baixa - Avatares Antenados
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baixa - Avatares Antenados
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA O FRACASSO COMO MOTIVO NO ÚLTIMO TEATRO DE JOSÉ IGNACIO CABRUJAS por OSCAR ROMÁN ZAMBRANO MONTES Curso de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos literários: Literaturas Hispânicas) RIO DE JANEIRO 2015 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA O FRACASSO COMO MOTIVO NO ÚLTIMO TEATRO DE JOSÉ IGNACIO CABRUJAS OSCAR ROMÁN ZAMBRANO MONTES Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Orientador: Profº. Zamorano Heras. RIO DE JANEIRO 2015 Doutor Miguel Ángel 3 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FACULDADE DE LETRAS COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA O motivo do fracasso no último teatro de José Ignacio Cabrujas Oscar Román Zambrano Montes Orientador: Professor Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras. Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas). Aprovada em: __/__/___ por _________________________________________________________________________ Presidente, Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras – UFRJ _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha – UFRJ _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Maria do Carmo Cardoso da Costa – UFRJ 4 DEDICATÓRIA À minha mãe, ao meu pai e ao meu irmão. 5 AGRADECIMENTOS A Miguel Ángel: mais do que orientador, amigo. 6 ZAMBRANO MONTES, Oscar Román. O motivo do fracasso no último teatro de José Ignacio Cabrujas. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas (Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. RESUMO Esta dissertação analisa as obras teatrais El día que me quieras (1979) e El americano ilustrado (1986), do dramaturgo venezuelano José Ignacio Cabrujas, como reação do autor, no plano imaginário, à agressão que o entorno da Venezuela liberal-petroleira exercia no grupo social dos intelectuais de esquerda da geração do 58. Procuramos discutir, neste estudo, questões relacionadas ao tipo de argumento e aos mecanismos da intriga, à caracterização dos personagens e à importância simbólica dos espaços e os tempos das peças, como caminho que nos permita estabelecer um diálogo com as mediações históricas, psico-sociais e estéticas que marcam as áreas de tensão entre o artista, o grupo humano de que forma parte e a realidade sócio-histórica venezuelana das décadas de setenta e oitenta. O súbito enriquecimento, pela nacionalização do petróleo, trouxe um estado de bem-estar económico ao país e a esquerda venezuelana, acomodada, pactuou com a democracia-liberal e os intelectuais de esquerda ficaram desnorteados, numa posição de negado fracasso. Este estudo tenta comprovar, mediante a análise crítica das duas peças de teatro de José Ignacio Cabrujas, o potencial explicativo da estratégia criativa da confissão dos personagens, em relação ao sentimento de fracasso de um grupo social, a que pertence o autor, e como parte de um plano para superar a impostura derivada do resguardo ideológico. Palavras-chave: José Ignacio Cabrujas, Teatro venezuelano, Dramaturgia, Motivos e estratégias, Petróleo, Comunismo, Tempo, Espaço, Personagem. 7 ABSTRACT The present thesis analyzes the plays El día que me quieras (1979) and El americano ilustrado (1986), by Venezuelan playwright José Ignacio Cabrujas, as the author's response, in the imaginary dimension, to the attack suffered by left-wing intelectual generation of 1958 in the contexto of a liberal, oil-based Venezuela. This study attempts to dicuss aspects related to the type of storylines, mechanisms of intrigues, characters development and the symbolic importance of the drama’s spaces and times, as a way to establish a dialogue among the historical, psycho-social and aesthetic mediations that frame the areas of tension between the artist, the human group that he belongs to and the social-historical Venezuelan reality of the seventies and the eighties. The fast enrichment process of the country thanks to the oil natioliazation led to an economical welfare state, which defined a pact between Venezuelan left-wing parties and the liberal democracy. As a consequence, left-wing intellectuals remained disoriented in the new landscape, in a position of denied failure. This research tries to prove, trough the critical analysis of two Cabruja’s plays, the explanatory potential of the creative strategy in the confessions of the charecters, wich is conected to the feeling of failure of a social group (Cabruja’s group) as part of a plan to overcome the imposture resulting from ideological isolation. Key-words: José Ignacio Cabrujas, Venezuelan theater, Drama, Oil, Comunism, Time, Space, Character. 8 Quienes celebran aquí sus citas vienen siempre de un "allá", del ancho mundo, y helos aquí decididos a aportar a este aquí el frágil conocimiento que han atoado fuera de ese lugar. Frágil conocimiento no es ciencia imperiosa. Intuimos que vamos siguiendo una huella Édouard Glissant (2006) 9 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO………………………………………………………………......……....10 INTRODUÇÃO ……………………………………………………………….....………….11 I. CONTEXTO SOCIO-POLÍTICO DA VENEZUELA ENTRE 1979 E 1986................17 II. CABRUJAS NO CAMPO TEATRAL VENEZUELANO.....…………………………27 III. MEDIAÇÕES...................................................................................................................35 IV. O MOTIVO DO FRACASSO.........................................................................................45 V. A ESTRATÉGIA DA CONFISSÃO................................................................................51. VI. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL DIA QUE ME QUIERAS (1979)…….....…52 6.1 Personagens……………..……………………………………………………………….65 6.2 Tempos…………………..……………………………………………………………….73 6.3 Espaço…………………..………………………………………………………………..85 VII. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL AMERICANO ILUSTRADO (1986)........108 7.1 Os personagens…………………………………………………………………………119 7.2 O tempo…………........………………………………………………………………....129 7.3 O espaço…………………………………………………………………………….......135 CONCLUSÃO…………………………………………………………………………..….154 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………................……………………....159 10 APRESENTAÇÃO O motivo do pesquisador Estudar e interpretar o último teatro de Cabrujas e escrever esta dissertação representa, em minha vida, o amarre de vários cabos que, até agora, permaneciam soltos. Por um lado, fiz teatro durante vários anos, dirigi várias obras na Venezuela (embora nenhuma de Cabrujas), por outro lado, estudei Letras na U.C.V, menção literatura (embora quase nada aprendesse sobre crítica e teoria dramática). Por fim, fui espectador de algumas montagens das obras de Cabrujas (embora eu nunca as estudasse, nem as representasse). Só agora, graças ao mestrado, consegui juntar todos estes interesses em um projeto amplo: realizar um estudo crítico sobre o teatro de Cabrujas. Esta dissertação é o resultado da coesão dos últimos anos da minha vida e se em alguns momentos parece inconsistente o atribuo às minhas próprias contradições. Lembro quando meus pais me levaram ao teatro para ver a última montagem de El día que me quieras, dirigida por Juan Carlos Gené, uma lenda do teatro latino-americano, na “Sala de Conciertos” do desaparecido Ateneo de Caracas, e da impressão que essa peça e seus personagens causaram em mim. Lembro a figura ensombrecida de Pío Miranda, tão pesada, tão magnética. Relembro o silêncio final. A tristeza. A desolação. Meus pais aplaudiam, todos aplaudiam de pé e eu sofri uma mistura de empatia e incompreensão. E Pío, escuro, tão parecido com meu tio Adriano, tão parecido com tanta gente, com o país. Senti empatia por Pío. Assim como Cabrujas e como Ricardo Píglia, eu também sinto certa inclinação pelos fracassados, na literatura e na vida, por esses seres que perseveram em se desperdiçar se destruindo. A geração do meu pai é a de Cabrujas e se me interessa tanto este tema é porque busco entender minha família para poder me entender melhor. Pode parecer paradoxal, mas o fracasso me seduziu. Germinou em minha vida uma curiosidade que aqui dá seus frutos. Aqui significa nesta dissertação e significa também neste país. Assim como me seduziu o tema do fracasso, o Brasil também me seduziu. Antes de decidir estudar aqui, viajei um ano pela América do Sul. De todos os lugares que visitei, cidades que conheci, nacionalidades, ambientes e estilos, nenhum outro me atraiu mais do que o Rio de Janeiro. O tempo tem passado, o ciclo do mestrado está terminando. Consegui, por meio de amigos, organizar uma vida ideal para a escritura da dissertação durante estes últimos seis meses de mestrado; vivo bem, confortável, com espaço, com tempo, sem pressões, perto da natureza, em uma casa absolutamente invejável e acima de minhas possibilidades reais (tenho vivido 11 que nem rico). Tive a singular fortuna de escrever uma dissertação de mestrado sem nenhum tipo de estresse, num clima prazeroso e através de um processo criativo disfrutado e feliz. Se falo destas coisas, e o faço em primeira pessoa, é porque acho que eu sou uma variável deste texto. E é curioso: durante todo o processo, eu próprio, como pesquisador e como estudante, experimentei em minha própria carne o fracasso. Não o estudei, o teorizei e o pesquisei simplesmente, mas também o vivi em dois momentos: o primeiro foi há três anos, quando tentei ingressar no mestrado de Letras da UFRJ e, apesar de ter tirado boas notas no processo seletivo, fracassei, como um personagem de Cabrujas, no final, na última prova que era também a mais fácil. O segundo momento de fracasso não aconteceu em nenhum momento específico, mas durante todo o mestrado, quando tive que reduzir o corpus analisado de quatro obras a duas, me vendo forçado a excluir Profundo e Acto cultural. O fracasso, mais do que tema e objeto de estudo, tem sido parte do processo. Analisar meticulosamente as obras teatrais escolhidas, suas partes, seus mecanismos, suas estratégias e técnicas, tem permitido conhecê-las, habitá-las. Tem sido um trabalho exaustivo, lento, mas muito disfrutado. Entretanto, houve momentos de desesperança, sobretudo na fase de análise. Momentos desnorteados. Que sentido, me perguntei mais de uma vez, tem toda esta obstinação, esta insistência em desarmar, desfragmentar, descompor e rearmar estas peças? Quem irá ler tantas páginas de análise? Esta é, acabava concluindo, uma tarefa “intranscendente”. Porém o prazer, essa é a palavra precisa, o prazer de escrever sobre as obras, de poder finalmente expressar tantas conexões de ideias, opiniões e impressões recolhidas e contidas por dois anos e mais, o prazer analítico (Borges falava do prazer de entender) me permitiu persistir nesta teimosia até o final. INTRODUÇÃO Acreditamos no teatro como força crítica da cultura de um povo localizado no tempo, entendido como expressão histórica e sintomática do panorama político-social vivido num momento determinado. A análise, a partir da Teoria de motivos e estratégias de Ángel Berenger, de duas obras de Cabrujas, El día que me quieras (1979) e El americano ilustrado (1986), serve como ponto de partida para interpretar relacionalmente um capítulo decisivo do acontecer nacional e indispensável na construção da idiossincrasia do venezuelano, conhecido pelo nome de Viernes negro (sexta-feira negra). Este episódio indica a data do desengano venezuelano respeito à sua economia, o início da caída econômica, paradoxalmente 12 acontecida uma década depois da chamada Grande Venezuela ou Venezuela saudita, caracterizada pela explosiva riqueza de recursos econômicos surgidos como consequência da nacionalização da indústria petroleira. Cabrujas consegue, mediante a sublimação da arte, projetar e comover o universo de complexos nascido do enriquecimento súbito vivido por uma sociedade, até então totalmente provinciana e bucólica, que, em poucos anos, encheu-se de arranha-céus. Venezuela quis ser um país moderno, mas seu desenvolvimento foi mais rápido do que o de seus habitantes, despistados entre tantas mudanças. Fez-se necessário apelar à imitação: a sociedade adaptou-se à nova situação mediante a pose. Para ser ricos e desenvolvidos bastaria aparentar sê-lo, porém a ambiguidade que surge da não correspondência entre a vida e a realidade – o que se torna insustentável – gera um sentimento que define a tensão entre o homem e seu entorno: o fracasso. A nacionalização do petróleo originou um acelerado crescimento econômico que repercutiu em todos os âmbitos da vida do país e ocasionou uma mudança na idiossincrasia do venezuelano, com respeito ao trabalho, ao progresso e à sua maneira de entender-se dentro do mundo. Nasceu, então, a Venezuela saudita, um país milionário habitado por pobres, uma terra mágica de onde brotava ouro negro, uma promessa. Viveram-se anos de aparente prosperidade, mas uma hecatombe contida e iminente, consequência da dívida externa, a desvalorização monetária, a corrupção e o controle cambiário cresciam entre a miséria de um país majoritariamente pobre. A Geração dos 58, ano que marcou o início da democracia, da qual Cabrujas formava parte, enfrentou, durante aquele período histórico, o dilema de provir de um grupo social ideologicamente comprometido com o cosmos comunista e seus projetos ou pertencer a uma nação cujo caráter, realidade e história os contrariavam. Na obra de Cabrujas, se problematiza a concepção irreal que a sociedade venezuelana tem sobre si mesma (vida pública), mediante a complexa luta interna de personagens que, na procura de uma correspondência entre seus anelos e a realidade do entorno, desnudam suas contradições pessoais (vida íntima) não só ante tudo e todos, mas, sobretudo, ante si mesmos. Começa uma etapa na vida do autor que afetará sua cosmovisão do mundo, seus argumentos e seu estilo dramático, etapa marcada por uma escolha vital: a procura da sinceridade. Ser autênticos, como sociedade e como indivíduos, como criador e intelectual, será uma obsessão para o dramaturgo. O grupo social de Cabrujas, intelectuais de esquerda da democracia, fundou sua razão de vida nos ideais utópicos do comunismo, sofreu uma progressiva e dolorosa desilusão, a perda de uma ideologia que a realidade estava derrotando. O sentimento de fracasso, para Cabrujas, define essa sociedade que pretendia se esconder por trás do engano e da impostura, 13 do mesmo jeito que agem, com ou sem consciência, os personagens das obras a serem estudadas. Eles sofrem demais. Pío Miranda, Arístides Lander e seu irmão Anselmo, todos carregam o peso de sua própria frustração e buscarão, por meio da confissão aberta, o caminho à sinceridade, que não resolve seus problemas (em ocasiões os aumenta), mas suprime a mentira e dá abertura ao reconhecimento. A insignificância histórica, a falsidade, as derrotas pessoais, o absurdo e as frustrações amorosas atormentam estes personagens que sempre disfarçam seus fracassos, frente aos outros e frente a si mesmos, por trás de ideologias, comportamentos e posturas que não lhes permite explicar-se ou se entender-se, tampouco para melhorar-lhes a vida. O autor apresenta universos dramáticos nos quais a confusão de relações resultante do encontro dos personagens com a cultura, a religião e a política os ancoram na história. Contra o sentimento de derrota e falsidade de seu país e grupo social, Cabrujas propõe, em seus dramas, uma estratégia: a confissão. O clímax de cada obra, tensão máxima da progressão dramática, é alcançado quando um personagem confessa seu fracasso e se revela ante os outros com sinceridade. O resultado é um processo de despojo que termina em situações radicais, violentas e dolorosas. A hipótese deste trabalho consiste em comprovar, mediante a análise crítica das duas peças de teatro de José Ignacio Cabrujas, o potencial explicativo da estratégia criativa da confissão dos personagens, em relação ao sentimento de fracasso de um grupo social, a que pertence o autor, e como parte de um plano para superar as imposturas derivadas do resguardo ideológico. Metodologia Antes de entrar no assunto, uma aclaratória: Dizemos último teatro como fórmula metafórica para significar o teatro mais maduro e definitivo de Cabrujas, que está constituído por El americano ilustrado e El día que me quieras. Houve otras obras posteriores, mas não abordam o tema do fracasso que era o que mais interessava a Cabrujas, e tal vez por isso não sejam tão transcendentes nem tenham sido tão representadas quanto este par de obras que até aqui analisamos. Porém, como viemos dizendo, houve mais obras. Em 83, Una noche oriental, em 90, Autorretrato de artista con barba y pumpá e em 95, Sonny, diferencias sobre Otelo, el moro de Venecia. Resulta evidente, desde um ponto de vista literal e estritamente cronológico, que o par de obras que analisamos compõem o “último” teatro de Cabrujas é um disparate ou um abuso. Para evitar mal entendidos, repetimos: “último” é metafórico. 14 Esta é uma pesquisa qualitativa, exploratória e bibliográfica. A forma de abordagem do objeto de estudo é qualitativa, porque consideramos que há uma relação dinâmica entre sujeito e mundo real; mais especificamente, entre dramaturgo, José Ignacio Cabrujas, seu grupo social, os intelectuais de esquerda e seu entorno, a Venezuela de 1979-1986. A pesquisa será exploratória, já que tem o objetivo de proporcionar maior familiaridade a cerca do teatro de Cabrujas e do contexto em que foi escrito, em vista de fazê-los explícitos, para poder relacioná-los dialeticamente e evidenciar suas estruturas significativas. Do ponto de vista do procedimento técnico, a pesquisa é bibliográfica, pois foi elaborada a partir de textos publicados (obras de Cabrujas, literatura, teoria literária, história venezuelana e latinoamericana). O fracasso do projeto do país é múltiplo e deve ser abordado desde diferentes perspectivas: em primeiro lugar, há um grande fracasso econômico, pois com tanto petróleo as condições tendiam a riqueza, mas sofremos um crescimento sem desenvolvimento (Maza Zavala, Márquez); em segundo lugar, há um fracasso político terrível no governo de Carlos Andrés Pérez, que fez voar mais alto do que nenhum outro governante as aspirações dos cidadãos que, em pouco tempo, se viram traídos (Blanco Muñoz, Caballero); ademais, há um fracasso social, o de uma sociedade deslocada de sua realidade, sem identidade e, certamente, despreparada para uma crise tão profunda e aparentemente interminável (Pocaterra, Arraiz Lucca); por fim, há um fracasso ideológico, o da utopia comunista e da revolução latino americana, desmanchada pela nova utopia do petróleo que prometia uma salvação mais tangível e próxima (Beltrán Figueredo, Eagleton). Marco teórico: Teoria de motivos e estratégias Esta pesquisa se soma aos trabalhos que, contrários às leituras imanentes, procuram decifrar os vínculos entre literatura e sociedade, âmbitos que não estão separados, a não ser no espaço acadêmico, para assim poder ler e entender a criação teatral como o que sempre tem sido: uma prática no mundo. Este modo de abordar os estudos literários tem sua origem na corrente sociológica da crítica marxista, vinculada à análise dos processos de produção literária, que tem como principais expoentes críticos Lukács e Goldmann. As inquietações analíticas deste último, Lucien Goldmann, culminaram no desenvolvimento do estruturalismo genético: teoria que se ocupa das relações entre a visão de mundo de um autor e as circunstancias históricas que a possibilitam. Ángel Berenguer, discípulo e amigo de Goldmann, parte dos estudos de seu 15 mestre para desenvolver uma proposta de análise específica para a pesquisa e crítica do teatro: teoria de motivos e estratégias. Nosso estudo sobre a obra de Cabrujas se baseia nestes mesmos pressupostos teóricos e pretende ser o primeiro a explicar, a partir de sua produção dramática, de forma coerente, as relações entre a visão de mundo do grupo social a que pertence o autor e o complexo tecido de circunstâncias históricas que possibilitaram essa visão. Cabrujas: autor, grupo social e entorno. Berenguer concebe o autor como um “eu individual” que faz parte de um “eu coletivo” que enfrentam ao “entorno” (2009, p.15) Em nosso estudo, o eu individual é Cabrujas dramaturgo e o eu coletivo é o grupo social dos intelectuais de esquerda da Caracas dos anos 70. O entorno, por sua vez, corresponde àquela Venezuela petroleira com sua economia falida e seu coração quebrado. O enfrentamento entre indivíduo e entorno acontece com a finalidade de melhorar as condições de vida do sujeito (individual ou coletivo). Nesse contexto, as obras de um autor são suas reações à agressão do entorno. Concretamente, El día que me quieras e El americano ilustrado são produtos da reação de Cabrujas (no plano conceitual) frente à tensão entre o entorno da Venezuela petroleira capitalista e o grupo social dos intelectuais de esquerda. Isto poderia parecer equivocado si consideramos as críticas que o autor recebeu de outros membros de seu grupo social pelo conteúdo ideológico de suas peças, mas trata-se de uma má interpretação; se Cabrujas criticava seu grupo radicalmente era para não o ver morrer por inadaptação ou se envilecer por falsidade. Na medida em que o grupo social ganha força, o sujeito ganha individualidade. (2009, p.15) Esta priorización de lo individual se irá abriendo camino en todas las manifestaciones científicas primero, después sociales y políticas y, paralelamente, en la expresión artística. En el plano político, los individuos tienden a promover dos actitudes: una conservadora del pasado recuperado del Antiguo Régimen y otra renovadora radical que busca nuevas vías para el desarrollo y el éxito del individuo y del grupo.1 (2009, p.15) A atitude de Cabrujas em relação a seu grupo é sem dúvida renovadora e radical: expõe o fracasso ideológico de seu grupo social, a esquerda intelectual venezuelana. Pío Miranda, ao renegar em repentina explosão o seu comunismo, para o espanto da família Ancízar, é, em certo ponto, o próprio Cabrujas, dizendo aos seus companheiros de geração: 1 Tradução: “Esta priorização do individual abrirá seu caminho em todas as manifestações científicas primeiro, depois sociais e políticas e, paralelamente, na expressão artística. No plano politico, os individuos tendem a promover duas atitudes: uma conservadora do passado recuperado do Antigo Regime e outra renovadora radical que procura novas vias para o desenvolvimento e sucesso do individuo e do grupo.” 16 fracassamos. Estabeleceu-se uma democracia condensada e rica. O petróleo inflamou as ambições, comprou as consciências, subvencionou a tibieza revolucionária. A possível revolução adoeceu de dólares. Desde a perspectiva coletiva, o campo cultural teatral venezuelano nunca teve tanto dinheiro, tanto bem-estar, tão boa saúde. Construíam-se teatros, promoviam-se festivais, germinavam grupos, criavam-se prêmios. Porém, desde a perspectiva individual, Cabrujas, membro e militante do Partido Comunista da Venezuela (PCV) e do Movimento ao Socialismo (MAS), sentiu em sua própria carne não só a contínua, sólida e histórica derrota eleitoral de ambos partidos, mas também a “capitulação” da guerrilha armada, a FALN. Cabrujas acaba se comportando como o “inconforme” dos “inconformes”, quando expõe no plano conceitual o fracasso de seu grupo, o fracasso da ideologia comunista e dos partidos em que havia militado, dentro das condições históricas do país naquele momento. Diante disso, propõe, como estratégia, a confissão do fracasso e a aceitação da realidade. Cabrujas é a consciência “inconforme” dentro da visão do grupo “inconforme” de esquerda, que deseja reconhecer seu fracasso confessando-o à sociedade como parte da procura por autenticidade e, no fundo, para a supervivência do grupo, ineficaz socialmente falando. Resumindo, esquematizando: o autor Cabrujas reage ao motivo do fracasso com a estratégia da confissão. Teoria de motivos e estratégias A teoria de motivos e estratégias de Ángel Berenguer parte do estruturalismo genético para explicar uma obra de teatro em relação a seu contexto e determinar a rede de relações entre entorno, grupo social e indivíduo, que entram em jogo na gênese das obras analisadas. De acordo com o sentido de relações, podemos explicar uma obra de duas maneiras: do “entorno” ao “eu” (produção da obra) e do “eu” ao “entorno” (crítica da obra). Em palavras de Berenguer: Produção da obra En el primer caso, el YO genera una obra partiendo del ENTORNO que se configura en el plano conceptual donde la transformación es constante. Esta inestabilidad [relación con el ENTORNO] creará en el YO una tensión a la que reaccionará significativamente a través de estrategias. Su reacción a la tensión se concreta en una reacción a motivos específicos que deben ser el objeto último de un estudio crítico. El YO individual adopta un conjunto de estrategias en esa búsqueda de la autenticidad. La producción final de la obra se ejecutará en el plano imaginario. 2 (p.24) 2 Tradução: “No primeiro caso, o EU gera uma obra partindo do ENTORNO que se configura no plano conceitual onde a transformação é constante. Esta instabilidade [relação com o ENTORNO] criará no EU uma tensão à que reagirá significativamente através de estratégias. Sua reação à tensão se concreta em uma reação a 17 Crítica da obra El YO receptor-crítico accede a las estrategias que ha utilizado el artista para la configuración de su obra y los motivos que la han alentado y materializa sus reflexiones en el texto crítico, regresando así al plano conceptual del que partió el artista.3 (2009, p.25) Essas seriam as bases do método de análise que Berenguer propõe, embora falte ainda mencionar um termo, um conceito, uma categoria analítica sem a qual resultaria impossível sistematizar o estudo da obra de arte no contexto da tensão entre o indivíduo e sua sociedade: as mediações. “Las mediaciones”, explica Berenguer, “se plantean en este método como estructuras cuya función consiste en establecer y sistematizar las áreas en que el YO se relaciona de una manera problemática (tensión) con el ENTORNO”4 (2009, p.26). São mediações, a rede de acontecimentos, de experiências e de ideias que afetaram a vida de Cabrujas e favoreceram sua inserção no grupo de intelectuais de esquerda venezuelanos, na segunda metade do século XX. Dividimos e catalogamos tais mediações a partir de três categorias: a mediação histórica, a mediação psicossocial e a mediação estética. Das mediações surge o motivo criador: a relação tensa entre Cabrujas e a Venezuela petroleira se concretiza no plano imaginário em um motivo, o fracasso. Frente esse motivo, Cabrujas reage significativamente por meio da estratégia da confissão. I. CONTEXTO SOCIO-POLÍTICO DA VENEZUELA ENTRE 1979 E 1986 O fracasso econômico. Ilusão e desengano Os processos históricos são sempre lentos e extensos, e, ao mesmo tempo, plurais e múltiplos, legitimamente irredutíveis. Porém, na necessidade de fazer um corte histórico de sete anos (os sete anos transcorridos entre os esternos de El día que me quieras e El americano ilustrado) e de achar neles uma coerência, como a unidade de tempo e de significado, consideramos que esse período está, sem dúvida, definido pela evidência do fracasso: o fracasso econômico nacional. motivos específicos que devem ser o objeto último de um estudo crítico. O EU individual adota um conjunto de estratégias nessa procura por autenticidade. A produção final da obra se executará no plano imaginário.”. 3 Tradução: “O EU receptor-crítico acessa as estratégias usadas pelo artista para a configuração de sua obra e os motivos que a tem induzido e materializa suas reflexões no texto crítico, voltando assim ao plano conceitual de onde partiu o artista.”. 4 Tradução: “As mediações são entendidas neste método como estruturas cuja função consiste em estabelecer e sistematizar as áreas em que o EU se relaciona de maneira problemática (tensão) com o ENTORNO” 18 O efeito que a descoberta da evidência do fracasso econômico produz nos venezuelanos tem o peso de um terrível desengano, cruel na medida em que acaba com as ilusões e as expectativas de um povo que se achava rico e estava bêbado de petróleo e ostentação até que, repentinamente, tropeça com a realidade (anunciada, mas ébria e felizmente ignorada) de uma dívida impagável e cobrada no pior momento. A evidência do fracasso se manifestou em uma série de medidas que o governo assumiu -desvalorização da moeda e controle cambiário- assustando os venezuelanos desprevenidos. O desengano nacional foi tão devastador em suas consequências quanto um desengano amoroso. Dor de orgulho ferido. Raiva, desilusão, mágoa. Tudo aconteceu numa sexta-feira, 18 de fevereiro de 1983, dia que entrou para a história venezuelana como viernes negro; nome melodramático -como é o venezuelano- e involuntariamente irónico, se consideramos o fato de que a causa para desengano parte, primeiro, da ilusão, da ilusão pela riqueza petroleira e sua cultura do milagre: o milagre do ouro negro. (O Caracazo de 1989 é uma consequência do viernes negro: do descontentamento geral plantado nesse dia brota, poucos anos depois, o Caracazo, um distúrbio, uma bagunça pública, uma revolta popular espontânea de enorme potência a qual se soma um grupo de militares descontentes e a convertem em um golpe de Estado). A história do século XX venezuelano pode ser explicada como a história do amor falido, apaixonado e furioso, entre o país e a riqueza petroleira. Um amor fracassado. O contexto temporal que nos interessa (1979-1986) representa para a história venezuelana a evidência do fracasso econômico (que é sempre um fracasso político), ao qual chamamos desengano. Cabrujas escreve as duas obras analisadas neste estudo durante o período do desengano nacional. O historiador Manuel Caballero, a fins do século XX, faz uma sintética revisão da história política venezuelana de democracia contemporânea, partindo fim da ditadura de Marcos Pérez Jiménez (1958) até o fim do século, dentro da qual encaixa perfeitamente a nossa metáfora do desengano amoroso nacional. Dizia Caballero que Esos cuarenta años han conocido una sucesión de gobiernos buenos, regulares y francamente malos, pero en su conjunto el balance es positivo: nunca en la historia de Venezuela los venezolanos habían vivido tan bien como en ese período. Esta no es una imagen idílica del período: a partir de 1977 (paradójicamente, después de haber recibido la mayor cantidad de ingresos de su historia gracias al aumento de los precios del petróleo), en Venezuela se produjo paulatinamente un proceso de empobrecimiento general, el mismo que conoció toda América Latina en la llamada “década perdida” de los ochenta. Hemos dividido ese período en dos partes: “El ascenso” (1958-1978) y “La caída” (1978-1998). Ese esquema es generalmente 19 aceptado por todos los analistas calificados de la historia venezolana reciente. 5 (Revolución, reacción y falsificación, p.56) O começo da “Caída” (histórica) coincide, como é pertinente que aconteça em qualquer relação de confiança traída, com o desengano nacional, com a descoberta por parte do venezuelano de que a fundamentação da confiança nacional, da sua fortaleza (econômica e, por extensão, social e psicológica) é falsa. O “Ascenso”, ao contrário, foi de esperança e idílio. Desde que Juan Vicente Gómez pagou a dívida externa em 1930, o país passou décadas solvente, fortalecido posteriormente pelos elevados preços do petróleo que seguiram à Segunda Guerra. Mais tarde, na década de cinquenta, os Estados Unidos duplicam sua produção de automóveis e, consequentemente, sua demanda de gasolina. Marcos Pérez Jiménez subjugou o país durante dez anos com uma ditadura militar e teve a sorte de governar com grande opulência econômica. Proliferam rodovias, urbanizações, monumentos, obras públicas: a cidade se urbaniza, se enche de prédios, de praças, de projetos urbanos. Depois do derrocamento de Pérez Jiménez, começa a democracia contemporânea da Venezuela. Na década de sessenta, se cria a Organização de Países Exportadores de Petróleo (OPEP), da qual Venezuela forma parte junto com outros países que desejam, em conjunto, proteger e regular seus negócios petroleiros. A economia venezuelana ganha em estabilidade e riqueza. O país crescia sem esforço, se construíam hospitais, universidades e escolas. Multiplicavam-se os movimentos artísticos, os espaços de cultura, as agrupações teatrais. O país acordava cultural e socialmente à democracia. A década dos sessenta está marcada pelo entusiasmo geral e pela esperança de crescimento e progresso. Uma voz dissonante A pedra no sapato da consciência nacional, o desmancha-prazeres solitário no meio daquele entusiasmo geral foi o historiador e articulista de imprensa Augusto Mijares. Este, já em 1968, desde a modesta tribuna que representa um jornal, alertava a respeito dos perigos envolvidos na exploração e venda do petróleo. O seu olhar histórico achava nos registros do tempo amostras suficientes de inconsciência e esbanjamento econômico para desconfiar do 5 Tradução: “Esses quarenta anos tem conhecido uma sucessão de governos bons, regulares e francamente ruins, mas, no geral, o balanço é positivo: nunca na história da Venezuela os venezuelanos tinham vivido tão bem quanto neste período. Esta não é uma imagem idílica do período: a partir de 1977 (paradoxalmente, depois de ter recebido a maior quantidade de ingressos da sua história graças ao aumento dos preços do petróleo), na Venezuela se produz paulatinamente um processo de empobrecimento geral, o mesmo que conheceu toda América Latina na chamada “década perdida” dos anos oitenta. Temos dividido esse período em duas partes: “O Ascenso” (1958-1978) e “A caída” (1978-1998). Esse esquema é geralmente aceito por todos os analistas qualificados da história venezuelana recente”. 20 sucesso da imediata nacionalização petroleira. Mijares temia que o enriquecimento sem esforço envilecesse o temperamento do venezuelano. O mito do ouro da época da colonização revivia em forma de ouro preto, segundo Augusto Mijares, no artigo “Riqueza fácil”, publicado no jornal El Nacional no dia 11 de setembro de 1968 e compilado no livro Coordenadas de nuestra historia: En nuestros días aquel mito multisecular ha vuelto a aparecer con el petróleo. Más tentador que las perlas, porque el ocio y los placeres que él paga los ve todo el mundo, y tan desmesurado, casi inconcebible, en la realidad, como el Dorado lo fue sólo en la imaginación, que parece algo sobrenatural. El Dorado no es hoy sino una colonia de delincuentes. Casi todos, precisamente, porque a la riqueza producida por el trabajo, prefirieron la riqueza fácil. 6 (2000. p.574) A euforia nacional não permitia prudências. Enriquecíamos estratosfericamente, sem pausas, sem escrúpulos, grosseira e opulentamente, na mesma medida em que gastávamos. “O que fácil vem, fácil vai” é um ditado que se aplica para definir as políticas econômicas dos programas de governo venezuelano da segunda metade do século XX. Uma sociedade rica, porém formada não de trabalhadores, mas de parasitas. As vacas gordas Os milhões com os quais sonhava a ansiosa Venezuela dos anos sessenta chegaram duplicados nos anos setenta graças a um evento inesperado: a crise mundial do petróleo de 1973. Com a Guerra do Ramadã ou Guerra de Outubro - enfrentamento militar entre Israel e os países árabes (Egito, Síria) pela Palestina - os estados do Golfo Pérsico, membros da OPEP, colocaram uma penhora petroleira sobre os países amigos de Israel (Estados Unidos e Holanda). Com a culminação dos conflitos no Médio Oriente, os países petroleiros do Golfo Pérsico haviam deixado, em conjunto, de exportar petróleo aos Estados Unidos e, em consequência da baixa oferta, os preços do petróleo dispararam. E o resultado? Os ingressos do governo venezuelano quadruplicaram. Com um novo sentido de confiança, o presidente Carlos Andrés Péres prometeu -convenceu ao país- que Venezuela desenvolver-se-ia significativamente a mínimo prazo. Paradoxalmente, a Venezuela acabou com sua indústria nacional. Resultava mais barato comprar e importar qualquer coisa do que produzi-la. Extintos os industriais, restaram apenas empresários. Quem concertava máquinas de lavar, passou a importá-las e abriu uma 6 Tradução: “Em nossos dias aquele mito multissecular voltou a aparecer com o petróleo. Mais tentador do que as pérolas, porque o ócio e os prazeres que ele paga são vistos por todos, e tão desmesurado, quase inconcebível, na realidade, quanto o Dourado o foi só na imaginação, que parece algo sobrenatural. O Dourado não é hoje senão uma colônia de bandidos. Quase todos, precisamente, porque à riqueza produzida pelo trabalho, preferiram a riqueza fácil.” 21 loja de máquinas de lavar. Quem fazia roupa, agora a comprava na China ou no Peru e a revendia na Venezuela. As famílias com dinheiro viajavam até Miami para renovar sua indumentária e comprar novos eletrodomésticos (os venezuelanos eram muito bem recebidos, então). Daquela época se origina a expressão do tabaratismo, isto é, quando um venezuelano entrava em uma loja, de qualquer país, perguntava, aleatoriamente, o preço de um produto e depois de escutar valor, invariavelmente, respondia “Tá barato, me dá dois”. Com o petróleo, perdia sentido qualquer produção em matéria de custos, o que importava era estar perto do fluxo milionário do petróleo, distribuir e tomar da grande riqueza matriz. Sucede que la fortaleza de la moneda venezolana y la debilidad o inexistencia de una industria y de una agricultura habían acostumbrado, con el estímulo natural de esa moneda “dura”, a importar todo; el alud de dinero que llegó al país a partir de 1973 no hizo sino magnificar esa tendencia; y en la clase media venezolana se hizo costumbre no esperar a que los artículos de consumo llegaran a los puertos de su país, sino ir a buscarlos a su lugar de origen. En esas condiciones, comprar en el extranjero no se veía como una catástrofe sino como un hábito 7. (CABALLERO, 2003, p.165) Estimulado, atraído pela enorme quantidade de ingressos, o presidente Carlos Andrés Pérez prometeu o imediato desenvolvimento do país e nomeou o seu delírio como La Gran Venezuela. Pensava usar os benefícios do petróleo para aumentar o emprego, combater a pobreza e investir na diversificação da economia. Como se aproximava, rapidamente, a nacionalização do petróleo, o venezuelano tinha muita confiança em sua solidez monetária. Por isto, gastava o lucro sem prudência. Assim como na história da formiga e a cigarra, os governos venezuelanos, cigarras caribenhas e inconsequentes, não pouparam, não inverteram, mas gastaram todos os recursos. A anelada nacionalização saiu cara e, apesar dos ingressos, teve que solicitar empréstimos que até hoje a Venezuela negocia. Advertências ignoradas. Crónica de um fracasso anunciado Mais uma vez, depois de seis anos, a voz dissonante de Augusto Mijares regressa ao ataque desmancha-prazeres e direciona certeiramente os temas relevantes antes de disparar. Com dois anos de antecedência, já em 1974 (18 de fevereiro, mais especificamente), Mijares publica um artigo intitulado “Petróleo”, onde polemiza o projeto de nacionalização e exploração direta do petróleo venezuelano. “Ha prevalecido un ambiente de entusiasmo y de 7 Tradução: “Acontece que a força da moeda venezuelana e a debilidade ou inexistência de uma indústria e de uma agricultura tinham se acostumado, com o estímulo natural dessa moeda forte, a importar tudo. A avalanche de dinheiro que chegou ao país a partir de 1973 não fez senão magnificar essa tendência; e na classe média venezuelana se fez costume não esperar que os artigos de consumo chegassem até os portos do seu país, mas ir procurá-los no seu lugar de origem. Nessas condições, comprar no estrangeiro não era visto como uma catástrofe e sim como um hábito”. 22 anticipada celebración que por esto mismo nos mueve a desconfiar8” (2000, p.602). Mijares argumenta que ter alcançado a data formal, indicando o prazo para a reversão de contratos petroleiros, não é indicativo suficiente, não é prova de que o país estivesse pronto e preparado. Não era possível sequer, escrevia Mijares, ter um correio eficiente, controlar a situação das crianças abandonadas, tampouco ter um sistema de transporte urbano funcional. Como, então, em meio ao fracasso administrativo, propor a exploração direta do petróleo estando o país em situação de fracasso administrativo? Teme, com toda justiça, que prolifere a corrupção. Conclui dizendo: “No sé si juzgarán demasiado pesimistas mis observaciones, ningún examen de conciencia puede dejar de ser amargo9” (2000, 604). A sorte da futura empresa petroleira - que mesmo antes de existir se projetava como a futura principal empresa do país - dizia Mijares, “no puede dejarse a merced de las fluctuaciones políticas10” (2000. p.605). Mijares argumentava que a riqueza petroleira não devia ser usada para comprar o bem-estar, mas para fazer com que a produção e a indústria endógena crescessem. Em poucas palavras, como costumava dizer metaforicamente Arturo Uslar Pietri, se devia sembrar11 o petróleo; caso contrário, no melhor dos cenários possíveis (ausência de corrupção e “maravillosa aptitud administrativa y técnica 12” do governo), isto é, num cenário ideal, utópico, a verdadeira situação da Venezuela seria patética. Nesse cenário, o país, segundo Mijares, converter-se-ia numa empresa, uma gigantesca empresa, nada além disso. E não só seria a Venezuela uma empresa para explorar diretamente o seu petróleo, mas -e aqui está a gravidade- para transformá-lo em dinheiro para comprar outros produtos, solver carências econômicas de todo tipo e assumir tarefas que não são de sua pertinência. Observemos o absurdo de dita situação, como propõe Mijares, invertendo a relação. Imaginemos que a cualquiera de las actuales empresas petroleras mundiales se la hipertrofiara hasta el punto de asumir responsabilidades del Estado, que tuviera que atender a todas las necesidades y gastos de una nación: salubridad, ejército, comunicaciones, roscas profesionales y políticas, niños y locos que andan sueltos, madres solteras que ya no tienen dónde seguir “alumbrando”, vegetación que arde y ríos que se secan, subsidios para cuanto se produce, un Banco Agrícola que con inevitable puntualidad pierde su capital cada cierto tiempo y unos Institutos Autónomos que nunca son 8 Tradução: “Tem prevalecido um ambiente de entusiasmo e de antecipada celebração que, por isto mesmo, nos faz desconfiar”. 9 Tradução: “Não sei se julgarão pessimistas demais minhas observações, nenhum exame de conciência pode deixar de ser amargo.” 10 Tradução: “não pode ficar a mercê das flutuações políticas”. 11 Tradução: “plantar” o petróleo. 12 Tradução: “maravilhosa aptidão administrativa e técnica” 23 autónomos para dejar de pedir auxilios al gobierno, los problemas que la industrialización y los de la reforma agraria, etc. etc. 13 (2000.605) O cenário parece absurdo. Porém, foi isso mesmo o que aconteceu, o Estado virou empresário e, com milhões de petrodólares, sustentou a economia da Venezuela. A nacionalização do petróleo e a criação da empresa Petróleos da Venezuela (PDVSA) aconteceu em 1976. Contudo, neste mesmo ano, o país adquiriu uma enorme dívida para financiar os custos da nacionalização. Terminava o período das vacas gordas e se aproximava o de vacas magras, para o qual o país não estava preparado. Em 1979, Luís Herrera Campins é eleito Presidente da República e recebe o país com o preço do petróleo ainda alto e o verá subir mais durante seu mandato, fato que não impedirá o aumento das dívidas até ocasionar um colapso. A corrupção administrativa, a ineficácia oficial, a falta de planejamento de vários governos consecutivos, são variáveis que se coordenaram para preparar a debacle. Entretanto, a alegre temeridade econômica do governo de Carlos Andrés Pérez, que falava da Gran Venezuela e prometia paraísos (ignorando os sinais que anunciavam tempos tormentosos), e o cumplice silêncio de Luís Herrera Campins, indeciso mandatário num momento crítico, foram fatores que contribuíram para ocultar a catástrofe. O desengano O venezuelano bate de frente com a evidência do fracasso econômico nacional na sexta-feira 18 de fevereiro de 1983 (vienes negro), quando o país acorda com a moeda desvalorizada e com a venda de divisas suspendida. Venezuela, que se achava rica, experimenta, então, os primeiros sintomas da doença econômica, o começo da instabilidade monetária do país. O sentimento é de incompreensão, de incredulidade, de impotência. Retomemos a analogia amorosa que usamos ao princípio: o venezuelano é como um noivo apaixonado de sua noiva, uma garota morena, voluptuosa e sensual chamada Riqueza Petroleira, melhor conhecida como Rica. O namorado se sente muito bem, tem passado as últimas duas décadas feliz, doido de amor por Rica. Está contente. Tio Augusto, porém, não cessa de lhe advertir 13 Tradução: “se qualquer das atuais empresas petroleiras mundiais fosse hipertrofiada até o ponto de assumir responsabilidades do Estado, e tivesse que atender todas as necessidades e gastos de uma nação: salubridade, exército, comunicações, roscas professionais e políticas, crianças e loucos que andam soltos, mães solteiras que já não têm onde seguir dando à luz, vegetação que arde e rios que secam, subsídios para quanto se produz um Banco Agrícola que com inevitável pontualidade perde seu capital cada certo tempo e uns Institutos Autônomos que nunca são autônomos para deixar de pedir auxílios ao governo, os problemas que a industrialização e os da reforma agrária, etc., etc.” 24 que Rica é perigosa e desperta a desconfiança nele, que parece estar escondendo algo, mas, cego de amor, ele o ignora. Até que, um belo dia, numa sexta-feira, 18 de fevereiro, o noivo volta mais cedo do trabalho e descobre que Rica o trai com o porteiro do prédio. O efeito é, logicamente, imediato: a ilusão se derruba frente à evidência do fracasso porque Rica não era o tipo de garota que o venezuelano achava. A dívida contraída em meados dos setenta e cobrada repentinamente pela banca internacional, em um momento em que Venezuela enfrentava uma forte fuga de capitais, causou um colapso nas reservas. A dívida saiu de controle e o Banco Central da Venezuela se declarou insolvente em fevereiro, forçando o governo (para frear a fuga de capitais, negociar com a banca e, ao mesmo tempo, organizar as coisas dentro do país) a tomar uma série de medidas econômicas extremas: desvalorização e controle cambiário, que acabaram não adiantando. A explicação é complicada, uma vez que o explosivo coquetel de fatores econômicos que ocasionaram o viernes negro tomou a todos –inclusive o governo - de surpresa. No meio deste cenário, o país estava confuso e carente de explicações. A economia se derrubava de forma abrupta e repentina e o governo parecia sem soluções. Suas ações foram brandas: primeiro, suspenderam a venda de divisas por dois dias, prazo que foi estendido por mais uma semana, passada a qual estabeleceram o controle cambiário. Tal fato foi encarado como um ato de indecisão. “El gobierno se encontraba”, segundo Manuel Caballero, “entre la espada y la pared; y optó entonces por una solución media: estableció un control de cambios pero se negó, como lo pedían algunos personeros del gobierno mismo, a una devaluación lineal.”14 (2003, p.167) Decretou-se uma desvalorização necessária, embora insuficiente, do valor do bolívar em relação ao dólar: houve uma desvalorização, no mercado oficial, de 4.30 a 7 bolívares por dólar. “La devaluación”, explica Manuel Caballero, “trajo consigo el agravamiento de otro fenómeno que ya había comenzado a manifestarse: la inflación. Este es un fenómeno mundial, pero Venezuela parecía a resguardo de eso: Venezuela parecía una isla rodeada de petróleo por todas partes.”15 (2003, p.170) 14 Tradução: “O governo se encontrava entre a espada e a parede; e optou então por uma solução média: estabeleceu um controle de câmbios, mas negou-se, como o pediam alguns achegados ao governo, a uma desvalorização linear” 15 Tradução: “A desvalorização trouxe consigo o agravamento de outro fenômeno que já havia começado a se manifestar: a inflação. Este é um fenômeno mundial, mas a Venezuela parecia livre disso: a Venezuela parecia uma ilha rodeada de petróleo por todas as partes”. 25 Coração quebrado A desvalorização, a inflação e a dívida representavam para o país a evidência do fracasso. “Para los venezolanos significaba el fin de una vieja ilusión, la de la solidez de su moneda que se parangonaba en esto con las de los países del Primer Mundo” (CABALLERO, 2003, p.169). Incrédulo, ferido, desapontado, o venezuelano se perguntava o que havia acontecido, como não foi prevista aquela possibilidade, por que não haviam administrado os recursos enquanto existiam. A resposta é que, na verdade, houve, de fato, algumas advertências, mas foram ignoradas. Nos primeiros anos da década de setenta, alguns economistas e homens de Estado propuseram certas reformas, certa ordem, entretanto a Guerra do Ramadã acabou com toda mesura possível. Teria resultado impopular para o governo, pedir austeridade para os eleitores conscientes da fabulosa quantidade de petrodólares que entravam no país. Impopular e desagradável, mais ainda para um presidente como Carlos Andrés Pérez, presidente e showman. Além, ainda que Pérez desejasse fazê-lo, ninguém o teria apoiado: simplesmente, explica Caballero, faltou piso político para prosseguir com suas reformas, assim como aconteceu com o governo de Herrera Campins; porque o país inteiro estava intoxicado, ébrio de petróleo caro. Vale a pena considerar a visão panorâmica que desde o ano 2000 projetava Arturo Uslar Pietri (intelectual e político) sobre a incompetência administrativa da riqueza petroleira na história política nacional: Realmente era muy difícil que aquí no se cometieran muchos disparates. La situación en el siglo XX venezolano ha sido extraordinariamente inusual y corruptora, la situación de un país pobre, muy atrasado y muy ignorante que de pronto tiene un Estado inmensamente rico, y que esa riqueza no se debe al trabajo nacional. El gobierno se convirtió en el principal agente de enriquecimiento y no hubo clase dirigente, esa es la verdad, en otros países sí la hubo y muy poderosa y muy eficiente, en Colombia, para no ir tan lejos, en el Perú, por no hablar de Argentina. A este país le cayó encima una montaña de recursos y no fue capaz de emplearlos medio sensatamente.16 (ARRAIZ, 2003, p.43) Como novos ricos que fomos, esbanjamos a fortuna, a herança que caiu em nossas mãos, não nos ocupamos em fortalecer a economia, a indústria, a produção nacional. Construímos uma cidade moderna financiada pelo ouro negro e não pelo nosso trabalho e 16 Tradução: “Realmente era muito difícil que aqui não se cometessem muitos disparates. A situação no século XX venezuelano tem sido extraordinariamente incomum e corruptora, a situação de um país pobre, muito pobre, muito atrasado e muito ignorante que de imediato tem um Estado imensamente rico, e que essa riqueza não se deve ao trabalho nacional. O governo se converteu no principal agente de enriquecimento e não houve classe dirigente, essa é a verdade, em outros países a houve, sim, e muito poderosos e muito eficientes, na Colômbia, sem ir muito longe, no Peru, para não falar na Argentina. Sobre este país caiu uma montanha de recursos e não foi capaz de empregá-los meio sensatamente”. 26 proliferaram paralelamente arranha-céus e barracões. O milagre nos cobriu por décadas, alimentou nossa cobiça e nossas esperanças. Os governos venezuelanos não souberam preparar a flutuante economia para resistir a um forte golpe e, naquele fevereiro, a ilusão (cimentada sobre fundamentos falsos) se desfez. O venezuelano enfrentou a evidência do fracasso econômico nacional e o desengano produziu um trauma doloroso para o qual os governos não o tinham preparado. A medida que el Estado ha ido mostrando más abiertamente sus lacras y sus vicios, a medida sobre todo que ha ido mostrando su ruina, la espléndida confianza en el futuro, la expectativa de los venezolanos de que sus hijos tendrán asegurado un porvenir promisor, donde la educación sería el canal privilegiado de movilización social vertical, todo eso se vino al suelo. Una ola de escepticismo parece haber ganado el país.”17 (CABALLERO, 2003, p.178) Enquanto isso, Cabrujas… Entre 1979 e 1986, Cabrujas produz de forma compulsiva e desenfreada. Atua para teatro, escreve três obras teatrais, dirige várias peças e óperas, escreve roteiros cinematográficos, uma minissérie para televisão, várias telenovelas e seus primeiros artigos de opinião. Seu ritmo de trabalho é vertiginoso e o nível da quantidade e qualidade de produção é muito alto, o que não suprime sua vida sentimental: neste mesmo período se casa com a cantora lírica Isabel Palacios. Cabrujas atua em Casa de bonecas, de Ibsen, dirigida por Carlos Gorostiza; em Mesopotamia, de Isaac Chocrón, com direção de Ugo Ulive e em Prueba de fuego, escrita e dirigida também por este. Dirige Los ángeles terribles, de Román Chalbaud e Simón, de Isaac Chocrón, seus amigos e companheiros de ofício. Dirige também Drácula, de Bran Stoker e realiza no Panteón Nacional Tres torres, tres silencios, tres erguidas soledades, com poemas e textos seus e música de Aldemaro Romero. Começa, naqueles anos, a dirigir ópera: O triunfo de amor de A. Scarlatti, Don Pasquale de Gaetano Donizetti, Don Giovanni de Mozart, Tosca, de Giacomo Pucini e A sonâmbula de Vicenzo Bellini. Além de El día que me quieras e de El americano ilustrado, escreve, ainda, Una noche oriental, dirigida por Enrique Porte no Teatro Alberto de Paz y Mateos. Para cinema, escreve os roteiros originais de El rebaño de los ángeles, dirigida por Román Chalbaud, e Homicidio culposo, escrito junto a César Bolívar. Adapta, também para cinema, sua obra de teatro Profundo e sua telenovela La señora de Cárdenas. Para televisão, Cabrujas escreve as telenovelas Natalia de 8 a 9; Chao, Cristina; Gómez I y II (inspirada na vida do ditador Juan Vicente Gómez) e La dueña, 17 Tradução: “Na medida em que o Estado foi mostrando mais abertamente seus erros e seus vícios, na medida, sobretudo, em que foi mostrando sua ruína, a esplêndida confiança no futuro, a expectativa dos venezuelanos de que seus filhos terão assegurado um porvir promissor, onde a educação seria o canal privilegiado de mobilização social vertical, todo isso se desmanchou no chão. Uma onda de cepticismo parece ter tomado conta do país”. 27 baseada em El conde de Montecristo de Alejandro Dumas. Além disso, escreve, para televisão, a minissérie El asesinato de Delgado Chalbaud, que, assim como Gómez, aborda fatos da história política venezuelana. Neste período começa, ainda, pela primeira vez, a colaborar em El Nacional com seus artigos de opinião por convite de Miguel Otero Silva. Por fim, resulta evidente que estes sete anos representam um período de intensa atividade criativa para Cabrujas. Vamos explorar isto com mais detalhes no próximo capítulo. II. CABRUJAS NO CAMPO TEATRAL VENEZUELANO Assim como Bourdieu, temos que concordar que isso que chamamos campo artístico não é bem o meio artístico, nem o contexto. Por exemplo, se falarmos de campo artístico venezuelano não nos referimos apenas aos principais artistas venezuelanos e às suas obras, com relação à intertextualidade e oposição entre si, mas à algo muito maior, que resulta incompreensível desde uma perspectiva imanentista, que precisa de uma espécie de visão macro e relacional, necessariamente interdisciplinar, e cujas contingências históricas, econômicas e políticas implicam o foco sociológico das artes. Segundo Bordieu, falamos de “um campo de forças que atuam sobre todos os que entram nesse espaço e de maneiras diferentes segundo a posição que eles ocupam nele (...), e também de um campo de lutas que procuram transformar esse campo de forças” (1989, p.2). Não se trata apenas, como ocorre tradicionalmente, de analisar as obras dos autores, do espaço cultural (mais especificamente teatral), de um determinado lugar (Venezuela), num determinado momento histórico (os anos 70), mas, também, de levar em conta, desde uma perspectiva relacional e não hierarquisadora, o desenvolvimento político e as relações desse espaço com o poder (institucionalização teatral do momento) como consequência e causa da situação econômica contingente (bonança generalizada pelos fortes ingressos), com a respectiva conformação e câmbio do campo e da batalha pela consagração e as posições das obras e de seus autores. Recém falamos da conformação do campo teatral nos referindo à época de Cabrujas, o que pode causar estranheza se consideramos que as primeiras manifestações teatrais se remontam, como em grande parte do desigual continente de que Venezuela forma parte, à época da colonização; faz mais de quatro séculos, e, contudo, não é uma asseveração gratuita. Falar de um drama nacional venezuelano é falar, em seus primórdios e durante, literalmente, séculos, de eventos, de fatos ocasionais. Os dramas esporádicos escritos pelos contados dramaturgos e suas isoladas apresentações nas pouquíssimas salas de teatro, que então existiam para um público informe, não representaram, até então, a um sistema, tampouco a 28 um campo, segundo Even-Zohar e Bourdieu. A proliferação na Venezuela de salas de teatro, de público teatral, de autores e grupos, festivais, prêmios, instituições e, inclusive, o aparecimento dos primeiros críticos sistemáticos são elementos que, juntos e combinados, constituem o campo e o sistema, que na Venezuela são posteriores ao fim da ditadura de dez anos de Pérez Jiménez. O começo da democracia coincide com o demorado processo de institucionalização teatral, que não se explica totalmente se não consideramos a nacionalização do petróleo, o único motivo, a única explicação para que uma sociedade pobre, da noite para o dia, enriquecesse de tal modo que pudesse se permitir a teatros, festivais e mil maravilhas tiradas, que nem coelho do chapéu, pela arte da magia e do nada. Começa, então, o que Arturo Uslar Pietri, em sua faceta de ensaísta e político, denominou “o biberão de petróleo” (tetero de petroleo), uma espécie de ilusão econômica e política das que derivariam as futuras desgraças econômicas. Com o bem-estar social, se instaurou o que o pesquisador Leonardo Azparren Jiménez denominou modelo social democracia/petróleo, “por el tipo de acuerdo social, político y económico que ha regido la vida venezolana en los últimos 40 años. Sus rasgos principales, la libertad, el bienestar de una economía rentista y el Estado promotor y salvador, modelaron una sociedad nueva que propició un espíritu cultural liberal18” (2011, p. 18). O surgimento de uma economia capitalista de Estado, expansiva, benfeitora e sustentada pela renda petroleira, consolidou a crença numa riqueza monetária invulnerável dando origem a noção ideológica da Gran Venezuela, que em menos de uma década se mostrou ilusória. A rápida modernização e o fluxo de dinheiro ajudaram a formar o campo teatral venezuelano, pois, como explica Bourdieu, “a expansão econômica pode, por exemplo, exercer seus efeitos mais importantes por mediações completamente inesperadas, tais como o aumento do volume dos produtores e do público” (1989, p.3), como efetivamente aconteceu e vamos tentar demostrar aqui. Cabrujas visto a partir do esquema do sistema literário A continuação, trataremos de observar a obra de Cabrujas como pertencente a um sistema nacional específico com dimensão histórica, o que implica entender a prática teatral de forma relacionada, isto é, em suas formas de texto dramático, representação, circulação e recepção. A dimensão histórica se refere às condições de produção, circulação e recepção em seus contextos local, institucional e social. Vamos falar das obras de Cabrujas, de seu público 18 Tradução: “pelo tipo de acordo social, político e econômico que tem regido a vida venezuelana dos últimos 40 anos. Suas principais características, a liberdade, o bem-estar de uma economia rentista e o Estado promotor e salvador, modelaram uma sociedade nova que propiciou um espírito cultural liberal”. 29 e o mercado, as instituições e os grupos de teatro, tentando, também, considerar as formas e estilos teatrais, os dramaturgos e os textos dramáticos como elementos do sistema nacional teatral venezuelano. Vamos estruturar, agora, vários elementos do modelo de periodização da história do teatro na Venezuela de Leonar Azparren Jiménez (2011, p.7-12) no esquema proposto por Itamar Even-Zohar (a partir do esquema da comunicação e a linguagem de Jakobson) para analisar os esquemas literários (2001. p.29). O esquema de Even-Zohar, extraído textualmente, configura-se da seguinte forma: INSTITUIÇÃO [contexto] REPERTÓRIO [código] PRODUTOR [emissor]–––––––––– [receptor] CONSUMIDOR ("escritor") ("leitor") MERCADO [contato/canal] PRODUTO [mensagem] Passemos, agora, a uma enumeração, não necessariamente organizada (para o pensamento relacional pouco importam ordem, estrutura e hierarquias), de elementos extraídos do Modelo de Periodização de Azparren Jiménez e demarcados nos fatores do esquema de Even-Zohar. Comecemos, então, comentando: O produto Cabrujas produziu textos de teatro, espetáculos teatrais, artigos, ensaios e crônicas para a imprensa, programas de rádio, sobre ópera, roteiros de telenovelas, roteiros cinematográficos de ficção e documentários. Considerando que a quantidade de produções é muito grande e variada, vamos limitar nosso interesse no que, para efeitos literários e para efeitos desta pesquisa, resulta mais pertinente: suas peças dramáticas. Teatro de Cabrujas Juan Francisco de León (1959) Los insurgentes (1962) El extraño viaje de Simón El Malo (1962) Tradicional hospitalidad, segundo ato de Triángulo escrito com Román Chalbaud e Isaac Chocrón (1962) En nombre del rey (1963) 30 Venezuela barata (1965-1966) Días de poder (1966), escrita com Román Chalbaud. Fiésole (1967) El tambor mágico (1970) La sopa de piedras (1973) Profundo (1971) La soberbia milagrosa del General Pío Fernández (1974) Acto Cultural (1976) El día que me quieras (1979) Una noche oriental (1983) El americano ilustrado (1986) Autorretrato de artista con barba y pumbá (1990) Sonny, diferencias sobre Otelo, el moro de Venecia (1995) Produtor Cabrujas foi escritor prolixo e heterodoxo, além de múltiplo produtor cultural. Dramaturgo, colunista de imprensa, roteirista de rádio (durante anos manteve um programa radial sobre ópera), de telenovelas e de cinema. Foi muito bem sucedido em todos os âmbitos, porém destaca-se em três deles: como homem de teatro, como escritor de telenovelas e como articulista de imprensa. Como homem de teatro (dramaturgo, diretor e ator), recebeu vários Prêmios Municipais, além do Prêmio Nacional de Teatro, que é o máximo galardão teatral venezuelano, teve sucesso de bilheteria constante a partir de meados dos 60 até sua morte (e também depois da morte), embora tenha sido também ferozmente atacado pela crítica depois da estreia de sua obra mais polêmica, El dia que me quieras, além de ignorado pela oficialidade que, para não premiá-lo, decidiu não entregar nenhum prêmio nacional de teatro no ano 1979 (Cabrujas era o grande, o polêmico, o unânime, favorito). Foi editado, traduzido, e representado no exterior (Brasil, Alemanha, Colômbia). Foi consagrado no campo intelectual, ainda que imediatamente atacado por sua incursão no mundo televisivo. Os representantes da “alta cultura” o criticaram, até sua morte, com a intenção, falida, de rebaixálo de seu alto posicionamento nos campos cultural e teatral, no entanto, diria Bourdieu, conseguiram, como declarou várias vezes, roer-lhe a consciência artística. Como articulista de jornais e publicações foi, além de bem sucedido, poderoso; extrapolou o campo artístico para se posicionar no campo do poder: o país parava para ler e comentar suas crônicas e reflexões dominicais; os politicos o temiam e respeitavam; os cidadãos tomavam posição frente aos 31 acontecimentos do país, influenciados pelos artigos de Cabrujas. Não é gratuito o fato de terem sido publicadas, em várias oportunidades, compilações e antologias de seus artigos de imprensa, antes mesmo que seu teatro. Como roteirista de telenovelas conseguiu não só revolucionar a mídia na Venezuela desde o ponto de vista cultural - algo que parecia impensável e incompatível com os tempos - como também alcançou um alto nível de assistência ou rating. Foi contratado por canais de televisão nacionais (RCTV, Televen, Marte TV) e internacionais (Televisión Azteca, Cadena Caracol) até o ano de sua morte. Seus roteiros foram comercializados e vendidos para ser transmitidos, produzidos ou mesmo refeitos em quase todos os países da América Latina, além de alguns países de Europa e, inclusive, do Oriente Médio. Ditou um curso de escritura para televisão a partir do qual foi editado, vários anos depois, o livro Y Latinoamérica inventó la telenovela (2002). Consumidores Itamar Even-Zohar fala de consumidores diretos e indiretos, problematizando a noção clássica de leitor de literatura e nos faz entender que consumidores podem ser até os analfabetos que repetem a frase “ser ou não ser”, ouvida, por acaso, em um programa de rádio, no ônibus que os leva para casa, mesmo sem saber que foi originalmente escrita por Shakespeare, mesmo desconhecendo olimpicamente a existência da obra de teatro Hamlet ou, indo além, mesmo desconhecendo que exista algo chamado teatro. Não temos como de rastrear todos os consumidores indiretos e residuais do produtor Cabrujas, mas, mesmo nos limitando aos consumidores diretos, a diversificação destes é complicada. Podemos localizálos em espécies de círculos concêntricos que vão se ampliando sucessivamente do menor ao maior: leitores de sua obra dramática, público dos documentários cujos roteiros foram escritos por Cabrujas, público dos longas-metragens de ficção cujos roteiros ele escreveu, ouvintes intencionais ou casuais de seu programa de rádio sobre ópera, leitores das edições compiladas de seus artigos de imprensa, público das obras em que atuou, público das obras que dirigiu, público das obras que escreveu (este, sobretudo, é um grupo de consumidores incalculável porque o teatro de Cabrujas tem sido amplamente representado, até depois da sua morte, e segue lotando salas e esgotando a bilheteria, como aconteceu, sem ir muito longe, no último trimestre do ano passado com El americano ilustrado, dirigido por Héctor Manrique e seu GA80), leitores de imprensa de El diario de Caracas e de El Nacional, onde publicou até 1995, e, para terminar, a imensa quantidade de telespectadores, intencionais ou casuais (diretos ou indiretos), nacionais e internacionais dos roteiros, a partir dos quais foram feitas tantas produções de telenovelas durante mais de vinte anos. 32 Mercado Como consequência da bonança econômica da época e motivado por um investimento oficial somado a esforços individuais e coletivos, se inicia, no final da década de sessenta, um processo ininterrupto de institucionalização do teatro. Em um primeiro momento, anterior à democracia e em parte graças à chegada de grandes figuras teatrais estrangeiras ao país, como a argentina Juana Sujo e o espanhol Alberto de Paz y Mateo, foram feitas montagens teatrais de relativo sucesso com as que começam a se formar um público teatral, que, em princípio assistia a representações do teatro clássico espanhol e de certa seleção latino-americana, mas rapidamente incidiu no surgimento de criadores de dramas venezuelanos. A partir dos 60, com o desenvolvimento da jovem dramaturgia, acontece uma abertura a novos públicos que, por sua vez, redunda no surgimento tanto de grupos e diretores, como de prédios e salas teatrais, para satisfazer a demanda de espaços que um novo mercado de consumidores exigia. Cria-se o Teatro Ateneo de Caracas, dirigido por Horacio Peterson, o Teatro Los Caobos, dirigido por Juana Sujo, o Teatro de Máscaras de Humberto Orsini, o Teatro Nacional Popular de Román Chalbaud, el teatro Rajatabla de Carlos Giménez e o Teatro de Arte de Caracas, dirigido por um coletivo jovens artistas. Paralelamente, se cria uma política de subsídio do Estado para o desenvolvimento do teatro na província: Barcelona, Guanare, Maracaibo, Mérida, Barquisimeto e Valencia. Em vista da imensa e explosiva multiplicação de espaços, grupos e públicos teatrais, se organiza o primeiro Festival Internacional de Teatro de Caracas, que chegaria ser um dos eventos teatrais mais importantes da região. Cabrujas, sem suspeitá-lo, converte-se em dramaturgo no momento mais propício e beneficente possível: o nascimento de sua vocação e o amadurecimento de sua dramaturgia coincidem com a formação de um mercado para apreciá-la, assim como de uma instituição para consagrá-la, discuti-la e criticála. Instituição Cabrujas foi o que foi no teatro venezuelano, em grande parte, graças às instituições acadêmicas, críticas, oficiais e privadas das quais foi objeto de crítica ou apoio. Sua estreia teatral foi no Teatro Universitário da Universidade Central na Venezuela, instituição onde estudava Direito até conhecer sua vocação teatral e abandonar definitivamente a advocacia pela arte. No TUCV, dirigido por Nicolás Curiel, escreveu suas primeiras peças e as viu estrear em imensa escala (a concepção teatral de Curiel era coral, monumental). Também 33 despontou como ator, resultando ser bom intérprete. Ainda muito jovem, assume como vocação o teatro profissional e desde então é seguido de perto pelos primeiros críticos teatrais sistemáticos (Azparren, por exemplo) que surgiram naquela época e dariam, mais tarte, origem ao Círculo de Críticos de Teatro da Venezuela. Com os novos dramaturgos, teatros e público, era coerente que surgissem críticos de imprensa e, paralelamente, acadêmicos que os estudassem. Nasce a Sociedade de Amigos do Teatro, uma associação sem fins lucrativos com o objetivo de contribuir, na medida (econômica) do possível, com a divulgação das obras de teatro dos novos “teatreros”. Cabrujas, Chalbaud e Chocrón, como autores, faziam parte de uma onda de criadores teatrais que entre diretores, atores, produtores, iluministas, cenógrafos, designers de vestuário e demais fazedores de cena deram origem a Asociación Venezolana de Profesionales del Teatro, primeira associação que velava pelos direitos de tantos trabalhadores e artistas do mundo cênico. Tal associação, dada sua importância, foi seguida por outras, tais como: a Federação Venezuelana de Teatro. Por decreto oficial, um par de décadas depois, é fundada a Compañía Nacional de Teatro (CNT) para o fomento da criação cênica, seu estudo e registro. Cabrujas também contribuiu para manutenção do teatro como atividade sociocultural através da fundação, junto a Chalbaud e Chocrón, de El Nuevo Grupo, único caso no país de uma agrupação teatral fundada por dramaturgos com o objetivo de fazer exclusivamente teatro de autor ou, melhor dizendo, teatro de “autores”: deles três. Repertório Definido por Even-Zohar como “o agregado de regras e materiais que regem tanto a confecção, quanto o uso de qualquer produto” (2007, p.42), vamos nos limitar, por questões de complexidade e espaço, apenas ao produto texto teatral. Tratar de rastrear os gêneros, os dramaturgos, as influências e os antecedentes que moldaram a realização escrita e criativa das obras de Cabrujas não é tarefa fácil, sendo assim, não queremos nem pensar na dificuldade que implicaria fazer a mesma coisa com as telenovelas, as crônicas, o cinema e a rádio que produziu durante sua prolífica e paradoxalmente curta vida. Vamos nos valer de algumas caracterizações estilísticas da época, segundo Azparren. Em primeiro lugar, temos que assinalar os principais antecedentes, que são tanto o sainete evasivo, quanto o primeiro realismo ingênuo do drama venezuelano escrito entre 1916 e 1957. A partir de 1958, ano que marca o começo da democracia e coincide com a escritura da primeira obra de Cabrujas, se inicia o que Azparren denomina “Nuevo teatro”, e que se dilata até 2000. Segundo palavras do acadêmico, é nesse 34 período en el que son nacionalizadas las tendencias teatrales mundiales. En los primeros diez años surgen los paradigmas de la escritura dramática y de la puesta en escena que definen el período. El modelo social democracia/petróleo posibilita cambios radicales con conciencia histórica y artística de la dramaturgia y de la escena y cuyo subgénero principal [del que Cabrujas va a ser uno de los principales exponentes] es el realismo crítico.19 (2011, p.10) Azparren Jiménez assinala o ponto de inflexão no ano 1971. Antes, porém, desse ano e durante as primeiras duas décadas do período, o teatro, fundamentalmente experimental, radical e diversificado, faz uso de linguagens inéditas para representar novas zonas de uma realidade mutante e expansiva. Como em grande parte do continente e por influência das cenas teatrais europeias e estadunidenses, se instaura, nesses anos, com soberana autonomia, a posta em cena: o diretor é mais importante do que os autores, é o grande e verdadeiro criador. Posteriormente, surge uma nova onda de dramaturgos, heterogêneos e díspares; se dividem nos expoentes do nascente realismo crítico, como César Rengifo, Román Chalbaud, Rodolfo Santana e José Ignacio Cabrujas e nos expoentes dos subgêneros do realismo subjetivo, como Isaac Chocrón, e do subjetivismo poético, como Ida Gramcko, Elizabeth Schön e Elisa Lerner. A partir de 1971, ocorre a canonização e hegemonia do realismo com os três grandes autores do momento: José Ignacio Cabrujas, Román Chalbaud e Isaac Chocrón, que embora fossem ainda muito jovens, passam ser conhecidos como a Santíssima Trindade do teatro venezuelano. Junto com eles, temos que nomear os discursos emergentes de autores como Edilio Peña, Néstor Caballero, Mariela Romero, Carlos Sánchez, José Simón Escalona, Javier Vidal e Xiomara Moreno, entre muitos outros. Escreve-se um teatro que tem assimilado as principais teorias e experiências teatrais (Bertolt Brecht, Jean Vilar, Antonin Artaud, Jerzy Grotowski). As imensas possibilidades expressivas da estrutura aberta da dramaturgia e da posta em cena foram exploradas até a saciedade, influenciando uma (dramaturgia) na outra (representação) e vice-versa. Algumas das características, assim como circunstâncias que moldaram ou afetaram a escritura dramática da época, são numeradas por Azparren (2011, p.19), como: -Diversificação temática e desaparição da vida tradicional da vizinhança como tema central da dramaturgia. -Presença da dramaturgia mundial, em especial da vanguarda europeia em todas suas variáveis e do teatro épico. 19 Tradução: “período em que são nacionalizadas as tendências teatrais mundiais. Nos primeiros dez anos surgem os paradigmas da escritura dramática e da posta em cena que definem o período. O modelo social democracia/petróleo possibilita câmbios radicais com consciência histórica e artística da dramaturgia e da cena e cujo subgênero principal [do que Cabrujas vai ser um dos principais expoentes] é o realismo crítico”. 35 -Câmbio substancial da posta em cena com uma experimentação irrestrita e a procura de novos espaços cênicos dentro e fora do recinto teatral. -Latino-americanização em especial, desde meados dos anos setenta, com o Festival Internacional de Teatro de Caracas e com a diáspora latino-americana provocada pelas ditaduras do sul do continente. O teatro de Cabrujas é ora causa e consequência destes processos, ora modelo e influência. III. MEDIAÇÕES Mediação histórica A história que afeta Cabrujas é a de seu país e sua vida, uma história ampla, extensiva, que desborda os limites temporais dos anos 1979-1986. Ademais, este período é o marco temporal que compreende as estreias de El día que me quieras e El americano ilustrado. O ponto de inflexão, a área de tensão entre Cabrujas e os processos históricos de sua nação, pode ser localizado cronologicamente: a primeira década da democracia que prosseguiu ao final da ditadura de Pérez Jiménez, em 23 de janeiro de 1958. A explicação é política. Cabrujas pertencia ao PCV e era comunista com 21 anos quando cai a ditadura. Após a ditadura, foi estabelecida uma aliança partidária de emergência, a Junta Patriótica, composta por um grupo de partidos que, em palavras de Caballero, “no son ni pretenden ser revolucionarios: son (y a medida que pase el tiempo lo confesarán más abiertamente) sin rubor alguno, reformistas, gradualistas, y sobre todo, institucionalistas (...) el más prudente, el más institucionalista, era el Partido Comunista de Venezuela”20 (p.146). Cabrujas como indivíduo, mas também como militante de um partido, de uma ideologia e de um grupo, se sente derrotado. As intenções, o anelo de seu grupo social era o de converter aquela insurreição popular em revolução perdurável. Os anos sessenta, quer dizer, os posteriores à caída da ditadura na Venezuela, estiveram marcados politicamente em toda a região pela revolução cubana. El mito de los doce muchachos atrincherados en la Sierra Maestra que al final logran no sólo vencer a un ejército profesional sino desafiar en sus propias narices al Imperio, inflamó las juventudes de América. Apenas los barbudos de Fidel Castro y el Che Guevara llegaron a La Habana, una frase comenzó a formarse en los labios de 20 Tradução: “Não são nem pretender ser revolucionários: são (e na medida em que passe o tempo o confessarão mais abertamente) sem nenhuma vergonha, reformistas, gradualistas, e, sobretudo, institucionalistas (...) o mais prudente, o mais institucionalista, era o Partido Comunista de Venezuela.” 36 todos los revolucionarios: “si ellos pudieron, ¿por qué no nosotros?” Tal vez en ninguna parte se dio eso como en Venezuela, porque aquí la reflexión no tenía forma interrogativa, sino asertiva: “Nosotros hubiéramos podido, el 23 de enero de 1958”21 (CABALLERO, 2002, p.143) Mas aquilo nunca aconteceu: após a Junta Patriótica, foi eleito Rómulo Betancourt, político antigo, constante opositor da ditadura, histórico líder e impulsor da Ação Democrática (AD), um partido político que, embora tivesse um foco social, não se identificava (se opunha, na realidade) com o PCV e sua ideologia. A geração de Cabrujas não se sentia representada pelo governo. Enquanto Cuba tinha triunfado na revolução que depôs a ditadura de Batista, na Venezuela, depois da ditadura local, não houve nenhuma revolução, não se tentou instaurar um governo do povo; o que se implantou foi uma democracia de consenso na qual participaram, em sua grande maioria, os mesmos velhos políticos, os dinossauros que uma década antes haviam sido apartados da cena política pelo ditador Pérez Jiménez e que, após sua caída, regressavam vitoriosos para ocupar as mesmas cadeiras do congresso, só que restauradas (como o resto do país) graças à bonança econômica do regime autoritário. Esta nova democracia era percebida pelos grupos de esquerda como uma democracia revanchista, o oposto da ditadura. Embora o mundo mudasse com rapidez, embora a efervescência comunista contagiasse os grupos intelectuais do continente e embora acontecesse uma grande batalha muda contra o atual sistema para propor um novo sistema econômico e social com seu correspondente homem novo, a Venezuela, alheia e ensimesmada, não parecia perceber nenhuma destas coisas e persistiu em sua contramarcha fora de sintonia. O programa político do novo governo consistiu em cimentar, com o apoio tácito da maioria da população, as bases de um projeto democrático conservador perdurável, o que para Cabrujas e sua geração de intelectuais - comprometidos com a política de mudança e os ideais utópicos - representava um retrocesso, um fracasso terrível. Liberar-se da ditadura foi sem dúvida uma meta importante per se, um motivo de orgulho e de comemoração para o povo, mas não era o suficiente para Cadenas. O objetivo era muito superior, como bem resume Octavio Paz em O arco e a lira: “A ideia cardinal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de uma sociedade universal que, ao abolir as opressões, desdobre simultaneamente a identidade 21 Tradução: “O mito dos doze garotos entrincheirados na Sierra Maestra, que no final conseguem não só vencer um exército profissional, mas desafiar, debaixo de seu próprio nariz, ao Império, contagiou as juventudes de América. Apenas os barbudos de Fidel Castro e o Che Guevara chegaram à Havana, uma frase começou a se formar nas bocas de todos os revolucionários: ‘se eles puderam, por que nós não? ’ Tal vez em nenhuma parte isso tenha acontecido como na Venezuela, porque aqui a reflexão não possuía forma interrogativa, mas assertiva: ‘Nós teríamos podido, o 23 de janeiro de 1958’”. 37 ou semelhança original de todos os homens e a radical diferencia ou singularidade de cada um.” (1972, p.254). Criar uma sociedade universal e livre, desde a perspectiva de um país latino-americano subdesenvolvido e explorado, estava longe demais da realidade material vivida por Cabrujas para que o não cumprimento imediato do objetivo representasse uma frustração real. A frustração se explica antes como um problema de incompetência ou invisibilidade de certos grupos intelectuais nos campos político e social da cena pública. Para os militantes literários e comunistas, que naquele tempo eram praticamente a mesma coisa ( José Ignacio Cabrujas, além de dramaturgo, era membro do Partido Comunista da Venezuela), qualquer alternativa política liberal não passava de uma concessão ao imperialismo estadunidense, inimigo comum dos grupos intelectuais da região que estavam consolidando uma voz potente que estremeceria o mundo com sua força imaginária (o Boom). Ainda que depois as coisas mudassem, naquela década o consenso ideológico entre os intelectuais era quase unanime, mesmo no plano internacional: Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, Mario Benedetti, Jorge Amado, Elena Poniatowska, Eduardo Galeano, Pablo Neruda e Carlos Fuentes, todos eram socialistas comprometidos e o fato de começarem a ser publicados, traduzidos e comentados, em todo o mundo, com velocidade vertiginosa, era altamente significativo. Em Cuba, Fidel e Che, dois ídolos barbudos, receberiam a visita amistosa da vanguarda intelectual europeia nas pessoas de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, deslumbrados pelo triunfo revolucionário no Caribe e gratamente surpreendidos pela loquacidade engenhosa desse par de revolucionários-intelectuais, militares-leitores, gerrilheros-nerds, cultos soldados que podiam fazer tudo, inclusive se opor aos donos do planeta. Bem o oposto das pretensões do presidente venezuelano Rómulo Betancourt, anticomunista rabugento, defensor do progresso material e industrial de uma nação que tinha que ser construída. Os comunistas se rebelaram em Carúpano. Foram contidos pelo governo, o PCV foi ilegalizado. Assim nasceu a guerrilha armada, fraca e focal, mas guerrilha ao fim e ao cabo, com todas suas implicações: a revolução, o derrocamento do governo para impor o governo do proletariado. Os intelectuais apoiavam a causa, alguns chegaram ocultar em suas casas guerrilheiros procurados ou armas. A intelectualidade jovem anos sessenta era absolutamente comunista. Comunista antes de ser artista, comunista dos que não leem O capital, comunistas por osmose, por obrigação, por saudar a bandeira. Usted, Rafael, habló de religión para designar todo un mecanismo impositivo que en el plano intelectual operó entre los últimos años de la dictadura de Pérez Jiménez y los primeros años de la democracia, durante todo el período guerrillero, esa es una palabra afortunada, correctísima: era una religión. Uno nació a una religión que decía “hay un mundo nuevo”. El esquema propuesto por Betancourt no seduce a mi 38 generación, él nos parecía una figura del pasado. El 23 de enero es lo más parecido que he vivido al nacimiento de un mundo nuevo y la figura de Betancourt era una como rémora que nos obligaba a echar la película para atrás. Entonces, apareció el gran fantasma: Castro. Ese sí era una maravilla, hasta su personalidad era una maravilla. Bailamos al son de Castro.”22 (ARRAIZ, 2003, p.171) A unanimidade ideológica dos intelectuais de então era absoluta e “religiosa”, e se organizava em torno do serviço social, da revolução como meio de alcançar o comunismo. A realidade nacional, porém, é outra. Vejamos agora o que acontece com a tensão entre o entorno e o grupo humano de que Cabrujas formava parte. Mediação psicossocial O artista, como indivíduo, adere a um grupo e o habita, para concordar ou discordar, para conservar ou para renovar. Cabrujas, muito antes de ser artista, fazia parte da jovem esquerda venezuelana, da jovem esquerda letrada. É dentro desse grupo, o dos intelectuais de esquerda, que Cabrujas constrói sua identidade como sujeito e desenvolve o começo de sua criação dramática. (Um dado curioso: em 1960 Cabrujas casa pela primeira vez com uma guerrilheira chamada Democracia López). Em palavras de Goldmann, o artista tem “a necessidade estética de construir um universo coerente, sem saber por quê. E consegue-se coerência em relação a um grupo”. (1976, p.129). E esse grupo concreto, o dos esquerdistas venezuelanos da década dos sessenta, experimentou a agressão constante do presidente Betancourt. O programa de governo, as políticas econômicas e a ideologia de Rómulo Betancourt estavam demasiado distantes das aspirações políticas dos intelectuais de esquerda e do próprio Cabrujas; mas distância ficou mesmo insuperável a partir da insurreição comunista em Carúpano e a imediata proibição (não legalização) oficial do Partido Comunista, bem no começo do governo de Betancourt. Em resposta a isso, se criam grupos armados de guerrilheiros saídos do PCV com nome de Fuerza Armada de Liberación Nacional (FALN). Durante quase uma década o PCV permanece na clandestinidade e a guerrilha mantém um enfrentamento com os sucessivos governos, até que, em 68, Rafael Caldera legaliza novamente o partido e a guerrilha depõe as armas. Com esse acontecimento, entra em crise a 22 Tradução: “Você, Rafael, falou de religião para designar todo um mecanismo impositivo que no plano intelectual operou entre os últimos anos da ditadura de Pérez Jiménes e os primeiros anos da democracia, durante todo o período guerrilheiro, essa é uma palavra afortunada, corretíssima: era uma religião. Muitos nasceram numa religião que dizia ‘há um mundo novo’. O esquema proposto por Betancourt não seduz a minha geração, ele nos parecia uma figura do passado. O 23 de janeiro é o mais parecido que tenho vivido com o nascimento de um mundo novo e a figura de Betancourt era como uma rêmora que nos forçava a botar o filme para trás. Então, apareceu o grande fantasma: Castro. Esse sim era uma maravilha, até sua personalidade era uma maravilha. Dançamos ao som de Castro.” 39 concepção de mundo dos intelectuais de esquerda. “Uma concepção do mundo”, explica Godmann, “é precisamente o conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideais que reúne os membros de um grupo (ou o que é mais frequente, de uma classe social) e os opõe aos outros grupos” (1976, p.55). Para a intelectualidade venezuelana, fazer a revolução era a meta em que convergiam todas as aspirações, sentimentos e ideais do grupo, mais ainda depois do começo da insurreição armada. No entanto, tudo isso foi contrariado pelo estabelecimento de uma democracia liberal/petroleira e pela paulatina derrota guerrilheira. Diz Cabrujas, respeito da esquerda venezuelana da nascente democracia (seu grupo social): “En el 65 dábamos lástima ya: estábamos liquidados. En el 65 la historia nos había caído a patadas. Cuando en el 68 el Partido Comunista dice paz democrática, la estampida fue muy grande, se acabó, la estampida fue al mundo individual.” 23 (ARRAIZ, 2003, p.171) O desencanto é doloroso na medida em que a ilusão de mudança foi certeza para Cabrujas e sua geração. O fracasso da guerrilha foi desmoralizador e o grupo social se desorientou, seus integrantes se fizeram cépticos e cínicos. Como estábamos frustrados, hablábamos horrores, como todo frustrado, y nos dio a todos por un exagerado plan vital: todos nos convertimos en unos pequeños donjuanes, demasiadas mujeres, demasiado bochinche, demasiado relajo sexual, propio de los puritanos que se destapan (…) gente que andaba por los cafés de Sabana Grande, entre ellos yo, hablando pestes de la vida, hablando horrores y preparando paellas en mi casa para decir que yo era de derecha, para chocar, para molestar, para agredirme a mí mismo, en el fondo.24 (ARRÁIZ, 2003, p.172) Houve, então, um chamado à reflexão, uma tentativa de reorganização, de reagrupação, com a fundação do partido Movimiento Al Socialismo (MAS), em 1971. Nascido das cinzas do desacreditado PCV e da derrotada guerrilha nacional, um grupo de socialistas, comunistas (não Stalinistas, mas Trotskystas) e intelectuais de esquerda fundam o MAS, um partido afiliado, para todos os efeitos, às alienações da IV Internacional e à terceira via (que Teodoro Petkoff havia explorado teoricamente em seu livro Chekoslovaquia). O flamante partido, como todo projeto novo, não exibia, ainda, nenhum signo de corrupção, de falta de princípios, era todo esperança, futuro e planejamento. O entusiasmo entre a intelectualidade da região era generalizada. Quando García Márquez ganha o Prêmio Rómulo Gallegos por Cem anos de solidão, doa a totalidade do dinheiro ao partido. (Questões de fé: 23 Tradução: “Em 65 já nos lastimávamos: estávamos liquidados. Em 65 a história havia nos arrebentado. Quando em 68 o Partido Comunista diz paz democrática, a debandada foi muito grande, acabou, a debandada foi para o mundo individual.” 24 Tradução: “Como estávamos frustrados, falávamos coisas horríveis, como todo frustrado, e todos nos voltamos para um exagerado plano vital: todos nos convertemos em pequenos dom juans, muitas mulheres, muita bagunça, muita fruição sexual, própria dos puritanos que se destampam (...) gente que andava pelos cafés de Sabana Grande, entre eles eu, falando besteiras da vida, falando coisas horríveis e preparando paelhas em minha casa para dizer que eu era de direita, para incomodar, para chatear, para me agredir, no fundo” 40 em 2003, Fernando Vallejo doou o mesmo prêmio - havia sido premiado por seu Desbarrancadero - a uma centro de acolhimento de cachorros.) De qualquer forma e retomando o assunto, o MAS representava uma esperança para Cabrujas e seu grupo e aparentava ser um partido estável, pelo menos no começo, coerente, embora fosse insistente perdedor eleitoral, um perdedor sólido. Contudo, outro fator que modifica as relações entre entorno, grupo social e indivíduo, entra em jogo: a nacionalização do petróleo. O milagre do petróleo: gênese da falsidade O descobrimento do petróleo e sua nacionalização - com seu altíssimo valor e com seu espetacular show econômico, mais rápido, efetivo e gratificante do que a agricultura, que enriqueceu vertiginosamente o país - acabou criando no venezuelano a ilusão de viver um milagre. Os efeitos da nacionalização petroleira sobre a economia foram fantásticos e o Estado ficou abastecido, se converteu em empresário, distribuidor da riqueza do ingresso do petróleo que por aqueles anos, começos dos setenta, tinha um valor muito elevado. Em consequência, a percepção de um cidadão, de um venezuelano comum sobre o Estado naquela época era maravilhada e tergiversada: imatura, segundo Cabrujas expõe em “El estado del disimulo” (2012, p.123). Originou-se a cultura do milagre a partir da riqueza. Carlos Andrés Pérez falava em construir a Grande Venezuela e todos o apoiavam (inclusive Fidel), todos celebravam, preferiam ignorar a dívida, viver o momento, gastar sem pensar. Venezuela estava bêbada de petróleo caro. Apenas, en efecto, en todo el ámbito nacional, a todas las profesiones e individuos, se les abrió el apetito con el alza repentina en los precios del petróleo, todos los problemas nacionales han sido olvidados, y como problema único, estelar, mirífico, se habla y se grita sobre nuevas riquezas que pueden obtenerse y cómo podrían aumentarse de acuerdo con los arbitrios que a cada uno se le ocurren. Queremos buscar la manera de que Venezuela sea cada vez más rica, más rica, más rica. Se habla de que el Estado venezolano financiará una refinería de petróleo en Centroamérica; con el mismo entusiasmo hablaríamos de urbanizar terrenos en la luna o comprar una máquina de hacer oro. Para nuestra ansia de dinero nada vemos imposible.25 (MIJARES, 2000, p.609) Ânsia produtora, entusiasmo desmedido, descontrole, atividade em todos os âmbitos, e também no artístico. No pessoal, Cabrujas se propõe produzir riqueza artística e produz de forma plural, intensa e total: além dos dramas, escreve telenovelas, minisséries para televisão, 25 Tradução: “Apenas, com efeito, em todo o âmbito nacional, a repentina alta nos preços do petróleo abriu o apetite de todas as profissões e indivíduos, todos os problemas nacionais foram esquecidos, e como problema único, estelar, mirifico, se fala e se grita sobre novas riquezas que podem ser obtidas e como poderiam aumentar de acordo com as ideias que cada um tem. Queremos achar o jeito de a Venezuela ser cada vez mais rica, mais rica. Fala-se de que o Estado venezuelano financiará uma refinaria de petróleo na América Central; com o mesmo entusiasmo falaríamos de urbanizar terrenos na lua ou comprar uma máquina de fazer ouro. Para nossa ânsia de dinheiro nada vemos impossível.” 41 roteiros de filmes, atua em várias obras, dirige outras tantas e várias óperas, cria e mantêm um programa de rádio sobre ópera e outro programa de radio histórico. Cabrujas trabalha até o esgotamento, sem descanso, sem pausa. Nessa época, funda El Nuevo Grupo, junto com Isaac Chocrón e Román Chalbaud, “Tres tipos”, conta Cabrujas, “que sin parecerse demasiado, con experiencias muy distintas, desembocaron en primer lugar en una amistad, antes que en cualquier otra reflexión. El teatro no nos importó tanto. Lo que nos proponíamos hacer con él, tampoco.”26 Isso se evidencia no fato de que El Nuevo Grupo, em plena época de manifestos e proclamas literárias, de movimentos, de grupos, de vanguardas, não se declara, não se manifesta, não se explica, apenas se reúne, se junta em uma agrupação focada em produzir, sem princípios, sem critérios, sem ideologia (Issac Chocrón nunca foi de esquerda). Graças ao petróleo, as coisas importavam menos, o importante mesmo era produzir. A crise ideológica de Cabrujas e dos intelectuais venezuelanos se aproximava. Já em 1975, Cabrujas escreve: Ha desaparecido la capacidad de cuestionamiento de todo. No hay esa capacidad, no existe esa posibilidad porque todos estamos bien. Sigue prevaleciendo el cinismo en el país. Tenemos un presupuesto de 43 mil millones de bolívares, acabamos de abrir relaciones con Cuba. El gran gurú de la izquierda latinoamericana, Castro, nos ha tendido la mano y entonces, ¿cómo vamos a sostener una revolución, una actitud crítica, si el gran gurú dice que todo anda bien? (...) Todo está bien entonces: el Gobierno ha asumido actitudes menos reaccionarias, más correctas, más equilibradas y en este momento estamos desesperados por inventar una revolución. 27 (2012, p.19) Naquele momento estavam, assim, no plural, escreve Cabrujas, desesperados por inventar uma revolução os intelectuais de esquerda, cuja ideologia, credibilidade e partidos haviam entrado em crise. Cabrujas é um intelectual de esquerda e assim se assume, fala no plural porque sabe que fala também pelos seus, tem consciência grupal, social e histórica. Sua consciência sofria o conflito de princípios de seu grupo social, sua derrota política e ideológica no âmbito nacional. Mediação estética Víctor Hugo, Shakespeare, Lope de Vega, Dostoievski, Ibsen, Chéjov, Rafael Cadenas, Musset, Molière, Tirso de Molina, Sófocles, Ruben Fonseca, Eurípides, Ionesco, Ariano Suassuna, Calderón, (CABRUJAS, 2012, p.204) são algumas das maiores influências 26 Tradução: “Três homens, que sem serem parecidos, com experiências muito diferentes, desembocaram, em primeiro lugar, numa amizade, antes que em qualquer outra reflexão. O teatro não nos importou tanto. O que nós propúnhamos fazer com ele, também não” 27 Tradução: “Tem desaparecido a capacidade de questionamento de tudo. Não há essa capacidade, não existe essa possibilidade porque todos estamos bem. Segue prevalecendo o cinismo no país. Temos um orçamento de 43 mil milhões de bolívares, acabamos de abrir relações com Cuba. O grande guru da esquerda latino-americana, Castro, nos estendeu sua mão e então, como vamos manter uma revolução, uma atitude crítica, se o grande guru diz que todo está bem? (...) Todo está bem, então: o Governo tem assumido atitudes menos reacionárias, mais corretas, mais equilibradas e neste momento estamos desesperados por inventar uma revolução” 42 literárias de Cabrujas. Contudo, a categoria da mediação estética não é, como se poderia pensar, equivalente à influência literária, mas se refere, segundo Berenguer, a “el origen y estructura de los conceptos y de las técnicas aplicadas por los creadores en sus obras y el modo en que un estilo o una actitud artística se corresponde con una mentalidad en un momento histórico preciso”. (2009, p.25) O interessante é que, no caso de Cabrujas, tanto a origem literária, quanto o desenvolvimento de técnicas e de um estilo específico correspondem, sobretudo, a dois aspectos extraliterários de sua vida: a política e a televisão. A política se vincula à origem criativa de Cabrujas que, com efeito, está intimamente ligada à sua atividade literária desde o início, ou, para sermos mais específicos, Desde el 56, cuando nací a la imagen de ser un escritor, era un militante del Partido Comunista y tenía una disciplina. Allí se me dijo que mi vida personal le importaba un rábano al partido y que yo era un servidor de la transformación de la sociedad, por lo tanto no te la podías dar de vanguardista porque te alejabas de las hondas raíces del pueblo, etc., etc. En el fondo, tenías que estar en una literatura romántica, como es la literatura marxista, con valores como “el pueblo es bueno”, “el rico es malo”, “el joven es bueno”, “el viejo es malo”. Había que construir un héroe positivo con raíces regionales atendiendo al folklore, expresando el mundo popular. En el fondo, era el epígono de lo que había sucedido 30 años atrás en la Unión Soviética. (...) Los 60 me enseñaron a mandar al diablo todo eso. 28 (ARRAIZ, 2003, p.170) Entretanto, suas primeiras obras foram, pelo contrário, bastante “comprometidas”. Quando ingressa no Teatro Universitário da UCV e começa escrever teatro, Cabrujas era comunista, mais que escritor. Estreia, em 59, sua primeira obra, Juan Francisco de León e nos anos seguintes escreve e vê estreadas pela TUCV Los insurgentes (1961), El extraño viaje de Simón el Malo (1962) e En nombre del rey (1963), todas inéditas até 2008; obras parcialmente experimentais, de caráter histórico e de estilo brechtiano. Brecht era a maior influência de Nicolás Curiel, o mentor dramático de Cabrujas, o primeiro que o levou a sério e montou suas obras. Sob sua direção e estímulo, Cabrujas escreveu um teatro de abordagens históricas, com o uso da técnica do estranhamento; era uma dramaturgia épica e com mensagens pseudomoralizantes. Não é seu melhor teatro, embora nele estejam contidas algumas das obsessões fundamentais de Cabrujas, porque não é um teatro livre, senão esquemático, neutralizado, participante da 28 Tradução: “Desde os anos 56, quando nasci à imagem de ser um escritor, era um militante do Partido Comunista e tinha uma disciplina. Lá me disseram que a minha vida pessoal não importava ao partido e que eu era um servidor da transformação da sociedade, por tanto não podia brincar de vanguardista porque me afastaria das fundas raízes do povo, etc., etc. No fundo, tinha que estar numa literatura romântica, como é a literatura marxista, com valores como ‘o povo é bom’, ‘o rico é mau’, ‘o jovem é bom’, ‘o velho é mau’. Tinha que construir um herói positivo com raízes regionais atendendo ao folclore, expressando o mundo popular. No fundo, era o epígono do que tinha acontecido 30 anos atrás na União Soviética. (...) Os anos 60 me ensinaram mandar ao diabo tudo isso.” 43 trampa de la política, que es una trampa mortal para un escritor. La trampa de perder años de mi vida en un módulo político, desconociéndome y agrediéndome y cayéndole a patadas a mi sensibilidad, a mi ser, a mis apetencias, a mi amor, a mis odios, a mis miedos, a todo eso: destruyéndolo para elaborar un esquema por la paz y la amistad de los pueblos. Como había fracasado la insurgencia política yo quedaba en libertad, el fracaso de la guerrilla fue un indulto, fue el pasaporte para decir: “José Ignacio, llegó el momento de decir lo que te da la gana. 29 (ARRÁIZ, 2003, p.173) Com o fracasso da guerrilha, a situação muda radicalmente tanto para o grupo social dos intelectuais de esquerda quanto para o subgrupo social dos criadores dramáticos e também para Cabrujas como sujeito e criador individual. Os criadores se viram impelidos, obrigados a fazer uma revisão sobre o tipo de teatro que escreviam, cujos modelos entravam em súbita crise. Uma crise, sem dúvida, libertadora, equivalente à queda de um metafórico muro-deBerlim-estético, que deixou Cabrujas e os criadores de sua geração com um enorme panorama de infinitas possibilidades criativas e infinitas responsabilidades. Duas décadas depois, Cabrujas relembra aqueles anos e afirma que con lo que podríamos llamar el desencanto de la lucha armada (cuestión de adjetivos) el teatro venezolano al igual que la actitud política, sufrió un proceso de internización, característico de cualquier derrotado. La renuncia a metodologías ilusorias, a sudaderas polacas, nos acercó a un teatro más real, más pragmático y menos bocón. (...) El mejor balance de estos años es haber establecido en nuestro oficio una relación de causa y efecto, donde el teatro dejó de ser una cofradía de iluminados. (CABRUJAS, 2010, p. 616) A televisão. É interessante: Cabrujas começou escrever telenovelas no mesmo momento em que se liberou da armadilha da política. Em 1969, quer dizer, um ano depois do fracasso da guerrilha, Cabrujas começou a trabalhar, junto com seu amigo e dramaturgo Román Chalbaud, na Radio Caracas Televisión (RCTV) com a tarefa de terminar a telenovela La tirana, de Manuel Muñoz Rico. A partir daí, começa o trabalho de Cabrujas para televisão, que se entende por mais de vinte anos (até sua morte), como forma de vida no plano econômico, mas também como espaço de realização pessoal: Cabrujas começa escrever, junto com Chalbaud e depois junto com Salvador Garmendia (excelente romancista), telenovelas que o público passa a chamar de “culturais”. Na verdade, o termo é simplificador e ao mesmo tempo demasiado amplo para significar nada concreto. Cabrujas escreve, em primeiro lugar, telenovelas que polemizam o 29 Tradução: “armadilha da política, que é uma armadilha mortal para um escritor. A armadilha de perder anos da minha vida num módulo político, me desconhecendo e me agredindo e arrebentando de pancada minha sensibilidade, meu ser, minhas apetências, meu amor, meus ouvidos, meus medos, isso tudo: me destruindo para elaborar um esquema pela paz e pela amizade dos povos. Como tinha fracassado a insurgência política, eu ficava em liberdade, o fracasso da guerrilha foi um indulto, foi o passaporte para dizer: “José Ignacio, chegou a hora de dizer o que você quiser.” 44 lugar da mulher na sociedade, como La señora de Cárdenas, como La hija de Juana Crespo, como, Natalia de 8 a 9 ou como Silvia Rivas, divorciada; escreve, em segundo lugar, telenovelas históricas, ou de inspiração histórica, como Gómez I e Gómez II, baseado na época da ditadura do general Juan Vicente Gómez, como Boves, el Urogallo, uma adaptação da obra homônima de Francisco Herrera Luque, ou como o unitário El asesinato de Delgado Chalbaud; e escreve, em terceiro lugar, adaptações de obras literárias como Doña Bárbara e Canaima, baseadas nos romances homônimos de Rómulo Gallegos, ou como La dueña, baseada em El conde de Montecristo de Dumas. O objetivo era dignificar o ofício da escritura de telenovelas, se realizar pessoalmente e valorizar um elemento de cultura de massas: Creo firmemente que una sociedad necesita un espejo donde mirarse, donde entenderse. Nadie tiene derecho a proponer soluciones dentro del esquema de una telenovela o de una pieza teatral o de cualquier acto más o menos literal, no creo que esa sea la tarea de quien escribe, pero sí me gustaría lograr y sentir, después de todo, este trabajo de la televisión; saber que esta sociedad tuvo un estímulo para entenderse a sí misma, para entender sus humillaciones, sus picardías, sus sinvergüenzas, sus pobrezas, su dignidad y su indignidad. Eso a mí cada vez me apasiona cada vez más. Yo escribo La dueña, como un acto de identificación, de circunstancias que han caracterizado la historia de este país.30 (2010, p.617) No fundo, tanto esforço por dignificar a telenovela responde em Cabrujas ao objetivo de se justificar frente ao seu grupo social; Cabrujas sentia uma grande contradição, porque seu grupo o atacava e não sabia como pertencer de novo plena e coerentemente. “Cuando comencé a trabajar en TV”, se desahoga Cabrujas, “me crtiticaron: ‘El intelectual de izquierda que traiciona a la causa vendiéndose para una emisora pa darle rating y meterse un billete’. Eso fue tormentoso, me afectó muchísimo. Porque ni yo mismo estaba seguro de poder calificar mi decisión de hacer televisión.”31 (p.614.) Consegue uma resposta que lhe permite estar bem consigo mesmo e, ao mesmo tempo, se opor à intelectualidade: a televisão lhe permite viver de seu trabalho e não depender do Estado, como a grande maioria de intelectuais venezuelanos, que se não trabalhavam num organismo público tinham que pedir financiamento ao governo para seus projetos. Essa resposta lhe dá um pouco de tranquilidade e lhe permite se justificar, se opor ao seu grupo, mas pertencendo e reclamando seu lugar no campo cultural e no espaço público. Com os anos, porém, Cabrujas se abre totalmente: em 30 Tradução: “Acredito firmemente que uma sociedade precisa de um espelho onde possa se ver, onde se entender. Ninguém tem o direito de propor soluções dentro do esquema de uma telenovela ou de uma peça teatral ou de qualquer ato mais ou menos literal, não acredito que essa seja a tarefa de quem escreve, mas sim gostaria de conseguir e sentir, depois de tudo, este trabalho da televisão; saber que esta sociedade teve um estímulo para se entender, para entender suas humilhações, suas picardias, suas sem-vergonhices, suas pobrezas, sua dignidade e sua indignidade. Isso cada vez me apaixona mais. Eu escrevo La dueña como um ato de identificação, de circunstâncias que tem caracterizado a história deste país.” 31 Tradução: “Quando comecei trabalhar na TV me criticaram: ‘O intelectual de esquerda que trai a causa se vendendo para uma emissora para lhe dar rating e ganhar uma grana’. Isso foi um tormento, me afetou muito. Porque nem eu mesmo tinha certeza de poder qualificar minha decisão de fazer televisão” 45 1992, dois anos antes de morrer, o autor reconhece: “He escrito telenovelas con la intención de ganarme la vida y la de los míos sin trabajar en el Gobierno, con la intención de ver ópera en La Scala de Milán y tomar whiskey. Exhibirme ahora como arrepentido resultaría una estupidez inconcebible.”32 (2010, p.618) Contudo, algo mais importante do que dinheiro atraia Cabrujas, que pelo mesmo motivo se converteu em colunista de imprensa: a expansão de seu público, de seus leitores. Queria se comunicar com o maior número de pessoas, se deixar sentir, por essas pessoas. Cabrujas chegou a dizer que não existe na América-latina evento comunicativo tão importante quanto à telenovela. Essa particularidade, o poder de alcance e de influência que a televisão oferecia a Cabrujas, o atraiu, o seduziu. Além disso, Cabrujas aponta esse poder -o poder comunicativo, a responsabilidade derivada do enorme públicocomo causante de uma mudança, de uma reflexão em sua atividade criadora. Na entrevista de Rafael Arráiz Lucca ,em 1986, ele (Cabrujas) aborda o assunto com as seguintes palavras: Pone a un país entero a ver lo que ha hecho [telenovelas]. ¿Cuál es su relación con el poder? La seducción del poder en usted debe ser una cosa muy grande. El poder me ha enseñado. La televisión me ha enseñado a escribir teatro, me ha hecho mejor escritor de teatro porque me ha enseñado a conocer a la gente, la imagen de la gente. Me ha enseñado a no pensar tanto en mí, a volverme sobre las personas. Me ha enseñado, por ejemplo, a escoger la temática de mi columna en El Nacional, a saber que no puedo escribir allí como capricho lo que me da la gana. Yo no quiero ser arbitrario cuando escribo. Me parece que alguien como Breton en Venezuela es un bobo.33 (2003, p.169) IV. O MOTIVO DO FRACASSO Recapitulemos. O motivo frente ao qual Cabrujas reage, motivo que resulta das mediações (histórica, psicossocial e estética) tensas entre autor, grupo social e entorno, é o fracasso: fracasso de um país petroleiro que tinha recebido montanhas de dinheiro e, mesmo assim, faliu. Fracasso da geração de 58, dos intelectuais de esquerda que apostaram por uma revolução falida. Fracasso da ideologia comunista como ética grupal no entorno de uma Venezuela liberal/petroleira. Fracasso histórico e fracasso grupal, além de fracasso ideológico. 32 Tradução: “Tenho escrito telenovelas com a intenção de ganhar a vida e a dos meus sem trabalhar no Governo, com a intenção de ver ópera na Scala de Milão e tomar uísque. Me exibir agora como arrependido seria uma estupidez inconcebível.” 33 Tradução: “Você bota o pais inteiro para ver o que tem feito [telenovelas]. Qual e sua relação com o poder? A sedução do poder em você deve ser muito grande. O poder tem me ensinado. A televisão tem me ensinado escrever teatro, tem feito de mim melhor escritor de teatro porque tem me ensinado conhecer as pessoas, a imagem das pessoas. Tem me ensinado a não pensar tanto em mim, a me voltar sobre as pessoas. Tem me ensinado, por exemplo, a escolher a temática da minha coluna em El Nacional, a saber que não posso escrever lá como capricho o que eu queira. Eu não quero ser arbitrário quando escrevo. Me parece que alguém como Breton na Venezuela é um bobo.” 46 A reação de Cabrujas, obviamente, é indireta e tem lugar no plano conceitual, imaginário, da obra de arte. Tentamos, até agora, mostrar, durante a análise das obras, como o motivo do fracasso é muito mais do que temático, intrínseco à composição das obras analisadas e como é estruturante das condições espaço-temporais e das relações entre os personagens. O autor persegue uma coerência inconsciente com respeito a algum motivo. Tragamos aqui as palavras de Juan Villegas em sua Nueva interpretación y análisis del texto dramático. El motivo, entendido como unidad y situación, como estrategia de análisis permite el análisis estructural-funcional (función de las partes en el todo) y el análisis ideológico. Este último supone que la situación esquemática se carga de contenido ideológico en su plasmación en un texto particular y, a la vez, evidencia la ideología del autor y su grupo social”34 (1991, p.111) O motivo que dá coerência à obra de Cabrujas, que a explica como reação, no plano imaginário, do autor frente à Venezuela petroleira e liberal, e que persegue a busca de autenticidade do indivíduo que forma parte do grupo humano dos intelectuais de esquerda é o fracasso. Cabrujas o assumia como tema consciente em sua criação dramática: El tema que me importa es el fracaso. Un hombre se refugia en una idea, la proclama como parte de sí mismo y se adhiere a ella. Al hacerlo cree pertenecer, cree hacerse cierto. Pero esa idea jamás lo explica ni lo hace pertenecer a nada porque en el fondo no tiene nada que ver con su vida.35 (CABRUJAS, 2009, p.19) Fala de seus personagens, de seu grupo social e de si mesmo. Fala de Manganzón de Profundo, de Cosme Paraíma de Acto Cultural e, sobretudo, de Pío Miranda, Arístides e Anselmo Lander: genuínos fracassados ideológicos. A relação entre o personagem de Pío e a geração de 58, os vínculos ideológicos e o motivo do fracasso resultante da tensão, são evidentes, quando Cabrujas declara que Le tengo rabia a su fanatismo. Al fanatismo de Pío. A su fé en Stalin, en la Unión Soviética, en el koljosz, en toda esa palabrería que yo, al igual que él, pronuncié. Toda esa experiencia, todos esos koljoses, todas esas palabras soviéticas, palabras en las que uno nunca pudo profundizar.36 (2012, p. 280) Queremos trazer aqui uma definição de fracasso extraída do romance Respiração Artificial, de Ricardo Piglia, uma definição literária que vem em forma de citação. Quem fala é Tardewski, um polanês solitário e empobrecido que, ao longo da sua vida, passou de 34 Tradução: “O motivo, entendido como unidade e situação, como estratégia de análise permite a análise estrutural-funcional (função das partes no todo) e a análise ideológica. Esta última supõe que a situação esquemática se carrega de conteúdo ideológico em sua plasmação num texto particular e, ao mesmo tempo, evidencia a ideologia do autor e seu grupo social.” 35 Tradução: “O tema que me importa é o fracasso. Um homem se refugia em uma ideia, a proclama como parte de si mesmo e adere a ela. Ao fazê-lo acredita pertencer, acredita fazer o certo. Mas essa ideia jamais o explica nem o faz pertencer a nada, porque no fundo, não tem nada a ver com sua vida.” 36 Tradução: “Tenho raiva de seu fanatismo. Do fanatismo de Pío. De sua fé em Stalin, na União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, no koljosz, em todo esse palavreado que eu, igual a ele, pronunciei. Toda essa experiência, todos esses koljoses, todas essas palavras soviéticas, palavras nas que nunca nos aprofundávamos.” 47 discípulo de Wittgenstein, antes da guerra, a imigrante esquecido e medíocre professor particular de filosofia para estudantes de segundo grau: Sentia inclinação pelo que chamam homens fracassados, disse [Tardewski]. Mas, o que é, disse, um fracassado? Um homem que não tem quiçá todos os dons, mas sim muitos, inclusive bastantes mais do que os comuns em certos homens de sucesso. Tem esses dons, disse, e não os explora. Os destrói. De modo, disse, que na verdade destrói sua vida. Tinha um cara, por exemplo, que eu encontrava com frequência. Na Polónia. Este homem tinha se eternizado na Universidade, sem nunca fazer as provas que faltavam para terminar sua carreira. De fato tinha abandonado a Universidade pouco antes de obter seu diploma em matemáticas e depois tinha deixada plantada sua noiva no dia da boda. Não via nenhum mérito especial em realizar nada. (...) Se tenho falado disso tudo, disse, é porque eu mesmo, claro, sou um fracassado. Quero dizer, um fracassado no verdadeiro sentido, ou seja, disse, alguém que tem desperdiçado sua vida, que tem esbanjado suas condições. Tenho sido, disse, o que costumam chamar um jovem brilhante, uma promessa, alguém frente a quem se abrem todas as possibilidades. (2010, p.152) Três facetas do fracasso: Anselmo, Arístides e Pío No último teatro de Cabrujas se desenvolve o motivo do fracasso em três personagens: Pío Miranda, Arístides Lander e Anselmo Lander. Esses personagens, protagonistas de suas obras, assumem o fracasso vital de forma provisória até que as circunstâncias obrigam o desencadeamento de uma crise, de um colapso. Embora o fracasso dos três personagens seja ideológico, cada um deles fracassa de forma absoluta em três aspectos independentes: o amor, a ambição e a fé. Pío fracassa no amor porque não consegue resolver sua situação, de uma década, de indefinido noivado com María Luisa; Anselmo tem uma fé fracassada porque apesar de ser bispo e de oferecer missa não acredita em Deus, deseja sua cunhada e finda o voto de castidade; fracassa também a ambição desmedida de Arístides, que, durante a juventude, se achava predestinado a grandes coisas que jamais alcançou. Em conjunto, estes três personagens exploram criativamente todas as possibilidades, todas as caras do fracasso que marcou a geração de Cabrujas (inconscientemente) e que estimulou a parte mais importante de sua obra dramática. Pío Miranda vive o fracasso amoroso, ele fracassa na vida. Seu problema não é ser um escuro professor noturno ou não ter dinheiro; seu problema é a irresolução amorosa com María Luisa. O tempo cênico de El día que me quieras mostra a relação amorosa de Pío e María Luisa, levada até o limite. É uma relação muito peculiar. Em dez anos, não mantiveram relações sexuais e nunca se viram nus. María Luisa viu seus vinte e oito anos se converterem em trinta e oito sem uma toma de posição séria de parte de Pío. Então, ela o pressionou. O pressionou e Pío inventou uma mentira: disse que como era comunista eles não poderiam se casar nessa lixeira do capitalismo, mas na verdade proletária da URSS e a convidou para 48 morar com ele na Ucrânia; inventou uma carta enviada a Romain Rolland e, assim, conseguiu postergar o momento de encarar o fracasso e enfrentar a verdade. A conversa entre Isaac Chocrón, Cabrujas, sua mulher, Eva Ivany, e a jornalista Miyó Vestrini, publicada em Isaac Chocrón frente al espejo, tinha como tema original a amizade entre Cabrujas e Chocrón, no entanto, em algum momento, tal tema se perdeu e deu lugar a outro: obra recém estreada El día que me quieras. Diz Cabrujas: José Ignacio: Pío Miranda cree en él. Solo logra destruirlo, inhibirlo, su fallido amor con María Luisa, cuando comprende que el acto de vivir se le escapa. Cuando se da cuenta que es un payaso, porque no logra hacer coherente su vida junto a la simpleza de un ser humano que lo quiere, quiere vivir con él… y él no se atreve. Si no se ha acostado con María Luisa, a lo largo de no sé cuántos años, es porque pertenece a otra cosa. Él se quiere acostar en Rusia.”37 (VESTRINI, 1980, p.206) Em El americano ilustrado, Anselmo fracassa no âmbito religioso, mas de forma paradoxal, porque fracassa desde o sucesso, fracassa ascendendo na jerarquia eclesiástica, até alcançar o cargo de bispo e até perder toda sua fé e toda sua vontade vital; resignado, encarcerado na igreja, afastado do amor que o atormenta, o amor clandestino por María Eugenia (um amor não fracassado, mas consumado). Entendemos a fé de Anselmo como uma fé oportunista, uma fé deformada e cínica, uma fé que no fundo não tem nada de fé. Já no Prólogo, o vemos lendo literatura erótica na capela e depois fazendo uma proposta sexual. No primeiro ato, reitera seu amor por María Eugenia e em outro momento informa a Arístides que está participando de uma conspiração contra o presidente Guzmán (Arístides, irônico, lhe pergunta se está achando que é “Juana de Arco”); confessa também que tem uma contapoupança em Hamburgo com cem mil marcos e que quer deixar eu bigode crecer. Seu grande fracasso é a negação, a posposição da renúncia, sua paulatina corrupção por permanecer na igreja. “Monseñor”, dice Anselmo sobre sí mismo, “se ha hecho melancólico, disperso y a veces adiposo de tanto hastío.”38 (AI.26) O fracasso de Arístides é histórico, disfarçado de fracasso profissional. Na verdade, Arístides tinha ambições profissionais tão grandiosas (alcançar o grau de General, presidir o Partido Conservador, modificar a Constituição Nacional) que podemos dizer que suas ambições são proporções históricas. É oportuno trazer aqui outra citação de Respiração Artificial, de Piglia, que pode aclarar a situação de Arístides 37 Tradução: “José Ignacio: Pío Miranda acredita nele mesmo. Só consegue destruir, inibir, seu falido amor com María Luisa, quando compreende que a vida está passando. Quando percebe que e um palhaço, porque não consegue fazer coerente sua vida junto à simpleza de um ser humano que gosta dele, que quer viver com ele… e ele não se atreve. Se não tem deitado com María Luisa, ao longo de não sei quantos anos, é porque pertence à outra coisa. Ele quer ter sexo na Rússia.” 38 Tradução: “Monsenhor tem ficado melancólico, disperso e às vezes adiposo de tanto tédio” 49 A capacidade de pensar a realização de sua vida pessoal em termos históricos, lê Tardewski a frase de Le Roy Ladurie anotada en seu caderno de citações, foi para os homens que participaram na Revolução Francesa tão natural, quanto pode ser natural para os nossos contemporâneos, quando chegam aos quarenta anos, a meditação sobre sua própria vida como frustração das ambições de sua juventude. Via condensada nessa frase, disse, enquanto tirava os óculos e voltava guardar o caderno na gaveta, o que Marcelo llamava, não sem ironia, a mirada histórica. (2010, p.183) O olhar de Arístides era histórico, assim como suas aspirações. Porém, com apenas quarenta anos alcançou o intranscendente cargo de Secretário de Protocolo do Ministério de Relações Exteriores. Repentinamente acontece a peripécia: Guzmán o nomeia ministro e ele se sente brevemente feliz. O que ignora é que Guzmán o nomeia ministro somente para que se realize a indigna tarefa de negociar a entrega de Guayana a Inglaterra (nasce a Guayana inglesa). E legítimo pensar que o anterior Ministro de Relações Exteriores, o doutor José Tadeo Tello Uzcátegui, não tenha sido demitido conforme disse Guzmán, mas que tenha renunciado. Arístides aceita o cargo e embarca para Inglaterra em missão diplomática degradante, sobretudo para alguém com uma mirada histórica tão marcada quanto a de Arístides. Em profundidade, como dissemos ao princípio, Arístides, Anselmo e Pío sofrem um fracasso ideológico. E dizemos ideológico nos referindo, de entre os muitos significados possíveis do termo, àquela acepção, mais sociológica do que epistemológica que, em palavras de Eagleton, “tem se interessado mais pela função das ideias dentro da vida social que por sua realidade ou irrealidade” (2005, p.21) Dizemos ideologia e pensamos no conjunto de ideias e de crenças de um grupo social (como os católicos ou os militantes do Partido Conservador no final do século XIX, como os comunistas de princípios do século XX e como os intelectuais de esquerda das décadas do setenta e oitenta). Todos vivem com alguma ideologia, participam, militam, se refugiam num dogma, no conjunto de crenças que não explicam, que resultam ineficazes para resolver seus problemas e que, com o passar do tempo, desencadeia uma crise. Anselmo vê morrer sua fé e renega de sua religião e seu cargo, enquanto que paradoxalmente ascende dentro da jerarquia da igreja até chegar a bispo; quando, no primeiro ato, Arístides lhe pergunta se acaso não é ele o pastor, Anselmo responde “(como si escapara de una convicción).- Dios no cree en mí, Arístides. Dios es ateo.”39 (AI.15) Arístides, que em sua juventude pertenceu ao Partido Conservador, com o decorrer do tempo acaba se inscrevendo, de forma interesseira e não sincera, no Partido Liberal (opositor do Conservador) por ser o partido oficial; desse jeito ele pôde obter um cargo -medíocre- no 39 Tradução: “(Como se escapasse de uma convicção).- Deus não acredita em mim, Arístides. Deus é ateu.” 50 governo, embora não deixasse de desprezar o presidente Guzmán. Se opõe secretamente ao partido e ao governo de Guzmán, mas faz um pacto com o presidente em troca do ministério. Anselmo (que conhece seu irmão), ao saber que Arístides aceitou o ministério, critica sua inconsistência dizendo: “Hace un mes odiabas a Guzmán. Oscuro, como un pequeño ratón entre libros, me parecías respetable”40, ao que Arístides responde “(Herido).- Hace un mes sigue siendo hoy. Y la oscuridad es la misma. La oscuridad soy yo”41 (AII.24) O fracasso ideológico dos três personagens nasce da falta de correspondência entre crenças, princípios e ideias. De um lado, está a vida, prosaica e ordinária, de outro está Arístides, um medíocre burocrata, tentado pelo poder e disposto a esquecer seus princípios em troca de um cargo; Anselmo , um padre sem fé e com desejos sexuais e Pío, um eterno noivo que não consegue consumar seu amor nem na igreja, tampouco na cama. “A mí”, diz oportunamente Cabrujas (e nisto se parece a Tardewski, personagem de Piglia que sente inclinação pelos fracassados e que fala, como citamos faz pouco, de um conhecido seu (de Tardewski) na Polónia, que tinha abandonado a universidade bem antes de se formar porque segundo dizia não via sentido em realizar nada) “siempre me interesó el tema de la frustración, del derrotado, del que balbucea y fracasa y no sabe por qué. No me gustan los exitosos sino los que abordan el fracaso como una profesión de vida.”42 (CABRUJAS, 2010, p.616) Contudo, é impossível manter o fracasso indefinidamente, chega um ponto culminante que nasce da necessidade de mudança de uma situação de fracasso para a oposta. Sobrevêm a crise. O termo é originalmente médico e indica um ponto irreversível na saúde de um paciente, mas tem acepções variadas. Há crise econômica, como a do viernes negro em 1983; há crise política, como a da esquerda em 1968, quando o Partido Comunista de Venezuela negocia com a democracia a rendição da guerrilha; há crise histórica, como a da Venezuela durante o governo de Guzmán, quando entrega parte do território nacional à Inglaterra; e há, também, crise psicológica, como a crise dos quarenta que desencadeia o desencanto de Arístides, o aniversariante. “Pero acaso”, conclui Manuel Caballero respeito à definição de crise, “lo más importante es su dimensión ideológica. En todo caso, cada vez que se producen, se sacude también el entero edificio de las creencias, prejuicios y principios. En una palabra, se puede decir que toda crisis sea en lo fundamental una crisis de creencia” (2009, p.19). A 40 Tradução: “Há um mês você odiava o Guzmán. Escuro, como um pequeno rato entre livros, você me parecia mais respeitável.” 41 Tradução: “(Magoado).- Há um mês segue sendo hoje. E a escuridão é a mesma. A escuridão sou eu” 42 Tradução: “Sempre me interessou o tema da frustração, do derrotado, do que balbucia e fracassa e não sabe por que. Não gosto dos sucedidos, senão dos que abordam o fracasso como uma profissão de vida.” 51 falsidade, o fracasso ideológico oculto, negado e autonegado, dos personagens de Cabrujas, do próprio Cabrujas e dos intelectuais de esquerda dentro do contexto político e socioeconômico daquela Venezuela, tudo entra em crise. V. A ESTRATÉGIA DA CONFISSÃO A confissão de Pío, como uma bomba, explode no final do Segundo ato de El día que me quieras e acaba com a reunião que a família Ancízar faz em homenagem a Gardel. O desencadeante é o jogo de pergunta-resposta sobre ideologia marxista que, a pedido de Plácido, improvisam na metade da reunião, entre aplausos, risos e exclamações gerais, com exceção de Pío que ficou ridiculizado, simplificado, ele e o seu comunismo, reduzido a um jogo, a uma catequese, a palavras, discurso vazio. Há três indicações corporais que acompanham as réplicas do personagem Pío e que sintetizam eloquentemente a degradação de seu estado emocional durante a sequência do jogo, que são (Rabugento), (Constrangido) e (Suicida). O jogo termina com aplausos e risos de todos, menos de Pío, que nesse momento confessa: PÍO.- Está bien, señores… se acabó… vayan a vislumbrar a sus madres… ¡se acabó! (A María Luisa) No hay nada en Ucrania. No sé dónde queda Ucrania. No hay Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas. No hay Kamanev ni Zinoviev… no sé pronunciarlos. No hay Trotsky… ¡No hay Alliluyeva! ¡No hay Stalin! ¡No hay ventanal de la zarina, ni Bujarin doliente! ¡No hay Lenin! ¡No hay nada...! MARÍA LUISA (Grita).- ¡Pío! PÍO.- Pregúntale a Elvira. Ella sabe (...) Yo... estoy mal… yo… me voy… y nunca más volveré a esta casa… No me esperes… ¡No hay nada! ¡No pasa nada! Mentí… ¡Esa es la palabra esperada, la palabra profética! ¡Mentí! ¡No hay Romain Rolland! ¡Nunca le escribí a Romain Rolland...! ¡Me importa un coño Romain Rolland, y la paz y la amistad de los pueblos...! ¡Se terminó! ¡No hay regreso! ¡Se terminó…!43 (II.8) Após dizer tudo, após confessar a falsidade de seus planos de ir para Ucrânia, a mentira de todo o cosmos comunista sobre cujas projeções ideais tinha cimentado o futuro de seu relacionamento e a esperança de María Luisa, após reconhecer seu fracasso amoroso e ideológico, seu fracasso vital, Pío abandona o cenário para sempre. “Es lo que le puede pasar 43 Tradução: “PÍO.- Está bem, senhores… acabou… vão vislumbrar suas mães… acabou! (A Maria Luisa) Não há nada na Ucrânia. Não sei onde fica a Ucrânia. Não há Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas; Não há Kamanve nem Zinoviev… não sei pronunciá-los. Não há Trotsky… Não há Alluluyeva! Não há Stalin! Não há janela da czarina, nem Bujarin dolente! Não há Lenin! Não há nada…! MARÍA LUISA (Grita).- ¡Pío! PÍO.- Pergunta para Elvira. Ela sabe (...) Eu... estou mal… eu… vou… e nunca mais voltarei nesta casa… Não me esperem.. Não tem nada! Nada acontece! Menti… Essa é a palavra esperada, a palavra profética! Menti! Não há Romain Rolland! Nunca escrevi para Romain Rolland…! Que se fodam Romain Rolland, e a paz e a amizade dos povos…! Acabou! Não tem mais volta! Acabou…!” 52 a un hombre que se mueve en una esfera ética”, explica Cabrujas a Miyó Vestrini na entrevista publicada em Isaac Chocrón frente al espejo, “de repente sucumbe, mete la pata, pronuncia una blasfemia, como la que pronunció Pío Miranda al final de la obra. No cree en nada, odia a todo, se hunde definitivamente, prefiere inmolarse personalmente a continuar con una mentira.”44 (1980, p.205) * A confissão de Anselmo estoura com veemência no final do segundo ato de El americano ilustrado. Como a de Pío, a confissão de Anselmo também acontece de forma inesperada, embora inevitável, como resultado da incubação estendida do fracasso amoroso (deseja sua cunhada) vital (deseja uma vida civil, com riscos e prazeres civis) e ideológico (é um padre sem fé). Com quarenta e um anos, Anselmo se vê na impossibilidade de manter por mais tempo aquela situação. O desencadeante da confissão é um comentário de Arístides que, sem querer, sem suspeitar, acabou apertando um “nervo” sensível de seu irmão (que já tinha tempo repensando sua vida); com respeito à conspiração contra Guzmán da que Anselmo forma parte, Arístides lhe responde desdenhosamente: “Limítate a tus funciones de cura. Tienes canas y el diafragma comenzó a lamentar tu abdomen. Tienes venillas azules en los tobillos. Es hora de sentar cabeza. ¿Cuándo vas a aprender?”45, ao que seu irmão replica, “Tal vez hoy. Tal vez ahora. (Anselmo comienza a despojarse de su traje de obispo)”46 (AII.25). Arístides, por último, não confessa. Arístides decide calar ao invés de explodir, cede em troca do ministério que lhe oferecem e segue adiante com sua vida sem entender que o ministério é uma armadilha, que o que lhe ofereciam era uma tarefa desagradável e terrível. Podemos dizer que Arístides alcança o ponto de crise, mas sem explodir nem acusar transformação alguma. * Em conclusão, Cabrujas reage frente ao motivo do fracasso, significativamente, na configuração de sua obra, através da estratégia da confissão. Em sua procura pela autenticidade, Cabrujas tenta aumentar as possibilidades de supervivência de seu grupo social. A atitude de Cabrujas é renovadora, radical e o faz ganhar muitos problemas e inimigos no campo cultural; Cabrujas, porém, aprende a se defender e a brigar com seu grupo social (as telenovelas o treinaram). Durante uma entrevista, em 1980, declara que: 44 Tradução: “É o que pode acontecer com um homem que se movimenta numa esfera ética, de repente sucumbe, foge, pronuncia uma blasfêmia, como a que pronunciou Pío Miranda no final da obra. Não acredita em nada, odeia tudo, afunda definitivamente, prefere se imolar pessoalmente do que continuar numa mentira” 45 Tradução: “Limite-se às suas funções de padre. Você já é grisalho e o teu diafragma começou reclamar de teu abdome. Você tem veias azuis nos seus tornozelos. Está na hora de assentar a cabeça; Quando vai aprender?” 46 Tradução: “Talvez hoje. Talvez agora (Anselmo começa se despojar de seu traje de bispo)” 53 Los modelos de revolución que conocemos no son nada satisfactorios. No se pensó que además de hambre, el hombre tiene otras necesidades igualmente primordiales. Un pan es importante hasta que el hombre se lo come; después de comido empiezan otros problemas: que quiero ser libre, que quiero viajar a otro país, que quiero tener tal perolito en mi casa. Todas esas cosas mediocres y sublimes constituyen elementos humanos. El peor error de una revolución es considerarse a sí misma absoluta, que las cosas se detienen luego de logrados ciertos objetivos de carácter económico (...) Yo no puedo creer más en una revolución que simplemente se limite a hablar de justicia social; eso no me basta. Yo quiero una revolución que me diga cuáles son los valores que se me prometen. 47 (1980, p.633) Qual seria a motivação de Cabrujas de planejar a morte de uma fé (a fé marxista), sendo ele próprio parte do campo cultural e teatral de Venezuela, unanimemente comprometido com os ideais de esquerda? Segundo o que acreditamos, apenas ser sincero e mostrar que na realidade o discurso ideológico tinha tomado um caminho que era contrariado por causa do acordo sociopolítico dos governos posteriores a chegada da democracia, por consequência, a ideia do comunismo tinha se desvalorizado, tinha virado algo muito semelhante a aquilo que Avelar chama mercancia “desauratizada". Daí pra frente, o quebre entre realidade e discurso foi definitivo. Isto atribuiu um ar “aurático”, durante muitos anos, ao conceito do comunismo, distanciado da realidade e convertido em ideologia de culto. Vinte anos da “auratização” do comunismo no campo cultural venezuelano, que poderiam ter se estendido mais ainda, a não ser pela voz crítica, isolada, de Cabrujas quem, mesmo sendo membro do Partido Comunista (PC) e co-fundador do Movimiento Al Socialismo (MAS), reconheceu que dita ideologia não passava, entre os intelectuais do campo, de uma religião suplementaria (AVELAR, 2000, p. 26). Com a caída de Allende, com a loucura de Althusser, com a rendição das guerrilhas venezuelanas e o pacto com a democracia liberal/petroleira, poucos anos antes do ano da representação de El dia que quieras, começava ser necessária uma reflexão. Pertenezco a una generación muy concreta, muy definida. La generación del 58, que le apostó la vida al batacazo en todos los partidos y ahora no le queda otro camino que el de ser sincero. A lo único que yo quisiera apostar en mi vida es a no engañarnos más. Es esa la desesperada necesidad que siento en este punto de mi vida. No quiero engañarme ni engañar a los demás. 48 (2010, p.643) 47 Tradução: “Os modelos de revolução que conhecemos não são nada satisfatórios. Não se pensou que além de fome, o homem tem outras necessidades igualmente primordiais. Um pão é importante até que o homem o come; depois de comido começam outros problemas: que quero ser livre, que quero viajar para outro pais, que quero ter tal tachinha na minha casa. Todas essas coisas medíocres e sublimes constituem elementos humanos. O pior erro de uma revolução é se considerar absoluta”, que as coisas se detêm depois de logrados certos objetivos de caráter econômico (...) Eu não posso acreditar mais numa revolução que simplesmente se limite a falar de justiça social; isso não basta. Eu quero uma revolução que me diga quais são os valores que se me prometem” 48 Tradução: “Pertenço a uma geração muito concreta, muito definida. A geração do 58, que apostou a vida em todos os partidos e agora não tem outro caminho que ser sincera. A única coisa que eu gostaria de apostar na minha vida é não nos enganarmos mais. É a desesperada necessidade que sinto neste ponto da minha vida. Não quero me enganar e nem enganar aos outros.” 54 VI. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL DIA QUE ME QUIERAS (1979) Título Na prática da análise textual, o título nos interessa como “cartão de apresentação” de uma obra. Nele se evidencia a “intenção de obedecer ou não às tradições históricas”, explica Ryngaert, assim como o “jogo inicial com um conteúdo a ser revelado do qual ele é a vitrine ou o anúncio, o chamariz ou o selo de qualidade.” (1996, p.38) O que o título nos diz primeiramente? Explica o gênero da peça? Anuncia algo acerca de seu conteúdo? Trata-se acaso do diálogo de algum dos personagens? É uma obra que fala sobre o amor? Ou se trata de um título metafórico? A ambiguidade do título desperta várias interrogantes. Partamos do assunto principal, que corresponde à sua origem. Cabrujas se apropriou de um título que, na realidade, não é seu e que, antes de significar obra dramática, foi música: está inspirado no famoso tango “El día que me quieras”, composto pelo cantor Carlos Gardel (música) e seu parceiro Antonio Le Pera (letra), - ambos pessoas históricas e personagens da peça teatral-, gravado em 1935. O tango inspirou também a um filme homônimo, protagonizado pelo próprio Carlos Gardel e cuja estreia foi posterior à sua trágica morte. Na obra, os personagens fazem referências diretas tanto à música (que também é interpretada sobre cena pelo personagem de Gardel) quanto ao filme. O título não vem acompanhado de nenhuma indicação relativa ao gênero e joga com os registros musical e filmográfico, o que nos desorienta, mas ao mesmo tempo nos anuncia que seu conteúdo se relaciona com a cultura popular e com o tango de Carlos Gardel. Segundo Ryngaert, um título, como este, “pode jogar com vários registros e nos deixar indecisos” (1996, p.37). Secretamente, se refere também à relação amorosa dos personagens Pío Miranda e María Luisa Ancízar, como poderemos comprovar mais adiante. A obra está dedicada “a Eva”, sem mais palavras. Sabemos que o autor se refere à Eva Ivanyi, sua segunda esposa e figurinista da montagem original, mas é evidente que Cabrujas quer jogar com a referência bíblica da primeira mulher que é de alguma forma, todas as mulheres. Há também um agradecimento, “a Manuel Caballero”, amigo íntimo de Cabrujas, historiador, colunista e acadêmico venezuelano, seguido de uma especificação: “por las 55 conversaciones sobre la Internacional” 49. Refere-se a Terceira Internacional Comunista, eixo temático de capital importância nesta peça e fundamentadora dos princípios ideológicos de alguns dos personagens. As grandes partes Estruturalmente, a obra está dividida de forma quase clássica, em duas grandes partes que, embora não sejam chamadas atos, mas “tempos”50 cumprem a mesma função e obrigam a existência do intermédio. “Na prática moderna”, segundo Ryngaert, “os autores falam de sequências, fragmentos, movimentos (em referência a uma construção musical), pedaços, jornadas ou partes.” (1996, p.39) No caso de El día que me quieras, Cabrujas fala de “tempos”. Cada um destes tempos tem um subtítulo, conhecido somente pelos leitores, que são também nomes de músicas de Carlos Gardel e jogam com o conteúdo de cada parte. O Primeiro tempo se intitula “Rubias de Nueva York”51, já o Segundo tempo se intitula “Tutankh-amón”. Cada tempo corre contínuo, sem cenas nem marcações de interrupção, até o final, quando aparecem respectivamente, duas marcas, TELÓN52 ao final do Primeiro tempo e FIN (fim) ao final do Segundo tempo, final da obra. Estas duas marcas textuais contam com um estatuto duplo, pois são destinadas tanto à leitura, quanto à prática cênica. A falta de cenas provavelmente se explica pelo desejo de continuidade do texto e de evitar uma desnecessária sobrecarga textual. Entendemos que esta falta de cenas corresponde a um projeto estético do autor que persegue nesta obra uma “estética da continuidade (o desenrolar é previsto sem maiores cortes)” (RYNGAERT, 1996, p. 39). Cabrujas era, também, ator e diretor de suas peças e pensava a escritura tecnicamente. Nós, porém, propomos uma divisão em cenas que permita segmentar cada um desses dois tempos em unidades menores para facilitar a análise textual. Embora cada obra seja uma unidade de sentido e uma unidade de criação, pensamos que para viabilizar uma análise mais detalhada pode ser de grande utilidade uma divisão em subunidades, como as cenas. Entendemos as 49 Tradução: “pelas conversações sobre a Internacional”. No original: “Tiempos”. 51 A palavra “rubia” em espanhol indica mulher de cabelos loiros (e não vermelhos, como caberia supor). 52 Tradução: Cortina ou pano, na acepção teatral. 50 56 cenas do mesmo jeito com que as entende o teatro clássico: marcadas pelas entradas e as saídas dos personagens. Tipograficamente, vamos assinalar cada um dos dois atos ou tempos com números romanos (quer dizer I. para o Primeiro tempo e II. para o Segundo tempo) e números arábicos para as cenas (1, 2, 3, 4, etc., para a Cena 1, Cena 2, Cena 3, etc.), cujas combinações permitirão localizar rápida e facilmente as referências durante este estudo. Por exemplo, II.15. alude à decimo quinta cena do Segundo tempo e I.1., à primeira cena do Primeiro tempo. Por outro lado, embora não haja cenas propriamente, há a presença regular de grande quantidade de indicações cênicas ou didascálias a atores, cenógrafos, iluministas e também, como uma piscada de olho, aos leitores. Grandes parágrafos ao começo de cada ato descrevem o espaço, o tempo e o ambiente da obra (“La sala y el patio de las Ancízar a las doce del día”, “María Luisa está sentada en el sofá vienés”53). Em princípio, são indicações precisas, mas tendem ao metafórico, como por exemplo, quando o autor, para concluir sua descrição do decorado, diz que “El resto es árabe y fantasioso” ou que “Un reloj Junghans suena y es la única exactitud del lugar”54. A continuação e durante o texto todo, encontramos inumeráveis didascálias de ação: “Entra Elvira”, “Pío sale precipitadamente”. Abundam as indicações que definem o ritmo da representação e também da leitura: “Pausa”, “Breve pausa”, “Larga pausa”. Há, também, marcações menos precisas, um pouco sumidiças, mas muito eloquentes, com relação ao estilo e à forma com que os personagens (e os atores) falam e fazem: por exemplo, quando o autor faz Pío falar de forma “Marxista” ou “Suicida”, ou quando explica que María Luisa deve dizer seu parlamento “Compartiendo la alegría”55. Continuidade de ação El día que me quieras respeita classicamente as unidades de ação, tempo e espaço postuladas na Poética de Aristóteles. Toda a obra transcorre num espaço único, que é a sala e o pátio da casa da família Ancízar. O Primeiro tempo começa “a las doce del día” (meio-dia) e o segundo “a las doce de la noche” (meia-noite). A divisão corresponde a dois momentos: o primeiro acontece algumas horas antes do recital de Carlos Gardel no Teatro Principal e o segundo corresponde à volta, a casa, das irmãs Ancízar, logo após do esperado show. O 53 Traduçao: “A sala e o pátio das Ancizar no meiodia” e “Maria Luisa esta sentada no sofá vienense”. Tradução: “O resto é árabe e fantasioso” e “Um relógio Junghans toca e é a única exatidão do lugar”. 55 Tradução: “Dividindo a alegria”. 54 57 concerto, em poucas palavras, divide em dois tempos a ação da peça (e as vidas de seus personagens, a exceção de Pío): antes e depois. Mais do que um recital, o autor o descreve, no começo do Segundo tempo, como “la apoteosis de Gardel”. Mais esperado e comentado durante toda a primeira parte da obra, o concerto de Gardel ocorre no vazio de texto e de representação, quer dizer, no intermédio, entretanto, assim como no teatro grego (Clitemnestra matando Agamenon, por exemplo), este “fora de cena” cobra a potência do suspense preparado e se agiganta graças à expectativa formada na imaginação do leitor e do público. Grandes blocos de fala ou solilóquios, sobretudo as de Pío Miranda e de Elvira Ancízar, pausam o ritmo da obra. Estes solilóquios correspondem sempre a um salto no tempo: Elvira relembra seu breve matrimônio e quase imediato abandono, acontecidos há trinta anos; Pío justifica sua ideologia contando a história de sua vida, desde sua infância até o presente da ação; Matilde volta obsessivamente a esses lugares fora do espaço e do tempo através dos filmes de Gardel, tão vividos e presentes para ela que constituem memorias pessoais, reelaboradas, transformadas. Na realidade, quando os personagens falam longamente, o fazem apenas para lembrar, é como se tudo fosse lembrança; um exemplo pertinente é o solilóquio em que Elvira toma Gardel pelo braço e elabora com palavras a “lembrança” do passado absolutamente imediato em que se conheceram. No entanto, há outro tipo de pausa ou respiro da ação, um respiro musical marcado pelas músicas de Carlos Gardel. Em dois momentos, separados do Primeiro tempo, Matilde e Plácido fazem soar no gramofone os discos de Gardel, escutam e cantam “Sus ojos se cerraron” e “Rubias de New York”. No final do Segundo tempo e a modo de despedida, Carlos Gardel canta El día que me quieras e a letra cobra novos significados. Durante essas músicas, a ação se congela ou se transforma: a música se torna viva e atuante. A ficção da obra: argumento e intriga Entramos agora no nível da história que é contada na obra. É importante fazer uma distinção entre a história como soma linear de ações e sucessos, respeitando a ordem temporal que acontecem (argumento o fábula), e a forma de organização que tais sucessos assumem como mecanismos causais estruturados pelo autor (intriga). Argumento 58 A fábula ou argumento seria, segundo Pavis um “estabelecimento cronológico e lógico dos acontecimentos que constituem o esqueleto da história representada” (1990, p.34). Isto implica pôr em ordem os acontecimentos que aparecem desordenados ou tramados na peça textual. É um trabalho de ourives, difícil e árduo, que consiste em extrair as ações e os acontecimentos da história em sua totalidade e organizá-los seguindo uma ordem temporal e tomando consciência das temporalidades de cada acontecimento. “A dificuldade”, de acordo com Ryngaert, “consiste em isolar ações e distingui-las dos sentimentos quando são expressos por causa das ações e só considerar os discursos na medida em que arrastam à ação que os profere e quem os escuta” (1996, p.56). O argumento que apresentamos a continuação é uma abstração narrativa a partir da obra dramática, tão exaustiva e minuciosa que se apoia exclusivamente em ações e acontecimentos extraídos do texto analisado. Assim, entendemos que a elaboração deste argumento implica nosso ponto de vista, que não esgota as possibilidades da obra e que provavelmente seria diferente do argumento elaborado por outra pessoa: aqui apresentamos o nosso. Argumento de El día que me quieras No final do século XIX, em pleno governo de Cipriano Castro, morreu de velhice na sala de sua casa, em Caracas, o general Ezequiel Ancízar. Deixando viúva sua mulher, de quem nada sabemos exceto que teve quatro filhos: um homem, chamado Plácido, e três mulheres: Elvira, nascida en 1879, María Luisa, nascida aproximadamente em 1898 e uma terceira, apelidada “Julie”, cujo nome e idade desconhecemos. Neste mesmo período, especificamente em 1897, nasce, em Valencia, Pío Miranda, filho de Ernestina de Miranda, que enviúva anos depois. Elvira se casa em 1902, com um suposto químico chamado Raimundo Galarraga. Ele a abandona pouco depois, mente e foge para Trindade e Tobago alegando que ser perseguido pelo presidente Castro. Durante três anos, Elvira envia dinheiro para ajudá-lo, no endereço 18th Caiman Street, até que descobre que Galarraga não é exilado, mas a havia abandonado por uma mulher negra de sobrenome Sutherland. Não tiveram filhos. Sua irmã “Julie”, porém, teve uma filha: Matilde Ancízar, que recebeu o sobrenome materno (supostamente devido à ausência paterna). Ernestina de Miranda é enfermeira aposentada, mas, por um erro de nômina, deixa de receber sua pensão; sem nenhum dinheiro e coberta de vergonha, se enforca no quarto 59 deixando Pío órfão. Este ingressa no seminário Arquidiocesano de onde é expulso por ser pego se masturbando. Exerce várias profissões (caixa de imprensa, secretário de um comprador de esmeraldas) e tem várias religiões e crenças (espírita, rosa-cruz, maçom, ateu, livre-pensador) até que, já em Caracas, se converte em comunista e em professor de uma escola noturna. O presidente Cipriano Castro, que estava fora do país tratando problemas de saúde, foi traído por seu amigo -e vice-presidente- o general Juan Vicente Gómez, através de um golpe de Estado. Este assume o poder e se impõe presidente: começava (1908) a ditadura mais longa (27 anos) da história da Venezuela. Em 1915, Elvira encontra um trabalho de vendedora na agência de correios, no qual se mantém até o presente (o presente da peça é claro). Elvira já demonstrava, nesse período, interesse pelos tangos de Gardel. Nove anos depois, 21 de janeiro de 1924, morre Vladimir Ilich Lenin e, em pouco tempo, Stalin assume o poder da União de Repúblicas Socialistas Soviéticas e se converte em líder absoluto da Terceira Internacional. Um ano mais tarde, em 1925, o jovem comunista Pío Miranda e María Luisa Ancízar começam namorar. No dia 15 de maio de 1927 morre a mãe dos Ancízar, mas, antes de partir, deixa um encargo a Elvira: que ela se certificasse de que seu cunhado, Pío, se casaria com sua irmã Maria Luísa, com quem já tinha dois anos de namoro. No ano seguinte, 1928, morre “Julie”, deixando Matilde sob o cuidado de suas tias. Não há sinal do pai. Plácido Ancízar, que também não havia casado, nem tido filhos, consegue trabalho como assistente do diretor do Teatro Principal de Caracas. Os anos passam, Gardel cada vez mais famoso, Pío cada vez mais comunista e sem se casar com sua noiva María Luisa. Aproximadamente no dia 10 de junho de 1935, Pío Miranda inventa uma mentira para María Luisa, com quem tinha já dez anos de namoro: pressionado por ela e por Elvira para casar, ele mente, diz ter enviado uma correspondência ao escritor francês Romain Rolland pedindo uma carta de recomendação dirigida a Stalin em nome de Pío e María Luisa, para que possam se mudar para U.R.S.S. Assim que recomendação de Rolland chegasse, se mudariam 60 ambos para a Ucrânia, onde casariam e teriam filhos. Passado um mês e sem a recomendação de Rolland, María Luisa sugere a sua irmã, Elvira, a venda da casa como uma forma de obter dinheiro para financiar a viagem. Pío, no entanto, pede para postergar a venda até que a resposta de Rolland chegue. Em 11 de julho de 1935, quinta-feira, Gardel chega ao porto de La Guaira, de onde parte para Caracas, como parte de uma turnê latino-americana, para dar um concerto no Teatro Principal, às 9 da noite. Como Plácido trabalha nesse teatro, consegue ingressos para toda a família, sendo possível conhecer, até mesmo, a Gardel e Le Pera no Hotel Majestic, onde se celebrou uma recepção em homenagem ao cantor. Nessa tarde, María Luisa anuncia sua decisão: a partir dessa noite, moraria com Pío e venderia a casa. Pío é pego de surpresa. Elvira se enfurece. Plácido chega em casa com os ingressos para essa noite. Enquanto se preparavam para o concerto, Pío se despede e promete voltar despois do recital para buscar María Luisa e levá-la junto com ele. Por questões técnicas, Le Pera e Gardel vão atrás de Plácido até sua casa. Na entrada da casa, as samambaias do saguão fazem com que Gardel se lembre da casa de sua mãe e, comovido, pede aos Ancízar que lhes permitam, depois do concerto, passar a noite com eles. Durante o concerto, Gardel dedica a María Luisa, Elvira y Matilde uma música. Depois do recital, já em casa, as Ancízar preparam a sala para receber Gardel. Le Pera e Plácido chegam com garrafas de champanhe. Elvira e Matilde improvisam uma cerimônia de recebimento. Pío chega com uma mala para levar María Luisa e se surpreende com a presença de Gardel. Brindaram. Gardel acaba mencionando, por casualidade, sua amizade com Romain Rolland e María Luisa lhe pede que envie um telegrama, em nome de Pío e dela, a Rolland para que este acelere sua resposta; Gardel concorda. Plácido e María Luisa propõem um jogo: Pío faria perguntas sobre comunismo e eles responderiam. No meio do jogo, Pío se enfurece e confessa nunca ter enviado uma carta a Rolland, não ter intenções de morar na URSS com Maria Luisa e, tampouco, ser comunista. Pedindo perdão, abandona a casa e a noiva. Incomodado pela tensão, Gardel tenta se despedir, mas os Ancízar lhe rogam que cante uma última música antes de ir embora. Cantou “El día que me quieras” e depois partiu, junto a Le Pera. Matilde e Plácido vão dormir. María Luisa pede que Elvira faça café e, aproveitando a ausência da irmã, abre a mala que Pío havia deixado esquecida e encontra nela uma bandeira vermelha com a foice e o martelo. Estendeu-a sobre o respaldar do sofá e ficou contemplá-la. 61 Intriga Se o argumento se relacionava à narração cronológica das ações, a intriga corresponde à construção da obra em questão, à criação de sua forma definitiva, à maneira como chega até nós. Dela dependem as estruturas temporais e espaciais de qualquer obra. As intrigas de muitos romances policiais se constroem a partir da complicação da trama para criar suspense e captar a atenção do leitor. A originalidade nas obras de teatro clássico, que se valiam das mesmas fábulas e argumentos, dependia das intrigas que os autores idealizaram. Algo similar também acontece em outros gêneros contemporâneos, por exemplo, quando, ainda que o argumento seja original na narrativa, o interessante é a mecânica da intriga. O romance Crônica de uma morte anunciada, de García Márquez, começa contando, em uma linha, o desenlace da história e, em seguida, volta narrar convencionalmente, quebrando a expectativa e o suspense. O conto Viagem à semente de Carpentier conta a história de um homem a partir de uma inversão na seta do tempo, isto é, começando pela morte e concluindo no ventre materno. Da intriga depende a mecânica de una obra, a construção dos acontecimentos que ela conta, mediante a um eixo vital que é o conflito. A primeira tarefa, segundo Ryngaert, “consiste na identificação do conflito central. Existe conflito quando um indivíduo é contrariado por outro (uma personagem) ou quando se depara com um obstáculo social, psicológico ou moral” (1996, p.64). Os conflitos como é evidente nas obras de Cabrujas, podem fazer intervir forças ideológicas e morais (política, religião, dignidade) quando os personagens batem de frente com desejos e com princípios que os ultrapassam. Veremos a continuação a intriga de El día que me quieras exposta sinteticamente, depois desenvolvida com mais detalhes e, no final, dividida nas partes que constroem a progressão dramática. Em uma frase Um comunista não consegue concretar, nem na cama, nem no altar, seu relacionamento de dez anos com sua noiva, até, que pressionado por ela, confessa o vazio de suas intenções e de sua ideologia política sobre a qual tinham planejado construir um futuro juntos, e a abandona. Desenvolvimento da intriga Pío Miranda e María Luisa Ancízar esperam há um mês a carta de recomendação de Romain Rolland para poderem viver na União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde vão 62 casar e consumar seu noivado eterno “porque, entre otras cosas”, explica Pío, “quiero que mis hijos nazcan en la verdad proletaria y no en este basurero del imperialismo”56 (I.3). Porém, a carta de resposta de Rolland à carta de Pío não chega. Em vista da demora, María Luisa convence Pío de ambos se mudarem nessa noite, depois do concerto de Carlos Gardel. Inesperadamente e como um milagre, nesta mesma noite, Gardel vai à casa dos Ancízar e por casualidade e menciona sua amizade com Romain Rolland; sabendo disso, María Luisa lhe pede que interceda a Rolland para acelerar a resposta. Gardel concorda em enviar o telegrama, do hotel, no dia seguinte. Sentindo-se culpado e posto em evidência, Pío confessa não ter escrito nenhuma carta a Rolland, não acreditar no comunismo e nem pretender ir para a U.R.S.S. com María Luisa, deixando-a em seguida. O elemento que trama a intriga é a carta imaginária que Pío supostamente havia escrito a Romain Rolland. Como costuma acontecer em peças teatrais complexas, um conflito esconde outro. O conflito principal, o noivado eterno sem matrimônio, a irresolução de Pío, ilustrada com a carta inventada, esconde outro conflito mais profundo e complicado: o de um homem que utiliza uma ideologia (comunismo) na qual não acredita, para explicar seu mundo e condicionar seus atos, até que a realidade o obriga confessar sua falsidade e fugir. Essa “realidade” que o enfrenta se materializa em dois personagens que também vão entrar em conflito com Pío: Elvira, irmã de María Luisa, que abertamente confronta sua ideologia, suas atitudes e sua impostura (ela é a única que consegue perceber isso) e Gardel que, não com palavras, mas com sua mera presença, enfrenta Pío e lhe faz ver sua própria pequenez e sua insolvência rotunda. É curioso, mas o conflito de Pío, embora acordado pela insistência de María Luisa, pelas críticas de Elvira e pela grandeza de Gardel, não é um conflito com nenhum deles senão consigo mesmo. Léxico da intriga Sigamos desentranhando os mecanismos da peça, segmentando a intriga em suas partes constitutivas: -Exposição: Cabrujas nos apresenta, no Primeiro tempo, todos os personagens e suas duas mitologias: o comunismo de Pío e María Luisa e o fanatismo tanguero por Gardel de Elvira, Matilde e Plácido. Eles falam de suas mitologias construindo dois mundos não conexos e sonhados, utópicos, provavelmente irreais. Pío fala da U.R.S.S. e de Lenin, Stalin, 56 Tradução: “Porque, entre outras coisas, quero que meus filhos nasçam na verdade proletária e não nesta lixeira do imperialismo.” 63 Bujarin, Kamanev, do plano quinquenal, do koljosz e dos campos de beterraba na Ucrânia, onde futuramente (um futuro que não é uma intenção e sim uma posposição) irá viver com María Luisa, casar e ter uma família. Matilde, Elvira e Plácido falam da chegada de Gardel à cidade de Caracas nessa manhã, da comoção geral da cidade paralisada, do percurso do ídolo pela cidade, de suas músicas, de seus filmes, de seu corpo, sua origem e sua grandiosidade. María Luisa quer entender-se com Pío de qualquer jeito, mas Pío, não se opondo abertamente, se mostra ambíguo, indeciso e obrigado. Fala-se da carta supostamente enviada a Romain Rolland e da espera pela resposta. Plácido consegue ingressos para que os Ancízar possam ir ao concerto. -Nó: María Luisa obriga Pío a aceitá-la em seu quarto de pensão e declara ao resto da família que, nessa mesma noite, vão morar juntos. María Luisa manifesta a Elvira seu desejo de vender a casa visando conseguir dinheiro para a viagem com Pío até a Ucrânia. Pego de surpresa e atacado ferozmente por sua cunhada, Elvira, Pío procura uma intimidade com ela para se desculpar e para fazer uma confissão pessoal: foi a insistência de María Luisa que o levou a propor um hipotético matrimônio na U.R.S.S., não por razões ideológicas ou geográficas, mas porque a Ucrânia fica num mundo afastado, no mundo de suas ideias. De qualquer forma e apesar de sua falsidade, voltaria essa noite para procurá-la e levá-la consigo. Elvira, dona de um segredo terrível, assume a falsidade de seu cunhado e aceita seguir seu plano, sem fundamentos, de mudança para koljosz, na Ucrânia, para não ferir sua irmã iludida ou, melhor, para que não seja ela a responsável de revelar-lhe a verdade. -Peripécia: A grande peripécia, o golpe teatral que muda o curso da ação, acontece no final do Primeiro tempo, quando surpreendentemente Gardel, o homem-mito, o ídolo de massas, o conjurador dos sonhos dos Ancízar, adentra, por acaso, junto a Le Pera, sua intimidade familiar. O efeito é impressionante (tanto para os personagens, quanto para o público), porque a presença de Gardel no discurso dos Ancízar é tão reiterativa que se constrói um mito ao seu redor, se cria uma aura deificada e fanática que o afasta de suas realidades. Sua aparição repentina, mais do que surpresa, deriva em milagre. Sua presença física no Segundo tempo altera o curso dos acontecimentos e precipita a confissão de Pío. -Desenlace: Não há nenhum desenlace, peripécia definitiva, ou inversão da sorte de Pío, entendido aristotelicamente como herói trágico, que o leve a uma situação na qual fique evidente sua passagem da felicidade à infelicidade, como na tragédia clássica. O oposto também não ocorre, isto é, a passagem da infelicidade à felicidade, como na comédia. Sua 64 passagem é da infelicidade a outro tipo de infelicidade, como acontece, também, com María Luisa. Quando Pío confessa sua falsidade, no ponto mais alto da progressão dramática, ocorre uma crise com câmbios profundos e irreversíveis: se experimenta uma passagem do engano ao desengano. Do engano de um compromisso amoroso indefinido por demasiados anos ao desengano de seu rompimento abrupto; do engano de uma cosmovisão ideológica dogmática como explicação e justificação do mundo ao desengano de seu abandono. 3.1 Personagens Estrutura A distribuição do elenco de El dia que me quieras nas edições de Monteávila e de Equinoccio, respeitam a ordem de aparição dos sete personagens durante o desenvolvimento do drama: Reparto María Luisa Ancízar Pío Miranda Elvira Ancízar Matilde Plácido Ancízar Alfredo Le Pera Carlos Gardel Basicamente, o elenco se compõe pelos membros da família Ancízar (Matilde, Plácido, Elvira e María Luisa); pelo noivo de María Luisa, Pío, e por Gardel (acompanhado de Le Pera), sem conexões aparentes com o resto dos personagens até o final do primeiro ato. É um universo fechado, um universo familiar, com exceção de Gardel e Le Pera, tão estranhos que parecem saídos de um sonho. Configurações Os sete personagens se relacionam uns com os outros de diversas maneiras e em distintos momentos. Cada disposição possível de personagens sobre cena, da totalidade ou parte dos personagens, é chamada configuração. Não se encontra, em toda a peça, um cenário 65 vazio. Alguns dos momentos mais importantes da obra acontecem com configurações de duplas e trios. O clímax da obra acontece com configuração plena dos sete personagens. Há dois solos na peça. O primeiro, no primeiro ato, quando Matilde fica sozinha em cena e coloca um disco de Gardel no gramofone e fica sentada escutando e cantando (I.7). É uma cena de transição, de descanso, posterior à discussão familiar das cenas anteriores. O segundo, muito mais significativo, acontece na penúltima cena da obra e, curiosamente, também é uma cena muda. Não há monólogos nesta obra, tendendo ao realismo: uma personagem que não tem com quem falar, pois não fala. María Luisa, abandonada por Pío, fica sozinha em cena e realiza uma cena muda, apenas com movimentos: abandonada pelo noivo, extrai da mala esquecida por ele a bandeira comunista símbolo de seu futuro amoroso, que se converte em prova da desilusão. Duplas: parece ser a configuração íntima por antonomásia e sem dúvida é mais propícia para cenas amorosas: Pío e María Luisa projetam juntos, sentados no sofá, seus sonhos amorosos; Gardel seduz a linda María Luisa quando ficam sozinhos. A dupla cena é também, a configuração mais favorável à fraternidade e à parceria, como quando Pío e Plácido compartilham ideais revolucionários e desejos ou como quando Matilde e Plácido ou Elvira e Matilde falam com deleite de seu ídolo cantor. Ademais, Cabrujas utiliza a configuração dupla para a primeira confissão de Pío, quando se enfrenta com Elvira. Mais do que dupla com equivalência de participação, parece um solilóquio apresentado para Elvira. Existem várias configurações de trios e de quartetos que são irrelevantes, demasiado curtas, como de transição em direção a -ou desde- outras configurações. Mostrou-se mais proveitoso, assim, mencionar, apenas, um trio e um quarteto relevantes. O trio é o que abre o segundo ato, quando María Luisa, Elvira e Matilde, voltando do concerto, conversam entre si (reelaborando, reconstruindo o tempo latente -e por tanto oculto- do concerto de Gardel e de sua prévia aparição em casa). O quarteto de que falamos está composto por Elvira, Matilde, María Luisa e Pío, na terceira cena do primeiro ato. Este é relevante por uma razão incontestável: nele se apresentam os principais conflitos da intriga e antecedentes importantes para a compreensão do drama: quando María Luisa anuncia sua vontade de morar junto com Pío e quando faz a conflitiva proposta de vender a casa. Finalmente, é a configuração plena a que domina todo o segundo ato até quase o final da peça. Os sete personagens se reúnem na sala dos Ancízar para comemorar o concerto de Gardel e homenageá-lo. Entretanto, não suspeitam - os personagens - que a comemoração se transformará em rompimento definitivo. O clímax da obra ocorre com esta configuração: Pío se enfurece, reconhece seu fracasso e diante de todos confessa sua falsidade. 66 Personagem, ação e hierarquia. É uma tarefa antipática definir a importância dos personagens de qualquer obra. Antipática e de certo modo muito relativa. Há um ditado no teatro que diz que não há papeis pequenos, mas atores pequenos; embora possa ser lida como uma frase de consolo para atores secundários, sem dúvida reflete uma realidade válida para esta e muitas outras ficções: personagens pequenos podem nos interessar mais e ficar mais na memória do que outros mais principais. É o caso rotundo de Clarín, o engraçado de La vida es sueño, ou dos coveiros de Hamlet. Trata-se da mesma lógica que levou Dustin Hoffman a escolher o papel do autista Raymond Babbit no filme Rain Man (1988) ao invés do papel do protagonista Charles Babbit, que lhe haviam oferecido em princípio. É necessário categorizar, para poder definir e qualificar as importâncias relativas dos personagens de El día que me quieras. Desde o ponto de vista da ação, por exemplo, há três personagens substanciais e quatro personagens funcionais. Os personagens substanciais são Pío, María Luisa e Gardel. Tais personagens são substanciais para a ação porque a desencadeiam com o anúncio que fazem de sua mudança; e, com a proposta da venda da casa, produzem a discórdia familiar. Gardel, por outro lado, com sua aparição física, provoca não só um golpe de efeito, mas uma peripécia profunda no desenvolvimento da ação (a mudança dos noivos se pospõe por sua causa). Os personagens funcionais para a ação são, por sua vez, Elvira, Matilde, Plácido e Le Pera. Os dois últimos tem a função de justificar a aparição de Gardel na casa dos Ancízar: Le Pera, parceiro e agente de Gardel, procurava por Plácido, representante do teatro, para definir detalhes técnicos da apresentação, por isso o seguem, Le Pera e Gardel, até sua casa; Matilde cumpre a função de agigantar, desde o espaço patente da sala de sua casa, a figura de Gardel, “narrando-o” exageradamente, idolatrando-o, imaginando-o. Elvira, por último, é a mais importante dos personagens funcionais porque sua função é tripla: é a antagonista de Pío, a anfitrioa de Gardel, a pacificadora durante a reunião e, por fim, é a cabeça familiar, eixo imperceptível ao redor do qual giram os outros personagens. Hierarquicamente falando, podemos dividir os personagens em quatro principais e três secundários. Os principais são: o protagonista, Pío Miranda, com seu grande conflito secreto e sua irresolução amorosa; a deuteragonista, Elvira, que é a única que se opõe a Pío, constante e ferozmente, até que, ao escutar sua confidência, se converte em cúmplice silenciosa; a tritatagonisa, María Luisa, que desencadeia, com seu afã romântico, a controvérsia familiar e o rompimento definitivo de seu relacionamento com Pío; e o tetragonista, Carlos Gardel, cuja 67 presença-ausente domina toda obra, do começo ao fim, começando pelo título. O resto dos personagens, por mais encantadores ou simpáticos que sejam (Plácido é muito engraçado), são secundários: Plácido, Matilde e Le Pera. Réplicas Há um aspecto dos personagens dramáticos que é quantificável e que, embora possa ser enganoso, pode nos revelar ou nos ajudar a interpretar a hierarquia, não de importância, mas, sem dúvida, de participação dos personagens de um drama: as réplicas. Os personagens são feitos de palavras que emitem e recebem. Contemos, por tanto, as réplicas, sendo o símbolo (--->) para as réplicas emitidas e o símbolo (<---) para as recebidas. Réplicas de personagens em El día que me quieras Elvira ----------> 160 <---------- 160 =320 María Luisa ----------> 142 <---------- 159 =301 Matilde ----------> 134 <---------- 115 =249 Pío ----------> 96 <---------- 114 =210 Plácido ----------> 81 <---------- 73 =154 Gardel ----------> 70 <---------- 73 =143 Le Pera ----------> 26 <---------- 15 =41 A partir desta contagem, verificou-se que Pío Miranda, protagonista da obra, é o quarto personagem em ordem de quantidade de réplicas, fato que nos chama a atenção. No 68 caso de Gardel a discordância entre número de réplicas (emitidas e recebidas) e sua importância é ainda maior: Gardel é o segundo personagem com menos réplicas de toda a obra. Isto tem uma justificativa irrefutável: ambas as personagens permanecem ausentes durante grande parte do drama. Gardel não aparece em todo o primeiro ato, exceto no final, e depois volta a permanecer ausente durante as primeiras cenas do segundo ato. Pío, por sua vez, entra e sai de cena várias vezes, mas, quando está em cena, não é, entre todos os personagens, o mais loquaz (se consideramos que Pio emite 96 réplicas e recebe 114, o que o caracteriza como um personagem passivo). No entanto, quando Pío se decide falar, nos dois solilóquios da obra, alcança a maior extensão entre todos os personagens. Pío não é, por tanto, um personagem passivo, mas, sim, um personagem encantado pelas circunstâncias, sem chão; por isso ora cala, ora fala muito: vive uma luta interna. Elvira é o primeiro personagem em réplicas de toda obra, sem ser protagonista; tal fato se explica, conforme apontamos antes, se consideramos que ela é a mais importante das personagens funcionais cumprindo, ao mesmo tempo, as tarefas de confidente de sua irmã, María Luisa, adversária de seu cunhado, Pío, cabeça da família e anfitriã da reunião. Matilde cumpre a função de caracterizar verbalmente o personagem Gardel antes de sua aparição, durante quase todo o primeiro ato e por sua grande quantidade de réplicas, ratificamos a importância de sua função para este drama. A caracterização de Gardel feita por Matilde, uma admiradora cega, o torna um personagem idealizado, sobre-humano, cima do resto da obra. Graus de representação. A mesma categoria dos graus de representação serve para analisar tempo, espaço e personagens. Existem três níveis de representação dramáticos: patente, latente e ausente. O cenário compõe os personagens patentes desta peça: sete personagens visíveis que chegam estar efetivamente em cena, representados por atores de carne e osso (ou, no caso estritamente textual, de tinta e papel). Há, porém, mais personagens que patentes; personagens que, embora nunca apareçam, em cena são nomeados pelos personagens patentes ao longo do drama: estes personagens invisíveis, apenas nomeados, são chamados personagens ausentes, mas que formam parte do drama. Não há nenhum personagem latente (quer dizer, invisível, mas próximo, contiguo) em toda a obra. Pode-se dizer, assim, que há uma enorme quantidade de personagens ausentes em El día que me quieras. Em primeiro lugar, vamos mencionar alguns personagens históricos, religiosos e artísticos, que no mundo real são entidades ou referências, mas não no âmbito textual deste 69 drama. Aqui, são apenas personagens. Os personagens religiosos são, como na vida real, invocados, citados, como fazendo parte da cotidianidade de uma família que pertence a uma sociedade católica: Santa Rosa de Lima, Santa Rita, Moisés, Jesus, Maria, são alguns dos mencionados. Entre os personagens históricos está o presidente da Venezuela da época, Juan Vicente Gómez, chamado simplesmente “Gómez”; o ex-presidente Cipriano Castro, que supostamente perseguia ao ex-marido da Elvira; o missionário Pedro Claver, a quem Matilde equipara, em importância, a Gardel e La Pasionaria, Dolores Ubárruri, comunista espanhola que Elvira compara ironicamente a Maria Luisa. Posteriormente aparecem os escritores: Víctor Hugo, Xavier de Montepin, Alejandro Dumas (filho), Eça de Queiroz, todos parte de um grupo de escritores cujos livros foram empilhados pela mãe de Pío Miranda para servir de cadafalso em seu enforcamento. Em segundo lugar, estão os personagens ausentes relativos às esferas vitais de cada personagem. São mencionados em toda obra , em distintos momentos: a Mãe de Elvira, Plácido e María Luisa; Ezequiel Ancízar ou o General Ancízar, avô de Matilde e primeiro dono da casa da família; “Julie”, que é como apelidam à falecida mãe de Matilde sem mencionar seu nome real em momento algum; “Ernestina, viuda de Miranda”57, mãe suicida de Pío; Raimundo Galarraga ou simplesmente Raimundo, ex-marido de Elvira que a abandona e foge para Trindade e Tobago; Bertorelli, também chamado “honorável superintendente” e “essa alimária”, chefe de Elvira na agência de correios; e, por último, o Sr. Pimentel, chefe de Plácido e diretor do Teatro Principal onde canta Gardel. Em terceiro lugar, estão os personagens ausentes relativos às esferas de Pío Miranda e Carlos Gardel. São personagens ausentes equiparáveis, em ambos os casos se mencionam como projeções de mundos afastados e melhores em relação ao da esfera familiar dos Ancízar. Pío Miranda e María Luisa habitam com personagens ausentes (reais, mas imaginários), como, por exemplo, Stalin (também chamado Iosif Visarionovich), Bujarin, Zinoviev, Kamanev, Trotsky, Rakovski, Lenin (também o chamam Vladimir Ilich), Alliluyeva, Marx, Federico Engels e Romain Rolland, todos pertencentes ao espaço ausente da U.R.S.S. onde planejam casar. Em oposição à cosmologia comunista do casal de noivos, estão os personagens ausentes que se relacionam a Gardel e seu mundo, mencionados constantemente por Elvira, Plácido e Matilde (e pelo próprio Gardel a partir do momento em que aparece); tais personagens cumprem uma função similar a dos anteriores: habitar o espaço ausente de um 57 Tradução: “Ernestina, viúva de Miranda”. 70 mundo glamoroso como consolo à cotidianidade familiar. Alguns destes personagens, históricos ou não, são venezuelanos, atraídos ao Hotel Majestic, onde se hospeda o famoso ídolo popular: “o Governador”, “o Reitor”, o “Monsenhor Fontúrvel”, o Doutor Fortoul, o Doutor Vallenilla; outros, são personagens ausentes que, como Gardel, formam parte do mundo da estrelas, nobres, artistas ou como diria Elvira, simplesmente, “gente de allá” 58: Rosita Moreno, Rosa de Luxemburgo, a Rainha Guilhermina, Mahatma Gandhi, Enrico Caruso e Romain Rolland, entre outros. Uma observação: embora regida pelos personagens patentes, que já mencionamos no reparto, a intriga desta obra está organizada ao redor de um personagem ausente de grande relevância: Romain Rolland. Ele é o único entre todos os personagens ausentes que coincide em ambas as esferas, a do Pío (imaginária) e a de Gardel (real). Gardel conhece em pessoa o escritor francês de quem Pío diz esperar uma resposta. Gardel e Le Pera são os únicos personagens que aparecem em diferentes graus. Estão ausentes durante toda a primeira metade da obra e no começo da segunda metade, mas, em contra partida, são, mencionados diversas vezes. Caracterização De acordo com García Barrientos, “carácter es el conjunto de atributos que constituyen el contenido o la “forma de ser” de un personaje: el concepto caracterización pone en primer plano la cara artística o artificial del personaje como constructo.”59 (2007, p.25) A caraterização seria, então, o conjunto de atributos (físicos, psicológicos, éticos, morais) que o autor de uma obra dá a seus personagens. O caráter dos personagens desta obra é abordado durante toda a análise de El día que me quieras (inclusive nas categorias de espaço e tempo). Não podemos falar de um personagem sem nos referir ao seu caráter. Queremos, para não estender excessivamente este tópico, nos restringir, apenas, a fazer alguns apontamentos. Pelo grau de caraterização com que o autor desenvolve seus personagens ao longo do drama, podemos dividi-los em personagens de caráter complexo (redondo, pluridimensional); que seriam Pío Miranda e Gardel em primeiro lugar e Elvira e María Luisa em segundo lugar; e em personagens de caráter simples ou plano, que seriam os 58 Tradução: “gente de lá” Tradução: “Caráter é o conjunto de atributos que constituem o conteúdo ou a ‘forma de ser’ de um personagem: o conceito caraterização põe em primeiro plano a cara artística do personagem como construto.” 59 71 outros três: Matilde y Plácido, em terceiro lugar, e Le Pera num quarto e solitário lugar de unidimensionalidade. Se os atributos, a forma de ser, a personalidade ou temperamento de um personagem muda no transcurso do drama, dizemos que ele possui um caráter variável. Não é o caso de nenhum personagem deste drama. Pío Miranda é o único que tem um caráter aparentemente variável, mas se trata meramente de um efeito: na realidade, seu caráter não varia, apenas se revela na medida em que o conhecemos melhor. O autor faz uso de todas as técnicas de caraterização que oferece o âmbito dramatúrgico. -Técnicas de caraterização explícitas verbais reflexivas (isto é, o personagem fala de si mesmo). O exemplo mais paradigmático se encontra nas primeiras linhas do solilóquio de Pío, dirigido a Elvira, na cena 12 do primeiro tempo: PÍO.- En treinta y ocho años de mi vida he sido maestro de escuela, cajero de imprenta, secretario de un comprador de esmeraldas en el río Magdalena, espiritista, seminarista, rosacruz, masón, ateo, librepensador y comunista. ¡Y ahora te diré por qué soy comunista!”60 (I.12) -Técnicas de caraterização explícitas verbais transitivas (um personagem fala de outro em sua presença). Cabrujas utiliza muito esta técnica de caraterização. Há um momento, contudo, que queremos relembrar, por ser engraçado, simplificador e diverso, do uso desta técnica . No meio do segundo ato, com a configuração plena de personagens, Plácido, ébrio e feliz pela companhia de Gardel, realiza uma enumeração caraterizadora dos membros de sua família para os visitantes - Gardel e Le pera. “PLÁCIDO.- (...) ¿Cuántos son? ¿Cuántos somos? (Inicia una cuenta) Elvira, la abandonada, María Luisa, la etérea, Matilde, la futura... (Sentimental) Cuida ese virgo, Matilde… como si fuese una tacita de oro… porque es un virgo Ancízar, y hay un héroe de la independencia de por medio”61 (II.8) -Técnicas de caracterização explícitas verbais transitivas ( um personagem fala de outro em sua ausência e antes de sua primeira aparição). Esta é, sem dúvida, a técnica de caraterização mais amplamente utilizada em El día que me quieras. De fato, parte da graça desta obra se deve ao uso excessivo desta técnica para 60 Tradução: “Em trinta e oito anos da minha vida tenho sido professor de escola, caixa de imprensa, secretário de um comprador de esmeraldas no rio Magdalena, espírita, seminarista, rosa-cruz, masson, ateu, livre-pensador e comunista. E agora vou te dizer porquê sou comunista!” 61 Tradução: “PLÁCIDO.- (...) Quantos são? Quantos somos? (Inicia uma conta) Elvira, a abandonada, Maria Luisa, a etérea, Matilde, a futura… (Sentimental) Cuida dessa virgindade, Matilde, porque é uma virgindade Ancízar e tem um herói da independência no meio” 72 caracterizar Gardel, ausente durante a maior parte da obra. Todo o primeiro ato está construído a partir do uso desta técnica caraterizadora para preparar o golpe de efeito que fecha o ato, quando Gardel faz sua imprevisível aparição. Vamos fazer uma pequena compilação de caraterizações que, sobre Gardel, fazem os demais personagens, para demostrar até que ponto são hiperbólicas e alucinadas: ELVIRA.- (...) Y él viene de negro. ¿Se enteraron? ¿No es increíble que salte por encima de este asunto panameño y que en lugar de blanco nos regale un invierno? Chaleco marfil, por supuesto. Como cabe. Como es. Ni una gota de sudor en todo su cuerpo. Ni siquiera cuando acarició las palomas en la plaza de las palomas. Aquella frente limpia y todo mundo comentando: “No suda, no suda” (...) (I.2) MATILDE.- (...) Entre paréntesis, es mentira lo del oro en la muela. Su dentadura perfecta. Una dentadura intachable. PÍO.- ¿Quién le vio la dentadura? MATILDE.- Vox populi. (...) (I.3) MARÍA LUISA.- Pero, ¿la voz es la misma...? MATILDE.- No. Es más ancha. Más larga. Más dulce. (...) (I.3) MATILDE.- ¿Es alto, verdad? PLÁCIDO.- Matilde… yo lo vi y me parpadeó la virilidad… Es alto, como en las películas y tiene esa luz que parece atravesarlo… y en lugar de hablar, accede, se inclina, se extiende (...) (I.8) PLÁCIDO.- Es un hombre de ideas avanzadas, Pío. Un hombre del pueblo. (...) (I.9) PLÁCIDO (Grita).- Gardel es tan alto como el general Gómez… (I.15)62 -Técnicas de caraterização explícitas verbais transitivas ( um personagem fala de outro em sua ausência e depois de sua primeira aparição). Não iremos considerar todas as referências que, sobre Gardel, seguem fazendo os demais personagens em sua ausência durante a primeira parte do segundo ato, quer dizer, depois de sua primeira aparição, pois esta é tão curta que, embora impressionante, é como se não contasse; depois volta a se ausentar por um bom tempo. Vamos extrair um fragmento em que Elvira e Matilde falam sobre María Luisa, aproveitando que esta sai com Pío depois da discussão familiar motivada por ela ao propor a venda da casa: MATILDE.- Tía, ¿por qué no hablas con ella [María Luisa]? 62 Tradução: ELVIRA.- (...) E ele vem de preto. Souberam disso? Não é incrível que pule por cima desse assunto panamenho e que ao invés de branco nos presenteie um inverno? Colete marfim, claro. Como cabe. Como é. Nem uma gota de suor em todo seu corpo. Nem sequer quando acariciou os pombos na praça dos pombos. Aquela testa limpa e todo mundo comentando: “Não sua, não sua...” (I.2) MATILDE.- (...) Entre parênteses, é mentira que tenha ouro no molar. Sua dentadura é perfeita. Uma dentadura irrepreensível. PÍO.- Quem viu a dentadura dele? MATILDE.- Vox populi. (I.3) MARÍA LUISA.- Mas, a voz é a mesma…? MATILDE.- Não. É mais longa. Mais comprida. Mais doce… (I.3) MATILDE.- É alto, não é? PLÁCIDO.- Matilde… eu o vi e a minha virilidade pestanejou… É alto, como nos filmes, e tem essa luz que parece atravessá-lo… e em lugar de falar, concorda, se inclina, se estende. (...) (I.8) PLÁCIDO.- É um homem de ideias avançadas, Pío. Um homem do povo. (...) (I.9) PLÁCIDO (Grita).- Gardel e tão alto quanto o general Gómez. 73 ELVIRA.- ¿Y qué me va a contestar? ¿No ves que se cree La Pasionaria, con la mirada extraviada y los ojos saltones, como si estuviera contemplando el futuro de la humanidad? ¡Vender la casa! ¡Ucrania! (...) Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas, y la boca se le llena porque no tiene aire para pronunciar ese nombre. ¡Allí está su caso, porque ahora es comunista… como si supiera de pobres, como si hubiera trabajado alguna vez! ¡Hipócrita!63 (I.6) 3.2 Tempo Estrutura A estrutura temporal de El día que me quieras é bastante clássica e condensada: duas cenas temporais e um nexo. Esquematicamente, a estrutura da obra é assim: Cena temporal 1 + Nexo 1 + Cena temporal 2 As cenas temporais são as encenadas sem interrupções nem alterações no transcurso linear do tempo da fábula. O nexo é uma elipse desse tempo. São categorias temporais que equivalem no tempo da representação pragmática ao Primeiro ato + Intermédio + Segundo ato. Desde o ponto de vista dos graus de representação, a estrutura seria Patente + Latente + Patente. Considerando os dados textuais da peça, contidos nos diálogos dos personagens (que comentam o tempo e revelam, concretamente, datas e horas) podemos pensar num esquema mais preciso, como: Cena temporal 1: Data, 11 de julho de 1935. Horário: 12:00 pm-2:30pm. Nexo 1: Mesma data. Horário: 2:30 pm-12:00am Cena temporal 2: Data, 12 de julho de 1935. Horário: 12:00 am-12:30am Ordem 63 Tradução: “MATILDE.- Tia, por que não você não fala com ela [María Luisa]? ELVIRA.- E o que vai responder? Você não vê que ela se acha La Pasionaria, com a mirada extraviada e os olhos saltando, como se estivesse contemplando o futuro da humanidade? Vender a casa! Ucrânia! (...) União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, e a boca dela se enche porque não tem ar para pronunciar esse nome. Eis o caso dela, porque agora é comunista… como se soubesse de pobres, como se houvesse trabalhado alguma vez! Hipócrita!” 74 Resulta evidente que El día que me quieras respeita a organização cronológica das cenas: a primeira acontece ao meio-dia de 11 de julho e a segunda à meia-noite, deste mesmo dia: antes e depois do concerto. O momento mais parecido com uma “regressão” temporal encenada se caracteriza quando María Luisa, Elvira e Matilde brincam de representar o momento posterior ao aparecimento de Gardel (que não é encenado), mas, na verdade, mais do que uma regressão genuinamente dramática, trata-se da mímica de uma regressão temporal. Frequência Explica García Barrientos que a frequência se refere à relação entre as repetições de uma ação na fábula (que inclui tempo ausente) ou na encenação da obra (tempo patente). Esta combinação, pouco usual no teatro, mas presente nesta peça de Cabrujas, possibilita a iteração dramática: “escenificar una vez lo que se repite varias veces en la fábula” 64 (BARRIENTOS, 2007, p.19). Há dois casos de iterações dramáticas na obra: o primeiro, surge da didascália que Cabrujas acrescenta como indicação de Matilde quando ela interrompe o conto sobre o abandono de Elvira: “MATILDE (interrompe, abreviando uma história mil vezes repetida).E fugiu para Trindade, Raimundo...” (I.6) Elvira é encenada uma vez contando uma história que sempre conta. A segunda iteração dramática é muito mais extensa e significativa. É uma sequência de diálogos curtos e intercalados que revela conhecimento mútuo, prática, costume. Uma sequência de perguntas e respostas (a forma relembra o modelo da catequese) sobre as bases do comunismo, de seus dogmas ideológicos. Plácido força a situação, acaba virando jogo, a brincadeira de repassar o interrogatório ideológico ensinado por Pío: PLÁCIDO.- (...) Me lo aprendí de memoria… palabra que me lo aprendí de memoria… Anda, Pío…, pregunta…, para que todos lo oigan… PIO.- No es el momento, Plácido… PLÁCIDO (Insiste).- Pregunta, Pío… María Luisa también lo sabe, ¿No es verdad, María Luisa? MARÍA LUISA.- ¿Qué? PLÁCIDO (A Gardel).- Morocho… ven acá… escucha… Pío pregunta… y yo respondo. Y María Luisa también… GARDEL.- ¿Un juego? PLÁCIDO.- Un juego… a ver… ¿Qué notamos al examinar la sociedad actual?... Pío, pregunta...Tú primero y nosotros después. ¿Qué notamos al examinar...? PÍO (Abrumado).- ¿...la sociedad actual? PLÁCIDO.- Respuesta… MARÍA LUISA Y PLÁCIDO.- La existencia de dos tipos de hombres...el proletariado y el burgués… GARDEL (Aplaude).- ¡Grande! ¡Enorme! 64 Tradução: “encenar uma vez o que se repete várias vezes na fábula”. 75 LE PERA.- ¡Así se habla! PÍO.- ¿Quién es el proletariado? MARIA LUISA Y PLÁCIDO.- El pobre. El que no posee nada. GARDEL (Entusiasmado).- ¡Bien dicho!65 (...) (II.8) A “brincadeira” continua por bastante tempo. O jogo de perguntas e respostas do catecismo marxista entre Pío, María Luisa e Plácido está tão sincronizado, cronometrado, tão exato (María Luisa e Plácido respondem o mesmo e ao mesmo tempo), que demostra muita prática (há grande quantidade de repetições na fábula, embora encenadas uma só vez). Como vemos, a brincadeira degrada Pío até sua saturação, da qual depende o desencadeamento do clímax da peça, do solilóquio final de Pío: a revelação do fracasso. Duração A duração pode ser entendida como o desenvolvimento total do tempo da ação (BARRIENTOS, 2007, p.19) e se compõe a partir da soma dos tempos patentes e latentes. Quer dizer, pouco menos de treze horas no total, que vão do começo do drama, ao “meio-dia”, até o final deste, pouco depois de Plácido informar que era “meia-noite e meia”. A pergunta chave é: se respeita a unidade aristotélica temporal? A resposta é sim: a duração total do tempo interno da fábula encenada é menor que um dia. As durações relativas internas das cenas temporais da obra tendem à isocronia, isto é, a apresentar igualdade entre o tempo representante e o representado. Distância El día que me quieras é um drama histórico, pois a “distância temporal (entre a localização no tempo da fábula e da encenação ou da escritura)” é retrospectiva, do presente 65 Tradução: “PLÁCIDO.- (...) Eu o aprendi de cor… palavra que o aprendi de cor… vai, Pío…, pergunta..., para todo mundo ouvir.. PÍO.- Não é o momento, Plácido… PLÁCIDO (Insiste).- Pergunta, Pío… María Luisa também o sabe. Não é verdade, María Luisa? MARÍA LUISA.- O que? PLÁCIDO (A Gardel).- Moreno… vem cá… escuta… Pío pergunta… e eu respondo. E María Luisa também… GARDEL.- Uma brincadeira? PLÁCIDO.- Uma brincadeira… … vamos lá… Em que reparamos ao examinar a sociedade atual?... Pío, pergunta… você primeiro e nós depois. Em que reparamos ao examinar…? PÍO (Abrumado).-...a sociedade atual? PLÁCIDO.- Resposta… MARÍA LUISA E PLÁCIDO.- Na existência de dois tipos de homens… o proletariado e burguês… GARDEL (Aplaude).- Grande! Enorme! LE PERA.- Assim é que se fala! PÍO.- Quem é o proletariado? MARÍA LUISA E PLÁCIDO.- O pobre. O que não possui nada. GARDEL (Entusiasmado).- Bem dito!” (II.8) 76 para o passado. Estreia em 1979, mas o tempo diegético do drama transcorre em 1935: 44 anos de distância os separam. Graus de (re)presentação Existem graus, sempre os mesmos, nos quais se representam, diferentemente, tanto o tempo, como o espaço e os personagens, que são: patente, latente e ausente. O tempo também é representado nestes três níveis, sendo o patente o tempo encenado, isto é, que transcorre sobre a cena; o latente seria um tempo sugerido, próximo ao encenado ( como os vazios temporais dentro de uma representação) e o ausente seria o tempo aludido, o tempo anterior ou posterior ao representado, o passado e o futuro da história e de cada personagem. Esta tripla possibilidade, como diria Barrientos “genuinamente teatral” (2007, p.22), é interessante, sobretudo, pelas relações que o drama estabelece entre esses diferentes graus de representação temporal. Tempo patente O tempo patente do drama começa exatamente, como indicam as didascálias “a las doce del día” (I.1) (mais adiante descobriremos que a data desse dia é 11 de julho de 1935). O drama corta o tempo da fábula para começar desenvolver a intriga sobre cena in medias res, com os noivos no sofá, sentados lado a lado , quando de imediato “María Luisa sonríe vagamente percatándose de Pío, a quien olvidó hace unos minutos”66 (I.1). O tempo patente de todo o primeiro ato da obra - que o autor, heterodoxo, denomina “primeiro tempo”- tem uma duração diegética (interna à fábula) de duas horas e meia, segundo informam os próprios personagens. Durante o transcurso desse tempo patente, se apresentam os conflitos principais da obra, alguns apresentam relação direta com a categoria temporal do drama e, por isso, serão comentados na seção “tempo e significado”. Na oitava cena do primeiro tempo, Matilde e Plácido conversam sobre o horário do concerto de Gardel (21:00 horas) e a ansiedade de Matilde nos revela um dado do tempo patente: “MATILDE (mira el reloj de la sala): Son las dos.”67 (I.8) Não teremos nenhuma outra indicação explícita do tempo patente encenado até chegar o segundo ato da obra. Mais uma vez, Matilde será a informante. Fala com suas tias sobre Gardel, diz “MATILDE: Fue claro y diáfano, cuando 66 67 Tradução: “María Luisa sorri vagamente observando Pío, de quem havia se esquecido fazia uns minutos.” Tradução: “MATILDE (Repara no relógio da sala).- São duas horas”. 77 entró por esa puerta a las dos y treinta de la tarde, antes de mi desmayo.” 68 (II.1) A aparição em cena de Gardel acontece exatamente no final do primeiro ato, tão imediato que acaba antes que Matilde desmaie por Gardel. O segundo ato ou “segundo tempo” da obra, começa com a abertura da primeira cena, na casa dos Ancizar “a las doce de la noche (...) después de asistir a la apoteosis de Gardel”69 (II.1), isto é, doze horas exatas após o começo do tempo encenado. Meio-dia e meia-noite. Entretanto, apesar da extensão similar e do fato de o tempo cênico (ao que assiste um público, em que é representada uma obra) ser equivalente em ambos os atos, o tempo diegético se configura de modo diferente: neste segundo ato, é de apenas meia hora. Cinco vezes menor que o tempo diegético do primeiro ato, no qual transcorrem duas horas e meia. No final do segundo ato, depois que Pío termina com María Luisa e foge, após a saída Gardel e Le Pera, quando restam apenas os membros da família Ancízar se despedindo uns dos outros enquanto se retiram cada um para seu quarto, bem antes do final da peça, temos a última referência temporal patente: “ELVIRA.- ¿Qué hora es, Plácido? / PLÁCIDO.- Doce y media. Fue una visita corta…”70 (II.12) Tempo latente (Sugerido) O tempo latente é aquele que, compreendido entre o começo e o final do tempo patente da encenação, não é encenado: qualquer buraco, lapso, parênteses, ruptura, interrupção, encadeamento, quebra ou pulo do transcurso continuo do tempo. O tempo latente de El día que me quieras é seu entreato. Tudo aquilo que acontece entre as duas e meia da tarde (“hora”, no tempo da fábula, que marca o final do primeiro ato) e a meia-noite (“hora” diegética do início do segundo ato), é o tempo latente da obra: não encenado, mas sugerido. Durante o transcurso desse tempo diegético, que compreende um lapso de nove horas e meia, acontecem muitas coisas. A elipse do entreato deixa fora da representação o concerto de Gardel, que marca um grande evento no mundo da obra: tanto na trama da história quanto na estruturação formal do texto, na divisão efetiva da representação e na estruturação temporal do drama. Os dois atos da obra, chamados “primer tiempo” e “segundo tiempo”, são o antes e o depois do concerto. Antes, no primeiro ato, todas as referências que os personagens fazem do tempo latente se referem exclusivamente ao futuro concerto de Gardel. Há expectativa, ilusão, 68 Tradução: “MATILDE.- Foi claro e diáfano quando entrou por essa porta às duas e trinta da tarde, antes do meu desmaio.” 69 Tradução: “na meia-noite (...) depois de assistir à apoteose de Gardel” 70 Tradução: “ELVIRA.- Que horas são, Plácido? / PLÁCIDO.- Meia-noite e meia. Foi uma visita curta.” 78 ânsias. Há constantes menções a esse tempo, do recital, a que chamam eufemisticamente (mas não por ocultamento, senão por obviedade) “esta noche71”. Diz Elvira, por exemplo, logo na segunda cena, em referência à ocasião e ao teatro [o Principal] em que está marcado o recital de Gardel, “EVIRA: No hay una flor en toda la ciudad. Te enfermas y buscas una flor y preguntas dónde hay una flor antes de caerte muerta y te dicen que no hay. Esta noche el Principal huele a magnolia.”72 (I.2) Tal fato nos dá uma pista da importância do recital (muito mais do que familiar, social: envolve a cidade toda) e, por tanto, da importância do tempo latente do entreato. Os personagens criam expectativas; como, por exemplo, a expectativa contida no relato de Matilde sobre Gardel na estação de trem, depois que as pessoas lhe pediram para cantar uma música, “MATILDE: Y él sonríe de muerte perezosa y se toca la garganta y dice... esta noche, esta noche...”73 (I.3). Podemos ver como as referências verbais ao tempo latente e oculto do concerto, que seguem aparecendo, começam enchê-lo de sentido, inclusive de sentido prático. Merece até preparação e logística por parte do público, como Matilde e Elvira, que, pouco depois de meio-dia, começam organizar a roupa que vão usar (ELVIRA.- ¿Qué traje te vas a poner esta noche?74 (I.6)). O tempo patente dos personagens da família Ancízar, durante o transcurso de todo o primeiro ato, está marcado pela expectativa, que se constrói como uma espera, um ânsia para que chegue “esa noche”, para que chegue a hora do concerto, do tempo latente, absolutamente cheio de significado, além de tematizado. “ELVIRA: María Luisa va a ir y será una gran noche. Pasarán cincuenta años y será una gran noche. Yo estaré muerta, y seguirá siendo una gran noche...”75 (I.14). É preciso lembrar o efeito de surpresa que cria a aparição de Gardel na última cena do ato e no imediato final deste, logo depois uma linha muito curta “Buenas tardes. Me llamo Gardel.” 76 (I.20). O público chega ao entreato, assim como o leitor, invadido pela intriga. O tempo latente está cheio, não só de sentido explícito, mas também de mistério, já que é um tempo latente futuro. Depois, no segundo ato ou “segundo tempo”, as Ancízar entram em casa, após o recital. Todo o transcorrido entre o momento anterior a este [entrada das Ancízar], passando pelo concerto, as horas de espera, até o momento posterior ao final do primeiro ato [entrada de Gardel], é tempo latente. Vamos ter ao longo deste segundo ato -que é o depois do tempo 71 Tradução: “noite” Tradução: “ELVIRA.- Não há uma flor em toda cidade. Você fica doente e procura uma flor, pergunta onde pode encontrar, antes de cair morta, e te dizem que não tem. Essa noite o Principal tem cheiro de magnólia.” 73 Tradução: “MATILDE: E ele sorri de morte preguiçosa, toca sua garganta e diz… essa noite, essa noite...” 74 Tradução: “ELVIRA.- Que vestido você vai usar nesta noite?” 75 Tradução: “ELVIRA: María Luisa vai ir e será uma grande noite. Passarão cinquenta anos e será uma grande noite. Eu estarei morta e seguirá sendo uma grande noite.” 76 Tradução: “GARDEL (escolhe seu melhor sorriso).- Boas tardes. Me chamo Gardel”. 72 79 latente da obra- referências à dois momentos específicos desse tempo não representado: um, o previsto já desde o primeiro ato, o concerto de Gardel, e o outro, o inesperado, a aparição de Gardel, o diálogo, sua proposta de jantar com as Ancízar. Vamos comentá-los cronologicamente. O momento posterior à aparição de Gardel não é revelado na primeira cena. As Ancízar entram em casa e conversam entre si relembrando do tempo sugerido, não encenado, a partir da entrada de Gardel. No entanto, o interessante é que ao tematizar aquele tempo latente as Ancízar o comentam e o representando para diversão própria, improvisada, espontaneamente, distribuindo os papeis na hora: MATILDE.- Fue claro y diáfano cuando entró por esa puerta a las dos y media de la tarde, antes de mi desmayo. (Cita a Gardel) Señora Elvira... ELVIRA (Corrige).- Señora Elvira, distinguida dama… MATILDE (En el juego).- ¿Podría tener...? MARÍA LUISA (Completando las históricas palabras de Gardel).- ¿...el honor de venir acá esta noche después del Principal, de compartir esta noche con ustedes? MATILDE (Como Evira).- Sería un honor, señor ELVIRA (Como Gardel).- Porque esta casa se parece a la de mi madre en Buenos Aires.77 (II.3) Essa representação do passado, encenada no tempo patente, responde ao desejo dos personagens de se apoderar, de reviver, de sentir de novo o tempo latente pretérito. No fragmento transcrito acima, está contida a conexão entre os dois tempos patentes da obra, a conexão que verbaliza um tempo sugerido, que de outra forma permaneceria invisível e misterioso. O mesmo acontece com outro momento do tempo latente que conhecemos desde o tempo patente do segundo ato: o famoso concerto de Gardel. No desenvolvimento dramático da obra, sabemos primeiro sobre o recital e, depois, sobre a irrupção de Gardel na casa. Nós os comentamos na ordem cronológica, porém o Segundo ato se inicia diretamente com um comentário -o primeiro de tantos- sobre o concerto de Gardel (vamos deixar aqui apenas uma amostra de três exclamativas e maravilhadas referências ao tempo latente do concerto) MATILDE (Grita desde la entrada y antes de encenderse la luz): ¡Es que no te lo pueden contar! ¡Reúnes a los escribas y fariseos de Jerusalén, y al doctor Fortoul y al doctor Vallenilla y les pides el cuento de esta noche.. y no te lo pueden contar! 77 Tradução: “MATILDE.- Foi claro e diáfano quando entrou por essa porta às duas e meia da tarde, antes do meu desmaio. (Cita o Gardel) Senhora Elvira… ELVIRA (Corrige).- Senhora Elvira, distinguida dama… MATILDE (No jogo).- Poderia ter...? MARÍA LUISA (Completando as históricos palavras de Gardel).- a honra de vir aqui esta noite depois do Principal, compartilhar esta noite com vocês? MATILDE (Como Elvira).- Seria uma honra, senhor. ELVIRA (Como Gardel).- Porque esta casa se parece com a da minha mãe em Buenos Aires.” 80 (...) ELVIRA (Risueña): ¡Aquí no se ha visto nada semejante! (...) PLACIDO: ¡Traigo una melancolía prácticamente filosófica memoria del teatro Principal!78 después de esta Tempo ausente (aludido) O antes e o depois do dia encenado, o passado e o futuro de cada personagem, tudo aquilo que acontece em outro tempo, invisível por definição, mas aludido pelos personagens ou pelo dramaturgo nas didascálias, todos esses momentos - se pertencem ao passado, ou projeções, se pertencem ao futuro- compõem o tempo ausente de El día que me quieras. Ao observamos as referências temporais contidas nos diálogos de todos os personagens da obra, um fato nos chama atenção: as mulheres da obra, todas da família Ancízar, se definem temporalmente, por sua idade. A obra está localizada historicamente em 1935, bem antes da liberação sexual, do surgimento do feminismo e da revolução social, política e laboral que experimenta a mulher a partir de metade do século passado. Os costumes sociais e as normas do decoro eram bastante rígidas, ainda mais em um país bucólico e atrasado como a Venezuela daquela época. Uma mulher basicamente podia casar ou não segundo a idade. Dizíamos que o tempo as define, especialmente o tempo ausente. Matilde tem vinte e sete anos, e, por tanto, está em tempo de casar. Por isso, Plácido a chama “a futura” antes de lembrar oportunamente que deve cuidar de sua virgindade (sem a qual a possibilidade de matrimônio se perde). Desde seu tempo patente, vinte e sete anos, ainda estão abertas para ela as portas do futuro possível. Elvira Ancízar não tem nada disso. Só passado. Com 56 anos, já foi casada e abandonada, o que a condenava a solidão romântica até sua morte. Elvira vive condicionada por aquele abandono e durante a metade de sua vida, dos vinte e sete aos cinquenta e seis anos, tem vivido mais como solteira do que como abandonada. Tal frustração do passado explica sua amargura presente e futura. María Luisa, por sua vez, tem entre 38 e 36 anos e não pode esperar mais tempo para casar. Durante um lapso de tempo (ausente) de dez anos, assume a condição de noiva esperando o casamento. Eis o tempo ausente que a define como a eterna noiva. O problema de 78 Tradução: MATILDE (Grita desde a entrada e antes de ascender a luz): É que não te podem contar! Reúne os escribas e fariseus de Jerusalém, e o doutor Fortoul e o doutor Vallenilla e pede para eles o conto desta noite… e não podem contá-lo! (...) ELVIRA (Risonha): Aqui não temos visto nada semelhante! (...) PLACIDO: Trago uma melancolia praticamente filosófica depois desta memória no teatro Principal!” 81 María Luisa é totalmente temporal. Há dez anos, com vinte e tantos anos, a jovem María Luisa começou um inocente namoro com Pío Miranda e, anos depois, para o tempo em que a obra transcorre, ainda não se casaram, tampouco mantiveram relações sexuais. Temporalmente, María Luisa está em uma situação muito comprometedora; está no limite. No limite da idade saudável para conceber um filho, no limite de tempo de namoro que ela consegue tolerar, no limite de tempo de espera por uma relação definida com Pío, no limite de tempo para casar (passado esse limite, provavelmente ficaria solteira, como Elvira). Sintomático disso, da incomodidade com relação ao definitivo de sua situação temporal, é a confusão de idades diferentes explicitamente atribuídas a María Luisa nos diálogos (dois deles na mesma cena). Sobre tal fato, há três referências: 1ª) “MARIA LUISA: (...) ¡es una decisión que me pertenece como le pertenece a uno la vida cuando tiene treinta y siete años!”79 (I.3); 2ª) “ELVIRA: En treinta y ocho años que llevo conociendo a mi hermana, desde el agua caliente en la hora del parto hasta el sol de este día, jamás la escuché hablar de Ucrania”80 (I.3); e 3ª ) “MARÍA LUISA: Yo tengo treinta y seis, como Santa Ana.”81 (II.2). Levando em conta as circunstâncias mencionadas previamente e considerando que de três idades citadas, duas (37 y 36) são mencionadas pela própria María Luisa e de forma decrescente, é lícito considerar que ela altera sua idade para tentar se afastar do limite temporal ao qual está presa. Sente que o tempo acaba junto com Pío, se esgota. Pío, porém, não consegue tomar uma decisão, casar ou ir morar junto com ela, por isso inventa o plano viver na URSS, uma estratégia para dilatar o tempo da resolução. Isto fica em evidência na primeira cena da obra, quando uma conversa aparentemente inocente, anedótica, sobre o dia da morte de Lenin se converte em uma luta de poderes sobre o tempo. Pío constrói uma narração pretérita sobre tempo ausente pretérito do dia da morte de Lenin, nove anos antes do tempo patente do drama, e podemos observar como María Luisa desloca, com sua pergunta, a temporalidade da conversa para o futuro, um futuro que habita imaginariamente junto a Pío. PÍO.- (...) Y Iosif bajó la cabeza. Iosif Visarionovich, mejor conocido como Stalin, acero, así se templó el acero, bajó la cabeza por última vez hasta el sol de hoy y dijo “Camaradas, cómo se llena un vacío”. Y todos miran y entra Alliluyeva, la mujer de Stalin, con el samovar de la tarde. 79 Tradução: “MARÍA LUISA.- É uma decisão que me pertence como te pertence a vida quando você tem trinta e sete anos” 80 Tradução: “ELVIRA.- Em trinta e oito anos que levo conhecendo minha irmã, desde a água quente na hora do parto até o sol deste dia, jamais a escutei falar de Ucrânia” 81 Tradução: “Eu tenho trinta e seis, como Santa Ana”. 82 MARIA LUISA: No hay nada en el mundo como el té de samovar. ¿Tendremos uno alguna vez, Pío?82 (I.1) María Luisa muda a temporalidade que Pío vinha usando. De passado a futuro (juntos, casados, na U.R.S.S. com um chá de samovar) e, logo depois, para o presente, para a sua realidade patente. Ela está decidida, nesse dia irá acontecer alguma coisa porque ela quer, como resulta evidente se acompanhamos o desenvolvimento da sequência anterior: PÍO.- Creo que sí. MARÍA LUISA.- ¿Hará mucho frío, verdad? PÍO.- Al principio. Pero después uno se acostumbra a todo. MARÍA LUISA.- Hoy hablaré con Elvira. PÍO.- ¿Y por qué no esperamos la respuesta de Romain Rolland? 83 A resposta de Pío é novamente dilatória em relação ao presente que deseja deslocar, não para o passado, mas para um futuro indefinido (até mesmo a resposta de Romain Rolland). É uma luta de poder pelo domínio temporal da relação. Tempo e significado O tempo representado, visível, encenado do drama está carregado de significado, como acontece nas obras que mantém a unidade dramática temporal: se condensa num dia, ou no caso desta peça, em meio dia, anos de conflitos e de ilusões; tudo encontra seu momento sobre cena. O dia encenado, 11 de julho de 1935, é o mais significativo na vida dos personagens, pelo menos dos personagens do núcleo familiar. Por um lado, é o dia do concerto de Gardel ( que dá sentido ao tempo de Matilde, Plácido e de Elvira), por outro lado, é o dia em que Pío e María Luisa decidem ir morar juntos. Por duas razões diferentes, paralelas, autônomas, todos os personagens guardam expectativas a respeito dessa noite. Gardel modifica o tempo, o valoriza. De forma semelhante como faz com o espaço, o carrega de sentido e importância. Por exemplo, para “ELVIRA (Alegre): Fue un 11 de julio de 1935, cuando llegó Carlos Gardel a esta casa y Elvira Ancízar dividió su vida en dos etapas o, mejor dicho, dos movimientos, tan simples como antes y después…”84; (II.6) ou, para 82 Tradução: “PÍO.- E Iosif baixou a cabeça. Iosif Visarianovich, melhor conhecido como Stalin, aço, assim foi endurecido o aço, baixou a cabeça por última vez até o sol de hoje e disse “Camaradas, como se preenche um vazio?”. E todos olham, e entra Allilluyeva, a mulher de Stalin, com o samovar da tarde. MARÍA LUISA: Não tem nada no mundo como o chá de samovar. Teremos um alguma vez, Pío?” 83 Tradução: “PÍO.- Acredito que sim. MARÍA LUISA.- Fará muito, muito frio, verdade? PÍO.- No começo. Mas depois se acostuma com tudo. MARÍA LUISA.- Hoje vou falar com a Elvira. PÍO.- E por que não esperamos a resposta de Romain Rolland?” 84 Tradução: “ELVIRA (Alegre).- Foi um 11 de julho de 1935, quando chegou Carlos Gardel nesta casa e Elvira Ancízar dividiu sua vida em duas etapas ou, melhor dito, dois movimentos, tão simples quanto antes e depois...” 83 Plácido, que declara, depois do concerto “PLÁCIDO: (...) ¡esta es la noche más grande vivida por este humilde servidor!85 (...)” (II.4). Inclusive quando Gardel está no cenário junto a outros personagens, altera o tempo patente, o “semantiza”, o preenche de importância e profundidade. Muito eloquente é o comentário que faz Elvira no momento em que se tomam pelo braço e se separam sutilmente do resto do grupo: “ELVIRA.- ¡Dios mío de mi vida...! ¡Esta noche! (Enlaza su brazo con el de Gardel) Colgada aquí... del brazo de la historia... Dios mío... mi memoria... ¿Cómo hago para recordarlo todo dentro de mí?”86 (II.6). A relevância de Gardel, seu peso, é tal no tempo patente que Matilde, fanática perdida, não compreende que durante o transcurso desse dia (o dia que chega Gardel, o dia de seu concerto) possam haver conflitos familiares e problemas cotidianos. Por isso, na terceira cena do primeiro tempo, em meio a uma calorosa discussão sobre vender ou não vender a casa, Matilde interrompe a briga protestando... MATILDE (que no puede más): ¿Y por qué no hablamos de esto mañana? ELVIRA.- Matilde, vete a tu cuarto. MATILDE: ¡Hoy llegó Gardel! ¡Esta noche canta en el Principal! Y ustedes discutiendo esa eternidad que discuten como si no pasara nada. (...) ¡Llegó! ¡Háganme el inmenso favor de entenderlo! ¡Llegó! (...) PIO: Gardel no me divide la historia.87 (I.3) Como podemos observar, Pío se opõe. Se Gardel não representa uma trascendentalidade para Pío nem -aparentemente- para María Luisa é porque o tempo patente dessa noite é para eles especialmente significativo, como casal, por outro motivo: a partir desta noite, passariam a viver juntos, imediatamente após o concerto. Matilde se dirige aos dois dizendo: “MATILDE: Tía María Luisa, y no puedes ir mañana? (...) Pío..., no es lo mismo? Si total, han esperado diez años... No es lo mismo? Y quién sabe si mañana llega la carta del señor francés y se van por la puerta grande con arroz y palomita blanca...!” 88. A resposta que María Luisa dá a sua sobrinha é muito bonita e profunda: “MARÍA LUISA (A Gardel): Hay un día, ¿verdad? Y tiene que ser ese día..., no puede ser mañana... ¿Verdad que 85 Tradução: “PLÁCIDO: (...) esta é a maior noite vivida por este humilde servidor!”. Tradução: “ELVIRA.- Meu Deus da minha vida! Esta noite! (Enlaça seu braço com o do Gardel) Pendurada aqui… no braço da historia… Meu Deus… minha memória… Como faço para lembrar tudo dentro de mim?” 87 Tradução: “MATILDE (que não pode mais): E por que não falamos disso amanhã?” ELVIRA.- Matilde, vai para seu quarto. MATILDE: Hoje chegou Gardel! Esta noite canta no Principal! E vocês discutindo essa eternidade que discutem como se não acontecesse nada. (...) Chegou! Façam o imenso favor de entender! Chegou! (...) PIO: Gardel não divide a minha história. (I.3) 88 Tradução: “MATILDE: Tia María Luisa, e você não pode ir amanhã? (...) Pío..., não é o mesmo? Esperaram dez anos... Não dá no mesmo? E quem sabe amanhã chega a carta do senhor francês e vocês vão pela porta grande com arroz e pombinho branco...!” 86 84 no puede ser mañana?”89 (II.7). Esse parlamento estabelece um jogo ficcional: María Luisa é apenas um personagem que vive quando é encenada, durante o tempo patente e representado e, “embora não saiba”, ela deve ir morar com o Pío neste dia, porque é o único dia possível, o único que existe. Tudo se condensa nesse momento, o ensenado: MARÍA LUISA: Tengo diez años con el olor de este día. Sé de este jueves como de nada en la vida. Y es así. Es hoy. Viviremos en una habitación, mientras tanto, y después... ELVIRA: ¿Y ahora? ¿Qué vas a hacer ahora? Tengo los mismos diez años oyendo hablar a Pío de después... Yo quiero saber de ahora... MARIA LUISA: No lo sé... (...) Esta noche... Pienso y nada más... esta noche... Diez años, van a terminar esta noche.90 (II.2) María Luisa teve razão mas também errou. Teve razão em pensar que nessa noite terminariam dez anos de noivado, mas errou no como; ela acreditava que terminaria em consumação, em mudança, em sexo, mas não, terminou em abandono. Secretamente, também era uma noite altamente significativa para Pío, mas negativamente significativa: essa é a noite do fracasso. Fracasso de um amor, de uma palavra, de princípios e de uma postura, o fracasso de um homem. 3.3 Espaço A continuação, realizaremos uma análise das categorias espaciais de El día que me quieras, a partir de alguns parâmetros expostos na Introdução à análise do teatro, de Ryngaert (2007), e do método de análise dramático de García Barrientos (Análisis de la dramaturgia, 2007). As marcas espaciais de uma determinada obra falam também da sua estética. As variações na sensibilidade, os gostos e estilos diversos, que se manifestam no mundo dramatúrgico e teatral através de períodos, épocas, escolas e gêneros, têm projetado variadas concepções espaciais no teatro. Os gregos mantiveram a unidade de lugar em suas tragédias e comédias, ao contrário dos espanhóis do teatro barroco do Século de Ouro e dos ingleses do teatro Isabetano (em algumas obras de Shakespeare pode haver tanto espaços cénicos, quanto cenas). Desde Brecht até as dramaturgias contemporâneas, como consequência parcial do progresso tecnológico e da posterior influência da televisão e do cinema, percebe-se uma mudança no estilo das ficções que tendem a ficar mais episódicas e 89 Tradução: “MARÍA LUISA (A Gardel): Há um dia, verdade? E tem que ser esse dia..., não pode ser amanhã... Verdade, que não pode ser amanhã?” 90 Tradução: MARÍA LUISA: Tenho dez anos com o cheiro deste dia. Sei deste quinta-feira como de nada na vida. Y é assim. É hoje. Viviremos numa habitação, por enquanto, e depois... ELVIRA: E agora? Vai fazer o que agora? Tenho os mesmos dez anos ouvindo o Pío falar do depois... Eu quero saber de agora... MARÍA LUISA: Não sei... (...) Esta noite... Penso e só... esta noite... Dez anos, vão terminar esta noite. (II.2) 85 elípticas (com a correspondente multiplicação e diversificação, sucessiva ou simultânea, de espaços cénicos). As marcas espaciais, em palavras de Ryngaert, “organizam o microcosmos da ficção e a estruturam segundo princípios decisivos” (1996, p.75). O microcosmo espacial da ficção de El día que me quieras é complexo e diverso, mas sua expressão material mostra um estilo realista e monolítico. O argumento da obra a intriga de conflitos, o mundo que não é mostrado se organiza condensado, no ambiente familiar da casa dos Ancízar. Consideramos que as marcas espaciais na dramaturgia de Cabrujas revelam uma preocupação bastante pragmática e cênica do texto, que desborda os limites do aspecto puramente textual do drama para entrar no âmbito da representação. Há autores teatrais que tendem a considerar a representação efetiva desde a escritura de sua peça. Cabrujas, porém, em qualidade de diretor e de ator de longa data, imprime um cuidado singular às suas descrições de espaço, das que resulta evidente certa concepção espacial. Tal atitude, frente às categorias espaciais do drama, concorda com a condição de homem de teatro integral de Cabrujas. Há, porém, um tipo singular de marcas espaciais no texto: as metafóricas (“Un reloj Junghans suena y es la única exactitud del lugar”) ou poéticas (“El resto es árabe y fantasioso”). O pragmatismo do homem de teatro vivido por Cabrujas entra em conflito com sua condição de intelectual, de bibliófilo incorrigível, quando mistura notas técnicas com notas poéticas. “O projeto cénico de um autor”, nos relembra Ryngaert, “pode não estar determinado necessariamente à representação” (1996: 80). Cabrujas tende à representatividade, mas, não por ela, abandona a imaginação literária em sua dramaturgia. Espaço da comunicação Esta categoria, não exatamente textual, mas espetacular, é definida por García Barrientos como a configuração que resulta do “encuentro en el teatro de dos tipos de sujetos, actores y público”91 (2007, p. 21). Estes sujeitos têm seus espaços respectivos, que são a cena para os atores e a sala para o público. Da relação entre os espaços que ocupam atores e público, em uma representação real (física, empírica), depende o tipo de espaço teatral. Como vínhamos dizendo, embora esta seja uma categoria espetacular (de espetáculo) e a nossa análise de El día que me quieras não (não espetacular, mas textual), consideramos importante, aqui, recorrer à história para poder descrever o tipo de espaço da montagem original. Do 91 Tradução: “encontro no teatro de dois tipos de sujeitos, atores e público.” 86 espaço teatral dependem as outras categorias de análise espacial (assim como a nossa concepção mental do espaço de El día que me quieras). Em ausência de didascálias (marcas técnicas, indicações ou referências sobre o espaço nos diálogos dos personagens, que ajudam entender a disposição do espaço da representação, onde se define a relação física entre público e atores ou entre sala e cena) podemos recorrer à montagem original que teve lugar em Caracas, no dia 26 de janeiro de 1976, na sala Alberto de Paz y Mateos de El Nuevo Grupo com cenografia de Carlos De Luca e sob a direção de José Ignacio Cabrujas. Naquela montagem, a relação entre sala e cena e, por tanto, entre público e atores, era de oposição: espaços desconexos e separados: “si existe o se ilumina la escena se oscurece o deja de existir la sala, y viceversa”92 (BARRIENTOS, 2007, p.21). Esta relação de oposição é estável e fixa durante o desenvolvimento de toda a peça. A montagem original apresentou uma cena fechada; era mais elevada (palco) que o chão da sala e fechada por três de seus lados, mas aberta na frente ao público. Esta configuração espacial da representação é a mais comum, conhecida como teatro à italiana, em T, frontal. O público está separado dos atores por uma parede imaginária. Este tipo de disposição favorece espetáculos imanentes, ficções independentes e autônomas que transcorrem para nós, porém aparentando nos ignorar. Estrutura espacial A estructura espacial de El día que me quieras é clássica. Todo o argumento da obra encaixa sobre o cenário, em um mesmo lugar, que é sempre “la sala y el patio de la casa de las Ancízar” (A.I.). É uma obra com espaço único. Em ambos os atos mantém-se o mesmo cenário, sem modificações (com exceção da iluminação, diminuída, pela passagem do tempo do dia à noite). Toda a ação da obra transcorre nessa sala e nesse pátio, decisão deliberada de Cabrujas de respeitar a conhecida unidade de lugar aristotélica. Este tipo de modalidade ou configuração da estrutura espacial única, durante o desenrolar do argumento (e do espetáculo, em últimas consequências), contrasta com a concepção da estrutura espacial múltipla do teatro barroco ou do cinema. É, um espaço cênico fixo, invariável e estático; além disso, é “en algún sentido la posibilidad más genuinamente dramática”93 (BARRIENTOS, 2007, p.21). Signos do espaço 92 93 Tradução: “Se existe ou se ilumina a cena se escurece ou deixa de existir a sala e vice versa” Tradução: “em algum sentido a possibilidade mais genuinamente dramática.” 87 Ao longo do desenvolvimento de El día que me quieras, podemos identificar uma harmônica variedade de ambientes que teatralmente representam os lugares da ação no drama: os signos do espaço cênico. A variedade e qualidade de signos espaciais demonstra o alto nível de consciência espacial dramática de Cabrujas em sua criação. Encontramos nesta peça signos espaciais cenográficos, verbais, corporais e sonoros intercalados. Vamos segmentá-los. Signos do espaço cenográfico Os signos que formam o espaço cénico são três: o cenário, a iluminação e os acessórios. Em conjunto, tais signos dão ao público a primeira imagem material da representação, e, em sua dimensão textual, outorgam ao leitor os primeiros elementos imaginativos para recriar a atmosfera do espaço aonde se desenrolará a intriga. Como indica a tradição dramática, o primeiro signo do espaço cenográfico de uma obra é a descrição da cena. Dita descrição, no caso de El día que me quieras, se divide em duas, uma no começo de cada ato e, como mencionamos antes, de sua observação se desprende a unicidade do espaço cénico da obra mantida em suas duas partes. Prova textual disso, é a diferença de tamanho entre as duas didascálias de ambos “tempos” que precedem o começo dos diálogos e que tradicionalmente é onde os autores colocam as descrições, quando as tem, da cena. Assim, a indicação do primeiro tempo possui cinco linhas carregadas de indicações espaciais e descrições, ao passo que a do segundo tempo apresenta apenas duas linhas que quase prescindem de marcas espaciais, a não ser tangencialmente; a indicação que mistura iluminação e o movimento de atores, diz: “La sala y el patio de las Ancízar a las doce de la noche. Elvira enciende la luz de la sala.”94 (II.1.) Eis também a única indicação cênica de iluminação de toda a obra. No entanto, para a descrição do cenário da sala e do pátio, devemos nos remeter à primeira didascália da obra. Esta contém umas poucas indicações, mais ou menos precisas e mais ou menos poéticas, mistura de categorias espaciais (cenário, som, movimento) que, embora não em detalhes, mas em fragmentos ou farrapos, dão uma ideia ao diretor (ao cenógrafo e ao leitor) do ambiente espacial: La sala y el patio de las Ancízar al medio dia. Un reloj Junghans suena y es la única exactitud del lugar. El resto es árabe y fantasioso: jarrones dorados, mariposas, cerámicas, pastorcillos pálidos, lotos, bambúes y delicadezas. María Luisa está sentada en un sofá vienés. Pío Miranda, a su lado, observa el albañil del patio. María Luisa sonríe vagamente percatándose de Pío, a quien olvidó hace unos minutos.95 (I.1) 94 Tradução: “A sala e o pátio das Ancízar à meia-noite, Elvira ascende a luz da sala” Tradução: “A sala e o pátio das Ancízar ao meio-dia. Um relógio Junghans toca e é a única exatidão do lugar. O resto é árabe e fantasioso: jarros dourados, borboletas, cerâmicas, pastores pálidos, lótus, bambus e delicadezas. María Luisa está sentada em um sofá vienense. Pío Miranda, do seu lado, observa o pedreiro do pátio. María Luisa sorri vagamente reparando em Pío, de quem esqueceu fazia uns minutos.” 95 88 A descrição, imprecisa, mas muito ilustrativa foca em apenas alguns enfeites da casa e no relógio da marca Junghans. Embora, Junghans seja o nome de uma empresa relojoeira alemã e não um tipo de relógio, e, embora, dita empresa fabricasse - e fabrica – relógios de vários tipos (de pulso, despertador, de parede), se supõe que Cabrujas se refere a um relógio de parede com pêndulo. Este tipo de objeto, centro de sala em amplas casas de família, tão comuns na vida campestre e arcaica (Caracas era arcaica e campestre em 1935), conduz o espectador do início dos anos oitenta (1980) a um passado paradoxalmente afastado, mas presente. A enumeração que o autor faz dos enfeites da casa, “árabes y fantasiosos”, segundo ele, ilustra em poucas palavras, e eufemisticamente, a materialização de um gosto “kitsch”. O mau gosto decorativo que mistura enfeites e peças copiadas de estilos e culturas tão distantes, quanto incoerentes. A partir da decoração, é possível perceber o gosto dos personagens e, consequentemente, seus estilos de vida, que contribuem para formação de uma atmosfera espacial singular. O sofá vienense onde estão sentados os noivos Maria Luisa e Pío, na primeira cena, cobra significado ao longo da obra. No final do primeiro ato, María Luisa diz a sua irmã Elvira: “Nos hemos sentado tantas veces en el sofá… y ha habido tantos silencios después de sus palabras, tanta costumbre”96 (I.18). O sofá vienense serve ao autor como elemento quase metafórico que possibilita um fechamento circular. A obra começa e termina sobre esse sofá, com duas ações contrastantes, mas complementárias: a primeira, verbal, é o planejamento do futuro casamento do casal em relação ao espaço ausente da U.R.S.S. e ao sistema político comunista; a segunda, corporal, é a ação de estender sobre o respaldo do sofá a bandeira comunista que Pío esqueceu durante a fuga. Mais nada se fala sobre a cena nesta didascália. Porém, na quarta cena do segundo ato, no meio do texto, há duas menções a elementos até então inexistentes: uma mesa de jantar e um móvel com toalhas de mesa e guardanapos. Novamente, todo aponta à formação de um cenário realista. O mesmo acontece com as marcas textuais referentes ao uso de acessórios. Há, em El día que me quieras, um uso variado de acessórios realistas ao longo de toda a obra: um gramofone, discos, um envelope com ingressos para o concerto de Gardel, guardanapos, uma toalha de mesa, a mala de Pío, cestas com licores, champanhe, taças, a bandeira comunista de Pío e uma carta imaginária. A função e a importância dos diferentes acessórios é heterogénea, embora, uma vez extraídos do corpo do texto e organizados lado a lado, seja perceptível que 96 Tradução: “Nós [María Luisa e Pío] temos sentado tantas vezes no sofá… e tem tido tantos silêncios depois de suas palavras, tanto costume” 89 tanto o uso, quanto o significado de todos e de cada um dos acessórios, se dividem em dois universos autônomos: o de Gardel e o de Pío. A maioria dos acessórios existentes se relaciona a Gardel: os discos que Matilde (I.7) e Plácido (I.15) colocam no gramofone; o envelope que Plácido tira do bolso com os ingressos para o recital (I.4); a toalha de mesa e os guardanapos usados por María Luisa ao arrumar a mesa em homenagem à visita do cantor (II.4); com a visita, Le Pera, parceiro de Gardel, chega carregado de cestas “con licores y magnificencias” (II.8). São os acessórios da excepcionalidade, as provas do milagre de Gardel que, introduzidos consigo em cena, brotam por e para ele. Este simples fato o valoriza frente aos olhos dos demais personagens: ELVIRA.- Plácido… guarda las botellas… que nadie las toque… Mañana se lavan y se dejan aquí de adorno, para que la gente pregunte y uno conteste. PLÁCIDO.- Se van a quedar con la boca abierta… (tomas las botellas y las cestas)97 (II.13) Restam três acessórios, que são os mais significativos e os únicos que se relacionam diretamente a Pío: sua mala, sua bandeira e sua carta. A mala simboliza mudança, neste caso específico, a mudança dos noivos. Pío entra em cena com a mala na mão, no começo do segundo ato, para levar María Luisa. A mala é também uma intenção. Por isso, Pío a deixa ou a esquece quando foge da casa e de María Luisa. A mala permanece em cena, carregada de pessimismo e derrota. Se as cestas e garrafas que Gardel deixa simbolizam a alegria e o milagre, a mala de Pío, ao contrário, simboliza o abandono. É interessante, sem dúvida, a mudança semântica que ocorre sobre este objeto – a mala – graças à fuga de Pío. Assim, antes da fuga, a mala era o acessório da mudança, da esperada resolução; entretanto, após fuga, a mesma mala se converte no acessório da falsidade e da renúncia. Um processo similar acontece com a bandeira comunista de Pío. Ao contrário da mala, que é um objeto utilitário, mas que sobre cena se converte em símbolo, a bandeira é só símbolo, fora e dentro da cena. A bandeira comunista, com a foice e o martelo, diferente de muitas bandeiras nacionais, é muito mais do que um símbolo pátrio (embora o tenha sido na U.R.S.S.), é um símbolo extraterritorial, um objeto e uma imagem com profundidade política que, precisamente, tem simbolizado, ao redor do mundo, todo o comunismo e a luta comunista. E é assim que o Pío concebe a bandeira, como fica claro nas (várias) menções sobre ela ao longo do primeiro ato. Pío fala dela como elemento formador de sua convicção política. É no final da obra, mais especificamente na penúltima cena, que 97 Tradução: “ELVIRA.- Plácido… guarda as garrafas… que ninguém toque nelas… Amanhã as lavamos e as deixamos aqui de enfeite, para que o povo pergunte e a gente conteste.” PLÁCIDO.- Vão ficar de boca aberta... (pega as garrafas e as cestas) 90 este acessório - a bandeira - faz sua aparição física, quando María Luisa a retira da mala esquecida de Pío (Pío abandona, em um mesmo movimento, sua noiva e sua ideologia.). O terceiro acessório que queremos mencionar é a carta de Pío. Na verdade, é problemático definir a carta de Pío como um acessório cênico, porque esta nunca aparece em cena e, além disso, no transcurso da obra, descobrimos que tal carta nunca existiu, foi apenas uma invenção de sua mente desesperada. Apesar disso, este acessório, imaginário, é de suma importância para a construção da intriga. A carta de Pío é mais importante do que a soma de todos os demais acessórios juntos. Dela depende o mecanismo da obra, a partir dela se constrói o conflito, quando Pío revela sua inexistência, ocasiona o desenlace. Há uma enorme quantidade de referências à carta ao longo do drama. Desde o ponto de vista do significado, algo similar acontece com a mala e a bandeira: durante quase toda a obra, simbolizam a esperança de María Luisa, a resolução amorosa, o caminho ao matrimônio e à união, entretanto, com a confissão de Pío (nunca haver escrito carta alguma para Romain Rolland), adquirem outros significados: falsidade, enganação, fingimento e desonestidade. Signos do espaço corporal O espaço cénico existe como marco de ação dos personagens. Eles se movem, se relacionam e dialogam em um lugar determinado. Seus movimentos, suas expressões, o uso que fazem do cenário e dos acessórios, as relações físicas que estabelecem entre si, tudo expressa alguma concepção espacial de parte do autor. Cabrujas, que além de autor foi ator e diretor, tem um sentido muito aguçado e específico para formas de expressão corporais de seus personagens. O texto de El día que me quieras contém uma imensa quantidade de indicações gestuais e expressivas dos personagens, do tipo “asombrada”, “desesperado”, “alzando la voz”98. Algumas dessas indicações dizem respeito à forma expressiva e outras às relações físicas entre os personagens, como quando Plácido fala “acercándose a María Luisa” 99 ou quando Gardel “estrecha vigorosamente la mano de Pío”100. Ao contrário dos textos de teatro contemporâneos, que omitem geralmente de indicações deste tipo, os dramas de Cabrujas possuem a suficiente quantidade de indicações corporais para eliminar a possibilidade de ambivalência interpretativa. O texto inclui uma concepção de montagem corporal que, como indica Barrientos (2007, p.23), se divide em dois aspectos, um mais dinâmico, relativo à expressão corporal (movimento) e outro mais estático, relativo à 98 Tradução: “espantada”, “desesperado”, “alçando a voz”. Tradução: “aproximando-se de María Luisa”. 100 Tradução: “aperta vigorosamente a mão de Pío” 99 91 aparência (figurino). Foquemos primeiro no segundo aspecto, menos abundante, para despois retornar ao primeiro. Há apenas uma indicação de figurino no drama. Tal indicação, altamente significativa, encontra-se no primeiro ato e se relaciona ao vestido branco de Matilde. O interessante é que o figurino em questão é enunciado não nas didascálias, mas diálogos dos personagens e dessa forma se tematiza. Elvira e Matilde falam da roupa que esta deveria usar no concerto de Gardel, no Teatro Principal. ELVIRA.- ¿Qué traje vas a ponerte esta noche? MATILDE.- El traje de organza con lacitos negros (...) ELVIRA.- Deberías ir de negro. Ese empeño tuyo en vestirte de blanco. Ya tienes veintisiete años.101 (I.6) Tia e sobrinha não falam somente de gostos e cores, mas de algo muito mais importante, que tem a ver com os costumes sociais, ou melhor, com o uso da indumentária naquela época e lugar. Considerando a atualidade, tais costumes não tem validez nem sentido, assim como também não o tinham no contexto espaço-temporal em que Cabrujas escreveu a obra (a Caracas de 1979), mas basta recuar umas poucas décadas para encontrar um tempo no qual a rigidez dos costumes a respeito do uso da vestimenta era inquebrantável (calça curta para as crianças e comprida para os jovens, por exemplo). A moda feminina dos anos trinta e quarenta reservava o uso de roupa branca apenas para as crianças, com exceção das noivas no dia do casamento. Era uma regra rígida, ainda mais no caso de um lugar provinciano como a Venezuela daquela época. O tipo de tecido que mencionam, organza, é uma tela de algodão fina, transparente, forte e bordada, usada, sobretudo, em roupas infantis femininas. Matilde é uma menina que, com vinte e sete anos, passa da idade ideal para casar, segundo os costumes sociais de se eu tempo, e, além disso, beira o limite que a converterá em uma solteirona. A insistência de Matilde em se vestir de branco é uma prova de sua imaturidade, da rejeição à passagem do tempo e, também, aos conselhos de sua tia Elvira, como se evidencia sete cenas depois, quando “Entra Matilde. Se ha puesto el traje blanco de organza con lacitos negros”102 (I.13) Este vestido será sua vestimenta até o final da obra. Voltemos, agora, a falar dos signos do espaço corporal relativo aos movimentos dos personagens. A escrita de Cabrujas está cheia de signos corporais de expressão, gestualidade e movimento. Há tanta abundância de signos corporais que seria possível fazer um trabalho de 101 Tradução: “ELVIRA.- Que vestido vai pôr essa noite? MATILDE. - O vestido de organdi com lacinhos pretos (...) ELVIRA.- Você deveria ir de preto. Esse o teu empenho em vestir de branco. Você já tem vinte e sete anos” 102 Tradução: “Entra Matilde . Botou o vestido branco de organza com lacinhos pretos” 92 pesquisa exclusivamente sobre este único aspecto. Neste estudo, no entanto, queremos chamar a atenção somente sobre duas sequências (uma delas elíptica) em que o movimento corporal tem uma importância capital. A primeira sequência compreende os movimentos corporais do personagem de Maria Luisa através do espaço cênico e em relação a um elemento do cenário, o sofá vienense. Esta é uma sequência elíptica composta de três fragmentos amplamente separados uns de outros, ao longo do drama (El día que me quieras começa e termina com dois desses fragmentos). Interessamo-nos por esta sequência não só pela coerência dos fragmentos, mas, sobretudo, por seu significado e pelo que diz a cerca da relação entre Maria Luisa e Pío. Em um primeiro momento, no começo da obra, o casal de noivos faz planos sentados no sofá. (I.1). Em seguida, imediatamente após a confissão pungente de Pío e ao reconhecimento de sua falsidade, vemos como “Pío sale precipitadamente. Larga pausa. María Luisa se sienta en el sofá.”103 (II.9). Por último, no final da obra, assim que todos os personagens saem e resta apenas María Luisa em cena, sentada no sofá, observamos, após uma “longa pausa”, como María Luisa se levanta y camina hacia la maleta de Pío. Se inclina y abre la maleta. Rebusca entre camisas remendadas y pantalones precarios. Y encuentra, envuelta en papel de seda, una bandera roja con una hoz y un martillo. Gran pausa. María Luisa coloca la bandera como un adorno en el respaldar del sofá vienés. 104 (II.15) Cabrujas outorga significado simbólico ao sofá, que deixa de ser apenas mais um elemento do cenário (como a mesa ou o móvel) e vira símbolo da relação amorosa entre María Luisa e Pío. Esta observação se fundamenta no fato de que nenhum outro personagem (de acordo com o texto) senta no sofá a não ser eles. No primeiro fragmento, no começo da obra, o leitor percebe esse sofá como o lugar da intimidade do casal, como seu espaço. Um diálogo que María Luisa dirige à sua irmã na metade da obra confirma esta percepção; María Luisa quer falar do seu relacionamento com o Pío e ao fazê-lo menciona o sofá: “Nos conocemos demasiado…, ¿entiendes? Nunca lo he visto desnudo, pero es como si lo hubiera visto. Nos hemos sentado tantas veces en el sofá… y ha habido tantos silencios después de sus palabras… tanta costumbre…”105 (I.18). Não é de se espantar que a primeira atitude de Maria Luisa, depois de ser abando, tenha sido aproximar-se do sofá, lugar que, durante uma década, foi o espaço de sua única intimidade com Pío. O terceiro momento, no final da obra, (María 103 Tradução: “Pío sai precipitadamente. Longa pausa. María Luisa senta no sofá” Tradução: “María Luisa se levanta e caminha até a mala de Pío. Inclina-se e abre a mala. Rebusca entre camisas remendadas e calças precárias. E encontra, envolvida em papel de seda, uma bandeira vermelha com uma foice e um martelo. Grande pausa. Marías Luisa coloca a bandeira como um enfeite sobre o respaldar do sofa vienense” 105 Tradução: “Nos conhecemos demais… sabia? Nunca vi ele nú, mas é como se o tivesse visto. Temos sentado tantas vezes no sofa… e tem tido tantos silêncios depois de suas palavras… tanto costume...” 104 93 Luisa estende a bandeira comunista sobre o respaldar do sofá) implica uma superposição de símbolos: a bandeira de Pío, transmutada em evidência da falsidade, colocada pela noiva abandonada por cima do sofá, lugar que simbolizava a união do casal, cria um efeito patético e doloroso, que aumenta com o último parlamento de María Luisa na obra: “Quiero que se quede aquí. Hasta mañana. Por lo menos hasta mañana” 106 (II.16). A segunda sequência de signos do espaço corporal está composta pelos movimentos e diálogos de Gardel e María Luisa, como os que acontecem na sala de jantar. María Luisa está só no cenário, organizando a mesa, quando Gardel entra na casa de surpresa e começa a ajudá-la a organizar as coisas. Elvira e Matilde, fora de cena, na cozinha, procuram as taças. Tudo ocorre sem nenhum tipo de transição. O interessante é que os movimentos vão acompanhados de palavras que se referem tanto aos próprios movimentos, como a acessórios e elementos do cenário como, por exemplo, o móvel que não havia sido mencionado nas descrições anteriores até esse momento. Desde o ponto de vista textual, é a palavra viva do diálogo a que “cria” o móvel. Prestemos atenção: GARDEL (Con la acción).- Se busca el centro del mantel y se hace coincidir con el centro de la mesa. (Y súbitamente el mantel queda dispuesto con increíble rigor). Lo aprendí en Holanda, con la pequeña Guillermina. ¿Dónde están las servilletas? MARIA LUISA.- En el mueble, no se moleste. Gardel.- No es molestia. Es una manera de vivir. Y con paso grácil, Gardel se acerca al mueble de las Ancizar y consigue las servilletas GARDEL.- Mi madre dice que las servilletas deben duplicar el número de invitados. ¿No es increíble mi madre? MARIA LUISA: ¿Es argentina? GARDEL.- No lo sé. ¿Podrá creer que no lo sé? (Gardel coloca las servilletas en los distintos puestos)107 (II.4) Gardel se desloca através do espaço da sala da família Ancízar e seu movimento corporal, produto da interação com María Luisa, é o que contribui, literalmente, para configurar o espaço cénico. .3.3 Signos do espaço sonoro 106 Tradução: “Quero que fique aqui. Até amanhã. Pelo menos até amanhã” Tradução: “GARDEL (Com a ação).- Procura-se o centro da toalha de mesa que coincide com o centro da mesa. (E subitamente a toalha de mesa fica disposta com incrível rigor). Aprendi isso na Holanda, com a pequena Guilhermina. Onde estão os guardanapos?” MARÍA LUISA.- No móvel, não se preocupe. GARDEL.- Não é preocupação. É uma maneira de viver. E sutilmente, Gardel se aproxima do móvel das Ancizar e acha os guardanapos. GARDEL.- A minha mãe diz que os guardanapos devem duplicar o número de convidados. Não é incrível, a minha mãe? MARÍA LUISA. É argentina? GARDEL.- Não sei. Pode acreditar que eu não sei? (Gardel coloca os guardanapos nos respectivos lugares)” 107 94 De todas as obras dramáticas de Cabrujas, El día que me quiera é sem dúvida a que utiliza maior quantidade de elementos sonoros, tanto efeitos de som (em menor medida) quanto música (em maior medida). Falaremos em primeiro lugar da música. El día que me quieras é uma obra, de certa forma, musical, desde seu título que, conforme falamos antes, se apropria do famoso tango homônimo de Gardel, cantorcompositor real e personagem fictício deste drama. Gardel está fisicamente ausente durante o primeiro ato, mas presente nas músicas, de sua autoria, que tocam durante a obra. Não é apenas uma música de fundo, mas uma música protagonista, que invade o todo ambiente e interrompe o curso da ação. São três músicas: “Sus ojos se cerraron”, “Rubias de New York” no primeiro ato e “El día que me quieras” no segundo. Há, ainda, uma quarta música, subtítulo do segundo tempo da obra, mencionada por Matilde, Elvira e María Luisa, intitulada “Turankhamón”, porém não a ouvimos porque é interpretada no concerto de Gardel que acontece no tempo latente do entreato, no espaço ausente do Teatro Principal, longe de nossa vista e ouvidos. Vamos falar das músicas que, de fato, escutamos. A primeira é “Sus ojos se cerraron”, na sétima cena do primeiro tempo. Nessa altura da obra já se conhece os personagens principais, já se apresentaram os principais conflitos, tudo demarcado no acontecimento extraordinário: o concerto de Gardel, pela primeira e única vez em Caracas. Pío e María Luisa já discutiram com Elvira, Plácido já anunciou que conseguiu arrumar ingressos para o concerto e Pío já pronunciou seu primeiro solilóquio. Cabrujas, então, aproveita o momento, a tensa calma que sobrevém às grandes discussões, para introduzir, como um parêntese, como um respiro estratégico, o primeiro momento musical da obra. Elvira se queixa de Pío e María Luisa com Matilde, e seu lamento a leva para sua própria história, relembra seu próprio e triste passado amoroso e chora um pouco, enquanto Matilde a interrompe constantemente com reelaborações descritivas das lembranças que carrega dos filmes de Gardel e que a levam a pôr o disco, assim que Elvira se retira.: Elvira sale. Pausa. Matilde organiza el gramófono y se escucha “Sus ojos se cerraron”. Matilde repite en voz baja las primeras palabras. A partir de las alas que con terrible crueldad quemó la vida, Matilde une su precaria voz al desencanto de Gardel por la precaria muerte de su amada. “Como perros de presa...”, indica el regreso de Plácido Ancízar atraído por la voz de Gardel. Se sienta junto a su sobrina.108 (I.7) A importância do uso da música se evidencia na extensão da didascália precedente que, mais detalhada e específica do que o normal, tenta sincronizar as ações corporais de 108 Tradução: “Elvira sai. Pausa. Matilde organiza o gramofone e escuta “Sus ojos se cerraron”. Matilde repete em voz baixa as primeiras palavras. A partir de las alas que con terrible crueldad quemó la vida, Matilde une sua precária voz ao desencanto de Gardel pela precária morte de sua amada. “Como perros de presa...”, indica a volta de Plácido Ancízar atraído pela voz de Gardel. Se senta junto à sua sobrinha”. 95 Matilde (cantar) e de Plácido (ingressar na cena), a partir dos tempos da música, apontando versos específicos. A transcendência da música de Gardel se deve , também, ao fato de a cena ser a única sem diálogos: a música e a verdadeira protagonista. É necessário, no entanto, fazer uma especificação: a função elíptica do uso da música naquele momento, no desenrolar da intriga, não é apenas destrutiva, mas evocativa: a letra fala de um amor morto e acabamos de presenciar a confissão privada da falsidade de intenções de Pío em relação à María Luisa e, em seguida, o soluço solitário de Elvira por seu ex-marido Raimundo. Ademais, há outra intenção do autor no uso de “Sus ojos se cerraron”, assim como no restante das músicas: incorporar a Gardel em voz na cena para torná-lo presente, mesmo que este seja um personagem ausente. Tal fato incrementa o suspense. Imediatamente, antes do final do primeiro ato, isto é, antes da aparição física de Gardel em cena, Cabrujas introduz um segundo momento musical. Se o primeiro momento musical, com a música “Sus ojos se cerraron”, foi introspectivo desde um ponto de vista temático e argumental, o segundo momento (na decima quinta cena, quando os personagens colocam no gramofone a música “Rubias de New York”), em oposição, é eufórico. Os Ancízar cantam, dançam fox-trot e gritam, imaginando como vai ser o concerto, invadidos pela felicidade de participar da festa que a cidade celebra em homenagem ao cantor e ídolo latino-americano. Matilde é a primeira a sugerir a comparação: elas, as Ancízar, irão ao concerto como se fossem as “Rubias de New York”, e Elvira entra no jogo enumerando e cantando, como faz a música, “Mary, Peggy, Betty y Julie… Rubias de New York”. Plácido entra em cena cantando e a emoção os invade, mesmo antes de Matilde, feliz, gritar a Plácido: “¡Pon el disco, Plácido! ¡Esta noche, en la sexta fila del Principal, van a estar sentadas las tres rubias de New York”109 (I.15). É uma cena barulhenta, confusa e muito alegre (com exceção de Pío Miranda, alheio a todo o fenômeno que Gardel tem provocado). O texto mistura movimentos, exclamações e canto à música. Porém, é interessante que esta mistura se especifique, não com uma didascália (como fez o autor com a música anterior), mas com parlamentos que se juntam aos dos personagens presentes, aos versos da música de Gardel, que aparecem, não como parte de uma gravação, mas como um personagem, tipograficamente assinalado como VOZ GARDEL : VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy, Juliet. Rubias de New York… MATILDE (Grita).- ¡Tan lejos…! ¡Coño! Tan lejos… VOZ GARDEL.- Cabecitas adoradas que vierten amor. ELVIRA Y VOZ GARDEL.- Dan envidia las estrellas. PLÁCIDO (Grita).- ¡A las estrellas! ¡Óigase bien que dice: a las estrellas! VOZ GARDEL.- Yo no sé vivir sin ellas. PLÁCIDO (Grita).- Gardel es tan alto como el general Gómez… 109 Tradução: “Bota o disco, Plácido! Esta noite, na sexta fila do Principal, vão estar sentadas as três Loiras de New York!” 96 ELVIRA, MATILDE, PLÁCIDO Y VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy y Juliet de labios en flor.110 (I.15) A terceira música é a única interpretada em cena. Ao final do segundo ato, Gardel canta “El día que me quieras”, pouco antes do final da obra e imediatamente depois do último monólogo de Pío e de sua fuga. Repentina e compreensivelmente incômodo, Gardel tenta ir embora, mas é retido pela família que lhe pede uma música de despedida. Matilde, María Luisa, Elvira e Plácido, quatro solteirões, quatro fracassados no amor, fecham seus olhos enquanto Gardel canta “El día que me quieras”, interrompido apenas por algumas exclamações de êxtase e agradecimento. O efeito é patético e sentimental. A letra da música é lastimosa, porém esperançada e os Ancízar a recitam baixinho, de olhos fechados, sem perceber a saída de Gardel. Respira-se um ar de irrealidade e triste alegria. Resta, por último, falar dos outros signos do espaço sonoro usados na obra: os “efeitos”. Há três usos de efeitos sonoro na obra. O primeiro, já mencionado anteriormente, diz respeito ao som emitido pelo relógio de parede. A tradição teatral assigna duas funções a este tipo de relógio: ajuda configurar certa atmosfera espacial (certa época, certas casas de família) e também cria, com o som de suas campanadas, a ilusão de uma realidade temporal interna à ficção. (Na verdade, colocar um relógio de parede, da marca Junghans, dentro de uma casa caraquenha em 1935, é um erro, um anacronismo: essa empresa não desenhava nem vendia relógios de parede, até o começo dos cinquenta). O segundo efeito de som de El día que me quieras acontece, na cena 16 do primeiro tempo, quando “En la calle se escuchan los cohetes municipales que anuncian la llegada de Carlos Gardel y el consiguiente júbilo de la población”111. O som cria a ilusão de um espaço próximo, mas invisível, de uma rua, de pessoas, de uma parte da cidade. Acreditamos que Cabrujas utiliza o efeito sonoro de foguetes externos, enquanto ocorre uma discussão em cena, com o objetivo de polarizar o fracasso interno mediante o contraste com o festejo externo. Iremos aprofundar mais esta ideia durante a análise espacial de El americano ilustrado, onde se explora este recurso ampla e profundamente. O último efeito de som, quase anedótico, certamente engraçado, ocorre ao princípio do segundo tempo. Escutamos, do 110 Tradução: “VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy, Julie. Loiras de New York…” MATILDE (Grita).- ¡Tão longe…! Droga! Tão longe… VOZ GARDEL.- Cabecinhas adoradas que destilam amor. ELVIRA Y VOZ GARDEL.- Dão inveja as estrelas. PLÁCIDO (Grita).- ¡Às estrelas! ¡Ouça bem que o diz: às estrelas! VOZ GARDEL.- Eu não sei viver sem elas. PLÁCIDO (Grita).- Gardel é tão alto quanto o general Gómez… ELVIRA, MATILDE, PLÁCIDO Y VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy y Julie de labios em flor. (I.15) 111 Tradução: “Na rua se escuta, os foguetes municipais que anunciam a chegada de Carlos Gardel e o conseguinte júbilo da população.” 97 espaço contíguo, invisível, da cozinha, o som da louça caindo e se quebrando no chão. Matilde e Elvira procuravam as taças para receber Gardel, quando María Luisa chega para avisá-las que Gardel já havia chegado e esperava na sala. Diz a didascália que “Desde la cocina se escucha una hecatombe de copas y platos rotos”112. Gardel, sabendo que é a causa do estrepitoso acidente, diz, em direção à cozinha: “GARDEL (Alzando la voz).- ¡Suerte, Matilde! ¡Aquí estoy, Elvira!”113. Graus de (re)presentação e significado espacial Para a dramaturgia espacial, existem três possibilidades de representação : espaços patente, latente e ausente. García Barrientos explica, em sua Análisis de la dramaturgia (2007), que esta tripla possibilidade surge da oposição cênica entre o espaço visível e o invisível, quer dizer, do que acontece sobre o cenário ou fora dele. As ações que os personagens desenvolvem sobre o cenário, na sala, acontecem no espaço patente, o único visível. Porém, os personagens constantemente entram e saem de cena e o público (assim como o leitor) os imaginam indo a lugares contíguos, invisíveis para nossos olhos, mas próximos, desde onde podemos escutar suas vozes ou suas ações (como o quebrar de pratos de Elvira e Matilde e sua contígua e invisível cozinha). Tais espaços recebem o nome de latentes. Por último, um terceiro tipo de possibilidade espacial surge a partir das referências verbais que os personagens fazem de espaços muito distantes do visível, que podem ser, inclusive, imaginários ou nunca vistos pelos personagens, a estes espaços García Barrientos chama ausentes. O interessante, o mais relevante deste aspecto, é “la poderosa fuente de recursos artísticos que supone la relación entre lo que ocurre, se dice, se hace o está dentro y fuera de escena”114 (2007, p.22). O teatro de Cabrujas, tão dramático em todas suas formas, não deixa de explorar tais recursos. Daremos, agora, um maior enfoque às relações que o drama e seus personagens estabelecem entre o espaço patente (a sala e o pátio da família Ancízar) e os diferentes espaços latentes. Nossa pesquisa textual detectou um total de cinco espaços latentes: o quarto de Matilde, o quarto de Elvira, a cozinha, a calçada e a rua. Alguns destes espaços são mencionados em mais de una ocasião ou representados de outras formas, além da verbal (efeitos de som, por exemplo); há outros, ainda, cuja existência intuímos (como os banheiros da casa ou os quartos de Plácido e de María Luisa), isto é, nunca são mencionados ou 112 Tradução: “Desde a cozinha se escuta uma hecatombe de taças e pratos quebrados.” Tradução: “GARDEL (Alçando a voz).- Boa sorte, Matilde! Estou aqui, Elvira!” 114 Tradução: “a poderosa fonte de recursos artísticos que supõe a relação entre o que acontece, se diz ,se faz ou está dentro e fora de cena” 113 98 representados – o que não se faz necessário, já que estão pressupostos ou sugeridos tacitamente. Dos cinco espaços latentes, três estão dentro da casa e os outros dois fora. Os três espaços latentes que estão dentro da casa são a cozinha e os quartos de Matilde e de Elvira. O quarto de Matilde é mencionado durante a discussão familiar provocada por Maria Luisa ao anunciar seu desejo de vender a casa. No momento em que Elvira e Pío discutem com maior intensidade, a voz agoniada de Matilde intervém e Elvira tenta expulsá-la do espaço patente onde ocorre a discussão, confinando-a ao espaço latente de seu quarto, onde não pode escutar, tampouco participar de toda aquela discórdia. Entretanto, o mais interessante é a resposta de Matilde que relembra (com autoridade) a presença de Gardel no espaço ausente e invisível da cidade. A interrupção de Matilde se faz evidente no seguinte fragmento: MATILDE (Que no puede más).- ¿Y por qué no hablamos de esto mañana? ELVIRA.- Matilde, vete a tu cuarto. MATILDE (Protesta).- ¡Hoy llegó Gardel! ¡Y esta noche canta en el Principal! Y ustedes discutiendo esa eternidad que discuten, como si no pasara nada. 115 (I.3) O espaço latente de maior atividade, trânsito e conexão com o espaço patente da sala é a cozinha da casa: em um primeiro momento, Elvira pede que Plácido deixe o espaço patente da sala e vá à cozinha, com uma indireta: “ELVIRA (A Plácido).- Matilde te espera en la cocina con los pormenores de Gardel.”116 (I.11); em um segundo momento, depois do concerto de Gardel e durante os preparos para recebê-lo em casa, María Luisa organiza as tarefas mandando Elvira e Matilde para a cozinha, enquanto ela arruma a sala de jantar: “MARÍA LUISA: Mary y Peggy van a la cocina por las copas. Yo pongo el mantel” 117 (II.3); no terceiro momento, pouco depois do anterior, Maria Luisa se lembra que Elvira e Matilde estão na cozinha e segue rumo a este espaço latente para procurá-las. Nesse momento, tem lugar o efeito sonoro da hecatombe de pratos quebrados e a intervenção de Gardel, que no espaço patente da sala, eleva a voz para o espaço latente da cozinha afim de que o escutem suas invisíveis anfitriãs (II.6); em um quarto momento, depois que Pío, Gardel e Le Pera se vão, restando apenas os membros da família Ancízar, Elvira pede que Plácido guarde na cozinha as garrafas que Gardel deixou para fossem lavadas e expostas como enfeite (II.13); por último, num quinto momento, assim que todos se retiram - inclusive Matilde e Plácido- , 115 Tradução: “MATILDE (Que não agüenta mais).- E por que não falamos dissso amanhã? ELVIRA.- Matilde, vai no teu quarto. MATILDE (Protesta).- Hoje chegou Gardel! E esta noite canta no Principal! E vocês discutindo essa eternidade que discutem, como se nada acontecesse.” 116 Tradução: “ELVIRA (A Plácido).- Matilde te espera na cozinha com os pormenores de Gardel” 117 Traduçao: “MARÍA LUISA.- Mary e Peggy vão na cozinha pelas taças. Eu ponho o mantel.” 99 as irmãs María Luisa e Elvira ficam a sós. Esta, querendo ficar sozinha com a mala esquecida/abandonada de Pío, pede que Elvira vá à cozinha fazer um pouco de café. Restam ainda dois espaços latentes que, na verdade, são um: a calçada, espaço menor contido em outro, a rua, espaço maior. A referência à calçada acontece antes e durante o primeiro solilóquio de Pío, dirigido a Elvira. Pío deseja falar em privado com Elvira, contarlhe seus segredos e, para isso, teve de afastar sua noiva: “PIO: (...) María Luisa está en la acera de enfrente, esperándome”118. A calçada é uma parte da rua, porém este substantivo serve para designar não só o espaço físico das vias terrestres, - compostas de asfalto, onde circulam pessoas e veículos - mas também o espaço mais geral do “fora de casa”, tudo aquilo que fica da porta para fora; uma acepção que, de forma vaga, designa tudo o que, em oposição a casa (fechada e íntima) é público, externo: o mundo, ou algo como “a cidade” a que se refere Plácido no fragmento em que o espaço da casa é invadido pelo som dos foguetes que estouram na rua: En la calle se escuchan los cohetes municipales que anuncian la llegada de Carlos Gardel y el consiguiente júbilo de la población. MATILDE (Eufórica).- ¡Cohetes, Plácido… vamos! (...) PLACIDO.- La ciudad está de fiesta. Se renuevan los cohetes en el zaguán de las Ancízar. ELVIRA.- ¿Por qué no vas a ver los cohetes, Pío? ¿Quién sabe si la revolución es un sonido? Las explosiones de los cohetes se acercan.119 (I.11) Assim, por meio de um efeito sonoro, como as explosões, se cria a ilusão de celebração externa, de festa, que chega viva e real desde o espaço contíguo da rua, invadida de gente que festeja a chegada de Gardel num espaço latente ao da sala e que se introduz no espaço patente do lar dos Ancízar. Por que neste preciso momento? Pío acabava de discutir com Elvira, acabava de fazer uma confissão parcial, acabava de justificar pateticamente seu comunismo e de revelar sua indecisão respeito à María Luisa, tudo de uma vez só. Elvira decidiu guardar tudo para si e se calar. Os foguetes e o festejo externo contrastam com o fracasso interno que só Elvira sabe; por isso, seu parlamento é desencaixado e lúgubre que ninguém além do Pío consegue entender. Espaço patente fracassado contra espaço latente festivo: o efeito é grotesco e formoso. Cabrujas explora engenhosamente o choque de espaços 118 Tradução: “PÍO.- María Luisa está na calçada da frente, me esperando.” Tradução: “Na rua se escutam os foguetes municipais que anunciam a chegada de Carlos Gardel e o conseguinte júbilo da população. MATILDE (Eufórica).- ¡Foguetes, Plácido… vamos! (...) PLACIDO.- A cidade está em festa. Se renovam os foguetes no saguão das Ancízar. ELVIRA.- Por que não vai ver os foguetes, Pío? Quem sabe se a revolução é um som? “As explosões dos foguetes se aproximam.” 119 100 em diferentes graus. Os semantiza e faz deste choque de espaços (latente-patente) algo mais profundo: um choque de caráteres (Gardel-Pío), que no fundo se trata de um choque de estados (ganhar-perder), de realização, de desenvolvimento, de vocação e legitimidade (sucesso-fracasso). Como já falamos dos espaços latentes, passemos, então, às relações que o drama e seus personagens estabelecem entre o espaço patente (a sala e o pátio da família Ancízar) e os distintos espaços ausentes (quer dizer, afastados). Basicamente, há dois espaços ausentes de verdadeira importância em El día que me quieras, construídos em oposição mútua: 1) o espaço ausente da URSS, elaborado verbalmente pelo comunista Pío, 2) o espaço ausente e móvel ocupado por Carlos Gardel no percurso de sua visita à Caracas (porto, trem, praça dos pombos, hotel Majestic, teatro Principal), nos seus filmes e em sua vida privada (incluindo os de sua infância). Ambos os espaços (universos espaciais, como deveríamos dizer) são altamente complexos e multifocais. Sua existência é exclusivamente verbal, surgida nos diálogos dos diferentes personagens, que os descrevem e os (re)criam de formas singulares, heterogêneas e, até mesmo, opostas. A descrição deste par de espaços ausentes, pelos personagens, é tão meticulosa que revela neles o desejo de estar em um espaço diferente do patente. Tentaremos, nesta análise, fazer justiça à sua complexidade e riqueza artísticas: O lugar da música Temporal ou transitório, o espaço que Gardel habita é sagrado para seus adoradores. Gardel é o espaço ausente do maravilhoso, o desejado e inalcançável para uma simples família como a dos Ancízar. A família, desde a cotidianidade mundana da sua sala, elabora, narra, mitifica a passagem de Gardel pela cidade. O recriam verbalmente, o imaginam, procuram apoderar-se um pouco dele. Por isso, é tão impactante o momento em que Gardel adentra o espaço patente da casa da família Ancízar e, de alguma forma, o transforma com sua presença; é uma espécie de Rei Midas que tudo o que toca se converte em magia (Elvira diz, na metade do segundo ato, que Gardel tem cheiro de “Rey mago”). É possível delinear um itinerário bastante preciso (embora ligeiramente alucinado) de seu percurso e do efeito que causa desde que chega ao país. Mostraremos como Cabrujas estrutura, ao longo da obra, uma narração a três mãos (Elvira, Matilde e Plácido participam), bastante minuciosa, quase invasiva, da soma de espaços ausentes que marcam a passagem de Gardel pela cidade. Iremos suprimir aqui as referências sobre o personagem de Gardel, focando a nossa atenção no aspecto especificamente espacial. 101 A narração sobre o percurso de Gardel começa logo na segunda cena da obra, com o primeiro parlamento de Elvira: Entra Elvira. ELVIRA: ¿Vieron las banderas? (Silencio) Dios mío uno podría morirse viendo las banderas. Él no. Él va a pasar de largo del puerto al Ferrocarril, del Ferrocarril al Capitolio, del Capitolio al Panteón y del Panteón al escenario. 120 (I.2) Não é necessário sair do espaço patente da sala e do pátio encenados para conhecer os passos do cantor. Gardel chegou de barco, pela parte caribenha da Venezuela, ao porto de La Guaira, onde foi recebido por uma multidão que o acompanhou até o trem que o levaria para a capital, Caracas, do outro lado da cordilheira da costa. A família Ancízar contava com uma informante naquele espaço ausente, que depois voltou com a notícia: MATILDE.- ¿Y lo del tren? ¿Saben lo del tren? ELVIRA.- ¿Qué es lo del tren? MATILDE.- Se subió al tren. Tenía un vagón para él sólo y dijo que el tren era confortable. Y la gente apiñada así, así de gente, pidiéndole una canción. ELVIRA.- Salvajes. (...) MATILDE.- Lo querían sacar por la ventanilla del vagón. (...) Entonces, la locomotora se movió y él cantó (...) y me miró. ELVIRA (Sorprendida).- ¿Cómo...? MATILDE.- Me Miró. Yo sé que me miró. Él en la ventanilla y yo en el país. 121 (I.3) A partir deste momento, em que presumivelmente a locomotiva segue seu caminho para Caracas, perdemos o rastro dos espaços ausentes que Gardel percorre, até a quarta cena, quando Entra Plácido Ancízar, con el ensayo de la noticia. PLACIDO.- ¡Llegó al Majestic! (...) Once maletas de equipaje y todavía no han podido subirlas a la habitación! Y aquello repleto en el vestíbulo (...) El Gobernador, el Rector, la Academia de la Historia y monseñor Fontúrvel furioso porque alguien le pellizcó una nalga (...) MATILDE.- ¿Y Gardel? PLACIDO.- En un baño, a la izquierda, con Le Pera…122 (I.4) 120 Tradução: “Entra Elvira. ELVIRA.- Viram as bandeiras? (Silêncio) Meu Deus, alguém pode morrer vendo as bandeiras. Ele não. “Ele vai passar do porto ao trem, do trem ao Capitolio, do Capitolio ao Panteón e do Panteón ao cenário.” 121 Tradução: “ MATILDE.- E do trem? Sabem do trem?” ELVIRA.- O que do trem? MATILDE.- Subiu no trem. Tinha um vagão só para ele e disse que o trem era confortável. E as pessoas amontoadas assim, assim de gente, pedindo uma música. ELVIRA.- Selvagens (...) MATILDE.- O queriam tirar pela janela do vagão. (...) Então, a locomotiva mexeu e ele cantou (...) e olhou para mim. ELVIRA (Surpreendida).- Como…? MATILDE.- Olhou para mim. Eu sei que olhou para mim. “Ele na janela e eu no país.” 122 Tradução: “Entra Plácido Ancízar, com o ensaio da notícia. PLÁCIDO.- Chegou no Majestic! (...) Onze malas de bagagem e ainda não conseguiram levá-las ao quarto. A recepção do hotel estava lotada (...) O Gobernador, o Reitor, a Academia de Historia e Monsenhor Fontúrvel furioso porque alguém beliscou sua nádega (...) MATILDE- E Gardel? PLÁCIDO.- No banheiro, à esquerda, com Le Pera...” 102 De novo se interrompe a narração sobre o caminho percorrido por Gardel para dar lugar aos conflitos da família. Gardel é esquecido durante quatro cenas, até que coincidem, no espaço patente da sala, Matilde e Plácido que escutam juntos, no gramofone, o tango “Sus ojos se cerraron” , depois retomam a narração espacial no lugar exato em que havia parado: MATILDE.- ¿Habrá salido del baño, verdad? PLÁCIDO.- ¿De cuál baño? MATILDE.- ¿No dijiste que se había encerrado en el baño en el vestíbulo del Majestic? PLÁCIDO.- Sí, pero después salió. MATILDE.- ¿Y qué hacía allí? ¿Orinaba? PLÁCIDO (con ademán de secreto).- Hablé con él, Matilde… MATILDE.- ¿Dónde? PLÁCIDO.- En la cocina del Majestic (...) Le pregunté si quería revisar las instalaciones del teatro… el camerino, el alfombrado, la estantería, el cortinaje, el telón, la tabla crujiente, el micrófono, los altoparlantes… las cocineras del Majestic como si acabaran de descubrir un fantasma… (...) Y entonces, después de aquello, me vine a entregarles las entradas123 (I.8) Assim se conectam o espaço ausente da cozinha do Majestic com o espaço patente da casa em que tio e sobrinha conversam em cumplicidade. A vontade de possuir Gardel faz com que os outros personagens invadam sua intimidade: não pode sequer ir ao banheiro sem que o sigam. A conversa é interrompida pela entrada de Pío. Também se interrompe a narração sobre os espaços ausentes do trânsito de Gardel, mas porque Matilde e Plácido, as testemunhas presenciais, esgotaram seu material. O único espaço ausente relacionado com Gardel que continua tendo relevância para os personagens da obra é, agora, o do Teatro Principal, onde acontecerá o recital. Contudo, no final do ato, na última cena, ocorre o milagre. Gardel surge supreendentemente, como mágica, no espaço patente da sala da família Ancízar. O efeito é formidável. Houve muitos elementos e referências sobre Gardel, ao longo de 19 cenas, que alimentaram as expectativas tanto dos personagens, quanto dos leitores. Ao mesmo tempo, seu aparecimento é tão abrupto, diz tão pouco e o final do ato chega tão de imediato, que o público e o leitor ficam sem elementos suficientes para explicar o que viram. Não é por acaso que essa última cena seja a mais curta da obra, sendo possível transcrevê-la em apenas uma linha: “Entra Gardel y elige su mejor sonrisa. GARDEL.- Buenas tardes. Me 123 Tradução: “MATILDE.- Terá saído do banheiro, não é?” PLÁCIDO.- De qual banheiro? MATILDE.- Você não disse que ele tinha se trancado no banheiro da recepção do Majestic? PLÁCIDO.- Foi, mas depois saiu. MATILDE.- E o que fazia lá? Urinava? PLÁCIDO (com ar de segredo).- Falei com ele, Matilde... MATILDE.- Onde? PLÁCIDO.- Na cozinha do Majestic (...) Lhe perguntei se queria revisar as instalações do teatro… o camarim, os tapetes, a estante, as cortinas, o palco, o microfone, os alto falantes… as cozinheiras do Majestic pareciam ver um fantasma (…) E então, depois disso, vim trazer os ingressos.” 103 llamo Gardel. TELÓN”124 (I.20) O efeito é melodramático: faz-nos lembrar que Cabrujas também escrevia telenovelas. Fechar o ato desse jeito deixa cabos soltos, alimenta a intriga, cria perguntas, vontade de ver a próxima parte da ficção para obter explicações. Por exemplo, a explicação que conecta Gardel ao espaço patente da casa desperta tanto a curiosidade do espectador, quanto a dos personagens. Por isso, Maria Luisa indaga: MARÍA LUISA.- Perdóneme. Hay una pregunta. Una sola pregunta. ¿Por qué vino aquí? GARDEL.- Cosas técnicas de Le Pera… qué sé yo… un micrófono… el sonido de la guitarra. Había mucha gente en el vestíbulo del Majestic, y de pronto lo vi salir. Buscaba a Plácido, con esa típica angustia de Le Pera ante los contratiempos. Y le dije voy contigo… cuando llegamos aquí la puerta estaba abierta.125 (II.4) A resposta de Gardel encerra a narração sobre o caminho que percorre até a casa dos Ancízar. A presença de Gardel na casa dos Ancizar modifica esse espaço patente. Dizemos isto desde um ponto de vista figurado/metafórico e, também, material: observamos como as Ancízar organizam o espaço para o ídolo, põem a mesa com guardanapos e taças, como mostra da excepcionalidade da ocasião. “¡Usted en su sitio, grandeza!”, exclama Elvira ao têlo com elas, “¡En el centro de esta casa, donde le corresponde por invitado y por distinto!”126 (II.7). Gardel representa todo o diferente, o excepcional; e ao se introduzir no espaço patente, como num sonho, o domina com a sua presença. A narração dos caminhos percorridos por Gardel, elaborada pelos Ancízar e composta pela soma dos espaços ausentes pelos quais este passa, contém os sonhos e ilusões irrealizados daquela família comum e corrente que desde sua cotidianidade anódina elabora verbalmente o espaço de seu desejo. Por isso, sua aparição tem a aparência de um milagre ou de um presente da fortuna. O lugar da revolução Durante toda a obra, os personagens falam de outros lugares, como se não quisessem estar onde efetivamente estão. Acabamos de fazer uma síntese que narra, de modo multifocal, o os caminhos percorridos por Gardel nos espaços ausentes da cidade (nada dissemos, porém, dos espaços ausentes relacionados à sua origem, como Uruguay e Toulouse, tampouco dos lugares já visitados, como Paris ou Holanda, nem das descrições detalhadas e fanáticas que Matilde faz dos cenários dos filmes em que Gardel atua). Tentamos fazer uma relação entre os 124 Tradução: “Entra Gardel escolhe seu melhor sorriso. GARDEL.- Boa noite. Me chamo Gardel. PANO”. Tradução: “MARÍA LUISA.- Me desculpe. Tenho uma pergunta. Uma única pergunta. Por que você veio aqui? GARDEL.- Coisas técnicas de Le Pera… sei lá… um microfone… o som do violão. Tinha muita gente na recepção do Majestic, e de repente o vi sair. Procurava por Plácido, com essa típica angustia de Le Pera frente aos contratempos. E eu disse, vou contigo… quando chegamos aqui a porta estava aberta.” 126 Tradução: “ELVIRA.- Você no seu lugar, grandeza! No centro desta casa, onde você é convidado e estranho!” 125 104 espaços ausentes da cidade e o espaço patente da casa familiar: a análise desse relacionamento mostrou o forte desejo dos personagens de estar nos espaços ausentes que o ídolo habita. Pío Miranda e María Luisa Ancízar estabelecem uma relação similar, de desejo, com o espaço ausente da URSS. Seu desejo, porém, responde ao chamado de outro tipo de fanatismo, que neste caso é ideológico. O espaço patente da Venezuela capitalista é percebido pelo comunista Pío Miranda como um lugar decadente e alienado, sobretudo quando comparado ao espaço ausente da U.R.S.S. de Stalin e sua Terceira Internacional, com o governo do proletariado, com a força obreira e na verdade comunista que Pío idealiza, descreve, narra, recria e imagina, outorgando uma dimensão real no espaço patente da casa dos Ancízar. A importância do espaço ausente da U.R.S.S. é tão grande que justifica sua menção logo no primeiro diálogo da obra, como parte de uma conversa entre Pío e María Luisa à que chegamos in medias res e que, segundo vamos descobrindo, trata sobre o dia da morte de Lenin: MARÍA LUISA.- ¿Y Stalin? PIO: Stalin los reúne a todos en el salón de conferencias, a mano izquierda, entrando por la puerta principal como quien va hacia el comedor del Terrible. Stalin aguarda y entra Bujarín y entra Zinoviev y entra Kamanev y Trotsky y los viejos bolcheviques, tensos, impenetrables, definitivos. (...) Stalin se levanta, sobrio, medular, profundo. Y hay ese momento de angustia. Y Stalin dice: “Caballeros, Vladimir Ilich acaba de morir” MARÍA LUISA.- Ay. (...) PÍO.- Y Bujarín se levanta y camina hacia el llamado ventanal de la zarina en tiempos de opresión. Zinoviev lo mira. Stalin lo mira y Trotsky pregunta “¿Qué hace el camarada Bujarín en el llamado ventanal de la zarina?” MARÍA LUISA.- Lloraba. PÍO.- Lloraba. (...)127 (I.1) A descrição é tão detalhada que dá a sensação de que Pío esteve efetivamente nesse lugar, dez anos antes, entre Stalin, Trostky e os bolcheviques. Pío tem habitado tanto esse espaço ausente, o Kremlin de suas leituras, a URSS de seus anelos, que o conhece em detalhes: inclusive espacialmente. Conhece a disposição dos salões do palácio de governo e a distribuição que nele tinham as pessoas históricas de seu relato. Pío outorga uma dimensão tão real àquele espaço que consegue fundamentar o futuro de seu relacionamento amoroso com María Luisa na mudança física, geográfica, para lá. Eles 127 Tradução: “MARÍA LUISA.- E Stalin? PÍO.- Stalin reúne todos no salão de conferências, à mão esquerda, entrando pela porta principal como quem vai para a sala de jantar do Terrível. Stalin aguarda e entra Bujarin e entra Zinoviev e entra Kamanev e Trotsky e os velhos bolcheviques, tensos, impenetráveis, definitivos. (...) Stalin fica em pé, sóbrio, medular, profundo. Vive esse momento de angústia. E Stalin diz: “Cavaleiros, Vladimir Ilich acaba de morrer. MARÍA LUISA.- Ai. (...) PÍO. E Bujarin se levanta e caminha até o chamado vitrô da czarina em tempos de opressão. Zinoviev olha para ele. Stalin olha para ele e Trotsky pergunta ‘O que faz o camarada na chamada janela da zarina?’. MARÍA LUISA.- Chorava. PÍO.- Chorava. (...).” 105 planejam mudar e casar na Ucrânia, onde poderão participar do comunismo e procriar dentro da verdade proletária: PÍO.- ¡Yo creo en un mundo donde se comparten las ideas con la camarada mujer!... He planificado con ella la posibilidad de mudarnos a la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas, porque entre otras cosas quiero que mis hijos nazcan en la verdad proletaria, y no en este basurero del imperialismo” 128 (I.3) Os leitores sabemos que é uma estratégia dilatória. A explicação de Pío relaciona, a modo de desculpa, a incompatibilidade entre o espaço patente e sua ideologia comunista como justificativa da irresolução amorosa que tem estendido seu noivado por uma década. Pío não consegue, literalmente, consumar sua relação, nem sequer carnalmente; a interpretação que Elvira faz desse fato ironiza a explicação “espacial” de Pio: “ELVIRA: (...) ése es incapaz de una machura en territorio nacional. Hasta la biología le funciona en la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas. Son santos y necesitan su vaticano para andar santeando.” 129 (I.6) Resulta mais fácil para ele habitar um espaço ausente e imaginário que se definir com María Luisa. Entendemos que a estratégia de Pío para manter seu relacionamento amoroso indefinido por tanto tempo se baseia na recriação imaginária de um habitar futuro e conjunto do espaço ausente da Ucrânia, elaborado em detalhes prosaicos e cotidianos, como resulta evidente nesta citação (já trilhada por nós): MARÍA LUISA.- No hay nada en el mundo como un té de samovar. ¿Tendremos uno alguna vez? PÍO.- Creo que sí. O por lo menos nos dejarán usar el samovar del koljosz. MARIA LUISA: ¿Hará mucho frío, verdad? PÍO.- Al principio. Pero después uno se acostumbra a todo130 (I.1) O espaço ausente de que fala Pío é uma projeção mental, um construto da imaginação, fantasiado e posto em palavras, um espaço, no fim das contas, imaginário. A origem dessa projeção mental está em suas leituras militantes. Se a escritura é uma interpretação da realidade e a leitura uma interpretação do texto escrito, o mesmo acontece com a enunciação de Pío; se converte em uma interpretação de sua leitura que é uma interpretação do texto escrito, que é uma interpretação da realidade do espaço desconhecido: cada interpretação transforma o objeto (e, neste caso, o objeto que nos interessa é o espaço ausente da URSS). No entanto, cabem, ainda, mais interpretações: se continuarmos nessa linha de comunicação, 128 Tradução: “PÍO.- Eu acredito num mundo onde se compartam as ideias com a camarada mulher!... Tenho planejado com ela a possibilidade de nos mudar à União de Republicas Socialistas Soviéticas, porque entre outras coisas quero que meus filhos nasçam na verdade proletária e não nesta lixeira do imperialismo.” 129 Tradução: “ELVIRA.- (...) esse é incapaz de ser homem em território nacional. Até a biologia dele funciona na União de Repúblicas Socialistas Soviéticas. São santos e precisam de seu vaticano para andar santeando” 130 Tradução: “MARÍA LUISA.- Não tem nada no mundo como um chá de samovar. Teremos um alguma vez? PÍO.- Acredito que sim. Ou pelo menos nos deixarão usar o samovar do koljosz. MARÍA LUISA.- Fará muito frio, não é? PÍO.- No começo. Mas depois se acostuma com tudo.” 106 poderemos chegar até a recepção de Plácido e de María Luisa que gera uma nova transformação. Como no jogo do telefone sem fio, onde a mensagem é passada de ouvido em ouvido entre várias pessoas, e no final, se transforma muito em relação à mensagem original, analogamente, o espaço da URSS, idealizado, interpretado, exposto, transformado, ouvido, transformado de novo, até a hilaridade se converte, na mente de Plácido, no seguinte: MATILDE.- ¿Y cómo vas a hacer en Rusia, tía María Luisa...? Cuéntame... Llegas a Rusia, ¿y qué haces? (...) ¿Y es verdad que en Rusia todo el mundo es feliz? ¿Cómo es allá? PLACIDO.- Absolutamente distinto. Clara y contundentemente distinto. En primer lugar, hay primavera, otoño, invierno y verano... y todo es de todos... Tú vas por la calle, ¿verdad, Pío?, y se te antoja... qué sé yo... queso... chuleta, capricho... y entras al mercado, de lo más formal... y pides: Dame, dame, dame... ¿Y por qué no te voy a dar? Porque soy un hombre y pertenezco al género humano... y tengo hambre... Toma, toma, toma…131 (II.8) Para María Luisa, contudo, apesar de ausente, a Ucrânia é um espaço tanto imaginário quanto concreto e com um significado claro e preciso que vai além da união do proletariado. O comunismo para ela significa matrimônio. Contanto que se case com Pío, María Luisa é capaz de ir para Ucrânia, de trocar de vida, ainda que isso implique em acabar com o espaço patente ou o pô-lo em risco, como fez ao sugerir a venda da casa. A confissão de Pío põe fim à farsa e às ilusões de Maria Luisa. Entre muitas coisas que confessa serem falsas, há uma enumeração de prévias referências a espaços ausentes que os vinculam emocionalmente como casal e que criam um efeito metafórico de renúncia total: PIO: (...) No hay nada en Ucrania. No sé dónde queda Ucrania. No hay Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas. (...) No hay ventana de la zarina, ni Bujarín doliente! (...) ¡No hay nada! ¡Es la palabra esperada, la palabra profética! ¡Mentí! (...) Nunca más volveré a esta casa… No me esperes…132 (II.8) Para Pío, essa confissão, da inexistência do espaço ausente da Ucrânia no qual se baseava o futuro de seu relacionamento com María Luisa e a condição para o exigido matrimônio, elimina suas possibilidades de voltar ao espaço patente da casa da família. 131 Tradução: “MATILDE.- E como você vai fazer na Rússia, tia María Luisa…? Me conta… Você chega na Rússia, e o quê você faz? (...) E é verdade que na Rússia todo mundo com tudo.” 131 Tradução: “MATILDE.- E como você vai fazer na Rússia, tia María Luisa…? Me conta… Você chega na Rússia, e o quê você faz? (...) E é verdade que na Rússia todo mundo é feliz? Como é lá? PLÁCIDO.- Absolutamente diferente. Clara e contundentemente diferente. Em primeiro lugar, há primavera, outono, inverno e verão… e tudo é de todos… Você vai pela rua, não é, Pío? E sente desejo de… sei lá… queijo… carré, capricho… e entra no mercado, bancando o formal… e pede: Me dá, me dá, me dá… E por que é não vou te dar? Porque sou um homem e pertenço ao gênero humano… e tenho fome… Toma, toma, toma…” 132 Tradução: “PÍO: (...) Não tem nada na Ucrânia. Não sei onde fica Ucrânia. Não tem União de Republicas Socialistas Sovieticas. (...) Não tem janela da czarina, nem Bujarin dolente! (...) Não tem nada! Essa é a palavra esperada, a palavra profética! Menti! (...) Nunca mais voltarei nesta casa… Não me espere...” 107 Os fatos apresentados demonstram, embora superficialmente, como Cabrujas explora artisticamente as possibilidades criativas oferecidas pelo jogo de relações espaciais visíveis e invisíveis, que se relacionam profundamente com alguns dos fios mais relevantes da intriga. Significado espacial Para concluir esta análise espacial, faremos um comentário sobre o sentido, o significado, o valor do espaço cênico em El día que me quieras. Tal valor vai além da descrição do cenário e emerge das relações que se estabelecem dentro do drama entre o espaço cênico e outros três elementos: o tempo, os personagens e a temática da obra. Especifiquemos algumas dessas relações. A escolha da casa das Ancízar como espaço cênico de El día que me quieras outorga um valor necessário a esse espaço. A ação poderia ter acontecido em outro espaço, no hotel Majestic, por exemplo, onde Gardel fica hospedado ou no Teatro Principal, onde acontece o recital. Poderia ter acontecido tudo na casa de Pío, no desesperado monólogo antes de partir para procurar e levar com ele sua noiva. Teoricamente as possibilidades são infinitas, mas, já que Cabrujas optou pela casa dos Ancízar, o valor desse espaço cênico é, assim, intrínseco à sua própria existência. A casa dos Ancízar encerra a história e carrega o peso de um passado glorioso. Pertenceu originalmente à Ezequiel Ancízar, ilustre general das guerras de Independência. Ezequiel morre na sala de sua própria casa, quer dizer, sobre o mesmo espaço cênico em que transcorre a obra. Os que habitam a casa são os irmãos Ancízar (Elvira, Plácido e María Luisa) e uma sobrinha (Matilde), também Ancízar. Nessa mesma casa morre, também, a mãe dos irmãos Ancízar. A história familiar e afetiva dos Ancízar está, por tanto, contida no espaço da casa, entre suas paredes e baixo seu teto. A casa é o elemento que reúne todos os personagens, a justificativa de seu encontro. Nela moram os Ancízar. Nela Pío Miranda almoça e se encontra com sua noiva, todos os dias. Nela chegam Le Pera e Gardel a procura de Plácido, não só para resolver detalhes técnicos do recital, mas por sua feição, sua aparência, sua fachada (que não vemos, mas ouvimos a descrição) com as samambaias na entrada. Ante a casa e lembrando-se da casa materna de sua infância, Gardel pede permissão aos Ancízar para passar a noite com eles, depois do recital. A casa é, também, motivo de conflito, quando, por exemplo, María Luisa propõe sua venda para poder financiar sua emigração amorosa. Nela se reúnem todos os personagens depois do recital e, graças à rede de relações entre a casa cada personagem, o espaço cobra 108 valores múltiplos, contraditórios e complexos: para Elvira e para Plácido, é o espaço da lembrança (morte de familiares, passagem dos anos); para Matilde, é a zona de conforto, onde recebe os cuidados dos tios; para Gardel, é o espaço da nostalgia, da displicência e da fruição (cancelou um jantar com o ditador Gómez para poder estar nessa casa); para María Luisa, é o espaço da cotidianidade, do estancamento, mas, ao mesmo tempo, é o espaço do possível, do sonho, da construção do amanhã, já que sua venda geraria fundos para financiar seus planos amorosos; por fim, para Pío, é o espaço do conflito (amor mal resolvido), da vergonha, da farsa, da responsabilidade dilatada e da fantasia ou, em uma palavra, o espaço do fracasso. IV. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL AMERICANO ILUSTRADO (1986). Antes de pensar nos temas e significados profundos de El americano ilustrado, antes de falar de seus personagens e da história que a obra conta, partamos de uma aproximação que leve em conta a estrutura e a composição material do texto dramático. Consideremos apenas a aparência que a obra tem, a partir das marcas concretas com que Cabrujas a organiza. Evidentemente, o primeiro a se considerar será o primeiro que podemos perceber: o título da obra. “Dar um título a uma peça é, para seu autor, uma forma de anunciar ou confundir seu sentido”, diz Ryngaert, e completa explicando que “para o leitor, o título é uma primeira referência” (1996, p. 36). Desentranhemos o sentido e as referências implícitas neste título. A tradição teatral abunda em exemplos de obras, especialmente tragédias, cujos títulos fazem referência ao nome do herói que protagoniza a ação (Hamlet, Édipo), ao nome de um casal de personagens (Romeo e Julieta, César e Cleópatra) ou, inclusive, ao nome de um grupo ou coletivo de personagens (Fuenteovejuna, Las Troyanas). O título de algumas comédias, em específico, contêm nomes de caráter social, funções, cargos com adjetivos esclarecedores. O doente imaginário, por exemplo, apresenta no título o embrião de seu argumento, a descrição de um personagem (o protagonista) e o anuncia ao espectador. Entretanto, se o título O doente imaginário é eloquente e direto, clarifica e encaminha o sentido da obra, o título El americano ilustrado realiza o caminho inverso. Embora pareça, não anuncia uma comédia. Cabrujas usa esse recurso como falsa pista: sua trajetória como diretor de comédias (Molière, Shakespeare) autoriza esta observação. O substantivo “americano” é demasiado amplo (continental) e abarca quase a totalidade do elenco, com exceção da delegação inglesa e de Marx e Engels (que, mais que personagens, são aparições 109 cenográficas), todos os demais personagens da obra são americanos e, se formos mais específicos, venezuelanos. Não podemos desdenhar do caráter geográfico do argumento, porque Cabrujas não o faz da mesma maneira, também não podemos ignorar seu caráter histórico. De fato, a história é uma das obsessões do autor e a partir dessa obsessão se configura também o título da peça: Cabrujas joga com duas referências históricas venezuelanas: 1) a do título, “Ilustre americano” - que foi atribuído, pelo congresso, ao ex-presidente Antonio Guzmán Blanco (1829-1899), um dos personagens da peça, mas não seu protagonista (outra pista falsa) e 2) a do nome da revista quinzenal cultural “El cojo ilustrado” - publicada entre 1892 e 1915, que marcou a história editorial venezuelana. São duas provas às referências históricas do espectador: Cabrujas concebeu o teatro como uma prática totalmente provinciana. Não vem o título seguido de nenhum subtítulo, tampouco de uma orientação relativa ao gênero. A obra aparece dedicada a Fausto Verdial, ator teatral muito vinculado ao autor, que interpreta na estreia desta peça, a Arístides Lander. Verdial, durante vários anos, foi protagonista das obras escritas ou dirigidas por Cabrujas. Imediatamente após a dedicatória, há uma espécie de nota introdutória ou nota explicativa intitulada “La suficiente inseguridad”133. Nela Cabrujas diz que os personagens Cosme Paraíma (Acto cultural, 1976) e Pío Miranda (El día que me quieras, 1979) são os precursores do personagem Arístides Lander, “gente que vivió por primera vez en el genio de un gran actor”134. (O apontamento é inexato: na verdade o ator que interpretou a Pío Miranda na estreia de El día que me quieras, no Teatro Alberto de Paz y Mateo, em 1986, não foi Fausto Verdial, mas o próprio Cabrujas.) A nota faz extensivo o agradecimento ao diretor da peça porque, segundo confessa o autor, a obra vivia nele durante vinte e cinco anos “hasta que Armando Gota en persona la sacó de una neurótica impotencia hace algunos meses, a cambio de paciencia y tenacidad”135. Estrutura A obra está dividida em quatro grandes partes desiguais: dois atos precedidos por um prólogo e seguidos por um epílogo. Tanto o prólogo quanto o epílogo estão por sua vez subdivididos em duas partes cada um. Todas estas divisões correspondem a mudanças tanto do tempo, quanto do espaço onde transcorre a ação. É uma estrutura relativamente clássica, 133 Tradução: “A suficiente insegurança” Tradução: “pessoas que viveram pela primeira vez na mente de um grande ator.” 135 Tradução: “até que Armando Gota em pessoa a tirou de uma neurótica impotência faz alguns meses, em troca de paciência e tenacidade” 134 110 embora tergiversada: se assemelha às tragédias em cinco atos (ou às óperas em cinco movimentos), embora não sejam cinco as partes da obra. Pode-se dizer, porém, que a divisão é bem mais livresca, pois inclui prólogo e epílogo, segmentações de longa tradição na narrativa e em muitos tipos de publicações impressas, mas não no caso da dramaturgia, historicamente menos editada e publicada, reservada somente ao espaço da encenação. No entanto, além de livresca, esta divisão obedece à estrutura interna da história: tanto o prólogo quanto o epílogo correspondem respectivamente aos antecedentes e às consequências da ação que se desenvolve principalmente nos dois atos principais. Entretanto, não precisamos ir tão longe para afirmar que prólogo e epílogo são imprescindíveis, pois sem eles El americano ilustrado teria por protagonista não Arístides Lander, senão seu irmão Anselmo e contaria outra história. De qualquer maneira, a estrutura da obra é desigual e algumas de suas partes (não todas) vêm também desigualmente acompanhadas de datas e de subtítulos em francês, textualmente copiados dos subtítulos dos movimentos da Sinfonia fantástica de Berlioz. Há um projeto em Cabrujas de comparar o argumento da sinfonia com o de sua obra. No argumento da sinfonia de Berlioz, um jovem artista fuma ópio e se alucina com sua amada em cinco movimentos que se vão se degradando e obscurecendo: há um trajeto do dia à noite, de campos felizes com cândidos pastoreios e a amada dançando em meio a uma demoníaca e selvagem comemoração, na que sua imagem - da amada - é burlada e vilipendiada. Na obra de Cabrujas, como veremos adiante, Arístides também se degrada e se escurece. Cabrujas, amante da ópera, organiza seu universo mental, “em função de ritmos que lhe são próprios e que se referem a outras artes (como à pintura ou à música) no seu modo de pensar o texto” (RYNGAERT, 1996, p.39). Passemos, então, ao comentário das partes, uma a uma: a primeira parte é o Prólogo e vem acompanhado de uma data entre parênteses (1865), que marca a temporalidade histórica na que transcorre a ação. O prólogo se subdivide em duas partes, intituladas ou marcadas com os números romanos I e II, correspondentes a dois espaços diferentes: um lugar campestre (I) e uma capela (II). A segunda parte configura o Primeiro ato, que vêm seguido de um subtítulo em francês (Revêries, passions) e de uma data (1880) e transcorre inteiramente na casa de Arístides Lander. O subtítulo, como dissemos antes, é o mesmo do primeiro movimento da Sinfonia fantástica de Berlioz, traduzido ao espanhol como “Ensueños, pasiones”. A data, 1880, marca a passagem do tempo, quinze anos a partir do prólogo. No final deste ato há uma marca textual em letras maiúscula: TELÓN, que indica o meio da obra. A terceira parte, intitulada Segundo ato, sem datas nem subtítulos, transcorre no Salón del sol de Junín da casa 111 de Governo, que se chamava Estados Unidos de Venezuela. Finalmente, a quarta e última parte é o Epílogo, subdividido em suas duas partes menores, marcadas com os números romanos I e II cada uma. Ambas as partes correspondem, a dois espaços cênicos diferentes: um salão do Palácio Arcebispal (I) e, de novo, a casa de Arístides Lander (II). Assim como no Primeiro ato, estas duas partes do Epílogo vêm acompanhadas dos subtítulos em francês que correspondem aos subtítulos dos dois últimos movimentos da Sinfonia fantástica, que são, respectivamente Marche au supplice (I) e Songe d’une nuit de Sabbat (II), traduzidos ao espanhol como “Marcha al cadalso” e “Sueño de una noche de aquelarre”. No final da segunda parte do Epílogo há uma marca textual, FIN, que indica o encerramento da ação e o final da obra. Como a estrutura desta obra é desigual, é normal que surjam dúvidas. Queremos, então, apresentar um esquema: Prólogo (1865) I II Ato I. Rêveries, Passions (1880) Ato II Epílogo I Marche au supplice II Songe d’une nuit de Sabbat Divisão em cenas. Assim como acontece em El día que me quieras, e em muitas outras obras de Cabrujas, o autor não utiliza segmentações em sua escritura dramática. Porém, propomos, como na análise anterior, a segmentação da ação de El americano ilustrado em cenas. A divisão em várias unidades menores (marcadas pelas entradas e as saídas dos personagens) facilita a análise textual. Tipograficamente, vamos assinalar com letras maiúsculas as grandes estruturas da obra e com números romanos suas partes (P.I e P.II para as duas partes do Prólogo; A.I para o Primeiro ato e A.II para o Segundo ato; E.I e E.II para as duas partes do Epílogo). Para as cenas, utilizaremos números arábigos (1, 2, 3, 4, etc., para a Cena 1, Cena 2, Cena 3, etc.). As combinações, destas unidades menores, permitirão localizar rápida e facilmente as referências durante este estudo. 112 Unidades e continuidade de ação El americano ilustrado, ao contrário de El día que me quieras, ignora as unidades de Aristóteles. Não há espaço nem tempo únicos na peça, mas plurais. Se formos além, não há sequer um protagonista, senão dois, com conflitos, ambições e histórias diferentes. Tais protagonistas são os irmãos Arístides e Anselmo Lander (Cabrujas discordaria de esta última observação, para ele Arístides é o protagonista de sua obra, mas, desde o nosso ponto de vista, a importância do personagem Anselmo, com seus conflitos religioso e amoroso, é central para a obra). “A decupagem do texto”, segundo Ryngaert, “raramente é independente de uma concepção do tempo e do espaço” (1996, p.41). Assim, se a concepção de El día que me quieras é clássica, a concepção de El americano ilustrado, mediante a divisão de suas partes e do tratamento do tempo e do espaço, aponta a uma estética barroca de descontinuidade. Desde o ponto de vista temporal, a ação transcorre num lapso de dezesseis anos, que correspondem ao tempo histórico que vai de 1865, data indicada entre parênteses no início do Prólogo, até o verão de 1881, como se indica nas didascálias que abrem a segunda parte do Epílogo. Contudo, se assumimos o prólogo e o epílogo como um antes e um depois da história (não é por acaso que Cabrujas escolhe prólogo e epílogo, ao invés de “atos”) e se nos limitarmos apenas aos dois atos centrais, descobrimos que, neles, a temporalidade da ação transcorre no lapso de poucas horas que vão da tarde à noite do dia 17 de julho de 1880, dia do aniversário de Arístides, o que entraria nos parâmetros de unidade temporal. São as duas partes restantes que rompem com a unidade de tempo: o Prólogo se desenvolve quinze anos antes daquele aniversário, em 1865, e o Epílogo um ano depois, no verão de 1881. Quer dizer, provavelmente a escolha de Atos para as duas partes centrais e de Epílogo e Prólogo para parte anterior e posterior aos atos, persiga a procura de uma relativa unidade temporal. Tudo isso, é claro, escapa ao espetador que, embora perceba a passagem do tempo na trama e vivencie a interrupção da obra pelo entreato, recebe Prólogo e Primeiro Ato como uma unidade contínua e ininterrompida e Segundo Ato e Epílogo como outra unidade ininterrompida. Desde o ponto de vista do espaço, a ação de El americano ilustrado transcorre numa variedade de ambientes, rompendo com a unidade espacial aristotélica que Cabrujas havia respeitado em muitas obras teatrais anteriores. Contrariamente à relativa unidade temporal restringida aos dois Atos, não conseguimos enxergar neles um ambiente único, mas dois 113 espaços cênicos diferentes e contraditórios, um privado e familiar e outro público. Temos em El americano ilustrado uma sucessão de espaços cênicos que serão nomeados a continuação, seguindo a linearidade da trama. Tais espaços são: primeiro, “un paraje campestre y amable en las cercanías de un arroyo”136 (P.I.); segundo, “un ángulo votivo en la capilla de Nuestra Señora del Perpetuo Socorro”137 (P.II); tercero, “el patio de la casa de Arístides Lander”138 (A.I.); cuarto, “un amplio salón en la casa de Gobierno”139; quinto, “un salón votivo en el palacio Arzobispal”140; e sexto, novamente, “el patio de la casa de Arístides Lander”. Os diálogos são curtos e rápidos, os intercâmbios entre os personagens são dinâmicos e em seu conteúdo há referências cultas (ópera, champanha e citações em francês), religiosas, políticas e históricas, misturadas com prosaísmos e cotidianidades engraçadas (pulmão de boi temperado e atacado por moscas, o queijo do fabricante de queijos Lozada, a “paloma”141 de Santo Tobias). O status do conteúdo dos parlamentos corresponde aos interlocutores, desde o Presidente Guzmán e a delegação inglesa, até os subordinados e empregados, como Eloy, Damián, Rajah-Haji e Samotracia. O dinamismo dos diálogos é ritmado e pausado pelo autor que utiliza diferentes recursos com o objetivo de dilatar o argumento principal, de pospor a crise dos conflitos e de criar suspense. Em primeiro lugar, há o uso de muitas marcas que literalmente indicam, no diálogo, os momentos nos quais deve sobrevir uma “Pausa” simples, “Breve” ou “Larga”142. Em segundo lugar, há o uso grandes blocos de fala ou solilóquios, sobretudo dos irmãos Arístides e Anselmo Lander e no Segundo Ato de Guzmán Blanco. Estes solilóquios correspondem, quase sempre, a uma autorreflexão dolente, a uma acusação ou a uma confissão castrante (ou libertadora), pelo menos no caso dos irmãos Lander. Guzmán, ao contrário, monologa porque tem amor próprio, é um personagem satisfeito de si, porém, em seus longos solilóquios, se esconde também uma estratégia: a seduzir, confundir e manipular ao ambicioso mas diminuído Arístides. Em terceiro lugar, a entrada e saída de personagens subordinados e empregados, bem como o intercâmbio prosaico e cotidiano que introduzem, interrompe o fio central do argumento (às vezes inoportunamente). Por fim, em quarto lugar, pela introdução de diálogos em outros idiomas diferentes do espanhol, como o francês usado por Arístides e Guzmán e em ocasiões com Rajah-Haji, como o alemão de 136 Tradução: “uma lugar campestre e amável nas cercanias de um arroio.” Tradução: “um ângulo votivo na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro” 138 Tradução: “o pátio da casa de Arístides Lander” 139 Tradução: “um amplo salão na casa de Governo” 140 Tradução: “um salão votivo no palácio Arcebispal” 141 Tradução: “pombo”; em espanhol tem duplo sentido sexual. 142 Tradução: “Longe” 137 114 Marx e Engels (personagens pitorescos sem nenhum tipo de relevância para a trama) usado por María Eugenia e Rosamunda e, sobretudo, como o inglês de Mac Shelley e de seu intérprete Perret, que cria um jogo de suspense que se estende ao longo de todo o Segundo ato e o domina. A ficção da obra: argumento e intriga O argumento, como comentamos na análise de El día que me quieras, está fundamentalmente ligado à ação. Para construir o argumento de El americano ilustrado trataremos de identificar, extrair, organizar e enunciar em tempo pretérito e narrativamente as ações sucessivas dos personagens e principais acontecimentos, da maneira mais neutra possível. Ryngaert nos dá algumas pistas de como acometer esta labor: “Só devemos nos apoiar no texto dramático e não esquecer nenhuma das ações. A seguir, é preciso organizá-las na ordem cronológica, que raramente corresponde à ordem proposta pelo texto, e simultaneamente tomar consciencia de suas durações e do tempo que as separa”. (1996, p.57) Argumento de El americano ilustrado Em 1818, a Venezuela contraiu uma dívida com Inglaterra. Em agosto de 1839, nasceu Anselmo Lander e onze meses despois seu irmão Arístides. Na infância dos irmãos Lander, Anselmo estripava galinhas fantasiado Ivanhoe (personagem literário de um romance cavalaria) acompanhado de Arístides, seu escudeiro. Arístides recebeu o doutorado em direito em 1860. Em 1865, Arístides se apaixonou em segredo de María Eugenia Lozada. Por onze meses tentou se aproximar dela sem sucesso. Um dia, conseguiu, em uma ópera, um sorriso dela. Uma semana depois, Arístides rogou que seu irmão Anselmo, já padre da igreja, pedisse a mão de María Eugenia em seu nome. Sabendo do lugar exato onde María Eugenia e sua mãe passariam, resolvem, juntos, armar uma emboscada. Diante da mulher de Lozada, Anselmo pediu, para seu irmão, Arístides, a mão de María Eugenia, que aceitou no mesmo momento. Perto deles, Marx e Engels conversavam e comiam. 115 Quinze dias depois, Anselmo enviou a María Eugenia um recado pedindo que fosse visitá-lo na capela onde era padre. Ele propôs à sua futura cunhada que fossem juntos a um hotel. Nesse ano, no seu aniversário, no dia 17 de julho, Arístides escreveu uma carta dirigida a si próprio, com a condição de abri-la quando completasse quarenta anos. Nela, se impôs uma série de metas profissionais (ser líder do Partido Conservador, modificar a Constituição nacional e alcançar o título de general), e se impôs o prazo de quinze anos para cumpri-las e reatar outra carta com metas mais grandiosas, caso fracassasse, deveria se suicidar. Anselmo e María Eugenia tiveram uma aventura, mas estiveram juntos somente uma vez. Anselmo alcançou o cargo de Bispo. Arístides, que seguiu carreira de político, alcançou o cargo de Secretário de Protocolo do Ministério de Relações Exteriores. Antonio Guzmán Blanco assume a Presidência. Em 1880, durante a primeira quinzena de julho, o general Pío Fernández visitou clandestinamente ao monsenhor Anselmo Lander para convidá-lo a parte de uma conspiração contra o presidente. No dia 15 de julho, uma delegação inglesa chegou à Venezuela para renegociar o pagamento da dívida externa. Dois dias depois, em 17 de julho, Arístides completou quarenta anos. Trabalhou durante o dia organizando, junto ao seu secretário Eloy, um banquete que o governo ofereceria à delegação inglesa. Quando terminou de trabalhar, abriu a carta que tinha escrito quinze anos antes. Fez com que María Eugenia, sua mulher, a lesse em voz alta. Comprovou seu fracasso e tomou a antiga pistola de seu antepassado, Justo Lander, sem balas, e disparou simbolicamente na cabeça. Pouco depois chegaram a casa seus irmãos, Anselmo e Rosamunda, que era freira, para festejar seu aniversário. Anselmo propôs a Arístides fazer parte da conspiração do general Fernández contra Gómez em troca do cargo de Ministro de Relações Exteriores se tivessem sucesso. Arístedes rejeitou a proposta. Pouco depois, seu secretário Eloy chegou dizendo que o presidente Guzmán queria vê-lo. Arístides saiu apressadamente com Eloy, sem ter jantado ou brindado por seu aniversário. 116 Anselmo aproveitou o instante de intimidade com María Eugenia e lhe declarou seu amor. María Eugenia o evadiu. Pouco depois, no palácio de governo, Arístides se reuniu com Guzmán, enquanto a delegação inglesa o esperava. Guzmán lhe ofereceu o cargo de Ministro de Relações Exteriores. Arístides aceitou de imediato. Também de imediato, Guzmán disse que tinham uma reunião com a delegação inglesa para discutir a dívida e -segundo Guzmánuma possível declaração de guerra. MacShelley, embaixador da Inglaterra, concedeu o prazo de três meses para que a Venezuela pagasse sua dívida ou negociasse, em seu lugar, a transferência de uma parte do território da Venezuela à Inglaterra. Durante a reunião, chegaram ao palácio, convocados em segredo por Guzmán, Anselmo, María Eugenia e Rosamunda para comemorar o aniversário de Arístides. A reunião se suspendeu. Abriram champanhes, houve fogos de artifício. Anselmo, a sós com Arístides, o enfrentou por haver aceitado o cargo apesar da conspiração na que confessou participar. Mais tarde, Anselmo acabou por confessar a Arístides seu amor por María Eugenia e este alegou já saber do fato . A gritos, Anselmo convoca toda a família e, diante dela, do presidente e da delegação inglesa tirou sua vestimenta sagrada, se despojou de seu hábito, da sotaina e do crucifixo, os jogou no chão e renunciou a seu cargo. Rosamunda foi expulsa do convento como consequência das circunstâncias da renúncia de Anselmo ao bispado. Arístides partiu a Inglaterra para realizar longas negociações que culminaram na perda de territórios da Venezuela. Um mês depois, em agosto de 1880, Anselmo foi para o porto de La Guaira para de lá embarcar para Hamburgo, onde tinha algum dinheiro guardado. Meio ano depois, Arístides regressou das negociações. Foi recebido em casa por sua família, colegas e o Presidente. Todos o elogiaram longamente, mas ele nada falou. Tomou de novo a pistola, sem balas, de Justo Lander e na frente de todos fez um disparo contra a cabeça. Intriga Em oposição ao argumento, narração da totalidade de fatos que compõem o esqueleto da história de uma obra, o término intriga define a organização das ações, maquinadas pelo autor, para construir sua obra e para conseguir algum efeito. Em palavras de Ryngaert, “a intriga está ligada à construção dos acontecimentos, a suas relações de causalidade, quando o 117 enredo considerava apenas uma sucessão temporal dos fatos.” (1996, p.63). Da intriga brotam conceitos abstratos, como os conflitos dos personagens, os temas e a ideologia da obra. Normalmente há um conflito principal a partir do qual se estrutura a intriga. Na construção da intriga de El americano ilustrado, porém, há dois conflitos igualmente importantes dos personagens que dividem o protagonismo, os irmão Arístides e Anselmo. Assim como fizemos na análise de El día que me quieras, vamos partir agora da exposição do conflito estruturante (ou melhor: dos conflitos, porque são dois), para depois segmentá-lo a partir dos princípios da dramaturgia clássica em suas partes constitutivas (exposição, nó, peripécia e desenlace). No entanto, antes de começar, é importante ressaltar que, por haver dois conflitos de igual importância, pela própria estrutura da obra, pelas mudanças temporais e espaciais, El americano ilustrado apresenta uma intriga um pouco heterodoxa. Teria sido mais fácil ignorar o conflito de Anselmo Lander para fazer encaixar a análise no modelo de intriga mais comum, mas isso desrespeitaria a integridade do texto, ignorar dados e perder a singularidade da peça em favor da comodidade. Intriga de El americano ilustrado Em una linha: Arístides Lander aceita por ambição um cargo político que o denigra e que contradiz seus princípios até se corromper e se esvaziar de todo sentido; seu irmão, o monsenhor Anselmo, porém, realiza o movimento oposto ao renunciar por autenticidade à igreja, ao bispado (tinha perdido a fé) e ao amor impossível de sua cunhada, para começar outra vida. Desenvolvimento da intriga No dia em que Arístides Lander completou quarenta anos, abriu uma carta escrita em sua prometedora juventude para ser lida quinze anos depois. Nela, impôs a si mesmo uma série de metas grandiosas (e incompletas) que despertaram nele o sentimento de fracasso. Repentinamente, nessa tarde, foi chamado com urgência ao palácio de governo para se reunir (pela primeira vez em sua vida) com o presidente Guzmán. O presidente o recebeu com champanhe e elogios e lhe ofereceu um cargo muito alto que, cego e feliz, aceitou sem entender -o sem querer entender- que era uma armadilha: foi encarregado da desleal missão de negociar a entrega de parte do território nacional à Inglaterra, para onde embarcou de imediato. Após um ano de negociações regressou a sua terra, mas convertido numa triste e resignada sombra. 118 É comum que as obras tenham várias intrigas e vários conflitos. A história de El americano ilustrado se constrói sobre o desenvolvimento não de uma, mas de duas intrigas opostas. Anselmo Lander, irmão de Arístides, é também protagonista de outro conflito de igual peso. Quando com vinte e seis anos, o padre e aspirante a bispo Anselmo Lander pediu, em nome de seu irmão, a mão de María Eugenia Lozada, experimentou um sentimento que contrariava sua vocação: se apaixonou instantaneamente por sua futura cunhada. Quinze dias depois, lhe propôs em segredo ir a um hotel. Durante quinze anos viveu apaixonado por María Eugenia e neste mesmo período foi nomeado bispo. Deixou crescer dentro de si o cinismo e, de tanto negar seu amor, acabou negando a Deus e perdendo a fé. No dia em que Arístides fez quarenta anos, confessou seu amor por María Eugenia que o rejeitou, pois Arístides, seu marido, já sabia dos sentimentos do irmão. Tomado por uma euforia libertadora se despojou de seus hábitos e de sua cruz jogando-os no chão: rompeu com a religião. Um ano depois, María Eugenia o visita no arcebispado onde Anselmo guarda suas coisas. Despedem-se e, através da conversa entre eles, descobrimos que, anos antes, tiveram uma aventura, embora fugaz. Com uma pequena poupança e sem nenhum plano, Anselmo embarcou para Hamburgo para começar uma vida nova. Léxico da intriga Sigamos desentranhando os mecanismos da intriga em suas partes constitutivas: -Exposição: Vemos no Prólogo um Arístides vigoroso e sonhador, satisfeito advogado que consegue da mulher que ama e com a que quer casar o sonhado “sim”. O padre Anselmo, que pediu a mão de María Eugenia em nome de seu irmão, se apaixona por ela e consegue em segredo lhe enviar um recado para que se encontrassem na capela. Anselmo lhe faz indiretamente uma proposta amorosa que a incomoda ambiguamente. -Nó: Quinze anos se passam. Preparam um jantar na casa de Arístides para comemorar seus quarenta anos e a visita de seus irmãos. Sua esposa, María Eugenia, lê, a pedido do marido, uma carta que mexe com frustração causada pelo fracasso de suas ambições profissionais: chega apenas a secretário de protocolo do governo. Dispara , num gesto simbólico, a pistola sem balas de seu bisavô, contra a cabeça. Em seguida, chegam Anselmo e Rosamunda. Anselmo, convertido em bispo sem fé, propõe que seu irmão o acompanhe na conspiração 119 contra Guzmán para evitar a perda do território de Guayana para o império britânico. Arístides, que já tinha se resignado a sua pequeneza e a seu fracasso, rejeita a oferta. -Peripécia: De repente, Eloy invade a casa de Arístides dizendo que um oficial o espera para levá-lo a uma reunião urgente com o presidente Guzmán. O presidente lhe oferece o Ministério de Relações Exteriores e Arístides aceita. É feita uma reunião com a delegação inglesa para negociar o pagamento da dívida, no prazo de três meses, ou a entrega de Guayana. A família de Arístides chega ao palácio do governo, de surpresa, para comemorar a nomeação de Arístides. -Desenlace: Num momento de intimidade, Anselmo diz a Arístides que ama María Eugenia. Arístides confessa já saber do fato. Com raiva, Anselmo confronta Arístides por ter aceitado a nomeação mesmo sabendo que ele participava de uma conspiração contra Guzmán. Arístides confessa sua frustração e a pequena alegria que a nomeação lhe causava e pede que seu irmão se esqueça das revoltas. Anselmo renuncia à vida eclesiástica e abandona em público seus hábitos. A partir disso, pode-se dizer que esta obra mostra duas decisões opostas tomadas por dois irmãos totalmente diferentes: renunciar e se liberar ou aceitar e se corromper Anselmo perde seu cargo com todos seus benefícios e pouco tempo depois embarca rumo à desconhecida Hamburgo para começar uma vida nova. Arístides volta da Inglaterra depois de ter entregado parte do país e, mesmo sendo recebido com um banquete pelo presidente, está tão degradado que repete o suicídio simbólico diante de todos. 4.1 Personagens Estrutura Elenco El americano ilustrado está entre as obras de Cabrujas com elenco (conjunto de personagens) mais abundante: quatorze no total. Nem todos têm a mesma relevância e nem a mesma participação no drama. Colocados em ordem de aparição, o elenco está composto por: Marx Engels Arístides Lander 120 Anselmo Lander María Eugenia Lozada La mujer de Lozada Damián Eloy González Samotracia López Rosamunda Rajah-Haji Guzmán Blanco Olivier Perret Mac Shelley O elenco está composto, grosso modo, por personagens de âmbito familiar e privado, que giram ao redor dos irmãos Lander, e por personagens de âmbito público, que giram em torno do presidente Guzmán. Criados, subordinados, colegas: todos os personagens podem ser localizados nestes dois âmbitos, com exceção de Marx e Engels, desconexos, incoerentes e absolutamente arbitrários. Configurações A dinâmica de entradas e saídas de personagens nesta obra relembra o teatro burguês do século XIX: personagens protagonistas-amos e personagens secundário-serventes (criados, subordinados, mordomos) entram e saem de cena o tempo todo. O resultado é a proliferação de pequenas cenas de transição pouco relevantes que pausam o ritmo contínuo da ação, criando suspense e dilatando o desenlace. Não há uma configuração plena e nem vazia nesta obra. Não há nenhuma conexão entre a totalidade dos personagens da obra em nenhuma cena. Porém, de qualquer forma, Arístides é o eixo que os conecta: é o centro da rede familiar e o enlace entre a família e a casa de governo (Arístides é subordinado do presidente Guzmán). É também o único personagem que se encontra em ambas as aparições (primeira e última cena da obra) com Marx e Engels, embora não podamos falar propriamente de uma relação entre eles. Há dois solos na obra (configurações unipessoais), pouco significativos, mas funcionais; pequenas cenas que se conectam a outras. O primeiro caso acontece no primeiro ato. Anselmo confessa seu amor para María Eugenia e a convida a fugir com ele; ela o rejeita e pede que se vá. María Eugenia fica sozinha no cenário por breves momentos, nos que “Sin 121 mayor voluntad, revisa el hábito de San Antonio de Padua”143 (A.I.28) e quase de imediato Rosamunda faz sua entrada no cenário. O segundo caso acontece no começo do segundo ato. Eloy e Arístides vão à casa de governo procurar pelo presidente Guzmán, mas não o encontram. Arístides envia seu subordinado, Eloy, para procurar o assessor presidencial Bustillos Herrera para obter informações a cerca da localização do presidente, até que Guzmán entra em cena: “Eloy sale. Pausa. Arístides examina el salón. El lejano vals se interrumpe y ahora se escucha con gran estrépito la introducción del Himno Federal. Transcurre un tiempo y Guzmán entra al salón.”144 (A.II.3) A dupla é a configuração mais abundante nas obras analisadas. No caso de El americano ilustrado há várias duplas, menos e mais significativas. As menos significativas correspondem aos encontros (abundantes, mas breves) entre amos e serventes. Rosamunda Lander e a criada Samotrácia aparecem, na segunda parte do epílogo, se arrumando frente ao espelho (E.II.1). Anselmo e Damián, bispo e sacristão, são uma dupla bem heterodoxa: abrem a segunda parte do prólogo com a leitura, em alta voz, de um bacanal contido numa publicação de literatura erótico-católica intitulada La polla del Fray Esteban145 (P.II.1). Arístides Lander e Eloy González, diretor e assistente, compõem a seção protocolar do Ministério de Relações Exteriores que, na primeira cena do primeiro ato, planeja a recepção da delegação inglesa. São configurações que se prestam à comicidade derivada das tensões hierárquicas que impõem relações de poder e com as que Cabrujas brinca. As duplas mais significativas resultam das diferentes combinações possíveis de três personagens: Arístides, Anselmo e María Eugenia. No fim das contas, esta obra contém um triângulo amoroso especialmente complicado. Arístides e María Eugenia, marido e mulher, compõem a combinação oficial do amor consumado (e desgastado pela vida). Anselmo e María Eugenia, cunhados, compõem a configuração do adultério, do amor impossível, blasfemo, e do desejo pelo proibido (Anselmo, além de ser cunhado de María Eugenia, é bispo). Cabrujas apresenta mais vezes María Eugenia com seu cunhado Anselmo do que com seu marido Arístides. O mais interessante desta configuração entre cunhados é que o autor a apresenta, em duas ocasiões, no marco religioso do espaço de uma igreja. Anselmo e Arístides, os irmãos Lander, aparecem juntos e sozinhos em cena em dois momentos, separados por quinze anos: O primeiro momento acontece na primeira parte do prólogo (1865, no tempo da fábula), antes de Anselmo pedir, por seu irmão, a mão de María Luisa; e o segundo momento ocorre no final 143 Tradução: “Sem maior vontade, revisa o hábito de Santo Antonio de Pádua”. Tradução: “Eloy sale. Pausa. Arístides examina o salão. A distante valsa se interrompe e agora se escuta com grande estrépito a introdução do Hino Federal. Transcorre um tempo e Guzmán entra no salão” 145 Tradução: “A pau do Frei Esteban”. É vulgar mesmo no original. 144 122 do segundo ato, quando ambos confessam seus segredos um para o outro: esta cena precipita o clímax da obra. Com relação aos trios, vale a pena ressaltar que muitos deles são, na realidade, duplas interrompidas pela entrada dos serventes: Samotrácia, por exemplo, entra e sai constantemente, enquanto Arístides e María Eugenia leem a carta, para trazer acessórios, a pedido de Arístides, como um chapéu, uma bengala, uma bandeja de prata com brandy e dois copos ou a pistola de Justo Lander, entre otras cosas; ou Rajah-Haji, outro personagem, que entra e sai constantemente em cena, enquanto Guzmán oferece a Arístides o cargo de ministro, para transmitir ao presidente mensagens de impaciência por parte delegação inglesa cansada de esperar para ser recebida. Na verdade, os trios e quartetos de El americano ilustrado tendem receber a adição de mais personagens até alcançar a configuração coral. Não há configuração plena na obra, porque, conforme já dissemos, não há nenhum vínculo entre todos os personagens. No entanto, a configuração coral, bastante numerosa, é utilizada em dois momentos chave: 1) no clímax da obra, quando Anselmo se despoja do hábito e o joga no chão diante da delegação inglesa, do presidente e de sua família (A.II.22); e 2) na última cena da obra, quando Arístides dispara, simbólica e publicamente, um tiro, contra si mesmo, na frente de nove personagens. Com a exceção da delegação inglesa, de seu irmão Anselmo e de Damián, todos os demais personagens estão presentes: Samotrácia, Rosamunda, Eloy, Rajah-Haji, Guzmán, Arístides, María Eugenia, a mulher de Lozada, Marx e Engels (E.II.3) Personagem, hierarquia e ação. Como é comum acontecer nas obras de elenco numerosos, El americano ilustrado possui vários personagens (quase a metade) de relevância e participação reduzidas. Desde o ponto de vista da ação, por exemplo, contamos apenas cinco personagens substanciais: Arístides, Anselmo, María Eugenia, Guzmán e Edgar McShelley. Os conflitos e os desejos que dão forma à ação do drama provêm, em sua totalidade, de Arístides, Anselmo e María Eugenia: os componentes do triângulo amoroso; o sentimento de fracasso, a falsidade, a irresolução, o despojo: os grandes conflitos desta obra descansam sobre seus ombros. Os personagens que alteram de forma profunda a ação são: o presidente Guzmán (que nomeia Arístides ministro, produzindo uma importante peripécia aparentemente positiva) e o delegado inglês Mac Shelley, representante da coroa e cobrador da dívida econômica que favorece a Inglaterra sobre a Venezuela e por cuja visita Arístides é embarcado em missão diplomática para Londres. O resto dos personagens, nove no total, desde o ponto de vista da 123 ação, são personagens funcionais. Eloy cumpre a função de comunicar a Arístides o chamado do presidente na casa de governo. Oliver Perret cumpre a função de tradutor entre Mac Shelley e o presidente. Rajah-Haji, Samotrácia e Damián cumprem funções de serventes dos seus amos: se convertem em extensões dos corpos e das vozes de Guzmán, María Eugenia e Anselmo respectivamente: entram e saem de cena para comunicar mensagens destes ou para trazer e procurar coisas como, por exemplo, champanhe e taças. Marx e Engels, porém, não contam como personagens funcionais: sua intervenção é absolutamente desconectada da ação e não há nenhuma ingerência nela. Desde o ponto de vista da hierarquia, temos quatro personagens principais e dez secundários. Os personagens principais são: Arístides (protagonista), Anselmo (deuteragonista), María Eugenia (tritagonista) e Guzmán (tetragonista). Os outros dez personagens são hierarquicamente secundários, embora, tenham gradações de relevância: os mais importantes (Olivier Perret, Mac Shelley, Rosamunda, Eloy), os medianamente importantes ( os serventes -Damián, Samotracia y Rajah-Haji) e, por último, os menos importantes (a intranscendente mulher de Lozada e os desconexos Marx e Engels.). Fizemos uma contagem das réplicas emitidas e recebidas pelos personagens durante a obra, que se configura da seguinte forma: Réplicas de personagens de El americano ilustrado Arístides --------> 195 <-------- 234 =429 Anselmo --------> 217 <-------- 199 =416 María Eugenia --------> 154 <-------- 159 =313 Guzmán --------> 96 <-------- 116 =214 Eloy --------> 68 <-------- 58 =126 Rosamunda 124 --------> 73 <-------- 51 =124 Samotrácia --------> 39 <-------- 49 =88 Mc Shelley --------> 37 <-------- 44 =81 Perret --------> 55 <-------- 21 =76 Damián --------> 31 <-------- 30 =61 Rajah-Haji --------> 17 <-------- 18 =35 Marx --------> 17 <-------- 14 =31 Engels --------> 12 <-------- 11 =23 La mujer de Lozada --------> 10 <-------- 9 =19 A partir desta contagem, torna-se perceptível a rotunda preponderância dos personagens principais sobre os secundários: os números de réplicas emitidas e recebidas dobram e triplicam o número de réplicas dos personagens secundários. Ademais, tal contagem evidencia a equivalência de réplicas dos personagens Arístides e Anselmo, fato que nos chama atenção. Desde o nosso ponto de vista, ambos os personagens são protagonistas de igual peso, a equivalência de réplicas é uma prova disso. Contudo, não são personagens iguais. Arístides recebe mais réplicas que emite, o que o caracteriza como um personagem passivo. Isto se confirma ao longo do drama. Arístides não toma decisões ao longo obra, 125 apenas se deixa levar pelos outros, como por exemplo, por Guzmán, que o convida a assumir o cargo de ministro e que ele aceita apesar de sua posição política ser contrária a oficial. Anselmo, por sua vez, é o oposto de seu irmão. Sua vontade transforma a ação; faz parte de uma conspiração, declara o seu amor e renúncia ao bispado apesar das inconveniências. Anselmo é um personagem mais ativo (emite mais réplicas que recebe). Graus de representação Até agora falamos exclusivamente dos personagens patentes que aparecem em cena, desconsiderando aqueles que são nomeados sem aparecer. Se considerarmos todos esses personagens do drama descobrimos como seu número se quadriplica: há uma enorme quantidade de personagens ausentes (invisíveis e alheios) e apenas um personagem latente (quer dizer, invisível e contíguo). O único personagem latente é o assessor do presidente, Bustillos Herrera. Na vigésima cena do primeiro ato, Eloy González entra inesperadamente na casa de seu chefe Arístides e interrompe a reunião familiar (aniversário de Arístides) para levá-lo até o presidente, e acrescenta: “Bustillos Herrera espera en la acera de enfrente, junto al coche presidencial. No hay un minuto que perder”146 (A.I.20). Em seguida, no início do primeiro ato, Arístides, cansado de procurar, sem sucesso, Guzmán, manda seu assistente procurar o assessor presidencial, com as seguintes palavras: “Encuentra a Bustillos Herrera, Eloy. Hazme caso. Creo que se quedó en la garita. Tal vez él sepa dónde diablos está el Presidente, porque de salón en salón vamos a llegar al lavandero.”147 (A.I.20) Vamos mencionar agora os personagens ausentes do drama (invisíveis e alheios). São tantos, que resulta necessário fazer uma classificação. Há personagens ausentes fictícios. Alguns pertencem ao âmbito familiar. O senhor Lozada - pai de María Eugenia - um vendedor de queijo (Guzmán elogia os queijos de Lozada no segundo ato). Anselmo menciona brevemente o seu pai e o adjetiva “disciplinado” para explicar os curtos onze meses que o separam de seu irmão mais novo, Arístides (P.II.). São mencionados também a esposa de Eloy (enferma de pústulas na virilha) e Justo Lander, avô de Anselmo, Arístides e Rosamunda e proprietário original da pistola com que Arístides simula se suicidar duas vezes. Outros personagens pertencem ao âmbito laboral dos três irmãos: Rosamunda, que é freira, menciona a Madre superiora de seu convento; no final da 146 Tradução: “Bustillos Herrera espera na calçada da frente, do lado da carroça presidencial. Não temos um minuto a perder.” 147 Tradução: “Encontra Bustillos Herrera, Eloy. Faz o que o digo. Acredito que ficou na guarita. Tal vez ele saiba onde diabo está o Presidente, porque de salão em salão vamos chegar no lavadeiro.” 126 obra, quando Anselmo faz suas malas antes de partir para Hamburgo menciona o nome de seu substituto no bispado - o autor se confunde e atribui dois nomes diferentes para um mesmo personagem, primeiro Monsenhor Ustáriz e depois Monsenhor Garmendia. Arístides e Eloy, ao organizar o recebimento protocolar da delegação inglesa, mencionam o diretor de orquestra Tetrazzini e o Arcebispo de Lima. Guzmán, no começo do primeiro ato, dialoga com Arístides e, antes de nomeá-lo ministro, lhe informa sobre destituição do até então Ministro de Relações Exteriores Judas Tadeo Tello Uzcátegui. Há personagens históricos, mencionados apenas como referências pelos personagens patentes ao do longo do drama. Entre eles, há políticos, intelectuais e artistas de várias nacionalidades e diferentes períodos históricos: como os políticos Víctor Raúl Haya de la Torre, Robespiere e a rainha de Inglaterra. Menciona-se, também, um pirata (Walter Raleigh), um Papa (León X) e uma heroína (Juana de Arco). Há uma ampla quantidade de intelectuais e artistas mencionados, como José Ingenieros, José Martí, Pitágoras, Miguel Angel, Descartes, Voltaire, Diderot, Schubert, Schumann, Chopin, Carpentier e Monteverdi. São citados, ainda, personagens literários como Ivanhoe (da obra homônima de cavalaria), Pimpinela Escarlata (primeiro herói com dupla identidade), e os personagens que participam da orgia sacrílega de La polla del Fray Esteban, lida em voz alta por Anselmo: frei Esteban, Sor Veneranda, a condessa de Montmorercy e o noviço, Duval. Há muitas referencias a personagens religiosos e santos, o que é comum numa sociedade profundamente católica e conservadora, como a Venezuela do final do século XIX. São mencionados em distintos momentos e circunstâncias: Jeová, Caim, Cristo e o Centurião, Santa Maria Micaela, Santa Rita, São Buenaventura, São Sebastião, Santo Tobias, São Tomás, Santo Antonio de Pádua, Santa Isabel da Hungria, Maria, Santa Rosa de Lima, São Jorge e São Pablo. Podemos concluir que esta obra está dominada, de forma absoluta, por personagens patentes, já mencionamos no elenco. Entre os poucos personagens ausentes importantes estão: Justo Lander, avô dos Lander e primeiro dono da pistola do suicídio (simbólico) e José Tadeo Tello Uzcátegui, ex-Ministro de Relações Exteriores; cargo posteriormente assumido por Arístides. Caracterização. Cabrujas consegue imprimir profundidade de caráter não apenas nos personagens principais (Arístides, Anselmo, María Eugenia), mas também em vários personagens secundários: Eloy González, por exemplo, apesar de ser o subordinado de Arístides, não é 127 colocado por nós na categoria de personagem-servente, precisamente por sua complexidade de caráter que o coloca num nível superior ao de Rajah-Haji, por exemplo. Outro caso, paradoxal, é o da dupla formada por Mac Shelley (embaixador inglês) e seu servente Olivier Perret (tradutor trinitário). Mac Shelley, apesar de ser vital e substancial para a ação, apresenta um caráter simples (plano) em comparação ao do tradutor Perret, que tem um caráter pluridimensional. Todos os temperamentos dos personagens são fixos, com a exceção de Arístides. Graças à distância temporal de quinze anos que separa, na fábula, o prólogo do primeiro ato, é possível perceber uma mudança no caráter de Arístides, uma mudança de seus traços psicológicos. Na primeira parte do prólogo, vemos um Arístides cheio de ilusões, um jovem brincalhão e motivado por suas paixões, que consegue se aproximar da mulher dos seus sonhos. Quinze anos mais tarde, já no primeiro ato, vemos um Arístides que completa quarenta anos e sente o efeito da passagem do tempo em sua forma de ser. Os quarenta anos costumam ser uma idade paradigmática de autorreflexão na vida dos homens. O balanço que Arístides faz da própria vida o define como derrotado. Ainda é capaz de fazer piadas, mas sem alegria, apenas cinismo resta nele. O caráter de Arístides expressa a passagem da ilusão à desilusão, o fracasso descoberto. O autor faz uso de todas as possíveis técnicas de caracterização dramáticas, de forma artística e constante. Vamos mencionar alguns exemplos: -Técnica de caracterização explícita verbal reflexiva (o personagem fala de si). Um bom exemplo do uso desta técnica é a autodescrição de María Eugenia na cena 26 do primeiro ato. A tristeza de Arístides (ainda no dia de seu aniversario) faz com que ela se sinta miserável. Quando se encontra sozinha com Anselmo, tenta desabafar, ele a elogia, e ela, não concordando, o contesta com sua autodescrição elusiva e enigmática: MARÍA EUGENIA (Sonríe y hay tristeza en su rostro).- Buscaremos la razón de un brindis. Arístides cumple cuarenta años y no es feliz. Desearemos la felicidad de Arístides. Dios mío, ¿No parezco un libro de idiomas? ANSELMO.- ¿Cómo se puede ser infeliz a tu lado? MARÍA EUGENIA.- Es posible, Monseñor, que yo no tenga un lado. (Insiste) Me refiero a lo que he vivido. Me educaron para que jamás pudiese avergonzar a nadie, y eso es lo que he hecho. No avergonzar, puede ser una profesión. ¿No está de acuerdo? ANSELMO.- No. MARÍA EUGENIA.- Digamos que me apasionan las incomodidades.148 (A.I.26) 148 Tradução: “MARÍA EUGENIA (Sorri e demonstra tristeza em seu rosto)”. - Buscaremos a razão de um brinde. Arístides faz quarenta anos e não é feliz. Desejaremos a felicidade de Aristides. Meu Deus, não pareço um livro de idiomas? ANSELMO. - Como se pode ser infeliz a seu lado? 128 -Técnica de caraterização explícita verbal transitiva (personagem fala de outro em sua presença). Esta técnica é amplamente utilizada pelo autor. O exemplo mais paradigmático está na terceira cena da primeira parte do prólogo, quando Anselmo apresenta seu irmão Arístides a María Eugenia e sua mãe, a senhora Lozada, como parte do pedido de matrimônio que faz em seu nome. O seguinte fragmento expressa o que Anselmo diz de seu irmão Arístides em sua presença: ANSELMO.- Ostenta veintinueve años sin señas particulares dignas de ser mencionadas. Jamás guardó cama ni hubo en su vida motivo de enfermedad vergonzosa o tropical. Recibió el doctorado en Leyes el 1º de septiembre de 1860 y hasta el momento ha sido incapaz de reproducirse. No existiendo ningún impedimento que invalide la legitimidad de esta proposición, me permito recomendarla en el nombre de Nuestro Señor.149 (P.I.3) -Técnica de caraterização explícita verbal transitiva (personagem fala de outro em sua ausência e antes de sua primeira aparição). Vamos extrair um exemplo marginal e engraçado, que apresenta a caraterização física de um personagem secundário (Mac Shelley) baseada nos traços físicos que correspondem ao estereótipo geográfico atribuído aos ingleses. Tal exemplo ocorre ao final do primeiro ato, quando Samotracia entra em cena interrompendo a intimidade incômoda de Anselmo e María Eugenia. Entra Samotracia con la urgencia de una novedad. SAMOTRACIA.- ¡Están pasando los ingleses, Madame! ¡Van al Palacio de Gobierno! ¿No quiere verlos? MARÍA EUGENIA (Tras breve pausa).- Monseñor quiere verlos, Samotracia. Acompáñalo. (...) SAMOTRACIA.- ¡Son rojos, Monseñor… de puro blanco!150 (A.I.27) -Técnica de caraterização explícita verbal transitiva (personagem fala de outro em sua ausência e depois de sua primeira aparição). MARÍA EUGENIA. - É possível, monsenhor, que eu não tenha um lado. (Insiste) Me refiro ao que tenho vivido. Me educaram para que jamais pudesse envergonhar ninguém, e é isso o que eu tenho feito. Não envergonhar, pode ser uma profissão, não concorda? ALSEMO. - Não; “MARÍA EUGENIA: Vamos dizer que me apaixonam as incomodidades” 149 Tradução: “ANSELMO. - Ostenta vinte e nove anos sem sinais particulares dignos de ser mencionados. Jamais ficou de cama nem houve na sua vida motivo de doença vergonhosa ou tropical. Recebeu o doutorado em Advocacia 1º de setembro de 1860 e até o momento tem sido incapaz de se reproduzir. Não existindo nenhum impedimento que invalide a legitimidade desta proposição, me permito a recomendá-la em nome do Nosso Senhor.”. 150 Tradução: “Entra Samotracia com a urgência de uma novidade”. SAMOTRACIA. - Estão passando os ingleses, Madame! Vão para o Palácio de Governo! Não quer vê-los? MARÍA EUGENIA (Após breve pausa). - Monsenhor quer vê-los, Samotracia. Acompanhe-o. (...) SAMOTRACIA. - São vermelhos, Monsenhor… de tão brancos!” 129 O segmento mais propício da obra para explorar este tipo de técnica caraterizadora é, por questões temporais, o epílogo, já que acontece depois, a modo de conclusão. Meio ano transcorre desde o final dos atos até a segunda parte do epílogo. Durante o tempo latente desse meio ano, e como sua primeira designação como ministro, Arístides esteve em uma missão diplomática em Londres para negociar a entrega de Guayana à Inglaterra. A segunda parte do epílogo acontece no dia em que Aristides volta para casa. Samotracia e Rosamunda esperam por Arístides, que chega acompanhado do presidente. Enquanto as irmãs se arrumam, Eloy González, o assistente de Arístides, que já o tinha recebido no espaço ausente do porto, chega repentinamente e é interrogado por elas: Samotracia corre en dirección a la puerta de la entrada. SAMOTRACIA.- ¡Vienen! ¿Te habló el doctor Lander, Eloy González? ELOY.- Ni una palabra. La majestad lo invade. ROSAMUNDA.- ¿Los mismos cabellos? ELOY.- Más helénico. No olvidemos que departió con la princesa Victoria. 151 (E.II.2) 4.2 Tempo Estrutura Estrutura temporal de El americano ilustrado Cena temporal 1 + Nexo 1 + Cena temporal 2 + Nexo 2 + Cena temporal 3 + Nexo 3 + Cena temporal 4 + Nexo 4 + Cena temporal 5 + Nexo 5 + Cena temporal 6 As cenas temporais (de 1 à 6) correspondem aos tempos patentes da obra, contínuos internamente, embora independentes entre si, com exceção das cenas temporais 3 e 4, unidas por um nexo (3) vazio, sem temporalidade. Os nexos correspondem aos tempos latentes do drama. Para mais pistas, consideramos útil preencher o esquema com os dados temporais pertinentes que deem conta da estrutura da obra: Esquema detalhado da estrutura temporal 151 Tradução: “Samotracia corre em direção à porta da entrada. SAMOTRACIA. - Estão chegando! O doutor Lander falou você, Eloy González? ELOY. - Nem uma palavra. A majestade o invade. ROSAMUNDA. - Os mesmos cabelos? ELOY. - Mais helênico. Não esqueçamos que esteve com a princesa Vitória.” 130 Cena temporal 1: tarde de 1° de agosto de 1865 (P.I.). Nexo 1: duas semanas. Cena temporal 2: tarde do 16 de agosto de 1865 (P.II.). Nexo 2: quinze anos. Cena temporal 3: final da tarde de 17 de julho de 1880 (A.I.). Nexo 3: vazio (corresponde ao entreato). Cena temporal 4: começo da noite de 17 de julho de 1880 (A.II.). Nexo 4: um mês e meio. Cena temporal 5: finais de agosto de 1880. Nexo 5: meio ano Cena temporal 6: primeiro quadrimestre de 1881. Ordem El americano ilustrado respeita a organização cronológica das cenas temporais unidas por nexos e organizadas em contínua sucessividade. Basta subir os olhos e reler o esquema detalhado da estrutura temporal da obra com que fechamos a seção anterior, para provar a linearidade cronológica de cenas e nexos temporais do drama desde seu começo até seu final. Duração A duração é a soma de tempos patentes e latentes. No caso desta obra, a duração corresponde a, aproximadamente, dezesseis anos, que vão desde o começo do drama, em 1° de agosto de 1865, até o final deste, durante o verão de 1880. A unidade aristotélica temporal não é, obviamente, respeitada: a duração total do tempo interno da fábula encenada é maior que um dia. A concepção temporal – e espacial - desta obra é barroca (como Lope), dispersa e diversa (o oposto de El día que me quieras). As durações relativas internas das cenas temporais da obra são isocrônicas, ou seja, apresentam igualdade entre o tempo representante e o representado. Entretanto, o ritmo que mede as durações dos nexos entre cenas é claramente heterogêneo: entre PI y PII transcorrem duas semanas e entre PII e AI transcorrem quinze anos. Distância A brecha que separa no tempo a fábula do drama da escritura da obra é de 121 anos: o ano da estreia é 1986, enquanto que o tempo da fábula começa em 1865. A visão é, por tanto, retrospectiva: do século XX ao século XIX. A obra de Cabrujas - em sua posição intelectual, em sua compreensão de mundo – é marcada pelo peso da História. Cabrujas concebe o homem como um ser histórico. Tanto El americano ilustrado quanto El día que me quieras são prova disso. As duas obras são datáveis e nelas participam personagens históricos (Gardel e Guzmán Blanco). Tais obras apresentam 131 um traço em comum: ambas foram escritas na Venezuela democrática de 1979 e 1986, possuem argumentos ancorados na particular história da Venezuela, mas contextos ditatoriais: Antonio Guzmán Blanco governou de 1870 a 1888 e Juan Vicente Gómez de 1908 a 1935. Graus de (re)presentação. Tempo patente El americano ilustrado faz patente o passo do tempo (dezesseis anos são representados com enormes elipses, nesta obra). As seis grandes partes da obra correspondem a 6 momentos temporais diferentes, dois deles (Ato 1 e Ato 2), na realidade, quase contínuos. Seria útil fazer um simples esquema para entender a temporalidade encenada no drama: Esquema do tempo patente (encenado): 1865: Prólogo I: 1° de agosto, tarde. Prólogo II: 16 de agosto, tarde. 1880: Ato I: 7 de julho, tarde. Ato II: Mesmo dia, noite. Epílogo I: uma tarde no final de agosto. 1881: Epílogo II: uma tarde de inverno, entre janeiro e abril O tempo patente de El americano ilustrado é múltiplo, diverso, heterodoxo, barroco, disperso, diferentemente do tempo de El americano ilustrado, unificado em menos de um dia da fábula. A própria estrutura das grandes partes que compõe esta obra atende a um objetivo temporal: mostrar a ação concentrada de um dia específico, o aniversário de quarenta anos de Arístides (Atos 1 e 2) com seu antes (Prólogo 1 e 2) e seu depois (Epílogo 1 e 2), para fazer patente o fracasso como resultado da passagem, em vão, do tempo (crise sem mudança). Este tipo de divisão corresponde comumente à forma narrativa, não à dramática. Prólogo: em 1° de agosto de 1865, Arístides se compromete com María Eugenia (P.I); quinze dias depois, Anselmo faz uma proposta indecente à sua flamante cunhada. (P.II) Atos: Quinze anos depois do prólogo, em 17 de julho de 1880, Arístides completa quarenta anos. Durante essa tarde (A.I) e essa noite (A.II) Arístides aceita o cargo de Ministro de Relações Exteriores e Anselmo confessa seu amor por María Eugenia e, em seguida, renuncia ao seu cargo de bispo. Epílogo: Um mês depois do ocorrido, em agosto (E.I.), Anselmo prepara sua partida para Hamburgo. Meio ano depois, aproximadamente, no primeiro trimestre de 1881 (E.II), Arístides volta para casa, depois da missão diplomática de meses na Inglaterra. 132 Sabemos com tanta exatidão da temporalidade da obra porque, o dramaturgo ou os personagens a precisam: ARÍSTIDES (Consultando su reloj).- Falta un minuto. A mi madre se le rompieron las fuentes un domingo 17 de julio a las seis en punto de la tarde, hace cuarenta años. (...) (Pausa. Arístides observa su reloj.) Ya. (Constata) Acabo de cumplir cuarenta años.152 (A.I.6) Além das referências ao tempo patente, feitas pelos personagens em cada quadro, há um elemento que liga todos os tempos patentes desta obra: o amor impossível de Anselmo por María Eugenia, uma das formas do fracasso neste drama. Há, também, uma recorrente referência verbal ao primeiro tempo patente da obra (1° de agosto de 1865, dia em que Arístides e María Eugenia se comprometem) desde os outros tempos patentes posteriores. O personagem que estabelece as conexões entre o primeiro tempo patente e os demais é Anselmo que, apaixonado em segredo por sua cunhada durante anos, lembra, revive, reelabora o momento em que a conheceu (P.I), para pedir sua mão. Já no quadro seguinte (Prólogo II), que ocorre temporalmente apenas um par de semanas depois de P.I., Anselmo faz a primeira referência ao momento em que conheceu María Eugenia, preguntando diretamente a ela: ANSELMO.- Cuando nos vimos, hace quince días, en ese paseo, ¿qué pensó usted de mí? MARÍA EUGENIA (Desconcertada).- No entiendo. ANSELMO.- Cuando nos vimos, por primera vez, en ese paseo, hace quince días. ¿Qué pensó usted de mí?153 (P.II.4) A partir desta pergunta, podemos dizer que há não um amor à primeira vista da parte de Anselmo, mas um forte interesse à primeira vista: tão forte que pode quebrantar a lealdade fraternal. Depois de um quadro cênico e quinze anos (na fábula), Anselmo volta mencionar o tempo patente do P.I. que é o tempo de seu amor impossível, relembrado, confessado, revivido com estas palavras: ANSELMO (Al diablo).- He contado quince años de tu vida como un mucamo resignado y estoy confesando un amor que conoces. No he hecho otra cosa que arrepentirme, María Eugenia. Me sucedió en aquel paseo, cuando pedí tu mano. 154 (A.I.26) 152 Tradução: “ARÍSTIDES (Consultando seu relógio). - Falta um minuto. A bolsa da minha mãe estorou num domingo, 17 de julho, às seis em ponto da tarde, há quarenta anos. (...) (Pausa. Arístides observa seu relógio). Já. (Constata) Acabo de cumprir quarenta anos.”. 153 Tradução: “ANSELMO. - Quando nos vimos, há quinze dias, nesse passeio, o que você pensou de mim? MARÍA EUGENIA (Desconcertada). - Não entendo. ANSELMO. - Quando nos vimos, pela primeira vez, nesse passeio, faz quinze dias, o que você pensou de mim?” 154 Tradução: “ANSELMO (Ao diabo). - Tenho contado quinze anos da tua vida como un servo resignado e estou confessando um amor que você conhece. Não tenho feito outra coisa que me arrepender, María Eugenia. Aconteceu naquele passeio, quando pedi tua mão.”. 133 A terceira e mais relevante das menções ao tempo patente do passeio campestre de 1865, acontece na cena 25 do segundo ato, pouco antes do clímax da obra. Os irmãos Lander conversam sozinhos na casa de governo (os demais estão fora cena vendo a exibição de fogos de artifício). Anselmo resolve confessar o amor que guarda em segredo por sua cunhada, sem suspeitar que Arístides se adiantasse em tudo, até na menção (eufemística) daquele primeiro tempo patente: ANSELMO (Decidido, tras una pausa).- ¿Serías capaz de odiarme, Lander de Macedonia? ARÍSTIDES (Tras una pausa).- Dame tiempo. Sé lo que sucede, Teresa. Sé cuándo ocurrió y dónde ocurrió. Sé que vives como un renegado porque deseas a María Eugenia. (...) ANSELMO.- No lo dije. Hasta esta tarde no lo dije.155 (A.II.25) Tempo latente O tempo latente ou sugerido de El americano ilustrado é composto de todas as elipses não encenadas que preenchem os vazios invisíveis de quinze anos de fábula. Assim como fizemos com o tempo patente, um esquema pode ajudar a visualizar e compreender melhor os tempos sugeridos da obra (que, na realidade, são as ligações dos tempos patentes) Esquema do tempo latente (sugerido) Elipse 1 Duas semanas: entre PI (1° de agosto) e PII (16 de agosto de 1865). Elipse 2 Quinze anos: entre P.II (16 de agosto de 1865) e A.I-A. II (17 de julho de 1880) Elipse 3 Um mês e meio: entre A.II (17 de julho) e E.I (final de agosto de 1880) Elipse 4 Seis meses: entre E.I (final de agosto de 1880) e E.II (primeiro quadrimestre de 1881). No entanto, nem todas as mudanças de quadro correspondem a uma mudança temporal (entre o primeiro e o segundo ato, por exemplo, não há passagem do tempo), significando que o tempo latente da obra está formado por apenas quatro elipses. Além disso, não resulta relevante fazer um inventário de todas as referências que os personagens fazem sobre o tempo 155 Tradução: “ANSELMO (Decidido, depois de uma pausa). - Você seria capaz de me odiar? ARÍSTIDES (Após uma pausa). - Me dá tempo. Sei o que acontece, Teresa. Sei quando aconteceu e onde aconteceu. Sei que você vive como um renegado porque você deseja María Eugenia (...). ANSELMO. – Eu não disse isso. Até esta tarde, eu não disse isso.”. 134 (não representado ou sugerido) latente, mas apenas daquelas transcendentes. O tempo da fábula é tão imensamente maior que o tempo representado (16 anos contra 2 horas) que devemos reconhecer e delimitar apenas o tempo latente de verdadeira relevância para o argumento, a intriga e os personagens. Resgatamos apenas um par de momentos latentes localizados na segunda elipse, a mais longa, de quinze anos, que na fábula separam o prólogo dos atos; ambos são importantes para o desenvolvimento da trama e, respectivamente, para os irmãos Arístides e Anselmo. Em primeiro lugar: o tempo anterior ao aniversário de quarenta anos de Arístides, para sermos mais específicos, uma semana antes de 17 de julho de 1880. Anselmo e Guzmán Blanco mencionam dois acontecimentos desconexos entre si, mas que convergem na fortuna de Arístides, ambos aconteceram no tempo latente da semana anterior àquela. 1) Anselmo revela a seu irmão que faz parte de uma conspiração contra o presidente Guzmán, encabeçada pelo clandestino General Pío Fernández: “ANSELMO.- Vino a verme la semana pasada disfrazado prácticamente de Pimpinela Escarlata. Guzmán está caído.”156 (A.I.17). Anselmo, que é bispo, revela a seu irmão detalhes de seu encontro com o general, que convida, por meio de Anselmo, Arístides para participar da conspiração, em troca de um Ministério. Arístides rejeita a oferta com melancolia. 2) No começo do segundo ato, o presidente Guzmán conta a Arístides que pretende demitir o Ministro de Relações Exteriores (superior de Arístides) e lhe oferece o cargo: GUZMÁN (Activo).- Economicemos los minutos, Lander. No hay tiempo que perder. (...) Estoy considerando la posibilidad de destituir al actual Ministro de Relaciones Exteriores. Encuentro a Judas Tadeo Tello Uzcátegui demasiado rural y extrovertido para mi gusto. ¿Puede creerme si le digo, Lander, que el miércoles pasado ese pobre hombre ha tenido la osadía de regalarle al ministro consejero de Dinamarca, con motivo del día nacional de Copenhague, un trozo de pulmón de buey adobado por su madrina? Hubo una verdadera olimpíada de moscas en el consulado danés. (...) Digamos entonces, Lander, que ante esa catástrofe alveolar, estoy considerando la posibilidad de nombrarlo a usted en el cargo de Tello Uzcátegui. 157 (A.I.6) Arístides recebe a mesma oferta vinda de seu irmão, mas com uma grande diferença: Anselmo lhe ofereceu o ministério de um hipotético governo golpista e “antiguzmancista”, afiliado ao partido Conservador; enquanto que Guzmán lhe ofereceu o ministério do governo 156 Tradução: “Veio me ver na semana passada fantaseado praticamente de Pimpinela Escarlata. Guzmán está caído”. 157 Tradução: “GUZMÁN (Ativo).- Economizemos os minutos, Lander. Não temos tempo a perder. (...) Estou considerando a possibilidade de destituir o atual Ministro de Relações Exteriores. Encontro Judas Tadeo Tello Uzcátegui demasiado rural e extrovertido para o meu gosto. Pode acreditar se eu digo, Lander, que na quartafeira passada esse pobre homem teve a ousadia de dar de presente ao ministro conselheiro da Dinamarca, com motivo do dia nacional de Copenhague, um pedaço de pulmão de boi adubado por sua madrinha? Houve uma verdadeira olimpíada de moscas no consulado Danes. (...) Digamos então, Lander, que frente essa catástrofe alveolar, estou considerando a possibilidade de nomear você no cargo de Tello Uzcátegui.” 135 atual do país (um governo liberal). Apesar de receber a mesma oferta duas vezes, uma exclui definitivamente à outra: oposição ou oficialismo; qualquer escolha implica traição. Em segundo lugar, deve ser mencionado o tempo latente do adultério dos cunhados María Eugenia e Anselmo. Trata-se de um tempo sugerido muito impreciso, embora contido nos quinze anos que separam prólogo e atos. É mencionado indiretamente, de forma indefinida, como resulta coerente entre duas pessoas que compartilham intimidades suficientes. Logo antes do final do primeiro ato, durante uma conversa entre os cunhados, podemos extrair esta imprecisa referência: ANSELMO.- Ese día me nombraron obispo y tenía una falda roja, sangrienta, veteada. Llegaste de malva y por una ilusión de luces pensé que te recorría un embarazo. Fue una angustia que investigué al día siguiente en esta casa, preguntándome cómo hacía para renunciar a tanta intimidad. MARÍA EUGENIA.- Deseo olvidar, Monseñor.158 (A.I.26) Anselmo relembra, reelabora, revive o tempo latente do amor impossível, do breve adultério, do segredo guardado. Desde seu tempo presente e patente, se conecta a esse outro tempo invisível de seu desejo fracassado. María Eugenia apenas quer esquecer, sepultar no tempo passado. São duas atitudes frente ao tempo, duas formas de manejar a lembrança em comum. Tempo ausente Todo tempo da fábula de um drama que acontece antes e depois do tempo encenado compõe o tempo ausente. No caso de El americano ilustrado, o tempo ausente do drama é tudo o que ocorre antes de 1° de agosto de 1865 e depois do verão de 1881. Em outras palavras: o tempo da fábula acontece antes de subir as cortinas e despois de baixá-las, longe da nossa vista: o passado e o futuro de El americano ilustrado. O tempo encenado aparece frente aos olhos do receptor como consequência de um tempo passado real (verossimilmente real), sobre o qual os personagens dão pistas. Há, por exemplo, o tempo ausente, 62 anos antes do tempo encenado, em que Venezuela contrai uma dívida econômica com a Inglaterra (o resultado no tempo desse endividamento será a perda de Guayana) ou o tempo ausente da infância dos irmãos Lander. Esse é um recurso dramatúrgico que contribui para criar o efeito da verossimilhança derivado, entre outras coisas, das relações temporais do drama: os irmãos Lander, ao mencionar sua infância, não só projetam 158 Tradução: “ANSELMO. - Nesse dia me nomearam bispo e tinha uma saia vermelha, sangrenta, frisada. Você chegou de malva e por uma ilusões de luzes achei que te percorria uma gravidez. No dia seguinte, me senti angustiado nesta casa e me perguntava como fazer para renuncia a tanta intimidade. MARÍA EUGENIA.- Desejo esquecer, Monsenhor.” 136 verossimilhança, mas também criam um efeito de familiaridade, de irmandade, de passado comum, de infância compartilhada. ROSAMUNDA (Toma a Anselmo del brazo).- ¿Cómo era aquella canción de mamá? (Recuerda) Blanca flor de un día, que no volverá… y aquel piano sin fa sostenido, trunco, como de agua y bemol… ¿recuerdas, Anselmo? ANSELMO (Sin énfasis).- Nunca recuerdo nada, Rosamunda.159 (A.I.) A afirmação de Anselmo é absolutamente falsa: mente ao dizer que não se lembra de nada, embora sempre mencione algo específico sobre seu passado (o dia em que se apaixonou de María Eugenia). Apenas Anselmo não lembra -ou não lhe interessa lembrar- de sua infância, como fazem seus irmãos. Já Arístides, na segunda cena da primeira parte do prólogo, recorre às lembranças de sua infância compartilhada como recurso para comover a vontade de seu irmão: “ARÍSTIDES.- Piensa en nuestra infancia cuando violabas gallinas disfrazado de Ivanhoe. ¿No era yo tu escudero?”160 (P.I.2) A lembrança é o processo mental que ata passado e presente. Podemos observar como transcorrer do tempo altera inclusive a matéria de suas lembranças. Na citação anterior, retirada do prólogo, Arístides relembra sua infância, desde seus vinte e cinco anos, brincalhão e vigoroso; entretanto, com passar do tempo, no segundo ato, quando cumpre quarenta anos, Arístides volta lembrar sua infância junto a seu irmão, mas o tom não é de brincadeira, senão de derrota, de melancólico fracasso: ARÍSTIDES (Con gran dolor).- Jugábamos en la hacienda, ¿recuerdas, Monseñor? Treinta años atrás… rubios, quien sabe si plateados como la rosa plateada de Viena. Y había esa cuesta de naranjos que tú llamabas Getsemaní, por ganas de inventar. Entonces no hacíamos más que completar el orden de una familia… pero, los viernes, casi siempre a las nueve de esa fantástica luna, jugábamos a Cristo y al centurión que lo arrestaba. (...) Entonces era fácil. Pero hoy no. Hoy no, Lander… hoy no es fácil… hoy me tropecé conmigo mismo en un papel estúpido, rigurosamente doblado, que le hice leer a María Eugenia. Y si volviéramos a Getsemaní yo te diría… no, no soy Cristo, no soy El Hijo del Hombre, no soy El Rey de los Judíos, no hice milagros, no multipliqué peces, no resucité a Lázaro… 161 (A.II.24) 159 Tradução: “ROSAMUNDA (Toma a Anselmo pelo braço). - Como era aquela música que a mamãe cantava? (Recorda) Branca flor de um dia, que não voltará… e aquele piano sem fá sustentado, trunco, como de água e bemol… Lembra, Anselmo?” ANSELMO (sem ênfase).- Nunca me lembro de nada, Rosamunda. ” 160 Tradução: “ARÍSTIDES.- Pensa na nossa infância, quando você estuprava galinhas pensando em Ivanhoe. Não era eu teu escudeiro?” 161 Tradução: “ARÍSTIDES (Com grande dor).- Brincávamos na fazenda, você se lembra, Monsenhor? Trinta anos atrás… loiros, quem sabe se prateados como a rosa prateada de Viena. E tinha aquela ladeira de laranjeiras que você chamava Getsemaní, por vontade de inventar. Então não fazíamos mais do que completar a ordem de uma família… mas, nas sextas-feiras, quase sempre às nove dessa fantástica lua, brincávamos de Cristo e o centurião que o arrestava. (...) Então era fácil. Mas hoje não. Hoje não, Lander… hoje não é fácil… hoje tropecei comigo mesmo num papel estúpido, rigorosamente dobrado, que fiz ler a María Eugenia. E se voltássemos a Getsemaní eu te diria… não, não sou Cristo, não sou O Filho do Homem, não sou O Rei dos Judeus, não fiz milagres, não multipliquei peixes, não ressuscitei Lázaro… 137 O sujeito transformado (envilecido) pelo fracasso, que é Arístides, altera a percepção do objeto de lembrança que é a sua infância, tornando-o triste como seu próprio acinzentado ser. Tempo e significado A passagem do tempo significa fracasso em El americano ilustrado. Por isso, os dois atos da obra, que são suas partes centrais, transcorrem durante o dia em que Arístides Lander cumpre quarenta anos, uma idade de autorreflexão, de autoexame à que Arístides chega derrotado. A infelicidade de Arístides e seu sentido de derrota têm um motivo temporal concreto: o dia de seu quadragésimo aniversário marca o fim de um prazo auto imposto para ler a carta que prova sua derrota contra o tempo. MARÍA EUGENIA (Adivinando).- Eras un niño y la escribiste (...) ARÍSTIDES.- La escribí y me la dirigí a mí mismo, un día como hoy, hace quince años. (...) Lee. En voz alta. MARÍA EUGENIA.- “Querido: hoy cumples veinticinco años (...) te concedes a ti mismo, el plazo de quince años… ARÍSTIDES.- debe haber una tachadura donde dice quince años… MARÍA EUGENIA.- Si la hay… ARÍSTIDES.- Originalmente escribí diez y después sentí miedo. MARÍA EUGENIA (Encuentra).- “Te concedes a ti mismo el plazo de quince años para llegar a ser el Jefe Supremo del Partido Conservador (...), para modificar la Constitución Nacional (...) para alcanzar el título de General (...) Finalizados estos compromisos redactarás al cumplirse el plazo anterior… ARÍSTIDES.- Es decir, hoy… MARÍA EUGENIA.- ...una nueva recopilación de juramentos que duplique en grandeza a los ya mencionados. De lo contrario y sin consideraciones de ningún tipo, procederás a suicidarte. Arístides se lleva la pistola a la cabeza y oprime el gatillo. El arma no está cargada.162 (A.I.11) A pistola é uma lembrança do avô Justo Lander, herói nacional. Mais que símbolo de um passado grandioso, carta e pistola, são símbolos do tempo. 162 Tradução: “MARÍA EUGENIA (Adivinhando).- Você era uma criança e a escreveu (...) ARÍSTIDES.- A escrevi e a dirigi a mim próprio, num dia como hoje, há quinze anos. (...) Leia. Em voz alta. MARÍA EUGENIA.- “Querido: hoje você faz vinte e cinco anos (...) você concede a você próprio, o prazo de quinze anos… ARÍSTIDES.- deve haver uma rasura onde diz quinze anos… MARÍA EUGENIA.- Tem sim… ARÍSTIDES.- Originalmente escrevi dez e depois senti medo. MARÍA EUGENIA (contra).- “você concede a você próprio o prazo de quinze anos para chegar ser o Chefe Supremo do Partido Conservador (...), para modificar a Constituição Nacional (...) para alcançar o título de General (...) Finalizados estes compromissos você redatará ao se cumprir o prazo anterior… ARÍSTIDES.- Quer dizer, hoje… MARÍA EUGENIA.- ...uma nova recopilação de juramentos que duplique em grandeza os já mencionados. Caso contrário e sem considerações de nenhum tipo, você irá se suicidar. Arístides leva a pistola na sua cabeça e aperta o gatilho. A arma não está carregada.” 138 4.3 Espaço Estrutura espacial A deste drama é uma estrutura de espaços múltiplos e sucessivos: múltiplos porque a ação dramática se desenvolve em lugares diferentes (apenas um se repete): cada espaço é uma totalidade e uma unidade, pelo menos no texto. A estrutura espacial do drama está mais perto da do teatro isabetano inglês ou do teatro espanhol do Século de Ouro que do teatro grego ou do clássico francês. Os diferentes espaços correspondem, quase totalmente, à divisão estrutural das grandes partes da obra: para seis partes, há cinco espaços dramáticos diferentes, como se especifica a continuação: Espaços -Paragem campestre (P.I.) -Capela (P.II.) -Pátio da casa de Arístides (A.I) -Casa de governo (A.II.) -Palácio arcebispal (E.I.) -Pátio da casa de Arístides (E.II) García Barrientos (2007) explica que na estrutura espacial dos dramas sempre subjaz um “valor” espacial, que é significativo e cuja identificação é mais importante do que a mera descrição dos mesmos. Os lugares esquematizados acima respondem a um plano do autor e se relacionam tanto com o tempo quanto com os personagens e temas do drama. Tratemos de precisar algumas destas relações: Arístides e Anselmo são os protagonistas da obra e do desenvolvimento de seus conflitos depende a estruturação espacial que Cabrujas ideou. Anselmo é arcebispo, por isso dois dos lugares são recintos religiosos: a capela da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (P.II) e um salão do Palácio arcebispal (E.I.). Arístides é funcionário de governo e de sua nuclearidade como personagem - que conecta quase toda a totalidade do cenário - deriva a escolha dos dois lugares (um privado e o outro público) onde transcorre a maior parte do drama: o pátio da sua casa (A.I y E.II) e o Salão do sol de Junín da casa de governo (A.II). A paragem campestre da primeira parte do Prólogo, além de ser o primeiro lugar do drama conhecido por público e leitores, cumpre a função de nos apresentar ambos os 139 personagens protagonistas em harmonia e de levantar os fundamentos de um dos conflitos da obra: o amor, à primeira vista, do padre Anselmo por sua futura cunhada, María Eugenia. De modo geral pode-se dizer que há três eixos temáticos no drama que influenciam a estrutura espacial: o amor, a religião e o poder. O amor implica o espaço da paragem campestre (P.I) onde Anselmo pede, em nome de Arístides, a mão de María Eugenia (triângulo amoroso); o poder implica o espaço da casa de governo (A.II) onde Arístides é tentado com o oferecimento de um cargo político; a religião, por sua vez, implica os espaços da capela (P.II.) e o palácio arcebispal (E.I.) onde Anselmo se revolta e depois abandona sua fé e seu ofício. O único lugar que se repete é o pátio da casa de Arístides (A.I y E.II), que denuncia o passar do tempo e a decadência de Arístides. O passar do tempo reclama, também, a Anselmo uma mudança de espaços, só que inversa: ele ascende da capela, onde, aos 26 anos, foi padre (P.II); ao palácio arcebispal, onde, dezesseis anos depois, é bispo. Signos do espaço El americano ilustrado apresenta a conjunção de vários recursos dos que se vale a representação, para significar teatralmente os lugares da ação no drama: encontramos signos cenográficos, verbais, corporais e sonoros intercalados ao longo do desenvolvimento da obra. Vamos segmentá-los. Signos do espaço cenográfico Comecemos por observar os primeiros signos cenográficos que criam o espaço, quer dizer, as descrições que o autor faz de seus cenários, no começo das grandes partes da obra. Lacônico e preciso, Cabrujas abre o drama “Un paraje campestre y amable en las cercanías de un arroyo.”163 (P.I) Nada se especifica sobre a representação do arroio, que intuímos sonoro ou simplesmente tácito e ausente, destinado apenas ao leitor e não à sala, talvez aos atores. O arroio poderia, é verdade, ser representado sonoramente, com um áudio líquido como efeito sonoro de fundo, mas isto não passa de uma dedução sem base textual. Se contrastarmos a descrição deste cenário com a do Segundo ato, muito mais extensa e detalhada, se evidencia com maior clareza a dimensão poética (não pragmática) contida em sua elaboração, à qual implica menos o projeto de um cenário físico empírico que o projeto da recriação de um ambiente, neste caso, o do recinto presidencial de Guzmán Blanco, afrancesado e classicista rotundo: 163 Tradução: “Uma paragem amável e campestre nas proximidades de um arroio” 140 Un amplio salón en la casa de gobierno. Hay minervas y gracias, orfeos y amorcillos, alfombras, zaratustras y luz de pergamino. Hay jerarquías de terciopelo y melpomenes culturales. Una clepsidra masónica filosofa en el centro de una mesa ovalada y de un momento a otro podrían aparecer la Patria y la Ciencia sin causar mayor asombro. 164(A.II) A única referência explícita aos signos luminosos, na totalidade de marcações da obra, está contida no fragmento anterior (luz de pergaminho), um apontamento críptico e estranho que pouco ou nada diz para o técnico de iluminação ou ao diretor sem sensibilidade poética. Se fosse nossa montagem, aplicaríamos una luminosidade tênue, amarelada e opaca, com filtro leitoso. O terceiro signo de caráter cenográfico que, junto ao cenário e à iluminação, ajuda criar o espaço são os acessórios. Alguns dos acessórios que acrescentam significado ao espaço são: a Talha de Santo Antônio de Pádua (sociedade católica) e as muitas taças e garrafas de champanhe (classe, dinheiro, poder) servidas na casa de governo do esbanjador Guzmán. Dois acessórios têm capital importância para o desenrolar da ação e sua significação simbólica: a carta de Arístides e a pistola de Justo Lander. Ao redor da carta gira toda a ação da primeira metade do Primeiro ato e dela dependem tanto as relações com o tempo (passadopresente) quanto a posta em cena do fracasso como motivo estruturante. O fracasso que se desprende do conteúdo da carta está complementado e ilustrado com o outro acessório significativo: a pistola de Justo Lander, glorioso antepassado dos irmãos Lander, herói pátrio cuja relativa grandiosidade se opõe à pequeneza absoluta que Arístides percebe em sua própria vida. Cabrujas utiliza esta pistola, que aparece pela primeira vez no Primeiro ato, para fechar simbolicamente este drama no final da obra (E.II.). Signos do espaço verbal Os espaços contíguos -por tanto invisíveis- são criados principalmente através de signos linguísticos contidos nos próprios diálogos dos personagens. Eles configuram com palavras o que García Barrientos chama “decorado verbal” (cenário verbal), fazendo uso de uma das técnicas mais genuinamente teatrais: construir com a linguagem e mediante a imaginação o que não está fisicamente à vista. Na televisão e no cinema os cenários devem ser representados, mas no teatro basta nomeá-los. Na segunda parte do Prólogo, por exemplo, quando María Eugenia visita Anselmo na capela, a forma elusiva usada pelo padre para 164 Tradução: “Um amplo salão na casa de governo. Há minervas e graças, orfeus e querubins, zaratustras e luz de pergaminho. Há hierarquias de veludo e melpomenes culturais. Uma clepsidra maçônica filosofa no centro de uma mesa ovalada e de uma hora para outra poderiam aparecer a Pátria e a Ciência sem causar maior espanto.” 141 ganhar um pouco de privacidade e se desfazer da presença do sacristão, ativa o espaço latente de um salão contíguo e encenado: “ANSELMO (A Damián).- Limpia las heridas de San Sebastián, Damián, y revisa las vinajeras. Esmérate.”165 (E.II.) Damián sai de cena imediatamente e tanto os espectadores quanto o leitor ficam providos de elementos para imaginar para onde o personagem vai. O começo do segundo ato inverte este procedimento: os diálogos indicam de onde vieram os personagens. No meio do salão da casa de governo, único espaço cênico presente, vemos Arístides e Eloy consternados e, através de seus diálogos, descobrimos que tal salão pertence a um recinto muito maior: “ARÍSTIDES.- (...) de salón en salón vamos a llegar al lavandero.”166 (A.I.) Por meio da palavra se cria o espaço latente. Compreendemos que a procura pelo presidente marca um percurso longo e esgotador (o ator deve usar uma entonação acorde), já que ambos os personagens entram em várias salas sem sucesso. Esta é apenas a primeira de várias referências aos espaços latentes da casa de governo, cujos arredores são constantemente criados pela linguagem. As menções são quase sempre pitorescas e risíveis: se fala de bichos selvagens (tartarugas, araras, bichos-preguiça) que em nada remetem às convenções e expectativas comuns do que deveriam ser os arredores de uma casa de governo (parece um zoológico). Esta particularidade não é arbitrária: Cabrujas persegue dois objetivos: o primeiro consiste em rarefazer a figura do chefe de estado, ao passo que o segundo visa criar o espaço (descontextualizado e ironizado) que ocupa a delegação inglesa, um espaço muito próximo, que luta para entrar em cena e cujo encontro é postergado por Guzmán reiteradamente. Rajah-Haji, o assistente pessoal do presidente, é a ponte entre o espaço encenado e o espaço latente da delegação inglesa. Rajah-Haji entra em cena diversas vezes portando a mensagem da delegação, impaciente para ser atendida. Entretanto, o momento de recebê-los é postergado por ordem do presidente: “GUZMÁN.Muéstrale a la delegación británica los pavorreales del patio y si se fastidian, explícales algo sobre las tortugas de la pileta”167. A tensão entre os dois espaços (o encenado e o latente) se intensifica a cada entrada de Rajah-Haji, com cada insistência e também com cada resposta, com cada posposição do presidente: GUZMÁN.- Llévalos al Salón Ayacucho y que firmen el libro de oro. 165 Tradução: “ANSELMO (A Damián).- Limpa as feridas de São Sebastião, Damián, e revisa as galhetas. Se esforce” 166 Tradução: “ANSELMO.- (...) de salão em salão vamos chegar ao lavadeiro” 167 Tradução: “GUZMÁN.- Mostre a delegação britânica os pavões do pátio e se eles se chatearem, fale algo sobre as tartarugas da piscina”. 142 RAJAH HAJI.- Se comportan de una manera impaciente, sobre todo porque una guacamaya del patio le mordió un dedo al señor Mac Shelley. GUZMÁN.- Al diablo. Hazlos pasar.168 (A.II) Cabrujas, além da palavra, se vale do tom de diálogos, para significar o espaço. Embora a entonação seja um aspecto na interpretação dos atores e da direção cênica, que a sala distingue perfeitamente durante a representação da obra, o texto dramático não está isento dela: as entonações podem ser percebidas também pelo leitor a partir do contexto dos parlamentos, dos signos ortográficos e das marcações do autor. Guzmán e Arístides chamam constantemente seus serventes, Rajah-Haji e Samotracia e, para isso, usam o tom alto, o que permite considerar o espaço latente fora de cena. Como dissemos, o tom está indicado de variadas formas. Conseguimos, a partir da simples marcação do autor, descrever a ação de Guzmán quando solicita o seu assistente: “GUZMÁN (llama).- Rajah-Haji.”169 (A.II), após o qual “Rajah-Haji acude”170 no momento. Sabemos que Rajah-Haji está entretendo os ingleses nos arredores do salão onde Arístides e o presidente conversam. Na marcação “llama” está contida uma possível entonação que, para que resulte verossímil e seja supostamente ouvida por um Rajah-Haji ausente na plateia, deve se elevar além dos limites do cenário. Quando Arístides, em repetidas ocasiões ao longo de todo o Primeiro ato, chama sua servente, o autor reforça a marcação (chama) com signos exclamativos (¡!) que denunciam uma entonação vigorosa: “ANSELMO (llama).- ¡Samotracia! ¡Samotracia López!” (A.I.). O mesmo acontece quando o sacristão Damián, em resposta ao som da campainha que toca com insistência no exterior da capela (espaço patente), grita para calmar os ânimos de quem o chama. Em seu grito há um tom que a indicação de Cabrujas descreve com perfeição: “DAMIÁN (Portero).¡Va el clero...! ¡Viva el clero!”171 (P.II.). O mesmo método (criação do espaço cênico latente mediante a entonação) é usado por Cabrujas no final do Segundo ato, logo antes do clímax da progressão dramática. Os dois irmãos Lander discutem na plateia, enquanto que fora, no pátio de honra, o resto dos personagens assistem a exibição dos fogos de artifício; mas, de repente, Anselmo, muito alterado, chama a todos. É um chamado para trazê-los a cena, para fazê-los entrar, isto é, fazê-los sair do fora latente para o dentro patente, testemunhando sua renúncia: Anselmo comienza a despojarse de su traje de obispo. 168 Tradução: “GUZMÁN.- Leve-os ao Salão Ayacucho e que assinem o livro de ouro. RAJAH-HAJI.- Se comportam de uma maneira impaciente, sobretudo, porque uma arara do pátio mordeu um dedo do senhor Mac Shelley. GUZMÁN.- Mande-os para o inferno. 169 Tradução: “GUZMÁN (chama).- Rajah-Haji.” Tradução: “Rajah-Haji atende” 171 Tradução: DAMIÁN.- “Vai o clero! Viva o clero!” 170 143 ANSELMO (Grita).- ¡Damas y caballeros! ¡Rosamunda! ¡Señora de Lander! ¡Representantes superiores e imperiales! ¡La Santa Iglesia nativa invita a un espectáculo reconfortante y piadoso!172 (A.II) A potência e a decisão no tom do grito de Anselmo atraem o resto dos personagens de volta ao cenário. No entanto, não queremos encerrar esta parte sem, antes, mencionar outra entonação singular. Em parlamentos anteriores, durante o mesmo diálogo que provocou a raiva de Anselmo, encontramos um caso (o único) de entonação exclamativa que une espaço patente e latente, porém em sentido contrário: de fora para dentro. A irmã de Arístides, no pátio de honra (espaço latente) e durante a exibição dos fogos de artifício, interrompe a discussão entre os irmãos com um chamado que não deixa de ter algo de onírico: ROSAMUNDA (A lo lejos entre murmullos y secas explosiones).- ¡Rosa plateada de Viena! ¡Lirio encarnado del Jordán! ¿Dónde estás, Arístides de Macedonia? ANSELMO (Después de una pausa).- ¿Dónde estás, Arístides de Macedonia?173 (A.II) Signos do espaço corporal O corpo do personagem ocupa um lugar no espaço do texto assim como o corpo do ator ocupa um lugar no espaço da plateia. Ambos se deslocam em seus espaços, se movimentam de certo jeito e, além disso, seus próprios corpos tem uma forma singular. Das combinações destes elementos brotam significações espaciais. Qualquer marcação que descreva o deslocamento de um personagem interfere no espaço. Quando no Primeiro ato Cabrujas diz que “Arístides regresa al sillón tutelar”174 (A.I.) implica, em primeiro lugar, que Arístides previamente tinha estado sentado e tinha se levantado de dita poltrona (não há marcações prévias que indique tal fato), e, em segundo lugar, a posição corporal de Arístides, (está em pé), e em terceiro lugar, uma certa distância espacial de Arístides em relação à poltrona (pelo uso do verbo regressar). Observemos os signos do espaço corporal que são mais dinâmicos. García Barrientos (2007) chama tais signos de expressão, que mostram no corpo do personagem a ação mímica, gestual ou de movimento. No teatro espanhol do Século de Ouro as didascálias referentes ao espaço corporal eram muito incomuns, ficavam geralmente excluídas do texto dramático (com a exceção das menções contidas nos diálogos). O mesmo acontece em grande parte do teatro contemporâneo: as expressões e a gestualidade dos personagens devem ser intuídas, emergem 172 Tradução: “Anselmo começa a se despojar de seu traje de bispo. ANSELMO (Grita).- ”Damas e cavaleiros! Rosamunda! Senhora de Lander! Representantes superiores e imperiais! A Santa Igreja nativa convida a um espetáculo reconfortante e piedoso!” 173 Tradução: "ROSAMUNDA (Ao longe entre murmurios e secas explosões).- Rosa prateada de Viena! Lírio encarnado do Jordão! Onde você está, Arístides da Macedônia? ANSELMO (Depois de uma pausa).- Onde você está, Arístides da Macedônia" 174 Tradução: “Arístides volta na poltrona tutelar” 144 do contexto dramático e correspondem aos âmbitos da direção cênica e da interpretação dos atores que o dramaturgo elude com total consciência. Cabrujas, ao contrário, as plasma em grande quantidade e com muita precisão. Como Brecht, Shakespeare, Lope, Molière e Calderón, que são algumas das influências dramáticas mais importantes de Cabrujas, não abundam neste tipo de didascálias, nós atribuímos o uso abundante (quase hipertrófico) de signos do espaço corporal, nas obras de Cabrujas, ao resultado de sua experiência como ator e diretor. Para ilustrar esta singularidade dramática compilamos alguns fragmentos com as didascálias corporais da primeira parte do Prólogo, que é a menor de todas as partes da obra. Esta seleção de fragmentos, da que excluímos todos os diálogos, permite perceber como faceta de Cabrujas-diretor invade o texto; é tão detalhado nas indicações que podemos seguir o curso dos acontecimentos sem a necessidade de diálogos: Marx y Engels, vestidos de Marx y Engels, reposan un largo tedio. Marx bebe un generoso trago de vino portugués. Engels decide una siesta y cierra los ojos. Marx retoma una deleitosa lectura del Popol-Vuh. Al paraje campestre y amable ingresan Arístides Lander y su hermano Anselmo. Arístides señala una acacia convenida. Arístides y Anselmo se sientan a la sombra de la frondosa acacia. MARX (A Arístides y Anselmo).ARÍSTIDES (Cortés a Marx).MARX (Insiste risueño).- … (Alzando la voz).- … (Imperturbable).ANSELMO (A Marx).- en su grito emplea un tono que la acotación de Cabrujas describe a la perfección MARX (Asiente).Marx saluda con cierta efusividad agradecido y de inmediato retoma la lectura del Popol-Vuh. Ingresan al escenario, naturalistas, María Eugenia y la señora de Lozada. Anselmo obedece e interrumpe el leve paso de María Eugenia y la tozudez de la señora Lozada. ANSELMO.- (Se vuelve hacia el rezagado e impaciente Arístides) Arístides besa la mano de la mujer de Lozada, Marx suspende la lectura incaica y destapa esperanzado un frasco repleto de col agria. Anselmo describe una somera bendición. María Eugenia y la mujer de Lozada se alejan. Salen Arístides y Anselmo. Pausa. Engels despierta. MARX (Levantándose).- (Canturrea mientras guarda el tarro de col agria y el Popol-Vuh, en una cesta campestre) Marx y Engels se alejan con la canción.175 (P.I) 175 Tradução: “Marx e Engels, vestidos de Marx e Engels, repousam um longo tédio. Marx bebe um generoso gole de vinho português. Engels decide cochilar e fecha os olhos. Marx retoma uma deleitável leitura do PopolVuh. À paragem campestre e amável, ingressam Arístides Lander e seu irmão Anselmo. Arístides aponta para uma acácia combinada. Arístides e Anselmo sentam à sombra da frondosa acácia. MARX (A Arístides e Anselmo).ARÍSTIDES (Cortês, a Marx).MARX (Insiste risonho).- … (Alçando a voz).- … (Imperturbável).ANSELMO (A Marx).MARX (Assente).Marx saúda com certa efusividade e agradecido e de imediato retoma a leitura do Popol-Vuh. Ingressam no cenário, naturalistas, María Eugenia e a senhora de Lozada. Anselmo obedece e interrompe o leve passo de María Eugenia e a teimosia da senhora de Lozada. 145 Salta de imediato aos olhos a concepção global da obra não apenas como um texto dialogal senão como uma espécie de partitura orquestrada dos diferentes elementos da representação cênica, incluindo as expressões e formas de interpretação. Cabrujas é tão diretor que, sem perceber, trai a verossimilhança de sua própria obra de teatro realista quando, como fica plasmado no fragmento anterior, em lugar de fazer com que María Eugenia e a senhora de Lozada entrem na paragem amável e campestre as faz ingressar “no cenário”. O autor caracteriza os personagens por seu desempenho no espaço: não à toa o fato dele mostrar Marx e Engels repousando, comendo, lendo, cantando e dormindo. María Eugenia e sua mãe caminham, mas é no modo com que o autor as faz caminhar que se encontram suas feições: María Eugenia o faz “com passo leve” enquanto sua mãe “com teimosia”. A descrição da gestualidade na estranha conversa entre Marx e os irmãos Lander que não se entendem porque Marx só fala alemão e eles espanhol!- é bastante detalhada. O autor faz com que Marx (que no fim das contas fala uma língua diferente não só em relação aos personagens, mas também em relação ao público) gesticule muito: “MARX (Insiste risonho).- … (Alçando a voz) … (Imperturbável) ... (Assente). Marx saúda com certa efusividade, agradecido e de imediato retoma a leitura do Popol-Vuh.” As indicações são tão precisas que podemos entender a localização no espaço dos seis personagens e seria possível desenhar, inclusive, o percurso de seus movimentos. Marx e Engels, num lado, repousam deitados. Arístides e Anselmo entram, apontam para uma acácia e sentam em sua sombra, perto de Engels e de Marx. María Eugenia e a senhora de Lozada ingressam no cenário e os irmãos Lander as abordam, cortando seu passo. Conversam e María Eugenia e sua mãe se afastam e saem de cena. Pouco depois, os irmãos Lander também saem de cena. Marx e Engels recolhem seu piquenique e se afastam cantando. Tudo está descrito quase narrativamente, ação por ação. Cabrujas optou por um uso realista do espaço, de modo que indumentária dos personagens e dos atores seja compatível à da moda de finais do século XIX. No fragmento anterior podemos ler uma indicação que descreve “Marx y Engels, vestidos de Marx y Engels” (P.I) A imagem de ambos, com relação à moda, é bastante semelhante, para não dizer ANSELMO.- (Se vira para o ignorado e impaciente Arístides) Arístides beija a mão da mulher de Lozada, Marx suspende a leitura incaica e destampa esperançando um frasco repleto de chucrute. Anselmo descreve uma superficial benção. María Eugenia e a mulher de Lozada se afastam. Saem Arístides e Anselmo. Pausa. Engels acorda. MARX (Se levantando).- (Cantarola enquanto guarda o pote de chucrute e o Popol-Vuh numa cesta campestre) Marx y Engels se afastam com a música.” 146 idênticas: terno clássico, negro ou cinza, composto do paletó, da calça, da camisa branca com gravata-borboleta e sapatos negros. Engels aparece em algumas imagens usando por cima do terno um sobretudo. Não usam chapéu, luvas ou bengala, como ditava a moda romântica luxuosa, mas sim bigodes e barbas grandes, como também era costume. Engels têm o cabelo curto, penteado para trás; Marx, ao contrário, tem o cabelo mais comprido e enrolado (que se confunde com sua barba) . A descrição destes personagens evidencia a típica aparência burguesa vitoriana. Em seguida o autor passa a descrever, muito brevemente, María Eugenia e sua mãe, com apenas um adjetivo: “naturalistas”. Isto significa (naturalistas em relação ao contexto histórico e geográfico) que ambas respeitam a indumentária convencional de umas damas da Venezuela republicana do século XIX: as imaginamos com vestidos longos estilizados com aros a partir das da cintura em armações que descem até o chão (os pés não aparecem), as mangas um pouco alongadas e, possivelmente, com um chapéu sobre o cabelo preso. O caráter da aparência é determinante na configuração do conflito que Anselmo tem consigo mesmo: o figurino de clérigo e os hábitos de monsenhor, que o definem e que definem o que ele faz, se convertem e uma carga para o personagem. O figurino é essencial no clímax da progressão dramática: Anselmo arranca seus hábitos e os joga no chão. O hábito implica um espaço ou conjunto de espaços (a igreja, a capela, o palácio arcebispal) assim como uma vocação e uma autoridade. Vemos como, já no primeiro ato, Anselmo diz desejar tirar a batina. No Segundo ato o faz: ANSELMO.- ¡El representante de Su Santidad el Papa de Roma quiere pronunciar un último discurso tan pronto logre desembarazarse de esta basura! (Continua despojándose de las distintas piezas del traje) (...) Nunca aprendí el nombre de estas malditas telas, pero cada una de ellas, según te explican en el seminario, casi siempre a las dos y media de la tarde, cuando te atrapan las ensoñaciones, tiene un significado normalmente doloroso, normalmente responsable. (...) Digamos entonces que las deposito aquí, en este ámbito de la patria y la presencia de tanto fraude incluido, desde luego, el orador. (...) (Arroja a los pies de Mac Shelley el crucifijo de León X) (...) En cuanto al gorro, lamento haber olvidado su nombre original entre tantas cosas que olvidé, pero declaro que hubo una cierta ambición de mi vida depositada en esta frágil modestia. Ahora, espectáculo inefable, señores, oportunidad histórica e irrepetible, me permito renunciar a ella y al título de eminencia que adornó mi cabeza… (...) Lo arroja a los pies de María Eugenia. (...) como así mismo a la refrescante sotana, siempre estival, calurosa en el pecho y según tradición popular o murmullo de esquina, un tanto ninfesca a medida que desciende y resalta las caderas. (...) Se despoja de la sotana. (...) (En dignidad de pantalón y simple camisa).- ¡Concluimos, señor presidente! (Sonríe)176 176 Tradução: “ANSELMO. - O representante de Sua Santidade o Papa de Roma quer pronunciar um último discurso para se livrar deste lixo! (Continua a se despojar das diferentes peças do traje) (...) Nunca aprendi o nome destas malditas telas, mas cada uma delas, segundo te explicam no seminário, quase sempre às duas e meia da tarde, quando nos sobrevém os sonhos , tem um significado normalmente doloroso, normalmente responsável. (...) Digamos então que as deposito aqui, neste âmbito da pátria e na presença de tanto fraude incluindo, é claro, 147 Trata-se de um verdadeiro strip-tease em dimensão real e simbólica. Anselmo se esvazia não só de sua indumentária, mas também de sua história, de seu cargo, de sua ambição e de seu próprio caminho andado. É um despojo liberador. O figurino caracteriza o personagem; portanto, quando Anselmo se livrou dele, conseguiu uma oportunidade de mudar, uma chance de poder ser outro. Antes de seguir rumo a La Guaira, onde embarcaria para Hamburgo, vemos Anselmo, pela última vez, vestido de civil e com flamantes bigodes. O desejo de usar bigodes, de ser esse novo homem que poderia usá-los, longe da igreja, já havido sido posto em palavras na boca do mesmo Anselmo no Primeiro ato, quando se referiu a eles da mesma forma que o autor usa para descrevê-lo nas didascálias: “bigotes de veguero suramericano”177. Veguero é quem cultiva a “vega”, o tabaco. Quer dizer, bigodes de vaqueiro, de homem rude. (Nota anedótica: Cabrujas usou bigodes até sua morte) Signos do espaço sonoro Tanto a música quanto os efeitos de som criam também um espaço sonoro. Cabrujas, que tem usado até agora com exaustividade todos os tipos de signos criadores de espaço, não exclui os auditivos. Na primeira parte do prólogo, Arístides assobia um breve fragmento de Wagner. Ele Arístides- está apaixonado e assobia para evocar o momento e o lugar (a ópera) onde tinha visto María Eugenia pela última vez, e de imediato acrescenta: “Nunca fue más hermosa la obertura de Tanhäuser, como hace una semana en la Plaza de Capuchinos.”178 (P.I). Também no final desta primeira parte do prólogo, ocorre o segundo momento musical. Depois que Anselmo, Arístides, María Eugenia e sua mãe se retiram, Marx e Engels ficam a sós. Engels acorda e Marx canta uma música. MARX(Cantarola enquanto guarda o tarro de couve ágria e o Popol-Vuh numa cesta campestre).Mime hies ein mürrisher Zwerg in des Neides Zwang zog er mich auf, das einst das Kind, wann kühn es erwuchs einen Wurm ihm fällt’ im Wald o orador. (...) (Joga aos pés de Mac Shelley o crucifixo de Leon X) (...) Em quanto ao chapéu, lamento ter esquecido seu nome original entre tantas coisas que esqueci, mas declaro que houve certa ambição da minha vida depositada nesta frágil modéstia. Agora, espetáculo inefável, senhores, oportunidade histórica que não se repetirá, me permitem renunciar a ela e ao título de eminência que adornou a minha cabeça… (...) O joga nos pés de María Eugênia. (...) a mesma coisa faço com a refrescante batina, sempre estival, calorosa no peito e, segundo a tradição popular ou burburinho de esquina, um tanto ninfesca na medida em que desce e destaca o quadril. (...) Se despoja da batina. (...) (Em dignidade de calça e simples camisa). - Concluímos, senhor Presidente! (Sorri)” 177 Tradução: “bigodes de vaqueiro sul americano” 178 Tradução: “Nunca foi mais formosa a abertura de Tanhäuser como há uma semana na Praça de Capuchinos.” 148 der lang schon hütet einem Hort. Marx y Engels se afastam com a música. (P.I) Como é evidente para o leitor do texto e para o público do espetáculo, a música é em alemão. Marx e Engels são personagens totalmente desconectados do resto. Nem sequer na breve conversação entre Marx e Arístides há compreensão de nenhum tipo. Marx e Engels estão isolados do resto, mas presentes no começo e no final da obra, como se fechassem um parêntese. A relevância desses dois personagens é menor no mundo da obra do que no do autor. Ambos são, nesta obra, um capricho absoluto do autor (Cabrujas chegou definir o teatro com essas mesmas palavras: capricho absoluto). O conteúdo semântico da letra da música é ainda mais incoerente e não faz o menor sentido, como acontece com quase todo o alemão destes personagens, salpicado de muitas onomatopeias. A continuação uma tradução livre da música: Un enano gruñón se llamaba Mime me educó en la presión de los celos, una vez un niño, que creció listo, un gusano se le cayó en el bosque, que desde hacía ya mucho vigilaba un huerto. 179 Em quanto aos efeitos sonoros, Cabrujas os usa em vários momentos e com diferentes efeitos. Na segunda parte do Prólogo uma campainha toca no lado de fora da capela (é Maria Eugenia, no espaço latente). O mesmo efeito é usado pelo dramaturgo na metade do Primeiro ato quando Eloy interrompe, sem saber (Se escuchan golpes en el portón)180 a conversa entre Arístides e seus irmãos. Outro efeito sonoro foi o canto do galo. Tradicionalmente tal efeito é percebido como signo temporal, porém, neste caso, advogamos pela dimensão espacial que causa no leitor urbano uma estranheza: não há galos na cidade, pelo menos não na cidade de hoje. Outro efeito sonoro que cria um ambiente de estranheza, mas que corresponde às excentricidades habituais do presidente Guzmán, é o som produzido pelo golpe de Raja-haji no “gong polinésio”. Queremos, por último, chamar a atenção para um efeito sonoro que se repete em El día que me quieras e também em duas ocasiões em El americano ilustrado. Consideramos que tal efeito é caro para o dramaturgo pelos contextos dramáticos em que os usa: são os sons de explosões de foguetes e fogos artificiais. Quando o fracasso de um personagem se expõe frente ao público e ao leitor, o dramaturgo opta por usar o efeito sonoro de fogos e foguetes (latentes) que contrastam com a derrota patente dos personagens. Durante a leitura da carta 179 Tradução (da tradução): “Um anão resmungão se chamava Mime / educou-me na pressão dos ciúmes, / uma vez, uma criança cresceu pronta, / perdeu um verme no bosque, / que há muito tempo vigiava uma horta.” 180 Tradução: “Escutam-se golpes no portão” 149 patética de Arístides, no Primeiro ato, “A lo lejos se escuchan cohetes y jolgorios municipales”181 e na medida em que o sentimento de fracasso se faz mais evidente e o conteúdo da carta mais triste “El estruendo de los cohetes aumenta”182 (A.I.). Graus de (re)presentação O espaço patente sempre entra em contraste com os espaços latentes e ausentes que os personagens evocam durante a obra toda. Os espaços invisíveis são os lugares de suas frustrações e de seus desejos, quer dizer, os lugares do conflito. As relações entre os espaços visíveis e invisíveis são usadas por Cabrujas para criar o ambiente (às vezes, também o significado) e para ilustrar os conflitos (internos) dos irmãos Lander. Até aqui, estávamos descrevendo um excelente uso de contrastes espaciais. Contudo, se continuarmos observando as singularidades de algumas referências espaciais contidas nos diálogos dos personagens e as tratarmos de entender em seu contexto dialogal e temático, perceberemos que sua função, mais do que expressiva ou informativa, mais do que construtora de sentido, é, sobretudo, fática, pragmática, orientada à ação (mas de forma elusiva, quase eufemística). Por exemplo, quando Anselmo consegue que María Eugenia o visite na capela (espaço patente), faz a desleal proposta terem uma aventura amorosa juntos a partir da descrição um espaço ausente (um hotel) sem chegar a dizer explicitamente suas intenções. A proposta é tão obscura, mas, ao mesmo tempo tão explícita (se menciona um hotel), tão fora de lugar (estão numa capela, Anselmo é um padre) e tão inesperada (é a segunda vez que se veem, ela é a noiva de seu irmão) que ao invés de uma resposta imediata de María Eugenia, sobrevém um silêncio. ANSELMO.- Hay un hotel en Trinidad. El nombre es dinástico… “Regencia”… tal vez en inglés, quien sabe si más irreal. Una habitación da al mar, y prescindiendo del olor a curry, yo diría que es un lugar quieto, discretamente feliz, donde un hombre puede ser cualquier cosa, cualquier voluntad. Lo conocí adolescente y se quedó en mi memoria, por si acaso un día deseaba cambiar de vida. Ahora he vuelto a pensar en esa ventana, probablemente porque te he imaginado junto a ella. MARÍA EUGENIA (Formal).- Gracias. ANSELMO.- Casi siempre a la izquierda. MARÍA EUGENIA (Más aún).- Me alegro.183 (P.II.) 181 Tradução: “Ao longe se escutam foguetes e festanças municipais” Tradução: “O estrondo dos foguetes aumenta” 183 Tradução: “ANSELMO.- Há um hotel em Trindade. O nome é dinástico… ‘Regência’... tal vez em inglês, quem sabe se mais irreal. Uma habitação que dá ao mar, e ignorando o cheiro de curry, eu diria que é um lugar quieto, discretamente feliz, onde um homem pode ser qualquer coisa, qualquer vontade. O conheci de adolescente e ficou na minha memoria, caso um dia desejasse mudar de vida. Agora tenho voltado a pensar nessa janela, provavelmente porque tenho imaginado você junto dela.” MARÍA EUGENIA (Formal).- obrigada. ANSELMO.- Quase sempre à esquerda. MARÍA EUGENIA (Mais ainda).- Fico contente. 182 150 O impacto da proposta, além da violação dos laços familiares, reside no marco espacial em que é enunciada: numa capela e por um padre. Teoricamente, a capela é um recinto sagrado presidido por seu sacerdote, representante da santa igreja e por extensão do próprio Deus que salva do pecado. Entretanto, é dentro deste espaço que Anselmo enuncia seu pecado em potência. As pessoas vão à igreja para rezar, se confessar, falar com Deus e se conectar com o lado místico, espiritual, da alma humana com o auxílio do padre. Porém, este padre é um padre diferente. Ele quer ir num hotel com sua cunhada. O hotel é um lugar de desejo, de satisfação, de entrega e de prazer. É sinistro e bizarro. No entanto, seria bem menos chocante se acontecesse o contrário: que dentro do espaço de um quarto de hotel um casal falasse sobre ir à igreja. * A primeira metade do Primeiro ato está dominada por um ambiente de suspense. No espaço latente (pátio dos pavões, piscina das torturas) está a delegação britânica, que espera ser atendida, e no espaço patente (salão da casa de governo) está o presidente que posterga a reunião. É Rajah-Haji quem conecta os dois espaços, patente e latente, mediante o desempenho de seu papel de assistente do presidente, anfitrião da delegação inglesa, executor de manobras distrativas (latente) e reiterado porta-voz tanto da mensagem de impaciência do embaixador inglês ao presidente (patente) quanto das respostas dilatórias deste. A cena se constrói atravessando uma luta de forças, a luta pelo espaço. * No final do segundo ato, enquanto os irmãos Lander se confrontam em sua última e definitiva conversa, o autor faz estourar fogos de artifício. O som da explosões invade a cena e se confunde com o som das vozes externas de María Eugenia e Rosamunda. Dentro, no espaço patente, Arístides e Anselmo discutem, enquanto que fora, no espaço latente, o resto dos personagens contemplam a exibição de fogos e comemoram. Estamos na cena 24 do segundo ato, onde ocorre o maior cruzamento de relações espaciais de toda obra que se somam a outros dois, já mencionados, espaços, de caráter ausente, contidos nos diálogos dos personagens: Londres e a fazenda familiar . Londres é o espaço ausente ao que se destina Arístides, possibilitado pelo cargo de ministro. A ligação de ambos os espaços é evidente para Arístides e sua mera enunciação associativa desculpa e justifica (ação com palavras) a afirmação contida na pergunta de seu irmão: “¿vas a aceptar, entonces?” 184 com a resposta “ARÍSTIDES.- Quería ser ministro, Ivanhoe. Lo descubrí al entrar en este salón. No se trata 184 Tradução: “você vai aceitar, então?” 151 de una vocación extraordinaria. Tal vez sea la mazorca del cerdo, como decía Justo Lander, pero Londres vale un eructo”185. Anselmo não cessa de enfrentar Arístides até que finalmente confessa seu fracasso. Mais uma vez, Cabrujas recorre à estratégia do contraste espacial: no salão de governo Arístides se lembra da velha fazenda de sua infância, quando era uma criança cheia de ilusões e brincava com Anselmo de Cristo e Centurião. No jogo, Arístides sempre era Cristo, o filho de Deus, o maior de todos. A fazenda, como espaço ausente dos sonhos de infância, entra em conflito com o salão patente em que Arístides se sente um derrotado. No relato que Arístides faz do jogo de Cristo e Centurião, há uma quinta referência espacial de caráter bíblico: o “Getsemaní”, que era como Anselmo chamava “por ganas de inventar” a ladeira de laranjeiras onde brincava de representar a tortura: este é na verdade um espaço dentro do espaço. Cinco espaços se relacionam nesta cena: a lembrança da fazenda (ausente), onde os irmãos Lander brincavam de Cristo e Centurião no “Getsemaní” (espaço ausente dentro do espaço ausente), ativa em Arístides o sentimento de derrota que o leva a se desculpar com Anselmo, com quem discute num salão da casa de governo (patente) mediante a aceitação do cargo de ministro -com a respectiva missão diplomática a Londres (ausente)- enquanto o resto dos personagens contempla e comenta a exibição de fogos artificiais no pátio de honra (latente). Espaço e significado A ação de El americano ilustrado se desenvolve, como vimos ao princípio, em cinco espaços cênicos distintos que são o passeio campestre (P.I), a capela (P.II.), a casa de Arístides (A.I y E.II.), a casa de governo (A.II) e o palácio arcebispal (E.I.). Destes cinco espaços cênicos, o único que se repete é o pátio da sala de Arístides, tanto no Primeiro ato quanto no final da obra, na segunda parte do Epílogo. Embora sejam lugares diferentes e haja uma brecha temporal de quinze anos que os distância, consideramos equivalentes em significação o “ângulo votivo na capela de Nossa senhora do Perpétuo Socorro” da segunda parte do prólogo e o “salão votivo no palácio Arcebispal” da primeira parte do epílogo. Estes são os espaços do religioso, do sagrado; são os lugares onde Anselmo atua como eclesiástico, primeiro como padre e depois como bispo. Feita esta consideração, podemos reduzir os espaços cénicos a quatro apenas. Estes quatro espaços são significativos e o autor os escolheu 185 Tradução: “ARISTIDES.- Queria ser ministro, Ivanhoe. Descobri isso assim que entrei neste salão. Não se trata de uma vocação extraordinária. Tal vez seja a maçaroca de porco, como dizia Justo Lander, mas Londres vale um arroto.” 152 com uma intencionalidade: demarcar o conflito entre a vida íntima e a vida pública, tanto de Arístides quanto de Anselmo Lander. Dois dos espaços cênicos se conectam a Arístides Lander: o primeiro é sua casa (A.II. e E.II.) e o segundo é a casa de governo (A.II.). A casa de Arístides é o lugar de sua vida íntima, conjugal, mas, estranhamente, quando se apresenta pela primeira vez, o que vemos é uma reunião laboral, na que Arístides discute com Eloy alguns assuntos de protocolo. Misturam-se, desse forma, trabalho e vida íntima. Ademais, não tardamos em descobrir que, para Arístides, a casa representa o testemunho de seu fracasso, de sua derrota através do tempo. Um parlamento de Arístides vincula derrota e passagem de tempo ao espaço da casa (há referência a móveis patentes e árvores latentes), quando explica a María Eugenia que a carta: ARÍSTIDES.- La escribí y me la dirigí a mí mismo, un día como hoy, hace quince años. Era el mismo patio y el mismo sillón y el mismo limonero y el mismo granado. Era yo y olía como yo, como lana, como zapato, y había un asado y se olían los cohetes… Era yo…186 (I.6) Espaço e tempo se misturam neste fragmento, assim como em tantos outros da obra. O espaço cênico da casa de governo representa, por sua vez, o desejo de Arístides. (“Queria ser ministro, Ivanhoe. Descobri isso assim que entrei entrar neste salão” (A.II.). A passagem de Arístides de sua casa à casa de governo significa a passagem da vida privada à vida pública; mais do que salto, um pulo aleatório, alimentado pelo poder da ambição. Na casa de governo, Arístides se reúne com o presidente Guzmán, aceita o cargo de ministro e, imediatamente depois, se reúne com a delegação inglesa. Cabrujas, no entanto, consegue misturar a vida pública e íntima de Arístides fazendo com que os membros de sua família invadam, para continuar comemorando seu aniversário, a casa de governo durante a reunião com a delegação inglesa, que se confunde, entre taças de champanhe, brindes e traduções simultâneas, com o aniversário. A situação é hilariante. Em algum momento dessa confusão, o embaixador inglês pergunta a seu tradutor trinitário: MAC SHELLEY (A parte, a Perret).- Good Heavens! What’s going on? PERRET (Balbucea).- They are having a party. It seems and I’m afraid they have invited some important people. MAC SHELLEY (Al perplejo Perret).- Would this means we should end our dialogue?187 186 Tradução: “ARÍSTIDES.- A escrevi e a dirigi a mim mesmo, um dia como hoje, faz quinze anos. Era o mesmo pátio e a mesma poltrona e o mesmo limoeiro e a mesma romãzeira. Era eu e cheirava como eu, como lã, como sapato, e tinha um assado e se escutavam foguetes… era eu...” 187 Tradução: “MAC SHELLEY (A parte, a Perret).- Meu Deus! O que está acontecendo? PERRET (Balbucia).- Estão dando uma festa. Parece e eu temo que convidaram gente importante. MAC SHELLEY (Ao perplexo Perret).- Significa que devemos encerrar o nosso diálogo?” 153 É por acaso uma casa de governo um lugar apropriado para comemorar um aniversário? Evidentemente, há um problema de invasão de espaço ou de discordância entre as expectativas acordes ao marco espacial de uma casa de governo e os bizarros acontecimentos desenrolados: a interrupção de uma reunião econômica de importância internacional para comemorar a festa de aniversário familiar de um escuro funcionário da administração pública. O trabalho, a ambição, a responsabilidade, a dimensão pública de Arístides, tudo se vê diminuído e eclipsado pela dimensão privada de sua vida. Dois espaços cênicos se conectam ao personagem Anselmo e dão lugar (literalmente) a seu conflito: a igreja (P.II e E.I.) e o passeio campestre (P.I.). Com simetria, Cabrujas atribui dois espaços cênicos a Anselmo e outros dois a Arístides. Assim como para Arístides há um conflito entre dois espaços (o espaço do fracasso e o espaço do desejo), o mesmo acontece com Anselmo: seu conflito principal, que é sua crise espiritual e vocacional relacionada ao amor blasfemo e contraditório por sua cunhada, é ilustrado pelo contraste entre o espaço de seu desejo (o passeio campestre) e o espaço do fracasso (a igreja). A igreja, forma simplificada de fundir capela e palácio arcebispal, é (são) o lugar do conflito e do fracasso, para Anselmo Lander. O fracasso se vincula ao espaço religioso, embora não se trate de um fracasso profissional, já que Anselmo, em termos de sucesso, ostenta uma carreira religiosa muito boa (na elipse de quinze anos que tem lugar entre o prólogo e o primeiro ato vemos desaparecer Anselmo padre e reaparecer bispo). O fracasso é muito mais complexo e profundo e toca o aspecto mais espiritual do ofício religioso, aspecto que o diferencia de muitos outros ofícios, um aspecto invisível, incomensurável, de certa forma indefinível, mas absolutamente necessário, que é a fé. A atitude de Anselmo com relação à seu espaço (que é o espaço do sagrado) é uma atitude rebelde, de descrença e desengano. Na capela (P.II) o vemos lendo pornografia junto ao sacristão e logo depois o vemos fazer uma proposta adúltera à sua flamante cunhada. O conflito entre as esferas pública e privada da vida de Anselmo é muito grande porque ele, como padre católico, não deve ter uma vida privada como tal, sua vida deve ser totalmente pública, entregada ao serviço da religião, do senhor e dos fiéis. O sucesso na vida pública de Anselmo (alcançou título de bispo) não compensa o conflito de sua vida privada fracassada (amor não resolvido e impossível por María Eugenia). Os espaços cênicos que Cabrujas utiliza para o desenvolvimento da intriga de El americano ilustrado são altamente significativos e sua mera sucessão deixa a marca da tensão entre os espaços de conflito e de desejo dos personagens protagonistas. Esta tensão é uma tensão invasiva (por exemplo, o desejo gerado no espaço do passeio campestre invade o 154 espaço da capela, gerando um conflito). Vemos uma espécie de simetria de espaços cênicos designados equitativamente aos dois irmãos Lander. Desenhamos um simples esquema que resume estas relações: (P.I) Paragem campestre ---------------------> espaço do desejo (de Anselmo) / esfera privada (P.II. e E.I.) Capela, palácio arcebispal ----> espaço do conflito (de Anselmo) / esfera pública (A.I e E.II) Casa Arístides ------------------> espaço do conflito (de Arístides) / esfera privada (A.II.) Casa de governo ---------------------> espaço do desejo (de Arístides) / esfera pública CONCLUSÃO A crítica, o pensamento estruturado, corre sempre o risco de dar aos textos sentido demais, de tentar classificar, definir e explicar demais o que na arte simplesmente é, sem necessidade de interpretações. Mais ainda na crítica contemporânea y específicamente na crítica teatral atual, numa época em que temos deixado de acreditar em morais, em unidades de sentido. E contudo, isso tenta fazer esta disertação: juntar, como um quebra-cabeça, as distintas peças apanhadas: literatura, política, história e cultura. El día que me quieras e El americano ilustrado não são, é claro, análogas ao contexto de Cabrujas. São criações artísticas e como toda arte, são arbitrárias, belas e, como diria Wilde, totalmente inúteis. Sua intenção não é “figurar o mundo, mas responder á sua presença real por uma igual presença verbal, por uma densidade equivalente; ao mesmo tempo polissêmica e insignificante”. (RYNGAERT, 1998, p.4) Não é, a obra dramática, uma imitação da realidade, senão uma construção da realidade, uma versão verbal da realidade. Cabrujas cria universos dramáticos, independentes uns de outros, em cada obra. Mas as duas obras analisadas comparten um elemento muito importante em comum que é o motivo subjazente do fracasso. Cabrujas adhere ao grupo humano da esquerda venezuelana, especificamente à intelectualidade de esquerda, que durante a década dos setenta sofre um desencanto com a derrota das guerrilhas armadas e com a restituição do PCV al jogo do pacto democrático liberal/petroleiro. O motivo do fracasso pode se explicar como a reação conceitual e artística de Cabrujas por melhorar as possibilidades de supervivência de seu grupo social por meio da estratégia da confissão. Confissao do fracasso e da falsidade, da pose, do engano e o autoengano. Confessam Pío e Anselmo e se liberam de se mesmos e da falsidade. Agora bem, a 155 confissão de Cabrujas e de seus personagens foi muito polêmica dentro do campo cultural venezuelano de então. Mas Cabrujas aguentava as críticas e respondia. Desde sua hibridez, estigmatizado por escrever para televisão, atacado e desprestigiado, chamado de “impuro” por poetas, Cabrujas contra ataca, argumenta que é indigno e inconseqüênte ser um intelectual de esquerda e viver do Estado capitalista e petroleiro, milhonário e rentista, mantido pelo inimigo. Quando, em 1986, ou seja, no mesmo ano da estréia de El americano ilustrado, Arráiz Lucca pergunta numa entrevista, ¿A qué escapa trabajando tanto?, Cabrujas diz que escapa: A ser un intelectual. A ser ese ser indefenso, perplejo, atónito y confundido. A mí me aterra, lo confieso hondamente, ser un intelectual. Ser ese tipo que se cree un cuento en lugar en un lugar donde nadie más se cree ese cuento, ese tipo indefenso que vive de la caridad, que los políticos le sueltan una migajita para que ese pobre hombre coma, para que adorne. Para mí, ser un intelectual es echar vaina, es la imagen del francotirador y como no tengo partido y tengo 48 años, no me importa tanto la vida. Disparo más porque conservo menos. 188 (2003, p.177) Cabrujas responde en suas obras ao seu grupo social, reage à tensão que sobre ambos exerce o entorno (político, ideológico) da Venezuela saudita. E contudo, suas obras são muito mais do que isso: são arte, poesia e sublimidade indecível. “O teatro”, diz Ryngaert, “repousa, desde sempre, sobre o jogo entre o que está escondido e o que é mostrado, sobre o risco da obscuridade que de repente faz sentido.” (1998, p.5). Diziamos que dizia Wilde que toda arte é inútil, porém, El día que me quieras e El americano ilustrado, consiguiram quando foram estreiadas e vistas, comover uma sociedad, obrigá-la sentar para pensar em sua derrota histórica, em seu fracasso. E no nosso caso particular, além de nos comover, de nos sacodir como público, nos tem feito pesquisar, interpretar e refletir sobre o fracasso. Refletir sobre o fracasso histórico, nacional, familiar e pessoal tem se mostrado como um projeto paradoxalmente feliz. Não é segredo que o fracasso assusta. O melhor jeito de lhe perder o medo a algo é o conhecendo. O fracasso, antes que nada, não e um estado absoluto. Como o estrês, como o amor, como a procura pela felicidade, como a inveja, pode ser um estado relativo. (Como acontece com os dois mendigos. Dois mendigos coincidem sob um portal seco numa noite de chuva e passam a noite em cúmplice companhia. Se passam uma garrafinha coberta por uma bolsa de papel. Somos uns fracassados, diz o mais gordo. E conta 188 Tradução: “De que escapa trabalhando tanto? De ser um intelectual. De ser esse ser indefenso, perplexo, atónito e confundido. Eu sinto terror, o confesso profundamente, de ser um intelectual. Ser esse tipo que acredita num conto num lugar onde mais ninguém acredita acredita nesse conto, esse tipo que vive da caridade, que os políticos le dão uma migalhinha para que esse pobre homem coma, para que enfeite. Para mim, ser um intelectual é encher o saco, é a imagem do francotirador e como não tenho partido e tenho 48 anos, não me importa tanto a vida. Disparo mais porque conservo menos.” 156 a história de sua vida. Teve uma empresa, casa, carro, família e agora está nas ruas. Eu, disse o mais magro depois de beber um gole seco, não sou nenhum fracassado. Tenho o que sempre desejei: liberdade e tempo, disse e devolveu a garrafa ao mendigo fracassado com um sorriso de três dentes na bouca, antes de concluir: eu sou bem sucedido). Não é o mesmo assumir o fracasso como Anselmo que como Arístides, como Pío ou como María Luisa. Esta dissertação (qualquer texto, na verdade) é o resultado de uma batalha entre o autor e o fracasso (onipresente) por se apoderar da página em branco assim como da página escrita. Queremos fechar este texto com um fragmento literário. Advertimos: vai ser uma citação extensa. E contudo, consideramos que se trata de um fragmento textual que, em forma corta e sintética, contém não uma ideia, nem um conceito, nem uma frase brillhante senão uma atmosfera, uma sensação, uma emoção que se asemelha muito ao efeito que produziu em nós como espectadores a apreciação do último teatro de Cabrujas e a impressão frente ao motivo do fracasso. No fragmento que vamos citar está contenido de maneira poética e metafórica o peso do fracasso humano, que é elevado de forma quase mística, a sabiduria de espíritu. A referência provém de um dos últimos capítulos do romance El país de la Canela de William Ospina, que narra literariamente as viagens amazónicas do século XVI. O fragmento que aqui traemos narra, desde a perspectiva de um jovem subordinado, a chegada (demorada, difícil) da expedição de Hernando Pizarro no templo de Pachacámac, que anelava encontrar ouro e apenas encontrou -como Cabrujas, como Arístides, como Anselmo e como Pío- o próprio fracasso: (...) Con todo, gracias a su obstinación, finalmente llegaron a la entrada de la ciudad. Vieron allí una puerta y dos porteros en ella. Éstos les recordaron que ese era el principal santuario del reino y el adoratorio de un dios poderoso, y les pidieron detenerse a la entrada pues sólo los incas podían pasar hacia el espacio sagrado. Pizarro respondió que había venido desde muy lejos para ver al dios, y que no se detendría ahora. Entraron a una región de pasillos y nuevas puertas y escaleras de piedra de caracol que daban a un nuevo portal. Allí otros guardias les dijeron que no podían ir adelante, y que si tenían algún mensaje para el dios, los sacerdotes se lo llevarían. A ambos guardianes les faltaba el dedo meñique de la mano derecha, y Pizarro no dejó de advertirlo. Una vez más les dijo que no tenía mensaje alguno sino que quería verlo personalmente, y siguió con sus hombres adelante hasta llegar a la cumbre del adoratorio. Había tres o cuatro cercas ascendentes en forma de espiral que a los viajeros les parecieron más a propósito para una fortaleza militar que para un templo, y después un patio pequeño con postes guarnecidos de oro y plata y una serie de ramadas con adornos y telas ricas. Les produjo fatiga la sensación de que siempre faltaba un espacio para llegar, y acrecentó la expectativa del tesoro que estaría al final de tantas antesalas. Pasado ese laberinto de puertas y pasadizos y escaleras se hallaron ante la bóveda central del santuario. Y vieron que al final de un último pasillo por el que sólo cabía un hombre, había una puerta extrañísima, labrada con muchos materiales distintos, con cristales y turquesas, con corales y conchas tornasoladas. Todos estuvieron de acuerdo con que era la puerta más extraña y más incomprensible que hubieran visto, y no les dejó la impresión de riqueza sino de un hecho inexplicable y más bien desagradable. 157 Los guardias indios no se atrevían a tocarla y tuvo que ser un sacerdote de los que iba con Hernando desde Cajamarca quien finalmente la empujó para darles acceso a la gruta central. Era una cueva estrecha y tosca, de piedra negra sin pulir, y en su interior todo era oscuridad y fetidez. Tuvieron que encender una antorcha para ver rebrillar en el suelo de tierra unos cuantos objetos de oro y unos cristales. Y a su luz vieron que en la cueva no había más que un leño tosco clavado en la tierra, y sobre él una figura de madera con forma vagamente humana, mal tallada y mal moldeada, que producía temor y repulsión. La gruta presidida por esa tosca divinidad era la cosa más sombría y más desoladora que pudiera verse, y lo era mucho más por todas las fatigas que había costado. Encontrarla de pronto en cualquier lugar abierto no produciría jamás el efecto de desaliento y de frustración que causaba después de tan minuciosas y desesperantes demoras. Y nada preparaba tanto la frustración como la extraña y preciosa puerta que permitía ingresar al nicho. Era como ponerle una puerta de oro a un antro detestable, como adornar con todos los atributos de la grandeza y del misterio la boca de un pozo de desperdicios, como poner una corona de gemas sobre un ser repulsivo y deforme. Nadie supo describir con precisión el malestar que les produjo aquel hallazgo, pero mi amigo Teofrastus diría que ese malestar bien podía ser una de las formas más extrañas del contacto con la divinidad. Por supuesto: ninguno de aquellos viajeros lo pensó siquiera, ni supo darles nombre a los sentimientos que el santuario de Pachacámac producía, porque su esperanza era apenas encontrar un tesoro de metal o de cristales, no asir una experiencia de la carne en contacto con la sustancia primitiva del mundo. Pero yo muchas veces me he dicho que el destino abunda en esas experiencias en que se entra por puertas magníficas a vacíos horrendos, en que empiezan con grandes palabras unos silencios indescifrables, y creo que los incas guardaban en ese santuario algo indecible. Una divinidad secreta hecha de espera y de ansiedad, de expectativa y de frustración, de ambición y de desazonado fracaso, una divinidad que no estaba en el final del camino sino en cada uno de sus pasos, tejida de sensaciones y de pensamientos, de búsquedas precisas y de hallazgos borrosos. Lo que Hernando Pizarro no supo nunca es que la imagen que hallaron en el templo de Pachacámac estaba allí en reemplazo de otra que era de piedra negra rodeada de incontables mazorcas de oro, pero que estaba prohibido mirar siquiera. El santuario fue concebido para que hasta la frustración de hallar al dios fuera falsa, para que su malestar fuera apenas la réplica de otro malestar, porque este dios venía de la noche anterior al origen, y estaba en ese sitio antes del templo mismo, antes de las horas que precedieron a la víspera de la creación. Uno cree saber lo que busca, pero sólo al final, cuando lo encuentra, comprende realmente qué andaba buscando. Y bien podría ser que lo que rige el destino del hombre no sea Cristo ni Júpiter ni Alá ni Moloch sino Pachacámac, el dios de los avances hacia ninguna parte, el dios de la sabiduría que llega un día después del fracaso189 (2009, p.257) 189 Tradução: “(...) Contudo, graças à sua obstinação, finalmente chegaram na entrada da cidade. Viram lá uma porta e dois porteiros. Estes lhes lembraram de que esse era o principal santuário do reino e o lugar de adoração de um deus poderoso, e lhes pediram se retirassem da entrada pois só os incas podiam passar para o espaço sagrado. Pizarro respondeu que tinha vindo de muito longe para ver o deus, e que não se deteria agora. Entraram em uma região de corredores e novas portas e escadas de pedra de caracol que davam para um novo portal. Lá, outros guardas lhes disseram que não poderiam seguir em frente, e que se tivessem alguma mensagem para o deus, os sacerdotes a levariam. A ambos guardiões lhes faltava o dedo mindinho da mão direita, e Pizarro não deixou de o advertir. Mais uma vez disse que não tinha mensagem alguma, apenas que queria vê-lo pessoalmente, e seguiu enfrente com seus homens até chegar no topo do adoratório. Havia três ou quatro cercas ascendentes em forma de espiral, que os viajantes acharam mais de propósito para uma fortaleza militar do que para um templo, e depois um pátio pequeno com postes guarnecidos de ouro e prata e uma série de enramadas com enfeites e telas ricas. Produziu-lhes fatiga a sensação de que sempre faltava um espaço para chegar, e aumentou a expectativa do tesouro que estaria no final de tantas antessalas. Passado esse labirinto de portas, corredores e escadas chegaram à abóbada central do santuário. Viram que no final de um último corredor, com espaço para um homem, havia uma porta estranhíssima, trabalhada com diferentes materiais, com cristais e turquesas, com corais e conchas 158 furta-cor. Todos concordaram que era a porta mais esquisita e mais incompreensível que haviam visto, porém não ficaram com uma impressão de riqueza, mas com uma sensação inexplicável e desagradável. Os guardas índios não se atreviam a tocar nela e foi necessário que um sacerdote que acompanhava Hernando, desde Cajamarca, empurrasse a porta para que tivessem acesso à gruta central. Era uma caverna estreita e tosca, de pedra negra sem polimento, e no seu interior tudo era escuridão e fedor. Tiveram que ascender uma tocha para ver brilhar no chão de terra uns quantos objetos de ouro e uns cristais. E viram que na caverna não havia nada além de um lenho tosco cravado na terra, e sobre ele uma figura de madeira com forma vagamente humana, mal talhada e mal moldada, que produzia temor e repulsão. A gruta presidida por essa tosca divindade era a coisa mais sombria e mais desoladora que se pudesse ver, e o era muito mais por todas as fadigas que tinha passado. Encontrá-la, de repente, em qualquer lugar aberto não produziria jamais o efeito de desalento e de frustração que causava depois de tão minuciosas e desesperantes demoras. E nada preparava tanto a frustração quanto a estranha e preciosa porta que permitia ingressar no nicho. Era como pôr uma porta de ouro num antro detestável, como enfeitar com todos os atributos da grandeza e do mistério a boca de um poço de desperdiço, como pôr uma gravata de gemas sobre um ser repulsivo e deforme. Ninguém soube descrever com precisão o mal-estar que produziu aquele achado, mas meu amigo Teofrastus diria que esse mal-estar bem podia ser uma das formas mais estranhas do contato com a divindade. É claro: nenhum daqueles viajantes o pensou sequer, nem soube dar nome aos sentimentos que o santuário de Pachacámac produzia, porque sua esperança era apenas encontrar um tesouro de metal ou cristais, não ter uma experiência carnal em contato com a substância primitiva do mundo. Eu, porém, muitas vezes tenho dito que o destino abunda nessas experiências em que se entra por portas magníficas em vazios horrendos, em que começam com grandes palavras uns silêncios indecifráveis, e acredito que os incas guardavam nesse santuário algo inimaginável. Uma divindade secreta feita de espera e de ansiedade, de expectativa e de frustração, de ambição e de desassossegado fracasso, uma divindade que não estava no final do caminho, mas em cada um de seus passos, tecida de sensações e de pensamentos, de procuras precisas e de achados turvos. O que Hernando Pizarro nunca soube é que a imagem que acharam no templo de Pachacámac estava lá substituindo a pedra negra coberta por incontáveis espigas de ouro, que não podia, se quer, ser vista. O santuário foi concebido para que até a frustração de achar o deus fosse falsa, para que seu mal-estar fosse apenas a réplica de outro mal-estar, porque este deus vinha da noite anterior à origem, e estava nesse lugar antes mesmo do templo, antes das horas que precederam à véspera da criação. O homem acredita saber o que procura, mas só no final, quando o encontra, compreende realmente o que andava procurando. E bem poderia ser que o que rege o destino do homem não seja Cristo, nem Júpiter nem Alá nem Moloch, mas Pachacámac, o deus dos avanços para nenhuma parte, o deus da sabedoria que chega um dia depois do fracasso” 159 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS AHUMADA, Yoyiana. Venezuela: La obra inconclusa de José Ignacio Cabrujas. Trabajo de grado para Magister en Literatura Latinoamericana. Caracas: Universidad Simón Bolívar, 2000. ARRABAL, Fernando. Pic-nic. El triciclo. El laberinto. Madrid: Cátedra, 1993. _________ El cementerio de automóviles. El arquitecto y el Emperador de Asiria. 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