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1999, p. 23-37
A percepção da ditadura:
HISTÓRIA ORAL , 2,
exilados da República Espanhola entre Franco e Perón*
O PROPÓSITO DESTE TRABALHO É ANALISAR a memória que os exilados da República Espanhola na Argentina construíram, em sua diversidade, em torno do regime de Franco e do peronismo. Passado um longo tempo, durante o qual os grandes líderes e os intelectuais foram a voz dos exilados, tentamos reconstruir as
representações que prevaleceram – ou que ainda prevalecem – em um grupo de
homens e mulheres comuns.
Os milhares de derrotados, homens e mulheres, que cruzaram as fronteiras para percorrer “o longo caminho do exílio” em conseqüência do fim da guerra civil espanhola de 1936-1939, tornaram-se, por este próprio ato, inimigos do
regime de Franco, como observou José Luis Abellán (1990, p. 18). Assim, o exílio e a oposição ao regime franquista aparecem como facetas indivisíveis do
mesmo fenômeno, sobrepondo-se às diferenças que os vários grupos políticos
desenvolveram e mantiveram durante os longos anos do exílio.
O tempo decorrido teve um forte impacto na memória de nossas testemunhas,
que seguiram seus próprios caminhos ao recordar e transmitir suas distintas experiências. Em tão longo exílio, que cobriu a maior parte de suas vidas, a memória
é uma ferramenta privilegiada que confere sentido à existência e, ao mesmo tempo, um conceito que permite ligar diferentes gerações, tempos e lugares.
Trabalhando com a classe trabalhadora italiana e a memória do fascismo,
Luisa Passerini (1992, p. 13)1 contrasta os silêncios na memória do nazismo e
do fascismo com as vívidas lembranças da guerra civil espanhola expostas nos
testemunhos reunidos por Ronald Fraser (1979). A hipótese levantada por
Passerini é que o fascismo ampliou a distância entre a esfera política e a vida co-
* Texto apresentado à X Conferência Internacional de História Oral. Rio de Janeiro, junho de 1998.
** Programa de História Oral, Faculdade de Filosofia e Letras, Universidade de Buenos Aires.
D O S S I Ê
Dora Schwarzstein**
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tidiana, criando marcas, ou vazios, na teia da memória. O fascismo e o nazismo foram derrotados; ambos transformaram-se em experiências estigmatizadas pela história, impondo, assim, um ônus negativo às memórias dos que viveram sob esses
regimes. Ao contrário, a guerra civil espanhola, a derrota da República e o triunfo
do regime de Franco permaneceram como um campo de significados disputado.
Conquanto Franco tenha vencido e seu poder tenha se tornado maior ao longo dos
anos, os republicanos conservaram intacta sua rejeição e mantiveram seu caráter de
“oposição”. Em contraste com os trabalhadores entrevistados por Luisa Passerini,
as testemunhas de Fraser demonstraram que as memórias da guerra civil estavam
ativas, dando sentido ao passado e articulando-se com o presente. O mesmo acontece com os exilados republicanos. A guerra civil, a perda da Espanha, o regime de
Franco, a idéia de um retorno iminente, são temas que aparecem repetidamente em suas
memórias.
No processo de exílio podemos distinguir pelo menos três momentos, que
coincidem com os estágios da chegada dos republicanos à Argentina. O primeiro
corresponde às pessoas que deixaram a Espanha, ou pouco antes do fim da guerra,
ou imediatamente após, entre 1938 e 1939. Entre estes podemos encontrar os que,
passaram por campos de concentração na França, no final de 1939 e início de 1940,
e mudaram-se rapidamente para outros lugares, especialmente a América. Um segundo momento é o dos militantes que ficaram na França até o fim da segunda
guerra mundial (1945), chegando tardiamente à Argentina, desapontados porque o
resultado da guerra não causou a queda de Franco. Finalmente, a partir de 1945,
começaram a chegar os que fugiram por razões políticas ou econômicas, incluindo
alguns indivíduos que escaparam das prisões franquistas. Em 1948, Espanha e Argentina assinaram um Acordo de Migração. Desde então, a imigração espanhola
aumentou, atingindo um ponto bastante elevado.2
Das análises dos relatos de nossos entrevistados tiramos elementos significativos que nos permitem estabelecer algumas diferenças entre os que vieram
logo e os que passaram por alguma experiência prévia, seja na Resistência francesa, seja na Espanha de Franco. As discussões entre os distintos grupos não
são diferentes, na Argentina, daquelas que preocuparam e dividiram as instituições espanholas e os partidos políticos durante os longos anos de exílio no México, na França ou na Inglaterra.3
A guerra e a repressão política imposta pelos vencedores produziram, em um
significativo número de exilados – especialmente naqueles que deixaram a Espanha
ainda muito jovens – um tipo especial de memória “congelada”. Isto é particularmente verdadeiro entre os que partiram durante a guerra civil, ou tão logo ela terminou. Seus testemunhos revelam algo como uma “não existência” depois de 1939.
Suas memórias concentram-se na Espanha de 1931 a 1939, seguindo-se uma abrupta
“...a coisa mais dramática foi que deixaram de existir depois da guerra civil.
Em resumo, jamais puderam viver integralmente o que lhes foi oferecido; de
um modo geral, todos prosperaram, mas estavam sempre em fantasias, falando
todos os dias sobre a Espanha...”4.
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fratura; tudo é visto e interpretado a partir da idéia formada e cristalizada ao final
da guerra.
O relato de uma de nossas entrevistadas, que partiu para o exílio ainda muito
jovem, é particularmente significativo quando comenta sobre o grupo ao qual pertenceram seus pais:
A falta de contato com o país real causou, no dizer de um outro exilado, uma
certa distorção em sua visão da realidade:
“Há uma tendência generalizada, uma espécie de otimismo um tanto exagerado, de voluntarismo; em resumo, uma carga de subjetivismo na apreciação do
que acontece no país. Acredito que isto aconteceu com todo mundo. E, acima
de tudo, aconteceu mais conosco porque houve um período muito longo em que
as comunicações e o conhecimento da realidade em nosso país não eram fáceis”5.
Para muitos deles, esta falta de contato com a Espanha representou uma quebra com o país real, que idealizavam em suas memórias.6 A defesa da legalidade republicana e a controvérsia entre os partidos políticos tradicionais tornaram-se elementos fundamentais da luta no exílio. Por outro lado, a preocupação com a
sobrevivência era o mais importante para a maioria dos republicanos que fugiram
após o fim da guerra civil e se estabeleceram em outros países. Isto fez com que
sua realidade fosse muito diferente daquela dos intelectuais e líderes reconhecidos
que eram encarregados das organizações republicanas no exílio.
Um assunto que dividiu nitidamente os exilados, na Argentina como em outras partes do mundo, foi o papel político dos exilados ante o papel protagonista
daqueles que permaneceram na Espanha. Para alguns grupos, apenas esses últimos
poderiam resolver os problemas do país. Na verdade, persistiram as diferenças ideológicas que haviam estado presentes ao longo da guerra civil. Relatos apaixonados
sobre as características da luta na Espanha, bem como sobre a organização de movimentos de solidariedade na Argentina, surgem nos relatos. Vale notar que a atividade no exílio enfocava a promoção de ações e movimentos de solidariedade com
a luta na Espanha, especialmente em conexão com a denúncia do regime e da terrível repressão imposta pela força franquista.
“Geralmente os exilados defendem a República Espanhola tal como fora em
14 de abril de 1931... Eu defendo o povo de dentro da Espanha... As soluções
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tinham de vir de Madri, da Andaluzia, jamais do exílio. Vale dizer, o exilado não
pode ser mais que um reflexo do que acontece lá dentro. Os exilados acreditam
que são eles os que têm a solução. Isto foi o que aconteceu com o exilado espanhol. Enquanto isso, as experiências e as mudanças da Espanha ocorreram dentro da Espanha, e não no exílio”7.
“Curiosamente, no movimento em prol da anistia para os exilados e presos
políticos espanhóis, houve uma parte dos exilados espanhóis que se abstiveram
de participar neste movimento. Eles achavam que não deviam pedir nada a
Franco, que Franco não deveria ser abordado para nada.... ‘nada de anistia, não
queremos nada de Franco, não queremos o perdão de Franco’, esta era a filosofia de alguns socialistas que se recusaram a participar deste movimento... Mas
havia, ainda, todas as bases das sociedades da colônia espanhola que não eram
tão politizadas, especialmente os galegos, que participaram e apoiaram toda a
luta. No exílio espanhol sempre houve divergências e diferenças”8.
Entre os que apoiavam estas posições, uma experiência na Espanha de Franco era indubitavelmente relevante. Isso fica evidente, por exemplo, na fala de um
exilado que chegou à Argentina nos anos 40, depois de ter sido militante clandestino na Espanha e de ter passado um período nas prisões de Franco:
“Porque estive engajado em atividades políticas clandestinas na Espanha,
pensava – sempre pensei e ainda penso – que a soluções para a Espanha não
poderiam jamais ser encontradas no exílio. As soluções para a Espanha se encontravam na Espanha, onde as experiências do país são vividas e onde as coisas são feitas. Se poucas coisas são feitas, as soluções são lentas; se muitas coisas são feitas, elas são mais rápidas.... As coisas não podem ser modificadas de
fora; eles podem colaborar com aqueles que estão dentro, mas nenhuma solução pode ser encontrada do lado de fora. Por exemplo, a representação legal
estava nas mão do Governo da República, mas quem era responsável pela verdadeira ação? As pessoas que estavam vivendo aquela situação terrível que ocorria na Espanha”9.
“... a maioria dos espanhóis no exílio dizia que eles é que tinham a solução,
porque haviam ficado fora das estruturas de Franco. E na verdade, quando as
coisas tiveram de ser resolvidas, quando Franco morreu, foram os espanhóis
da Espanha que encontraram as soluções, e os do exílio nada tiveram a dizer...
Eu sempre afirmei que esta [Espanha] tinha de ser mudada e o que não era
possível era mudá-la da Avenida de Mayo [uma rua de Buenos Aires, famosa
por seus cafés espanhóis], tomando um cafezinho, e por isto voltei para a
Espanha, as pessoas ansiavam por novas idéias”10.
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É claro que estes relatos incluem a análise de suas próprias narrativas e as visões historiográficas das testemunhas (Grele, 1975). Tal análise é útil para que definam suas experiências e lhes agreguem um significado. Este é o caso deste último
relato, de alguém que decidiu retornar à Espanha muito cedo, no início da década
de cinqüenta. Em alguns fragmentos, passado e presente se confundem, há o reconhecimento da luta heróica travada pela resistência interna e, disfarçada ou abertamente, uma crítica à política de uma parcela dos exilados.
Partindo de uma identidade de exilado dada pelo regime de Franco e pela derrota, passam a uma elaboração na qual definem sua atitude.
“Havia muitos exilados políticos que viviam em um mundo à parte, mais
como um grupo de espanhóis no exílio, aguardando a queda de Franco.... vivíamos com o povo argentino. Algumas vezes freqüentei as reuniões de exilados
que se realizavam nos cafés da Avenida de Mayo, o Iberia, o Tortoni, o Berna,
esses famosos cafés que ainda existem em Buenos Aires, e falávamos. Sempre
tinha a sensação de que eles não haviam sido capazes de conhecer a Argentina,
que tinham uma visão da Argentina que começava na Avenida 9 de Julho, no
porto, na Praça Once e no Retiro, e terminava na Constitución [isto é, era restrita ao centro de Buenos Aires]”11.
“É difícil dizer coisas deste tipo, porque é difícil transmitir o que foi vivido,
uma atitude que durante muitos anos foi a de olhar para o futuro, para o iminente retorno à Espanha, a idéia de que quando os aliados vencessem, poderíamos voltar para a Espanha, isto é, que tudo que era argentino, as coisas cotidianas, eram basicamente temporárias, e, assim, muitas pessoas deixaram de
comprar mobília”12.
As entrevistas se estruturam em torno de dois espaços quase míticos, “aqui”
e “lá”, Argentina e Espanha, dois universos simbólicos de itinerários e tempos cíclicos, de partidas e regressos. A idéia, pelo menos durante os primeiros dez anos,
do “regresso iminente” impediu que se integrassem na Argentina e, ao mesmo tempo, já não eram inteiramente espanhóis. Esta sensação de “lugar nenhum”, de não
estar ou pertencer a qualquer lugar, levou muitos deles a viver em um ambiente do
tipo gueto, enquanto aguardavam a queda de Franco.
IMAGENS
DO REGIME DE FRANCO
Os três anos de luta, entre 1936 e 1939, permitiram aos soldados republicanos conhecer a fundo o regime de Franco:
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“A visão do regime de Franco durante a guerra civil era tenebrosa, era um
morticínio, uma afronta aos direitos humanos...”13.
“Você tem idéia do que aqueles bastardos fizeram, os seguidores de Franco? Eles jogavam bombas em cima de pessoas que fugiam, eles bombardeavam
as estradas pelas quais muita gente estava fugindo, só estavam interessados em
nos destruir”14.
A necessidade de distinguir entre Espanha e Franco aparece repetidamente
nos relatos. Uma coisa é o país, lembrado quase obsessivamente, e outra é o regime
político imposto, que os forçava ao exílio e à busca de novas identidades.
“Uma coisa é a Espanha, e outra Franco... Sempre mantive minhas ligações
com os espanhóis exilados, com os Republicanos, sempre fazendo alguma coisa para mudar as coisas na Espanha...”15.
“Quando a guerra acabou fui para a França e, naturalmente, fui levado para
os campos de concentração... E depois disso fomos a diversos países, mais para
alguns lugares, menos para outros, mas fomos a muitos lugares. Estávamos perfeitamente conscientes de que a Espanha estava do outro lado dos Pirineus, jamais conseguíamos deixar de ter essa consciência, mesmo quando estávamos
no estrangeiro, ou enquanto estivemos na França. Do lugar em que eu estava,
perto de Carcassone, quando o dia era claro eu conseguia ver os Pirineus. E você
os vê sem enxergar o chão, como se aquelas montanhas estivessem flutuando
no ar, muito distantes. Era muito emocionante ver o outro lado, a Espanha dominada pelos seguidores de Franco. E então, também aí, vários níveis diferentes se misturam”16.
Este relato faz alusão à proximidade física da Espanha. Este jogo, de aproximá-la ou afastá-la, aparece nas entrevistas de diversos exilados, mesmo aqueles
que falam a partir de uma posição do outro lado do Oceano Atlântico. A Espanha
é uma cercania, cuja proximidade é tingida de afeição e subjetividade, porque Franco domina o país, mas, antes de tudo, ainda é a Espanha, a pátria perdida, a pátria
onde lutaram.
“Era o país onde passara toda minha juventude... era o país onde meu irmão estava preso... o país para onde fatalmente retornaria a qualquer momento... ainda que estivesse tão distante”17.
Essa proximidade aparece por vezes associada à consciência da derrota.
28
“O regime de Franco era a repressão que estava martelando o país, as deploráveis condições de vida, enfim, tudo que a Espanha era naqueles tempos.
Para os que viviam fora da Espanha, o regime de Franco implicava, ainda,
separação da família, dificuldade de receber notícias.
“Tínhamos conhecimento dos atos brutais do regime, sabíamos que estavam
matando as pessoas... mas, também, que não podíamos nos comunicar com meu
irmão. Era a coisa mais difícil do mundo, porque não podíamos ter uma relação direta com ele, em sua prisão espanhola... Não podia escrever diretamente
a meus pais, depois que voltaram para a Espanha, tinha de enviar as cartas a
alguns parentes que viviam em Palma de Mallorca, e de lá elas eram enviadas a
meus pais”19.
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Lembre-se de que éramos os perdedores, e a vingança cobrada à nossa gente
foi terrível. Mas, ao mesmo tempo, tínhamos certeza de que a situação na
Espanha teria uma saída”18.
Os que chegaram à Argentina depois de passarem algum tempo na Espanha
têm imagens singulares. Embora a maioria se refira às brutalidades do regime, alguns apontam aspectos da vida cotidiana que deixaram uma marca indelével em
suas memórias.
“O regime de Franco era brutal. Ninguém me contou, eu o vivi. Vi como
tiravam nossos companheiros da cadeia e os executavam. Antes de ir para a
prisão, tivemos de lutar na clandestinidade. Porque não havia outro caminho.
Isto é bem auto-explicativo. E, também, o fato da vida cotidiana, de estar caminhando na rua e ser parado porque passara em frente de uma bandeira sem
saudá-la (...)
Franco nos obrigava a viver em um mundo fictício, nesses aspectos menores da vida do dia-a-dia. Na pensão onde eu vivia, éramos todos, ou monarquistas, ou falangistas, ou então falávamos de futebol e nos perguntávamos, uns aos
outros, se havíamos ido à missa ou não... ‘Fiquei sabendo em Buenos Aires que
você pertenceu à FUE (Federación Universitaria Estudiantil)’, um de meus companheiros de pensão me disse anos depois... ‘Que mundo fictício, ao mesmo
tempo vivíamos naquela realidade bestial. Tínhamos de enganar uns aos outros,
não havia outro jeito. Essa constante teia de mentiras, degradante e brutal, também era o regime de Franco. E os companheiros exilados que não passaram por
isso não podem saber nada disto”20.
Mais uma vez manifesta-se a questão. Aqueles que de algum modo viveram a
experiência do regime franquista enfatizam uma oposição essencial com relação aos
exilados que cedo deixaram o país. Para todos eles, contudo, a passagem do tempo
tinha um efeito devastador:
“Continuamos pensando sobre a Espanha, e não sobre o regime de Franco”.
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Porque? Terá o regime de Franco se tornado algo distante?
“Distante, sim, mas ele – a lembrança dele – é tão maligno como no primeiro dia. Nisto eu não mudei, e muitas pessoas não mudaram. Mas há um momento em que você tem de quebrar... Bem, acontece também que os exilados
haviam se acostumado a viver no exílio. Haviam-se naturalizado, haviam-se
identificado com o novo país”21.
Nos relatos dos exilados há repetidas alusões ao fato das imagens do regime
de Franco irem, gradualmente, se diluindo. Havia, afinal, a pressão da vida que
continuava.
“Não importa se você se deu bem ou mal. Pouco a pouco você se identifica,
e há um momento em que você fica mais interessado no placar conseguido por
um time local do que no de um time espanhol, porque a Espanha está muito
distante...”22.
Talvez essa fosse a maior ameaça do regime franquista para os que estavam
no exílio: o temível risco, que aparece em todos os relatos, de perceber-se incorporado à Argentina.
“Percebi, provavelmente cerca de dez anos depois de casar, que não havia
nenhuma possibilidade... Doeu muito, tomar consciência de que não iria regressar à Espanha. A gente fica triste vendo que nossas raízes já estão aqui.”23
“Essa perseguição, de pensar o tempo todo na Espanha, se dilui pouco a
pouco... Há algumas pessoas que ficam, digamos, em um café da Avenida de
Mayo... Tínhamos de viver, estávamos sem dinheiro e, além disso, embora a
gente não se acostume logo, pouco a pouco, se acostuma...”24.
“...não se vive impunemente cinqüenta anos consecutivos em outro país.
Digo impunemente porque é algo pecaminoso, que implica que, sem que se
perceba, o novo país onde se está vivendo, sem intervenção de sua vontade, vai
conquistando você e você se pega amando-o e se preocupando com ele”25.
O REGIME DE FRANCO E O PERONISMO
30
O peronismo é um elemento altamente significativo, com notável presença na memória dos exilados e estreitamente ligado ao regime franquista. É preciso lembrar
que a Argentina foi o primeiro país a quebrar o bloqueio imposto pelas Nações
Unidas à Espanha de Franco, contribuindo com remessas de trigo para mitigar a
situação de fome na Península Ibérica.
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Alguns autores afirmam, talvez com certo exagero, que a sobrevivência do
regime franquista se deveu, fundamentalmente, ao apoio político e à assistência econômica que a Espanha recebeu da Argentina na segunda metade da década de quarenta, que teria dado a Franco a trégua de que necessitava enquanto aguardava a
transição entre a segunda guerra e a guerra fria.26
No período peronista, entre 1946 e 1955, a Argentina era um país contraditório em mais de um sentido. Durante a segunda guerra mundial, as relações entre
Perón e Franco deram origem a uma comunicação bastante intensa entre os dois
países, provocando o início de um fluxo de informações sobre a situação na Espanha.
“As informações que recebíamos eram muito importantes para desenvolver
grandes movimentos de solidariedade nesses países, sobretudo na denúncia da
repressão imposta pelo regime de Franco... as matanças. E, naqueles anos, houve atos e protestos de grande importância. E este foi o valor dos exilados, porque podiam agir como porta-vozes do que estava ocorrendo na Espanha, movimentos de denúncia.”27
“A Argentina estava muito próxima da Espanha. Havia uma comunicação
que não existia com outros países devido às ligações comerciais que a Espanha
sempre tivera com a Argentina e que foram grandemente desenvolvidas durante o período peronista. Os contatos eram mantido através de navios mercantes,
e eram bastante freqüentes... e estes contatos eram usados para tarefas clandestinas na Espanha; eram um canal. Havia navios mercantes indo e vindo, linhas
regulares de navios de passageiros que transportavam emigrantes e uma espécie de nova onda de migração espanhola começou a chegar à Argentina.”28
Após um longo período de restrições, a Argentina abriu suas portas à imigração espanhola em 1948 e, desta maneira, ofereceu hospitalidade a um grande número de republicanos. Muitos deles, contudo, não podem ser considerados “refugiados”, ou “exilados republicanos” no estrito senso, particularmente aqueles que
vieram diretamente da Península, cujas razões para emigrar eram fundamentalmente econômicas (Quijada Mauriño, 1989).
Para aqueles que estavam na Argentina há mais tempo era difícil entender o
peronismo, um movimento popular cujo líder, aparentemente, era o mais firme defensor de Franco. Para aqueles que chegaram depois de 1939, os anos verdadeiramente duros foram os primeiros, que trazem a lembrança das dificuldades de adaptação. E, curiosamente, o tempo mais fácil foi o do peronismo, depois de 1946,
porque já estavam estabelecidos, tinham empregos e, pouco a pouco, progrediram.
“O peronismo nos assustava... mas já estávamos bem adaptados ao país.
Tínhamos nosso grupo de amigos, nos expressávamos sem dificuldades...”29
31
SCHWARZSTEIN, D. A percepção da ditadura: exilados da República Espanhola entre Franco e Perón
“Como o peronismo era de natureza menos cruel que o regime de Franco,
as pessoas pouco a pouco se acostumaram. Mas a memória desse tempo é que
as pessoas não podiam expressar suas idéias, tínhamos de ser cautelosos, meu
pai vivia com a obsessão de que viriam pegá-lo, que a polícia viria, de que seríamos postos para fora, que tínhamos de ter muito cuidado! Havia uma atmosfera tremendamente paranóica. – ‘Somos estrangeiros, não podemos criticar’ –
mas, ao mesmo tempo, – ‘Eu não gosto deste governo, isto é fascismo...’”30
Diversos relatos mencionam o assalto ao Centro Republicano pelos membros
dos sindicatos peronistas, em que quebraram uma vitrine e roubaram a bandeira republicana e uma cópia especial da Constituição Espanhola. Este foi um evento que
chocou muitos deles.
“Foi tão absurdo, que os trabalhadores atacassem aqueles que os haviam defendido na Espanha, seus representantes, é incompreensível”31.
“Bem, é tão estranho que as mesmas pessoas, ou seus filhos, muitos deles
filhos de imigrantes que também eram espanhóis, de repente, presas na rede do
populismo fascista de Perón, se permitissem manipular e serem levadas a fazer
coisas absurdas, como o assalto ao Centro Republicano e o roubo da Constituição, que depois nos foi devolvida”.
Episódios como esse fizeram com que fossem encontradas muitas afinidades
ideológicas ente os regimes de Perón e Franco. Mas, ao mesmo tempo, apareciam
as diferenças:
“A guerra espanhola havia terminado seis anos antes, o caráter neofascista
dos peronistas argentinos estava bastante claro para nós. Aqui, ninguém os entendia... a interpretação que os republicanos deram ao peronismo foi muito elementar e clara... para nós era um movimento fascista, era o regime de Franco à
maneira Argentina”32.
“O peronismo não tinha as mesmas características de crueldade, dureza e
violência que se viram na Itália ou na Alemanha, ou na Espanha. Não era preciso aqui, porque eles se sujeitaram, quer dizer, a maioria se sujeitou ao regime,
e não houve necessidade de repressão. Para que? Se estavam a favor do regime!
Sim, este foi um fenômeno muito especial. Porque era a primeira vez que os
trabalhadores argentinos eram tratados como gente, como homens e mulheres,
como seres humanos”33.
32
Essas contradições do regime peronista ficavam evidentes sempre que eram organizados atos de solidariedade aos movimentos contrários ao franquismo com participação de intelectuais e políticos argentinos. O movimento sindical estava dividido:
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“Os sindicatos que não seguiam a orientação peronista participavam nos atos
de solidariedade aos movimentos antifranquistas espanhóis – por exemplo, o
Sindicato dos Ferroviários, o Sindicato dos Empregados no Comércio... Claro,
os sindicatos comunistas também... E aí, o resto dos sindicatos, a maioria dos
quais era, naturalmente, peronista, simplesmente não participavam. Os líderes
desses sindicatos diziam: ‘Mas eu apoio vocês, porque meu pai era galego’, ou
‘ele era republicano...’ mas não davam o apoio de seus sindicatos. Era esta ambigüidade do peronismo, este lado popular e seu peso reacionário, até mesmo
fascista, que ficavam evidentes nesta questão”.
Não era fácil, contudo, ultrapassar essas ambigüidades, como apropriadamente resume uma testemunha que recorda a revolução militar de 1955, que pôs fim ao
regime peronista:
“Quando o golpe de estado ocorreu, em 1955, fiquei muito feliz... com meu
espírito europeu, porque era revoltante. Não conseguia entender [o peronismo].
Mas, por outro lado, senti vontade de levantar meus punhos e começar a gritar
‘Viva a República’, no meio da rua, em defesa dos que protestavam contra o
golpe. Meus sentimentos eram contraditórios. Uma coisa muito estranha. Eu
estava fazendo, aqui, uma transferência de dramas de outro lugar”.
Alguns deles não agüentaram a situação e preferiram voltar para a Espanha.
As razões para o regresso, provavelmente, eram outras, mas no presente são resignificadas:
“Meu pai jamais se acostumou com isto, e por isso retornou relativamente
cedo para a Espanha.(...) Para alguns exilados espanhóis era muito difícil, para
aqueles que eram comerciantes era mais fácil, mas para um intelectual com outro tipo de valores, era muito difícil aceitar o peronismo”.
Durante esse tempo, a Argentina esteve associada a medo, apreensão e repressão.
“O aspecto positivo da Argentina desvaneceu-se em parte, devido à ditadura de Perón. Alem disso, todos eles se sentiam muito inseguros; primeiro, porque Perón e Franco tinham boas relações, e depois, havia a questão dos documentos, o famoso cartão, os certificados de boa conduta, tudo isso era terrível
para eles”34.
Como expressou um exilado catalão, o medo estava diretamente relacionado
à similaridade que viam entre os dois regimes.
“Quase todos os catalães estavam politicamente identificados com a República, eram republicanos contra Franco. Com o advento do peronismo não
33
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podiam deixar de associá-lo a uma posição política de simpatia com o regime
franquista, e com os métodos anteriormente conhecidos como “Falange”, que
haviam provocado diversas atrocidades na Espanha. Essas atitudes traziam
memórias desagradáveis... e o medo de repressão era terrível”35.
Ao mesmo tempo, os próprios exilados reconhecem que durante os anos do
regime peronista puderam executar suas atividades sem grandes limitações. Quando falam sobre as dificuldades concretas que enfrentaram, têm consciência de que
elas precisam ser entendidas no contexto de combate do regime às organizações de
esquerda e suas atividades. Não podemos esquecer que os exilados eram, em sua
maioria, identificados como “vermelhos”, isto é, socialistas e comunistas.
“Embora houvesse uma distinção entre uma atividade puramente catalã e
qualquer atividade local, as regras legais usuais eram aplicadas a nós. Quero dizer, se um dia houvesse uma conferência sobre o presidente Lluis Companys,
bem teríamos de identificar previamente aqueles que iriam falar, todas essas
exigências que representavam uma certa limitação ao que podia ser feito. Mas
estas eram as regras do país, não era uma discriminação contra nós”36.
A situação paradoxal que viveram os exilados espanhóis na Argentina é resumida por um de nossos entrevistados:
“Livrar-se de uma situação de ditadura para entrar em outra é impossível. O
peronismo provocou uma grande repulsa entre nós...”37.
O propósito do presente trabalho não foi analisar as diferenças ou similaridades entre os regimes de Franco e Perón. A análise das entrevistas permite-nos, ao
contrário, visualizar as múltiplas nuanças que aparecem na memória daqueles que
viveram estes regimes de ambos os lados do Atlântico. O regime franquista marcou
indelevelmente esses homens e mulheres, que transmitiram a seus filhos o que a
perda da Espanha representou para eles, mantendo viva a esperança do regresso,
marcado, primeiro, para o dia seguinte à queda do regime de Franco e depois, com
a renúncia do ditador, para depois de sua morte.
Para os exilados que chegaram à Argentina, o fenômeno do peronismo foi
uma experiência complexa e contraditória. De um lado, foi durante aquela década
que, superadas as dificuldades de ajustamento, começaram a usufruir de certa estabilidade pessoal e a compartilhar a prosperidade do país. Mas, de outro lado, encontravam muitas afinidades ideológicas entre os regimes de Franco e de Perón, o
que gerava uma complexa teia de apreciação e sentimentos. Isto foi mais marcante
para os que chegaram pelo final da segunda guerra mundial, período da ascensão
de Perón ao poder.
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Os autores que analisaram as relações entre Perón e a comunidade dos exilados republicanos apresentam interpretações divergentes. De acordo com Falcoff
(1982), as relações eram “excelentes”. Mas Rein (1993, p. 5) chega à conclusão de
que “(...) o governo peronista trabalhou para obstruir as ações dos exilados republicanos e frustar as tentativas de atividades antifranquistas na Argentina”, apesar
da opinião pública favorável à República. A memória dos exilados, no entanto, permite restaurar o lugar da representação em um roteiro que questiona a possibilidade de interpretações unidimensionais.
NOTAS
1. Cf. também Passerini (1987).
2. Entre 1948 e 1959, 236.360 espanhóis entraram na Argentina, de acordo com os dados fornecidos pelo Instituto Espanhol de Emigração. (Quijada Mauriño, 1989, p. 43-65).
3. Cf. Valle (1976); Fagen (1975).
4. Entrevista com C B., Paris, 1984.
5. Entrevista com E.L., Madri, 1986.
6. Em 1955, por ocasião da celebração do Congresso Socialista em Toulouse, Luis Araquistain
(1962, p. 152) afirmou que a Espanha de Franco diluíra e enfraquecera a Espanha migrante:
“A passagem do tempo enfraquece as migrações políticas e aumenta seu isolamento dentro
do mundo em que se estabelecem e em relação ao país de origem”.
7. Entrevista com M.L., Buenos Aires, 1994.
8. Entrevista com L.S.S., Buenos Aires, 1994.
9. Entrevista com M.I., Buenos Aires, 1987.
10. Entrevista com V.R., Madri, 1986.
11. Entrevista com M.I., Buenos Aires, 1994.
12. Entrevista com J.P. , Buenos Aires, 1985.
13. Entrevista com J.R. Buenos Aires, 1990.
14. Entrevista com P. V., Buenos Aires, 1995.
15. Entrevista com V.R., op. cit.
16. Entrevista com M.L., Buenos Aires, 1990.
17. Idem.
18. Entrevista com J.R., Buenos Aires, 1994.
35
SCHWARZSTEIN, D. A percepção da ditadura: exilados da República Espanhola entre Franco e Perón
19. Entrevista com M.L., Buenos Aires, 1990.
20. Idem.
21. Entrevista com J.R, Buenos Aires, 1994.
22. Idem.
23. Ibidem.
24. Entrevista com M.S., Buenos Aires, 1984.
25. Entrevista com J.R, Buenos Aires, 1994.
26. Cf. Rein (1993). O autor observa que as razões invocadas para explicar esta ajuda são as
afinidades ideológicas que supostamente existiam entre os dois regimes, ambos autoritários, nacionalistas, anticomunistas e antiliberais.
27. Entrevista com L.S.S., op. cit.
28. Entrevista com E.L., op. cit.
29. Entrevista com M.G., Buenos Aires, 1985.
30. Entrevista com M.L., op. cit.
31. Entrevista com P. V., op. cit.
32. Entrevista com M.L., op. cit.
33. Entrevista com P. V., op. cit.
34. Entrevista com C.B., op. cit.
35. Entrevista com I.V., Buenos Aires, 1989.
36. Idem.
37. Entrevista com M. G., op. cit.
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