1 Breve introdução A pesquisa foca nas práticas artísticas urbanas
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1 Breve introdução A pesquisa foca nas práticas artísticas urbanas
1 Breve introdução A pesquisa foca nas práticas artísticas urbanas efêmeras. Seria possível a produção de subjetividade no cotidiano urbano, através da relação entre a arte e a cidade e das novas atividades artísticas no espaço público? Para responder a essa pergunta, investigaremos a produção artística em cidades que, apesar de serem distintas, dividem semelhante contexto socio-cultural. As atividades artísticas urbanas (AAU) no espaço público1 seriam um fenômeno mundial e demonstrariam a vontade do artista se comunicar utilizando elementos lúdicos na cidade e poderia designar um comprometimento político e social do artista. O desafio seria encontrar brechas que permitiriam quebrar os fluxos contínuos do cotidiano, de forma criativa, processual e experimental, transformando a cidade em um laboratório de práticas artísticas. Analisaremos algumas obras para entender se seria possível, através de uma AAU, que os espaços públicos funcionem sob uma outra lógica2 que diferiria da cotidiana, com a qual o cidadão estaria habituado. A força destas práticas artísticas urbanas poderia ser observada em Berlim, onde o passado bipartido, comunista e capitalista, marcaria o espaço público como um lugar de confrontos ideológicos. Esta força seria tanta que seria utilizada como um diferencial para o desenvolvimento econômico da cidade que cooptaria a estética urbana como mais uma atração turística a ser explorada, através da possibilidade de produzir imagens a partir da cidade. Assim, a reabilitação do espaço público seria de responsabilidade de artistas e não-artistas preocupados em exercer sua cidadania. Para estabelecer parâmetros que indicariam a relevância das AAU, é necessário ampararmo-nos sobre os aspectos históricos do espaço público, para compreendermos a relação entre os indivíduos e o entorno urbano. Investigaremos se as AAU conseguiriam transformar os espaços de uso coletivo e proporcionar novos tipos de interação social neles e em que medida as proposições idealizadas pelos artistas poderiam corresponder as suas respectivas realizações. Teriam os artistas ferramentas para verificar a maneira pela qual o público percebe a obra? 1 Usaremos o termo espaço público para nos referir ao espaço físico e material onde acontece o encontro de pessoas, de diferentes origens sociais, de forma livre, aleatórioa, casual e de graça. 2 Se diferenciaria da lógica funcional da cidade, onde a base do espaço público seria do ir e vir frenético de pessoas e transportes, sem espaço para o cidadão praticar a sua subjetividade. Esta nova lógica seria criativa, espontânea e, sobretudo, experimental. 2 Sumário Introdução…………………….………………………...…………………………… Pág. 03 1. Um estudo de caso em Berlim (2009.2/ 1010.2)…………………………… Pág. 17 1.1 Reflexos históricos………….……………………………………………… Pág. 24 1.2 Grafite- a estética urbana….……………………………………………… Pág. 39 1.3 Arte como protesto………………………………………………………… Pág. 44 2. Arte, cidade, memória e monumento……………………………………….. Pág. 51 2.1 Embelezamento estratégico…..…………………….…………….……... Pág. 57 2.2 A institucionalização do espaço público…….………………...………… Pág. 65 3. Panorama sociocultural……………………………………………………….. Pág. 74 3.1 A perda da experiência no espaço público….……………………….…. Pág. 74 3.2 A construção da “opinião pública”……………………………………….. Pág. 80 3.3 A autonomia da imagem…….….………………………………………… Pág. 87 Conclusão……………………………………………………………………………. Pág. 94 Bibliografia………………..……….………………………………………………... Pág.104 3 Introdução O trabalho se propõe a analisar os novos processos criativos da arte contemporânea, nos quais a cidade é utilizada como elemento central. A pesquisa vai denominar de atividade artística urbana (AAU) toda ação, obra, performance, ataque, proposição e intervenção que aconteça na cidade e que se utilize de espaços de convivência, públicos e semi-públicos3, para serem realizadas. As AAU interfeririam nos conflitos travados no espaço público e poderiam ser capazes de transformar e dar novas utilidades aos espaços de uso coletivo4, em sua maioria espaços públicos. Na produção atual, nos interessa tanger valores e entender as questões que cercam a arte praticada nos espaços de uso coletivo e o que ela pretende. Queremos compreender a arte quando fora do espaço institucionalizado de museus e galerias. Como indicar a relevância dessas novas práticas artísticas no espaço público? As AAU poderiam dispor da cidade como um de jogo, um grande tabuleiro, para assim inventar suas próprias regras e convidar os transeuntes, jogadores, para participação. Caberia ao cidadão aceitar este convite e participar de maneira ativa ou não. A quais demandas essas práticas atenderiam e por quê e para quê? Uma das hipóteses deste trabalho5 é de que o interesse privado expandiria a sua área de atuação, através de ações criativas e estratégias de propaganda e marketing, para se apoderar dos espaços de uso coletivo. Na cidade, a AAU de caráter público e efêmero poderia se misturar ao caos urbano e dividir atenção com elementos publicitários que ocupam as vias e bombardeiam o cidadão no cotidiano. Este cenário urbano, aparentemente caótico, nos parece ideal para os artistas tentarem criar processos, dinâmicas que estimulem as relações humanas na esfera pública e instiguem uma atitude mais crítica do cidadão em relação a ela. As AAU executadas em espaços públicos de livre acesso e circulação6 poderiam criar um ambiente de sociabilidade, tolerância e experiências coletivas. Apesar de ruas e 3 Estamos classificando de espaços semi-públicos os locais privados que, de certa forma, são de livre acesso, mas esse acesso passa pelas regras privadas quanto à aparência, classe social e outras limitações que selecionam que tipo de pessoas são desejadas para que circulem naquele espaço. 4 Faz-se necessário especificar que nem todo espaço de uso coletivo é necessariamente um espaço público, podendo ser privado, como por exemplo um shopping center. 5 Esta hipótese será investigada, principalmente, no capítulo três. 6 Faz-se necessário lembrar que nem todo espaço público é de livre acesso e circulação, repartições públicas e alguns parques e praças por exemplo, apesar de públicos tem restrições quanto a circulação de pessoas, tem horarários específicos e regras a serem cumpridas. 4 praças serem, essencialmente, espaços de convivência, percebemos que esse aspecto encontra-se em crise; a presença do outro é evitada. Seja por medo, por falta de tempo ou costume, a interação com pessoas estranhas não é praticada. Várias destas novas práticas artísticas urbanas tentariam transformar os espaços públicos em espaços de convivência através da ruptura do ritmo dos transeuntes. A pausa na rotina criaria possibilidade de abertura para interações sociais e interação do público espectador com a arte, através dos artistas e suas obras. Mesmo que rapidamente, poderia acontecer uma quebra da indiferença e do automatismo presentes na sociedade e, em consequência, no espaço público hoje. A hipótese trazida pelo capítulo dois é de que a atuação dos artistas seria singular para explorar os confrontos sociais e ideológicos travados no espaço público das grandes metrópoles. O modelo de Cidade Global7, que vem sendo frequentemente adotado por vários centros urbanos, indicaria que a reabilitação do espaço público seria de interesse de artistas e não-artistas. Assim, as novas práticas artísticas urbanas, incluindo as artes visuais, poderiam contribuir positivamente com a democracia, estimulando a cidadania e fortalecendo o senso de comunidade. Por outro lado, essas práticas artísticas urbanas seriam tão expressivas, ao ponto de serem instrumentalizadas pelo poder do Estado e da iniciativa privada. Como poderíamos observar através do programa antipichação e do projeto de revitalização do bairro da Lapa implementado pela prefeitura do Rio de Janeiro que, em julho de 2010, inaugurou um mural de grafite de 300 metros quadrados. (Fig. 0) Na divulgação do projeto, o mural apresentava uma latinha, apenas com as cores da Antarctica, em referência à Ambev que promoveu o projeto. Depois de inaugurado, o típico pinguim apareceu no mural. Por se tratar de uma obra do poder público, o que seria “arte pública”8 se tornou uma propaganda que burla a lei, por não inscrever “beba com moderação”, como é exigido por Lei. O grafite é uma prática de origem ilegal que, depois de frequentar o circuito tradicional de arte, retornaria às ruas institucionalizado, patrocinado por diversos interesses, tanto públicos como privados. Com frequência, o grafite emprestaria sua estética à publicidade de produtos, como neste caso carioca. O mural da Lapa 7 SASSEN, 1991 em OBRIST, 2001, p. 104. (Tradução livre) Voltaremos a falar sobre este modelo de cidade na página 6. 8 A pesquisa se utilizará do termo arte pública para designar trabalhos artísticos comissionados pelo poder público governamental. 5 funcionaria como uma propaganda não apenas para a Ambev, mas para o próprio governo que se faria presente no espaço público em sintonia com a estética urbana. Este tipo de solução pública parece ser uma tendência adotada pelas cidades para lidar com o problema do picho e do grafite nas vias públicas. Em Berlim, por exemplo, a prefeitura lança editais para escolher os painéis de grafite que irão adornar e revitalizar a cidade. Este procedimento fortaleceria a produção artísticacultural local e exploraria o seu potencial criativo. Assim, o investimento na estética urbana seria um diferencial para o desenvolvimento social e econômico da cidade; criando novas áreas para exploração do turismo e ajudando a propagar a imagem avant-garde de Berlim, para atrair a presença de indústrias criativas9 na cidade. Devido aos megaeventos que irão acontecer no Rio de Janeiro, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, notamos que a preocupação em modificar áreas estratégicas da cidade, de acordo com os interesses econômicos, seria a principal pauta na agenda da prefeitura e do governo do Estado do Rio de Janeiro. Assim, o desafio do poder público seria pensar em um planejamento urbano pautado pela ordem social global, mas que, ao mesmo tempo, esteja em sincronia com as necessidades da população local. A competição entre forças globais e locais aproximaria Rio de Janeiro e Berlim. Por essa razão, apresentaremos, no capítulo inicial, o estudo de caso realizado em Berlim, onde tentaremos compreender em que cenário sócio-políticocultural estão sendo realizadas as AAU. Os artistas locais parecem dispor da cidade como um playground, um terreno livre para a criação e comunicação humana. As práticas artísticas urbanas utilizariam a cidade como uma forma de resistir às forças do capital externo que estariam transformando Berlim desde a queda do Muro. A idéia do jogo e da brincadeira parece ser uma tendência crescente na arte, principalmente no cenário europeu pós-guerra. Em 1968, no museu Moderna de Estocolmo, o artista Palle Nielsen montou uma exposição que consistia em um playground aberto para às crianças. A exposição foi chamada de O modelo (o modelo para uma sociedade qualitativa)10, onde através de áreas destinadas à brincadeira, questões como democracia e liberdade poderiam ser exploradas. 9 Este termo vem sendo frequentemente utilizado por economistas para classificar as empresas ligadas à propaganda, ao marketing, ao entretenimento, ao design e à arte. 10 The Model – A Model for a Qualitative Society fez parte da 29ª Bienal de São Paulo, em 2010. 6 No segundo capítulo, apontaremos como arte, cidade, monumento e memória se relacionam, pelos princípios da arquitetura, e como, historicamente, as AAU seriam uma forma legítima de expressão pública. Se a arquitetura seria a mais antiga arte11 e a impor seus modos de percepção, as práticas artísticas urbanas poderiam ser vistas como a primeira tentativa de questioná-los. A institucionalização das AAU também será analisada, assim como as questões subversivas da arte. No capítulo três, analisaremos as mudanças ocorridas no espaço público, a partir da urbanização e a influência dos meios de comunicação na espetacularização12 da sociedade c, o que refletiria no comportamento dos cidadãos no espaço público. As reflexões feitas neste capítulo final apontarão para os aspectos que potencializam o espaço público para as práticas artísticas urbanas e o tornam tão atraente para a interferência de artistas de diferentes contextos. Notamos que as AAU são um fenômeno mundial que atinge os centros urbanos de diferentes cidades. A forma mais comum deste tipo de atividade se apresentaria através das artes visuais, em especial do grafite, mas não se limitaria a ele, esta seria a mais inicial, radical e menos efêmera dentre tantas outras práticas artísticas urbanas. As várias atividades que se dão na cidade, nos indicariam que as problemáticas sociais dos centros urbanos estão bastante aproximadas e nos leva a crer que a responsabilidade social do artista é comum em todos os centros urbanos. Nas últimas décadas, mudanças econômicas, geopolíticas e socio-culturais resultaram em desdobramentos referentes à circulação do capital e de pessoas; aumentando a exclusão social e o distanciamento entre a realidade de ricos e pobres, em escala global. Devido a essas mudanças, cidades muito singulares se tornariam muito semelhantes umas às outras, por compartilharem uma mesma agenda de prioridades, de forma que as relações entre poder público, capital e interesse privado estariam muito próximas e refletiriam nos espaços de uso coletivo. A socióloga Saskia Sassen elaborou o conceito de Cidade Global, onde o uso de novas tecnologias, a rapidez com que pessoas, informações e dados eletrônicos seriam trocados e a abertura de novos mercados, como o de telecomunicação, fariam de certas cidades um conglomerado de diferentes dinâmicas: “cidades globais são, neste sentido, lugares de produção para as principais indústrias de informação 11 12 De acordo com Walter Benjamin, como demonstraremos adiante no capítulo 2. DEBORD, 2009. 7 do nosso tempo”13. Empresas transnacionais fariam das cidades globais a plataforma ideal para conciliar atores globais e especificidades nacionais, acrescentando talento ao conhecimento14. As cidades globais produziriam crescimento econômico e promoveriam os interesses particulares das classes mais ricas da sociedade no espaço público urbano. Sassen criticaria a administração pública que passaria a ser permeada pelo interesse corporativo de forma legítima e também através da prática da corrupção. Sassen defende que a abertura do mercado nacional às firmas estrangeiras destruiria as economias locais mais tradicionais e este seria um dos efeitos da ação do Fundo Monetário Internacional, FMI, nos países que recebem ajuda dele15. Para Sassen, as novas tecnologias e conjuntura global teriam “neutralizado”16 a geografia, aproximado as distâncias, e ainda teriam globalizado temáticas políticosociais: como o problema da imigração, da violância, da concentração de renda e do transporte de massas (periferia-centro). Teriam crescido as redes internacionais de comunicação no âmbito econômico, político, social, criminal e cultural, assim como as redes de grupos políticos informais, ativistas ligados às causas ambientais, aos direitos humanos, à liberdade de expressão e assim por diante. Nas AAU, criar imagens a partir de ações efêmeras seria uma constante. A produção artística urbana de um centro teria, ao mesmo tempo, poder de influenciar e de ser influenciada pelas produções dos demais centros urbanos. Assim, as expressões artísticas nas ruas das grandes metrópoles seriam aproximadas. Os artistas destas práticas parecem se preocupar em disseminar o seu trabalho no maior número de centros possíveis, para conseguir se destacar no mercado da arte. Um exemplo se observa em ações realizadas por artistas internacionais, no Rio de Janeiro. As possibilidades de produzir imagens, a partir das favelas cariocas, teriam feito do Rio uma vitrine, atraindo nomes do circuito internacional, como o francês JR (Fig. 1) e os holandeses Haas & Hahn. (Fig. 1a) A dupla atualmente apresenta, em Nova Iorque17, a mostra Painting Urbanism: Learning from Rio , onde exibem fotografias e vídeos das ações que foram realizadas, na cidade, desde 2007. 13 SASSEN, 1991 em OBRIST, 2001, p. 109. (Tradução livre) De acordo com blog da autora: http://www.huffingtonpost.com/saskia-sassen 15 De acordo com o blog da autora: http://www.huffingtonpost.com/saskia-sassen/haiti-and-the-catastrophi_b_429647.html 16 SASSEN, 1991 em OBRIST, 2001, p. 109. (Tradução livre) 17 Em uma espaço de arte chamada Store front for art and architecture. Outras informações no site da galeria: http://www.storefrontnews.org/archive/2010?y&m&p&c&e=436 14 8 A estratégia de produzir imagens a partir da cidade não seria só utilizada pela arte. O grupo canadense Greenpeace, desde 1971, protesta em larga escala, de forma planejada, através de ações não-autorizadas pelo poder público e de dispositivos estéticos que chamam atenção para causas ambientais, como nesta ação em Berlim, em 2009. (Fig. 2) O grupo hoje está presente em 42 países.18 A utilização estética com fins políticos também é presente na ONG Rio de paz que utiliza a cidade para protestar contra a violência urbana. (Fig. 2a) A pesquisa demonstrará que utilizar a cidade com o objetivo de gerar imagens é uma estratégia que poderia ser instrumentalizada por interesses diferentes, como exposto acima. As AAU poderiam ser compreendidas como um fenômeno global que indicaria a vontade comum dos artistas interferirem ativamente nas cidades. Embora cada lugar tenha as suas singularidades, os centros urbanos desenvolvem-se de forma semelhante, compartilham as mesmas funções e possuem problemas parecidos, só que em diferentes escalas. Por outro lado, parece haver uma certa urgência do artista, uma necessidade dele intervir no seu ambiente, de encontrar brechas19 que dêem a oportunidade de quebrar o fluxo do cotidiano massificado da urbe, de forma criativa, processual e experimental, fazendo da cidade um laboratório de práticas artísticas, como, por exemplo, nesta ação realizada, em forma de ataque, pelo holandês Iepe Rubingh em Berlim, em abril de 2010. (Fig. 3) Ataque é uma expressão utilizada por artistas na arte contemporânea para designar as ações rápidas, não anunciadas, performances e intervenções que acontecem na cidade e são executadas ilegalmente. Siegfried Zielinski se utilizou dela para nos responder a uma pergunta sobre a arte no espaço público: Zielinski- A arte na esfera pública não é possível. Ou é um 'ataque' do tipo street art, grafite ou é propaganda. Essas são as duas formas de 'arte' possíveis e por isso que é tão difícil brincar subversivamente na cidade, em um ambiente com tantos anúncios. Há muitos artistas que fazem esse tipo de experimento, em Nova Iorque e outras grandes cidades, mas é muito difícil trabalhar subversivamente com isso, pois mesmo que você faça algo totalmente diferente, as pessoas continuam achando que é propaganda, 20 porque a propaganda já fez de tudo. É um campo muito difícil. 18 Dados coletados no site do grupo no Brasil: www.greenpeace.com.br/duvidas/institucional.php Frequentemente nesta pesquisa, iremos utilizar esse termo “brechas”. Este não é um conceito já formado ou difundido pelas novas práticas contemporâneas, mas sim por essa pesquisa para classificar as situações nas quais há possibilidade de transgredir padrões e práticas sociais formais, de forma criativa. Essas brechas permitem que situações inusitadas sejam criadas a partir da interferência de forças criativas. 20 Em entrevista concedida a autora desta pesquisa, realizada no dia 21 de Maio de 2010, na Universität der Künste Berlin (UdK). 19 9 Para Zielinski, a visão do cidadão, de forma geral, seria polarizada entre: legal e ilegal. As novas práticas artísticas urbanas introduziriam um novo tipo de atitude em relação ao espaço público, onde a subversão não seria necessariamente agressiva, radical e criminal, seria uma nova forma de utilizar a cidade de maneira social e criativa. Como Joshua Allen Harris que cria esculturas de plástico, através da saída de ventilação do metrô. (Fig. 4) Ataque sugere algo repentino e, eventualmente, brutal. Percebemos que o teor subversivo do termo permeia a concepção do grafite, mas não se limita às artes visuais. Os ataques, também, seriam um tipo de AAU e teriam a capacidade de fazer o cidadão quebrar o automatismo cotidiano. Por não ter ferramentas suficientes para compreender a realidade, o citadino teria que confirmar com os demais o seu ângulo de visão, perguntando sobre aquele fato que disturba a sua rotina. Independentemente do que impulsionaria o artista a levar a arte para fora do espaço institucionalizado dos museus e galerias, os desdobramentos de uma AAU são imprevisíveis e de difícil controle. Isto seria bem distintos das ações idealizadas no espaço fechado tradicional. Parece haver várias motivações para o artista buscar esses novos espaços expositivos; ele poderia querer desenvolver o seu papel social, ampliar seu público, buscar a atenção da mídia, procurar uma nova audiência ou apenas querer se colocar em teste e ver a reação que provoca em um público diferente do encontrado nos espaços tradicionais de arte. Contudo, encontrar brechas para que se aplique práticas artísticas de teor subversivo, na cidade, não seria fácil. A pesquisa compreende como subversiva as práticas que invertem a ordem preestabelecida e funcional da cidade, alterando o valor material e/ou simbólico dos objetos que compõem o espaço público. Através de dispositivos estéticos ou processuais, os artistas conseguiriam estimular a subjetividade na cidade e provocar um outro tipo de olhar no cidadão. Para ser efetiva em sua recepção, uma AAU teria que ser notada pelas pessoas que se encontram no entorno dela o que, nem sempre, aconteceria. Parte do público que a percebe é capaz de interromper o seu trajeto para observá-la, outra parte não, prossegue, na urbe, sem desviar atenção. As reações provocadas por uma AAU são diversas e saber o que motivaria a participação popular de maneira ativa é uma investigação que passaria pela contextualização da atividade apresentada: onde, quando, para quem e o que pretenderia aquela atividade. 10 Claire Bishop classifica como arte participativa as práticas artísticas que se originaram no movimento dadaísta de 1920 e desde a década de 1960, através do movimento Situacionista na França, dos Happenings nos EUA e do Neo-concretismo no Brasil21, criam dinâmicas politico-sociais. Para Bishop, a motivação artística surgiria de três preocupações; “desejo de criar um assunto ativo que será fortalecido pela experiência física ou simbólica”22; vontade de doar ao público parte ou completamente a autoria, o que produziria uma arte de carater “igualitário e democrático”23 e, além de tudo, implicaria em benefícios estéticos de “maior risco e imprevisibilidade”24; e a terceira preocupação seria a respeito do senso de comunidade, argumento que se fortaleceria após a queda do comunismo e teria na arte participativa uma crítica aos “efeitos alienantes e isoladores do capitalismo”25. Ao explorar os espaços públicos, brincar na cidade com as circunstâncias acidentais e variáveis, quebrar com o rítmo do cotidiano e adicionar elementos à rotina urbana, ao artistas estariam tratando o citadino de modo distinto do usual; não como consumidores que circulam em vias públicas, mas como cidadãos. Possibilitando, assim, que o espaço público seja mais propício à convivência com estranhos. Mesmo que alguns não percebam esta diferença de tratamento, uma nova opção lhes estaria sendo dada; de participar como co-autor, ativamente, ou permanecer como espectador passivo. Porém, observamos que existiria uma certa dificuldade para os artistas avaliarem a congruência entre a obra idealizada previamente e ação que conseguiu ser realizada. Este seria o cerne da questão, pois nos parece que é no público receptor, nos atores sociais da urbe, que residiria a complexidade das AAU. Como explicar aplausos, vaias, participação ou a não-reação nos espaços públicos e semipúblicos26 de uso coletivo? Para responder, é importante considerar o fator “surpresa”, se as pessoas já sabiam previamente o que aconteceria ou se cruzaram com a ação por acaso. Aparentemente, estas seriam as duas origens distintas dos espectadores ativos ou passivos: acidental (aqueles que foram surpreendidos no seu cotidiano) ou proposital (aqueles que iriam ao encontro da atividade cientes e até já dispostos a participarem de forma ativa da ação que vai ser proposta). 21 BISHOP, 2006, p. 15 Ibid, p. 12 23 Ibid 24 Ibid 25 Ibid 26 Locais privados, porém de livre acesso de acordo com as normas privadas do local. 22 11 Devido à variedade de eventos que acontecem simultaneamente na urbe, para que uma AAU seja percebida e tenha uma recepção efetiva do público, ela tende a fugir do corriqueiro e trabalha com elementos que chamam a atenção dos transeuntes. A interferência no cotididano iria no limite entre arte e vida, experiência e obra. A aparente falta de intenção de uma AAU levaria o citadino à confusão, pois teria dificuldade para identificar aquele evento. A arte teria a capacidade de “brincar” com a subjetividade do público e tornar o seu cotidiano mais lúdico, descontraído e menos previsível, mesmo que ele nunca saiba que se tratava de uma AAU. O objetivo do artista parece residir na sedução, no fato do público participar de algo mesmo sem saber o que seria. Para ilustrar nossa argumentação, podemos remeter a uma ação do coletivo carioca Opavivará. Em PULACERCA, Viradão Cultural RJ 2009, oito pares de escadas foram colocados na Praça Tiradentes, no centro do Rio de Janeiro, estimulando que as pessoas ocupassem a praça e possibilitando um acesso inusitado para aqueles que apenas quisessem um atalho no seu trajeto, pulando a cerca para evitar ter que dar a volta na praça. (Fig. 5) Imersa no caos urbano, a arte poderia surpreender o cidadão, fazê-lo se distrair com algo incerto, que por algum motivo o capta por alguns instantes e poderia, até mesmo, desviá-lo do seu trajeto. Um dos objetivos dos artistas seria convidar o público a se aproximar da atividade e conseguir criar um ambiente urbano que passe por um outro tipo de imaginário coletivo. Em uma sociedade controlada pelo tempo, quem conseguria roubar o citadino da sua própria vida e fazê-lo perder, mesmo que por instantes, a noção do tempo e, até mesmo, propiciá-lo um momento de fascinação, estaria, desta forma, resgatando a solidariedade e o sentimento de comunidade e coletividade que haveria se perdido no ambiente urbano. Apesar de serem pensadas previamente e de terem um determinado tipo de reação pública desejada, nada garantiria que uma AAU seria interpretada do mesmo modo pelo qual o artista a idealizou. Considerando este fato, a aplicação prática do conceito da obra poderia ser em vão, pois há aspectos na compreensão do público que fogem ao alcance do artista e, ainda, há elementos ignorados pelo artista ao pensar suas proposições. Desta forma, não sabemos, ao certo, se os artistas teriam como avaliar a sua produção e percebê-la com base na realidade que ela criou. 12 As novas atividades seriam, para Pierre Henri Jeudy, uma arte cidadã27, consciente e de origem político-social que responderia, de forma prática, à sociedade, ao fazer do processo, da experimentação, da contextualização da ação, sua própria obra. Para Jeudy, a experiência acidental no roteiro do citadino o convocaria para uma maior coesão social naquele espaço e seria uma forma do artista expor ao público a sua cidadania e estimulá-lo a praticar a sua própria: Não se trata mais da arte dentro dos museus, mas da arte nas ruas ou em lugares indeterminados. E essa arte coletiva, arte cotidiana, pode se tornar um procedimento de salvação pública contra a degradação das relações sociais. A arte é cada vez mais proclamada como “arte cidadã! JEUDY, 2005, P. 129 No capítulo três, tentaremos compreender como se deu esse processo de “degradação das relações sociais” apontado por Jeudy, através de uma breve análise das principais transformações que aconteceram na nossa sociedade. A construção de novos territórios dentro do espaço público e a multiplicidade de identidades que estes territórios podem abrigar resultou em uma nova dinâmica pública que seria extremamente fértil para as novas práticas artísticas urbanas. As vias públicas das cidades abrigam variáveis eventos, com diferentes tipos de interesses e uma enorme variedade de estímulos visuais e sonoros. Tudo isso somado à rotina estressante dos centros urbanos (trânsito, filas, superlotação dos transportes público, ineficiência dos serviços prestados pelo Estado, etc) levaria o citadino ao cansaço e a um olhar indirefente, o “olhar bobo”28, despreocupado e distraído, que ele carrega ao longo do seu trajeto. Para Jeudy, a supervisibilidade dos elementos no espaço urbano produz uma cegueira: “o citadino, solicitado permanentemente pela proliferação de signos culturais e artísticos, é estimulado a não ver mais nada, o que lhe dá a oportunidade de ver de outra maneira.” 29 Para transitar objetivamente na urbe, o cidadão ignoraria certos tipos de elementos e situações configuradas no espaço público por serem desagradáveis, inoportunas e inconveniêntes30. O sentido da visão está ligado diretamente à atenção; ao nos distrair, deixamos de ver algumas coisas, porém, nos colocamos em 27 JEUDY, 2005, p. 129 JEUDY, 2005, p. 121 29 Ibid, p. 118 30 Para ilustrar essas situações que são evitadas pelo cidadão enumeramos algumas, como as de miséria; que invisibilizam os sem-tetos, as crianças pedintes, os indigentes; as situações em que ações publicitárias perturbam a rotina do cidadão, fazendo-o ignorar os entregadores de panflêtos, os representantes de vendas, etc. Além dessas, outras situações também são evitadas pelos cidadãos, como o encontro no espaço público com loucos, prostitutas, ladrões, etc. 28 13 um estado paradoxal, uma espécie de atenção distraída. Seria esse “ver de outra maneira” que coloca o citadino em alerta para as situações das quais ele quer ser afastado ou por elas seduzido, criando um campo de vista conscientemente seletivo. Para o cidadão, esta seleção seria uma auto-defesa para proteger sua integridade emocional, física, psíquica e financeira, no ambiente urbano, além uma maneira de não desperdiçar energia e tempo. Para Richard Sennett, a facilidade do ir e vir de carros e pessoas seria vital para os centros, no entanto, a movimentação teria se tornado a atividade diária de maior ansiedade31. Por isso, seria importante observar os efeitos imediatos que uma AAU conseguiria desencadear, a reação ou não-reação dos transeuntes, em relação àquela prática, àquele novo estímulo. Richard Sennett afirma que os espaços de uso comum se destinam à passagem32, o que implicaria em uma outra lógica para o uso dos espaços: as cidades seriam pensadas a partir da locomoção das massas (periferia/centro), do movimento dos carros e a partir da tentativa de organizar o caos em nome da ordem. A noção de pertencimento, defendida pela lógica do sistema, seria de que a cidade pertence ao carro, à funcionalização em macro-escala e, embora os direitos e deveres dos cidadãos sejam amplamente divulgados, a relação do homem com o espaço público seria mais marcada pelos seus limites que pelas suas possibilidades. O mobiliário urbano33 organiza espacialmente a cidade e impõe limites na circulação dos cidadãos, restringindo a liberdade e a relação do citadino com o espaço público. A publicidade exposta no mobiliário agiria contra os interesses da maioria da população, essa seria a visão apresentada pelo livro Trespass- a history of uncomissioned urban art34: “é vital compreender como as intervenções não comissionadas são uma reflexão contra a hegemonia de um espaço público dominado pelos interesse de poucos sobre o bem-estar psicológico de muitos”35. Contra o tipo de urbanismo que daria mais limites que liberdades aos cidadãos, no final da década de 1950, na França, surgiu um movimento preocupado com a urbanização e o seu reflexo na vida social e cultural dos habitantes; era a 31 SENNETT, 1988, p. 28 Ibid 33 Entende-se po “mobiliário urbano” o conjunto de elementos que é permitido ocupar o espaço público, implantados, direta ou indiretamente, pela administração pública com as seguintes funções urbanísticas: circulação e transportes; ornamentação da paisagem e ambientação urbana; descanso e lazer; serviços de utilidade pública; comunicação e publicidade; atividade comercial; acessórios à infra-estrutura; 34 Escrito por Carlo McCormick, Marc Schiller, Sara Schiller 35 MCCORMICK, 2010, p. 22 32 14 Internacional Situacionista (IS)36. Este grupo de arquitetos, urbanistas, filósofos e artistas, pensava no futuro das cidades, em como interferir na relação das pessoas com o seu próprio ambiente e em formas de resgatar o sentido da coletividade, no espaço público: “Nosso campo de ação é portanto, a rede urbana, expressão natural da criatividade coletiva, capaz de compreender as forças criadoras que se libertam com o declínio de uma cultura baseada do individualismo”37. O legado produzido pela IS salienta a importância da urbanização para as relações humanas, o que iria de encontro à idéia do espetáculo e encontraria fortes aliadas nas novas práticas artística urbanas. Estas potencializariam os cidadãos a participarem ativamente do cotidiano urbano, corroborando com Debord: A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da noção de espetáculo. É fácil ver a que ponto está ligado à alienação do velho mundo o princípio característico do espetáculo: a não-participação. Ao contrário, percebe-se como as melhores pesquisas revolucionárias na cultura tentaram romper a identificação psicológica do espectador com o herói, a fim de estimular esse espectador a agir, instigando suas capacidades para mudar a própria vida. A situação é feita de modo a ser vivida por seus construtores. O papel do “público”, se não passivo pelo menos de mero figurante, deve ir diminuindo, enquanto aumenta o número dos que já não serão chamados atores mas, num sentido novo do termo, 38 vivenciadores. DEBORD, 1957 Estas “capacidades para mudar a própria vida” seria a utopia das AAU. Com base nesta potencialidade máxima seriam objetivadas as ações no espaço público. O artista não poderia dimencionar os efeitos de sua atividade e o que ela poderia proporcionar, mas a possibilidade de êxito se basearia no fato do cidadão aceitar ao “convite” para participar sendo um ‘vivenciador’, como sugere Debord. Apesar de uma aparente preocupação das AAU em produzir um discurso legitimador da obra no espaço público, em sincronia com o contexto socio-políticoartístico, o artista não tem garantias para atinjir seus objetivos. O artista não teria condições de, previamente, dimensionar os poderes de alcance de uma AAU, nem tão pouco controlar a produção de imagens a partir dela. A falência de uma AAU seria quando as pessoas não a percebem ou, se a percebem, não participam e se 36 Para aprofundar o estudo deste movimento, favor consultar Paola Berenstein Jacques. 37 CONSTANT, 1959 em JACQUES, 2003, pág. 114 38 DEBORD, 1957 em JACQUES, 2003, pág. 57. Apologia da deriva , organizado por 15 submetem às regras internas daquele jogo39. Fazer com que o público se torne um “vivenciador” da experiência proposta seria um grande desafio para o artista. Em 2010, o Museu de Arte Contemporânea de Budapeste - Ludwig, apresentou uma exposição chamada Jogos de poder; testando o terreno da democracia contemporânea40. Os trabalhos dialogavam com o espaço público e focavam na dimensão política e social da arte. Um trabalho, em particular, nos chama atenção o Free Zone Budapest. Nele, várias placas foram espalhadas por áreas recém renovadas da cidade, criando zonas autônomas para a prática de ações específicas, que são tidas como do espaço privado, para exemplificar: zona de beijo, de dormir, de rezar, de escambo e de dança. No espaço expositivo do museu, apenas reprodução das placas e um mapa com a localização delas. (Fig. 6) Ao visitar algumas dessas placas, nada extraordinário. A rua segue normal, as pessoas não pareciam prestar atenção nelas ou seguir as ações sugeridas por elas. Como a exposição propunha testar a democracia, mesmo as placas não tendo sido utilizadas pelo povo, a AAU teria tido relevância por questionar os limites do cidadão no espaço público e por tentar ampliá-los? Será que os artistas pensavam em criar novas ambiências, ao redor das placas? A execução desta ação, por si, já seria efetiva ao críticar o comportamento engessado da sociedade e a incapacidade de mudança? Essas perguntas ficaram em aberto, na exposição Power Games. Notamos que a “democracia” seria um argumento bastante frequente para justificar as ações no espaço público. Quando observamos os desdobramentos de uma AAU, somos levados a pensar em quais seriam as ferramentas que os artistas disporiam para avaliar seu próprio trabalho e para verificar se a democracia estaria mesmo sendo exercitada através de sua proposta. A arte participativa, objeto de Bishop, não se debruçaria neste sentido, não levaria este aspecto a análise. Para nos auxiliar, vamos apresentar o conceito de arte intervencionista41 do americano Nato Thompson. Não que este tipo de arte tentaria avaliar a efetividade das AAU, mas a inexistência de processos e dinâmicas de interação entre autor, público e obra, talvez fariam dela uma arte mais direta e objetiva do que a participativa. Vemos que estas duas seriam as principais linhas de ação da arte 39 A expressão “jogo” foi adotada pela Internacional Situacionista para denominar as situações lúdicas possíveis nas cidades. Este tópico será retomado no capítulo dois. 40 Tradução livre: PowerGames; Testing the grounds for democracy. 41 MCCORMICK, SCHILLER E SCHILLER, 2010, p. 306 16 contemporânea, pois cada uma, a seu modo, conseguiria comunicar, produzir sentidos e subjetividades nas cidades. A arte intervencionista não seria oposta ao argumento de democracia, trazido pela arte participativa, muito pelo contrário, mas por se tratar de ações individuais de apropriação e uso dos espaços públicos (e muitas vezes privados) essas ações seriam, frequentemente, vistas como anti-democráticas e autoritárias. O livro Trespass- a history of uncomissioned urban art afirma que a arte intervencionista: Descreve o trabalho de artistas que transgridem o mundo cotidiano para criticar, satirizar, disturbar e agitar, criando uma consciência social e até mesmo advogando pelas mudanças sociais. Neste processo, eles ativam nosso espaço urbano como lugares para a democracia, mantém nossas cidades vivas com criatividade e idéias poderosas e engajam novas audiências. MCCORMICK, SCHILLER e SCHILLER, 2010, p. 306 (tradução livre) A arte intervencionista não seria sempre ilegal, apesar de ter no grafite e no picho suas representações mais originais. As práticas interventivas se encontrariam bastante diversificada e iriam desde a reorganização de objetos dispostos no espaço público, até o uso criativo de cameras de vigilância. (Fig. 7) Alguns exemplos que apresentamos poderiam ser considerados ilegais, porém seriam ações mais brandas, efêmeras e, muitas vezes, fáceis de serem revertidas. Aspectos que se distanciariam da agressividade e impetuosidade do picho e do grafite. Através de uma investigação nessas duas correntes artísticas, a pesquisa vai tentar identificar parâmetros para julgar a relevância dessas atividades para o espaço público e para a sociedade. Interessa analisar, de forma crítica, como forças institucionais poderiam se utilizar das AAU, para reproduzir nas ruas a mesma autoridade e hierarquia dos museus e as mesmas forças de dominação social que estariam presentes na mídia e na propaganda que circula nas vias públicas. 17 1. Estudo de caso em Berlim (2009.2/ 1010.2) A motivação da pesquisa se deu a partir de duas visitas à capital alemã, a primeira, em outubro de 2004, e, a segunda, em agosto de 2006, após os jogos da Copa do Mundo. As diferentes estações do ano contribuiriam para que eu experimentasse a cidade de forma distinta em cada viagem, porém, iria além disso. Ao retornar em 2009, pude comprovar que havia, de fato, um consenso entre aqueles que vivem na cidade já há alguns anos, precisamente antes da realização da Copa do Mundo. Através do megaevento, a imagem “underground” de Berlim teria se difundido e a indústria do turismo haveria transformado determinados lugares em um “zoológico urbano” e inflacionado o aluguel de alguns bairros. Não investiguei se a Copa seria responsável pelas mudanças que me fariam perceber a cidade de modo diferente, apenas exponho algumas percepções que me fizeram retornar a Berlim, três anos depois, para investigar o espaço público e as atividades artísticas, durante onze meses de pesquisa. É difícil explicar como duas rápidas visitas, em um curto intervalo de dois anos, poderiam ter me causado percepções tão singulares da mesma cidade. Por isso, utilizarei dois pensadores: Zymount Bauman e Andreas Huyssen. Bauman vai ajudar quando propõe que “hoje em dia estamos todos em movimento”42. É desta forma que o pensador em seu livro, Globalização: As conseqüências humanas inicia o ítem 4; Turistas e vagabundos. Para Bauman, a sociedade seria dividida entre dois tipos distintos; uns andarilhos que “ficam ou se vão a seu bel-prazer”43 e outros são andarilhos sem rumo que “estão se movendo porque foram empurrados”44. Compreendemos esses dois tipos de Bauman como sendo um a antítese do outro; o primeiro aplicaria, na prática, todas as vantagens de um mundo conectado e sem-fronteiras, viajando sempre a lazer ou a trabalho, desfrutando de toda tecnologia que o dinheiro pode comprar. Já o outro se move por ter sido “desenraizado”45; o vagabundo é sempre deslocado, mover é condição para viver, o nomadismo é a única forma de vida conhecida dos andarilhos, desabrigados, que 42 BAUMMAN, 1999, p. 85 Ibid p. 101 44 Ibid 45 Ibid 43 18 não possuiriam bens materiais e se encontrariam à margem do sistema capitalista; “os vagabundos são o refugo de um mundo que se dedica ao serviço dos turistas”46. De um lado teríamos um mundo conectado, sincronizado nos avanços tecnológicos e com infinitas possibilidades, do outro, um mundo negligenciado, sem escolhas e com a quantidade de experiências limitadas. Se o vagabundo pudesse escolher, desejaria a “alegria do turista ‘tal como vista na TV’ ”47. Na sociedade espetacularizada, a televisão seria a experiência diária mais frequente das massas. Isso ajudaria a perpetuar, no imaginário coletivo, valores e conceitos a respeito da vida que seriam manipulados por interesses privados, pela mídia e por um mercado a serviço dos turistas. Embora sejam universos distintos, turistas e vagabundos estariam em constante tensão no espaço público permeado pela propaganda48. A pesquisa vai estender à arte o conceito dualístico de Baumma e aplicá-lo aos artistas que atuam em Berlim. Baumman permitiria isso, ao propor que “o que se aclama hoje como ‘globalização’ gira em função dos sonhos e desejos dos turistas. Seu efeito secundário - colateral mas inevitável - é a transformação de muitos outros em vagabundos”49. Apesar de Bauman nomear vagabundos os que se encontram à margem do sistema capitalista, poderíamos empregá-lo à grande parte dos artistas. E não que eles sejam vagabundos no sentido pejorativo, nem miseráveis sem-teto, mas algo que transitaria entre o artista de rua, mambembe, e o artista bem sucedido na carreira. A questão estaria ligada ao tempo: para os artistas vagabundos o tempo do trabalho seria indissociável do tempo de lazer, uma vez que sua forma de vida seria primordial para o desenvolvimento de sua produção artística. A atual proximidade entre local de trabalho e de lazer, casa e escritório, seria objeto de crítica de alguns pensadores, como por exemplo Siegfried Zielinski: Para mim, que sou professor, o tempo de trabalho e de lazer sempre andaram muito juntos. A diferença é muito difícil de ser traçada, mas, para as pessoas do mundo cotidiano, se tornou muito precária, porque elas estão permanentemente trabalhando. Quando você passa dez horas no escritório, na frente do computador e, quando chega em casa, ainda vai checar e-mail, banco on-line, você também está trabalhando. Praticamente, 46 Ibid Ibid, p. 102 48 Este será um pensamento de Jürgen Habermas bastante presente na pesquisa, de que os interesses de dominação se materializariam na cidade através dos elementos publicitários, pois “a propaganda é a outra função que uma esfera pública dominada por mídias assumiu”. (HABERMAS, 2003, p. 252) E se materializariam, também, através da mídia: “a indústria da publicidade não só toma, entrementes, conta dos órgãos publicitários existentes, mas ela cria os seus próprios jornais, revistas e cadernos” (HABERMAS, 2003, p. 224) 49 Ibid 47 19 não existe mais diferença. É uma questão muito difícil, especialmente, quando você pergunta que parte do seu trabalho está sendo paga e que 50 parte não está. Em Berlim, arte e vida parecem ter uma relação muito íntima. Na minha investigação, isso seria o fruto de uma dinâmica histórica singular, como brevemente abordaremos neste capítulo. Sua conjuntura levaria a uma lógica capitalista mais coletivista, com influência do movimento punk e anarquista, dos anos 70, da cena de música eletrônica que explodiu em Berlim nos anos 9051 e, também, das empresas coletivas que foram formadas a partir de novos modos de habitação coletiva. Para Baumam, os sonhos e desejos dos turistas estariam ligados ao lazer e à noção de que o tempo livre deveria ser usado para o consumo de bens materiais, culturais e para entretenimento. Após a queda do muro, a parte oriental estava arrasada e as pessoas que foram atraídas àquela àrea foram em busca de tempo e espaço52, algo que ficaria cada vez mais difícil de encontrar no mundo ocidental. Zielinski apresentaria algumas questões pertinentes a esse respeito em um ensaio intitulado Quem é o dono do tempo53? Nessa conjuntura histórica, em que o tempo tem sido declarado o recurso mais importante para a economia, para a tecnologia e para a arte, não devemos prestar muita atenção se temos muito ou pouco tempo. Em vez disso, devemos prestar atenção a quem, ou o que possui poder de dispor sobre o nosso tempo e sobre o tempo dos outros, e de que maneira. O único remédio eficaz para a melancolia e a resignação em relação ao mundo é apropriar-se, ou reapropriar-se do poder de dispor sobre o tempo necessário para a vida e para a arte. Apenas desse modo o futuro é concebível: como coisa permanente da impossibilidade. ZIELINSKI, 2006, p. 47 A máxima capitalista “tempo é dinheiro” faria do lazer um produto distante das massas. Rico seria quem tem tempo livre para gastar dinheiro. Zilelinski citaria Karl Marx: “riqueza… é tempo disponível e nada mais”54. A liberdade de gastar o próprio tempo, ter autonomia sobre ele, é observada no outro extremo da sociedade, nos moradores de rua, nômades urbanos e, também, artistas. Estes por aproximarem a arte da vida; o tempo de trabalho e o de lazer, dispondo de tempo para criação. 50 Em entrevista concedida a autora desta pesquisa, realizada no dia 21 de Maio de 2010, na Universität der Künste Berlin (UdK). 51 BOEHLKE e GERICK, 2007 52 Como desmonstrarei mais adiante, no ítem 1.1, referente aos fatores históricos que contribuíram para Berlim ser como é hoje. 53 ZIELINSKI, 2006, p. 46 54 Ibid, p. 47 20 Os vagabundos teriam bastante tempo livre, justamente pelo seu tempo não ter valor. Não que eles fossem improdutivos durante o seu tempo, mas por não ter valor de mercado, seja lá o que for que eles produzam e façam durante esse tempo. Quando o artista não vende, não ganha dinheiro com a arte, é como se o que fizesse não tivesse valor. Por isso, ele seria obrigado a buscar outras formas de vender o seu tempo. Algo que cubra as necessidades, mas que ainda o permita produzir arte. Assim, ele poderia se desenvolver artisticamente, sem passar por privações financeiras, até que sua arte possa adquirir algum valor ou não. Vários teóricos já buscaram explicar quais fatores influenciariam o artista e de onde viria a “inspiração” que os faria produzir atividades que fossem consideradas arte. Considerando as transformações sociais e culturais que abordaremos no capítulo três, poderíamos afirmar que tempo e espaço seriam os requisitos necessários à liberdade na criação artística de hoje e esta parece ser uma das razões pelas quais as atividades artística urbanas (AAU) seriam notáveis em Berlim. A cidade e os lugares incertos seriam atraentes para o artista experimentar e fazer seu atelier, através de uma forma autêntica de vida urbana. Brincar com tempo e espaço implicaria na não necessidade de um atelier ou do deslocamento dele para as ruas. O cenário urbano tratia possibilidades infinitas para o artista trabalhar suas questões, através das brechas que as cidades oferecem. Zielinski resumiria a nova atitude circunstancial do artista contemporâneo: “Quando uma oportunidade se apresenta, devemos reconhecê-la como auspiciosa, e aproveitá-la”55. Esta seria uma aparente característica de Berlim, a organicidade dos espaços e das ações que acontecem neles. Em 2003, em uma entrevista coletiva, o então Prefeito Klaus Wowereit disse: "Berlim, pobre, mas sexy"56. Desde então, a frase funcionaria como um slogan que traduziria, de forma simples, a cidade; Berlim teria poder aquisitivo inferior a outras cidades alemãs, mas seria atraente, interessante, divertida, criativa e autêntica. Essa imagem seria a “glamourização” da realidade, a forma que pela qual o imaginário underground faria parte do marketing da cidade. Nos parece que a questão giraria em torno do que afirmou Nato Thompson, em uma conferência de 2006: "a representação da resistência, a representação de 55 56 Ibid, p. 48 Checado em 10/03/2011: http://www.spiegel.de/international/germany/0,1518,611086,00.html 21 pessoas tentando falar civicamente agora é um produto"57. Neste sentido, Berlim estaria constantemente servindo como palco para essas representações cívicas, onde algumas seriam mais expontâneas e orgânicas que outras58. A autenticidade berlinense, como vimos, residiria na abundância de tempo e espaço. O baixo custo de vida e a posição geográfica central atrairia pessoas, de toda Europa, preocupadas com a qualidade de vida, em desenvolver atividades prazerosas e, ao mesmo tempo, se realizar profissionalmente. Parece que as pessoas arranjariam um emprego qualquer para pagar as contas e o resto do tempo seria livre para desenvolver seu próprio trabalho e realizar-se pessoalmente neste âmbito, mesmo que não tenham um reconhecimento financeiro imediato. É o caso de 4rtist.com que reordena objetos encontrados no espaço público e os marca com o número 6, desenhos e links na internet, para divulgar o seu trabalho59. O artista tem acoplados à sua bicicleta galões de tintas e passa grande parte do seu tempo movendo objetos, rearranjando-os e criando instalações nas calçadas e espaços penetráveis de Berlim. 4rtist se vê mais como artista que assistente de laboraório químico, função regular na qual não vê perspectivas. (Fig. 8) Ele não se importaria com o seu salário, pois seu objetivo seria a possibilidade de afetar as pessoas no seu dia-dia e encorajá-las a pensar mais profundamente sobre as suas ações. Ele calcula ter produzido 650 mil arranjos e preferiria trabalhar durante o dia, por chamar menos atenção. Uma de suas táticas seria pintar em cima de cartazes, por estes serem, para a polícia, ilegais e considerados lixo, o que para ele seria um espaço para sua promoção artística. Em 2004, os vários números 6 e os intrigantes arranjos de objeto que cruzaram o meu caminho me faziam perguntar se alguém os teriam manipulado. Numa esquina, uma cômoda desenhada, no quarteirão seguinte, as gavetas, mais adiante, outras combinações de desenhos e objetos sequenciados, roupas espalhas. A estranha impressão era de estar seguindo esses objeos, mesmo sem querer. Apenas descobri a autoria destes arranjos de volta ao Brasil, ao revelar uma fotografia que havia feito da instalação invalid beach e descobrir que esta seria uma 57 Conferência Tactics and Critics Series Janeiro 26/01/2006. Vídeo disponível: http://www.youtube.com/watch?v=M7Zup69LsME (tradução livre) 58 Um exemplo desta capacidade de organização social e civil teria sido a pressão popular, através de campanhas contra energia nuclear, que após os acidentes nucleares no Japão, em março de 2011, conseguiram pressionar a chanceler Angela Merkel a assinar o fim das usinas nucleares até 2022. 59 Informações colhidas no site do artista: www.4rtist.com e no documentário feito sobre ele: www.vimeo.com/23405350 ambos link checados no dia 28/05/2011 22 instalação permante que fica sendo modificada, ao longo do ano. (Fig. 8a) No site do artistas há fotos do seu trabalho separadas por temáticas, como as de arranjos feitos com colchões (Fig. 8b). 4rtist expõe em galerias, mas acha inapropriado, já que nas ruas ele atingiria um número maior de pessoas e a possibilidade de venda na galeria seria limitada, devido à facilidade de seu trabalho ser adquirido nas vias, de graça. Em 2004, Berlim me pareceu mais espontânea. No espaço público, os vagabundos compunham a paisagem e pareciam conviver bem com uma Berlim ocidentalizada, projetada para o mercado global. A cidade parecia ser menos invadida por turistas, existiam mais espaços abandonados, havia menos serviços oferecidos em inglês, de forma que percebi Berlim como uma cidade protegida do capital externo, da especulação imobiliária e salva de perder suas características particulares, locais. Em 2006, a singular harmonia entre o mundo dos turistas e dos vagabundos parecia ter entrado em risco, com a Copa do Mundo. Além de Baumam, para respaldar o meu interesse em Berlim, recorro a Huyssen e seu livro Seduzidos pela memória. Nele, o autor defende que a Alemanha reunificada, pós-queda do muro de Berlim, transitaria entre dois extremos: lembrar e esquecer. Berlim seria um grande canteiro de obras, não para de se transformar e, principalmente, de produzir monumentos que seriam uma tentativa de retratação pública, desculpas pelo passado recente. Para o autor, a monumentalização alemã produziria mais esquecimento que a preservação do seu próprio passado. Huyssen me fez refletir se a postura oficial alemã, de optar pelo esquecimento, poderia, em parte, explicar o porquê das artes visuais em Berlim serem tão pulsantes e representativas. Aos artistas locais, insatisfeitos com as representações públicas, restaria protestar no próprio uso dos espaços públicos, como espaços de expressão e concentração de idéias de interesse coletivo, através de práticas artísticas. As mudanças causadas pelas pretensões governamentais, de transformar Berlim em mais uma cidade global, encontrariam resistência nas através das forças criativas que seriam a base da consciência e articulação política local e esta é a hipótese lançada no estudo deste caso. Fui atraída à cidade pela sua estética urbana. Berlim é bem organizada, com uma vasta rede de transporte coletivo, poucos engarrafamentos e largas avenidas, mas esse espaço público, totalmente funcionalizado em prol de uma ordem de escala global, conviveria com uma outra ordem urbana de carater local que, também, caracterizaria a cidade. Esta é batizada por Huyssen de “romantismo 23 Kiez”60 que seria uma herança arquitetônica do período antes da Primeira Guerra Mundial e haveria sido resgatada pela “noção novamente popular de uma vizinhança tradicional”61. De acordo com Huyssen: No final dos anos 1970, o Kiez estava associado à contra cultura nos 62 bairros decadentes perto do Muro, como kreuzberg, onde os squatters ocuparam e restauraram os prédios arruinados. Nos anos 1980, passou a ser incorporado aos principais esforços de preservação da cidade. HUYSSEN, 2000 p. 101 O Kiez, apelido da Mietskaserne (barracos de aluguel63), seriam prédio com pequenos apartamentos, construídos no começo no século XIX, para a classe operária. Esse complexo arquitetônico se caracterizaria por vários prédios interligados por um jardim de fundos, que tinha ligação direta com a rua e possuiriam grandes paredões nas laterais. (Fig. 9) Essa moradia haveria influenciado a convivência coletiva e contribuído para a fluida relação entre espaços públicos e privados, que parece existir em Berlim, através desses jardins comunitários64. Kreuzberg, citado por Huyssen, fica no lado Ocidental; compreendo que essa “preservação” nos anos 80 tenha sido a forma que a Berlim ocidental teria encontrado para manter a sua periferia, sua parcela muito pobre da população, sob controle, visto que o plano Marshall65 havia recuperado a economia europeia pósguerra e, nesta perspectiva, Berlim Ocidental prosperava. Em kreuzberg se concentraria a marcante contracultura ocidental característica dos anos 60. Os moradores desses kiezes ocidentais viviam de forma coletiva, faziam as melhorias dos prédios, os tornavam habitáveis e passavam a ser proprietários de fato, por terem conquistado o espaço de forma legítima, pela ocupação de espaços ociosos da cidade. Não pagar aluguel os fariam ter menos preocupações com dinheiro e se contentarem com uma vida sem luxo. Mas não apenas isso, tudo indica que as possibilidades de moradia alternativa, contribuiriam para uma vida mais livre, 60 HUYSSEN, 2000, p. 102 Ibid, p. 101 62 Faço esta nota ao texto de Huyssen para esclarecer o termo Squatters, embora nem mesmo o autor esclareça, esses seriam os moradores dos S q u a t s antigos prédios bombardeados, abandonados que foram ocupados. De acordo com Jeudy, eles‘constituem uma empresa comunitária’ (JEUDY, 2005, p. 142) 63 De acordo com deutsche welle: http://www.dw-world.de/dw/article/0,,15069431,00.html 64 Ibid 65 O plano Marshall, oficialmente chamado de The European recovery program, foi idealizado pelo comandante em chefe do exército norte Americano, George Catlett Marshall, e implementado em 1947 na tentativa de conter o avanço do comunismo na Europa, injetando dinheiro americano na recostrução e desenvolvimento das cidades arrasadas pela guerra. 61 24 com mais tempo para desenvolver diferentes atividades e não necessariamente atividades rentáveis, como por exemplo, as atividades artísticas e sociabilizadoras. Podemos demonstrar a herança deste desprendimento financeiro, através de alguns bares e restaurantes que cobram apenas por uma “doação”, o cliente come, bebe e, no final, paga o quanto pode pagar, o quanto achar justo. Com frequência, eles chegam a sugerir um preço, mas, nesses tipos de empreendimenos, a conta fica de acordo com a conscência dos próprios clientes. A aproximação entre artistas e vagabundos seria pautada na possibilidade de recriar formas de habitação, modelos de vida experimentais, onde novas conjunturas de mundo seriam possíveis e colocadas em teste. Mais que chamar os artistas e comunidade local de Berlim de vagabundos, a pesquisa colocaria como resultado destas formas de vida uma esfera pública mais crítica e democrática. A sociedade berlinense estaria na vanguarda de uma nova atitude social no espaço público, onde arte e política seriam indissociáveis. Embora não se saiba até quando, Berlim ainda estaria mais a serviço do mundo dos vababundo que dos turistas. 1.1 Reflexos históricos Em 2009, foi o vigésimo aniversário da queda do muro que separava as duas Alemanhas, Oriental e Ocidental. Na capital, aconteceram vários eventos oficiais que celebravam a reunificação, mas havia poucos debades públicos sobre as reais mudanças desde então. Para mim, a pergunta que me intrigava era como Berlim conseguia digerir dois passados tão diferentes e seguir com a sua própria história. Hoje, compreendo que a resposta seria muito mais complexa e que, apenas após uma pesquisa a respeito da ocupação pós-queda do muro, poderia ter condições de entender a dinâmica artística e sociocultural contemporânea em Berlim. A área fronteiriça entre Leste e Oeste, onde se controlava a entrada e saída de pessoas e se caracterizava por ser um grande descampado, hoje é ocupada por grandes centros de compras, negócios, cinemas, restaurantes, museus e representa, ao máximo, a cultura ocidentalizada, com todas as suas grandes corporações. No Sony Center, por exemplo, foram construídos seis prédios unidos por um teto de de vidro e metal. O complexo, desde 2000, está em funcionamento 25 na cidade e foi um dos responsáveis pela reurbanização66 e reconstrução do bairro de Potsdamer Platz, que nos anos de 1920 era a veia pulsante de Berlim. (Fig. 10) Nas décadas de 1970 e 1980 projetos alternativos de vida foram iniciados em várias cidades ocidentais. Os espaços protestavam contra a falta de moradia acessível e reinvidicavam o direito à habitação, com o tempo, o protesto político se tornou uma demonstração de mobilização social, civil e exemplo de que essas alternativas poderiam dar certo como organizações culturais e agentes de conscientização política. O binômio trabalho e moradia habitava um só lugar, um mesmo projeto que iria de encontro às regras de mercado, tentaria ser uma alternativa ao sistema em vigor e se tornaria foco de resistência. Esses lugares é o que chamam de squats, aos quais já nos referimos. No Leste, no final da década de 1980, o movimento Punk já havia se solidificado e prédios bombardeados, em ruínas, serviam para grupos musicais, companhias de teatros, espetáculos de Ópera Rock e outras atividades culturais que se mantinham a baixo custo e se autofinanciavam. Após a queda do muro, um mix de artistas, Punks, ativistas e sem-tetos ocuparam construções, espaços industriais ociosos e fizeram, desta forma, resistência aos inúmeros projetos de demolição. Gostaria de apresenar dois squats até hoje ativos em Berlim. Ambos se encontram do lado Oriental: Tachales67 (Fig. 11) e Koepi68 (Fig. 12). O Tachales era uma antiga loja de departamentos no bairro judeu de Mitte, que durante o nazismo foi transformado em uma prisão e depois, na Berlim comunista, nunca foi reformado e permaneceu sem serventia para o governo. Diferente do Tachales, o Koepi ocupa uma área de procedência privada que já teve vários donos e hoje é de propriedade do Commerz Bank. Ambos foram ocupados em 1990 e contaram com a resistência de grupos organizados de artistas, ativistas internacionais que, através da ocupação e enfrentamento com a polícia, impediram que os prédios fossem demolidos. O Tachales se tornou um espaço cultural com subsídios do governo para manter suas atividades e, agora, faz parte do roteiro turístico de Berlim. O Koepi, não tem ajuda institucional do governo, conta apenas com doações e solidariedade de outros grupos locais, sem interesse lucrativos. Além disso, o Koepi conta com um grande apoio da pressão popular nos atos de demonstração. Apesar de terem 66 Estima-se que cerca de 70% de Berlim tenha sida destruída na segunda guerra. Fonte: Folha de São Paulo, caderno Turismo, p. F4, publicada em de 14/04/2011. 67 Informações sobre http://super.tacheles.de 68 Informações sobre http://koepi137.net 26 conseguido negociar e entrar em acordo para o Koepi permanecer ativo até 2038, não há garantias suficientes de que esse acordo seja obedecido, deixando os seus moradores na constante iminência de serem despejados. Esses exemplos, embora tenham surgidos no mesmo contexto, sofreram forças contrárias. Enquanto o Koepi teria conseguido sobreviver através de estratégias locais, o Tacheles, talvez devido a sua localização geográfica, no coração da Berlim Oriental, sofreu a influência do capital externo, do turismo e do processo que Huyssen chama de: “comercialização crescente e bem-sucedida da memória, pela indústria cultural do ocidente”69. Hoje, no Tacheles, vários ateliers são alugados e na parte exerna, que em 2004 era caracterizada pelo imenso vazio (Fig. 13), encontram-se bares e alguns espaços expositivos cheios de turistas, onde paga-se três euros pelo acesso ao jardim. O Tacheles teria se tornado uma espécie de zoológico urbano para turistas, ávidos por uma cultura local, underground. Já o Koepi, mesmo tendo atividades públicas, receberia seus visitantes com uma placa: “sem fotos, sem problemas”! A presença de espaços livres de interesse comercial e que tentariam subverter a lógica do sistema, como seria a cultura dos squats, teria contribuído para caracterizar Berlim, até hoje, como uma cidade que tem limites bastantes diluídos entre o público e o privado. Como já havia observado Jeudy: Mesmo que a ocupação por artistas insista em afirmar uma autonomia, até mesmo uma autarquia econômica, não é partindo de uma introversão no espaço abusivamente privatizado que irá fazê-lo, mas, ao contrário, é tornando público o que não deveria sê-lo. Os squats ficam permanentemente abertos ao público, recebem uma quantidade impressionante de visitantes, e constituem-se eles mesmos como espaço público, embora tenham uma aparência de gueto. JEUDY, 2005, p. 143 Embora os squats ainda conservem a maleabilidade entre público e privado, os que remanescem não ficam “permanentemente abertos”; qualquer um pode tentar entrar neles, porém recomenda-se fazê-lo quando a convite de algum morador, ou ir em um dia com atividade aberta ao público. Quanto a “aparência de gueto”, esta não seria apenas pelas circunstâncias do local, mas sim um desejo dos seus moradores, como uma forma de se protegerem das influências externas que poderiam super expor o estilo de vida fora dos padrões capitalistas e acabar por enfraquecer aquela cultura, como teria acontecido no mais famoso squat da cidade, no Tachales. 69 HUYSSEN, 2000, p. 15 27 O que estaria por trás da transformação do Tachales e de várias mudanças em Berlim, desde a queda do muro, seria o fetichismo pela imagem, pela relíquia, pela experiência imortalizada que, como argumenta Huyssen, seria uma caracteristica dos nossos tempos. Para ele, “a memória se tornou uma obsessão cultural em todos os pontos do planeta”70. A mania de arquivar e de se apegar tanto às imagens e aos aparatos tecnológicos geraria um acúmulo de informação que não teríamos tempo suficiênte para processar e decidir o que realmente é importante para ser memorizado. Gerando o que Huyssem chama de “crise da memória”. Observo que, no espaço público, esta crise seria evidente, através da “desesperada necessidade de Berlim promover sua imagem internacional”71. A quantidade de reprodução de produdos ligados à antiga República Democrata Alemã seria o motor turístico da cidade. O apego a ícones do passado, imagens de uma Alemanha que não existe mais, foi poplarmente batizado pelo nome de Ostalgia, uma mistura de Ost, que em alemão é leste, com nostalgia. Embora haja certa nostalgia, memórias da Alemanha Comunista, desenvolvida em separado por quarenta anos, estão se apagando; ruas mudaram de nome, monumentos soviéticos foram derrubados, prédios históricos, como o Palácio da RDA, demolidos. É curioso observar que a seleção do que mereceria ser preservado e o que teria que ser destruído não parece seguir nenhum critério racional. Como então explicar que o estádio olímpico de 1936, marco da arquitetura nazista, fosse reformado para os jogos da Copa de 2006? Como comenta Huyssen, “o trauma é comercializado tanto quanto o divertimento e nem mesmo para diferentes consumidores de memórias”72. Assim, os monumentos ao Holocausto se misturam a prédios high-tech e a heranças nazistas. Berlim seria a única capital européia com espaço para crescer73 e isso atrairia investidores globais, ávidos por novos mercados. Desde 1989, corporações multinacionais comprariam grandes áreas. Com o incentivo do governo, teria sido reconstruido Potsdamer Platz. Entretenimento, turismo e lazer dividiriam espaço com escritórios luxuosos, shoppings center e monumentos históricos. Novas ruas homenagiariam personalidades nacionais, como a judia Hannah Arendt que hoje dá nome à rua onde fica o Memorial do Holocausto. (Fig. 10) 70 HUYSSEN, 2000, p. 16. Ibid, p. 48 72 Ibid, p. 22 73 Folha de São Paulo, caderno turismo do dia 14/04/2011. 71 28 Para Huyssen, Berlim estaria obsecada com questões de arquitetura e planejamento, como uma estratégia para promover sua imagem futurística, porém, o objetivo de se tornar a capital do século XXI “se vê persistentemente assombrada pelo passado”74. E isto não seria só as memórias do Nazismo, mas ainda do Comunismo e a herança do “romantismo Kiez” que foi influenciado pelo movimento Punk75 e hoje representaria a resistência local contra o projeto de uma Berlim-global. Esta resitência seria através de pressões políticas, em manifestções públicas maciças que questionam os projetos de desenvolvimento da cidade e conseguiriam criar uma opinião pública, independende da gerada pela mídia que serviria aos interesses do capital privado, globalizado. Assim, o espaço público da cidade estaria dividido entre dois interesses contrários, representados pelo mercado externo global e pela cultura local que viveria a cidade de forma mais livre, como observou Jeudy; Nos squats (prédios invadidos por artistas), a vontade manifestada é de escapar ao sistema de subvenções, e se praticar uma arte na cidade em condições ilegítimas, demonstrando que a liberdade de fazer pode ser realizada no meio da vida citadina. E que não há necessidade de proteção institucional para se empreender um trabalho artístico. E a própria cidade oferece, pelo que rejeita, por seus resíduos, uma inacreditável fonte de materiais, de locais, para viver essa liberdade de criação artística. JEUDY, 2005, p. 142 É nisto que parecem residir as práticas artíticas urbanas em Berlim, nas sobras, em tudo que é rejeitado e consegue ser reaproveitado. Neste contexto, as forças da criação concorreriam com as forças consumistas, ajudando a solucionar, de forma criativa, problemas graves como moradia e trabalho que estariam ligados diretamente a espaço e a tempo. Como já coloquei na introdução desta pesquisa, através de Claire Bishop, parece que a queda do regime socialista foi responsável pela fortalecimento das questões socio-políticas referentes à crise no senso coletividade. Caberia a arte participativa e a intervencionista, através das AAU, buscar o senso de comunidade perdido e resgatar a cidade como um playground, um terreno aberto para a livre criação. Observei que há um consenso na população de Berlim, de se preocupar em praticar um capitalismo mais consciente e comprometido com o comércio local e essa atitude conseguiria ainda manter o senso de comunidade e coletividade dos 74 HUYSSEN, 2000, p. 93 É importante atentar para o fato de que a cultura Punk, se desenvolveu tanto no lado Oriental, quanto no Ocidental. Fitas K-7 de bandas transitavam entre os dois lados e eram reproduzidas maciçamenes; DVD ELEKTROKOHLE (VON WEGEN / off ways) 75 29 bairros. Huyssen comenta que, atualmente, o Kiez “dita os mais importantes parâmetros do novo conservadorismo arquitetônico”76. A base desta resistência urbana local seria este “romantismo Kiez”’ que tentaria conservar as características peculiares de cada bairro, face aos interesses globais de transformação da cidade. As mudanças que aconteceriam em Berlim seriam tardias, se comparadas às várias outras cidades no mundo, como aponta Huyssen: Desde a década de 70, pode-se observar, na Europa e nos Estados Unidos, a restauração historicizante de velhos centros urbanos, cidades-museus, (…) a onda da nova arquitetura de museus (que não mostra sinais de esgotamento), o boom das modas retrô e dos utensílios reprô, a comercialização em massa da nostalgia, a obsessiva automusealização através da câmera de vídeo, (…) a difusão das práticas memorialísticas nas artes visuais, geralmente usando a fotografia como suporte, e o aumento da número de documentários na televisão, incluindo, nos Estados Unidos, um canal totalmente voltado para a história o History Channel. HUYSSEN, 2000, p 14. Esta “restauração historicizante” seria o plano que engessaria criativamente as grandes metrópoles, faria do espaço público dos centros urbanos ambientes monitorados por câmeras e transformaria cada metro quadrado da cidade em galerias, cafés, restaurantes, escritórios, lojas ou outro estabelecimento lucrativo. A padronização das cidades teria, como modo operante, a higienização de áreas de interesse imobiliário que possam ser transformadas em um novo centro. Assim, essa Berlim megalópole já teria sido projetada pelo capital externo, em 1947, pelo plano Marshall e teria sido formada a partir da recontrução de suas próprias imagens e memórias. Ao longo dos anos, uma cidade construiria o seu próprio sentido. Em Berlim, as forças criativas tentariam promover a troca de interesses comunitários, estimulando a solidariedade entre os cidadãos, em prol das necessidades práticas da vida cotidiana. A cidade funcionaria como um grande “quadro de avisos” e as práticas artísticas urbanas se utilizariam dela como mídia. Para a pesquisa, este seria um modo legitimamente democrática para promover as mobilizações sociais de interesse coletivo que tentariam reabilitar a esfera pública local, para resgatar o sentimento de vizinhança e coletividade. O conceito de mídia aplicado é de Zielinski; “as mídias são espaço de ação para iniciativas construídas de conectar o que está separado”77 76 77 HUYSSEN, 2000 p. 101 ZIELINSKI, 2006 p. 23 30 O problema, como aponta Huyssen, é que “o discurso atual da cidade como imagem é o dos ‘pais da cidade’, empreendedores, e políticos que tentam aumentar a receita com o turismo de massa, convenções e aluguel de espaços comerciais”78. Este processo se aproxima do que a socióloga Ruth Glass79 chamou de gentrification. Termo aplicável às áreas inicialmente decadentes que foram renovadas e mudaram por completo, tanto no aspecto físico material, na reconstrução dos seus elementos arquitetônicos, quanto no aspecto imaterial, remodificando o tecido humano que, por aquela área, antes transitaria. Esta seria a solução para as metrópoles reaproveitarem comercialmente áreas enormes que durante o século XIX se dedicavam às atividades portuárias e ferroviárias. Por mais orgânica que a formação de uma cidade pareça ser, não há como desconsiderar as medidas oficiais, os planos de desenvolvimento urbanos que seriam previamente traçados pelo governo em conjunto com iniciativa privada e que, em uma perspectiva curta de tempo, transformariam áreas inteiras, descaracterizando bairros e criando um urbanismo perpassado pelo consumo e comprometido com os interesses de uma economia global. Se faz útil recorrer à Huyssen e sua crítica a Berlim: O que é central para esse novo tipo de política urbana são os espaços estéticos para o consumo cutural, megastores, mega eventos museicos, festivais e espetáculos de todo tipo, todos tentando atrair novos tipos de turistas – desde o visitante de feriado até o incansável caminhador metropolitano, que vieram substituir o velho modelo do ocioso flâneur. HUYSSEN, 2000, p. 91 Vários motivos explicariam o porquê de Berlim ter se tornado uma cidade referência para as expressões artísticas das ruas, não só artes visuais, como o grafite, tag ou estêncil, mas para toda ação que usa a cidade como um terreno fértil, um playground e ainda pode fazer do cidadão um ser ativo, participante, um jogador. Mas, a estética urbana marcante das ruas não estaria ligada só ao passado, mas às questões apontadas para o futuro. Que futuro os artistas querem para Berlim? Em 1995, Christo e Jean Claude embrulharam o prédio do parlamento alemão, o Reichstag. (Fig. 14) Para Huyssen, a ação pactuaria com a estratégia que “converteria a capital alemã em capital internacional da arte antes mesmo que o governo de Bonn se transferisse para Berlim”80. Huyssen definiria 78 HUYSSEN, 2000, p. 91 GLASS, 1964 80 HUYSSEN, 2004, p. 45 79 a obra como 31 paradoxal: monumental e anti-monumental. A ação, através do símbolo nacional, traria à tona as forças que poderiam se utilizar da cidade para produzir imagens. Berlim viveria entre dois projetos de futuro. Um seguiria a trajetória das grandes metrópoles europeias, onde a cidade é um museu ao ar livre, monitorada por câmeras de vililância, um centro de entretenimento guiado pelas regras da indústria do turismo e, em especial, do mercado imobiliário. Ele expulsaria os moradores locais, ao contribuir para encarecer bens e serviços, aumentando o custo de vida dos bairros e transformando áreas desvalorizadas em novos centros comerciais. Assim, a periferia seria empurrada para lugares cada vez mais distantes. O outro projeto de futuro seria ligado às histórias descontínuas da cidade, aos passados antagônicos. Eles seriam tão necessários um para o outro que se complementariam. O atual romantismo Kiez resultaria desta dupla influência; os squats da Berlim Oriental dedicados, primordialmente, às atividades artísticas, enquanto que os da Berlim Ocidental às necessidades de moradia barata. O primeiro squat alemão81 teria surgido no Oeste, em Frankfurt. Nos anos 70, moradores protestaram contra um projeto do governo de renovar antigos prédios residenciais e transformar em escritórios comerciais. No lado Oriental, as pessoas tinham moradia, emprego e educação garantida, mas os espaços para as atividades culturais eram regulados pela Stasi, polícia secreta da República Democrática Alemã (RDA), daí a necessidade de espaços para criação livre e para o desenvolvimento da subcultura que iria contra o governo da República Federal Alemã (RFA). Na guerra-fria, Berlim Ocidental atraia jovens de cidades Ocidentais, por não exigir serviço militar obrigatório82. Este detalhe ajudaria a compreender características particulares que iram compor o perfil dos moradores de Berlim. Para uma Alemanha reunificada, tolerância e criatividade seriam necessárias para ambos lados conseguirem prosperar conjuntamente, deixando para trás antigas competições, focando numa realidade que estaria sendo construída. Logo após a queda do muro, quando anarquistas, punks, artistas e demais correram para ocupar os lugares abandonados da Berlim Oriental, nos bairros de Prenzlauer Berg, Mitte e Friedrichshain, teria havido uma fusão entre as pessoas que carregavam o seu passado Oriental, o Ocidental e as que tinham um passado 81 De acordo com artigo publicado no New York Times no dia 01 de Agosto de 2007, escrito por Andreas Tzortzis: http://www.nytimes.com/2007/07/31/arts/31iht-hood.1.6912877.html Checado em 25/03/10 82 BOEHLKE e GERICKE, ISBN 3-932754-62-X, 2007 32 estrangeiro, longe da dualidade capitalismo / comunismo. Esse grupo heterogêneo, que haveria povoado esses três bairros orientais, teria sido o que mais rápido se adaptou às diferenças culturais e que mais cedo também conseguiu superá-las. O squat e sua proposta de vida alternativa, em resistência ao lucro e ao acúmulo de capital, seria coerente com as ideologias jovens das duas Alemanhas e iria constituir a base da atual força que tentaria defender os interesses locais e se opor à idéia de Berlim como uma Cidade Global. Os squats seriam associações que subverteriam a lógica do sistema, ao criar uma estrutura auto-gerida e independente. Os squats seriam “empresas comunitárias”83 que uniriam vida e arte, com base na confiança entre os seus participantes, ao realizar trocas imateriais, tentando eliminar, ao máximo, as relações de troca material, para assim evitar contribuir com o lucro dos “parasitas” e atravessadores fora do squat. Embora recusem a influência do capital e se afastem do mundo externo, as atividades culturais desenvolvidas por eles seriam abertas ao público, a todos da comunidade. A herança comunista haveria particularmente marcado a cidade, no que diz respeito ao agir coletivo no espaço público, na organização da esfera social e, principalmente, na troca de interesses e na ajuda mútua entre os cidadãos. As trocas imateriais seriam a base da cultura dos squats e dos Kiez. Os fundamentos desta cultura poderiam ser até hoje observados no que Zielinski, particularmente, chama de “Economia da Amizade”. Ele afirma que, no mundo comunista, as redes de conhecidos é que conseguiriam burlar estritas leis da RDA e da Stasi: A idéia básica desta Economia da Amizade, é a qualidade da relação que estou tentando salientar. Nas relações usuais, as pessoas trocam dinheiro, uma coisa pela outra. Na Economia da Amizade, você não troca aquilo que tem, mas o que não tem. É o oposto da idéia de produtividade e acúmulo que estão regrando a economia capitalista e era, também, a forma estabilizada de economia no comunismo. Quando digo estabilizada, me refiro a forma pela qual a economia funcionava na prática, socialmente no mundo Soviético. É uma estrutura muito poética, claro, mas tem a ver com 84 fartura e desperdício, estes são termos que aprendi com Georges Bataille, com os pensadores franceses que encabeçaram essas idéias. Só funciona se existir uma atração, das duas parte, como uma relação pessoal e é absolutamente confiável porque não é um valor abstrato. É uma relação de troca na mesma altura dos olhos, igual. Uma troca no mesmo nível e isso 85 que a amizade é. 83 JEUDY, 2005, P. 142 Lavishness e squandering esses foram os termos que o professor usou em inglês. 85 Em entrevista concedida a autora desta pesquisa, realizada no dia 21 de Maio de 2010, na Universität der Künste Berlin (UdK). 84 33 O que chamamos de squat seriam moradias, com algum acordo, contrato mútuo que daria algumas garantias aos seus moradores. Embora ainda existam alguns squats, a maioria deles teve seus moradores despejados. Os que conseguiram resistir contaram com uma mobilização popular que teria feito pressão suficiente para que processos judiciais se arrastassem na justiça, adiando ao máximo a batalha final da expulsão. Muitos squats foram legalizados, através de campanhas de arrecadação de fundos, que teriam permitido que eles juntassem dinheiro suficiente para comprar as construções que habitavam. Neste mix de empresas comunitárias e punks na iminência de despejo, em 20 anos, Prenzlauer Berg, Mitte e Friedrichshain se transformaram nos bairros mais caros da cidade. Depois de guerras, muro e decadência, parece que Berlim teria se encontrado, se reinventado ao criar um estilo próprio, inovador, que teria como base o potencial transformador dos próprios moradores. Não só de transformar os espaços fisicamentes, mas de transformá-los através de atividades exercidas pelo tecido humano que utilizaria os espaços penetráveis da cidade. Quando os squatters compram a sua moradia, cada um vai explorá-la como lhe for conveniente. Em 2005, a UNESCO elegeu Berlim como a Cidade do design, considerando memoráveis os avanços sociais, econômicos e culturais promovidos, direta ou indiretamente, pela indústria do design. Esse título não diz respeito unicamente ao desing, mas se refere ao emaranhado de bens e serviços que fazem parte do que se tem chamado hoje de Economia Criativa86 e que movimenta profissionais liberais das mais diversas áreas, em várias partes do mundo. A cultura do squat, o “romantismo Kiez”, teria sido fundamental para Berlim ter obtido esse reconhecimento da UNESCO, em 2005. Mesmo comunitárias, os squats haviam se transformado em empresas das mais diversas; ateliês, bares, cafés, lojas, livrarias, restaurantes, galerias e muitos clubs de música eletrônica. Os moradores exercem diversas atividades e convivem, harmonicamente, com base na lógica do sistema comunal, de trocas e de colaboração, na tentativa de prosperar juntos, para reinventar uma nova cidade. A herança desta cultura comunal parece que foi primordial para a cidade, 86 De acordo com matéria publicada pela Folha de São Paulo 13/02/2011: “O conceito vem dos anos 90: indústrias criativas são aquelas com potencial de geração de riqueza e emprego por meio da utilização de propriedade intelectual. Do conceito surgiram experiências de cidades ou núcleos criativos, como forma de transformação de áreas degradadas e de desenvolvimento sustentável”. Acesso em 03/05/2011: http://www1.folha.uol.com.br/mercado/874934-cultura-quer-foco-em-economia-criativa.shtml 34 principalmente no que diz respeito ao compromisso que essas empresas coletivas parecem ter com seu entorno e com a própria cultura local. Estas empresas e organizações culturais, políticas e sociais haveriam dado tão certo que teriam ajudado Berlim a prosperar e hoje esses espaços mais livres da lógica do sistema capitalista teriam, de certa forma, se institucionalizado. Isso haveria se dado através de meios legais, como a transformação destes empreendimentos coletivos em OnGs, empresas com benecífios fiscais87. Esta teria sido a forma encontrada para essas empresas continuarem a existir, mesmo que tivessem que se institucionalizar para afastar a ameaça de despejo. A transformação, bem-sucedida, dos Kiezes em empresas mudaria os bairros e desagradaria os herdeiros da contracultura. Um exemplo de descontentamento pode ser notado através do site www.brennende-autos.de , onde foram mapeados o incêndio de 633 carros, entre 2007 e 2010. Em 2009, o índice chegou a ser de um carro queimado por dia alternado, somando 216 no total, índice alto para uma cidade europeia. (Fig. 15) Ataques a carros luxuosos são comuns e demonstrariam a rebeldia popular, como este porche coberto de tinta, em 2009. (Fig. 15a) Os carros foram mais atacados nos três bairros “da moda” da Berlim Oriental, mas também em kreuzberg, área que era pouco prestigiada na antiga Berlim Ocidental, espremida entre o Muro e por um canal a margem do rio Spree. Na margem do canal, existem vários bares, boates, etc advindos de squats. O bairro vê seus empreendimentos coletivos e áreas baldias (Fig. 15b) ameaçadas, devido a um projeto de urbanização, batizado de Media Spree. Este vem construindo um conglomerado de empresas de telecomunicações (Fig. 15c), nas margens do rio Spree, e prevê acabar com os últimos redutos de empresas criativas do bairro. Kreuzberg, com o passar dos anos, se tornou reduto dos Punk ocidentais, artistas, squatters e também de imigrantes turcos que, maciçamente, habitaram os Mietskaserne periféricos da próspera Berlim Ocidental. Os squats mais antigos de Berlim encontram-se no lado Ocidental, como por exemplo, o Bethanien, um hospital do século XIX desativado em 1970. Em 1974, um grupo ativista impediu a demolição do prédio e, no ano seguinte, foi fundada a 87 Na Alemanha, as OnGs recebem uma licença especial chamada de “GmbH”. 35 Kunstlerhaus Bethanien, uma instituição de arte comtemporânea que sobrevive com o apoio de instituições internacionais88 e seus programas de artista-residente. Durante os primeiros anos, não foi fácil para a Kunstlerhaus permanecer no prédio. Em 1989, em acordo com a sub-prefeitura de Friedrichshain e Kreuzberg, uma escola de música para crianças foi instalada no térreo do prédio. A iniciativa fazia parte do plano de integração governamental que tentava incluir socialmente a comunidade turca majoritária do bairro. Parece que iniciativa deu certo, visto a harmonia que diferentes grupos sociais circulam no prédio. Os desafios para a sobrevivência de um squat sempre foram numerosos. Depois de 16 anos de atividade, em 2005, o espaço Yorckstrasse 59 foi invadido, em uma ação surpresa de 500 policiais89 que despejou 60 moradores. No mesmo dia, os ativista interferiram nas frequências de uma rádio local para anunciar a ação policial e pedir apoio popular; várias ruas foram bloqueadas e vitrines de lojas quebradas em várias partes da cidade. Ao final do dia, uma manifestação de três mil pessoas tinha se deslocado para um novo endereço que o grupo havia invadido. Depois de negociações, a sub-prefeitura de Friedrichshain e Kreuzberg, resolveu abrigar o grupo, temporariamente, no setor sul da Bethanien90. (Fig. 16) O grupo teria alguns encargos nos custos de manutenção do prédio e teria que se adaptar a seus vizinhos, a instituição artística, auto-gerida, Kunstlerhaus Bethanien e a escola de música, Musikschule Friedrichshain-Kreuzberg. No novo espaço, o Yorckstrasse 59, que era composto de três organizações,91 passou a se chamar New Yorck e multiplicou para vinte o número de espaços coletivos sócio-culturais. Embora a cultura alemã seja marcada pela rígida disciplina das obrigações e deveres, a consciência ao direito à comunicação, à liberdade de expressão artística parece ser forte nos cidadãos. Ao ver seus interesses ameaçados, a população local se articularia politicamente, através de mobilizações populares que teriam capacidade de pressionar o governo e criar uma opinião pública92 em sincronia com as reais procupações coletivas. Assim a recente decisão da chanceler Angela Merkel de extinguir as indústrias nucleares até 2022 haveria sido fruto da pressão popular. 88 O itaú cultural é uma das parcerias que eles estabelecem. Para consultar lista completa: http://www.bethanien.de/kb/index/trans/en/page/partner 89 Fonte do grupo: http://yorck.plentyfact.net/taxonomy/term/4 90 Fonte: http://de.indymedia.org/2005/06/121527.shtml 91 Eram elas: Anti-racist Initiative (ARI), the radio Onda, the Latin American information service Poonal 92 Como abordarei no ítem 3.2 desta pesquisa. 36 No capítulo três, abordaremos a questão da opinião pública e investigaremos a possibilidade dela ser construída e manipulada pela mídia. Como pensa Huyssen, “sabemos que a mídia não transporta a memória pública inocentemente; ela a condiciona na sua própria estrutura e forma”93. Parece que o trauma histórico alemão haveria treinado seus habitantes a ter mais controle sobre suas memórias, pela constante ameaça de vê-las destruídas. Assim, eles tentariam pautar a mídia tradicional com questões de interesse coletivo e criar redes de mídia independente. Essa preocupação com a memória estaria, diretamente, ligada à comunicação, à possibilidade de armazenar, gerar mídias e de, assim, reproduzir verdades, fragmentos de olhares. O mecanismo de percepção e apreensão das memórias seria alterado pela sobrecarga de informações que passariam a chegar ao cidadão, o que, para Huyssen, seria devido à existência de uma “nova estrutura de temporalidade, gerada pelo ritmo cada vez mais veloz da vida material”94. Desta forma, uma Alemanha que foi isolada por quarenta anos teria que reaprender a subordinar seus processos de memória e recriar uma nova atitude, em relação ao tempo e ao espaço. O plano de desenvolvimento que estaria sendo implementado em Berlim, desde a queda do muro, nunca teria atentado para os reais anseios das comunidades locais. As instituições modernas e os novos projetos de urbanização teriam comprometido o presente, ao terem se deixado seduzir pela cultura museística da memória, do monumento e da nostalgia. Huyssen argumenta que a crise da memória seria gerada pela dependência do passado e pelo seu caráter redentor, destruindo qualquer possibilidade de fazer uma leitura produtiva dele, uma rememoração bem-sucedida, capaz de refletir sobre problemas do presente, através dos erros do passado. O avanço do consumo de memórias seria igual ao nível de esquecimento: Se nós estamos, de fato, sofrendo de um excesso de memória, devemos fazer um esforço para distinguir os passados usáveis dos passados dispensáveis. Precisamos de discriminação e rememoração produtiva; e, ademais, a cultura de massa e a mídia virtual não são necessariamente incompatíveis com este objetivo. HUYSSEN, 2000, p.37 Compreendo que as atividades político-sócio-artísticas desses grupos alternativos, dos squatters, seriam uma forma prática de “rememoração produtiva”, pois suas reivindicações seriam coerentes com suas trajetórias e utilizariam o 93 94 HUYSSEN, 2000, p. 22 HUYSSEN, 2000, p. 74 37 espaço público em prol de idéias coletivas. As paredes das cidades teriam sido as primeiras mídias subversivas e se a memória poderia ter um uso político, a cidade também, através das diferentes memórias que ela pudesse conseguir armazenar. A história do povo alemão foi marcada por sequentes privações causadas por duas Guerras seguidas. Ao final da Segunda Guerra Mundial, Oriente e Ocidente queriam esquecer as memórias traumática de fome, de frio e viver em paz, como relata David F. Crew, em Consumismo na Alemanha na Guerra-fria : Sentados nas ruinas do “Terceiro Reich”, a maioria dos alemães apenas queriam saber qual Alemanha pós-guerra iria conseguir banir a realidade a memória das dificuldades dos tempos de guerra mais rápido e mais completamente. Consumo e qualidade do dia-dia rapidamente surgiram como um importante campo de batalha, onde o conflito Leste e Oeste seria travado. CREW, 2003, p. 2 Observei que a luta dos squatters representaria a união entre o Leste e o Oeste, na busca pela qualidade de vida que motivaria o povo alemão, desde o pósguerra. Antes da Alemanha ser dividida, durante o período nazista, a propaganda teria sido a estratégia para manipular a opinião pública. Isto teria contribuído para a formação de uma consciência mais crítica e política e o que refletiria em um senso de responsabilidade individual na formação da chamada “opinião pública”. A história da propaganda estaria intimamente ligada à das guerras, à manipulação das massas, ao controle dos seus pensamentos e à propagação de idéias que sustentassem ações políticas. Estas possibilidades de manipulações seriam de interesse de vencidos e de vencedores. Campanhas publicitárias com posters, para ridicularizar o inimigo, eram bastante populares na Europa e, já na Primeira Guerra Mundial, cartazes deste tipo eram comuns nas ruas. (Fig. 17) A cultura dos posters teria instigado as ruas como um território de conflito, entre a realidade oficial transmitida pela propaganda e a realidade vividas pelos cidadãos. Interferir no espaço público seria a uma forma de tentar espalhar idéias contrárias ao sistema, fosse ele comunista ou capitalista, afirma Marta Sylvestrová: Sob os regimes totalitarios do Centro e do Leste Europeu, toda comunicação de massa ficava sob o restrito controle do governo; o jeito de comunicar idéias não oficiais era através de posters, folhetos, e banners, literatura “samizdat” e outras formas de cultura underground. As autoridades de censura não poderiam impedir que a produção de desenhos à mão e impressões caseiras de posters aparecessem e reaparecessem nas ruas, nos muros e janelas das cidades durante as revoltas antitotalitárias. SYLVESTROVÁ, 1992, p. 13 38 Nos feriados nacionais soviéticos, os cartazes eram um convite que clamava a participação da população. (Fig. 18) Na Berlim Oriental, os festejos do primeiro de maio eram na rua, com a presença dos grandes lideres do partido comunista, em uma grande festa; com apresentações de música e dança e, num misto de medo e apoio ao partido, os moradores penduravam a bandeira da RDA nas janelas. Até hoje, seria o feriado mais celebrado em Berlim, porém, a comemoração se caracterizou pelo seu caráter não oficial e se tornou um dia de festas espontâneas na cidade e de demonstrações populares, muitas vezes violentas. No espaço público socialista, além dos cartazes, outra forma de propaganda parece ter influenciado a estética urbana contemporânea, os murais. Por toda União Soviética, as fachadas dos prédios eram exploradas com painéis, mosaicos, pinturas e esculturas que colocavam os cidadãos em contato diário com idéias que queriam ser fixadas na cabeça do povo, como, por exemplo, a supremacia na corrida espacial e a vida feliz do campesino (Fig. 19). A dimensão monumental dos murais pintados ou mesmo esculpidos nos prédios, se basearia nas mesmas diretrizes da arte arquitetônica que é absorvida e assimilada, através da distração, enquanto as pessoas transitam ao redor dos prédios, como explicaremos no capítulo seguinte. Em uma sociedade marcada por quarenta anos de influência socialista, a relação das pessoas com o espaço público ainda estaria bastante ligada à coletividade e a sua função pública como um espaço de lazer. O teor político e crítico das mensagens escritas nos muros da cidade pode ser observados tanto através de desenhos coloridos dos inúmeros grafites, como através de textos pichados e tantas outras formas criativas que permeiam a cidade. (Fig. 20) Para obter êxito, ao espalhar suas idéias, os artistas atuantes na cena berlinense parecem estar dispostos a utilizar todos os meios e brechas possíveis que a cidade proporcione, mesmo que eles sejam subversivos e ilegais. Parte de nossa investigação seria compreender como se daria o deslocamento da arte, para os espaços públicos, e como poderíamos criar dispositivos sócio-estéticos para avaliar esta mudança. Parece-nos necessário comparar as motivações dos artistas que intervêm nos centros urbanos de cidades tão diferentes e entender o que faria com que a prática do grafite, por exemplo, se tornasse tão difundida. E o que moveria a escolha por essa forma de expressão? Zielinski poderia dar pistas sobre uma resposta, quando comenta que: 39 Quando os espaços para a ação tornam-se cada vez mais limitados para todos os que são de difícil controle, ou que não se ajustam inteiramente, que são fora do comum ou estranhos, então devemos tentar confrontar o possível com suas próprias impossibilidades, dando-lhes em troca experimentos mais inspiradores e mais valiosos. ZIELINSKI, 2006, p. 27 A atuação do artista no espaço público seria uma espécie de confronto entre a realidade previsível, cotidiana, e a realidade lúdica, imprevisível, construída pelo artista e pelas subjetividades do público. As AAU e os seus jogos seriam criados a partir das possibilidades e impossibilidades dos elementos presentes no espaço público e, também, dos elementos que poderiam ser adicionados a ele. Assim, existiria uma chance de travar relações mais próximas, tanto do público com ele mesmo e com o processo do artista (arte participativa), quanto do público com a própria cidade e objetos (arte intervencionista). A intimidade se daria através da observação, do público ser tocado por algo que poderia, apenas, ser um detalhe, mas consegue ter destaque no seu cotidiano. Assim, uma frase pichada em um muro poderia criar essa proximidade com o transeunte, dependendo do que lhe comunica. Uma frase bem humorada só fará sentido se quem a ler compartilhar do mesmo senso de humor. Desta forma, vemos importância em investigar alguns aspectos do grafite para a análisar as demais AAU. 1.2 Grafite: a estética urbana Em Berlim, a consciência coletiva, em relação ao espaço público, poderia ser observada, não só através do uso de parques e praças e pelo fato de um terço da cidade ser ocupada por lagos e bosques95, mas pela forma espontânea que a cidade seria utilizada e ornamentada com elementos estéticos pelos seu habitantes. Esta atitude poderia ser observada na forma especial como eles parecem se preocupar com a pintura das fachadas de suas casas, prédios e estabelecimentos comerciais, nas plantas que colocam nas calçadas, nos jardins coletivos96 que algumas comunidades mantém e na forma como as artes visuais, especialmente o grafite, conseguiria permear a cidade, seus espaços públicos, privados e principalmente os seus espaços vazios. 95 Fonte: Folha de São Paulo, caderno turismo do dia 14/04/2011 p. F5. Esses jardins são heranças das guerra, quando o governo estimulava que o cidadão fosse autosuficiênte e produzisse seu próprio alimento. 96 40 Pude perceber, no espaço público de Berlim, que duas forças antagônicas competiriam e atuariam na cidade: as forças criativas, de carater coletivo e as forças consumistas, de carater individualistas. Cada uma delas seria representada, respectivamente, pela arte e pela propaganda97. Para me reaproximar dos conceitos que apresentei há pouco, cada força dessa seria motivada pela personificação do seu maior extremo: pelo vagabundo e pelo turista. Me afastando desses extremos, a diferença se faria entre as pessoas que não teriam pretensões de acumular riquezas e aquelas que teriam nos sonhos consumistas as suas realizações pessoais. Na minha perspectiva, em Berlim, a criatividade seria a primeira alternativa encontrada, pelo poder local, pelos artistas e moradores que se encontravam fixados na cidade, para tentar reagir contra o consumo imposto por uma cultura globalizada. Os avanços imobiliários teriam efeitos mais destrutivos para o tecido humano da cidade, como afirma Huyssen, a respeito da urbanização que foi implantada no bairro de Potsdamer Platz, que teriam matado “a aberta, móvel e multiplanamente codificada cultura urbana que um dia caracterizou esse eixo central do tráfego entre as partes Leste e Oeste da cidade”98, nas décadas de 1920 e 1930. (Fig. 10) Por parte dos moradores, existiria um pensamento bastante difundido em “ajudar o bairro a melhorar”, uma consciência em consumir nos estabelecimentos locais, em enfeitar jardins, paredes e frequentar praças e parques das vizinhanças às quais pertencem. Adornar o espaço público é uma característica marcante em ambos os lados da cidade. Em Novembro de 2009, a revista Piauí publicou um artigo no qual Tim Apmann dá um depoimento sobre sua vida na Alemanha Oriental dos anos 70 e traz um fato que ajuda a explicar a cultura dos painéis nas laterais e fachadas dos prédios: Por lei, todo prédio novo era obrigado a alocar 3% de seu orçamento para a decoração de suas paredes externas. Como minha mãe tinha estudado pintura mural na escola de Belas-Artes, coube a ela dedicar-se a essa tarefa. Segundo a orientação do regime, a arte mural deveria exprimir a felicidade das pessoas que tinham a sorte de viver na parte socialista da Alemanha. Poderia também retratar a miséria dos que viviam na parte capitalista da Alemanha - cujo governo era manipulado pelos nazistas e 97 Embora estejamos aqui opondo arte e propaganda, se faz necessário afirmar que essa argumentação é localizada na cena orgânica de arte urbana em Berlim. Nem sempre a arte, através das forças criativas, seria de caráter coletivo. Arte e propaganda estariam intimamente ligadas, mas dentro da perspectiva de que a arte propaga idéias, significados e representações que podem, sim, ser focadas no lucro, estarem servindo ao mercado de arte e ligadas às forças consumistas, de carater individualista. 98 HUYSSEN, 2000, p. 107 41 pelos imperialistas americanos - onde não existia o direito ao emprego, à 99 educação ou à habitação. A cultura dos murais sobreviveu e, até hoje, colore a cidade com os variados temas, mesmo sem uma lei específica para isso. Por vezes, o estabelecimento comercial do térreo pagaria os custos e decidiria o que iria pintar. As subprefeituras distritais também comissionam algumas produções, porém, o mais comum seria os moradores se reunirem, dividirem os custos e decidirem por algo que geralmente “passe uma mensagem”. O tema da guerra seria um dos mais abordados, como esse antigo squat chamado de Tommy Weissbecker Haus que traz uma figura militar se masturbando, em meio ao caos da guerra (Fig. 21), mas as decorações com paisagens e natureza também seriam uma opção bastante presente. (Fig. 22) Independente de quem os custeiam, os paredões coloridos criariam um diálogo com seu entorno, interfeririam na paisagem e até poderiam interagir com ela, a exemplo dos que se utilizam das sombras formadas nas paredes, como um elemento integrante do mural. Victor Ash, em dois trabalhos diferentes, explora a sombra. (Fig. 23) Em Falling Graffiti Writers and trees,100 ele brinca com a paisagem e parece criar uma espécie de sombra que, à noite, se mistura às sombras verdadeiras. Em Astronaut / Cosmonaut, a sombra real de um mastro com uma bandeira faz parecer que ela acabou de ser fincada ali e o seu flamejar dá um certo movimento ao cosmonauta que parece levitar na gravidade101. A obra em preto e branco chama atenção e se olhada fixamente, devido ao seu alto contraste, gera um efeito ilusório de permanência na retina. Esta forma de expressão artística, os murais grafitados, já foi institucionalizada na cidade. Seja através da prefeitura, que comissiona concurso para adornar lugares específicos, ou das corporações que, com frequência, encomendam obras de tamanho monumental. Com a falta do domínio da língua e do repertório simbólico da cultura alemã, muitas vezes, não conseguiria decifrar se um mural seria ou não uma propaganda. A experiência estética não necessariamente precisaria do conhecimento específico daquela cultura, embora esse tipo de 99 Consulta realizada em 22/11/10: http://www.revistapiaui.com.br/edicao_38/artigo_1174/9_de_novembro_de_1989_e_eu.aspx 100 De 2008, tem 700 m2 e foi o projeto ganhador de um concurso promovido pela subprefeitura de Friedrichshain. 101 O munral é de 2007 e foi comissionado pela subprefeitura de Kreuzberg e pelo Kunstraum Bethanien Museum. 42 embasamento possibilitaria uma compreensão crítica a respeito. A sensação é de caminhar em uma cidade que “fala” a todo momento, seja com mensagens gigantescas ou objetos largados nas vias públicas. O que seria diferente da experiências estética urbana que experimentamos no Brasil. Mesmo esses painéis-propagandas poderiam, de alguma forma, adornar a cidade e se comunicar com o cidadão, antes mesmo que ele identificasse quem seria o “anunciante”, como por exemplo o mural encomendado pelo Mercury Hotel ao coletivo de artistas latinos Interbrigadas. (Fig. 24) Os artistas foram direcionados a comporem algo caótico que representasse Berlim em diferentes épocas e pudesse fazer com que os passageiros do metrô se surpreendessem, a cada dia, com algo que não haviam percebido antes, devido aos inúmeros detalhes do mural. A obra se destaca no caminho da linha dos metros U1 e U2, em 600 metros quadrados. Mesmo longe do centro, nos subúrbios mais tradicionais, como por exemplo em Köpenick, é possível ver propagandas com essa mesma estética urbana. (Fig. 25) A Nike seria uma grande patrocinadora dos murais na cidade. A campanha “joga bonito”, lançada na copa de 2006, fez vários destes murais, na área central de Belim, para recepcionar a seleção brasileira. (Fig. 25a) Apesar do grafite marcar a cidade com tinta, essa prática seria efêmera, o espaço público não garantiria a sua permanência e a transformação e desaparecimeno dela seria inevitável. Quanto mais tempo uma intervenção consiga permanecer, mais ela iria fazer parte da identidade visual daquele local e se solidificaria na memória dos cidadãos. A cidade e espaços urbanos penetráveis seriam propícios para abrigar memórias coletivas da realidade local. Não exclusivamente local, há alguns assuntos que são incluídos no espaço público pela sua relevância global, como pude observar em relação à guerra do Iraque, após os ataques de 11 de setembro, nesta foto de 2004. (Fig. 26) O grafite seria uma expressão artística que não apenas se integraria especificamente ao local em que é produzida, mas teria capacidade de impor, de forma monumental, a sua existência, tornando-se assim, uma atração a mais para a área na qual se encontra. Esta seria a estratégia da prefeitura, para impulsionar o turismo urbano e aproveitar a fama underground que Berlim teria. Pela estética de um bairro, poderiam ser identificados elementos que demonstram os interesses da comunidade. A arte produzida na rua indicaria o forte potencial criativo das pessoas que habitam aquela área e expressaria o forte desejo 43 da comunidade participar, de forma ativa e consciente, na criação dos espaços públicos, uma vez que ela usufruiria deles. Existem alguns concusos comissionados pelas sub-prefeituras que fazem a ponte entre os artistas e a comunidade local, como Back jumps, Urban Grassroots: Panet Prozess e Urban Affairs. Durante muito tempo, o grafite foi marginalizado pelas instituições tradicionais de arte. Depois que adquiriu legitimidade pelo mercado de arte e passou a frequentar museus, a atividade na rua passou a ser alvo de críticas da mídia e da sociedade civil. Seria como se o fato de ter sido aceita dentro de um espaço expositivo, fizesse com que ela não precisasse mais se mostrar rebelde e se arriscar em lugares incertos. Essa articulação direta da prefeitura com a estética urbana indicaria que as transformações na cidade afetariam o campo das artes e as legítimas manifestações públicas da arte de rua. O plano de eliminar as habitações comunais e tornar Kreuzberg uma “disneylândia da arte contemporânea” parece bastante condizente, pois, como afirma Huyssen, “o discurso atual da cidade como imagem é o dos ‘pais da cidade’, empreendedores, e políticos tentam aumentar a receita com o turismo de massa, convenções e aluguel de espaços comerciais”102. Porém, os turcos103 presentes em 200 mil imigrantes Keuzberg fariam da transformação do bairro um desafio maior que o enfrentado por Mitte, Prenzlauer Berg e Friedrichshain. Quando Berlim se estabilizou como a capital alemã, seus “novos bairros” ressurgiram mais estruturados. Foi quando os squats foram legalizados, acordos com proprietários foram assinados. Quando as propriedades foram adquiridas e legalizadas, parte dos squatters largou a rebeldia e prosperou como profissional liberal de empresas coletivas ligadas às atividades criativas. Agora, além de pagar contas, esses moradores poderiam consumir e acumular riquezas. Um exemplo desta mudança pode ser dado pelo fato de Prenzlauer Berg, hoje, ter uma das maiores taxa de natalidade da Europa104. As mudanças nos bairros demonstrariam que identidade e territoriedade estariam em cheque, nesta tentativa do governo fortalecer a imagem avant-gard de Berlim. Embora estejamos contextualizando as práticas artística urbanas, em especial a sua expressão mais evidente em Berlim, o grafite, não estamos fazendo 102 HUYSSEN, 2000, p. 91 Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/muro3.htm 104 De acordo com http://www.dw-world.de/dw/article/0,,2079836_page_3,00.html 103 44 um julgamento estético dela, mas investigando a sua legitimidade e capacidade de produzir significados e subjetividades no ambiente urbano. Berlim foi reconstruída pelos que insistiram em permanecer na cidade, depois da queda do muro. Ou por aqueles que decidiram se fixar nela, após 1989. As pessoas lutariam pelo direito de conservarem as características particulares que fizeram com que Berlim fosse o que é hoje. Mesmo que o governo se utilize das práticas artísticas urbanas, como um diferencial para o desenvolvimento econômico e turístico da cidade, não acreditamos que isto enfraquecerá a resistência local. Para garantir a existência de zonas autônomas de criatividade e lugares livres dos interesses capitalistas, os moradores de Berlim parecem estar dispostos a mobilizar a opinião pública e se utilizar de todas as estratégias que a cidade proporcione. Nesta batalha, a arma mais comum dos cidadãos seria o picho, o grafite e o lambe-lambe (pôsteres). Imprimir nas vias públicas uma expressão individual, autêntica, caracterizaria as práticas artísticas urbanas. Não que esta fosse a maneira de protesto mais eficiênte, porém, esta seria uma das formas de chamar atenção popular para as causas coletivas, durante seus afazeres cotidianos. 1.3 Arte como protesto Na era das novas mídias e possibilidades de suportes tecnológicos, a arte ganharia as ruas e, de forma lúdica, se utiliza da cidade como um playground, não apenas se usando a tecnologia na própria criação, como podemos ver em projetos como blinkenlights (Fig. 27) e uma prática comumente chamada de laser tag (Fig. 28), mas. principalmente, se dispondo das novas tecnologias, para modificar a interação entre público e obra, autor e processo. No projeto alemão, de 2001, blinkenlights se utilizou de um prédio105 na região central de Berlim, para construir uma tela interativa, durante quase 24 semanas.106 As janelas do prédio foram dispostas como uma tela, onde cada uma delas funcionavam como um pixel (estrutura que forma as imagens eletrônicas). Para participar, as pessoas ligavam para um número e poderiam jogar PONG, antigo jogo de computador, enviando os comandos através do teclado do seu celular. A possibilidade de criar na janela tela teria sido tão inspiradora para as pessoas, que 105 106 O haus des lehrers, histórico prédio dos professores da RDA. http://blinkenlights.net/blinkenlights último acesso em 04/04/2011 45 os organizadores abriram para que o público mandasse suas animações feitas a partir das limitações daquela tela. Com Blinkenlights Love Letters, as pessoas podiam impressionar seus amados de forma pública, pessoal e monumental. O Laser Tag seria uma prática que permitiria desenhar e escrever em tempo real, de forma remota. Em 2008, na Rússia, um coletivo de artistas se utilizou desta técnica para iniciar uma ação invasiva no prédio do parlamento russo. (Fig. 29) Sete membros do grupo Voina, que em russo quer dizer “guerra”, teriam escalado os sete metros do portão principal, destruído o sistema interno de câmeras e saído ilesos. Logo depois, tropas federais chegavam atrasadas e atordoadas com a ação. Ações como as do Voina desafiariam o poder público e colocariam a arte no limite do crime. A arte contemporânea frequentemente testaria as fronteiras entre o legal, permitido, e o ilegal, passível de prisão. Como esta ação, de 1999, em Berlim, realizada por Iepe Rubingh, o mesmo que espalhou tinta de bicicleta, citado na introdução deste trabalho. (Fig. 30) Para explicar suas motivações, ele faria uma aproximação de suas ações artísticas com atos terroristas: Como os terroristas, trabalho com elementos de choque e desorientação. A grande diferença é a escala. Existem muitos aspectos positivos nestes elementos, as pessoas têm que repensar. Elas nao sabem exatamente o que acontece pois a situacao é fora da ordinária. Mas, diferente dos terroristas, não estou querendo causar medo, mas também quero a maior 107 cobertura da mídia possível. Embora os estudos sobre as novas AAU pareçam se tornar mais frequentes, o seu ensino não acompanharia ritmo igual. Mesmo na Alemanha, com práticas urbanas tão notáveis, as escolas de arte ainda teriam dificuldade de se abrir às atividades pouco solidificadas dentro das instituições de Arte. Por isso, existiria uma forte rigidez em focar numa formação tradicional do aluno. Nesta questão, estaria a legitimação do artista e de sua obra. Fomentar a formação de grupos contrários aos interesses institucionais, tanto do Estado, da Arte, como o da própria Escola, não estaria na agenda de prioridades acadêmicas. Por essa razão, vejo relevância em apresentar um grupo de Berlim, o Interfugs. Desde 1989, eles se destacam por fazer a ponte entre a Universidade e a arte externa à academia e por provocar debates polêmicos dentro de sala de aula. A história deste grupo surgiu de uma greve geral de alunos e vários membros da Universität der Künste Berlin (Universidade de Artes de Berlim- UdK). O principal 107 http://www.joker.iepe.net/newyork1.html Site do artista, checado em 10/06/2011 46 motivo teria sido a incapacidade dos cursos daquela época aplicarem o uso de mídias e novas tecnologias para a produção artística. O ensino da UdK era voltado, apenas, para pintura e escultura. Hoje, o interflugs conta com cinco salas no prédio principal e até um orçamento da UdK para promover atividades gratuitas para estudantes e não estudantes, tendo em foco a arte como forma de protesto. As ações do interflugs seriam uma tentativa de democratizar o acesso ao conhecimento, visariam dinamizar a formação acadêmica, integrando estudantes de diferentes áreas e combateriam o interesse coorporativo dentro da instituição. Em 2004, a Volkswagen contribuiu com 10% dos custos de uma nova biblioteca e incorporou sua identidade corporativa (logomarca) na linguagem diária de mais de trinta mil estudantes. Em 2006, a empresa abriu sua própria universidade e estendeu aos seus estudantes os mesmos privilégios que os estudantes da UdK e da Technische Universität (Universidade técnica- TU) teriam na sua própria biblioteca. A crise na educação do artista não é isolada. A interpenetração do capital público e privado seria uma constante do liberalismo econômico. No espaço público, como abordaremos no capítulo três, esta crise se faria mais evidente e isto motivaria o interflugs a levar às ruas várias atividades, como vemos através dos workshops de verão que foram realizados em comemoração aos 20 anos do grupo, em 2009. O Interflugs Sommer Akademie obteve permissão para ocupar uma escola pública108 e hospedar participantes do mundo inteiro, durante 22 dias do verão de 2009 (23 de julho até 13 de agosto). Nos primeiros dias, havia pouca gente acampando no edifício, mas, gradualmente, as pessoas foram chegando. A impressão era de que cada um que chegava espalhava a notícia para os amigos e convidava mais gente, já que todas as atividades promovidas eram de graça, inclusive a própria hospedagem. O dia começava com um café da manhã coletivo; os organizadores iam juntos para um mercado buscar alimentos menos vistosos que sempre sobram e são disponibilizados gratuitamente, em certos dias da semana. Todas as refeições eram 108 Rütli, em Neukölln, ficou conhecida em 2006 quando a escola passou a ser policializada para que as aulas acontecessem, depois de um professor ter sido espancado. A violência entre os alunos era tamanha que a diretora pediu o fechamento da unidade. Este fato colocou em questão a eficiência do sistema escolar alemão. As Hauptschulen concentravam os alunos com piores desempenhos escolares e se tornaram um problema por concentrar até 83% de alunos estrangeiros, como era o caso da Rütli. Em 2010 as Hauptschulen foram abolidas. Dados de acordo com Deutsch Welle, c o n s u l t a d o e m 2 0 d e f e v e r e i r o d e 2 0 1 0 . D i s p o n í v e l e m : h t t p://www.dwworld.de/dw/article/0,,1950567,00.html 47 preparadas coletivamente e servidas durante as pausas nas atividades, algumas pessoas contribuíam na caixa de doações, outras traziam alimentos consigo. As oficinas funcionavam na base da auto-aprendizagem; tinham os instrutores que estavam propondo a idéia e pensavam previamente sobre o assunto, mas não existia a pretensão de serem “professores", de dizer aos outros o que e como fazer, já que o interflugs criticaria justamente as escolas de arte e seu sistema educacional verticalizado. mestre – aluno. Tudo era aberto e mutável, de acordo com as pessoas que faziam parte do grupo e o seu verdadeiro desejo de construir ou não algo juntos. Antiacadêmico, autoditada e experimental assim se caracterizaria o interflugs. Além das oficinas pré-agendadas, havia também a possibilidade de skillshare, compartilhar habilidade. Qualquer um poderia propor algo para ensinar, uma aptidão, um conhecimento especial para dividir como grupo. Seria uma possibilidade muito particular a de estar em um lugar onde pudesse aprender, ensinar, morar, discutir e, de fato, produzir obras com os equipamentos e as facilidades proporcionados pela Akademie, para executar as idéias do artista. A Sommer Akademie atraiu um tipo peculiar de artista que gostaria de chamar de “kamikaze”. A arte seria uma atitude de vida, encarariam risco e adrenalina como combustível para produzir e executar projetos, mesmo sem verba. Conseguir materializar idéias, mesmo que elas pareçam impossíveis, teria sido a principal conquista desses jovens artistas, como observei na oficina “Exploração da arquitetura subterrânea e criação de abrigos temporários no espaço urbano” de Matthias Wermke e Mischa Leinkauf. Os artistas propuseram construir objetos flutuáveis, espécies de pequenas jangadas, canoas, para adentrar na rede de canal pluvial. (Fig. 31) Durante duas horas e meia, dezessete participantes percorreram quatro quilômetros dentro da rede. As oficinas utilizavam a urbe como um terreno livre e fértil, onde novas regras e jogos eram criados. Momentaneamente, os participantes recriariam o entorno urbano, poderiam designar novos significados aos elementos dispostos nele e ampliariam as fronteiras dentro do espaço público, como a oficina do artista Dirk van Lieshout que construiu espaços privados, a partir da estrutura de um guarda-chuva. (Fig. 32) Na experiência em Berlim, foram oferecidos drinks e fones de ouvido para os participantes ouvirem música e até dançar. Em “public disco with headphones”, os transeuntes se dispuseram a participar com uma facilidade que só o verão explicaria. 48 O interflugs traria à tona o papel da Universidade na relação entre conhecimento e produção de valores. Além disso, ressaltaria a importância de lugares autônomos e independentes do mercado de arte, e da própria academia, para uma produção artística contemporânea relevante. Intervir artisticamente na cidade seria uma tendência observada, já há algumas décadas, e seria reflexo do crescente espaço que a propaganda ocupa nos espaços de uso coletivo. Nas vias públicas das cidades, diariamente, publicidade e paisagem urbana competiriam por atenção. A degradação e abandono dos espaços coletivos afastaria o citadino da convivência pública e direcionaria o seu olhar às propagandas. Neste cenário, Zielinski, questiona: “será que não precisamos (…) de mais artistas preparados para assumir riscos em vez de preparados para meramente moderar o progresso social por meio do uso de dispositivos estéticos?”109? A crítica de Zielinski seria à ineficiência dos artistas em se utilizarem das novas tecnologias, de forma efetiva e crítica. Para ele, a mudança pela qual estaríamos subordinando nossos processos de memória, através da influência das novas mídias e tecnologias, não seria uma questão bem explorada pelos artistas. Compreendemos que a arte, continuamente, negociaria a possibilidade de fazer sentido e sua indagação seria uma ação sobre o mundo e, portanto, sobre a vida, o tempo, o espaço, a cidade e seus aparatos. A desmaterialização do objeto de arte e o deslocamento do público não deveriam confundir ou distrair os artistas. As práticas artísticas urbanas teriam relevância ao questionar e propor novos paradigmas de relação com o mundo, com as pessoas e do artista consigo mesmo. Neste capítulo, tentamos demonstrar, através de Berlim, como os centros urbanos poderiam ser utilizados por diferentes interesses para produzir imagens a partir da própria cidade. O estudo de caso lançou a hipótese de que as práticas artísticas urbanas seriam uma forma de resistência contra as forças do capital externo que enfraqueceriam a cultura local. O modelo de cidade global encontraria oposição através da consciência e articulação política local que se materializariam nas práticas urbanas criativas. Um exemplo desta articulação política e artística pode ser observado através do emprego de cartazes para congregar pessoas em prol de uma mesma causa. Esta seria uma técnica comum para estimular as pessoas a participarem de 109 ZIELINSKI, 2006 p. 28 49 manifestações no espaço público. (Fig. 33) Nesta foto, podemos observar como alguns muros da cidade funcionariam como um quadro de avisos. Com os dizeres “habitação para todos! Ao invés de kiez de luxo”, esse mural reuniria diversos interesses coletivos, como ações pró-moradia e em desefa do direito à cidade, protestos contra a utilização de energia nuclear, e convenções locais e internacionais sobre os mais variados temas. A tensão criada pela competição de forças locais/criativas e globais/consumistas encontrariam no espaço público o cenário ideal para serem exploradas pelos artistas. Por esse motivo, se faz relevante investigar Berlim. Os artistas atuantes na cidade conseguiriam usá-la de duas formas110 particulares: como mídia, para gerar efeitos políticos/sociais, onde a arte seria um forma de protesto, e como um playground, onde a urbe seria um ambiente propício às atividades lúdicas e produtoras de subjetividade, à brincadeiras e jogos que promovem interação entre público, obra, artista e cidade. 110 Estas formas estariam ligadas, respectivamente, à arte intervencionista e à participativa já apresentadas na introdução desta pesquisa. 50 2. Arte, cidade, memória e monumento O uso da expressão jogo pelas práticas artísticas contemporâneas foi uma influência da Internacional Situacionista (IS). O jogo seria a forma lúdica de vivenciar a cidade, a possibilidade do público mudar a sua postura passiva para ativa, em meio ao zig-zag de transeuntes e carros. Esta era a crítica da IS em relação às mudanças urbanas pós-guerra, como podemos observar em Constant Nieuwenhuys: Nos bairros antigos, as ruas transformaram-se em auto-estradas, os lazeres são comercializados pelo turismo. O relacionamento social torna-se impossível. Os bairros recém-construídos apresentam dois temas dominantes: o trânsito de carros e o conforto residencial. São a minguada expressão da felicidade burguesa, esvaziada de qualquer preocupação 111 lúdica. CONSTANT, 1959 Esta crítica de Constant precederia o que Ruth Glass, na década de 1960, chamaria de gentrificação: um conjunto de transformações no espaço público que iriam enobrecer alguns bairros, através do aumento no preço dos imóveis e aluguéis, do afastamento de classes sociais menos favorecidas e do encarecimento de bens e serviços. Este processo ocorreria com ou sem a interferência do governo. A preocupação dos situacionistas também diria respeito ao tempo livre, às novas formas de lazer e entretenimento que estavam se disseminando na época. O movimento da IS teria sido uma tentativa prática de protesto contra o modelo de “felicidade burguesa” que até hoje permearia a nossa cultura e seria neste sentido que Constant, Guy Debord e seus colegas agiriam112. Para Debord, “vivemos uma crise essencial da história, em que cada ano aparece mais nítido o problema (…) da formação de uma civilização, em escala mundial”113. Observamos, através dos textos situacionista, que este pensamento estaria ligado à padronização social, à queda do valor das experiências humanas e de todas as formas de expressões espontâneas postas em cheque pelo capitalismo, sua cultura individualista e seus meios de comunicação de massa. Como afirmaria 111 Esse artigo de Constant foi publicado originalmemnte pela revista da IS. Texto extraído do livro Apologia da deriva, JACQUES, 2003, pág. 114 112 Como podemos demonstrar através de uma artigo publicado antes da criaçnao da IS: “O novo urbanismo é inseparável das transformações econômicas e sociais felizmente inevitáveis. É possível se pensar que as reinvidicações revolucionárias de uma época correspondem à idéia que essa época tem da felicidade. A valorização dos lazeres não é uma brincadeira. Nós insistimos que é preciso se inventar novos jogos.” DEBORD E FILON, 1954. Texto do livro Apologia da deriva, JACQUES, 2003, pág. 17. 113 DEBORD, 1957 em JACQUES, 2003, pág. 43. 51 Debord, “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação”114. A grande dualidade da vida moderna, de acordo com os situacionistas, seria a experiência versus a representação dela. Nisto, residiria o conceito do espetáculo. O espetáculo origaría-se na “perda da unidade do mundo”115. Hanna Arendt pensaria semelhante: “o mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite uma perspectiva”116. A mídia globalizada singularizaria os pontos de vista, não permitindo construção da realidade a partir da multiplicidade de aspectos que garantiriam a identidade do que é observado por todos. Os situacionistas pensariam a cidade através das possibilidades do acaso, da perambulação pela urbe guiada pelos impulsos emocionais que movem o transeunte. A Teoria da deriva, formulada por Debord, seria um método de estudo psicogeográfico, para compreender a interação do homem com o entorno urbano, as relações de afeto que ele seria capaz de criar no ambiente ao seu redor e seria, também, uma nova atitude, proposta pela IS, em que o citadino poderia encarar a cidade como um espaço potencializador das relações humanas, para Debord: Uma ou várias pessoas que se dediquem à deriva estão rejeitando, por um período mais ou menos longo, os motivos de se deslocar e agir que costumam ter com amigos no trabalho e no lazer, para entregar-se às solicitações do terreno e das pessoas que venham a encontrar. DEBORD, 117 1958 A IS encarava o espaço urbano como um campo participatório, um jogo. Mais que promover um novo urbanismo, a IS estava preocupada em criticar o urbanismo em curso e propor “a construção de situações, isto é, a construção concreta de ambiências momentâneas da vida, e sua transformação em uma qualidade passional superior”118. O objetivo da IS era mudar o mundo através da possibilidade de utilizar a cidade como um playground, encorajando o citadino a explorar seus limites geográficos e a ampliar suas fronteiras afetuosas na cidade. Para Debord: A única conduta experimental válida fundamenta-se na crítica exata das condições existentes, e em sua superação deliberada. Cabe deixar claro que não se pode considerar criação aquilo que é mera expressão pessoal no âmbito de meios criados por outrem. Criar não é arrumar objetos e 114 DEBORD, 2009, p. 13 Ibid, p. 23 116 ARENDT,2004, p. 68. 117 Esse artigo de Debord foi publicado originalmemnte pela revista da IS. Texto extraído do livro Apologia da deriva, JACQUES, 2003, pág. 87 118 DEBORD, 1957, em JACQUES, 2003, pág. 54 115 52 formas, mas é inventar novas leis a respeito desse arranjo. DEBORD, 1957119 A concepção de “criação”, na visão de Debord, se referiria à elaboração de novos métodos para impactar o espaço público e intervir no “cenário material da vida; e os comportamentos que ele provoca e que o alteram”120. Outro fator que impulsionaria a IS seria a espetacularização da sociedade121: a influência dos meios de comunicação de massa no modo pelo qual as pessoas se relacionam e o reflexo disto no espaço público. É importante lembrar que os EUA tinham vencido a guerra e o capitalismo se consolidava como o modelo econômico ocidental. A preocupação da IS estava ligada às novas demandas da esfera pública122, como afirma Constant: A necessidade de construir rapidamente, e em grande número, cidades inteiras, necessidade provocada pela industrialização dos países subdesenvolvidos e pela aguda crise habitacional do pós-guerra, levou o urbanismo a uma posição de destaques entre os atuais problemas da 123 cultura. CONSTANT, 1959 Parece-nos que as Atividades Artísticas Urbanas (AAU) investigariam o espaço urbano de forma semelhante a IS. Percebemos que muitas das obras e ações propostas para o espaço público estariam ligadas às atuais demandas da esfera pública e em sincronia com o contexto na qual a atividade estaria inserida. As AAU, apesar de efêmeras, teriam potencial para um alcance massivo, dependendo do local, duração e desdobramentos mídiáticos que elas reproduziriam. Observamos que, cada vez mais, as AAU seriam promovidas por instituições privadas e públicas interessadas em ganhar visibilidade e promover sua imagem democrática ao se associar a práticas de caráter coletivo. É necessário analisar se estas atividades estariam conseguindo, como pensava Debord, “inventar novas leis”124 e criar novas ambiências no ambiente urbano. Do contrário, poderiam apenas se utilizar do espaço público, como uma forma de expandir o território institucional e ampliar a área de atuação de seus 119 Extraído de JACQUES, 2003, pág. 54 Ibid 121 A espetacularização da sociedade será melhor abordada na página 19. 122 O conceito de esfera pública que adotamos para a pesquisa é o de Jürgen Habermas: ’O uso de “público” e “esfera pública” denuncia uma multiplicidade de significados concorrentes. Eles se originam de diferentes fases históricas e, em sua implicação sincrônica sobre as relações da sociedade burguesa industrial tardia e organizada sócio-estatalmente, entram em um turvo conúbio” HABERMAS, 2003, p. 13 123 Esse artigo de Constant Nieuwenhuys , foi publicado originalmemnte pela revista da IS. Texto extraído do livro Apologia da deriva, JACQUES, 2003, pág. 98. 124 DEBORD, 1957. Extraído de JACQUES, 2003, pág. 54 120 53 interesses. Uma vez que nas vias a audiência seria maior que no ambiente fechado dos museu, este seria um fator de interesse para a instituição, já que teria o poder de influênciar o público em larga escala. Percebemos que a democratização da arte no espaço público surgiria neste momento, como uma resposta à crise pela qual o espaço público passaria, conforme veremos no capítulo três. Parece-nos que os artistas veriam o mundo comum tão ameaçado que teriam uma certa urgência em expor publicamente, através das novas práticas artísticas urbanas, como tentativas de interferir nesse processo. Consoante afirmaria Jeudy, “essa insistência em acreditar na liberdade da criação artística parece encontrar seu caminho no idealismo democrático da cidadania”125. Para Jeudy, as práticas artísticas explorariam a sensibilidade e esta seria “essencialmente uma formação coletiva”126. Assim, a arte assumiria um caráter de movimento social em defesa da restauração das formas de solidariedade e identidade postas em risco pelos interesses do mercado, atrelados ao poder público, o que Jürgen Habermas iria chamar de “racionalização do mundo da vida127”. As AAU abordariam a crise no caráter público do espaço e tentariam sensibilizar o cidadão imerso no caos urbano, colocando em foco a sua própria crise. Sennett explicaria este conflito, através de uma interioridade da psique humana: E precisamente porque estamos tão absortos em nós mesmos, é-nos extremamente difícil chegar a um princípio privado, dar qualquer explicação clara para nós mesmos ou para os outros daquilo que são as nossas personalidades. A razão está em que, quanto mais privatizada é a psique, menos estimuladas ela será e tanto mais nos será difícil sentir ou exprimir sentimentos. SENNETT, 1988, p. 16 A esfera pública teria perdido seu caráter coletivo, político e se massificado. Para Habermas, ela seria o conjunto de vários indivíduos e suas individualidades oriundas “da intimidade pequeno-familiar que se comunica consigo mesma para entender a si própria”128. Para Sennett, o cidadão transitaria sem encontrar um “mundo público onde as pessoas fazem um investimento alternativo e balanceado de si mesmas”129. O ambiente impessoal dos centros urbanos desestimularia uma vida pública forte no cidadão; a formalidade e a conformidade cotidiana erodiriam as relações pessoais que prenderiam o interesse sincero das pessoas. Sennett se 125 JEUDY, 2005, p. 129 Ibid, p. 149 127 HABERMAS, 2000, 317 128 Ibid, p. 68 129 SENNETT, 1988, p. 19 126 54 aproximaria do pensamento de Habermas, pois, para o filósofo alemão, seria através das ações comunicativas que a manutenção do mundo da vida seria possível. A arte, na esfera pública, teria o desafio de conseguir ser comunicada, em meio a um ambiente caótico, de interferências e ruídos comunicacionais. A formação de coletivos, para a execução de AAU no espaço público, indicaria uma aparente vontade de deselitizar a produção artística, abrindo-a à participação popular. Isto poderia ser visto como uma resposta aos processos de exclusão social, em curso na sociedade, e aumentaria a ligação da arte com a vida coletiva. Cresceria o tom de defesa da interdisciplinaridade entre as esferas estéticas e sociopolíticas. A arte ampliaria seus objetivos e assumiria a esfera pública, de forma política. Para ser abrangente e efetiva, a arte se aproximaria do cotidiano e se materializaria como modo de vida e não como objeto de arte, com valor de mercadoria. As cidades seriam um emaranhado de informações simultâneas, onde a quantidade de estímulos visuais e auditivos teria matado a relação harmônica entre a urbe e os habitantes. O cidadão deixaria de aproveitar a potencialidade da cidade, pois, como afirmaria Jeudy, “não somente nela [na cidade] tudo é possível, mas, mais ainda, o possível estaria fundamentalmente ligado à emergência constante do casual”130. Esta sobredose informacional poderia destruir o fluxo espontâneo da cidade; fatigado, o cidadão pouco responde aos estímulos da urbe, “a supervisibilidade produz cegueira”131. Jeudy afirmaria que a supervisibilidade permitira o citadino ver a cidade de outras formas. Ao transitar na urbe e fazer trajetos cotidianos o cidadão absorveria os sígnos urbanos, mesmo não os compreendendo nem concentrando atenção direta neles, ficaria tudo guardado no seu repertório urbano e poderia ter efeitos associativos, sofrer reinterpretações socio-culturais. A percepção pela distração seria herança da modernidade e aconteceria durante o fluxo habitual dos cidadãos, como observaria Walter Benjamin em seus ensaios sobre arquitetura132. A sobrecarga de estímulos visuais nas metrópoles induziria o citadino ao cansaço e a um olhar indiferente, despreocupado, distraído, que o acompanharia 130 JEUDY, 2005, p. 108 Ibid, p. 118 132 Como veremos logo adiante. 131 55 permanentemente, como chamou Jeudy, o “olhar bobo”. Apenas algo que quebrasse a rotina seria capaz de direcionar objetivamente o olhar do cidadão133. Jeudy afirma que obras e monumentos históricos nos obrigam a captá-los, mas notamos que não só esses elementos poderiam ser absorvido coletivamente, durante o ir e vir das metrólopes, as propagandas também. Vemos que, no espaço público, as AAU iriam se impor na esfera pública, invadindo o trajeto dos transeuntes e se solidificando no inconsciente e no imaginário coletivo de direfentes formas. Observamos que nas vias públicas, ponto de interseção entre interesse público e privado, a arte poderia se destacar ao se comunicar com os demais para criticar o sistema, subverter os anúncios publicitários, interferir na paisagem urbana, quebrar o cotidiano, confundir o citadino ou se destacar, apenas, por ser uma expressão individual em um espaço coletivo. Na rua, além da capacidade de articulação política, a arte conseguiria se inserir como um signo no mosaico da cidade e, em uma perspectiva mais tradicional, poderia até representar um limite físico, como no caso do grafite e do picho, como argumenta o escritor Ruy Castro, uma vez que “indica um território fora do controle do poder público, impróprio para habitação e sujeito a marginais”134. Na veia pulsante da vida, nas ruas, a arte lidaria diretamente com as capacidades humanas de atenção e distração. Por essa razão, se faria importante examinar algumas reflexões de Benjamin a esse respeito: “desde o início, a arquitetura foi o protótipo de uma obra de arte cuja recepção se dá coletivamente, segundo o critério da dispersão. As leis de sua recepção são extremamente instrutivas”135. Para Benjamin, a arquitetura seria absorvida durante o fluxo das pessoas e teria uma dupla forma de recepção136. 133 Sobre o “olha bobo” Jeudy afirma: “O olhar indiferenciado lançado sobre as coisas da cidade nos coloca em um estranho estado de recepção, um estado de disponibilidade que permanece fora do tempo. Contrariamente, os símbolos representados pelas obras, pelos monumentos, estão ali para obrigar nosso olhar a captá-los. Eles ordenam o campo de visão, impõem objetivos a qualquer deambuação, oferecem-se como rumos de visita. O que, então, induz a expectativa indirefente (ou olhar bobo) é o nascimento abrupto de um olhar suscetível de ser captado de maneira inesperada, dentro do tempo e do espaço ordenado da cidade”. JEUDY, 2005, p. 120 134 Folha de São Paulo, caderno Opinião, publicado em de 27/04/2011 135 BENJAMIN, 1996, p. 193 136 Benjamin explica que: “Os edifícios comportam uma dupla forma de recepção: pelo uso e pela percepção. Em outras palavras: por meios táteis e óticos. Não podemos compreender a especificidade dessa recepção se a imaginarmos segundo o modelo do recolhimento, atitude habitual do viajante diante de edifícios célebres. Pois não existe nada na recepção tátil que corresponda ao que a contemplação representa na recepção ótica. A recepção tátil se efetua menos pela atenção que pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria 56 Nossa investigação passa pela arquitetura, por esta ser a arte do espaço público por excelência. Benjamin afirmaria que o estudo dela seria essencial para “qualquer tentativa de compreender a relação histórica entre as massas e a obra de arte”137 e que o poder do Estado se afirmaria, através dos monumentos e construções arquitetônicas. A história da arquitetura seria mais antiga que qualquer outra arte, já que a necessidade de morar precediria à produção de signos culturais. Benjamin associou o declínio da arquitetura e da aura ao êxito do cinema e a sua forma de recepção coletiva pela distração: “para as massas, a obra de arte seria objeto de diversão, e para o conhecedor, objeto de devoção”138. A distração seria o oposto da atitude de recolhimento característica da obra de arte. Isto acarretaria no no empobrecimento das experiências em prol da simulação delas, um conflito entre o mundo da criação e o mundo da imaginação, entre a recepção tátil e a ótica. A imagem teria se tornado uma articulação do pensamento139 por conseguir comunicar mais através do que esconde que daquilo que mostra. A interpretação de uma fotografia se daria na imaginação, este seria o pensamento de Vilém Flusser. Poderíamos dizer que a arquitetura funcionaria semelhantemente, através dos monumentos, ao transitarem, paradoxalmente, entre lembrança e esquecimento. O monumento seria uma imagem; as memórias históricas preservadas pela arquitetura seriam a prova física dos interesses de dominação que as gerações passadas tiveram vontade de perpetuar ao longo do tempo, como observaria Benjamin; Cada época não apenas sonha a seguinte, mas, sonhando, se encaminha para o seu despertar. Carrega em si o seu próprio fim e - como Hegel já o reconheceu - desenvolve-o com astúcia. Nas comoções da economia de mercado, começamos a reconhecer como ruínas os monumentos da burguesia antes mesmo que desmoronem. BENJAMIN, 1929 em KOTHE, 1991, p. 43 A relação entre monumento e esquecimento, também, é abordada por Andreas Huyssen. Esta seria a tática alemã para continuar o curso de sua história sem a sombra assustadora do recente passado, como já comentamos no primeiro capítulo. A monumentalização alemã produziria mais esquecimento do que preservação do seu próprio passado, seria esta a opinião de Huyssen: recepção ótica. Também ela, de início, se realiza mais sob a forma de uma observação casual que de uma atenção concentrada”. BENJAMIN, 1994, p.193 137 BENJAMIN, 1996, p. 193 138 Ibid, p. 192 139 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. No capítulo três voltaremos a este tema. 57 Quanto mais monumentos, mais o passado se torna invisível, mais fácil se torna esquecer: a redenção, portanto, pelo esquecimento. De fato muitos críticos descrevem a atual obsessão da Alemanha por monumentos e memoriais como uma tentativa nada sutil de Entsorgung, a exposição em público de lixo histórico radioativo. Huyssen, 2000, p.44 Ao passar dos anos, em prol do projeto de geração de memórias e imagens das cidades para seus povos, os governantes escolheriam e construiriam monumentos, obras arquitetônica, artísticas e também dariam nomes às ruas, aos parques e às praças. Como afirmaria Jeudy, a cidade já seria, por si só, uma obra, um “cenário em eterna gestação”140, de autoria do Estado. Assim, “a escolha das obras de arte se traduz pela maneira de pensar de outra maneira a cidade, não por causa da preocupação com seu embelezamento, mas muito mais como demonstração pública de sua representação”141. Entendemos que a representação, através de monumentos e escolhas estéticas do Estado, embora oficial, não seria necessariamente a expressão pública, crítica e política da população que residiria nas cidades. A representação oficial poucas vezes coincidiria com o desejo de representação popular e com a forma como o povo desejaria se ver representado em sua própria cidade. 2.1 Embelezamento Estratégico Através de Benjamin, percebemos que uma análise dos monumentos e obras públicas de uma cidade permitiria apontar quais teriam sido as decisões políticas relevantes para entrarem na história e memória da cidade. Poderíamos, também, compreender quais os planos de desenvolvimento urbano teriam sido traçado para ela e, ainda, quais objetivos esses planos buscariam atingir: A verdadeira finalidade das obras de Haussmann era tornar a cidade segura em caso de guerra civil. Ele queria tornar impossível que no futuro se levantassem barricadas em Paris […] Haussmann quer impedi-Ias de duas maneiras: a largura das avenidas deveria tornar impossível erguer barricadas e novas avenidas deveriam estabelecer um caminho mais curto entre as casernas e os bairros operários. Os contemporâneos batizam esse empreendimento de "embelissement stratégique" BENJAMIN, 1991, p. 42 Percebemos que as formas de expressão pública presentes em uma cidade poderiam apontar o grau de insatisfação da população em relação às suas próprias 140 141 JEUDY, 2005, p. 118 Ibid 58 condições sociais e em relação ao governo. Não só isso, mas, como haveria dito o pichador paulista Djan Ivson Silva, em entrevista por e-mail, demonstrariam o grau de “domesticação” das massas e de “eficiência” da polícia, diante da afronta urbana. Se o “embelezamento estratégico” teria sido usado por Haussmann, urbanista de Paris, para evitar rebeliões contra a corte, poderíamos fazer uma analogia atual e dizer que, de forma inversa, esta tática também seria adotada pelos artistas de guerrilha142 que se utilizariam da cidade, como forma de expressão e rebeldia contra os aparelhos de dominação do Estado e da sociedade. Talvez, “embelezamento” não seja a palavra mais adequada para utilizarmos, já que o conceito do Belo não estaria em questão, mas a usaríamos pelo teor estético do termo. Em 2007, o pichador Djan Ivson Silva e seus amigos atacaram um dos pavilhões da Bienal de São Paulo; mesmo assim, eles foram convidados a participar da edição de 2010, mostrando vídeos das ações do seu grupo e expondo reproduções dos tags (nomes pelos quais os pichadores assinam). Aceitar participar institucionalmente foi alvo de críticas, já que a ação de 2007 gerou a prisão, por 54 dias, de uma das pichadoras do grupo. As críticas também foram contra a instituição, como a revista Veja anunciou: “Bienal abre as portas para o vandalismo que pretende ser arte.” 143 (Fig. 34) Na abertura da Bienal de 2010, o protesto contra uma obra que utilizava animais vivos, do artista Nuno Ramos, levou o grupo a apoiar a manifestação em direito dos animais. Na obra, Djan Ivson pichou: “Libertem os urubu”144. Quanto à ação, o pichador afirmou: A questão é saber diferenciar reconhecimento existencial de domesticação, e tanto pichadores como grafiteiros têm que tomar cuidado para não serem cooptados e perderem sua essência transgressora e libertária. O reconhecimento estamos recebendo pelo movimento é apenas existencial. Não queremos espaços autorizados na rua, acordos, nem apaziguamento com prefeituras e moradores, não estamos dispostos a abrir mão de nada em troca de reconhecimento. Ao contrário, queremos reconhecimento pelo que somos na essência, sem tirar nada dela, mesmo que não agrade a todos. E a criminalidade dessa atividade perante a lei é que mantêm nossa 142 Apesar de já termos abordamos, no capítulo anterior, a objetividade das ações artísticas ilegais em Berlim, ainda não havíamos utilizado essa nomeclatura. O artista de guerrilha seria, também, seria um praticante da arte intervencionista, conceito apresentado na página 15. Vamos adotar essa expressão “artista de guerrilha” para designar os indivíduos que se expressam publicamente de forma controversa e ilegal. Não vamos aqui colocar em questão o verdadeiro engajamento político destas pessoas e de suas práticas ou tentar classificá-las dentro do sistema da arte. 143 Veja de 06/05/2010 http://veja.abril.com.br/noticia/celebridades/pixo-arte-pode-escrever-ou-melhorpichar checado em 04/02/2011. 144 Djan Ivson explicou que não que não deu tempo de acabar de escrever a frase completa, que seria: “libertem os urubus e os pichadores de BH”, em referência a um grupo preso em Minas Gerais na mesma época. 59 legitimidade transgressora subversiva e libertária. A arte tem que estar sempre em descompasso com a lei, se não perde a graça, vira sistema, 145 propaganda pro Estado, e coisas do tipo. Silva, 2011 A pesquisa não faz apologia às práticas ilegais, como o picho, mas observa a legitimidade destas atividades, uma vez que são praticadas por jovens de periferias em várias cidades do mundo. O maior monumento construído pela modernidade teria sido a miséria. Os bolsões de pobreza, que cercam os centros urbanos, teriam proporções monumentais. Por essa razão, entendemos que o grafite e o picho representariam a estética urbana das cidades, seja de forma profissional e absorvida pelo mercado ou mesmo amadoramente, mas de forma autêntica e orgânica. A arte na rua vai de encontro às tentativas de racionalizar o mundo da vida. Como explicaremos no capítulo três, através de Habermas, as práticas do mundo sistêmico, regrado pelo capital, buscariam colonizar o mundo da vida, mercantilizá-lo e burocratizá-lo. Habermas nos auxilia a perceber que as escolhas ligadas à tecnologia e ao desenvolvimento diriam mais respeito à qualidade das associações humanas, que seriam estabelecidas na sociedade, que à competição homem versus máquina e a fantasmagoria de ver sua força de trabalho ser substituída por ela. A tensão entre esses dois mundos seria constante. Haveria uma disputa de territórios para atuação e de influência das forças características de cada mundo: forças consumistas e instrutivas versus forças criativas e livres, como já demonstramos na investigação em Berlim. O atual planejamento urbano de Berlim tenderia a controlar áreas estratégicas da cidade, inviabilizando a habitação dos moradores mais antigos, através do aumento do custo de vida, bens e serviços. O mundo sistêmico moldaria o espaço público para a elite dominante, em função dos seus interesses, funcionalizando o espaço urbano para a minoria da população. Além desta exclusão física, onde as classes menos privilegiadas seriam, cada vez mais, afastadas para as periferias e teriam limitado seus espaços de circulação146, a exclusão seria também de forma política e ideológica, fazendo com que as massas não participem das decisões na cidade. Para Habermas, no espaço público, os interesses privados encontrariam-se atrelados ao poder do Estado. E isto aconteceria com permissão do próprio poder público, como notamos no projeto de lei 145 Entrevista concedida por e-mail no dia 22/04/2011. Voltaremos a falar deste grafiteiro que esteve envolvido em dois ataques à Bienal de São Paulo, em 2008 e 2010. 146 Este limite se daria com a criação de espaços semi-públicos (locais privados, porém de livre acesso) e espaços semi-privados (locais públicos, porém de acesso limitado), 60 cidade limpa, que foi aplicado em São Paulo e vem servindo de modelo para outras capitais brasileiras, conforme notamos através da transcrição de uma parte do projeto de sustentação da Lei: A estratégia é fazer com que a mídia exterior migre para o mobiliário urbano.- composto de uma série elementos de utilidade pública como abrigos de transporte coletivo, relógios (…) e lixeiras. A intenção é garantir à administração municipal o uso do espaço público em relação à publicidade, para que esta seja efetivamente ordenada também de acordo 147 com o interesse público. As tranformações na comunicação e o crescimento de novas econômias globais148 impulsionariam a criação de novas centralidades, mudariam as relações entre centro e periferia e afetariam a idéia de pertencimento, identidade e território no espaço público. Com o inchaço das urbes149, as periferias seriam deslocadas para áreas ainda mais distantes do centro. Saskia Sassen, ao desenvolver o conceito de cidade global, falaria em novas e multi-centralidades, face às possibilidades de trabalho remoto e o crescimento das corporações internacionais. Os limites sociais, quanto à circulação de pessoas na cidade, seriam impostos por empresas privadas, que estenderiam seu domínio aos espaços públicos, e pelo Estado, com a aplicação de regras arbitrárias no uso de parques, praças e áreas de lazer, por exemplo. Isto reduziria o contato entre diferentes classes sociais, aumentando o isolamento dos indivíduos em seus mundos e, como notaria Sennett, contribuiria “na ‘mistificação’ da vida material em público, especialmente em matéria de roupas, causadas pela produção e distribuíção de massa”150. Quando a cidade é usada pelas AAU, a arte incorporaria uma relação direta com o público e quebraria com a barreira social que isola os indivíduos. As AAU se utilizariam da cidade, de seus personagens e dos elementos ali encontrados, como discurso. A obra se faria de um encontro acidental. Imediatamente, ao descobrir a obra, o público, também, completaria o seu sentido. A condição de passividade da arte seria colocada de lado, ela teria se deslocado até o público para interceptá-lo. Parece haver uma postura social nisto, espectador e obra interagiriam, objetiva e intersubjetivamente, no mesmo espaço. Para o artista, a obra residiria no 147 www.prefeitura.sp.gov.br/portal/a_cidade/noticias/index.php?p=10200 ( Acesso 01/09/10 ) SASSEN, 1991 em OBRIST, 2001 149 No ano de 2007, pela primeira vez na história, a população mundial urbana haveria ultrapassado a rural, de acordo com o site oficial da Rádio das Nações Unidas: http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/detail/155399.html 150 SENNETT, 1988, p. 34 148 61 espectador e naquele lugar específico. Devido às circunstâncias variáveis, cada ação seria única, mesmo se repetido o seu procedimento. Outra vez, podemos citar Free zones151 (Fig. 6), realizada em Copenhagen, Gothenburg, Budapeste e Istanbul. A artista Frida Ulrik-Petersen afirma que obteve reações diferentes, porém, as placas sinalizadoras nos quatro países “fizeram as pessoas parar e prestar atenção e pensar sobre a sua cidade e os costumes e culturas nos quais estão inseridos”152. Que ferramenta ela teria a disposição para poder fazer tal avaliação? Parece, em geral, haver uma preocupação de origem político-social que motivaria o artista a se contaminar com o mundo externo e a formular propostas neste sentido. Porém, a realização de uma AAU iria além do que haveria sido previamente pensado pelos artistas, resultando em uma obra experimental, cujo produto final seria o próprio processo de executá-la, se afastando da idéia da arte produzir um objeto físico. O foco seria na dinâmica colaborativa e participatória da experiência social coletiva que quebraria as fronteiras entre artista e público, profissionais e amadores, produção e recepção153. Um exemplo disto, seria knotland, um projeto concebido por um escritório de arquitetura com sede em Berlim (Fig. 35). Um plataforma móvel para apresentação e produção artística, composta de um trailer e pilares infláveis que já teria sido montada no espaço público de Berlim, Bucareste e Varsóvia. A estrutura possibilitaria desenvolver workshops, projeções de vídeo, exposições, festas. Pelo caráter nômade, teria um dormitório, cozinha e um transmissor de rádio. O projeto se propõe como um novo modelo de interação social, criando formas de tornar o espaço público útil e produtivo.154 Os artistas seriam convidados e, também, anfitriões; durante o projeto, viveriam na estrutura móvel. As atividades propostas seriam variadas, atendendo a adultos e crianças. Durante as atividades noturnas, bebidas seriam vendidas por um preço justo. A tentativa de reabilitar a cidade, pela arte, poderia geraria mudanças na questão da autoria. Muitas vezes, uma obra tem autoria desconhecida, por vontade do seu autor, por se tratar de uma ação ilegal, executada sem a devida autorização governamental que oficialmente controla e gerencia as atividades públicas, como as 151 IS Atividade já mencionada na introdução da pesquisa na página 15. Entrevista realizada por e-mail, no dia 26/04/2011 153 BISHOP, 2006, p. 10 154 Informação colhida pelo site: www.knoeland.net 152 62 ações do grafiteiro Banksy que, mesmo tendo a identidade desconhecida, obteve reconhecimento mundial, com um documentário que concorreu ao Oscar de 2011. Às vezes, o anonimato seria o resultado da própria AAU , como defende Jeudy, já que “a arte de viver, ao se tornar simplesmente arte, aniquilaria a distinção entre o ator e o espectador. O inventor, o criador e aquele que experimenta suas criações constituiriam o mesmo indivíduo.”155 Nas novas práticas artísticas urbanas, não existiria hierarquia, haveria uma certa igualdade, entre os participantes. O poder de criação não seria exclusivo do artista. Os participantes exerceriam suas capacidades criativas durante a dinâmica, tanto quanto o artista exerceria ao pensar a AAU, a exemplo desta ação, em forma de jogo, realizada em Berlim pelo, já mencionado, projeto Knotland. (Fig. 36) Que importância teria, para o cidadão, conhecer a autoria de uma obra na via pública? Que significado teria saber se aquilo seria arte? Observamos que as AAU, principalmente as não-institucionalizadas156, não viriam com uma explicação nem teriam pessoas dispostas a fazerem a intermediação entre os transeuntes e as partes da atividade. Os objetos dispostos, ações, no espaço público, não disponibilizariam seu release in loco, não teriam uma etiqueta informando o material usado, o nome do artista e ano em que a aquela obra haveria sido produzida. A autoria não declarada dificultaria a interpretação do citadino e o estimularia a buscar pistas que o levassem a descobrir a realidade que presenciaria. A principal ferramenta para satisfazer sua curiosidade, em busca da “verdade”, seria a interação social. Do contrário, admitiria aquilo como uma imagem lúdica, algo incompreensível, mas que o captou por alguns instantes e teria gerado subjetividades a respeito da realidade. Como nesta atividade de Matthias Wermke e ADAM, ao se deixarem flutuar a deriva, nas águas do rio Spree. (Fig. 37) Os elementos das vias se caracterizariam pela funcionalidade. Um objeto largado na cidade perderia a sua historicidade e o encontro com ele levantaria uma dúvida; seria aquilo acidental ou proposital? Haveria alguém o manipulado? Algo que fugiria do normal, como duas pessoas dormindo em colchões flutuantes, também levantaria a mesma questão para o transeunte; seria aquela atitude espôntanea, intuitiva ou racional, programada e manipulada por algum tipo de interesse, mesmo que artístico? 155 156 JEUDY, 2005, p. 139 Que seriam executadas através de alguma instituição pública ou privada de arte. 63 Estaria Jeudy correto ao pensar que as novas práticas artísticas urbanas seriam “um processo de criação que vale por si mesmo”157? Mas, afinal, qual seria o papel do artista? Teria ele um papel público e social a cumprir na arte contemporânea? Essas seriam apenas algumas questões que emergiriam ao tratarmos de arte e linguagem na cidade. Roland Barthes, em A morte do Autor, a respeito da autoria diz: “uma vez o autor afastado, a pretensão de «decifrar» um texto torna-se totalmente inútil. Associar um autor a um texto é impor um mecanismo de segurança, é dotá-lo de um significado último, é fechar a escrita”158. Mesmo Barthes tendo se referido ao autor-escritor, poderíamos transpor seu pensamento para o contexto do autor-artista. Seria a presença do artista limitadora das reações espontâneas dos cidadãos? A presença do artista, ao lado de uma AAU de sua autoria, poderia inibir a participação dos espectadores ou fazê-los ficarem subordinados a uma autoridade. O público teria que perguntar o que poderia ou não no espaço público. Esta seria uma forma de “fechar” a obra, impedindo desdobramentos imprevisíveis que fariam das novas AAU tão dinâmicas e espontâneas, como esta ação de Oliver Bishop onde as pessoas, para participarem, teriam que se sentir a vontade. (Fig. 38) Embora nem todos prezem por ele, o anonimato, nas práticas urbanas ilegais (de guerrilhas) parece-nos, uma maneira de auto-proteção do artista. Assim é para Wermke que também desenvolveria trabalhos em grafite, porém se negaria a revelar o nome pelo qual assinaria: “sim, tenho um tag, mas para mim o grafite só é interessante quando feito sem permissão, no espaço público. Nunca direi o que assino, pois a cadeia é um lugar muito chato para mim”159! O artista se preocuparia em separar o trabalho que expõe em instituições, feito com o registro de ações no espaço público, do trabalho feito a partir de sua prática em campo, ilegal, onde demarca os espaços penetráveis na cidade. Wermke, que este ano se formou em artes plásticas, exploraria os limites no espaço público e a possibilidade de criar abrigos dentro dele. Nascido na Berlim Oriental, sempre morou perto do muro e suas memórias de criança remeteriam bastante às situações de fuga que presenciou. As pessoas tentavam chegar na Berlim Ocidental de qualquer jeito e eram capturadas; “todas essas pessoas 157 JEUDY, 2005, p. 139 BARTHES, 1987 159 Entrevista realizada por e-mail, no dia 10/05/2011. 158 64 cruzaram a fronteira. Mesmo que a tentativa de vôo tenha falhado, no momento do vôo eles teriam sido realmente livres. Este momento é importante para mim, para o meu trabalho”160, afirma o artista. Fronteira e limite seriam as temáticas de Wermke. Wermke tinha 11 anos quando o muro caiu e a primeira diferença que percebeu, ao cruzar para o lado Oeste, foram as cores vibrantes que o muro era grafitado. (Fig. 39) Como já dito anteriormente, as constantes guerras haveriam marcado o espaço público como um território para batalhas ideológicas e, por essa razão, as práticas artísticas urbanas seriam tão marcantes em Berlim, como nestes dois exemplos na Berlim Oriental. (Fig. 39a) As formas de expressão, através do picho e de pôsteres seriam presentes em ambos os lados. Porém, no lado Oriental, a repressão contra estas práticas seria bem maior que no lado Ocidental, tanto que os próprios guardas RDA tentariam limpar a face Ocidental do muro. (Fig. 39b) Por essa razão, o muro era acinzentado no lado Oriental e a descoberta de um muro colorido teria sido uma surpresa de Wermke. Foi vendendo partes dele para turista que ele conseguiu ganhar seu primeiro dinheiro ocidentalizado. O artista afirma que os fragmentos de concreto coloridos vendiam, particurlamente, melhor161. No ano seguinte, aos 12 anos de idade, ele iria comprar sua primeira lata de spray. Curiosamente, Wermke não ser levaria às exposições o seu trabalho em grafite. O artista se preocuparia em não chamar atenção para esta sua atividade, para continuar atuando em liberdade. Diferente de Wermke, o grafiteiro paulista Djan Ivson Silva não esconde a sua identidade. Mesmo depois de participar, oficialmente, da Bienal de São Paulo 2010, ele seria contra a legalização da atividade e afirmaria que este reconhecimento só teria acontecido por eles terem sido convidados, em 2009, pela Fundação Cartier Paris. Para Djan Ivson: A Pixação Brasileira é o que tem de mais puro e verdadeiro na arte contemporânea mundial. Recusar a existência de um fenômeno como esse seria hipocrisia do circuito de Artes. Afinal, o Pixador é um dos poucos artistas que não tem pretensão financeira para deixar sua obra pela cidade, pelo contrario, ele investe arriscando sua integridade física e jurídica. Colocando sua vida no limite, com a simples intenção de deixar sua marca, isso é ser Artista. Esse tipo de Artista que merece o reconhecimento das bienais, museus e galerias. Não precisamos deixar a ilegalidade das ruas para receber esse tipo de reconhecimento, pois nosso único compromisso de ser ilegal é com a rua, nesses espaços institucionalizados o reconhecimento que a pichação vai ter é apenas representativo, de uma 162 ação que se legitima na rua. Silva, 2011 160 MAI e WICZAK, 2007, p. 95 Ibid 162 Entrevista concedida por e-mail no dia 22/04/2011. 161 65 As AAU, mesmo quando institucionalizadas, seriam uma provocação imprevisível de resultados pouco controláveis. Para Jeudy, a democratização da arte no espaço público seria uma alternativa, tanto para a comunidade artística como para as instituições: “o fato de a arte poder ser compreendida como uma arte de modo de vida é fruto de uma crença cuja idealização parece satisfazer tanto ao conjunto dos artistas quanto aos gestores do urbano”163. Não ficaria claro se Jeudy estaria criticando ou apontando para uma característica positiva das AAU. Seria importante atentar para a institucionalização das AAU e avaliar se a ação dos artistas seria submetida a algum tipo de limite, imposição ou censura, por parte da instituição que a promoveria. De acordo com Jeudy, quando “o museu é transformado em obra arquitetônica, até mesmo artística, impõe sua própria soberania estética, da mesma maneira que um monumento”164. Ao se utilizar de um espaço de origem pública, a arte teria algum compromisso com o carater público do lugar? ou ela estaria apenas usando o espaço “emprestado” para estender seu território físico e ideológico, através da Arte? A intitucionalização das AAU seria, cada vez mais, frequente. Por essa razão, se faz necessário criar parâmetros para entender como os poderes das instituições poderiam se instaurar no espaço público, através das obras. Apontar a relevância nas práticas artística urbanas contemporâneas teria como objetivo tanger as principais questões que se confrontam no espaço público urbano: interesse público versus privado; valor da experiência versus a simulação dela; a arte versus a racionalização da vida. Assim, tanto artistas como críticos poderiam criar mecanismos coerentes de avaliação. 2.2 A institucionalização do espaço público As questões sobre o grafite ajudariam a compreender as formas de interações possíveis entre a cidade e seus habitantes. Os grafiteiros, à deriva, se arriscariam para questionar o público, o privado e desafiar os limites da cidade, como Wermke, na ponte Manhattan, em 2007. (Fig. 40) Para o artista, certos elementos urbanos aguçariam sua curiosidade por uma nova perspectiva; 163 164 JEUDY, 2005 p. 138 Ibid, p. 121 66 Olho da rua para o ponto mais alto de uma ponte e tento pensar como seria a vista de lá, olhando para baixo. Não posso parar de pensar sobre esses lugares. O que me impede de ir investigá-los? Quem determina os lugares que posso ou não entrar? Uma placa dizendo “não ultrapasse”? uma câmera de vigilância ou um guarda segurança? Para mim, é importante decidir essas coisas sozinho. Meu trabalho é sobre cruzar fronteiras intencionalmente, e considerar as possíveis consequências. Tento superar 165 meus medos para poder descobrir algo novo. WERMKE, 2007 Parece-nos que o picho seria a primeira estética pública a se rebelar contra os aparelhos de dominação notados por Benjamin e Habermas. No espaço público, hoje, as possibilidades de expressão crítica e política teriam se multiplicado e as questões de interesse coletivo poderiam ser observadas através de elementos estéticos e processuais. À arte, competiria a criação de vivências na cidade, jogos e prazeres lúdicos, como defendiria Debord e a IS. Gostaríamos de apresentar algumas formas de intervenções que observamos em nossa pesquisa que teriam relevância para argumentarmos que o grafite haveria contribuído para o desenvolvimento de práticas urbanas mais efêmeras e menos “agressivas” e “perigosas”. O arranjo de objetos variados no espaço público e a alteração de elementos já presentes nele seriam o reflexo de uma nova forma de viver a cidade, aproveitando as brechas criativas para que ela fosse uma espécie de playground urbano. Um exemplo disto é o movimento, aparentemente iniciado em Londres, Guerrila Knitting que através de crochê, cobre elementos da paisagem urbana; (Fig. 41) Juliana Santacruz Herrera, em Paris, cobriria os buracos da cidade de forma poética e estética. (Fig. 41a) Ao transpor a arte para o espaço público e misturá-la a tantos outros signos culturais, a arte, inevitavelmente, esbarraria na questão da legitimidade. Como se daria a legitimação da arte no espaço público? O fato de surpreender os transeuntes em seu cotidiano e interferir na sua rotina, através de dispositivos estetéticos e processuais, conseguiria gerar outras subjetividades na esfera pública? Percebemos que atribuir às práticas artísticas urbanas um valor cultural e social é um processo local, ligado aos atores socias que por ali transitam, aos seus contextos e às suas significações. Em 2006, o berlinense Wermke nadou de uma margem a outra de um rio. Ação seria bastante natural se acontecesse em uma cidade que as pessoas tivessem hábito de nadar em água doce. O rio escolhido por Wermke foi o Spree, na altura do Reichstag, o parlamento alemão. (Fig. 42) 165 MAI e WICZAK, 2007, p. 102 67 A contextualização é vital para a AAU e quanto mais informações se tem a respeito do lugar onde ela se realiza, mais crítico e coerente será o julgamento daquela ação. Através de três momento distintos, o atual, o pré-nazista e o pósguera, percebemos a importância do Reichstag como um símbolo nacional (Fig. 43). Tanto o embrulhamento dele, em 1995166, como a ação de Wermke em 2006 dialogaria com o passado e a memória coletiva do povo alemão. Outro exemplo que poderíamos dar para ilustrar a relação existente entre a compreensão de uma AAU e a sua contextualização seria a sequência de intervenções do grafiteiro Banksy no território da Palestina. (Fig. 44) Quando os detalhes sobre essas imagens são conhecidoss, elas passariam a fazer mais sentido. Informações, como o seu lugar específico, as referências apresentadas e o contexto histórico que fez com que Israel levantesse um muro de, aproximadamente, 25 metros de altura, isolando o território Palestino, seriam essencial para compreender e avaliar o trabalho do grafiteiro. Um aspécto importante que não podemos desconsiderar é este duplo efeito da imagem que seria uma espécie de “armadilha” da cultura visual. Quando as cidades são usada pelas expressões artísticas para produzir imagens, elas levantariam uma bandeira socio-política, mas, ao mesmo tempo, a reverberação daquilo em imagem, poderia ser tranformado em capital. Assim, as cidades seriam grandes vitrines para os artistas. Ao mesmo tempo que Banksy demonstra apoio à causa palestina, ele se utiliza dela para associar seu nome a algo imaterial. Para o mercado de arte, não bastaria o artista ser bom naquilo que faz, ele teria que se tornar um label, ter capacidade de atingir milhões de pessoas e isso Banksy soube fazer muito bem, se tornando muito popular. Uma AAU realizada em várias cidades vai ser diferente em cada uma delas, como foi a ação de Lourival Batista. (Fig. 45) Varal foi apresentada pela primeira vez em 2003, na cidade de Recife, como parte do SPA das artes, promovido pela prefeitura local. A cidade é onde Batista morou a maior parte de sua vida e onde se deu a concepção de sua obra que depois iria viajar por sete outras cidades: O Varal é uma intervenção urbana natural para as pessoas que moram no bairro de Santo Amaro, no Recife. Este bairro fica na marginal de uma grande avenida, Agamenon Magalhães, e lá as pessoas se apropriam do espaço urbano para secar as roupas. Vários varais modificam a paisagem urbana com intuito basicamente funcional. A reutilização desta atitude 166 Obra de Christo e Jeanne-Claude comentada por Huyssen na página 36 desta pesquisa. 68 estética despretensiosa dos moradores, dimensionando-a de forma 167 gigantesca num lugar inusitado, é o mote inicial desta obra. Depois de 2003, o artista levou a ação para São Paulo, Salvador, Vitória, Rio de Janeiro e, ainda, Weimar, na Alemanhã, Porquerolles, na França e Porto, em Portugal. O artista afirma que "quando nossas ações não agridem a vida coletiva, elas se tornam ocupações funcionais."168 O objetivo era que a ação discutisse as relações entre vida privada e espaço público; contudo, as interpretações teriam ido além do que foi a proposição do artísta. Batista acredita que cerca de 70% das pessoas interpretaram o varal como um protesto e prossegue sobre sua experiência: Em todos esses lugares, causou estranhamento no público passante, levando-o a questionamentos muitas vezes restritos ao circuitos de galerias e espaços culturais. A obra e a cidade interagem mais ainda com a coleta de roupas usadas que é feita a partir de uma panfletagem no próprio lugar pedindo doações aos seus habitantes. Esta ação inclui um significado de memória, pois as pessoas geralmente doam roupas que têm um valor especial em sua historia de vida. As ações do varal de Batista foram todas comissionadas, por instituições de arte, feitas com apoio de verba pública ou privada169, embora o artista não limite suas ações a esta condição. Muito pelo contrário, sua produção se caracteriza por ações extremamente arriscadas que exploram os limites entre a arte e o crime. Depois de devidamente executadas e registradas em fotografias e vídeos é que são aceitas para serem expostas em espaços de arte institucionalizado. Em Artrafic : Le collier du Mozambique, de 2006, o artista vendeu, em uma galeria, colares adornados de um pequeno pedaço de haxixe como um pingente e apresentou em vídeo todo o processo de como trouxe a droga da Europa para o Brasil, além de ter distribuído planfletos explicativos de como fumar o entorpecente. “Parangolé”, também de Batista, nos ajudaria a compreender melhor a relação subversiva da arte. A ação-roubo realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 2002, foi apresentada como uma vídeo-instalação no Festival Performance Arte Brasil, em 2011, também promovido pelo MAM. Nela, Batista 167 Lourival Batista, 29/06/2008. Texto publicado no Blog do CorpoCidade- debates em estética urbana, no Varal foi apresentada na cidade de Salvador, em 2008 http://corpocidade.blogspot.com/2008_11_01_archive.html último acesso em 12/04/2011 168 Em uma matétia publicada pelo jornal soteropolitano A tarde, no dia 30/10/2008. Link para matéria: http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=997063 último acesso em 12/04/2011 169 Cabe esclarecer que a questão da institucionalização da arte, em Berlim, não foi aprofundada. A pesquisa, apenas, constatou que os enormes murais de grafite que ocupam àreas de interesse social e econômico da cidade seriam comissionadas pela prefeitura e executadas por artistas atuantes da cena local. 69 aparece saindo do MAM vestindo o parangolé e vai passear pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, “desmumificando” a obra de Hélio Oiticica. Depois, um recado é deixado na secretária eletrônica do artista, no qual uma representante do museu ameaça chamar a polícia se ele não devolver a peça ao MAM. O vídeo encerra com a devolução do Parangolé e com imagens do artistas e pessoas cheirando um pó branco, sobre fotos de Oiticica. As ações de Batista demonstram o carater contraventor que, por vezes, caracteriza a arte contemporânea. A arte de rua passaria a frequentar o circuito fechado de museus e galerias e estes, por sua vez, passam a provomer, através de seus projetos curatoriais, práticas artísticas na rua, no espaço público. Assim, seria cada vez mais comum que práticas subversivas, ilegais, sejam institucionalizadas por museus e galerias. O professor Zielinski nos ajudaria nesta investigação: Os movimentos Avant-Garde não são absorvidos pelo sistema logo no início. Isso só acontece quando eles se movem na direção do sistema, não têm cuidado de manter a resistência em crescimento e se oferecem para 170 serem sugados. É um caminho difícil e que tem que ser escolhido. Perguntamos ao Professor de que adiantaria legitimar a arte de rua, nos espaços expositivos institucionalizados, se um artista ainda seria passível de prisão se tentasse expressar a sua arte em um espaço público como a rua: Isso não tem nada a ver com arte, isso é relativo à economia. É um problema de mercado, porque quando você coloca o grafite no museu, você quer fazer duas coisas: quer fazer daquilo um produto, criar algo que seja vendável e comprável. E lógico, muito próximo a isso, você quer aproveitar, ao máximo. essas “dimensões revolucionárias” para fazê-las mais suavemente consumíveis. Isso não é apenas com street art, isso é um 171 fenômeno que pode ser observado principalmente no século XX. Parece-nos que o ponto de vista de Zielinski seria de que tão logo o subversivo é assimilado pelo tradicional, o discurso político seria enfraquecido e esta não seria, simplesmente, uma opção estética e sim uma atitude que visaria o mercado de arte. A íntima ligação entre arte e economia é citada pelo professor, ao exemplificar a existência de um departamento na UdK, o de comunicação no contexto social e econômico, que se preocuparia, apenas, em se aplicar a comunicação criativa para fins econômicos: Eles tem um área de estudos chamada estratégia, onde trabalham com esse tipo de coisa, pensam em como podem usar as teorias do situacionista 170 Em entrevista concedida a autora desta pesquisa, realizada no dia 21 de Maio de 2010, na Universität der Künste Berlin (UdK). 171 Ibid 70 Guy Debord e transformar isso num processo estratégico que dá suporte à economia consumista. Isso é exatamente o que permanece acontecendo 172 com a arte de rua, desde Basquiat. A pesquisa em Berlim nos indicaria que a arte passaria a ser apenas mais um tipo de produto de consumo e a sua produção estaria atrelada aos modos de produções capitalistas e à cultura de massa. Zielinski corrobora Huyssen, de acordo com o seu livro Memórias do modernismo, segundo o qual os movimentos das vanguardas de 1960, tinham no combate aos museus uma constante; mas o final dessa batalha teria sido quando a arquitetura pós-moderna passa a dar forma aos novos prédios dos museus. Os edifícios, por si só, já justificariam o seu conteúdo173. É passando por esse entendimento, de que as instituições de arte se transformaram diante das mudanças econômicas, que a pesquisa considera os museus em atual crise. Seria pertinente observar as críticas que Huyssen faz à cultura da produção de imagens, para o autor a preocupação em registrar eventos seria uma tentativa de aprisionar o passado e as próprias experiências. Isto teria contribuído para o museu ter se tornado o paradigma-chave das atividades culturais contemporâneas. Para Huyssen, o museu seria “um espaço híbrido em algum lugar entre a diversão pública e uma loja de departamentos”174. A crise dos museus seria uma das causas pelas quais nos debruçaríamos sobre as atividades artísticas urbanas. Observamos que as AAU passariam a fazer parte do escopo das instituições de arte que insistiriam em se apropriar do discurso público do artista e o apresentar como o próprio discurso da instituição. Segundo afirma Batista, os papéis haviam se invertido, as instituições não mais patrocinariam os artista: “são os artistas quem patrocinam as instituições culturais175” Para Jeudy, “essa legitimidade se constitui em torno do precedente do ilegítimo para que persista a representação contemporânea do papel subversivo da arte”176. A necessidade do artista se expressar e demonstrar intenções políticas e sociais, de forma pública e processual, faria com que suas ações ganhassem visibilidade e acabassem sendo reconhecidas institucional e artísticamente: 172 ibid ‘O papel do museu como um local conservador elitista ou como um bastião da tradição da alta cultura dá lugar ao museu como cultura de massa, como um lugar de uma mise-en-scène espetacular e de exuberância operística.’ HUYSSEN, 1997, p. 223 174 Huyssen, 1997, p. 224. 175 Em entrevista por e-mail no dia 27/04/2011 176 JEUDY, 2005, p. 117 173 71 Nenhum novo processo de criação consegue prosseguir sem operações procedurais que demonstrem o peso das dificuldades encontradas para a sua realização. O que é um obstáculo para a sua realização pública termina consagrando sua imagem de avant-garde. JEUDY, 2005, p. 131 Observamos, através dos constantes projetos curatoriais executados pelas instituições artística, que a idéia da arte no espaço público se apresentaria como uma espécie de salvação, tanto para as instituições, que se encontrariam em crise, quanto para os artistas, que passariam a ser incluídos e a fazer parte de um novo circuito institucionalizado. Na rua, os artistas poderiam explorar os mais variados temas e convidar a população a participar dos seus processos. De acordo com Hanna Arendt177, as relações de poder seriam de origem privada, incompatível com o ambiente urbano e a convivência coletiva desenvolvida nas cidades. Nas vias públicas, o poder e a violência seriam de domínio do Estado, representado pela polícia. A esfera pública abrigaria a democracia, a liberdade e a igualdade de direitos. Qual seria a autoridade da instituição em limitar o espaço público e privatizá-lo, mesmo que temporariamente, como isso se justificaria e se tornaria legítimo no espaço público? Quando uma AAU se realiza com um patrocínio institucional, seria pertinente que o artista analisasse quais seriam as vantagens de realizar a atividade deste modo. No que a presença da instituição ajudaria e em que sentido ela poderia contribuir para enriquecer a relação entre o artista, o público e a obra? Pois, seria muito fácil que a esfera pública fosse utilizada de forma abusiva pelas instituições, apenas, para reproduzir a hierarquia dos museus e espaços expositivos, tornando o espaço público uma extensão territorial institucional, em forma de “arte pública”. Apesar de termos usado a expressão “arte pública”, consideramos ela incoerente. Isso se dá por compreendermos que ela se aplicaria ao conjunto de objetos de arte que se encontram em permanente mostra em prédios e espaços públicos. Como defende o livro Trespass- a history of uncomissioned urban art178 : Vamos ser honestos: o termo arte pública conjura idéias banais, até mesmo terríveis, de vitrines permanentes em prédios municipais, de aeroportos a tribunais. A maioria das oportunidades oficiais de criar arte pública são incubidas de serem resistentes ao grafite, segura para as crianças, estarem de acordo com preceitos da familia e respeitar as regras de nãoprovocação, garantindo que qualquer trabalho de arte comissionado seja, no máximo, brando. MCCORMICK, SCHILLER e SCHILLER, 2010, p. 306 177 178 ARENDT, 2005 Escrito por Carlo McCormick, Marc Schiller, Sara Schiller 72 Sobre “arte pública”, Hilde Hein afirma que “não devemos esperar consenso […] a arte pública não pode prometer um entendimento público, não mais que a arte privada consegue assegurar a salvação privada, o quer que isso seja”179. Esta “salvação privada” seria o reconhecimento da arte através dos seus conceitos, a habilidade, daquele que consome a arte privada, em identificar os elementos da alta cultura que fazem a arte ocupar um lugar de destaque no museu. Independentemente deste reconhecimento ser efetivo, ele é responsável por gerar um sentimento de diferenciamento, de pertencimento, a partir do repertório coletivo. Pierre Bourdier180 defenderia que o gosto não é individual e tem a sua origem social. O gosto poderia nos aproximar ou afastar das classes sociais as quais gostaríamos de pertencer. Bourdier aponta a existência de atores sociais que determinariam as matrizes estéticas, o belo, o bom, o especial e autêntico nas experiências estéticas. Assim, poderíamos propor que a salvação privada seria esse sentimento de pertencer a uma classe diferenciada (culta, inteligente) e treinada para interpretar os elementos da alta cultura. Na visão de Hein, a salvação pública aconteceria quando o cidadão observa na “arte pública” o seu aspecto de utilidade coletiva e consegue, assim, entendê-la. Fora do museu, quem determinaria as matrizes estéticas? A AAU, na forma de obra, ação ou performance apresentada no espaço público, pode ter a sua utilidade coletiva reconhecida pela sua capacidade de ser interpretada de forma artística ou, por também, expressar uma posição em relação à sociedade, ao governo. Desta forma, a salvação pública poderia acontecer de forma estética e/ou política. A utilização política do espaço público se refere à consciência dos limites quanto à utilização da cidade, à possibilidade de penetrar em certos lugares e subverter sua ordem. Sem uma violência urbana gritante, como em Berlim, o citadino conseguiria explorar os seus limites, estender suas fronteiras na cidade e propagar idéias em diferentes âmbitos da esfera pública. A arte intervencionista, quando ilegal, de guerrilha e praticada nas ruas, seria a expressão genuína de pessoas que assumem riscos em nome de uma “missão artístico-cidadã”. A origem do grafite, em Nova Iorque nos anos 70, demonstraria a vontade dos adolescentes das periferias em desafiar a sociedade, as leis e autoridades locais de 179 Texto original, “Public art cannot promise public understanding, any more than private art assures private salvation, whatever these might be.” HEIN, 2001, p.5 180 BOURDIEU em. ORTIZ, 1983 73 forma pública. (Fig. 46)181 Embora o grafite e o picho tenham se incorporado ao mercado de Arte, suas raízes estariam na periferia e seriam caracterizadas pela ousadia com a qual os pichadores espalhariam suas assinaturas. Esta manifestação urbana global apontaria que há um grande números de pessoas socialmente excluídas, financeiramente desprivilegiadas que querem notoriedade. Além disto, que precisam de estímulos socioculturais para diversão e lazer. A arte de rua, quando fora dela, seria uma limitada estética contemporânea. Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin argumentaria que a distração seria contrária à contemplação, ao recolhimento que acontece no interior dos museus e levaria ao instante de fascinação. Se o destaque da arte de rua seria a capacidade de estar inserida no cotidiano dos centros urbanos e ser captada através das dispersão, essa forma de percepção seria incompatível com um ambiente fechado. O que o grafite seria nas ruas, não caberia dentro de um museu. Assim, não seria possível enclausurar a street art no museu. Neste segundo capítulo, investigamos a cidade e as formas de expressões públicas que ela é capaz de abrigar. Passando pela influência da arquitetura na produção de memórias coletivas e pela solidificação dos interesses das classes dominates no espaço público, tentamos demonstrar como as práticas artísticas urbanas teriam importância para abordar os conflitos mais urgentes do espaço público urbano das metrópolis. Esta teria sido a hipótese central deste capítulo. Diantes das crises pelas quais a sociedade passaria, o espaço público seria palco de confrontos sociais e ideológicos: o interesse público, coletivo versus o privado, particular. Tentamos apresentar as principais táticas de resistência utilizadas por esses interesses. As forças criativas e as consumistas seriam forças opostas que competiriam no ambiente urbano diariamente. Esta disputa contribuiria para estimular cidadania e fortalecer o senso de comunidade. Se a arte teria sido deslocada do museu, seu local por tradição, para se aproximar do dia-dia, promover experiências sociais e ter um carater político182, nos convém examinar quais seriam as condições socioculturais que fariam com que essas novas práticas artísticas adquirissem, de fato, alguma importância e representatividade para a sociedade com a qual ela pretenderia dialogar. 181 Com base no documentário sobre a cultura de rua de Nova Iorque, filmado em 1984: Slyle Wars, dirijido por Henry Chalfant e Tony Silver. http://www.stylewars.com/ 182 Como defende Claire Bishop, através da arte participativa e Nato Thompson através da arte intervencionista. 74 3. Panorama Sociocultural Um dos aspectos que envolvem a produção artística no espaço público diz repeito à possibilidade de produzir imagens a partir da cidade. Esta imagem só faria sentido se estivesse em sincronia com os contextos do local para qual o artista haveria pensado a sua atividade. Evidente que o artista não controlaria as imagens que a sua atividade poderia gerar, porém, essa falta de controle até agregaria valor à qualidade artística da atividade, de acordo com Claire Bishop183. Reconhecemos que risco e imprevisibilidade teriam valor nas práticas artísticas urbanas, contudo, uma obra que pretente realizar-se na rua não poderia querer se aproveitar de qualquer circunstância acidental, para adicionar mérito ao seu idealizador ou a sua própria realização. A concepção da obra poderia ser feita com base em elementos imprevisíveis, todavia, consideramos este procedimento pouco criativo e, apenas, funcionaria como uma forma do artista instrumentalizar o espaço público, para obter resultados pessoais para sua carreira. Por isso, neste capítulo final, faremos uma investigação a respeito da esfera pública, para tentarmos criar critérios de avaliação dessas novas práticas artísticas urbanas e conseguir apontar valor no que seria trabalhado em uma atividade artística urbana (AAU). Pensadores, como Walter Benjamin, Hannah Arendt, Henri-Pierre Jeudy, Richard Sennett, Zygmunt Bauman, Andreas Huyssen, Vilém Flusser e Jürgen Habermas apontariam para a crise na esfera pública e nos ajudariam a compreender o papel desempenhado pelas novas AAU e a sua relevância para a sociedade. 3.1 Esfera Social Burguesa: O Declínio da Experiência As novas relações das pessoas no e com o espaço público é o objeto deste capítulo final. A modernidade teria transformado as formas de percepção humana, através de novas configurações de tempo e espaço. A pesquisa se utilizará do conceito de modernidade trazido por Leo Charney e Vanessa R. Schwartz, em O cinema e a invenção da vida moderna: A modernidade, como expressão de mudanças na chamada experiência subjetiva ou como uma fórmula abreviada para amplas transformações sociais, econômicas e culturais, tem sido em geral compreendida por meio da história de algumas inovações talismãnicas: o telégrafo e o telefone, a 183 BISHOP, 2006, p. 15 75 estrada de ferro e o automóvel, a fotografia e o cinema. CHARNEY e SCHWARTZ, 1995, p. 17 Submetido às novas experiências subjetivas e coletivas na cidade, o cidadão criaria outras percepções a respeito de tempo e espaço. Estradas de ferro e transportes coletivos teriam diminuído as distâncias físicas dos lugares, mas entre os indivíduos ela haveria aumentado, com o isolamento de questões privadas. Para Habermas, a “perturbação” entre público e privado seria uma “polarização da vida social” 184 e as relações sociais se mudariam face à nova dinâmica do movimento. Entendemos que a obrigação formal e a impessoalidade das relações sociais de caráter público seriam características da cidade cosmopolita185. Critérios materiais passariam a influenciar as relações sociais. Os cidadãos teriam que se acostumar com a nova proximidade física que seria travada com estranhos no espaço público. O século XIX é, comumente, referido como o século das “multidões”, o que seria uma das novidades que a modernidade promoveria. O argumento de Arendt é de que a esfera social teria invadido o lar, substituído a família e transformado “todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de assalariados”186, concentrados em torno de uma única atividade essencial para manter a vida: o labor. Ela aponta que a necessidade primordial da vida – a sobrevivência – era de origem do lar privado, e uma vez que a continuidade da espécie dependia do trabalho, por mais “indispensável à manutenção da vida, a última coisa a esperar dele seria a excelência”187. A transformação do labor em status de coisa pública residiria na dependência mútua, entre os indivíduos de uma mesma sociedade, que faria com que atividades ligadas a mera sobrevivência, de carareter privado, fossem admitidas em praça pública188, mesmo que não tivessem excelência. Ao mesmo tempo que o labor seria admitido publicamente, o lar privado seria redimensionado189. Walter Benjamin foi um dos primeiro pensadores a associar os avanços técnicos à perda do valor da 184 HABERMAS, 2003, p. 188 Richard Sennett afirma que: “De acordo com o emprego francês registrado em 1738, cosmopolita é um homem que se movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar. SENNETTenett, 1988, p. 31 186 ARENDT, 2005 p. 56 187 Ibid, p. 58 188 ARENDT, 2005, p. 56 189 Benjamim, no texto Paris, capital do século XIX , argumenta neste sentido: “Para o homem privado, o interior da residência representa o universo. Nele se reúne o longínquo e o pretérito. O seu salon é um camarote no teatro do mundo”. BENJAMIN, 1929 em KOTHE, 1991, p. 37 185 76 experiência com o mundo. A modernidade e a industrialização mudariam a forma das pessoas habitarem e o resultado seria o inchaço dos centros urbanos, queda no senso de coletividade e uma sociedade mais individualista. O mundo externo contaminaria o lar e as preocupações íntimas seriam deslocadas para a esfera pública, pensaria Sennett. Hoje, privacidade estaria ligada a uma relfexão sobre a própria psique, tentaríamos distinguir o que seria autêntico em nossos sentimentos, particular e íntimo, do que seria influências externas, do meio e das condições sociais em que vivemos. Nossa psique seria considerada tão frágil que tentaríamos protegê-la de qualquer influência externa; ao fazer isso, nos isolaríamos. Estar em privacidade, a sós com familiares e amigos, teria se tornado um fim em si mesmo, defende Sennett: “o eu de cada pessoa tornou-se o seu próprio fardo; conhecer-se a si mesmo tornou-se antes uma finalidade do que um meio através do qual se conhece o mundo”190. Parece -nos que essa busca em “si mesmo” seria acentuada pela perda das relações pessoais e a constante troca de valores que aconteceria entre as experiência no mundo real e as simulações delas. A figura do Flâneur representaria as preocupações de um homem fracionado por novas estruturas de tempo e de espaço, dividido entre a casa e o mundo exterior: “o flâneur ainda está no limiar tanto da cidade grande quanto da classe burguesa. Nenhuma delas ainda o subjugou. Em nenhuma delas ele se sente em casa. Ele busca o seu asilo na multidão”191. A percepção moderna seria fracionada e impossibilitaria que a realidade fosse percebida como um todo. Charney e Schwartz, desenvolveriam alguns pensamentos neste sentido: Como exemplificado pela flânerie a atenção moderna foi concebida não somente como visual e móvel, mas também fugaz e efêmera. A atenção moderna era imagem em movimento. As formas modernas de experiência dependiam não apenas do movimento, mas dessa junção de movimento e visão: imagem em movimento. CHARNEY E SCHWARTZ, 1995, p. 22. Para Sennett, a crise do espaço público acompanharia uma igual crise no interior do indivíduo. Seria sob o aspecto da nova psique moderna que o filósofo analisaria as mudanças no espaço público das cidades e apontaria as frequentes confusões entre vida pública e vida íntima; “as pessoas tratam em termos de 190 191 Ibid ibid, p. 39 77 sentimentos pessoais os assuntos públicos, que somente poderiam ser adequadamente tratados por meio de códigos de significação impessoal”192. A ascensão da esfera social, o crescimento da burguesia e as transformações nas relações de trabalho refletiriam como os cidadãos se relacionariam e agiriam no espaço público. Em Paris capital do século XIX, Benjamin apresenta o fragmento de um Guia ilustrado de Paris onde é possível percerber como a nova arquitetura, as galerias193, iria diminuir a capacidade de ação e discurso, tão característica do politikos 194 bios e da esfera da polis. Isto aconteceria através da perda do espaço para a sociabilidade natural entre os indivíduos no espaço público, causada pelo novo espaço dado à mercadoria. Segue o trecho do Guia transcrito por Benjamin: Estas galerias são uma nova invenção do luxo industrial, são vias cobertas de vidro e com o piso de mármore, passando por blocos de prédios, cujos proprietários se reuniram para tais especulações. Dos dois lados dessas ruas, cuja iluminação vem do alto, exibem-se as lojas mais elegantes, de modo tal que uma dessas passagens é uma cidade em miniatura, é até mesmo um mundo em miniatura. BENJAMIN, 1929 em KOTHE, 1991, p.31 As cidades foram se metropolizando, cosmopolitando e o espaço urbano passaria a reunir grupos muito diversos que, inevitavelmente, teriam que interagir. A urbe, além de ser o centro econômico vital da sociedade burguesa, seria o terreno onde a burguesia iria se opor à aristoracia da corte, criar novos parâmetros socioculturais, econômicos e pautar uma agenda pública de seu interesse, à medida que a cultura assumiria a forma de mercadoria. Habermas aponta que as novas instituições da burguesia seriam os coffee-houses e salons que, de 1680 até 1730, tiveram seu período áureo tanto na Inglaterra quanto na França195. Os cafés e salões não eram apenas um ponto de encontro social. Neles, teria sido criada a “primeira esfera pública literária”196 que reunia: Os herdeiros daquela sociedade de aristocratas humanistas, em contato com os intelectuais burgueses que logo passam a transformar as suas conversações sociais em aberta crítica, rebentam a ponte existente entre a forma que restava de uma sociedade decadente, a corte, e a forma primeira de uma nova: a esfera social burguesa. HABERMAS, 2003, p. 45 192 SENNETT, 1988, p. 18 No texto, Benjamin utilza galerias, passagens e Fourier como sinônimos. 194 De acordo com Arendt, com o surgimento da cidade-estado, o cidadão, além da vida privada, responde a uma existência pública, a bios politikos. ARENDT, 2004, p. 37 195 HABERMAS, 2003, p. 48 196 Ibid, p. 45 193 78 A esfera social burguesa se privatizaria nos cafés e salões. A típica contradição que existiria entre a esfera pública e a privada, entre mundo exterior e lar privativo, característica dos estágios iniciais da era moderna, desapareceria submersa na esfera social e em um espaço público perpassado pelo consumo. Para compreender como o esvaziamento do sentido “público” afetaria o caráter político e coletivo da esfera pública, vamos nos utilizar de Habermas197. As relações sociais no espaço público teriam sido transformadas pelo crescimento da burguesia e do capitalismo industrial do século XVIII. Ao nos debruçarmos sobre as produções artísticas desta época, poderiamos colher pistas sobre as questões socioculturais que estariam emergindo naquele novo contexto e indicar sintomas que apontariam para uma crise da esfera pública, através da nova proximidade entre o social e o íntimo, assim haveria pensado Benjamin. No ensaio O Narrador, de 1936, Benjamin identificaria o romance como um sintoma da crise das relações humanas e reflexo dos novos paradigmas sociais: “a origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los”198. A difusão do romance estaria intimamente ligada à invenção da imprensa, ao então novo poder da informação, à rapidez com a qual ela circularia e à aspiração de “uma verificação imediata”199 que a informação promoveria. Para Benjamin, as experiências estariam deixando de ser comunicáveis. O argumento do autor seria que, no romance, aconteceria a perda da realidade e da percepção da coletividade, pois a tradição oral, narrativa, seria abalada pelos novos paradigmas da informação. Benjamin defendeu que a “faculdade de intercambiar experiências”200 estava em crise e explicou que “uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”201 197 Segundo Habermas: “Com o surgimento de uma esfera do social, cuja regulamentação a opinião pública disputa com o poder público, o tema da esfera pública moderna, em comparação com a antiga, deslocou-se das tarefas propriamente políticas de uma comunidade de cidadãos agindo em conjunto (jurisdição no plano interno, auto-afirmação perante o plano externo) para as tarefas mais propriamente civis de uma sociedade que debate publicamente (para garantir a troca de mercadorias)”. HABERMAS, 2003, p.69 198 BENJAMIN, 1996, P. 201 199 Ibid, p.203 200 Ibid, p.198 201 Ibid 79 Benjamin destacaria que a narrativa buscaria o “sentido da vida”, enquanto que o romance “a moral da história”202. O sujeito só ultrapassaria o dualismo interioridade / exterioridade quando percebesse a unidade de toda sua vida. Seria difícil, visto que as novas práticas socioculturais modernas fracionariam as formas de percepções humanas, dificultando a visão holística. Notamos que a nova condição solitária do indivíduo no mundo seria reflexo do contexto social do século XIX. A narrativa teria sido enfraquecida pelo romance, e este pela nova forma de comunicação que sobressairia através da imprensa, com a consolidação da burguesia: a informação. Este pensamento de Benjamim explicaria as crises de origem psicossocial dos cidadãos, através do empobrecimento gradual das experiências de carater coletivo e individual203. O que nos causaria interesse não seria apenas essa incomunicabilidade das experiências, mas a inversão de valores que teria acontecido ao submetermos a nossa subjetividade aos novos aparelhos da modernidade, como esclarece Benjamin: Na realidade, esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se devolvido concomitantemente com toda evolução secular das forças produtivas”. BENJAMIN, 1996, p 201 Assim como Benjamin, Andreas Huyssen, também, aborda as novas estruturas de temporalidade da sociedade, com as novas possibilidades de simultaneidade de experiências, através do imediatismo da imagem: “o presente sucumbe ao seu poder mágico de simulação e projeções de imagens”204. Quando Benjamin falaria sobre dar uma “nova beleza ao que está desaparecendo”, isso estaria relacionado ao mesmo sentimento de nostalgia que estaria associado às práticas de consumo capitalistas que Huyssen criticaria na cultura comtemporânea. A partir da revolução industrial, o mercado de consumo exigiria que os cidadãos comprassem mais produtos e de forma mais veloz. Com o advento das novas tecnologias digitais, a forma pela qual as pessoas guardariam as suas memórias seria alterada, o que Huyssen chama de crise da memória, quando o tempo histórico não poderia mais ser diferenciado da distância geográfica: 202 BENJAMIM, 1996, p. 212 Benjamin afirmaria que: “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem (…) é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie”. BENJAMIN, 1996, p 115 204 HUYSSEN, 2000, p. 75 203 80 Algo mais deve estar em causa, algo que produz o desejo de privilegiar o passado e que nos faz responder tão favoravelmente aos mercados de memória: este algo eu sugeriria, é uma lenta mas palpável transformação da temporalidade nas nossas vidas, provocada pela complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e novos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global. HUYSSEN, 2000, p. 25 O isolamento do indivíduo e a incapacidade de se comunicar direta e objetivamente, no espaço público e no privado, resultaria do exarcerbo às atividades do trabalho e da dominação da vida social pela economia. Debord observou que, no primeiro momento da dominação, aconteceria a “degradação do ser para o ter”205. Hoje, o ter seria substituído pelo parecer, não interessaria a realidade e sim o que poderia representar a partir dela e de sua imagem. O mundo mediado por imagens, este seria o foco de Benjamin, Huyssen e Debord. A perda da experiência com a realidade, seria recompensada com a abundância de imagens e a simulação de experiências que tentariam ocupar o vazio deixado pela aura206. Para Debord, o conceito do espetáculo seria: “o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social”207, "o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem”208; “a principal produção da sociedade atual”209. As AAU tentariam interferir no processo de espetacularização da sociedade, pois, como afirmaria Debord, “tudo que era vivido diretamente tornou-se uma representação”210. Quando o mercado abrange todas as esferas da sociedade, restaria à arte brincar com as possibilidades de criar novos dispositivos estéticos e processuais para fugir da obviedade e promover estranhamentos em ambientes, até pouco tempo, inusitados para a arte, como a rua. 3.2 A construção da “opinião pública” Para compreender como o poder dos interesses particulares conseguiria ampliar sua área de atuação, dentro do espaço público, é importante observar a relação entre a mídia de massa e o cidadão. A pesquisa vai buscar alguns conceitos-chaves do pensador alemão Jürgen Habermas, para apontar a razão pela 205 DEBORD, 2009, p. 18 BENJAMIN, 1996, p. 167 207 DEBORD, 2009, p. 30, p. 25, p. 17 208 Ibid, p. 25 209 Ibid p. 17 210 Ibid p. 13 206 81 qual a arte estaria assumindo um carater público, social e mesmo político, através das AAU que são desenvolvidas em várias metrópoles do mundo. Habermas expõe como “as funções tradicionais da esfera pública são integradas a concorrências de interesses privados”211 e como a propaganda ampliaria seus territórios de atuação, fazendo com que uma das funções do espaço público fosse a promoção da venda de produtos, o aquecimento da economia através da publicidade. O papel da mídia e o efeito que o poder da informação geraria na sociedade moderna estaria, até hoje, presente nas sociedades contemporâneas e seria interessante para a pesquisa comentar esse aspecto. Neste capítulo, defendemos que o desenvolvimento da esfera social burguesa haveria instrumentalizado o espaço público para os seus próprios interesses e que os novos paradigmas da modernidade teriam mudado as relações sociais no espaço público, através do espetáculo. A espetacularização da notícia, sua transformação em mercadoria e o falho mecanismo de apreensão de memórias, como defende Huyssen, estariam ligados ao capitalismo. Foi através da burguesia que a imprensa teria adquirido um teor de jornalismo literário e evoluído, de uma imprensa de informação, para uma imprensa de opinião212. A esfera social burguesa passaria a concorrer com o poder público, por ganhar poder de influenciar a opinião pública, e o editor do jornal passaria “de vendedor de novas notícias a comerciante com opinião pública”213. Os textos do jornal refletiriam as conversas dos cafés e salões. A participação do público, através de cartas, demonstraria o desejo de participar da esfera pública, mesmo que literária, transposta ao texto do jornal. O desenvolvimento da empresa jornalística era “a partir da politização do público”214. Para Habermas, a mercantilização do jornal, a partir de 1930 com a venda de anúncios, o transformaria numa investimento capitalista, passível de manipulação, “caindo no campo de interesses estranhos à empresa jornalística e que procuravam influenciá-la”215. Inicialmente, a imprensa apenas podia “intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas”216 reunidas em um público, agora a situação 211 Ibid, p. 227 HABERMAS, 2003, p. 214 213 Ibid 214 Ibid, p. 215 215 Ibid, p. 217 216 Ibid, p. 221 212 82 haveria se invertido: através dos meios de comunicação de massa, as pessoas são quem iriam ser moldadas de acordo com o que pensariam ser a opinião pública. A consciência política teria sido alterada pela imprensa, o cidadão não conseguiria formular pensamentos próprios nem, muito menos, levá-los a público. A dinâmica desta consciência, para Vilém Flusser, seria o conceito de unhappy consciouness, de Hegel; quando o homem sai de casa para conquistar o mundo ele se perde e, ao retornar a sua casa para se encontrar, ele perde o mundo217. O sentimento de inutilidade do cidadão seria duplo, atingindo tanto sua constituição política como sua condição natural privada, íntima. Há vários autores que apontam o isolamento humano como resultado de uma incapacidade contemporânea de obter uma visão unitária do indivíduo a respeito do mundo que o cerca, como por exemplo, Habermas: A correlação entre esfera pública e esfera privada está perturbada. Ela não está perturbada porque o metropolitano é per se homem de massa e, por isso, não tem mais senso para o cultivo da esfera privada, mas porque não lhe é mais possível ter uma visão global da vida cada vez mais complicada de toda a cidade de um modo tal que ela lhe seja pública. HABERMAS, 2003, p. 188 A comunicação passaria a ser concebida unilateralmente, em apenas uma direção, de forma hierárquica e institucionalizada, chocando com a concepção Habermaniana, de comunicação, que seria a relação igualitária, para a mútua compreensão, entre emisor e receptor; “a razão comunicacional faz-se valer na força de coesão da compreensão intersubjetiva e do reconhecimento recíproco”218. A transformação moderna de indivíduos em massa e a entrega da opinião pública aos meios de comunicação seriam as condições necessárias para permitir, através das mediações, a manipulação da realidade. A falta de relações objetivas com os outros e de uma realidade assegurada pelo intermédio dos demais, para Arendt, teriam se tornado o “fenômeno de massa da solidão” 217 219. Então, se uma AAU instigar o citadino a sair do isolamento, para DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Palestra dada como parte do symposium THE MEDIA ARE WITH US. The role of television in the Romanian revolution, Budapest, 7 de abril de 1990. 218 HABERMAS, 2000, p. 298 219 Arend justifica: “O motivo pelo qual esse fenômeno é tão extremo é que a sociedade de massas não apenas destrói a esfera pública e a esfera privada: priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo, mas também do seu lar privado, no qual antes eles sentiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até mesmo os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família”. ARENDT, 1958, p. 68 83 perguntar algo a um estranho, para averiguar a realidade, através da percepção coletiva, esse já seria um efeito positivo? Compreendemos que, mesmo não gerando diretamente interação social, as AAU estariam permitindo a criação de novas subjetividades no cotidiano urbano, para quebrar o fluxo contínuo da rotina. Para Flusser, a lógica da informação tornaria o espaço público caótico e pouco confiável: “o impacto da revolução da informação é que se você quiser ser informado, tem que ficar em casa. Se você vai para o espaço público, acaba perdendo a informação”220. Os meios de comunicação teriam invadido o lar, a vida privada e mudado a forma do homem encarar a esfera pública. A mídia falaria diretamente com as massas. A informação seria a verdade absoluta e o cidadão não poderia interferir neste processo. Arendt observa que o conformismo social teria reduzido a capacidade política do homem diálogar com os seus pares e ser um interlocutor ativo em prol dos seus direitos e deveres, no ambiente da cidade221. A mídia não respeitaria a multiplicidade de olhares, pensaria Habermas. Por esta razão, “ao invés de uma opinião pública, o que se configura na esfera pública manipulada é uma atmosfera pronta para a aclamação, é um clima de opinião”222. A imprensa traria consigo a justificativa de estar contribuindo democraticamente na formação da opinião pública, de estar atuando em nome de um “bem-comum”. Assim, o consenso, opinião geral que todos têm sobre alguma coisa, seria baseado em uma consensualidade artificial223. Habermas polarizaria o mundo em dois: o sistêmico, necessário para garantir a reprodução material e abrangeria as esferas da economia e da política e, por oposição, o mundo d a vida, necessário à reprodução cultural, sociabilização e compreenderia a esfera da cultura e das relações pessoais espontâneas cotidianas. No sistêmico, as ações seriam orientadas pela lógica do capital, do poder, e a linguagem seria empregada com a intenção de assegurar a conquista de interesses 220 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Palestra dada como parte de um symposium THE MEDIA ARE WITH US. The role of television in the Romanian revolution, Budapest, 7 de abril de 1990. 221 Arendt explicaria: O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos este não é o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separálas. ARENDT, 2004, p. 62 222 HABERMAS, 2003, p. 254 223 Para o autor: “faltam critérios para ser tão somente razoáveis ao consenso gerado sob o signo de um fingido interesse público através de refinados serviços de moldagem de opinião. A crítica competente quando a questões publicamente discutidas cede lugar a um mudo conformismo, com pessoas ou personificações publicamente presentificadas; consenso coincide com a boa-vontade provocado pela publicidade”. HABERMAS, 2003, p. 229 84 particulares. Já no mundo da vida, as ações seriam orientadas pela comunicação espontânea e a linguagem seria construída pela ação comunicativa224. A solidariedade seria uma componente do mundo da vida e o intecâmbio de experiências sociais aconteceria de forma livre espontânea e sem interesses: O mundo da vida forma um horizonte e ao mesmo tempo oferece uma quantidade de evidências culturais das quais os participantes no ato de comunicar, nos seus esforços de interpretação retiram padrões de interpretação consentidos. HABERMAS, 2000, p, 279 O mundo da vida se reproduziria a partir da ação comunivativa, no ato de comunicar e, para Habermas, essa reprodução aconteceria “na medida que cumprisse três funções225: a propagações de tradições orais, a integração de grupos por normas e valores e a socialização de gerações vindouras”226. Através das reproduções do mundo da vida, seriam aceitos os novos padrões socioculturais que, ao longo da história, sofreriam modificações. A ação comunicativa integraria os cidadãos em prol dos interesses coletivos, através da preservação das múltiplas identidades que abrigassem a esfera pública e estimularia a solidariedade entre os atores sociais, os cidadãos. O pensamento de Habermas apontaria que a racionalidade227, sob as formas de ciência e tecnologia, teria sido instrumentalizada pelo mundo sistêmico. A ciência aplicada em novas tecnologias iria coordenar as atividades humanas em prol de um cotidiano sincronizado com o interesse público e institucional das grandes cidades. A escolha de um modelo de desenvolvimento implicaria na aplicação de determinadas tecnologias para fins socio-políticos que, por longo tempo, determinariam a forma como as pessoas utilizariam a cidade e se relacionariam no espaço público. A escolha do modelo de desenvolvimento estaria atrelada aos interesses do mundo sistêmico, a partir da possibilidade de gerar novos empreendimentos lucrativos, aproximando o poder públicos da iniciativa privada228. Desta forma, observamos que o poder das decisões públicas, na aplicação de novas tecnologias, 224 HABERMAS, 2000, p. 279 Entendemos que essas estariam ligadas, respectivamente, às funções da narrativa, da sociabilidade e da memória. 226 HABERMAS, 2000, p. 279 227 Para Habermas, racionalidade seria a maneira como adquirimos e usamos o conhecimento e a informação. 228 Esta seria a base do pensamento de Habermas: “O aparelho do estado tornou-se dependente de um sistema econômico controlado pelas mídia; isso conduziu, entre outras coisas, a que o poder vinculado a postos e a pessoas seja equiparado à estrutura de um medium de controlo, e por isso que o poder fosse assimilado ao dinheiro”. HABERMAS, 2000, p. 321 225 85 implicaria diretamente no tipo de indústria que se previlegiaria com a prática daqueles avanços científicos. Em seu livro Arqueologia da Mídia, Siegfried Zielinski se aproximaria destas reflexões ao afirmar que “a passagem dos séculos apenas aprimora e aperfeiçoa as grandes idéias arcaicas”229. Essas “idéias” seriam as de “dominador” e “dominado”, em que o poder regeria os atos de comunicação e interferiria na racionalidade da ações. A trama formada por interesses públicos e privados iria abalar a ação comunicativa, as relações de base espontâneas entre os cidadãos, processo chamado por Habermas de “racionalização do mundo da vida”230. Habermas e Benjamin abordariam o empobrecimento das experiências humanas causado pela modernidade, através do novo valor da mercadoria. Para Benjamin, a arquitetura, no século XIX, teria sido a primeira arte cooptada pelas “instituições da dominação laica”231, através da reurbanização de Paris. Paris teria sido a referência mundial para os projetos urbanísticos colocados em prática no começo do século século XIX, com o boom da industrialização. Eles exemplificariam esse poder que, em nome da ciência e tecnologia, faria escolhas que refletiriam diretamente na vida dos cidadãos: como se relacionariam uns com os outros, morariam, trabalhariam, gastariam o seu tempo, se deslocariam, se relacionariam com estranhos e com o que não lhes é familiar. No espaço público, os interesses do mundo sistêmico aplicariam a técnica com objetivos particulares, como os objetivos sociais excludentes, para evitar populares em certas áreas da cidade. Diante das mudanças urbanas previstas para o Rio de Janeiro, face aos megaeventos a partir de 2014, se faz necessário entender o importante papel social e políico que as práticas artísticas urbanas podem ter. Para Habermas, o conhecimento, o saber, teria como objetivo garantir as “necessidade de compreensão mútua da praxis quotidiana”232 entre os indivíduos no mundo da vida. Percebemos que o mundo d a vida harbermaniano teria como bandeira a espontaneidade das relações humanas. Quando “o sujeito isolado se orienta em função dos conteúdos das suas representações e dos seus enunciados”233, o nível de solidariedade entre os indivíduos diminuiria, a formação 229 ZIELINSKI, 2006, p. 19 HABERMAS, 2000, 317 231 BENJAMIN, 1929 em KOTHE, 1991, p. 41 232 HABERMAS, 2000, p. 315 233 Ibid, p. 291 230 86 do consenso sobre as coisas do mundo seria alterada e os processos de transmissão de memória vigentes seriam colocados em cheque234. Como o mundo da vida “tanto constitui o contexto como fornece os recursos para o processo de sua compreensão”235, não faria sentido falar em “opinião pública” na sociedade de massa. A formação dela seria um processo circular onde o sujeito se deixaria influenciar pelo que pensa ser a opinião da maioria das pessoas e, ao mesmo tempo, sua posição individual, em relação a algum tema, quando somada a outras opiniões, também teria poder de influenciar outras pessoas. Assim, afirmar qual seria a “opinião pública” sobre algum tema, influenciaria a posição individual do cidadão e poderia ser utilizada como uma forma de manipular a realidade, através da própria “opinião pública”, assim pensaria Habermas. A opinião pública, tal como o mundo da vida, teria um elemento retroalimentativo: “é certo que a reprodução do mundo da vida se nutre de contribuições do agir comunicacional, enquanto que este depende por sua vez dos recursos do mundo da vida”236. A importância da opinião pública na sociedade de consumo se deveria ao fato de que algo tratado como unânime desencorajaria o questionamento, o confronto e se mostraria de mais fácil aceitação pelos indivíduos. Habermas observaria que o controle da opinão pública seria um instrumento de dominação, para promover o conformismo das massas. Igualmente afirmaria que a esfera pública estaria esvaziada das suas funções políticas e que os indivíduos, nos espaços públicos, não seriam mais capazes de entrar em consenso. Assim, a “opinião pública” passaria a ser fruto de um “consenso fabricado”237 pelas mídias e de acordo com os interesses do mundo sistêmico que produziriam uma pseudo-opinião pública.238 Quando a arte se apresenta na rua, ela iria de encontro à moderna concepção de comunicação de massa e à construção desta pseudo-opinião pública, pois uma expressão individual estaria tendo autonomia de ser colocada em público, 234 Sobre a formação do consenso, Habermas afirma: “a socialização dos membros, finalmente, assegura que as situações novas que aparecem (na dimensão do tempo histórico) sejam assossiadas a situações vigentes no mundo; ela garante às gerações seguintes a aquisição de capacidades de ação generalizadas e zela pela concatenação entre histórias individuais da vida e as formas coletivas de vida”. HABERMAS, 2000, p. 315 235 Ibid, p. 278 236 Ibid, p. 314 237 Ibid 238 Sobre a opinião pública, Habermas afirmaria: “a opinião pública continua a ser objeto da dominação mesmo lá onde ela esteja obrigada a fazer concessões ou se reorientar; ela não está presa a regras do debate público ou, de um modo geral, a formas de verbalização, nem precisa estar envolvida com problemas políticos ou endereçada a instâncias políticas”. HABERMAS, 2003, p. 282 87 sem ter que passar pelos meios de comunicação tradicionais. Não podemos perder de vista que a dimensão da arte é a comunicação por essa razão, se fez necessário examinar as circunstâncias da mídia e o processo de produção da “opinião-pública”. A partir de então, teríamos condições de analisar as AAU de forma mais crítica. Os eventos que interferem na estética da cidade não são de exclusiva produção dos artistas, mas sim daqueles interessados em gerar imagens a partir de uma ação no espaço público. Isso aconteceria com o objetivo de instigar a produção de “mídia espontânea”, termo utilizado por agências de propaganda e marketing. Observamos que arte e publicidade tomariam estratégias emprestadas, uma da outra. É difícil dizer qual delas haveria primeiro ocupado o espaço público, porém, notamos que as novas tendências da arte contemporânea de utilizar os espaços públicos de uso coletivo para ações participativas e intervencionistas, estaria sendo com frequência explorada pelas forças consumistas do mercado, como observamos neste exemplo, em que a técnica de grafite inverso, que consiste na limpeza de algumas áreas de superfícies urbanas para conseguir criar traços e formas, foi utilizada pela marca de sabão Ariel para uma campanha publicitária. (Fig. 47) Outro exemplo, seriam as ações flashmob que são organizadas por grupos, em rede, e vêm se multiplicando no espaço público. Elas seriam espontâneas, de motivação por vezes pessoal, para mostrar publicamente uma posição em relação a um tema. Estes seriam, não raramente, banais, como a “luta de tavesseiros” que acontece em várias cidades do mundo, ao mesmo tempo, desde 2006. As flashmobs seriam uma forma do cidadão demonstrar a sua opinião publicamente e, ao mesmo tempo, tentar influenciar na formação da opinião dos demais. Hoje, notamos que as ações deste tipo seriam, com frequência, organizadas por agências de comunicação, contratadas por empresas privadas. As flashmobs mobilizariam, com a mesma vontade, cidadãos conscientes e comprometidos com causas de interesse público e também os alienados e interessados apenas no evento midiático que a ação promoveria. Para finalizar a nossa pesquisa, nos propomos a investigar a imagem e alguns aspectos importantes na sua produção. 3.3 A autonomia da Imagem Ao examinar os desbobramentos causados por algumas ações no espaço público, percebemos que a sociedade contemporânea estaria migrando de uma 88 sociedade de massas para uma sociedade de mídias. A teoria da imagem, formulada por Vilém Flusser, nos faria pensar neste sentido. De acordo com o pensador, no século XIX, a ciência teria conseguido projetar uma visão de mundo totalmente concebível, porém, havia o tornado muito menos imaginável e esta teria sido a verdadeira razão pela qual a fotografia teria sido inventada239. Para Flusser, depois de Gutenberg, “as imagens foram eliminadas da nossa cultura, elas foram enclausuradas em guetos gloriosos, chamados de museus e academias, e a situação foi dominada pela escrita”240. A representação do mundo foi dominada pela escrita e pelo pensamento linear, causal e crítico. O empobrecimento das experiências humanas, no espaço público, teria sido causado tanto pelos novos paradigmas da comunicação quanto pelas novas relações criadas entre tempo e espaço. A influência da mídia, na esfera pública da sociedade de massa, e a interpenetração dos interesses do Estado, com os de empresas privadas, iriam tranformar o espaço público em um lugar de representações simbólicas, acrediaria Habermas, onde os “sistemas pessoais e sociais forjam mundos circundantes uns para os outros”241. Isso aconteceria porque as estruturas intersubjetivas dos indivíduos seriam desmembradas e isto os afastariam do mundo da vida. Um mundo forjado a partir da imagem, de suas criações, e da possibilidade de influenciar a realidade por ela, com a sua reprodução, este seria o pensamento de Flusser. A fixação pelas imagens seria a necessidade humana de ver sob uma outra perspectiva, “de sair do mundo e vê-lo de fora”242. Desde os rituais tribais de magia, as imagens seriam produzidas para “orientar as pessoas, como mapas do mundo”243, seriam uma mediação; significariam o mundo, mas, ao fazê-lo, também o ocultaria. As imagens esconderiam a realidade e invertiriam o mundo da experiência e o da imaginação, causando uma profunda alienação. Essa alienação, para Flusser, seria o que os profetas chamavam de idolatria. Por essa razão, Platão teria proibido a arte e as imagens na República; imagens 239 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Palestra dada como parte de um symposium THE MEDIA ARE WITH US. The role of television in the Romanian revolution, Budapest, 7 de abril de 1990. 240 Ibid 241 HABERMAS, 2000, p. 323 242 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Palestra dada como parte de um symposium THE MEDIA ARE WITH US. The role of television in the Romanian revolution, Budapest, 7 de abril de 1990. 243 Ibid 89 seriam anti-replublicanas e anti-políticas244. As imagens teriam o poder de influenciar as pessoas, através do que comunica, como por exemplo o culto às celebridades e ícones de vida bem sucedida, transmitidos pelos meios de comunicação. Flusser afirmaria que existiria um lado negativo na cultura das imagens, algo ligado às tradições gregas e judaicas, um preconceito, no fato da imagem sempre ser uma cópia, a representação de algo, um simulacro do pensamento: Mas acho que isso está mudando, pois as imagens não mais representam o mundo. Essas novas imagens são agora articulações do pensamento. Elas não são cópias, mas projeções modelos, então uma nova atitude em relação a elas é necessária e eu acho que está sendo desenvolvida. [Walter] Benjamin foi um dos primeiros pensadores que articulou isso e eu 245 acredito que estamos todos na mesma tradição. FLUSSER, 1990 Benjamin, ao tratar da destruição da Aura, já haveria comentado sobre a preocupação moderna dos indivíduos em criar e reproduzir a realidade através de imagens representativas: “orientar a realidade em função da massas e as massas em função da realidade é um processo de imenso alcance, tanto para o pensamento, quanto para a intuição”246. Entendemos que ele se referiria à habilidade que teria o pensamento moderno de ser articulado em imagens para promover a dominação, o poder, mas também o inverso, da criatividade se utilizar da própria massa. A intuição quando articulada através de imagens, pela arte, promoveria a vida genuína. Aproximar a vida da espontaneidade e da criatividade combateria o declínio da aura e da experiência. A filosofia da imagem, de Flusser, se apróximaria das idéias de Benjamin sobre a re-significação dela, na sociedade de massa. Ele defenderia que a fotografia e a imprensa escrita burguesa teriam acelerado os eventos históricos. A imagem não documentaria atos políticos, a situação haveria se invertido. Os atos seriam construídos para serem fotografados, filmados e eternizados; “então, repentinamente, as pessoas descobriram a razão da política. A política visa ser tomada, sugada, em uma imagem. E isso criou um fenômeno curioso. Os eventos começaram a acelerar-se. Eles rolavam em direção à imagem”247. A realidae passaria a ser manipulada em imagem, cenas. 244 Ibid Ibid 246 BENJAMIN, 1996, p. 170 247 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Palestra dada como parte de um symposium THE MEDIA ARE WITH US. The role of television in the Romanian revolution, Budapest, 7 de abril de 1990. 245 90 Para Flusser, as imagens poderiam criar a História, fazer uma “caricatura”248 dela, como a cobertura da guerra do Golfo pela CNN, em 1990. A fotografia seria o propósito da história, porém, a imagem “é menos uma testemunha da história que uma destruição dela”249. Desta forma, entrariam em conflito ficção e fatos, imaginação e realidade, simulação e experiência, pensamento e intuição. O Pensamento seria racional, programado, proposital e objetivo, enquanto que a intuição seria irracional, espontânea, acidental e subjetiva. O processo de circulação de informação também seria um aspecto relevante abordado por Flusser. Antes da invenção dos jornais, o cidadão escrevia privadamente e publicava no espaço público; se ele quisesse consumir uma mensagem, iria ao espaço público, pegaria o texto e o levaria para ler em casa. A dialética entre criação privada e publicação é a dialética da política, acreditaria Flusser. Com o jornal impresso, a informação iria de um espaço privado diretamente para outro espaço privado, “tanto o emissor como o receptor são privados”250. Nem a informação nem as imagens precisavam passar pela esfera pública, por isso, ela agora seria “redundante e desnecessária”251. Desta maneira, quando os muros da cidade são utilizados para comunicar algo de interesse coletivo, a cidade estaria sendo utilizada como mídia e foi desta forma que observei o espaço público ser utilizado em Berlim. Os interesses das mensagens nos muros são diversos, mas poderíamos agrupá-las em três: as que comunicam protestos, propagandas e arte. Para Debord, o espetáculo seria a nova atitude diante da possibilidade de mediação de determinados acontecimentos sociais, políticos e históricos252. Hoje, quando alguém está diante de uma lente, sabe que deve considerar que o mundo pode estar do outro lado, o que fizer pode acabar sendo exposto, sem que tenha, necessariamente, autorizado a sua exposição. A consciência de estar sendo observado pela massa faria com que a massa direcionasse o indivíduo diante das 248 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. On technical images, chance, consciousness and the individual – Entrevista em Munique, 17 de Outubro, 1991 para Televisão húngara. 249 Ibid 250 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Palestra dada como parte de um symposium THE MEDIA ARE WITH US. The role of television in the Romanian revolution, Budapest, 7 de abril de 1990. 251 Ibid. 252 Debord esclareceria que: “O espetáculo não é o conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens. […] Sob todas as suas formas particulares- informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos- o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade.” DEBORD, 2009, p. 14 91 câmeras, como se o que fizesse fosse ficar monumentalizado na história, imortalizado, mesmo que digitalmente. Esta seria a nova atitude que Debord atacaria e as origens do seu pensamento poderiam ser encontradas em Benjamin253. O espetáculo parece ser a inversão de valor da experiência pelas imagens: a realidade versus a sua representação; um mundo forjado pela produção de indícios. Para Debord, a possibilidade de reproduzir e mediar imagens teria espetacularizado a sociedade e refletido, na esfera pública, de forma autoritária; assim, “uma parte do mundo se representa diante do mundo e lhe é superior. O espetáculo nada mais é que a linguagem comum dessa separação”254. Para Debord, o espetáculo seria equiparado à contemplação, como se o cidadão deixasse de ser o protagonista de sua vida, para reverenciar uma vida longe da sua própria e do que lhe seria familiar. Debord criticaria a alienação do espectador, em relação ao objeto contemplado, e associaria essa contemplação ao sacrifício da própria vida do espectador: “quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo”255. As novas práticas artísticas, quando inventam dinâmicas e ações participativas estimulariam as experiências no ambiente urbano, as ações comunicativas entre os cidadãos e a produção de subjtetividade. O deslocamento da arte dos espaços institucionais e a abertura na autoria aproximariam artista e público, aproximando ator e espectador, Jeudy avaliaria que: Tal idealismo conduz concepção de mundo que não vive mais de seu espetáculo, mas que transforma o efeito espetacular em um modo de vida, cada detalhe reforçando o prazer coletivo e individual dessa maneira de ser. JEUDY, 2005, p. 139 As práticas artísticas urbanas contribuiriam, de forma positiva, para quebrar com o espetáculo. Quando o artista se lança em um espaço onde não há garantia de controle, ele se mistura no imaginário coletivo e, constantemente, vai alternar papéis, ora servindo para ser contemplado, ora permitindo que o público assim o seja. Jeudy defenderia que essas práticas teriam como objetivo a sua própria realização e a valorização do seu componente acidental, espontâneo e experimental: 253 Sobre o controle que a massa exerceria sobre o objeto em frente às lentes, Benjamin afirma: “Ele sabe, quando está diante da câmera, que sua relação é, em última instância, com a massa. É ela que vai controlá-lo. E ela precisamente, não está visível, não existe ainda, enquanto o autor executa a atividade que será por ela controlada. Mas a autoridade desse controle é reforçada por tal invisibilidade.” BENJAMIN, 1996, p.180 254 DEBORD, 2009, p. 23 255 Ibid, p. 24 92 O que está em jogo é a exibição de valores estéticos desconsiderados pela consagração instituional da arte. Não se trata mais de tornar uma referência, pois o princípio de valorização desaparece em um processo de criação que vale por si mesmo. JEUDY, 2005, p. 139 Neste ponto, discordamos de Jeudy. As AAU poderiam ter objetivos que fossem já considerados pelas instituições, embora inovação e contestação sejam elementos motores da cultura contemporânea inventiva. Ir de encontro aos valores estéticos das instituições tradicionais de arte, não garantiria uma criação artística comprometida com a promoção de subjetividades que estariam sincronizadas com aquele contexto urbano. Embora nos pareça que, esteticamente, embrulhar uma construção qualquer poderia ser visualmente interessante, a dimensão da obra de Christo e Jeanne-Claude não se reduziria a isso. (Fig. 14) O lugar específico de uma AAU traria o elemento de singularidade da obra apresentada. O deslocamento do atelier e a maleabilidade com que o artista poderia aproveitar as situações cotidianas, para resgatar experiências subjetivas dos citadinos com mundo, teriam sido frutos das relações da Internacional Situacionista (IS) com a cidade. A IS iniciou uma tendência crescente na arte contemporânea, a expansão do atelier; os lugares expositivos e os lugares para a produção criativa seriam perpassados. Embora a IS focasse em elementos acidentais, como os impulsos psico-geográficos da Teoria da deriva, as situações propostas por eles seriam pré-pensadas, calculadas e com objetivo256. Eles queriam atingir os indivíduos de forma política, através do seu aparelho produtor de subjetividade. Apenas construir imagens estéticas, a partir da cidade, não seria o objetivo da IS. Suas ações estariam ligadas à criação de ambiências urbanas, cotidianas, para combater “a influência emocional dos métodos avançados de propaganda no capitalismo”257. Constant afirmaria “queremos derrubar leis que impedem o desenvolvimento de atividades eficazes para a vida humana”258. Esta também seria a posição Habermas, ao defender a importância da manutenção do mundo da vida, que passaria a ser ditado pelo âmbito da necessidade e não mais pelo da liberdade. 256 Constant, que passou vinte anos projetando uma cidade utópica chamada de New Babylon, defenderia que: “Os situacionistas, que se especializam na exploração do jogo e do lazer, compreendem que o aspecto visual das cidades só tem valor se relacionado com os efeitos psicológicos que possa produzir, efeitos esses que devem ser calculados no total das funções a prever”. CONSTANT,1959 257 Frase contida no ensaio, Revolution and Counter-revolution in Modern Culture. DEBORD, 1957 (Tradução Livre) http://www.cddc.vt.edu/sionline/si/report.html 258 CONSTANT,1959, em JACQUES, 2003, p. 114 93 Ao apresentar o pensamento de Habermas, Arend e Jeudy e compreender como seriam travados os confrontos da esfera pública, notamos que as AAU estimulariam um cotidiano mais vívido e expressivo, quando conseguem produzir subjetividades na urbe. Entendemos que a arte contemporânea atuaria, no espaço público, para impedir a racionalização do mundo da vida, através da concorrência entre as forças capitalistas e as criativas. As idéias de Debord, sobre a espetacularização da sociedade, através da mediação das imagens, complementariam a reflexão deste capítulo. Notamos que Benjamin, Flusser e Habermas pensaram em questões comuns. A crise do cidadão, no espaço público e no lar privado, seria o alto preço a pagar pelos avanços modernos ligados aos interesses mercadológicos. A urbanização das cidades teria, progressivamente, bipolarizado a vida social sob o aspecto de público ou privativo. “Na mesma proporção em que a vida privada se torna pública, a esfera pública passa a assumir ela mesma formas de intimidade”259 pensaria Habermas. Nisto, residiria a crise do cidadão moderno, na destituíção de si e seu lar. Benjamin haveria demonstrado que umas das consequências disto seria a diminuição do valor da experiência, em função da simulação dela. A inversão entre o mundo da imaginação e o da realidade experienciada, através do consumo e da reproduções de imagens, também seriam consequência de um espaço público perpassado pelo consumo. As AAU operariam criando incertezas nos cidadãos, motivando-os a averiguar a própria realidade, face a elementos lúdicos inseridos na cidade, assim combatendo a crise da coletividade. Todos esses autores corroborariam com a hipótese de que o interesse privado expanderia sua área de atuação para os domínios do espaço público, com o próprio consentimento do poder público. O estudo de caso feito em Berlim teria demonstrado que a influência socialista haveria contribuído no desenvolvimento de um espaço público mais autônomo das forças capitalistas de produção. Além disso, em Berlim, a construção da opinião pública, ainda, passaria pela esfera pública, uma vez que a cidade seria utilizada como uma mídia, pelos cidadãos, para espalhar idéias coletivas e/ou expressões individuais. As práticas artisticas urbanas viveriam a cidade, de certa forma, como um playground, um terreno livre para a comunicação e criação artística. 259 HABERMAS, 2003, p. 188 94 Conclusão Ao longo da pesquisa, tentamos demonstrar como os centros urbanos estariam subordinados aos mecanismos de exclusão social exercido pelas classes dominantes. Através da interpenetração do poder público com o privado e do uso da ciência e tecnologia para fins particulares, o espaço público urbano seria moldado para uma minoria privilegiada, a elite da população. A nova conjuntura urbana indicaria que usar a cidade como mídia seria uma poderosa ferramenta, tanto para as forças consumistas, atreladas aos interesses do mundo sistêmio, quanto para as forças criativas locais, ligadas ao mundo da vida. Explorar a capacidade midiática da cidade seria interessante para ambas as forças. Segundo Habermas, “a invasão da esfera pública pela publicidade –invasão tornada economicamente necessária – não precisaria ter enquanto tal por consequência provocar por si a modificação dela”260. Se a publicidade utilizaria a recepção tátil261 para inserir elementos consumistas no cotidiano urbano, a arte usaria da mesma estratégia. Elementos estéticos e processuais seriam inseridos no ambiente urbano, para combater o empobrecimento das experiências coletivas e tentar promover a criação subjetividades e diferentes olhares para o espaço público. As atividades artísticas urbanas (AAU), nosso objeto de estudo, são um problema em aberto, em curso. Esta teria sido a dificuldade da pesquisa. As motivações dos artistas para utilizar a cidade são múltiplas e parecem se ampliarem ainda mais, com o novo poder de mobilização das redes virtuais. A possibilidade de gerar mídia, a partir de uma experiência no espaço público, parece ser o objetivo de artistas e, também, de novas ações publicitárias. Estas vêm crescendo e seriam, assim como as práticas artísticas urbanas, novas formas de expressões públicas que as cidades podem abrigar. A forma pela qual uma AAU será viabilizada, seu atrelamento ou não às instituições formais de arte, seria um aspecto importante para ser observado. Isto se daria com o intuito de evitar a promoção da instrumentalização do espaço público e da própria audiência, por poderes exteriores aos propósitos da arte. Quando a arte se materializa através dos processos que propõem e do seu contexto, existiria uma dificuldade em encontrar relevância para justificá-la, pois seus 260 HABERMAS, 2003, p. 225 De acordo com Benjamin, esse tipo de percepção se faz mais assimilada pela distração, que pela atenção. BENJAMIN, 1996, p. 194 261 95 significados se fariam de forma bastante específica. Não é simples identificar quando uma AAU opera positivamente para a sociedade e adiciona novas experiências para o público ao qual se apresenta. Muitas vezes, uma AAU é realizada de forma espetaculosa para promover, ao distrair sua audiência, uma reverberação midiática com interesses apenas institucionais e corporativos (para gerar mídia espontânea). O aspecto fundamental desta questão seria a constante tensão entre os interesses particulares e os coletivos. Foi por esse aspecto que decidimos estudar a esfera pública de Berlim. Compreender as dificuldades para manter os espaços criativos autônomos na cidade, poderia servir de inspiração ao Rio de Janeiro, face à proximidade dos megaeventos: Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas de 2016. Os interesses globais atacariam não apenas os espaços físicos criativos autônomos, a exemplo das ocupações (squats e Kiez), mas um tipo de filosofia de vida; uma forma de encarar o espaço público e os bens de uso comum. A alusão que a pesquisa fez aos turistas e vagabundos262 foi uma tentativa de aproximar da arte um duelo central dos centros urbanos, os valores locais, versus os globais. Como já abordado ao longo da pesquisa, o conceito de cidade global263 nos ajudou a compreender as dificuldades que as forças locais teriam em oferecer resistência à nova conjuntura mundial. As mudanças pelas quais o Rio de Janeiro estaria passando fariam parte do modelo de desenvolvimento onde a padronização das cidades teria como modo operante a higienização do centro e de áreas de interesse imobiliário que possam virar um novo centro264. Essa limpeza exclui os pobres destas novas áreas estratégicas da cidade e os afasta dos centros. A pesquisa tratou da reurbanização das cidades por entender que, invariavelmente, as relações humanas dadas no espaço público são reflexo das construções arquitetônicas e da organização do mobiliário urbano. Deste jeito, a arte que pretenda ter caráter público, social ou politico teria que interferir nas relações já estabilizadas entre os cidadãos, na esfera pública. Isto se daria através de brechas que permitam ultrapassar os limites sociais e ordens vigentes do mundo sistêmico. Assim, o mundo da vida e as experiências seriam resgatados através das práticas artísticas de descontinuidade no cotidiano e pela produção de subjetividade na urbe. 262 Conceito de Bauman, apresentado na página 16. Conceito de Sassen, apresentado na página 4 e 6. 264 Conceito de Glass, apresentado nas páginas 28 e 47. 263 96 A arte urbana teria o papel de “sacudir” o cidadão, para provocá-lo a mudar sua atitude conformista na sociedade, no espaço urbano. Saskia Sassen defende que a própria conjuntura global estimularia novas formas de articulações e estratégias para resistência local. A pesquisa conclui que as práticas artísticas urbanas, que caracterizariam as cidades, seriam uma das táticas para manter ativa a resistência local. Se uma cidade é capaz de produzir seu próprio sentido, certamente, ele passaria pela produção artística urbana que a urbe pode abrigar. Com a influência da esfera pública virtual e com a evolução das formas democráticas de poder e política265, Sassen aponta para uma mudança atual: A ênfase na hipermobilidade e no caráter transnacional do capital tem contribuído para um sentimento de impotência entre os atores locais, a sensação de que é inútil resistir. Mas uma análise enfatizada no lugar sugere que a nova grade de lugares estratégicos globais é um terreno para 266 a política e engajamento. SASSEN, 1991 A autora apresenta uma visão positiva dos poderes transformadores da mobilização social, pois as cidades globais seriam habitadas por pessoas com um senso urbano diferenciado. Este senso seria marcado pela consciência dos impactos coletivos que podem ser causados por atitudes individuais. Vários fatores influenciariam uma nova percepção sobre a sociedade urbana: a efemeridade dos contatos, a possibilidade de construção de redes, o crescimento do engajamento político e social, os novos tipos de trabalhos/profissões, o exacerbo ao consumo e as diferentes formas de prestações de serviços, ligados às ONGs e ao trabalho voluntário, argumentaria Sassen. A cidade global, embora abrigue múltiplas identidades, universaliza as formas de vida, impedindo a tentativa prática de projetos alternativos, como os squats, Kiez e as favelas. A grande resistência destes lugares seria através da produção cultural que, mesmo encontrando dificuldade, conseguiria reverberar para fora dos seus nichos originais, ultrapassando as fronteiras existentes entre o centro e a periferia. Os reflexos da nova conjuntura global igualmente seriam abordados por Richard Sennett, ao afirmar que as novas tecnologias de comunicação teriam alterado o senso do lugar. Assim, a esfera pública haveria se expandido para o espaço cibernético. Para Sennett, o agrupamento de pessoas estranhas permitiria a 265 266 Sassen se refere, por exemplos, à queda das ditaduras sul-americanas. SASSEN, 1991 em OBRIST, 2001, p. 113. (Tradução livre) 97 troca de informações e a construção de novos horizontes, o que seria vital para o mercado global e para a manutenção dos governos democráticos. Para o autor, a diferença entre público e privado se dá na quantidade de conhecimento que as pessoas teriam umas sobre as outras. Por isso, impessoalidade e anonimato seriam condições necessárias para garantiar uma esfera pública potencializadora do desenvolvimento individual dos cidadãos. Esta característica, para Sennett, seria um atrativo para a migração nas metrópoles267. Siegfried Zielinski afirmaria que “a condição prévia mais importante para garantir a existência contínua de espaços relativamente livres do poder nos mundos midiáticos é abster-se de todas as pretensões de ocupar o centro”268. Observamos que o fortalecimento periférico seria focado na autonomia da produção cultural e no engajamento comunitário, para criar seus próprios canais de comunicação e produzir conteúdo. A mídia alternativa e a possibilidade de comunicação em rede potencializariam territórios livres dos poderes dominantes. Como já visto no item 3.3, a autonomia da imagem, as sociedades estariam mudando: de sociedades de massas para sociedades de mídias. Nas novas condições, a massa também produziria conteúdo. O contato com o fazer midiático possibilitaria uma nova relação dos indivíduos com as mídias e com as suas próprias vivências. Para Vilém Flusser, a falta de habilidade da sociedade, em relação às imagens, se explicaria pela dificuldade em conseguir interpretá-las e apontar suas motivações implícitas. A imagem operaria no campo da imaginação, através dos elementos que oculta, tendo se tornado uma articulação do pensamento. A alternância entre mostrar e esconder seria capaz de manipular a sua interpretação. De forma pública, as AAU dinamizariam a utilização da imagem tanto imediatamente, in loco, através da tentativa de produzir subjetividades no ambiente urbano, como posteriormente, transportada para as mídias eletrônicas. Utilizamos a palavra “tentativa” por entender que, quando uma obra/ação se propõe a produzir subjetividades no espaço público, estas poderiam ou não serem efetivas. Algumas pessoas não vão conseguir ser sensibilizadas ou ter o repertório necessário para produzir subjetividades, a partir daquela experiência. Embora exista previamente 267 As considerações feitas nestes parágrafos foram de acordo com o ensaio Quant, publicado no site d o a u t o r , n o d i a 0 1 / 0 9 / 2 0 0 8 : http://www.richardsennett.com/site/SENN/Templates/General2.aspx?pageid=16 268 ZIELINSKI, 2006, p. 296 98 uma preocupação com esse caráter lúdico de uma AAU, a conceitualização da proposta não garante que a sua realização se dê como idealizada pelo artista. Nem sempre uma AAU consegue alcançar os efeitos e as reações desejadas no público de imediato. Embora a produção do artista passe pela preocupação lúdica de criar subjetividades, ele não controlaria esse aspecto de sua obra. Com os vários artifícios para o registro audiovisual, muitas vezes, uma atividade se realiza apenas através destes registros. Esta seria uma outra dinâmica de utilização da imagem, por meio da reverberação midiática que uma AAU seria capaz de causar. A imagem gerada para o registro do artista será diferente da produzida pelo público espectador/participante que, igualmente, será disinta da imagem apresentada nos meios de comunicação, pela cobertura jornalística dada aquela atividade artística. Para o artista, seria fundamental identificar as brechas, as possibilidades de ação, para brincar subversivamente com os valores impostos pela mídia e pelos padrões sociais normativos. Desta forma, o artista contemporâneo estaria atento para aproveitar as oportunidades criativas oferecidas pelas circunstâncias cotidianas. Um dos objetivos seria desenvolver atividades, na esfera pública, explorando padrões preestabelecidos pela sociedade do espetáculo. Notamos que isto aconteceria mesmo que estas brechas não permitam que o artista pense, previamente, em formas de registrar a sua ação. Quando o artista tem consciência de que o seu atelier migrou para espaços improváveis e imagináveis, as possibilidades de intervenção no cotidiano se muliplicariam e a atitude artística se materializaria como um modo de vida, como foi observado em Berlim. O artista teria a preocupação de aproveitar as situações que resgatassem o valor das experiências coletivas e individuais no espaço público. Por meio desta nova atitude artística urbana, o registro da ação não seria assegurado, porém, outros tipos documentação poderiam ser gerados. Dependendo do grau de estranheza, ineditismo ou de atenção que o trabalho artístico conseguiria alcançar no ambiente urbano, a AAU poderia ser expandida para arquivos digitais e ser compartilhada em redes. Independente de ser imagens feitas com qualidade ou em pequenas câmeras de celular, o fato é que o artista não detém o poder de controlar a produção de imagens sobre a sua atividade. A repercussão na internet é comumente chamada de “viral”, pela sua disposição de se espalhar rapidamente. Esta seria uma potencialidade da esfera pública virtual, a rapidez de troca de dados e a quantidade de pessoas que poderia 99 atingir. É interessante observar quando esses dados conectam-se à esfera pública urbana, gerando efeitos imediatos. Em Berlim, um exemplo disto seriam as festas organizadas dentro do metrô. Como em uma ação do tipo flashmob, alguns grupos marcariam estas festas, divulgariam on-line e por mensagens de texto, no celular, com poucas horas de antecedência. Com a inclusão digital269 e o cidadão produzindo suas próprias mídias e imagens técnicas, uma nova esfera virtual vem se construindo. Se, por um lado, a internet é uma ferramenta que possibilita subverter a mídia e criar novos canais de comunicação, pelo outro, apenas poderia representar a escolha de alguns cidadãos em fazerem parte da mídia, ao utilizarem dos mesmos recursos apelativos, numa forma de aliar-se a ela. Aqui, podemos exemplificar com os blogs confessionistas e vídeos auto-expositivos onde o internauta faz de si um personagem. Esta seria a espetacularização da sociedade criticada por Guy Debord ao longo da pesquisa. O cidadão comum buscaria, na lógica da mídia, caminhos para sair do anonimato, ganhar visibilidade, mesmo que momentâneamente, seja na internet, na televisão ou em jornais e revistas. Quando a imagem é tornada capital, perde-se o critério quanto à própria exposição e os limites entre público e privado. Foi por essa razão que recorremos a Richard Sennett que trata destes aspectos e das mudanças nas relações humanas que são travadas no espaço público. Segundo o pensamento de Flusser, o relacionamento do homem com o mundo seria invariavelmente através das imagens. As novas dinâmicas da arte passariam pela invenção das imagens técnicas e pela mudança no jeito de pensar o mundo causadas por elas. Flusser afirma que “a comunicação linguística, tanto falada como escrita, não é mais capaz de transmitir os pensamentos e conceitos que temos a respeito do mundo”270. Ou seja, para entender o mundo, não seria necessário descrevê-lo em palavras, mas sim calculá-lo e transformá-lo em imagem. A ciência já faria isso, ao longo dos séculos e em seu próprio benefício, defenderia Flusser e também Habermas. 269 Chamo atenção para recente pesquisa do Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação; o crescente número de lanhouses, tanto na cidade, quanto no interior; a disponibilidade da internet no ambiente escolar; a proliferação de pontos de cultura e de projetos sociais que trabalham direto com as comunidades e contribuem na formação da cidadania. Pesquisa disponível no site: www.cetic.br/tic/lanhouse/2010/index.htm.webloc 270 DVD We shall survive in the memory of others” Vilém Flusser. Miklós Peternák, 2010. Entrevista feita por Miklós Peternák em Osnabruck, no Festival Europeu de mídia-arte, Setembro de 1988. 100 Ainda de acordo com Flusser, a linearidade do pensamento foi interrompida e o pensamento histórico progressivo, o discurso e a política foram substituídos pelo cálculo, pelo modo de pensamento estrutural, sistêmico e pós-histórico. A imagem técnica é um dos novos códigos que, somados ao código da fala e escrita, mediariam a comunicação humana. Flusser acreditava que “se você quer ter uma comunicação clara e distinta dos seus conceitos, você tem que usar imagens sintéticas, não mais palavras”271. Este novo poder das imagens representaria uma revolução no pensamento. Porém, o autor afirma que as pessoas ainda não estariam preparadas para lidar com os novos aparatos tecnológicos de forma esclarecida. Acreditamos que, por essa falta de destreza, a sociedade estaria passando por uma crise nos seus processos de memória272, crise na vida pública e na privada. Todas essas crises refletiriam no uso dos espaços públicos, na relação social entre as pessoas e na forma pelas quais os artistas poderiam contribuir ao abordar essas questões. Não que os artistas estivessem mais preparados para proceder com os aparatos e imagens técnicas, mas a ação criativa, no ambiente urbano, ajudaria a acelerar esse aprendizado para todos. Os artistas estariam treinando e sendo treinados para uma nova atitude em relação à esfera pública e ao usos dos espaços públicos urbanos, onde as pessoas seriam estimuladas a agir de modo mais participativo, crítico e autônomo das mídias de massa. Pelo fortalecimento das redes, das trocas imateriais e da produção de mídia independente, uma sociedade com membros mais solidários estaria se formando. Neste cenário, o atelier seria o mundo, as circunstâncias que o artista teria para intervir nele e as redes que fizessem a sua ação reverberar depois. A cultura visual traria uma espécie de “armadilha”. O estímulo à produção de imagens, a partir de uma situação criada por uma AAU, seria o poder de sedução imaterial de uma AAU que em nada teria a ver com a capacidade de compreendê-la. A reverberação midiática não indicaria que a AAU teria sido efetiva na produção de subjetividades no cotidiano urbano. Assim, observamos que os artistas não teriam elementos para avaliar de que forma o seu trabalho estaria atingindo o público. Além do poder se sedução, existiria o interesse implícito de quem divulga imagens de registro de ações artísticas. Não nos cabe aqui enumerá-los, mas os interesses seriam variados e, muitas vezes, passariam longe de qualquer proposta 271 272 Ibid Como já abordamos aqui anteriormente, ao explanar o pensamento de Andreas Huyssen. 101 artística que fora previamente idealizada pelo autor. Monitorar estes tipos de interesses que estariam sendo promovidos, em rede, fugiria do controle do artista. A pesquisa lançou três hipóteses centrais que foram confirmadas ao longo do trabalho. Na primeira, ligada ao estudo de caso em Berlim, demonstramos que as forças criativas representariam as forças de resistência local. Desta forma, arte, política e protesto desenvolveriam relações bastante aproximadas. Este estudo de caso nos auxiliou a ter novos parâmetros em relação ao uso do espaço público e das possibilidades que a cidade poderia oferecer para resgatar as experiências de caráter público e coletivo. A retomada da experiência com o mundo e com “estranhos” foi defendida por Walter Benjamin, Debord, Flusser e Habermas. Outro aspecto importante, trazido por Berlim, é em relação aos novos processos de memórias que estamos subordinados e como, publicamente, uma cidade poderia lembrar ou esquecer de seu próprio passado. Os conflitos entre um presente vazio, forjado pela realidade consumista, e um passado comunista, vivido durante 40 anos, seriam travados nos espaços públicos, de uso coletivo, e nos projetos de desenvolvimento traçados para a cidade. Estes encontrariam oposição através da articulação política e artística local. Foi por esse motivo que Andreas Huyssen nos foi essencial para o nosso estudo de caso. Zymount Bauman e sua teoria dos turistas e vagabundos complementariam a compreensão em relação ao “tempo” e “espaço”, elementos, ainda aparentemente, abundantes em Berlim. Na segunda hipótese, apresentada pelo capítulo dois, explicamos como o interesse privado expandiria sua área de atuação ao espaço público, desencadeando um engajamento social do artista. Para desenvolver nossa argumentação, fomos buscar na história da arquitetura elementos que nos ajudassem a compreender como o espaço público teria se tornado um lugar para demonstrações de descontentamento social e político. Além disso, retomamos o tema da memória, através da sua relação com a arquitetura, onde Benjamin aponta que os monumentos arquitetônicos funcionariam como a memória dos interesses de dominação que atuariam em uma cidade. Desta maneira, fomos levados a investigar as possibilidades de produção de imagens, a partir da cidade e a importância do registro nas AAU. O problema da instrumentalização do espaço público surgiria como um dos possíveis efeitos das AAU, principalmente quando promovidas por instituições formais de arte. As práticas 102 artísticas urbanas, ao serem institucionalizadas, levantariam várias questões nas quais Pierre Jeudy nos ajudou a pensá-las: como autoria, legitimidade e subversão. A terceira e última hipótese é de que a ação dos artistas é importante para explorar os conflitos socioculturais no espaço público. Neste capítulo final, procuramos mostrar, através de Habermas, como a interpenetração do poder público com o privado entregaria o espaço público à interesses particulares e tentaria fazer do marketing e da propaganda a única comunicação legítima no espaço público. O capítulo três trouxe as implicações que uma mídia manipuladora poderia causar na sociedade, através da propagação do sentimento de conformismo, padronização social e retomou a questão da espetacularização da sociedade, com as idéias de Debord. Este autor contribuiria para fortalecer o pensamento de Habermas, quando fala da importância de resgatar o mundo da vida que se encontra ameaçado pelos interesses do capital. As re-significações das imagens e o uso consciente dos aparatos tecnológicos seriam apontados por Benjamin e Flusser como uma possível solução para melhor nos relacionarmos com as imagens sintéticas e para desmistificá-las. Da mesma forma que o artista não poderia avaliar a efetividade da AAU e sua inteligibilidade para o público, este igualmente não dimensionaria uma AAU apenas pela reprodução de suas imagens. Assim, quando as favelas cariocas recebem artistas, como os apresentados na introdução do trabalho, acontece uma dupla troca: ganham os artistas com a venda dos registros da ação e com a aquisição do elemento imaterial e ganha a comunidade com a ornamentação do espaço público. O que chamamos de elemento imaterial seria a capacidade dos artistas serem associados, através daquelas imagens, à cultura da periferia, quando na verdade ninguém pode saber exatamene como se deu o processo de realização daquela AAU. Apenas por uma imagem, não poderíamos afirmar se os artistas haveriam mesmo feito parte daquela comunidade, mesmo que momentaneamente, e se teriam conseguido estabelecer trocas sinceras e travado relações espontâneas com os demais moradores. Quando “a representação da resistência”273 é comercializada, se faz necessário observar se as pessoas estariam se aproveitando da cultura visual para 273 (Tradução livre) Conferência Tactics and Critics Series, 26/01/2006. Vídeo disponível: http://www.youtube.com/watch?v=M7Zup69LsME Como já havíamos citado na página 20 deste trabalho. 103 fins particulares ou se as reverberações das imagens teriam coerência com a representação da realidade. Esta é a “armadilha”: quem detém a imagem pode utilizá-la como lhe convir. Por essa razão, ter realizado o estudo de caso em Berlim foi de enorme relevância, para identificar os aspectos contemporâneos da cultura urbana que poderiam ser trabalhados pelas práticas artísticas no espaço público. Ao pensar no atual contexto do Rio de Janeiro, notamos que realizar ações, nas vias públicas, poderia ser uma forma efetiva de mobilizar a sociedade em prol das causas coletivas que surgiriam na cidade, com as transformações urbanas causadas pela proximidade dos megaeventos. As novas práticas artísticas buscariam provocar reflexões em torno da utilização do espaço público urbano, para manifestações político-artísticas e para a livre expressão de idéias e produção de subjetividades. Poderia acontecer no Rio de Janeiro o que acontece em Berlim, onde arte e protesto estariam bastantes próximas e tanto a estética poderia criar impulsos políticos, quanto a política poderia gerar impulsos estéticos. 104 Bibliografia Arendt, Hannah. A condição humana. 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