I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA
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I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA
I SIMPÓSIO INTERNACIONAL DO NÚCLEO DE PESQUISA EM PINTURA E ENSINO – NUPPE Instituto de Arte / Universidade Federal de Uberlândia – IARTE/UFU MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 10 a 13 de setembro de 2012, Uberlândia – MG – Brasil ARNULF RAINER E HELENA ALMEIDA: EXPRESSÕES DO MOVIMENTO NA INTERSEÇÃO ENTRE PINTURA E FOTOGRAFIA Ana Rita de Almeida Ferreira Sumário Logo desde o seu advento, a fotografia estabeleceu com a pintura uma relação de mútuas influências que vem alimentando a criatividade dos artistas visuais até aos nossos dias. Ao assumir muitas das preocupações estéticas que outrora pertenciam ao domínio exclusivo da actividade pictórica, o suporte fotográfico desafiou os pintores para a exploração de novas linguagens visuais, não raramente inspiradas nos modos perspéticos inaugurados pela fotografia. O diálogo entre ambos os domínios levou ao esbatimento das suas fronteiras e, em muitos casos, ao hibridismo da técnica artística. É acerca deste hibridismo que iremos falar, analisando nas obras de Arnulf Rainer e de Helena Almeida a temática do movimento, quer como moção corpórea performativa, quer como estratégia de expressão psicológica. I. As influências entre pintura e fotografia - uma via de duplo sentido Desde o primeiro momento em que surge a técnica fotográfica, foi bastante evidente o seu potencial na esfera da criação artística, quer do ponto de vista estético do próprio suporte, quer do ponto de vista da aplicação dos seus fundamentos teóricos e processuais no domínio da pintura. Não é, portanto, de se estranhar o estreito diálogo estabelecido entre ambos os domínios, que foi assumindo contornos vários ao longo da história da arte e que certamente se prolongará ad aeternum, em novas versões híbridas ou no constante intercâmbio criativo propiciado pelos desenvolvimentos tecnológicos que a fotografia vai auferindo e pelos modos de reação assimilativa com que os pintores encaram tais progressos. A fotografia surge no início do séc. XIX, com a descoberta do modo fixar duradouramente uma imagem projetada graças a uma camera obscura. Ora, as camerae obscurae eram desde há vários séculos utilizadas pelos pintores como instrumentos MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil auxilares no processo do desenho rigoroso. Em 1558, Giambattista della Porta descreve no seu livro Magia naturalis1 o funcionamento da camera obscura e refere como os avanços na área da óptica, nomeadamente pelo aperfeiçoamento das lentes e dos espelhos, ampliaram as possibilidades deste mecanismo, tornando as suas projeções muito mais definidas. Della Porta explica que a utilização da camera obscura ultrapassa a de um mero instrumento de observação, já que se alguém contornar cuidadosamente as projeções obtidas, poderá produzir uma imagem extraordinariamente precisa da realidade projetada. Desde então, o uso da camera obscura como instrumento de desenho vulgariza-se e é amplamente referenciado em manuais de arquitetura e de pintura renascentistas. Por exemplo, apenas dez anos após a primeira publicação do livro de Giambattista della Porta, Daniele Barbaro escreve o seguinte acerca da camera obscura: Nela, podem ser vistas as formas sobre o papel tal como são na realidade, e as gradações, as cores, as sombras, movimentos, nuvens, as ondulações das águas, o voo dos pássaros e tudo o mais que se possa ver (... ) Vendo, portanto, o contorno das coisas no papel, pode desenhar-se toda a perspetiva que lá aparece, e depois sombrear e colorir as coisas tal como a natureza as dispõe.2 Isto é a confirmação de que o dispositivo que se constitui como antepassado direto do mecanismo fotográfico era já amplamente utilizado na prática artística durante o Renascimento. No século XVII, a camera obscura é usada pelos pintores de género holandeses como Vermeer ou van Hoogstraten. No século XVIII, são sobretudo os vedutistas italianos que a ela recorrem. A compressão do espaço em termos de profundidade e um certo esbatimento dos detalhes em primeiro plano devido à refração da luz, são duas das principais caraterísticas reconhecíveis nas pinturas feitas com o auxílio da camera obscura. As primeiras fotografias propriamente ditas surgem quando Joseph-Nicéphore Nièpce, em 1826, inventa um suporte de estanho coberto com betume branco da Judéia sensível à luz e que, exigindo um período de exposição prolongado, permitia fixar a imagem nele projetada através de uma camera obscura. Nièpce chamava heliogravura à sua técnica. Em 1829, associa-se a Louis-Jacques Daguerre, já após ter melhorado o 1 Della Porta, Magia naturalis, IV, § XVII, 6. Barbaro, La pratica della perspettiva, Veneza, Camillo & Rutilio Borgominieri fratelli, 1569, Parte nona, cap. V, pp. 192-193. 2 MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil suporte heliográfico substituindo o estanho por prata iodizada. Daguerre desenvolverá ainda mais este suporte, sobretudo ao nível da redução do tempo de exposição, e patenteia-o, em 1835 já após a morte de Nièpce, com o nome de daguerreótipo, contribuindo definitivamente para a vulgarização do processo fotográfico. O daguerrótipo era todavia uma imagem fotográfica diretamente positivada, pelo que ficava atrás do calótipo desenvolvido em 1836 por Fox-Talbot que, utilizando o processo negativo/positivo, permitia a reprodução quase ilimitada da imagem. Muitos dos primeiros fotógrafos eram pintores que, naturalmente, aplicam nas suas fotografias as mesmas regras académicas que utilizavam nas pinturas. Desde logo, começa a celeuma acerca do estatuto artístico da nova disciplina. Percebe-se que a fotografia não se limita a assumir o papel instrumental da camera obscura. Ela adota os mesmos géneros temáticos, os mesmos enquadramentos e as mesmas preocupações expressivas da pintura, ultrapassando a mera captação do instante real e, ao jogar com as possibilidades de encenação desse real, provando que também ela é capaz de entrar no domínido da ficção e das fabulações que caracterizam a atitude artística ao seu nível mais básico. Se a pintura nunca foi um mero processo mimético, também a fotografia demonstra não o ser. Entre os vários exemplos paradigmáticos desta relação construtiva face ao real que a fotografia soube exercer logo desde os seus primórdios, podemos referir o Auto-retrato como afogado de Hippolyte Bayard, de 1840. Trata-se com efeito de uma encenação do suicídio de Bayard, simultaneamente fotógrafo e fotografado, que no verso da foto escreve: O corpo que aqui se vê é o do Sr. Bayard, inventor do processo que acaba de ser mostrado. Tanto quanto sei, este pesquisador empenhou-se durante cerca de três anos na sua descoberta. O governo que apenas foi generoso para o Sr. Daguerre, disse que nada podia fazer pelo Sr. Bayard, e o pobre coitado afogou-se. Oh as injustiças da vida humana...!... Ele esteve na morgue durante vários dias, e ninguém o reconheceu ou reclamou o seu corpo. Senhoras e senhores, é melhor passarem à frente de modo a não ofenderem o vosso olfato, pois como se pode ver, a face e as mãos do senhor começam já a ficar putrefatas. Ao fotografar a encenação do seu suicídio, Bayard pretendia provocar comoção e denunciar de um modo irónico a injustiça de que tinha sido alvo por parte do governo francês, que pagara a Daguerre pelos direitos da sua patente e convencera Bayard a não divulgar as suas descobertas. A relevância desta foto está no facto de, pela primeira vez na história da fotografia, ser colocada em evidência a possibilidade de forjar o real, MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil escapando à sua tirania, através da representação fotográfica. A capacidade de desvincular a representação da mera reprodução não é portanto apanágio exclusivo da pintura. Ainda assim, apesar da pintura sempre se ter sabido emancipar face ao real, e da fotografia desde cedo demonstrar também tal capacidade, a verdade é que esta última possui uma eficácia mimética privilegiada que funcionou como fator libertador da pintura que, à época, se encontrava ainda constrangida por certos pressupostos de fidelidade representativa. Com o advento da fotografia, a pintura pôde adotar novas linguagens visuais, explorando mais livremente as suas próprias possibilidades expressivas, o que contrariou a ideia de que a fotografia usurparia o seu lugar, condenando-a à obsolescência. Quando os primeiros daguerrótipos vieram a público, o pintor Paul Delaroche supostamente terá afirmado “A partir de hoje, a pintura está morta”. Nada disso aconteceu; pelo contrário, a pintura beneficiou de um forte impulso criativo graças ao surgimento da fotografia. Ela reage explorando a cor – que, à época, era o grande calcanhar de Aquiles da fotografia, mais por uma questão de aceitação por parte da opinião pública, do que por uma questão de desenvolvimento tecnológico (é possível encontrar processos fotográficos a cores, desde o século XIX). As pinturas impressionistas, pós-impressionistas, expressionistas e os exemplos do fauvismo ilustram bem tal reação por parte dos pintores. O cubismo, por seu turno, contraria a unicidade perspética da fotografia colocando na bidimensionalidade do suporte múltiplos planos e pontos de vista simultâneos. Na mesma senda, também o abstracionismo concorre para essa demarcação da pintura face à fotografia, visto implicar uma fuga à imagem figurativa. Todavia, várias são as influências que a pintura recebe da fotografia: um certo exagero do chiaroscuro como o que ocorre nas pinturas de Manet; as desfocagens e o abdicar de detalhes nas figuras em planos posteriores, sobretudo nas pinturas de paisagem; a representação de halos caraterísticos das imagens fotográficas, por exemplo em algumas pinturas de Seurat; os arrastos e os flares de luz, que certamente interessaram os impressionistas; a casualidade das poses, como se as personagens tivessem sido apanhadas num instante fotográfico; as perspetivas ligeiramente picadas e até mesmo o aperfeiçoamento da representação da dinâmica motora possibilitada pela decomposição do movimento dos animais nas fotos de Muybridge3 e pelas 3 Antes destas fotos, a representação dos membros de um cavalo em movimento era bastante diferente, visto que a perceção não conseguia acompanhar a rapidez das suas posturas – Meissonier, por exemplo, MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil cronofotografias de Etienne-Jules Marey, que tanto influenciaram a representação do movimento nas pinturas futuristas e o Nu descendant un escalier de Duchamp. Do mesmo modo, várias são as influências que a fotografia, por seu turno, recebe da pintura, não só ao nível da iconografia, como também dos enquadramentos e da escolha da luminosidade. As fotos de paisagem regem-se sobretudo pelo pictorialismo, evidenciando estratégias de manipulação dos negativos, e por vezes dos próprios positivos, de modo a imitar o aspeto das pinturas. Contribuindo para advogar o caráter artístico da fotografia, o pictorialismo estende-se também a outros géneros adotados pelos fotógrafos, a partir da pintura: ao retrato, às naturezas mortas, às encenações históricas e aos nús, muitas vezes empregando a técnica da grattage sobre um preparado de goma bicromática que conferia um certo aspeto impressionista às fotos (como no caso das composições fotográficas de Robert Demachy). As fotos do corpo, recorrem às poses e aos panejamentos típicos da pintura de nú e, inclusivamente, surge um mercado destas fotos destinado aos pintores, que assim poupavam tempo e dinheiro, já que dispensavam a presença efetiva do modelo no seu atelier. Muitos pintores usavam fotografias como estudo preparatório para as suas telas, ou mesmo como composição a emular. É o caso de Gauguin que, em 1893, se serve de uma foto de Charles Spitz para pintar o quadro Pape Moe. Note-se também o exemplo de Munch, de Degas, de Pierre Bonnard, de Thomas Eakins, de Kirchner, entre tantos outros pintores que eram também fotógrafos. El Lissitzky, Rodchenko, Moholy Nagy, Man Ray, Aaron Siskind dedicam-se aos processos fotográficos de um modo inovador e, novamente desafiante para a pintura, abrindo a porta para a segunda vanguarda. Já plenamente aceite como uma forma legítima de expressão artística, a fotografia continua o seu diálogo com a pintura e as suas fronteiras esbatem-se. Em 1956, Pierre Cordier, inventa uma técnica que combina o processo químico da fotografia com a pintura, utilizando uma emulsão fotossensível, revelador e fixador, a par de vernizes, óleos e cera, para criar os seus quimigramas, que, tal como os fotogramas, dispensavam o uso de câmaras e de ampliadores. Sem ser propriamente uma fotografia, nem meramente uma pintura, o quimigrama é o resultado do hibridismo simbiótico entre ambas as formas de expressão artística. refez duas telas de modo a representar corretamente o galope do cavalo, após as experiências fotográficas de Muybridge Cheval au galop. MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil São muitos os exemplos que vêm contrariar a ideia de que a pintura e a fotografia são distintas nos seus propósitos e no seu registo estético, devendo por isso cada uma seguir o seu caminho de modo autónomo. O fotorrealismo, por exemplo, está na antítese do purismo que alguns advogavam em relação às formas de expressão artística, fazendo com que a pintura assumisse um modo de visibilidade e de presentificação plástica caraterísticos da fotografia, a tal ponto de ser impossível para o observador saber que está perante uma técnica manual. Sem pruridos, muitos pintores admitem a utilização da projeção fotográfica sobre o suporte a pintar, ecoando o recurso à camera obscura, todavia com intenções plásticas e concetuais bastante distintas das que alicerçavam a relação dos pintores renascentistas com a veracidade do real. Paralelamente, surgem novas formas de pictorialismo na fotografia, como nas obras de Minor White, Don Hong-Oai, Ellen Kooi, Alejandro Chaskielberg e as suas fotos noturnas ou Christian McManus, que trabalha as suas polaroids de modo a parecerem esborratadas adquirindo o aspeto de pinturas. O esbatimento entre as fronteiras da fotografia e da pintura reitera-se na utilização conjunta de ambas as técnicas no mesmo suporte. Enquadram-se nesta abordagem plástica, algumas obras de Robert Rauschenberg, de Andy Warhol, John Baldessari, Gerard Richter, ou mais recentemente Marc Lüders e Joana Lucas. É precisamente nesta linhagem que podemos também situar as obras de Helena Almeida e de Gerard Richter. II. Helena Almeida – moções do corpo/ moções da alma Helena Almeida nasceu em Lisboa em 1934 e é uma das artistas portuguesas mais reputadas nacional e internacionalmente. Ela vive e trabalha em Lisboa. Desde sempre, a sua vida esteve ligada à arte, já que é filha de Leopoldo de Almeida, o escultor do famoso Padrão dos Descobrimentos erguido na margem do rio Tejo. A obra plástica de Helena Almeida pode ser considerada como uma exploração de fronteiras, raiando a transgressão de um modo muito sóbrio, quase solene. Na década de 60 do século passado, ainda no início do seu percurso artístico, essa transgressão materializava-se no questionamento acerca dos limites da pintura, sobretudo ao nível do suporte – ou espaço representacional da obra. Telas exibidas reversamente marcam essa fase inicial da sua obra, que começará a evidenciar a influência de Lucio Fontana, por MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil exemplo quanto aos suportes fendidos pela pressão do corpo ávido por trespassar esse espaço bidimensional, densificando-o. A dimensão concetual que tal abordagem encerra, logo se estendeu ao questionamento acerca do espaço referencial significante, aqui entendido como o espaço que é apresentado ou representado no suporte e que não funciona como um mero cenário, mas como uma espécie de dispositivo de contenção do corpo e da sua ação performativa, cujas coordenadas padronizam estados ou narrativas emocionais. A fotografia é o medium artístico que marca a passagem dessa fase inicial do percurso de Helena Almeida para esta nova abordagem plástica, onde o corpo e o registo do seu movimento assumem protagonismo. Tela rosa para vestir ou Tela habitada são exemplos das obras que medeiam as duas fases e onde é notória a pulsão da artista para transgredir o espaço pictórico, libertando a representação do seu suporte através de uma estratégia de assimilação simbiótica entre si e o quadro. Esta estratégia coloca a tónica na concretude material daquilo que é representado, ora fazendo-o como que irromper de dentro do espaço da representação, ora incorporando a materialidade do suporte na materialidade do corpo representado. De qualquer um dos modos, parece afirmar-se uma igualdade apofântica entre o espaço físico da representação e aquilo que nele é representado; isto é, a artista procura transmitir a ideia de que, tal como o suporte, é igualmente real e palpável aquilo que nele se apresenta – há um mesmo nível de aproximação à verdade entre ambas as componentes da representação. A dicotomia dentro/ fora, ou interior/ exterior, marcam a espacialidade assim delineada e que evolui pelo conluio da fotografia com uma dimensão performativa, além do relação entre o suporte fotográfico, com a técnica pictórica e com o desenho – também este ganhando vida e matéria, por exemplo com o recurso à utilização de crinas de cavalo para a presentificação do elemento linear. A artista afirma que é como pintora que faz uso da fotografia, querendo com isto demarcar-se da ideia de que as suas fotografias apenas documentam o seu processo criativo; elas são linguagem plástica, têm em si um valor expressivo que faz das obras quase uma mise en abîme: dentro do espaço representacional fotográfico está subsumido um segundo espaço representacional onde o corpo fotografado vale também como mancha pictórica ou, pelo seu desempenho, produz manchas pictóricas: o corpo fotograficamente representado pinta/ desenha sobre esse mesmo suporte que lhe dá visibilidade e amplia as coordenadas quer do espaço representacional (note-se a especularidade sugerida em algumas obras), quer do espaço referencial. MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil Embora o corpo fotografado seja sempre o seu, não é o auto-retrato que interessa a Helena Almeida, o que está em causa é ainda a tal estratégia de aproximação à verdade, pela crueza e despojamento com que o próprio corpo é feito parte da obra, também ele seu suporte, além de tema – nas palavras da artista, o corpo é a obra. Mas quais são então as especificidades do diálogo entre a pintura e a fotografia nas obras de Helena Almeida? a) Duplicação do espaço Em primeiro lugar, e voltando à afirmação da artista de que é como pintora que utiliza a fotografia, interessa salientar que nas décadas de 70 e 80 o que está em causa é ainda a dirupção do espaço pictórico que enjaula na sua bidimensionalidade os corpos e os movimentos. Embora também se constitua como um suporte bidimensional, a fotografia permite encenar e testemunhar a emancipação do corpo que a tela constrange pela duplicação do espaço representacional. A perspetiva é desconstruída através de uma materialização do ponto de fuga, que deixa de ser um elemento geométrico subentendido no infinito pela confluência das linhas da representação para passar a ser um elemento concetual volumetricamente materializado, quer como fenda (como nas obras Saída negra de 1980 e Negro agudo de 1981), quer como esfera (Ponto de fuga, 1982). A libertação do corpo e do movimento pela duplicação do espaço não é uma fuga à pintura. Nas décadas de 70 e 80, ela está ainda bastante presente e, graças à simbiose com a fotografia, constitui-se como habitáculo. O corpo liberto da pintura procura nela o seu refúgio. b) Uma nova envolvência - Habitar a pintura À primeira vista, parece um paradoxo que o esforço de libertação do corpo culmine num novo enleio com a pintura. Há no entanto que reconhecer que o novo estatuto do corpo, i. e. da representação, permite agora o seu domínimo sobre o espaço pictórico: se já não é um cárcere, a pintura poderá finalmente ser a casa, a zona de conforto, da representação: de prisioneiro, o corpo passa a habitante. Ao fazer sair o corpo do espaço representacional da pintura para o espaço representacional da fotografia, Helena Almeida faz questão de demonstrar que o corpo subjuga e controla a pintura, podendo agora lidar com ela de um modo mais programado. Conquista-se enfim a suprema familiaridade com o ato pictórico, como bem testemunha o políptico Para um reconhecimento interior, de 1977. Nele, a pintura é pintada, agarrada e metida MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil no bolso. Em outras obras do mesmo período, a pintura é ingerida, usada, vestida, habitada, vivida, tudo isto graças à fotografia que além da envolvência que propicia pela duplicação espacial, acrescenta ainda à imagem uma nova temporalidade. c) Narrativas do movimento A nova temporalidade que a utilização conjunta da pintura e da fotografia faz aparecer é relativa a uma dimensão narrativa facilmente reconhecível nas obras de Helena Almeida. Por um lado, a serialidade permite cadenciar o movimento performativo do corpo estruturando a diacronia de uma acção. Por outro lado, o contraste entre o instante fotográfico e o tempo inerente à pintura que se lhe apõe, sugere tanto uma espécie de analepse, como de prolepse, em que por uma só imagem percebemos, de uma só vez, qual foi ou qual será o resultado de um movimento e o rasto da sequencialidade que está na sua origem. Esta narratividade proposta no diálogo entre dois planos temporais, é sobretudo uma estratégia de tradução e transmissão de emoções. É a própria artista quem afirma “... o que eu quero é tratar emoções. São maneiras de contar uma história.” As histórias contadas são acerca do próprio processo pictórico e acerca do movimento do corpo, que espartanamente testa a sua resistência e explora as especificidades da sua relação com espaço. d) Registo tensional e apontamentos psicológicos A partir dos anos 90, a presença concreta da pintura nas fotografias de Helena Almeida vai perdendo dimensão. Em determinadas obras, há um abandono da cor pela integração direta da mancha pictórica no espaço fotografado, cujo registo é sempre a preto e branco. Noutras, a mancha de cor torna-se bastante mais reduzida posicionandose estrategicamente nos interstícios recortados pelo corpo no espaço, ou em determinados pontos anatómicos, sugerindo zonas de tensão. Não significa isto que a fotografia deixa de possuir a dimensão pictórica que desde sempre caraterizou a intenção de Helena Almeida relativamente ao uso deste suporte artístico. Essa dimensão pictórica não concerne a iconografia ou a aparência do registo fotográfico, ela diz respeito à exploração das emoções sob a égide do posicionamento do corpo no espaço. Se tivéssemos de limitar a um único conceito a obra de Helena Almeida, esse conceito seria o de moção – é, enfim, uma poética da moção que a artista trabalha na representação das contingências do movimento e da força do corpo, traduzível em MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil moções psicológicas. Helena Almeida consegue-o através de uma espécie de paz incómoda que ressuma das suas obras e que contrasta com a inquietude esquizofrénica patente nas obras de Arnulf Rainer, também ele um pintor-fotógrafo que explora apontamentos e intensidades emocionais. III. Arnulf Rainer – da moção à perturbação Arnulf Rainer nasceu em 1929 na cidade austríaca de Baden. É um artista autodidata, não tendo conseguido encontrar no sistema de ensino do seu tempo a plataforma experimental que procurava. Em 1949 e em 1950, esteve inscrito em duas grandes escolas superiores de arte em Viena, mas desistiu passado um dia da primeira e passados três dias da segunda. A sua personalidade conflituosa motivou tal desajuste com o sistema académico, mas de certo modo contribuiu para o catapultar para a fama quando, em 1951, se mostrou deliberadamente ofensivo e desagradável para todos aqueles que estavam presentes na inauguração da primeira exposição do grupo que fundara um ano antes – o Hundsgruppe (ou grupo do cão). Desse grupo, faziam também parte Ernst Fuchs, Arik Brauer, and Josef Mikl. A atitude provocatória, transgressiva que marcou o debute da sua carreira artística é também uma caraterística que salta à vista nas suas obras. Tendo começado por uma incursão no surrealismo, Rainer cedo se interessa pelo gestualismo, mais conhecido como action paiting. A enfatização na pintura do próprio gesto que a concretiza é a principal marca deste processo abstracionista. Através dele, o pintor austríaco pôde conjugar uma dimensão performativa com uma estratégia concetual, arqueológica do ato pictórico. Pela dimensão performativa, Rainer jogava com uma certa crueza e brutalidade no uso das suas mãos e pés para pintar as telas, em movimentos energéticos, que muitas vezes o deixavam a sangrar. Não raramente, o sangue confundia-se com a tinta aplicada na tela. A dimensão arqueológica diz respeito a uma exploração da génese da pintura feita pelo paradoxo da sobreposição de camadas de tinta que, de acordo com Carlos Vidal (teórico que se tem debruçado sobre a obra de Rainer), não servem para recobrir aquilo que já estava pintado, mas para clarificar a MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil intencionalidade da pintura.4 Rainer chama a estas suas pinturas de übermalungen (em português, sobrepinturas). Este processo de adensamento revelador da pintura aposta à pintura é utilizado por Arnulf Rainer em quadros cedidos para tal fim por pintores pertencentes ao seu círculo de amigos ou em quadros que ele própro pintara, mas é também utilizado pelo artista sobre suportes fotográficos da sua autoria. Neste caso, a pintura não se sobrepõe a outra pintura, claro, mas repete em tudo a mesma intenção de convocar um momento prístino do acto representativo, um momento prévio a qualquer cânone, a qualquer procura de beleza e de recursos estilísticos, um momento apenas comprometido com a verdade do gesto pictórico, ainda em bruto, e com a verdade do referente em causa na imagem representada. Na fotografia, Arnulf Rainer encontra o despojamento propício para tal exercício de arqueologia artística. Na década de 60, Rainer faz experiências com drogas halocinogénicas e começa a fotografar-se a si mesmo numa série de posições e atitudes inspiradas nos comportamentos desviantes dos doentes mentais. O artista interessa-se sobretudo pelas explosões de movimento caraterísticas dos doentes catatónicos e explora-as plasticamente retrabalhando com pinceladas e traços enérgicos a superfície das fotos onde se auto-retratara. A série Face Farces é o resultado de tal exploração artística que Rainer levou a cabo até 1975. Apesar de ter feito fotos de corpo inteiro, a maioria consiste em retratos ou pormenores faciais sob contorção dos músculos. Rainer afirma não se considerar um pintor, mas sim um exibidor,5 alguém que trabalha a arte de modo a documentar a linguagem corporal, que é a base da comunicação humana e que também se constitui como uma forma de expressão da consciência. Expôr a consciência, inclusivamente a consciência alterada, é também um dos seus propósitos. As sobrepinturas são, nas palavras de Rainer, “exercícios de mortificação”, não sendo portanto de estranhar que tenha realizado uma série dedicada à temática das máscaras mortuárias. Usando a técnica da ponta-seca a partir de heliogravuras ou pintando directamente sobre as fotografias de máscaras mortuárias de uma série de personalidades ilustres como Beethoven, Mahler, Nietzsche, Schiller, Goethe, Heinrich Heine, S. Teófilo ou Robespierre, trabalha-as a um ritmo extraordinariamente lento, que contrasta com a densidade do registo final. As sobrepinturas chegam a demorar anos até 4 Carlos Vidal, O corpo e a forma. Dois conceitos, o mesmo tema. Cindy Sherman, Arnulf Rainer, Porto, Mimesis, 2003, p. 39. 5 Arnulf Rainer: Bodyposes', Flash Art, vol.39, Feb.1973, p.12. MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil estarem concluídas, limitando-se o artista a uma pincelada ou um risco por dia sobre a imagem. Em 1982, Arnulf Rainer interessa-se pelo caso de Hiroshima, pintando sobre uma série de 74 fotografias que retratavam a cidade destruída pela bomba atómica na década de 40. Há outros núcleos temáticos recorrentes na obra do artista austríaco, como o da cruz, que ele retoma nos anos 80, tendo realizado os primeiros trabalhos com elementos cruciformes nos 50; o das chamadas centralizações; o das pedras e das grutas; o das mulheres; o das esculturas gregas ou o das esculturas oitocentistas de Messerschmidt. a) A duplicação da representação e a fotografia como suporte intersticial Arnulf Rainer serve-se da fotografia como se esta fosse uma interface que lhe permite ir da representação reiterativa até à pura expressão. Há uma espécie de neutralidade proporcionada pelo suporte fotográfico que possibilita que o artista se sirva dele, por intermédio da pintura, para enfatizar a expressividade de uma imagem ou representação já existente noutros suportes. No caso específico da série Face Farces, é diretamente a expressividade corpórea que é feita imagem pela fotografia e reforçada pela expressividade do ato pictórico, mas na maioria das outras obras, a fotografia funciona como uma pausa diferenciadora entre um primeiro momento da representação, que muitas vezes não é da autoria de Rainer, e um segundo momento, em que Rainer acrescenta um novo estrato de expressividade e significação a essa representação primeira, duplicando o seu espetro, adensando-a como se de um palimpsesto se tratasse. Esta ideia das sobrepinturas funcionarem como um palimpsesto foi proposta por Carlos Vidal; interessa aqui salientar que é graças à fotografia que tal ideia encontra a sua validade. É a fotografia que permite duplicar a representação sobre a representação e, assim, enfatizar os seus eixos de força ou destacar pormenores reequacionando a sua importância na composição. b) O paradoxo da clarificação por excesso A enfatização dos eixos de força e o destaque de pormenores que resulta do modo como Arnulf Rainer conjuga a pintura e a fotografia vive de um paradoxo: ela é uma simplificação, ou redução, da essência da imagem, conseguida através do acentuar adensado de determinadas caraterísticas ou elementos dessa imagem. Frequentemente, a dimensão figurativa da imagem fotográfica fica soterrada sob o registo gráfico que lhe é MOVÊNCIAS DA PINTURA ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil aposto, no entanto, desse soterramento da figura primária, resulta a clarificação de uma estrutura expressiva que a singularizava, quase como uma impressão digital. c) A expressão psicológica do movimento Em Face Farces, não há esse adensamento que soterra a figura em prol da especificidade da sua expressão; há sim o tal sublinhar de elementos que parecem transbordar em feixes de energia. Por um lado, há uma dinamização estética da composição, que ganha cor e movimento; por outro lado, parece haver a materialização pictórica de forças psicológicas em ebulição, como se o corpo já não pudesse mais conter as comoções da alma. Elas jorram dos olhos, da boca, do nariz, dos ouvidos. Todo o corpo explode. Por vezes, de modo inverso, parecem recair sobre os rostos certos elementos de contenção, sugerindo o aprisionamento das emoções. Vestígios de garras silenciam a boca e impedem os olhos de abrir. As linhas envolvem o retratado tolhendo-lhe os sentidos, mas jamais a expressão. Mesmo nesta estratégia de aprisionamento, o movimento continua presente, como se o corpo estivesse prestes a implodir. Nas obras de Arnulf Rainer, a expressão é paralela à intensidade emocional que ressuma dos estados extremos da experiência subjectiva. d) O corpo como espaço de contenção subjectiva Se para Helena Almeida, o corpo encontra os seus limites na relação com o espaço onde se move, já para Arnulf Rainer, os limites do corpo correspondem aos da interioridade. Os fundos neutros indiciam que o espaço físico em redor da figura é um elemento anódino e que a dicotomia interioridade/ exterioridade é unicamente relativa ao corpo – é ele o espaço de contenção do ser e do seu movimento interior. O movimento do corpo, conforme Rainer o representa, nada tem que ver com a sua relação com o espaço exterior; é um movimento espasmódico, resultante da encenação de um desajuste e de uma falta de controlo psicossomáticos. A fotografia possibilita a encenação dessa relação conflituosa do ser consigo mesmo, que se exterioriza nos movimentos de explosão eufórica ou retração convulsa do corpo. A pintura sobre a fotografia pretende traduzir a amplitude dos movimentos interiores que subjazem a essas movimentações exteriores; é como se a fotografia nos desse o registo da moção e a pintura o registo da comoção – ou seja, da emoção – evitando, assim, fragmentar o modo como o ser é representado. MOVÊNCIAS DA PINTURA IV. ISSN 2316 – 2279 Uberlândia – MG – Brasil Conclusão A interseção entre a pintura e a fotografia nas obras de Helena Almeida e nas obras de Arnulf Rainer permite-lhes abordar as temáticas do corpo e do próprio processo de representação artístico, integrando uma inegável dimensão performativa. Ambos trabalham a transgressão, embora no caso de Helena Almeida o resultado plástico transmita uma sobriedade intrigante e no caso de Arnulf Rainer, pelo contrário, as obras espelhem diretamente a conturbação e o excesso de que vive a sua maneira de encarar o processo artístico. Plásticamente, há uma proximidade entre as obras dos dois artistas pelo uso de fotografias P&B e pela intervenção pictórica que sobre elas é executada mediante a recorrência a uma paleta de cores limitada e muito bem definida – preto, amarelo e vermelho, nas obras de Rainer; preto, azul e vermelho no caso de Helena Almeida. Poder-se-á ainda pensar numa certa estrutura ritualística no modo como as obras são encenadas e seguem um padrão não apenas relativo ao caráter serial que lhes está subjacente, mas que sobretudo diz respeito a uma tentativa de aceder e de apresentar uma essência prístina do ato pictórico – no caso de Helena Almeida, libertando a pintura do seu suporte tradicional; no caso de Arnulf Rainer, procurando através do excesso uma paradoxal pureza da representação.