baixa - Avatares Antenados

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baixa - Avatares Antenados
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
O FRACASSO COMO MOTIVO NO ÚLTIMO TEATRO DE JOSÉ IGNACIO
CABRUJAS
por
OSCAR ROMÁN ZAMBRANO MONTES
Curso de Mestrado em Letras Neolatinas
(Estudos literários: Literaturas Hispânicas)
RIO DE JANEIRO
2015
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
O FRACASSO COMO MOTIVO NO ÚLTIMO TEATRO DE JOSÉ IGNACIO
CABRUJAS
OSCAR ROMÁN ZAMBRANO MONTES
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
como requisito à obtenção do título de
Mestre em Letras Neolatinas (Estudos
Literários: Literaturas Hispânicas).
Orientador: Profº.
Zamorano Heras.
RIO DE JANEIRO
2015
Doutor Miguel Ángel
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
COMISSÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
O motivo do fracasso no último teatro de José Ignacio Cabrujas
Oscar Román Zambrano Montes
Orientador: Professor Doutor Miguel Ángel Zamorano Heras.
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários:
Literaturas Hispânicas).
Aprovada em: __/__/___ por
_________________________________________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Miguel Ángel Zamorano Heras – UFRJ
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Víctor Manuel Ramos Lemus – UFRJ
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Roberto Ferreira da Rocha – UFRJ
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Maria do Carmo Cardoso da Costa – UFRJ
4
DEDICATÓRIA
À minha mãe, ao meu pai e ao meu irmão.
5
AGRADECIMENTOS
A Miguel Ángel: mais do que orientador, amigo.
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ZAMBRANO MONTES, Oscar Román. O motivo do fracasso no último teatro de José
Ignacio Cabrujas. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação de Mestrado em Letras Neolatinas
(Estudos Literários: Literaturas Hispânicas) - Faculdade de Letras, Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
RESUMO
Esta dissertação analisa as obras teatrais El día que me quieras (1979) e El americano
ilustrado (1986), do dramaturgo venezuelano José Ignacio Cabrujas, como reação do autor, no
plano imaginário, à agressão que o entorno da Venezuela liberal-petroleira exercia no grupo
social dos intelectuais de esquerda da geração do 58. Procuramos discutir, neste estudo,
questões relacionadas ao tipo de argumento e aos mecanismos da intriga, à caracterização dos
personagens e à importância simbólica dos espaços e os tempos das peças, como caminho que
nos permita estabelecer um diálogo com as mediações históricas, psico-sociais e estéticas que
marcam as áreas de tensão entre o artista, o grupo humano de que forma parte e a realidade
sócio-histórica venezuelana das décadas de setenta e oitenta. O súbito enriquecimento, pela
nacionalização do petróleo, trouxe um estado de bem-estar económico ao país e a esquerda
venezuelana, acomodada, pactuou com a democracia-liberal e os intelectuais de esquerda
ficaram desnorteados, numa posição de negado fracasso. Este estudo tenta comprovar,
mediante a análise crítica das duas peças de teatro de José Ignacio Cabrujas, o potencial
explicativo da estratégia criativa da confissão dos personagens, em relação ao sentimento de
fracasso de um grupo social, a que pertence o autor, e como parte de um plano para superar a
impostura derivada do resguardo ideológico.
Palavras-chave: José Ignacio Cabrujas, Teatro venezuelano, Dramaturgia, Motivos e
estratégias, Petróleo, Comunismo, Tempo, Espaço, Personagem.
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ABSTRACT
The present thesis analyzes the plays El día que me quieras (1979) and El americano
ilustrado (1986), by Venezuelan playwright José Ignacio Cabrujas, as the author's response,
in the imaginary dimension, to the attack suffered by left-wing intelectual generation of 1958
in the contexto of a liberal, oil-based Venezuela. This study attempts to dicuss aspects related
to the type of storylines, mechanisms of intrigues, characters development and the symbolic
importance of the drama’s spaces and times, as a way to establish a dialogue among the
historical, psycho-social and aesthetic mediations that frame the areas of tension between the
artist, the human group that he belongs to and the social-historical Venezuelan reality of the
seventies and the eighties. The fast enrichment process of the country thanks to the oil
natioliazation led to an economical welfare state, which defined a pact between Venezuelan
left-wing parties and the liberal democracy. As a consequence, left-wing intellectuals
remained disoriented in the new landscape, in a position of denied failure. This research tries
to prove, trough the critical analysis of two Cabruja’s plays, the explanatory potential of the
creative strategy in the confessions of the charecters, wich is conected to the feeling of failure
of a social group (Cabruja’s group) as part of a plan to overcome the imposture resulting from
ideological isolation.
Key-words: José Ignacio Cabrujas, Venezuelan theater, Drama, Oil, Comunism, Time,
Space, Character.
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Quienes celebran aquí sus citas vienen siempre de un "allá", del ancho mundo, y
helos aquí decididos a aportar a este aquí el frágil conocimiento que han atoado
fuera de ese lugar. Frágil conocimiento no es ciencia imperiosa. Intuimos que
vamos siguiendo una huella
Édouard Glissant (2006)
9
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO………………………………………………………………......……....10
INTRODUÇÃO ……………………………………………………………….....………….11
I. CONTEXTO SOCIO-POLÍTICO DA VENEZUELA ENTRE 1979 E 1986................17
II. CABRUJAS NO CAMPO TEATRAL VENEZUELANO.....…………………………27
III. MEDIAÇÕES...................................................................................................................35
IV. O MOTIVO DO FRACASSO.........................................................................................45
V. A ESTRATÉGIA DA CONFISSÃO................................................................................51.
VI. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL DIA QUE ME QUIERAS (1979)…….....…52
6.1 Personagens……………..……………………………………………………………….65
6.2 Tempos…………………..……………………………………………………………….73
6.3 Espaço…………………..………………………………………………………………..85
VII. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL AMERICANO ILUSTRADO (1986)........108
7.1 Os personagens…………………………………………………………………………119
7.2 O tempo…………........………………………………………………………………....129
7.3 O espaço…………………………………………………………………………….......135
CONCLUSÃO…………………………………………………………………………..….154
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………................……………………....159
10
APRESENTAÇÃO
O motivo do pesquisador
Estudar e interpretar o último teatro de Cabrujas e escrever esta dissertação representa,
em minha vida, o amarre de vários cabos que, até agora, permaneciam soltos. Por um lado, fiz
teatro durante vários anos, dirigi várias obras na Venezuela (embora nenhuma de Cabrujas),
por outro lado, estudei Letras na U.C.V, menção literatura (embora quase nada aprendesse
sobre crítica e teoria dramática). Por fim, fui espectador de algumas montagens das obras de
Cabrujas (embora eu nunca as estudasse, nem as representasse). Só agora, graças ao mestrado,
consegui juntar todos estes interesses em um projeto amplo: realizar um estudo crítico sobre o
teatro de Cabrujas. Esta dissertação é o resultado da coesão dos últimos anos da minha vida e
se em alguns momentos parece inconsistente o atribuo às minhas próprias contradições.
Lembro quando meus pais me levaram ao teatro para ver a última montagem de El día
que me quieras, dirigida por Juan Carlos Gené, uma lenda do teatro latino-americano, na
“Sala de Conciertos” do desaparecido Ateneo de Caracas, e da impressão que essa peça e seus
personagens causaram em mim. Lembro a figura ensombrecida de Pío Miranda, tão pesada,
tão magnética. Relembro o silêncio final. A tristeza. A desolação. Meus pais aplaudiam, todos
aplaudiam de pé e eu sofri uma mistura de empatia e incompreensão. E Pío, escuro, tão
parecido com meu tio Adriano, tão parecido com tanta gente, com o país. Senti empatia por
Pío. Assim como Cabrujas e como Ricardo Píglia, eu também sinto certa inclinação pelos
fracassados, na literatura e na vida, por esses seres que perseveram em se desperdiçar se
destruindo. A geração do meu pai é a de Cabrujas e se me interessa tanto este tema é porque
busco entender minha família para poder me entender melhor. Pode parecer paradoxal, mas o
fracasso me seduziu. Germinou em minha vida uma curiosidade que aqui dá seus frutos.
Aqui significa nesta dissertação e significa também neste país. Assim como me
seduziu o tema do fracasso, o Brasil também me seduziu. Antes de decidir estudar aqui, viajei
um ano pela América do Sul. De todos os lugares que visitei, cidades que conheci,
nacionalidades, ambientes e estilos, nenhum outro me atraiu mais do que o Rio de Janeiro. O
tempo tem passado, o ciclo do mestrado está terminando. Consegui, por meio de amigos,
organizar uma vida ideal para a escritura da dissertação durante estes últimos seis meses de
mestrado; vivo bem, confortável, com espaço, com tempo, sem pressões, perto da natureza,
em uma casa absolutamente invejável e acima de minhas possibilidades reais (tenho vivido
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que nem rico). Tive a singular fortuna de escrever uma dissertação de mestrado sem nenhum
tipo de estresse, num clima prazeroso e através de um processo criativo disfrutado e feliz.
Se falo destas coisas, e o faço em primeira pessoa, é porque acho que eu sou uma
variável deste texto. E é curioso: durante todo o processo, eu próprio, como pesquisador e
como estudante, experimentei em minha própria carne o fracasso. Não o estudei, o teorizei e o
pesquisei simplesmente, mas também o vivi em dois momentos: o primeiro foi há três anos,
quando tentei ingressar no mestrado de Letras da UFRJ e, apesar de ter tirado boas notas no
processo seletivo, fracassei, como um personagem de Cabrujas, no final, na última prova que
era também a mais fácil. O segundo momento de fracasso não aconteceu em nenhum
momento específico, mas durante todo o mestrado, quando tive que reduzir o corpus analisado
de quatro obras a duas, me vendo forçado a excluir Profundo e Acto cultural. O fracasso, mais
do que tema e objeto de estudo, tem sido parte do processo.
Analisar meticulosamente as obras teatrais escolhidas, suas partes, seus mecanismos,
suas estratégias e técnicas, tem permitido conhecê-las, habitá-las. Tem sido um trabalho
exaustivo, lento, mas muito disfrutado. Entretanto, houve momentos de desesperança,
sobretudo na fase de análise. Momentos desnorteados. Que sentido, me perguntei mais de
uma vez, tem toda esta obstinação, esta insistência em desarmar, desfragmentar, descompor e
rearmar estas peças? Quem irá ler tantas páginas de análise? Esta é, acabava concluindo, uma
tarefa “intranscendente”. Porém o prazer, essa é a palavra precisa, o prazer de escrever sobre
as obras, de poder finalmente expressar tantas conexões de ideias, opiniões e impressões
recolhidas e contidas por dois anos e mais, o prazer analítico (Borges falava do prazer de
entender) me permitiu persistir nesta teimosia até o final.
INTRODUÇÃO
Acreditamos no teatro como força crítica da cultura de um povo localizado no tempo,
entendido como expressão histórica e sintomática do panorama político-social vivido num
momento determinado. A análise, a partir da Teoria de motivos e estratégias de Ángel
Berenger, de duas obras de Cabrujas, El día que me quieras (1979) e El americano ilustrado
(1986), serve como ponto de partida para interpretar relacionalmente um capítulo decisivo do
acontecer nacional e indispensável na construção da idiossincrasia do venezuelano, conhecido
pelo nome de Viernes negro (sexta-feira negra). Este episódio indica a data do desengano
venezuelano respeito à sua economia, o início da caída econômica, paradoxalmente
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acontecida uma década depois da chamada Grande Venezuela ou Venezuela saudita,
caracterizada pela explosiva riqueza de recursos econômicos surgidos como consequência da
nacionalização da indústria petroleira. Cabrujas consegue, mediante a sublimação da arte,
projetar e comover o universo de complexos nascido do enriquecimento súbito vivido por
uma sociedade, até então totalmente provinciana e bucólica, que, em poucos anos, encheu-se
de arranha-céus. Venezuela quis ser um país moderno, mas seu desenvolvimento foi mais
rápido do que o de seus habitantes, despistados entre tantas mudanças. Fez-se necessário
apelar à imitação: a sociedade adaptou-se à nova situação mediante a pose. Para ser ricos e
desenvolvidos bastaria aparentar sê-lo, porém a ambiguidade que surge da não
correspondência entre a vida e a realidade – o que se torna insustentável – gera um sentimento
que define a tensão entre o homem e seu entorno: o fracasso.
A nacionalização do petróleo originou um acelerado crescimento econômico que
repercutiu em todos os âmbitos da vida do país e ocasionou uma mudança na idiossincrasia do
venezuelano, com respeito ao trabalho, ao progresso e à sua maneira de entender-se dentro do
mundo. Nasceu, então, a Venezuela saudita, um país milionário habitado por pobres, uma
terra mágica de onde brotava ouro negro, uma promessa. Viveram-se anos de aparente
prosperidade, mas uma hecatombe contida e iminente, consequência da dívida externa, a
desvalorização monetária, a corrupção e o controle cambiário cresciam entre a miséria de um
país majoritariamente pobre. A Geração dos 58, ano que marcou o início da democracia, da
qual Cabrujas formava parte, enfrentou, durante aquele período histórico, o dilema de provir
de um grupo social ideologicamente comprometido com o cosmos comunista e seus projetos
ou pertencer a uma nação cujo caráter, realidade e história os contrariavam.
Na obra de Cabrujas, se problematiza a concepção irreal que a sociedade venezuelana
tem sobre si mesma (vida pública), mediante a complexa luta interna de personagens que, na
procura de uma correspondência entre seus anelos e a realidade do entorno, desnudam suas
contradições pessoais (vida íntima) não só ante tudo e todos, mas, sobretudo, ante si mesmos.
Começa uma etapa na vida do autor que afetará sua cosmovisão do mundo, seus argumentos e
seu estilo dramático, etapa marcada por uma escolha vital: a procura da sinceridade. Ser
autênticos, como sociedade e como indivíduos, como criador e intelectual, será uma obsessão
para o dramaturgo.
O grupo social de Cabrujas, intelectuais de esquerda da democracia, fundou sua razão
de vida nos ideais utópicos do comunismo, sofreu uma progressiva e dolorosa desilusão, a
perda de uma ideologia que a realidade estava derrotando. O sentimento de fracasso, para
Cabrujas, define essa sociedade que pretendia se esconder por trás do engano e da impostura,
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do mesmo jeito que agem, com ou sem consciência, os personagens das obras a serem
estudadas. Eles sofrem demais. Pío Miranda, Arístides Lander e seu irmão Anselmo, todos
carregam o peso de sua própria frustração e buscarão, por meio da confissão aberta, o
caminho à sinceridade, que não resolve seus problemas (em ocasiões os aumenta), mas
suprime a mentira e dá abertura ao reconhecimento. A insignificância histórica, a falsidade, as
derrotas pessoais, o absurdo e as frustrações amorosas atormentam estes personagens que
sempre disfarçam seus fracassos, frente aos outros e frente a si mesmos, por trás de
ideologias, comportamentos e posturas que não lhes permite explicar-se ou se entender-se,
tampouco para melhorar-lhes a vida.
O autor apresenta universos dramáticos nos quais a confusão de relações resultante do
encontro dos personagens com a cultura, a religião e a política os ancoram na história. Contra
o sentimento de derrota e falsidade de seu país e grupo social, Cabrujas propõe, em seus
dramas, uma estratégia: a confissão. O clímax de cada obra, tensão máxima da progressão
dramática, é alcançado quando um personagem confessa seu fracasso e se revela ante os
outros com sinceridade. O resultado é um processo de despojo que termina em situações
radicais, violentas e dolorosas.
A hipótese deste trabalho consiste em comprovar, mediante a análise crítica das duas
peças de teatro de José Ignacio Cabrujas, o potencial explicativo da estratégia criativa da
confissão dos personagens, em relação ao sentimento de fracasso de um grupo social, a que
pertence o autor, e como parte de um plano para superar as imposturas derivadas do resguardo
ideológico.
Metodologia
Antes de entrar no assunto, uma aclaratória: Dizemos último teatro como fórmula
metafórica para significar o teatro mais maduro e definitivo de Cabrujas, que está constituído
por El americano ilustrado e El día que me quieras. Houve otras obras posteriores, mas não
abordam o tema do fracasso que era o que mais interessava a Cabrujas, e tal vez por isso não
sejam tão transcendentes nem tenham sido tão representadas quanto este par de obras que até
aqui analisamos. Porém, como viemos dizendo, houve mais obras. Em 83, Una noche
oriental, em 90, Autorretrato de artista con barba y pumpá e em 95, Sonny, diferencias sobre
Otelo, el moro de Venecia. Resulta evidente, desde um ponto de vista literal e estritamente
cronológico, que o par de obras que analisamos compõem o “último” teatro de Cabrujas é um
disparate ou um abuso. Para evitar mal entendidos, repetimos: “último” é metafórico.
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Esta é uma pesquisa qualitativa, exploratória e bibliográfica. A forma de abordagem
do objeto de estudo é qualitativa, porque consideramos que há uma relação dinâmica entre
sujeito e mundo real; mais especificamente, entre dramaturgo, José Ignacio Cabrujas, seu
grupo social, os intelectuais de esquerda e seu entorno, a Venezuela de 1979-1986. A pesquisa
será exploratória, já que tem o objetivo de proporcionar maior familiaridade a cerca do teatro
de Cabrujas e do contexto em que foi escrito, em vista de fazê-los explícitos, para poder
relacioná-los dialeticamente e evidenciar suas estruturas significativas. Do ponto de vista do
procedimento técnico, a pesquisa é bibliográfica, pois foi elaborada a partir de textos
publicados (obras de Cabrujas, literatura, teoria literária, história venezuelana e latinoamericana).
O fracasso do projeto do país é múltiplo e deve ser abordado desde diferentes
perspectivas: em primeiro lugar, há um grande fracasso econômico, pois com tanto petróleo as
condições tendiam a riqueza, mas sofremos um crescimento sem desenvolvimento (Maza
Zavala, Márquez); em segundo lugar, há um fracasso político terrível no governo de Carlos
Andrés Pérez, que fez voar mais alto do que nenhum outro governante as aspirações dos
cidadãos que, em pouco tempo, se viram traídos (Blanco Muñoz, Caballero); ademais, há um
fracasso social, o de uma sociedade deslocada de sua realidade, sem identidade e, certamente,
despreparada para uma crise tão profunda e aparentemente interminável (Pocaterra, Arraiz
Lucca); por fim, há um fracasso ideológico, o da utopia comunista e da revolução latino
americana, desmanchada pela nova utopia do petróleo que prometia uma salvação mais
tangível e próxima (Beltrán Figueredo, Eagleton).
Marco teórico: Teoria de motivos e estratégias
Esta pesquisa se soma aos trabalhos que, contrários às leituras imanentes, procuram
decifrar os vínculos entre literatura e sociedade, âmbitos que não estão separados, a não ser no
espaço acadêmico, para assim poder ler e entender a criação teatral como o que sempre tem
sido: uma prática no mundo.
Este modo de abordar os estudos literários tem sua origem na corrente sociológica da
crítica marxista, vinculada à análise dos processos de produção literária, que tem como
principais expoentes críticos Lukács e Goldmann. As inquietações analíticas deste último,
Lucien Goldmann, culminaram no desenvolvimento do estruturalismo genético: teoria que se
ocupa das relações entre a visão de mundo de um autor e as circunstancias históricas que a
possibilitam. Ángel Berenguer, discípulo e amigo de Goldmann, parte dos estudos de seu
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mestre para desenvolver uma proposta de análise específica para a pesquisa e crítica do teatro:
teoria de motivos e estratégias.
Nosso estudo sobre a obra de Cabrujas se baseia nestes mesmos pressupostos teóricos
e pretende ser o primeiro a explicar, a partir de sua produção dramática, de forma coerente, as
relações entre a visão de mundo do grupo social a que pertence o autor e o complexo tecido
de circunstâncias históricas que possibilitaram essa visão.
Cabrujas: autor, grupo social e entorno.
Berenguer concebe o autor como um “eu individual” que faz parte de um “eu
coletivo” que enfrentam ao “entorno” (2009, p.15) Em nosso estudo, o eu individual é
Cabrujas dramaturgo e o eu coletivo é o grupo social dos intelectuais de esquerda da Caracas
dos anos 70. O entorno, por sua vez, corresponde àquela Venezuela petroleira com sua
economia falida e seu coração quebrado. O enfrentamento entre indivíduo e entorno acontece
com a finalidade de melhorar as condições de vida do sujeito (individual ou coletivo). Nesse
contexto, as obras de um autor são suas reações à agressão do entorno. Concretamente, El día
que me quieras e El americano ilustrado são produtos da reação de Cabrujas (no plano
conceitual) frente à tensão entre o entorno da Venezuela petroleira capitalista e o grupo social
dos intelectuais de esquerda. Isto poderia parecer equivocado si consideramos as críticas que
o autor recebeu de outros membros de seu grupo social pelo conteúdo ideológico de suas
peças, mas trata-se de uma má interpretação; se Cabrujas criticava seu grupo radicalmente era
para não o ver morrer por inadaptação ou se envilecer por falsidade. Na medida em que o
grupo social ganha força, o sujeito ganha individualidade. (2009, p.15)
Esta priorización de lo individual se irá abriendo camino en todas las
manifestaciones científicas primero, después sociales y políticas y, paralelamente, en
la expresión artística. En el plano político, los individuos tienden a promover dos
actitudes: una conservadora del pasado recuperado del Antiguo Régimen y otra
renovadora radical que busca nuevas vías para el desarrollo y el éxito del individuo
y del grupo.1 (2009, p.15)
A atitude de Cabrujas em relação a seu grupo é sem dúvida renovadora e radical:
expõe o fracasso ideológico de seu grupo social, a esquerda intelectual venezuelana. Pío
Miranda, ao renegar em repentina explosão o seu comunismo, para o espanto da família
Ancízar, é, em certo ponto, o próprio Cabrujas, dizendo aos seus companheiros de geração:
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Tradução: “Esta priorização do individual abrirá seu caminho em todas as manifestações científicas primeiro,
depois sociais e políticas e, paralelamente, na expressão artística. No plano politico, os individuos tendem a
promover duas atitudes: uma conservadora do passado recuperado do Antigo Regime e outra renovadora radical
que procura novas vias para o desenvolvimento e sucesso do individuo e do grupo.”
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fracassamos. Estabeleceu-se uma democracia condensada e rica. O petróleo inflamou as
ambições, comprou as consciências, subvencionou a tibieza revolucionária. A possível
revolução adoeceu de dólares. Desde a perspectiva coletiva, o campo cultural teatral
venezuelano nunca teve tanto dinheiro, tanto bem-estar, tão boa saúde. Construíam-se teatros,
promoviam-se festivais, germinavam grupos, criavam-se prêmios. Porém, desde a perspectiva
individual, Cabrujas, membro e militante do Partido Comunista da Venezuela (PCV) e do
Movimento ao Socialismo (MAS), sentiu em sua própria carne não só a contínua, sólida e
histórica derrota eleitoral de ambos partidos, mas também a “capitulação” da guerrilha
armada, a FALN. Cabrujas acaba se comportando como o “inconforme” dos “inconformes”,
quando expõe no plano conceitual o fracasso de seu grupo, o fracasso da ideologia comunista
e dos partidos em que havia militado, dentro das condições históricas do país naquele
momento. Diante disso, propõe, como estratégia, a confissão do fracasso e a aceitação da
realidade. Cabrujas é a consciência “inconforme” dentro da visão do grupo “inconforme” de
esquerda, que deseja reconhecer seu fracasso confessando-o à sociedade como parte da
procura por autenticidade e, no fundo, para a supervivência do grupo, ineficaz socialmente
falando.
Resumindo, esquematizando: o autor Cabrujas reage ao motivo do fracasso com a
estratégia da confissão.
Teoria de motivos e estratégias
A teoria de motivos e estratégias de Ángel Berenguer parte do estruturalismo genético
para explicar uma obra de teatro em relação a seu contexto e determinar a rede de relações
entre entorno, grupo social e indivíduo, que entram em jogo na gênese das obras analisadas.
De acordo com o sentido de relações, podemos explicar uma obra de duas maneiras: do
“entorno” ao “eu” (produção da obra) e do “eu” ao “entorno” (crítica da obra). Em palavras de
Berenguer:
Produção da obra
En el primer caso, el YO genera una obra partiendo del ENTORNO que se configura
en el plano conceptual donde la transformación es constante. Esta inestabilidad
[relación con el ENTORNO] creará en el YO una tensión a la que reaccionará
significativamente a través de estrategias. Su reacción a la tensión se concreta en una
reacción a motivos específicos que deben ser el objeto último de un estudio crítico.
El YO individual adopta un conjunto de estrategias en esa búsqueda de la
autenticidad. La producción final de la obra se ejecutará en el plano imaginario. 2
(p.24)
2
Tradução: “No primeiro caso, o EU gera uma obra partindo do ENTORNO que se configura no plano
conceitual onde a transformação é constante. Esta instabilidade [relação com o ENTORNO] criará no EU uma
tensão à que reagirá significativamente através de estratégias. Sua reação à tensão se concreta em uma reação a
17
Crítica da obra
El YO receptor-crítico accede a las estrategias que ha utilizado el artista para la
configuración de su obra y los motivos que la han alentado y materializa sus
reflexiones en el texto crítico, regresando así al plano conceptual del que partió el
artista.3 (2009, p.25)
Essas seriam as bases do método de análise que Berenguer propõe, embora falte ainda
mencionar um termo, um conceito, uma categoria analítica sem a qual resultaria impossível
sistematizar o estudo da obra de arte no contexto da tensão entre o indivíduo e sua sociedade:
as mediações. “Las mediaciones”, explica Berenguer, “se plantean en este método como
estructuras cuya función consiste en establecer y sistematizar las áreas en que el YO se
relaciona de una manera problemática (tensión) con el ENTORNO”4 (2009, p.26). São
mediações, a rede de acontecimentos, de experiências e de ideias que afetaram a vida de
Cabrujas e favoreceram sua inserção no grupo de intelectuais de esquerda venezuelanos, na
segunda metade do século XX. Dividimos e catalogamos tais mediações a partir de três
categorias: a mediação histórica, a mediação psicossocial e a mediação estética.
Das mediações surge o motivo criador: a relação tensa entre Cabrujas e a Venezuela
petroleira se concretiza no plano imaginário em um motivo, o fracasso. Frente esse motivo,
Cabrujas reage significativamente por meio da estratégia da confissão.
I. CONTEXTO SOCIO-POLÍTICO DA VENEZUELA ENTRE 1979 E 1986
O fracasso econômico. Ilusão e desengano
Os processos históricos são sempre lentos e extensos, e, ao mesmo tempo, plurais e
múltiplos, legitimamente irredutíveis. Porém, na necessidade de fazer um corte histórico de
sete anos (os sete anos transcorridos entre os esternos de El día que me quieras e El
americano ilustrado) e de achar neles uma coerência, como a unidade de tempo e de
significado, consideramos que esse período está, sem dúvida, definido pela evidência do
fracasso: o fracasso econômico nacional.
motivos específicos que devem ser o objeto último de um estudo crítico. O EU individual adota um conjunto de
estratégias nessa procura por autenticidade. A produção final da obra se executará no plano imaginário.”.
3
Tradução: “O EU receptor-crítico acessa as estratégias usadas pelo artista para a configuração de sua obra e os
motivos que a tem induzido e materializa suas reflexões no texto crítico, voltando assim ao plano conceitual de
onde partiu o artista.”.
4
Tradução: “As mediações são entendidas neste método como estruturas cuja função consiste em estabelecer e
sistematizar as áreas em que o EU se relaciona de maneira problemática (tensão) com o ENTORNO”
18
O efeito que a descoberta da evidência do fracasso econômico produz nos
venezuelanos tem o peso de um terrível desengano, cruel na medida em que acaba com as
ilusões e as expectativas de um povo que se achava rico e estava bêbado de petróleo e
ostentação até que, repentinamente, tropeça com a realidade (anunciada, mas ébria e
felizmente ignorada) de uma dívida impagável e cobrada no pior momento.
A evidência do fracasso se manifestou em uma série de medidas que o governo
assumiu -desvalorização da moeda e controle cambiário- assustando os venezuelanos
desprevenidos. O desengano nacional foi tão devastador em suas consequências quanto um
desengano amoroso. Dor de orgulho ferido. Raiva, desilusão, mágoa. Tudo aconteceu numa
sexta-feira, 18 de fevereiro de 1983, dia que entrou para a história venezuelana como viernes
negro; nome melodramático -como é o venezuelano- e involuntariamente irónico, se
consideramos o fato de que a causa para desengano parte, primeiro, da ilusão, da ilusão pela
riqueza petroleira e sua cultura do milagre: o milagre do ouro negro.
(O Caracazo de 1989 é uma consequência do viernes negro: do descontentamento
geral plantado nesse dia brota, poucos anos depois, o Caracazo, um distúrbio, uma bagunça
pública, uma revolta popular espontânea de enorme potência a qual se soma um grupo de
militares descontentes e a convertem em um golpe de Estado).
A história do século XX venezuelano pode ser explicada como a história do amor
falido, apaixonado e furioso, entre o país e a riqueza petroleira. Um amor fracassado. O
contexto temporal que nos interessa (1979-1986) representa para a história venezuelana a
evidência do fracasso econômico (que é sempre um fracasso político), ao qual chamamos
desengano. Cabrujas escreve as duas obras analisadas neste estudo durante o período do
desengano nacional.
O historiador Manuel Caballero, a fins do século XX, faz uma sintética revisão da
história política venezuelana de democracia contemporânea, partindo fim da ditadura de
Marcos Pérez Jiménez (1958) até o fim do século, dentro da qual encaixa perfeitamente a
nossa metáfora do desengano amoroso nacional. Dizia Caballero que
Esos cuarenta años han conocido una sucesión de gobiernos buenos, regulares y
francamente malos, pero en su conjunto el balance es positivo: nunca en la historia
de Venezuela los venezolanos habían vivido tan bien como en ese período. Esta no
es una imagen idílica del período: a partir de 1977 (paradójicamente, después de
haber recibido la mayor cantidad de ingresos de su historia gracias al aumento de los
precios del petróleo), en Venezuela se produjo paulatinamente un proceso de
empobrecimiento general, el mismo que conoció toda América Latina en la llamada
“década perdida” de los ochenta. Hemos dividido ese período en dos partes: “El
ascenso” (1958-1978) y “La caída” (1978-1998). Ese esquema es generalmente
19
aceptado por todos los analistas calificados de la historia venezolana reciente. 5
(Revolución, reacción y falsificación, p.56)
O começo da “Caída” (histórica) coincide, como é pertinente que aconteça em
qualquer relação de confiança traída, com o desengano nacional, com a descoberta por parte
do venezuelano de que a fundamentação da confiança nacional, da sua fortaleza (econômica e,
por extensão, social e psicológica) é falsa.
O “Ascenso”, ao contrário, foi de esperança e idílio. Desde que Juan Vicente Gómez
pagou a dívida externa em 1930, o país passou décadas solvente, fortalecido posteriormente
pelos elevados preços do petróleo que seguiram à Segunda Guerra. Mais tarde, na década de
cinquenta, os Estados Unidos duplicam sua produção de automóveis e, consequentemente, sua
demanda de gasolina. Marcos Pérez Jiménez subjugou o país durante dez anos com uma
ditadura militar e teve a sorte de governar com grande opulência econômica. Proliferam
rodovias, urbanizações, monumentos, obras públicas: a cidade se urbaniza, se enche de
prédios, de praças, de projetos urbanos. Depois do derrocamento de Pérez Jiménez, começa a
democracia contemporânea da Venezuela.
Na década de sessenta, se cria a Organização de Países Exportadores de Petróleo
(OPEP), da qual Venezuela forma parte junto com outros países que desejam, em conjunto,
proteger e regular seus negócios petroleiros. A economia venezuelana ganha em estabilidade e
riqueza. O país crescia sem esforço, se construíam hospitais, universidades e escolas.
Multiplicavam-se os movimentos artísticos, os espaços de cultura, as agrupações teatrais. O
país acordava cultural e socialmente à democracia. A década dos sessenta está marcada pelo
entusiasmo geral e pela esperança de crescimento e progresso.
Uma voz dissonante
A pedra no sapato da consciência nacional, o desmancha-prazeres solitário no meio
daquele entusiasmo geral foi o historiador e articulista de imprensa Augusto Mijares. Este, já
em 1968, desde a modesta tribuna que representa um jornal, alertava a respeito dos perigos
envolvidos na exploração e venda do petróleo. O seu olhar histórico achava nos registros do
tempo amostras suficientes de inconsciência e esbanjamento econômico para desconfiar do
5
Tradução: “Esses quarenta anos tem conhecido uma sucessão de governos bons, regulares e francamente ruins,
mas, no geral, o balanço é positivo: nunca na história da Venezuela os venezuelanos tinham vivido tão bem
quanto neste período. Esta não é uma imagem idílica do período: a partir de 1977 (paradoxalmente, depois de ter
recebido a maior quantidade de ingressos da sua história graças ao aumento dos preços do petróleo), na
Venezuela se produz paulatinamente um processo de empobrecimento geral, o mesmo que conheceu toda
América Latina na chamada “década perdida” dos anos oitenta. Temos dividido esse período em duas partes: “O
Ascenso” (1958-1978) e “A caída” (1978-1998). Esse esquema é geralmente aceito por todos os analistas
qualificados da história venezuelana recente”.
20
sucesso da imediata nacionalização petroleira. Mijares temia que o enriquecimento sem
esforço envilecesse o temperamento do venezuelano. O mito do ouro da época da colonização
revivia em forma de ouro preto, segundo Augusto Mijares, no artigo “Riqueza fácil”,
publicado no jornal El Nacional no dia 11 de setembro de 1968 e compilado no livro
Coordenadas de nuestra historia:
En nuestros días aquel mito multisecular ha vuelto a aparecer con el petróleo. Más
tentador que las perlas, porque el ocio y los placeres que él paga los ve todo el
mundo, y tan desmesurado, casi inconcebible, en la realidad, como el Dorado lo fue
sólo en la imaginación, que parece algo sobrenatural. El Dorado no es hoy sino una
colonia de delincuentes. Casi todos, precisamente, porque a la riqueza producida por
el trabajo, prefirieron la riqueza fácil. 6 (2000. p.574)
A euforia nacional não permitia prudências. Enriquecíamos estratosfericamente, sem
pausas, sem escrúpulos, grosseira e opulentamente, na mesma medida em que gastávamos. “O
que fácil vem, fácil vai” é um ditado que se aplica para definir as políticas econômicas dos
programas de governo venezuelano da segunda metade do século XX. Uma sociedade rica,
porém formada não de trabalhadores, mas de parasitas.
As vacas gordas
Os milhões com os quais sonhava a ansiosa Venezuela dos anos sessenta chegaram
duplicados nos anos setenta graças a um evento inesperado: a crise mundial do petróleo de
1973. Com a Guerra do Ramadã ou Guerra de Outubro - enfrentamento militar entre Israel e
os países árabes (Egito, Síria) pela Palestina - os estados do Golfo Pérsico, membros da
OPEP, colocaram uma penhora petroleira sobre os países amigos de Israel (Estados Unidos e
Holanda). Com a culminação dos conflitos no Médio Oriente, os países petroleiros do Golfo
Pérsico haviam deixado, em conjunto, de exportar petróleo aos Estados Unidos e, em
consequência da baixa oferta, os preços do petróleo dispararam. E o resultado? Os ingressos
do governo venezuelano quadruplicaram. Com um novo sentido de confiança, o presidente
Carlos Andrés Péres prometeu -convenceu ao país- que Venezuela desenvolver-se-ia
significativamente a mínimo prazo.
Paradoxalmente, a Venezuela acabou com sua indústria nacional. Resultava mais
barato comprar e importar qualquer coisa do que produzi-la. Extintos os industriais, restaram
apenas empresários. Quem concertava máquinas de lavar, passou a importá-las e abriu uma
6
Tradução: “Em nossos dias aquele mito multissecular voltou a aparecer com o petróleo. Mais tentador do que
as pérolas, porque o ócio e os prazeres que ele paga são vistos por todos, e tão desmesurado, quase inconcebível,
na realidade, quanto o Dourado o foi só na imaginação, que parece algo sobrenatural. O Dourado não é hoje
senão uma colônia de bandidos. Quase todos, precisamente, porque à riqueza produzida pelo trabalho, preferiram
a riqueza fácil.”
21
loja de máquinas de lavar. Quem fazia roupa, agora a comprava na China ou no Peru e a
revendia na Venezuela. As famílias com dinheiro viajavam até Miami para renovar sua
indumentária e comprar novos eletrodomésticos (os venezuelanos eram muito bem recebidos,
então). Daquela época se origina a expressão do tabaratismo, isto é, quando um venezuelano
entrava em uma loja, de qualquer país, perguntava, aleatoriamente, o preço de um produto e
depois de escutar valor, invariavelmente, respondia “Tá barato, me dá dois”. Com o petróleo,
perdia sentido qualquer produção em matéria de custos, o que importava era estar perto do
fluxo milionário do petróleo, distribuir e tomar da grande riqueza matriz.
Sucede que la fortaleza de la moneda venezolana y la debilidad o inexistencia de una
industria y de una agricultura habían acostumbrado, con el estímulo natural de esa
moneda “dura”, a importar todo; el alud de dinero que llegó al país a partir de 1973
no hizo sino magnificar esa tendencia; y en la clase media venezolana se hizo
costumbre no esperar a que los artículos de consumo llegaran a los puertos de su
país, sino ir a buscarlos a su lugar de origen. En esas condiciones, comprar en el
extranjero no se veía como una catástrofe sino como un hábito 7. (CABALLERO,
2003, p.165)
Estimulado, atraído pela enorme quantidade de ingressos, o presidente Carlos Andrés
Pérez prometeu o imediato desenvolvimento do país e nomeou o seu delírio como La Gran
Venezuela. Pensava usar os benefícios do petróleo para aumentar o emprego, combater a
pobreza e investir na diversificação da economia. Como se aproximava, rapidamente, a
nacionalização do petróleo, o venezuelano tinha muita confiança em sua solidez monetária.
Por isto, gastava o lucro sem prudência. Assim como na história da formiga e a cigarra, os
governos venezuelanos, cigarras caribenhas e inconsequentes, não pouparam, não inverteram,
mas gastaram todos os recursos. A anelada nacionalização saiu cara e, apesar dos ingressos,
teve que solicitar empréstimos que até hoje a Venezuela negocia.
Advertências ignoradas. Crónica de um fracasso anunciado
Mais uma vez, depois de seis anos, a voz dissonante de Augusto Mijares regressa ao
ataque desmancha-prazeres e direciona certeiramente os temas relevantes antes de disparar.
Com dois anos de antecedência, já em 1974 (18 de fevereiro, mais especificamente), Mijares
publica um artigo intitulado “Petróleo”, onde polemiza o projeto de nacionalização e
exploração direta do petróleo venezuelano. “Ha prevalecido un ambiente de entusiasmo y de
7
Tradução: “Acontece que a força da moeda venezuelana e a debilidade ou inexistência de uma indústria e de
uma agricultura tinham se acostumado, com o estímulo natural dessa moeda forte, a importar tudo. A avalanche
de dinheiro que chegou ao país a partir de 1973 não fez senão magnificar essa tendência; e na classe média
venezuelana se fez costume não esperar que os artigos de consumo chegassem até os portos do seu país, mas ir
procurá-los no seu lugar de origem. Nessas condições, comprar no estrangeiro não era visto como uma catástrofe
e sim como um hábito”.
22
anticipada celebración que por esto mismo nos mueve a desconfiar8” (2000, p.602). Mijares
argumenta que ter alcançado a data formal, indicando o prazo para a reversão de contratos
petroleiros, não é indicativo suficiente, não é prova de que o país estivesse pronto e
preparado. Não era possível sequer, escrevia Mijares, ter um correio eficiente, controlar a
situação das crianças abandonadas, tampouco ter um sistema de transporte urbano funcional.
Como, então, em meio ao fracasso administrativo, propor a exploração direta do petróleo
estando o país em situação de fracasso administrativo? Teme, com toda justiça, que prolifere a
corrupção. Conclui dizendo: “No sé si juzgarán demasiado pesimistas mis observaciones,
ningún examen de conciencia puede dejar de ser amargo9” (2000, 604).
A sorte da futura empresa petroleira - que mesmo antes de existir se projetava como a
futura principal empresa do país - dizia Mijares, “no puede dejarse a merced de las
fluctuaciones políticas10” (2000. p.605). Mijares argumentava que a riqueza petroleira não
devia ser usada para comprar o bem-estar, mas para fazer com que a produção e a indústria
endógena crescessem. Em poucas palavras, como costumava dizer metaforicamente Arturo
Uslar Pietri, se devia sembrar11 o petróleo; caso contrário, no melhor dos cenários possíveis
(ausência de corrupção e “maravillosa aptitud administrativa y técnica 12” do governo), isto é,
num cenário ideal, utópico, a verdadeira situação da Venezuela seria patética. Nesse cenário,
o país, segundo Mijares, converter-se-ia numa empresa, uma gigantesca empresa, nada além
disso. E não só seria a Venezuela uma empresa para explorar diretamente o seu petróleo, mas
-e aqui está a gravidade- para transformá-lo em dinheiro para comprar outros produtos, solver
carências econômicas de todo tipo e assumir tarefas que não são de sua pertinência.
Observemos o absurdo de dita situação, como propõe Mijares, invertendo a relação.
Imaginemos que
a cualquiera de las actuales empresas petroleras mundiales se la hipertrofiara hasta el
punto de asumir responsabilidades del Estado, que tuviera que atender a todas las
necesidades y gastos de una nación: salubridad, ejército, comunicaciones, roscas
profesionales y políticas, niños y locos que andan sueltos, madres solteras que ya no
tienen dónde seguir “alumbrando”, vegetación que arde y ríos que se secan,
subsidios para cuanto se produce, un Banco Agrícola que con inevitable puntualidad
pierde su capital cada cierto tiempo y unos Institutos Autónomos que nunca son
8
Tradução: “Tem prevalecido um ambiente de entusiasmo e de antecipada celebração que, por isto mesmo, nos
faz desconfiar”.
9
Tradução: “Não sei se julgarão pessimistas demais minhas observações, nenhum exame de conciência pode
deixar de ser amargo.”
10
Tradução: “não pode ficar a mercê das flutuações políticas”.
11
Tradução: “plantar” o petróleo.
12
Tradução: “maravilhosa aptidão administrativa e técnica”
23
autónomos para dejar de pedir auxilios al gobierno, los problemas que la
industrialización y los de la reforma agraria, etc. etc. 13 (2000.605)
O cenário parece absurdo. Porém, foi isso mesmo o que aconteceu, o Estado virou
empresário e, com milhões de petrodólares, sustentou a economia da Venezuela. A
nacionalização do petróleo e a criação da empresa Petróleos da Venezuela (PDVSA)
aconteceu em 1976. Contudo, neste mesmo ano, o país adquiriu uma enorme dívida para
financiar os custos da nacionalização. Terminava o período das vacas gordas e se aproximava
o de vacas magras, para o qual o país não estava preparado.
Em 1979, Luís Herrera Campins é eleito Presidente da República e recebe o país com
o preço do petróleo ainda alto e o verá subir mais durante seu mandato, fato que não impedirá
o aumento das dívidas até ocasionar um colapso. A corrupção administrativa, a ineficácia
oficial, a falta de planejamento de vários governos consecutivos, são variáveis que se
coordenaram para preparar a debacle. Entretanto, a alegre temeridade econômica do governo
de Carlos Andrés Pérez, que falava da Gran Venezuela e prometia paraísos (ignorando os
sinais que anunciavam tempos tormentosos), e o cumplice silêncio de Luís Herrera Campins,
indeciso mandatário num momento crítico, foram fatores que contribuíram para ocultar a
catástrofe.
O desengano
O venezuelano bate de frente com a evidência do fracasso econômico nacional na
sexta-feira 18 de fevereiro de 1983 (vienes negro), quando o país acorda com a moeda
desvalorizada e com a venda de divisas suspendida. Venezuela, que se achava rica,
experimenta, então, os primeiros sintomas da doença econômica, o começo da instabilidade
monetária do país.
O sentimento é de incompreensão, de incredulidade, de impotência. Retomemos a
analogia amorosa que usamos ao princípio: o venezuelano é como um noivo apaixonado de
sua noiva, uma garota morena, voluptuosa e sensual chamada Riqueza Petroleira, melhor
conhecida como Rica. O namorado se sente muito bem, tem passado as últimas duas décadas
feliz, doido de amor por Rica. Está contente. Tio Augusto, porém, não cessa de lhe advertir
13
Tradução: “se qualquer das atuais empresas petroleiras mundiais fosse hipertrofiada até o ponto de assumir
responsabilidades do Estado, e tivesse que atender todas as necessidades e gastos de uma nação: salubridade,
exército, comunicações, roscas professionais e políticas, crianças e loucos que andam soltos, mães solteiras que
já não têm onde seguir dando à luz, vegetação que arde e rios que secam, subsídios para quanto se produz um
Banco Agrícola que com inevitável pontualidade perde seu capital cada certo tempo e uns Institutos Autônomos
que nunca são autônomos para deixar de pedir auxílios ao governo, os problemas que a industrialização e os da
reforma agrária, etc., etc.”
24
que Rica é perigosa e desperta a desconfiança nele, que parece estar escondendo algo, mas,
cego de amor, ele o ignora. Até que, um belo dia, numa sexta-feira, 18 de fevereiro, o noivo
volta mais cedo do trabalho e descobre que Rica o trai com o porteiro do prédio. O efeito é,
logicamente, imediato: a ilusão se derruba frente à evidência do fracasso porque Rica não era
o tipo de garota que o venezuelano achava.
A dívida contraída em meados dos setenta e cobrada repentinamente pela banca
internacional, em um momento em que Venezuela enfrentava uma forte fuga de capitais,
causou um colapso nas reservas. A dívida saiu de controle e o Banco Central da Venezuela se
declarou insolvente em fevereiro, forçando o governo (para frear a fuga de capitais, negociar
com a banca e, ao mesmo tempo, organizar as coisas dentro do país) a tomar uma série de
medidas econômicas extremas: desvalorização e controle cambiário, que acabaram não
adiantando. A explicação é complicada, uma vez que o explosivo coquetel de fatores
econômicos que ocasionaram o viernes negro tomou a todos –inclusive o governo - de
surpresa.
No meio deste cenário, o país estava confuso e carente de explicações. A economia se
derrubava de forma abrupta e repentina e o governo parecia sem soluções. Suas ações foram
brandas: primeiro, suspenderam a venda de divisas por dois dias, prazo que foi estendido por
mais uma semana, passada a qual estabeleceram o controle cambiário. Tal fato foi encarado
como um ato de indecisão. “El gobierno se encontraba”, segundo Manuel Caballero, “entre la
espada y la pared; y optó entonces por una solución media: estableció un control de cambios
pero se negó, como lo pedían algunos personeros del gobierno mismo, a una devaluación
lineal.”14 (2003, p.167)
Decretou-se uma desvalorização necessária, embora insuficiente, do valor do bolívar
em relação ao dólar: houve uma desvalorização, no mercado oficial, de 4.30 a 7 bolívares por
dólar. “La devaluación”, explica Manuel Caballero, “trajo consigo el agravamiento de otro
fenómeno que ya había comenzado a manifestarse: la inflación. Este es un fenómeno mundial,
pero Venezuela parecía a resguardo de eso: Venezuela parecía una isla rodeada de petróleo
por todas partes.”15 (2003, p.170)
14
Tradução: “O governo se encontrava entre a espada e a parede; e optou então por uma solução média:
estabeleceu um controle de câmbios, mas negou-se, como o pediam alguns achegados ao governo, a uma
desvalorização linear”
15
Tradução: “A desvalorização trouxe consigo o agravamento de outro fenômeno que já havia começado a se
manifestar: a inflação. Este é um fenômeno mundial, mas a Venezuela parecia livre disso: a Venezuela parecia
uma ilha rodeada de petróleo por todas as partes”.
25
Coração quebrado
A desvalorização, a inflação e a dívida representavam para o país a evidência do
fracasso. “Para los venezolanos significaba el fin de una vieja ilusión, la de la solidez de su
moneda que se parangonaba en esto con las de los países del Primer Mundo” (CABALLERO,
2003, p.169). Incrédulo, ferido, desapontado, o venezuelano se perguntava o que havia
acontecido, como não foi prevista aquela possibilidade, por que não haviam administrado os
recursos enquanto existiam. A resposta é que, na verdade, houve, de fato, algumas
advertências, mas foram ignoradas. Nos primeiros anos da década de setenta, alguns
economistas e homens de Estado propuseram certas reformas, certa ordem, entretanto a
Guerra do Ramadã acabou com toda mesura possível. Teria resultado impopular para o
governo, pedir austeridade para os eleitores conscientes da fabulosa quantidade de
petrodólares que entravam no país. Impopular e desagradável, mais ainda para um presidente
como Carlos Andrés Pérez, presidente e showman. Além, ainda que Pérez desejasse fazê-lo,
ninguém o teria apoiado: simplesmente, explica Caballero, faltou piso político para prosseguir
com suas reformas, assim como aconteceu com o governo de Herrera Campins; porque o país
inteiro estava intoxicado, ébrio de petróleo caro.
Vale a pena considerar a visão panorâmica que desde o ano 2000 projetava Arturo
Uslar Pietri (intelectual e político) sobre a incompetência administrativa da riqueza petroleira
na história política nacional:
Realmente era muy difícil que aquí no se cometieran muchos disparates. La
situación en el siglo XX venezolano ha sido extraordinariamente inusual y
corruptora, la situación de un país pobre, muy atrasado y muy ignorante que de
pronto tiene un Estado inmensamente rico, y que esa riqueza no se debe al trabajo
nacional. El gobierno se convirtió en el principal agente de enriquecimiento y no
hubo clase dirigente, esa es la verdad, en otros países sí la hubo y muy poderosa y
muy eficiente, en Colombia, para no ir tan lejos, en el Perú, por no hablar de
Argentina. A este país le cayó encima una montaña de recursos y no fue capaz de
emplearlos medio sensatamente.16 (ARRAIZ, 2003, p.43)
Como novos ricos que fomos, esbanjamos a fortuna, a herança que caiu em nossas
mãos, não nos ocupamos em fortalecer a economia, a indústria, a produção nacional.
Construímos uma cidade moderna financiada pelo ouro negro e não pelo nosso trabalho e
16
Tradução: “Realmente era muito difícil que aqui não se cometessem muitos disparates. A situação no século
XX venezuelano tem sido extraordinariamente incomum e corruptora, a situação de um país pobre, muito pobre,
muito atrasado e muito ignorante que de imediato tem um Estado imensamente rico, e que essa riqueza não se
deve ao trabalho nacional. O governo se converteu no principal agente de enriquecimento e não houve classe
dirigente, essa é a verdade, em outros países a houve, sim, e muito poderosos e muito eficientes, na Colômbia,
sem ir muito longe, no Peru, para não falar na Argentina. Sobre este país caiu uma montanha de recursos e não
foi capaz de empregá-los meio sensatamente”.
26
proliferaram paralelamente arranha-céus e barracões. O milagre nos cobriu por décadas,
alimentou nossa cobiça e nossas esperanças. Os governos venezuelanos não souberam
preparar a flutuante economia para resistir a um forte golpe e, naquele fevereiro, a ilusão
(cimentada sobre fundamentos falsos) se desfez. O venezuelano enfrentou a evidência do
fracasso econômico nacional e o desengano produziu um trauma doloroso para o qual os
governos não o tinham preparado.
A medida que el Estado ha ido mostrando más abiertamente sus lacras y sus vicios, a
medida sobre todo que ha ido mostrando su ruina, la espléndida confianza en el
futuro, la expectativa de los venezolanos de que sus hijos tendrán asegurado un
porvenir promisor, donde la educación sería el canal privilegiado de movilización
social vertical, todo eso se vino al suelo. Una ola de escepticismo parece haber
ganado el país.”17 (CABALLERO, 2003, p.178)
Enquanto isso, Cabrujas…
Entre 1979 e 1986, Cabrujas produz de forma compulsiva e desenfreada. Atua para
teatro, escreve três obras teatrais, dirige várias peças e óperas, escreve roteiros
cinematográficos, uma minissérie para televisão, várias telenovelas e seus primeiros artigos de
opinião. Seu ritmo de trabalho é vertiginoso e o nível da quantidade e qualidade de produção é
muito alto, o que não suprime sua vida sentimental: neste mesmo período se casa com a
cantora lírica Isabel Palacios.
Cabrujas atua em Casa de bonecas, de Ibsen, dirigida por Carlos Gorostiza; em
Mesopotamia, de Isaac Chocrón, com direção de Ugo Ulive e em Prueba de fuego, escrita e
dirigida também por este. Dirige Los ángeles terribles, de Román Chalbaud e Simón, de Isaac
Chocrón, seus amigos e companheiros de ofício. Dirige também Drácula, de Bran Stoker e
realiza no Panteón Nacional Tres torres, tres silencios, tres erguidas soledades, com poemas
e textos seus e música de Aldemaro Romero. Começa, naqueles anos, a dirigir ópera: O
triunfo de amor de A. Scarlatti, Don Pasquale de Gaetano Donizetti, Don Giovanni de
Mozart, Tosca, de Giacomo Pucini e A sonâmbula de Vicenzo Bellini. Além de El día que me
quieras e de El americano ilustrado, escreve, ainda, Una noche oriental, dirigida por Enrique
Porte no Teatro Alberto de Paz y Mateos. Para cinema, escreve os roteiros originais de El
rebaño de los ángeles, dirigida por Román Chalbaud, e Homicidio culposo, escrito junto a
César Bolívar. Adapta, também para cinema, sua obra de teatro Profundo e sua telenovela La
señora de Cárdenas. Para televisão, Cabrujas escreve as telenovelas Natalia de 8 a 9; Chao,
Cristina; Gómez I y II (inspirada na vida do ditador Juan Vicente Gómez) e La dueña,
17
Tradução: “Na medida em que o Estado foi mostrando mais abertamente seus erros e seus vícios, na medida,
sobretudo, em que foi mostrando sua ruína, a esplêndida confiança no futuro, a expectativa dos venezuelanos de
que seus filhos terão assegurado um porvir promissor, onde a educação seria o canal privilegiado de mobilização
social vertical, todo isso se desmanchou no chão. Uma onda de cepticismo parece ter tomado conta do país”.
27
baseada em El conde de Montecristo de Alejandro Dumas. Além disso, escreve, para
televisão, a minissérie El asesinato de Delgado Chalbaud, que, assim como Gómez, aborda
fatos da história política venezuelana. Neste período começa, ainda, pela primeira vez, a
colaborar em El Nacional com seus artigos de opinião por convite de Miguel Otero Silva.
Por fim, resulta evidente que estes sete anos representam um período de intensa
atividade criativa para Cabrujas. Vamos explorar isto com mais detalhes no próximo capítulo.
II. CABRUJAS NO CAMPO TEATRAL VENEZUELANO
Assim como Bourdieu, temos que concordar que isso que chamamos campo artístico
não é bem o meio artístico, nem o contexto. Por exemplo, se falarmos de campo artístico
venezuelano não nos referimos apenas aos principais artistas venezuelanos e às suas obras,
com relação à intertextualidade e oposição entre si, mas à algo muito maior, que resulta
incompreensível desde uma perspectiva imanentista, que precisa de uma espécie de visão
macro e relacional, necessariamente interdisciplinar, e cujas contingências históricas,
econômicas e políticas implicam o foco sociológico das artes. Segundo Bordieu, falamos de
“um campo de forças que atuam sobre todos os que entram nesse espaço e de maneiras
diferentes segundo a posição que eles ocupam nele (...), e também de um campo de lutas que
procuram transformar esse campo de forças” (1989, p.2). Não se trata apenas, como ocorre
tradicionalmente, de analisar as obras dos autores, do espaço cultural (mais especificamente
teatral), de um determinado lugar (Venezuela), num determinado momento histórico (os anos
70), mas, também, de levar em conta, desde uma perspectiva relacional e não
hierarquisadora, o desenvolvimento político e as relações desse espaço com o poder
(institucionalização teatral do momento) como consequência e causa da situação econômica
contingente (bonança generalizada pelos fortes ingressos), com a respectiva conformação e
câmbio do campo e da batalha pela consagração e as posições das obras e de seus autores.
Recém falamos da conformação do campo teatral nos referindo à época de Cabrujas, o
que pode causar estranheza se consideramos que as primeiras manifestações teatrais se
remontam, como em grande parte do desigual continente de que Venezuela forma parte, à
época da colonização; faz mais de quatro séculos, e, contudo, não é uma asseveração gratuita.
Falar de um drama nacional venezuelano é falar, em seus primórdios e durante, literalmente,
séculos, de eventos, de fatos ocasionais. Os dramas esporádicos escritos pelos contados
dramaturgos e suas isoladas apresentações nas pouquíssimas salas de teatro, que então
existiam para um público informe, não representaram, até então, a um sistema, tampouco a
28
um campo, segundo Even-Zohar e Bourdieu. A proliferação na Venezuela de salas de teatro,
de público teatral, de autores e grupos, festivais, prêmios, instituições e, inclusive, o
aparecimento dos primeiros críticos sistemáticos são elementos que, juntos e combinados,
constituem o campo e o sistema, que na Venezuela são posteriores ao fim da ditadura de dez
anos de Pérez Jiménez. O começo da democracia coincide com o demorado processo de
institucionalização teatral, que não se explica totalmente se não consideramos a
nacionalização do petróleo, o único motivo, a única explicação para que uma sociedade pobre,
da noite para o dia, enriquecesse de tal modo que pudesse se permitir a teatros, festivais e mil
maravilhas tiradas, que nem coelho do chapéu, pela arte da magia e do nada.
Começa, então, o que Arturo Uslar Pietri, em sua faceta de ensaísta e político,
denominou “o biberão de petróleo” (tetero de petroleo), uma espécie de ilusão econômica e
política das que derivariam as futuras desgraças econômicas. Com o bem-estar social, se
instaurou o que o pesquisador Leonardo Azparren Jiménez denominou modelo social
democracia/petróleo, “por el tipo de acuerdo social, político y económico que ha regido la
vida venezolana en los últimos 40 años. Sus rasgos principales, la libertad, el bienestar de una
economía rentista y el Estado promotor y salvador, modelaron una sociedad nueva que
propició un espíritu cultural liberal18” (2011, p. 18). O surgimento de uma economia
capitalista de Estado, expansiva, benfeitora e sustentada pela renda petroleira, consolidou a
crença numa riqueza monetária invulnerável dando origem a noção ideológica da Gran
Venezuela, que em menos de uma década se mostrou ilusória. A rápida modernização e o
fluxo de dinheiro ajudaram a formar o campo teatral venezuelano, pois, como explica
Bourdieu, “a expansão econômica pode, por exemplo, exercer seus efeitos mais importantes
por mediações completamente inesperadas, tais como o aumento do volume dos produtores e
do público” (1989, p.3), como efetivamente aconteceu e vamos tentar demostrar aqui.
Cabrujas visto a partir do esquema do sistema literário
A continuação, trataremos de observar a obra de Cabrujas como pertencente a um
sistema nacional específico com dimensão histórica, o que implica entender a prática teatral
de forma relacionada, isto é, em suas formas de texto dramático, representação, circulação e
recepção. A dimensão histórica se refere às condições de produção, circulação e recepção em
seus contextos local, institucional e social. Vamos falar das obras de Cabrujas, de seu público
18
Tradução: “pelo tipo de acordo social, político e econômico que tem regido a vida venezuelana dos últimos 40
anos. Suas principais características, a liberdade, o bem-estar de uma economia rentista e o Estado promotor e
salvador, modelaram uma sociedade nova que propiciou um espírito cultural liberal”.
29
e o mercado, as instituições e os grupos de teatro, tentando, também, considerar as formas e
estilos teatrais, os dramaturgos e os textos dramáticos como elementos do sistema nacional
teatral venezuelano.
Vamos estruturar, agora, vários elementos do modelo de periodização da história do
teatro na Venezuela de Leonar Azparren Jiménez (2011, p.7-12) no esquema proposto por
Itamar Even-Zohar (a partir do esquema da comunicação e a linguagem de Jakobson) para
analisar os esquemas literários (2001. p.29). O esquema de Even-Zohar, extraído
textualmente, configura-se da seguinte forma:
INSTITUIÇÃO [contexto]
REPERTÓRIO [código]
PRODUTOR [emissor]–––––––––– [receptor] CONSUMIDOR
("escritor") ("leitor")
MERCADO [contato/canal]
PRODUTO [mensagem]
Passemos, agora, a uma enumeração, não necessariamente organizada (para o
pensamento relacional pouco importam ordem, estrutura e hierarquias), de elementos
extraídos do Modelo de Periodização de Azparren Jiménez e demarcados nos fatores do
esquema de Even-Zohar. Comecemos, então, comentando:
O produto
Cabrujas produziu textos de teatro, espetáculos teatrais, artigos, ensaios e crônicas
para a imprensa, programas de rádio, sobre ópera, roteiros de telenovelas, roteiros
cinematográficos de ficção e documentários. Considerando que a quantidade de produções é
muito grande e variada, vamos limitar nosso interesse no que, para efeitos literários e para
efeitos desta pesquisa, resulta mais pertinente: suas peças dramáticas.
Teatro de Cabrujas
Juan Francisco de León (1959)
Los insurgentes (1962)
El extraño viaje de Simón El Malo (1962)
Tradicional hospitalidad, segundo ato de Triángulo escrito com Román Chalbaud e Isaac
Chocrón (1962)
En nombre del rey (1963)
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Venezuela barata (1965-1966)
Días de poder (1966), escrita com Román Chalbaud.
Fiésole (1967)
El tambor mágico (1970)
La sopa de piedras (1973)
Profundo (1971)
La soberbia milagrosa del General Pío Fernández (1974)
Acto Cultural (1976)
El día que me quieras (1979)
Una noche oriental (1983)
El americano ilustrado (1986)
Autorretrato de artista con barba y pumbá (1990)
Sonny, diferencias sobre Otelo, el moro de Venecia (1995)
Produtor
Cabrujas foi escritor prolixo e heterodoxo, além de múltiplo produtor cultural.
Dramaturgo, colunista de imprensa, roteirista de rádio (durante anos manteve um programa
radial sobre ópera), de telenovelas e de cinema. Foi muito bem sucedido em todos os âmbitos,
porém destaca-se em três deles: como homem de teatro, como escritor de telenovelas e como
articulista de imprensa. Como homem de teatro (dramaturgo, diretor e ator), recebeu vários
Prêmios Municipais, além do Prêmio Nacional de Teatro, que é o máximo galardão teatral
venezuelano, teve sucesso de bilheteria constante a partir de meados dos 60 até sua morte (e
também depois da morte), embora tenha sido também ferozmente atacado pela crítica depois
da estreia de sua obra mais polêmica, El dia que me quieras, além de ignorado pela
oficialidade que, para não premiá-lo, decidiu não entregar nenhum prêmio nacional de teatro
no ano 1979 (Cabrujas era o grande, o polêmico, o unânime, favorito). Foi editado, traduzido,
e representado no exterior (Brasil, Alemanha, Colômbia). Foi consagrado no campo
intelectual, ainda que imediatamente atacado por sua incursão no mundo televisivo. Os
representantes da “alta cultura” o criticaram, até sua morte, com a intenção, falida, de rebaixálo de seu alto posicionamento nos campos cultural e teatral, no entanto, diria Bourdieu,
conseguiram, como declarou várias vezes, roer-lhe a consciência artística. Como articulista de
jornais e publicações foi, além de bem sucedido, poderoso; extrapolou o campo artístico para
se posicionar no campo do poder: o país parava para ler e comentar suas crônicas e reflexões
dominicais; os politicos o temiam e respeitavam; os cidadãos tomavam posição frente aos
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acontecimentos do país, influenciados pelos artigos de Cabrujas. Não é gratuito o fato de
terem sido publicadas, em várias oportunidades, compilações e antologias de seus artigos de
imprensa, antes mesmo que seu teatro. Como roteirista de telenovelas conseguiu não só
revolucionar a mídia na Venezuela desde o ponto de vista cultural - algo que parecia
impensável e incompatível com os tempos - como também alcançou um alto nível de
assistência ou rating. Foi contratado por canais de televisão nacionais (RCTV, Televen, Marte
TV) e internacionais (Televisión Azteca, Cadena Caracol) até o ano de sua morte. Seus
roteiros foram comercializados e vendidos para ser transmitidos, produzidos ou mesmo
refeitos em quase todos os países da América Latina, além de alguns países de Europa e,
inclusive, do Oriente Médio. Ditou um curso de escritura para televisão a partir do qual foi
editado, vários anos depois, o livro Y Latinoamérica inventó la telenovela (2002).
Consumidores
Itamar Even-Zohar fala de consumidores diretos e indiretos, problematizando a noção
clássica de leitor de literatura e nos faz entender que consumidores podem ser até os
analfabetos que repetem a frase “ser ou não ser”, ouvida, por acaso, em um programa de
rádio, no ônibus que os leva para casa, mesmo sem saber que foi originalmente escrita por
Shakespeare, mesmo desconhecendo olimpicamente a existência da obra de teatro Hamlet ou,
indo além, mesmo desconhecendo que exista algo chamado teatro. Não temos como de
rastrear todos os consumidores indiretos e residuais do produtor Cabrujas, mas, mesmo nos
limitando aos consumidores diretos, a diversificação destes é complicada. Podemos localizálos em espécies de círculos concêntricos que vão se ampliando sucessivamente do menor ao
maior: leitores de sua obra dramática, público dos documentários cujos roteiros foram escritos
por Cabrujas, público dos longas-metragens de ficção cujos roteiros ele escreveu, ouvintes
intencionais ou casuais de seu programa de rádio sobre ópera, leitores das edições compiladas
de seus artigos de imprensa, público das obras em que atuou, público das obras que dirigiu,
público das obras que escreveu (este, sobretudo, é um grupo de consumidores incalculável
porque o teatro de Cabrujas tem sido amplamente representado, até depois da sua morte, e
segue lotando salas e esgotando a bilheteria, como aconteceu, sem ir muito longe, no último
trimestre do ano passado com El americano ilustrado, dirigido por Héctor Manrique e seu
GA80), leitores de imprensa de El diario de Caracas e de El Nacional, onde publicou até
1995, e, para terminar, a imensa quantidade de telespectadores, intencionais ou casuais
(diretos ou indiretos), nacionais e internacionais dos roteiros, a partir dos quais foram feitas
tantas produções de telenovelas durante mais de vinte anos.
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Mercado
Como consequência da bonança econômica da época e motivado por um investimento
oficial somado a esforços individuais e coletivos, se inicia, no final da década de sessenta, um
processo ininterrupto de institucionalização do teatro. Em um primeiro momento, anterior à
democracia e em parte graças à chegada de grandes figuras teatrais estrangeiras ao país, como
a argentina Juana Sujo e o espanhol Alberto de Paz y Mateo, foram feitas montagens teatrais
de relativo sucesso com as que começam a se formar um público teatral, que, em princípio
assistia a representações do teatro clássico espanhol e de certa seleção latino-americana, mas
rapidamente incidiu no surgimento de criadores de dramas venezuelanos. A partir dos 60, com
o desenvolvimento da jovem dramaturgia, acontece uma abertura a novos públicos que, por
sua vez, redunda no surgimento tanto de grupos e diretores, como de prédios e salas teatrais,
para satisfazer a demanda de espaços que um novo mercado de consumidores exigia. Cria-se
o Teatro Ateneo de Caracas, dirigido por Horacio Peterson, o Teatro Los Caobos, dirigido por
Juana Sujo, o Teatro de Máscaras de Humberto Orsini, o Teatro Nacional Popular de Román
Chalbaud, el teatro Rajatabla de Carlos Giménez e o Teatro de Arte de Caracas, dirigido por
um coletivo jovens artistas. Paralelamente, se cria uma política de subsídio do Estado para o
desenvolvimento do teatro na província: Barcelona, Guanare, Maracaibo, Mérida,
Barquisimeto e Valencia. Em vista da imensa e explosiva multiplicação de espaços, grupos e
públicos teatrais, se organiza o primeiro Festival Internacional de Teatro de Caracas, que
chegaria ser um dos eventos teatrais mais importantes da região. Cabrujas, sem suspeitá-lo,
converte-se em dramaturgo no momento mais propício e beneficente possível: o nascimento
de sua vocação e o amadurecimento de sua dramaturgia coincidem com a formação de um
mercado para apreciá-la, assim como de uma instituição para consagrá-la, discuti-la e criticála.
Instituição
Cabrujas foi o que foi no teatro venezuelano, em grande parte, graças às instituições
acadêmicas, críticas, oficiais e privadas das quais foi objeto de crítica ou apoio. Sua estreia
teatral foi no Teatro Universitário da Universidade Central na Venezuela, instituição onde
estudava Direito até conhecer sua vocação teatral e abandonar definitivamente a advocacia
pela arte. No TUCV, dirigido por Nicolás Curiel, escreveu suas primeiras peças e as viu
estrear em imensa escala (a concepção teatral de Curiel era coral, monumental). Também
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despontou como ator, resultando ser bom intérprete. Ainda muito jovem, assume como
vocação o teatro profissional e desde então é seguido de perto pelos primeiros críticos teatrais
sistemáticos (Azparren, por exemplo) que surgiram naquela época e dariam, mais tarte,
origem ao Círculo de Críticos de Teatro da Venezuela. Com os novos dramaturgos, teatros e
público, era coerente que surgissem críticos de imprensa e, paralelamente, acadêmicos que os
estudassem. Nasce a Sociedade de Amigos do Teatro, uma associação sem fins lucrativos com
o objetivo de contribuir, na medida (econômica) do possível, com a divulgação das obras de
teatro dos novos “teatreros”. Cabrujas, Chalbaud e Chocrón, como autores, faziam parte de
uma onda de criadores teatrais que entre diretores, atores, produtores, iluministas, cenógrafos,
designers de vestuário e demais fazedores de cena deram origem a Asociación Venezolana de
Profesionales del Teatro, primeira associação que velava pelos direitos de tantos trabalhadores
e artistas do mundo cênico. Tal associação, dada sua importância, foi seguida por outras, tais
como: a Federação Venezuelana de Teatro. Por decreto oficial, um par de décadas depois, é
fundada a Compañía Nacional de Teatro (CNT) para o fomento da criação cênica, seu estudo
e registro. Cabrujas também contribuiu para manutenção do teatro como atividade
sociocultural através da fundação, junto a Chalbaud e Chocrón, de El Nuevo Grupo, único
caso no país de uma agrupação teatral fundada por dramaturgos com o objetivo de fazer
exclusivamente teatro de autor ou, melhor dizendo, teatro de “autores”: deles três.
Repertório
Definido por Even-Zohar como “o agregado de regras e materiais que regem tanto a
confecção, quanto o uso de qualquer produto” (2007, p.42), vamos nos limitar, por questões
de complexidade e espaço, apenas ao produto texto teatral. Tratar de rastrear os gêneros, os
dramaturgos, as influências e os antecedentes que moldaram a realização escrita e criativa das
obras de Cabrujas não é tarefa fácil, sendo assim, não queremos nem pensar na dificuldade
que implicaria fazer a mesma coisa com as telenovelas, as crônicas, o cinema e a rádio que
produziu durante sua prolífica e paradoxalmente curta vida. Vamos nos valer de algumas
caracterizações estilísticas da época, segundo Azparren. Em primeiro lugar, temos que
assinalar os principais antecedentes, que são tanto o sainete evasivo, quanto o primeiro
realismo ingênuo do drama venezuelano escrito entre 1916 e 1957. A partir de 1958, ano que
marca o começo da democracia e coincide com a escritura da primeira obra de Cabrujas, se
inicia o que Azparren denomina “Nuevo teatro”, e que se dilata até 2000. Segundo palavras
do acadêmico, é nesse
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período en el que son nacionalizadas las tendencias teatrales mundiales. En los
primeros diez años surgen los paradigmas de la escritura dramática y de la puesta en
escena que definen el período. El modelo social democracia/petróleo posibilita
cambios radicales con conciencia histórica y artística de la dramaturgia y de la
escena y cuyo subgénero principal [del que Cabrujas va a ser uno de los principales
exponentes] es el realismo crítico.19 (2011, p.10)
Azparren Jiménez assinala o ponto de inflexão no ano 1971. Antes, porém, desse ano
e durante as primeiras duas décadas do período, o teatro, fundamentalmente experimental,
radical e diversificado, faz uso de linguagens inéditas para representar novas zonas de uma
realidade mutante e expansiva. Como em grande parte do continente e por influência das
cenas teatrais europeias e estadunidenses, se instaura, nesses anos, com soberana autonomia, a
posta em cena: o diretor é mais importante do que os autores, é o grande e verdadeiro criador.
Posteriormente, surge uma nova onda de dramaturgos, heterogêneos e díspares; se dividem
nos expoentes do nascente realismo crítico, como César Rengifo, Román Chalbaud, Rodolfo
Santana e José Ignacio Cabrujas e nos expoentes dos subgêneros do realismo subjetivo, como
Isaac Chocrón, e do subjetivismo poético, como Ida Gramcko, Elizabeth Schön e Elisa
Lerner.
A partir de 1971, ocorre a canonização e hegemonia do realismo com os três grandes
autores do momento: José Ignacio Cabrujas, Román Chalbaud e Isaac Chocrón, que embora
fossem ainda muito jovens, passam ser conhecidos como a Santíssima Trindade do teatro
venezuelano. Junto com eles, temos que nomear os discursos emergentes de autores como
Edilio Peña, Néstor Caballero, Mariela Romero, Carlos Sánchez, José Simón Escalona, Javier
Vidal e Xiomara Moreno, entre muitos outros. Escreve-se um teatro que tem assimilado as
principais teorias e experiências teatrais (Bertolt Brecht, Jean Vilar, Antonin Artaud, Jerzy
Grotowski). As imensas possibilidades expressivas da estrutura aberta da dramaturgia e da
posta em cena foram exploradas até a saciedade, influenciando uma (dramaturgia) na outra
(representação) e vice-versa. Algumas das características, assim como circunstâncias que
moldaram ou afetaram a escritura dramática da época, são numeradas por Azparren (2011,
p.19), como:
-Diversificação temática e desaparição da vida tradicional da vizinhança como
tema central da dramaturgia.
-Presença da dramaturgia mundial, em especial da vanguarda europeia em
todas suas variáveis e do teatro épico.
19
Tradução: “período em que são nacionalizadas as tendências teatrais mundiais. Nos primeiros dez anos
surgem os paradigmas da escritura dramática e da posta em cena que definem o período. O modelo social
democracia/petróleo possibilita câmbios radicais com consciência histórica e artística da dramaturgia e da cena e
cujo subgênero principal [do que Cabrujas vai ser um dos principais expoentes] é o realismo crítico”.
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-Câmbio substancial da posta em cena com uma experimentação irrestrita e a
procura de novos espaços cênicos dentro e fora do recinto teatral.
-Latino-americanização em especial, desde meados dos anos setenta, com o
Festival Internacional de Teatro de Caracas e com a diáspora latino-americana
provocada pelas ditaduras do sul do continente.
O teatro de Cabrujas é ora causa e consequência destes processos, ora modelo e
influência.
III. MEDIAÇÕES
Mediação histórica
A história que afeta Cabrujas é a de seu país e sua vida, uma história ampla, extensiva,
que desborda os limites temporais dos anos 1979-1986. Ademais, este período é o marco
temporal que compreende as estreias de El día que me quieras e El americano ilustrado.
O ponto de inflexão, a área de tensão entre Cabrujas e os processos históricos de sua
nação, pode ser localizado cronologicamente: a primeira década da democracia que
prosseguiu ao final da ditadura de Pérez Jiménez, em 23 de janeiro de 1958. A explicação é
política. Cabrujas pertencia ao PCV e era comunista com 21 anos quando cai a ditadura. Após
a ditadura, foi estabelecida uma aliança partidária de emergência, a Junta Patriótica, composta
por um grupo de partidos que, em palavras de Caballero, “no son ni pretenden ser
revolucionarios: son (y a medida que pase el tiempo lo confesarán más abiertamente) sin
rubor alguno, reformistas, gradualistas, y sobre todo, institucionalistas (...) el más prudente, el
más institucionalista, era el Partido Comunista de Venezuela”20 (p.146). Cabrujas como
indivíduo, mas também como militante de um partido, de uma ideologia e de um grupo, se
sente derrotado. As intenções, o anelo de seu grupo social era o de converter aquela
insurreição popular em revolução perdurável. Os anos sessenta, quer dizer, os posteriores à
caída da ditadura na Venezuela, estiveram marcados politicamente em toda a região pela
revolução cubana.
El mito de los doce muchachos atrincherados en la Sierra Maestra que al final logran
no sólo vencer a un ejército profesional sino desafiar en sus propias narices al
Imperio, inflamó las juventudes de América. Apenas los barbudos de Fidel Castro y
el Che Guevara llegaron a La Habana, una frase comenzó a formarse en los labios de
20
Tradução: “Não são nem pretender ser revolucionários: são (e na medida em que passe o tempo o confessarão
mais abertamente) sem nenhuma vergonha, reformistas, gradualistas, e, sobretudo, institucionalistas (...) o mais
prudente, o mais institucionalista, era o Partido Comunista de Venezuela.”
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todos los revolucionarios: “si ellos pudieron, ¿por qué no nosotros?” Tal vez en
ninguna parte se dio eso como en Venezuela, porque aquí la reflexión no tenía forma
interrogativa, sino asertiva: “Nosotros hubiéramos podido, el 23 de enero de 1958”21
(CABALLERO, 2002, p.143)
Mas aquilo nunca aconteceu: após a Junta Patriótica, foi eleito Rómulo Betancourt,
político antigo, constante opositor da ditadura, histórico líder e impulsor da Ação
Democrática (AD), um partido político que, embora tivesse um foco social, não se
identificava (se opunha, na realidade) com o PCV e sua ideologia. A geração de Cabrujas não
se sentia representada pelo governo.
Enquanto Cuba tinha triunfado na revolução que depôs a ditadura de Batista, na
Venezuela, depois da ditadura local, não houve nenhuma revolução, não se tentou instaurar
um governo do povo; o que se implantou foi uma democracia de consenso na qual
participaram, em sua grande maioria, os mesmos velhos políticos, os dinossauros que uma
década antes haviam sido apartados da cena política pelo ditador Pérez Jiménez e que, após
sua caída, regressavam vitoriosos para ocupar as mesmas cadeiras do congresso, só que
restauradas (como o resto do país) graças à bonança econômica do regime autoritário. Esta
nova democracia era percebida pelos grupos de esquerda como uma democracia revanchista,
o oposto da ditadura. Embora o mundo mudasse com rapidez, embora a efervescência
comunista contagiasse os grupos intelectuais do continente e embora acontecesse uma grande
batalha muda contra o atual sistema para propor um novo sistema econômico e social com seu
correspondente homem novo, a Venezuela, alheia e ensimesmada, não parecia perceber
nenhuma destas coisas e persistiu em sua contramarcha fora de sintonia. O programa político
do novo governo consistiu em cimentar, com o apoio tácito da maioria da população, as bases
de um projeto democrático conservador perdurável, o que para Cabrujas e sua geração de
intelectuais - comprometidos com a política de mudança e os ideais utópicos - representava
um retrocesso, um fracasso terrível. Liberar-se da ditadura foi sem dúvida uma meta
importante per se, um motivo de orgulho e de comemoração para o povo, mas não era o
suficiente para Cadenas. O objetivo era muito superior, como bem resume Octavio Paz em O
arco e a lira: “A ideia cardinal do movimento revolucionário da era moderna é a criação de
uma sociedade universal que, ao abolir as opressões, desdobre simultaneamente a identidade
21
Tradução: “O mito dos doze garotos entrincheirados na Sierra Maestra, que no final conseguem não só vencer
um exército profissional, mas desafiar, debaixo de seu próprio nariz, ao Império, contagiou as juventudes de
América. Apenas os barbudos de Fidel Castro e o Che Guevara chegaram à Havana, uma frase começou a se
formar nas bocas de todos os revolucionários: ‘se eles puderam, por que nós não? ’ Tal vez em nenhuma parte
isso tenha acontecido como na Venezuela, porque aqui a reflexão não possuía forma interrogativa, mas assertiva:
‘Nós teríamos podido, o 23 de janeiro de 1958’”.
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ou semelhança original de todos os homens e a radical diferencia ou singularidade de cada
um.” (1972, p.254).
Criar uma sociedade universal e livre, desde a perspectiva de um país latino-americano
subdesenvolvido e explorado, estava longe demais da realidade material vivida por Cabrujas
para que o não cumprimento imediato do objetivo representasse uma frustração real. A
frustração se explica antes como um problema de incompetência ou invisibilidade de certos
grupos intelectuais nos campos político e social da cena pública. Para os militantes literários e
comunistas, que naquele tempo eram praticamente a mesma coisa ( José Ignacio Cabrujas,
além de dramaturgo, era membro do Partido Comunista da Venezuela), qualquer alternativa
política liberal não passava de uma concessão ao imperialismo estadunidense, inimigo comum
dos grupos intelectuais da região que estavam consolidando uma voz potente que estremeceria
o mundo com sua força imaginária (o Boom). Ainda que depois as coisas mudassem, naquela
década o consenso ideológico entre os intelectuais era quase unanime, mesmo no plano
internacional: Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Julio Cortázar, Mario Benedetti,
Jorge Amado, Elena Poniatowska, Eduardo Galeano, Pablo Neruda e Carlos Fuentes, todos
eram socialistas comprometidos e o fato de começarem a ser publicados, traduzidos e
comentados, em todo o mundo, com velocidade vertiginosa, era altamente significativo. Em
Cuba, Fidel e Che, dois ídolos barbudos, receberiam a visita amistosa da vanguarda
intelectual europeia nas pessoas de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, deslumbrados
pelo triunfo revolucionário no Caribe e gratamente surpreendidos pela loquacidade engenhosa
desse par de revolucionários-intelectuais, militares-leitores, gerrilheros-nerds, cultos soldados
que podiam fazer tudo, inclusive se opor aos donos do planeta. Bem o oposto das pretensões
do presidente venezuelano Rómulo Betancourt, anticomunista rabugento, defensor do
progresso material e industrial de uma nação que tinha que ser construída.
Os comunistas se rebelaram em Carúpano. Foram contidos pelo governo, o PCV foi
ilegalizado. Assim nasceu a guerrilha armada, fraca e focal, mas guerrilha ao fim e ao cabo,
com todas suas implicações: a revolução, o derrocamento do governo para impor o governo
do proletariado. Os intelectuais apoiavam a causa, alguns chegaram ocultar em suas casas
guerrilheiros procurados ou armas. A intelectualidade jovem anos sessenta era absolutamente
comunista. Comunista antes de ser artista, comunista dos que não leem O capital, comunistas
por osmose, por obrigação, por saudar a bandeira.
Usted, Rafael, habló de religión para designar todo un mecanismo impositivo que en
el plano intelectual operó entre los últimos años de la dictadura de Pérez Jiménez y
los primeros años de la democracia, durante todo el período guerrillero, esa es una
palabra afortunada, correctísima: era una religión. Uno nació a una religión que
decía “hay un mundo nuevo”. El esquema propuesto por Betancourt no seduce a mi
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generación, él nos parecía una figura del pasado. El 23 de enero es lo más parecido
que he vivido al nacimiento de un mundo nuevo y la figura de Betancourt era una
como rémora que nos obligaba a echar la película para atrás. Entonces, apareció el
gran fantasma: Castro. Ese sí era una maravilla, hasta su personalidad era una
maravilla. Bailamos al son de Castro.”22 (ARRAIZ, 2003, p.171)
A unanimidade ideológica dos intelectuais de então era absoluta e “religiosa”, e se
organizava em torno do serviço social, da revolução como meio de alcançar o comunismo.
A realidade nacional, porém, é outra. Vejamos agora o que acontece com a tensão
entre o entorno e o grupo humano de que Cabrujas formava parte.
Mediação psicossocial
O artista, como indivíduo, adere a um grupo e o habita, para concordar ou discordar,
para conservar ou para renovar. Cabrujas, muito antes de ser artista, fazia parte da jovem
esquerda venezuelana, da jovem esquerda letrada. É dentro desse grupo, o dos intelectuais de
esquerda, que Cabrujas constrói sua identidade como sujeito e desenvolve o começo de sua
criação dramática. (Um dado curioso: em 1960 Cabrujas casa pela primeira vez com uma
guerrilheira chamada Democracia López). Em palavras de Goldmann, o artista tem “a
necessidade estética de construir um universo coerente, sem saber por quê. E consegue-se
coerência em relação a um grupo”. (1976, p.129). E esse grupo concreto, o dos esquerdistas
venezuelanos da década dos sessenta, experimentou a agressão constante do presidente
Betancourt.
O programa de governo, as políticas econômicas e a ideologia de Rómulo Betancourt
estavam demasiado distantes das aspirações políticas dos intelectuais de esquerda e do próprio
Cabrujas; mas distância ficou mesmo insuperável a partir da insurreição comunista em
Carúpano e a imediata proibição (não legalização) oficial do Partido Comunista, bem no
começo do governo de Betancourt. Em resposta a isso, se criam grupos armados de
guerrilheiros saídos do PCV com nome de Fuerza Armada de Liberación Nacional (FALN).
Durante quase uma década o PCV permanece na clandestinidade e a guerrilha mantém um
enfrentamento com os sucessivos governos, até que, em 68, Rafael Caldera legaliza
novamente o partido e a guerrilha depõe as armas. Com esse acontecimento, entra em crise a
22
Tradução: “Você, Rafael, falou de religião para designar todo um mecanismo impositivo que no plano
intelectual operou entre os últimos anos da ditadura de Pérez Jiménes e os primeiros anos da democracia, durante
todo o período guerrilheiro, essa é uma palavra afortunada, corretíssima: era uma religião. Muitos nasceram
numa religião que dizia ‘há um mundo novo’. O esquema proposto por Betancourt não seduz a minha geração,
ele nos parecia uma figura do passado. O 23 de janeiro é o mais parecido que tenho vivido com o nascimento de
um mundo novo e a figura de Betancourt era como uma rêmora que nos forçava a botar o filme para trás. Então,
apareceu o grande fantasma: Castro. Esse sim era uma maravilha, até sua personalidade era uma maravilha.
Dançamos ao som de Castro.”
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concepção de mundo dos intelectuais de esquerda. “Uma concepção do mundo”, explica
Godmann, “é precisamente o conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideais que reúne os
membros de um grupo (ou o que é mais frequente, de uma classe social) e os opõe aos outros
grupos” (1976, p.55). Para a intelectualidade venezuelana, fazer a revolução era a meta em
que convergiam todas as aspirações, sentimentos e ideais do grupo, mais ainda depois do
começo da insurreição armada. No entanto, tudo isso foi contrariado pelo estabelecimento de
uma democracia liberal/petroleira e pela paulatina derrota guerrilheira. Diz Cabrujas, respeito
da esquerda venezuelana da nascente democracia (seu grupo social): “En el 65 dábamos
lástima ya: estábamos liquidados. En el 65 la historia nos había caído a patadas. Cuando en el
68 el Partido Comunista dice paz democrática, la estampida fue muy grande, se acabó, la
estampida fue al mundo individual.”
23
(ARRAIZ, 2003, p.171) O desencanto é doloroso na
medida em que a ilusão de mudança foi certeza para Cabrujas e sua geração. O fracasso da
guerrilha foi desmoralizador e o grupo social se desorientou, seus integrantes se fizeram
cépticos e cínicos.
Como estábamos frustrados, hablábamos horrores, como todo frustrado, y nos dio a
todos por un exagerado plan vital: todos nos convertimos en unos pequeños
donjuanes, demasiadas mujeres, demasiado bochinche, demasiado relajo sexual,
propio de los puritanos que se destapan (…) gente que andaba por los cafés de
Sabana Grande, entre ellos yo, hablando pestes de la vida, hablando horrores y
preparando paellas en mi casa para decir que yo era de derecha, para chocar, para
molestar, para agredirme a mí mismo, en el fondo.24 (ARRÁIZ, 2003, p.172)
Houve, então, um chamado à reflexão, uma tentativa de reorganização, de
reagrupação, com a fundação do partido Movimiento Al Socialismo (MAS), em 1971.
Nascido das cinzas do desacreditado PCV e da derrotada guerrilha nacional, um grupo de
socialistas, comunistas (não Stalinistas, mas Trotskystas) e intelectuais de esquerda fundam o
MAS, um partido afiliado, para todos os efeitos, às alienações da IV Internacional e à terceira
via (que Teodoro Petkoff havia explorado teoricamente em seu livro Chekoslovaquia). O
flamante partido, como todo projeto novo, não exibia, ainda, nenhum signo de corrupção, de
falta de princípios, era todo esperança, futuro e planejamento. O entusiasmo entre a
intelectualidade da região era generalizada. Quando García Márquez ganha o Prêmio Rómulo
Gallegos por Cem anos de solidão, doa a totalidade do dinheiro ao partido. (Questões de fé:
23
Tradução: “Em 65 já nos lastimávamos: estávamos liquidados. Em 65 a história havia nos arrebentado.
Quando em 68 o Partido Comunista diz paz democrática, a debandada foi muito grande, acabou, a debandada foi
para o mundo individual.”
24
Tradução: “Como estávamos frustrados, falávamos coisas horríveis, como todo frustrado, e todos nos
voltamos para um exagerado plano vital: todos nos convertemos em pequenos dom juans, muitas mulheres,
muita bagunça, muita fruição sexual, própria dos puritanos que se destampam (...) gente que andava pelos cafés
de Sabana Grande, entre eles eu, falando besteiras da vida, falando coisas horríveis e preparando paelhas em
minha casa para dizer que eu era de direita, para incomodar, para chatear, para me agredir, no fundo”
40
em 2003, Fernando Vallejo doou o mesmo prêmio - havia sido premiado por seu
Desbarrancadero - a uma centro de acolhimento de cachorros.) De qualquer forma e
retomando o assunto, o MAS representava uma esperança para Cabrujas e seu grupo e
aparentava ser um partido estável, pelo menos no começo, coerente, embora fosse insistente
perdedor eleitoral, um perdedor sólido. Contudo, outro fator que modifica as relações entre
entorno, grupo social e indivíduo, entra em jogo: a nacionalização do petróleo.
O milagre do petróleo: gênese da falsidade
O descobrimento do petróleo e sua nacionalização - com seu altíssimo valor e com seu
espetacular show econômico, mais rápido, efetivo e gratificante do que a agricultura, que
enriqueceu vertiginosamente o país - acabou criando no venezuelano a ilusão de viver um
milagre. Os efeitos da nacionalização petroleira sobre a economia foram fantásticos e o
Estado ficou abastecido, se converteu em empresário, distribuidor da riqueza do ingresso do
petróleo que por aqueles anos, começos dos setenta, tinha um valor muito elevado. Em
consequência, a percepção de um cidadão, de um venezuelano comum sobre o Estado naquela
época era maravilhada e tergiversada: imatura, segundo Cabrujas expõe em “El estado del
disimulo” (2012, p.123). Originou-se a cultura do milagre a partir da riqueza. Carlos Andrés
Pérez falava em construir a Grande Venezuela e todos o apoiavam (inclusive Fidel), todos
celebravam, preferiam ignorar a dívida, viver o momento, gastar sem pensar. Venezuela
estava bêbada de petróleo caro.
Apenas, en efecto, en todo el ámbito nacional, a todas las profesiones e individuos,
se les abrió el apetito con el alza repentina en los precios del petróleo, todos los
problemas nacionales han sido olvidados, y como problema único, estelar, mirífico,
se habla y se grita sobre nuevas riquezas que pueden obtenerse y cómo podrían
aumentarse de acuerdo con los arbitrios que a cada uno se le ocurren. Queremos
buscar la manera de que Venezuela sea cada vez más rica, más rica, más rica. Se
habla de que el Estado venezolano financiará una refinería de petróleo en
Centroamérica; con el mismo entusiasmo hablaríamos de urbanizar terrenos en la
luna o comprar una máquina de hacer oro. Para nuestra ansia de dinero nada vemos
imposible.25 (MIJARES, 2000, p.609)
Ânsia produtora, entusiasmo desmedido, descontrole, atividade em todos os âmbitos, e
também no artístico. No pessoal, Cabrujas se propõe produzir riqueza artística e produz de
forma plural, intensa e total: além dos dramas, escreve telenovelas, minisséries para televisão,
25
Tradução: “Apenas, com efeito, em todo o âmbito nacional, a repentina alta nos preços do petróleo abriu o
apetite de todas as profissões e indivíduos, todos os problemas nacionais foram esquecidos, e como problema
único, estelar, mirifico, se fala e se grita sobre novas riquezas que podem ser obtidas e como poderiam aumentar
de acordo com as ideias que cada um tem. Queremos achar o jeito de a Venezuela ser cada vez mais rica, mais
rica. Fala-se de que o Estado venezuelano financiará uma refinaria de petróleo na América Central; com o
mesmo entusiasmo falaríamos de urbanizar terrenos na lua ou comprar uma máquina de fazer ouro. Para nossa
ânsia de dinheiro nada vemos impossível.”
41
roteiros de filmes, atua em várias obras, dirige outras tantas e várias óperas, cria e mantêm um
programa de rádio sobre ópera e outro programa de radio histórico. Cabrujas trabalha até o
esgotamento, sem descanso, sem pausa. Nessa época, funda El Nuevo Grupo, junto com Isaac
Chocrón e Román Chalbaud, “Tres tipos”, conta Cabrujas, “que sin parecerse demasiado, con
experiencias muy distintas, desembocaron en primer lugar en una amistad, antes que en
cualquier otra reflexión. El teatro no nos importó tanto. Lo que nos proponíamos hacer con él,
tampoco.”26 Isso se evidencia no fato de que El Nuevo Grupo, em plena época de manifestos
e proclamas literárias, de movimentos, de grupos, de vanguardas, não se declara, não se
manifesta, não se explica, apenas se reúne, se junta em uma agrupação focada em produzir,
sem princípios, sem critérios, sem ideologia (Issac Chocrón nunca foi de esquerda). Graças ao
petróleo, as coisas importavam menos, o importante mesmo era produzir. A crise ideológica
de Cabrujas e dos intelectuais venezuelanos se aproximava. Já em 1975, Cabrujas escreve:
Ha desaparecido la capacidad de cuestionamiento de todo. No hay esa capacidad, no
existe esa posibilidad porque todos estamos bien. Sigue prevaleciendo el cinismo en
el país. Tenemos un presupuesto de 43 mil millones de bolívares, acabamos de abrir
relaciones con Cuba. El gran gurú de la izquierda latinoamericana, Castro, nos ha
tendido la mano y entonces, ¿cómo vamos a sostener una revolución, una actitud
crítica, si el gran gurú dice que todo anda bien? (...) Todo está bien entonces: el
Gobierno ha asumido actitudes menos reaccionarias, más correctas, más equilibradas
y en este momento estamos desesperados por inventar una revolución. 27 (2012, p.19)
Naquele momento estavam, assim, no plural, escreve Cabrujas, desesperados por
inventar uma revolução os intelectuais de esquerda, cuja ideologia, credibilidade e partidos
haviam entrado em crise. Cabrujas é um intelectual de esquerda e assim se assume, fala no
plural porque sabe que fala também pelos seus, tem consciência grupal, social e histórica. Sua
consciência sofria o conflito de princípios de seu grupo social, sua derrota política e
ideológica no âmbito nacional.
Mediação estética
Víctor Hugo, Shakespeare, Lope de Vega, Dostoievski, Ibsen, Chéjov, Rafael
Cadenas, Musset, Molière, Tirso de Molina, Sófocles, Ruben Fonseca, Eurípides, Ionesco,
Ariano Suassuna, Calderón, (CABRUJAS, 2012, p.204) são algumas das maiores influências
26
Tradução: “Três homens, que sem serem parecidos, com experiências muito diferentes, desembocaram, em
primeiro lugar, numa amizade, antes que em qualquer outra reflexão. O teatro não nos importou tanto. O que nós
propúnhamos fazer com ele, também não”
27
Tradução: “Tem desaparecido a capacidade de questionamento de tudo. Não há essa capacidade, não existe
essa possibilidade porque todos estamos bem. Segue prevalecendo o cinismo no país. Temos um orçamento de
43 mil milhões de bolívares, acabamos de abrir relações com Cuba. O grande guru da esquerda latino-americana,
Castro, nos estendeu sua mão e então, como vamos manter uma revolução, uma atitude crítica, se o grande guru
diz que todo está bem? (...) Todo está bem, então: o Governo tem assumido atitudes menos reacionárias, mais
corretas, mais equilibradas e neste momento estamos desesperados por inventar uma revolução”
42
literárias de Cabrujas. Contudo, a categoria da mediação estética não é, como se poderia
pensar, equivalente à influência literária, mas se refere, segundo Berenguer, a “el origen y
estructura de los conceptos y de las técnicas aplicadas por los creadores en sus obras y el
modo en que un estilo o una actitud artística se corresponde con una mentalidad en un
momento histórico preciso”. (2009, p.25) O interessante é que, no caso de Cabrujas, tanto a
origem literária, quanto o desenvolvimento de técnicas e de um estilo específico
correspondem, sobretudo, a dois aspectos extraliterários de sua vida: a política e a televisão.
A política se vincula à origem criativa de Cabrujas que, com efeito, está intimamente
ligada à sua atividade literária desde o início, ou, para sermos mais específicos,
Desde el 56, cuando nací a la imagen de ser un escritor, era un militante del Partido
Comunista y tenía una disciplina. Allí se me dijo que mi vida personal le importaba
un rábano al partido y que yo era un servidor de la transformación de la sociedad,
por lo tanto no te la podías dar de vanguardista porque te alejabas de las hondas
raíces del pueblo, etc., etc. En el fondo, tenías que estar en una literatura romántica,
como es la literatura marxista, con valores como “el pueblo es bueno”, “el rico es
malo”, “el joven es bueno”, “el viejo es malo”. Había que construir un héroe
positivo con raíces regionales atendiendo al folklore, expresando el mundo
popular. En el fondo, era el epígono de lo que había sucedido 30 años atrás en la
Unión Soviética. (...) Los 60 me enseñaron a mandar al diablo todo eso. 28
(ARRAIZ, 2003, p.170)
Entretanto, suas primeiras obras foram, pelo contrário, bastante “comprometidas”.
Quando ingressa no Teatro Universitário da UCV e começa escrever teatro, Cabrujas era
comunista, mais que escritor. Estreia, em 59, sua primeira obra, Juan Francisco de León e nos
anos seguintes escreve e vê estreadas pela TUCV Los insurgentes (1961), El extraño viaje de
Simón el Malo (1962) e En nombre del rey (1963), todas inéditas até 2008; obras parcialmente
experimentais, de caráter histórico e de estilo brechtiano. Brecht era a maior influência de
Nicolás Curiel, o mentor dramático de Cabrujas, o primeiro que o levou a sério e montou suas
obras. Sob sua direção e estímulo, Cabrujas escreveu um teatro de abordagens históricas, com
o uso da técnica do estranhamento; era uma dramaturgia épica e com mensagens pseudomoralizantes. Não é seu melhor teatro, embora nele estejam contidas algumas das obsessões
fundamentais de Cabrujas, porque não é um teatro livre, senão esquemático, neutralizado,
participante da
28
Tradução: “Desde os anos 56, quando nasci à imagem de ser um escritor, era um militante do Partido
Comunista e tinha uma disciplina. Lá me disseram que a minha vida pessoal não importava ao partido e que eu
era um servidor da transformação da sociedade, por tanto não podia brincar de vanguardista porque me afastaria
das fundas raízes do povo, etc., etc. No fundo, tinha que estar numa literatura romântica, como é a literatura
marxista, com valores como ‘o povo é bom’, ‘o rico é mau’, ‘o jovem é bom’, ‘o velho é mau’. Tinha que
construir um herói positivo com raízes regionais atendendo ao folclore, expressando o mundo popular. No fundo,
era o epígono do que tinha acontecido 30 anos atrás na União Soviética. (...) Os anos 60 me ensinaram mandar
ao diabo tudo isso.”
43
trampa de la política, que es una trampa mortal para un escritor. La trampa de perder
años de mi vida en un módulo político, desconociéndome y agrediéndome y
cayéndole a patadas a mi sensibilidad, a mi ser, a mis apetencias, a mi amor, a mis
odios, a mis miedos, a todo eso: destruyéndolo para elaborar un esquema por la paz y
la amistad de los pueblos. Como había fracasado la insurgencia política yo quedaba
en libertad, el fracaso de la guerrilla fue un indulto, fue el pasaporte para decir: “José
Ignacio, llegó el momento de decir lo que te da la gana. 29 (ARRÁIZ, 2003, p.173)
Com o fracasso da guerrilha, a situação muda radicalmente tanto para o grupo social
dos intelectuais de esquerda quanto para o subgrupo social dos criadores dramáticos e também
para Cabrujas como sujeito e criador individual. Os criadores se viram impelidos, obrigados a
fazer uma revisão sobre o tipo de teatro que escreviam, cujos modelos entravam em súbita
crise. Uma crise, sem dúvida, libertadora, equivalente à queda de um metafórico muro-deBerlim-estético, que deixou Cabrujas e os criadores de sua geração com um enorme panorama
de infinitas possibilidades criativas e infinitas responsabilidades. Duas décadas depois,
Cabrujas relembra aqueles anos e afirma que
con lo que podríamos llamar el desencanto de la lucha armada (cuestión de
adjetivos) el teatro venezolano al igual que la actitud política, sufrió un proceso de
internización, característico de cualquier derrotado. La renuncia a metodologías
ilusorias, a sudaderas polacas, nos acercó a un teatro más real, más pragmático y
menos bocón. (...) El mejor balance de estos años es haber establecido en nuestro
oficio una relación de causa y efecto, donde el teatro dejó de ser una cofradía de
iluminados. (CABRUJAS, 2010, p. 616)
A televisão.
É interessante: Cabrujas começou escrever telenovelas no mesmo momento em que se
liberou da armadilha da política. Em 1969, quer dizer, um ano depois do fracasso da
guerrilha, Cabrujas começou a trabalhar, junto com seu amigo e dramaturgo Román
Chalbaud, na Radio Caracas Televisión (RCTV) com a tarefa de terminar a telenovela La
tirana, de Manuel Muñoz Rico. A partir daí, começa o trabalho de Cabrujas para televisão,
que se entende por mais de vinte anos (até sua morte), como forma de vida no plano
econômico, mas também como espaço de realização pessoal: Cabrujas começa escrever, junto
com Chalbaud e depois junto com Salvador Garmendia (excelente romancista), telenovelas
que o público passa a chamar de “culturais”.
Na verdade, o termo é simplificador e ao mesmo tempo demasiado amplo para
significar nada concreto. Cabrujas escreve, em primeiro lugar, telenovelas que polemizam o
29
Tradução: “armadilha da política, que é uma armadilha mortal para um escritor. A armadilha de perder anos da
minha vida num módulo político, me desconhecendo e me agredindo e arrebentando de pancada minha
sensibilidade, meu ser, minhas apetências, meu amor, meus ouvidos, meus medos, isso tudo: me destruindo para
elaborar um esquema pela paz e pela amizade dos povos. Como tinha fracassado a insurgência política, eu ficava
em liberdade, o fracasso da guerrilha foi um indulto, foi o passaporte para dizer: “José Ignacio, chegou a hora de
dizer o que você quiser.”
44
lugar da mulher na sociedade, como La señora de Cárdenas, como La hija de Juana Crespo,
como, Natalia de 8 a 9 ou como Silvia Rivas, divorciada; escreve, em segundo lugar,
telenovelas históricas, ou de inspiração histórica, como Gómez I e Gómez II, baseado na época
da ditadura do general Juan Vicente Gómez, como Boves, el Urogallo, uma adaptação da obra
homônima de Francisco Herrera Luque, ou como o unitário El asesinato de Delgado
Chalbaud; e escreve, em terceiro lugar, adaptações de obras literárias como Doña Bárbara e
Canaima, baseadas nos romances homônimos de Rómulo Gallegos, ou como La dueña,
baseada em El conde de Montecristo de Dumas. O objetivo era dignificar o ofício da escritura
de telenovelas, se realizar pessoalmente e valorizar um elemento de cultura de massas:
Creo firmemente que una sociedad necesita un espejo donde mirarse, donde
entenderse. Nadie tiene derecho a proponer soluciones dentro del esquema de una
telenovela o de una pieza teatral o de cualquier acto más o menos literal, no creo que
esa sea la tarea de quien escribe, pero sí me gustaría lograr y sentir, después de todo,
este trabajo de la televisión; saber que esta sociedad tuvo un estímulo para
entenderse a sí misma, para entender sus humillaciones, sus picardías, sus
sinvergüenzas, sus pobrezas, su dignidad y su indignidad. Eso a mí cada vez me
apasiona cada vez más. Yo escribo La dueña, como un acto de identificación, de
circunstancias que han caracterizado la historia de este país.30 (2010, p.617)
No fundo, tanto esforço por dignificar a telenovela responde em Cabrujas ao objetivo
de se justificar frente ao seu grupo social; Cabrujas sentia uma grande contradição, porque seu
grupo o atacava e não sabia como pertencer de novo plena e coerentemente. “Cuando
comencé a trabajar en TV”, se desahoga Cabrujas, “me crtiticaron: ‘El intelectual de izquierda
que traiciona a la causa vendiéndose para una emisora pa darle rating y meterse un billete’.
Eso fue tormentoso, me afectó muchísimo. Porque ni yo mismo estaba seguro de poder
calificar mi decisión de hacer televisión.”31 (p.614.) Consegue uma resposta que lhe permite
estar bem consigo mesmo e, ao mesmo tempo, se opor à intelectualidade: a televisão lhe
permite viver de seu trabalho e não depender do Estado, como a grande maioria de
intelectuais venezuelanos, que se não trabalhavam num organismo público tinham que pedir
financiamento ao governo para seus projetos. Essa resposta lhe dá um pouco de tranquilidade
e lhe permite se justificar, se opor ao seu grupo, mas pertencendo e reclamando seu lugar no
campo cultural e no espaço público. Com os anos, porém, Cabrujas se abre totalmente: em
30
Tradução: “Acredito firmemente que uma sociedade precisa de um espelho onde possa se ver, onde se
entender. Ninguém tem o direito de propor soluções dentro do esquema de uma telenovela ou de uma peça
teatral ou de qualquer ato mais ou menos literal, não acredito que essa seja a tarefa de quem escreve, mas sim
gostaria de conseguir e sentir, depois de tudo, este trabalho da televisão; saber que esta sociedade teve um
estímulo para se entender, para entender suas humilhações, suas picardias, suas sem-vergonhices, suas pobrezas,
sua dignidade e sua indignidade. Isso cada vez me apaixona mais. Eu escrevo La dueña como um ato de
identificação, de circunstâncias que tem caracterizado a história deste país.”
31
Tradução: “Quando comecei trabalhar na TV me criticaram: ‘O intelectual de esquerda que trai a causa se
vendendo para uma emissora para lhe dar rating e ganhar uma grana’. Isso foi um tormento, me afetou muito.
Porque nem eu mesmo tinha certeza de poder qualificar minha decisão de fazer televisão”
45
1992, dois anos antes de morrer, o autor reconhece: “He escrito telenovelas con la intención
de ganarme la vida y la de los míos sin trabajar en el Gobierno, con la intención de ver ópera
en La Scala de Milán y tomar whiskey. Exhibirme ahora como arrepentido resultaría una
estupidez inconcebible.”32 (2010, p.618) Contudo, algo mais importante do que dinheiro atraia
Cabrujas, que pelo mesmo motivo se converteu em colunista de imprensa: a expansão de seu
público, de seus leitores. Queria se comunicar com o maior número de pessoas, se deixar
sentir, por essas pessoas. Cabrujas chegou a dizer que não existe na América-latina evento
comunicativo tão importante quanto à telenovela. Essa particularidade, o poder de alcance e
de influência que a televisão oferecia a Cabrujas, o atraiu, o seduziu. Além disso, Cabrujas
aponta esse poder -o poder comunicativo, a responsabilidade derivada do enorme públicocomo causante de uma mudança, de uma reflexão em sua atividade criadora. Na entrevista de
Rafael Arráiz Lucca ,em 1986, ele (Cabrujas) aborda o assunto com as seguintes palavras:
Pone a un país entero a ver lo que ha hecho [telenovelas]. ¿Cuál es su relación con
el poder? La seducción del poder en usted debe ser una cosa muy grande.
El poder me ha enseñado. La televisión me ha enseñado a escribir teatro, me ha
hecho mejor escritor de teatro porque me ha enseñado a conocer a la gente, la
imagen de la gente. Me ha enseñado a no pensar tanto en mí, a volverme sobre las
personas. Me ha enseñado, por ejemplo, a escoger la temática de mi columna en El
Nacional, a saber que no puedo escribir allí como capricho lo que me da la gana. Yo
no quiero ser arbitrario cuando escribo. Me parece que alguien como Breton en
Venezuela es un bobo.33 (2003, p.169)
IV. O MOTIVO DO FRACASSO
Recapitulemos. O motivo frente ao qual Cabrujas reage, motivo que resulta das
mediações (histórica, psicossocial e estética) tensas entre autor, grupo social e entorno, é o
fracasso: fracasso de um país petroleiro que tinha recebido montanhas de dinheiro e, mesmo
assim, faliu. Fracasso da geração de 58, dos intelectuais de esquerda que apostaram por uma
revolução falida. Fracasso da ideologia comunista como ética grupal no entorno de uma
Venezuela liberal/petroleira. Fracasso histórico e fracasso grupal, além de fracasso ideológico.
32
Tradução: “Tenho escrito telenovelas com a intenção de ganhar a vida e a dos meus sem trabalhar no
Governo, com a intenção de ver ópera na Scala de Milão e tomar uísque. Me exibir agora como arrependido
seria uma estupidez inconcebível.”
33
Tradução: “Você bota o pais inteiro para ver o que tem feito [telenovelas]. Qual e sua relação com o poder?
A sedução do poder em você deve ser muito grande.
O poder tem me ensinado. A televisão tem me ensinado escrever teatro, tem feito de mim melhor escritor de
teatro porque tem me ensinado conhecer as pessoas, a imagem das pessoas. Tem me ensinado a não pensar tanto
em mim, a me voltar sobre as pessoas. Tem me ensinado, por exemplo, a escolher a temática da minha coluna em
El Nacional, a saber que não posso escrever lá como capricho o que eu queira. Eu não quero ser arbitrário
quando escrevo. Me parece que alguém como Breton na Venezuela é um bobo.”
46
A reação de Cabrujas, obviamente, é indireta e tem lugar no plano conceitual, imaginário, da
obra de arte. Tentamos, até agora, mostrar, durante a análise das obras, como o motivo do
fracasso é muito mais do que temático, intrínseco à composição das obras analisadas e como é
estruturante das condições espaço-temporais e das relações entre os personagens. O autor
persegue uma coerência inconsciente com respeito a algum motivo. Tragamos aqui as
palavras de Juan Villegas em sua Nueva interpretación y análisis del texto dramático.
El motivo, entendido como unidad y situación, como estrategia de análisis permite el
análisis estructural-funcional (función de las partes en el todo) y el análisis
ideológico. Este último supone que la situación esquemática se carga de contenido
ideológico en su plasmación en un texto particular y, a la vez, evidencia la ideología
del autor y su grupo social”34 (1991, p.111)
O motivo que dá coerência à obra de Cabrujas, que a explica como reação, no plano
imaginário, do autor frente à Venezuela petroleira e liberal, e que persegue a busca de
autenticidade do indivíduo que forma parte do grupo humano dos intelectuais de esquerda é o
fracasso. Cabrujas o assumia como tema consciente em sua criação dramática:
El tema que me importa es el fracaso. Un hombre se refugia en una idea, la proclama
como parte de sí mismo y se adhiere a ella. Al hacerlo cree pertenecer, cree hacerse
cierto. Pero esa idea jamás lo explica ni lo hace pertenecer a nada porque en el fondo
no tiene nada que ver con su vida.35 (CABRUJAS, 2009, p.19)
Fala de seus personagens, de seu grupo social e de si mesmo. Fala de Manganzón de
Profundo, de Cosme Paraíma de Acto Cultural e, sobretudo, de Pío Miranda, Arístides e
Anselmo Lander: genuínos fracassados ideológicos. A relação entre o personagem de Pío e a
geração de 58, os vínculos ideológicos e o motivo do fracasso resultante da tensão, são
evidentes, quando Cabrujas declara que
Le tengo rabia a su fanatismo. Al fanatismo de Pío. A su fé en Stalin, en la Unión
Soviética, en el koljosz, en toda esa palabrería que yo, al igual que él, pronuncié.
Toda esa experiencia, todos esos koljoses, todas esas palabras soviéticas, palabras en
las que uno nunca pudo profundizar.36 (2012, p. 280)
Queremos trazer aqui uma definição de fracasso extraída do romance Respiração
Artificial, de Ricardo Piglia, uma definição literária que vem em forma de citação. Quem fala
é Tardewski, um polanês solitário e empobrecido que, ao longo da sua vida, passou de
34
Tradução: “O motivo, entendido como unidade e situação, como estratégia de análise permite a análise
estrutural-funcional (função das partes no todo) e a análise ideológica. Esta última supõe que a situação
esquemática se carrega de conteúdo ideológico em sua plasmação num texto particular e, ao mesmo tempo,
evidencia a ideologia do autor e seu grupo social.”
35
Tradução: “O tema que me importa é o fracasso. Um homem se refugia em uma ideia, a proclama como parte
de si mesmo e adere a ela. Ao fazê-lo acredita pertencer, acredita fazer o certo. Mas essa ideia jamais o explica
nem o faz pertencer a nada, porque no fundo, não tem nada a ver com sua vida.”
36
Tradução: “Tenho raiva de seu fanatismo. Do fanatismo de Pío. De sua fé em Stalin, na União de Repúblicas
Socialistas Soviéticas, no koljosz, em todo esse palavreado que eu, igual a ele, pronunciei. Toda essa
experiência, todos esses koljoses, todas essas palavras soviéticas, palavras nas que nunca nos aprofundávamos.”
47
discípulo de Wittgenstein, antes da guerra, a imigrante esquecido e medíocre professor
particular de filosofia para estudantes de segundo grau:
Sentia inclinação pelo que chamam homens fracassados, disse [Tardewski]. Mas, o
que é, disse, um fracassado? Um homem que não tem quiçá todos os dons, mas sim
muitos, inclusive bastantes mais do que os comuns em certos homens de sucesso.
Tem esses dons, disse, e não os explora. Os destrói. De modo, disse, que na verdade
destrói sua vida. Tinha um cara, por exemplo, que eu encontrava com frequência. Na
Polónia. Este homem tinha se eternizado na Universidade, sem nunca fazer as provas
que faltavam para terminar sua carreira. De fato tinha abandonado a Universidade
pouco antes de obter seu diploma em matemáticas e depois tinha deixada plantada
sua noiva no dia da boda. Não via nenhum mérito especial em realizar nada. (...) Se
tenho falado disso tudo, disse, é porque eu mesmo, claro, sou um fracassado. Quero
dizer, um fracassado no verdadeiro sentido, ou seja, disse, alguém que tem
desperdiçado sua vida, que tem esbanjado suas condições. Tenho sido, disse, o que
costumam chamar um jovem brilhante, uma promessa, alguém frente a quem se
abrem todas as possibilidades. (2010, p.152)
Três facetas do fracasso: Anselmo, Arístides e Pío
No último teatro de Cabrujas se desenvolve o motivo do fracasso em três personagens:
Pío Miranda, Arístides Lander e Anselmo Lander. Esses personagens, protagonistas de suas
obras, assumem o fracasso vital de forma provisória até que as circunstâncias obrigam o
desencadeamento de uma crise, de um colapso.
Embora o fracasso dos três personagens seja ideológico, cada um deles fracassa de
forma absoluta em três aspectos independentes: o amor, a ambição e a fé. Pío fracassa no
amor porque não consegue resolver sua situação, de uma década, de indefinido noivado com
María Luisa; Anselmo tem uma fé fracassada porque apesar de ser bispo e de oferecer missa
não acredita em Deus, deseja sua cunhada e finda o voto de castidade; fracassa também a
ambição desmedida de Arístides, que, durante a juventude, se achava predestinado a grandes
coisas que jamais alcançou. Em conjunto, estes três personagens exploram criativamente
todas as possibilidades, todas as caras do fracasso que marcou a geração de Cabrujas
(inconscientemente) e que estimulou a parte mais importante de sua obra dramática.
Pío Miranda vive o fracasso amoroso, ele fracassa na vida. Seu problema não é ser um
escuro professor noturno ou não ter dinheiro; seu problema é a irresolução amorosa com
María Luisa. O tempo cênico de El día que me quieras mostra a relação amorosa de Pío e
María Luisa, levada até o limite. É uma relação muito peculiar. Em dez anos, não mantiveram
relações sexuais e nunca se viram nus. María Luisa viu seus vinte e oito anos se converterem
em trinta e oito sem uma toma de posição séria de parte de Pío. Então, ela o pressionou. O
pressionou e Pío inventou uma mentira: disse que como era comunista eles não poderiam se
casar nessa lixeira do capitalismo, mas na verdade proletária da URSS e a convidou para
48
morar com ele na Ucrânia; inventou uma carta enviada a Romain Rolland e, assim, conseguiu
postergar o momento de encarar o fracasso e enfrentar a verdade.
A conversa entre Isaac Chocrón, Cabrujas, sua mulher, Eva Ivany, e a jornalista Miyó
Vestrini, publicada em Isaac Chocrón frente al espejo, tinha como tema original a amizade
entre Cabrujas e Chocrón, no entanto, em algum momento, tal tema se perdeu e deu lugar a
outro: obra recém estreada El día que me quieras. Diz Cabrujas:
José Ignacio: Pío Miranda cree en él. Solo logra destruirlo, inhibirlo, su fallido amor
con María Luisa, cuando comprende que el acto de vivir se le escapa. Cuando se da
cuenta que es un payaso, porque no logra hacer coherente su vida junto a la simpleza
de un ser humano que lo quiere, quiere vivir con él… y él no se atreve. Si no se ha
acostado con María Luisa, a lo largo de no sé cuántos años, es porque pertenece a
otra cosa. Él se quiere acostar en Rusia.”37 (VESTRINI, 1980, p.206)
Em El americano ilustrado, Anselmo fracassa no âmbito religioso, mas de forma
paradoxal, porque fracassa desde o sucesso, fracassa ascendendo na jerarquia eclesiástica, até
alcançar o cargo de bispo e até perder toda sua fé e toda sua vontade vital; resignado,
encarcerado na igreja, afastado do amor que o atormenta, o amor clandestino por María
Eugenia (um amor não fracassado, mas consumado). Entendemos a fé de Anselmo como uma
fé oportunista, uma fé deformada e cínica, uma fé que no fundo não tem nada de fé. Já no
Prólogo, o vemos lendo literatura erótica na capela e depois fazendo uma proposta sexual. No
primeiro ato, reitera seu amor por María Eugenia e em outro momento informa a Arístides
que está participando de uma conspiração contra o presidente Guzmán (Arístides, irônico, lhe
pergunta se está achando que é “Juana de Arco”); confessa também que tem uma contapoupança em Hamburgo com cem mil marcos e que quer deixar eu bigode crecer. Seu grande
fracasso é a negação, a posposição da renúncia, sua paulatina corrupção por permanecer na
igreja. “Monseñor”, dice Anselmo sobre sí mismo, “se ha hecho melancólico, disperso y a
veces adiposo de tanto hastío.”38 (AI.26)
O fracasso de Arístides é histórico, disfarçado de fracasso profissional. Na verdade,
Arístides tinha ambições profissionais tão grandiosas (alcançar o grau de General, presidir o
Partido Conservador, modificar a Constituição Nacional) que podemos dizer que suas
ambições são proporções históricas. É oportuno trazer aqui outra citação de Respiração
Artificial, de Piglia, que pode aclarar a situação de Arístides
37
Tradução: “José Ignacio: Pío Miranda acredita nele mesmo. Só consegue destruir, inibir, seu falido amor com
María Luisa, quando compreende que a vida está passando. Quando percebe que e um palhaço, porque não
consegue fazer coerente sua vida junto à simpleza de um ser humano que gosta dele, que quer viver com ele… e
ele não se atreve. Se não tem deitado com María Luisa, ao longo de não sei quantos anos, é porque pertence à
outra coisa. Ele quer ter sexo na Rússia.”
38
Tradução: “Monsenhor tem ficado melancólico, disperso e às vezes adiposo de tanto tédio”
49
A capacidade de pensar a realização de sua vida pessoal em termos históricos, lê
Tardewski a frase de Le Roy Ladurie anotada en seu caderno de citações, foi para os
homens que participaram na Revolução Francesa tão natural, quanto pode ser natural
para os nossos contemporâneos, quando chegam aos quarenta anos, a meditação
sobre sua própria vida como frustração das ambições de sua juventude. Via
condensada nessa frase, disse, enquanto tirava os óculos e voltava guardar o caderno
na gaveta, o que Marcelo llamava, não sem ironia, a mirada histórica. (2010, p.183)
O olhar de Arístides era histórico, assim como suas aspirações. Porém, com apenas
quarenta anos alcançou o intranscendente cargo de Secretário de Protocolo do Ministério de
Relações Exteriores. Repentinamente acontece a peripécia: Guzmán o nomeia ministro e ele
se sente brevemente feliz. O que ignora é que Guzmán o nomeia ministro somente para que se
realize a indigna tarefa de negociar a entrega de Guayana a Inglaterra (nasce a Guayana
inglesa). E legítimo pensar que o anterior Ministro de Relações Exteriores, o doutor José
Tadeo Tello Uzcátegui, não tenha sido demitido conforme disse Guzmán, mas que tenha
renunciado. Arístides aceita o cargo e embarca para Inglaterra em missão diplomática
degradante, sobretudo para alguém com uma mirada histórica tão marcada quanto a de
Arístides.
Em profundidade, como dissemos ao princípio, Arístides, Anselmo e Pío sofrem um
fracasso ideológico. E dizemos ideológico nos referindo, de entre os muitos significados
possíveis do termo, àquela acepção, mais sociológica do que epistemológica que, em palavras
de Eagleton, “tem se interessado mais pela função das ideias dentro da vida social que por sua
realidade ou irrealidade” (2005, p.21) Dizemos ideologia e pensamos no conjunto de ideias e
de crenças de um grupo social (como os católicos ou os militantes do Partido Conservador no
final do século XIX, como os comunistas de princípios do século XX e como os intelectuais
de esquerda das décadas do setenta e oitenta). Todos vivem com alguma ideologia,
participam, militam, se refugiam num dogma, no conjunto de crenças que não explicam, que
resultam ineficazes para resolver seus problemas e que, com o passar do tempo, desencadeia
uma crise.
Anselmo vê morrer sua fé e renega de sua religião e seu cargo, enquanto que
paradoxalmente ascende dentro da jerarquia da igreja até chegar a bispo; quando, no primeiro
ato, Arístides lhe pergunta se acaso não é ele o pastor, Anselmo responde “(como si escapara
de una convicción).- Dios no cree en mí, Arístides. Dios es ateo.”39 (AI.15)
Arístides, que em sua juventude pertenceu ao Partido Conservador, com o decorrer do
tempo acaba se inscrevendo, de forma interesseira e não sincera, no Partido Liberal (opositor
do Conservador) por ser o partido oficial; desse jeito ele pôde obter um cargo -medíocre- no
39
Tradução: “(Como se escapasse de uma convicção).- Deus não acredita em mim, Arístides. Deus é ateu.”
50
governo, embora não deixasse de desprezar o presidente Guzmán. Se opõe secretamente ao
partido e ao governo de Guzmán, mas faz um pacto com o presidente em troca do ministério.
Anselmo (que conhece seu irmão), ao saber que Arístides aceitou o ministério, critica sua
inconsistência dizendo: “Hace un mes odiabas a Guzmán. Oscuro, como un pequeño ratón
entre libros, me parecías respetable”40, ao que Arístides responde “(Herido).- Hace un mes
sigue siendo hoy. Y la oscuridad es la misma. La oscuridad soy yo”41 (AII.24)
O fracasso ideológico dos três personagens nasce da falta de correspondência entre
crenças, princípios e ideias. De um lado, está a vida, prosaica e ordinária, de outro está
Arístides, um medíocre burocrata, tentado pelo poder e disposto a esquecer seus princípios em
troca de um cargo; Anselmo , um padre sem fé e com desejos sexuais e Pío, um eterno noivo
que não consegue consumar seu amor nem na igreja, tampouco na cama. “A mí”, diz
oportunamente Cabrujas (e nisto se parece a Tardewski, personagem de Piglia que sente
inclinação pelos fracassados e que fala, como citamos faz pouco, de um conhecido seu (de
Tardewski) na Polónia, que tinha abandonado a universidade bem antes de se formar porque
segundo dizia não via sentido em realizar nada) “siempre me interesó el tema de la
frustración, del derrotado, del que balbucea y fracasa y no sabe por qué. No me gustan los
exitosos sino los que abordan el fracaso como una profesión de vida.”42 (CABRUJAS, 2010,
p.616)
Contudo, é impossível manter o fracasso indefinidamente, chega um ponto culminante
que nasce da necessidade de mudança de uma situação de fracasso para a oposta. Sobrevêm a
crise. O termo é originalmente médico e indica um ponto irreversível na saúde de um
paciente, mas tem acepções variadas. Há crise econômica, como a do viernes negro em 1983;
há crise política, como a da esquerda em 1968, quando o Partido Comunista de Venezuela
negocia com a democracia a rendição da guerrilha; há crise histórica, como a da Venezuela
durante o governo de Guzmán, quando entrega parte do território nacional à Inglaterra; e há,
também, crise psicológica, como a crise dos quarenta que desencadeia o desencanto de
Arístides, o aniversariante. “Pero acaso”, conclui Manuel Caballero respeito à definição de
crise, “lo más importante es su dimensión ideológica. En todo caso, cada vez que se producen,
se sacude también el entero edificio de las creencias, prejuicios y principios. En una palabra,
se puede decir que toda crisis sea en lo fundamental una crisis de creencia” (2009, p.19). A
40
Tradução: “Há um mês você odiava o Guzmán. Escuro, como um pequeno rato entre livros, você me parecia
mais respeitável.”
41
Tradução: “(Magoado).- Há um mês segue sendo hoje. E a escuridão é a mesma. A escuridão sou eu”
42
Tradução: “Sempre me interessou o tema da frustração, do derrotado, do que balbucia e fracassa e não sabe
por que. Não gosto dos sucedidos, senão dos que abordam o fracasso como uma profissão de vida.”
51
falsidade, o fracasso ideológico oculto, negado e autonegado, dos personagens de Cabrujas,
do próprio Cabrujas e dos intelectuais de esquerda dentro do contexto político e socioeconômico daquela Venezuela, tudo entra em crise.
V. A ESTRATÉGIA DA CONFISSÃO
A confissão de Pío, como uma bomba, explode no final do Segundo ato de El día que
me quieras e acaba com a reunião que a família Ancízar faz em homenagem a Gardel. O
desencadeante é o jogo de pergunta-resposta sobre ideologia marxista que, a pedido de
Plácido, improvisam na metade da reunião, entre aplausos, risos e exclamações gerais, com
exceção de Pío que ficou ridiculizado, simplificado, ele e o seu comunismo, reduzido a um
jogo, a uma catequese, a palavras, discurso vazio. Há três indicações corporais que
acompanham as réplicas do personagem Pío e que sintetizam eloquentemente a degradação de
seu estado emocional durante a sequência do jogo, que são (Rabugento), (Constrangido) e
(Suicida). O jogo termina com aplausos e risos de todos, menos de Pío, que nesse momento
confessa:
PÍO.- Está bien, señores… se acabó… vayan a vislumbrar a sus madres… ¡se acabó!
(A María Luisa) No hay nada en Ucrania. No sé dónde queda Ucrania. No hay
Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas. No hay Kamanev ni Zinoviev… no sé
pronunciarlos. No hay Trotsky… ¡No hay Alliluyeva! ¡No hay Stalin! ¡No hay
ventanal de la zarina, ni Bujarin doliente! ¡No hay Lenin! ¡No hay nada...!
MARÍA LUISA (Grita).- ¡Pío!
PÍO.- Pregúntale a Elvira. Ella sabe (...) Yo... estoy mal… yo… me voy… y nunca
más volveré a esta casa… No me esperes… ¡No hay nada! ¡No pasa nada! Mentí…
¡Esa es la palabra esperada, la palabra profética! ¡Mentí! ¡No hay Romain Rolland!
¡Nunca le escribí a Romain Rolland...! ¡Me importa un coño Romain Rolland, y la
paz y la amistad de los pueblos...! ¡Se terminó! ¡No hay regreso! ¡Se terminó…!43
(II.8)
Após dizer tudo, após confessar a falsidade de seus planos de ir para Ucrânia, a
mentira de todo o cosmos comunista sobre cujas projeções ideais tinha cimentado o futuro de
seu relacionamento e a esperança de María Luisa, após reconhecer seu fracasso amoroso e
ideológico, seu fracasso vital, Pío abandona o cenário para sempre. “Es lo que le puede pasar
43
Tradução: “PÍO.- Está bem, senhores… acabou… vão vislumbrar suas mães… acabou! (A Maria Luisa) Não
há nada na Ucrânia. Não sei onde fica a Ucrânia. Não há Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas; Não há
Kamanve nem Zinoviev… não sei pronunciá-los. Não há Trotsky… Não há Alluluyeva! Não há Stalin! Não há
janela da czarina, nem Bujarin dolente! Não há Lenin! Não há nada…!
MARÍA LUISA (Grita).- ¡Pío!
PÍO.- Pergunta para Elvira. Ela sabe (...) Eu... estou mal… eu… vou… e nunca mais voltarei nesta casa… Não
me esperem.. Não tem nada! Nada acontece! Menti… Essa é a palavra esperada, a palavra profética! Menti! Não
há Romain Rolland! Nunca escrevi para Romain Rolland…! Que se fodam Romain Rolland, e a paz e a amizade
dos povos…! Acabou! Não tem mais volta! Acabou…!”
52
a un hombre que se mueve en una esfera ética”, explica Cabrujas a Miyó Vestrini na
entrevista publicada em Isaac Chocrón frente al espejo, “de repente sucumbe, mete la pata,
pronuncia una blasfemia, como la que pronunció Pío Miranda al final de la obra. No cree en
nada, odia a todo, se hunde definitivamente, prefiere inmolarse personalmente a continuar con
una mentira.”44 (1980, p.205)
*
A confissão de Anselmo estoura com veemência no final do segundo ato de El
americano ilustrado. Como a de Pío, a confissão de Anselmo também acontece de forma
inesperada, embora inevitável, como resultado da incubação estendida do fracasso amoroso
(deseja sua cunhada) vital (deseja uma vida civil, com riscos e prazeres civis) e ideológico (é
um padre sem fé). Com quarenta e um anos, Anselmo se vê na impossibilidade de manter por
mais tempo aquela situação. O desencadeante da confissão é um comentário de Arístides que,
sem querer, sem suspeitar, acabou apertando um “nervo” sensível de seu irmão (que já tinha
tempo repensando sua vida); com respeito à conspiração contra Guzmán da que Anselmo
forma parte, Arístides lhe responde desdenhosamente: “Limítate a tus funciones de cura.
Tienes canas y el diafragma comenzó a lamentar tu abdomen. Tienes venillas azules en los
tobillos. Es hora de sentar cabeza. ¿Cuándo vas a aprender?”45, ao que seu irmão replica, “Tal
vez hoy. Tal vez ahora. (Anselmo comienza a despojarse de su traje de obispo)”46 (AII.25).
Arístides, por último, não confessa. Arístides decide calar ao invés de explodir, cede
em troca do ministério que lhe oferecem e segue adiante com sua vida sem entender que o
ministério é uma armadilha, que o que lhe ofereciam era uma tarefa desagradável e terrível.
Podemos dizer que Arístides alcança o ponto de crise, mas sem explodir nem acusar
transformação alguma.
*
Em conclusão, Cabrujas reage frente ao motivo do fracasso, significativamente, na
configuração de sua obra, através da estratégia da confissão. Em sua procura pela
autenticidade, Cabrujas tenta aumentar as possibilidades de supervivência de seu grupo social.
A atitude de Cabrujas é renovadora, radical e o faz ganhar muitos problemas e inimigos no
campo cultural; Cabrujas, porém, aprende a se defender e a brigar com seu grupo social (as
telenovelas o treinaram). Durante uma entrevista, em 1980, declara que:
44
Tradução: “É o que pode acontecer com um homem que se movimenta numa esfera ética, de repente sucumbe,
foge, pronuncia uma blasfêmia, como a que pronunciou Pío Miranda no final da obra. Não acredita em nada,
odeia tudo, afunda definitivamente, prefere se imolar pessoalmente do que continuar numa mentira”
45
Tradução: “Limite-se às suas funções de padre. Você já é grisalho e o teu diafragma começou reclamar de teu
abdome. Você tem veias azuis nos seus tornozelos. Está na hora de assentar a cabeça; Quando vai aprender?”
46
Tradução: “Talvez hoje. Talvez agora (Anselmo começa se despojar de seu traje de bispo)”
53
Los modelos de revolución que conocemos no son nada satisfactorios. No se pensó
que además de hambre, el hombre tiene otras necesidades igualmente primordiales.
Un pan es importante hasta que el hombre se lo come; después de comido empiezan
otros problemas: que quiero ser libre, que quiero viajar a otro país, que quiero tener
tal perolito en mi casa. Todas esas cosas mediocres y sublimes constituyen
elementos humanos. El peor error de una revolución es considerarse a sí misma
absoluta, que las cosas se detienen luego de logrados ciertos objetivos de carácter
económico (...) Yo no puedo creer más en una revolución que simplemente se limite
a hablar de justicia social; eso no me basta. Yo quiero una revolución que me diga
cuáles son los valores que se me prometen. 47 (1980, p.633)
Qual seria a motivação de Cabrujas de planejar a morte de uma fé (a fé marxista),
sendo ele próprio parte do campo cultural e teatral de Venezuela, unanimemente
comprometido com os ideais de esquerda? Segundo o que acreditamos, apenas ser sincero e
mostrar que na realidade o discurso ideológico tinha tomado um caminho que era contrariado
por causa do acordo sociopolítico dos governos posteriores a chegada da democracia, por
consequência, a ideia do comunismo tinha se desvalorizado, tinha virado algo muito
semelhante a aquilo que Avelar chama mercancia “desauratizada". Daí pra frente, o quebre
entre realidade e discurso foi definitivo. Isto atribuiu um ar “aurático”, durante muitos anos,
ao conceito do comunismo, distanciado da realidade e convertido em ideologia de culto. Vinte
anos da “auratização” do comunismo no campo cultural venezuelano, que poderiam ter se
estendido mais ainda, a não ser pela voz crítica, isolada, de Cabrujas quem, mesmo sendo
membro do Partido Comunista (PC) e co-fundador do Movimiento Al Socialismo (MAS),
reconheceu que dita ideologia não passava, entre os intelectuais do campo, de uma religião
suplementaria (AVELAR, 2000, p. 26). Com a caída de Allende, com a loucura de Althusser,
com a rendição das guerrilhas venezuelanas e o pacto com a democracia liberal/petroleira,
poucos anos antes do ano da representação de El dia que quieras, começava ser necessária
uma reflexão.
Pertenezco a una generación muy concreta, muy definida. La generación del 58, que
le apostó la vida al batacazo en todos los partidos y ahora no le queda otro camino
que el de ser sincero. A lo único que yo quisiera apostar en mi vida es a no
engañarnos más. Es esa la desesperada necesidad que siento en este punto de mi
vida. No quiero engañarme ni engañar a los demás. 48 (2010, p.643)
47
Tradução: “Os modelos de revolução que conhecemos não são nada satisfatórios. Não se pensou que além de
fome, o homem tem outras necessidades igualmente primordiais. Um pão é importante até que o homem o come;
depois de comido começam outros problemas: que quero ser livre, que quero viajar para outro pais, que quero ter
tal tachinha na minha casa. Todas essas coisas medíocres e sublimes constituem elementos humanos. O pior erro
de uma revolução é se considerar absoluta”, que as coisas se detêm depois de logrados certos objetivos de caráter
econômico (...) Eu não posso acreditar mais numa revolução que simplesmente se limite a falar de justiça social;
isso não basta. Eu quero uma revolução que me diga quais são os valores que se me prometem”
48
Tradução: “Pertenço a uma geração muito concreta, muito definida. A geração do 58, que apostou a vida em
todos os partidos e agora não tem outro caminho que ser sincera. A única coisa que eu gostaria de apostar na
minha vida é não nos enganarmos mais. É a desesperada necessidade que sinto neste ponto da minha vida. Não
quero me enganar e nem enganar aos outros.”
54
VI. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL DIA QUE ME QUIERAS (1979)
Título
Na prática da análise textual, o título nos interessa como “cartão de apresentação” de
uma obra. Nele se evidencia a “intenção de obedecer ou não às tradições históricas”, explica
Ryngaert, assim como o “jogo inicial com um conteúdo a ser revelado do qual ele é a vitrine
ou o anúncio, o chamariz ou o selo de qualidade.” (1996, p.38) O que o título nos diz
primeiramente? Explica o gênero da peça? Anuncia algo acerca de seu conteúdo? Trata-se
acaso do diálogo de algum dos personagens? É uma obra que fala sobre o amor? Ou se trata
de um título metafórico? A ambiguidade do título desperta várias interrogantes. Partamos do
assunto principal, que corresponde à sua origem. Cabrujas se apropriou de um título que, na
realidade, não é seu e que, antes de significar obra dramática, foi música: está inspirado no
famoso tango “El día que me quieras”, composto pelo cantor Carlos Gardel (música) e seu
parceiro Antonio Le Pera (letra), - ambos pessoas históricas e personagens da peça teatral-,
gravado em 1935. O tango inspirou também a um filme homônimo, protagonizado pelo
próprio Carlos Gardel e cuja estreia foi posterior à sua trágica morte. Na obra, os personagens
fazem referências diretas tanto à música (que também é interpretada sobre cena pelo
personagem de Gardel) quanto ao filme. O título não vem acompanhado de nenhuma
indicação relativa ao gênero e joga com os registros musical e filmográfico, o que nos
desorienta, mas ao mesmo tempo nos anuncia que seu conteúdo se relaciona com a cultura
popular e com o tango de Carlos Gardel. Segundo Ryngaert, um título, como este, “pode jogar
com vários registros e nos deixar indecisos” (1996, p.37). Secretamente, se refere também à
relação amorosa dos personagens Pío Miranda e María Luisa Ancízar, como poderemos
comprovar mais adiante.
A obra está dedicada “a Eva”, sem mais palavras. Sabemos que o autor se refere à Eva
Ivanyi, sua segunda esposa e figurinista da montagem original, mas é evidente que Cabrujas
quer jogar com a referência bíblica da primeira mulher que é de alguma forma, todas as
mulheres. Há também um agradecimento, “a Manuel Caballero”, amigo íntimo de Cabrujas,
historiador, colunista e acadêmico venezuelano, seguido de uma especificação: “por las
55
conversaciones sobre la Internacional” 49. Refere-se a Terceira Internacional Comunista, eixo
temático de capital importância nesta peça e fundamentadora dos princípios ideológicos de
alguns dos personagens.
As grandes partes
Estruturalmente, a obra está dividida de forma quase clássica, em duas grandes partes
que, embora não sejam chamadas atos, mas “tempos”50 cumprem a mesma função e obrigam
a existência do intermédio. “Na prática moderna”, segundo Ryngaert, “os autores falam de
sequências, fragmentos, movimentos (em referência a uma construção musical), pedaços,
jornadas ou partes.” (1996, p.39) No caso de El día que me quieras, Cabrujas fala de
“tempos”. Cada um destes tempos tem um subtítulo, conhecido somente pelos leitores, que
são também nomes de músicas de Carlos Gardel e jogam com o conteúdo de cada parte. O
Primeiro tempo se intitula “Rubias de Nueva York”51, já o Segundo tempo se intitula “Tutankh-amón”. Cada tempo corre contínuo, sem cenas nem marcações de interrupção, até o
final, quando aparecem respectivamente, duas marcas, TELÓN52 ao final do Primeiro tempo e
FIN (fim) ao final do Segundo tempo, final da obra. Estas duas marcas textuais contam com
um estatuto duplo, pois são destinadas tanto à leitura, quanto à prática cênica.
A falta de cenas provavelmente se explica pelo desejo de continuidade do texto e de
evitar uma desnecessária sobrecarga textual. Entendemos que esta falta de cenas corresponde
a um projeto estético do autor que persegue nesta obra uma “estética da continuidade (o
desenrolar é previsto sem maiores cortes)” (RYNGAERT, 1996, p. 39). Cabrujas era,
também, ator e diretor de suas peças e pensava a escritura tecnicamente. Nós, porém,
propomos uma divisão em cenas que permita segmentar cada um desses dois tempos em
unidades menores para facilitar a análise textual. Embora cada obra seja uma unidade de
sentido e uma unidade de criação, pensamos que para viabilizar uma análise mais detalhada
pode ser de grande utilidade uma divisão em subunidades, como as cenas. Entendemos as
49
Tradução: “pelas conversações sobre a Internacional”.
No original: “Tiempos”.
51
A palavra “rubia” em espanhol indica mulher de cabelos loiros (e não vermelhos, como caberia supor).
52
Tradução: Cortina ou pano, na acepção teatral.
50
56
cenas do mesmo jeito com que as entende o teatro clássico: marcadas pelas entradas e as
saídas dos personagens. Tipograficamente, vamos assinalar cada um dos dois atos ou tempos
com números romanos (quer dizer I. para o Primeiro tempo e II. para o Segundo tempo) e
números arábicos para as cenas (1, 2, 3, 4, etc., para a Cena 1, Cena 2, Cena 3, etc.), cujas
combinações permitirão localizar rápida e facilmente as referências durante este estudo. Por
exemplo, II.15. alude à decimo quinta cena do Segundo tempo e I.1., à primeira cena do
Primeiro tempo.
Por outro lado, embora não haja cenas propriamente, há a presença regular de grande
quantidade de indicações cênicas ou didascálias a atores, cenógrafos, iluministas e também,
como uma piscada de olho, aos leitores. Grandes parágrafos ao começo de cada ato
descrevem o espaço, o tempo e o ambiente da obra (“La sala y el patio de las Ancízar a las
doce del día”, “María Luisa está sentada en el sofá vienés”53). Em princípio, são indicações
precisas, mas tendem ao metafórico, como por exemplo, quando o autor, para concluir sua
descrição do decorado, diz que “El resto es árabe y fantasioso” ou que “Un reloj Junghans
suena y es la única exactitud del lugar”54. A continuação e durante o texto todo, encontramos
inumeráveis didascálias de ação: “Entra Elvira”, “Pío sale precipitadamente”. Abundam as
indicações que definem o ritmo da representação e também da leitura: “Pausa”, “Breve
pausa”, “Larga pausa”. Há, também, marcações menos precisas, um pouco sumidiças, mas
muito eloquentes, com relação ao estilo e à forma com que os personagens (e os atores) falam
e fazem: por exemplo, quando o autor faz Pío falar de forma “Marxista” ou “Suicida”, ou
quando explica que María Luisa deve dizer seu parlamento “Compartiendo la alegría”55.
Continuidade de ação
El día que me quieras respeita classicamente as unidades de ação, tempo e espaço
postuladas na Poética de Aristóteles. Toda a obra transcorre num espaço único, que é a sala e
o pátio da casa da família Ancízar. O Primeiro tempo começa “a las doce del día” (meio-dia)
e o segundo “a las doce de la noche” (meia-noite). A divisão corresponde a dois momentos: o
primeiro acontece algumas horas antes do recital de Carlos Gardel no Teatro Principal e o
segundo corresponde à volta, a casa, das irmãs Ancízar, logo após do esperado show. O
53
Traduçao: “A sala e o pátio das Ancizar no meiodia” e “Maria Luisa esta sentada no sofá vienense”.
Tradução: “O resto é árabe e fantasioso” e “Um relógio Junghans toca e é a única exatidão do lugar”.
55
Tradução: “Dividindo a alegria”.
54
57
concerto, em poucas palavras, divide em dois tempos a ação da peça (e as vidas de seus
personagens, a exceção de Pío): antes e depois. Mais do que um recital, o autor o descreve, no
começo do Segundo tempo, como “la apoteosis de Gardel”. Mais esperado e comentado
durante toda a primeira parte da obra, o concerto de Gardel ocorre no vazio de texto e de
representação, quer dizer, no intermédio, entretanto, assim como no teatro grego
(Clitemnestra matando Agamenon, por exemplo), este “fora de cena” cobra a potência do
suspense preparado e se agiganta graças à expectativa formada na imaginação do leitor e do
público.
Grandes blocos de fala ou solilóquios, sobretudo as de Pío Miranda e de Elvira
Ancízar, pausam o ritmo da obra. Estes solilóquios correspondem sempre a um salto no
tempo: Elvira relembra seu breve matrimônio e quase imediato abandono, acontecidos há
trinta anos; Pío justifica sua ideologia contando a história de sua vida, desde sua infância até o
presente da ação; Matilde volta obsessivamente a esses lugares fora do espaço e do tempo
através dos filmes de Gardel, tão vividos e presentes para ela que constituem memorias
pessoais, reelaboradas, transformadas. Na realidade, quando os personagens falam
longamente, o fazem apenas para lembrar, é como se tudo fosse lembrança; um exemplo
pertinente é o solilóquio em que Elvira toma Gardel pelo braço e elabora com palavras a
“lembrança” do passado absolutamente imediato em que se conheceram. No entanto, há outro
tipo de pausa ou respiro da ação, um respiro musical marcado pelas músicas de Carlos Gardel.
Em dois momentos, separados do Primeiro tempo, Matilde e Plácido fazem soar no
gramofone os discos de Gardel, escutam e cantam “Sus ojos se cerraron” e “Rubias de New
York”. No final do Segundo tempo e a modo de despedida, Carlos Gardel canta El día que me
quieras e a letra cobra novos significados. Durante essas músicas, a ação se congela ou se
transforma: a música se torna viva e atuante.
A ficção da obra: argumento e intriga
Entramos agora no nível da história que é contada na obra. É importante fazer uma
distinção entre a história como soma linear de ações e sucessos, respeitando a ordem temporal
que acontecem (argumento o fábula), e a forma de organização que tais sucessos assumem
como mecanismos causais estruturados pelo autor (intriga).
Argumento
58
A fábula ou argumento seria, segundo Pavis um “estabelecimento cronológico e
lógico dos acontecimentos que constituem o esqueleto da história representada” (1990, p.34).
Isto implica pôr em ordem os acontecimentos que aparecem desordenados ou tramados na
peça textual. É um trabalho de ourives, difícil e árduo, que consiste em extrair as ações e os
acontecimentos da história em sua totalidade e organizá-los seguindo uma ordem temporal e
tomando consciência das temporalidades de cada acontecimento. “A dificuldade”, de acordo
com Ryngaert, “consiste em isolar ações e distingui-las dos sentimentos quando são expressos
por causa das ações e só considerar os discursos na medida em que arrastam à ação que os
profere e quem os escuta” (1996, p.56). O argumento que apresentamos a continuação é uma
abstração narrativa a partir da obra dramática, tão exaustiva e minuciosa que se apoia
exclusivamente em ações e acontecimentos extraídos do texto analisado. Assim, entendemos
que a elaboração deste argumento implica nosso ponto de vista, que não esgota as
possibilidades da obra e que provavelmente seria diferente do argumento elaborado por outra
pessoa: aqui apresentamos o nosso.
Argumento de El día que me quieras
No final do século XIX, em pleno governo de Cipriano Castro, morreu de velhice na
sala de sua casa, em Caracas, o general Ezequiel Ancízar. Deixando viúva sua mulher, de
quem nada sabemos exceto que teve quatro filhos: um homem, chamado Plácido, e três
mulheres: Elvira, nascida en 1879, María Luisa, nascida aproximadamente em 1898 e uma
terceira, apelidada “Julie”, cujo nome e idade desconhecemos.
Neste mesmo período, especificamente em 1897, nasce, em Valencia, Pío Miranda,
filho de Ernestina de Miranda, que enviúva anos depois.
Elvira se casa em 1902, com um suposto químico chamado Raimundo Galarraga. Ele a
abandona pouco depois, mente e foge para Trindade e Tobago alegando que ser perseguido
pelo presidente Castro. Durante três anos, Elvira envia dinheiro para ajudá-lo, no endereço
18th Caiman Street, até que descobre que Galarraga não é exilado, mas a havia abandonado
por uma mulher negra de sobrenome Sutherland. Não tiveram filhos. Sua irmã “Julie”, porém,
teve uma filha: Matilde Ancízar, que recebeu o sobrenome materno (supostamente devido à
ausência paterna).
Ernestina de Miranda é enfermeira aposentada, mas, por um erro de nômina, deixa de
receber sua pensão; sem nenhum dinheiro e coberta de vergonha, se enforca no quarto
59
deixando Pío órfão. Este ingressa no seminário Arquidiocesano de onde é expulso por ser
pego se masturbando. Exerce várias profissões (caixa de imprensa, secretário de um
comprador de esmeraldas) e tem várias religiões e crenças (espírita, rosa-cruz, maçom, ateu,
livre-pensador) até que, já em Caracas, se converte em comunista e em professor de uma
escola noturna.
O presidente Cipriano Castro, que estava fora do país tratando problemas de saúde, foi
traído por seu amigo -e vice-presidente- o general Juan Vicente Gómez, através de um golpe
de Estado. Este assume o poder e se impõe presidente: começava (1908) a ditadura mais longa
(27 anos) da história da Venezuela.
Em 1915, Elvira encontra um trabalho de vendedora na agência de correios, no qual se
mantém até o presente (o presente da peça é claro). Elvira já demonstrava, nesse período,
interesse pelos tangos de Gardel.
Nove anos depois, 21 de janeiro de 1924, morre Vladimir Ilich Lenin e, em pouco
tempo, Stalin assume o poder da União de Repúblicas Socialistas Soviéticas e se converte em
líder absoluto da Terceira Internacional.
Um ano mais tarde, em 1925, o jovem comunista Pío Miranda e María Luisa Ancízar
começam namorar.
No dia 15 de maio de 1927 morre a mãe dos Ancízar, mas, antes de partir, deixa um
encargo a Elvira: que ela se certificasse de que seu cunhado, Pío, se casaria com sua irmã
Maria Luísa, com quem já tinha dois anos de namoro. No ano seguinte, 1928, morre “Julie”,
deixando Matilde sob o cuidado de suas tias. Não há sinal do pai.
Plácido Ancízar, que também não havia casado, nem tido filhos, consegue trabalho
como assistente do diretor do Teatro Principal de Caracas.
Os anos passam, Gardel cada vez mais famoso, Pío cada vez mais comunista e sem se
casar com sua noiva María Luisa.
Aproximadamente no dia 10 de junho de 1935, Pío Miranda inventa uma mentira para
María Luisa, com quem tinha já dez anos de namoro: pressionado por ela e por Elvira para
casar, ele mente, diz ter enviado uma correspondência ao escritor francês Romain Rolland
pedindo uma carta de recomendação dirigida a Stalin em nome de Pío e María Luisa, para que
possam se mudar para U.R.S.S. Assim que recomendação de Rolland chegasse, se mudariam
60
ambos para a Ucrânia, onde casariam e teriam filhos. Passado um mês e sem a recomendação
de Rolland, María Luisa sugere a sua irmã, Elvira, a venda da casa como uma forma de obter
dinheiro para financiar a viagem. Pío, no entanto, pede para postergar a venda até que a
resposta de Rolland chegue.
Em 11 de julho de 1935, quinta-feira, Gardel chega ao porto de La Guaira, de onde
parte para Caracas, como parte de uma turnê latino-americana, para dar um concerto no
Teatro Principal, às 9 da noite. Como Plácido trabalha nesse teatro, consegue ingressos para
toda a família, sendo possível conhecer, até mesmo, a Gardel e Le Pera no Hotel Majestic,
onde se celebrou uma recepção em homenagem ao cantor.
Nessa tarde, María Luisa anuncia sua decisão: a partir dessa noite, moraria com Pío e
venderia a casa. Pío é pego de surpresa. Elvira se enfurece. Plácido chega em casa com os
ingressos para essa noite. Enquanto se preparavam para o concerto, Pío se despede e promete
voltar despois do recital para buscar María Luisa e levá-la junto com ele. Por questões
técnicas, Le Pera e Gardel vão atrás de Plácido até sua casa. Na entrada da casa, as
samambaias do saguão fazem com que Gardel se lembre da casa de sua mãe e, comovido,
pede aos Ancízar que lhes permitam, depois do concerto, passar a noite com eles.
Durante o concerto, Gardel dedica a María Luisa, Elvira y Matilde uma música.
Depois do recital, já em casa, as Ancízar preparam a sala para receber Gardel. Le Pera
e Plácido chegam com garrafas de champanhe. Elvira e Matilde improvisam uma cerimônia
de recebimento. Pío chega com uma mala para levar María Luisa e se surpreende com a
presença de Gardel. Brindaram. Gardel acaba mencionando, por casualidade, sua amizade
com Romain Rolland e María Luisa lhe pede que envie um telegrama, em nome de Pío e dela,
a Rolland para que este acelere sua resposta; Gardel concorda. Plácido e María Luisa propõem
um jogo: Pío faria perguntas sobre comunismo e eles responderiam. No meio do jogo, Pío se
enfurece e confessa nunca ter enviado uma carta a Rolland, não ter intenções de morar na
URSS com Maria Luisa e, tampouco, ser comunista. Pedindo perdão, abandona a casa e a
noiva. Incomodado pela tensão, Gardel tenta se despedir, mas os Ancízar lhe rogam que cante
uma última música antes de ir embora. Cantou “El día que me quieras” e depois partiu, junto a
Le Pera. Matilde e Plácido vão dormir. María Luisa pede que Elvira faça café e, aproveitando
a ausência da irmã, abre a mala que Pío havia deixado esquecida e encontra nela uma bandeira
vermelha com a foice e o martelo. Estendeu-a sobre o respaldar do sofá e ficou contemplá-la.
61
Intriga
Se o argumento se relacionava à narração cronológica das ações, a intriga corresponde
à construção da obra em questão, à criação de sua forma definitiva, à maneira como chega até
nós. Dela dependem as estruturas temporais e espaciais de qualquer obra. As intrigas de
muitos romances policiais se constroem a partir da complicação da trama para criar suspense
e captar a atenção do leitor. A originalidade nas obras de teatro clássico, que se valiam das
mesmas fábulas e argumentos, dependia das intrigas que os autores idealizaram. Algo similar
também acontece em outros gêneros contemporâneos, por exemplo, quando, ainda que o
argumento seja original na narrativa, o interessante é a mecânica da intriga. O romance
Crônica de uma morte anunciada, de García Márquez, começa contando, em uma linha, o
desenlace da história e, em seguida, volta narrar convencionalmente, quebrando a expectativa
e o suspense. O conto Viagem à semente de Carpentier conta a história de um homem a partir
de uma inversão na seta do tempo, isto é, começando pela morte e concluindo no ventre
materno. Da intriga depende a mecânica de una obra, a construção dos acontecimentos que ela
conta, mediante a um eixo vital que é o conflito. A primeira tarefa, segundo Ryngaert,
“consiste na identificação do conflito central. Existe conflito quando um indivíduo é
contrariado por outro (uma personagem) ou quando se depara com um obstáculo social,
psicológico ou moral” (1996, p.64). Os conflitos como é evidente nas obras de Cabrujas,
podem fazer intervir forças ideológicas e morais (política, religião, dignidade) quando os
personagens batem de frente com desejos e com princípios que os ultrapassam. Veremos a
continuação a intriga de El día que me quieras exposta sinteticamente, depois desenvolvida
com mais detalhes e, no final, dividida nas partes que constroem a progressão dramática.
Em uma frase
Um comunista não consegue concretar, nem na cama, nem no altar, seu
relacionamento de dez anos com sua noiva, até, que pressionado por ela, confessa o vazio de
suas intenções e de sua ideologia política sobre a qual tinham planejado construir um futuro
juntos, e a abandona.
Desenvolvimento da intriga
Pío Miranda e María Luisa Ancízar esperam há um mês a carta de recomendação de
Romain Rolland para poderem viver na União de Repúblicas Socialistas Soviéticas, onde vão
62
casar e consumar seu noivado eterno “porque, entre otras cosas”, explica Pío, “quiero que mis
hijos nazcan en la verdad proletaria y no en este basurero del imperialismo”56 (I.3). Porém, a
carta de resposta de Rolland à carta de Pío não chega. Em vista da demora, María Luisa
convence Pío de ambos se mudarem nessa noite, depois do concerto de Carlos Gardel.
Inesperadamente e como um milagre, nesta mesma noite, Gardel vai à casa dos Ancízar e por
casualidade e menciona sua amizade com Romain Rolland; sabendo disso, María Luisa lhe
pede que interceda a Rolland para acelerar a resposta. Gardel concorda em enviar o telegrama,
do hotel, no dia seguinte. Sentindo-se culpado e posto em evidência, Pío confessa não ter
escrito nenhuma carta a Rolland, não acreditar no comunismo e nem pretender ir para a
U.R.S.S. com María Luisa, deixando-a em seguida. O elemento que trama a intriga é a carta
imaginária que Pío supostamente havia escrito a Romain Rolland.
Como costuma acontecer em peças teatrais complexas, um conflito esconde outro. O
conflito principal, o noivado eterno sem matrimônio, a irresolução de Pío, ilustrada com a
carta inventada, esconde outro conflito mais profundo e complicado: o de um homem que
utiliza uma ideologia (comunismo) na qual não acredita, para explicar seu mundo e
condicionar seus atos, até que a realidade o obriga confessar sua falsidade e fugir. Essa
“realidade” que o enfrenta se materializa em dois personagens que também vão entrar em
conflito com Pío: Elvira, irmã de María Luisa, que abertamente confronta sua ideologia, suas
atitudes e sua impostura (ela é a única que consegue perceber isso) e Gardel que, não com
palavras, mas com sua mera presença, enfrenta Pío e lhe faz ver sua própria pequenez e sua
insolvência rotunda. É curioso, mas o conflito de Pío, embora acordado pela insistência de
María Luisa, pelas críticas de Elvira e pela grandeza de Gardel, não é um conflito com
nenhum deles senão consigo mesmo.
Léxico da intriga
Sigamos desentranhando os mecanismos da peça, segmentando a intriga em suas
partes constitutivas:
-Exposição: Cabrujas nos apresenta, no Primeiro tempo, todos os personagens e suas
duas mitologias: o comunismo de Pío e María Luisa e o fanatismo tanguero por Gardel de
Elvira, Matilde e Plácido. Eles falam de suas mitologias construindo dois mundos não
conexos e sonhados, utópicos, provavelmente irreais. Pío fala da U.R.S.S. e de Lenin, Stalin,
56
Tradução: “Porque, entre outras coisas, quero que meus filhos nasçam na verdade proletária e não nesta lixeira
do imperialismo.”
63
Bujarin, Kamanev, do plano quinquenal, do koljosz e dos campos de beterraba na Ucrânia,
onde futuramente (um futuro que não é uma intenção e sim uma posposição) irá viver com
María Luisa, casar e ter uma família. Matilde, Elvira e Plácido falam da chegada de Gardel à
cidade de Caracas nessa manhã, da comoção geral da cidade paralisada, do percurso do ídolo
pela cidade, de suas músicas, de seus filmes, de seu corpo, sua origem e sua grandiosidade.
María Luisa quer entender-se com Pío de qualquer jeito, mas Pío, não se opondo abertamente,
se mostra ambíguo, indeciso e obrigado. Fala-se da carta supostamente enviada a Romain
Rolland e da espera pela resposta. Plácido consegue ingressos para que os Ancízar possam ir
ao concerto.
-Nó: María Luisa obriga Pío a aceitá-la em seu quarto de pensão e declara ao resto da
família que, nessa mesma noite, vão morar juntos. María Luisa manifesta a Elvira seu desejo
de vender a casa visando conseguir dinheiro para a viagem com Pío até a Ucrânia. Pego de
surpresa e atacado ferozmente por sua cunhada, Elvira, Pío procura uma intimidade com ela
para se desculpar e para fazer uma confissão pessoal: foi a insistência de María Luisa que o
levou a propor um hipotético matrimônio na U.R.S.S., não por razões ideológicas ou
geográficas, mas porque a Ucrânia fica num mundo afastado, no mundo de suas ideias. De
qualquer forma e apesar de sua falsidade, voltaria essa noite para procurá-la e levá-la consigo.
Elvira, dona de um segredo terrível, assume a falsidade de seu cunhado e aceita seguir seu
plano, sem fundamentos, de mudança para koljosz, na Ucrânia, para não ferir sua irmã iludida
ou, melhor, para que não seja ela a responsável de revelar-lhe a verdade.
-Peripécia: A grande peripécia, o golpe teatral que muda o curso da ação, acontece no
final do Primeiro tempo, quando surpreendentemente Gardel, o homem-mito, o ídolo de
massas, o conjurador dos sonhos dos Ancízar, adentra, por acaso, junto a Le Pera, sua
intimidade familiar. O efeito é impressionante (tanto para os personagens, quanto para o
público), porque a presença de Gardel no discurso dos Ancízar é tão reiterativa que se
constrói um mito ao seu redor, se cria uma aura deificada e fanática que o afasta de suas
realidades. Sua aparição repentina, mais do que surpresa, deriva em milagre. Sua presença
física no Segundo tempo altera o curso dos acontecimentos e precipita a confissão de Pío.
-Desenlace: Não há nenhum desenlace, peripécia definitiva, ou inversão da sorte de
Pío, entendido aristotelicamente como herói trágico, que o leve a uma situação na qual fique
evidente sua passagem da felicidade à infelicidade, como na tragédia clássica. O oposto
também não ocorre, isto é, a passagem da infelicidade à felicidade, como na comédia. Sua
64
passagem é da infelicidade a outro tipo de infelicidade, como acontece, também, com María
Luisa. Quando Pío confessa sua falsidade, no ponto mais alto da progressão dramática, ocorre
uma crise com câmbios profundos e irreversíveis: se experimenta uma passagem do engano
ao desengano. Do engano de um compromisso amoroso indefinido por demasiados anos ao
desengano de seu rompimento abrupto; do engano de uma cosmovisão ideológica dogmática
como explicação e justificação do mundo ao desengano de seu abandono.
3.1 Personagens
Estrutura
A distribuição do elenco de El dia que me quieras nas edições de Monteávila e de
Equinoccio, respeitam a ordem de aparição dos sete personagens durante o desenvolvimento
do drama:
Reparto
María Luisa Ancízar
Pío Miranda
Elvira Ancízar
Matilde
Plácido Ancízar
Alfredo Le Pera
Carlos Gardel
Basicamente, o elenco se compõe pelos membros da família Ancízar (Matilde,
Plácido, Elvira e María Luisa); pelo noivo de María Luisa, Pío, e por Gardel (acompanhado
de Le Pera), sem conexões aparentes com o resto dos personagens até o final do primeiro ato.
É um universo fechado, um universo familiar, com exceção de Gardel e Le Pera, tão estranhos
que parecem saídos de um sonho.
Configurações
Os sete personagens se relacionam uns com os outros de diversas maneiras e em
distintos momentos. Cada disposição possível de personagens sobre cena, da totalidade ou
parte dos personagens, é chamada configuração. Não se encontra, em toda a peça, um cenário
65
vazio. Alguns dos momentos mais importantes da obra acontecem com configurações de
duplas e trios. O clímax da obra acontece com configuração plena dos sete personagens.
Há dois solos na peça. O primeiro, no primeiro ato, quando Matilde fica sozinha em
cena e coloca um disco de Gardel no gramofone e fica sentada escutando e cantando (I.7). É
uma cena de transição, de descanso, posterior à discussão familiar das cenas anteriores. O
segundo, muito mais significativo, acontece na penúltima cena da obra e, curiosamente,
também é uma cena muda. Não há monólogos nesta obra, tendendo ao realismo: uma
personagem que não tem com quem falar, pois não fala. María Luisa, abandonada por Pío,
fica sozinha em cena e realiza uma cena muda, apenas com movimentos: abandonada pelo
noivo, extrai da mala esquecida por ele a bandeira comunista símbolo de seu futuro amoroso,
que se converte em prova da desilusão.
Duplas: parece ser a configuração íntima por antonomásia e sem dúvida é mais
propícia para cenas amorosas: Pío e María Luisa projetam juntos, sentados no sofá, seus
sonhos amorosos; Gardel seduz a linda María Luisa quando ficam sozinhos. A dupla cena é
também, a configuração mais favorável à fraternidade e à parceria, como quando Pío e
Plácido compartilham ideais revolucionários e desejos ou como quando Matilde e Plácido ou
Elvira e Matilde falam com deleite de seu ídolo cantor. Ademais, Cabrujas utiliza a
configuração dupla para a primeira confissão de Pío, quando se enfrenta com Elvira. Mais do
que dupla com equivalência de participação, parece um solilóquio apresentado para Elvira.
Existem várias configurações de trios e de quartetos que são irrelevantes, demasiado
curtas, como de transição em direção a -ou desde- outras configurações. Mostrou-se mais
proveitoso, assim, mencionar, apenas, um trio e um quarteto relevantes. O trio é o que abre o
segundo ato, quando María Luisa, Elvira e Matilde, voltando do concerto, conversam entre si
(reelaborando, reconstruindo o tempo latente -e por tanto oculto- do concerto de Gardel e de
sua prévia aparição em casa). O quarteto de que falamos está composto por Elvira, Matilde,
María Luisa e Pío, na terceira cena do primeiro ato. Este é relevante por uma razão
incontestável: nele se apresentam os principais conflitos da intriga e antecedentes importantes
para a compreensão do drama: quando María Luisa anuncia sua vontade de morar junto com
Pío e quando faz a conflitiva proposta de vender a casa.
Finalmente, é a configuração plena a que domina todo o segundo ato até quase o final
da peça. Os sete personagens se reúnem na sala dos Ancízar para comemorar o concerto de
Gardel e homenageá-lo. Entretanto, não suspeitam - os personagens - que a comemoração se
transformará em rompimento definitivo. O clímax da obra ocorre com esta configuração: Pío
se enfurece, reconhece seu fracasso e diante de todos confessa sua falsidade.
66
Personagem, ação e hierarquia.
É uma tarefa antipática definir a importância dos personagens de qualquer obra.
Antipática e de certo modo muito relativa. Há um ditado no teatro que diz que não há papeis
pequenos, mas atores pequenos; embora possa ser lida como uma frase de consolo para atores
secundários, sem dúvida reflete uma realidade válida para esta e muitas outras ficções:
personagens pequenos podem nos interessar mais e ficar mais na memória do que outros mais
principais. É o caso rotundo de Clarín, o engraçado de La vida es sueño, ou dos coveiros de
Hamlet. Trata-se da mesma lógica que levou Dustin Hoffman a escolher o papel do autista
Raymond Babbit no filme Rain Man (1988) ao invés do papel do protagonista Charles Babbit,
que lhe haviam oferecido em princípio.
É necessário categorizar, para poder definir e qualificar as importâncias relativas dos
personagens de El día que me quieras. Desde o ponto de vista da ação, por exemplo, há três
personagens substanciais e quatro personagens funcionais. Os personagens substanciais são
Pío, María Luisa e Gardel. Tais personagens são substanciais para a ação porque a
desencadeiam com o anúncio que fazem de sua mudança; e, com a proposta da venda da casa,
produzem a discórdia familiar. Gardel, por outro lado, com sua aparição física, provoca não
só um golpe de efeito, mas uma peripécia profunda no desenvolvimento da ação (a mudança
dos noivos se pospõe por sua causa). Os personagens funcionais para a ação são, por sua vez,
Elvira, Matilde, Plácido e Le Pera. Os dois últimos tem a função de justificar a aparição de
Gardel na casa dos Ancízar: Le Pera, parceiro e agente de Gardel, procurava por Plácido,
representante do teatro, para definir detalhes técnicos da apresentação, por isso o seguem, Le
Pera e Gardel, até sua casa; Matilde cumpre a função de agigantar, desde o espaço patente da
sala de sua casa, a figura de Gardel, “narrando-o” exageradamente, idolatrando-o,
imaginando-o. Elvira, por último, é a mais importante dos personagens funcionais porque sua
função é tripla: é a antagonista de Pío, a anfitrioa de Gardel, a pacificadora durante a reunião
e, por fim, é a cabeça familiar, eixo imperceptível ao redor do qual giram os outros
personagens.
Hierarquicamente falando, podemos dividir os personagens em quatro principais e três
secundários. Os principais são: o protagonista, Pío Miranda, com seu grande conflito secreto e
sua irresolução amorosa; a deuteragonista, Elvira, que é a única que se opõe a Pío, constante e
ferozmente, até que, ao escutar sua confidência, se converte em cúmplice silenciosa; a
tritatagonisa, María Luisa, que desencadeia, com seu afã romântico, a controvérsia familiar e
o rompimento definitivo de seu relacionamento com Pío; e o tetragonista, Carlos Gardel, cuja
67
presença-ausente domina toda obra, do começo ao fim, começando pelo título. O resto dos
personagens, por mais encantadores ou simpáticos que sejam (Plácido é muito engraçado),
são secundários: Plácido, Matilde e Le Pera.
Réplicas
Há um aspecto dos personagens dramáticos que é quantificável e que, embora possa
ser enganoso, pode nos revelar ou nos ajudar a interpretar a hierarquia, não de importância,
mas, sem dúvida, de participação dos personagens de um drama: as réplicas. Os personagens
são feitos de palavras que emitem e recebem. Contemos, por tanto, as réplicas, sendo o
símbolo (--->) para as réplicas emitidas e o símbolo (<---) para as recebidas.
Réplicas de personagens em El día que me quieras
Elvira
----------> 160
<---------- 160
=320
María Luisa
----------> 142
<---------- 159
=301
Matilde
----------> 134
<---------- 115
=249
Pío
----------> 96
<---------- 114
=210
Plácido
----------> 81
<---------- 73
=154
Gardel
----------> 70
<---------- 73
=143
Le Pera
----------> 26
<---------- 15
=41
A partir desta contagem, verificou-se que Pío Miranda, protagonista da obra, é o
quarto personagem em ordem de quantidade de réplicas, fato que nos chama a atenção. No
68
caso de Gardel a discordância entre número de réplicas (emitidas e recebidas) e sua
importância é ainda maior: Gardel é o segundo personagem com menos réplicas de toda a
obra. Isto tem uma justificativa irrefutável: ambas as personagens permanecem ausentes
durante grande parte do drama. Gardel não aparece em todo o primeiro ato, exceto no final, e
depois volta a permanecer ausente durante as primeiras cenas do segundo ato. Pío, por sua
vez, entra e sai de cena várias vezes, mas, quando está em cena, não é, entre todos os
personagens, o mais loquaz (se consideramos que Pio emite 96 réplicas e recebe 114, o que o
caracteriza como um personagem passivo). No entanto, quando Pío se decide falar, nos dois
solilóquios da obra, alcança a maior extensão entre todos os personagens. Pío não é, por tanto,
um personagem passivo, mas, sim, um personagem encantado pelas circunstâncias, sem chão;
por isso ora cala, ora fala muito: vive uma luta interna. Elvira é o primeiro personagem em
réplicas de toda obra, sem ser protagonista; tal fato se explica, conforme apontamos antes, se
consideramos que ela é a mais importante das personagens funcionais cumprindo, ao mesmo
tempo, as tarefas de confidente de sua irmã, María Luisa, adversária de seu cunhado, Pío,
cabeça da família e anfitriã da reunião. Matilde cumpre a função de caracterizar verbalmente
o personagem Gardel antes de sua aparição, durante quase todo o primeiro ato e por sua
grande quantidade de réplicas, ratificamos a importância de sua função para este drama. A
caracterização de Gardel feita por Matilde, uma admiradora cega, o torna um personagem
idealizado, sobre-humano, cima do resto da obra.
Graus de representação.
A mesma categoria dos graus de representação serve para analisar tempo, espaço e
personagens. Existem três níveis de representação dramáticos: patente, latente e ausente. O
cenário compõe os personagens patentes desta peça: sete personagens visíveis que chegam
estar efetivamente em cena, representados por atores de carne e osso (ou, no caso estritamente
textual, de tinta e papel). Há, porém, mais personagens que patentes; personagens que,
embora nunca apareçam, em cena são nomeados pelos personagens patentes ao longo do
drama: estes personagens invisíveis, apenas nomeados, são chamados personagens ausentes,
mas que formam parte do drama. Não há nenhum personagem latente (quer dizer, invisível,
mas próximo, contiguo) em toda a obra. Pode-se dizer, assim, que há uma enorme quantidade
de personagens ausentes em El día que me quieras.
Em primeiro lugar, vamos mencionar alguns personagens históricos, religiosos e
artísticos, que no mundo real são entidades ou referências, mas não no âmbito textual deste
69
drama. Aqui, são apenas personagens. Os personagens religiosos são, como na vida real,
invocados, citados, como fazendo parte da cotidianidade de uma família que pertence a uma
sociedade católica: Santa Rosa de Lima, Santa Rita, Moisés, Jesus, Maria, são alguns dos
mencionados. Entre os personagens históricos está o presidente da Venezuela da época, Juan
Vicente Gómez, chamado simplesmente “Gómez”; o ex-presidente Cipriano Castro, que
supostamente perseguia ao ex-marido da Elvira; o missionário Pedro Claver, a quem Matilde
equipara, em importância, a Gardel e La Pasionaria, Dolores Ubárruri, comunista espanhola
que Elvira compara ironicamente a Maria Luisa. Posteriormente aparecem os escritores:
Víctor Hugo, Xavier de Montepin, Alejandro Dumas (filho), Eça de Queiroz, todos parte de
um grupo de escritores cujos livros foram empilhados pela mãe de Pío Miranda para servir de
cadafalso em seu enforcamento.
Em segundo lugar, estão os personagens ausentes relativos às esferas vitais de cada
personagem. São mencionados em toda obra , em distintos momentos: a Mãe de Elvira,
Plácido e María Luisa; Ezequiel Ancízar ou o General Ancízar, avô de Matilde e primeiro
dono da casa da família; “Julie”, que é como apelidam à falecida mãe de Matilde sem
mencionar seu nome real em momento algum; “Ernestina, viuda de Miranda”57, mãe suicida
de Pío; Raimundo Galarraga ou simplesmente Raimundo, ex-marido de Elvira que a
abandona e foge para Trindade e Tobago; Bertorelli, também chamado “honorável
superintendente” e “essa alimária”, chefe de Elvira na agência de correios; e, por último, o
Sr. Pimentel, chefe de Plácido e diretor do Teatro Principal onde canta Gardel.
Em terceiro lugar, estão os personagens ausentes relativos às esferas de Pío Miranda e
Carlos Gardel. São personagens ausentes equiparáveis, em ambos os casos se mencionam
como projeções de mundos afastados e melhores em relação ao da esfera familiar dos
Ancízar. Pío Miranda e María Luisa habitam com personagens ausentes (reais, mas
imaginários), como, por exemplo, Stalin (também chamado Iosif Visarionovich), Bujarin,
Zinoviev, Kamanev, Trotsky, Rakovski, Lenin (também o chamam Vladimir Ilich),
Alliluyeva, Marx, Federico Engels e Romain Rolland, todos pertencentes ao espaço ausente
da U.R.S.S. onde planejam casar.
Em oposição à cosmologia comunista do casal de noivos, estão os personagens
ausentes que se relacionam a Gardel e seu mundo, mencionados constantemente por Elvira,
Plácido e Matilde (e pelo próprio Gardel a partir do momento em que aparece); tais
personagens cumprem uma função similar a dos anteriores: habitar o espaço ausente de um
57
Tradução: “Ernestina, viúva de Miranda”.
70
mundo glamoroso como consolo à cotidianidade familiar. Alguns destes personagens,
históricos ou não, são venezuelanos, atraídos ao Hotel Majestic, onde se hospeda o famoso
ídolo popular: “o Governador”, “o Reitor”, o “Monsenhor Fontúrvel”, o Doutor Fortoul, o
Doutor Vallenilla; outros, são personagens ausentes que, como Gardel, formam parte do
mundo da estrelas, nobres, artistas ou como diria Elvira, simplesmente, “gente de allá” 58:
Rosita Moreno, Rosa de Luxemburgo, a Rainha Guilhermina, Mahatma Gandhi, Enrico
Caruso e Romain Rolland, entre outros.
Uma observação: embora regida pelos personagens patentes, que já mencionamos no
reparto, a intriga desta obra está organizada ao redor de um personagem ausente de grande
relevância: Romain Rolland. Ele é o único entre todos os personagens ausentes que coincide
em ambas as esferas, a do Pío (imaginária) e a de Gardel (real). Gardel conhece em pessoa o
escritor francês de quem Pío diz esperar uma resposta.
Gardel e Le Pera são os únicos personagens que aparecem em diferentes graus. Estão
ausentes durante toda a primeira metade da obra e no começo da segunda metade, mas, em
contra partida, são, mencionados diversas vezes.
Caracterização
De acordo com García Barrientos, “carácter es el conjunto de atributos que
constituyen el contenido o la “forma de ser” de un personaje: el concepto caracterización
pone en primer plano la cara artística o artificial del personaje como constructo.”59 (2007,
p.25) A caraterização seria, então, o conjunto de atributos (físicos, psicológicos, éticos,
morais) que o autor de uma obra dá a seus personagens.
O caráter dos personagens desta obra é abordado durante toda a análise de El día que
me quieras (inclusive nas categorias de espaço e tempo). Não podemos falar de um
personagem sem nos referir ao seu caráter.
Queremos, para não estender excessivamente este tópico, nos restringir, apenas, a
fazer alguns apontamentos. Pelo grau de caraterização com que o autor desenvolve seus
personagens ao longo do drama, podemos dividi-los em personagens de caráter complexo
(redondo, pluridimensional); que seriam Pío Miranda e Gardel em primeiro lugar e Elvira e
María Luisa em segundo lugar; e em personagens de caráter simples ou plano, que seriam os
58
Tradução: “gente de lá”
Tradução: “Caráter é o conjunto de atributos que constituem o conteúdo ou a ‘forma de ser’ de um
personagem: o conceito caraterização põe em primeiro plano a cara artística do personagem como construto.”
59
71
outros três: Matilde y Plácido, em terceiro lugar, e Le Pera num quarto e solitário lugar de
unidimensionalidade.
Se os atributos, a forma de ser, a personalidade ou temperamento de um personagem
muda no transcurso do drama, dizemos que ele possui um caráter variável. Não é o caso de
nenhum personagem deste drama. Pío Miranda é o único que tem um caráter aparentemente
variável, mas se trata meramente de um efeito: na realidade, seu caráter não varia, apenas se
revela na medida em que o conhecemos melhor.
O autor faz uso de todas as técnicas de caraterização que oferece o âmbito
dramatúrgico. -Técnicas de caraterização explícitas verbais reflexivas (isto é, o personagem
fala de si mesmo).
O exemplo mais paradigmático se encontra nas primeiras linhas do solilóquio de Pío,
dirigido a Elvira, na cena 12 do primeiro tempo:
PÍO.- En treinta y ocho años de mi vida he sido maestro de escuela, cajero de
imprenta, secretario de un comprador de esmeraldas en el río Magdalena, espiritista,
seminarista, rosacruz, masón, ateo, librepensador y comunista. ¡Y ahora te diré por
qué soy comunista!”60 (I.12)
-Técnicas de caraterização explícitas verbais transitivas (um personagem fala de outro
em sua presença).
Cabrujas utiliza muito esta técnica de caraterização. Há um momento, contudo, que
queremos relembrar, por ser engraçado, simplificador e diverso, do uso desta técnica . No
meio do segundo ato, com a configuração plena de personagens, Plácido, ébrio e feliz pela
companhia de Gardel, realiza uma enumeração caraterizadora dos membros de sua família
para os visitantes - Gardel e Le pera. “PLÁCIDO.- (...) ¿Cuántos son? ¿Cuántos somos?
(Inicia una cuenta) Elvira, la abandonada, María Luisa, la etérea, Matilde, la futura...
(Sentimental) Cuida ese virgo, Matilde… como si fuese una tacita de oro… porque es un
virgo Ancízar, y hay un héroe de la independencia de por medio”61 (II.8)
-Técnicas de caracterização explícitas verbais transitivas ( um personagem fala de
outro em sua ausência e antes de sua primeira aparição).
Esta é, sem dúvida, a técnica de caraterização mais amplamente utilizada em El día
que me quieras. De fato, parte da graça desta obra se deve ao uso excessivo desta técnica para
60
Tradução: “Em trinta e oito anos da minha vida tenho sido professor de escola, caixa de imprensa, secretário
de um comprador de esmeraldas no rio Magdalena, espírita, seminarista, rosa-cruz, masson, ateu, livre-pensador
e comunista. E agora vou te dizer porquê sou comunista!”
61
Tradução: “PLÁCIDO.- (...) Quantos são? Quantos somos? (Inicia uma conta) Elvira, a abandonada, Maria
Luisa, a etérea, Matilde, a futura… (Sentimental) Cuida dessa virgindade, Matilde, porque é uma virgindade
Ancízar e tem um herói da independência no meio”
72
caracterizar Gardel, ausente durante a maior parte da obra. Todo o primeiro ato está
construído a partir do uso desta técnica caraterizadora para preparar o golpe de efeito que
fecha o ato, quando Gardel faz sua imprevisível aparição. Vamos fazer uma pequena
compilação de caraterizações que, sobre Gardel, fazem os demais personagens, para
demostrar até que ponto são hiperbólicas e alucinadas:
ELVIRA.- (...) Y él viene de negro. ¿Se enteraron? ¿No es increíble que salte por
encima de este asunto panameño y que en lugar de blanco nos regale un invierno?
Chaleco marfil, por supuesto. Como cabe. Como es. Ni una gota de sudor en todo su
cuerpo. Ni siquiera cuando acarició las palomas en la plaza de las palomas. Aquella
frente limpia y todo mundo comentando: “No suda, no suda” (...) (I.2)
MATILDE.- (...) Entre paréntesis, es mentira lo del oro en la muela. Su dentadura
perfecta. Una dentadura intachable.
PÍO.- ¿Quién le vio la dentadura?
MATILDE.- Vox populi. (...) (I.3)
MARÍA LUISA.- Pero, ¿la voz es la misma...?
MATILDE.- No. Es más ancha. Más larga. Más dulce. (...) (I.3)
MATILDE.- ¿Es alto, verdad?
PLÁCIDO.- Matilde… yo lo vi y me parpadeó la virilidad… Es alto, como en las
películas y tiene esa luz que parece atravesarlo… y en lugar de hablar, accede, se
inclina, se extiende (...) (I.8)
PLÁCIDO.- Es un hombre de ideas avanzadas, Pío. Un hombre del pueblo. (...) (I.9)
PLÁCIDO (Grita).- Gardel es tan alto como el general Gómez… (I.15)62
-Técnicas de caraterização explícitas verbais transitivas ( um personagem fala de outro
em sua ausência e depois de sua primeira aparição).
Não iremos considerar todas as referências que, sobre Gardel, seguem fazendo os
demais personagens em sua ausência durante a primeira parte do segundo ato, quer dizer,
depois de sua primeira aparição, pois esta é tão curta que, embora impressionante, é como se
não contasse; depois volta a se ausentar por um bom tempo. Vamos extrair um fragmento em
que Elvira e Matilde falam sobre María Luisa, aproveitando que esta sai com Pío depois da
discussão familiar motivada por ela ao propor a venda da casa:
MATILDE.- Tía, ¿por qué no hablas con ella [María Luisa]?
62
Tradução:
ELVIRA.- (...) E ele vem de preto. Souberam disso? Não é incrível que pule por cima desse assunto panamenho
e que ao invés de branco nos presenteie um inverno? Colete marfim, claro. Como cabe. Como é. Nem uma gota
de suor em todo seu corpo. Nem sequer quando acariciou os pombos na praça dos pombos. Aquela testa limpa e
todo mundo comentando: “Não sua, não sua...” (I.2)
MATILDE.- (...) Entre parênteses, é mentira que tenha ouro no molar. Sua dentadura é perfeita. Uma dentadura
irrepreensível.
PÍO.- Quem viu a dentadura dele?
MATILDE.- Vox populi. (I.3)
MARÍA LUISA.- Mas, a voz é a mesma…?
MATILDE.- Não. É mais longa. Mais comprida. Mais doce… (I.3)
MATILDE.- É alto, não é?
PLÁCIDO.- Matilde… eu o vi e a minha virilidade pestanejou… É alto, como nos filmes, e tem essa luz que
parece atravessá-lo… e em lugar de falar, concorda, se inclina, se estende. (...) (I.8)
PLÁCIDO.- É um homem de ideias avançadas, Pío. Um homem do povo. (...) (I.9)
PLÁCIDO (Grita).- Gardel e tão alto quanto o general Gómez.
73
ELVIRA.- ¿Y qué me va a contestar? ¿No ves que se cree La Pasionaria, con la
mirada extraviada y los ojos saltones, como si estuviera contemplando el futuro de la
humanidad? ¡Vender la casa! ¡Ucrania! (...) Unión de Repúblicas Socialistas
Soviéticas, y la boca se le llena porque no tiene aire para pronunciar ese nombre.
¡Allí está su caso, porque ahora es comunista… como si supiera de pobres, como si
hubiera trabajado alguna vez! ¡Hipócrita!63 (I.6)
3.2 Tempo
Estrutura
A estrutura temporal de El día que me quieras é bastante clássica e condensada: duas
cenas temporais e um nexo. Esquematicamente, a estrutura da obra é assim:
Cena temporal 1 + Nexo 1 + Cena temporal 2
As cenas temporais são as encenadas sem interrupções nem alterações no transcurso
linear do tempo da fábula. O nexo é uma elipse desse tempo. São categorias temporais que
equivalem no tempo da representação pragmática ao Primeiro ato + Intermédio + Segundo
ato. Desde o ponto de vista dos graus de representação, a estrutura seria Patente + Latente +
Patente. Considerando os dados textuais da peça, contidos nos diálogos dos personagens (que
comentam o tempo e revelam, concretamente, datas e horas) podemos pensar num esquema
mais preciso, como:
Cena temporal 1: Data, 11 de julho de 1935. Horário: 12:00 pm-2:30pm.
Nexo 1: Mesma data. Horário: 2:30 pm-12:00am
Cena temporal 2: Data, 12 de julho de 1935. Horário: 12:00 am-12:30am
Ordem
63
Tradução: “MATILDE.- Tia, por que não você não fala com ela [María Luisa]?
ELVIRA.- E o que vai responder? Você não vê que ela se acha La Pasionaria, com a mirada extraviada e os
olhos saltando, como se estivesse contemplando o futuro da humanidade? Vender a casa! Ucrânia! (...) União de
Repúblicas Socialistas Soviéticas, e a boca dela se enche porque não tem ar para pronunciar esse nome. Eis o
caso dela, porque agora é comunista… como se soubesse de pobres, como se houvesse trabalhado alguma vez!
Hipócrita!”
74
Resulta evidente que El día que me quieras respeita a organização cronológica das
cenas: a primeira acontece ao meio-dia de 11 de julho e a segunda à meia-noite, deste mesmo
dia: antes e depois do concerto.
O momento mais parecido com uma “regressão” temporal encenada se caracteriza
quando María Luisa, Elvira e Matilde brincam de representar o momento posterior ao
aparecimento de Gardel (que não é encenado), mas, na verdade, mais do que uma regressão
genuinamente dramática, trata-se da mímica de uma regressão temporal.
Frequência
Explica García Barrientos que a frequência se refere à relação entre as repetições de
uma ação na fábula (que inclui tempo ausente) ou na encenação da obra (tempo patente). Esta
combinação, pouco usual no teatro, mas presente nesta peça de Cabrujas, possibilita a iteração
dramática: “escenificar una vez lo que se repite varias veces en la fábula” 64 (BARRIENTOS,
2007, p.19). Há dois casos de iterações dramáticas na obra: o primeiro, surge da didascália
que Cabrujas acrescenta como indicação de Matilde quando ela interrompe o conto sobre o
abandono de Elvira: “MATILDE (interrompe, abreviando uma história mil vezes repetida).E fugiu para Trindade, Raimundo...” (I.6) Elvira é encenada uma vez contando uma história
que sempre conta.
A segunda iteração dramática é muito mais extensa e significativa. É uma sequência
de diálogos curtos e intercalados que revela conhecimento mútuo, prática, costume. Uma
sequência de perguntas e respostas (a forma relembra o modelo da catequese) sobre as bases
do comunismo, de seus dogmas ideológicos. Plácido força a situação, acaba virando jogo, a
brincadeira de repassar o interrogatório ideológico ensinado por Pío:
PLÁCIDO.- (...) Me lo aprendí de memoria… palabra que me lo aprendí de
memoria… Anda, Pío…, pregunta…, para que todos lo oigan…
PIO.- No es el momento, Plácido…
PLÁCIDO (Insiste).- Pregunta, Pío… María Luisa también lo sabe, ¿No es verdad,
María Luisa?
MARÍA LUISA.- ¿Qué?
PLÁCIDO (A Gardel).- Morocho… ven acá… escucha… Pío pregunta… y yo
respondo. Y María Luisa también…
GARDEL.- ¿Un juego?
PLÁCIDO.- Un juego… a ver… ¿Qué notamos al examinar la sociedad actual?...
Pío, pregunta...Tú primero y nosotros después. ¿Qué notamos al examinar...?
PÍO (Abrumado).- ¿...la sociedad actual?
PLÁCIDO.- Respuesta…
MARÍA LUISA Y PLÁCIDO.- La existencia de dos tipos de hombres...el
proletariado y el burgués…
GARDEL (Aplaude).- ¡Grande! ¡Enorme!
64
Tradução: “encenar uma vez o que se repete várias vezes na fábula”.
75
LE PERA.- ¡Así se habla!
PÍO.- ¿Quién es el proletariado?
MARIA LUISA Y PLÁCIDO.- El pobre. El que no posee nada.
GARDEL (Entusiasmado).- ¡Bien dicho!65 (...) (II.8)
A “brincadeira” continua por bastante tempo. O jogo de perguntas e respostas do
catecismo marxista entre Pío, María Luisa e Plácido está tão sincronizado, cronometrado, tão
exato (María Luisa e Plácido respondem o mesmo e ao mesmo tempo), que demostra muita
prática (há grande quantidade de repetições na fábula, embora encenadas uma só vez). Como
vemos, a brincadeira degrada Pío até sua saturação, da qual depende o desencadeamento do
clímax da peça, do solilóquio final de Pío: a revelação do fracasso.
Duração
A duração pode ser entendida como o desenvolvimento total do tempo da ação
(BARRIENTOS, 2007, p.19) e se compõe a partir da soma dos tempos patentes e latentes.
Quer dizer, pouco menos de treze horas no total, que vão do começo do drama, ao “meio-dia”,
até o final deste, pouco depois de Plácido informar que era “meia-noite e meia”. A pergunta
chave é: se respeita a unidade aristotélica temporal? A resposta é sim: a duração total do
tempo interno da fábula encenada é menor que um dia. As durações relativas internas das
cenas temporais da obra tendem à isocronia, isto é, a apresentar igualdade entre o tempo
representante e o representado.
Distância
El día que me quieras é um drama histórico, pois a “distância temporal (entre a
localização no tempo da fábula e da encenação ou da escritura)” é retrospectiva, do presente
65
Tradução: “PLÁCIDO.- (...) Eu o aprendi de cor… palavra que o aprendi de cor… vai, Pío…, pergunta..., para
todo mundo ouvir..
PÍO.- Não é o momento, Plácido…
PLÁCIDO (Insiste).- Pergunta, Pío… María Luisa também o sabe. Não é verdade, María Luisa?
MARÍA LUISA.- O que?
PLÁCIDO (A Gardel).- Moreno… vem cá… escuta… Pío pergunta… e eu respondo. E María Luisa também…
GARDEL.- Uma brincadeira?
PLÁCIDO.- Uma brincadeira… … vamos lá… Em que reparamos ao examinar a sociedade atual?... Pío,
pergunta… você primeiro e nós depois. Em que reparamos ao examinar…?
PÍO (Abrumado).-...a sociedade atual?
PLÁCIDO.- Resposta…
MARÍA LUISA E PLÁCIDO.- Na existência de dois tipos de homens… o proletariado e burguês…
GARDEL (Aplaude).- Grande! Enorme!
LE PERA.- Assim é que se fala!
PÍO.- Quem é o proletariado?
MARÍA LUISA E PLÁCIDO.- O pobre. O que não possui nada.
GARDEL (Entusiasmado).- Bem dito!” (II.8)
76
para o passado. Estreia em 1979, mas o tempo diegético do drama transcorre em 1935: 44
anos de distância os separam.
Graus de (re)presentação
Existem graus, sempre os mesmos, nos quais se representam, diferentemente, tanto o
tempo, como o espaço e os personagens, que são: patente, latente e ausente. O tempo também
é representado nestes três níveis, sendo o patente o tempo encenado, isto é, que transcorre
sobre a cena; o latente seria um tempo sugerido, próximo ao encenado ( como os vazios
temporais dentro de uma representação) e o ausente seria o tempo aludido, o tempo anterior
ou posterior ao representado, o passado e o futuro da história e de cada personagem. Esta
tripla possibilidade,
como diria Barrientos “genuinamente teatral” (2007, p.22), é
interessante, sobretudo, pelas relações que o drama estabelece entre esses diferentes graus de
representação temporal.
Tempo patente
O tempo patente do drama começa exatamente, como indicam as didascálias “a las
doce del día” (I.1) (mais adiante descobriremos que a data desse dia é 11 de julho de 1935).
O drama corta o tempo da fábula para começar desenvolver a intriga sobre cena in
medias res, com os noivos no sofá, sentados lado a lado , quando de imediato “María Luisa
sonríe vagamente percatándose de Pío, a quien olvidó hace unos minutos”66 (I.1).
O tempo patente de todo o primeiro ato da obra - que o autor, heterodoxo, denomina
“primeiro tempo”- tem uma duração diegética (interna à fábula) de duas horas e meia,
segundo informam os próprios personagens. Durante o transcurso desse tempo patente, se
apresentam os conflitos principais da obra, alguns apresentam relação direta com a categoria
temporal do drama e, por isso, serão comentados na seção “tempo e significado”. Na oitava
cena do primeiro tempo, Matilde e Plácido conversam sobre o horário do concerto de Gardel
(21:00 horas) e a ansiedade de Matilde nos revela um dado do tempo patente: “MATILDE
(mira el reloj de la sala): Son las dos.”67 (I.8) Não teremos nenhuma outra indicação explícita
do tempo patente encenado até chegar o segundo ato da obra. Mais uma vez, Matilde será a
informante. Fala com suas tias sobre Gardel, diz “MATILDE: Fue claro y diáfano, cuando
66
67
Tradução: “María Luisa sorri vagamente observando Pío, de quem havia se esquecido fazia uns minutos.”
Tradução: “MATILDE (Repara no relógio da sala).- São duas horas”.
77
entró por esa puerta a las dos y treinta de la tarde, antes de mi desmayo.” 68 (II.1) A aparição
em cena de Gardel acontece exatamente no final do primeiro ato, tão imediato que acaba antes
que Matilde desmaie por Gardel.
O segundo ato ou “segundo tempo” da obra, começa com a abertura da primeira cena,
na casa dos Ancizar “a las doce de la noche (...) después de asistir a la apoteosis de
Gardel”69 (II.1), isto é, doze horas exatas após o começo do tempo encenado. Meio-dia e
meia-noite.
Entretanto, apesar da extensão similar e do fato de o tempo cênico (ao que
assiste um público, em que é representada uma obra) ser equivalente em ambos os atos, o
tempo diegético se configura de modo diferente: neste segundo ato, é de apenas meia hora.
Cinco vezes menor que o tempo diegético do primeiro ato, no qual transcorrem duas horas e
meia. No final do segundo ato, depois que Pío termina com María Luisa e foge, após a saída
Gardel e Le Pera, quando restam apenas os membros da família Ancízar se despedindo uns
dos outros enquanto se retiram cada um para seu quarto, bem antes do final da peça, temos a
última referência temporal patente: “ELVIRA.- ¿Qué hora es, Plácido? / PLÁCIDO.- Doce y
media. Fue una visita corta…”70 (II.12)
Tempo latente (Sugerido)
O tempo latente é aquele que, compreendido entre o começo e o final do tempo
patente da encenação, não é encenado: qualquer buraco, lapso, parênteses, ruptura,
interrupção, encadeamento, quebra ou pulo do transcurso continuo do tempo. O tempo latente
de El día que me quieras é seu entreato. Tudo aquilo que acontece entre as duas e meia da
tarde (“hora”, no tempo da fábula, que marca o final do primeiro ato) e a meia-noite (“hora”
diegética do início do segundo ato), é o tempo latente da obra: não encenado, mas sugerido.
Durante o transcurso desse tempo diegético, que compreende um lapso de nove horas e meia,
acontecem muitas coisas. A elipse do entreato deixa fora da representação o concerto de
Gardel, que marca um grande evento no mundo da obra: tanto na trama da história quanto na
estruturação formal do texto, na divisão efetiva da representação e na estruturação temporal
do drama. Os dois atos da obra, chamados “primer tiempo” e “segundo tiempo”, são o antes e
o depois do concerto.
Antes, no primeiro ato, todas as referências que os personagens fazem do tempo
latente se referem exclusivamente ao futuro concerto de Gardel. Há expectativa, ilusão,
68
Tradução: “MATILDE.- Foi claro e diáfano quando entrou por essa porta às duas e trinta da tarde, antes do
meu desmaio.”
69
Tradução: “na meia-noite (...) depois de assistir à apoteose de Gardel”
70
Tradução: “ELVIRA.- Que horas são, Plácido? / PLÁCIDO.- Meia-noite e meia. Foi uma visita curta.”
78
ânsias. Há constantes menções a esse tempo, do recital, a que chamam eufemisticamente (mas
não por ocultamento, senão por obviedade) “esta noche71”. Diz Elvira, por exemplo, logo na
segunda cena, em referência à ocasião e ao teatro [o Principal] em que está marcado o recital
de Gardel, “EVIRA: No hay una flor en toda la ciudad. Te enfermas y buscas una flor y
preguntas dónde hay una flor antes de caerte muerta y te dicen que no hay. Esta noche el
Principal huele a magnolia.”72 (I.2) Tal fato nos dá uma pista da importância do recital (muito
mais do que familiar, social: envolve a cidade toda) e, por tanto, da importância do tempo
latente do entreato. Os personagens criam expectativas; como, por exemplo, a expectativa
contida no relato de Matilde sobre Gardel na estação de trem, depois que as pessoas lhe
pediram para cantar uma música, “MATILDE: Y él sonríe de muerte perezosa y se toca la
garganta y dice... esta noche, esta noche...”73 (I.3). Podemos ver como as referências verbais
ao tempo latente e oculto do concerto, que seguem aparecendo, começam enchê-lo de sentido,
inclusive de sentido prático. Merece até preparação e logística por parte do público, como
Matilde e Elvira, que, pouco depois de meio-dia, começam organizar a roupa que vão usar
(ELVIRA.- ¿Qué traje te vas a poner esta noche?74 (I.6)). O tempo patente dos personagens da
família Ancízar, durante o transcurso de todo o primeiro ato, está marcado pela expectativa,
que se constrói como uma espera, um ânsia para que chegue “esa noche”, para que chegue a
hora do concerto, do tempo latente, absolutamente cheio de significado, além de tematizado.
“ELVIRA: María Luisa va a ir y será una gran noche. Pasarán cincuenta años y será una gran
noche. Yo estaré muerta, y seguirá siendo una gran noche...”75 (I.14). É preciso lembrar o
efeito de surpresa que cria a aparição de Gardel na última cena do ato e no imediato final
deste, logo depois uma linha muito curta “Buenas tardes. Me llamo Gardel.” 76 (I.20). O
público chega ao entreato, assim como o leitor, invadido pela intriga. O tempo latente está
cheio, não só de sentido explícito, mas também de mistério, já que é um tempo latente futuro.
Depois, no segundo ato ou “segundo tempo”, as Ancízar entram em casa, após o
recital. Todo o transcorrido entre o momento anterior a este [entrada das Ancízar], passando
pelo concerto, as horas de espera, até o momento posterior ao final do primeiro ato [entrada
de Gardel], é tempo latente. Vamos ter ao longo deste segundo ato -que é o depois do tempo
71
Tradução: “noite”
Tradução: “ELVIRA.- Não há uma flor em toda cidade. Você fica doente e procura uma flor, pergunta onde
pode encontrar, antes de cair morta, e te dizem que não tem. Essa noite o Principal tem cheiro de magnólia.”
73
Tradução: “MATILDE: E ele sorri de morte preguiçosa, toca sua garganta e diz… essa noite, essa noite...”
74
Tradução: “ELVIRA.- Que vestido você vai usar nesta noite?”
75
Tradução: “ELVIRA: María Luisa vai ir e será uma grande noite. Passarão cinquenta anos e será uma grande
noite. Eu estarei morta e seguirá sendo uma grande noite.”
76
Tradução: “GARDEL (escolhe seu melhor sorriso).- Boas tardes. Me chamo Gardel”.
72
79
latente da obra- referências à dois momentos específicos desse tempo não representado: um, o
previsto já desde o primeiro ato, o concerto de Gardel, e o outro, o inesperado, a aparição de
Gardel, o diálogo, sua proposta de jantar com as Ancízar. Vamos comentá-los
cronologicamente.
O momento posterior à aparição de Gardel não é revelado na primeira cena. As
Ancízar entram em casa e conversam entre si relembrando do tempo sugerido, não encenado,
a partir da entrada de Gardel. No entanto, o interessante é que ao tematizar aquele tempo
latente as Ancízar o comentam e o representando para diversão própria, improvisada,
espontaneamente, distribuindo os papeis na hora:
MATILDE.- Fue claro y diáfano cuando entró por esa puerta a las dos y media de la
tarde, antes de mi desmayo. (Cita a Gardel) Señora Elvira...
ELVIRA (Corrige).- Señora Elvira, distinguida dama…
MATILDE (En el juego).- ¿Podría tener...?
MARÍA LUISA (Completando las históricas palabras de Gardel).- ¿...el honor de
venir acá esta noche después del Principal, de compartir esta noche con ustedes?
MATILDE (Como Evira).- Sería un honor, señor
ELVIRA (Como Gardel).- Porque esta casa se parece a la de mi madre en Buenos
Aires.77 (II.3)
Essa representação do passado, encenada no tempo patente, responde ao desejo dos
personagens de se apoderar, de reviver, de sentir de novo o tempo latente pretérito. No
fragmento transcrito acima, está contida a conexão entre os dois tempos patentes da obra, a
conexão que verbaliza um tempo sugerido, que de outra forma permaneceria invisível e
misterioso.
O mesmo acontece com outro momento do tempo latente que conhecemos desde o
tempo patente do segundo ato: o famoso concerto de Gardel. No desenvolvimento dramático
da obra, sabemos primeiro sobre o recital e, depois, sobre a irrupção de Gardel na casa. Nós
os comentamos na ordem cronológica, porém o Segundo ato se inicia diretamente com um
comentário -o primeiro de tantos- sobre o concerto de Gardel (vamos deixar aqui apenas uma
amostra de três exclamativas e maravilhadas referências ao tempo latente do concerto)
MATILDE (Grita desde la entrada y antes de encenderse la luz): ¡Es que no te lo
pueden contar! ¡Reúnes a los escribas y fariseos de Jerusalén, y al doctor Fortoul y al
doctor Vallenilla y les pides el cuento de esta noche.. y no te lo pueden contar!
77
Tradução: “MATILDE.- Foi claro e diáfano quando entrou por essa porta às duas e meia da tarde, antes do
meu desmaio. (Cita o Gardel) Senhora Elvira…
ELVIRA (Corrige).- Senhora Elvira, distinguida dama…
MATILDE (No jogo).- Poderia ter...?
MARÍA LUISA (Completando as históricos palavras de Gardel).- a honra de vir aqui esta noite depois do
Principal, compartilhar esta noite com vocês?
MATILDE (Como Elvira).- Seria uma honra, senhor.
ELVIRA (Como Gardel).- Porque esta casa se parece com a da minha mãe em Buenos Aires.”
80
(...)
ELVIRA (Risueña): ¡Aquí no se ha visto nada semejante!
(...)
PLACIDO: ¡Traigo una melancolía prácticamente filosófica
memoria del teatro Principal!78
después de esta
Tempo ausente (aludido)
O antes e o depois do dia encenado, o passado e o futuro de cada personagem, tudo
aquilo que acontece em outro tempo, invisível por definição, mas aludido pelos personagens
ou pelo dramaturgo nas didascálias, todos esses momentos - se pertencem ao passado, ou
projeções, se pertencem ao futuro- compõem o tempo ausente de El día que me quieras.
Ao observamos as referências temporais contidas nos diálogos de todos os
personagens da obra, um fato nos chama atenção: as mulheres da obra, todas da família
Ancízar, se definem temporalmente, por sua idade. A obra está localizada historicamente em
1935, bem antes da liberação sexual, do surgimento do feminismo e da revolução social,
política e laboral que experimenta a mulher a partir de metade do século passado. Os
costumes sociais e as normas do decoro eram bastante rígidas, ainda mais em um país
bucólico e atrasado como a Venezuela daquela época. Uma mulher basicamente podia casar
ou não segundo a idade.
Dizíamos que o tempo as define, especialmente o tempo ausente. Matilde tem vinte e
sete anos, e, por tanto, está em tempo de casar. Por isso, Plácido a chama “a futura” antes de
lembrar oportunamente que deve cuidar de sua virgindade (sem a qual a possibilidade de
matrimônio se perde). Desde seu tempo patente, vinte e sete anos, ainda estão abertas para ela
as portas do futuro possível. Elvira Ancízar não tem nada disso. Só passado. Com 56 anos, já
foi casada e abandonada, o que a condenava a solidão romântica até sua morte. Elvira vive
condicionada por aquele abandono e durante a metade de sua vida, dos vinte e sete aos
cinquenta e seis anos, tem vivido mais como solteira do que como abandonada. Tal frustração
do passado explica sua amargura presente e futura.
María Luisa, por sua vez, tem entre 38 e 36 anos e não pode esperar mais tempo para
casar. Durante um lapso de tempo (ausente) de dez anos, assume a condição de noiva
esperando o casamento. Eis o tempo ausente que a define como a eterna noiva. O problema de
78
Tradução: MATILDE (Grita desde a entrada e antes de ascender a luz): É que não te podem contar! Reúne os
escribas e fariseus de Jerusalém, e o doutor Fortoul e o doutor Vallenilla e pede para eles o conto desta noite… e
não podem contá-lo!
(...)
ELVIRA (Risonha): Aqui não temos visto nada semelhante!
(...)
PLACIDO: Trago uma melancolia praticamente filosófica depois desta memória no teatro Principal!”
81
María Luisa é totalmente temporal. Há dez anos, com vinte e tantos anos, a jovem María
Luisa começou um inocente namoro com Pío Miranda e, anos depois, para o tempo em que a
obra transcorre, ainda não se casaram, tampouco mantiveram relações sexuais.
Temporalmente, María Luisa está em uma situação muito comprometedora; está no limite. No
limite da idade saudável para conceber um filho, no limite de tempo de namoro que ela
consegue tolerar, no limite de tempo de espera por uma relação definida com Pío, no limite de
tempo para casar (passado esse limite, provavelmente ficaria solteira, como Elvira).
Sintomático disso, da incomodidade com relação ao definitivo de sua situação temporal, é a
confusão de idades diferentes explicitamente atribuídas a María Luisa nos diálogos (dois deles
na mesma cena). Sobre tal fato, há três referências: 1ª) “MARIA LUISA: (...) ¡es una
decisión que me pertenece como le pertenece a uno la vida cuando tiene treinta y siete
años!”79 (I.3); 2ª) “ELVIRA: En treinta y ocho años que llevo conociendo a mi hermana,
desde el agua caliente en la hora del parto hasta el sol de este día, jamás la escuché hablar de
Ucrania”80 (I.3); e 3ª ) “MARÍA LUISA: Yo tengo treinta y seis, como Santa Ana.”81 (II.2).
Levando em conta as circunstâncias mencionadas previamente e considerando que de três
idades citadas, duas (37 y 36) são mencionadas pela própria María Luisa e de forma
decrescente, é lícito considerar que ela altera sua idade para tentar se afastar do limite
temporal ao qual está presa.
Sente que o tempo acaba junto com Pío, se esgota. Pío, porém, não consegue tomar
uma decisão, casar ou ir morar junto com ela, por isso inventa o plano viver na URSS, uma
estratégia para dilatar o tempo da resolução. Isto fica em evidência na primeira cena da obra,
quando uma conversa aparentemente inocente, anedótica, sobre o dia da morte de Lenin se
converte em uma luta de poderes sobre o tempo. Pío constrói uma narração pretérita sobre
tempo ausente pretérito do dia da morte de Lenin, nove anos antes do tempo patente do
drama, e podemos observar como María Luisa desloca, com sua pergunta, a temporalidade da
conversa para o futuro, um futuro que habita imaginariamente junto a Pío.
PÍO.- (...) Y Iosif bajó la cabeza. Iosif Visarionovich, mejor conocido como Stalin,
acero, así se templó el acero, bajó la cabeza por última vez hasta el sol de hoy y dijo
“Camaradas, cómo se llena un vacío”. Y todos miran y entra Alliluyeva, la mujer de
Stalin, con el samovar de la tarde.
79
Tradução: “MARÍA LUISA.- É uma decisão que me pertence como te pertence a vida quando você tem trinta
e sete anos”
80
Tradução: “ELVIRA.- Em trinta e oito anos que levo conhecendo minha irmã, desde a água quente na hora do
parto até o sol deste dia, jamais a escutei falar de Ucrânia”
81
Tradução: “Eu tenho trinta e seis, como Santa Ana”.
82
MARIA LUISA: No hay nada en el mundo como el té de samovar. ¿Tendremos uno
alguna vez, Pío?82 (I.1)
María Luisa muda a temporalidade que Pío vinha usando. De passado a futuro (juntos,
casados, na U.R.S.S. com um chá de samovar) e, logo depois, para o presente, para a sua
realidade patente. Ela está decidida, nesse dia irá acontecer alguma coisa porque ela quer,
como resulta evidente se acompanhamos o desenvolvimento da sequência anterior:
PÍO.- Creo que sí.
MARÍA LUISA.- ¿Hará mucho frío, verdad?
PÍO.- Al principio. Pero después uno se acostumbra a todo.
MARÍA LUISA.- Hoy hablaré con Elvira.
PÍO.- ¿Y por qué no esperamos la respuesta de Romain Rolland? 83
A resposta de Pío é novamente dilatória em relação ao presente que deseja deslocar,
não para o passado, mas para um futuro indefinido (até mesmo a resposta de Romain
Rolland). É uma luta de poder pelo domínio temporal da relação.
Tempo e significado
O tempo representado, visível, encenado do drama está carregado de significado,
como acontece nas obras que mantém a unidade dramática temporal: se condensa num dia, ou
no caso desta peça, em meio dia, anos de conflitos e de ilusões; tudo encontra seu momento
sobre cena. O dia encenado, 11 de julho de 1935, é o mais significativo na vida dos
personagens, pelo menos dos personagens do núcleo familiar. Por um lado, é o dia do
concerto de Gardel ( que dá sentido ao tempo de Matilde, Plácido e de Elvira), por outro lado,
é o dia em que Pío e María Luisa decidem ir morar juntos. Por duas razões diferentes,
paralelas, autônomas, todos os personagens guardam expectativas a respeito dessa noite.
Gardel modifica o tempo, o valoriza. De forma semelhante como faz com o espaço, o
carrega de sentido e importância. Por exemplo, para “ELVIRA (Alegre): Fue un 11 de julio de
1935, cuando llegó Carlos Gardel a esta casa y Elvira Ancízar dividió su vida en dos etapas o,
mejor dicho, dos movimientos, tan simples como antes y después…”84; (II.6) ou, para
82
Tradução: “PÍO.- E Iosif baixou a cabeça. Iosif Visarianovich, melhor conhecido como Stalin, aço, assim foi
endurecido o aço, baixou a cabeça por última vez até o sol de hoje e disse “Camaradas, como se preenche um
vazio?”. E todos olham, e entra Allilluyeva, a mulher de Stalin, com o samovar da tarde.
MARÍA LUISA: Não tem nada no mundo como o chá de samovar. Teremos um alguma vez, Pío?”
83
Tradução: “PÍO.- Acredito que sim.
MARÍA LUISA.- Fará muito, muito frio, verdade?
PÍO.- No começo. Mas depois se acostuma com tudo.
MARÍA LUISA.- Hoje vou falar com a Elvira.
PÍO.- E por que não esperamos a resposta de Romain Rolland?”
84
Tradução: “ELVIRA (Alegre).- Foi um 11 de julho de 1935, quando chegou Carlos Gardel nesta casa e Elvira
Ancízar dividiu sua vida em duas etapas ou, melhor dito, dois movimentos, tão simples quanto antes e depois...”
83
Plácido, que declara, depois do concerto “PLÁCIDO: (...) ¡esta es la noche más grande vivida
por este humilde servidor!85 (...)” (II.4). Inclusive quando Gardel está no cenário junto a
outros personagens, altera o tempo patente, o “semantiza”, o preenche de importância e
profundidade. Muito eloquente é o comentário que faz Elvira no momento em que se tomam
pelo braço e se separam sutilmente do resto do grupo: “ELVIRA.- ¡Dios mío de mi vida...!
¡Esta noche! (Enlaza su brazo con el de Gardel) Colgada aquí... del brazo de la historia...
Dios mío... mi memoria... ¿Cómo hago para recordarlo todo dentro de mí?”86 (II.6). A
relevância de Gardel, seu peso, é tal no tempo patente que Matilde, fanática perdida, não
compreende que durante o transcurso desse dia (o dia que chega Gardel, o dia de seu
concerto) possam haver conflitos familiares e problemas cotidianos. Por isso, na terceira cena
do primeiro tempo, em meio a uma calorosa discussão sobre vender ou não vender a casa,
Matilde interrompe a briga protestando...
MATILDE (que no puede más): ¿Y por qué no hablamos de esto mañana?
ELVIRA.- Matilde, vete a tu cuarto.
MATILDE: ¡Hoy llegó Gardel! ¡Esta noche canta en el Principal! Y ustedes
discutiendo esa eternidad que discuten como si no pasara nada. (...) ¡Llegó!
¡Háganme el inmenso favor de entenderlo! ¡Llegó! (...)
PIO: Gardel no me divide la historia.87 (I.3)
Como podemos observar, Pío se opõe. Se Gardel não representa uma
trascendentalidade para Pío nem -aparentemente- para María Luisa é porque o tempo patente
dessa noite é para eles especialmente significativo, como casal, por outro motivo: a partir
desta noite, passariam a viver juntos, imediatamente após o concerto. Matilde se dirige aos
dois dizendo: “MATILDE: Tía María Luisa, y no puedes ir mañana? (...) Pío..., no es lo
mismo? Si total, han esperado diez años... No es lo mismo? Y quién sabe si mañana llega la
carta del señor francés y se van por la puerta grande con arroz y palomita blanca...!” 88. A
resposta que María Luisa dá a sua sobrinha é muito bonita e profunda: “MARÍA LUISA (A
Gardel): Hay un día, ¿verdad? Y tiene que ser ese día..., no puede ser mañana... ¿Verdad que
85
Tradução: “PLÁCIDO: (...) esta é a maior noite vivida por este humilde servidor!”.
Tradução: “ELVIRA.- Meu Deus da minha vida! Esta noite! (Enlaça seu braço com o do Gardel) Pendurada
aqui… no braço da historia… Meu Deus… minha memória… Como faço para lembrar tudo dentro de mim?”
87
Tradução: “MATILDE (que não pode mais): E por que não falamos disso amanhã?”
ELVIRA.- Matilde, vai para seu quarto.
MATILDE: Hoje chegou Gardel! Esta noite canta no Principal! E vocês discutindo essa eternidade que discutem
como se não acontecesse nada. (...) Chegou! Façam o imenso favor de entender! Chegou! (...)
PIO: Gardel não divide a minha história. (I.3)
88
Tradução: “MATILDE: Tia María Luisa, e você não pode ir amanhã? (...) Pío..., não é o mesmo? Esperaram
dez anos... Não dá no mesmo? E quem sabe amanhã chega a carta do senhor francês e vocês vão pela porta
grande com arroz e pombinho branco...!”
86
84
no puede ser mañana?”89 (II.7). Esse parlamento estabelece um jogo ficcional: María Luisa é
apenas um personagem que vive quando é encenada, durante o tempo patente e representado
e, “embora não saiba”, ela deve ir morar com o Pío neste dia, porque é o único dia possível, o
único que existe. Tudo se condensa nesse momento, o ensenado:
MARÍA LUISA: Tengo diez años con el olor de este día. Sé de este jueves como de
nada en la vida. Y es así. Es hoy. Viviremos en una habitación, mientras tanto, y
después...
ELVIRA: ¿Y ahora? ¿Qué vas a hacer ahora? Tengo los mismos diez años oyendo
hablar a Pío de después... Yo quiero saber de ahora...
MARIA LUISA: No lo sé... (...) Esta noche... Pienso y nada más... esta noche... Diez
años, van a terminar esta noche.90 (II.2)
María Luisa teve razão mas também errou. Teve razão em pensar que nessa noite
terminariam dez anos de noivado, mas errou no como; ela acreditava que terminaria em
consumação, em mudança, em sexo, mas não, terminou em abandono. Secretamente, também
era uma noite altamente significativa para Pío, mas negativamente significativa: essa é a noite
do fracasso. Fracasso de um amor, de uma palavra, de princípios e de uma postura, o fracasso
de um homem.
3.3 Espaço
A continuação, realizaremos uma análise das categorias espaciais de El día que me
quieras, a partir de alguns parâmetros expostos na Introdução à análise do teatro, de
Ryngaert (2007), e do método de análise dramático de García Barrientos (Análisis de la
dramaturgia, 2007). As marcas espaciais de uma determinada obra falam também da sua
estética. As variações na sensibilidade, os gostos e estilos diversos, que se manifestam no
mundo dramatúrgico e teatral através de períodos, épocas, escolas e gêneros, têm projetado
variadas concepções espaciais no teatro. Os gregos mantiveram a unidade de lugar em suas
tragédias e comédias, ao contrário dos espanhóis do teatro barroco do Século de Ouro e dos
ingleses do teatro Isabetano (em algumas obras de Shakespeare pode haver tanto espaços
cénicos, quanto cenas). Desde Brecht até as dramaturgias contemporâneas, como
consequência parcial do progresso tecnológico e da posterior influência da televisão e do
cinema, percebe-se uma mudança no estilo das ficções que tendem a ficar mais episódicas e
89
Tradução: “MARÍA LUISA (A Gardel): Há um dia, verdade? E tem que ser esse dia..., não pode ser amanhã...
Verdade, que não pode ser amanhã?”
90
Tradução: MARÍA LUISA: Tenho dez anos com o cheiro deste dia. Sei deste quinta-feira como de nada na
vida. Y é assim. É hoje. Viviremos numa habitação, por enquanto, e depois...
ELVIRA: E agora? Vai fazer o que agora? Tenho os mesmos dez anos ouvindo o Pío falar do depois... Eu quero
saber de agora...
MARÍA LUISA: Não sei... (...) Esta noite... Penso e só... esta noite... Dez anos, vão terminar esta noite. (II.2)
85
elípticas (com a correspondente multiplicação e diversificação, sucessiva ou simultânea, de
espaços cénicos).
As marcas espaciais, em palavras de Ryngaert, “organizam o microcosmos da ficção e
a estruturam segundo princípios decisivos” (1996, p.75). O microcosmo espacial da ficção de
El día que me quieras é complexo e diverso, mas sua expressão material mostra um estilo
realista e monolítico. O argumento da obra a intriga de conflitos, o mundo que não é mostrado
se organiza condensado, no ambiente familiar da casa dos Ancízar.
Consideramos que as marcas espaciais na dramaturgia de Cabrujas revelam uma
preocupação bastante pragmática e cênica do texto, que desborda os limites do aspecto
puramente textual do drama para entrar no âmbito da representação. Há autores teatrais que
tendem a considerar a representação efetiva desde a escritura de sua peça. Cabrujas, porém,
em qualidade de diretor e de ator de longa data, imprime um cuidado singular às suas
descrições de espaço, das que resulta evidente certa concepção espacial. Tal atitude, frente às
categorias espaciais do drama, concorda com a condição de homem de teatro integral de
Cabrujas.
Há, porém, um tipo singular de marcas espaciais no texto: as metafóricas (“Un reloj
Junghans suena y es la única exactitud del lugar”) ou poéticas (“El resto es árabe y
fantasioso”). O pragmatismo do homem de teatro vivido por Cabrujas entra em conflito com
sua condição de intelectual, de bibliófilo incorrigível, quando mistura notas técnicas com
notas poéticas. “O projeto cénico de um autor”, nos relembra Ryngaert, “pode não estar
determinado
necessariamente
à
representação”
(1996:
80).
Cabrujas
tende
à
representatividade, mas, não por ela, abandona a imaginação literária em sua dramaturgia.
Espaço da comunicação
Esta categoria, não exatamente textual, mas espetacular, é definida por García
Barrientos como a configuração que resulta do “encuentro en el teatro de dos tipos de sujetos,
actores y público”91 (2007, p. 21). Estes sujeitos têm seus espaços respectivos, que são a cena
para os atores e a sala para o público. Da relação entre os espaços que ocupam atores e
público, em uma representação real (física, empírica), depende o tipo de espaço teatral. Como
vínhamos dizendo, embora esta seja uma categoria espetacular (de espetáculo) e a nossa
análise de El día que me quieras não (não espetacular, mas textual), consideramos importante,
aqui, recorrer à história para poder descrever o tipo de espaço da montagem original. Do
91
Tradução: “encontro no teatro de dois tipos de sujeitos, atores e público.”
86
espaço teatral dependem as outras categorias de análise espacial (assim como a nossa
concepção mental do espaço de El día que me quieras).
Em ausência de didascálias (marcas técnicas, indicações ou referências sobre o espaço
nos diálogos dos personagens, que ajudam entender a disposição do espaço da representação,
onde se define a relação física entre público e atores ou entre sala e cena) podemos recorrer à
montagem original que teve lugar em Caracas, no dia 26 de janeiro de 1976, na sala Alberto
de Paz y Mateos de El Nuevo Grupo com cenografia de Carlos De Luca e sob a direção de
José Ignacio Cabrujas. Naquela montagem, a relação entre sala e cena e, por tanto, entre
público e atores, era de oposição: espaços desconexos e separados: “si existe o se ilumina la
escena se oscurece o deja de existir la sala, y viceversa”92 (BARRIENTOS, 2007, p.21). Esta
relação de oposição é estável e fixa durante o desenvolvimento de toda a peça. A montagem
original apresentou uma cena fechada; era mais elevada (palco) que o chão da sala e fechada
por três de seus lados, mas aberta na frente ao público. Esta configuração espacial da
representação é a mais comum, conhecida como teatro à italiana, em T, frontal. O público está
separado dos atores por uma parede imaginária. Este tipo de disposição favorece espetáculos
imanentes, ficções independentes e autônomas que transcorrem para nós, porém aparentando
nos ignorar.
Estrutura espacial
A estructura espacial de El día que me quieras é clássica. Todo o argumento da obra
encaixa sobre o cenário, em um mesmo lugar, que é sempre “la sala y el patio de la casa de las
Ancízar” (A.I.). É uma obra com espaço único. Em ambos os atos mantém-se o mesmo
cenário, sem modificações (com exceção da iluminação, diminuída, pela passagem do tempo do dia à noite). Toda a ação da obra transcorre nessa sala e nesse pátio, decisão deliberada de
Cabrujas de respeitar a conhecida unidade de lugar aristotélica. Este tipo de modalidade ou
configuração da estrutura espacial única, durante o desenrolar do argumento (e do espetáculo,
em últimas consequências), contrasta com a concepção da estrutura espacial múltipla do teatro
barroco ou do cinema. É, um espaço cênico fixo, invariável e estático; além disso, é “en algún
sentido la posibilidad más genuinamente dramática”93 (BARRIENTOS, 2007, p.21).
Signos do espaço
92
93
Tradução: “Se existe ou se ilumina a cena se escurece ou deixa de existir a sala e vice versa”
Tradução: “em algum sentido a possibilidade mais genuinamente dramática.”
87
Ao longo do desenvolvimento de El día que me quieras, podemos identificar uma
harmônica variedade de ambientes que teatralmente representam os lugares da ação no drama:
os signos do espaço cênico. A variedade e qualidade de signos espaciais demonstra o alto
nível de consciência espacial dramática de Cabrujas em sua criação. Encontramos nesta peça
signos espaciais cenográficos, verbais, corporais e sonoros intercalados. Vamos segmentá-los.
Signos do espaço cenográfico
Os signos que formam o espaço cénico são três: o cenário, a iluminação e os
acessórios. Em conjunto, tais signos dão ao público a primeira imagem material da
representação, e, em sua dimensão textual, outorgam ao leitor os primeiros elementos
imaginativos para recriar a atmosfera do espaço aonde se desenrolará a intriga. Como indica a
tradição dramática, o primeiro signo do espaço cenográfico de uma obra é a descrição da
cena. Dita descrição, no caso de El día que me quieras, se divide em duas, uma no começo de
cada ato e, como mencionamos antes, de sua observação se desprende a unicidade do espaço
cénico da obra mantida em suas duas partes. Prova textual disso, é a diferença de tamanho
entre as duas didascálias de ambos “tempos” que precedem o começo dos diálogos e que
tradicionalmente é onde os autores colocam as descrições, quando as tem, da cena. Assim, a
indicação do primeiro tempo possui cinco linhas carregadas de indicações espaciais e
descrições, ao passo que a do segundo tempo apresenta apenas duas linhas que quase
prescindem de marcas espaciais, a não ser tangencialmente; a indicação que mistura
iluminação e o movimento de atores, diz: “La sala y el patio de las Ancízar a las doce de la
noche. Elvira enciende la luz de la sala.”94 (II.1.) Eis também a única indicação cênica de
iluminação de toda a obra. No entanto, para a descrição do cenário da sala e do pátio,
devemos nos remeter à primeira didascália da obra. Esta contém umas poucas indicações,
mais ou menos precisas e mais ou menos poéticas, mistura de categorias espaciais (cenário,
som, movimento) que, embora não em detalhes, mas em fragmentos ou farrapos, dão uma
ideia ao diretor (ao cenógrafo e ao leitor) do ambiente espacial:
La sala y el patio de las Ancízar al medio dia. Un reloj Junghans suena y es la única
exactitud del lugar. El resto es árabe y fantasioso: jarrones dorados, mariposas,
cerámicas, pastorcillos pálidos, lotos, bambúes y delicadezas. María Luisa está
sentada en un sofá vienés. Pío Miranda, a su lado, observa el albañil del patio.
María Luisa sonríe vagamente percatándose de Pío, a quien olvidó hace unos
minutos.95 (I.1)
94
Tradução: “A sala e o pátio das Ancízar à meia-noite, Elvira ascende a luz da sala”
Tradução: “A sala e o pátio das Ancízar ao meio-dia. Um relógio Junghans toca e é a única exatidão do
lugar. O resto é árabe e fantasioso: jarros dourados, borboletas, cerâmicas, pastores pálidos, lótus, bambus e
delicadezas. María Luisa está sentada em um sofá vienense. Pío Miranda, do seu lado, observa o pedreiro do
pátio. María Luisa sorri vagamente reparando em Pío, de quem esqueceu fazia uns minutos.”
95
88
A descrição, imprecisa, mas muito ilustrativa foca em apenas alguns enfeites da casa e
no relógio da marca Junghans. Embora, Junghans seja o nome de uma empresa relojoeira
alemã e não um tipo de relógio, e, embora, dita empresa fabricasse - e fabrica – relógios de
vários tipos (de pulso, despertador, de parede), se supõe que Cabrujas se refere a um relógio
de parede com pêndulo. Este tipo de objeto, centro de sala em amplas casas de família, tão
comuns na vida campestre e arcaica (Caracas era arcaica e campestre em 1935), conduz o
espectador do início dos anos oitenta (1980) a um passado paradoxalmente afastado, mas
presente. A enumeração que o autor faz dos enfeites da casa, “árabes y fantasiosos”, segundo
ele, ilustra em poucas palavras, e eufemisticamente, a materialização de um gosto “kitsch”. O
mau gosto decorativo que mistura enfeites e peças copiadas de estilos e culturas tão distantes,
quanto incoerentes. A partir da decoração, é possível perceber o gosto dos personagens e,
consequentemente, seus estilos de vida, que contribuem para formação de uma atmosfera
espacial singular.
O sofá vienense onde estão sentados os noivos Maria Luisa e Pío, na primeira cena,
cobra significado ao longo da obra. No final do primeiro ato, María Luisa diz a sua irmã
Elvira: “Nos hemos sentado tantas veces en el sofá… y ha habido tantos silencios después de
sus palabras, tanta costumbre”96 (I.18). O sofá vienense serve ao autor como elemento quase
metafórico que possibilita um fechamento circular. A obra começa e termina sobre esse sofá,
com duas ações contrastantes, mas complementárias: a primeira, verbal, é o planejamento do
futuro casamento do casal em relação ao espaço ausente da U.R.S.S. e ao sistema político
comunista; a segunda, corporal, é a ação de estender sobre o respaldo do sofá a bandeira
comunista que Pío esqueceu durante a fuga.
Mais nada se fala sobre a cena nesta didascália. Porém, na quarta cena do segundo ato,
no meio do texto, há duas menções a elementos até então inexistentes: uma mesa de jantar e
um móvel com toalhas de mesa e guardanapos. Novamente, todo aponta à formação de um
cenário realista.
O mesmo acontece com as marcas textuais referentes ao uso de acessórios. Há, em El
día que me quieras, um uso variado de acessórios realistas ao longo de toda a obra: um
gramofone, discos, um envelope com ingressos para o concerto de Gardel, guardanapos, uma
toalha de mesa, a mala de Pío, cestas com licores, champanhe, taças, a bandeira comunista de
Pío e uma carta imaginária. A função e a importância dos diferentes acessórios é heterogénea,
embora, uma vez extraídos do corpo do texto e organizados lado a lado, seja perceptível que
96
Tradução: “Nós [María Luisa e Pío] temos sentado tantas vezes no sofá… e tem tido tantos silêncios depois de
suas palavras, tanto costume”
89
tanto o uso, quanto o significado de todos e de cada um dos acessórios, se dividem em dois
universos autônomos: o de Gardel e o de Pío.
A maioria dos acessórios existentes se relaciona a Gardel: os discos que Matilde (I.7) e
Plácido (I.15) colocam no gramofone; o envelope que Plácido tira do bolso com os ingressos
para o recital (I.4); a toalha de mesa e os guardanapos usados por María Luisa ao arrumar a
mesa em homenagem à visita do cantor (II.4); com a visita, Le Pera, parceiro de Gardel,
chega carregado de cestas “con licores y magnificencias” (II.8). São os acessórios da
excepcionalidade, as provas do milagre de Gardel que, introduzidos consigo em cena, brotam
por e para ele. Este simples fato o valoriza frente aos olhos dos demais personagens:
ELVIRA.- Plácido… guarda las botellas… que nadie las toque… Mañana se lavan y
se dejan aquí de adorno, para que la gente pregunte y uno conteste.
PLÁCIDO.- Se van a quedar con la boca abierta… (tomas las botellas y las cestas)97
(II.13)
Restam três acessórios, que são os mais significativos e os únicos que se relacionam
diretamente a Pío: sua mala, sua bandeira e sua carta. A mala simboliza mudança, neste caso
específico, a mudança dos noivos. Pío entra em cena com a mala na mão, no começo do
segundo ato, para levar María Luisa. A mala é também uma intenção. Por isso, Pío a deixa ou
a esquece quando foge da casa e de María Luisa. A mala permanece em cena, carregada de
pessimismo e derrota. Se as cestas e garrafas que Gardel deixa simbolizam a alegria e o
milagre, a mala de Pío, ao contrário, simboliza o abandono. É interessante, sem dúvida, a
mudança semântica que ocorre sobre este objeto – a mala – graças à fuga de Pío. Assim, antes
da fuga, a mala era o acessório da mudança, da esperada resolução; entretanto, após fuga, a
mesma mala se converte no acessório da falsidade e da renúncia. Um processo similar
acontece com a bandeira comunista de Pío.
Ao contrário da mala, que é um objeto utilitário, mas que sobre cena se converte em
símbolo, a bandeira é só símbolo, fora e dentro da cena. A bandeira comunista, com a foice e
o martelo, diferente de muitas bandeiras nacionais, é muito mais do que um símbolo pátrio
(embora o tenha sido na U.R.S.S.), é um símbolo extraterritorial, um objeto e uma imagem
com profundidade política que, precisamente, tem simbolizado, ao redor do mundo, todo o
comunismo e a luta comunista. E é assim que o Pío concebe a bandeira, como fica claro nas
(várias) menções sobre ela ao longo do primeiro ato. Pío fala dela como elemento formador
de sua convicção política. É no final da obra, mais especificamente na penúltima cena, que
97
Tradução: “ELVIRA.- Plácido… guarda as garrafas… que ninguém toque nelas… Amanhã as lavamos e as
deixamos aqui de enfeite, para que o povo pergunte e a gente conteste.”
PLÁCIDO.- Vão ficar de boca aberta... (pega as garrafas e as cestas)
90
este acessório - a bandeira - faz sua aparição física, quando María Luisa a retira da mala
esquecida de Pío (Pío abandona, em um mesmo movimento, sua noiva e sua ideologia.).
O terceiro acessório que queremos mencionar é a carta de Pío. Na verdade, é
problemático definir a carta de Pío como um acessório cênico, porque esta nunca aparece em
cena e, além disso, no transcurso da obra, descobrimos que tal carta nunca existiu, foi apenas
uma invenção de sua mente desesperada. Apesar disso, este acessório, imaginário, é de suma
importância para a construção da intriga. A carta de Pío é mais importante do que a soma de
todos os demais acessórios juntos. Dela depende o mecanismo da obra, a partir dela se
constrói o conflito, quando Pío revela sua inexistência, ocasiona o desenlace. Há uma enorme
quantidade de referências à carta ao longo do drama. Desde o ponto de vista do significado,
algo similar acontece com a mala e a bandeira: durante quase toda a obra, simbolizam a
esperança de María Luisa, a resolução amorosa, o caminho ao matrimônio e à união,
entretanto, com a confissão de Pío (nunca haver escrito carta alguma para Romain Rolland),
adquirem outros significados: falsidade, enganação, fingimento e desonestidade.
Signos do espaço corporal
O espaço cénico existe como marco de ação dos personagens. Eles se movem, se
relacionam e dialogam em um lugar determinado. Seus movimentos, suas expressões, o uso
que fazem do cenário e dos acessórios, as relações físicas que estabelecem entre si, tudo
expressa alguma concepção espacial de parte do autor. Cabrujas, que além de autor foi ator e
diretor, tem um sentido muito aguçado e específico para formas de expressão corporais de
seus personagens. O texto de El día que me quieras contém uma imensa quantidade de
indicações gestuais e expressivas dos personagens, do tipo “asombrada”, “desesperado”,
“alzando la voz”98. Algumas dessas indicações dizem respeito à forma expressiva e outras às
relações físicas entre os personagens, como quando Plácido fala “acercándose a María Luisa”
99
ou quando Gardel “estrecha vigorosamente la mano de Pío”100. Ao contrário dos textos de
teatro contemporâneos, que omitem geralmente de indicações deste tipo, os dramas de
Cabrujas possuem a suficiente quantidade de indicações corporais para eliminar a
possibilidade de ambivalência interpretativa. O texto inclui uma concepção de montagem
corporal que, como indica Barrientos (2007, p.23), se divide em dois aspectos, um mais
dinâmico, relativo à expressão corporal (movimento) e outro mais estático, relativo à
98
Tradução: “espantada”, “desesperado”, “alçando a voz”.
Tradução: “aproximando-se de María Luisa”.
100
Tradução: “aperta vigorosamente a mão de Pío”
99
91
aparência (figurino). Foquemos primeiro no segundo aspecto, menos abundante, para despois
retornar ao primeiro.
Há apenas uma indicação de figurino no drama. Tal indicação, altamente significativa,
encontra-se no primeiro ato e se relaciona ao vestido branco de Matilde. O interessante é que
o figurino em questão é enunciado não nas didascálias, mas diálogos dos personagens e dessa
forma se tematiza. Elvira e Matilde falam da roupa que esta deveria usar no concerto de
Gardel, no Teatro Principal.
ELVIRA.- ¿Qué traje vas a ponerte esta noche?
MATILDE.- El traje de organza con lacitos negros (...)
ELVIRA.- Deberías ir de negro. Ese empeño tuyo en vestirte de blanco. Ya tienes
veintisiete años.101 (I.6)
Tia e sobrinha não falam somente de gostos e cores, mas de algo muito mais
importante, que tem a ver com os costumes sociais, ou melhor, com o uso da indumentária
naquela época e lugar. Considerando a atualidade, tais costumes não tem validez nem sentido,
assim como também não o tinham no contexto espaço-temporal em que Cabrujas escreveu a
obra (a Caracas de 1979), mas basta recuar umas poucas décadas para encontrar um tempo no
qual a rigidez dos costumes a respeito do uso da vestimenta era inquebrantável (calça curta
para as crianças e comprida para os jovens, por exemplo). A moda feminina dos anos trinta e
quarenta reservava o uso de roupa branca apenas para as crianças, com exceção das noivas no
dia do casamento. Era uma regra rígida, ainda mais no caso de um lugar provinciano como a
Venezuela daquela época. O tipo de tecido que mencionam, organza, é uma tela de algodão
fina, transparente, forte e bordada, usada, sobretudo, em roupas infantis femininas. Matilde é
uma menina que, com vinte e sete anos, passa da idade ideal para casar, segundo os costumes
sociais de se eu tempo, e, além disso, beira o limite que a converterá em uma solteirona. A
insistência de Matilde em se vestir de branco é uma prova de sua imaturidade, da rejeição à
passagem do tempo e, também, aos conselhos de sua tia Elvira, como se evidencia sete cenas
depois, quando “Entra Matilde. Se ha puesto el traje blanco de organza con lacitos negros”102
(I.13) Este vestido será sua vestimenta até o final da obra.
Voltemos, agora, a falar dos signos do espaço corporal relativo aos movimentos dos
personagens.
A escrita de Cabrujas está cheia de signos corporais de expressão, gestualidade e
movimento. Há tanta abundância de signos corporais que seria possível fazer um trabalho de
101
Tradução: “ELVIRA.- Que vestido vai pôr essa noite?
MATILDE. - O vestido de organdi com lacinhos pretos (...)
ELVIRA.- Você deveria ir de preto. Esse o teu empenho em vestir de branco. Você já tem vinte e sete anos”
102
Tradução: “Entra Matilde . Botou o vestido branco de organza com lacinhos pretos”
92
pesquisa exclusivamente sobre este único aspecto. Neste estudo, no entanto, queremos chamar
a atenção somente sobre duas sequências (uma delas elíptica) em que o movimento corporal
tem uma importância capital.
A primeira sequência compreende os movimentos corporais do personagem de Maria
Luisa através do espaço cênico e em relação a um elemento do cenário, o sofá vienense. Esta
é uma sequência elíptica composta de três fragmentos amplamente separados uns de outros,
ao longo do drama (El día que me quieras começa e termina com dois desses fragmentos).
Interessamo-nos por esta sequência não só pela coerência dos fragmentos, mas, sobretudo, por
seu significado e pelo que diz a cerca da relação entre Maria Luisa e Pío. Em um primeiro
momento, no começo da obra, o casal de noivos faz planos sentados no sofá. (I.1). Em
seguida, imediatamente após a confissão pungente de Pío e ao reconhecimento de sua
falsidade, vemos como “Pío sale precipitadamente. Larga pausa. María Luisa se sienta en el
sofá.”103 (II.9). Por último, no final da obra, assim que todos os personagens saem e resta
apenas María Luisa em cena, sentada no sofá, observamos, após uma “longa pausa”, como
María Luisa se levanta y camina hacia la maleta de Pío. Se inclina y abre la maleta.
Rebusca entre camisas remendadas y pantalones precarios. Y encuentra, envuelta en
papel de seda, una bandera roja con una hoz y un martillo. Gran pausa. María
Luisa coloca la bandera como un adorno en el respaldar del sofá vienés. 104 (II.15)
Cabrujas outorga significado simbólico ao sofá, que deixa de ser apenas mais um
elemento do cenário (como a mesa ou o móvel) e vira símbolo da relação amorosa entre
María Luisa e Pío. Esta observação se fundamenta no fato de que nenhum outro personagem
(de acordo com o texto) senta no sofá a não ser eles. No primeiro fragmento, no começo da
obra, o leitor percebe esse sofá como o lugar da intimidade do casal, como seu espaço. Um
diálogo que María Luisa dirige à sua irmã na metade da obra confirma esta percepção; María
Luisa quer falar do seu relacionamento com o Pío e ao fazê-lo menciona o sofá: “Nos
conocemos demasiado…, ¿entiendes? Nunca lo he visto desnudo, pero es como si lo hubiera
visto. Nos hemos sentado tantas veces en el sofá… y ha habido tantos silencios después de sus
palabras… tanta costumbre…”105 (I.18). Não é de se espantar que a primeira atitude de Maria
Luisa, depois de ser abando, tenha sido aproximar-se do sofá, lugar que, durante uma década,
foi o espaço de sua única intimidade com Pío. O terceiro momento, no final da obra, (María
103
Tradução: “Pío sai precipitadamente. Longa pausa. María Luisa senta no sofá”
Tradução: “María Luisa se levanta e caminha até a mala de Pío. Inclina-se e abre a mala. Rebusca entre
camisas remendadas e calças precárias. E encontra, envolvida em papel de seda, uma bandeira vermelha com
uma foice e um martelo. Grande pausa. Marías Luisa coloca a bandeira como um enfeite sobre o respaldar do
sofa vienense”
105
Tradução: “Nos conhecemos demais… sabia? Nunca vi ele nú, mas é como se o tivesse visto. Temos sentado
tantas vezes no sofa… e tem tido tantos silêncios depois de suas palavras… tanto costume...”
104
93
Luisa estende a bandeira comunista sobre o respaldar do sofá) implica uma superposição de
símbolos: a bandeira de Pío, transmutada em evidência da falsidade, colocada pela noiva
abandonada por cima do sofá, lugar que simbolizava a união do casal, cria um efeito patético
e doloroso, que aumenta com o último parlamento de María Luisa na obra: “Quiero que se
quede aquí. Hasta mañana. Por lo menos hasta mañana” 106 (II.16).
A segunda sequência de signos do espaço corporal está composta pelos
movimentos e diálogos de Gardel e María Luisa, como os que acontecem na sala de jantar.
María Luisa está só no cenário, organizando a mesa, quando Gardel entra na casa de surpresa
e começa a ajudá-la a organizar as coisas. Elvira e Matilde, fora de cena, na cozinha,
procuram as taças. Tudo ocorre sem nenhum tipo de transição. O interessante é que os
movimentos vão acompanhados de palavras que se referem tanto aos próprios movimentos,
como a acessórios e elementos do cenário como, por exemplo, o móvel que não havia sido
mencionado nas descrições anteriores até esse momento. Desde o ponto de vista textual, é a
palavra viva do diálogo a que “cria” o móvel. Prestemos atenção:
GARDEL (Con la acción).- Se busca el centro del mantel y se hace coincidir con el
centro de la mesa. (Y súbitamente el mantel queda dispuesto con increíble rigor). Lo
aprendí en Holanda, con la pequeña Guillermina. ¿Dónde están las servilletas?
MARIA LUISA.- En el mueble, no se moleste.
Gardel.- No es molestia. Es una manera de vivir.
Y con paso grácil, Gardel se acerca al mueble de las Ancizar y consigue las
servilletas
GARDEL.- Mi madre dice que las servilletas deben duplicar el número de invitados.
¿No es increíble mi madre?
MARIA LUISA: ¿Es argentina?
GARDEL.- No lo sé. ¿Podrá creer que no lo sé? (Gardel coloca las servilletas en los
distintos puestos)107 (II.4)
Gardel se desloca através do espaço da sala da família Ancízar e seu movimento
corporal, produto da interação com María Luisa, é o que contribui, literalmente, para
configurar o espaço cénico.
.3.3 Signos do espaço sonoro
106
Tradução: “Quero que fique aqui. Até amanhã. Pelo menos até amanhã”
Tradução: “GARDEL (Com a ação).- Procura-se o centro da toalha de mesa que coincide com o centro da
mesa. (E subitamente a toalha de mesa fica disposta com incrível rigor). Aprendi isso na Holanda, com a
pequena Guilhermina. Onde estão os guardanapos?”
MARÍA LUISA.- No móvel, não se preocupe.
GARDEL.- Não é preocupação. É uma maneira de viver.
E sutilmente, Gardel se aproxima do móvel das Ancizar e acha os guardanapos.
GARDEL.- A minha mãe diz que os guardanapos devem duplicar o número de convidados. Não é incrível, a
minha mãe?
MARÍA LUISA. É argentina?
GARDEL.- Não sei. Pode acreditar que eu não sei? (Gardel coloca os guardanapos nos respectivos lugares)”
107
94
De todas as obras dramáticas de Cabrujas, El día que me quiera é sem dúvida a que
utiliza maior quantidade de elementos sonoros, tanto efeitos de som (em menor medida)
quanto música (em maior medida). Falaremos em primeiro lugar da música.
El día que me quieras é uma obra, de certa forma, musical, desde seu título que,
conforme falamos antes, se apropria do famoso tango homônimo de Gardel, cantorcompositor real e personagem fictício deste drama. Gardel está fisicamente ausente durante o
primeiro ato, mas presente nas músicas, de sua autoria, que tocam durante a obra. Não é
apenas uma música de fundo, mas uma música protagonista, que invade o todo ambiente e
interrompe o curso da ação. São três músicas: “Sus ojos se cerraron”, “Rubias de New York”
no primeiro ato e “El día que me quieras” no segundo. Há, ainda, uma quarta música,
subtítulo do segundo tempo da obra, mencionada por Matilde, Elvira e María Luisa, intitulada
“Turankhamón”, porém não a ouvimos porque é interpretada no concerto de Gardel que
acontece no tempo latente do entreato, no espaço ausente do Teatro Principal, longe de nossa
vista e ouvidos. Vamos falar das músicas que, de fato, escutamos.
A primeira é “Sus ojos se cerraron”, na sétima cena do primeiro tempo. Nessa altura
da obra já se conhece os personagens principais, já se apresentaram os principais conflitos,
tudo demarcado no acontecimento extraordinário: o concerto de Gardel, pela primeira e única
vez em Caracas. Pío e María Luisa já discutiram com Elvira, Plácido já anunciou que
conseguiu arrumar ingressos para o concerto e Pío já pronunciou seu primeiro solilóquio.
Cabrujas, então, aproveita o momento, a tensa calma que sobrevém às grandes discussões,
para introduzir, como um parêntese, como um respiro estratégico, o primeiro momento
musical da obra. Elvira se queixa de Pío e María Luisa com Matilde, e seu lamento a leva para
sua própria história, relembra seu próprio e triste passado amoroso e chora um pouco,
enquanto Matilde a interrompe constantemente com reelaborações descritivas das lembranças
que carrega dos filmes de Gardel e que a levam a pôr o disco, assim que Elvira se retira.:
Elvira sale. Pausa. Matilde organiza el gramófono y se escucha “Sus ojos se
cerraron”. Matilde repite en voz baja las primeras palabras. A partir de las alas que
con terrible crueldad quemó la vida, Matilde une su precaria voz al desencanto de
Gardel por la precaria muerte de su amada. “Como perros de presa...”, indica el
regreso de Plácido Ancízar atraído por la voz de Gardel. Se sienta junto a su
sobrina.108 (I.7)
A importância do uso da música se evidencia na extensão da didascália precedente
que, mais detalhada e específica do que o normal, tenta sincronizar as ações corporais de
108
Tradução: “Elvira sai. Pausa. Matilde organiza o gramofone e escuta “Sus ojos se cerraron”. Matilde repete
em voz baixa as primeiras palavras. A partir de las alas que con terrible crueldad quemó la vida, Matilde une
sua precária voz ao desencanto de Gardel pela precária morte de sua amada. “Como perros de presa...”, indica
a volta de Plácido Ancízar atraído pela voz de Gardel. Se senta junto à sua sobrinha”.
95
Matilde (cantar) e de Plácido (ingressar na cena), a partir dos tempos da música, apontando
versos específicos. A transcendência da música de Gardel se deve , também, ao fato de a cena
ser a única sem diálogos: a música e a verdadeira protagonista. É necessário, no entanto, fazer
uma especificação: a função elíptica do uso da música naquele momento, no desenrolar da
intriga, não é apenas destrutiva, mas evocativa: a letra fala de um amor morto e acabamos de
presenciar a confissão privada da falsidade de intenções de Pío em relação à María Luisa e,
em seguida, o soluço solitário de Elvira por seu ex-marido Raimundo.
Ademais, há outra intenção do autor no uso de “Sus ojos se cerraron”, assim como no
restante das músicas: incorporar a Gardel em voz na cena para torná-lo presente, mesmo que
este seja um personagem ausente. Tal fato incrementa o suspense. Imediatamente, antes do
final do primeiro ato, isto é, antes da aparição física de Gardel em cena, Cabrujas introduz um
segundo momento musical. Se o primeiro momento musical, com a música “Sus ojos se
cerraron”, foi introspectivo desde um ponto de vista temático e argumental, o segundo
momento (na decima quinta cena, quando os personagens colocam no gramofone a música
“Rubias de New York”), em oposição, é eufórico. Os Ancízar cantam, dançam fox-trot e
gritam, imaginando como vai ser o concerto, invadidos pela felicidade de participar da festa
que a cidade celebra em homenagem ao cantor e ídolo latino-americano. Matilde é a primeira
a sugerir a comparação: elas, as Ancízar, irão ao concerto como se fossem as “Rubias de New
York”, e Elvira entra no jogo enumerando e cantando, como faz a música, “Mary, Peggy,
Betty y Julie… Rubias de New York”. Plácido entra em cena cantando e a emoção os invade,
mesmo antes de Matilde, feliz, gritar a Plácido: “¡Pon el disco, Plácido! ¡Esta noche, en la
sexta fila del Principal, van a estar sentadas las tres rubias de New York”109 (I.15). É uma
cena barulhenta, confusa e muito alegre (com exceção de Pío Miranda, alheio a todo o
fenômeno que Gardel tem provocado). O texto mistura movimentos, exclamações e canto à
música. Porém, é interessante que esta mistura se especifique, não com uma didascália (como
fez o autor com a música anterior), mas com parlamentos que se juntam aos dos personagens
presentes, aos versos da música de Gardel, que aparecem, não como parte de uma gravação,
mas como um personagem, tipograficamente assinalado como VOZ GARDEL :
VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy, Juliet. Rubias de New York…
MATILDE (Grita).- ¡Tan lejos…! ¡Coño! Tan lejos…
VOZ GARDEL.- Cabecitas adoradas que vierten amor.
ELVIRA Y VOZ GARDEL.- Dan envidia las estrellas.
PLÁCIDO (Grita).- ¡A las estrellas! ¡Óigase bien que dice: a las estrellas!
VOZ GARDEL.- Yo no sé vivir sin ellas.
PLÁCIDO (Grita).- Gardel es tan alto como el general Gómez…
109
Tradução: “Bota o disco, Plácido! Esta noite, na sexta fila do Principal, vão estar sentadas as três Loiras de
New York!”
96
ELVIRA, MATILDE, PLÁCIDO Y VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy y Juliet de
labios en flor.110 (I.15)
A terceira música é a única interpretada em cena. Ao final do segundo ato, Gardel
canta “El día que me quieras”, pouco antes do final da obra e imediatamente depois do último
monólogo de Pío e de sua fuga. Repentina e compreensivelmente incômodo, Gardel tenta ir
embora, mas é retido pela família que lhe pede uma música de despedida. Matilde, María
Luisa, Elvira e Plácido, quatro solteirões, quatro fracassados no amor, fecham seus olhos
enquanto Gardel canta “El día que me quieras”, interrompido apenas por algumas
exclamações de êxtase e agradecimento. O efeito é patético e sentimental. A letra da música é
lastimosa, porém esperançada e os Ancízar a recitam baixinho, de olhos fechados, sem
perceber a saída de Gardel. Respira-se um ar de irrealidade e triste alegria.
Resta, por último, falar dos outros signos do espaço sonoro usados na obra: os
“efeitos”. Há três usos de efeitos sonoro na obra. O primeiro, já mencionado anteriormente,
diz respeito ao som emitido pelo relógio de parede. A tradição teatral assigna duas funções a
este tipo de relógio: ajuda configurar certa atmosfera espacial (certa época, certas casas de
família) e também cria, com o som de suas campanadas, a ilusão de uma realidade temporal
interna à ficção. (Na verdade, colocar um relógio de parede, da marca Junghans, dentro de
uma casa caraquenha em 1935, é um erro, um anacronismo: essa empresa não desenhava nem
vendia relógios de parede, até o começo dos cinquenta).
O segundo efeito de som de El día que me quieras acontece, na cena 16 do primeiro
tempo, quando “En la calle se escuchan los cohetes municipales que anuncian la llegada de
Carlos Gardel y el consiguiente júbilo de la población”111. O som cria a ilusão de um espaço
próximo, mas invisível, de uma rua, de pessoas, de uma parte da cidade. Acreditamos que
Cabrujas utiliza o efeito sonoro de foguetes externos, enquanto ocorre uma discussão em
cena, com o objetivo de polarizar o fracasso interno mediante o contraste com o festejo
externo. Iremos aprofundar mais esta ideia durante a análise espacial de El americano
ilustrado, onde se explora este recurso ampla e profundamente. O último efeito de som, quase
anedótico, certamente engraçado, ocorre ao princípio do segundo tempo. Escutamos, do
110
Tradução: “VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy, Julie. Loiras de New York…”
MATILDE (Grita).- ¡Tão longe…! Droga! Tão longe…
VOZ GARDEL.- Cabecinhas adoradas que destilam amor.
ELVIRA Y VOZ GARDEL.- Dão inveja as estrelas.
PLÁCIDO (Grita).- ¡Às estrelas! ¡Ouça bem que o diz: às estrelas!
VOZ GARDEL.- Eu não sei viver sem elas.
PLÁCIDO (Grita).- Gardel é tão alto quanto o general Gómez…
ELVIRA, MATILDE, PLÁCIDO Y VOZ GARDEL.- Mary, Betty, Peggy y Julie de labios em flor. (I.15)
111
Tradução: “Na rua se escuta, os foguetes municipais que anunciam a chegada de Carlos Gardel e o
conseguinte júbilo da população.”
97
espaço contíguo, invisível, da cozinha, o som da louça caindo e se quebrando no chão.
Matilde e Elvira procuravam as taças para receber Gardel, quando María Luisa chega para
avisá-las que Gardel já havia chegado e esperava na sala. Diz a didascália que “Desde la
cocina se escucha una hecatombe de copas y platos rotos”112. Gardel, sabendo que é a causa
do estrepitoso acidente, diz, em direção à cozinha: “GARDEL (Alzando la voz).- ¡Suerte,
Matilde! ¡Aquí estoy, Elvira!”113.
Graus de (re)presentação e significado espacial
Para a dramaturgia espacial, existem três possibilidades de representação : espaços
patente, latente e ausente. García Barrientos explica, em sua Análisis de la dramaturgia
(2007), que esta tripla possibilidade surge da oposição cênica entre o espaço visível e o
invisível, quer dizer, do que acontece sobre o cenário ou fora dele. As ações que os
personagens desenvolvem sobre o cenário, na sala, acontecem no espaço patente, o único
visível. Porém, os personagens constantemente entram e saem de cena e o público (assim
como o leitor) os imaginam indo a lugares contíguos, invisíveis para nossos olhos, mas
próximos, desde onde podemos escutar suas vozes ou suas ações (como o quebrar de pratos
de Elvira e Matilde e sua contígua e invisível cozinha). Tais espaços recebem o nome de
latentes. Por último, um terceiro tipo de possibilidade espacial surge a partir das referências
verbais que os personagens fazem de espaços muito distantes do visível, que podem ser,
inclusive, imaginários ou nunca vistos pelos personagens, a estes espaços García Barrientos
chama ausentes. O interessante, o mais relevante deste aspecto, é “la poderosa fuente de
recursos artísticos que supone la relación entre lo que ocurre, se dice, se hace o está dentro y
fuera de escena”114 (2007, p.22). O teatro de Cabrujas, tão dramático em todas suas formas,
não deixa de explorar tais recursos.
Daremos, agora, um maior enfoque às relações que o drama e seus personagens
estabelecem entre o espaço patente (a sala e o pátio da família Ancízar) e os diferentes
espaços latentes. Nossa pesquisa textual detectou um total de cinco espaços latentes: o quarto
de Matilde, o quarto de Elvira, a cozinha, a calçada e a rua. Alguns destes espaços são
mencionados em mais de una ocasião ou representados de outras formas, além da verbal
(efeitos de som, por exemplo); há outros, ainda, cuja existência intuímos (como os banheiros
da casa ou os quartos de Plácido e de María Luisa), isto é, nunca são mencionados ou
112
Tradução: “Desde a cozinha se escuta uma hecatombe de taças e pratos quebrados.”
Tradução: “GARDEL (Alçando a voz).- Boa sorte, Matilde! Estou aqui, Elvira!”
114
Tradução: “a poderosa fonte de recursos artísticos que supõe a relação entre o que acontece, se diz ,se faz ou
está dentro e fora de cena”
113
98
representados – o que não se faz necessário, já que estão pressupostos ou sugeridos
tacitamente. Dos cinco espaços latentes, três estão dentro da casa e os outros dois fora.
Os três espaços latentes que estão dentro da casa são a cozinha e os quartos de Matilde
e de Elvira. O quarto de Matilde é mencionado durante a discussão familiar provocada por
Maria Luisa ao anunciar seu desejo de vender a casa. No momento em que Elvira e Pío
discutem com maior intensidade, a voz agoniada de Matilde intervém e Elvira tenta expulsá-la
do espaço patente onde ocorre a discussão, confinando-a ao espaço latente de seu quarto, onde
não pode escutar, tampouco participar de toda aquela discórdia. Entretanto, o mais
interessante é a resposta de Matilde que relembra (com autoridade) a presença de Gardel no
espaço ausente e invisível da cidade. A interrupção de Matilde se faz evidente no seguinte
fragmento:
MATILDE (Que no puede más).- ¿Y por qué no hablamos de esto mañana?
ELVIRA.- Matilde, vete a tu cuarto.
MATILDE (Protesta).- ¡Hoy llegó Gardel! ¡Y esta noche canta en el Principal! Y
ustedes discutiendo esa eternidad que discuten, como si no pasara nada. 115 (I.3)
O espaço latente de maior atividade, trânsito e conexão com o espaço patente da sala é
a cozinha da casa: em um primeiro momento, Elvira pede que Plácido deixe o espaço patente
da sala e vá à cozinha, com uma indireta: “ELVIRA (A Plácido).- Matilde te espera en la
cocina con los pormenores de Gardel.”116 (I.11); em um segundo momento, depois do
concerto de Gardel e durante os preparos para recebê-lo em casa, María Luisa organiza as
tarefas mandando Elvira e Matilde para a cozinha, enquanto ela arruma a sala de jantar:
“MARÍA LUISA: Mary y Peggy van a la cocina por las copas. Yo pongo el mantel” 117 (II.3);
no terceiro momento, pouco depois do anterior, Maria Luisa se lembra que Elvira e Matilde
estão na cozinha e segue rumo a este espaço latente para procurá-las. Nesse momento, tem
lugar o efeito sonoro da hecatombe de pratos quebrados e a intervenção de Gardel, que no
espaço patente da sala, eleva a voz para o espaço latente da cozinha afim de que o escutem
suas invisíveis anfitriãs (II.6); em um quarto momento, depois que Pío, Gardel e Le Pera se
vão, restando apenas os membros da família Ancízar, Elvira pede que Plácido guarde na
cozinha as garrafas que Gardel deixou para fossem lavadas e expostas como enfeite (II.13);
por último, num quinto momento, assim que todos se retiram - inclusive Matilde e Plácido- ,
115
Tradução: “MATILDE (Que não agüenta mais).- E por que não falamos dissso amanhã?
ELVIRA.- Matilde, vai no teu quarto.
MATILDE (Protesta).- Hoje chegou Gardel! E esta noite canta no Principal! E vocês discutindo essa eternidade
que discutem, como se nada acontecesse.”
116
Tradução: “ELVIRA (A Plácido).- Matilde te espera na cozinha com os pormenores de Gardel”
117
Traduçao: “MARÍA LUISA.- Mary e Peggy vão na cozinha pelas taças. Eu ponho o mantel.”
99
as irmãs María Luisa e Elvira ficam a sós. Esta, querendo ficar sozinha com a mala
esquecida/abandonada de Pío, pede que Elvira vá à cozinha fazer um pouco de café.
Restam ainda dois espaços latentes que, na verdade, são um: a calçada, espaço menor
contido em outro, a rua, espaço maior. A referência à calçada acontece antes e durante o
primeiro solilóquio de Pío, dirigido a Elvira. Pío deseja falar em privado com Elvira, contarlhe seus segredos e, para isso, teve de afastar sua noiva: “PIO: (...) María Luisa está en la
acera de enfrente, esperándome”118. A calçada é uma parte da rua, porém este substantivo
serve para designar não só o espaço físico das vias terrestres, - compostas de asfalto, onde
circulam pessoas e veículos - mas também o espaço mais geral do “fora de casa”, tudo aquilo
que fica da porta para fora; uma acepção que, de forma vaga, designa tudo o que, em oposição
a casa (fechada e íntima) é público, externo: o mundo, ou algo como “a cidade” a que se
refere Plácido no fragmento em que o espaço da casa é invadido pelo som dos foguetes que
estouram na rua:
En la calle se escuchan los cohetes municipales que anuncian la llegada de Carlos
Gardel y el consiguiente júbilo de la población.
MATILDE (Eufórica).- ¡Cohetes, Plácido… vamos! (...)
PLACIDO.- La ciudad está de fiesta.
Se renuevan los cohetes en el zaguán de las Ancízar.
ELVIRA.- ¿Por qué no vas a ver los cohetes, Pío? ¿Quién sabe si la revolución es un
sonido?
Las explosiones de los cohetes se acercan.119 (I.11)
Assim, por meio de um efeito sonoro, como as explosões, se cria a ilusão de
celebração externa, de festa, que chega viva e real desde o espaço contíguo da rua, invadida
de gente que festeja a chegada de Gardel num espaço latente ao da sala e que se introduz no
espaço patente do lar dos Ancízar. Por que neste preciso momento? Pío acabava de discutir
com Elvira, acabava de fazer uma confissão parcial, acabava de justificar pateticamente seu
comunismo e de revelar sua indecisão respeito à María Luisa, tudo de uma vez só. Elvira
decidiu guardar tudo para si e se calar. Os foguetes e o festejo externo contrastam com o
fracasso interno que só Elvira sabe; por isso, seu parlamento é desencaixado e lúgubre que
ninguém além do Pío consegue entender. Espaço patente fracassado contra espaço latente
festivo: o efeito é grotesco e formoso. Cabrujas explora engenhosamente o choque de espaços
118
Tradução: “PÍO.- María Luisa está na calçada da frente, me esperando.”
Tradução: “Na rua se escutam os foguetes municipais que anunciam a chegada de Carlos Gardel e o
conseguinte júbilo da população.
MATILDE (Eufórica).- ¡Foguetes, Plácido… vamos! (...)
PLACIDO.- A cidade está em festa.
Se renovam os foguetes no saguão das Ancízar.
ELVIRA.- Por que não vai ver os foguetes, Pío? Quem sabe se a revolução é um som?
“As explosões dos foguetes se aproximam.”
119
100
em diferentes graus. Os semantiza e faz deste choque de espaços (latente-patente) algo mais
profundo: um choque de caráteres (Gardel-Pío), que no fundo se trata de um choque de
estados (ganhar-perder), de realização, de desenvolvimento, de vocação e legitimidade
(sucesso-fracasso).
Como já falamos dos espaços latentes, passemos, então, às relações que o drama e
seus personagens estabelecem entre o espaço patente (a sala e o pátio da família Ancízar) e os
distintos espaços ausentes (quer dizer, afastados).
Basicamente, há dois espaços ausentes de verdadeira importância em El día que me
quieras, construídos em oposição mútua: 1) o espaço ausente da URSS, elaborado
verbalmente pelo comunista Pío, 2) o espaço ausente e móvel ocupado por Carlos Gardel no
percurso de sua visita à Caracas (porto, trem, praça dos pombos, hotel Majestic, teatro
Principal), nos seus filmes e em sua vida privada (incluindo os de sua infância). Ambos os
espaços (universos espaciais, como deveríamos dizer) são altamente complexos e multifocais.
Sua existência é exclusivamente verbal, surgida nos diálogos dos diferentes personagens, que
os descrevem e os (re)criam de formas singulares, heterogêneas e, até mesmo, opostas. A
descrição deste par de espaços ausentes, pelos personagens, é tão meticulosa que revela neles
o desejo de estar em um espaço diferente do patente. Tentaremos, nesta análise, fazer justiça
à sua complexidade e riqueza artísticas:
O lugar da música
Temporal ou transitório, o espaço que Gardel habita é sagrado para seus adoradores.
Gardel é o espaço ausente do maravilhoso, o desejado e inalcançável para uma simples
família como a dos Ancízar. A família, desde a cotidianidade mundana da sua sala, elabora,
narra, mitifica a passagem de Gardel pela cidade. O recriam verbalmente, o imaginam,
procuram apoderar-se um pouco dele. Por isso, é tão impactante o momento em que Gardel
adentra o espaço patente da casa da família Ancízar e, de alguma forma, o transforma com sua
presença; é uma espécie de Rei Midas que tudo o que toca se converte em magia (Elvira diz,
na metade do segundo ato, que Gardel tem cheiro de “Rey mago”). É possível delinear um
itinerário bastante preciso (embora ligeiramente alucinado) de seu percurso e do efeito que
causa desde que chega ao país. Mostraremos como Cabrujas estrutura, ao longo da obra, uma
narração a três mãos (Elvira, Matilde e Plácido participam), bastante minuciosa, quase
invasiva, da soma de espaços ausentes que marcam a passagem de Gardel pela cidade. Iremos
suprimir aqui as referências sobre o personagem de Gardel, focando a nossa atenção no
aspecto especificamente espacial.
101
A narração sobre o percurso de Gardel começa logo na segunda cena da obra, com o
primeiro parlamento de Elvira:
Entra Elvira.
ELVIRA: ¿Vieron las banderas? (Silencio) Dios mío uno podría morirse viendo las
banderas. Él no. Él va a pasar de largo del puerto al Ferrocarril, del Ferrocarril al
Capitolio, del Capitolio al Panteón y del Panteón al escenario. 120 (I.2)
Não é necessário sair do espaço patente da sala e do pátio encenados para conhecer os
passos do cantor. Gardel chegou de barco, pela parte caribenha da Venezuela, ao porto de La
Guaira, onde foi recebido por uma multidão que o acompanhou até o trem que o levaria para a
capital, Caracas, do outro lado da cordilheira da costa. A família Ancízar contava com uma
informante naquele espaço ausente, que depois voltou com a notícia:
MATILDE.- ¿Y lo del tren? ¿Saben lo del tren?
ELVIRA.- ¿Qué es lo del tren?
MATILDE.- Se subió al tren. Tenía un vagón para él sólo y dijo que el tren era
confortable. Y la gente apiñada así, así de gente, pidiéndole una canción.
ELVIRA.- Salvajes. (...)
MATILDE.- Lo querían sacar por la ventanilla del vagón. (...) Entonces, la
locomotora se movió y él cantó (...) y me miró.
ELVIRA (Sorprendida).- ¿Cómo...?
MATILDE.- Me Miró. Yo sé que me miró. Él en la ventanilla y yo en el país. 121 (I.3)
A partir deste momento, em que presumivelmente a locomotiva segue seu caminho
para Caracas, perdemos o rastro dos espaços ausentes que Gardel percorre, até a quarta cena,
quando
Entra Plácido Ancízar, con el ensayo de la noticia.
PLACIDO.- ¡Llegó al Majestic! (...) Once maletas de equipaje y todavía no han
podido subirlas a la habitación! Y aquello repleto en el vestíbulo (...) El Gobernador,
el Rector, la Academia de la Historia y monseñor Fontúrvel furioso porque alguien
le pellizcó una nalga (...)
MATILDE.- ¿Y Gardel?
PLACIDO.- En un baño, a la izquierda, con Le Pera…122 (I.4)
120
Tradução: “Entra Elvira.
ELVIRA.- Viram as bandeiras? (Silêncio) Meu Deus, alguém pode morrer vendo as bandeiras. Ele não. “Ele vai
passar do porto ao trem, do trem ao Capitolio, do Capitolio ao Panteón e do Panteón ao cenário.”
121
Tradução: “ MATILDE.- E do trem? Sabem do trem?”
ELVIRA.- O que do trem?
MATILDE.- Subiu no trem. Tinha um vagão só para ele e disse que o trem era confortável. E as pessoas
amontoadas assim, assim de gente, pedindo uma música.
ELVIRA.- Selvagens (...)
MATILDE.- O queriam tirar pela janela do vagão. (...) Então, a locomotiva mexeu e ele cantou (...) e olhou para
mim.
ELVIRA (Surpreendida).- Como…?
MATILDE.- Olhou para mim. Eu sei que olhou para mim. “Ele na janela e eu no país.”
122
Tradução: “Entra Plácido Ancízar, com o ensaio da notícia.
PLÁCIDO.- Chegou no Majestic! (...) Onze malas de bagagem e ainda não conseguiram levá-las ao quarto. A
recepção do hotel estava lotada (...) O Gobernador, o Reitor, a Academia de Historia e Monsenhor Fontúrvel
furioso porque alguém beliscou sua nádega (...)
MATILDE- E Gardel?
PLÁCIDO.- No banheiro, à esquerda, com Le Pera...”
102
De novo se interrompe a narração sobre o caminho percorrido por Gardel para dar
lugar aos conflitos da família. Gardel é esquecido durante quatro cenas, até que coincidem, no
espaço patente da sala, Matilde e Plácido que escutam juntos, no gramofone, o tango “Sus
ojos se cerraron” , depois retomam a narração espacial no lugar exato em que havia parado:
MATILDE.- ¿Habrá salido del baño, verdad?
PLÁCIDO.- ¿De cuál baño?
MATILDE.- ¿No dijiste que se había encerrado en el baño en el vestíbulo del
Majestic?
PLÁCIDO.- Sí, pero después salió.
MATILDE.- ¿Y qué hacía allí? ¿Orinaba?
PLÁCIDO (con ademán de secreto).- Hablé con él, Matilde…
MATILDE.- ¿Dónde?
PLÁCIDO.- En la cocina del Majestic (...) Le pregunté si quería revisar las
instalaciones del teatro… el camerino, el alfombrado, la estantería, el cortinaje, el
telón, la tabla crujiente, el micrófono, los altoparlantes… las cocineras del Majestic
como si acabaran de descubrir un fantasma… (...) Y entonces, después de aquello,
me vine a entregarles las entradas123 (I.8)
Assim se conectam o espaço ausente da cozinha do Majestic com o espaço patente da
casa em que tio e sobrinha conversam em cumplicidade. A vontade de possuir Gardel faz com
que os outros personagens invadam sua intimidade: não pode sequer ir ao banheiro sem que o
sigam. A conversa é interrompida pela entrada de Pío. Também se interrompe a narração
sobre os espaços ausentes do trânsito de Gardel, mas porque Matilde e Plácido, as
testemunhas presenciais, esgotaram seu material. O único espaço ausente relacionado com
Gardel que continua tendo relevância para os personagens da obra é, agora, o do Teatro
Principal, onde acontecerá o recital. Contudo, no final do ato, na última cena, ocorre o
milagre. Gardel surge supreendentemente, como mágica, no espaço patente da sala da família
Ancízar. O efeito é formidável. Houve muitos elementos e referências sobre Gardel, ao longo
de 19 cenas, que alimentaram as expectativas tanto dos personagens, quanto dos leitores. Ao
mesmo tempo, seu aparecimento é tão abrupto, diz tão pouco e o final do ato chega tão de
imediato, que o público e o leitor ficam sem elementos suficientes para explicar o que viram.
Não é por acaso que essa última cena seja a mais curta da obra, sendo possível transcrevê-la
em apenas uma linha: “Entra Gardel y elige su mejor sonrisa. GARDEL.- Buenas tardes. Me
123
Tradução: “MATILDE.- Terá saído do banheiro, não é?”
PLÁCIDO.- De qual banheiro?
MATILDE.- Você não disse que ele tinha se trancado no banheiro da recepção do Majestic?
PLÁCIDO.- Foi, mas depois saiu.
MATILDE.- E o que fazia lá? Urinava?
PLÁCIDO (com ar de segredo).- Falei com ele, Matilde...
MATILDE.- Onde?
PLÁCIDO.- Na cozinha do Majestic (...) Lhe perguntei se queria revisar as instalações do teatro… o camarim, os
tapetes, a estante, as cortinas, o palco, o microfone, os alto falantes… as cozinheiras do Majestic pareciam ver
um fantasma (…) E então, depois disso, vim trazer os ingressos.”
103
llamo Gardel. TELÓN”124 (I.20) O efeito é melodramático: faz-nos lembrar que Cabrujas
também escrevia telenovelas. Fechar o ato desse jeito deixa cabos soltos, alimenta a intriga,
cria perguntas, vontade de ver a próxima parte da ficção para obter explicações. Por exemplo,
a explicação que conecta Gardel ao espaço patente da casa desperta tanto a curiosidade do
espectador, quanto a dos personagens. Por isso, Maria Luisa indaga:
MARÍA LUISA.- Perdóneme. Hay una pregunta. Una sola pregunta. ¿Por qué vino
aquí?
GARDEL.- Cosas técnicas de Le Pera… qué sé yo… un micrófono… el sonido de la
guitarra. Había mucha gente en el vestíbulo del Majestic, y de pronto lo vi salir.
Buscaba a Plácido, con esa típica angustia de Le Pera ante los contratiempos. Y le
dije voy contigo… cuando llegamos aquí la puerta estaba abierta.125 (II.4)
A resposta de Gardel encerra a narração sobre o caminho que percorre até a casa dos Ancízar.
A presença de Gardel na casa dos Ancizar modifica esse espaço patente. Dizemos isto
desde um ponto de vista figurado/metafórico e, também, material: observamos como as
Ancízar organizam o espaço para o ídolo, põem a mesa com guardanapos e taças, como
mostra da excepcionalidade da ocasião. “¡Usted en su sitio, grandeza!”, exclama Elvira ao têlo com elas, “¡En el centro de esta casa, donde le corresponde por invitado y por distinto!”126
(II.7). Gardel representa todo o diferente, o excepcional; e ao se introduzir no espaço patente,
como num sonho, o domina com a sua presença. A narração dos caminhos percorridos por
Gardel, elaborada pelos Ancízar e composta pela soma dos espaços ausentes pelos quais este
passa, contém os sonhos e ilusões irrealizados daquela família comum e corrente que desde
sua cotidianidade anódina elabora verbalmente o espaço de seu desejo. Por isso, sua aparição
tem a aparência de um milagre ou de um presente da fortuna.
O lugar da revolução
Durante toda a obra, os personagens falam de outros lugares, como se não quisessem
estar onde efetivamente estão. Acabamos de fazer uma síntese que narra, de modo multifocal,
o os caminhos percorridos por Gardel nos espaços ausentes da cidade (nada dissemos, porém,
dos espaços ausentes relacionados à sua origem, como Uruguay e Toulouse, tampouco dos
lugares já visitados, como Paris ou Holanda, nem das descrições detalhadas e fanáticas que
Matilde faz dos cenários dos filmes em que Gardel atua). Tentamos fazer uma relação entre os
124
Tradução: “Entra Gardel escolhe seu melhor sorriso. GARDEL.- Boa noite. Me chamo Gardel. PANO”.
Tradução: “MARÍA LUISA.- Me desculpe. Tenho uma pergunta. Uma única pergunta. Por que você veio
aqui?
GARDEL.- Coisas técnicas de Le Pera… sei lá… um microfone… o som do violão. Tinha muita gente na
recepção do Majestic, e de repente o vi sair. Procurava por Plácido, com essa típica angustia de Le Pera frente
aos contratempos. E eu disse, vou contigo… quando chegamos aqui a porta estava aberta.”
126
Tradução: “ELVIRA.- Você no seu lugar, grandeza! No centro desta casa, onde você é convidado e
estranho!”
125
104
espaços ausentes da cidade e o espaço patente da casa familiar: a análise desse relacionamento
mostrou o forte desejo dos personagens de estar nos espaços ausentes que o ídolo habita. Pío
Miranda e María Luisa Ancízar estabelecem uma relação similar, de desejo, com o espaço
ausente da URSS. Seu desejo, porém, responde ao chamado de outro tipo de fanatismo, que
neste caso é ideológico. O espaço patente da Venezuela capitalista é percebido pelo comunista
Pío Miranda como um lugar decadente e alienado, sobretudo quando comparado ao espaço
ausente da U.R.S.S. de Stalin e sua Terceira Internacional, com o governo do proletariado,
com a força obreira e na verdade comunista que Pío idealiza, descreve, narra, recria e
imagina, outorgando uma dimensão real no espaço patente da casa dos Ancízar. A
importância do espaço ausente da U.R.S.S. é tão grande que justifica sua menção logo no
primeiro diálogo da obra, como parte de uma conversa entre Pío e María Luisa à que
chegamos in medias res e que, segundo vamos descobrindo, trata sobre o dia da morte de
Lenin:
MARÍA LUISA.- ¿Y Stalin?
PIO: Stalin los reúne a todos en el salón de conferencias, a mano izquierda, entrando
por la puerta principal como quien va hacia el comedor del Terrible. Stalin aguarda y
entra Bujarín y entra Zinoviev y entra Kamanev y Trotsky y los viejos bolcheviques,
tensos, impenetrables, definitivos. (...) Stalin se levanta, sobrio, medular, profundo.
Y hay ese momento de angustia. Y Stalin dice: “Caballeros, Vladimir Ilich acaba de
morir”
MARÍA LUISA.- Ay. (...)
PÍO.- Y Bujarín se levanta y camina hacia el llamado ventanal de la zarina en
tiempos de opresión. Zinoviev lo mira. Stalin lo mira y Trotsky pregunta “¿Qué hace
el camarada Bujarín en el llamado ventanal de la zarina?”
MARÍA LUISA.- Lloraba.
PÍO.- Lloraba. (...)127 (I.1)
A descrição é tão detalhada que dá a sensação de que Pío esteve efetivamente nesse
lugar, dez anos antes, entre Stalin, Trostky e os bolcheviques. Pío tem habitado tanto esse
espaço ausente, o Kremlin de suas leituras, a URSS de seus anelos, que o conhece em
detalhes: inclusive espacialmente. Conhece a disposição dos salões do palácio de governo e a
distribuição que nele tinham as pessoas históricas de seu relato.
Pío outorga uma dimensão tão real àquele espaço que consegue fundamentar o futuro
de seu relacionamento amoroso com María Luisa na mudança física, geográfica, para lá. Eles
127
Tradução: “MARÍA LUISA.- E Stalin?
PÍO.- Stalin reúne todos no salão de conferências, à mão esquerda, entrando pela porta principal como quem vai
para a sala de jantar do Terrível. Stalin aguarda e entra Bujarin e entra Zinoviev e entra Kamanev e Trotsky e os
velhos bolcheviques, tensos, impenetráveis, definitivos. (...) Stalin fica em pé, sóbrio, medular, profundo. Vive
esse momento de angústia. E Stalin diz: “Cavaleiros, Vladimir Ilich acaba de morrer.
MARÍA LUISA.- Ai. (...)
PÍO. E Bujarin se levanta e caminha até o chamado vitrô da czarina em tempos de opressão. Zinoviev olha para
ele. Stalin olha para ele e Trotsky pergunta ‘O que faz o camarada na chamada janela da zarina?’.
MARÍA LUISA.- Chorava.
PÍO.- Chorava. (...).”
105
planejam mudar e casar na Ucrânia, onde poderão participar do comunismo e procriar dentro
da verdade proletária:
PÍO.- ¡Yo creo en un mundo donde se comparten las ideas con la camarada mujer!...
He planificado con ella la posibilidad de mudarnos a la Unión de Repúblicas
Socialistas Soviéticas, porque entre otras cosas quiero que mis hijos nazcan en la
verdad proletaria, y no en este basurero del imperialismo” 128 (I.3)
Os leitores sabemos que é uma estratégia dilatória. A explicação de Pío relaciona, a
modo de desculpa, a incompatibilidade entre o espaço patente e sua ideologia comunista
como justificativa da irresolução amorosa que tem estendido seu noivado por uma década. Pío
não consegue, literalmente, consumar sua relação, nem sequer carnalmente; a interpretação
que Elvira faz desse fato ironiza a explicação “espacial” de Pio: “ELVIRA: (...) ése es incapaz
de una machura en territorio nacional. Hasta la biología le funciona en la Unión de Repúblicas
Socialistas Soviéticas. Son santos y necesitan su vaticano para andar santeando.” 129 (I.6)
Resulta mais fácil para ele habitar um espaço ausente e imaginário que se definir com María
Luisa. Entendemos que a estratégia de Pío para manter seu relacionamento amoroso
indefinido por tanto tempo se baseia na recriação imaginária de um habitar futuro e conjunto
do espaço ausente da Ucrânia, elaborado em detalhes prosaicos e cotidianos, como resulta
evidente nesta citação (já trilhada por nós):
MARÍA LUISA.- No hay nada en el mundo como un té de samovar. ¿Tendremos
uno alguna vez?
PÍO.- Creo que sí. O por lo menos nos dejarán usar el samovar del koljosz.
MARIA LUISA: ¿Hará mucho frío, verdad?
PÍO.- Al principio. Pero después uno se acostumbra a todo130 (I.1)
O espaço ausente de que fala Pío é uma projeção mental, um construto da imaginação,
fantasiado e posto em palavras, um espaço, no fim das contas, imaginário. A origem dessa
projeção mental está em suas leituras militantes. Se a escritura é uma interpretação da
realidade e a leitura uma interpretação do texto escrito, o mesmo acontece com a enunciação
de Pío; se converte em uma interpretação de sua leitura que é uma interpretação do texto
escrito, que é uma interpretação da realidade do espaço desconhecido: cada interpretação
transforma o objeto (e, neste caso, o objeto que nos interessa é o espaço ausente da URSS).
No entanto, cabem, ainda, mais interpretações: se continuarmos nessa linha de comunicação,
128
Tradução: “PÍO.- Eu acredito num mundo onde se compartam as ideias com a camarada mulher!... Tenho
planejado com ela a possibilidade de nos mudar à União de Republicas Socialistas Soviéticas, porque entre
outras coisas quero que meus filhos nasçam na verdade proletária e não nesta lixeira do imperialismo.”
129
Tradução: “ELVIRA.- (...) esse é incapaz de ser homem em território nacional. Até a biologia dele funciona
na União de Repúblicas Socialistas Soviéticas. São santos e precisam de seu vaticano para andar santeando”
130
Tradução: “MARÍA LUISA.- Não tem nada no mundo como um chá de samovar. Teremos um alguma vez?
PÍO.- Acredito que sim. Ou pelo menos nos deixarão usar o samovar do koljosz.
MARÍA LUISA.- Fará muito frio, não é?
PÍO.- No começo. Mas depois se acostuma com tudo.”
106
poderemos chegar até a recepção de Plácido e de María Luisa que gera uma nova
transformação. Como no jogo do telefone sem fio, onde a mensagem é passada de ouvido em
ouvido entre várias pessoas, e no final, se transforma muito em relação à mensagem original,
analogamente, o espaço da URSS, idealizado, interpretado, exposto, transformado, ouvido,
transformado de novo, até a hilaridade se converte, na mente de Plácido, no seguinte:
MATILDE.- ¿Y cómo vas a hacer en Rusia, tía María Luisa...? Cuéntame... Llegas a
Rusia, ¿y qué haces? (...) ¿Y es verdad que en Rusia todo el mundo es feliz? ¿Cómo
es allá?
PLACIDO.- Absolutamente distinto. Clara y contundentemente distinto. En primer
lugar, hay primavera, otoño, invierno y verano... y todo es de todos... Tú vas por la
calle, ¿verdad, Pío?, y se te antoja... qué sé yo... queso... chuleta, capricho... y entras
al mercado, de lo más formal... y pides: Dame, dame, dame... ¿Y por qué no te voy a
dar? Porque soy un hombre y pertenezco al género humano... y tengo hambre...
Toma, toma, toma…131 (II.8)
Para María Luisa, contudo, apesar de ausente, a Ucrânia é um espaço tanto imaginário
quanto concreto e com um significado claro e preciso que vai além da união do proletariado.
O comunismo para ela significa matrimônio. Contanto que se case com Pío, María Luisa é
capaz de ir para Ucrânia, de trocar de vida, ainda que isso implique em acabar com o espaço
patente ou o pô-lo em risco, como fez ao sugerir a venda da casa.
A confissão de Pío põe fim à farsa e às ilusões de Maria Luisa. Entre muitas coisas
que confessa serem falsas, há uma enumeração de prévias referências a espaços ausentes que
os vinculam emocionalmente como casal e que criam um efeito metafórico de renúncia total:
PIO: (...) No hay nada en Ucrania. No sé dónde queda Ucrania. No hay Unión de
Repúblicas Socialistas Soviéticas. (...) No hay ventana de la zarina, ni Bujarín
doliente! (...) ¡No hay nada! ¡Es la palabra esperada, la palabra profética! ¡Mentí!
(...) Nunca más volveré a esta casa… No me esperes…132 (II.8)
Para Pío, essa confissão, da inexistência do espaço ausente da Ucrânia no qual se
baseava o futuro de seu relacionamento com María Luisa e a condição para o exigido
matrimônio, elimina suas possibilidades de voltar ao espaço patente da casa da família.
131
Tradução: “MATILDE.- E como você vai fazer na Rússia, tia María Luisa…? Me conta… Você chega na
Rússia, e o quê você faz? (...) E é verdade que na Rússia todo mundo com tudo.”
131
Tradução: “MATILDE.- E como você vai fazer na Rússia, tia María Luisa…? Me conta… Você chega na
Rússia, e o quê você faz? (...) E é verdade que na Rússia todo mundo é feliz? Como é lá?
PLÁCIDO.- Absolutamente diferente. Clara e contundentemente diferente. Em primeiro lugar, há primavera,
outono, inverno e verão… e tudo é de todos… Você vai pela rua, não é, Pío? E sente desejo de… sei lá…
queijo… carré, capricho… e entra no mercado, bancando o formal… e pede: Me dá, me dá, me dá… E por que é
não vou te dar? Porque sou um homem e pertenço ao gênero humano… e tenho fome… Toma, toma, toma…”
132
Tradução: “PÍO: (...) Não tem nada na Ucrânia. Não sei onde fica Ucrânia. Não tem União de Republicas
Socialistas Sovieticas. (...) Não tem janela da czarina, nem Bujarin dolente! (...) Não tem nada! Essa é a palavra
esperada, a palavra profética! Menti! (...) Nunca mais voltarei nesta casa… Não me espere...”
107
Os fatos apresentados demonstram, embora superficialmente, como Cabrujas explora
artisticamente as possibilidades criativas oferecidas pelo jogo de relações espaciais visíveis e
invisíveis, que se relacionam profundamente com alguns dos fios mais relevantes da intriga.
Significado espacial
Para concluir esta análise espacial, faremos um comentário sobre o sentido, o
significado, o valor do espaço cênico em El día que me quieras. Tal valor vai além da
descrição do cenário e emerge das relações que se estabelecem dentro do drama entre o
espaço cênico e outros três elementos: o tempo, os personagens e a temática da obra.
Especifiquemos algumas dessas relações.
A escolha da casa das Ancízar como espaço cênico de El día que me quieras outorga
um valor necessário a esse espaço. A ação poderia ter acontecido em outro espaço, no hotel
Majestic, por exemplo, onde Gardel fica hospedado ou no Teatro Principal, onde acontece o
recital. Poderia ter acontecido tudo na casa de Pío, no desesperado monólogo antes de partir
para procurar e levar com ele sua noiva. Teoricamente as possibilidades são infinitas, mas, já
que Cabrujas optou pela casa dos Ancízar, o valor desse espaço cênico é, assim, intrínseco à
sua própria existência.
A casa dos Ancízar encerra a história e carrega o peso de um passado glorioso.
Pertenceu originalmente à Ezequiel Ancízar, ilustre general das guerras de Independência.
Ezequiel morre na sala de sua própria casa, quer dizer, sobre o mesmo espaço cênico em que
transcorre a obra. Os que habitam a casa são os irmãos Ancízar (Elvira, Plácido e María
Luisa) e uma sobrinha (Matilde), também Ancízar. Nessa mesma casa morre, também, a mãe
dos irmãos Ancízar. A história familiar e afetiva dos Ancízar está, por tanto, contida no
espaço da casa, entre suas paredes e baixo seu teto.
A casa é o elemento que reúne todos os personagens, a justificativa de seu encontro.
Nela moram os Ancízar. Nela Pío Miranda almoça e se encontra com sua noiva, todos os
dias. Nela chegam Le Pera e Gardel a procura de Plácido, não só para resolver detalhes
técnicos do recital, mas por sua feição, sua aparência, sua fachada (que não vemos, mas
ouvimos a descrição) com as samambaias na entrada. Ante a casa e lembrando-se da casa
materna de sua infância, Gardel pede permissão aos Ancízar para passar a noite com eles,
depois do recital.
A casa é, também, motivo de conflito, quando, por exemplo, María Luisa propõe sua
venda para poder financiar sua emigração amorosa. Nela se reúnem todos os personagens
depois do recital e, graças à rede de relações entre a casa cada personagem, o espaço cobra
108
valores múltiplos, contraditórios e complexos: para Elvira e para Plácido, é o espaço da
lembrança (morte de familiares, passagem dos anos); para Matilde, é a zona de conforto, onde
recebe os cuidados dos tios; para Gardel, é o espaço da nostalgia, da displicência e da fruição
(cancelou um jantar com o ditador Gómez para poder estar nessa casa); para María Luisa, é o
espaço da cotidianidade, do estancamento, mas, ao mesmo tempo, é o espaço do possível, do
sonho, da construção do amanhã, já que sua venda geraria fundos para financiar seus planos
amorosos; por fim, para Pío, é o espaço do conflito (amor mal resolvido), da vergonha, da
farsa, da responsabilidade dilatada e da fantasia ou, em uma palavra, o espaço do fracasso.
IV. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE EL AMERICANO ILUSTRADO (1986).
Antes de pensar nos temas e significados profundos de El americano ilustrado, antes
de falar de seus personagens e da história que a obra conta, partamos de uma aproximação
que leve em conta a estrutura e a composição material do texto dramático. Consideremos
apenas a aparência que a obra tem, a partir das marcas concretas com que Cabrujas a
organiza. Evidentemente, o primeiro a se considerar será o primeiro que podemos perceber: o
título da obra. “Dar um título a uma peça é, para seu autor, uma forma de anunciar ou
confundir seu sentido”, diz Ryngaert, e completa explicando que “para o leitor, o título é uma
primeira referência” (1996, p. 36). Desentranhemos o sentido e as referências implícitas neste
título.
A tradição teatral abunda em exemplos de obras, especialmente tragédias, cujos títulos
fazem referência ao nome do herói que protagoniza a ação (Hamlet, Édipo), ao nome de um
casal de personagens (Romeo e Julieta, César e Cleópatra) ou, inclusive, ao nome de um
grupo ou coletivo de personagens (Fuenteovejuna, Las Troyanas). O título de algumas
comédias, em específico, contêm nomes de caráter social, funções, cargos com adjetivos
esclarecedores. O doente imaginário, por exemplo, apresenta no título o embrião de seu
argumento, a descrição de um personagem (o protagonista) e o anuncia ao espectador.
Entretanto, se o título O doente imaginário é eloquente e direto, clarifica e encaminha o
sentido da obra, o título El americano ilustrado realiza o caminho inverso. Embora pareça,
não anuncia uma comédia. Cabrujas usa esse recurso como falsa pista: sua trajetória como
diretor de comédias (Molière, Shakespeare) autoriza esta observação. O substantivo
“americano” é demasiado amplo (continental) e abarca quase a totalidade do elenco, com
exceção da delegação inglesa e de Marx e Engels (que, mais que personagens, são aparições
109
cenográficas), todos os demais personagens da obra são americanos e, se formos mais
específicos, venezuelanos.
Não podemos desdenhar do caráter geográfico do argumento, porque Cabrujas não o
faz da mesma maneira, também não podemos ignorar seu caráter histórico. De fato, a história
é uma das obsessões do autor e a partir dessa obsessão se configura também o título da peça:
Cabrujas joga com duas referências históricas venezuelanas: 1) a do título, “Ilustre
americano” - que foi atribuído, pelo congresso, ao ex-presidente Antonio Guzmán Blanco
(1829-1899), um dos personagens da peça, mas não seu protagonista (outra pista falsa) e 2) a
do nome da revista quinzenal cultural “El cojo ilustrado” - publicada entre 1892 e 1915, que
marcou a história editorial venezuelana. São duas provas às referências históricas do
espectador: Cabrujas concebeu o teatro como uma prática totalmente provinciana. Não vem o
título seguido de nenhum subtítulo, tampouco de uma orientação relativa ao gênero.
A obra aparece dedicada a Fausto Verdial, ator teatral muito vinculado ao autor, que
interpreta na estreia desta peça, a Arístides Lander. Verdial, durante vários anos, foi
protagonista das obras escritas ou dirigidas por Cabrujas. Imediatamente após a dedicatória,
há uma espécie de nota introdutória ou nota explicativa intitulada “La suficiente
inseguridad”133. Nela Cabrujas diz que os personagens Cosme Paraíma (Acto cultural, 1976) e
Pío Miranda (El día que me quieras, 1979) são os precursores do personagem Arístides
Lander, “gente que vivió por primera vez en el genio de un gran actor”134. (O apontamento é
inexato: na verdade o ator que interpretou a Pío Miranda na estreia de El día que me quieras,
no Teatro Alberto de Paz y Mateo, em 1986, não foi Fausto Verdial, mas o próprio Cabrujas.)
A nota faz extensivo o agradecimento ao diretor da peça porque, segundo confessa o autor, a
obra vivia nele durante vinte e cinco anos “hasta que Armando Gota en persona la sacó de una
neurótica impotencia hace algunos meses, a cambio de paciencia y tenacidad”135.
Estrutura
A obra está dividida em quatro grandes partes desiguais: dois atos precedidos por um
prólogo e seguidos por um epílogo. Tanto o prólogo quanto o epílogo estão por sua vez
subdivididos em duas partes cada um. Todas estas divisões correspondem a mudanças tanto
do tempo, quanto do espaço onde transcorre a ação. É uma estrutura relativamente clássica,
133
Tradução: “A suficiente insegurança”
Tradução: “pessoas que viveram pela primeira vez na mente de um grande ator.”
135
Tradução: “até que Armando Gota em pessoa a tirou de uma neurótica impotência faz alguns meses, em troca
de paciência e tenacidade”
134
110
embora tergiversada: se assemelha às tragédias em cinco atos (ou às óperas em cinco
movimentos), embora não sejam cinco as partes da obra. Pode-se dizer, porém, que a divisão
é bem mais livresca, pois inclui prólogo e epílogo, segmentações de longa tradição na
narrativa e em muitos tipos de publicações impressas, mas não no caso da dramaturgia,
historicamente menos editada e publicada, reservada somente ao espaço da encenação. No
entanto, além de livresca, esta divisão obedece à estrutura interna da história: tanto o prólogo
quanto o epílogo correspondem respectivamente aos antecedentes e às consequências da ação
que se desenvolve principalmente nos dois atos principais. Entretanto, não precisamos ir tão
longe para afirmar que prólogo e epílogo são imprescindíveis, pois sem eles El americano
ilustrado teria por protagonista não Arístides Lander, senão seu irmão Anselmo e contaria
outra história. De qualquer maneira, a estrutura da obra é desigual e algumas de suas partes
(não todas) vêm também desigualmente acompanhadas de datas e de subtítulos em francês,
textualmente copiados dos subtítulos dos movimentos da Sinfonia fantástica de Berlioz. Há
um projeto em Cabrujas de comparar o argumento da sinfonia com o de sua obra. No
argumento da sinfonia de Berlioz, um jovem artista fuma ópio e se alucina com sua amada em
cinco movimentos que se vão se degradando e obscurecendo: há um trajeto do dia à noite, de
campos felizes com cândidos pastoreios e a amada dançando em meio a uma demoníaca e
selvagem comemoração, na que sua imagem - da amada - é burlada e vilipendiada. Na obra
de Cabrujas, como veremos adiante, Arístides também se degrada e se escurece. Cabrujas,
amante da ópera, organiza seu universo mental, “em função de ritmos que lhe são próprios e
que se referem a outras artes (como à pintura ou à música) no seu modo de pensar o texto”
(RYNGAERT, 1996, p.39).
Passemos, então, ao comentário das partes, uma a uma: a primeira parte é o Prólogo e
vem acompanhado de uma data entre parênteses (1865), que marca a temporalidade histórica
na que transcorre a ação. O prólogo se subdivide em duas partes, intituladas ou marcadas com
os números romanos I e II, correspondentes a dois espaços diferentes: um lugar campestre (I)
e uma capela (II). A segunda parte configura o Primeiro ato, que vêm seguido de um subtítulo
em francês (Revêries, passions) e de uma data (1880) e transcorre inteiramente na casa de
Arístides Lander. O subtítulo, como dissemos antes, é o mesmo do primeiro movimento da
Sinfonia fantástica de Berlioz, traduzido ao espanhol como “Ensueños, pasiones”. A data,
1880, marca a passagem do tempo, quinze anos a partir do prólogo. No final deste ato há uma
marca textual em letras maiúscula: TELÓN, que indica o meio da obra. A terceira parte,
intitulada Segundo ato, sem datas nem subtítulos, transcorre no Salón del sol de Junín da casa
111
de Governo, que se chamava Estados Unidos de Venezuela. Finalmente, a quarta e última
parte é o Epílogo, subdividido em suas duas partes menores, marcadas com os números
romanos I e II cada uma. Ambas as partes correspondem, a dois espaços cênicos diferentes:
um salão do Palácio Arcebispal (I) e, de novo, a casa de Arístides Lander (II). Assim como no
Primeiro ato, estas duas partes do Epílogo vêm acompanhadas dos subtítulos em francês que
correspondem aos subtítulos dos dois últimos movimentos da Sinfonia fantástica, que são,
respectivamente Marche au supplice (I) e Songe d’une nuit de Sabbat (II), traduzidos ao
espanhol como “Marcha al cadalso” e “Sueño de una noche de aquelarre”. No final da
segunda parte do Epílogo há uma marca textual, FIN, que indica o encerramento da ação e o
final da obra.
Como a estrutura desta obra é desigual, é normal que surjam dúvidas. Queremos,
então, apresentar um esquema:
Prólogo (1865) I
II
Ato I. Rêveries, Passions (1880)
Ato II
Epílogo I Marche au supplice
II Songe d’une nuit de Sabbat
Divisão em cenas.
Assim como acontece em El día que me quieras, e em muitas outras obras de
Cabrujas, o autor não utiliza segmentações em sua escritura dramática. Porém, propomos,
como na análise anterior, a segmentação da ação de El americano ilustrado em cenas. A
divisão em várias unidades menores (marcadas pelas entradas e as saídas dos personagens)
facilita a análise textual. Tipograficamente, vamos assinalar com letras maiúsculas as grandes
estruturas da obra e com números romanos suas partes (P.I e P.II para as duas partes do
Prólogo; A.I para o Primeiro ato e A.II para o Segundo ato; E.I e E.II para as duas partes do
Epílogo). Para as cenas, utilizaremos números arábigos (1, 2, 3, 4, etc., para a Cena 1, Cena 2,
Cena 3, etc.). As combinações, destas unidades menores, permitirão localizar rápida e
facilmente as referências durante este estudo.
112
Unidades e continuidade de ação
El americano ilustrado, ao contrário de El día que me quieras, ignora as unidades de
Aristóteles. Não há espaço nem tempo únicos na peça, mas plurais. Se formos além, não há
sequer um protagonista, senão dois, com conflitos, ambições e histórias diferentes. Tais
protagonistas são os irmãos Arístides e Anselmo Lander (Cabrujas discordaria de esta última
observação, para ele Arístides é o protagonista de sua obra, mas, desde o nosso ponto de vista,
a importância do personagem Anselmo, com seus conflitos religioso e amoroso, é central para
a obra). “A decupagem do texto”, segundo Ryngaert, “raramente é independente de uma
concepção do tempo e do espaço” (1996, p.41). Assim, se a concepção de El día que me
quieras é clássica, a concepção de El americano ilustrado, mediante a divisão de suas partes e
do tratamento do tempo e do espaço, aponta a uma estética barroca de descontinuidade.
Desde o ponto de vista temporal, a ação transcorre num lapso de dezesseis anos, que
correspondem ao tempo histórico que vai de 1865, data indicada entre parênteses no início do
Prólogo, até o verão de 1881, como se indica nas didascálias que abrem a segunda parte do
Epílogo. Contudo, se assumimos o prólogo e o epílogo como um antes e um depois da história
(não é por acaso que Cabrujas escolhe prólogo e epílogo, ao invés de “atos”) e se nos
limitarmos apenas aos dois atos centrais, descobrimos que, neles, a temporalidade da ação
transcorre no lapso de poucas horas que vão da tarde à noite do dia 17 de julho de 1880, dia
do aniversário de Arístides, o que entraria nos parâmetros de unidade temporal. São as duas
partes restantes que rompem com a unidade de tempo: o Prólogo se desenvolve quinze anos
antes daquele aniversário, em 1865, e o Epílogo um ano depois, no verão de 1881. Quer dizer,
provavelmente a escolha de Atos para as duas partes centrais e de Epílogo e Prólogo para
parte anterior e posterior aos atos, persiga a procura de uma relativa unidade temporal. Tudo
isso, é claro, escapa ao espetador que, embora perceba a passagem do tempo na trama e
vivencie a interrupção da obra pelo entreato, recebe Prólogo e Primeiro Ato como uma
unidade contínua e ininterrompida e
Segundo Ato e Epílogo como outra unidade
ininterrompida.
Desde o ponto de vista do espaço, a ação de El americano ilustrado transcorre numa
variedade de ambientes, rompendo com a unidade espacial aristotélica que Cabrujas havia
respeitado em muitas obras teatrais anteriores. Contrariamente à relativa unidade temporal
restringida aos dois Atos, não conseguimos enxergar neles um ambiente único, mas dois
113
espaços cênicos diferentes e contraditórios, um privado e familiar e outro público. Temos em
El americano ilustrado uma sucessão de espaços cênicos que serão nomeados a continuação,
seguindo a linearidade da trama. Tais espaços são: primeiro, “un paraje campestre y amable
en las cercanías de un arroyo”136 (P.I.); segundo, “un ángulo votivo en la capilla de Nuestra
Señora del Perpetuo Socorro”137 (P.II); tercero, “el patio de la casa de Arístides Lander”138
(A.I.); cuarto, “un amplio salón en la casa de Gobierno”139; quinto, “un salón votivo en el
palacio Arzobispal”140; e sexto, novamente, “el patio de la casa de Arístides Lander”.
Os diálogos são curtos e rápidos, os intercâmbios entre os personagens são dinâmicos
e em seu conteúdo há referências cultas (ópera, champanha e citações em francês), religiosas,
políticas e históricas, misturadas com prosaísmos e cotidianidades engraçadas (pulmão de boi
temperado e atacado por moscas, o queijo do fabricante de queijos Lozada, a “paloma”141 de
Santo Tobias). O status do conteúdo dos parlamentos corresponde aos interlocutores, desde o
Presidente Guzmán e a delegação inglesa, até os subordinados e empregados, como Eloy,
Damián, Rajah-Haji e Samotracia. O dinamismo dos diálogos é ritmado e pausado pelo autor
que utiliza diferentes recursos com o objetivo de dilatar o argumento principal, de pospor a
crise dos conflitos e de criar suspense. Em primeiro lugar, há o uso de muitas marcas que
literalmente indicam, no diálogo, os momentos nos quais deve sobrevir uma “Pausa” simples,
“Breve” ou “Larga”142. Em segundo lugar, há o uso grandes blocos de fala ou solilóquios,
sobretudo dos irmãos Arístides e Anselmo Lander e no Segundo Ato de Guzmán Blanco.
Estes solilóquios correspondem, quase sempre, a uma autorreflexão dolente, a uma acusação
ou a uma confissão castrante (ou libertadora), pelo menos no caso dos irmãos Lander.
Guzmán, ao contrário, monologa porque tem amor próprio, é um personagem satisfeito de si,
porém, em seus longos solilóquios, se esconde também uma estratégia: a seduzir, confundir e
manipular ao ambicioso mas diminuído Arístides. Em terceiro lugar, a entrada e saída de
personagens subordinados e empregados, bem como o intercâmbio prosaico e cotidiano que
introduzem, interrompe o fio central do argumento (às vezes inoportunamente). Por fim, em
quarto lugar, pela introdução de diálogos em outros idiomas diferentes do espanhol, como o
francês usado por Arístides e Guzmán e em ocasiões com Rajah-Haji, como o alemão de
136
Tradução: “uma lugar campestre e amável nas cercanias de um arroio.”
Tradução: “um ângulo votivo na capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”
138
Tradução: “o pátio da casa de Arístides Lander”
139
Tradução: “um amplo salão na casa de Governo”
140
Tradução: “um salão votivo no palácio Arcebispal”
141
Tradução: “pombo”; em espanhol tem duplo sentido sexual.
142
Tradução: “Longe”
137
114
Marx e Engels (personagens pitorescos sem nenhum tipo de relevância para a trama) usado
por María Eugenia e Rosamunda e, sobretudo, como o inglês de Mac Shelley e de seu
intérprete Perret, que cria um jogo de suspense que se estende ao longo de todo o Segundo ato
e o domina.
A ficção da obra: argumento e intriga
O argumento, como comentamos na análise de El día que me quieras, está
fundamentalmente ligado à ação. Para construir o argumento de El americano ilustrado
trataremos de identificar, extrair, organizar e enunciar em tempo pretérito e narrativamente as
ações sucessivas dos personagens e principais acontecimentos, da maneira mais neutra
possível. Ryngaert nos dá algumas pistas de como acometer esta labor: “Só devemos nos
apoiar no texto dramático e não esquecer nenhuma das ações. A seguir, é preciso organizá-las
na ordem cronológica, que raramente corresponde à ordem proposta pelo texto, e
simultaneamente tomar consciencia de suas durações e do tempo que as separa”. (1996, p.57)
Argumento de El americano ilustrado
Em 1818, a Venezuela contraiu uma dívida com Inglaterra. Em agosto de 1839,
nasceu Anselmo Lander e onze meses despois seu irmão Arístides.
Na infância dos irmãos Lander, Anselmo estripava galinhas fantasiado Ivanhoe
(personagem literário de um romance cavalaria) acompanhado de Arístides, seu escudeiro.
Arístides recebeu o doutorado em direito em 1860.
Em 1865, Arístides se apaixonou em segredo de María Eugenia Lozada. Por onze
meses tentou se aproximar dela sem sucesso. Um dia, conseguiu, em uma ópera, um sorriso
dela. Uma semana depois, Arístides rogou que seu irmão Anselmo, já padre da igreja, pedisse
a mão de María Eugenia em seu nome. Sabendo do lugar exato onde María Eugenia e sua mãe
passariam, resolvem, juntos, armar uma emboscada. Diante da mulher de Lozada, Anselmo
pediu, para seu irmão, Arístides, a mão de María Eugenia, que aceitou no mesmo momento.
Perto deles, Marx e Engels conversavam e comiam.
115
Quinze dias depois, Anselmo enviou a María Eugenia um recado pedindo que fosse
visitá-lo na capela onde era padre. Ele propôs à sua futura cunhada que fossem juntos a um
hotel.
Nesse ano, no seu aniversário, no dia 17 de julho, Arístides escreveu uma carta
dirigida a si próprio, com a condição de abri-la quando completasse quarenta anos. Nela, se
impôs uma série de metas profissionais (ser líder do Partido Conservador, modificar a
Constituição nacional e alcançar o título de general), e se impôs o prazo de quinze anos para
cumpri-las e reatar outra carta com metas mais grandiosas, caso fracassasse, deveria se
suicidar.
Anselmo e María Eugenia tiveram uma aventura, mas estiveram juntos somente uma
vez.
Anselmo alcançou o cargo de Bispo. Arístides, que seguiu carreira de político,
alcançou o cargo de Secretário de Protocolo do Ministério de Relações Exteriores. Antonio
Guzmán Blanco assume a Presidência.
Em 1880, durante a primeira quinzena de julho, o general Pío Fernández visitou
clandestinamente ao monsenhor Anselmo Lander para convidá-lo a parte de uma conspiração
contra o presidente. No dia 15 de julho, uma delegação inglesa chegou à Venezuela para
renegociar o pagamento da dívida externa.
Dois dias depois, em 17 de julho, Arístides completou quarenta anos. Trabalhou
durante o dia organizando, junto ao seu secretário Eloy, um banquete que o governo
ofereceria à delegação inglesa. Quando terminou de trabalhar, abriu a carta que tinha escrito
quinze anos antes. Fez com que María Eugenia, sua mulher, a lesse em voz alta. Comprovou
seu fracasso e tomou a antiga pistola de seu antepassado, Justo Lander, sem balas, e disparou
simbolicamente na cabeça.
Pouco depois chegaram a casa seus irmãos, Anselmo e Rosamunda, que era freira,
para festejar seu aniversário. Anselmo propôs a Arístides fazer parte da conspiração do
general Fernández contra Gómez em troca do cargo de Ministro de Relações Exteriores se
tivessem sucesso. Arístedes rejeitou a proposta. Pouco depois, seu secretário Eloy chegou
dizendo que o presidente Guzmán queria vê-lo. Arístides saiu apressadamente com Eloy, sem
ter jantado ou brindado por seu aniversário.
116
Anselmo aproveitou o instante de intimidade com María Eugenia e lhe declarou seu
amor. María Eugenia o evadiu. Pouco depois, no palácio de governo, Arístides se reuniu com
Guzmán, enquanto a delegação inglesa o esperava. Guzmán lhe ofereceu o cargo de Ministro
de Relações Exteriores. Arístides aceitou de imediato. Também de imediato, Guzmán disse
que tinham uma reunião com a delegação inglesa para discutir a dívida e -segundo Guzmánuma possível declaração de guerra. MacShelley, embaixador da Inglaterra, concedeu o prazo
de três meses para que a Venezuela pagasse sua dívida ou negociasse, em seu lugar, a
transferência de uma parte do território da Venezuela à Inglaterra.
Durante a reunião, chegaram ao palácio, convocados em segredo por Guzmán,
Anselmo, María Eugenia e Rosamunda para comemorar o aniversário de Arístides. A reunião
se suspendeu. Abriram champanhes, houve fogos de artifício. Anselmo, a sós com Arístides, o
enfrentou por haver aceitado o cargo apesar da conspiração na que confessou participar. Mais
tarde, Anselmo acabou por confessar a Arístides seu amor por María Eugenia e este alegou já
saber do fato . A gritos, Anselmo convoca toda a família e, diante dela, do presidente e da
delegação inglesa tirou sua vestimenta sagrada, se despojou de seu hábito, da sotaina e do
crucifixo, os jogou no chão e renunciou a seu cargo.
Rosamunda foi expulsa do convento como consequência das circunstâncias da
renúncia de Anselmo ao bispado. Arístides partiu a Inglaterra para realizar longas negociações
que culminaram na perda de territórios da Venezuela.
Um mês depois, em agosto de 1880, Anselmo foi para o porto de La Guaira para de lá
embarcar para Hamburgo, onde tinha algum dinheiro guardado.
Meio ano depois, Arístides regressou das negociações. Foi recebido em casa por sua
família, colegas e o Presidente. Todos o elogiaram longamente, mas ele nada falou. Tomou de
novo a pistola, sem balas, de Justo Lander e na frente de todos fez um disparo contra a cabeça.
Intriga
Em oposição ao argumento, narração da totalidade de fatos que compõem o esqueleto
da história de uma obra, o término intriga define a organização das ações, maquinadas pelo
autor, para construir sua obra e para conseguir algum efeito. Em palavras de Ryngaert, “a
intriga está ligada à construção dos acontecimentos, a suas relações de causalidade, quando o
117
enredo considerava apenas uma sucessão temporal dos fatos.” (1996, p.63). Da intriga brotam
conceitos abstratos, como os conflitos dos personagens, os temas e a ideologia da obra.
Normalmente há um conflito principal a partir do qual se estrutura a intriga. Na construção da
intriga de El americano ilustrado, porém, há dois conflitos igualmente importantes dos
personagens que dividem o protagonismo, os irmão Arístides e Anselmo. Assim como
fizemos na análise de El día que me quieras, vamos partir agora da exposição do conflito
estruturante (ou melhor: dos conflitos, porque são dois), para depois segmentá-lo a partir dos
princípios da dramaturgia clássica em suas partes constitutivas (exposição, nó, peripécia e
desenlace). No entanto, antes de começar, é importante ressaltar que, por haver dois conflitos
de igual importância, pela própria estrutura da obra, pelas mudanças temporais e espaciais, El
americano ilustrado apresenta uma intriga um pouco heterodoxa. Teria sido mais fácil ignorar
o conflito de Anselmo Lander para fazer encaixar a análise no modelo de intriga mais comum,
mas isso desrespeitaria a integridade do texto, ignorar dados e perder a singularidade da peça
em favor da comodidade.
Intriga de El americano ilustrado
Em una linha: Arístides Lander aceita por ambição um cargo político que o denigra e
que contradiz seus princípios até se corromper e se esvaziar de todo sentido; seu irmão, o
monsenhor Anselmo, porém, realiza o movimento oposto ao renunciar por autenticidade à
igreja, ao bispado (tinha perdido a fé) e ao amor impossível de sua cunhada, para começar
outra vida.
Desenvolvimento da intriga
No dia em que Arístides Lander completou quarenta anos, abriu uma carta escrita em
sua prometedora juventude para ser lida quinze anos depois. Nela, impôs a si mesmo uma
série de metas grandiosas (e incompletas) que despertaram nele o sentimento de fracasso.
Repentinamente, nessa tarde, foi chamado com urgência ao palácio de governo para se reunir
(pela primeira vez em sua vida) com o presidente Guzmán. O presidente o recebeu com
champanhe e elogios e lhe ofereceu um cargo muito alto que, cego e feliz, aceitou sem
entender -o sem querer entender- que era uma armadilha: foi encarregado da desleal missão
de negociar a entrega de parte do território nacional à Inglaterra, para onde embarcou de
imediato. Após um ano de negociações regressou a sua terra, mas convertido numa triste e
resignada sombra.
118
É comum que as obras tenham várias intrigas e vários conflitos. A história de El
americano ilustrado se constrói sobre o desenvolvimento não de uma, mas de duas intrigas
opostas. Anselmo Lander, irmão de Arístides, é também protagonista de outro conflito de
igual peso.
Quando com vinte e seis anos, o padre e aspirante a bispo Anselmo Lander pediu, em
nome de seu irmão, a mão de María Eugenia Lozada, experimentou um sentimento que
contrariava sua vocação: se apaixonou instantaneamente por sua futura cunhada. Quinze dias
depois, lhe propôs em segredo ir a um hotel. Durante quinze anos viveu apaixonado por María
Eugenia e neste mesmo período foi nomeado bispo. Deixou crescer dentro de si o cinismo e,
de tanto negar seu amor, acabou negando a Deus e perdendo a fé. No dia em que Arístides fez
quarenta anos, confessou seu amor por María Eugenia que o rejeitou, pois Arístides, seu
marido, já sabia dos sentimentos do irmão. Tomado por uma euforia libertadora se despojou
de seus hábitos e de sua cruz jogando-os no chão: rompeu com a religião. Um ano depois,
María Eugenia o visita no arcebispado onde Anselmo guarda suas coisas. Despedem-se e,
através da conversa entre eles, descobrimos que, anos antes, tiveram uma aventura, embora
fugaz. Com uma pequena poupança e sem nenhum plano, Anselmo embarcou para Hamburgo
para começar uma vida nova.
Léxico da intriga
Sigamos desentranhando os mecanismos da intriga em suas partes constitutivas:
-Exposição: Vemos no Prólogo um Arístides vigoroso e sonhador, satisfeito advogado que
consegue da mulher que ama e com a que quer casar o sonhado “sim”. O padre Anselmo, que
pediu a mão de María Eugenia em nome de seu irmão, se apaixona por ela e consegue em
segredo lhe enviar um recado para que se encontrassem na capela. Anselmo lhe faz
indiretamente uma proposta amorosa que a incomoda ambiguamente.
-Nó: Quinze anos se passam. Preparam um jantar na casa de Arístides para comemorar seus
quarenta anos e a visita de seus irmãos. Sua esposa, María Eugenia, lê, a pedido do marido,
uma carta que mexe com frustração causada pelo fracasso de suas ambições profissionais:
chega apenas a secretário de protocolo do governo. Dispara , num gesto simbólico, a pistola
sem balas de seu bisavô, contra a cabeça. Em seguida, chegam Anselmo e Rosamunda.
Anselmo, convertido em bispo sem fé, propõe que seu irmão o acompanhe na conspiração
119
contra Guzmán para evitar a perda do território de Guayana para o império britânico.
Arístides, que já tinha se resignado a sua pequeneza e a seu fracasso, rejeita a oferta.
-Peripécia: De repente, Eloy invade a casa de Arístides dizendo que um oficial o espera para
levá-lo a uma reunião urgente com o presidente Guzmán. O presidente lhe oferece o
Ministério de Relações Exteriores e Arístides aceita. É feita uma reunião com a delegação
inglesa para negociar o pagamento da dívida, no prazo de três meses, ou a entrega de
Guayana. A família de Arístides chega ao palácio do governo, de surpresa, para comemorar a
nomeação de Arístides.
-Desenlace: Num momento de intimidade, Anselmo diz a Arístides que ama María Eugenia.
Arístides confessa já saber do fato. Com raiva, Anselmo confronta Arístides por ter aceitado a
nomeação mesmo sabendo que ele participava de uma conspiração contra Guzmán. Arístides
confessa sua frustração e a pequena alegria que a nomeação lhe causava e pede que seu irmão
se esqueça das revoltas. Anselmo renuncia à vida eclesiástica e abandona em público seus
hábitos.
A partir disso, pode-se dizer que esta obra mostra duas decisões opostas tomadas por
dois irmãos totalmente diferentes: renunciar e se liberar ou aceitar e se corromper Anselmo
perde seu cargo com todos seus benefícios e pouco tempo depois embarca rumo à
desconhecida Hamburgo para começar uma vida nova. Arístides volta da Inglaterra depois de
ter entregado parte do país e, mesmo sendo recebido com um banquete pelo presidente, está
tão degradado que repete o suicídio simbólico diante de todos.
4.1 Personagens
Estrutura
Elenco
El americano ilustrado está entre as obras de Cabrujas com elenco (conjunto de
personagens) mais abundante: quatorze no total. Nem todos têm a mesma relevância e nem a
mesma participação no drama. Colocados em ordem de aparição, o elenco está composto por:
Marx
Engels
Arístides Lander
120
Anselmo Lander
María Eugenia Lozada
La mujer de Lozada
Damián
Eloy González
Samotracia López
Rosamunda
Rajah-Haji
Guzmán Blanco
Olivier Perret
Mac Shelley
O elenco está composto, grosso modo, por personagens de âmbito familiar e privado,
que giram ao redor dos irmãos Lander, e por personagens de âmbito público, que giram em
torno do presidente Guzmán. Criados, subordinados, colegas: todos os personagens podem ser
localizados nestes dois âmbitos, com exceção de Marx e Engels, desconexos, incoerentes e
absolutamente arbitrários.
Configurações
A dinâmica de entradas e saídas de personagens nesta obra relembra o teatro burguês
do século XIX: personagens protagonistas-amos e personagens secundário-serventes (criados,
subordinados, mordomos) entram e saem de cena o tempo todo. O resultado é a proliferação
de pequenas cenas de transição pouco relevantes que pausam o ritmo contínuo da ação,
criando suspense e dilatando o desenlace.
Não há uma configuração plena e nem vazia nesta obra. Não há nenhuma conexão
entre a totalidade dos personagens da obra em nenhuma cena. Porém, de qualquer forma,
Arístides é o eixo que os conecta: é o centro da rede familiar e o enlace entre a família e a
casa de governo (Arístides é subordinado do presidente Guzmán). É também o único
personagem que se encontra em ambas as aparições (primeira e última cena da obra) com
Marx e Engels, embora não podamos falar propriamente de uma relação entre eles.
Há dois solos na obra (configurações unipessoais), pouco significativos, mas
funcionais; pequenas cenas que se conectam a outras. O primeiro caso acontece no primeiro
ato. Anselmo confessa seu amor para María Eugenia e a convida a fugir com ele; ela o rejeita
e pede que se vá. María Eugenia fica sozinha no cenário por breves momentos, nos que “Sin
121
mayor voluntad, revisa el hábito de San Antonio de Padua”143 (A.I.28) e quase de imediato
Rosamunda faz sua entrada no cenário. O segundo caso acontece no começo do segundo ato.
Eloy e Arístides vão à casa de governo procurar pelo presidente Guzmán, mas não o
encontram. Arístides envia seu subordinado, Eloy, para procurar o assessor presidencial
Bustillos Herrera para obter informações a cerca da localização do presidente, até que
Guzmán entra em cena: “Eloy sale. Pausa. Arístides examina el salón. El lejano vals se
interrumpe y ahora se escucha con gran estrépito la introducción del Himno Federal.
Transcurre un tiempo y Guzmán entra al salón.”144 (A.II.3)
A dupla é a configuração mais abundante nas obras analisadas. No caso de El
americano ilustrado há várias duplas, menos e mais significativas. As menos significativas
correspondem aos encontros (abundantes, mas breves) entre amos e serventes. Rosamunda
Lander e a criada Samotrácia aparecem, na segunda parte do epílogo, se arrumando frente ao
espelho (E.II.1). Anselmo e Damián, bispo e sacristão, são uma dupla bem heterodoxa: abrem
a segunda parte do prólogo com a leitura, em alta voz, de um bacanal contido numa
publicação de literatura erótico-católica intitulada La polla del Fray Esteban145 (P.II.1).
Arístides Lander e Eloy González, diretor e assistente, compõem a seção protocolar do
Ministério de Relações Exteriores que, na primeira cena do primeiro ato, planeja a recepção
da delegação inglesa. São configurações que se prestam à comicidade derivada das tensões
hierárquicas que impõem relações de poder e com as que Cabrujas brinca. As duplas mais
significativas resultam das diferentes combinações possíveis de três personagens: Arístides,
Anselmo e María Eugenia. No fim das contas, esta obra contém um triângulo amoroso
especialmente complicado. Arístides e María Eugenia, marido e mulher, compõem a
combinação oficial do amor consumado (e desgastado pela vida). Anselmo e María Eugenia,
cunhados, compõem a configuração do adultério, do amor impossível, blasfemo, e do desejo
pelo proibido (Anselmo, além de ser cunhado de María Eugenia, é bispo). Cabrujas apresenta
mais vezes María Eugenia com seu cunhado Anselmo do que com seu marido Arístides. O
mais interessante desta configuração entre cunhados é que o autor a apresenta, em duas
ocasiões, no marco religioso do espaço de uma igreja. Anselmo e Arístides, os irmãos Lander,
aparecem juntos e sozinhos em cena em dois momentos, separados por quinze anos: O
primeiro momento acontece na primeira parte do prólogo (1865, no tempo da fábula), antes de
Anselmo pedir, por seu irmão, a mão de María Luisa; e o segundo momento ocorre no final
143
Tradução: “Sem maior vontade, revisa o hábito de Santo Antonio de Pádua”.
Tradução: “Eloy sale. Pausa. Arístides examina o salão. A distante valsa se interrompe e agora se escuta com
grande estrépito a introdução do Hino Federal. Transcorre um tempo e Guzmán entra no salão”
145
Tradução: “A pau do Frei Esteban”. É vulgar mesmo no original.
144
122
do segundo ato, quando ambos confessam seus segredos um para o outro: esta cena precipita
o clímax da obra.
Com relação aos trios, vale a pena ressaltar que muitos deles são, na realidade, duplas
interrompidas pela entrada dos serventes: Samotrácia, por exemplo, entra e sai
constantemente, enquanto Arístides e María Eugenia leem a carta, para trazer acessórios, a
pedido de Arístides, como um chapéu, uma bengala, uma bandeja de prata com brandy e dois
copos ou a pistola de Justo Lander, entre otras cosas; ou Rajah-Haji, outro personagem, que
entra e sai constantemente em cena, enquanto Guzmán oferece a Arístides o cargo de
ministro, para transmitir ao presidente mensagens de impaciência por parte delegação inglesa
cansada de esperar para ser recebida. Na verdade, os trios e quartetos de El americano
ilustrado tendem receber a adição de mais personagens até alcançar a configuração coral.
Não há configuração plena na obra, porque, conforme já dissemos, não há nenhum
vínculo entre todos os personagens. No entanto, a configuração coral, bastante numerosa, é
utilizada em dois momentos chave: 1) no clímax da obra, quando Anselmo se despoja do
hábito e o joga no chão diante da delegação inglesa, do presidente e de sua família (A.II.22); e
2) na última cena da obra, quando Arístides dispara, simbólica e publicamente, um tiro, contra
si mesmo, na frente de nove personagens. Com a exceção da delegação inglesa, de seu irmão
Anselmo e de Damián, todos os demais personagens estão presentes: Samotrácia, Rosamunda,
Eloy, Rajah-Haji, Guzmán, Arístides, María Eugenia, a mulher de Lozada, Marx e Engels
(E.II.3)
Personagem, hierarquia e ação.
Como é comum acontecer nas obras de elenco numerosos, El americano ilustrado
possui vários personagens (quase a metade) de relevância e participação reduzidas. Desde o
ponto de vista da ação, por exemplo, contamos apenas cinco personagens substanciais:
Arístides, Anselmo, María Eugenia, Guzmán e Edgar McShelley. Os conflitos e os desejos
que dão forma à ação do drama provêm, em sua totalidade, de Arístides, Anselmo e María
Eugenia: os componentes do triângulo amoroso; o sentimento de fracasso, a falsidade, a
irresolução, o despojo: os grandes conflitos desta obra descansam sobre seus ombros. Os
personagens que alteram de forma profunda a ação são: o presidente Guzmán (que nomeia
Arístides ministro, produzindo uma importante peripécia aparentemente positiva) e o
delegado inglês Mac Shelley, representante da coroa e cobrador da dívida econômica que
favorece a Inglaterra sobre a Venezuela e por cuja visita Arístides é embarcado em missão
diplomática para Londres. O resto dos personagens, nove no total, desde o ponto de vista da
123
ação, são personagens funcionais. Eloy cumpre a função de comunicar a Arístides o chamado
do presidente na casa de governo. Oliver Perret cumpre a função de tradutor entre Mac
Shelley e o presidente. Rajah-Haji, Samotrácia e Damián cumprem funções de serventes dos
seus amos: se convertem em extensões dos corpos e das vozes de Guzmán, María Eugenia e
Anselmo respectivamente: entram e saem de cena para comunicar mensagens destes ou para
trazer e procurar coisas como, por exemplo, champanhe e taças. Marx e Engels, porém, não
contam como personagens funcionais: sua intervenção é absolutamente desconectada da ação
e não há nenhuma ingerência nela.
Desde o ponto de vista da hierarquia, temos quatro personagens principais e dez
secundários.
Os
personagens
principais
são:
Arístides
(protagonista),
Anselmo
(deuteragonista), María Eugenia (tritagonista) e Guzmán (tetragonista). Os outros dez
personagens são hierarquicamente secundários, embora, tenham gradações de relevância: os
mais importantes (Olivier Perret, Mac Shelley, Rosamunda, Eloy), os medianamente
importantes ( os serventes -Damián, Samotracia y Rajah-Haji) e, por último, os menos
importantes (a intranscendente mulher de Lozada e os desconexos Marx e Engels.).
Fizemos uma contagem das réplicas emitidas e recebidas pelos personagens durante a
obra, que se configura da seguinte forma:
Réplicas de personagens de El americano ilustrado
Arístides
--------> 195
<-------- 234
=429
Anselmo
--------> 217
<-------- 199
=416
María Eugenia
--------> 154
<-------- 159
=313
Guzmán
--------> 96
<-------- 116
=214
Eloy
--------> 68
<-------- 58
=126
Rosamunda
124
--------> 73
<-------- 51
=124
Samotrácia
--------> 39
<-------- 49
=88
Mc Shelley
--------> 37
<-------- 44
=81
Perret
--------> 55
<-------- 21
=76
Damián
--------> 31
<-------- 30
=61
Rajah-Haji
--------> 17
<-------- 18
=35
Marx
--------> 17
<-------- 14
=31
Engels
--------> 12
<-------- 11
=23
La mujer de Lozada
--------> 10
<-------- 9
=19
A partir desta contagem, torna-se perceptível a rotunda preponderância dos
personagens principais sobre os secundários: os números de réplicas emitidas e recebidas
dobram e triplicam o número de réplicas dos personagens secundários. Ademais, tal contagem
evidencia a equivalência de réplicas dos personagens Arístides e Anselmo, fato que nos
chama atenção. Desde o nosso ponto de vista, ambos os personagens são protagonistas de
igual peso, a equivalência de réplicas é uma prova disso. Contudo, não são personagens
iguais. Arístides recebe mais réplicas que emite, o que o caracteriza como um personagem
passivo. Isto se confirma ao longo do drama. Arístides não toma decisões ao longo obra,
125
apenas se deixa levar pelos outros, como por exemplo, por Guzmán, que o convida a assumir
o cargo de ministro e que ele aceita apesar de sua posição política ser contrária a oficial.
Anselmo, por sua vez, é o oposto de seu irmão. Sua vontade transforma a ação; faz parte de
uma conspiração, declara o seu amor e renúncia ao bispado apesar das inconveniências.
Anselmo é um personagem mais ativo (emite mais réplicas que recebe).
Graus de representação
Até agora falamos exclusivamente dos personagens patentes que aparecem em cena,
desconsiderando aqueles que são nomeados sem aparecer. Se considerarmos todos esses
personagens do drama descobrimos como seu número se quadriplica: há uma enorme
quantidade de personagens ausentes (invisíveis e alheios) e apenas um personagem latente
(quer dizer, invisível e contíguo).
O único personagem latente é o assessor do presidente, Bustillos Herrera. Na vigésima
cena do primeiro ato, Eloy González entra inesperadamente na casa de seu chefe Arístides e
interrompe a reunião familiar (aniversário de Arístides) para levá-lo até o presidente, e
acrescenta: “Bustillos Herrera espera en la acera de enfrente, junto al coche presidencial. No
hay un minuto que perder”146 (A.I.20). Em seguida, no início do primeiro ato, Arístides,
cansado de procurar, sem sucesso, Guzmán, manda seu assistente procurar o assessor
presidencial, com as seguintes palavras: “Encuentra a Bustillos Herrera, Eloy. Hazme caso.
Creo que se quedó en la garita. Tal vez él sepa dónde diablos está el Presidente, porque de
salón en salón vamos a llegar al lavandero.”147 (A.I.20)
Vamos mencionar agora os personagens ausentes do drama (invisíveis e alheios). São
tantos, que resulta necessário fazer uma classificação.
Há personagens ausentes fictícios. Alguns pertencem ao âmbito familiar. O senhor
Lozada - pai de María Eugenia - um vendedor de queijo (Guzmán elogia os queijos de Lozada
no segundo ato). Anselmo menciona brevemente o seu pai e o adjetiva “disciplinado” para
explicar os curtos onze meses que o separam de seu irmão mais novo, Arístides (P.II.). São
mencionados também a esposa de Eloy (enferma de pústulas na virilha) e Justo Lander, avô
de Anselmo, Arístides e Rosamunda e proprietário original da pistola com que Arístides
simula se suicidar duas vezes. Outros personagens pertencem ao âmbito laboral dos três
irmãos: Rosamunda, que é freira, menciona a Madre superiora de seu convento; no final da
146
Tradução: “Bustillos Herrera espera na calçada da frente, do lado da carroça presidencial. Não temos um
minuto a perder.”
147
Tradução: “Encontra Bustillos Herrera, Eloy. Faz o que o digo. Acredito que ficou na guarita. Tal vez ele
saiba onde diabo está o Presidente, porque de salão em salão vamos chegar no lavadeiro.”
126
obra, quando Anselmo faz suas malas antes de partir para Hamburgo menciona o nome de seu
substituto no bispado - o autor se confunde e atribui dois nomes diferentes para um mesmo
personagem, primeiro Monsenhor Ustáriz e depois Monsenhor Garmendia. Arístides e Eloy,
ao organizar o recebimento protocolar da delegação inglesa, mencionam o diretor de orquestra
Tetrazzini e o Arcebispo de Lima. Guzmán, no começo do primeiro ato, dialoga com
Arístides e, antes de nomeá-lo ministro, lhe informa sobre destituição do até então Ministro de
Relações Exteriores Judas Tadeo Tello Uzcátegui.
Há personagens históricos, mencionados apenas como referências pelos personagens
patentes ao do longo do drama. Entre eles, há políticos, intelectuais e artistas de várias
nacionalidades e diferentes períodos históricos: como os políticos Víctor Raúl Haya de la
Torre, Robespiere e a rainha de Inglaterra. Menciona-se, também, um pirata (Walter Raleigh),
um Papa (León X) e uma heroína (Juana de Arco). Há uma ampla quantidade de intelectuais e
artistas mencionados, como José Ingenieros, José Martí, Pitágoras, Miguel Angel, Descartes,
Voltaire, Diderot, Schubert, Schumann, Chopin, Carpentier e Monteverdi. São citados, ainda,
personagens literários como Ivanhoe (da obra homônima de cavalaria), Pimpinela Escarlata
(primeiro herói com dupla identidade), e os personagens que participam da orgia sacrílega de
La polla del Fray Esteban, lida em voz alta por Anselmo: frei Esteban, Sor Veneranda, a
condessa de Montmorercy e o noviço, Duval.
Há muitas referencias a personagens religiosos e santos, o que é comum numa
sociedade profundamente católica e conservadora, como a Venezuela do final do século XIX.
São mencionados em distintos momentos e circunstâncias: Jeová, Caim, Cristo e o Centurião,
Santa Maria Micaela, Santa Rita, São Buenaventura, São Sebastião, Santo Tobias, São
Tomás, Santo Antonio de Pádua, Santa Isabel da Hungria, Maria, Santa Rosa de Lima, São
Jorge e São Pablo.
Podemos concluir que esta obra está dominada, de forma absoluta, por personagens
patentes, já mencionamos no elenco. Entre os poucos personagens ausentes importantes estão:
Justo Lander, avô dos Lander e primeiro dono da pistola do suicídio (simbólico) e José Tadeo
Tello Uzcátegui, ex-Ministro de Relações Exteriores; cargo posteriormente assumido por
Arístides.
Caracterização.
Cabrujas consegue imprimir profundidade de caráter não apenas nos personagens
principais (Arístides, Anselmo, María Eugenia), mas também em vários personagens
secundários: Eloy González, por exemplo, apesar de ser o subordinado de Arístides, não é
127
colocado por nós na categoria de personagem-servente, precisamente por sua complexidade
de caráter que o coloca num nível superior ao de Rajah-Haji, por exemplo. Outro caso,
paradoxal, é o da dupla formada por Mac Shelley (embaixador inglês) e seu servente Olivier
Perret (tradutor trinitário). Mac Shelley, apesar de ser vital e substancial para a ação,
apresenta um caráter simples (plano) em comparação ao do tradutor Perret, que tem um
caráter pluridimensional.
Todos os temperamentos dos personagens são fixos, com a exceção de Arístides.
Graças à distância temporal de quinze anos que separa, na fábula, o prólogo do primeiro ato, é
possível perceber uma mudança no caráter de Arístides, uma mudança de seus traços
psicológicos. Na primeira parte do prólogo, vemos um Arístides cheio de ilusões, um jovem
brincalhão e motivado por suas paixões, que consegue se aproximar da mulher dos seus
sonhos. Quinze anos mais tarde, já no primeiro ato, vemos um Arístides que completa
quarenta anos e sente o efeito da passagem do tempo em sua forma de ser. Os quarenta anos
costumam ser uma idade paradigmática de autorreflexão na vida dos homens. O balanço que
Arístides faz da própria vida o define como derrotado. Ainda é capaz de fazer piadas, mas
sem alegria, apenas cinismo resta nele. O caráter de Arístides expressa a passagem da ilusão à
desilusão, o fracasso descoberto.
O autor faz uso de todas as possíveis técnicas de caracterização dramáticas, de forma
artística e constante. Vamos mencionar alguns exemplos:
-Técnica de caracterização explícita verbal reflexiva (o personagem fala de si).
Um bom exemplo do uso desta técnica é a autodescrição de María Eugenia na cena 26
do primeiro ato. A tristeza de Arístides (ainda no dia de seu aniversario) faz com que ela se
sinta miserável. Quando se encontra sozinha com Anselmo, tenta desabafar, ele a elogia, e ela,
não concordando, o contesta com sua autodescrição elusiva e enigmática:
MARÍA EUGENIA (Sonríe y hay tristeza en su rostro).- Buscaremos la razón de un
brindis. Arístides cumple cuarenta años y no es feliz. Desearemos la felicidad de
Arístides. Dios mío, ¿No parezco un libro de idiomas?
ANSELMO.- ¿Cómo se puede ser infeliz a tu lado?
MARÍA EUGENIA.- Es posible, Monseñor, que yo no tenga un lado. (Insiste) Me
refiero a lo que he vivido. Me educaron para que jamás pudiese avergonzar a nadie,
y eso es lo que he hecho. No avergonzar, puede ser una profesión. ¿No está de
acuerdo?
ANSELMO.- No.
MARÍA EUGENIA.- Digamos que me apasionan las incomodidades.148 (A.I.26)
148
Tradução: “MARÍA EUGENIA (Sorri e demonstra tristeza em seu rosto)”. - Buscaremos a razão de um
brinde. Arístides faz quarenta anos e não é feliz. Desejaremos a felicidade de Aristides. Meu Deus, não pareço
um livro de idiomas?
ANSELMO. - Como se pode ser infeliz a seu lado?
128
-Técnica de caraterização explícita verbal transitiva (personagem fala de outro em sua
presença).
Esta técnica é amplamente utilizada pelo autor. O exemplo mais paradigmático está na
terceira cena da primeira parte do prólogo, quando Anselmo apresenta seu irmão Arístides a
María Eugenia e sua mãe, a senhora Lozada, como parte do pedido de matrimônio que faz em
seu nome. O seguinte fragmento expressa o que Anselmo diz de seu irmão Arístides em sua
presença:
ANSELMO.- Ostenta veintinueve años sin señas particulares dignas de ser
mencionadas. Jamás guardó cama ni hubo en su vida motivo de enfermedad
vergonzosa o tropical. Recibió el doctorado en Leyes el 1º de septiembre de 1860 y
hasta el momento ha sido incapaz de reproducirse. No existiendo ningún
impedimento que invalide la legitimidad de esta proposición, me permito
recomendarla en el nombre de Nuestro Señor.149 (P.I.3)
-Técnica de caraterização explícita verbal transitiva (personagem fala de outro em sua
ausência e antes de sua primeira aparição).
Vamos extrair um exemplo marginal e engraçado, que apresenta a caraterização física
de um personagem secundário (Mac Shelley) baseada nos traços físicos que correspondem ao
estereótipo geográfico atribuído aos ingleses. Tal exemplo ocorre ao final do primeiro ato,
quando Samotracia entra em cena interrompendo a intimidade incômoda de Anselmo e María
Eugenia.
Entra Samotracia con la urgencia de una novedad.
SAMOTRACIA.- ¡Están pasando los ingleses, Madame! ¡Van al Palacio de
Gobierno! ¿No quiere verlos?
MARÍA EUGENIA (Tras breve pausa).- Monseñor quiere verlos, Samotracia.
Acompáñalo. (...)
SAMOTRACIA.- ¡Son rojos, Monseñor… de puro blanco!150 (A.I.27)
-Técnica de caraterização explícita verbal transitiva (personagem fala de outro em sua
ausência e depois de sua primeira aparição).
MARÍA EUGENIA. - É possível, monsenhor, que eu não tenha um lado. (Insiste) Me refiro ao que tenho vivido.
Me educaram para que jamais pudesse envergonhar ninguém, e é isso o que eu tenho feito. Não envergonhar,
pode ser uma profissão, não concorda?
ALSEMO. - Não;
“MARÍA EUGENIA: Vamos dizer que me apaixonam as incomodidades”
149
Tradução: “ANSELMO. - Ostenta vinte e nove anos sem sinais particulares dignos de ser mencionados.
Jamais ficou de cama nem houve na sua vida motivo de doença vergonhosa ou tropical. Recebeu o doutorado em
Advocacia 1º de setembro de 1860 e até o momento tem sido incapaz de se reproduzir. Não existindo nenhum
impedimento que invalide a legitimidade desta proposição, me permito a recomendá-la em nome do Nosso
Senhor.”.
150
Tradução: “Entra Samotracia com a urgência de uma novidade”.
SAMOTRACIA. - Estão passando os ingleses, Madame! Vão para o Palácio de Governo! Não quer vê-los?
MARÍA EUGENIA (Após breve pausa). - Monsenhor quer vê-los, Samotracia. Acompanhe-o. (...)
SAMOTRACIA. - São vermelhos, Monsenhor… de tão brancos!”
129
O segmento mais propício da obra para explorar este tipo de técnica caraterizadora é, por
questões temporais, o epílogo, já que acontece depois, a modo de conclusão. Meio ano transcorre
desde o final dos atos até a segunda parte do epílogo. Durante o tempo latente desse meio ano, e como
sua primeira designação como ministro, Arístides esteve em uma missão diplomática em Londres para
negociar a entrega de Guayana à Inglaterra. A segunda parte do epílogo acontece no dia em que
Aristides volta para casa. Samotracia e Rosamunda esperam por Arístides, que chega acompanhado do
presidente. Enquanto as irmãs se arrumam, Eloy González, o assistente de Arístides, que já o tinha
recebido no espaço ausente do porto, chega repentinamente e é interrogado por elas:
Samotracia corre en dirección a la puerta de la entrada.
SAMOTRACIA.- ¡Vienen! ¿Te habló el doctor Lander, Eloy González?
ELOY.- Ni una palabra. La majestad lo invade.
ROSAMUNDA.- ¿Los mismos cabellos?
ELOY.- Más helénico. No olvidemos que departió con la princesa Victoria. 151
(E.II.2)
4.2 Tempo
Estrutura
Estrutura temporal de El americano ilustrado
Cena temporal 1
+ Nexo 1
+ Cena temporal 2
+ Nexo 2
+ Cena temporal 3
+ Nexo 3
+ Cena temporal 4
+ Nexo 4
+ Cena temporal 5
+ Nexo 5
+ Cena temporal 6
As cenas temporais (de 1 à 6) correspondem aos tempos patentes da obra, contínuos
internamente, embora independentes entre si, com exceção das cenas temporais 3 e 4, unidas
por um nexo (3) vazio, sem temporalidade. Os nexos correspondem aos tempos latentes do
drama. Para mais pistas, consideramos útil preencher o esquema com os dados temporais
pertinentes que deem conta da estrutura da obra:
Esquema detalhado da estrutura temporal
151
Tradução: “Samotracia corre em direção à porta da entrada.
SAMOTRACIA. - Estão chegando! O doutor Lander falou você, Eloy González?
ELOY. - Nem uma palavra. A majestade o invade.
ROSAMUNDA. - Os mesmos cabelos?
ELOY. - Mais helênico. Não esqueçamos que esteve com a princesa Vitória.”
130
Cena temporal 1: tarde de 1° de agosto de 1865 (P.I.).
Nexo 1: duas semanas.
Cena temporal 2: tarde do 16 de agosto de 1865 (P.II.).
Nexo 2: quinze anos.
Cena temporal 3: final da tarde de 17 de julho de 1880 (A.I.).
Nexo 3: vazio (corresponde ao entreato).
Cena temporal 4: começo da noite de 17 de julho de 1880 (A.II.).
Nexo 4: um mês e meio.
Cena temporal 5: finais de agosto de 1880.
Nexo 5: meio ano
Cena temporal 6: primeiro quadrimestre de 1881.
Ordem
El americano ilustrado respeita a organização cronológica das cenas temporais unidas
por nexos e organizadas em contínua sucessividade. Basta subir os olhos e reler o esquema
detalhado da estrutura temporal da obra com que fechamos a seção anterior, para provar a
linearidade cronológica de cenas e nexos temporais do drama desde seu começo até seu final.
Duração
A duração é a soma de tempos patentes e latentes. No caso desta obra, a duração
corresponde a, aproximadamente, dezesseis anos, que vão desde o começo do drama, em 1°
de agosto de 1865, até o final deste, durante o verão de 1880. A unidade aristotélica temporal
não é, obviamente, respeitada: a duração total do tempo interno da fábula encenada é maior
que um dia. A concepção temporal – e espacial - desta obra é barroca (como Lope), dispersa e
diversa (o oposto de El día que me quieras).
As durações relativas internas das cenas temporais da obra são isocrônicas, ou seja,
apresentam igualdade entre o tempo representante e o representado. Entretanto, o ritmo que
mede as durações dos nexos entre cenas é claramente heterogêneo: entre PI y PII transcorrem
duas semanas e entre PII e AI transcorrem quinze anos.
Distância
A brecha que separa no tempo a fábula do drama da escritura da obra é de 121 anos: o
ano da estreia é 1986, enquanto que o tempo da fábula começa em 1865. A visão é, por tanto,
retrospectiva: do século XX ao século XIX.
A obra de Cabrujas - em sua posição intelectual, em sua compreensão de mundo – é
marcada pelo peso da História. Cabrujas concebe o homem como um ser histórico. Tanto El
americano ilustrado quanto El día que me quieras são prova disso. As duas obras são datáveis
e nelas participam personagens históricos (Gardel e Guzmán Blanco). Tais obras apresentam
131
um traço em comum: ambas foram escritas na Venezuela democrática de 1979 e 1986,
possuem argumentos ancorados na particular história da Venezuela, mas contextos ditatoriais:
Antonio Guzmán Blanco governou de 1870 a 1888 e Juan Vicente Gómez de 1908 a 1935.
Graus de (re)presentação.
Tempo patente
El americano ilustrado faz patente o passo do tempo (dezesseis anos são
representados com enormes elipses, nesta obra). As seis grandes partes da obra correspondem
a 6 momentos temporais diferentes, dois deles (Ato 1 e Ato 2), na realidade, quase contínuos.
Seria útil fazer um simples esquema para entender a temporalidade encenada no drama:
Esquema do tempo patente (encenado):
1865: Prólogo I: 1° de agosto, tarde.
Prólogo II: 16 de agosto, tarde.
1880: Ato I: 7 de julho, tarde.
Ato II: Mesmo dia, noite.
Epílogo I: uma tarde no final de agosto.
1881: Epílogo II: uma tarde de inverno, entre janeiro e abril
O tempo patente de El americano ilustrado é múltiplo, diverso, heterodoxo, barroco,
disperso, diferentemente do tempo de El americano ilustrado, unificado em menos de um dia
da fábula. A própria estrutura das grandes partes que compõe esta obra atende a um objetivo
temporal: mostrar a ação concentrada de um dia específico, o aniversário de quarenta anos de
Arístides (Atos 1 e 2) com seu antes (Prólogo 1 e 2) e seu depois (Epílogo 1 e 2), para fazer
patente o fracasso como resultado da passagem, em vão, do tempo (crise sem mudança). Este
tipo de divisão corresponde comumente à forma narrativa, não à dramática.
Prólogo: em 1° de agosto de 1865, Arístides se compromete com María Eugenia (P.I);
quinze dias depois, Anselmo faz uma proposta indecente à sua flamante cunhada. (P.II)
Atos: Quinze anos depois do prólogo, em 17 de julho de 1880, Arístides completa
quarenta anos. Durante essa tarde (A.I) e essa noite (A.II) Arístides aceita o cargo de Ministro
de Relações Exteriores e Anselmo confessa seu amor por María Eugenia e, em seguida,
renuncia ao seu cargo de bispo.
Epílogo: Um mês depois do ocorrido, em agosto (E.I.), Anselmo prepara sua partida
para Hamburgo. Meio ano depois, aproximadamente, no primeiro trimestre de 1881 (E.II),
Arístides volta para casa, depois da missão diplomática de meses na Inglaterra.
132
Sabemos com tanta exatidão da temporalidade da obra porque, o dramaturgo ou os
personagens a precisam:
ARÍSTIDES (Consultando su reloj).- Falta un minuto. A mi madre se le rompieron
las fuentes un domingo 17 de julio a las seis en punto de la tarde, hace cuarenta años.
(...) (Pausa. Arístides observa su reloj.) Ya. (Constata) Acabo de cumplir cuarenta
años.152 (A.I.6)
Além das referências ao tempo patente, feitas pelos personagens em cada quadro, há
um elemento que liga todos os tempos patentes desta obra: o amor impossível de Anselmo por
María Eugenia, uma das formas do fracasso neste drama. Há, também, uma recorrente
referência verbal ao primeiro tempo patente da obra (1° de agosto de 1865, dia em que
Arístides e María Eugenia se comprometem) desde os outros tempos patentes posteriores. O
personagem que estabelece as conexões entre o primeiro tempo patente e os demais é
Anselmo que, apaixonado em segredo por sua cunhada durante anos, lembra, revive,
reelabora o momento em que a conheceu (P.I), para pedir sua mão.
Já no quadro seguinte (Prólogo II), que ocorre temporalmente apenas um par de
semanas depois de P.I., Anselmo faz a primeira referência ao momento em que conheceu
María Eugenia, preguntando diretamente a ela:
ANSELMO.- Cuando nos vimos, hace quince días, en ese paseo, ¿qué pensó usted
de mí?
MARÍA EUGENIA (Desconcertada).- No entiendo.
ANSELMO.- Cuando nos vimos, por primera vez, en ese paseo, hace quince días.
¿Qué pensó usted de mí?153 (P.II.4)
A partir desta pergunta, podemos dizer que há não um amor à primeira vista da parte
de Anselmo, mas um forte interesse à primeira vista: tão forte que pode quebrantar a lealdade
fraternal. Depois de um quadro cênico e quinze anos (na fábula), Anselmo volta mencionar o
tempo patente do P.I. que é o tempo de seu amor impossível, relembrado, confessado,
revivido com estas palavras:
ANSELMO (Al diablo).- He contado quince años de tu vida como un mucamo
resignado y estoy confesando un amor que conoces. No he hecho otra cosa que
arrepentirme, María Eugenia. Me sucedió en aquel paseo, cuando pedí tu mano. 154
(A.I.26)
152
Tradução: “ARÍSTIDES (Consultando seu relógio). - Falta um minuto. A bolsa da minha mãe estorou num
domingo, 17 de julho, às seis em ponto da tarde, há quarenta anos. (...) (Pausa. Arístides observa seu relógio). Já.
(Constata) Acabo de cumprir quarenta anos.”.
153
Tradução: “ANSELMO. - Quando nos vimos, há quinze dias, nesse passeio, o que você pensou de mim?
MARÍA EUGENIA (Desconcertada). - Não entendo.
ANSELMO. - Quando nos vimos, pela primeira vez, nesse passeio, faz quinze dias, o que você pensou de mim?”
154
Tradução: “ANSELMO (Ao diabo). - Tenho contado quinze anos da tua vida como un servo resignado e
estou confessando um amor que você conhece. Não tenho feito outra coisa que me arrepender, María Eugenia.
Aconteceu naquele passeio, quando pedi tua mão.”.
133
A terceira e mais relevante das menções ao tempo patente do passeio campestre de
1865, acontece na cena 25 do segundo ato, pouco antes do clímax da obra. Os irmãos Lander
conversam sozinhos na casa de governo (os demais estão fora cena vendo a exibição de fogos
de artifício). Anselmo resolve confessar o amor que guarda em segredo por sua cunhada, sem
suspeitar que Arístides se adiantasse em tudo, até na menção (eufemística) daquele primeiro
tempo patente:
ANSELMO (Decidido, tras una pausa).- ¿Serías capaz de odiarme, Lander de
Macedonia?
ARÍSTIDES (Tras una pausa).- Dame tiempo. Sé lo que sucede, Teresa. Sé cuándo
ocurrió y dónde ocurrió. Sé que vives como un renegado porque deseas a María
Eugenia. (...)
ANSELMO.- No lo dije. Hasta esta tarde no lo dije.155 (A.II.25)
Tempo latente
O tempo latente ou sugerido de El americano ilustrado é composto de todas as elipses
não encenadas que preenchem os vazios invisíveis de quinze anos de fábula. Assim como
fizemos com o tempo patente, um esquema pode ajudar a visualizar e compreender melhor os
tempos sugeridos da obra (que, na realidade, são as ligações dos tempos patentes)
Esquema do tempo latente (sugerido)
Elipse 1
Duas semanas: entre PI (1° de agosto) e PII (16 de agosto de 1865).
Elipse 2
Quinze anos: entre P.II (16 de agosto de 1865) e A.I-A. II (17 de julho de 1880)
Elipse 3
Um mês e meio: entre A.II (17 de julho) e E.I (final de agosto de 1880)
Elipse 4
Seis meses: entre E.I (final de agosto de 1880) e E.II (primeiro quadrimestre de
1881).
No entanto, nem todas as mudanças de quadro correspondem a uma mudança temporal
(entre o primeiro e o segundo ato, por exemplo, não há passagem do tempo), significando que
o tempo latente da obra está formado por apenas quatro elipses. Além disso, não resulta
relevante fazer um inventário de todas as referências que os personagens fazem sobre o tempo
155
Tradução: “ANSELMO (Decidido, depois de uma pausa). - Você seria capaz de me odiar?
ARÍSTIDES (Após uma pausa). - Me dá tempo. Sei o que acontece, Teresa. Sei quando aconteceu e onde
aconteceu. Sei que você vive como um renegado porque você deseja María Eugenia (...).
ANSELMO. – Eu não disse isso. Até esta tarde, eu não disse isso.”.
134
(não representado ou sugerido) latente, mas apenas daquelas transcendentes. O tempo da
fábula é tão imensamente maior que o tempo representado (16 anos contra 2 horas) que
devemos reconhecer e delimitar apenas o tempo latente de verdadeira relevância para o
argumento, a intriga e os personagens. Resgatamos apenas um par de momentos latentes
localizados na segunda elipse, a mais longa, de quinze anos, que na fábula separam o prólogo
dos atos; ambos são importantes para o desenvolvimento da trama e, respectivamente, para os
irmãos Arístides e Anselmo.
Em primeiro lugar: o tempo anterior ao aniversário de quarenta anos de Arístides, para
sermos mais específicos, uma semana antes de 17 de julho de 1880. Anselmo e Guzmán
Blanco mencionam dois acontecimentos desconexos entre si, mas que convergem na fortuna
de Arístides, ambos aconteceram no tempo latente da semana anterior àquela. 1) Anselmo
revela a seu irmão que faz parte de uma conspiração contra o presidente Guzmán, encabeçada
pelo clandestino General Pío Fernández: “ANSELMO.- Vino a verme la semana pasada
disfrazado prácticamente de Pimpinela Escarlata. Guzmán está caído.”156 (A.I.17). Anselmo,
que é bispo, revela a seu irmão detalhes de seu encontro com o general, que convida, por meio
de Anselmo, Arístides para participar da conspiração, em troca de um Ministério. Arístides
rejeita a oferta com melancolia. 2) No começo do segundo ato, o presidente Guzmán conta a
Arístides que pretende demitir o Ministro de Relações Exteriores (superior de Arístides) e lhe
oferece o cargo:
GUZMÁN (Activo).- Economicemos los minutos, Lander. No hay tiempo que
perder. (...) Estoy considerando la posibilidad de destituir al actual Ministro de
Relaciones Exteriores. Encuentro a Judas Tadeo Tello Uzcátegui demasiado rural y
extrovertido para mi gusto. ¿Puede creerme si le digo, Lander, que el miércoles
pasado ese pobre hombre ha tenido la osadía de regalarle al ministro consejero de
Dinamarca, con motivo del día nacional de Copenhague, un trozo de pulmón de buey
adobado por su madrina? Hubo una verdadera olimpíada de moscas en el consulado
danés. (...) Digamos entonces, Lander, que ante esa catástrofe alveolar, estoy
considerando la posibilidad de nombrarlo a usted en el cargo de Tello Uzcátegui. 157
(A.I.6)
Arístides recebe a mesma oferta vinda de seu irmão, mas com uma grande diferença:
Anselmo lhe ofereceu o ministério de um hipotético governo golpista e “antiguzmancista”,
afiliado ao partido Conservador; enquanto que Guzmán lhe ofereceu o ministério do governo
156
Tradução: “Veio me ver na semana passada fantaseado praticamente de Pimpinela Escarlata. Guzmán está
caído”.
157
Tradução: “GUZMÁN (Ativo).- Economizemos os minutos, Lander. Não temos tempo a perder. (...) Estou
considerando a possibilidade de destituir o atual Ministro de Relações Exteriores. Encontro Judas Tadeo Tello
Uzcátegui demasiado rural e extrovertido para o meu gosto. Pode acreditar se eu digo, Lander, que na quartafeira passada esse pobre homem teve a ousadia de dar de presente ao ministro conselheiro da Dinamarca, com
motivo do dia nacional de Copenhague, um pedaço de pulmão de boi adubado por sua madrinha? Houve uma
verdadeira olimpíada de moscas no consulado Danes. (...) Digamos então, Lander, que frente essa catástrofe
alveolar, estou considerando a possibilidade de nomear você no cargo de Tello Uzcátegui.”
135
atual do país (um governo liberal). Apesar de receber a mesma oferta duas vezes, uma exclui
definitivamente à outra: oposição ou oficialismo; qualquer escolha implica traição.
Em segundo lugar, deve ser mencionado o tempo latente do adultério dos cunhados
María Eugenia e Anselmo. Trata-se de um tempo sugerido muito impreciso, embora contido
nos quinze anos que separam prólogo e atos. É mencionado indiretamente, de forma
indefinida, como resulta coerente entre duas pessoas que compartilham intimidades
suficientes. Logo antes do final do primeiro ato, durante uma conversa entre os cunhados,
podemos extrair esta imprecisa referência:
ANSELMO.- Ese día me nombraron obispo y tenía una falda roja, sangrienta,
veteada. Llegaste de malva y por una ilusión de luces pensé que te recorría un
embarazo. Fue una angustia que investigué al día siguiente en esta casa,
preguntándome cómo hacía para renunciar a tanta intimidad.
MARÍA EUGENIA.- Deseo olvidar, Monseñor.158 (A.I.26)
Anselmo relembra, reelabora, revive o tempo latente do amor impossível, do breve
adultério, do segredo guardado. Desde seu tempo presente e patente, se conecta a esse outro
tempo invisível de seu desejo fracassado. María Eugenia apenas quer esquecer, sepultar no
tempo passado. São duas atitudes frente ao tempo, duas formas de manejar a lembrança em
comum.
Tempo ausente
Todo tempo da fábula de um drama que acontece antes e depois do tempo encenado
compõe o tempo ausente. No caso de El americano ilustrado, o tempo ausente do drama é
tudo o que ocorre antes de 1° de agosto de 1865 e depois do verão de 1881. Em outras
palavras: o tempo da fábula acontece antes de subir as cortinas e despois de baixá-las, longe
da nossa vista: o passado e o futuro de El americano ilustrado.
O tempo encenado aparece frente aos olhos do receptor como consequência de um
tempo passado real (verossimilmente real), sobre o qual os personagens dão pistas. Há, por
exemplo, o tempo ausente, 62 anos antes do tempo encenado, em que Venezuela contrai uma
dívida econômica com a Inglaterra (o resultado no tempo desse endividamento será a perda de
Guayana) ou o tempo ausente da infância dos irmãos Lander. Esse é um recurso dramatúrgico
que contribui para criar o efeito da verossimilhança derivado, entre outras coisas, das relações
temporais do drama: os irmãos Lander, ao mencionar sua infância, não só projetam
158
Tradução: “ANSELMO. - Nesse dia me nomearam bispo e tinha uma saia vermelha, sangrenta, frisada. Você
chegou de malva e por uma ilusões de luzes achei que te percorria uma gravidez. No dia seguinte, me senti
angustiado nesta casa e me perguntava como fazer para renuncia a tanta intimidade.
MARÍA EUGENIA.- Desejo esquecer, Monsenhor.”
136
verossimilhança, mas também criam um efeito de familiaridade, de irmandade, de passado
comum, de infância compartilhada.
ROSAMUNDA (Toma a Anselmo del brazo).- ¿Cómo era aquella canción de mamá?
(Recuerda) Blanca flor de un día, que no volverá… y aquel piano sin fa sostenido,
trunco, como de agua y bemol… ¿recuerdas, Anselmo?
ANSELMO (Sin énfasis).- Nunca recuerdo nada, Rosamunda.159 (A.I.)
A afirmação de Anselmo é absolutamente falsa: mente ao dizer que não se lembra de
nada, embora sempre mencione algo específico sobre seu passado (o dia em que se apaixonou
de María Eugenia). Apenas Anselmo não lembra -ou não lhe interessa lembrar- de sua
infância, como fazem seus irmãos. Já Arístides, na segunda cena da primeira parte do prólogo,
recorre às lembranças de sua infância compartilhada como recurso para comover a vontade de
seu irmão: “ARÍSTIDES.- Piensa en nuestra infancia cuando violabas gallinas disfrazado de Ivanhoe.
¿No era yo tu escudero?”160 (P.I.2)
A lembrança é o processo mental que ata passado e presente. Podemos observar como
transcorrer do tempo altera inclusive a matéria de suas lembranças. Na citação anterior,
retirada do prólogo, Arístides relembra sua infância, desde seus vinte e cinco anos, brincalhão
e vigoroso; entretanto, com passar do tempo, no segundo ato, quando cumpre quarenta anos,
Arístides volta lembrar sua infância junto a seu irmão, mas o tom não é de brincadeira, senão
de derrota, de melancólico fracasso:
ARÍSTIDES (Con gran dolor).- Jugábamos en la hacienda, ¿recuerdas, Monseñor?
Treinta años atrás… rubios, quien sabe si plateados como la rosa plateada de Viena.
Y había esa cuesta de naranjos que tú llamabas Getsemaní, por ganas de inventar.
Entonces no hacíamos más que completar el orden de una familia… pero, los
viernes, casi siempre a las nueve de esa fantástica luna, jugábamos a Cristo y al
centurión que lo arrestaba. (...) Entonces era fácil. Pero hoy no. Hoy no, Lander…
hoy no es fácil… hoy me tropecé conmigo mismo en un papel estúpido,
rigurosamente doblado, que le hice leer a María Eugenia. Y si volviéramos a
Getsemaní yo te diría… no, no soy Cristo, no soy El Hijo del Hombre, no soy El Rey
de los Judíos, no hice milagros, no multipliqué peces, no resucité a Lázaro…
161
(A.II.24)
159
Tradução: “ROSAMUNDA (Toma a Anselmo pelo braço). - Como era aquela música que a mamãe cantava?
(Recorda) Branca flor de um dia, que não voltará… e aquele piano sem fá sustentado, trunco, como de água e
bemol… Lembra, Anselmo?”
ANSELMO (sem ênfase).- Nunca me lembro de nada, Rosamunda. ”
160
Tradução: “ARÍSTIDES.- Pensa na nossa infância, quando você estuprava galinhas pensando em Ivanhoe.
Não era eu teu escudeiro?”
161
Tradução: “ARÍSTIDES (Com grande dor).- Brincávamos na fazenda, você se lembra, Monsenhor? Trinta
anos atrás… loiros, quem sabe se prateados como a rosa prateada de Viena. E tinha aquela ladeira de laranjeiras
que você chamava Getsemaní, por vontade de inventar. Então não fazíamos mais do que completar a ordem de
uma família… mas, nas sextas-feiras, quase sempre às nove dessa fantástica lua, brincávamos de Cristo e o
centurião que o arrestava. (...) Então era fácil. Mas hoje não. Hoje não, Lander… hoje não é fácil… hoje tropecei
comigo mesmo num papel estúpido, rigorosamente dobrado, que fiz ler a María Eugenia. E se voltássemos a
Getsemaní eu te diria… não, não sou Cristo, não sou O Filho do Homem, não sou O Rei dos Judeus, não fiz
milagres, não multipliquei peixes, não ressuscitei Lázaro…
137
O sujeito transformado (envilecido) pelo fracasso, que é Arístides, altera a percepção
do objeto de lembrança que é a sua infância, tornando-o triste como seu próprio acinzentado
ser.
Tempo e significado
A passagem do tempo significa fracasso em El americano ilustrado. Por isso, os dois
atos da obra, que são suas partes centrais, transcorrem durante o dia em que Arístides Lander
cumpre quarenta anos, uma idade de autorreflexão, de autoexame à que Arístides chega
derrotado. A infelicidade de Arístides e seu sentido de derrota têm um motivo temporal
concreto: o dia de seu quadragésimo aniversário marca o fim de um prazo auto imposto para
ler a carta que prova sua derrota contra o tempo.
MARÍA EUGENIA (Adivinando).- Eras un niño y la escribiste (...)
ARÍSTIDES.- La escribí y me la dirigí a mí mismo, un día como hoy, hace quince
años. (...) Lee. En voz alta.
MARÍA EUGENIA.- “Querido: hoy cumples veinticinco años (...) te concedes a ti
mismo, el plazo de quince años…
ARÍSTIDES.- debe haber una tachadura donde dice quince años…
MARÍA EUGENIA.- Si la hay…
ARÍSTIDES.- Originalmente escribí diez y después sentí miedo.
MARÍA EUGENIA (Encuentra).- “Te concedes a ti mismo el plazo de quince años
para llegar a ser el Jefe Supremo del Partido Conservador (...), para modificar la
Constitución Nacional (...) para alcanzar el título de General (...) Finalizados estos
compromisos redactarás al cumplirse el plazo anterior…
ARÍSTIDES.- Es decir, hoy…
MARÍA EUGENIA.- ...una nueva recopilación de juramentos que duplique en
grandeza a los ya mencionados. De lo contrario y sin consideraciones de ningún tipo,
procederás a suicidarte.
Arístides se lleva la pistola a la cabeza y oprime el gatillo. El arma no está
cargada.162 (A.I.11)
A pistola é uma lembrança do avô Justo Lander, herói nacional. Mais que símbolo de
um passado grandioso, carta e pistola, são símbolos do tempo.
162
Tradução: “MARÍA EUGENIA (Adivinhando).- Você era uma criança e a escreveu (...)
ARÍSTIDES.- A escrevi e a dirigi a mim próprio, num dia como hoje, há quinze anos. (...) Leia. Em voz alta.
MARÍA EUGENIA.- “Querido: hoje você faz vinte e cinco anos (...) você concede a você próprio, o prazo de
quinze anos…
ARÍSTIDES.- deve haver uma rasura onde diz quinze anos…
MARÍA EUGENIA.- Tem sim…
ARÍSTIDES.- Originalmente escrevi dez e depois senti medo.
MARÍA EUGENIA (contra).- “você concede a você próprio o prazo de quinze anos para chegar ser o Chefe
Supremo do Partido Conservador (...), para modificar a Constituição Nacional (...) para alcançar o título de
General (...) Finalizados estes compromissos você redatará ao se cumprir o prazo anterior…
ARÍSTIDES.- Quer dizer, hoje…
MARÍA EUGENIA.- ...uma nova recopilação de juramentos que duplique em grandeza os já mencionados. Caso
contrário e sem considerações de nenhum tipo, você irá se suicidar.
Arístides leva a pistola na sua cabeça e aperta o gatilho. A arma não está carregada.”
138
4.3 Espaço
Estrutura espacial
A deste drama é uma estrutura de espaços múltiplos e sucessivos: múltiplos porque a
ação dramática se desenvolve em lugares diferentes (apenas um se repete): cada espaço é uma
totalidade e uma unidade, pelo menos no texto. A estrutura espacial do drama está mais perto
da do teatro isabetano inglês ou do teatro espanhol do Século de Ouro que do teatro grego ou
do clássico francês. Os diferentes espaços correspondem, quase totalmente, à divisão
estrutural das grandes partes da obra: para seis partes, há cinco espaços dramáticos diferentes,
como se especifica a continuação:
Espaços
-Paragem campestre (P.I.)
-Capela (P.II.)
-Pátio da casa de Arístides (A.I)
-Casa de governo (A.II.)
-Palácio arcebispal (E.I.)
-Pátio da casa de Arístides (E.II)
García Barrientos (2007) explica que na estrutura espacial dos dramas sempre subjaz
um “valor” espacial, que é significativo e cuja identificação é mais importante do que a mera
descrição dos mesmos. Os lugares esquematizados acima respondem a um plano do autor e se
relacionam tanto com o tempo quanto com os personagens e temas do drama. Tratemos de
precisar algumas destas relações:
Arístides e Anselmo são os protagonistas da obra e do desenvolvimento de seus
conflitos depende a estruturação espacial que Cabrujas ideou. Anselmo é arcebispo, por isso
dois dos lugares são recintos religiosos: a capela da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (P.II)
e um salão do Palácio arcebispal (E.I.). Arístides é funcionário de governo e de sua
nuclearidade como personagem - que conecta quase toda a totalidade do cenário - deriva a
escolha dos dois lugares (um privado e o outro público) onde transcorre a maior parte do
drama: o pátio da sua casa (A.I y E.II) e o Salão do sol de Junín da casa de governo (A.II).
A paragem campestre da primeira parte do Prólogo, além de ser o primeiro lugar do
drama conhecido por público e leitores, cumpre a função de nos apresentar ambos os
139
personagens protagonistas em harmonia e de levantar os fundamentos de um dos conflitos da
obra: o amor, à primeira vista, do padre Anselmo por sua futura cunhada, María Eugenia. De
modo geral pode-se dizer que há três eixos temáticos no drama que influenciam a estrutura
espacial: o amor, a religião e o poder. O amor implica o espaço da paragem campestre (P.I)
onde Anselmo pede, em nome de Arístides, a mão de María Eugenia (triângulo amoroso); o
poder implica o espaço da casa de governo (A.II) onde Arístides é tentado com o
oferecimento de um cargo político; a religião, por sua vez, implica os espaços da capela (P.II.)
e o palácio arcebispal (E.I.) onde Anselmo se revolta e depois abandona sua fé e seu ofício. O
único lugar que se repete é o pátio da casa de Arístides (A.I y E.II), que denuncia o passar do
tempo e a decadência de Arístides. O passar do tempo reclama, também, a Anselmo uma
mudança de espaços, só que inversa: ele ascende da capela, onde, aos 26 anos, foi padre
(P.II); ao palácio arcebispal, onde, dezesseis anos depois, é bispo.
Signos do espaço
El americano ilustrado apresenta a conjunção de vários recursos dos que se vale a
representação, para significar teatralmente os lugares da ação no drama: encontramos signos
cenográficos, verbais, corporais e sonoros intercalados ao longo do desenvolvimento da obra.
Vamos segmentá-los.
Signos do espaço cenográfico
Comecemos por observar os primeiros signos cenográficos que criam o espaço, quer
dizer, as descrições que o autor faz de seus cenários, no começo das grandes partes da obra.
Lacônico e preciso, Cabrujas abre o drama “Un paraje campestre y amable en las cercanías
de un arroyo.”163 (P.I) Nada se especifica sobre a representação do arroio, que intuímos
sonoro ou simplesmente tácito e ausente, destinado apenas ao leitor e não à sala, talvez aos
atores. O arroio poderia, é verdade, ser representado sonoramente, com um áudio líquido
como efeito sonoro de fundo, mas isto não passa de uma dedução sem base textual. Se
contrastarmos a descrição deste cenário com a do Segundo ato, muito mais extensa e
detalhada, se evidencia com maior clareza a dimensão poética (não pragmática) contida em
sua elaboração, à qual implica menos o projeto de um cenário físico empírico que o projeto da
recriação de um ambiente, neste caso, o do recinto presidencial de Guzmán Blanco,
afrancesado e classicista rotundo:
163
Tradução: “Uma paragem amável e campestre nas proximidades de um arroio”
140
Un amplio salón en la casa de gobierno. Hay minervas y gracias, orfeos y
amorcillos, alfombras, zaratustras y luz de pergamino. Hay jerarquías de terciopelo
y melpomenes culturales. Una clepsidra masónica filosofa en el centro de una mesa
ovalada y de un momento a otro podrían aparecer la Patria y la Ciencia sin causar
mayor asombro. 164(A.II)
A única referência explícita aos signos luminosos, na totalidade de marcações da obra,
está contida no fragmento anterior (luz de pergaminho), um apontamento críptico e estranho
que pouco ou nada diz para o técnico de iluminação ou ao diretor sem sensibilidade poética.
Se fosse nossa montagem, aplicaríamos una luminosidade tênue, amarelada e opaca, com
filtro leitoso.
O terceiro signo de caráter cenográfico que, junto ao cenário e à iluminação, ajuda
criar o espaço são os acessórios. Alguns dos acessórios que acrescentam significado ao
espaço são: a Talha de Santo Antônio de Pádua (sociedade católica) e as muitas taças e
garrafas de champanhe (classe, dinheiro, poder) servidas na casa de governo do esbanjador
Guzmán. Dois acessórios têm capital importância para o desenrolar da ação e sua significação
simbólica: a carta de Arístides e a pistola de Justo Lander. Ao redor da carta gira toda a ação
da primeira metade do Primeiro ato e dela dependem tanto as relações com o tempo (passadopresente) quanto a posta em cena do fracasso como motivo estruturante. O fracasso que se
desprende do conteúdo da carta está complementado e ilustrado com o outro acessório
significativo: a pistola de Justo Lander, glorioso antepassado dos irmãos Lander, herói pátrio
cuja relativa grandiosidade se opõe à pequeneza absoluta que Arístides percebe em sua
própria vida. Cabrujas utiliza esta pistola, que aparece pela primeira vez no Primeiro ato, para
fechar simbolicamente este drama no final da obra (E.II.).
Signos do espaço verbal
Os espaços contíguos -por tanto invisíveis- são criados principalmente através de
signos linguísticos contidos nos próprios diálogos dos personagens. Eles configuram com
palavras o que García Barrientos chama “decorado verbal” (cenário verbal), fazendo uso de
uma das técnicas mais genuinamente teatrais: construir com a linguagem e mediante a
imaginação o que não está fisicamente à vista. Na televisão e no cinema os cenários devem
ser representados, mas no teatro basta nomeá-los. Na segunda parte do Prólogo, por exemplo,
quando María Eugenia visita Anselmo na capela, a forma elusiva usada pelo padre para
164
Tradução: “Um amplo salão na casa de governo. Há minervas e graças, orfeus e querubins, zaratustras e luz
de pergaminho. Há hierarquias de veludo e melpomenes culturais. Uma clepsidra maçônica filosofa no centro de
uma mesa ovalada e de uma hora para outra poderiam aparecer a Pátria e a Ciência sem causar maior espanto.”
141
ganhar um pouco de privacidade e se desfazer da presença do sacristão, ativa o espaço latente
de um salão contíguo e encenado: “ANSELMO (A Damián).- Limpia las heridas de San
Sebastián, Damián, y revisa las vinajeras. Esmérate.”165 (E.II.) Damián sai de cena
imediatamente e tanto os espectadores quanto o leitor ficam providos de elementos para
imaginar para onde o personagem vai.
O começo do segundo ato inverte este procedimento: os diálogos indicam de onde
vieram os personagens. No meio do salão da casa de governo, único espaço cênico presente,
vemos Arístides e Eloy consternados e, através de seus diálogos, descobrimos que tal salão
pertence a um recinto muito maior: “ARÍSTIDES.- (...) de salón en salón vamos a llegar al
lavandero.”166 (A.I.) Por meio da palavra se cria o espaço latente. Compreendemos que a
procura pelo presidente marca um percurso longo e esgotador (o ator deve usar uma
entonação acorde), já que ambos os personagens entram em várias salas sem sucesso. Esta é
apenas a primeira de várias referências aos espaços latentes da casa de governo, cujos
arredores são constantemente criados pela linguagem. As menções são quase sempre
pitorescas e risíveis: se fala de bichos selvagens (tartarugas, araras, bichos-preguiça) que em
nada remetem às convenções e expectativas comuns do que deveriam ser os arredores de uma
casa de governo (parece um zoológico). Esta particularidade não é arbitrária: Cabrujas
persegue dois objetivos: o primeiro consiste em rarefazer a figura do chefe de estado, ao
passo que o segundo visa criar o espaço (descontextualizado e ironizado) que ocupa a
delegação inglesa, um espaço muito próximo, que luta para entrar em cena e cujo encontro é
postergado por Guzmán reiteradamente. Rajah-Haji, o assistente pessoal do presidente, é a
ponte entre o espaço encenado e o espaço latente da delegação inglesa. Rajah-Haji entra em
cena diversas vezes portando a mensagem da delegação, impaciente para ser atendida.
Entretanto, o momento de recebê-los é postergado por ordem do presidente: “GUZMÁN.Muéstrale a la delegación británica los pavorreales del patio y si se fastidian, explícales algo
sobre las tortugas de la pileta”167. A tensão entre os dois espaços (o encenado e o latente) se
intensifica a cada entrada de Rajah-Haji, com cada insistência e também com cada resposta,
com cada posposição do presidente:
GUZMÁN.- Llévalos al Salón Ayacucho y que firmen el libro de oro.
165
Tradução: “ANSELMO (A Damián).- Limpa as feridas de São Sebastião, Damián, e revisa as galhetas. Se
esforce”
166
Tradução: “ANSELMO.- (...) de salão em salão vamos chegar ao lavadeiro”
167
Tradução: “GUZMÁN.- Mostre a delegação britânica os pavões do pátio e se eles se chatearem, fale algo
sobre as tartarugas da piscina”.
142
RAJAH HAJI.- Se comportan de una manera impaciente, sobre todo porque una
guacamaya del patio le mordió un dedo al señor Mac Shelley.
GUZMÁN.- Al diablo. Hazlos pasar.168 (A.II)
Cabrujas, além da palavra, se vale do tom de diálogos, para significar o espaço.
Embora a entonação seja um aspecto na interpretação dos atores e da direção cênica, que a
sala distingue perfeitamente durante a representação da obra, o texto dramático não está isento
dela: as entonações podem ser percebidas também pelo leitor a partir do contexto dos
parlamentos, dos signos ortográficos e das marcações do autor. Guzmán e Arístides chamam
constantemente seus serventes, Rajah-Haji e Samotracia e, para isso, usam o tom alto, o que
permite considerar o espaço latente fora de cena. Como dissemos, o tom está indicado de
variadas formas. Conseguimos, a partir da simples marcação do autor, descrever a ação de
Guzmán quando solicita o seu assistente: “GUZMÁN (llama).- Rajah-Haji.”169 (A.II), após o
qual “Rajah-Haji acude”170 no momento. Sabemos que Rajah-Haji está entretendo os ingleses
nos arredores do salão onde Arístides e o presidente conversam. Na marcação “llama” está
contida uma possível entonação que, para que resulte verossímil e seja supostamente ouvida
por um Rajah-Haji ausente na plateia, deve se elevar além dos limites do cenário. Quando
Arístides, em repetidas ocasiões ao longo de todo o Primeiro ato, chama sua servente, o autor
reforça a marcação (chama) com signos exclamativos (¡!) que denunciam uma entonação
vigorosa: “ANSELMO (llama).- ¡Samotracia! ¡Samotracia López!” (A.I.). O mesmo acontece
quando o sacristão Damián, em resposta ao som da campainha que toca com insistência no
exterior da capela (espaço patente), grita para calmar os ânimos de quem o chama. Em seu
grito há um tom que a indicação de Cabrujas descreve com perfeição: “DAMIÁN (Portero).¡Va el clero...! ¡Viva el clero!”171 (P.II.). O mesmo método (criação do espaço cênico latente
mediante a entonação) é usado por Cabrujas no final do Segundo ato, logo antes do clímax da
progressão dramática. Os dois irmãos Lander discutem na plateia, enquanto que fora, no pátio
de honra, o resto dos personagens assistem a exibição dos fogos de artifício; mas, de repente,
Anselmo, muito alterado, chama a todos. É um chamado para trazê-los a cena, para fazê-los
entrar, isto é, fazê-los sair do fora latente para o dentro patente, testemunhando sua renúncia:
Anselmo comienza a despojarse de su traje de obispo.
168
Tradução: “GUZMÁN.- Leve-os ao Salão Ayacucho e que assinem o livro de ouro.
RAJAH-HAJI.- Se comportam de uma maneira impaciente, sobretudo, porque uma arara do pátio mordeu um
dedo do senhor Mac Shelley.
GUZMÁN.- Mande-os para o inferno.
169
Tradução: “GUZMÁN (chama).- Rajah-Haji.”
Tradução: “Rajah-Haji atende”
171
Tradução: DAMIÁN.- “Vai o clero! Viva o clero!”
170
143
ANSELMO (Grita).- ¡Damas y caballeros! ¡Rosamunda! ¡Señora de Lander!
¡Representantes superiores e imperiales! ¡La Santa Iglesia nativa invita a un
espectáculo reconfortante y piadoso!172 (A.II)
A potência e a decisão no tom do grito de Anselmo atraem o resto dos personagens de
volta ao cenário. No entanto, não queremos encerrar esta parte sem, antes, mencionar outra
entonação singular. Em parlamentos anteriores, durante o mesmo diálogo que provocou a
raiva de Anselmo, encontramos um caso (o único) de entonação exclamativa que une espaço
patente e latente, porém em sentido contrário: de fora para dentro. A irmã de Arístides, no
pátio de honra (espaço latente) e durante a exibição dos fogos de artifício, interrompe a
discussão entre os irmãos com um chamado que não deixa de ter algo de onírico:
ROSAMUNDA (A lo lejos entre murmullos y secas explosiones).- ¡Rosa plateada de
Viena! ¡Lirio encarnado del Jordán! ¿Dónde estás, Arístides de Macedonia?
ANSELMO (Después de una pausa).- ¿Dónde estás, Arístides de Macedonia?173
(A.II)
Signos do espaço corporal
O corpo do personagem ocupa um lugar no espaço do texto assim como o corpo do
ator ocupa um lugar no espaço da plateia. Ambos se deslocam em seus espaços, se
movimentam de certo jeito e, além disso, seus próprios corpos tem uma forma singular. Das
combinações destes elementos brotam significações espaciais. Qualquer marcação que
descreva o deslocamento de um personagem interfere no espaço. Quando no Primeiro ato
Cabrujas diz que “Arístides regresa al sillón tutelar”174 (A.I.) implica, em primeiro lugar, que
Arístides previamente tinha estado sentado e tinha se levantado de dita poltrona (não há
marcações prévias que indique tal fato), e, em segundo lugar, a posição corporal de Arístides,
(está em pé), e em terceiro lugar, uma certa distância espacial de Arístides em relação à
poltrona (pelo uso do verbo regressar).
Observemos os signos do espaço corporal que são mais dinâmicos. García Barrientos
(2007) chama tais signos de expressão, que mostram no corpo do personagem a ação mímica,
gestual ou de movimento. No teatro espanhol do Século de Ouro as didascálias referentes ao
espaço corporal eram muito incomuns, ficavam geralmente excluídas do texto dramático (com
a exceção das menções contidas nos diálogos). O mesmo acontece em grande parte do teatro
contemporâneo: as expressões e a gestualidade dos personagens devem ser intuídas, emergem
172
Tradução: “Anselmo começa a se despojar de seu traje de bispo.
ANSELMO (Grita).- ”Damas e cavaleiros! Rosamunda! Senhora de Lander! Representantes superiores e
imperiais! A Santa Igreja nativa convida a um espetáculo reconfortante e piedoso!”
173
Tradução: "ROSAMUNDA (Ao longe entre murmurios e secas explosões).- Rosa prateada de Viena! Lírio
encarnado do Jordão! Onde você está, Arístides da Macedônia?
ANSELMO (Depois de uma pausa).- Onde você está, Arístides da Macedônia"
174
Tradução: “Arístides volta na poltrona tutelar”
144
do contexto dramático e correspondem aos âmbitos da direção cênica e da interpretação dos
atores que o dramaturgo elude com total consciência. Cabrujas, ao contrário, as plasma em
grande quantidade e com muita precisão. Como Brecht, Shakespeare, Lope, Molière e
Calderón, que são algumas das influências dramáticas mais importantes de Cabrujas, não
abundam neste tipo de didascálias, nós atribuímos o uso abundante (quase hipertrófico) de
signos do espaço corporal, nas obras de Cabrujas, ao resultado de sua experiência como ator e
diretor. Para ilustrar esta singularidade dramática compilamos alguns fragmentos com as
didascálias corporais da primeira parte do Prólogo, que é a menor de todas as partes da obra.
Esta seleção de fragmentos, da que excluímos todos os diálogos, permite perceber como
faceta de Cabrujas-diretor invade o texto; é tão detalhado nas indicações que podemos seguir
o curso dos acontecimentos sem a necessidade de diálogos:
Marx y Engels, vestidos de Marx y Engels, reposan un largo tedio. Marx bebe un
generoso trago de vino portugués. Engels decide una siesta y cierra los ojos. Marx
retoma una deleitosa lectura del Popol-Vuh. Al paraje campestre y amable ingresan
Arístides Lander y su hermano Anselmo. Arístides señala una acacia convenida.
Arístides y Anselmo se sientan a la sombra de la frondosa acacia.
MARX (A Arístides y Anselmo).ARÍSTIDES (Cortés a Marx).MARX (Insiste risueño).- … (Alzando la voz).- … (Imperturbable).ANSELMO (A Marx).- en su grito emplea un tono que la acotación de Cabrujas
describe a la perfección
MARX (Asiente).Marx saluda con cierta efusividad agradecido y de inmediato retoma la lectura del
Popol-Vuh.
Ingresan al escenario, naturalistas, María Eugenia y la señora de Lozada.
Anselmo obedece e interrumpe el leve paso de María Eugenia y la tozudez de la
señora Lozada.
ANSELMO.- (Se vuelve hacia el rezagado e impaciente Arístides)
Arístides besa la mano de la mujer de Lozada, Marx suspende la lectura incaica y
destapa esperanzado un frasco repleto de col agria.
Anselmo describe una somera bendición. María Eugenia y la mujer de Lozada se
alejan.
Salen Arístides y Anselmo. Pausa. Engels despierta.
MARX (Levantándose).- (Canturrea mientras guarda el tarro de col agria y el
Popol-Vuh, en una cesta campestre)
Marx y Engels se alejan con la canción.175 (P.I)
175
Tradução: “Marx e Engels, vestidos de Marx e Engels, repousam um longo tédio. Marx bebe um generoso
gole de vinho português. Engels decide cochilar e fecha os olhos. Marx retoma uma deleitável leitura do PopolVuh. À paragem campestre e amável, ingressam Arístides Lander e seu irmão Anselmo. Arístides aponta para
uma acácia combinada.
Arístides e Anselmo sentam à sombra da frondosa acácia.
MARX (A Arístides e Anselmo).ARÍSTIDES (Cortês, a Marx).MARX (Insiste risonho).- … (Alçando a voz).- … (Imperturbável).ANSELMO (A Marx).MARX (Assente).Marx saúda com certa efusividade e agradecido e de imediato retoma a leitura do Popol-Vuh.
Ingressam no cenário, naturalistas, María Eugenia e a senhora de Lozada.
Anselmo obedece e interrompe o leve passo de María Eugenia e a teimosia da senhora de Lozada.
145
Salta de imediato aos olhos a concepção global da obra não apenas como um texto
dialogal senão como uma espécie de partitura orquestrada dos diferentes elementos da
representação cênica, incluindo as expressões e formas de interpretação. Cabrujas é tão
diretor que, sem perceber, trai a verossimilhança de sua própria obra de teatro realista quando,
como fica plasmado no fragmento anterior, em lugar de fazer com que María Eugenia e a
senhora de Lozada entrem na paragem amável e campestre as faz ingressar “no cenário”.
O autor caracteriza os personagens por seu desempenho no espaço: não à toa o fato
dele mostrar Marx e Engels repousando, comendo, lendo, cantando e dormindo. María
Eugenia e sua mãe caminham, mas é no modo com que o autor as faz caminhar que se
encontram suas feições: María Eugenia o faz “com passo leve” enquanto sua mãe “com
teimosia”. A descrição da gestualidade na estranha conversa entre Marx e os irmãos Lander que não se entendem porque Marx só fala alemão e eles espanhol!- é bastante detalhada. O
autor faz com que Marx (que no fim das contas fala uma língua diferente não só em relação
aos personagens, mas também em relação ao público) gesticule muito: “MARX (Insiste
risonho).- … (Alçando a voz) … (Imperturbável) ... (Assente). Marx saúda com certa
efusividade, agradecido e de imediato retoma a leitura do Popol-Vuh.” As indicações são tão
precisas que podemos entender a localização no espaço dos seis personagens e seria possível
desenhar, inclusive, o percurso de seus movimentos. Marx e Engels, num lado, repousam
deitados. Arístides e Anselmo entram, apontam para uma acácia e sentam em sua sombra,
perto de Engels e de Marx. María Eugenia e a senhora de Lozada ingressam no cenário e os
irmãos Lander as abordam, cortando seu passo. Conversam e María Eugenia e sua mãe se
afastam e saem de cena. Pouco depois, os irmãos Lander também saem de cena. Marx e
Engels recolhem seu piquenique e se afastam cantando. Tudo está descrito quase
narrativamente, ação por ação.
Cabrujas optou por um uso realista do espaço, de modo que indumentária dos
personagens e dos atores seja compatível à da moda de finais do século XIX. No fragmento
anterior podemos ler uma indicação que descreve “Marx y Engels, vestidos de Marx y Engels”
(P.I) A imagem de ambos, com relação à moda, é bastante semelhante, para não dizer
ANSELMO.- (Se vira para o ignorado e impaciente Arístides)
Arístides beija a mão da mulher de Lozada, Marx suspende a leitura incaica e destampa esperançando um
frasco repleto de chucrute.
Anselmo descreve uma superficial benção. María Eugenia e a mulher de Lozada se afastam.
Saem Arístides e Anselmo. Pausa. Engels acorda.
MARX (Se levantando).- (Cantarola enquanto guarda o pote de chucrute e o Popol-Vuh numa cesta campestre)
Marx y Engels se afastam com a música.”
146
idênticas: terno clássico, negro ou cinza, composto do paletó, da calça, da camisa branca com
gravata-borboleta e sapatos negros. Engels aparece em algumas imagens usando por cima do
terno um sobretudo. Não usam chapéu, luvas ou bengala, como ditava a moda romântica
luxuosa, mas sim bigodes e barbas grandes, como também era costume. Engels têm o cabelo
curto, penteado para trás; Marx, ao contrário, tem o cabelo mais comprido e enrolado (que se
confunde com sua barba) . A descrição destes personagens evidencia a típica aparência
burguesa vitoriana. Em seguida o autor passa a descrever, muito brevemente, María Eugenia e
sua mãe, com apenas um adjetivo: “naturalistas”. Isto significa (naturalistas em relação ao
contexto histórico e geográfico) que ambas respeitam a indumentária convencional de umas
damas da Venezuela republicana do século XIX: as imaginamos com vestidos longos
estilizados com aros a partir das da cintura em armações que descem até o chão (os pés não
aparecem), as mangas um pouco alongadas e, possivelmente, com um chapéu sobre o cabelo
preso.
O caráter da aparência é determinante na configuração do conflito que Anselmo tem
consigo mesmo: o figurino de clérigo e os hábitos de monsenhor, que o definem e que
definem o que ele faz, se convertem e uma carga para o personagem. O figurino é essencial no
clímax da progressão dramática: Anselmo arranca seus hábitos e os joga no chão. O hábito
implica um espaço ou conjunto de espaços (a igreja, a capela, o palácio arcebispal) assim
como uma vocação e uma autoridade. Vemos como, já no primeiro ato, Anselmo diz desejar
tirar a batina. No Segundo ato o faz:
ANSELMO.- ¡El representante de Su Santidad el Papa de Roma quiere pronunciar
un último discurso tan pronto logre desembarazarse de esta basura! (Continua
despojándose de las distintas piezas del traje) (...) Nunca aprendí el nombre de estas
malditas telas, pero cada una de ellas, según te explican en el seminario, casi siempre
a las dos y media de la tarde, cuando te atrapan las ensoñaciones, tiene un
significado normalmente doloroso, normalmente responsable. (...) Digamos entonces
que las deposito aquí, en este ámbito de la patria y la presencia de tanto fraude
incluido, desde luego, el orador. (...) (Arroja a los pies de Mac Shelley el crucifijo de
León X) (...) En cuanto al gorro, lamento haber olvidado su nombre original entre
tantas cosas que olvidé, pero declaro que hubo una cierta ambición de mi vida
depositada en esta frágil modestia. Ahora, espectáculo inefable, señores, oportunidad
histórica e irrepetible, me permito renunciar a ella y al título de eminencia que
adornó mi cabeza… (...) Lo arroja a los pies de María Eugenia. (...) como así mismo
a la refrescante sotana, siempre estival, calurosa en el pecho y según tradición
popular o murmullo de esquina, un tanto ninfesca a medida que desciende y resalta
las caderas. (...) Se despoja de la sotana. (...) (En dignidad de pantalón y simple
camisa).- ¡Concluimos, señor presidente! (Sonríe)176
176
Tradução: “ANSELMO. - O representante de Sua Santidade o Papa de Roma quer pronunciar um último
discurso para se livrar deste lixo! (Continua a se despojar das diferentes peças do traje) (...) Nunca aprendi o
nome destas malditas telas, mas cada uma delas, segundo te explicam no seminário, quase sempre às duas e meia
da tarde, quando nos sobrevém os sonhos , tem um significado normalmente doloroso, normalmente responsável.
(...) Digamos então que as deposito aqui, neste âmbito da pátria e na presença de tanto fraude incluindo, é claro,
147
Trata-se de um verdadeiro strip-tease em dimensão real e simbólica. Anselmo se
esvazia não só de sua indumentária, mas também de sua história, de seu cargo, de sua
ambição e de seu próprio caminho andado. É um despojo liberador. O figurino caracteriza o
personagem; portanto, quando Anselmo se livrou dele, conseguiu uma oportunidade de
mudar, uma chance de poder ser outro. Antes de seguir rumo a La Guaira, onde embarcaria
para Hamburgo, vemos Anselmo, pela última vez, vestido de civil e com flamantes bigodes.
O desejo de usar bigodes, de ser esse novo homem que poderia usá-los, longe da igreja, já
havido sido posto em palavras na boca do mesmo Anselmo no Primeiro ato, quando se referiu
a eles da mesma forma que o autor usa para descrevê-lo nas didascálias: “bigotes de veguero
suramericano”177. Veguero é quem cultiva a “vega”, o tabaco. Quer dizer, bigodes de
vaqueiro, de homem rude.
(Nota anedótica: Cabrujas usou bigodes até sua morte)
Signos do espaço sonoro
Tanto a música quanto os efeitos de som criam também um espaço sonoro. Cabrujas,
que tem usado até agora com exaustividade todos os tipos de signos criadores de espaço, não
exclui os auditivos.
Na primeira parte do prólogo, Arístides assobia um breve fragmento de Wagner. Ele Arístides- está apaixonado e assobia para evocar o momento e o lugar (a ópera) onde tinha
visto María Eugenia pela última vez, e de imediato acrescenta: “Nunca fue más hermosa la
obertura de Tanhäuser, como hace una semana en la Plaza de Capuchinos.”178 (P.I).
Também no final desta primeira parte do prólogo, ocorre o segundo momento musical.
Depois que Anselmo, Arístides, María Eugenia e sua mãe se retiram, Marx e Engels ficam a
sós. Engels acorda e Marx canta uma música.
MARX(Cantarola enquanto guarda o tarro de couve ágria e o Popol-Vuh numa
cesta campestre).Mime hies ein mürrisher Zwerg
in des Neides Zwang zog er mich auf,
das einst das Kind, wann kühn es erwuchs
einen Wurm ihm fällt’ im Wald
o orador. (...) (Joga aos pés de Mac Shelley o crucifixo de Leon X) (...) Em quanto ao chapéu, lamento ter
esquecido seu nome original entre tantas coisas que esqueci, mas declaro que houve certa ambição da minha vida
depositada nesta frágil modéstia. Agora, espetáculo inefável, senhores, oportunidade histórica que não se
repetirá, me permitem renunciar a ela e ao título de eminência que adornou a minha cabeça… (...) O joga nos pés
de María Eugênia. (...) a mesma coisa faço com a refrescante batina, sempre estival, calorosa no peito e, segundo
a tradição popular ou burburinho de esquina, um tanto ninfesca na medida em que desce e destaca o quadril. (...)
Se despoja da batina. (...) (Em dignidade de calça e simples camisa). - Concluímos, senhor Presidente! (Sorri)”
177
Tradução: “bigodes de vaqueiro sul americano”
178
Tradução: “Nunca foi mais formosa a abertura de Tanhäuser como há uma semana na Praça de Capuchinos.”
148
der lang schon hütet einem Hort.
Marx y Engels se afastam com a música. (P.I)
Como é evidente para o leitor do texto e para o público do espetáculo, a música é em
alemão. Marx e Engels são personagens totalmente desconectados do resto. Nem sequer na
breve conversação entre Marx e Arístides há compreensão de nenhum tipo. Marx e Engels
estão isolados do resto, mas presentes no começo e no final da obra, como se fechassem um
parêntese. A relevância desses dois personagens é menor no mundo da obra do que no do
autor. Ambos são, nesta obra, um capricho absoluto do autor (Cabrujas chegou definir o
teatro com essas mesmas palavras: capricho absoluto). O conteúdo semântico da letra da
música é ainda mais incoerente e não faz o menor sentido, como acontece com quase todo o
alemão destes personagens, salpicado de muitas onomatopeias. A continuação uma tradução
livre da música:
Un enano gruñón se llamaba Mime
me educó en la presión de los celos,
una vez un niño, que creció listo,
un gusano se le cayó en el bosque,
que desde hacía ya mucho vigilaba un huerto. 179
Em quanto aos efeitos sonoros, Cabrujas os usa em vários momentos e com diferentes
efeitos. Na segunda parte do Prólogo uma campainha toca no lado de fora da capela (é Maria
Eugenia, no espaço latente). O mesmo efeito é usado pelo dramaturgo na metade do Primeiro
ato quando Eloy interrompe, sem saber (Se escuchan golpes en el portón)180 a conversa entre
Arístides e seus irmãos. Outro efeito sonoro foi o canto do galo. Tradicionalmente tal efeito é
percebido como signo temporal, porém, neste caso, advogamos pela dimensão espacial que
causa no leitor urbano uma estranheza: não há galos na cidade, pelo menos não na cidade de
hoje. Outro efeito sonoro que cria um ambiente de estranheza, mas que corresponde às
excentricidades habituais do presidente Guzmán, é o som produzido pelo golpe de Raja-haji
no “gong polinésio”.
Queremos, por último, chamar a atenção para um efeito sonoro que se repete em El
día que me quieras e também em duas ocasiões em El americano ilustrado. Consideramos
que tal efeito é caro para o dramaturgo pelos contextos dramáticos em que os usa: são os sons
de explosões de foguetes e fogos artificiais. Quando o fracasso de um personagem se expõe
frente ao público e ao leitor, o dramaturgo opta por usar o efeito sonoro de fogos e foguetes
(latentes) que contrastam com a derrota patente dos personagens. Durante a leitura da carta
179
Tradução (da tradução): “Um anão resmungão se chamava Mime / educou-me na pressão dos ciúmes, / uma
vez, uma criança cresceu pronta, / perdeu um verme no bosque, / que há muito tempo vigiava uma horta.”
180
Tradução: “Escutam-se golpes no portão”
149
patética de Arístides, no Primeiro ato, “A lo lejos se escuchan cohetes y jolgorios
municipales”181 e na medida em que o sentimento de fracasso se faz mais evidente e o
conteúdo da carta mais triste “El estruendo de los cohetes aumenta”182 (A.I.).
Graus de (re)presentação
O espaço patente sempre entra em contraste com os espaços latentes e ausentes que os
personagens evocam durante a obra toda. Os espaços invisíveis são os lugares de suas
frustrações e de seus desejos, quer dizer, os lugares do conflito. As relações entre os espaços
visíveis e invisíveis são usadas por Cabrujas para criar o ambiente (às vezes, também o
significado) e para ilustrar os conflitos (internos) dos irmãos Lander. Até aqui, estávamos
descrevendo um excelente uso de contrastes espaciais. Contudo, se continuarmos observando
as singularidades de algumas referências espaciais contidas nos diálogos dos personagens e as
tratarmos de entender em seu contexto dialogal e temático, perceberemos que sua função,
mais do que expressiva ou informativa, mais do que construtora de sentido, é, sobretudo,
fática, pragmática, orientada à ação (mas de forma elusiva, quase eufemística). Por exemplo,
quando Anselmo consegue que María Eugenia o visite na capela (espaço patente), faz a
desleal proposta terem uma aventura amorosa juntos a partir da descrição um espaço ausente
(um hotel) sem chegar a dizer explicitamente suas intenções. A proposta é tão obscura, mas,
ao mesmo tempo tão explícita (se menciona um hotel), tão fora de lugar (estão numa capela,
Anselmo é um padre) e tão inesperada (é a segunda vez que se veem, ela é a noiva de seu
irmão) que ao invés de uma resposta imediata de María Eugenia, sobrevém um silêncio.
ANSELMO.- Hay un hotel en Trinidad. El nombre es dinástico… “Regencia”… tal
vez en inglés, quien sabe si más irreal. Una habitación da al mar, y prescindiendo del
olor a curry, yo diría que es un lugar quieto, discretamente feliz, donde un hombre
puede ser cualquier cosa, cualquier voluntad. Lo conocí adolescente y se quedó en
mi memoria, por si acaso un día deseaba cambiar de vida. Ahora he vuelto a pensar
en esa ventana, probablemente porque te he imaginado junto a ella.
MARÍA EUGENIA (Formal).- Gracias.
ANSELMO.- Casi siempre a la izquierda.
MARÍA EUGENIA (Más aún).- Me alegro.183 (P.II.)
181
Tradução: “Ao longe se escutam foguetes e festanças municipais”
Tradução: “O estrondo dos foguetes aumenta”
183
Tradução: “ANSELMO.- Há um hotel em Trindade. O nome é dinástico… ‘Regência’... tal vez em inglês,
quem sabe se mais irreal. Uma habitação que dá ao mar, e ignorando o cheiro de curry, eu diria que é um lugar
quieto, discretamente feliz, onde um homem pode ser qualquer coisa, qualquer vontade. O conheci de
adolescente e ficou na minha memoria, caso um dia desejasse mudar de vida. Agora tenho voltado a pensar nessa
janela, provavelmente porque tenho imaginado você junto dela.”
MARÍA EUGENIA (Formal).- obrigada.
ANSELMO.- Quase sempre à esquerda.
MARÍA EUGENIA (Mais ainda).- Fico contente.
182
150
O impacto da proposta, além da violação dos laços familiares, reside no marco
espacial em que é enunciada: numa capela e por um padre. Teoricamente, a capela é um
recinto sagrado presidido por seu sacerdote, representante da santa igreja e por extensão do
próprio Deus que salva do pecado. Entretanto, é dentro deste espaço que Anselmo enuncia seu
pecado em potência. As pessoas vão à igreja para rezar, se confessar, falar com Deus e se
conectar com o lado místico, espiritual, da alma humana com o auxílio do padre. Porém, este
padre é um padre diferente. Ele quer ir num hotel com sua cunhada. O hotel é um lugar de
desejo, de satisfação, de entrega e de prazer. É sinistro e bizarro. No entanto, seria bem menos
chocante se acontecesse o contrário: que dentro do espaço de um quarto de hotel um casal
falasse sobre ir à igreja.
*
A primeira metade do Primeiro ato está dominada por um ambiente de suspense. No
espaço latente (pátio dos pavões, piscina das torturas) está a delegação britânica, que espera
ser atendida, e no espaço patente (salão da casa de governo) está o presidente que posterga a
reunião. É Rajah-Haji quem conecta os dois espaços, patente e latente, mediante o
desempenho de seu papel de assistente do presidente, anfitrião da delegação inglesa, executor
de manobras distrativas (latente) e reiterado porta-voz tanto da mensagem de impaciência do
embaixador inglês ao presidente (patente) quanto das respostas dilatórias deste. A cena se
constrói atravessando uma luta de forças, a luta pelo espaço.
*
No final do segundo ato, enquanto os irmãos Lander se confrontam em sua última e
definitiva conversa, o autor faz estourar fogos de artifício. O som da explosões invade a cena
e se confunde com o som das vozes externas de María Eugenia e Rosamunda. Dentro, no
espaço patente, Arístides e Anselmo discutem, enquanto que fora, no espaço latente, o resto
dos personagens contemplam a exibição de fogos e comemoram. Estamos na cena 24 do
segundo ato, onde ocorre o maior cruzamento de relações espaciais de toda obra que se
somam a outros dois, já mencionados, espaços, de caráter ausente, contidos nos diálogos dos
personagens: Londres e a fazenda familiar . Londres é o espaço ausente ao que se destina
Arístides, possibilitado pelo cargo de ministro. A ligação de ambos os espaços é evidente para
Arístides e sua mera enunciação associativa desculpa e justifica (ação com palavras) a
afirmação contida na pergunta de seu irmão: “¿vas a aceptar, entonces?”
184
com a resposta
“ARÍSTIDES.- Quería ser ministro, Ivanhoe. Lo descubrí al entrar en este salón. No se trata
184
Tradução: “você vai aceitar, então?”
151
de una vocación extraordinaria. Tal vez sea la mazorca del cerdo, como decía Justo Lander,
pero Londres vale un eructo”185. Anselmo não cessa de enfrentar Arístides até que finalmente
confessa seu fracasso. Mais uma vez, Cabrujas recorre à estratégia do contraste espacial: no
salão de governo Arístides se lembra da velha fazenda de sua infância, quando era uma
criança cheia de ilusões e brincava com Anselmo de Cristo e Centurião. No jogo, Arístides
sempre era Cristo, o filho de Deus, o maior de todos. A fazenda, como espaço ausente dos
sonhos de infância, entra em conflito com o salão patente em que Arístides se sente um
derrotado. No relato que Arístides faz do jogo de Cristo e Centurião, há uma quinta referência
espacial de caráter bíblico: o “Getsemaní”, que era como Anselmo chamava “por ganas de
inventar” a ladeira de laranjeiras onde brincava de representar a tortura: este é na verdade um
espaço dentro do espaço.
Cinco espaços se relacionam nesta cena: a lembrança da fazenda (ausente), onde os
irmãos Lander brincavam de Cristo e Centurião no “Getsemaní” (espaço ausente dentro do
espaço ausente), ativa em Arístides o sentimento de derrota que o leva a se desculpar com
Anselmo, com quem discute num salão da casa de governo (patente) mediante a aceitação do
cargo de ministro -com a respectiva missão diplomática a Londres (ausente)- enquanto o resto
dos personagens contempla e comenta a exibição de fogos artificiais no pátio de honra
(latente).
Espaço e significado
A ação de El americano ilustrado se desenvolve, como vimos ao princípio, em cinco
espaços cênicos distintos que são o passeio campestre (P.I), a capela (P.II.), a casa de
Arístides (A.I y E.II.), a casa de governo (A.II) e o palácio arcebispal (E.I.). Destes cinco
espaços cênicos, o único que se repete é o pátio da sala de Arístides, tanto no Primeiro ato
quanto no final da obra, na segunda parte do Epílogo. Embora sejam lugares diferentes e haja
uma brecha temporal de quinze anos que os distância, consideramos equivalentes em
significação o “ângulo votivo na capela de Nossa senhora do Perpétuo Socorro” da segunda
parte do prólogo e o “salão votivo no palácio Arcebispal” da primeira parte do epílogo. Estes
são os espaços do religioso, do sagrado; são os lugares onde Anselmo atua como eclesiástico,
primeiro como padre e depois como bispo. Feita esta consideração, podemos reduzir os
espaços cénicos a quatro apenas. Estes quatro espaços são significativos e o autor os escolheu
185
Tradução: “ARISTIDES.- Queria ser ministro, Ivanhoe. Descobri isso assim que entrei neste salão. Não se
trata de uma vocação extraordinária. Tal vez seja a maçaroca de porco, como dizia Justo Lander, mas Londres
vale um arroto.”
152
com uma intencionalidade: demarcar o conflito entre a vida íntima e a vida pública, tanto de
Arístides quanto de Anselmo Lander.
Dois dos espaços cênicos se conectam a Arístides Lander: o primeiro é sua casa (A.II.
e E.II.) e o segundo é a casa de governo (A.II.). A casa de Arístides é o lugar de sua vida
íntima, conjugal, mas, estranhamente, quando se apresenta pela primeira vez, o que vemos é
uma reunião laboral, na que Arístides discute com Eloy alguns assuntos de protocolo.
Misturam-se, desse forma, trabalho e vida íntima. Ademais, não tardamos em descobrir que,
para Arístides, a casa representa o testemunho de seu fracasso, de sua derrota através do
tempo. Um parlamento de Arístides vincula derrota e passagem de tempo ao espaço da casa
(há referência a móveis patentes e árvores latentes), quando explica a María Eugenia que a
carta:
ARÍSTIDES.- La escribí y me la dirigí a mí mismo, un día como hoy, hace quince
años. Era el mismo patio y el mismo sillón y el mismo limonero y el mismo
granado. Era yo y olía como yo, como lana, como zapato, y había un asado y se olían
los cohetes… Era yo…186 (I.6)
Espaço e tempo se misturam neste fragmento, assim como em tantos outros da obra. O
espaço cênico da casa de governo representa, por sua vez, o desejo de Arístides. (“Queria ser
ministro, Ivanhoe. Descobri isso assim que entrei entrar neste salão” (A.II.). A passagem de
Arístides de sua casa à casa de governo significa a passagem da vida privada à vida pública;
mais do que salto, um pulo aleatório, alimentado pelo poder da ambição. Na casa de governo,
Arístides se reúne com o presidente Guzmán, aceita o cargo de ministro e, imediatamente
depois, se reúne com a delegação inglesa. Cabrujas, no entanto, consegue misturar a vida
pública e íntima de Arístides fazendo com que os membros de sua família invadam, para
continuar comemorando seu aniversário, a casa de governo durante a reunião com a
delegação inglesa, que se confunde, entre taças de champanhe, brindes e traduções
simultâneas, com o aniversário. A situação é hilariante. Em algum momento dessa confusão, o
embaixador inglês pergunta a seu tradutor trinitário:
MAC SHELLEY (A parte, a Perret).- Good Heavens! What’s going on?
PERRET (Balbucea).- They are having a party. It seems and I’m afraid they have
invited some important people.
MAC SHELLEY (Al perplejo Perret).- Would this means we should end our
dialogue?187
186
Tradução: “ARÍSTIDES.- A escrevi e a dirigi a mim mesmo, um dia como hoje, faz quinze anos. Era o
mesmo pátio e a mesma poltrona e o mesmo limoeiro e a mesma romãzeira. Era eu e cheirava como eu, como lã,
como sapato, e tinha um assado e se escutavam foguetes… era eu...”
187
Tradução: “MAC SHELLEY (A parte, a Perret).- Meu Deus! O que está acontecendo?
PERRET (Balbucia).- Estão dando uma festa. Parece e eu temo que convidaram gente importante.
MAC SHELLEY (Ao perplexo Perret).- Significa que devemos encerrar o nosso diálogo?”
153
É por acaso uma casa de governo um lugar apropriado para comemorar um
aniversário? Evidentemente, há um problema de invasão de espaço ou de discordância entre
as expectativas acordes ao marco espacial de uma casa de governo e os bizarros
acontecimentos desenrolados: a interrupção de uma reunião econômica de importância
internacional para comemorar a festa de aniversário familiar de um escuro funcionário da
administração pública. O trabalho, a ambição, a responsabilidade, a dimensão pública de
Arístides, tudo se vê diminuído e eclipsado pela dimensão privada de sua vida.
Dois espaços cênicos se conectam ao personagem Anselmo e dão lugar (literalmente)
a seu conflito: a igreja (P.II e E.I.) e o passeio campestre (P.I.). Com simetria, Cabrujas atribui
dois espaços cênicos a Anselmo e outros dois a Arístides. Assim como para Arístides há um
conflito entre dois espaços (o espaço do fracasso e o espaço do desejo), o mesmo acontece
com Anselmo: seu conflito principal, que é sua crise espiritual e vocacional relacionada ao
amor blasfemo e contraditório por sua cunhada, é ilustrado pelo contraste entre o espaço de
seu desejo (o passeio campestre) e o espaço do fracasso (a igreja).
A igreja, forma simplificada de fundir capela e palácio arcebispal, é (são) o lugar do
conflito e do fracasso, para Anselmo Lander. O fracasso se vincula ao espaço religioso,
embora não se trate de um fracasso profissional, já que Anselmo, em termos de sucesso,
ostenta uma carreira religiosa muito boa (na elipse de quinze anos que tem lugar entre o
prólogo e o primeiro ato vemos desaparecer Anselmo padre e reaparecer bispo). O fracasso é
muito mais complexo e profundo e toca o aspecto mais espiritual do ofício religioso, aspecto
que o diferencia de muitos outros ofícios, um aspecto invisível, incomensurável, de certa
forma indefinível, mas absolutamente necessário, que é a fé. A atitude de Anselmo com
relação à seu espaço (que é o espaço do sagrado) é uma atitude rebelde, de descrença e
desengano. Na capela (P.II) o vemos lendo pornografia junto ao sacristão e logo depois o
vemos fazer uma proposta adúltera à sua flamante cunhada. O conflito entre as esferas pública
e privada da vida de Anselmo é muito grande porque ele, como padre católico, não deve ter
uma vida privada como tal, sua vida deve ser totalmente pública, entregada ao serviço da
religião, do senhor e dos fiéis. O sucesso na vida pública de Anselmo (alcançou título de
bispo) não compensa o conflito de sua vida privada fracassada (amor não resolvido e
impossível por María Eugenia).
Os espaços cênicos que Cabrujas utiliza para o desenvolvimento da intriga de El
americano ilustrado são altamente significativos e sua mera sucessão deixa a marca da tensão
entre os espaços de conflito e de desejo dos personagens protagonistas. Esta tensão é uma
tensão invasiva (por exemplo, o desejo gerado no espaço do passeio campestre invade o
154
espaço da capela, gerando um conflito). Vemos uma espécie de simetria de espaços cênicos
designados equitativamente aos dois irmãos Lander. Desenhamos um simples esquema que
resume estas relações:
(P.I) Paragem campestre ---------------------> espaço do desejo (de Anselmo) / esfera privada
(P.II. e E.I.) Capela, palácio arcebispal ----> espaço do conflito (de Anselmo) / esfera pública
(A.I e E.II) Casa Arístides ------------------> espaço do conflito (de Arístides) / esfera privada
(A.II.) Casa de governo ---------------------> espaço do desejo (de Arístides) / esfera pública
CONCLUSÃO
A crítica, o pensamento estruturado, corre sempre o risco de dar aos textos sentido
demais, de tentar classificar, definir e explicar demais o que na arte simplesmente é, sem
necessidade de interpretações. Mais ainda na crítica contemporânea y específicamente na
crítica teatral atual, numa época em que temos deixado de acreditar em morais, em unidades
de sentido. E contudo, isso tenta fazer esta disertação: juntar, como um quebra-cabeça, as
distintas peças apanhadas: literatura, política, história e cultura.
El día que me quieras e El americano ilustrado não são, é claro, análogas ao contexto
de Cabrujas. São criações artísticas e como toda arte, são arbitrárias, belas e, como diria
Wilde, totalmente inúteis. Sua intenção não é “figurar o mundo, mas responder á sua presença
real por uma igual presença verbal, por uma densidade equivalente; ao mesmo tempo
polissêmica e insignificante”. (RYNGAERT, 1998, p.4) Não é, a obra dramática, uma
imitação da realidade, senão uma construção da realidade, uma versão verbal da realidade.
Cabrujas cria universos dramáticos, independentes uns de outros, em cada obra. Mas as duas
obras analisadas comparten um elemento muito importante em comum que é o motivo
subjazente do fracasso.
Cabrujas adhere ao grupo humano da esquerda venezuelana, especificamente à
intelectualidade de esquerda, que durante a década dos setenta sofre um desencanto com a
derrota das guerrilhas armadas e com a restituição do PCV al jogo do pacto democrático
liberal/petroleiro. O motivo do fracasso pode se explicar como a reação conceitual e artística
de Cabrujas por melhorar as possibilidades de supervivência de seu grupo social por meio da
estratégia da confissão. Confissao do fracasso e da falsidade, da pose, do engano e o autoengano. Confessam Pío e Anselmo e se liberam de se mesmos e da falsidade. Agora bem, a
155
confissão de Cabrujas e de seus personagens foi muito polêmica dentro do campo cultural
venezuelano de então. Mas Cabrujas aguentava as críticas e respondia. Desde sua hibridez,
estigmatizado por escrever para televisão, atacado e desprestigiado, chamado de “impuro” por
poetas, Cabrujas contra ataca, argumenta que é indigno e inconseqüênte ser um intelectual de
esquerda e viver do Estado capitalista e petroleiro, milhonário e rentista, mantido pelo
inimigo. Quando, em 1986, ou seja, no mesmo ano da estréia de El americano ilustrado,
Arráiz Lucca pergunta numa entrevista, ¿A qué escapa trabajando tanto?, Cabrujas diz que
escapa:
A ser un intelectual. A ser ese ser indefenso, perplejo, atónito y confundido. A mí
me aterra, lo confieso hondamente, ser un intelectual. Ser ese tipo que se cree un
cuento en lugar en un lugar donde nadie más se cree ese cuento, ese tipo indefenso
que vive de la caridad, que los políticos le sueltan una migajita para que ese pobre
hombre coma, para que adorne. Para mí, ser un intelectual es echar vaina, es la
imagen del francotirador y como no tengo partido y tengo 48 años, no me importa
tanto la vida. Disparo más porque conservo menos. 188 (2003, p.177)
Cabrujas responde en suas obras ao seu grupo social, reage à tensão que sobre ambos
exerce o entorno (político, ideológico) da Venezuela saudita. E contudo, suas obras são muito
mais do que isso: são arte, poesia e sublimidade indecível. “O teatro”, diz Ryngaert, “repousa,
desde sempre, sobre o jogo entre o que está escondido e o que é mostrado, sobre o risco da
obscuridade que de repente faz sentido.” (1998, p.5). Diziamos que dizia Wilde que toda arte
é inútil, porém, El día que me quieras e El americano ilustrado, consiguiram quando foram
estreiadas e vistas, comover uma sociedad, obrigá-la sentar para pensar em sua derrota
histórica, em seu fracasso. E no nosso caso particular, além de nos comover, de nos sacodir
como público, nos tem feito pesquisar, interpretar e refletir sobre o fracasso.
Refletir sobre o fracasso histórico, nacional, familiar e pessoal tem se mostrado como
um projeto paradoxalmente feliz. Não é segredo que o fracasso assusta. O melhor jeito de lhe
perder o medo a algo é o conhecendo. O fracasso, antes que nada, não e um estado absoluto.
Como o estrês, como o amor, como a procura pela felicidade, como a inveja, pode ser um
estado relativo. (Como acontece com os dois mendigos. Dois mendigos coincidem sob um
portal seco numa noite de chuva e passam a noite em cúmplice companhia. Se passam uma
garrafinha coberta por uma bolsa de papel. Somos uns fracassados, diz o mais gordo. E conta
188
Tradução: “De que escapa trabalhando tanto?
De ser um intelectual. De ser esse ser indefenso, perplexo, atónito e confundido. Eu sinto terror, o confesso
profundamente, de ser um intelectual. Ser esse tipo que acredita num conto num lugar onde mais ninguém
acredita acredita nesse conto, esse tipo que vive da caridade, que os políticos le dão uma migalhinha para que
esse pobre homem coma, para que enfeite. Para mim, ser um intelectual é encher o saco, é a imagem do
francotirador e como não tenho partido e tenho 48 anos, não me importa tanto a vida. Disparo mais porque
conservo menos.”
156
a história de sua vida. Teve uma empresa, casa, carro, família e agora está nas ruas. Eu, disse
o mais magro depois de beber um gole seco, não sou nenhum fracassado. Tenho o que sempre
desejei: liberdade e tempo, disse e devolveu a garrafa ao mendigo fracassado com um sorriso
de três dentes na bouca, antes de concluir: eu sou bem sucedido). Não é o mesmo assumir o
fracasso como Anselmo que como Arístides, como Pío ou como María Luisa. Esta dissertação
(qualquer texto, na verdade) é o resultado de uma batalha entre o autor e o fracasso
(onipresente) por se apoderar da página em branco assim como da página escrita.
Queremos fechar este texto com um fragmento literário. Advertimos: vai ser uma
citação extensa. E contudo, consideramos que se trata de um fragmento textual que, em forma
corta e sintética, contém não uma ideia, nem um conceito, nem uma frase brillhante senão
uma atmosfera, uma sensação, uma emoção que se asemelha muito ao efeito que produziu em
nós como espectadores a apreciação do último teatro de Cabrujas e a impressão frente ao
motivo do fracasso. No fragmento que vamos citar está contenido de maneira poética e
metafórica o peso do fracasso humano, que é elevado de forma quase mística, a sabiduria de
espíritu. A referência provém de um dos últimos capítulos do romance El país de la Canela de
William Ospina, que narra literariamente as viagens amazónicas do século XVI. O fragmento
que aqui traemos narra, desde a perspectiva de um jovem subordinado, a chegada (demorada,
difícil) da expedição de Hernando Pizarro no templo de Pachacámac, que anelava encontrar
ouro e apenas encontrou -como Cabrujas, como Arístides, como Anselmo e como Pío- o
próprio fracasso:
(...) Con todo, gracias a su obstinación, finalmente llegaron a la entrada de la ciudad.
Vieron allí una puerta y dos porteros en ella. Éstos les recordaron que ese era el
principal santuario del reino y el adoratorio de un dios poderoso, y les pidieron
detenerse a la entrada pues sólo los incas podían pasar hacia el espacio sagrado.
Pizarro respondió que había venido desde muy lejos para ver al dios, y que no se
detendría ahora. Entraron a una región de pasillos y nuevas puertas y escaleras de
piedra de caracol que daban a un nuevo portal.
Allí otros guardias les dijeron que no podían ir adelante, y que si tenían
algún mensaje para el dios, los sacerdotes se lo llevarían. A ambos guardianes les
faltaba el dedo meñique de la mano derecha, y Pizarro no dejó de advertirlo. Una vez
más les dijo que no tenía mensaje alguno sino que quería verlo personalmente, y
siguió con sus hombres adelante hasta llegar a la cumbre del adoratorio. Había tres o
cuatro cercas ascendentes en forma de espiral que a los viajeros les parecieron más a
propósito para una fortaleza militar que para un templo, y después un patio pequeño
con postes guarnecidos de oro y plata y una serie de ramadas con adornos y telas
ricas.
Les produjo fatiga la sensación de que siempre faltaba un espacio para llegar,
y acrecentó la expectativa del tesoro que estaría al final de tantas antesalas. Pasado
ese laberinto de puertas y pasadizos y escaleras se hallaron ante la bóveda central del
santuario. Y vieron que al final de un último pasillo por el que sólo cabía un hombre,
había una puerta extrañísima, labrada con muchos materiales distintos, con cristales
y turquesas, con corales y conchas tornasoladas. Todos estuvieron de acuerdo con
que era la puerta más extraña y más incomprensible que hubieran visto, y no les
dejó la impresión de riqueza sino de un hecho inexplicable y más bien desagradable.
157
Los guardias indios no se atrevían a tocarla y tuvo que ser un sacerdote de
los que iba con Hernando desde Cajamarca quien finalmente la empujó para darles
acceso a la gruta central. Era una cueva estrecha y tosca, de piedra negra sin pulir, y
en su interior todo era oscuridad y fetidez. Tuvieron que encender una antorcha para
ver rebrillar en el suelo de tierra unos cuantos objetos de oro y unos cristales. Y a su
luz vieron que en la cueva no había más que un leño tosco clavado en la tierra, y
sobre él una figura de madera con forma vagamente humana, mal tallada y mal
moldeada, que producía temor y repulsión. La gruta presidida por esa tosca divinidad
era la cosa más sombría y más desoladora que pudiera verse, y lo era mucho más por
todas las fatigas que había costado. Encontrarla de pronto en cualquier lugar abierto
no produciría jamás el efecto de desaliento y de frustración que causaba después de
tan minuciosas y desesperantes demoras. Y nada preparaba tanto la frustración
como la extraña y preciosa puerta que permitía ingresar al nicho. Era como ponerle
una puerta de oro a un antro detestable, como adornar con todos los atributos de la
grandeza y del misterio la boca de un pozo de desperdicios, como poner una corona
de gemas sobre un ser repulsivo y deforme.
Nadie supo describir con precisión el malestar que les produjo aquel
hallazgo, pero mi amigo Teofrastus diría que ese malestar bien podía ser una de las
formas más extrañas del contacto con la divinidad. Por supuesto: ninguno de
aquellos viajeros lo pensó siquiera, ni supo darles nombre a los sentimientos que el
santuario de Pachacámac producía, porque su esperanza era apenas encontrar un
tesoro de metal o de cristales, no asir una experiencia de la carne en contacto con la
sustancia primitiva del mundo. Pero yo muchas veces me he dicho que el destino
abunda en esas experiencias en que se entra por puertas magníficas a vacíos
horrendos, en que empiezan con grandes palabras unos silencios indescifrables, y
creo que los incas guardaban en ese santuario algo indecible. Una divinidad secreta
hecha de espera y de ansiedad, de expectativa y de frustración, de ambición y de
desazonado fracaso, una divinidad que no estaba en el final del camino sino en cada
uno de sus pasos, tejida de sensaciones y de pensamientos, de búsquedas precisas y
de hallazgos borrosos.
Lo que Hernando Pizarro no supo nunca es que la imagen que hallaron en el
templo de Pachacámac estaba allí en reemplazo de otra que era de piedra negra
rodeada de incontables mazorcas de oro, pero que estaba prohibido mirar siquiera. El
santuario fue concebido para que hasta la frustración de hallar al dios fuera falsa,
para que su malestar fuera apenas la réplica de otro malestar, porque este dios venía
de la noche anterior al origen, y estaba en ese sitio antes del templo mismo, antes de
las horas que precedieron a la víspera de la creación.
Uno cree saber lo que busca, pero sólo al final, cuando lo encuentra,
comprende realmente qué andaba buscando. Y bien podría ser que lo que rige el
destino del hombre no sea Cristo ni Júpiter ni Alá ni Moloch sino Pachacámac, el
dios de los avances hacia ninguna parte, el dios de la sabiduría que llega un día
después del fracaso189 (2009, p.257)
189
Tradução: “(...) Contudo, graças à sua obstinação, finalmente chegaram na entrada da cidade. Viram lá uma
porta e dois porteiros. Estes lhes lembraram de que esse era o principal santuário do reino e o lugar de adoração
de um deus poderoso, e lhes pediram se retirassem da entrada pois só os incas podiam passar para o espaço
sagrado. Pizarro respondeu que tinha vindo de muito longe para ver o deus, e que não se deteria agora. Entraram
em uma região de corredores e novas portas e escadas de pedra de caracol que davam para um novo portal.
Lá, outros guardas lhes disseram que não poderiam seguir em frente, e que se tivessem alguma mensagem para o
deus, os sacerdotes a levariam. A ambos guardiões lhes faltava o dedo mindinho da mão direita, e Pizarro não
deixou de o advertir. Mais uma vez disse que não tinha mensagem alguma, apenas que queria vê-lo
pessoalmente, e seguiu enfrente com seus homens até chegar no topo do adoratório. Havia três ou quatro cercas
ascendentes em forma de espiral, que os viajantes acharam mais de propósito para uma fortaleza militar do que
para um templo, e depois um pátio pequeno com postes guarnecidos de ouro e prata e uma série de enramadas
com enfeites e telas ricas.
Produziu-lhes fatiga a sensação de que sempre faltava um espaço para chegar, e aumentou a expectativa do
tesouro que estaria no final de tantas antessalas. Passado esse labirinto de portas, corredores e escadas chegaram
à abóbada central do santuário. Viram que no final de um último corredor, com espaço para um homem, havia
uma porta estranhíssima, trabalhada com diferentes materiais, com cristais e turquesas, com corais e conchas
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furta-cor. Todos concordaram que era a porta mais esquisita e mais incompreensível que haviam visto, porém
não ficaram com uma impressão de riqueza, mas com uma sensação inexplicável e desagradável.
Os guardas índios não se atreviam a tocar nela e foi necessário que um sacerdote que acompanhava Hernando,
desde Cajamarca, empurrasse a porta para que tivessem acesso à gruta central. Era uma caverna estreita e tosca,
de pedra negra sem polimento, e no seu interior tudo era escuridão e fedor. Tiveram que ascender uma tocha para
ver brilhar no chão de terra uns quantos objetos de ouro e uns cristais. E viram que na caverna não havia nada
além de um lenho tosco cravado na terra, e sobre ele uma figura de madeira com forma vagamente humana, mal
talhada e mal moldada, que produzia temor e repulsão. A gruta presidida por essa tosca divindade era a coisa
mais sombria e mais desoladora que se pudesse ver, e o era muito mais por todas as fadigas que tinha passado.
Encontrá-la, de repente, em qualquer lugar aberto não produziria jamais o efeito de desalento e de frustração que
causava depois de tão minuciosas e desesperantes demoras. E nada preparava tanto a frustração quanto a estranha
e preciosa porta que permitia ingressar no nicho. Era como pôr uma porta de ouro num antro detestável, como
enfeitar com todos os atributos da grandeza e do mistério a boca de um poço de desperdiço, como pôr uma
gravata de gemas sobre um ser repulsivo e deforme.
Ninguém soube descrever com precisão o mal-estar que produziu aquele achado, mas meu amigo Teofrastus diria
que esse mal-estar bem podia ser uma das formas mais estranhas do contato com a divindade. É claro: nenhum
daqueles viajantes o pensou sequer, nem soube dar nome aos sentimentos que o santuário de Pachacámac
produzia, porque sua esperança era apenas encontrar um tesouro de metal ou cristais, não ter uma experiência
carnal em contato com a substância primitiva do mundo. Eu, porém, muitas vezes tenho dito que o destino
abunda nessas experiências em que se entra por portas magníficas em vazios horrendos, em que começam com
grandes palavras uns silêncios indecifráveis, e acredito que os incas guardavam nesse santuário algo
inimaginável. Uma divindade secreta feita de espera e de ansiedade, de expectativa e de frustração, de ambição e
de desassossegado fracasso, uma divindade que não estava no final do caminho, mas em cada um de seus passos,
tecida de sensações e de pensamentos, de procuras precisas e de achados turvos.
O que Hernando Pizarro nunca soube é que a imagem que acharam no templo de Pachacámac estava lá
substituindo a pedra negra coberta por incontáveis espigas de ouro, que não podia, se quer, ser vista. O santuário
foi concebido para que até a frustração de achar o deus fosse falsa, para que seu mal-estar fosse apenas a réplica
de outro mal-estar, porque este deus vinha da noite anterior à origem, e estava nesse lugar antes mesmo do
templo, antes das horas que precederam à véspera da criação.
O homem acredita saber o que procura, mas só no final, quando o encontra, compreende realmente o que andava
procurando. E bem poderia ser que o que rege o destino do homem não seja Cristo, nem Júpiter nem Alá nem
Moloch, mas Pachacámac, o deus dos avanços para nenhuma parte, o deus da sabedoria que chega um dia depois
do fracasso”
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