afraudizio1 - Jornal de Letras on-line
Transcrição
afraudizio1 - Jornal de Letras on-line
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA FACULDADE DE FILOSOFIA DOM AURELIANO MATOS CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM METODOLOGIA DE ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA AFRAUDÍZIO AZEVEDO SOARES Moralidade e Sexualidade: a interdição dos autores Naturalistas nos livros Didáticos de Literatura Brasileira Limoeiro do Norte - Ceará 2008 2 UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ AFRAUDÍZIO AZEVEDO SOARES Moralidade e Sexualidade: a interdição dos autores Naturalistas nos livros Didáticos de Literatura Brasileira Monografia apresentada ao Curso de Especialização no Ensino em Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia Dom Aureliano Matos - FAFIDAM da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial para obtenção do grau de especialista no Ensino em Língua Portuguesa. Orientadora: Profa. Ms. Ana Maria Remígio Osterne Limoeiro do Norte – Ce 2008 3 Universidade Estadual do Ceará Especialização no Ensino em Língua Portuguesa Título do Trabalho: Moralidade e Sexualidade: a interdição dos autores Naturalistas nos livros Didáticos de Literatura Brasileira . Autor (A): Afraudízio Azevedo Soares Defesa em: ___ / ___ / ___ Conceito obtido: __________ Banca Examinadora __________________________________ Profa. Ms. Ana Maria Remígio Osterne orientadora __________________________________ Profa. Dra. Liduína Maria Vieira Fernandes 1ª examinadora __________________________________ Profa. Ms. Fernanda Cardoso Nunes 2ª examinadora 4 As mulheres de minha vida: Brígida (mãe), Ariella (esposa) e Sophia (filha), as grandes responsáveis por esta conquista. 5 AGRADECIMENTOS Agradeço inicialmente a força mística que governa todo o universo a qual denomina-se Deus. Aos amigos Ciro e Mardônio que dividiram o sacrifício desta batalha. Ao grande amigo “Jesi” que muito contribuiu com discussões e bibliografias, ao eterno amigo, Júnior, aos professores que contribuíram para minha formação com suas discussões. E por fim, a secretária Lenilda, por sua atenção, e em especial a minha orientadora Ana Remígio, que muito contribuiu para o meu crescimento intelectual. 6 “Não existe livro moral nem imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Eis tudo.” (Oscar Wilde) RESUMO 7 Este trabalho busca, a partir da análise de 15 livros didáticos de Literatura de Ensino Médio, observar a interdição dos autores Naturalistas. Tendo em vista a maneira como o movimento foi recepcionado pela crítica, nos interessou especialmente as questões relacionadas à moral e à antipatia ao Naturalismo; vislumbradas a partir da análise dos compêndios didáticos nos quais somente três autores aparecem: Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia, percebendo-se a ausência de romancistas como Júlio Ribeiro, Domingos Olímpio e Adolfo Caminha. Tomamos para a análise dos livros didáticos, a maneira como os autores selecionaram os recortes de leitura e a notória incidência dos mesmos fragmentos na maioria das obras, sendo inclusive trabalhados da mesma forma. É central ao desenvolvimento deste trabalho a idéia de que o conteúdo do livro didático se mostra regular quanto ao desenvolvimento dos movimentos, possuindo restrições no tocante à questão sexual, pois não abordam nem citam obras Naturalistas que possuam em seu conteúdo cenas eróticas. Entendendo a escola como mecanismo disciplinador, especialmente em relação à moralidade, buscamos entender essas interdições como desdobramentos das finalidades da instituição. Palavras-chave: interdição – Livro didático – Naturalismo – sexualidade – moral – Escola. 8 ABSTRACT This work wants, through the analysis of 15 literature textbooks of High School, to observe the interdiction of Naturalist writers. In view of how the movement was approved by the critics, we were interested especially the subjects related to morality and empathy to Naturalism; realised from the analysis of didactic summaries in which only three authors appear: Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia, where are absent novelists such as Júlio Ribeiro, Domingos Olímpio and Adolfo Caminha. We were taken for the analysis of the textbooks, the way how the authors selected the clips of reading and notorious incidence of these fragments in most of works, and even treated the same way. It is central for the development of this work the idea of the content of the textbook is shown regularly on the development of the movements, with restrictions regarding the sexual issue, because they do not quote nor deal with Naturalist works that have erotic scenes in its content. Understanding the school as a disciplining mechanism, especially in relation to morality, we wanted to understand these development bans as purposes of the institution. Key- words: Ban – Textbooks - Naturalism - Sexuality - Moral - School. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..............................................................................................................10 1. UMA COLÔNIA, DOIS MOVIMENTOS, REPRESSÃO E DESEJO ..........................14 1.1 UMA BREVE HISTÓRIA DA SEXUALIDADE NA COLÔNIA PORTUGUESA.........15 1.2 O REALISMO E O NATURALISMO ........................................................................19 1.3 MORALIDADE VERSUS SEXUALIDADE ...............................................................27 2. LEITURAS INTERDITADAS, SOCIEDADE DOMESTICADA ...................................37 2.1 REPUDIADOS E MASSACRADOS, MAS CANÔNICOS ........................................40 2.2 O CÂNONE .............................................................................................................42 2.3 INSTRUÇÃO VIGIADA............................................................................................45 3. OS RECORTES NAS OBRAS LITERÁRIAS: INTENCIONAIS OU ALEATÓRIOS? .55 3.1 A LITERATURA BRASILEIRA E A EDUCAÇÃO CATEQUÉTICA ..........................56 3.2 A SOCIEDADE BRASILEIRA E O REFLEXO DO REALISMO/NATURALISMO NOS LIVROS DIDÁTICOS ............................................................................................58 3.3 INTERDITAR, PARA QUÊ? ....................................................................................63 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................80 REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS ..............................................................................81 ANEXOS .......................................................................................................................85 10 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo discutir a relação entre moralidade e sexualidade dando ênfase a interdição que os autores do Naturalismo brasileiro sofrem em relação a sua abordagem nos livros didáticos. O que deteve nossa atenção nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio foi, ao longo de nossa experiência como professor de língua portuguesa e literaturas afins, assim como nossas leituras sobre sexualidade, ter observado que os livros didáticos de literatura do Ensino Médio não abordam ou abordam sucintamente obras com cunho erótico. Alguns livros apenas citam as obras como O Bom Crioulo e A Normalista, ambos de Adolfo Caminha, e O Mulato, de Aluísio de Azevedo, mas sem nenhum comentário adicional. Outros nem as citam, abordam apenas obras que não desenvolvem um cunho erótico. Isso nos despertou um interesse em pesquisar o porquê de tal interdição, tratando-se de movimentos como Realismo/Naturalismo. Cientes de que isso poderia tornar-se um problema de pesquisa, nos estimulou profundamente para a realização do referente trabalho. Isso porque, se observarmos, muitas obras canônicas de autores consagrados, que são de suma importância para compreendermos o movimento literário e sua época. Em muitos livros didáticos, tais obras não são abordadas, sendo que em alguns aparecem apenas como indicações de leitura. Podemos ainda mencionar que os romances mencionados nos livros didáticos são apresentados em forma de fragmentos de textos. Prática usual em todos os livros didáticos, no entanto, vale ressaltar que tais fragmentos são selecionados como exemplo para que se possa perceber as características do movimento ou o estilo de um determinado autor. No caso dos romances Naturalistas, cuja uma das características mais fortes é a temática do sexo as citações postas nos livros didáticos interditam esse tema. Na realidade, é sabido por todos que o que mais estimulou os movimentos conhecidos como Realismo/Naturalismo foram as emergências da teoria Darwinista e da psicanálise. Os autores dos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio não trabalham tais temáticas. Os autores Naturalistas se preocuparam em inserir em suas obras as descobertas de Darwin, tendo como característica a aproximação do 11 homem com animal, o desenvolvimento de personagens patológicos com os fatores de hereditariedade e a teoria Freudiana do inconsciente, onde havia a repressão da libido. Como essas explicações remeteriam de imediato ao cunho erótico das obras, suas supressões podem ser indícios da interdição de tal característica. Durante o século XIX, também, a forma como a medicina tratou o sexo serviu como pano de fundo para os romances, Thérèse Raquin, de Emile Zola, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, entre outros. A medicina da época havia sido tocada pela moral burguesa, dando justificativas cientificas para a censura dos atos sexuais. Isso acabou tendo reflexos na literatura Naturalista. (BRANCO, 1983: 90) Estudar o Realismo/Naturalismo sem entender as questões que envolvem os pontos relacionados à sexualidade é um tanto quanto vago, pois a finalidade dos movimentos foi de denúncia dos vícios do cotidiano burguês, especialmente os que competiam às vontades da carne, assumindo assim uma postura moralista. Logo é imprescindível que venhamos a estudar os campos da sexualidade neste movimento literário. Mas, por qual motivo as obras eróticas são abordadas sucintamente e muitas vezes nem estudadas nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio? Este é outro ponto que aguçou bastante a nossa curiosidade para a realização de tal trabalho. Pois, fica um tanto quanto lacunar, o estudo dos movimentos Realismo/Naturalismo sem trabalharmos a questão sexual, uma de suas características principais. Sendo assim, os recortes dos romances deveriam conter cenas descritivas ou narrativas que expusessem, não só as características que o autor da obra didática deseja colocar em evidência, mas também as que fizeram com que o movimento ficasse conhecido como aquele que tratou principalmente dos tipos humanos e suas patologias, entre elas a grande maioria estava relacionada ao campo da sexualidade. Os movimentos Realismo/Naturalismo, da forma como foram trabalhados nas obras didáticas, possuem trechos de livros em que seus recortes são escolhidos providencialmente, ou seja, o autor retira trechos que expõem apenas as características que estão mais relacionadas com o Realismo do que com o Naturalismo. 12 Deixando, assim, de abordar obras que enfatizam as patologias humanas na concepção naturalista para trabalhar com obras que citam apenas as características mais usuais do Realismo, que não envolvem nenhum pudor ou ataque à moral. Logo, desejamos, através dessa pesquisa, entender alguns dos motivos que levam os autores a não escolherem obras que tenham o conteúdo já mencionado, e, quando escolhem, o porquê dos fragmentos não serem feitos com cenas realmente que marcaram a época literária, características próprias dos movimentos. Durante todo o período de nossa vida profissional nunca tivemos a oportunidade de trabalhar com livros didáticos de literatura que citassem ou abordassem obras literárias que tivessem um caráter erótico. Ao pretender fazê-lo, tivemos que partir para textos suplementares, pois os livros não traziam textos que pudessem enfatizar as características do movimento, ou seja, as narrativas selecionadas eram amenas quando o campo era sexualidade, embora o movimento tivesse como característica o elemento sexo. As obras literárias canônicas que fazem parte dos movimentos conhecidos como Realismo/Naturalismo são: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, ambas de Machado de Assis; O Ateneu, de Raul Pompéia; O Cortiço, de Aluisio de Azevedo, O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, e A Carne, de Júlio Ribeiro. Então, por que nem todas essas obras não são abordadas nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio? Quais obras são suprimidas e o que elas possuem em comum? A maioria dos livros didáticos se limita a trabalhar com três obras: O Cortiço, de Aluísio Azevedo, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e O Ateneu, de Raul Pompéia. Tais obras são cânones da Literatura brasileira, mas um fato bem curioso é o de que as três obras servem tão bem quanto as suprimidas para trabalharem as características dos movimentos relacionadas à questão erótica. Mas, suprimem obras como: O Bom Crioulo e A Normalista, de Adolfo Caminha, A Carne, de Júlio Ribeiro e Luzia – Homem, de Domingos Olimpio, que enfatizam bem melhor os movimentos. No entanto, os autores ao citarem as três obras em questão, providenciam recortes que expõem apenas as características que estão mais voltadas para o Realismo, como verossimilhança, objetividade da escrita e as mazelas sociais – fome, egoísmo, inveja ambição etc. 13 Talvez para evitarem, que, as obras possuam com cenas de erotismo, não sejam expostas, acabam citando apenas as que não causam nenhum ataque ao pudor. Logo, isso nos causou uma inquietude: entender se o livro didático é moralista ou informacional. Ao entender todo o processo de tais questionamentos, passaremos a contribuir para o ensino de Literatura no campo que diz respeito à sexualidade, campo este sobre o qual há grande preconceito, isso porque vivemos em uma sociedade patriarcal, moralista e catequética, devido a nossa colonização, e formação intelectual. A referente pesquisa se organiza em torno de algumas problemáticas, ela nos trouxe indagações a respeito do assunto: os livros didáticos de Literatura abordam ou não obras que tenham cunho erótico? Tal pergunta nos faz refletir sobre as obras literárias em relação a sua classificação nos livros didáticos. Criamos ainda mais questionamentos, os livros didáticos abordam a questão sexual a partir de uma moral anti-erótica? Por qual motivo há interdições das obras Naturalistas nos livros didáticos? O presente trabalho será dividido em três capítulos, sendo o primeiro, responsável por uma abordagem panorâmica da literatura brasileira citando acontecimentos históricos que tiveram relação com os aspectos que evolvem os movimentos literários em questão, juntamente com suas definições e semelhanças. Logo em seguida, ainda no primeiro capítulo, trataremos das definições de moral e dos conceitos que envolvem sexualidade. No segundo capítulo, trataremos da formação do cânone ocidental fazendo uma reflexão com as obras que compõe o Naturalismo brasileiro. Abordaremos ainda, a recepção das obras Naturalistas pelo público brasileiro do século XIX, e por último a instituição escola, suas peculiaridades, seu papel quanto instituição, as influências que ela sofreu da Igreja Católica e as mudanças que ela sofreu ao longo dos anos. No terceiro e último capítulo, faremos a análise de 15 livros didáticos de Literatura de Ensino Médio, onde verificaremos os cortes dos trechos das obras citadas nos movimentos, Realismo e Naturalismo, observando principalmente a interdição das obras Naturalistas. 14 1. UMA COLÔNIA, DOIS MOVIMENTOS, REPRESSÃO E DESEJO “As piores coisas são feitas com as melhores intenções” (Oscar Wilde) Quando os portugueses desembarcaram no Brasil tiveram inicialmente a intenção de explorar a terra recém descoberta, mas não demorou muito para que eles também nos repassassem um pouco de sua cultura e seus costumes. Logo no princípio estranharam o modo como os gentios de organizavam, se vestiam e se relacionavam. Andam nus sem nenhuma cobertura, nem estimam nenhuma coisa de cobrir nem mostrar suas vergonhas e estão acerca disso com tanta inocência como têm de mostrar o rosto. (...) Eles porém contudo andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são como as aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar melhor pena e melhor cabelo que as mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão fremosos que não pode mais ser. (CAMINHA Apud SOUZA; CAMPEDELLI, 2000:75) Pero Vaz de Caminha o primeiro a descrever a nova terra, observa nos habitantes do lugar seus modos de vestir com admiração. Pero de Magalhães Gândavo, os observa com relação à organização “carecem de ter três letras, convém a saber, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei, e desta maneira vivem desordenadamente sem terem além disto conta nem peso nem medida.” (SOUZA; CAMPEDELLI, 2000:75) Nos textos produzidos sobre a terra descoberta pode-se perceber a admiração do europeu, maravilhado com o selvagem, seus hábitos de vida e com a natureza da nova terra. Muitos desses escritos buscam atrair os lusitanos para riquezas da terra e, evidentemente, para consolidar o povoamento. (CAMINHA Apud SOUZA; CAMPEDELLI, 2000:74) Ao virem consolidar o povoamento da nova terra, os portugueses trouxeram seus costumes e sua cultura de organização, isto inclui as suas normas de pudor e moral. Desta forma temos uma influência européia quanto a religião, a organização de governo e as leis de estado, criadas e desenvolvidas pelo ocidente. 15 E assim, a referida cultura, foi repassada e incorporada ao longo dos anos chegando até os séculos que surgiram posteriormente à colonização de nossa terra. 1.1 Uma breve história da sexualidade na colônia portuguesa O Brasil por trazer como estigma histórico o fato de ter sido colônia de Portugal e aqui inicialmente não ter existido uma fiscalização em relação à questão sexual fez com que no início do período colonial tudo acontecesse sem o mínimo controle. Só depois da implantação do Santo Ofício da Igreja Católica é que as coisas passaram a ter normas e controle. Mas sempre havendo algumas ressalvas, pois ocorreriam inúmeros casos de pederastia, pedofilia e sodomia, principalmente envolvendo padres e professores, ainda que os mesmos nunca pagassem por seus delitos, pois o processo muitas vezes era engavetado e o inquisidor acabava alegando falta de provas. (MOTT, 1989, p. 2) Em nossa tradição luso-brasileira, parece que as relações sexuais entre adultos e adolescentes, além de freqüentes, não eram condutas das mais condenadas pela Teologia Moral, pois mesmo quando realizada com violência, a pedofilia em si nunca chegou a ser considerada um crime específico por parte da Inquisição. Estes dois episódios exemplificam nossa asserção: em 1746, chega ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa a seguinte denúncia: Maria Teresa de Jesus, mulher casada, moradora na Vila de Santarém. “saindo de sua casa um seu filho, Manoel, de 5 anos, foi levado por um moço, Pedro, criado, para um porão e usou do menino por trás, vindo o menino para casa todo ensangüentado”. Em 1752, outro caso semelhante chega à Inquisição: no povoado de Belém, junto a Lisboa, um moço de 25 anos, José, marinheiro, agarrou um menino de 3 anos incompletos, João, o levou para um armazém, do qual saiu a criança chorando muito, todo ensangüentado e rasgado seu orifício com a pica do moço”. Quando ocorria um fato de tal natureza na colônia, era feito um inquérito que envolvia inúmeros fatores para que alguém pudesse ser condenado ou que no mínimo o infrator pudesse receber a pena de reclusão. E tais acontecimentos só eram considerados crimes quando os mesmos eram condenáveis pela cultura européia. 16 Quando se fala em sexualidade no Brasil colonial uma das primeiras coisas a se pensar é na Inquisição. De fato, ela foi essencial na formação da mentalidade sexual da colônia, mas isso não quer dizer que a repressão e o medo de ser delatado ao Santo Ofício fizesse com que as pessoas estagnassem numa vida sexual puramente em função da procriação. Na verdade, o que acontece é exatamente o contrário, temos um Brasil que, como Gilberto Freyre disse, "parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado" (FREIRE Apud Emanuel Araújo, 2001: 45-6) O casamento foi popularizado, porém o sexo dentro dele só era lícito se houvesse procriação ou, no mínimo ejaculação por via vaginal e, obviamente, o prazer não estava incluído. Isso quer dizer que se o casal copulasse de forma prazerosa, sem intuito de procriação, pecava gravemente. O homem que tinha prazer com sua mulher era considerado adúltero. Essa situação podia ter duas conseqüências. A primeira seria o homem procurar se satisfazer com escravas índias ou negras da forma que lhe aprazisse, assim não pecava ou teria apenas um pecado leve. A mulher também poderia praticar o adultério, porém correria risco de vida, pois nessa época era legal um marido matar sua esposa por traição. A outra conseqüência seria sempre a delatação e, dessa forma, cair nas mãos da Inquisição caso o casal fosse pego praticando molície ou sodomia, por exemplo. É interessante observarmos que na colônia havia certa liberdade sexual tanto no campo masculino como no feminino, mas sempre, as conseqüências recaiam sobre a mulher, já que viviam em uma sociedade moldada pelos europeus tendo como base um sólido matrimônio, e como sabemos aqui perdurava uma sociedade de mentalidade patriarcal e machista. Podemos observar na citação de Emanuel Araújo que a colônia portuguesa era um lugar onde os limites da sexualidade eram impostos pelo Santo Ofício da Igreja Católica, e como quem dominava e regia muitas vezes os atos desse Santo Ofício eram os latifundiários e os padres, a impunidade era mais comum do que punição. Portanto o Brasil era o local perfeito para que a sexualidade germinasse de uma forma espontânea e livre. Na realidade todos temiam o Santo Ofício, mas nem por isso deixavam de realizar suas “necessidades sexuais”, o sexo ainda era tratado como um ato reprodutivo e não prazeroso, e isso fazia com que muitos homens procurassem as prostitutas para realizarem aquilo que na realidade as suas esposas não podiam conceder. Isso porque pela moral imposta na colônia tal ato não era muito comum 17 entre os casais, já que toda e qualquer relação matrimonial teria que ter um caráter reprodutivo. Vejamos mais uma vez o que nos diz Emanuel Araújo, 2001: 52) É claro que a definição de pecado para a mente da época era muito diferente da de hoje. O sexo ilícito (molície, sodomia e bestialidade) não era pecado se fosse feito com índias, negras ou prostitutas. Ninguém ia ser delatado por sodomizar uma prostituta, por exemplo. Porém, quando se tratava de brancas fossem donzelas ou casadas, o sexo ilícito era pecado gravíssimo e levava direto às chamas do inferno. É preciso frisar aqui o grande preconceito da época em relação aos índios, negros e mulatos, vistos como raças infectas e a importância da pureza de sangue. Um ditado popular expressa bem o preconceito racial "branca pra casar, índia pra fuder, negra para trabalhar". Desse modo, um fator importante na sexualidade no Brasil no século XVII era o sexo pluriétnico. Quando os portugueses chegaram ao Brasil não havia mulheres brancas, fazendo com que se relacionassem com as índias. É clara a imagem que o Brasil dava então aos estrangeiros: um país erótico, luxurioso, quente, cheio de nudez e emoldurado pela exótica natureza tropical. Mas a verdade é que ocorriam muitos estupros e violências com os índios e negros. Os grandes proprietários estupravam seus escravos e muitos não poupavam nem crianças que várias vezes morriam depois de tanta violência. Os proprietários menores e mais pobres prostituíam seus poucos escravos a fim de conseguir mais renda. Isso ocorria devido ao pouco controle sexual que havia na colônia. De fato, a prostituição era muito explorada na colônia. Naquele tempo não havia bordéis, então ela era feita nas casas de alcouce, que eram vendas ou tabernas. As prostitutas eram sempre mulheres pobres, escravas ou recém alforriadas que faziam seus programas por meio de uma alcoviteira. Essa sociedade também era marcada pela aproximação entre o profano e o sagrado. Um costume popular entre os casais era dizer as palavras de consagração da hóstia (hoc est enim corpus meum) em meio ao ato. Outro hábito era realizarem tal ato perto ou em cima de crucifixos. Houve casos de homens que foram acusados de fazer suas necessidades fisiológicas perto da cruz ou mesmo depositá-las nesta. E a Igreja, lugar mais sagrado de todos, era também o lugar oficial dos flertes, paqueras e namoricos. Isso se deve pelo fato de que a Igreja era onde a população se encontrava e por isso, um lugar social. Além disso, era dentro dos confessionários que padres licenciosos 18 aproveitavam sexualmente de suas fiéis. As Igrejas também eram um esconderijo procurado por homens e mulheres para cometer adultério, ou simplesmente realizarem suas necessidades sexuais. (ARAÚJO, 2001: 50-2) Em parte isso se deve pela falta de privacidade generalizada que havia no Brasil colônia. As casas costumavam ser lotadas de pessoas, sem muitas divisões, com ausência de janelas envidraçadas, com redes ou invés de camas, salas viradas para a rua, paredes esburacadas, enfim o mínimo de privacidade. Sem falar no problema da espionagem. Era comum para as pessoas espionar e fofocar das intimidades que ouviam ou viam de terceiros. Então normalmente procuravam-se lugares alternativos para o ato. A preferência, principalmente para aqueles que gostavam do sexo ilícito, era um esconderijo no mato, o que não era de todo seguro, pois os envolvidos sempre corriam o risco de serem pegos em flagrante. Outro aspecto da sexualidade colonial era o das magias eróticas. Essas magias eram práticas populares receitadas por uma feiticeira com o intuito de seduzir o amado e na maioria das vezes envolvia os líquidos seminais. Uma das receitas era dar o esperma do homem, depois de ejaculado na vagina de sua parceira, para o próprio beber. Ou então lavava-se numa mulher as partes pudentas, as axilas e as solas do pé com água. Depois colocava na água raspas da sola do pé e no dia seguinte dava a água de beber ao homem disfarçada em alguma bebida.Outra magia consistia em furar três avelãs e preencher os buracos com pelos de todo o corpo, unhas, raspas da sola do pé e uma unha do dedo mínimo da feiticeira. A mulher engolia as avelãs e depois de excretá-las, colocava-as no vinho do marido. Na colônia a mulher branca podia ser livre, mas não tinha muitas opções depois que saía de casa, a não ser duas: casar ou tornar-se freira. Muitos ricos senhores preferiam colocar suas filhas no convento para não ter que pagar o dote. Na verdade, a melhor opção para a época era mesmo o convento. Primeiro porque lá as mulheres estudavam e, assim, se intelectualizavam e segundo porque era um espaço de liberdade, e de possível libertinagem. A verdade é que havia muitos casos de freiras grávidas e flagrantes entre frades e freiras. A roda, por exemplo, era um tipo de janela rotatória que havia nos conventos onde as pessoas colocavam bebês indesejados, bastardos. Mas também era um meio das freiras trocarem correspondências e prendas amorosas com seus 19 amantes. No locutório do convento havia grades que separavam as freiras dos visitantes, mas mesmo assim não impediam as freiras de se divertir com qualquer coisa do visitante que pudesse passar pelas grades… Enfim, o convento poderia ser um lugar muito menos de recolhimento e oração e muito mais de luxúria e devassidão. 1.2 O Realismo e o Naturalismo Dentre todos os movimentos literários existentes no cenário mundial os que mais se opuseram a sociedade foram sem dúvida: o Realismo e o Naturalismo. Tais movimentos trataram de pontos que incomodaram toda uma sociedade. Os realistas possuíam como principais características o fato de se oporem ao Romantismo, seus autores eram antes de tudo anti-românticos e anticléricos. Alguns posicionamentos fizeram com que, os movimentos se tornassem conhecidos pelos grandes incômodos causados à sociedade da época, pois apontavam justamente os “podres” cometidos pela sociedade, cobravam assim um comportamento moral que se efetivasse. Durante alguns anos esses movimentos foram repelidos pelas principais sociedades européias. A sociedade logo tratou de repudiá-los com grande fervor, conseguindo assim com que eles fossem deixados de lado, pois causavam pudor e inconveniência dentro de tais sociedades. A segunda metade do século XIX é marcada por grandes avanços, expansão, conquistas coloniais, lutas militares, processos de independência, intensas lutas ideológicas e grandes avanços no comércio. A segunda metade do século XIX assiste à expansão burguesa no mundo e, por isso mesmo, é uma fase de lutas militares, de conquistas coloniais, de teorização de pretensas superioridades, de intensa luta ideológica justificatória das superioridades proclamadas, de desenvolvimento da produção e do comércio e, portanto, de invenções, de inovações técnicas, de avanço científico. Tratava-se, como afirma Leroy-Beaulieu, de "não deixar a meta do globo a homens impotentes e ignorantes", ou, como expressa, em sua forma contundente, o capitão de navio norte-americano A. T. Mahan, de "expropriar as raças incompetentes". Ë preciso fazer avançar a ciência, por isso tudo, e Arago diria: "Não é com belas palavras que se faz açúcar de beterraba; não é com alexandrinos que se extrai a soda do sal marinho". A ciência necessita, assim, de novos métodos e, principalmente, de organização; deve servir a objetivos práticos, 20 oferecer resultados imediatos, apresentar processos viáveis de utilização de matérias-primas ou de multiplicação de bens e, portanto, de possibilidades de rápida acumulação de riqueza, de capitalização, em suma. (SODRÉ, 1965: 13-4) Esse era o panorama da metade deste século foi neste cenário que floresceram os movimentos conhecidos como Realismo/Naturalismo. Eles surgiram contra o ideário romântico, que era o grande representante da burguesia a fim de firmar o interesse pelo avanço das ciências, o novo centro das preocupações burguesas. Os movimentos em questão vieram abordar temas não tratados por escritores que para os românticos era como se fossem proibidos, já que eles tratavam apenas dos pontos altos da burguesia. Os valores apresentados como pertencente a sociedade burguesa pelos românticos eram: a valorização, do casamento, da virgindade, do primeiro amor e do sentimentalismo, são questionados pelos escritores da nova safra. Os Realistas juntamente com os Naturalistas desenvolveram em suas narrativas a denúncia da sociedade burguesa, fato que, não era apresentado pelos signos românticos, mas sim, pelos da hipocrisia, provocou na sociedade burguesa uma espécie de repúdio. O Realismo e o Naturalismo são dois movimentos literários completamente distintos, mesmo que para alguns eles sejam um só, isso ocorre devido as suas características, se aproximarem. Embora o Realismo e o Naturalismo tenham objetivos diferentes, ambas as tendências se aproximam no projeto de observar, documentar e denunciar a realidade social. O Realismo se apura na análise da força das instituições sobre o indivíduo, no retrato das relações humanas permeadas de interesse, na introspecção psicológica. Menos psicológico do que o Realismo, o Naturalismo analisa a força de fatores como hereditariedade e meio sobre o comportamento humano. (CEREJA, MAGALHÃES, 2004: 307) Muitos autores afirmam que o Realismo é que é “escola literária” enquanto o Naturalismo é apenas o Realismo ao extremo. Tal comentário não passa de um profundo desconhecimento dos movimentos, pois é muito mais convencional falar do Realismo, que do Naturalismo, sendo que o último foi alvo de muitas críticas não só no século de sua existência, mas também até os dias atuais. 21 A aproximação dos termos Realismo e Naturalismo é muito comum nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio e, muitas vezes, até nos de História da Literatura. Em muitos casos o nome dos movimentos é usado até como sinônimos. Isso ocorre porque existem muitos pontos em comum entre o romance Realista e o Naturalista. Como exemplo pode-se citar o ataque à burguesia ao clero e à monarquia. As proximidades dessas estéticas são tantas, que, muitas vezes, é difícil classificar um autor e, até mesmo uma obra, como pertencente a essa e àquela corrente literária. Um bom exemplo é o escritor português Eça de Queiros, considerado por muitos críticos literários como sendo Realista e, por outros, como Naturalista. Apesar de toda essa proximidade, é possível encontrar algumas diferenças entre ambos. O Naturalismo é fortemente influenciado pela teoria evolucionista de Charles Darwin. Por isso, vê o homem sempre pelo lado animalesco. Nessa ótica o Homem se comporta como um animal, ou seja, não usa a razão, pois os seus instintos naturais são mais fortes. Ainda sob esse ponto de vista, o comportamento humano nada mais é do que o reflexo do meio em que o homem vive Esse meio é composto por educação, pressão social, o próprio meio ambiente etc.. Esse homem, que ainda é subjugado (dominado moralmente, reprimido, amansado, domesticado) pelo fator hereditariedade física, está preso a um destino que ele não consegue mudar. Um bom exemplo disso é a personagem Pombinha, da obra O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. No início do romance ela era uma jovem cheia de virtudes e destinada ao casamento. No entanto, devido às influências do seu meio, cedeu ao homossexualismo e à prostituição. O Naturalismo aprofunda a visão científica do Realismo, pois acredita no princípio de que somente as leis da ciência são válidas, renegando assim, qualquer tipo de visão espiritualista. Dessa forma, acredita que o comportamento do homem pode ser explicado cientificamente. Então, o escritor naturalista observa o seu personagem muito de perto, buscando conhecer as causas desse comportamento para chegar ao conhecimento objetivo dos fatos e das situações. A temática dos movimentos também é um dos pontos em que há diferenças significativas entre o Naturalismo e o Realismo. Os autores Naturalistas, sempre por meio de uma análise rigorosa do meio social e de aspectos patológicos, trazem para sua obra temas como a miséria, a criminalidade e os problemas 22 relacionados ao sexo como o adultério e o homossexualismo, tanto feminino como masculino. Esses temas são abordados sempre por meio de personagens que representam os grupos marginalizados da sociedade, como por exemplo, em O Mulato, O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Face a tudo o que foi exposto pode-se dizer que todo Naturalista é Realista, porém, nem todo Realista é Naturalista. Pode-se dizer ainda que o Naturalismo seja um prolongamento do Realismo, só que mais intenso. Segundo Nelson Werneck Sodré (1965: 23-4) o Realismo é que é um problema para a literatura, pois foi o Naturalismo que realmente teve uma representação fiel do homem. O movimento foi na verdade o representante fiel da verossimilhança. Foi o Naturalismo que denunciou de uma forma objetiva e direta a decadência dos valores da sociedade burguesa com seus falsos valores morais e sua hipocrisia. Que é realismo? Para o leigo, não é mais do que um estilo, entre outros. Mas muito ao contrario dessa concepção vulgar, o realismo é o problema fundamental da literatura. Naturalismo é que é uma escola, entre outras: uma escola que, a pretexto de representar fielmente a realidade, utilizou-se de determinadas fórmulas. Estas fórmulas é que a caracterizam que definem a escola. Muitas são as formas por que manifesta a sua decadência, a decadência dos seus valores, inclusive os éticos e os estéticos. O naturalismo é uma dessas Formas, e não à única, na literatura. No campo científico desenvolvem-se as ciências da natureza; muito mais do que as ciências da sociedade. Toma vulto a sociologia; o naturalismo é um pouco a sociologia na literatura. (...) A marca decadentista da época é conservadora, por mais que as inovações técnicas anunciem o avanço, fixando a tendência em "conciliar as mais recentes descobertas das ciências naturais com as velhas tradições religiosas ou, mais exatamente, o oratório com o laboratório”. O naturalismo pretende ser o laboratório, em literatura. E chegará a pretender-se experimental, quando não ultrapassa o empirismo dos arrolamentos. (SODRÉ, 1965: 24-5) O Naturalismo se encarregou de trazer para a literatura as tensões entre as ciências naturais e as sociais da época. No campo social, os valores morais; no científico, o evolucionismo, o Empircismo cartesiano, o positivismo as inovações da ciência social como, as idéias de Charles Darwin acerca da evolução humana. Foi o referido movimento que se encarregou de por em seus romances as mazelas sociais 23 como uma espécie de denuncia e seus personagens traziam a tona os desejos obscuros que, estavam encravados nos indivíduos da sociedade da época. Depois do surgimento do Realismo com a exposição de Gustave Coubert e a publicação de Madame Bovary de Gustave Flaubert, a sociedade européia esperou dez anos para receber as inovações do Naturalismo de Emile Zola. Logo que o Naturalismo surgiu com Zola, sua obra foi interpretada como sendo Realista, só depois foi compreendida como Naturalista, com o surgimento do movimento os críticos o batizaram de Realismo, mas com o passar do tempo percebeu-se que suas temáticas ganhavam solidez e representação, e logo ganhara outra nomeação sendo chamado de Naturalismo e se firmando com tal nomeação. Os movimentos literários são sucessivos, sendo que tal sucessão denota a superação de um sobre o outro. Vejamos alguns exemplos, o Romantismo supera o Classicismo, o Realismo supera o Romantismo e o Naturalismo prevaleceria o Realismo. (SODRÉ, 1965: 27-8) Mas isso logo se transformou em um problema, porque ao colocar o Naturalismo como um movimento superior ao Realismo com relação a suas características, fazia com o primeiro fosse superior ao segundo não por uma adequação histórica ou coisa assim, mas sim pela solidez do movimento e suas questões estéticas (SODRÉ, 1965: 28). Acontecendo justamente o contrário do convencional que é o desenvolvimento de idéias e posições contrárias ao movimento já existente. Tal confusão ainda é feita até hoje por autores de livros que tratam principalmente do ensino de literatura. A grande maioria dos dicionaristas também comete tal equivoco ao desenvolverem os seus verbetes colocando um movimento como complemento do outro. Mas a distinção entre os movimentos não é definida pelos livros didáticos de literatura, nem por muitos livros de historia da literatura. Vejamos a citação de Nelson Werneck Sodré (1965: 29-30): Enquanto o naturalismo implica uma posição combativa, de análise dos problemas que a decadência social evidenciava, fazendo da obra de arte uma verdadeira tese com intenção científica, o realismo apenas "fotografa" com certa isenção a realidade circundante, sem ir mais longe na pesquisa, sem trazer a ciência, dissertivamente, para o plano da obra. O romance realista encara a podridão social usando luvas de pelica, numa atitude fidalga de quem deseja sanar os males sociais, mas sente perante eles profunda náusea, própria dos sensíveis e estetas. O naturalista controlando a sua sensibilidade, ou 24 acomodando-a à ciência, põe luvas de borracha e não hesita em chafurdar as mãos nas pústulas sociais e analisá-las com rigorismo técnico, mas de quem faz ciência do que literatura”. A confusão é tal que se torna necessária a imagem das luvas de pelica e de borracha, para distinguir uma "escola" da outra. Confusão que não é superficial, pois decorre de problemas de conteúdo. Percebemos pela citação de Sodré que, a imagem das luvas de borracha, é usada para referi-se ao Naturalismo como um movimento que trata de expor o que a sociedade possuía de pior. Perceba que as luvas servem de alegoria para mostrar que os atos da referida sociedade eram podres, e os Naturalistas usavam luvas para evitarem a contaminação. Isso demonstra uma atitude moralista e repressiva. Como já foi citado anteriormente, o Naturalismo foi interditado pela sociedade da época não só pelo fato de ter ido muito mais longe do que o Realismo em sua narrativa, mas pelo fato de ter se rebelado contra a mesma mostrando sua verdadeira face, exigindo dela uma nova postura. Os extremamente autores que atacados enveredaram pelos meios de pelo lado do comunicação Naturalismo da época. foram Foram considerados seres diabólicos, seres que possuíam cérebros monstruosos, capazes de darem a luz a grandes aberrações em forma de escrita, uma das piores obras que a literatura já havia concebido. (Bulhões, 2003: 43-4) A sociedade européia com base nos moldes da moral vitoriana questionava toda e qualquer manifestação literária em que fosse detectada pontos que pudessem colocar a moral e os bons costumes em xeque. Ao produzir o prefácio de seu romance, O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde escreveu que não existe livro moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos. Por escrever tal frase foi extremamente questionado no tribunal inglês por Edward Carson, advogado do Marquês de Queensberry, pai de Alfred Douglas amante de Wilde. Wilde estava sendo acusado por praticar atos homossexuais com o filho do Marquês. Só pelo fato de proferir frases como a citada acima Oscar Wilde teve de se explicar no tribunal, isso mostra como se constituía a moral da época dos Realistas e dos Naturalistas. Uma moral totalmente castradora e repulsiva. Vejamos um trecho do interrogatório de Edward Carson a Oscar Wilde: CARSON. — Em seu prefácio a Dorian Gray, o Senhor disse: "Um livro não é de modo algum moral ou imoral. Os livros são bem ou mal escritos." Essa frase expressa sua opinião? 25 WILDE. - Minha opinião sobre a arte, sem dúvida. CARSON. - Por conseguinte, suponho que um livro, por mais imoral que seja, se está bem escrito é, em sua opinião, um bom livro. WILDE. — Sim, se estivesse suficientemente bem escrito para provocar uma sensação de beleza, a mais elevada sensação que um ser humano é capaz de vivenciar. Se estivesse mal, escrito, provocaria uma sensação de aversão. CARSON. – Portanto, um livro bem escrito que exponha opiniões morais viciosas, poderia ser um bom livro? WILDE. — Nenhuma obra de arte nunca expôs opiniões. As opiniões são coisas de pessoas que não são artistas. (MACHADO, 2006: 23-4) Wilde acabou provando um pouco do gosto amargo das imposições da rainha Vitória e sua moral castradora e punitiva. Isso acabou sendo apenas uma prévia do que aconteceria com ele anos mais tarde, Wilde foi contemporâneo a todos os fatos ocorridos no período que chamamos de Realismo e Naturalismo Os realistas e os Naturalistas sofreram grandes castrações no tocante a exposição de suas idéias e sua arte literária. Os movimentos possuíam em suas entranhas pontos que causavam inquietações e desconforto a sociedade da época e a moralistas de plantão. Em Portugal Eça de Queiroz ao lançar o Primo Basílio e sofreu grandes ataques em relação a sua produção recebendo o uso de adjetivos maldosos com relação a sua obra. O Naturalismo propunha como nenhum movimento até então, em mostrar a realidade. Alguns críticos moralistas contribuíram negativamente para que o os movimentos Realista/Naturalista não fossem bem recepcionada pelo público da época, os autores realistas sofreram grandes punições morais e sociais por criarem e desenvolverem uma nova narrativa. Eles foram chamados de imorais e de libertinos. Vejamos a citação de Nelson W. Sodré (1965: 57-8): Um dos exemplos mais curiosos da crítica moralista ao naturalismo em Portugal foi o trabalho de Carlos Alberto Freire de Andrade, A Escola Realista. Opúsculo Oferecido às Mães, aparecido em 1881 e refletindo o eco do lançamento do Primo Basílio. O naturalismo estaria contribuindo para "a desmoralização das famílias”. O destaque da linha moralista, o dispautério da linha patriótica e as insuficiências da linha de negação da originalidade – certa, no fundo – mostram como os adversários do naturalismo representavam algo pior do que o naturalismo. 26 Como observamos acima as obras Naturalistas não eram questionadas quanto a sua estética, nem estrutura literária, mas sim pelos impactos que poderiam causar nos seres e nas camadas da sociedade da época. Não havia preocupação com a arte literária, mas sim com a desconstrução da moral. Um dos grandes desejos dos Naturalistas era dissecar os tipos humanos e mostrá-los para a sociedade da época, exibir o que, habitava os corações e mentes dos indivíduos que compunham a sociedade do século XIX. Tais indivíduos pregavam uma falsa moral alimentada de uma hipocrisia exacerbada. O comportamento dos seres que pertenciam a sociedade do século XIX era visto como atos normais, desde que o indivíduo possuísse um lugar de destaque na sociedade em questão se isso ocorresse tudo era perdoável, caso contrário, se o individuo pertencesse a um nível de menos destaque toda e qualquer atitude sua era reprovada e considerada imoral e de pouca vergonha. Quando os Naturalistas resolveram colocar no papel a podridão de tais cidadãos eles foram extremamente criticados e repudiados pela sociedade que eles denunciavam. Isso ao contrário do que muitos pensavam não ofuscou o brilho da mente de tais autores e não demorou muito para que eles lançassem mão de mais denúncias através de sua escrita criando personagens que passaram a representar dignamente os tipos que circulavam na sociedade em questão. Assim o naturalismo ficou conhecido como o movimento que melhor representou a realidade em seu tempo, se contrapondo totalmente aos românticos e suas características. Vejamos o que nos diz Nelson Werneck Sodré (1965: 73): O naturalismo propunha-se a ir de encontro à realidade, enfrentála, mostrar os problemas que ela apresentava, discutí-los, dissecá-los. Porque em suma, havia chegado o momento em que era impossível conservá-los escondidos, mantidos em segundo plano, sonegados. Saltando do plano da realidade, eles buscavam invadir o da literatura. O naturalismo apresentou-se como a porta larga, hospitaleira e fecunda, por onde poderiam penetrar. A falsidade dessa porta, entretanto, só ficou demonstrada adiante. A atmosfera do contexto histórico em que os movimentos Realista/Naturalista surgem é a mesma aqui no Brasil, nossos autores sofreram as mesmas castrações que os europeus, apesar de alguns terem sido muito mais, visados do que outros, por exemplo, Machado de Assis é conhecido como o mestre 27 do Realismo brasileiro, mas ele não foi tão criticado como foram os autores Naturalista. Os autores Naturalistas causaram muito mais incômodos na sociedade brasileira do que os Realistas. Entre os Realistas se destacavam Machado de Assis, sendo que o mestre Machado, possuía em seu currículo uma fase romântica, talvez por isso não tenha sido alvo das críticas impiedosas da sociedade moralista brasileira. Autores como: Aluísio de Azevedo, Júlio Ribeiro, Raul Pompéia e Adolfo Caminha, foram acusados por muitos como infratores da moral e dos bons costumes. Suas obras eram consideradas como leituras proibidas e libidinosas e degeneradora da boa conduta. Assim, foi o cenário da sociedade do século XIX no Brasil. Trataremos o assunto com mais ênfase no capítulo seguinte. 1.3 Moralidade versus Sexualidade O nosso ancestral mais antigo em ordem direta tratando-se da sexualidade foram os babilônios, eles tinham orgulho de sua cultura, duas fontes tornaram a Babilônia extremamente familiar para nós, o antigo testamento que a considerava: cidade maldita prostituída, e o historiador grego Heródoto. (CATONNÉ, 2001: 27-8) Portanto o tema moral é muito antigo, tão antigo quanto às primeiras civilizações, não se sabe se foram os gregos os primeiros a tratarem o assunto, cujos deuses se embriagavam e tomavam a mulher do próximo, possuíam todos os pecados dos homens, e cujas tragédias difundiam os problemas mais graves e complexos, entre eles. Ao falarmos em moral devemos nos lembrar que o significado da referida palavra é amplo, pois ela possui uma carga semântica que traz em si diversos sentidos, logo tal palavra por ser polissêmica é aplicada em várias situações do nosso cotidiano. É comum o uso da seguinte expressão: “fulano é um homem sem moral, ele se deixou gritar por sicrano”. Algumas pessoas atribuem o sentido desse vocábulo a autoridade, sucesso, respeito entre outros, mas o fato é que moral é um conjunto de regras criadas e aceitas (não obrigatória) por um grupo ou sociedade. E quando alguém quebra esse conjunto de regras ele é chamado de imoral, logo o conceito de moral ainda é muito estudado, mas pouco praticado em 28 nosso cotidiano, o significado fica mais para os exemplos que citamos acima. Vejamos a definição que Otaviano Pereira (1998: 11-2) nos dar a respeito de tal termo: Moral é tudo aquilo (ato, comportamento fato, acontecimento) que realiza o homem que o enraíza em si mesmo e, por ele e para ele, ganha sentido humano. Na rabeira desta definição a recíproca também é verdadeira: "Imoral é tudo aquilo que desrealiza o homem”. Vale dizer, tudo aquilo que o desenraiza, o desencrava de si mesmo, no marco de sua liberdade responsável: Tudo o que é sempre passível de mau uso ou distorção de seu projeto humano rumo à felicidade. Dentro do contexto que iremos analisar fiquemos com tal definição, pois o que nos interessa é falarmos de um conjunto de regras que dizem como o deveria ser as práticas e comportamentos que regem as atitudes de uma determinada sociedade localizada em determinado período. Tendo como base que moral é uma espécie de senso, e a mesma tem como responsabilidade manter as estruturas comportamentais de uma sociedade, podemos assim dizer, que moral é tudo aquilo que tem como objetivo fazer com que as pessoas sigam um modelo. E assim passem a viver em torno do mesmo, tendo como meta segui-lo para assim poder alcançar um bem comum a todos. O conceito de moral não se reduz apenas ao moralismo, como também não se restringe apenas a repressão sexual: Mas a moral não se reduz apenas ao moralismo, assim como não se restringe à vida sexual, à repressão sexual do desejo. É claro que a vida sexual guarda profundas relações com a moral, mas trata-se apenas de uma de suas dimensões. Nessa mesma linha de enfoque, imoral não significa necessariamente obsceno, como somos levados a entender, fruto de uma herança negativa dos códigos de conduta, travestida nos valores educacionais, familiares, religiosos, militares, etc. (PEREIRA, 1998: 15-6) O uso dessa palavra se estende ao comportamento e as atitudes dos indivíduos de toda e qualquer sociedade, pois dentro de todas as sociedades temos indivíduos que são morais, imorais e amorais. Sendo que moral é aquele que cumpre com as regras estabelecidas pela sociedade em questão, os imorais são os que não as cumprem e os amorais são aqueles que as desconhecem. 29 Portanto, considerar uma atitude moral ou imoral dependerá de diversos fatores, entre eles o fator histórico, pois as normas e regras sociais evoluem bastante, e se modificam ao longo do tempo. Assim, uma atitude que no início do século XX era considerada imoral, hoje já não é mais, por exemplo, o uso de vestimentas curtas para a década de 20, era completamente inaceitável, hoje é completamente comum. A sexualidade foi e ainda é um dos pontos mais combatidos pela moral, desde que a Igreja Católica se apoderou do uso dos costumes humanos o sexo passou a ser visto como algo feio, sujo e pecaminoso. Logo aqueles que o praticavam sem o intuito de procriação eram considerados libertinos e devassos. A mulher por sua vez era vista como o ser que podia tirar um homem de seu rumo. Ela foi considerada durante o período da Idade Média a representação do diabo na Terra. (ALEXANDRIA, 1993: 35) Mas a moral perseguia apenas uma camada da sociedade, porque os homens tinham sua primeira relação sexual com uma prostituta, e pior do que a prostituta é a bela da tarde, aquela mulher casada e que trai o marido, que nem é puta nem dama. Mas era muito comum no século XIX, os padres defendiam as prostitutas como forma de preservação das donzelas, pois era inadmissível que um homem chegasse até o casamento virgem, sem conhecer o pecado da carne. Mas a mulher não, tinha que se manter pura para sua noite de núpcias, isso é as que pertenciam à classe da nobreza, pois as das demais classes eram assediadas e tentadas pelos nobres. O século XIX ficou extremamente conhecido como o século da repressão, pois o mesmo foi detentor de uma falsa moral e uso de valores que não condiziam em nada com a sua sociedade, não só na Europa, mas também aqui no Brasil diversos valores já estavam decadentes. Um deles era o valor matrimonial, este estava falido, o adultério perdurava em todas as famílias, os casamentos eram realizados por influências e conveniências, não mais por amor como pregava o ideal burguês. A moral de uma época é responsável pelo controle social, ela abrange os demais setores da sociedade. Cada indivíduo pode criar sua própria moral, constituindo assim, sua ética, mas isso não é tão fácil, tampouco é aceitável pelos grupos que compõem a sociedade em questão. Devemos lembrar que um costume para ser aceito e torna-se norma ou lei ele precisa ser aceito pela comunidade. 30 Nenhum costume nasceu do nada, ele surge a partir de uma atitude que será considerada por muitos a mais sensata e a partir daí ela tornar-se norma, e caso alguns indivíduos queiram quebrá-la passará a ser lei e assim todos têm de cumpri-la. Vejamos o exemplo que Otaviano Pereira (1998: 21) nos dá: Antigamente, quando ainda se trafegava com carros de bois pelas cidades, alguém iniciou o costume de usar sebo nos eixos para neutralizar o ruído estridente das rodas. Com o tempo, o que era costume de um ou mais puxadores de bois passou a virar norma (não obrigatória) para a maioria. Entendiam, para o bem da comunidade, a pertinência dessa prática. Ainda com o passar do tempo, quem não lubrificava os carros para trafegar em silêncio pela cidade começou a receber, com certeza, reclamações dos moradores. Conclusão: Ainda hoje, no Fórum de Bragança Paulista, está em vigor uma lei que obriga os puxadores de carros de bois a untar os eixos com sebo, a fim de não perturbar o silêncio da comunidade. Dessa forma, por várias décadas, o descumprimento daquilo que foi acordado juridicamente entre os indivíduos e a comunidade implicava sanções. Uma sanção é sempre a recompensa ou o castigo em face de um pedido, uma advertência ou uma lei. No caso do descumprimento da lei, ela é a punição (não apenas de "efeito moral", como o castigo); punição legalizada. Assim, na ordem hierárquica, um costume pode vir a ser uma norma e uma norma virar Lei. As questões de moral mudam com o passar dos anos, pois as normas de comportamento são flexíveis e mudam à medida que as pessoas evoluem socialmente. As normas sociais não podem ficar congeladas como se fossem produtos a serem consumidos, elas realmente necessitam de tal versatilidade. Como citamos anteriormente os pontos da moral que menos se modificam são os costumes que estão ligados à questão sexual. Michel Foucault (2003), ao tratar da história da sexualidade expõe tal ponto de uma forma clara e direta, mostrando que nós ainda estamos muito ligados aos resquícios da época Vitoriana, herança que a Rainha Vitória nos deixou com seus valores clérigos e dogmáticos. Falar de sexualidade não é falar sobre sexo ou pornografia – os três pontos se distanciam notoriamente. O primeiro procura entender as questões que envolvem o elemento sexo e quais são os pontos que o desconhecimento de tal atributo pode causar nos indivíduos de uma dada sociedade, grupo ou ser individualmente. 31 Sexo é algo que está relacionado ao ato em si e não aos acontecimentos que a prática ou ausência de tal ato possa causar, há um envolvimento das questões de gênero e não suas manifestações. Já a pornografia por sua vez é tudo aquilo que extrapola os pontos que estão ligados ao sexo e ao erotismo. Aquilo que deixa de ser erótico torna-se pornográfico. Vejamos a citação abaixo, de Lúcia Castello Branco (1983: 72): Uma das distinções mais corriqueiras que se fazem entre os dois fenômenos refere-se ao teor "nobre" e "grandioso" do erotismo, em oposição ao caráter "grosseiro" e "vulgar" da pornografia. O que confere o grau de nobreza ao erotismo é, para os defensores dessa distinção, o fato de ele não se vincular diretamente à sexualidade, enquanto a pornografia exibiria e exploraria incansavelmente esse aspecto. Essas definições desembocam, invariavelmente, em afirmativas do tipo pornografia: sexo explícito: erotismo: sexo implícito (a pornografia está para o sexo explícito assim como o erotismo está para o sexo implícito) e estão de tal maneira cristalizadas em nossa sociedade que são freqüentes os apelos comerciais utilizados em todo material pornográfico, sobretudo em filmes, explorando este aspecto: "cenas de sexo explícito". O erotismo e a pornografia são aspectos que surgem dentro do movimento Naturalista, para os puritanos as cenas eróticas nos romances, eram consideradas pornográficas, talvez pela pouca distinção que há entre os dois pontos. Mas o que sabemos é que, a sexualidade e a moral sempre tiveram grandes embates, principalmente no século XIX período em que a França teve o seu grande florescimento literário e cientifico. Quando Gustave Courbert fez sua exposição em Paris, denominada de Lhe Realism, todos ficaram chocados com suas telas, por fazer a exposição de corpos nus. Logo em seguida surgiu Gustave Flaubert com sua Madame Bovary, obra que causou enorme repúdio entre os puritanos de plantão, por tratar de uma personagem que cometia adultério. A obra de Flaubert foi considerada insana e imunda, um ataque ao pudor e aos bons costumes da sociedade da época. Dez anos depois surgiu Emile Zola com o romance Thérèse Raquin, numa perspectiva diferente da Realista, surgia então o movimento Naturalista na Europa. Explorando o quê até então todos faziam questão de deixar adormecido, mas não só Zola como Flaubert fez questão de expor tais assuntos. (SODRÉ, 1965) 32 Os romancistas franceses passaram a influenciar um mundo todo, criaram e tiveram grandes seguidores, entre eles o português Eça de Queiroz que com o seu Crime do Padre Amaro, chocou toda a sociedade lisboeta. Não demorou muito para que o Brasil também fosse um terreno fértil das idéias francesas e portuguesas de tais movimentos literários. Assim temos um embate filosófico e político, porque a questão do pudor era uma questão política, pois os nobres de todas as sociedades pediam punições para os infratores da moral e dos bons costumes, enquanto os Românticos questionavam a nova expressão literária. Os livros dos autores Realistas foram cassados das prateleiras e eram repudiados por educadores e chefes familiares. Flaubert. Com certeza, poucas vezes evidenciou-se na literatura, de forma tão límpida, um inquietante drama social e moral. Um caso de adultério de uma mulher (adultério de homem não contava). Trata-se do romance Madame Bovary, moeurs de provtnce (Mme. Bovary, costumes de província, 1857), uma obra de reação antiromântica que chocou a consciência burguesa da época. Emma Bovary, no caso em foco, educada para servir aos ideais de um falso romantismo, casada com um médico estúpido, incompetente, vê-se seduzida por um dos "conquistadores profissionais" de salão da época e inicia um processo de decadência pessoal, inclusive financeira, até o suicídio. (PEREIRA, 1998: 52-3) Como podemos notar na descrição acima o ideal burguês estava ferido devido a críticas e o posicionamento de tais artistas em relação ao casamento, epicentro do ideal burguês, a instituição matrimonial estava abalada, pois a mesma já estava sendo denunciada. O século XIX foi responsável por grandes avanços na literatura e nas ciências sociais em geral, mas este período foi também marcado por grandes repressões e acontecimentos que mancharam toda a sociedade da época. De um lado ficavam os defensores da moral e dos bons costumes, do outro, filósofos, cientista e literatos que defendiam as novas teorias, pregando que não havia mais lugar para uma moral decadente e hipócrita, exigiam portando uma moral atuante. Os ensaios e livros publicados acerca de assuntos cientificistas, causaram grande repulsa na população ocidental, a Igreja se posicionou contra toda e qualquer manifestação que não fosse religiosa, mesmo que, suas práticas de catolicismo estivessem aquém da realidade “desejada” por eles. 33 No período do século XIX a sexualidade das pessoas ficou totalmente reduzida, era “proibido” falar ou praticar qualquer ato sexual, só existia um local que as pessoas sabiam que havia práticas sexuais, o quarto dos pais, (FOUCAULT, 2003:10) local no qual era concebida toda a prole familiar. Nesse período o sexo era praticado apenas como forma de procriação, se fosse concebido com outros intuitos que não fossem e de procriar era considerado nojento e perverso. Vejamos o que nos diz Eliane Robert Moraes e Sandra Maria Lapeiz (1984: 111-12): Como, por exemplo, se espicharmos o olho aleatoriamente para janeiro de 1857, encontraremos o promotor Er-nest Pinard preocupado em acusar Gustave Flaubert de imoral, por conta do romance Madame Bovary. Em agosto do mesmo ano, o ativo promotor francês volta à cena, agora desencadeando outro processo, este contra Baudelaire e seu As flores do mal, que resulta em dolorosa condenação nos tribunais. Além da multa em dinheiro por atentar contra a "moral e os bons costumes", o texto de Baudelaire é censurado em alguns versos e seis poemas são cortados da obra. Mais notável nessa estória toda é que a sentença, tão rigorosa, só foi reformada judicialmente em 1949, portanto, noventa e dois anos depois! A Igreja Católica foi a grande responsável pela repressão sexual existente ao longo dos séculos. Ela criou normas e determinou punições contra a prática sexual. Isso provocou, nos diversos setores das sociedades, restrições contra a manifestação do prazer carnal, o homem ficava limitado a prática de um sexo sem prazer e com objetivos de apenas proliferar sua espécie não de realização sexual, o ser que se entregava aos prazeres sexuais estava se desviando de sua salvação espiritual, e não, demorou muito para que o prazer do sexo fosse considerado um dos pecados capitais. (ALEXANDRIAN, 1993: 36) A época vitoriana determinou punições contra os infratores da moral e dos bons costumes, pensando assim, que iria reprimir e controlar todos sexualmente, mas os impositores de tal moral falharam, porque eros encontrava forças para se manifestar através do discurso cientifico e da denúncia social, através de romances e tratados médicos acerca das perturbações sexuais. Na realidade foi através dos muitos discursos sobre as perversões sexuais que a moral vitoriana fortificou sua moral e seu discurso. Pois o cientificismo da época não serviu apenas para impedir a repressão sexual, ele também foi 34 responsável por grande parte da repressão sexual. O discurso médico foi também responsável por uma interdição da sexualidade do século XIX. Os moralistas se apoiavam no discurso médico para fortificarem o seu, é neste período que o Dr. Krafft-Ebing inventa que a masturbação era responsável por todas as formas de degenerescência sexual. (BRANCO, 1983: 88) Nesse momento atos classificados como sadismo, masoquismo ou homossexualismo eram extremamente perseguidos e muitas vezes considerados crimes contra a moral. Sabemos que até os dias atuais as questões moralistas ainda estão cravadas em muitos setores de nossa sociedade, isso porque quando os primeiros escritos a respeito das perversões sexuais surgiram houve uma divulgação enorme através da leitura e principalmente da oralidade. Como já discutimos acerca de moral sabemos que quando um costume é absolvido por uma camada da sociedade ele torna-se norma e muitas vezes lei, assim foi com as divulgações de tais perversões. Nessa época surge o romance naturalista com Emile Zola, tais romances abordavam uma temática cientificista os personagens criados pelos escritores eram detentores de perversões que ficaram conhecidos como personagens patológicos e os romances chamados romance experimental. Os discursos acerca da sexualidade surgiram numa época em que predominava a imposição da época vitoriana, época repressiva e perseguidora dos infratores da moral, quando tais discursos surgem, sejam eles em forma de romance, ensaio e artigos, eles são cassados e destruídos. Mas a procura pelo conhecimento de tais perversões fez com que a moral perdesse terreno no campo da repressão, pois a partir do momento que as pessoas buscavam entender tais manifestações elas tiveram contato com uma forma de prazer diferenciada. No momento que os indivíduos que formavam a nova camada da sociedade entram em contato com tais leituras eles passam a apreciar uma nova forma de prazer. Estudantes e jovens distintos são tentados pela nova manifestação de leitura, dessa forma a sexualidade encontra uma forma de burlar as leis da moral dominante. Dizer que a moral com sua repressão foi modificada, isso é um fato, mas não podemos esquecer que a repressão caminha conosco todos os dias, dentro da literatura, encontramos fatos e mais fatos que, nos fazem refletir acerca de como nossa sociedade se estrutura e se evidencia em relação aos costumes. Atos 35 repressivos que ocorreram no século XIX ainda refletem nos dias atuais, vejamos, por exemplo, o fato de alguns autores terem ficados conhecidos como perversores de uma sociedade e mau exemplo para a moral dos bons costumes. Vejamos o que nos diz Eliane Robert Moraes e Sandra Maria Lapeiz (1984: 134): Retomando a questão inicial, veremos que a moral não é então (ou pelo menos não tem sido nas nossas sociedades atuais) apenas uma lei dos costumes, mas sim uma imposição autoritária de rígidas formas de comportamento. Não fosse assim, como entendermos a censura? Afinal, ela fala em nome da moral e dos bons costumes, salvaguardando os interesses das camadas privilegiadas da sociedade, e contribuindo sempre para que a balança pese do lado mais forte. Essas medidas totalitárias pretendem aniquilar toda consciência crítica, preparando o ser humano para a submissão, e sobretudo para a grande renúncia exigida pelas sociedades que se norteiam por essa estratégia de moralização. Aí reside, aliás, um exercício de poder bastante eficaz. Penetrando na vida cotidiana, ele se exerce sobretudo nos corpos dos cidadãos, tornando-os úteis e produtivos, para viver de maneira autovigilante e persecutória. E a moral, devidamente interiorizada, acaba sendo considerada "uma coisa natural", a regra passa a ser "o normal", e o proibido é instaurado para organizar as perversões. Tudo no seu devido lugar. A instauração de uma moral vigilante, era vista como algo imprescindível para o controle dos indivíduos pertencentes à sociedade do século XIX. Eles deveriam assim assumir uma postura condizente com aquilo que as camadas sociais pregavam. Isto era, na verdade uma forma de controlar o comportamento de cada um. Os moralistas tinham uma preocupação, controlar o comportamento desses indivíduos, pois logo que fosse estabelecido o controle dos corpos dos cidadãos, seus atos estariam controlados e, portanto dentro de uma normalização. Ao analisarmos um livro didático de literatura de Ensino Médio com a incumbência de encontrarmos na unidade dedicada aos movimentos Realismo e Naturalismo, recortes, de leitura de livros como, A Carne de Júlio Ribeiro, O Bom Crioulo e A Normalista, ambos de Adolfo Caminha, Luzia – Homem de Domingos Olimpio entre outros naturalistas, teremos uma grande decepção. Isso é fruto de uma moral repressivo, pois até hoje tais obras são consideradas como um forte apelo sexual. Se hoje tais obras ainda são repudiadas por uma boa parte da massa educacional, imagine como era há mais de cem anos atrás. Michel Foucault (2003: 10-1) em seu livro História da sexualidade aborda uma discussão muito intrigante 36 quando o assunto é repressão sexual segundo Focault, teríamos suportado o regime Vitoriano até os dias de hoje. Porque o século XVII foi um período em que as pessoas não possuíam medo de usarem em seus discursos o peso e o valor das palavras que compõe a sexualidade, mas os séculos XVIII e XIX foram completamente contrários ao século anterior. FOUCAULT,(2003: 111.) Estaríamos liberados desses dois longos séculos onde a história da sexualidade devia ser lida, inicialmente, como a crônica de uma crescente repressão? Muito pouco, dizem-nos ainda. Talvez por Freud. Porém com que circunspecção, com que prudência médica, com que garantia científica de inocuidade, e com quanta precaução,. para tudo manter sem receio de "transbordamento", no mais seguro e mais discreto espaço entre divã e discurso: ainda um murmúrio lucrativo em cima de um leito. E poderia ser de outra forma? Explicam-nos que, se a repressão foi, desde a época clássica, o modo fundamental de ligação entre poder, saber e sexualidade, só se pode liberar a um preço considerável: seria necessário nada menos que uma transgressão das leis, uma suspensão das interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer ao real, e toda uma nova economia dos mecanismos do poder; pois a menor eclosão de verdade é condicionada politicamente. Durante o século XIX, a sexualidade esteve diretamente ligada ao poder e ao conhecimento, a classe dominante, como detentora dos dois, foi responsável por toda repressão sexual. Sua instauração visava preservar a moral e os bons costumes. A palavra prazer foi suprimida do vocabulário dos membros da sociedade do século em questão, e para que tal palavra seja restituída às sociedades atuais, é necessário, que as leis sejam quebradas, e as interdições seriam suprimidas de nosso cotidiano. Muitos fatos ocorreram nos dois séculos seguintes, as teorias acerca da sexualidade com Freud, o determinismo de Augusto Comte e a teoria da evolução, de Charles Darwin. Muitos escritores Realistas e Naturalistas mudaram o contexto social do século XIX, mas o pudor ainda prevaleceu sobre nós. Durante anos a nossa sexualidade ficou restrita ao quarto de nossos pais e o nosso discurso passou a ser algo clandestino e proibido. 37 2. LEITURAS INTERDITADAS, SOCIEDADE DOMESTICADA “A aversão do século XIX ao realismo é a fúria de Calibã ao reconhecer sua imagem no espelho”. (Oscar Wilde) Antes mesmo que o homem pensasse em utilizar determinados materiais para escrever (como, por exemplo, fibras vegetais e tecidos), as bibliotecas da Antiguidade estavam repletas de textos gravados em pequenas tábuas de barro cozido. Eram os primeiros "livros", depois progressivamente modificados até chegarem a ser feitos — em grandes tiragens — em papel impresso, mecanicamente, proporcionando facilidade de leitura e transporte. Com eles, tornouse possível, em todas as épocas, transmitir fatos, acontecimentos históricos, descobertas, tratados, códigos ou apenas entretenimento. (ABRIL, 1972:28) Inicialmente a leitura não era vista como um meio de persuasão, era tida mais como uma necessidade do que mesmo um instrumento de transformação. Mas logo os livros e suas leituras foram vistos como uma arma contra os líderes de muitos sistemas, como, por exemplo, os capitalistas, que viam que as leituras das idéias de Marx poderiam trazer-lhes grandes problemas, fazendo com que a massa enxergasse aquilo que estava oculto. Segundo Chartier (Apud Revista Nova Escola 2007), a leitura faz parte do cotidiano das pessoas desde quando as sociedades se organizaram e passaram a viver em comunidade, mas foi nos séculos XIX e XX que ela mais foi difundida. Foi o momento no qual mais se produziu livros, pois as sociedades das épocas passaram a ler muito mais do que as anteriores. Mas, em nossa sociedade, publicar um livro naquela época não queria dizer que poderia circular livremente: havia algumas ressalvas quanto ao seu conteúdo. No Brasil do século XIX, algumas obras eram publicadas, mas não eram lidas abertamente – lembremos o caso da obra de Júlio Ribeiro, A Carne, que chegou a ser apreendida pelo juizado de menores de São Paulo, em 1962. Ela foi tida como um dos “livros considerados pornográficos e perigosos à formação moral do adolescente”. 38 Além do fato da apreensão, outro que nos chama a atenção naquele mesmo ano, é o curioso protesto feito pela presidente em exercício da União Brasileira de Escritores, endereçada ao juiz da Vara Privativa de Menores da Comarca da Capital do Estado de São Paulo. Há no discurso da presidente a presença de uma forma repressiva nos próprios termos do protesto. Havia uma grande resistência contra as obras Naturalistas, esta era tão grande que a própria presidente, ao protestar contra a apreensão do livro, defende arbitrariamente na carta, a necessidade de precaução em função dos riscos representados por uma leitura “desorientada”. Há no interior do documento uma face conservadora, onde se manifesta um moralismo bastante acirrado. (BULHÕES, 2003: 17). Cumpre reproduzir o documento para que possamos ter uma interpretação mais abrangente da carta: Ao Excelentíssimo Senhor Doutor Aldo de Assis Dias, Meretíssimo Juiz de Direito Titular da Vara Privativa de Menores da Comarca da Capital do Estado de São Paulo M. Juiz: Noticiam os jornais que o Juizado de Menores procedeu à apreensão de livros considerados pornográficos e perigosos à formação moral do adolescente, entre os quais o romance A Carne, de Júlio Ribeiro. Não pode a União Brasileira de Escritores deixar passar sem o seu protesto a decisão de apreender um livro que, editado há 74 anos, jamais deixou de ser considerado um marco dum dos nossos mais fecundos períodos literários, o do naturalismo. Ao lado de Aluísio Azevedo, Inglês de Sousa, Adolfo Caminha e outros, Júlio Ribeiro com o seu romance, reflete não a expressão de uma personalidade doentia, particularmente interessada em chocar a sociedade e em darse em espetáculo de desconsideração dos valores morais vigente; mas representa a atitude estética brasileira diante da concepção européia (Emile Zola, Eça de Queiroz) do romance como experimento tanto sociológico como psico-patológico em relação e sob a influência das conquistas científicas da última metade do século XIX. Merece, pois, maior consideração um romancista que está ao lado de tantas expressões elevadas da nossa e da literatura européia, embora se reconheça que a leitura de A Carne pelo adolescente desavisado possa constituir um perigo para a sua formação pelo realismo cru de muitas de suas cenas. Júlio Ribeiro foi, é e será discutido sempre. Alguns críticos e historiadores literários consideramno menos, e José Veríssimo disse do seu romance que "é um parto monstruoso de um cérebro artisticamente enfermo" e Álvaro Lins, em nossos dias, considera-o um autor fora da literatura; entretanto, Tito Lívio de Castro afirma" que o naturalismo estava vitorioso, e a vitória era assegurada pela A Carne, e há pouco tempo, quando da sua 39 posse na Academia Brasileira de Letras, Manuel Bandeira disse dela que é um livro que merece ficar ao lado de tantos outros do naturalismo e do Romantismo. Trata-se, M. Juiz, de um livro cujo valor pode ser discutido pelos especialistas em nossa literatura. Não, porém, de uma obra que possa estar sujeita à apreensão pura e simples, depois de ter sido livre o seu curso por mais de 70 anos e de ter estado sob os olhos de várias gerações, tão lido quanto La Faute de l'Abbé Moiret, O Crime do Padre Amaro, O Cortiço e A Normalista; senão mais lido. Sem dúvida cabe ao Juizado de Menores preservar a adolescência de obras prejudiciais à formação do seu caráter, principalmente em razão de os jovens geralmente as lerem sem serem guiados por seus mestres de literatura. É preciso porém considerar que a apreensão pura e simples dessas obras, sem a consulta aos especialistas e sem que se dê ao público explicações claras sobre o significado dessa defesa da adolescência, leva o leitor comum, o homem não prevenido pelo estudo literário, a julgá-las deletérias, nocivas, sem expressão artística, e a equipará-las à triste literatura obscena e pornográfica vendidas às escondidas, como são vendidos os tóxicos. Protesta pois a União Brasileira de Escritores contra a apreensão abrupta e sem explicações, senão a de que se trata de obra obscena, de um livro que figura – e destacadamente, embora as opiniões divergentes sobre o valor de sua mensagem, não sobre o seu valor literário - na nossa história literária. Agradecendo a Vossa Excelência pela sua atenção, valemonos do ensejo para expressar-lhe a nossa distinta consideração. Atenciosamente, Helena Silveira, Presidente em exercício. O discurso da presidente demonstra que o romance de Júlio Ribeiro, assim como a leitura de tantos outros, deveria ser autorizada ou acompanhada por um especialista em Literatura para que o jovem não viesse a fazer uma leitura “desorientada”. Logo eles a fariam guiados por seus mestres de Literatura. O romance Naturalista possui uma capacidade, em especial o de Júlio Ribeiro, de conjugar um dos dilemas com relação à utilização da literatura em sua função educativa. Isso porque o sistema escolar enfrentou – e parece continuar enfrentando – o desconforto da presença de obras que, tidas como de fundamental importância à formação humanística, pertencentes ao cânone da literatura universal ou, mas especificamente, ao cânone da literatura brasileira, expõem, em sua 40 estrutura, um forte componente sexual, que atua como algo excitante a imaginação erótica de seus leitores. (BULHÕES, 2003: 19-20) A carta demonstra que a presidente possui consciência da importância da obra de Júlio Ribeiro para a formação do cânone da literatura brasileira, mas, por outro lado, também assume que a obra pode ser imprópria para alguns leitores. Isso nos mostra as raízes do moralismo do século XIX que se estenderam até nossos dias. Não é à toa que atualmente ainda se encontram ausentes da maioria dos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio, obras literárias como a de Júlio Ribeiro, ou que possuam, em suas páginas, conteúdo erótico que desperte a imaginação de nossos leitores incautos. 2.1. Repudiados e massacrados, mas canônicos. Ao observarmos um livro didático de Literatura do Ensino Médio poderemos notar que obras como as de Adolfo Caminha, A Normalista e O Bom Crioulo, assim como A Carne, de Júlio Ribeiro, Luzia – Homem, de Domingos Olímpio e O Mulato, de Aluísio Azevedo estão ausentes de suas páginas. Ao longo dos anos, obras como as citadas acima foram extremamente combatidas pela moral. Elas eram proibidas, no século XIX, nas repartições escolares, pois eram tidas como frutos da imoralidade, já que despertariam naqueles que as liam desejos inadequados a um cidadão de “boa conduta”. (BULHÕES, 2003: 42-3) Quando O Mulato, de Aluísio de Azevedo foi publicado, muitos se incomodaram, com a obra. O livro foi aceito como inaugurador do Naturalismo, mesmo carecendo de algumas caracterizações desse movimento. Essa obra ainda preservava alguns aspectos românticos. Segundo Sodré (1965: 170), o romance O Mulato representou a vitória da nova escola, tendo, entretanto, apenas disfarçado com cenas realistas o seu romantismo. Para Sodré, o romantismo presente em O Mulato é emblema de que o Naturalismo foi inaugurado no Brasil apenas como modismo, sem que a estética dessa escola se efetivasse plenamente nas obras, ou ainda como escreveu Araripe Júnior: Ali há páginas tão suaves, tão doces, tão cheias da claridade rosicler, 41 alencarina, que sou levado a crer que o mergulho dado pelo poeta nas águas encapeladas do Estige da nova escola foi apenas à superfície (ARARIPE Jr. Apud SODRÉ, 1965: 176). O hibridismo de O Mulato, característica que suavizou o impacto de sua recepção, talvez tenha propiciado sua adoção como obra inauguradora e canônica do Naturalismo. Caminha teve suas idéias repelidas por ter tratado de um assunto dos mais difíceis: o homossexualismo. Fez girar em torno desse tema central uma série de aspectos laterais, como a denúncia dos maus tratos na Marinha, o cotidiano da sexualidade dos marujos. Sabendo que Adolfo Caminha fora expulso da Marinha, o romance significou um acerto de contas. Os navios foram representados como espaços imorais, o que demonstra o aspecto moralista do Naturalismo. [...] Herculano foi surpreendido, por outro marinheiro, a praticar uma ação feia e deprimente do caráter humano. Tinham-no encontrado sozinho, junto à amurada, em pé, a mexer com o braço numa posição torpe, cometendo, contra si próprio, o mais vergonhoso dos atentados. O outro, um mulatinho esperto, que tinha o hábito de andar espiando, à noite, o que faziam os companheiros, precipitou-se a chamar o Sant´Ana, e, riscando um fósforo, aproximaram-se ambos "para examinar"... No convés brilhava a nódoa de um escarro ainda fresco: Herculano acabava de cometer um verdadeiro crime não previsto nos códigos, um crime de lesa-natureza, derramando inutilmente no convés seco e estéril, a seiva geradora do homem. (CAMINHA, 1998: 13) Os dois marinheiros, Herculano e Sant´Ana, do excerto acima, são, na progressão da narrativa, punidos por tal episódio. O primeiro foi flagrado masturbando-se, e, ao ter sido surpreendido pelo companheiro, acabaram se desentendendo, os dois foram castigados com chibatadas. A narrativa de Caminha, mesmo possuindo um tom moralista, é repudiada pelas cenas de sexo. Somente depois de muito tempo e de esforços para uma revisão crítica, Adolfo Caminha ganha espaço entre os literatos Naturalistas, mas não obteve sucesso de público. (SODRÉ, 1965: 192) Júlio Ribeiro produziu A Carne, uma das obras primas da literatura Naturalista. O movimento vivia o seu declínio na época da publicação deste livro. Ele foi um dos autores que mais sofreram com o repúdio e a detração. Seu trabalho foi tão importante para o Naturalismo brasileiro como foi a produção de Emile Zola para 42 o Europeu, justamente por ele ter sido o primeiro a levar as últimas conseqüências as figurações do homem como instintivo e animalesco. (BULHÕES, 2003: 52-3) 2.2. O Cânone. O que seria um cânone? Cânone é um conjunto de obras literárias que, ao longo dos anos, por serem consideradas essenciais para entendermos um determinado assunto, a leitura se tornou necessária. Como hoje é praticamente impossível que um ser humano consiga atender, em leitura, à demanda de publicações, a escolha de tais obras é feita por críticos, grupos sociais dominantes ou instituições escolares. Não há critérios claros na escolha do cânone. (BLOOM, 2001: 27-8) Segundo Harold Bloom (2001: 25-6), o cânone é uma imposição de toda e qualquer instituição. Assim, acontece com as obras que compõem os movimentos literários. Considerar uma obra canônica e outra não, muitas vezes, acaba sendo uma imposição elitista. Para ele o cânone é construído por escolhas instituicionais – universidades, grupos sociais, críticos literários etc. Sendo assim, a escolha do cânone seria algo que estaria mais relacionado com a política do que com a estética. Muitos deles são impostos, não escolhidos por seu valor artístico. Isso acontece devido a coloboração dada pelo cânone para a formação moral e intelectual de cada leitor. Dentro da perpectiva que abordamos, os autores que aparecem com recorrência nos livros didáticos da disciplina são canônicos. Isso nos leva a crer que o autor do livro didático imagina que assim esteja facilitando a leitura e o entendimento do texto, pois já que a obra é canônica, em tese, grande parte dos estudantes teriam acesso às referidas obras. Mas, por que não trabalhar com autores como Adolfo Caminha, Júlio Ribeiro e Domingos Olimpio? Seria pelo conteúdo erótico demonstrado em suas obras, ou pelo fato de tais obras não terem passado pelo crivo da sociedade ao longo dos anos? Quando uma obra recebe inúmeras críticas negativas à respeito de sua temática, ela está, na realidade, sendo difundida. Já que tanto positivamente como negativamente a obra passaria a fazer parte de uma malha discussiva, garantindo a difusão de suas temáticas no meio social. Tenhamos como exemplo A Carne, de 43 Júlio Ribeiro que recebeu inúmeras críticas negativas em seu tempo, tais críticas só contribuiram para uma maior visibilidade da obra por um maior periodo de tempo, despertando o desejo adormecido de muitos leitores em conhecê-la. O desejo de tornar-se canônico é tão antigo quanto a antiguidade clássica. Tal feito é algo muito antigo: fazer que um poema, uma peça teatral sejam lidos e eternizados é o anseio de todo e qualquer escritor, mas poucos conseguem; alguns conseguem pelo viés de uma escrita bem trabalhada, outros pelas posições que ostentam dentro de uma determinada sociedade. (BLOOM, 2001: 26-7) Temos obras em nossa literatura que tornaram-se canônicas pelo radicalismo que provocaram na época e não pelo seu valor literário. Algumas causaram pudor e escândalos e foram extremamente requisitadas, enquanto outras surgiram porque cairam no “gosto popular”: O Cânone, palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, Quer se interprete a escolha como sendo feita por grupos sociais dominantes, instituições de educação, tradições de crítica, ou, como eu faço, por autores que vieram depois e se sentem escolhidos por determinadas figuras ancestrais. Alguns partidários recentes do que se encara como radicalismo acadêmico chegam mesmo a sugerir que as obras entram no Cânone devido a bem-sucedidas campanhas de publicidade e propaganda. Uma esclarecedora teoria de formação do cânone é apresentada por Alastair Fowler, ele observa que as “mudanças no gosto literário podem muitas vezes estar relacionadas a reavaliações de gêneros que as obras canônicas representam". Em cada era, alguns gêneros são encarados como mais canônicos que outros. (BLOOM, 2001: 27-8) Ao analisarmos as obras pertecentes à literatura brasileira percebemos que algumas se tornaram canônicas por fatores laterais como grande aceitação de público, por serem escritas por escritores já consagrados no meio literário, como é o caso de Machado de Assis que já possuia um púbilco seleto, já consquistado em sua fase romântica. Enquanto as obras dos autores Naturalistas como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro tornaram-se canônicas pelas polêmicas construídas em torno de suas obras. Quando eles publicaram suas obras não foram aclamados, pelo contrário, o público ficou extremamente chocado com os temas desenvolvidos. Caminha em O 44 Bom Crioulo tratou de uma temática nova dentro dos moldes da sociedade, o homossexualismo, altamente polêmico para os padrões da época. A narrativa de Júlio Ribeiro era exacerbadamente erótica para os costumes da época. Os indivíduos estavam acostumados a uma narrativa um pouco mais eufêmica dentro do campo literário. Sua narrativa foi condenada principalmente pela Igreja Católica, tornando-se canônica somente no século XX. Quando Júlio Ribeiro publicou sua obra, alguns críticos relataram que, no romance, algumas páginas haviam sido desenvolvidas dentro dos figurinos Naturalistas, onde havia apenas admiráveis descrições de cenários e episódios de um agudo regionalismo de fazenda e senzala e que isso era o que quebravam a monotonia dos lances eróticos, dos baixos impulsos, de uma libertinagem doentia e triste. (SODRÉ, 1965: 199). Cláudio de Souza1 (Apud BULHÕES, 2003: 42-4), ao lembrar da leitura do romance de Júlio Ribeiro, diz que para consegui-lo foi um sacrífio, pois o mesmo era proibido pelos pais. Ele o fez com um amigo da faculdade, que lhe emprestou o romance mal afamado. Para chegar ao interior de sua sua residência teve que enfrentar alguns obstáculos. Ao chegar em casa, percebeu logo, que na sala havia visita, era o pároco da cidade, que ao notar o volume embaixo do braço, logo perguntou que livro era aquele. Dizendo em seguida, que esperava não ser a “carniça”. Cláudio de Souza respondeu que era um livro de medicina. O pároco vendo o embaraço do jovem, disse para os pais que deixasse, medicina era um assunto que não o interessava. Em seguida o padre fez questão de fazer uma advertência ao jovem, dizendo que nem que lhe dessem de graça A Carne, ele deveria ler. A obra era imundície que sujava as mãos e os olhos, revoltava o estômago e intoxicava a alma, segundo o padre. Cláudio de Souza afirma que o que lhe salvou, naquela noite, foi o fato dele saber que o padre visitava uma mulatinha do lago do Piques. Podemos notar como era o ambiente que permeava a sociedade da época, durante anos a obra de Júlio Ribeiro foi repudiada, mas talvez por tais motivos ela tenha se tornado canônica com o decorrer do tempo. Ao analisarmos os livros didáticos poderíamos desenvolver a seguinte hipótese: os autores escolhem tais obras, porque elas foram as mais importantes para a formação de determinados movimentos. No entanto, tomamos partido por 1 Cláudio de Souza foi um dos fundadores da Academia Paulista de Letras, em 1913. 45 outros críticos literários que afirmam que outras obras possuem as características dos movimentos até mais bem desenvolvidas, e, portanto, a escolha do cânone é perpassada por interesses que vão além dos estéticos. O romance Realista não se resume apenas a produção de Machado de Assis, mas o fato deste pertencer ao cânone de nossa literatura, é um dos mais requisitados. Tendo como ponto de partida os acima descritos, podemos partir do pressuposto que os autores dos livros didáticos possuem uma preferência não só pelos mesmos autores, mas pelas mesmas obras, isso devido as mesmas serem canônicas. Ainda em nossa análise notamos que, além da coincidência da repetição de três autores, Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio de Azevedo, e de suas obras, há ainda outra: as indicações para leitura. É o que alguns autores denominam em suas obras de produção literária do movimento, esse normalmente é o espaço ocupado pelos autores Naturalistas no livro didático, sendo que muitos nem isso fazem. As obras e os autores em questão sonegam muitas vezes os nomes dos autores que fizeram parte desse movimento. As obras literárias se tornam canônicas de duas maneiras, uma delas, é por imposição de uma elite dominante, como acontece com algumas obras consideras clássicas, e a outra, é através da própria crítica negativa como já discutimos anteriormente. Quando observamos os livros didáticos, notamos que alguns autores canônicos, como Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha, são totalmente suprimidos. De agora em diante teremos como exemplo de autores canônicos interditados nos livros didáticos esses dois e suas obras, A Carne e O Bom Crioulo respectivamente. 2.3. Instrução Vigiada. Os jesuítas chegaram ao território brasileiro em março de 1549, juntamente com o primeiro governador geral, Tomé de Souza. Comandados pelo Padre Manoel de Nóbrega, quinze dias após a chegada edificaram a primeira escola elementar brasileira, em Salvador, tendo como mestre o Irmão Vicente Rodrigues, primeiro 46 professor nos moldes europeus, que durante mais de 50 anos dedicou-se ao ensino e a propagação da fé religiosa. (FERREIRA, 1986:36) Em 1553, chegaram aqui o segundo governador geral, Duarte da Costa, e o padre José de Anchieta. No ano seguinte, os jesuítas fundaram o Colégio de São Paulo, em 25 de janeiro (FERREIRA, 1986:36-7). Os padres em suas primeiras aulas instauraram - além do ensino de alfabetização, já que só poderiam catequizar os índios se os ensinassem a ler - os cursos de Letras e Filosofia que serviam para instruir novos padres. Desde o início de nossa colonização, a educação já desempenhava um papel moralista, ela se encaixava nos padrões de interdição, porque tinha como base uma moral voltada para os valores bíblicos, cujos ensinamentos eram feitos a partir de proibições e condenações. Os padres repassavam em suas aulas os valores da bíblia e os sacramentos. O padre José de Anchieta teve a sua produção totalmente voltada para tal ofício, mas era de fraco valor estético/literário. Em 1759, os jesuítas foram expulsos da colônia pelo Marquês de Pombal. A partir desta data, as escolas começaram a funcionar dentro de um regime intitulado como aulas régias. O Marquês de pombal destruiu todo o sistema de ensino dos jesuítas e nada que era criado se aproximava do extinto método Ration Studiorum. Cada aula régia era autônoma e isolada, com professor único, e uma não se articulava com as outras. Os professores eram geralmente mal preparados para a função, já que eram improvisados e mal pagos. Eram nomeados por indicação ou sob concordância de bispos e se tornavam "proprietários" vitalícios de suas aulas régias. (PILETTI, 1996: 36-7) A educação brasileira sofreu algumas mudanças com a chegada da família real ao Brasil em 1808. Quando foi fundada uma escola de educação, onde se ensinavam as línguas portuguesa e francesa, Retórica, Aritmética, Desenho e Pintura. As escolas, desde as suas criações, tiveram uma relação muito próxima com os quartéis, desde sua arquitetura até a sua estrutura organizacional, onde deve haver respeito para cada hierarquia. A escola é a responsável pela formação intelectual e cívica de cada cidadão, portanto, a conduta do mesmo deve ser administrada e acompanhada por seus orientadores. Entres os séculos XVIII até meados de XX, quando um estudante cometia qualquer ato considerado impróprio a sua conduta, a instituição escolar detinha o 47 poder de puni-lo ou castigá-lo. Os alunos eram vigiados de diversas maneiras, a arquitetura das instituições era elaborada com o intuito de observarem os alunos de diversos ângulos e lugares. A estrutura era elaborada com técnicas que possibilitavam aos observadores e aos observados, verem e serem vistos: uma espécie de adestramento ocular. Nas salas de refeições, fora preparado um estrado um pouco alto para colocar as mesas dos inspetores dos estudos, para que eles possam ver todas as mesas dos alunos e de suas divisões, durante as refeições:haviam sido instaladas latrinas com meias-portas, para que o vigia para lá designado pudesse ver a cabeça e as pernas dos alunos, mas com separações laterais suficientemente elevadas para que os que lá estão não se possam ver. Escrúpulos infinitos de vigilância que: a arquitetura transmite por mil dispositivos sem honra. Só os acharemos irrisórios se esquecermos o papel dessa instrumentação, menor mas sem falha, na objetivação progressiva e no quadriculamento cada vez mais detalhado dos comportamentos individuais. As instituições disciplinares produziram uma maquinaria de controle que funcionou como microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens um aparelho de observação, de registro de treinarnento. (FOUCAULT, 2006:145) Os alunos eram vigiados até no momento de suas refeições, os inspetores tinham o intuito de observar se o comportamento dos alunos era o mesmo das salas de aula, ou se oscilavam conforme o ambiente habitado por eles. Isso era feito porque a escola, por ser um ambiente macroscópico, possuía inúmeros lugares onde se poderia falar sobre as imoralidades do mundo, o que incomodava bastante os administradores e inspetores. Ao demarcarem o ambiente escolar com latrinas e pontos de observação, os mestres passavam a ter uma visão microscópica de toda a instituição e, por conseguinte, de seus alunos. Assim, eles poderiam controlar as conversas e o comportamento de cada um dos internos. Com a prática da observação, os mestres podiam controlá-los, tentando domesticá-los. As escolas eram vigiadas com a intenção de impedir que a imoralidade habitasse seu interior. Eles se preocupavam com o conteúdo das conversas e com os atos dos discípulos, controle que permaneceu enraizado em nossa cultura escolar até o final do século XIX. 48 Durante o século XIX, os inspetores escolares, preocupados com a imoralidade, interditaram a questão sexual, impedindo que os alunos lessem obras que possuíssem cenas de sexo em seu conteúdo, ou que tratassem do assunto. Eles se preocupavam mais em controlar os internos do que em educálos, e foi assim que a sexualidade floresceu no ambiente escolar: o lugar em que o sexo era proibido, passou a ser onde ele mais se proliferou, tornando-se tema recorrente, justamente por sua proibição, principalmente através da ação verbal. Os colégios possuíam em sua estrutura diversas entradas e portas secretas, que eram justamente elaboradas com o propósito de surpreenderem os alunos falando sobre a questão sexual. Os administradores escolares combatiam toda e qualquer manifestação de imoralidade a duras penas e castigos, e possuíam uma grande preocupação em passar para os que ali fossem estudar, ou visitar a instituição, que a imoralidade não habitava as paredes daquele lugar. Toda uma problemática se desenvolve então: a de uma arquitetura que não é mais feita simplesmente para ser vista (fausto dos palácios), ou para vigiar o espaço exterior (geometria das fortalezas), mas para permitir um controle interior, articulado e detalhado - para tornar visíveis os que nela se encontram: mais geralmente, a de uma arquitetura que seria um operador para a transformação dos indivíduos: agir sobre aquele que abriga, dar domínio sobre seu comportamento, reconduzir até eles os efeitos do poder, oferecê-los a um conhecimento, modificá-los. As pedras podem se tornar dóceis e conhecíveis. O velho esquema simples do encarceramento e do fechamento - do muro espesso, da porta sólida que impedem de entrar ou de sair - começa a ser substituído pelo cálculo das aberturas, dos cheios e dos vazios, das passagens e das transparências. (FOUCAULT, 2006:144-5) Foucault demonstra como é o ambiente escolar do século XVIII, a instituição é o local onde o indivíduo recebe as pressões do meio no qual está inserido, sentindo as sensações do encarceramento. Os diretores e os professores faziam com que os alunos tivessem um comportamento adestrado, modificado a partir das restrições e interdições que sofriam dentro da instituição. Ao receberem o tratamento considerado pelos administradores escolares da época correto, os alunos passavam a respeitar o poder e receberem as informações que os mestres acreditavam serem as corretas para a formação intelectual e moral. 49 A discussão de Michel Foucault (2006), em Vigiar e Punir, se baseia no ponto que o homem deixou de aplicar a morte como forma de punição e passou a punir os indivíduos com duras penas, intentando corrigir os erros dos mesmos, fazendo com que o indivíduo se adestrasse com os castigos. Segundo ele, no capítulo que dedicou à instituição Escola, toda punição não deve passar de um corretivo, logo, o professor, antes de castigar, deveria conquistar o discípulo, conseguindo assim seu respeito. Mas, as instituições escolares não agiam da maneira que Foucault nos sugere, elas determinavam castigos para os infratores da moral escolar. Os alunos eram vigiados, porque os mestres não confiavam que sua doutrina fosse capaz de adestrar os internos, eles precisavam aprender através das punições. Não havia entre os mestres a prática de estímulo-resposta, eles preferiam pregar o medo e a repressão entre os internos. Os castigos disciplinares tinham a função de reduzir os desvios dos alunos. Copiados do modelo judiciário, estes privilegiavam as punições das transgressões, castigos estes objetivando a reeducação do aluno, ou por meio do medo da dor física, ou pela repetição de exercícios. (FOUCAULT, 2006:150) O professor deve evitar, tanto quanto possível, usar castigos; ao contrário, deve procurar tornar as recompensas mais freqüentes que as penas, sendo os preguiçosos mais incitados pelo desejo de ser recompensados como os diligentes que pelo receio dos castigos; por isso será muito proveitoso, quando o mestre for obrigado a usar de castigo, que ele ganhe, se puder, o coração da criança, antes de aplicar-lhe o castigo. (DEMIA Apud FOUCAULT, 2006: 150) A punição disciplinar se estrutura a partir de um sistema onde veiculam gratificações, sanções e interdições. Os alunos eram adestrados conforme a visão do mestre, as interdições eram feitas sob o pretexto de sua educação, de que os professores saberiam o correto para seus discípulos. Ao invés de os inspetores conquistarem o respeito dos alunos, obtinham o temor. Por medo das punições que poderiam receber caso não fizessem o estabelecido pelos mestres, os alunos obedeciam sem questionamentos aos professores. Eles tinham a chance de conquistar os corações dos alunos, mas não o faziam, executavam as sanções. Ao preferirem as sanções às recompensas, os inspetores passaram a cultivar nos discípulos um sentimento de rebeldia. O aluno que passasse a enfrentar 50 as penas dos mestres era tido como rebelde e muitas vezes “herói”, e foi isso que propiciou o desejo de ruptura das normas impostas pelos mesmos. O sentimento de ruptura passou então a habitar os corredores e as salas de aula. As interdições impostas pelos administradores passaram a serem burladas pelos alunos de diversas maneiras, desde conversas acerca de temas proibidos como libertinagem até experiências sexuais dos internos. Raul Pompéia, em sua obra O Ateneu, descreve o ambiente das escolas do século XIX. Na personagem do professor e diretor Aristarco Argolo Ramos, ele nos mostra como os administradores escolares lutavam para que os internos não tivessem contato com a cultura externa, desconhecendo, assim, as artimanhas mundanas. Pouco se sabe sobre a concepção da obra de Raul Pompéia, alguns dizem que o livro foi uma espécie de autobiografia, onde o autor relata seus dias como interno do Colégio Abílio, no Rio de Janeiro, onde estudou em sua infância. Na verdade, pouco se sabe se Pompéia retratou seus dias como aluno, ou se partiu de uma experiência para a produção de sua obra. Na realidade, o que nos interessa é o fato dele ter simplesmente concebido o ambiente escolar do século XIX, seja de forma pessoal ou impessoal. Quando Sérgio, personagem principal do romance, é apresentado ao diretor Aristarco na companhia de seu pai, o diretor fala acerca de sua dedicação e luta para combater a imoralidade. Ele diz que ali, em seu colégio, não havia lugar para as “imundícies mundanas”, e que durante os anos de sua mocidade se dedicara a controlar e amordaçar os ímpetos desejos que desviavam os jovens de seus caminhos. Durante o tempo da visita, não falou Aristarco senão das suas lutas, suores que lhe custara a mocidade e que não eram justamente apreciados. "Um trabalho insano! Moderar, animar, corrigir esta massa de caracteres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e encaminhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; adivinhar os temperamentos; prevenir a corrupção; desiludir as aparências sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; desconfiar das hipocrisias; ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança, para depois duvidar; punir para pedir perdão depois... Ah! meus amigos, concluiu ofegante, não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preocupação... É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!" Aristarco tinha para esta palavra uma entonação 51 especial, comprida e terrível, que nunca mais esquece quem a ouviu dos seus lábios. "A imoralidade!" (POMPÉIA, 1985:31). Havia uma preocupação especial com a questão da imoralidade, os mestres interditavam todo pensamento ou ato que estivesse associado a sexualidade. Os internos eram proibidos pelos mesmos de falarem ou insinuarem qualquer ato que estivesse relacionado com o assunto. Observemos na citação acima que o diretor Aristarco Argolo usa os verbos prevenir, vigiar, desiludir, punir, fiscalizar e até adivinhar. Isso mostra como era o cenário do século XIX, com relação ao comportamento dos jovens discípulos nas instituições. As escolas daquele século tinham um papel muito importante na formação dos jovens: eram responsáveis em passar os conhecimentos necessários para que pudessem se tornar homens de bom caráter e conduta exemplar. Os pais viam as instituições escolares como lugares de adestramento de seus filhos, local em que poderiam adquirir os conhecimentos necessários para exercer seus papéis de senhores e cidadãos. Os alunos tinham os comportamentos vigiados pelos inspetores e aquele que fosse surpreendido praticando atos que não estivessem de acordo com as normas do colégio, sofreria grandes punições, servindo de exemplo para os demais alunos, sendo obrigado a enquadrar-se às normas da instituição. As amizades eram fiscalizadas para que, assim, fossem evitadas influências negativas e práticas não condizentes com a moral estabelecida, como atos homossexuais. Por diversos fatores podemos considerar o ambiente escolar como espaço de interdição. Raul Pompéia, através da personagem do diretor Aristarco Argolo, nos mostra que os meninos tinham que se enquadrar dentro de seu regime moralista, sendo que os rapazes tinham que apresentar um comportamento mais próximo ao de uma noviça do que ao de um mancebo, o que fica claro numa das falas do diretor: Ah! Mas eu sou tremendo quando esta desgraça [imoralidade] nos escandaliza. Não! Estejam tranqüilos, os pais! No Ateneu, a imoralidade não existe! Velo pela candura das crianças, como se fossem não digo meus filhos: minhas próprias filhas! O Ateneu é um colégio moralizado! (POMPÉIA, 1985:31) 52 O adestramento estender-se-ia também ao controle das subjetividades, das pulsões dos alunos. Controlando os impulsos e emoções, combatendo as atitudes provenientes do instinto e suprimindo os desejos, os jovens eram ensinados a se portarem dentro dos padrões morais de sua época. Eles eram proibidos de tomarem conhecimento de assuntos que os mestres e professores não julgassem dignos de suas mentes. Como na citação já feita sobre a fala de Aristarco, a função da escola aparece acima de tudo como moralizadora, afinal, disse o diretor: “não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preocupação... É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!” (POMPÉIA, 1985:31). O saber enciclopédico teria o lugar secundário nas diretrizes educacionais em relação ao saberes morais. O olhar que Pompéia despende sobre escola estaria próximo à problemática foucaultiana à medida que pensa o espaço escolar como eminentemente disciplinar. Notemos que o fato de os rapazes saírem sem o devido domínio conteudístico do colégio, não era a preocupação do diretor, mais interessado na formação do caráter, na doutrinação moral. Em O Ateneu, a noção de moralidade referiu-se especialmente à interdição de discursos e práticas referentes ao sexo, se restringe em podar as vontades libertinas. Para ele, um comportamento que exponha a sexualidade, seja através de palavras ou atos, seria algo extremamente reprovável. Como o pensamento dominante do século XIX era o burguês, a escola pretendia ser estandarte do regramento de acordo com a moral dominante, era inadmissível que um cidadão pertencente à alta sociedade demonstrasse um comportamento que não estivesse de acordo com os padrões da época. Os jovens “bem nascidos” deveriam ter uma postura condizente com sua posição social, não era admitido pelos membros de tal sociedade, que um jovem se postasse como um libertino. Assim, os mestres estavam mais preocupados em formar o caráter dos jovens do que torná-los grandes conhecedores de Geografia, Línguas, Matemática, entre outras disciplinas. O quê estava em jogo era o comportamento e não o conhecimento. Em outra cena do livro de Raul Pompéia, Sérgio nos mostra como Aristarco preocupara-se com a conduta em detrimento do saber, demonstrando até desconhecimento do conteúdo que ensinara. Vejamos: 53 Uma vez, muito entusiasmado, o ilustre mestre mostrou-nos o Cruzeiro do Sul. Pouco depois, cochichando com o que sabíamos de pontos cardeais, descobrimos que a janela fazia frente para o norte; não atinamos. Aristarco reconheceu o descuido: não quis desdizer-se. Lá ficou a contragosto o Cruzeiro estampado no hemisfério da estrela polar. (POMPÉIA, 1985:45) Podemos notar como o professor demonstra despreparo ao lecionar a disciplina, mas, mesmo demonstrando desconhecimento do assunto, ele se impõe em sua posição de mestre e não recua de seu posicionamento quanto à localização do Cruzeiro do Sul. Tal atitude era típica da época: professores não assumirem seus erros perante seus discípulos. Os jovens que freqüentavam as escolas no século XIX deveriam possuir um caráter diferenciado dos indivíduos, que não tinham acesso aos referentes recintos. As informações eram repassadas pelos mestres, mas elas estavam mais relacionadas à moral do que ao campo científico. Os professores se preocupavam demais com a conduta de seus discípulos. Raul Pompéia com seu romance O Ateneu, já nos deu prova de como os mestres se preocupavam com tal assunto. Michel Foucault (2006) discute a função da escola como instituição, ele nos mostrando sua semelhança com o sistema penitenciário, quanto as punições e interdições. Assim como o sistema penitenciário, ela teria a pretensão de educar e transformar o indivíduo, enquadrá-lo às suas normas morais. As pessoas que a administram não a conduziam da maneira adequada. O colégio Ateneu, descrito na obra de Pompéia, seria emblema das modelações que a Escola assumiu no Oitocentos, enquanto disciplinadora. A estrutura física da instituição é cheia de portas e entradas secretas, que o diretor Aristarco Argolo usava para surpreender a todos, principalmente aos alunos, e muitas vezes aos professores também, sendo que esses eram observados com intuito de descobrir alguma irregularidade quanto ao assunto repassado em sala de aula. A sala geral do estudo tinha inúmeras portas. Aristarco fazia aparições, de súbito, a qualquer das portas, nos momentos em que menos se podia contar com ele. Levava as aparições às aulas, surpreendendo professores e discípulos. Por meio deste processo de vigilância de inopinados, mantinha no estabelecimento por toda a parte o risco perpétuo do flagrante com uma atmosfera de susto. Fazia mais com isso que a espionagem de todos os bedéis. Chegava o capricho a ponto de 54 deixar algumas janelas ou portas como votadas a fechamento para sempre, com o fim único de um belo dia abri-las bruscamente sobre qualquer maquinação clandestina da vadiagem. (POMPÉIA, 1985:51) Podemos notar que a descrição do colégio Ateneu é a perfeita representação da estrutura da escola do século XIX, onde os alunos recebiam proibições quanto aos conhecimentos que deveriam adquirir ao longo de suas vidas estudantis. Foi em ambientes inóspitos como esse que os movimentos literários Realismo e Naturalismo foram interditados e tal interdição causou grandes manchas nos movimentos ao longo dos anos, principalmente no Naturalismo, manchas que refletem até os dias atuais em nossos livros didáticos de literatura. 55 3. OS RECORTES NAS OBRAS LITERÁRIAS: INTENCIONAIS OU ALEATÓRIOS? “A vida moral do homem forma parte do argumento e do material do artista. Mas a moralidade da arte pretende provar o que quer que seja.” (Oscar Wilde) Se folhearmos um livro didático de Literatura de Ensino Médio com calma e paciência, poderemos perceber que ao chegarmos nos movimentos Realista e Naturalista, não encontraremos alguns autores consagrados de nossa literatura, nem recortes de leitura que exponham a questão sexual. Notaremos que os fragmentos selecionados pelos autores são recortados providencialmente, ou seja, há uma preocupação no tocante a expor somente pontos que não expressem uma conotação sexual para os leitores das obras didáticas. Desta maneira há uma interdição de muitos autores considerados os verdadeiros representantes destes movimentos. Isso pode ser, grosso modo, explicado pelo legado da colonização catequética e patriarcalista; um país e, por conseguinte, uma escola, imersa nas tradições católicas e nas diretrizes conservadoras, uma aprendizagem moralista, nós, ainda vitorianos extemporâneos, clericalistas secularizados e pregadores de uma moral hipócrita. Entendemos desta forma que os livros didáticos são armas ideológicas utilizadas a favor das vontades disciplinadoras, a obra tornou-se mecanismo de interdições, de silêncios que precisam ser lidos, para a compreensão dos modos de controle das subjetividades, objetivo que a instituição escolar assumiu, nos tornando assim, receptores de uma cultural descontextualizada em nossa época. 56 3.1. A Literatura brasileira e a educação catequética A literatura brasileira tem, desde sua formação, características européias. Isso se deu devido a nossa colonização, por termos incorporado os valores europeus que os portugueses aqui impuseram, desde a chegada dos jesuítas com a Companhia de Jesus, quando implantaram colégios no Rio de Janeiro, na Bahia e no Pará, semelhantes aos colégios das Artes existentes na Metrópole. A instalação dos padres jesuítas no Brasil teve grande importância no tocante à educação, já que a tentativa de alfabetização foi imiscuída com a catequese dos gentios que se encontravam em nossa terra recém descoberta. Devemos ainda nos lembrar que a intervenção da Igreja católica nas colônias teve entre tantos motivos os de fazer com que o homem residente nelas não se sentisse seduzido pelas idéias do protestantismo. As idéias do monge Martinho Lutero floresceram e encontraram um terreno fértil perante as atitudes dos entes da Igreja Católica no tocante a fé dos cidadãos europeus. O protestantismo revelou as contradições em que estavam construídos os discursos e práticas do catolicismo medieval, que condenava a usura, mas vendia indulgências e relíquias sagradas; que proibia a luxúria, enquanto a vida sexual de padre e freiras eram de conhecimento público, como já havia sido narrado em Decameron, de Boccaccio. A Igreja ao perceber que o número de adeptos do protestantismo aumentava significativamente em toda Europa, elabora a chamada Contra-Reforma, que consistia em catequizar os habitantes das terras recém descobertas, dentre elas o Brasil. A Igreja encaminhou um grupo de padres, membros da Companhia de Jesus, para catequizarem os pagãos que ali se encontrassem. (BORTOLOTI, 2003:4) Ao chegarem ao Brasil, os jesuítas tinham entre tantos objetivos, o de converterem os índios à fé católica, porque o número de fiéis diminuía rapidamente na Europa, principalmente depois de Lutero ter afixado à porta da catedral de Wittenberg, em 1517, as suas 95 proposições contra o comercio de indulgências praticada por entes da Igreja Católica. (SOUSA, 2003: 02) Mesmo com a repercussão de obras eróticas como poemas de Bocage e, posteriormente, os de Gregório de Matos, os jesuítas tentavam controlar a circulação 57 dessas obras, conservando assim uma cultura imposta pela moral catequética que mantinha seus fiéis afastados de assuntos que levassem a qualquer questionamento de sua fé, pois já enfrentavam grandes problemas com o protestantismo de Lutero na Europa. (PILETTI, 1996 Apud PAIVA BELLO, 2007: 3) Devemos lembrar que desde a nossa literatura de informação, que tem início com a Carta, de Pêro Vaz de Caminha, já havia manifestações descritivas de erotismo na colônia, pois a epístola do escrivão possui características eróticas, representando a beleza das índias: “Andavam ali entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que de nós muito bem as olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. (CAMINHA, 2000: 6) A descrição que Caminha faz das índias que encontrou ao aportar no território brasileiro com os tripulantes das naus portuguesas, é uma representação erótica. Logo o erotismo já existia desde a literatura de informação. Mas ele não vem à tona nos anos que se seguem. Após a Carta, de Caminha, documento que data o início de nossa literatura, a produção literária erótica brasileira teve como representante Gregório de Matos Guerra, que foi, em 10 de agosto de 1797, acusado de heresia e de ter levado uma vida escandalosa, sendo encarcerado em várias prisões portuguesas. (DURIGAN, 1985:22) Assim, concluímos que a Literatura Brasileira, desde a sua formação já se inicia com censuras impostas pela sociedade dominante. A era Realista/Naturalista foi, na verdade, uma arena de lutas onde se confrontavam pensamentos e ideais. De um lado os românticos querendo continuar impondo suas teses e seus ideais, numa perspectiva que refletisse em sua escrita, as co-relacionando com o cotidiano das pessoas. Do outro lado, tínhamos os Realistas, que, mesmo Sodré apontando a sentimentalismo ainda presentes nos representantes brasileiros deste movimento, pretendiam ser contra todo e qualquer pensamento e ideologia romântica. O cientificismo naturalista quis conceber o homem sobre uma visão biológica e social. A etimologia das palavras Realismo/Naturalismo nos remete à idéia de uma realidade natural, portanto, dando ênfase às questões sociais e biológicas, que o movimento nos sugere. (COUTINHO, 1997: 6-9) 58 3.2 A sociedade brasileira e o reflexo do Realismo/Naturalismo nos livros didáticos Ao analisarmos um livro didático de Literatura de Ensino Médio encontramos os movimentos Realismo/Naturalismo sendo desenvolvidos de uma forma sintética, na qual o primeiro é praticamente uma extensão do segundo. Que motivo levaria os autores a tratarem estes movimentos desta maneira? Por que os autores não desenvolveram os movimentos em suas peculiaridades? Acreditamos, para intentarmos essa compreensão, que é necessário inicialmente entender a história do livro didático no Brasil. Poder-se-ia mesmo afirmar que o livro didático não tem uma história própria no Brasil. Sua história não passa de uma seqüência de decretos, leis e medidas governamentais que se sucedem, a partir de 1930, de forma aparentemente desordenada, e sem a correção ou a crítica de outros setores da sociedade (partidos, sindicatos, associações de pais e mestres, associações de alunos, equipes científicas etc.). Essa história da seriação de leis e decretos somente passa a ter sentido quando interpretada à luz das mudanças estruturais como um todo, ocorridas na sociedade brasileira, desde o Estado Novo até a "Nova República". (FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:11) A adoção do livro didático nas escolas brasileiros se deu de ordenada somente com o final da República Velha. Como notamos na fala dos autores, inicialmente foram decretos e leis para só bem depois ser criada realmente uma política direcionada para esta causa. Os livros didáticos passaram a circular no Brasil por volta de 1821, data das reedições de Leitura para Meninos, obra francesa traduzida para o português, com a qual as crianças aprendiam a ler, assimilavam padrões morais e estudavam os conteúdos de disciplinas curriculares, como geografia, cronologia, historia de Portugal e história natural. (ZIBERMAN, 1996:1) Nessa época, a maioria dos livros no Brasil era destinada apenas ao ensino de retórica e gramática. A lista desses livros era composta por: Alfabeto para instrução da mocidade; Arte poética de Horácio, por Cândido Lusitano; Coleção de cartas para meninos; Compêndio de retórica; Elementos de sintaxe; Gramática latina; Gramática portuguesa; Instrução da retórica; Instrução literária; Retórica, de Gilbert, e Retórica, de Quintiliano (SILVA, M.A.,1811 Apud ZIBERMAN, 1996:1). 59 A oferta de livros ainda não era suficiente mesmo para os filhos das elites. A educação das crianças não sendo obrigatória, tampouco o ensino disseminado entre a população, gerou inúmeras queixas, denunciando o estado deficitário da educação infantil e a ausência de livros didáticos apropriados. Segundo Moacyr (Apud ZIBERMAN, 1996:1) o escritor Gonçalves Dias ao realizar uma viagem ao Nordeste, revela ao imperador, em 1862, que: “Um dos defeitos é a falta de compêndios: no interior porque os não há, nas capitais porque não há escolha, ou foi mal feita; porque a escola não é suprida, e os pais relutam em dar os livros exigidos, ou repugnam aos mestres os admitidos pelas autoridades”. A educação só passou a ser obrigatória no Brasil a partir de 1870, com a reforma do ensino proposta pelo imperador, sendo a medida confirmada em seguida pela República, fato que provocou uma grande produção de livros didáticos. A obrigatoriedade do ensino era uma coisa, a aquisição do livro didático era outra, assim percebemos que a aquisição do mesmo era algo extremamente difícil para as camadas inferiores da sociedade da época (ZIBERMAN, 1996:1). Lembremos ainda, que foi a partir do período de 1930 que no Brasil se desenvolveu uma política educacional consciente, progressista, com pretensões democráticas aspirando um embasamento científico. (FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:11) Os programas educacionais, que incluíam o uso do livro didático, foram adotados pelo governo de Getúlio Vargas. Esses foram na verdade uma conquista da revolução de 1930: “Com efeito, a queda da nossa moeda, conjugada com o encarecimento do livro estrangeiro, provocado pela crise econômica mundial, permitiu ao compêndio brasileiro – antes mais caro do que o francês – competir comerciante com este.” (HOLANDA apud FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:11) Quando falamos em política educacional do livro didático, não devemos esquecer que a realização da mesma depende diretamente do regime político em vigência. Especialmente no final da década de 1930, quando o Brasil passou por uma ditadura, o Estado Novo de Vargas, período de grande repressão aos campos intelectuais e culturais, em que a escola se mantém como mecanismo da disciplina moral, assim como, de exacerbação do nacionalismo e da religiosidade. (MAINWARING, 1989:43) Os responsáveis pela elaboração dos livros didáticos manifestavam uma preocupação quanto ao conteúdo dos mesmos, pois havia de conter nas obras somente o estipulado pelo Conselho de Educação. 60 A preocupação dos autores e editores de livros está muito mais voltada para a matéria definida pelos Conselhos de Educação e, portanto, para os conteúdos do livro e as áreas de saber que eles procuram mediatizar, que para o usuario efetivo desse livro, o aluno com suas necessidades, suas afinidades determinadas pela psicogênese pelo contexto cultural e socioeconômico (OLIVEIRA apud FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:116) Como observamos na citação acima, segundo OLIVEIRA (Apud FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997), os autores não demonstravam preocupação alguma com o contexto cultural, nem com os aspectos cognitivos e socioeconômicos dos alunos, uma educação em que as propostas curriculares eram impostas e elaboradas a partir do interesse estatal, apoiadas em uma ideologia dominante e controladora. Desta maneira, eles faziam com que fosse desenvolvido um currículo, em que a realidade da maioria dos brasileiros não estivesse em evidência, criando assim uma realidade totalmente desvinculada da maior parte dos alunos de nossas escolas. Logo, procuravam desta maneira, omitir os problemas sociais, silenciando as contradições de classe nos livros didáticos. A maior parte dos estudos sobre a ideologia do livro didático revelou que os conteúdos dos livros estão desvinculados da realidade das crianças. Muitas vezes eles procuram disfarçar, omitir ou distorcer os problemas e as contradições sociais em que se encontram certas classes sociais e minorias às quais pertencem grande parte das crianças, como é o caso das crianças carentes. (FREITAG, MOTTA, COSTA, 1997:116) A ideologia educacional no Brasil firmava inicialmente que as crianças fossem alfabetizadas para que se tornassem leitores, mesmo que isso acontecesse com a restrição das obras em circulação, devido à censura. Ou seja, a formação de um público leitor não significaria o distanciamento da ideologia de controle, presente no Estado Novo, isso pois, as obras escolhidas pelos responsáveis pela educação naquela época, estavam sujeitas a aprovação estatal. Os idealizadores do livro didático demonstravam a intenção de fazer apenas com que os alunos dominassem a leitura, mas descontextualizada. Abílio César Borges foi o mais célebre autor de livros didáticos no período imperial. Na introdução da primeira edição de Terceiro livro de leitura, ele expõe sua concepção de leitura: 61 Em minha opinião, nos primeiros tempos da escola, não devem os meninos aprender senão a leitura, que lhes é já não pequena dificuldade, para ser ainda acrescentada com outra igual ou maior, qual a da escrita, que só deverão começar a aprender depois que souberem ler e jamais antes dos seis, ou mesmo dos sete anos de idade. (ZIBERMAN, 1996: 2) O século XIX, período em que o Realismo e o Naturalismo surgem, contou com produções literárias, associadas a esses movimentos, mas a maioria das obras Naturalistas que foram sucesso de público e reconhecidas pela crítica literária não tinha seus textos incluídos nas séries de livros didáticos produzidas no início do século XX. Havia uma preocupação quanto ao conteúdo das obras, como já discutimos anteriormente, e não era só com relação à denúncia da sociedade na qual os jovens estavam inseridos, havia também uma preocupação com a moral e os bons costumes dos cidadãos. A série de livros didáticos de João Kopke, produzida no início do século XX, exemplifica bem esse pensamento, pois em sua obra, Primeiro livro de leituras morais e instrutivas, havia textos modelares de escritores brasileiros nos quais enfatizavam as virtudes de uma boa moral. Os escritores elencados por Kopke foram: Alexandre Herculano, Almeida Garret, Álvares de Azevedo, Américo Brasiliense (José Bonifácio de Andrada e Silva), Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, Antônio Feliciano de Castilho, Araújo Porto Alegre, Bernardo Guimarães, Bocage, Camões, Casimiro de Abreu, Castelo Branco, Castro Alves, Curvo Semedo, Eça de Queirós, Evaristo da Veiga, Fagundes Varela, Gonçalves Crespo, Gonçalves Dias, Gregório de Matos, Guerra Junqueiro, João de Deus. João de Lemos, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Machado de Assis, Nicolau Tolentino, Pimentel Maldonado, Pinheiro Chagas, Ramalho Ortigão, Sousa Viterbo e Francisco Adolfo de Varnhagen. (ZIBERMAN, 1996: 3-5) Notamos que na lista de Kopke os autores Naturalistas em momento algum são mencionados, isso demonstra que autores como Júlio Ribeiro, Aluisio de Azevedo, Adolfo Caminha, Domingos Olimpio entre outros menos estudados, foram interditados nas obras didáticas desde o inicio do século XX. Nesta época os professores eram incumbidos de fazerem as sinopses históricas e a apreciação geral da Literatura portuguesa e brasileira. Na seqüência, o 62 Ministério discriminava os conteúdos de cada uma das séries. O livro de leitura era ainda objeto de uma especificação maior, detalhando-se não apenas seu conteúdo, mas igualmente suas finalidades, a longo prazo, pois os dois volumes deste livro eram orientados em dois sentidos, um que interessasse as meninas e o outro, aos rapazes. Os textos destinados de preferência à vontade das meninas devem encarecer as virtudes próprias da mulher, a sua missão de esposa, de mãe, de filha, de irmã, de educadora, o seu reinado no lar e o seu papel na escola, a sua ação nas obras sociais de caridade, o cultivo daquelas qualidades com que ela deve cooperar com o outro sexo na construção da Pátria e na ligação harmônica do sentimento da fraternidade universal. Os excertos que visarem principalmente à educação dos alunos do sexo masculino procurarão enaltecer aquela têmpera de caráter, a força de vontade, a coragem, a compreensão do dever, que fazem os grandes homens de ação, os heróis da vida civil e militar e esse outros elementos, não menos úteis à sociedade e à Nação, que são os bons chefes de família e os homens de trabalho, justos e de bem. (ZIBERMAN, 1996: 7) Percebemos que os textos dos livros de leitura, exponham em seu conteúdo a intenção de modelar a conduta dos jovens, construindo assim um modelo ideal de cidadão. Assim, notamos a finalidade do Ministério da Educação em controlar os conteúdos das obras didáticas e interditar muitos de nossos autores Naturalistas. A lista de autores determinada pela obra didática é bastante variada, composta por escritores Românticos e Realistas, sem, no entanto, nenhum Naturalista. Através do trecho de Regina Ziberman, notamos quais eram as verdadeiras intenções dos autores das referidas obras didáticas. Eles esperavam despertar nos adolescentes, comportamentos próprios de cidadãos que se assemelhassem ao perfil do homem do século XX, um homem de conduta patriarcal e moralizante, e as mulheres deveriam possuir um espírito materno com relação aos filhos e de submissão ao esposo. Desta maneira entendemos que as temáticas apresentadas pelos autores Naturalistas, iriam de encontro às desenvolvidas pelos mestres do magistério da época. Isso porque, para eles, caso fossem abordados os temas desenvolvidos no Naturalismo, poderiam de alguma forma contribuir para o desenvolvimento de uma conduta não aprovada aos moldes daquela sociedade. 63 Assim, encontramos uma coletânea de textos onde os Naturalistas estão totalmente ausentes, isso nos explica o motivo de até hoje encontrarmos a ausência destas obras nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio. Logo, essa interdição não ficou conhecida apenas como uma exclusividade encontrada nos livros do século XX, ela é tão forte que conseguiu transpor as barreiras do tempo e chegar ao século XXI como prática ainda existente nas obras didáticas atuais e desenvolvidas dentro de nossas escolas de Ensino Médio. 3.3 Interditar, para quê? Os autores dos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio sintetizam os movimentos do Realismo/Naturalismo, os transformando muitas vezes num só. Eles também o fazem com os autores e as obras que compuseram principalmente o Naturalismo. Em relação uma questão especialmente nos interessa: qual seria o motivo dos autores dos livros didáticos abordarem em suas obras, apenas recortes de leitura de romance sem cenas eróticas explícitas? Na realidade muitas hipóteses podem surgir quanto ao fato dos autores citarem sucintamente as obras de cunho erótico do movimento Naturalista. Uma delas seria por pudor ou mesmo tabu, e outra seria o fato da não permissão das editoras - uma espécie de censura e assim os autores se limitariam a trabalharem com as obras que não apresentam uma sensualidade evidente. Em nossa pesquisa foram analisados 15 livros didáticos de Literatura do Ensino Médio, obras essas, em que desenvolvemos uma análise minuciosa de seus tópicos, descrevendo-os e caracterizando-os de maneira em que notamos semelhanças com relação a forma como o Realismo e o Naturalismo foram abordados, inclusive com a repetição dos excertos citados. A obra Gramática, literatura & Produção de textos, de Ernani & Nicola (2004), da série de olho no mundo do trabalho, traz em seu conteúdo os movimentos Realismo/Naturalismo num só capítulo, fazendo a abertura do mesmo com dois fragmentos de leitura, um de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis e o outro de O Cortiço, de Aluisio Azevedo. Após uma atividade de quatro questões interpretativas e comparativas entre os textos os autores iniciam a parte teórica com um breve comentário acerca do movimento destacando suas características e destacando como principais 64 autores, Machado de Assis, com as obras Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas, Aluisio Azevedo, com O Mulato e O Cortiço e Raul Pompéia com O Ateneu. Em seguida, eles fazem um pequeno comentário, diferenciando os romances Realista e Naturalista, não se estendendo muito, dizendo apenas que o Realismo é uma denominação genérica que abrange as duas tendências, como escreve o autor: “Finalmente, é importante salientar que Realismo é a denominação genérica de uma escola literária que abrange as tendências seguintes: Romance Realista e Romance Naturalista” (ERNANI & NICOLA, 2004: 313). Ao final do capítulo, eles destinam uma seção a qual nomeiam de Produção literária no Brasil, onde discutem as fases de Machado de Assis e fazem uma pequena análise dos romances, Quincas-Borba e Dom Casmurro. Logo em seguida fazem um pequeno comentário sobre as vidas de Raul Pompéia e Aluísio Azevedo, expondo dois fragmentos dos romances, O Ateneu e O Cortiço, respectivamente. No fragmento do Ateneu, os autores destacam a abertura do capítulo I do livro, onde o narrador personagem Sérgio, recorda o dia em que seu pai o deixou a porta do colégio (Ver Anexo I). Os autores Ernani & Nicola, selecionam ainda um fragmento de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, usando simplesmente a primeira página do terceiro capítulo do livro, uma descrição do Cortiço ao raiar do dia, ao invés de retratarem a sensualidade da Personagem Rita Baiana (Ver Anexo II). Logo em seguida, finalizam a descrição dos movimentos sem fazer se quer um comentário acerca do tratamento despendido pelos literatos à questão do sexo. Além do mais, não cita autores como Adolfo Caminha e Júlio Ribeiro, que foram representativos ao movimento. Os livros didáticos de Literatura de Ensino Médio possuem em sua maioria um texto condensado, quando retratam o panorama histórico dos movimentos literários e as obras que o constituem, com informações suprimidas de modo que as idéia desenvolvidas tornam-se vagas. Os recortes de leitura dos romances Realistas e Naturalistas são feitos de modo que sejam suprimidas as passagens dos romances de grave tom erótico. Os autores preferem momentos de descrições do cenário, ou mesmo em que a temática do sexo apareça de forma velada, ou em referências exíguas, evitando salientar essa característica do movimento. 65 Sendo o Naturalismo o movimento que tem como principal característica representar as patologias sociais e humanas, o sexo fora construído pelos autores dessa escola como a manifestação do lado instintivo, o furo pelo qual a animalidade humana invade a Razão; logo, a cama foi vista como lugar dos desejos insensatos e meramente corporais, das pulsões que precedem o pensamento. O moralismo da interdição nos livros didáticos torna-se mais evidente quando comparado à atenção que os autores dão ao Romantismo. O amor devocional, tido por puro e dentro dos padrões da moralidade burguesa, é salientado como característica das páginas românticas, referendado com vastos exemplos de sentimentalismos platônicos, de sofrimento por amores impossíveis, das lagrimas e inteireza moral dos enlaces, em detrimento às exíguas referências aos casais naturalistas, obliterando as cenas de fornicação, os corpos que cinicamente se esquecem de ser pudicos. O livro de Cereja e Magalhães (2005:188-358) é exemplo disso. Enquanto o romantismo conta com quase cem páginas, as digressões sobre o Realismo e o Naturalismo passam pouco de trinta. Na segunda obra analisada, Português: Língua, Literatura e Produção de Textos (2003), também de Ernani Terra & José de Nicola, os autores dividem os movimentos do Realismo e do Naturalismo em dois capítulos, sendo que no primeiro relata os movimentos em Portugal, citando a Questão Coimbrã e as Conferências Democráticas. A seguir, os autores apresentam uma seção denominada por eles de Produção Literária os escritores Antero de Quental e Eça de Queirós, com trechos de O crime do padre Amaro. Eles abrem o capítulo com dois fragmentos, um do romance, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e o outro de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo que se refere à personagem Rita Baiana (anexo II). Em seguida, eles relatam o contexto histórico do país naquela época e ao final na seção Produção Literária, citam os autores Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio Azevedo, onde apresentam informações bio-bibliográficas dos mesmos, e, para cada um deles, um fragmento de leitura. Como a análise dos trechos de Machado de Assis não interessam a nossa proposta, eles serão apenas referendados, no entanto, sem maiores discussões, nem a apresentação dos fragmentos utilizados nos livros. Para representarem Machado de Assis, eles utilizaram Memórias Póstumas de Brás Cubas, e com relação a Raul Pompéia e Aluísio Azevedo 66 apresentando os mesmos recortes de leitura utilizados em sua obra Gramática, literatura & Produção de textos. Apresentamos em seguida a obra Literatura Brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães (2005). No início do capítulo destinado aos movimentos Realismo/Naturalismo, um pequeno comentário acerca do panorama histórico na Europa, destacando os autores Gustave Flaubert e Émile Zola. Em seguida, em uma seção denominada A Linguagem da prosa realista, os autores expõem uma atividade onde é colocado na integra o conto Missa do galo, de Machado de Assis. Logo adiante em outra seção chamada de, A Linguagem da prosa naturalista, os autores analisam dois fragmentos de leitura, um do romance Germinal, de Émile Zola e o outro de O Cortiço, de Aluísio Azevedo. A análise consiste em identificar as características do movimento Realista nos textos associando as semelhanças que há entre a produção dos autores nas duas obras. O fragmento de Germinal relata as difíceis situações que o protagonista Etienne passa ao longo da narrativa, presenciando e sofrendo condições desumanas e de trabalho que ele seus amigos mineradores do século XIX sofrem. Já o fragmento de O Cortiço é o mesmo trabalhado pelos autores Ernani & Nicola, percebendo-se assim, que há a reincidência dos recortes deste romance (Ver Anexo II). A quarta obra analisada é Literatura Brasileira, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara (2005). A obra tem uma divisão que as outras não apresentaram, nela os movimentos do Realismo e do Naturalismo são desenvolvidos separadamente. No capítulo dedicado ao Realismo, elas fazem a abertura do mesmo com uma imagem de George Clausen, Busto de uma camponesa, onde temos uma mulher de aparência humilde e sofrida. A seguir há algumas questões acerca da figura e um fragmento de Madame Bovary, de Gustave Flaubert. A seção onde se encontra os elementos descritos é nomeada de leitura da imagem e da imagem para o texto. Em seguida há um tópico destinado a Revolução Industrial e alguns subtópicos, que fazem relação com a mesma, só a partir daí é que as autoras iniciam a discussão sobre o movimento Realista na Europa e no Brasil, estabelecendo uma relação entre as obras, Madame Bovary, de Gustave Flaubert e Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. 67 Seguindo a mesma linha, elas iniciam o desenvolvimento das características do movimento fazendo uma comparação entre os romances, O Primo Basílio, de Eça de Queirós e Dom Casmurro, de Machado de Assis, expondo fragmentos dos mesmos, finalizando o capítulo com mais dois recortes de leitura de Machado, Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. No capítulo destinado ao Naturalismo, as autoras executam o mesmo procedimento, usando então como imagem a tela Ferro e carvão, de William Bell Scott, e um fragmento de Germinal, de Émile Zola, notemos que há uma relação com a obra dos autores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães. Logo a seguir, elas desenvolvem algumas características do Naturalismo como, a aproximação entre ciência e o projeto literário do Naturalismo, e ao desenvolver um sub-tópico denominado, Linguagem: a descrição impiedosa, elas utilizam o mesmo fragmento de O Cortiço utilizado pelos autores já citados para descreverem o ambiente onde se passa à narrativa (Ver Anexo III). As autoras ainda se utilizam de mais um recorte que coincide com os outros livros didáticos: mais uma vez, a mesma citação de O Cortiço, onde a personagem Rita Baiana salta no meio da multidão mostrando sua sensualidade (anexo V), e a de O Ateneu, no qual a personagem Sérgio relata os primeiros dias no colégio, mantendo os primeiros contatos com os colegas (Ver Anexo I). Diferentemente dos autores já analisados, elas acrescentam um recorte de Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo (Ver Anexo IV), e assim, finalizam o Naturalismo sem se quer discutir ou interpretarem os fragmentos de leitura. Desta maneira mais uma obra é analisada e constatamos que os demais autores deste movimento foram interditados, pois não são trabalhados nem indicados como possíveis leituras complementares. Em nenhum dos fragmentos foi verificada a ocorrência de cenas de sexo na narrativa. Analisemos agora a obra, Textos: Leituras e Escrita, de Ulisses Infante (2000). Nela, o autor, diferentemente das obras analisadas até aqui, se utiliza de uma organização didática, na qual executa uma divisão das manifestações literárias dos movimentos nos diferentes países, ou seja, não faz comparações ou relações entre autores europeus e brasileiros. Ele discute inicialmente os movimentos Realismo e Naturalismo na Europa, apresentando e desenvolvendo suas características, para só depois 68 selecionar os fragmentos de leitura. Ao fazê-los, os dividem em França, Portugal e Brasil, nos interessando apenas o último, no qual está centrada nossa pesquisa. Na parte dedicada ao Realismo e ao Naturalismo brasileiro, o autor a inicia com uma pequena introdução acerca dos movimentos no Brasil. Apresenta logo em seguida uma seção denominada de Vida e Produção, onde faz uma biografia de Raul Pompéia, usando em seguida três fragmentos de O Ateneu, onde no primeiro, recortando o início do terceiro capítulo, ele destaca o momento no qual a personagem Sérgio recorda do dia em que foi conhecer o banheiro onde os internos se banhavam (Ver Anexo V). O segundo fragmento é igual ao selecionado pelos autores já descritos, momento que Sérgio é levado até o Ateneu por seu pai (Anexo I). O terceiro trata do momento em que o narrador relembra o período de férias, no Ateneu (Ver Anexo VI). A seguir, o autor trabalha na seção Vida e Produção, Aluísio Azevedo, onde seleciona alguns fragmentos de O Cortiço, sendo inclusive um deles trabalhados pelos autores, já citados anteriormente, a descrição do Cortiço ao raiar do dia (anexo III). O quê o autor acrescenta de novo ao que vimos até aqui, comparando com os autores citados na pesquisa, é um comentário sobre O Mulato e Casa de Pensão, onde destaca a história dos romances e alguns pontos das narrativas, e finaliza com um recorte descritivo da organização do cortiço. Continuando, o autor da uma atenção especial às narrativas de Machado de Assis, assim como faz com os outros dois autores na seção, Vida e Produção, destacando fatos de sua vida e algumas características do Realismo peculiares à produção machadiana. Ele utiliza, como exemplos, fragmentos dos romances Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro e Esaú e Jacó. Usando a mesma estratégia didática empregado com os autores Raul Pompéia e Aluísio Azevedo, Ulisses Infante analisa Machado de Assis, a narrativa de seus romances, tecendo comentários críticos acerca dos mesmos. Em sua obra não há sugestões de outras leituras, nem comentários sobre outros autores pertencentes aos movimentos, principalmente ao Naturalismo. Continuando nossa análise, temos a obra Português: Na trama do texto, de Helena Bonito Pereira e Marcia Marisa Pelachin (2004). O livro, assim como a de Ulisses Infante, traz uma divisão dos movimentos por países. Inicialmente as autoras tratam dos movimentos na Europa para depois abordarem as suas manifestações no Brasil. Elas abrem o Realismo brasileiro com um fragmento de Memórias Póstumas 69 de Brás Cubas, chamando a atenção do leitor para alguns aspectos estruturais do texto, como a forma de narrar e a objetividade descritiva do autor. A seguir temos um tópico denominado de Apresentação, onde é feito um pequeno comentário sobre o surgimento do movimento literário. Mais adiante temos mais dois tópicos, o primeiro chamado de Contexto Histórico, onde as autoras estabelecem uma relação histórica entre o Brasil e a Europa. Já no segundo, temos a seção Produção Literária, que vem falar sobre os principais autores deste movimento, mais citando apenas Machado de Assis e Raul Pompéia, este último diferentemente, como nos demais autores fizeram, foi inserido no Realismo ao invés do Naturalismo. As autoras finalizam o capítulo com uma seção chamada de Principais autores, onde são apresentados Machado de Assis e Raul Pompéia. Juntamente com essa seção há dois sub-tópicos, Obras e Comentário Crítico, nos quais comentam algumas obras dos autores e suas características como escritores. De O Ateneu, se usam de um trecho retirado do momento em que Sérgio descrevendo a rotina no colégio, e assim finalizam a parte que compete ao Realismo sem fazer qualquer referência a outros autores deste movimento. No capítulo destinado ao Naturalismo, a estrutura é a mesma do anterior, sendo que apenas um autor é trabalhado neste capítulo: Aluísio Azevedo. No subtópico Comentário crítico, as autoras comentam três obras do autor: O Mulato, Casa de Pensão e O Cortiço, sendo que o comentário está mais para a descrição do enredo do que para um comentário crítico das obras. Logo em seguida aplicam uma atividade interpretativa de dois fragmentos de O Cortiço, eles tratam justamente do momento em que Jerônimo caiu doente e Rita Baiana foi visitá-lo (Ver Anexo VII). A referida obra apresenta ao final dos dois capítulos uma seção que até então não tínhamos encontrado em nenhum dos autores analisados, que é a seção Outros Escritores Naturalistas, onde são citados: Inglês de Sousa, destacando a sua obra O missionário, e Adolfo Caminha com seus dois romances, A normalista e O Bom Crioulo. Diferentemente das demais obras analisadas, há referências informando outros autores não desenvolvidos no livro didático, sem, no entanto, que os romances sejam analisados e ainda a completa interdição de Júlio Ribeiro, considerado por muitos o Zola brasileiro. 70 Passemos agora para análise de Português: Novas palavras e Literatura Gramática Redação, de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio (2000). A obra não apresenta divisão entre os movimentos estudados. Eles são divididos em, O Realismo e o Naturalismo em Portugal e O Realismo e o Naturalismo no Brasil. O capítulo destinado aos movimentos no Brasil, que é o que nos interessa, se inicia com uma seção chamada de Primeira Leitura, onde há um fragmento de O Cortiço, descrevendo a estalagem de São Romão e como esta se tornou uma grande lavanderia (Ver Anexo VIII). . A seguir, temos um pequeno comentário sobre a obra e suas personagens, mais adiante outra seção nomeada, de Momento histórico do Realismo e do Naturalismo no Brasil. Neste tópico, os autores falam do contexto político/histórico do Brasil do século XIX, apresentam O Realismo e o Naturalismo no Brasil, onde falam da maneira como o movimento se manifestou no país e suas obras inaugurais. Em seguida, trazem uma pequena biografia de Aluísio de Azevedo, com um resumo de O Cortiço, encerrando o capítulo com dois sub-tópicos: o primeiro nomeado de Outros autores e obras Naturalistas, em que há exploração do impressionismo na obra de Raul Pompéia, O Ateneu, e um pequeno comentário acerca da obra com um minúsculo resumo. No segundo, chamado de A ficção regionalista, há indicação de cinco autores com suas respectivas obras, Manuel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha no Poço; Domingos Olímpio, Luzia – Homem; Afonso Arinos: Pelo Sertão; Valdomiro Silveira, Os caboclos, e Simões Lopes Neto, Contos gauchescos. Antes dos autores darem continuidade a outro movimento, eles dedicam um capítulo inteiro a Machado de Assis, onde trabalham uma pequena atividade sobre o conto, Uns braços. Apresentam em seguida três resumos de obras do autor, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro, finalizando assim o estudo dos movimentos. Continuemos nossa análise com Estudos de Língua e Literatura, de Douglas Tufano (1990). Temos nesta obra em comum com as descritas o fato do autor dividir os movimentos em capítulos distintos, entretanto, Tufano tece comentários mais perspicazes, se o compararmos com os autores já citados. Ele inicia a parte dedicada ao Realismo com um fragmento de O Cortiço, o mesmo usado por muitos dos autores já analisados (Ver Anexo III), mas logo em 71 seguida nos surpreende com um contexto histórico extremamente aprofundado, onde não só relata as transformações sociais que o século XIX passava como as conquistas nos campos cientifico, filosófico e sociológico, acrescentando ainda, um quadro com as principais descobertas da época. O curioso nisso tudo, é que o autor não distingue o Realismo do Naturalismo, citando os autores e suas obras dentro de um único movimento. Após todo esse processo, ele aborda o início do movimento Realista na França com a polêmica obra, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, usando inclusive um fragmento do romance. Porém, o autor abre um parêntese para destacar algumas características do Realismo que possuem uma tendência Naturalista, salientando a obra, O missionário, de Inglês de Sousa, denominando o fragmento para estudo, de A força do sexo. Seguindo o desenvolvimento dos capítulos, o autor dedica um deles, exclusivamente ao Realismo em Portugal. Passemos adiante para descrevermos o dedicado ao Brasil, onde a nossa pesquisa está centrada. Neste, o autor aborda as transformações políticas e sociais que o país enfrentava na época, exibindo um quadro com a cronologia dos principais romances do Realismo no Brasil (Ver Anexo IX). Em seguida, o autor traz uma pequena biografia de Aluísio Azevedo, citando alguns de seus romances, expondo dois fragmentos de leitura, um de O Mulato e, outro, de O Cortiço. Sobre eles, fez dois comentários, analisando-os do ponto de vista literário. No capítulo seguinte, denominado de O Realismo no Brasil: Machado de Assis, relata fatos da vida desse autor e de sua produção literária, usando fragmentos de contos e romances do autor. Destacando entre eles: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro e Quincas Borba. Realizando para cada fragmento uma atividade interpretativa, gramatical e sugestões para produções textuais. Analisemos a obra Linguagens Estrutura e Arte: Língua, Literatura e Redação, de Rose Jordão e Clenir Bellezi de Oliveira (1999). As autoras dividem o movimento Realista em dois capítulos, Realismo Português e Realismo/Naturalismo Brasileiro. As autoras iniciam o capítulo dedicado ao movimento no Brasil com um pequeno comentário sobre o contexto político/histórico no Brasil, relatando os 72 principais fatos daquele momento. A seguir, abrem uma seção denominada A prosa Realista/Naturalista brasileira, onde citam a produção de Machado de Assis, falando mais detidamente de seu estilo como escritor, usando para exemplificar as características das escolas o conto Missa do Galo. Em seguida usa alguns fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro. Continuando nossa descrição, temos mais adiante, a seção A prosa Naturalista brasileira, em que as autoras falam da produção de Aluísio Azevedo e Raul Pompéia. Do primeiro, exploram a obra O Cortiço, onde apresentam inicialmente um pequeno enredo e depois alguns fragmentos, sendo um deles o mesmo utilizado pelos autores já descritos (Ver Anexo III), os demais fazem referência às personagens, Rita Baiana, Jerônimo e Pombinha. Com relação a Raul Pompéia, para ilustrarem a obra O Ateneu, as autoras utilizam apenas do momento no romance em que Rabelo faz injúrias a respeito de seus colegas, deixando Sérgio a par das situações do colégio, mostrando a verdadeira face de cada um dos internos. Vejamos agora a obra Português: Literatura, Gramática e Produção Textual, de Leila Lauar Sarmento e Douglas Tufano (2004). Os autores também dividem o Realismo em dois capítulos, um para o português e outro para o brasileiro. Sobre o movimento no Brasil, eles fazem um pequeno comentário sobre o período histórico do país com algumas informações sobre Aluísio Azevedo e a sua obra O Cortiço. Para exemplificar, os autores trabalham com um recorte do momento no qual a personagem João Romão se mostra preocupada com a presença de Bertoleza em sua vida. Mais adiante, citam Raul Pompéia, sem, entretanto, utilizar recortes da obra, citando apenas fatos de sua vida e produção literária. Passemos agora para a décima primeira obra analisada em nosso trabalho: Português para o ensino médio: Literatura, Gramática e Produção de Textos, de Nicola, de Floriana e de Ernani (2002). Nesta, os seus autores trabalham o movimento Realista em apenas um capítulo, iniciando a descrição do movimento com um fragmento de O primo Basílio, de Eça de Queirós, analisadas em correlação com as teorias que surgiram na Europa durante o século XIX. A seguir, falam do Realismo nas artes plásticas e do movimento em Portugal e no Brasil, neste último, assim como nos demais, falam das mudanças 73 político/sociais enfrentadas pelo país. Mais a diante, citam e desenvolvem as características do movimento, diferenciando rapidamente romance Realista de Naturalista. Em seguida, abrem uma seção chamada de A produção Literária em Portugal, onde citam Antero de Quental e Eça de Queirós, para exemplificar o segundo utilizam um fragmento de O crime do padre Amaro. Na seção dedicada à produção literária no Brasil, destacam Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio Azevedo. Sobre suas obras, tecem pequenos comentários em relação a Dom Casmurro e a Memórias Póstumas de Brás Cubas, ambos de Machado de Assis; O Ateneu, de Pompéia, e O Cortiço, de Aluísio Azevedo. Das obras comentadas, foram extraidos fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Ateneu e O Cortiço, sendo que para os dois últimos, utilizam os mesmos recortes apresentados aqui (Ver Anexos II e III). Passemos para a Análise da obra: Curso Prático de Português: Literatura, Gramática e Redação, de Luís Agostinho Cadore (1998). O autor divide o Realismo em duas partes: a primeira, dedicada ao movimento em Portugal e a segunda ao brasileiro, cisão já canônica entre os livros didáticos, como se pode ver nos exemplos anteriores. Relatemos a última parte, por está associada a nossa pesquisa. O capítulo dedicado ao movimento Brasileiro é dividido em três partes. A primeira, iniciada com um pequeno comentário sobre o contexto histórico brasileiro e uma pequena biografia de Machado de Assis. Apresentam, ainda, para exemplificar as características do literato, expõe fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro. Na segunda parte, o autor faz algumas reflexões sobre os movimentos no Brasil, em uma seção denominada, de Principais Representantes ele cita dois autores: Aluísio Azevedo e Manuel Oliveira Paiva. Para cada um, um fragmento de seus respectivos romances, O Cortiço e Dona Guidinha. Para o primeiro romance, o autor apresenta o momento que Rita Baiana é interrogada pelas lavadeiras do cortiço (Ver Anexo VIII), já sobre o segundo, seleciona o momento que Margarida contrata Lulu para matar o Major (Ver Anexo X). Na terceira parte, temos a figura de Raul Pompéia, onde nos é apresentado um pequeno resumo sobre sua vida e produção literária. Mais adiante, 74 apresenta um fragmento do romance, o momento em que a personagem Sérgio narra sua rotina diária, enfatizando a caída da noite no Ateneu (Ver Anexo XI). Vejamos agora a obra: Arte Literária: Portugal & Brasil, de Clenir Bellezi de Oliveira (1999). Seguindo a proposta apresentada no título do livro, a autora divide o movimento em dois capítulos. No dedicado ao português, ela cita as manifestações literárias em Portugal, no século XIX, e seus principais autores. Com relação ao movimento no Brasil, ela inicia o capítulo com o contexto histórico do país, apresentando a seguir Machado de Assis, relatando fatos biográficos e características próprias do autor. Para exemplificar a produção do autor, ela utiliza o conto: “Missa do Galo”, onde faz uma análise da narrativa machadiana. A autora continua sua linha de trabalho apresentando fragmentos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires. Mais adiante, a autora apresenta Aluísio Azevedo, onde cita fatos biográficos do autor e a análise da narrativa de O Cortiço, citando três fragmentos do romance, sobre João Romão, Jerônimo e Rita Baiana (Ver Anexos II e VII). Com relação a Raul Pompéia, a autora faz o mesmo: tece alguns comentários sobre sua vida e produção literária, selecionando alguns fragmentos de O Ateneu e finaliza o capítulo com alguns comentários sobre Adolfo Caminha, Inglês de Sousa e Manuel Oliveira Paiva. Sobre o primeiro, cita apenas fatos biográficos; do segundo faz o mesmo, mas acrescenta um pequeno comentário sobre a obra O Missionário, e, sobre o último, apenas uma minúscula biografia. Dando continuidade ao nosso trabalho, analisaremos a obra Português: série novo ensino, de João Domingos Maia (2001). O autor divide os movimentos Realista e Naturalista em quatro partes: inicia a primeira com um trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas, falando do contexto histórico dos movimentos na Europa, caracterizando as manifestações científicas da época, assim como as características das escolas. Para a segunda parte, o autor utiliza um fragmento, de “Missa do Galo”, trabalhando também o contexto histórico do Brasil no século XIX, destacando mais a diante em uma seção denominada de Principais autores do Realismo – Naturalismo os autores Machado de Assis, Raul Pompéia e Aluísio Azevedo. Encerra esta parte com um pequeno comentário sobre o Realismo – Naturalismo em Portugal, 75 destacando como principais autores Eça de Queirós, Antero de Quental e Cesário Verde. Na terceira parte, temos um recorte de Dom Casmurro, e um comentário a parte sobre o escritor Machado de Assis, no qual são citados fatos biográficos e sua produção literária. Para trabalhar a quarta e última parte, finalizando sua digressão sobre os movimentos do Realismo e Naturalismo, o autor apresenta Aluísio Azevedo e Raul Pompéia. Sobre o primeiro, expõe fragmentos de O Cortiço e uma pequena biografia do autor, já sobre Raul Pompéia cita apenas alguns comentários sobre sua vida e sua produção literária. Concluiremos nossa análise com a obra Português: Literatura, Produção de Textos & Gramática, de Samira Yousseff Campedelli e Jésus Barbosa Souza (2001). Os autores deste volume não dividem o movimento Realista entre europeu e brasileiro e não estabelecem uma diferença nítida entre Realismo e Naturalismo. Apresentam apenas um pequeno quadro comparativo das características dos mesmos. A seguir temos a situação histórica dos movimentos na Europa, onde os autores relatam cada uma das suas características, apresentando também o contexto histórico do movimento português, onde expõem um recorte, de O primo Basílio de Eça de Queirós. Dando continuidade ao desenvolvimento do capítulo, os autores abrem uma seção denominada por eles de Implantação do Realismo-Naturalismo no Brasil, abordando nela a situação histórica do país durante o século XIX. Em seguida em um sub-tópico, Estudo Crítico de Autores, apresentam Machado de Assis, Aluísio Azevedo e Raul Pompéia, trabalhando fragmentos das obras Memórias Póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, O Cortiço e O Ateneu, sendo que nosso interesse se delimita ao tratamento dos dois últimos. Do romance de Aluísio Azevedo, O Cortiço, selecionam um trecho sobre a personagem João Romão, e da obra de Pompéia retiram o recorte de quando a personagem Sérgio descreve o dia a dia do colégio Ateneu(Ver Anexo VI). Ao analisarmos os fragmentos dos romances notamos que eles não estabelecem nenhuma relação com a proposta do movimento. Não há no recorte de leitura pontos que possam enfatizar o Naturalismo, tampouco fazer com que a questão sexual seja exposta, temática explorada na obra de Pompéia, O Ateneu com o homossexualismo inevitável entre os internos. 76 Na verdade para os autores é muito mais conveniente falar de assuntos que em sua essência possuam características não causadoras de impactos nos leitores, do que as que agucem a curiosidade. Isso faz com que alguns assuntos que retratam questões polêmicas, tabus, como a questão sexual, sejam interditados das obras didáticas, assim percebemos porque assuntos desta natureza ainda são muito pouco abordados nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio. Ao observarmos estes livros, percebermos que tais obras ao tratarem da literatura brasileira possuem certas limitações quanto ao movimento do Realismo/Naturalismo, retratados de forma tímida. Lembremos que inicialmente algumas camadas da sociedade brasileira, assim como as demais demonstraram uma grande resistência quanto aos movimentos Realismo/Naturalismo, pois os romances pertencentes a tais movimentos eram considerados profanos e de má conduta. As obras literárias de alguns autores foram repelidas de imediato pelas famílias “distintas e de bom costume”, sendo que para os moralistas tais obras poderiam perverter uma mulher distinta, transformando-a em libertina, ou seja, poderia fazer com que uma esposa amável e dedicada se tornasse uma vil criatura. Notamos em nossa análise que o movimento Naturalista com seus autores e suas obras foi exiguamente tratado, pouco exemplificado com citações nos livros didáticos, diferentemente dos autores que são tidos como Românticos, ou Realistas. Mas devemos lembrar que o Naturalismo como movimento literário sobressaiu-se ao Realismo, por ser mais detalhista quanto à descrição, pela denuncia da hipocrisia da sociedade burguesa e pelo anti-clericalismo. A sociedade do século XIX estava moldada dentro dos padrões burgueses, o romance romântico era o grande representante de tal sociedade. Os românticos desenvolviam em suas obras personagens tipicamente burgueses. Enquanto os românticos colocavam a virtude, a valorização da virgindade e do primeiro amor, como ideais de seus personagens, os Naturalistas desenvolviam personagens pérfidas, libertinas e patológicas, ou seja, seres que eram “escondidos” nas narrativas românticas. O instrumento aparentemente poderoso do naturalismo consistia na descrição fria e fidelíssima, na mera reprodução, naquela "bisbilhotice de trapeiros" já referida por alguém. A reprodução fiel, a cópia habitual, tornaram-se uma receita. Ela se definiu sob as 77 condições da sociedade do ocidente europeu na segunda metade do século XIX. Havia que reproduzir, e não apenas aqueles cenários antes objeto de reprodução, mas outros, alargando o campo de observação e integrando nele outras faixas da atividade humana. O naturalismo, assim buscou crescer em extensão, quantitativamente. Não apenas reproduzir o conhecido, o costumeiro aquilo que vinha sendo objeto da narração romântica, mas também, e principalmente, aquilo que ela escondera com o seu véu denso e deformante. Ora, o mais velho dos temas, o do amor, tinha um mundo escondido. Foi esse mundo que o naturalismo atacou principalmente, atacou a fundo, trazendo para a ficção os aspectos recônditos, violentos e orgânicos do amor. O que, antes, era apenas sentimento, passou a ser apenas fisiologia. SODRÉ (1965: 136-7) Lembremos que no romance romântico, seus personagens eram desprovidos de práticas sexuais explicitadas narrativamente. Dentro das temáticas do movimento era completamente inadmissível que tais pontos fossem abordados. A literatura da época estava completamente voltada para o público burguês. Assim como os românticos, os romances realistas e naturalistas representavam as tendências da literatura burguesa. Começaria, pois, com o triunfo absoluto da burguesia, abrindo, os campos mais largos à iniciativa individual, ao tremendo rush da ordem privada com o acabamento da desarticulação das instituições feudais. O clássico reflete essa mudança profunda, na sua infatigável busca de normas e de cânones a que deveriam obediência tôdas as manifestações artísticas. As mudanças eram lentas,a princípio,"refletindo uma sociedade em que a acumulação de fortunas indivíduos aparecia raramente, era fato isolado e esporádico. (SODRÉ, 1965: 132-3) Em nossa análise, percebemos que os livros didáticos de Literatura de Ensino Médio possuem grandes limitações no tocante à seleção dos fragmentos de leitura das obras literárias. É sabido por nós que os autores têm objetivos específicos ao selecionarem alguns romances. Mas o que nos chamou a atenção foi o fato da maioria dos autores escolheram apenas três obras para trabalharem os movimentos Realismo e Naturalismo em seus livros didáticos. Todos os quinze livros didáticos analisados por nós abordaram nos movimentos Realista/Naturalista os romances Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, O Cortiço, de Aluisio de Azevedo e O Ateneu, de Raul Pompéia, salvo alguns que trabalharam com outras obras de Machado. 78 Devemos lembrar que o livro é um instrumento de poder, e, muitas vezes, um aliado às tentativas de disciplinamento moral, ou seja, um elemento que possibilitem os indivíduos enquadra-se nas normatizações de seu tempo e de seu grupo social. Em nossa análise notamos que os livros didáticos não abordam ou tocam sumariamente nas obras Naturalistas, como: O Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha, A Carne, de Júlio Ribeiro, Luzia–Homem, de Domingos Olímpio e até mesmo as de Aluisio de Azevedo, O Mulato e Casa de Pensão (esses dois últimos livros mais conhecidos da escola naturalista brasileira). Observamos que estas obras estão ausentes das páginas que compõem os livros didáticos, uma ausência regular, como um acordo tácito, uma regra latente ao tratamento do Naturalismo nestes livros, exceto por O Cortiço, que foi citado em todos os livros. Seria coincidência que a maioria dos autores dos livros didáticos negligenciarem de suas obras tais escritores? Preferimos defender que não. Percebamos que os autores dos livros didáticos possuem um leque de alternativas para trabalharem com os recortes de leitura, mas não as utilizam. Os recortes são providenciais, pois podemos notar ao efetuarmos as leituras das obras. É sabido por nós que livros como O Bom Crioulo e A Normalista, ambos de Adolfo Caminha, foram extremamente repudiados pela sociedade da época. Um foi um acerto de contas com a marinha, o outro com a sociedade cearense. “Caminha provocou escândalo ao escrever sobre a paixão entre o crioulo e o grumete. As cenas de sexo entre dois homens chocaram críticos sérios e atrapalharam a recepção do livro.” (CARVALHO, Revista Cult. 2002: 32-3) As obras de Adolfo Caminha, carregam consigo este estigma até os dias atuais. Fato que nos leva a crer que isso seja um dos motivos delas serem interditadas dos livros didáticos de Ensino Médio, a forte temática do homossexualismo. A grande questão que permeia todo nosso trabalho é percebermos que os livros didáticos de Literatura de Ensino Médio não abordam em suas análises obras que possuam um cunho erótico, e quando abordam não citam trechos que possam “ferir a moral”. Muitos autores, mesmo sendo considerados canônicos e respeitados pela crítica, não só pela brasileira como as de outros países, são interditados das obras didáticas. 79 O cearense Adolfo Caminha, assim como ocorreu na vida pública, foi também excluído dos livros didáticos. Na época do lançamento de suas obras, elas foram consideradas imorais e impróprias para a leitura de rapazes e moças distintas da sociedade cearense do século XIX. Adolfo Caminha não é apenas o único autor considerado cânone de nossa literatura, que teve seu nome e suas obras interditadas. Júlio Ribeiro também é um nome que se encontra ausente das obras didáticas. Na realidade, ser um cânone, não é o suficiente para ser estudado e analisado nos livros didáticos de Literatura, é preciso está de acordo com os moldes e padrões da sociedade dominante de nosso país. Em nome da moral, da instituição-escola, da Igreja; em nome do correto, da inteireza e do belo; em nome da pureza e da civilização, os livros didáticos foram lanceando autores e romances que se usam do erotismo nas redes do esquecimento, ou no silêncio, para assim, igualmente apagar suas cenas do cenário escolar, reproduzindo o tabu do sexo, moralizando pela interdição. Felizmente, isso não foi possível. Mas esse não é mais assunto para esse texto. 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS A primeira e mais importante constatação a qual chegamos em nossa análise é que os autores Naturalistas e suas obras são interditados nos livros didáticos de Literatura de Ensino Médio. É importante observar, ainda, que essa predominância se mantém em todos os 15 livros analisados aqui por nós. Quanto a este fato, percebemos, também, que os movimentos do Realismo e Naturalismo não possuem desenvolvimento de suas temáticas, e que o Naturalismo é trabalhado muitas vezes como uma pequena extensão do Realismo. Ressaltamos, ainda, que as obras dos escritores Naturalistas são evitadas pelos autores dos livros didáticos. A partir do momento que os escritores Naturalistas são interditados dos livros didáticos, os autores tentam impedir que estudantes brasileiros tomem conhecimento das grandes representações literárias que nosso país teve durante o final do século XIX. Portanto, sabemos que Sodré (1965) apontou o movimento Naturalista brasileiro, como mais completo do que o Realismo, no tocante ao desenvolvimento de suas características. Observando o depoimento de uma das maiores personalidades de crítica literária do país, faz com que repensemos o ensino de Literatura tendo que confiar nas obras didáticas. Esta consideração nos faz refletir sobre a forma como os conteúdos de Literatura são inseridos nos livros didáticos. Os autores possuem inúmeras formas de adicioná-los em suas obras, mas não os fazem, procurando entender tais questões nos surgem muitas formas de questionarmos a escolha e a seleção dos autores e obras trabalhadas nos livros didáticos. Entender a formulação do livro didático é desvendar o porquê da interdição dos autores Naturalistas. Compreendendo o processo, desde a escolha dos autores e suas obras, pelo autor do livro didático, até a verificação e aprovação das editoras. Logo, ao constatarmos a interdição dos autores Naturalistas e a supressão do conteúdo de suas obras, devemos observar como está estruturado o livro didático de Literatura do Ensino Médio com relação a sua composição no tocante a formação do cidadão crítico perante a sociedade atual. 81 Assim, vale ressaltar que devemos a partir deste ponto repensarmos o ensino de Literatura em nossas escolas, baseando-se apenas nos conteúdos formulados nos livros didáticos. É preciso desde já, que o professor de Literatura tenha sensibilidade ao ministrar suas aulas, acrescentando aos conteúdos propostos pelo livro didático os conhecimentos necessários sobre nossos escritores Naturalistas, conseguindo assim, que os mesmos passem a fazer parte do contexto escolar do aluno, e não como algo proibido e profano. Mas vale ressaltar, que as questões de moral e pudor estão enraizadas em nossa cultural, as influências que recebemos durante o processo de colonização, se refletem até o atual momento de nossa educação. 82 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABAURRE, Maria Luiza M.; PONTARA, Marcela. Literatura brasileira: tempos leitores e leituras, v. único. São Paulo: Editora Moderna, 2005. ABRIL, A Enciclopédia. Editora Abril, 1972. AGOSTINHO, Luís Cadore. Curso prático de português, v. único. São Paulo: Editora Àtica, 1998. ALEXANDRIAN. História da Literatura Erótica. Tradução de Ana Maria Scherer e José Laurêncio de Melo. Rio de Janeiro: Editora, Rocco, 1994. AMARAL, Emília; FERREIRA, Mauro; LEITE, Ricardo; ANTÔNIO, Severino. Novas palavras, v. 2. São Paulo: FTD, 1997. ARAÚJO, Emanuel. “Eva Tupinambá”. In: DEL PRIORE, Mary: A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia. BELLEZI, Clenir de Oliveira. Arte Literária – Portugal – Brasil, v. único. São Paulo: Editora Moderna, 1999. BELLO, José Luiz de Paiva. http://www.pedagogiaemfoco.pro.br. acessado em 26/10/07 ás 10:20. BLOOM, Harold. O Cânone Ocidental: Os livros e a escola do tempo – Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Nova Cultural, 2003. BORTOLOTI, Karen Fernanda da Silva. O Rario Studiorum e a missão no Brasil. Mestranda UNESP/Franca, agência financiadora: FAPESP. Disponível em http://www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol1n2/ratio.htm, acessado às 17:05 08/02/2008. 83 BULHÕES, Marcelo. Leituras do desejo: O Erotismo no Romance Naturalista Brasileiro – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. CAMINHA, Adolfo. O Bom Crioulo. Ed. ABC – Fortaleza,1998. CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta de Pero Vaz de Caminha – Fortaleza – CE: Fundação Edson Queiroz, 2000. CAMPEDELLI, Samira Yousseff; BARBOSA, Jésus Souza. Português Literatura, Produção de Textos e Gramática, v. único. São Paulo: Saraiva, 2001. CATONNÉ, Jean – Philippe. A sexualidade, ontem e hoje.[tradução Michele Íris Koralek]. – 2ª edição – São Paulo, Cortez 2001. – (Coleção Questões da Nossa Época; v. 40) COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil – Era Realista Era de Transição v. 4. São Paulo: Editora, Global, 1997. CULT, Revista. Literatura Gay – bandeira política ou gênero literário? São Paulo – Ed. 17, ano VI – N° 66 2002. DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto, 2001. DURIGAN, Jesus Antônio. Erotismo e Literatura. São Paulo: Àtica, 1985. (Série Princípios) ESCOLA, Revista Nova. Edição 0204, editora Abril. São Paulo – SP, agosto 2007. FERREIRA, Olavo Leonel. História do Brasil. São Paulo: Editora Ática, 1986. FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. _________. Vigiar e Punir: História da Violência nas Prisões, tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora, Vozes, 2006. 84 FREITAG, Bárbara; COSTA, Wanderly Ferreira da; MOTTA, Valéria Rodrigues. O Livro Didático em Questão , 3. ed. São Paulo: Cortez, 1997. INFANTE, Ulisses. Textos: leituras e escritas, v. único. São Paulo: Editora Scipione, 2004. JORDÂO, Rose; OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Linguagens Estrutura e Arte Língua, Literatura e Redação, v. 2. São Paulo: Editora Moderna, 1999. MAIA, João Domingos. Português. v. Único. São Paulo: Editora Ática, 2001. MILAN, Betty (o que é amor) 1983. BRANCO, Lucia Castello (o que é erotismo) 1983. MORAES, Eliane Roberte e LAPEIZ, Sandra Maria (o que é pornografia). 1984. Circulo do livro, edição integral. São Paulo – SP 1984. MOTT, Luis. Cupido na sala de aula: pedofilia e pederastia no Brasil antigo. Caderno. de pesquisa. (69) maio 1989, Do Dept.º de Antropologia /UFBa. PEREIRA, Helena Bonito; PELACHIN, Márcia Maisa. Português na trama do texto, v. único. São Paulo: Editora FTD, 2004. PEREIRA, Otaviano. O que é moral (col.: Primeiros Passos, n° 244). Rio de Janeiro: Brasiliense, 1998. PILETTI, Nelson, História da Educação no Brasil. 6. ed. São Paulo: Ática, 1996. POMPÉIA, Raul. O Ateneu. Rio de Janeiro: Editora, Ediouro, 1986. ROBERTO, Willian Cereja; COCHAR, Thereza Magalhães Literatura brasileira, v. único. São Paulo: Editora Atual, 2005. SARMENTO, Leila Lauar; TUFANO, Douglas. Português Literatura Gramática e Produção de Textos, v. único. São Paulo: Editora Moderna, 2005. SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Rio de Janeiro – RJ: Editora Civilização Brasileira S.A. 1965. 85 SOUSA, Jesus Maria. Os jesuítas e a Ration Studiorum as raízes da formação de professores na Madeira. Universidade da Madeira, 2003. disponível em http://www.uma.pt/jesussousa/Publicacoes/31OsJesuitaseaRatioStudiorum.PD F acessado às 17:15 08/02/2008 TERRA, Ernani; NICOLA José de. Português Língua Literatura e Produção de Textos, v. 2. São Paulo: Editora Scipione, 2003. __________; __________. Português, v. único. São Paulo: Editora Scipione, 2004. __________; ___________; CAVALETE, Floriana Toscana. Português Língua, literatura e Produção de Textos, v. único. São Paulo: Editora Scipione, 2002. TUFANO, Douglas. Estudos de língua e literatura, v.2. São Paulo: Editora Moderna, 1992. WILDE, Oscar. Aforismos ou mensagens eternas. São Paulo: Landy Editora – coleção novos caminhos 2006. ZIBERMAN, Regina. No Começo a Leitura (1996). Periódicos de 1990 à 1996, periódico 69, http://www.inep.gov.br/cibec/linha_editorial/on_line.asp, acessado em 26/10/07 ás 9:35. 86 Anexos Anexo I O Ateneu 87 Capítulo (fragmento) "Vais encontrar o mundo”, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. "Coragem para a luta!" Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramonos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam. Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo - a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida. Eu tinha onze anos. POMPÉIA, Raul. O Ateneu - crônica de saudades. São Paulo: Scipione, 1995. Anexo II 88 RITA BAIANA E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher. Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita, como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra o fundo. Depois, como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar os quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca, enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando. Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa persistência de loucura. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Scipione, 1995. Anexo III O cortiço 89 Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada, sete horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em terra alheia. A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e punha-lhe um fartum acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas. Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono; ouviamse amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons dias; reatavam-se conversas interrompidas à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruidosamente, espanejando-se à luz nova do dia. Daí a pouco, em volta das bicas era um zum-zum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em molhar o pêlo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá 90 ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas. O rumor crescia, condensando-se; o zum-zum de todos os dias acentuava-se: já não se destacavam vozes dispersas, mas um só ruído compacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda; ensarilhavam-se discussões e resingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a satisfação de respirar sobre a terra. AZEVEDO, Aluísio, O cortiço. São Paulo: Scipione, 1995. Anexo IV 91 VI Logo depois de conhecer Amando, João Coqueiro trama com sua esposa, Madame Brizard, um plano para fazer com que o moço se case com sua irmã, Amélia. João Coqueiro, quando saiu do Hotel dos Príncipes na manhã do almoço, ia preocupado [...] e correu logo para casa. Ao chegar foi direto à mulher [...]. — Sabes? disse ele sem transição, assentando-se ao rebordo da cama. — É preciso arranjarmos cômodo para um rapaz que há de vir por aí domingo. [...] — É um achado precioso! Ainda não há dois meses que chegou do Norte, anda às apalpadelas! Estivemos a conversar por muito tempo: — é filho único e tem a herdar uma fortuna! [...] Mme. Brizard escutava, sem despregar os olhos de um ponto, os pés cruzados e com uma das mãos apoiando-se no espaldar da cama. — Ora, continuou o outro gravemente. — Nós temos de pensar no futuro de Amelinha... ela entrou já nos vinte e três!... se não abrirmos os olhos... adeus casamento! — Mas daí... perguntou a mulher, fugindo a participar da confiança que o marido revelava naquele plano. — Daí — é que tenho cá um palpite! explicou ele. — Não conheces Amâncio!... A gente leva-o para onde quiser!... Um simplório, mas o que se pode chamar um simplório! Mme. Brizard fez um gesto de dúvida. —Afianço-te, volveu Coqueiro, — que, se o metermos em casa e se conduzirmos o negócio com certo jeito, não lhe dou três meses de solteiro! — Negócio decidido! A questão é arranjar-lhe o cômodo, e já! Tu, — fala com franqueza à Amelinha; a mim não fica bem... [...] Nessa mesma tarde Mme. Brizard entendeu-se com a cunhada. Falou-lhe sutilmente no "futuro", disse-lhe que "uma menina pobre, fosse quanto fosse bonita, só com muita habilidade e alguma esperteza poderia apanhar um marido rico". [...] Amélia riu, concentrou-se um instante e prometeu fazer o que estivesse ao seu alcance para agradar ao tal sujeitinho. Ardia, com efeito, por achar marido, por se tornar dona-de-casa. A posição subordinada de menina solteira não se compadecia com a sua idade e com as desenvolturas do seu espírito. Graças ao meio em que se desenvolveu, sabia 92 perfeitamente o que era pão e o que era queijo; por conseguinte; precauções e as reservas, que o irmão tomava para com ela, faziam-na sorri. Às vezes tinha vontade de acabar com isso. "Que diabo significava tais cautelas?... Se a supunham uma toleirona, enganavam-se — ela e muito capaz de os enfiar a todos pelo ouvido de uma agulha!" — Agora, por exemplo, neste caso do tal Amando, que custava; Coqueiro explicar-se com ela francamente?... [...] Mas, não senhor! — meteu-se nas encolhas e entregou tudo nas mãos da mulher! E Amélia, quanto mais refletia no caso, tanto mais se revoltava contra a reserva do irmão: — Ele já a devia conhecer melhor! pelo menos já devia saber aquela que ali estava era incapaz de cair em qualquer asneira; aquela que não "dava ponto sem nó". Outra que fosse, quanto mais — ela, que conhecia os homens, como quem conhece a palma das próprias mãos! — Ela, que viu de perto, com os seus olhos de virgem, toda a sorte de tipos! — ela, que lhes conhecia as manhas, que sabia das lábias empregadas pelos velhacos para obter o que desejam e o modo pelo qual se por depois de servidos! — Ela! tinha graça! AZEVEDO, Aluísio. Casa de pensão. São Paulo: Ática, 1992. (Fragmento). Anexo V O Ateneu Capítulo III 93 (fragmento) Se em pequeno, movido por um vislumbre de luminosa prudência, enquanto aplicavam-se os outros à peteca, eu me houvesse entregado ao manso labor de fabricar documentos autobiográficos, para a oportuna confecção de mais uma infância, célebre, certo não registraria, entre os meus episódios de predestinado, o caso banal da natação, de conseqüências, entretanto, para mim, e origem de dissabores como jamais encontrei tão amargos. Natação chamava-se o banheiro, construído num terreno das dependências do Ateneu, vasta toalha d´água ao rés da terra, trinta metros sobre cinco, com escoamento para o Rio Comprido, e alimentada por grandes torneiras de chave livre. O fundo, invisível, de ladrilho, oferecia uma inclinação, baixando gradualmente de um extremo para outro. Acusava-se ainda mais esta diferença de profundidade por dois degraus convenientemente dispostos para que tomassem pé as crianças como os rapazes desenvolvidos. Em certo ponto a água cobria um homem. Por ocasião dos intensos calores de fevereiro e março e do fim do ano, havia aí dois banhos por dia. E cada banho era uma festa, naquela água gorda, salobra da transpiração lavada das turmas precedentes, que as dimensões do tanque impediam a devida renovação; turbulento debate de corpos nus, estreitamente cingidos no calção de malha rajado a cores, enleando-se os rapazes como lampreias, uns imergindo, reaparecendo outros, olhos injetados, cabelos a escorrer pela cara, vergões na pele de involuntárias unhadas dos companheiros, entre gritos de alegria, gritos de susto, gritos de terror; os menores agrupados no raso, dando-se as mãos em cacho, espavoridos, se algum mais forte chegava. Dos maiores, alguns havia que faziam medo realmente, singrando a braçadas, levando a ombro a resistência d'água; outros se precipitavam cabeça para baixo, volteando os pés no ar como cauda de peixe, prancheando sem ver a quem. E, borbulhando entre os nadadores, fartas ondas de ressaca se emborcavam e iam transbordar pelas imediações do banheiro alagando tudo. Ao longo do tanque, corria o muro divisório, além do qual ficava a chácara particular do diretor. À distância, viam-se as janelas de uma parte da casa, onde às vezes eram recolhidos os estudantes enfermos, fechadas sempre a venezianas verdes. 94 Trepada ao muro e meio escondida por uma moita de bambus e ramos de hera, vinha Ângela a canarina, ver os banhos da tarde. Lançava pedrinhas aos rapazes; os rapazes mandavam-lhe beijos e mergulhavam, buscando o seixo. Ângela torcendo os pulsos, reclinando-se para trás, ria perdidamente um grande riso, desabrochado em corola de flor através dos dentes alvos. Ao primeiro banho, amedrontou-me a desordem movimentada. Procurei o recanto dos menores. Determinava a disciplina a divisão dos banhistas em três turmas, conforme as classes de idade. Mas, o descuido da fiscalização permitia que as turmas se confundissem e o inspetor de serviço, com a varinha destinada aos retardatários, vigiava, afastado, de sorte que ficavam expostos os mais fracos aos abusos dos marmanjos que as espadana d'água acobertavam. Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no fundo, prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um impulso violento caí de costas; a água abafou-me os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado. Num desespero de asfixia, pensei morrer. Sem saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso; e bracejava, à toa, imerso a desfalecer, quando alguém me amparou. Um grande tomou-me ao ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando água. Levei algum tempo para me inteirar do que ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei que o Sanches me tinha salvo. "Ia afogar-se!" disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me haviam feito. "Perversos!" observou-me o colega com pena, e atribuiu a brutalidade a qualquer peste que fugira no atropelo dos nadadores, desvelando-se em solicitudes por tranqüilizar-me. Tive depois motivo, para crer que o perverso e a peste fora-o ele, próprio, na intenção de fazer valer um bom serviço. POMPÉIA, Raul. O Ateneu. 13. ed. São Paula: Atiça, 1991. Anexo VI O Ateneu Raul Pompéia Capítulo VII (fragmento) 95 O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se pode gerar da monotonia do trabalho como da ociosidade. Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalha esmeraldina do campo e o diorama acidentado das montanhas daTijuca, ostentosas em curvatura torácica e frentes felpudas de colosso; espetáculos de exceção, por momentos, que não modificavam a secura branca dos dias, enquadrados em pacote nos limites do pátio central, quente, insuportável de luz, ao fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras da caiação, do tédio, claras, cada vez mais claras. Quando se aproxima o tempo das férias, o aborrecimento é maior. Os rapazes, em grande parte dotados de tendências animadoras para a vida prática forjicavam mil meios de combater o enfado da monotonia. A folgança fazia época como as modas, metamorfoseando-se depressa como uma série de ensaios. A peteca não divertia mais, palmeada com estrépito, subindo como foguete, caindo a rodopiar sobre o cocar de penas? Inventavam-se as bolas elásticas. Fartavam-se de borracha? Inventavam-se as pequenas esferas de vidro. Acabavam-se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de linhas a giz no soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarela, e todas as suas variantes, primeira casa, segunda casa, terceira casa, descanso, inferno, céu, levando-se à ponta de pé o seixozinho chato em arriscada viagem de pulos. Era depois a vez dos jogos de corrida, entre os quais figurava notavelmente o saudoso e rijo chicote queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pátio central animava-se com a revoada das penas, o estalar elástico das bolas, passando como obuses, ferindo o alvo com pontaria amestrada, o formigamento multicor das esferas de vidro pela terra, com a gritaria de todas as vozes do prazer e do alvoroço. Depois havia os jogos de parada, em que circulavam como preço as penas, os selos postais, os cigarros, o próprio dinheiro. As especulações moviam-se como o bem conhecido ofídio das corretagens. Havia capitalistas e usurários, finórios e papalvos; idiotas que se encarregavam de levar ao mercado, com a facilidade de que dispunham fora do colégio, fornecimentos inteiros, valiosíssimos, de Mallats e Guillots que os hábeis limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e selos inestimáveis que os colecionadores práticos desmereciam para tirar sem 96 custo; fumantes ébrios de fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça, repimpados à turca sobre os coxins da barata fartura. As transações eram proibidas pelo código do Ateneu. Razão demais para interessar. Da letra da lei, incubados sob a pressão do veto, surgiam outros jogos, mais expressamente característicos, dados que espirravam como pipocas, naipes em leque, que se abriam orgulhosos dos belos trunfos, entremostrando a pança do rei, o sorriso galhardo do valete, a simbólica orelha da sota, a paisagem ridente do ás; roletas miúdas de cavalinhos de chumbo; uma aluvião de fichas em cartão, pululantes como os dados e coradas como os padrões do carteiro. A principal moeda era o selo. Pelo sinete da posta dava-se tudo. Não havia prêmios de lição que valessem o mais vulgar daqueles cupons servidos. Sobre este preço, permutavamse os direitos do pão, da manteiga ao almoço, da sobremesa, as delícias secretas da nicotina, o próprio decoro pessoal em si. A raiva dos colecionadores, caprichando em exibir cada qual o álbum mais completo, mais rico, transmitia-se a outros, simples agentes de especulação; destes ainda a outros com a sedução do interesse. No colégio todo, só Rebelo talvez e o Ribas, o primeiro fundeado no porto da misantropia senil que o distanciava do mundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de anjo feio aos pés de Nossa Senhora, escapavam à mania geral do selo, melhor, à geral necessidade de premunir-se com valor corrente para as emergências. No comércio do seio é que fervia a agitação de empório, contratos de cobiça, de agiotagem, de esperteza, de fraude. Acumulavam-se valores, circulavam, frutificavam; conspiravam os sindicatos, arfava o fluxo, o refluxo das altas e das depreciações. Os inexpertos arruinavam-se, e havia banqueiros adiados, espapando banhas de prosperidade. POMPÉIA, Raul. Anexo VII O Cortiço 97 — Foi da friage da noite, afirmou a Bruxa; e deu um pulo à casa do trabalhador para receitar. Doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito tempo em sua casa um e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência ia protestar brutalmente contra semelhante invasão quando, pelo cheiro, sentiu que a Rita aproximava também. — Ah! E desfranziu-se-lhe o rosto. — Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha chegada? Se tal soubera não vinha! Ele riu-se. E era a primeira vez que ria desde a véspera. A mulata aproximou-se da cama. Como principiara esse trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cintura e os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela. Jerônimo apertou-lhe a mão. — Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado. — Já tomou algum remédio? — A mulher falou aí em chá preto... — Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma resfriagem. Vou lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com um gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para outra! Espere aí! E saiu logo, deixando todo o quarto impregnado dela. Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar e desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco. — Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim m'assustas... Que tens, di-lo! — Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa... — Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus! 98 — Já te disse que tomo outra mezinha. OM Piedade não insistiu. — Bom, bom, filha! não digas mal da vida alheia!... Melhor seria que estivesses à tua tina em vez de ficar aí a murmurar do próximo... Anda! vai tomar conta das tuas obrigações. — Mas estou-te a dizer que não há transtorno!... — Transtorno já é estar eu parado; e pior será pararem os dois! — Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!... — E eu acho que isso é tolice! Vai! anda! Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita, que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palangana de café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um suadouro ao doente. — Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata. E deixou-se ficar. Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a vasilha sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor. — Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E aí, ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas! Ele riu-se, assentando-se na cama. — Pois não é assim mesmo? perguntou ela à Piedade, apontando para o carão barbado de Jerônimo. Olhe só pr'aquela cara e diga-me se não está a pedir que o enterrem! A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no íntimo, ressentida contra aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não era a inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o extinto, o faro sutil e desconfiado de toda fêmea pela outras, quando sente o seu ninho exposto. AZEVEDO, Aluíso. O Cortiço. 99 Anexo VIII O Cortiço Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras". As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adiantado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte. As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar. [...] E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e barulhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas alegres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar. E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que nem lagos de metal branco. E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. O cortiço. São Paulo, Ática, 1997. 100 Anexo IX CRONOLOGIA DOS PRINCIPAIS ROMANCES DO REALISMO 1881 O mulato, de Aluísio Azevedo Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis 1884 Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo 1888 O missionário, de Inglês de Sousa O Ateneu, de Raul Pompéia 1890 O cortiço, de Aluísio Azevedo 1891 Quincas Borba, de Machado de Assis 1893 A normalista, de Adolfo Caminha 1895 Bom – Crioulo, de Adolfo Caminha 1899 Dom Casmurro, de Machado de Assis 1903 Luzia – Homem, de Domingos Olímpio 1904 Esaú e Jacó, de Machado de Assis 1908 Memorial de Aires, de Machado de Assis 101 Anexo X Dona Guidinha do Poço O Lulu Venâncio estava na terra, muito em segredo. Guida mandara buscá-lo ao Riacho do Sangue, enquanto o demo esfrega um olho. Chegara de noite ao Poço. A matrona foi logo dizendo: — Lulu, mandei-o chamar para um serviço importante. O rapaz, entressorrindo e meio acanhado: — Seá Dona, Vosmicê bem sabe que pra Vosmicê eu não me arrecuso pra serviço ninhum. Eu cá estou acostumado a servir aos meus protetores. Guida havia tocado, anteriormente, para o mesmo mister que queria confiar ao Venâncio, a dois sujeitos avezados ao uso faca e do clavinote, o João Grosso e o Caetano; mas o primeiro se acurvou com uma dor de uma que sofria há tempos e lhe tirara a destreza, e o segundo foi logo francamente que o homem não saía da vila, tinha o mundo inteiro a favor, que ela mandatária estava debaixo, que por tudo isto o negócio não era nada seguro, e não era o filho de seu pai que pisasse em ramo verde. Guida esperava, pois, tudo do Lulu, e empregaria a maior habilidade. Não foi preciso muito. Quando ela trouxe lá de dentro, na bainha encastoada um rico punhal antigo, que pertencera ao fundador do Poço da moita, e o depôs nas mãos do criminoso, disse estas palavras: — Dê cabo de mim ou dele: um de nós deve desaparecer! O cangaceiro, sorrindo, recebeu a arma, que desembainhou, mirou como quem lê, admirou, e deu palavra: — Suas ordens serão cumpridas, Seá Dona Guidinha! PAIVA, Manuel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço. São Paulo, Ática, 1981. 102 Anexo XI O Ateneu Capítulo l (Fragmento) Começava a anoitecer, quando o colégio formou ao toque de recolher. Desfilaram aclamados, entre alas de povo, e se foram do campo, a alegremente uma canção escolar. À noite houve baile nos três salões inferiores do lance principal edifício e iluminação no jardim. Na ocasião em que me ia embora, estavam acendendo luzes de Bengala diante da casa. O Ateneu, quarenta janelas, resplendente interior, dava-se ares de encantamento com a iluminação de fora. Erigia escuridão da noite, como imensa muralha de coral flamante, como um cenário animado de safira com horripilações errantes de sombra, como um castelo fantasma batido de luar verde emprestado à selva intensa dos n cavalheirescos, despertado um momento da legenda morta para uma entrevista de espectros e recordações. Um jacto de luz elétrica, derivado de foco invisível, seria a inscrição dourada. Athenaeum em arco sobre janelas centrais, no alto do prédio. A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão olímpica do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior. Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, rivalidade a que se julgava consagrado. Devia ser assim: — luz benigna e fria, sobre bustos eternos, o ambiente glorioso do Panteão. A contemplação da posteridade embaixo. Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio confundia-se com ele, suprimia-o, substituía-o, e ele gozava como um cartaz que experimentasse o entusiasmo de ser vermelho. Naquele momento, não era simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição palpável, a síntese grosseira do título, o rosto, a testada, o prestígio material de seu colégio, idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a cabeça. As letras, de ouro; ele, imortal: única diferença. Guardei, na imaginação infantil, a gravura desta apoteose com o atordoamento ofuscado, mais ou menos de um sujeito partindo à meia-noite de qualquer teatro, onde, em mágica beata, Deus Padre pessoalmente se houvesse prestado a concorrer para a grandeza do último quadro. — Conheci-o solene na primeira festa, jovial na segunda; conheci-o mais tarde em mil situa-: mil modos; mas 103 o retrato que me ficou para sempre do meu grande foi aquele — o belo bigode branco, o queixo barbeado, o olhar perdido nas trevas, fotografia estática, na aventura de um raio elétrico. É fácil conceber a atração que me chamava para aquele mundo tão te interessante, no conceito das minhas impressões. Avaliem o prazer que tive, quando me disse meu pai que eu ia ser apresentado ao diretor do Ateneu e à matrícula. O movimento não era mais a vaidade, antes o legítimo instinto da responsabilidade altiva; era uma conseqüência apaixonada da sedução do espetáculo, o arroubo de solidariedade que me parecia prender a comunhão fraternal da escola. Honrado engano, esse ardor franco por uma empresa ideal de energia e de dedicação premeditada confusamente, no cálculo pobre de uma experiência de dez anos. POMPÉ1A, Raul. O Ateneu. 16. ed. São Paulo, Ática, 1996.