagado Merece duplo castigo”.62 GRAUS DE EMBRIAGUEZ - (Herber Soares Vargas) Herber Soares Vargas, no seu excelente livro “Repercussões do Álcool e do Alcoolismo”, divide a embriaguez em três estágios: subagudo, agudo e superagudo. Cada estágio é dividido em quatro tópicos, quatro esferas de ação: fisiológico, emocional, mental e comportamental. 1º SUBAGUDO Fisiológico Ausência de sensação de fadiga Olhos brilhantes 62 HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. Buenos Aires: Ediciones Alemar, 1974, p. 250. 59 Sensação de calor Insensibilidade à dor Facilidade de movimento EmocionalInibições, autocontrole e discrição Autoconfiança Irresponsabilidade moral e intelectual Hilaridade e sentimento de camaradagem ou tristeza e autocompaixão Mental Desempenho fácil c/rápida associação de idéias Falsa impressão de maior capacid. intelectual Sensação de força Comportamental Nível indiferenciado de comportam. onde a 2º AGUDO Fisiológico pressuposição básica é a de que todos são iguais Humor contagiante, prazer e contentamento Andar cambaleante, ataxia geral, tremor, vertigem, vômitos, gestos não-coordenados, tônus muscular relaxado, sensibilidade cutânea embotada EmocionalSintomas de uma narcose mais profunda, com irritabilidade, explosões de raiva e violência e posterior meditação solitária Mental Fala perturbada ou linguagem descosida e incoerente Idéias confusas Amnésia ou “black-outs” (brancos) Comportamental Conduta provocadora, insolente, desrespeitosa e impulsiva Possibilidade de práticas anti-sociais e conduta perigosa 3º SUPERAGUDO Fisiológico (10 a 20% mortalidade) Temperatura subnormal Respiração lenta e estertorosa Pele pálida ou cianótica e fria Retenção urinária ou incontinência urinária Pupilas dilatadas Reação fotomotora insatisfatória 60 EmocionalAnestesia completa Embrutecimento generalizado Mental Reflexos lentos ou ausentes Anestesia completa Amnésia anterógrada e retrógrada Estado de inconsciência Comportamental Inércia generalizada ALCOOLEMIA: dosagem de álcool no sangue POR LITRO DE SANGUE POR Kg DE PESO Sem intoxicação aparente 0,5 a 1,5 ml/litro 0,37 a 1,12g/kg Embriaguez leve 1,0 a 2,0 ml/litro 0,75 a 1,50g/kg Embriaguez moderada 2,0 a 4,0 ml/litro 1,50 a 3,00g/kg Coma alcoólico 4,0 a 5,0 ml/litro 3,00 a 3,76g/kg Dose mortal 4,0 a 6,0 ml/litro 3,00 a 4,50g/kg PAPAGAIO, MACACO, LEÃO E PORCO No seu livro “Calde e Sfaciate”, Remo Marcucci ilustra, com muito humorismo, estes quatro degraus do alcoolismo. Conta a história de um pároco da zona colonial italiana, Don Giovani, que tinha problema de alcoolismo no seu rebanho: 61 AS VINHAS DO DIABO “Lá embaixo, nas pirambeiras do Rio Piaí, havia um local onde todos bebiam como loucos. No domingo eles iam à missa e, depois, na bodega que se enchia de beberrões. Jogavam cartas e bocha, mas não para jogar e sim como pretexto para beber. Depois do meio-dia estavam cheios como barris das cantinas. Então, vinha pra fora blasfêmias, discussões, brincadeiras estúpidas e por fim pauladas de cegar ou pedradas de arrebentar abóboras, mesmo em quem não tinha nada com a briga. As mulheres iam para casa rezar junto com os filhos pequenos, para o patrão (marido) não chegar bêbado e violento, ocasião em que sobravam pauladas para toda a família. As coisas ficavam mais feias ainda. Faziam de tudo. Um dia, atearam fogo na igreja. Por sorte e em tempo, o sacristão, com a ajuda das mulheres, conseguiu apagá-lo em tempo. O inspetor do travessão, que poderia dar o exemplo, era o primeiro a beber. O soldado da Brigada que o padre buscou na cidade, passados dois domingos, começou a beber ele também. Don Giovani não sabia mais o que fazer! No dia da festa de Nossa Senhora da Boa Viagem, a igreja estava lotada. As mulheres num lado e aqueles baderneiros no outro, prontos, esperando que a missa terminasse para, em procissão, irem à bodega. Começou a missa e Don Giovani subiu ao púlpito. Depois de ter feito o sinal da cruz, olhou os presentes: primeiro as mulheres e crianças, depois aquela malta de vilões. Tinha vontade de expulsá-los da igreja. Mas, lembrou-se: “se os mando embora, eles irão à bodega e, brabos, beberão mais ainda”. Em pensamento, pediu ajuda ao Espírito Santo e, depois, disse: - Carríssimos irmãos. Terminado o Dilúvio, Noé desceu da Arca e construiu a sua casa. Ele plantou árvores, e até uma videira. De noite, veio o diabo e regou as vinhas com sangue de papagaio; noutra noite ele voltou e regou com sangue de macaco. Nunca contente, na noite seguinte molhou com sangue de leão e, por último, noutra noite ainda, regou as vinhas com o sangue de um porco. Os dias foram passando e aquelas vinhas se transformaram num parreiral, e do parreiral veio a uva. Noé fez o vinho. E começou a beber. O primeiro e o segundo copo lhe fizeram bem, mas ele, nunca contente, começou a mandar goela abaixo mais um pouco. Começou a falar como um papagaio. Enquanto falava, bebia... e pôs-se a rir, a fazer sinais, a coçar-se, a fazer macaquices. Como um macaco. E não parou aí. Dê-lhe vinho! Logo, ele parecia um leão. Queria brigar e dar pauladas de arrepender os ossos. Precisavam segurá-lo e, para acalmá-lo, lhe ofereceram mais vinho. Depois, 62 ele de quatro, foi gatinhando em direção às capoeiras a vomitar, até que adormeceu dentro de uma valeta da estrada, como um porco. Com o sangue dos animais regado nas vinhas, o diabo fez uma das suas! O vinho, depois do terceiro copo, transforma os homens em animais. Prosseguindo: - Pergunto a vocês, caríssimos irmãos: há papagaios aqui? Talvez macacos? Leões? E porcos? Deverei chamar os meus caríssimos paroquianos de animais? Não. Não acredito que não sois verdadeiramente homens, não. Cuidarei como bebem e, depois, no livro do batismo, escreverei o nome verdadeiro de cada um. Até eu bebo. Mas bebeis como homens ou como animais? E saberemos o nome, o nome verdadeiro. Saberemos a quem o diabo dirá: “aquele é meu sobrinho”. Terminada a missa, havia pouca gente na bodega. E os que estavam lá queriam saber se havia entre eles papagaios, macacos, leões e, talvez, porcos. Naquela semana, pelo menos, com a ajuda do Espírito Santo, Don Giovani padeceu menos”.63 *** Estas comparações são extremamente úteis na fiscalização crítica do comportamento social e familiar do ser humano, especialmente no campo do alcoolismo. O medo do ridículo se fundamenta na timidez, uma característica marcante do alcoolista. É o seu calcanhar de Aquiles, pelo menos na fase inicial da doença. O ridículo é uma arma tão poderosa que nem precisa ser mostrada. Basta uma insinuação, uma alusão apenas para intimidar, por algum tempo, os mais afoitos corações. “Ghéto visto, ciuceton?”64 MARCUCCI, Remo. “Calde e Sfaciate”. Porto Alegre: Posenato Arte & Cultura, 1989, p. 79. 63 64 “Você ouviu, seu beberrão?” 63 Em defesa do vinho “El vin l’é bon per chi lo sa bever”.65 Os que defendem o vinho, sempre consumido em pequenas quantidades - um cálice às refeições - alegam que o resveratrol, dos tintos, é um potente redutor do LDL (mau colesterol) e elevador do HDL (bom colesterol). E que, além de conter açúcares, potássio, flúor, tiamina, riboflavina, niacina, vitamina A e ácido tartárico, contém o tanino com sua conhecida ação bactericida e antiviral. Tudo isto os sucos de uva contêm ainda em maior quantidade. Afirmam, também, que o álcool, na graduação entre 10º e 12o, diminui os radicais livres responsáveis pela degeneração celular causadora do tão temido envelhecimento precoce. Para os imigrantes italianos que colonizaram o Rio Grande do Sul, o vinho é o leite dos velhos e, para os mais entusiasmados, o elixir da juventude. Este último argumento - retardar a velhice - é difícil de ser aceito. Os malefícios do álcool66 suplantam, em muito, os seus benefícios. Entretanto, é o combate ao estresse que explica a ação benéfica da bebida alcoólica quando consumida moderadamente. Nestas condições, não há dúvida que atenua os danos causados pela ansiedade, a liberadora do ácido e do veneno que carregamos nas nossas glândulas supra-renais e que corrói vasos, nervos, músculos e cérebros, tornando-nos cardiopatas, ulcerosos e impotentes; consumindo nossa juventude e nossa saúde. Explica a brusca e dramática deterioração física de uma pessoa submetida a um grande sofrimento mental, como a perda de um ente querido, um diagnóstico mortal, uma falência. De um mês para outro fica irreconhecível: emagrece o rosto triste, os cabelos embranquecem, e os olhos perdem o brilho que caracterizava a alegria de viver. Quem mais se preocupa com a velhice, envelhece mais rapidamente. Esta aparente inibição do estresse causada pelo vinho talvez compense, ao menos em parte, os estragos que o álcool causa sobre todas as células do organismo, em especial as do cérebro, vasos e fígado. 65 “O vinho é bom para quem sabe bebê-lo”. Provérbio italiano. 66 O álcool do vinho parece ser mais danoso do que o das outras bebidas, com excessão da “graspa” (aguardente extraída do bagaço da uva). Na sua composição há uma considerável percentagem de álcool metílico, que é o álcool da madeira, sabidamente mais agressivo à célula hepática do que o etílico. 64 Vive melhor e mais tempo aquele que bebe dois cálices de vinho por dia e, graças a este vinho, fica mais tranqüilo, do que o seu cardiologista abstêmico, ansioso e estressado, preocupado com o colesterol e com as contas. Quando a cuca vai bem, pouca coisa faz mal. Para um Rasputin desvairado pela loucura, arsênico era refresco. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer do cigarro, que sempre é nocivo. “In medio, virtus” diziam os antigos romanos. O meio-termo, assim como a sabedoria e a cultura, são conquistas da velhice de gentes e de povos. Com referência ao vinho, a moderação significa temperança na lista das quatro virtudes capitais: prudência, temperança, coragem e justiça. O único extremismo aceitável é o da virtude, ensinou Sócrates, porque não existem meias-verdades, apenas verdades incompletas. Ninguém é meio-honesto e nenhuma mulher é semivirgem. Platão ampliou este conceito no sentido da harmonia universal. Um dos tantos erros de Aristóteles, com suas lamentáveis idéias sobre a inferioridade racial, a escravidão e a superioridade masculina, foi definir a virtude como o hábito de se moldar ao justo meio e de se evitar, em tudo, os extremos. Foi o mesmo que negar-lhe toda a função no desenvolvimento moral da humanidade. A virtude é sempre extremista: não aceita o meio-termo. O extremismo, exceto na virtude, só engendra equívocos, injustiças e, principalmente, ansiedade. É preciso abandonar o pensamento maniqueísta de dividir as coisas em boas e más, próprio da mentalidade primitiva onto e filogenética que originou a magia e o fanatismo, que fez sacrifícios sangrentos, que calcinou milhões de judeus em fornos crematórios e que acendeu a fogueira onde foram queimadas, vivas, mais de cem mil mulheres apavoradas. Nós somos Deus e o diabo ao mesmo tempo, com nossas virtudes e nossos defeitos que nos tornam humanos. Felizmente, porque não há nada mais enfadonho do que o isolamento dos píncaros onde se encontra Deus. No topo do Everest só há frio e silêncio. O único ruído é o do vento, lúgubre e soturno como um lamento. Como o homem normal não existe - não conheço nenhum apreciador do vinho que se limite aos dois cálices diários preconizados - o grande problema é saber o limite entre o bom e o ruim, o certo e o errado, sempre tênue e impreciso como são todas as fronteiras, tanto as geográficas como as econômicas e as morais. É preciso muita tolerância, porque ninguém - ninguém mesmo! - é dono do caminho nem da luz e muito menos da verdade. “O difícil costuma ser 65 perimetrar com certeza. De errar, nasceu a pobreza Mas, também a opulência. A primeira é conseqüência Desta segunda... inclemência”.67 Se a pobreza nasceu de um erro, da má distribuição da renda como afirma Larralde, também nasceu, daí, a opulência... O Príncipe das Trevas não é o “portador da luz”? Como é difícil “perimetrar com certeza”, discernir entre o certo e o errado! 67 LARRALDE, José. 66 Vinho na sopa “Chi ga inventá l’ vin, se no l’sé in paradiso el xê visin”.68 Todos sabem que os bons vinhos tintos devem ser degustados à temperatura ambiente das cantinas da Europa, isto é, frescos, mas não gelados, porque o frio demais anestesia as papilas gustativas. Na Grécia antiga, o desjejum de Sócrates era pão embebido em vinho tinto. Este gosto era compartilhado por Judas, no tempo de Cristo. Na Serra gaúcha, ligeiramente fervido com cravo, açúcar e canela, estimula a circulação paralisada pelo frio do inverno, lubrifica juntas entorpecidas pelos anos, torna leve o coração, dá cores à vida e asas à imaginação. Faz o mesmo que o chimarrão fazia ao doutor Aureliano: “...vai entrando pelo sangue / vai melhorando as macetas, / curando as juntas doridas / como água arisca de sanga / sobre loncas ressequidas”. O velho rejuvenesce, o covarde cria coragem, o avaro fica pródigo e o intransigente se amansa. Se três ou mais copos de vinho criam inimizades profundas, um ou dois reconciliam até inimigos de morte. Depois de uma lida no campo, debaixo de chuvisqueiro gelado que vara até o poncho mais grosso, um copinho de vinho tinto ajuda a se aquecer. Torna o dia menos cinza e até parece que o sol não demora a aparecer. A felicidade está nas coisas simples da vida: saúde, amor, trabalho, amizade. Também está na verdade do “in vino veritas”... e na moderação. Disse Jean Jacques Rousseau: “O verdeiro médico do homem é a temperança e o trabalho. O trabalho aguça o seu apetite e a temperança obriga a não abusar dele”. *** Sentada à mesa, sempre no mesmo lugar para não dar dor nas costas como acreditava, enrolada no seu “xale” de lã, negro do eterno luto dos velhos, por pais, marido, filhos e até netos, a vó “Rosseta”, viúva com alma de andarilha (cada dia na casa de um parente), espanta o frio com um fumegante prato de sopa quente. Atenta, despeja dentro dele duas grandes colheradas de vinho tinto “barbera”. Espalha, por cima, um punhado de queijo parmesão ralado - o picante e gostoso “formaio gratá”. 68 “Quem inventou o vinho, se não está no paraíso, está vizinho”. Provérbio italiano. 67 - “El vin l’é l’late dei veci” (“O vinho é o leite dos velhos) - comenta ela, sorrindo com malícia. Com a colher, recolhe, junto à borda do prato onde é menos quente, o gostoso caldo de galinha caipira, antes amarelinho, agora tisnado de violeta. Sopra suavemente para ajudar a esfriar e o sorve com prazer, fazendo ruído com a boca. Um cheiro bom evola junto com o vapor da sopa, enchendo a cozinha de perfume. Logo, uma bela cor rosada lhe enfeita as faces murchas e um brilho de satisfação reluz nos seus olhos de menina. Parece que o vinho lhe desentorpece as juntas doridas e esquenta o seu sangue de velha... Como o chimarrão do Aureliano, sorvido na madrugada. *** Num almoço ou numa janta de inverno, serranos, uma ou duas generosas colheres de vinho tinto, derramadas no prato de sopa fumegante ou no molho para a macarronada, perfuma toda a cozinha, refina o gosto da comida, realçando cheiros e sabores. Tem a alma dos almoços de longínquos domingos de festas de Primeiras Comunhões, perdidos na distância nebulosa dos tempos de criança - sopa de agnolini, cren, galeto, massa e carne “a lesso” - e a alegria da família reunida. Meninos de azul marinho, fita branca no braço; meninas vestidas de noivas, com as faces afogueadas de bemaventurança divina. Depois, em todas suas vidas, nunca mais esquecerão. *** Antes de fazer amor com quem se ama, um ou dois cálices de bom vinho - três no máximo, nunca mais - bloqueia as inibições de um cérebro sisudo, tolhido pelos condicionamentos negativos de uma educação muito repressiva, com suas lamentáveis culpas e seus desastrados medos de que se nutrem os psicanalistas. A pele da morena fica mais macia, mais cheirosa, seus cabelos mais sedosos, seus olhos brilham mais e os seus lábios de açúcar agora têm gosto de mel... ou de roxos figos maduros. Porém, o grande segredo é degustá-lo sempre aos poucos. Nenhum produto da terra é totalmente mau nem totalmente bom. Das plantas mais venenosas saem os mais úteis remédios; da peçonha da jararaca, produz-se os anticoagulantes. A água que destrói e afoga é a mesma que batiza e dessedenta. São Paulo, antes de ser iluminado, era o terror dos cristões. Consagrado, na missa católica, o vinho é sangue de Cristo: rubro, quente e genero- 68 so como deve ser o sangue de um homem jovem morrendo por suas idéias, aos trinta e três anos de idade. Tudo o que é demais faz mal, desde a luz à riqueza, desde a água ao calor, desde a comida ao remédio. O amor bom, produtivo, se parece ao sol do inverno espantando o frio do mundo. Porém, quando em demasia é paixão com nuances destrutivas: terrível sol do Saara estorricando o deserto. Os medicamentos mais potentes são tomados sempre às gotas, pesados aos miligramas, nunca em grandes goles ou aos quilos, como os inocentes chás caseiros. Sempre se há de desconfiar dos remédios prescritos em grandes doses: geralmente ineficientes. Nenhum produto da terra é completamente mau, nem completamente bom. Quando o ocaso da vida se aproxima, já não tão longe, com suas ausências e seus frios, um copo de vinho ajuda a espantar a solidão. Dou razão à vó “Rosseta : “O vinho é o leite dos velhos”. Deixa o leite para as crianças! Quando eu me for, deste mundo, não quero choro nem rezas. Em vez de flores e velas, botem no meu caixão uma garrafa de vinho... “merlot”, “cabernet” ou “barbera”. 69 Vinho e cama Um copo de vinho, antes; comida gostosa, depois. O resto é por conta dos dois, na intimidade do quarto. Este é o segredo do amor feito entre dois amantes. 70 ii - receitas de bebidas 71 72 Moscatel Parece que o nome dos objetos ficam ligados a eles como se fossem extratos das suas almas. É o sentimento de nostalgia que invade a nossa alma quando descobrimos um brinquedo do filho, de quando ele era pequeno, esquecido num armário do sótão; quando se topa com uma velha colher de pau que nos acompanhou em mil acampamentos felizes; quando se encontra, depois de várias décadas, o primeiro canivete que ganhamos de presente do vô, agora com a lâmina quebrada, enferrujada, mas com um brilhante cabo de madrepérola onde ainda se reflete o sol, dando reflexos verde-azulados dos nossos sonhos de menino, como os brilhantes escaravelhos de cristal negro do Jiménez. Parece que eles ativam certos compartimentos da memória, esquecidos no inconsciente pelo passar dos anos. Na verdade, nós animamos os objetos vestindo-os com os sentimentos que eles nos recordam. É quase como um reflexo condicionado. É por isso que jamais se deve falar em corda, em casa de enforcado. Trazem más recordações. Com o passar dos anos, com a convivência, com o tato, os objetos vão criando alma ao ocupar espaços no rol dos nossos afetos. A palavra “moscatel” é uma delas. Está carregada de sentimentos emotivos de quando eu brincava no pátio da velha casa de madeira, todo coberto de laranjeiras e caqueiros carregados de frutos, sanhaçus e sabiás. De calças curtas, pés descalços, ajudava o pai a colher as laranjas maduras e espremê-las para o seu apreciado “vinho de laranjas” com sabor moscatel. Moscatel da cor do ouro! Moscatel que não esqueço! Com a claridade da janela incidindo no copo, parecia um campo de trigo maduro, todo inundado de sol. Lembra canto de cigarra pousada na laranjeira, inebriada de luz, como eu com o moscatel. Moscatel de ouro e açúcar! Teu nome tem até música, sugerindo doçuras de mel. Como a infância distante de um Casimiro de Abreu, saudoso da aurora da sua vida, “que os anos não trazem mais”. Lembra tempos de menino, pés descalços, braços nus, correndo pelas campinas, ao redor das cachoeiras, atrás das asas ligeiras de borboletas azuis. 73 Vinho - a receita que falta O vinho é a única iguaria deste livro que não tem receita. É tão grande, tão nobre e valioso, que não cabe em páginas de livros, como o Oceano Atlântico não cabe dentro de um cálice. Tem tanta luz dourada ou sangue, dentro dele, tanto calor e tanta vida, que não é bebida de mortais. Por mais que se cuidasse, por mais que se caprichasse, jamais faríamos, em casa, um produto de qualidade como é o vinho produzido pelas grandes cantinas, de renome, com sua tecnologia apurada em séculos de tradição e experiência - desde Noé a Pasteur. E muito estudo! Cansei de ouvir de um colono bem-intencionado, ao me presentear com um garrafão de vinho tinto feito em casa, estas palavras: “Este sim, é de pura uva! Não tem nenhum produto químico misturado!” Na sua santa ingenuidade, o meu amigo não percebeu que tudo o que nós consumimos, todos os alimentos e todas as bebidas, são produtos químicos. Até o ar que respiramos é formado por produtos químicos: nitrogênio, oxigênio e outros gases (hélio, hidrogênio, argônio, gás carbônico). Se a água fosse pura e não contivesse sais minerais e oxigênio nela dissolvidos, não seria potável - mera substância incolor, inodora e completamente sem sabor; indigesta até. A água cristalina que jorra da vertente, que bebemos com tanto prazer, tem gosto de água e não de H2O. A melhor água potável que a memória ainda alcança é a água do filtro de barro dos meus tempos de menino, quando ainda não havia encanamentos. Aerada pelos poros do filtro, tinha o gosto bom de cerâmica com o dom de saciar. Procurar o gosto de suco de uva no vinho é um equívoco de quem nunca entendeu o que é vinho. O vinho não tem nada a ver com suco de uva. Vinho é vinho porque tem alma de vinho: cheiro de vinho, cor de vinho e, principalmente, gosto de vinho. Neste livro não vai nenhuma receita de como fabricar vinho, porque seria muita pretensão. Esta bebida é tão evoluída, tem tanta cultura nela envolvida, que pretender fabricá-la em casa seria o mesmo que querer construir um foguete interplanetário no porão da velha casa de madeira dos meus tempos de menino, lá onde o meu falecido pai fabricava, nas horas de folga da fábrica - era operário - o seu gostoso e inesquecível vinho de laranjas da cor do ouro, com sabor moscatel. 74 Vinho de laranjas (Receitas do vô Arlindo Festugato) São duas as receitas do vinho de laranja. Ambas têm mais de cinqüenta anos e foram várias vezes experimentadas, testadas e aprovadas. São de autoria do meu falecido pai. A primeira vez que ele fez vinho de laranja, depois de pronto enterrou vários litros no porão da velha casa de madeira que existia onde hoje está o Edifício Rembrandt, em Caxias do Sul. Lembro que ele ficou inconsolável por nunca mais descobrir o local onde havia escondido o tesouro. O coitado nem suspeitava que todo o vinho fora tomado, às escondias, por mim e meus amigos bagaceiros. E parece que não fez mal a nenhum deles, porque hoje são médicos, advogados, dentistas, arquitetos e engenheiros. Não é verdade, Toni, Ronald, Irani Moroso, Valtemor Scariot, Ademar Cassol e Paulo Grasselli? Primeira receita Ingredientes: Suco de laranjas ................................................. 10 litros Açúcar mascavo ........................................................3 kg Água ................................................................ meio copo Cachaça ............................................................ meio litro Canela em pó.............................. 1 colherinha das de chá Casca de três laranjas Modo de preparar: 1. Deixar os 10 litros de suco de laranja num barril com tampa. 2. Retirar a espuma que se forma na superfície do líquido, diariamente. 3. Quando a fermentação estiver terminando (desprende poucas borbulhas), acrescentar 3 kg de açúcar mascavo. 4. Quanto terminar a fermentação, ferve-se em meio copo d’água a casca de três laranjas, cortadas bem fininho. Acrescenta-se a canela em pó e despeja-se tudo dentro do barril. 75 5. O mosto fica no barril durante 30 dias. Deve-se ter o cuidado de deixar um pequeno orifício na tampa para sair o gás carbônico que se forma. 6. Depois de 30 dias, filtrar e engarrafar. 7. As garrafas são armazenadas em local fresco e escuro, durante 60 dias. Findo este prazo, o vinho está pronto para ser saboreado. Segunda receita Ingredientes: Caldo de laranjas ............................................. 10 xícaras Açúcar cristal .................................................... 8 xícaras Modo de preparar: 1. Descascar as laranjas, de preferência ácidas, e espremê-las com o espremedor. 2. Coar o caldo e juntar o açúcar, mexendo bem para que se dissolva todo. 3. Engarrafar este caldo em litros, deixando o nível do líquido dois dedos abaixo do gargalo. 4. Tapar os litros com um pano fino ou filó e deixar em repouso em lugar fresco e escuro. 5. Examinar a cada 10 dias. Cada vez que ao examinar os litros tiverem a presença de uma crosta no fundo, o conteúdo deve ser transvasado. 6. Deixar pelo menos 60 dias. 7. Depois de 60 dias, coar o líquido, filtrar com algodão ou papel filtro e engarrafar novamente. 8. Arrolhar bem e deixar descansar por mais 60 dias. Sabor: Moscatel. 76 iii - receitas de comidas “O Franza o Spagna, basta que se magna”.69 “Ou França ou Espanha, basta que se coma”. Ditado italiano que insinua não ser exigente na comida. 69 77 78 ALGUMAS MEDIDAS ÚTEIS NA COZINHA (1 pessoa = homem ou mulher adultos. Quando os comensais são somente homens e, principalmente trabalhadores braçais, deve-se calcular em dobro a comida a ser servida). Arroz: 1 xícara para 3 pessoas 1 colher sopa = 20 g Massa seca: 150 g por pessoa Massa fresca: 200 g por pessoa Carne de gado sem osso: 500 g por pessoa Carne de gado com osso (costela): 700 g por pessoa Carne de ovelha: 700 g por pessoa Ovos fritos ou cozidos: 2 por pessoa Ovos na farinha para fazer a massa: 1 ovo por pessoa Sal (na carne): 3% do peso. Isto eqüivale a uma caixinha das de fósforos vazia, rasa de sal fino, para cada quilo de carne. Líquidos: 1 copo = 250 g 2 copos = meio-litro = 500 g 6 xícaras = 1 litro = 1 kg Caldo de carne concentrado = 2 cubinhos para cada litro de água. 79 Arroz com charque O arroz com charque tem uma pequena/grande diferença do arroz carreteiro que também tem charque: usa bastante cebolinha verde, sem salsa. Fica um arroz esverdeado, extremamente gostoso. Quando pronto, não leva queijo ralado que embotaria o sabor. Ingredientes: Charque cortado em cubinhos de 1 cm3 .................500 g Arroz ................................................................. 2 xícaras Cebolinha verde, picada ............................. 1 prato fundo Alho.................................................................... 3 dentes Óleo vegetal ............................................ 1 xícara de chá Sal ........................................................................ a gosto Modo de preparar: 1. Dessalgar o charque com dois ou três aquecimentos sucessivos em água quente, próxima à fervura, sem deixar ferver. 2. Numa frigideira, fritar, no óleo, o charque cortado em cubinhos e dessalgado, junto com o alho picado. 3. Quando o alho começar a escurecer, acrescentar a cebolinha verde bem picada. A parte branca do caule é a mais gostosa. Deixar refogar por alguns minutos. 4. Quando a cebola verde estiver refogada, acrescentar água fervente até quatro dedos transversos acima do charque. Deixar cozinhar até a cebolinha verde ficar desmanchada. O caldo adquire uma belíssima tonalidade esverdeada. Se for preciso, acrescentar mais água fervente. 5. Corrigir o sal. 6. Despejar o arroz, já lavado, mexendo suavemente. Deixar cozinhar até fica no ponto. É importante que o charque seja gordo. De vez em quando é bom ingerir um pouquinho de colesterol saturado como matéria-prima para fabricar os nossos hormônios sexuais. O HDL é prejudicial? Dizem, os entendidos, que um bom copo de vinho tinto seco atenuará o seu mal. E se não adianta para nada, serve, pelo menos, para relaxar, ao neutralizar os venenos que as nossas supra-renais lançam no sangue. 80 Arroz com galinha caipira (ou pato, ou marreco) (Receita para 6 pessoas) Ingredientes: Galinha caipira, com os miúdos .................................... 1 Arroz ................................................................. 4 xícaras Cebola ........................................................................... 1 Alho.................................................................... 3 dentes Pimenta-do-reino moída na hora .......................... a gosto Sal ........................................................................... q.s.p. Modo de preparar: 1. Fritar a galinha caipira, cortada aos pedaços, até ficar dourada. 2. Acrescentar os miúdos, o alho e a cebola, refogando até a cebola dourar. 3. Colocar numa panela de pressão, juntando água fervente até três dedos acima da carne. 4. Salgar. 5. Quando a carne estiver macia, esmagar o fígado com uma colher e acrescentar o arroz e água fervente. 6. Servir com queijo ralado na hora, ao gosto de cada um. OBSERVAÇÃO - Louro, sálvia, salsa ou orégano prejudicam o sabor original do prato. Há quem aprecie derramar, na panela, quando o arroz estiver cozido, uma xícara de leite, algumas colheres de nata crua ou manteiga. 81 Risoto (4 pessoas) (Receita do Dr. Alcides Possebon) Ingredientes: Galinha caipira .............................................................. 1 Arroz branco ..................................................... 2 xícaras Cebola média ................................................................ 1 Queijo parmesão ralado ........................................ 1 pires Manteiga ............................................ 2 colheres de sopa Sal ........................................................................... q.s.p. Modo de preparar: 1. Cozinhar a galinha caipira numa panela, até ficar macia. Coloca-se a galinha na água ainda fria. Com o aquecimento, vai se formando uma espuma que sobrenada o líquido e que deve ser removida com a escumadeira. É o sangue que permaneceu nos tecidos. Se a ave for colocada na água fervente, esta espuma não se forma, prejudicando o aspecto da carne. No inverno, na colônia, ao preparar as refeições, os vidros das janelas das cozinhas ficavam embaçados como se fossem uma cortina separando o frio de fora do calor de dentro. Nada une mais que uma cozinha! O seu fogão à lenha é milagroso: aquece ambientes e almas, amacia relacionamentos. Diante de uma mesa farta, até a beligerância se some, dando lugar à tolerância, ao bom-humor, à camaradagem. Explica a alegria natural, a bonomia das pessoas gordas.70 2. Retirar toda a carne dos ossos e reservar tanto a carne como o caldo. Por cima do líquido fica uma gordurinha amarela, muito gostosa, típica das aves que comeram milho. Desprezar, além dos ossos, o excesso de gordura da carne da barriga e das cartilagens. 3. Na mesma panela em que foi cozida a galinha, fritar a cebola picadinha, até ficar dourada e macia. 4. Acrescentar a carne da galinha cortada em pedaços, o arroz e o caldo. 5. Salgar e deixar cozinhar. Esta é a hora de salgar. Salgar a galinha antes de estar cozida, retarda o cozimento. 6. Quando o arroz estiver pronto e no ponto (não muito mole), lançar dentro da panela a manteiga, o queijo ralado e desligar o fogo. Se a manteiga 70 Recentes estudos informam que a queda do Colesterol aumenta a agressividade. 82 não for fresca, antes de ser usada deve sofrer uma fritura para eliminar os ácidos graxos e os óxidos responsáveis pelo ranço. OBSERVAÇÕES Neste prato não vai sálvia nem louro nem mangerona nem tomate ou outro tempero qualquer. Fica o gosto autêntico, puro e maravilhoso da galinha caipira. Segundo o seu autor, as únicas concessões que podem ser feitas é juntar alguns cubinhos de caldo de galinha e algumas pitadas de pimentado-reino moída na hora. No lugar do queijo parmesão, vai muito bem um queijo prato de boa qualidade. É cortado o mais fino possível e espalhado sobre o arroz bem quente. Com o calor, ele se desmancha, cremoso, dando um gosto e uma liga incomparáveis ao prato. Acompanha vinho tinto. 83 Bacalhau à vó Emília “Bacalá a la visentina, bon de sera e de matina”.71 Não sei se o bacalhau da receita abaixo, feito pela vó Emília, minha mãe, é o bacalhau à vicentina que se refere o mote acima. Só sei que é ótimo de noite, na janta, ao meio-dia, no almoço, e também de manhã, no desjejum. Na colônia, a primeira refeição é sempre reforçada. Este bacalhau deve ser preparado ao mesmo tempo que se faz a polenta (receita na página 55). Quando se inicia a polenta, depois de ter derramado a farinha de milho na água salgada e fervente, colhe-se 1 xícara da mistura ainda crua e despeja-se no bacalhau. Chamaremos esta mistura de “polenta crua”. Ingredientes: Bacalhau..................................................................500 g Óleo .................................................................... ½ xícara Azeite de oliva ..................................................... a gosto Cebola média ................................................................ 1 Alho.................................................................... 2 dentes Pimenta-do-reino moída na hora .......................... a gosto Batata-inglesa ............................................................1 kg Sal .................................................... só se for necessário Polenta crua......................................................... 1 xícara Modo de preparar: 1. 2. 3. 4. Deixar, durante uma noite, o bacalhau imerso em água pura. Desfiar o bacalhau. Fritar o bacalhau desfiado no óleo vegetal, com cebola e alho picados. Acrescentar água quente, juntar as batatas cortadas pela metade e a xícara de polenta crua. 5. Adicionar a pimenta-do-reino esmagada e corrigir o sal. Lembrar que o bacalhau já é salgado. 6. Deixar cozinhar até o bacalhau ficar bem macio. OBSERVAÇÕES 71 “Bacalhau à vicentina, bom de noite e de manhã”. Provérbio italiano. 84 Faltou o azeite de oliva? O azeite de oliva é para ser colocado no prato e ao gosto de cada um, na hora de comer. Há quem prefira fritar o bacalhau no azeite de oliva e não no óleo de outros vegetais. Neste caso, o gosto do azeite fica muito carregado, encobrindo um pouco o sabor do bacalhau. Este prato deve ser acompanhado com polenta mole, feita na hora. Como? Se acompanha vinho? Para o leitor não ficar fazendo perguntas cretinas, já vou adiantando que o vinho não faz mal nem com o leite materno! *** “Doni, cani e bacalá, no xe boni se no i xe pestá”.72 72 “Mulheres, cães e bacalhau não ficam bons se não são sovados”. Provérbio italiano. 85 Brodo A vida noturna é produto da carne. Todos os animais, inclusive o homem, no início do seu período evolutivo, gastavam todas as horas de luz catando alimento: colhendo sementes ou frutos, ou pastando. Para aproveitar melhor o dia, dormiam assim que escurecia e acordavam com as primeiras luzes da aurora. Exatamente como faz, até hoje, a galinha e todos os herbívoros. A carne mudou hábitos, originando os predadores. Teve tanta importância nos hábitos animais que fez os herbívoros serem diurnos e os carnívoros, noturnos. A carne, graças à maior energia que concentra - um grande animal abatido alimenta toda uma tribo por vários dias - presenteou o homem com o ócio e com todas as suas conseqüências e regalias. A conseqüência é o incremento da agressividade ao valorizar a força bruta na sobrevivência da espécie, elegendo o músculo acima do coração. A regalia é favorecer o surgimento da arte. Porém, sempre em segundo plano, isto é, depois de ter a barriga cheia, a dispensa lotada de comida e o “salame pendurado no porão”. “Impara l’arte e métela da parte” (“Aprende a arte e coloque-a de lado”), aconselhavam os velhos colonos para quem o trabalho braçal era tão intenso e brutal que lhes tirava o tempo e o ânimo para tocar piano. Preferiam cantar, porém só depois de matar a fome e de ter bebido alguns copos de vinho. As cantorias ficam sempre melhores, depois de latuos almoços. Na colônia italiana, o brodo de carne era um símbolo de sociabilidade e um fator de agregação. Quando a televisão e o computador ainda não haviam acabado com a vida social da comunidade, como se vê hoje, os colonos se reuniam, à noite, nas suas moradas, fazendo o filó, uma espécie de serão feito em casa. No aconchego das casas coloniais, em cozinhas aquecidas por grandes fogões à lenha, iluminadas por lampiões, os nossos antepassados praticavam a sagrada liturgia da convivência. Cansados depois de um dia de árduo trabalho, lutando para tirar da terra a subsistência da família, passavam algumas horas trocando idéias, combinando festas, caçadas, casamentos; conversando e rindo, permutando informações, comentando acontecimentos, jogando cartas, às vezes cantando, no doce exercício do conviver com quem se ama. Como o alimento sempre foi um fator de agregação do ser humano ao contrário dos animais que lhes cria desavenças, por isso o comem em 86 separado, cada um no seu canto - à noite, na colônia italiana, sempre havia uma panela sobre a chapa do fogão, com uma galinha caipira, velha e tratada a milho, fervendo dentro dela. Seu borbulhar tranqüilizava, talvez por reflexo condicionado: o suave blu-blu-blu que emitia, parecia voz sussurrada dizendo nas orelhas “fique calmo, meu amigo, que aqui não falta comida”. Ficava um caldo amarelinho da graxa que, com o “formaio gratá” polvilhado sobre ele, era bebido gole a gole em sagrada liturgia, esquentando corpos e almas sedentos de calor e afeto. Ingredientes e modo de preparar: Ferver numa panela comum - não de pressão - uma velha galinha caipira, há duas ou três semanas fechada e tratada a pasto verde, água e milho. Conforme a idade da ave, o tempo de fervura pode levar várias horas. Quando a carne fica macia é separada, num prato, salgada e saboreada com “cren”. Sobre o caldo vai, então, espalhado prodigamente, o gostoso queijo ralado, que o colo chama de “formaio gratá”. 87 Cabrito O cabrito era um animal muito apreciado pelos antigos colonos italianos. Bem menor que a vaca, não ocupava muito espaço para a sua criação. Rústico, comia de tudo, desde pasto, frutos, macega, casca de árvores e até, como dizia o Remo Marcucci, o fio de arame que sustentava os parreirais. Imune à maioria das doenças, fácil de criar, fornecia um leite muito nutritivo e gostoso, de alto valor protéico, com gordura altamente digestiva, excelente para crianças e convalescentes. Sua carne, com pouca gordura, extremamente apreciada, era servida nas festas coloniais, nos casamentos, batizados, aniversários e em dias de domingo, assada em espetos sobre brasas ou no forno de barro. Na proporção de 10 ou 15%, a carne do cabrito dava uma consistência ideal e um gosto refinado aos salames. Do cabrito tudo aproveitavam. Dos chifres, faziam cabos de facas e de chairas; do couro, coletes, casacos, tiradores, cintos, arreios, cabrestos, badanas, sobrecinchas, estofamento de bancos e cadeiras e, trançado, delicadas rédeas e sogas. As grandes bruacas de vime que os colonos usavam para transportar mercadorias, levadas em lombos de mula, uma em cada lado do animal, eram tampadas com o seu impermeável couro. (Ver, na página 162, como faziam para curti-lo). As patas, ainda frescas, eram dobradas e amarradas com barbantes em forma de ganchos. Depois, eram colocadas em formigueiros por alguns dias, até as formigas comerem toda a carne. Finalmente, mais algum tempo ao sol e estavam prontos originais cabides de parede que substituíram os antigos cabides feitos com patas de veado, cada vez mais raros. O macho, destinado ao abate, era castrado com meses de antecedência. Antes de ser abatido, ficava encerrado por algumas semanas num pequeno estábulo e alimentado com milho, pasto verde e água limpa em abundância. CABRITO NO ESPETO Modo de preparar: A carne é desossada e cortada em pedaços do tamanho aproximado de uma carteira de cigarros. Daí para menos e não para mais. A seguir, é temperada com sal, pimenta-do-reino moída na hora, pimenta verde, alho 88 esmagado e vinagre de vinho. Fica descansando durante, aproximadamente, duas horas. Espetar cada pedaço intercalado com uma fatia de toicinho e uma folha de sálvia, nesta ordem: carne + toicinho + sálvia - carne + toicinho + sálvia... e assim por diante. Os espetos vão sobre o braseiro já formado, sem fumaça, para assar lentamente. A carne fica avermelhada e, graças ao toicinho, macia. Acompanha massas, polenta mole, salada de “radite” com bacon, pão, tudo regado com o indispensável vinho tinto. CABRITO AO FORNO Os pedaços são um pouco maiores do que os da receita anterior. Depois de algumas horas na mesma vinha d’alho, são colocados numa fôrma de lata ou alumínio, untados com banha, recobertos de fatias finas de toicinho e levados ao forno de barro. Enquanto fica assando, vai bem um jogo de cartas com os amigos: escovão, trissete, truco ou bisca - acompanhado de um bom vinho tinto, da cor do sangue. OBSERVAÇÃO - O forno da colônia exigia um cuidado todo especial. Depois de varrido meticulosamente com vassoura de guanxuma, fazia-se fogo dentro dele com galhos secos, grimpas de pinheiro e lenha (angico, cambuí, espinilho, pau-ferro), até as paredes internas ficarem de cor esbranquiçada. Quando estava bem aquecido, retirava-se as brasas deixando algumas perto da entrada. As fôrmas eram introduzidas depositadas sobre longas pás de madeira. Depois do forno usado, a boca era tampada (tampa revestida de lata para não queimar), para os animais - cães e gatos - não entrarem dentro dele na busca do calor, sujando-o com seus fedores. Não raro, uma corruira fazia lá o seu mimoso ninho. (Uma vez, há muitos anos, ficamos semanas sem pão para não perturbar um ninho de corruiras contendo três ovinhos salpicados. Depois, a satisfação incomparável de vê-la, cantando saltitante, colher insetos e larvas para levar aos seus minúsculos filhotes). 89 Charque73 Charque, segundo Zeno e Rui Cardoso Nunes, é “carne de gado bovino, salgada e seca, em mantas”74. O charque, que já foi a maior economia do Estado do Rio Grande do Sul, deve ter sido uma das primeiras formas de estocar alimentos inventada pelo homem. Pode-se dizer até que o charque é o pai da arte e da cultura, por ter dado ao homem o luxo do ócio ao permitir estocar comida. Os animais que gastam a sua vida catando alimentos para sobreviver podem até cantar como os pássaros que sempre repetem o mesmo molde, mas jamais irão compor música. São como os sovinas: tão ocupados em contar dinheiro, esquecem de viver. Átila, o rei dos hunos, conquistou todo o mundo conhecido de então graças à sua crueldade (“Onde meu cavalo pisa, a grama nunca mais cresce!”), ao seu exército de bárbaros montado em cavalos bérberes, pequenos, mas incansáveis, e graças ao poder logístico dado pelo charque. Ele sabia, muito antes de Napoleão Bonaparte ter nascido, que exército com fome é exército derrotado e inimigo bom é inimigo morto. Na sua rota de conquistas arrasou cidades, incendiou aldeias, matando todos os seus habitantes. As reses que encontrava eram abatidas, transformadas em mantas salgadas e colocadas debaixo dos arreios dos soldados, à guisa de baixeiro,75 que o calor e o suor salgado do cavalo transformava em charque. Antes da invenção do refrigerador, as charqueadas eram poderosos centros econômicos. Milhares de pessoas se agrupavam ao redor da faina diária de tropear, abater reses, desossá-las e salgá-las. O solo de Charqueadas, no Rio Grande do Sul, deve ter bebido o sangue de vários milhões de reses! Há poucas décadas, quando ainda não existia o refrigerador, charquear uma carne era a única maneira de conservá-la por algum tempo. Atualmente, o seu consumo é muito reduzido. 73 Este capítulo foi tirado do livro A Arte de Acampar, de Eduardo Festugato. Manta = carne cortada de tal maneira - “desdobrada” - que imita uma manta de tecido. 74 “Baixeiro = espécie de manta de lã, integrante dos arreios, que se põe no lombo do cavalo, por baixo da carona. Semelhante a enxergão, xergão, xerga, suadouro”. CARDOSO NUNES, Zeno; CARDOSO NUNES, Rui. Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro - Editor, 1982, p. 53. 75 90 Dica - Ao comprar charque, escolher sempre os pedaços gordos. O melhor corte é a capa do coxão mole. Depois, se quiser, desprezar a gordura na hora de comer. Carne gorda é sinal de animal saudável. Antigamente, na campanha, quando um animal bovino ficava doente ou se acidentava, havia quem charqueasse a carne para não ficar no prejuízo total. Neste caso, porém, a carne é, geralmente, magra. CHARQUE TRADICIONAL O charque tradicional é feito da seguinte maneira: 1. Cortar a carne em mantas. Preferir as gordas. 2. Cobrir com sal e colocar numa bacia ou gamela onde ficam por algumas horas (até doze, no máximo). 3. Estender ao sol e ao vento durante vários dias, até ficarem quase secas. CHARQUE OREADO O charque “oreado” ou charque-de-vento é feito com a mesma carne, porém salgada ao ponto (3%) e dessecada na sombra e no vento. Fica mais saboroso e macio do que o charque tradicional, mas dura menos tempo fora do refrigerador. Receita de charque “oreado” dada pelo Sr. Ari Braz, de Capão do Tigre, em São José dos Ausentes: 1. Cortar a carne em mantas: minguinha, vazio, capa do coxão mole, tatu, alcatre, picanha. 2. Salgar ao ponto: 1 caixinha de fósforos para cada kg de carne. 3. Estender ao sol e ao vento durante um dia inteiro. 4. Estender, à noite, no sereno. 5. Mais um dia de sol. 6. Embalar em sacos plásticos e estocar no congelador. Quem tem um pouquinho de imaginação pode obter uma verdadeira especiaria com a carne da capa do coxão mole salgada a 3%, temperada com 91 pimenta-do-reino moída na hora, canela em rama e cravo-da-índia quebrado. Após algumas horas nesse tempero, é semidessecada ao vento, no alto dos edifícios onde a mosca não chega. O prêmio é o prazer de consumi-la crua, como o Pastrame, acompanhada de pãozinho fresco, um bom copo de vinho, na companhia de quem se ama. Depois... “E depois, amada? Depois, dores sem remédio / Depois tédio... / Depois, nada”. CHARQUE ASSADO Para ser assado nas brasas, em vez do charque comum, usa-se o charque “oreado”, ou “charque-de-vento” (receita acima). Não precisa ser dessalgado e deve ficar sobre as brasas por pouco tempo (alguns minutos), caso contrário endurece. No caso do charque tradicional, seco, deve ser previamente cortado em pedaços e deixados na água por algumas horas, até dessalgar e ficar macio. A tendência da culinária atual é usar o charque semidessecado - o frescal - conservado no congelador. É mais gostoso e macio. 92 “Crema” Ingredientes: Leite .................................................................. 1 garrafa Açúcar ................................................ 7 colheres de sopa Farinha de trigo .................................. 7 colheres de sopa Ovos .............................................................................. 7 Noz-moscada....................................................... 1 pitada Canela em pó........................................................... q.s.p. Óleo vegetal ........................................................ 1 xícara Modo de preparar: 1. Numa panela, misturar bem o açúcar com a farinha de trigo. 2. Derramar o leite, dissolvendo a mistura de açúcar e farinha. 3. Acender o fogo e, quando o caldo estiver aquecido, adicionar os ovos, um a um, misturando sempre, para incorporar. 4. Acrescentar a noz-moscada. 5. Cozinhar em fogo brando, até engrossar. 6. Quando estiver cozido, derramar numa travessa ou fôrma untada, e deixar esfriar. 7. Quanto estiver frio, cortar em paralelepípedos de aproximadamente 8x4x3cm. 8. Passar cada pedaço no ovo batido e, a seguir, na farinha de rosca. 9. Fritar no azeite quente, em fogo alto. 10. Tirar do azeite com a escumadeira e passar no açúcar com canela. 11. Servir morno. 93 Galeto (4 pessoas) Ingredientes: Galetos cortados em pedaços ........................................ 3 Toicinho fatiado .............. o mesmo número dos pedaços Sálvia ..................................................... idem ao anterior Sal......................................................................... a gosto Vinho tinto seco ............................................. meio-copo Vinagre de vinho tinto ........................ 3 colheres de sopa Pimenta-do-reino moída ....................................... a gosto Alho .................................................................... 6 dentes Manteiga sem sal ................................................... q. s. p. Modo de preparar: 1. Deixar os pedaços do galeto na vinha d’alho (vinho tinto seco, vinagre de vinho tinto, sal, pimenta-do-reino moída e alho esmagado), durante 12 horas. 2. Na hora de levar ao fogo, espetar o galeto intercalado com uma fatia de toicinho e uma folha de sálvia. 3. Assar lentamente. 4. Quando estiver quase pronto, untar com a manteiga e deixar dourar. 94 Espagueti “al sugo” Ingredientes: Espagueti seco (ou caseiro) ...................100 g por pessoa Sal ........................................................................... q.s.p. Óleo vegetal .......................................... 1 colher de sopa MASSA CASEIRA A massa é feita somente com farinha de trigo e ovo de galinha da colônia (gema bem amarelinha): um punhado de farinha de trigo e um ovo para cada pessoa. Não vai água nem leite. Tudo é misturado e sovado demoradamente. A seguir, a massa é espichada com o rolo de espichar massa, sobre uma mesa bem lisa, previamente polvilhada com farinha de trigo para a massa não grudar na mesa. Pode-se usar também a máquina de espichar massa. Depois de espichada, enrola-se em forma de cartucho e corta-se transversalmente da largura que se desejar. Fica parecido com o talharim - o “tagliateli” dos nossos avós. Modo de preparar: 1. 2. 3. 4. Ferver 4 litros de água. Salgar ao ponto da saturação. Derramar 1 colherinha de chá de azeite ou óleo. Acrescentar o espaguete seco ou a massa caseira. Após 8 a 12 minutos de fervura (se a massa caseira for bem fininha, demora menos) estará pronta para ser escorrida no escorredor de massas. 5. Derrama-se numa travessa e polvilha-se com queijo ralado 6. Somente depois é que irá o molho de carne. 7. Servir ainda quente. 95 Espagueti à Carbonara (Receita de Zoé Horn Iotti) Esta receita foi roubada do Iotti, o pai do “Radicci”. Confesso e explico, na certeza de justificar o crime. Para os juízse mais severos peço, apenas, que me julguem depois de experimentar este prato. Duvido que alguém me condene! Após um programa que o Iotti tem na Rádio Caxias (Caça e Pesca), no qual fui por ele convidado, mostrou-me um verdadeiro tesouro: o manuscrito de receitas de comidas italianas da autoria de sua mãe, a dona Zoé. Pediu para formatar em disquete, com a finalidade de futura impressão. Garantiu-me o “Radicci”, aliás, o Iotti, que era a melhor comida do mundo. No primeiro momento não lhe dei muita importância. Afinal, quem é que não gosta da comida de sua mãe? Porém, ao lê-las e passá-las para o computador, fiquei de boca aberta, babando. Depois de experimentá-la, elegi a melhor receita do futuro livro: a mais gostosa e, excluindo o galo “al primo canto”, a mais típica da cozinha colonial italiana. Agora, com cinqüenta e oito anos de idade na “cocunda”, já não sou mais tão severo com os pecados dos outros e muito menos com os meus próprios pecados. Afinal, o grande fascínio da tentação é não resistir a ela. Assim, mesmo indo de encontro a todos os meus princípios e à imagem que tentei transmitir aos filhos - integridade, caráter, verdade - não resisti e roubei esta receita do Iotti. A dona Zoé que me perdoe, mas em compensação prometo, ao degustar este glorioso espaguete à Carbonara, brindar à sua saúde com um bom copo de vinho tinto, de preferência barbera. Assim como o bom da tentação é não resistir a ela, o bom da comida é a bebida que a acompanha. Ingredientes: Espagueti seco ..........................................................½ kg Bacon ......................................................................200 g Lingüiça picada e sem pele .....................................300 g Manteiga .................................................................300 g Gemas ........................................................................... 5 Salsa picada........................................ 5 colheres de sopa Modo de preparar: 96 1. Fritar o bacon e a lingüiça na manteiga, até dourar. 2. Bater as gemas numa travessa funda, com a salsa, o queijo e o sal. 3. Despejar dentro da travessa funda a massa cozida, mexendo bem, para que fique bem misturada às gemas. 4. Adicionar o bacon e a lingüiça bem quentes. 5. Cobrir com queijo ralado e servir. “Mamma mia!” Se isso é pecado eu quero é ir para o inferno... comendo quente, bem quente, esta massa à Carbonara. 97 “Fonghi” Em italiano, “fonghi” significa “fungos”. É um universo formado por centenas de espécies de vegetais desde a microscópica Cândida sp. que infesta epitélios de pulmões e mucosas vaginais, até espécimes de vários quilos de peso. Têm em comum o fato de serem desprovidos de clorofila. Por isso, dispensam a luz. O “fonghi” que os colonos usavam nas suas grandes cozinhas de antigamente - hoje são minúsculos cubículos, mais castigo do que prêmios são os de cor alaranjada que crescem nos matos de eucalipto. No verão, um ou dois dias depois de uma chuva, afloram perto da raízes como se brotassem da terra por encanto. Para o “gourmet”, e não para o botânico, os fungos se dividem em “fungos comestíveis” e “fungos não-comestíveis”. No grupo destes últimos estão as espécimes vegetais mais venenosas do planeta. Devido ao risco de envenenamento, aconselhamos a comprá-los nos mercados e não catá-los “in natura”. Não concorda, amigo Arpini?76 Modo de preparar: Primeiramente, os fungos são lavados um por um. Se foram colhidos na natureza, remove-se a terra neles aderida com uma escova de dentes bem macia. Um por um, cuidadosamente. Os dessecados devem ser hidratados, uma noite antes de serem preparados, em vinho ou água. MOLHO DE “FONGHI” Para temperar as massas com “fonghi”, basta acrescentar os fungos no molho básico (pg. 104) e deixar refogar por alguns minutos. Nos risotos, é lançado na panela quando o molho estiver quase pronto, antes de se colocar o arroz. “FONGHI” À DORÉ 76 O autor faz referência ao Dr. Ivan Bento Arpini, que ficou numa UTI durante vários dias, envenenado por fungos. 98 1. Depois de meticulosamente limpos, ficam no tempero (sal, pimenta-doreino, vinagre e suco de limão) por uma hora. 2. A seguir, são escorridos e, um a um, passados no ovo, na farinha de trigo e fritos no óleo bem quente. 99 “Gnochi” de batata-doce (Para 6 pessoas) (Receita da Iara) “Gnocchi”, em dialeto, é o plural de “caroço”. Quando uma pessoa leva uma pancada na cabeça, aparece um caroço. Traduzindo literalmente, significa “carocinhos”. Os meninos mais arteiros viviam cheios de “gnocos” na cabeça - cascudos dados pela mãe. Ingredientes: Batata doce ..............................................................500 g Batata inglesa ..........................................................500 g Farinha de trigo ....................................................... q.s.p. Manteiga sem sal.......................................................50 g Ovo ................................................................................ 1 Sal ........................................................................... q.s.p. Modo de preparar: 1. Cozinhar, na água, as batatas-doces e as batatas-inglesas. 2. Descascar e passar no espremedor. 3. Acrescentar ovo, manteiga e adicionar a farinha aos poucos, amassando sempre, até ficar no ponto de enrolar. 4. Enrolar sobre a superfície da mesa polvilhada com farinha de trigo para não grudar, em forma de longos cilindros de 2 a 2,5 cm de diâmetro. 5. Cortar em pedaços de aproximadamente 3 cm de comprimento. 6. Agora, um detalhe que é um verdadeiro requinte: com o polegar, enrolar os “gnochi” na parte traseira do ralador de queijo ou do garfo, dando uma forma parecida com uma folha, enrolada. Neste formato, há uma grande ampliação da área de contato da massa com o molho, realçando, em muito, o sabor. 7. Lançar os “gnochi” numa panela com água salgada, fervendo. Quando sobrenadarem no líquido, estarão prontos. É importante que sejam despejados na panela ao mesmo tempo, para ficarem no ponto parelho e não uns mais cozidos do que outros. OBSERVAÇÃO 100 O molho recomendado é feito com assas de frango e miúdos refogados na manteiga, com cebola, alho, caldo de galinha (tablete), sal, pimentado-reino, massa de tomates e tomates. Por cima de tudo, queijo parmesão ralado e, goela abaixo, vinho tinto seco, é claro. Água não, porque a água “smarcice ei pali”77; vinho, sim, compadre, porque, “el vin me fá cantare”78. Ou como dizia o tio Joanim: “L’ácqua me fá male, el vin me fá cantare...”79 77 “Smarcice ei pali” = “Apodrece os paus”. Dialeto vêneto. 78 “El vin me fá cantare” - “O vinho me faz cantar”. - Dialeto vêneto. “L’ácqua me fá male, el vin me fá cantare...” = “A água me faz mal, o vinho me faz cantar...” - Verso de cantiga popular italiana “Bevè, bevè, compare”: “Bevè, bevè, compare se no vi mazzeró. Nom mi mazzar, compare, ch’a desso beveró. E intanti ch’el compare beve ghe cantarem la bumba bá, la bumba bá. Io l’ho bevuto tuto e nom mi ha fato male. L’ácqua fá male e il vino fá cantar. Questa é la regola che seguono gl’Italici alzano i calici vuotano i bichieri. El sugo del bocale ha el colore de la gresta.Chi ga el bichier in mano, al so compare impresta”. 79 101 Molho básico de carne (Receita de Iara Festugato) Ingredientes: Alho.................................................................... 3 dentes Óleo .................................................................... ½ xícara Carne gado, em pedaços, s/tendões nem ossos .......200 g Cebola média ................................................................ 1 Farinha de trigo ou maisena ......... 1 a 2 colheres de sopa Manteiga .................................. 2 colheres de sopa (rasa) Pimenta-do-reino moída....................................... a gosto Molho de Tomates .................................................. 1 lata Queijo parmesão ralado na hora......... 3 colheres de sopa Sal ........................................................................ a gosto Tomates ........ 3 vezes em maior quantidade que a cebola Modo de preparar: 1. Colocar o óleo numa panela grossa. Usar fogo forte. 2. Acrescentar a carne salgada e cortada em pedaços, e os dentes de alho inteiros. Deixar refogar durante 4 a 6 minutos. 3. Acrescentar a cebola cortada em pedaços, deixando refogar até dourar. 4. Juntar os tomates sem cascas e cortados em pedaços. Refogar durante 3 a 5 minutos. 5. Colocar o molho de tomates. 6. Refogar durante 3 a 5 minutos. 7. Liquidificar (sem tirar a carne). Se for preciso, acrescentar água. 8. Voltar para a panela e deitar o queijo ralado e a pimenta-do-reino moída na hora, mexendo sempre. 9. Corrigir o sal e deixar ferver por poucos minutos. Se for necessário, engrossar com maisena ou farinha de trigo. Para isso, dissolve-se uma ou duas colheres das de sopa de maisena em meia-xícara de água morna. 10. Acrescentar a manteiga e, após um minuto, desligar o fogo. OBSERVAÇÕES Para tirar as cascas dos tomates, mergulhe-os em água fervente. 102 A pimenta-do-reino, sempre a gosto e moída na hora, é colocada quando não houver crianças entre os comensais. Este é o molho básico. Serve para fazer qualquer outro molho. Por exemplo, se o desejo é fazer molho de pato, frita-se o pato em pedaços e, em meia-fritura, acrescenta-se o molho básico e deixa-se ferver até a carne amaciar. Idem para outras caças e para o “fonghi”. Serve, também para ser usado assim como está: “al sugo”. Após a massa escorrida - amarelinha como a bandeira do Brasil polvilhá-la com queijo parmesão ralado80 na hora para manter o perfume e o sabor. Só depois é que irá o molho. A bebida? É lógico que é vinho tinto. Tanto no inverno como no verão, combina bem um “Cabernet”, “Borgonha” ou “Barbera” descendo, liso, goela abaixo, indo direto ao coração aquecer a alma da gente e colorir de rosa o nosso viver. Agora, o mais importante da receita: se não estiveres de bem com a vida, se houver alguma mágoa no coração, uma ferida, não chegue nem perto do vinho, porque esta bebida, assim como todas as que contêm álcool, tem uma característica curiosa: potencializa os estados da alma. Aumenta a euforia, mas também a depressão. Tem uma ação tão curiosa: para quem quer esquecer, aumenta em muito a memória. 80 Melhor que o queijo parmesão, é o queijo serrano feito com leite de gado de corte e não leiteiro. No nosso entender, este queijo ralado sobre a massa é o grande segredo da comida colonial italiana. 103 Panada Ingredientes: Caldo de galinha concentrado Pão Sal Queijo parmesão ralado Modo de preparar: Quando o caldo estiver fervendo (2 cubinhos de caldo concentrado para cada litro de água), acrescentar o pão, em pedaços e deixar ferver. Quando o pão estiver completamente dissolvido (mínimo de meia hora), corrigir o sal e servir com queijo parmesão ralado. NOTA: É lógico que, se ao invés de usarmos caldo de galinha concentrado, usarmos uma velha galinha caipira, rebolada na graxa, daquelas que ficou quase um mês fechada, comendo pasto verde e milho, e bebendo água limpa de nascente, o resultado é bem diferente como da noite para o dia. Depois de duas horas de fervura sobre uma chapa de fogão à lenha, fica sobrenadando uma gordurinha amarela, extremamente gostosa. A diferença é a mesma que comprar um filho pronto e crescido, ao invés de fazê-lo com amor, paciência e carinho, demoradamente, desde a concepção à maturidade completa. 104 Pão Os alimentos mais antigos do homem, desde a pré-história, foram a carne e os vegetais - frutos, raízes, tubérculos, nozes, sementes. Eram colhidos in natura e consumidos na hora. Ao serem estocados, o nosso antepassado deu um importante passo rumo à evolução, que é o surgimento da idéia de um futuro.81 O sangue deve ter sido o alimento preferencial do nosso antepassado troglodita: líquido (não precisava mastigar), morno, nutritivo e, principalmente, com seus componente na proporção ideal. O leite, com exceção do materno e somente para os primeiros anos de vida do bebê (anos e não meses, uma vez que a mãe deveria amamentar o filho até ele poder mastigar) é relativamente recente na nossa história evolutiva. A domesticação de animais aparece nos últimos minutos da cena. Provavelmente, o primeiro leite não humano, utilizado pelos nossos antepassados das cavernas pfara alimentarem seus bebês, foi o leite da loba, que viveu há 3,5 milhões de anos.82 (A linguagem existe a “apenas” cem mil anos). Um bom substituto do leite deve ter sido o sangue. Passados milhões de anos - não milhares - surgiu a História, a grande e verdadeira diferença que nos distingue dos animais. O homem é o único animal que tem história. Este evento pode ser simbolizado por milhares de conquistas, mas, principalmente, pela fabricação do pão e a sua divisão entre o grupo - o germe da solidariedade. Quando um mendigo pede uma esmola, pede um pedaço de pão. O pão deve ter sido o primeiro alimento manufaturado, que exigiu o uso do raciocínio - semente da inteligência - e não simplesmente catado como fazem, até hoje, os macacos e os animais. Segundo o Velho Testamento, citado por Sílvio Lancelot, Abraão entregou à Sara um punhado de trigo e pediu-lhe que moesse o cereal e, com um pouco de água, produzisse a iguaria. 81 Os animais não guardam alimento, com raras exceções de cães, gralhas, castores, cupins, abelhas e formigas. Porém, são mecanismos instintivos ou guiados por hormônios. Diferente deles todos, o homem os armazena pensando num amanhã ameaçado pela fome. 82 O ancestral do cão, o Canis lupus, viveu há 3,5 milhões de anos. O cachorro, o Canis familiaris, ficou definito há 6 mil anos. A espécie mais antiga é o “Cão da madrugada”. As últimas raças caninas surgiram há menos de um século. 105 Continua Lancelot: “Não existe região no mundo sem pão. E pão de todos os tipos, de todos os desenhos, de todos os tamanhos. Pão claro e pão escuro. Pão crocante e pão molenga. Pão redondo e pão comprido. Pão elementar e pão afrodisíaco”. (Revista Prodoctor Business, ano 3, nº 3, ano 1997). Há o pão doce e o salgado, o azedo e o de mel, o da ira, o do medo. Sócrates o comia embebido em vinho. E um pão que não se esquece, que se come a contragosto quando a vida nos golpeia, empurrado goela abaixo: o pão que o diabo amassou. O pão é o alimento universal. Não há quem não o aprecie, desde o cão ao pardal. Acompanha embutidos de porco, geléias, carnes de todos os tipos, assadas, lessas ou cruas, vinho, queijo, café, leite. Aceita ser coberto por caviar e, quando falta dinheiro, até por banha. O assassino come pão com sangue; o operário, com suor. Judas, mais esperto, embebeu-o em vinho. O pão é um alimento tão perfeito que, durante milhões de anos, não sofreu nenhuma variação na sua fabricação, que sempre é a mesma: farinha de trigo, água e calor. É como o ouro, como o diamante ou como o retrato da Gioconda: irretocável. A única transformação que sofreu no transcurso dos milênios foi quase uma santificação: foi promovido em pão dos anjos na hóstia sagrada da Santa Comunhão. Na colônia italiana, plantar trigo era o principal trabalho dos colonos. Segundo os historiadores, quando eles aqui chegaram, não dispunham de trigo. Para fazer o seu pão plantavam, colhiam e moíam o centeio. O pão, feito com este cereal, ficava escuro e precisava ser consumido logo, por que se não, ficava duro como uma pedra: “duro come un sasso”, diziam. Com as grandes monoculturas mecanizadas, principalmente na zona do Planalto Central do nosso Estado, o colono deixou de plantar trigo. Depois de décadas sem moer este cereal, época em que esta indústria foi monopolizada através de uma fiscalização e controle por parte do Estado, hoje o pão volta a ser feito na colônia, como antigamente. Com farinha de trigo alva como a neve de julho, dos fornos de tijolos e barro saem os crocantes e gostosos pães da colônia, de casca morena como a pele da mulata. Recém feito, com um pedaço de salame retirado do caibro do teto do porão, pele coberta de mofo, e generoso copo de vinho tinto, fresco da cantina, é um manjar inesquecível. Ao cortá-lo, escorre um óleo perfumado como não existe nos salames industrializados, tratados com conservantes, descaracterizados. ________________________ 106 Testemunha de Tóni Sbrontolon83 (Jornal O florense, 12-3-99 - Flores da Cunha), sobre o árduo trabalho dos colonos de antigamente: El giorno de ancoi, ghe ze poche fameia che pianta formento. Sti áni, túti i plantea formento e se o impiantea al mese de magio, giúgno e anca a i primi de giúglio. Co rivea i mêsi de octobre, novembre o dicembre, lera bel de vêder el formento verdo e dopo dal su pa i monte, te le planície, te i váli, da par tuto pó. Quando che’el vento el supiava, el fea tute onde tel formento, che le parea fin onde del mar. Ghenera fameia che i tolea su de piú de duzento sáchi de formento, tudo piantá co l’arado o co la sapa, taiá en la sêsola e tolto su a man”. PÃO CASEIRO Ingredientes: Farinha de trigo ............................................. ½ kg Fermento para pão............................... 1,5 tabletes Leite ........................................................... 1 copo Óleo ........................................................... ½ copo Sal ............................................ 2 colheres de sopa Açúcar ...................................... 3 colheres de sopa Massa 1. Numa vasilha, desmanche o fermento em 2 copos de água morna. 2. Acrescente, aos poucos, um punhado de farinha de trigo, o suficiente para ficar uma massa. 3. Mexa, tampe e deixe descansar até crescer e começar a rachar. 4. Retire uma bolinha de massa e coloque em meio-copo de água. Quando a bolinha subir, a massa do pão estará no ponto para assar. Pão 1. Numa vasilha, coloque a farinha de trigo, 1 ovo, 1 copo de leite, ½ copo de óleo, 2 colheres de sopa de sal, 3 colheres de sopa de açúcar e o fermento já crescido. 83 Tóni Sbrontolon é um pseudônimo. Significa: Toni Resmungão. 107 2. Misture tudo, acrescentando um pouco de água morna até dar o ponto para sovar. 3. Sove o pão o mais que puder. Quanto mais sovado, melhor. 4. Reparta a massa e forme os pães. 5. Cubra-os com uma toalha para aquecer e deixe descansar. 6. Quando a massa começar a criar bolhas de ar, está no ponto de assar. 7. Com uma faca afiada, faça um corte longitudinal na sua superfície. 8. Pincele com 1 gema de ovo batida e leve ao forno. 108 Passarinhada É a necessidade premente de produzir cada vez mais alimentos para uma população sempre mais faminta, que tornou o homem o predador mor do universo ao exterminar as baleias e os bisontes, destruir as florestas e os campos, drenar os banhados, aterrar o mar. A humanidade moderna precisa cada vez mais de grãos para se alimentar, muito mais fáceis e baratos de serem produzidos do que as carnes, tornando o vegetarianismo altamente conveniente. As passarinhadas que os imigrantes italianos preparavam na época do inverno, aliás gostosíssimas, foram aprendidas por necessidade de subsistência numa terra que tanto suor exigia para extrair dela o sustento. Na colônia italiana, há apenas cinqüenta anos atrás, só se comia carne de gado uma ou duas vezes por mês, quando a gente ou algum vizinho carneava uma rês, o que era raro. Além da pobreza - o solo era todo aproveitado para produzir grãos - não existiam os refrigeradores. A imoralidade desta prática - caça aos passarinhos - se fundamenta no risco de extinção destes animais, logo descaracterizada diante da possibilidade de um manejo inteligente da fauna, multiplicando os indivíduos como o homem fez com o galo silvestre, o porco, o boi e todos os animais domésticos que há poucos anos eram selvagens. Se o grande ecologista José Lutzemberger deparasse com um bando de caturritas caindo sobre a sua lavoura de milho, plantada com o sacrifício dos agricultores pobres, certamente não condenaria a sua caça. As passarinhadas da zona colonial italiana do nosso estado eram verdadeiras comunhões de parentes e vizinhos. Reuniam-se depois da missa dominical, nas cantinas, ao redor da mesa, cantando, bebendo, jogando cartas - bisca, escova, escovão, trissete, truco, canastra - e comendo passarinhos com polenta. Os preferidos eram os tico-ticos, sanhaçus, rolinhas e sabiás, amarelos de graxa de tanto comer frutas domésticas e nativas e, principalmente, os produtos das suadas lavouras de subsistência, plantadas nas mais íngremes encostas pedregosas da serra, sem maquinaria nenhuma, transportando a colheita nas costas. Depois de depenados e limpos, eram enfiados em espetos finos, alternando-os com fatias de toicinho e folhas de sálvia. Ficavam girando lenta e demoradamente ao lado do brasedo, tendo, por baixo, uma fôrma de lata recoberta com fatias de polenta onde caíam os pingos da gordura, misturando o seu aroma com o aroma do vinho da cantina. É o menarosto. Acompanhava o radite temperado com alho, vinagre, sal e torresmo ou toicinho fritos, tudo regado com o generoso vinho tinto e cantorias italia109 nas: Il Cacciatore del Bosco, La Bella Violeta, El Capitan de la Companhia, Merica, La Virginella, Volete Sapere e tantas outras que levavam os corações para além do mar distante, rever, no pensamento, suas longínquas vilas natais, seus lares, seus parentes... enchendo de água os olhos e enrouquecendo vozes de emoção. Pombas, jacus, inhambus e os apreciados becaccini (narcejas) eram fritos na panela de ferro com banha de porco, sobre o fogão à lenha, e refogados com cebola e tomate, preparando os gostosíssimos molhos para spaghetti, tortéi, ravioli, maltaiai, tagliarini que só de lembrá-los, a boca se enche de água e o coração... de saudade”. 110 Pastéis Ingredientes para a massa: Farinha de trigo ................................................. 2 xícaras Salmoura morna ................................................... ½ copo Óleo ....................................................... 1 colher de sopa Cachaça ................................................. 1 colher de sopa Modo de preparar: 1. 2. 3. 4. 5. 6. Colocar a farinha de trigo num prato fundo. Acrescentar, aos poucos, a salmoura morna e ir amassando sempre. Acrescentar o óleo e a cachaça, amassando com energia. Espichar sobre a mesa. Cortar em quadrados conforme o gosto de cada um. Colocar uma bolinha do recheio no meio do quadrado e fechá-lo diagonalmente, pressionando a massa com as costas de um garfo. 7. Fritar em óleo bem-quente, tendo o cuidado com os respingos da gordura causados pelo rompimento das bolhas da massa. Recheio do pastel de carne Ingredientes: 1 kg de guisado Meia xícara de óleo Sal Pimenta-do-reino moída na hora Salsa picada Meia-cebola picadinha 2 dentes de alho 8 azeitonas picadas 4 ovos duros picados Modo de preparar: 1. Numa caçarola, refogar, no óleo bem quente, dois dentes de alho, meiacebola picadinha, junto com o guisado salgado e temperado com a pimenta-do-reino moída na hora. 111 2. Quando o guisado estiver quase pronto, acrescentar a salsa picada bem fina, a azeitona menos picada e os ovos em pedaços. 3. Fazer, enrolando nas palmas das mãos, bolinhas do tamanho desejado. Colocá-las na massa e fechar diagonalmente. Recheio do pastel de palmito (ou camarão) A receita é semelhante à anterior. Em vez do guisado, usa-se o palmito picado a gosto, frito no óleo com meia-cebola picadinha e dois dentes de alho esmagados. Geralmente não se usa ovo nem azeitona. 112 Pato - (4 pessoas) Ingredientes: Pato (ou marreco) .......................................................... 1 Sálvia.................................................................... a gosto Pimenta verde................................................................ 1 Limão ............................................................................ 1 Vinho branco seco................................................. 1 copo Banha ...................................................................... q.s.p. Sal ........................................................................... q.s.p. Caldo de galinha ................................................ 1 tablete Cebola grande ............................................................... 1 Alho.................................................................... 3 dentes Cenoura média ............................................................. ½ Salsa picada........................................ 3 colheres de sopa Hortelã.................................................................. 1 folha Copa picada.............................................................100 g Manteiga sem sal........................................................pct. Modo de preparar: 1. Cortar o pato em pedaços. 2. Temperar com sal, vinho branco, pimenta verde, suco de um limão. Deixar descansar por uma hora. 3. Fritar os pedaços do pato na banha, até dourar. 4. Juntar cenoura, cebola, salsa, hortelã, tudo bem picado e deixar refogar a fogo brando. 5. Ir despejando, aos poucos, o caldo de galinha dissolvido numa xícara de água quente e a vinha d’alho sobrada. 6. Quando a carne estiver macia, juntar a copa picada, previamente fritada à parte. 7. Antes de servir, acrescentar meio-pacote de manteiga sem sal e desligar o fogo. NOTA - Acompanha massa: espagueti ou talharim. 113 Polenta (4 pessoas) “Polenta e late ingrassa le culate”.84 Ingredientes: Farinha de milho de espessura média ............... 3 xícaras Sal ........................................................................ a gosto Caldo de galinha ................................................. 2 cubos Óleo .................................................... 3 colheres de sopa Modo de fazer: 1. Colocar 2 litros de água numa panela grossa ou tacho e deixar ferver. 2. Quando estiver fervendo, dissolver o caldo de galinha, corrigir o sal e despejar o azeite. 3. Derramar aos poucos, mexendo sempre com uma colher de pau ou “mêscola”, as 3 xícaras de farinha de milho. 4. Depois de meia-hora de fervura, ao mexer a polenta com a colher se enxerga o fundo da panela. É sinal de que está pronta. NOTA: A polenta pode ser comida em seguida, quente e mole. Nesta forma, absorve melhor os molhos que acompanham carnes assadas no forno, ou refogadas na panela. Ou mesmo uma ervilha fresquinha, refogada devagar até quase desmanchar. Os queijos fatiados ou ralados, esparramados sobre ela, se dissolvem como manteiga. Depois de fria, a polenta é fatiada e fritada junto com algumas folhas de sálvia. Ficam douradas e crocantes, extremamente gostosas. Acompanham, assim, os gloriosos galetos dos almoços coloniais. Nada mais que bons pretextos para se beber um bom vinho. “Polenta e leite engrossa as nádegas”. Polenta e leite é uma dieta saudável: muitas proteínas, bastante glicídios e pouca gordura - o segredo de uma dieta segura. 84 114 Queijo “parmesão”, caseiro Como fazer queijo de primeira a partir de um queijo comum. (Receita do Paulo Oliveira) Coloca-se um queijo colonial, novo, num recipiente de vidro, plástico ou aço inoxidável, dentro da seguinte mistura: 1. Vinagre de vinho tinto 2. Pimenta malagueta (a gosto) 3. Pimenta do reino (a gosto) 4. Orégano (pouco) 5. Sal (saturar) Observação: deve-se ter o cuidado, importantíssimo, de que o nível do líquido fique na altura da metade da espessura do queijo. Nem um centímetro para cima, nem um centímetro para baixo. NÍVEL QUEIJO NOVO Conservar em local fresco (no inverno pode ser no porão; no verão, no compartimento das verduras do refrigerador) durante 20 dias: 10 dias num lado e 10 dias no outro. Deixar curar por oito semanas, fora do líquido, virando, semanalmente, em todas as posições: 4 POSIÇÕES (SEMANAS) DE PÉ 4 POSIÇÕES (SEMANAS) DEITADO O vinagre de vinho tinto dá uma cor escura à casca, muito parecida com os queijos europeus e os importados do Uruguai. A massa fica consistente, de uma tonalidade amarelada, tão saborosa e perfumada como os melhores queijos parmesãos. Fica tanto mais picante quanto mais pimenta malagueta se adicionar ao vinagre. 115 Ideal para ser saboreado entre goles de um bom vinho tinto seco. Melhor, ainda, se acompanhado de um delicioso presunto cru preparado artesanalmente. Ou depois das refeições, como fazem os colonos italianos, para deixar a boca “com gosto de vaca”: La boca no xê mais straca finche no la sa de vaca. “A boca não se cansa (não pára de mastigar) enquanto não tiver gosto de vaca”. 116 Rã A rã é um prato apreciadíssimo na zona colonial italiana. Não tem nada a ver com peixe e muito menos com sapo. Depois de frita, mostra uma carne branquinha, suculenta, extremamente gostosa. Na natureza, alimentase de insetos vivos; nos criatórios, de ração. As melhores partes são das coxas. Antigamente, eram caçadas à beira dos banhados, à noite, usando um lampião de acetilênio ou uma lanterna bem potente. Com a luz, elas ficavam encadeadas, imobilizadas e, com alguma prática, conseguia-se pegá-las com a mão. Ao serem colocadas no saco, era importante deixar um pouco de grama ou pasto no fundo, para não se machucarem e prejudicarem o aspecto da carne. O macho tem um reflexo de abraço, que é o reflexo da cópula, muito potente. O maior desenvolvimento da musculatura dos membros anteriores é o que o diferencia da fêmea. Para limpá-las, corta-se a cabeça logo abaixo das membranas auditivas - dois círculos escuros localizados atrás dos olhos. Depois, com a ajuda de um pano para não escorregar, arranca-se a pele como se descalça uma luva. É fácil. Hoje em dia, compra-se esta carne nos bons supermercados, porém, devido ao baixo consumo, sempre congelada. Assim, perde qualidade, como perdem qualidade todas as carnes nobres ao serem congeladas. A rã pode ser preparada refogada na caçarola onde irá cobrir massas gloriosas, prensada na chapa, gratinada no forno, de várias maneiras. Entretanto, a receita mais consagrada é fritá-la à milanesa ou à doré. Vai bem com polenta mole e vinho branco seco, fresquinho mas não gelado. Rã à doré (Para 4 pessoas) Ingredientes: Rãs inteiras e limpas ................................................... 12 Ovo inteiro .................................................................... 2 Farinha de trigo ............................................. 1 prato raso Óleo ......................................................................... q.s.p. Suco de limão ..................................................... ½ limão Vinha d’alho: 117 Vinagre de vinho tinto............................ 1 xícara de café Sal ........................................................................... q.s.p. Alho esmagado (com o sal) ................................ 6 dentes Orégano ................................................ 2 colheres de chá Pimenta-do-reino.................................................. a gosto Modo de preparar: 1. Uma hora antes de preparar, deixar as rãs na vinha d’alho. 2. Passar, uma por uma, nos ovos levemente batidos e, logo a seguir na farinha de trigo. 3. Fritar uma ou duas por vez, no óleo, até ficarem douradas. 4. Colocar numa travessa e pingar, sobre elas, algumas gotas de limão. Rã à milanesa (Receita do Marcílio Oss) As rãs são preparadas como na receita anterior. A diferença principal consiste numa leve fritura das rãs antes de serem passadas no ovo e na mistura de farinha de trigo com farinha de pão e queijo parmesão ralado. Feito isto, voltam à frigideira para nova e definitiva fritura. Segundo o Marcílio, são duas frituras. 118 “Radite” com bacon Ingredientes: “Radite”, de preferência novo (jovem) ............. 2 molhos Bacon ................................................................... a gosto Sal ........................................................................ a gosto Óleo vegetal ...................................1 xícara de cafezinho Vinagre de vinho tinto....................1 xícara de cafezinho Modo de preparar: 1. O radite é lavado folha por folha, escrupulosamente. 2. Depois de ficar num escorredor de massa até enxugar, é colocado numa travessa. 3. Reservar. Na hora de servir: 4. Fritar no óleo vegetal, numa frigideira, o bacon cortado em pedaços pequenos e salgar. 5. Quando o bacon estiver frito, desligar o fogo e derramar a xícara de vinagre sobre a fritura. 6. Despejar tudo sobre o “radite” que está na travessa e servir. NOTA Há quem goste de adicionar alho cortado sobre o “radite”, antes de adicionar o bacon frito e vinagrado. Em vez do óleo vegetal pode-se usar azeite de oliva. E em vez do “radite”, “radicce có la coa” (“radite” com rabo - raiz), “piça can” (“radite” selvagem), mestruz, rúcula, agrião. A alface e a chicória não prestam para este prato, porque ficam muito amolecidas. 119 Recheio do agnolin (4 pessoas) (Receita da vó Emília) Ingredientes: Miúdos de galinha (2 partes moela / 1 fígado) ........300 g Peito de galinha .......................................................100 g Queijo parmesão ralado ..................................... (1 pires) Ovo ................................................................................ 1 Manteiga sem sal.....................................................1 pct. Cebola picada .......................................... 1 cebola média Alho picado ........................................................ 3 dentes Noz-moscada ralada ................................ metade de uma Pão dormido .......................................................... 1 pires Sal ........................................................................ a gosto Pimenta-do-reino moída....................................... a gosto Pimenta verde....................................................... a gosto Pão cacetinho ................................................................ 1 Modo de preparar: 1. Fritar, na manteiga, a cebola e o alho picados, até meia-fritura. 2. Acrescentar os miúdos, o peito e continuar a fritura. 3. Temperar com sal, pimenta verde e pimenta-do-reino, deixando em fogo baixo até a água evaporar. Não se adiciona água. 4. Moer tudo na máquina de moer carne, não muito fino. Para termina, moer o pão dormido previamente embebido no molho que sobrou do refogado. 5. Acrescentar o queijo ralado, o ovo cru e a noz-moscada. Corrigir o sal. IMPORTANTE A massa - farinha de trigo, sal e ovos da colônia, sem leite nem água - deve ser dura e espichada o mais fino possível (translúcida). Talvez este seja o grande segredo do agnolin. Ao cozinhar, nunca deixar ferver por mais de cinco minutos,85 para não rompê-los. Na hora de cozinhá-los, baixar o fogo ao mínimo e despejá85 Quanto mais grossa a massa, maior é o tempo de fervura. A vó Emília espichava uma massa tão fina - quase transparente - que os agnolini eram cozidos assim: ao 120 los no caldo fervente (galinha e ponta-de-peito). Imediatamente a fervura arrefece e, assim que voltar novamente, começar a marcar o tempo. Família grande, panela grande. Quase tão grande como o coração da vó Emília. serem lançados na panela com água fervente, a fervura cessava. Logo que ela levantava novamente, aguardavam-se uns dois ou três minutos e apagava-se o fogo. 121 Recheio do ravioli (6 pessoas) (Receita da vó Emília) Ingredientes: Espinafre (ou acelga) ........ 2 molhos grandes (só folhas) Carne de porco (lombo ou pernil) ...........................500 g Queijo parmesão ralado ........................................ 1 pires Pão dormido .................................................. 1 cacetinho Ovo cru.......................................................................... 1 Noz-moscada........................................... metade de uma Pimenta-do-reino.................................................. a gosto Sal ........................................................................ a gosto Óleo .......................................................o que for preciso Cebola ................................................................. 1 média Alho.................................................................... 3 dentes Modo de preparar: 1. Cozinhar o espinafre, na água, sem sal. 2. Espremer o espinafre num pano de prato até sair toda a água. Separar. 3. Fritar, no óleo, a cebola e o alho picados, até meia-fritura. 4. Acrescentar a carne de porco, sem gordura, cortada em pedaços e terminar a fritura. Separar. 5. Moer o espinafre junto com a carne de porco refogada. 6. Terminar a moedura com um pedacinho de pão dormido (cacetinho), embebido no resto do molho que sobrou da fritura. 7. Numa bacia, salgar e misturar tudo com as mãos: carne e espinafre moídos, queijo ralado, noz-moscada, pimenta-do-reino moída na hora e o ovo cru. 8. Corrigir o sal. Molho para o ravioli: O melhor molho para o ravioli de carne de porco, é o molho de carne de porco com orégano. Uma questão de realce de sabores. 1. Numa caçarola, dourar pedaços de carne de porco (cubinhos de 3 cm de aresta), usando pouca gordura. A melhor carne é a do pernil ou a da paleta, cortada junto ao osso. Pedaços de ossos são benvindos, principalmente os das juntas. 122 2. Acrescentar cebola e alho picados, e continuar a fritura. 3. Juntar os tomates sem sementes nem peles e refogar acrescentando água fervente, sempre aos poucos.86 4. Acrescentar o tablete de caldo de galinha, a pimenta-do-reino moída na hora e o orégano a gosto. Corrigir o sal. 5. Quando a carne estiver macia, juntar 2 colheres de sopa de manteiga sem sal e desligar o fogo. IMPORTANTE Depois de prontos, os raviolis ficam no formato de pequenos pasteizinhos. Para cozinhá-los deve-se ter o mesmo cuidado que se usa para cozinhar os agnolinis. A massa bem fininha favorece o rompimento desta iguaria se não for cozida com verdadeiro carinho e fogo baixo. A qualidade do prato depende, em primeiro lugar, da qualidade dos ingredientes e da habilidade do cozinheiro. Mas, não há dúvida de que o maior crédito deve ser dado à pouca espessura da massa. Depois de cozido, o conteúdo da panela é derramado vagarosamente dentro de um escorredor de massas. Com as mãos, para não romper, vai-se colocando os raviolis numa travessa onde são recobertos com o molho. Por cima de tudo, um bom queijo parmesão ralado.87 Se há um prato da colônia italiana que pode causar uma indigestão é este. É difícil parar de comer: “Pitosto que vança, crepa la pança!”.88 86 Refogar não é o mesmo que cozinhar. Acrescentando, numa fritura, grandes quantidades de água, mesmo fervente, o alimento vai sendo cozido na temperatura de 100C, estabilizada pela água em ebulição. Se despejarmos a água fervente às colheradas, o vapor que despreende ultrapassa os 150C. 87 Há quem prefira colocar o queijo ralado antes do molho. O argumento é que assim fazendo, o queijo se derrete, impregnando a massa. 88 “Antes que sobre, que arrebente a barriga!” - Dito popular da colônia italiana. 123 Recheio do tortel toscano (6 pessoas) (Receita da vó Emília) Ingredientes: Abóbora para tortéi (zuca) ............................................ 1 Queijo parmesão ralado ........................................ 1 pires Açúcar ................................................ 2 colheres de sopa Canela em pó........................................................ a gosto Noz-moscada..................... metade de uma noz-moscada Pão dormido, ralado ............................................. ½ pires Modo de preparar: 1. A abóbora, depois de cozida, deve ser expremida num pano de prato até sair toda a água. Misturam-se todos os ingredientes acima, menos a canela. Não se usa ovo. 2. A massa - farinha de trigo, ovos (1 para cada pessoa) e uma pitada de sal, sem água nem leite - deve ser bem fininha. Depois de espichada é cortada em quadrados de 8 a 10 cm de lado, onde são colocadas porções do recheio e depois fechados como pastéis. 3. Depois de cozidos os tortéis, são colocados um a um numa travessa, em camadas com molho e queijo parmesão ralado, misturado com canela (uma ou duas colheres de café para cada xícara de queijo ralado). Molho do tortel: Para este prato, o molho deve ser feito com asas de galinha e miúdos refogados na manteiga, com alho, cebola e tomates sem as cascas. 1. Numa panela grossa, fritar, na manteiga sem sal, 6 asas de frango e 2 moelas cortadas. 2. Quando a carne estiver dourada, acrescentar meia-cebola e 3 dentes de alho picados. 3. Estando a cebola macia, juntar 1 fígado de galinha cortado em pedaços, 3 tomates sem casca picados, um tablete de caldo de galinha, pimenta-doreino moída na hora, a gosto, e 1 xícara de água fervente. 4. Corrigir o sal. 5. Se for necessário, ir acrescentando água fervente, às colheradas. 124 6. Quando a carne estiver bem macia, juntar 1 colher de sopa de manteiga sem sal e desligar o fogo. NOTA: Para tirar as cascas dos tomates, lance-os dentro de uma panela contendo água fervendo, ou na chama do fogão, por alguns minutos. Depois de prontos, os tortéis ficam no mesmo formato do ravioli, só em maior tamanho. Este é o famoso tortel “toscano”, preparado com maestria pela esposa do tio Joanin, a tia Paulina. Há mais de quarenta anos, nos almoços de domingo, no porão da casa deles - a cantina - ele e meu pai duelaram para ver quem comia mais. O ganhador, lembro até hoje porque foi comentado por anos, comeu cinqüenta e dois tortéis. Meu pai perdeu por dois. Graças ao ambiente e ao vinho, ninguém passou mal. Em certas regiões da colônia de Caxias do Sul, costumam adicionar canela em pó ao molho de galinha, combinando com o tempero de queijo ralado com canela que irá por cima, dando um toque característico ao prato. 125 Sopa de Calendri (Para 10 pessoas) Ingredientes: Coxas e peitos de galinha caipira ...........................1,5 kg Lingüiça magra .........................................................1 kg Queijo parmesão ralado ..........................................220 g Noz-moscada ralada ..................................................... ½ Cebola grande picada .................................................... 1 Óleo vegetal ....................................... 4 colheres de sopa Pimenta-do-reino moída na hora ........... 1 colher de sopa Tempero verde picado........................................ 1 molho Ovos coloniais ............................................................. 12 Pão caseiro ralado ....................................................½ kg Sal .................q.s.p. (Lembrar que a lingüiça já contém.) Modo de preparar: 1. Retira-se a pele das coxas e dos peitos das galinhas caipiras e reservam-se. 2. Numa panela, onde se fará o caldo, colocam-se as carcaças das galinhas, junto com a pele. 3. Refoga-se, no azeite, a carne das coxas e dos peitos junto com a lingüiça esfacelada, a cebola picada, o tempero verde e o sal (pouco). 4. Quando a carne estiver macia, moer na máquina de moer carne ou, na sua falta, picar à faca o mais fino possível. 5. Colocar a carne moída numa travessa e adicionar o pão ralado, 12 ovos, 200 g de queijo parmesão ralado, pimenta-do-reino moída na hora e metade de uma noz-moscada ralada. 6. Corrigir o sal. 7. Com esta massa, faz-se esferas de aproximadamente 3 cm de diâmetro. São lançadas no caldo fervente. 8. Quando sobrenadarem o líquido, estarão prontas. NOTA - O pão deve ser caseiro. Com pão de padaria é mais fácil o calendri romper-se ao ser fervido. 126 Sopa de feijão Ingredientes: Feijão cozido e temperado Caldo de galinha Pimenta-do-reino Queijo parmesão ralado Massa fina (“Cabelo-de-anjo”, talharim ou “maltaiai”) Sal Modo de preparar: 1. Aquecer, numa panela, o feijão cozido, com o seu caldo. Geralmente é o que sobrou de outra refeição. 2. Quando estiver quente, esmagar o feijão numa peneira ou no escorredor de massas, para tirar as cascas. Voltar para a panela e ferver. 3. Largar dois cubinhos de caldo de galinha e, depois de dissolvidos, corrigir o sal. 4. Com o caldo fervendo, lançar a massa e destampar a panela para a espuma não transbordar (100 a 150 g por pessoa). 5. Quando a massa estiver cozida (a melhor é o “maltaiai” cortado bem fininho), servir a sopa bem quente, acompanhada de queijo parmesão ou serrano ralado, e pimenta-do-reino moída na hora. Variação do prato: Quando o feijão estiver macio, em vez de esmagá-lo no escorredor de massas, vai ao liqüidificador por alguns minutos. As cascas desaparecem, mas são aproveitadas pelo organismo na formação do bolo fecal, otimizando o funcionamento intestinal. 127 Sopa de leite Muito fácil de ser preparada, a sopa de leite, além do alto valor alimentício, agrada à maioria dos paladares. Ingredientes: Leite ..................................................................... 2 litros Caldo de galinha ............................................ 2 cubinhos Arroz ................................................................... 1 xícara Modo de preparar: 1. Colocar, numa panela, os dois litros de leite, uma xícara de água quente contendo os dois cubinhos de caldo de galinha dissolvidos, e uma xícara de arroz. 2. Deixar ferver com a panela destampada, acrescentando água quente conforme a evaporação. 3. Corrigir o sal. 4. Quando o arroz estiver cozido, servir. NOTA: Quem preferir, pode engrossar com maisena ou farinha de trigo dissolvidas em água fria e um ovo cru levemente batido. 128 Sopa Minestrone (Receita de Iara Festugato) De uma cultura sofrida como a dos colonos italianos e poloneses que povoaram a Serra do Nordeste do Rio Grande do Sul, junto com receitas de culinária surgiram receitas de vida. O amor ao trabalho e o horror ao desperdício eram características marcantes. Nasceram da grande dificuldade que encontraram em retirar da terra o sustento, como cita o Frei Paulo de Alfredo Chaves: “Cada pedaço de terra trabalhada e cada animal doméstico criado representavam a soma de muitos dias e anos a sucederem-se, com suores salgados, nas folhas do calendário. Cada casebre erguido para o abrigo da família é fruto de exaustivos esforços de muitos anos. Cada dinheirinho ganho, mesmo o mais miudinho, é resultado de horas insones, de dores e apertos de peito pelo dia de amanhã, de lágrimas que nas faces tostadas por um sol abrasador, abriam sulcos indeléveis e duradouros até para além da campa”.89 Muitas receitas eram aproveitamento de comidas sobradas, como o minestrone fervendo em grandes panelas de ferro. Ingredientes: Feijão cozido e temperado Arroz Legumes: batata inglesa, cenoura, repolho, moranga, etc. Sal Pimenta malagueta Modo de preparar: Numa panela, junto com o feijão já pronto e temperado, eram cozidos os legumes cortados em pedaços e os cereais. Água, até ficar na consistência de sopa e temperos a gosto. 89 WONSOWSKI, João Ladislau. Nos Peraus do Rio das Antas. Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul 1976, p. 51. 129 Sopa de Mocotó - (Receita para 10 kg) (Receita de Iara Festugato) Ingredientes: Alho.................................................................... 8 dentes Bucho bovino (mondongo) .......................................2 kg Cebolas de cabeça ......................................... 2 (grandes) Cebolinha verde picada ......................................... 1 pires Feijão branco .............................................................2 kg Joelhos de vaca ............................................................. 2 Lingüiça calabresa (fina) .........................................500 g Louro ................................................................... 3 folhas Massa de tomates ...................................................... 1 lt. Ovos cozidos e picados ................................................. 6 Patas de vaca ................................................................. 4 Pimenta malagueta ........................................................ 3 Sal ........................................................................... q.s.p. Salsa picada........................................................... 1 pires Modo de preparar: 1. Deixar o feijão branco em molho, desde a véspera. 2. Cozinhar os joelhos e as patas de vaca até desgrudarem dos ossos. 3. Separar tendões, cartilagens e gordura, tudo cortado em pequenos pedaços. Reservar. 4. Cozinhar o bucho, cortado em quadradinhos de 2 cm e reservar. 5. Cozinhar o feijão branco, até meio-cozimento. 6. Numa frigideira, refogar a cebola picada com alho. 7. Lançar tudo numa panela e deixar ferver junto com a lingüiça calabresa fatiada em rodelas de 1 a 2 cm de espessura, o louro, a pimenta malagueta picada e a latinha de massa de tomates. 8. Salgar a gosto. 9. Quando estiver pronto, servir em pratos fundos, enfeitados com ovos duros, picados, misturados com o tempero verde também picado. Há quem prefira passar o ovo na máquina de esmagar batatas. 130 Sopa Reale (Receita de Zelinda Zanella) Massa Ingredientes: Ovos inteiros (gema amarela) ..................................... 10 Azeite ............................................... 10 colheres de sopa Queijo parmesão ralado na hora....... 10 colheres de sopa Noz-moscada ralada ..................................................... ¼ Farinha de trigo ............... até dar a consistência desejada Sal ........................................................................ a gosto Modo de preparar: 1. Misturar os ovos com a farinha, batendo bem, tipo bolo. Deixar uma massa bem-mole. 2. Acrescentar os outros ingredientes. 3. Untar e enfarinhar uma assadeira retangular e derramar a massa dentro. 4. Levar ao forno até a massa ficar levemente dourada. 5. Retirar do forno e desenformar ainda morna. 6. Cortar em quadradinhos bem-pequenos. Caldo Ingredientes: Carcaça de frango ......................................................... 1 Ponta-de-peito .........................................................300 g Salsa picada........................................... 1 colher de sopa Queijo ralado Sal Modo de preparar: 1. Numa panela, ferver a carcaça de frango e a carne de gado (ponta-depeito). Se for frango de aviário, colocar depois que a carne de gado estiver em meio-cozimento. 2. Quando a carne estiver macia, retirá-la da panela, colocá-la numa travessa e salgar. 131 3. Salgar o caldo e, enquanto estiver fervendo, derramar a massa imperial, junto com a salsinha bem picada. 4. Em poucos minutos, a massa fica cozida. OBSERVAÇÃO - O queijo parmesão, preferentemente ralado na hora para conservar o aroma e o sabor, fica na mesa, à disposição do gosto de cada um. Acompanha pão d’água fresco e crocante, ou pão recém-torrado com um pouquinho de manteiga. O cren deve ficar ao alcance de todos, para temperar as carnes “a lesso”. E, para que não se morra de sede, vinho tinto goela abaixo. 132 “Strozzapretti a la rabiata” (4 pessoas) (Receita da Morgana Festugato) Massa: farinha de trigo (500 g), água e sal. (Não vai ovos). Molho vermelho (meio-litro). Modo de preparar o molho vermelho: Levar ao fogo numa caçarola: Margarina ........................................................... 1 tablete Massa de tomates ............................... 3 colheres de sopa Pimenta vermelha................................................. a gosto Açúcar ................................................................. 1 pitada Canela .................................................................. a gosto Noz-moscada ralada ................................ 1 colher de chá Leite .................................................................meio-litro Caldo de galinha ................................................... 1 copo Maisena .................................................... até engrossar90 Sal ........................................................................ a gosto NOTA Este prato deve ficar picante e é maravilhoso para quem aprecia a pimenta. O seu nome “a la rabiata” é uma alusão à pimenta: crê-se que este tempero faz os homens, e também os cães, ficarem brabos. Faz sair fogo pelas ventas. Porém, a sua maior fama é ser um prato afrodisíaco. Para isto, invocam a ação da noz-moscada e da pimenta. Na verdade, a única coisa que tem ação afrodisíaca mesmo é a nossa cabeça em marcha lenta e a saúde. 90 Se, ao acrescentar a Maizena, o molho coagular, liqüidifique no liqüidificador. 133 Tatu recheado na panela Ingredientes: Tatu de boi, inteiro ........................................................ 1 Toicinho ..................................................................100 g Sal ........................................................................... q.s.p. Vinagre de vinho ................................................ ½ xícara Pimenta-do-reino moída na hora .......................... a gosto Óleo ..................................................................... 1 xícara Cebola média ................................................................ 1 Alho................................................................... 3 dentes Louro ................................................................... 2 folhas Modo de preparar: 1. Com uma faca bem-longa e estreita faz-se dois ou três furos longitudinais no tatu, em toda a sua extensão, porém sem atravessar a peça até o outro lado. 2. Corta-se o toicinho em tiras, na espessura de aproximadamente um centímetro quadrado de seção, e enfia-se na carne, junto com os pedaços de uma folha de louro. 3. Fica no tempero durante pelo menos uma hora: sal, pimenta-do-reino moída na hora (a gosto), vinagre de vinho (ou vinho tinto seco) e uma folha de louro. 4. Numa panela grossa, preferentemente de ferro, o tatu é fritado no óleo, em fogo baixo, até ficar bem dourado. 5. Joga-se, dentro da panela, uma cebola grande bem picada, alho esmagado e deixa-se fritar. 6. Tampa-se a panela e vai-se acrescentando a vinha d’alho sobrada e, se for necessário, água fervente, sempre aos poucos (colheradas das de sopa), até amaciar. A carne fica escura por fora e rosada por dentro, amaciada pelo toicinho. O molho fica bem escuro e irá temperar a massa escolhida: “spaghetti”, “macarrão, “gnochi”, “talharim”, ou simplesmente comido com pão ou polenta quente, acompanhado de um bom vinho tinto seco. Variação da receita: 134 1. Os passos 1, 2 e 3 permanecem. 2. Em vez de colocar o tatu na panela, se o embrulha bem molhado na vinha-d’alho, numa folha de papel laminado untada com manteiga. Vai sobre as brasas num espeto para peixes ou grade, para não furar o envoltório e perder os sucos. Depois de uma hora no fogo, retira-se o papel laminado para corar. Neste caso, dispensa-se a massa. 3. Este sistema é o mesmo que se usa para assar o cupim de gado. 135 Tatu mulita O preparo das carnes de caça é a principal especialidade da cozinha colonial italiana. Quando os primeiros imigrantes aqui se estabeleceram, sem a mínima infra-estrutura agrária, simplesmente abandonados pelo governo dentro do mato hostil, viram-se obrigados a comer todo o tipo de caça que havia: desde passarinhos, rãs, muçuns, caracóis, até coatis, pacas, veados, tatus. Nos matos cortados por trilhas formadas pelos caitetus e até queixadas, fervilhavam jacus, jacutingas, pombas e inhambús. Imensos bandos de papagaios charões revoavam de pinheiro em pinheiro, catando pinhões em ensurdecedora algazarra. Sem falar nos perdigões, tão abundantes nos campos de cima da serra, ao lado de patos, marrecos, narcejas e perdizes. Não podemos esquecer que há bem pouco tempo todos os animais eram selvagens. E o boi e a galinha, hoje criados e abatidos comercialmente, viviam livres na natureza. MULITA PERFUMADA NA MANGERONA O gordo tatu mulita, com uma carne branquinha e bem macia, que ganhei do compadre Oneide que o matou para salvar a horta, eu já tinha cortado e dessangrado a capricho. Ele já havia tirado a pele da barriga e as catingas que dão o gosto ruim a esta carne. Agora era temperar. Picado o alho, esmagado com sal e uma pimentinha vermelha, faltou o mais importante: a mangerona, o tempero ideal para esta carne. Na fruteira, não havia, nem no supermercado. A Zaira, que me atendeu ainda de roupão - recém acordara - informou que estava em falta. O Juca recém havia plantado, mas ainda não dava para cortar. Encontrei a mangerona no lado da minha casa: na Odila. Trouxe três ramos de aproximadamente vinte centímetros de comprimento, de uma cor verde-clara própria da folha colhida no meio da touceira (pouca luz), molhada da chuva que caíra na noite, tenra, macia e exalando um intenso e maravilhoso odor característico da cozinha italiana. Como é perfumada a mangerona! Só por ela - a mangerona - o tatu deverá ficar uma delícia! Ingredientes: 136 Tatu mulita, cortado em pedaços ........................ 1 Banha ....................................... 3 colheres de sopa Cebola média ...................................................... 1 Tomate gaúcho (bem maduro) ............................ 3 Sal .................................................................... 3% Alho.......................................................... 3 dentes Pimenta vermelha................................................ 1 Mangerona ............................................... 3 ramos Vinho tinto ................................................. 1 copo Vinagre de vinho tinto.............. 3 colheres de sopa Manteiga sem sal......................................... ½ pct. Dessangrar - Colocar o tatu cortado em pedaços numa panela com bastante água fria. Levar ao fogo. Quando levantar a primeira fervura, retirar a carne e desprezar o líquido. A seguir, lavar os pedaços do tatu em água corrente. Tempero: vinha-d’alho - Esfregar na carne a pasta formada com o alho, a mangerona e a pimentinha vermelha, esmagados no sal. Acrescentar o vinho tinto, o vinagre e deixar descansar por duas horas. Modo de preparar: 1. Separar a carne da vinha-d’alho, que deve ser reservada. 2. Fritar a carne na banha, numa panela de ferro até meia-fritura. 3. Acrescentar a cebola picada. 4. Quando a cebola estiver macia, juntar o tomate picado, sem casca nem sementes. 5. Ir refogando, em fogo brando, acrescentando, às colheradas, a vinhad’alho reservada. Se for necessário, acrescentar água fervente. 6. Quando a carne estiver macia, lançar a manteiga, tampar a panela e desligar o fogo. Como servir - A carne é colocada numa tavessa. O molho irá temperar uma massa caseira, de preferência talharim (“maltaiai”) coberto de queijo parmesão ralado na hora. É importante adicionar o molho somente depois de ter misturado, na massa quente, o queijo ralado. 137 Tripada do Severino Bôrtolo Peteffi - (Para 12 pessoas) Severino Bôrtolo Peteffi. A tripada, como é conhecida, faz parte da cultura colonial italiana da Serra do Nordeste do Rio Grande do Sul. Está ligada a dia de festa, a repicar de sinos, a cantar de galos, a feriado religioso e a domingo. Nesses dias, o colono vinha para a vila cumprir seu compromisso religioso de assistir à sagrada missa. Chegava ainda escuro, muitas vezes depois de caminhar por horas subindo e descendo morros, sapatos na mão para não gastá-los, e com uma fome de lobo. Geralmente estava em jejum - um requisito indispensável de antigamente para poder comungar. No salão paroquial ou nalgum boteco vizinho à igreja, serviam a gostosa tripada, reconhecida desde longe pelo seu aroma característico que se espalhava ao longe, fazendo escorrer água da boca. Consistia em tiras de estômago bovino ou, melhor ainda, do rúmen, conhecido por “sessenta folhas”, refogados, na manteiga e banha, com cebola, alho, tomate e alguns cravos-da-índia. Depois da missa e da comunhão, os colonos se reuniam no salão paroquial ou no boteco para comer, conversar, cantar, jogar cartas ou bochas e tomar vinho. Colocavam duas ou três fatias de pão caseiro num prato fundo, derramavam sobre elas duas conchas de caldo de galinha fervente e, por cima, generosas porções de tripada com seu molho vermelho. O “formaio 138 gratá” (queijo ralado) dava o toque de gênio que torna tão saborosa esta comida, espalhando o seu perfume no ambiente. Sem esquecer, é claro, meia garrafa de vinho tinto, seco, feito de uvas Isabel. A receita de tripada que vai abaixo é de autoria do amigo Severino Petteffi. Desconheço outra melhor. Ele começa a prepará-la na véspera, cozinhando as patas e os joelhos da vaca. É um prato trabalhoso, mas o prazer de degustá-lo rodeado dos parentes e amigos, tomando vinho, conversando, rindo e cantando (ele é o “baixo” e um dos fundadores do maravilhoso coral caxiense Stela Alpina), compensa plenamente o trabalho. “No ze mia vero, Severino?” Ingredientes: Bucho amarelo91 cortado em tiras .............................5 kg Joelhos e patas de vaca.................................................. 2 Cebola picada ............................................................1 kg Maizena ................................................... 4 colheres sopa Polpa de tomates ................................... 2 pcts. (1.040 g) Caldo de galinha ............................................ 6 cubinhos Sal fino ................................................................. a gosto Cravo-da-índia ............................................................ 10 Folhas de louro .............................................................. 3 Alho.................................................................. 12 dentes Salsa ..................................................................... a gosto Pimentas verdes ............................................................ 5 Modo de preparar: 1. Pasta A - Esmagar, junto com 2 caixinhas de fósforos de sal fino: alho, salsa e pimenta-do-reino. Reservar. 2. Refogar, na frigideira, a cebola picada, até meia-fritura. Acrescentar a polpa de tomates e refogar. 91 Bucho amarelo = Estômago bovino limpado com água morna e sabão, sem usar soda cáustica como usam nos matadouros. Estes, ficam branquinhos e bonitos, mas sem o gosto saboroso daqueles. Para quem tem nojo de bucho, aqui vai uma explicação. No bucho, que é o estômago do gado, não há fezes. Estas são formadas no intestino grosso do animal. O que há é uma pasta formada por pasto mascado, misturado com sucos digestivos e ácido clorídico, totalmente estéril. 139 3. Numa panela de pressão, cozinhar os joelhos e as patas. Separar os tendões dos ossos e cortá-los em pedaços médios. Reservar a metade. 4. Na mesma panela, agora com caldo e metade dos tendões de vaca, cortados, acrescentar o bucho, a pasta A, a cebola refogada, os cubinhos de caldo de galinha, as folhas de louro e o cravo. Deixar ferver até o bucho ficar em meio-cozimento. 5. Corrigir o sal e terminar o cozimento. 6. Engrossar o caldo com a maisena previamente dissolvida numa xícara de água fria. NOTA - Os tendões das patas e joelhos de vaca reservados, frios e cortados, são colocados numa travessa e temperados como se tempera uma salada: sal, vinagre, óleo ou azeite e, por cima, salsinha picada. Acompanha pão fresco, caldo de galinha fervente e bastante queijo ralado, na hora. Se acompanha vinho? Na verdade, é a tripada que acompanha o vinho, e não o contrário. 140 Vitelo ao forno (4 pessoas) O vitelo ao forno é um prato típico da zona colonial italiana. Não é o nonato dos franceses, o terneiro que ainda não nasceu, mas o bezerro com um mínimo de trinta dias de vida. É quando o seu pernil tem, no mínimo, três quilos de peso. O vitelo ideal é a cria dos gados de corte - devon, hereford, poled angus, charolês - mas também servem os de leite, como o holandês e o jérsei. “Não tem tu, vai tu mesmo!” Devido à topografia acidentada da região e à pequena área das propriedades, os colonos ocupavam toda a terra disponível com lavouras. Nunca foi nem é zona para pecuária. Todo o gado se resumia em duas ou três vacas de leite e alguma mula. Cavalos bons eram raros. Um cavalo pasta quase como duas vacas, dizem. É um luxo que os pobres não podiam ter. Quando nascia um bezerro macho, se não houvesse espaço na propriedade para criá-lo para a reprodução ou abate (touro ou boi), devia ser descartado. Assim, foram aprimorando maneiras de aproveitá-lo na culinária. O vitelo é um dos pratos mais saborosos da cozinha italiana. Um único cuidado: devido à grande proporção de proteínas muito ricas em adenina e guanina, como contêm todas as carnes jovens, deve ser consumido com moderação pelos portadores de gota. Ou tomar colcichina. Ingredientes: Carne de vitelo (pernil, paleta, lombo) .....................3 kg Alecrim ......................................... 1 colher de sopa, rasa Sal ........................................................................... q.s.p. Vinagre tinto ..................................................... 1 concha Vinho tinto ........................................................ 1 concha Pimenta verde....................................................... a gosto Alho.................................................................... 3 dentes Óleo vegetal ....................................................... ½ xícara Modo de preparar: 1. Na véspera, à noite, deixar o vitelo, cortado em pedaços de aproximadamente 6 cm de comprimento por 4 cm de largura e 4 cm de espessura, na vinha d’alho: vinho, vinagre, alho esmagado com sal, pimenta verde e alecrim. Quando o osso é conservado, os pedaços podem ser maiores. 141 2. No dia seguinte, separar a carne e colocá-la numa fôrma com um pouco de óleo vegetal. 3. Untar a carne com óleo vegetal e levar ao forno. NOTA A carne fica avermelhada por fora, branquinha por dentro, e extremamente suculenta e gostosa. Vai bem, quando é acompanhada com polenta mole e... alguém adivinha? É lógico que é o vinho tinto seco, fresco, mas não gelado. 142 “Zuchetti” fritos à doré Ingredientes: “Zuchetti”(abobrinha) .............................................500 g Óleo ..................................................................... 1 xícara Sal ........................................................................... q.s.p. Pimenta-do-reino.................................................. a gosto Orégano ................................................................ a gosto Farinha de trigo ............................................. 1 prato raso Ovos .............................................................................. 2 Modo de preparar: Raspam-se as cascas dos “zuchetti” com uma faca. Corta-se em fatias de aproximadamente meio-centímetro de espessura. As fatias são temperadas com sal, pimenta-do-reino moída na hora. A seguir, são passadas no ovo batido, misturado com orégano e, logo, na farinha de trigo. 5. Imediatamente são mergulhadas no óleo quente, sempre em pequenas quantidades: 4 a 6 rodelas por vez, conforme o tamanho da frigideira. 6. Quando fritas, são colhidas com uma escumadeira e colocadas numa travessa forrada com papel de pão. 1. 2. 3. 4. 143 “Zuchetti” refogados na manteiga Ingredientes: “Zuchetti”...................................................................... 2 Sal ........................................................................... q.s.p. Pimenta-do-reino moída....................................... a gosto Manteiga sem sal.....................................................100 g Cebola picada ............................................................... ½ Alho picado ........................................................ 2 dentes Canela em pó........................................................ a gosto Modo de preparar: 1. Raspar a casca dos “zuchetti” como na receita anterior e cortá-los em pedaços aproximadamente do tamanho de meio-cubinho de caldo de galinha. 2. Fritar a cebola picada e o alho, na manteiga, até dourar. 3. Lançar os “zuchetti” cortados, mexendo sempre. 4. Salgar a gosto, temperar com a pimenta-do-reino moída, a canela em pó e deixar fritar até ficarem na cor levemente escura. Se for necessário, acrescentar um pouquinho de água. OBSERVAÇÃO Quando a manteiga não é fresca (a ideal é a feita artesanalmente e logo consumida), a oxidação dos ácidos graxos forma compostos rançosos. Neste caso, antes de usar a manteiga deve-se fritá-la por alguns minutos até estes ácidos graxos oxidados evolarem, eliminando os estragos da oxidação causadora do ranço. 144 145