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b) Resumo do plano inicial e das etapas já descritas no projeto. Investigar a construção estética elaborada em La Jetée por Chris Marker a partir da relação entre trauma e representação que ela suscita ao traçar uma narrativa sobre um passado individual e histórico marcados por uma coincidente experiência de terror. Num segundo momento, trata-se de examinar como a narração desse evento exige uma narração que enfrente os limites pré-estabelecidos do seu meio, refletindo uma consciência do artista diante de um esgotamento das formas – de um culto classicista à “bela linguagem” passando por uma valorização romântica da expressão subjetiva de um autor – contra as quais Chris Marker (e importante parcela dos cineastas franceses contemporâneos a ele) se posiciona, propondo a denúncia de um presente esgotado e a emergência de um cinema moderno. Como descrita no plano inicial, a primeira etapa da pesquisa consistiu em estudar um conjunto dos principais materiais publicados em torno da teoria artística contida em suas obras, que abrangem uma variedade de mídias, bem como os ensaios e artigos escritos pelo próprio Chris Marker em revistas como Esprit e Cahiers du Cinema. A pesquisa também se debruçou sobre o contexto histórico e intelectual dos anos 60 que culminou com o surgimento da Nouvelle Vague na França e dos Cinemas Novos pelo mundo, ampliando a perspectiva das tendências recorrentes em outras cinematografias. Num segundo momento, tratou-se de fazer uma análise imanente de La Jetée a título de verificar as opções, procedimentos e limites, extraindo dessa leitura questões estéticas, políticas e – por que não dizer? – morais. c) Resumo do que foi realizado no período a que se refere o relatório (5 meses) Levantamento bibliográfico: - LUPTON, Catherine. Chris Marker: Memories of the future. London: Reaktion Books Ltd. 2005 - - GAUTHIER, Guy. O Documentário, Um Outro Cinema. São Paulo: Papirus 2011. - CESAR, Francisco e SAMPAIO, Rafael (Org.) Chris Marker: bricoleur multimídia. São Paulo: Catálogo CCBB, 2009. - KOIDE, Emi. Por um outro cinema – jogo da memória em Chris Marker, Tese de doutorado, São Paulo, 2011. - BELLOUR, Raymond. L’entre images 2. Paris, P.O.L, 1999. - MAVOR, Carol. Black and blue. London, Duke University Press, 2012. - MARKER, Chris. Giraudoux par lui-même. Paris, Seuil Ecrivains de toujours n° 8, 1959. - MARKER, Chris. Artigos de sua autoria na revista Esprit, 1946-1947 - MARKER, Chris. Marker Mémoire, in A verdade de cada um: Amir Labaki (org.) São Paulo: Cosac Naify, 2015. - LÖWVY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio uma leitura das teses “Sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005. - LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. - HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos. São Paulo, Cia das letras, 1995. - DELEUZE, Giles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense 1985. - VIRILIO, Paul. Guerra e cinema, logística da percepção. São Paulo: Boitempo, 2005. - BAECQUE, Antoine. Cinefilia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. - XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. 3ª edição São Paulo, Paz e Terra, 2003. - BURCH, Noel. A práxis do cinema. São Paulo: Perspectiva, 2006 - MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. São Paulo, É Realizações, 2014. O centro da pesquisa partiu da seguinte bibliografia: - DUBOIS, Philippe Org. Théorème 6: Recherches sur Chris Marker - Paris, Presses Sorbonne Nouvelle [*Revue de l’Institut de Recherche sur le Cinéma et l’Audiovisuel IRCAV Universitée de Paris 3], 2002 - DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Ed. Minuit, 2003. - GAUTHIER, Guy. Chris Marker, écrivain multimédia ou Voyage à travers les médias. Paris, L’Harmattan, 2001. - SELIGMANN-SILVA, Marcio (Org.). História, memória e literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: SP: Unicamp, 2006. - LÖWVY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio uma leitura das teses “Sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005. - OLIVEIRA JR., Luiz Carlos. A mise em scène no cinema. Campinas, SP: Papirus, 2013. - Atividade que o bolsista organizou e apresentou: - Ciclo de Palestras sobre o Cinema-Ensaio. Com: Lucas Navarro, Ronaldo Entler, Reinaldo Cardenuto, Ilana Feldman e outros. Local: FAAP - Atividades que o bolsista participou (Cursos/Palestras/Grupo de estudos) - Curso: Escritas do trauma (cinema, literatura e artes plásticas) Com: Marcio Seligmann Silva, Paloma Vidal e Ilana Feldman Local: Centro de Pesquisa e Formação – SESC - Curso: Cinema e fotografia Com: Philippe Dubois Local: Centro de Pesquisa e Formação – SESC - Colóquio Internacional sobre Jean-Luc Godard Com: Michel Marie, Mateus Araújo, Ismail Xavier, Céline Scemama e outros. Local: ECA-USP - Curso: O Cinema de Jean-Luc Godard Com: Mateus Araújo Local: Centro Cultural Banco do Brasil - Palestra e debate sobre os conceitos de Limiar, Aura e Rememoração. Com: Jeanne Marie Gagnebin Local: Centro de Pesquisa e Formação – SESC - Curso: Breve História do Cinema Russo (análise de filmes de Marker) Com: Neide Jallageas Local Centro de Pesquisa e Formação – SESC - Grupo de estudos: PAN Cinema Com: Maria Lucia Homem, Ilana Feldman, João Guedes, Andre Gatti e outro. d) Detalhamento dos progressos realizados, dos resultados parciais obtidos no período, justificando eventuais alterações do projeto ou em sua execução e discutindo eventuais dificuldades surgidas ou esperadas na realização do projeto; O maior progresso realizado por essa pesquisa foi o estreitamento das relações entre a tradição das escritas do trauma e a obra de Chris Marker, centrando a questão na crise da visibilidade do século XX representada pela Shoah. As grandes questões que se colocaram foram: se o cinema é arte ontologicamente realista (Bazin), como ela pode lidar com o irrepresentável? O que não deixa de ser uma variação da pergunta: o que pode a imagem diante da penosa tarefa de reconstituir uma imagem do terror (em si, não reconstituível), tornando possível uma experiência autêntica que a salve do esquecimento? Ou ainda, como já previa Adorno, como superar a impotência e mesmo falsidade que os narradores experimentam “na medida em que a guerra carece do elemento ‘épico’ e de certo modo começa do zero em cada fase, tão pouco deixando uma imagem de memória contínua e inconscientemente preservada” 1? Sob a tarefa de enfrentar esses impasses, a pesquisa verificou as duas principais tendências na história do cinema, que oscilam entre duas posturas para com as imagens sobreviventes da “solução final” (Endlösung). A primeira inaugura-se com o reconhecido documentário Noite e Neblina (1955), dirigido por Alain Resnais (com a colaboração de Chris Marker), que estabelece certa postura expositiva das imagens de arquivo, conferindo-lhes função didática, uma “didática do horror”. A narração de Jean Cayrol detalha a imensa arquitetura de planificação da morte e a necessidade de não esquecer essas imagens, de aprendermos com Auschwitz, sob o risco de reproduzirmos a barbárie. Em reação ao uso das imagens de arquivo como elemento sempre aquém da experiência, surge uma segunda tendência que encontra em Shoah (1985), de Claude Lanzman, uma espécie de manifesto absoluto em nome do inapreensível e do inimaginável, agarrando-se a uma pureza da “cegueira como a própria clarividência”, ancorada na transmissão do ininteligível como “a única atitude possível, ao mesmo tempo ética e prática”. 2 Há, no entanto, concordâncias na oposição entre essas duas tendências, a começar por aquilo que diz respeito a uma mútua recusa para a ficcionalização romanesca3 dos campos de concentração em voga, sobretudo em Hollywood, contra a qual o crítico francês Jacques Rivette acusa em sua crítica sobre Kapò (1960), de Gillo Pontecorvo, o uso de uma realidade “fisicamente suportável para o espectador” e “que 1 “Longe do Tiro” em Minima Moralia, tradução: Gabriel Cohn, Azougue ed., 2008. “Hier ist kein warum”, nota escrita em 1986 para o lançamento de Shoah. Texto disponível no catálogo que acompanha o DVD produzido pelo IMS. 3 No sentido de que o real é um efeito a ser produzido e não um dado a ser compreendido. Ver a distinção entre ficção e ficção romanesca proposta por Gauthier em O Documentário, Um Outro Cinema. 2 vai entrando pouco a pouco nos hábitos e, tão logo, fará parte da paisagem mental do homem moderno”. Com efeito, já não há mais, tanto para Rivette como para esses cineastas, encenação inocente, uma vez que fazer um filme é “mostrar certas coisas e, ao mesmo tempo, e pela mesma operação, mostra-las sobre certo viés; esses dois atos são rigorosamente indissociáveis”. 4 Sob o título “Da abjeção”, a crítica de Rivette forma verdadeira trincheira contra o mac-mahonismo, para os quais a mise en scène configura o meio através do qual o cineasta pode descobrir uma suposta verdade contida no âmago do presente (produtor de fascínio), sempre alérgico à valorização da camera-stylo, o próprio estilo do cineasta (produtora de falseamento). Junto com a mesa redonda em torno de Hiroshima mon amour, o texto de Rivette exercerá muito mais interesse entre os críticos que o macmahonismo. Segundo Luis Carlos Oliveira Junior, “saber identificar o abjeto pareceu mais importante, aos olhos da nova geração de críticos que então surgia, do que compreender as ferramentas do belo – o que diz bastante sobre o estado das coisas nos anos 1960”. 5 Publicada um ano antes de La Jetée, a crítica de Rivette constrói um juízo eficaz para apresentarmos a terceira via trilhada por alguns filmes, que, por sua vez, não abrem mão do roteiro ficcional, tampouco dos arquivos visuais disponíveis. Com efeito, esses filmes, ao contrário dos outros casos, não centram uma narrativa da absoluta visibilidade ou invisibilidade do horror em seu estado bruto e imediato. O seu material é outro. A cidade, o cotidiano, os afetos, o trabalho, o imaginário: a vida moderna habitada por fantasmas que vêm de não se sabe qual túmulo, habitar não se sabe quais angústias. Um conjunto de filmes que não encontram no realismo a resposta para as 4 “De l’abjection”, Cahiers du cinéma, n.120, junho de 1961, pp. 54-55. Ver a primeira parte de A mise em scène no cinema, em que Oliveira apresenta a ascensão e a queda da valorização da mise em scène como ferramenta crítica para adentrar o universo dos filmes. 5 questões apresentadas acima; nas palavras de Rivette: “todo esforço nessa direção é necessariamente inacabado (‘portanto, imoral’), toda tentativa de reconstituição ou de maquiagem derrisória e grotesca, toda abordagem tradicional do ‘espetáculo’ é da ordem do voyeurismo e da pornografia”, pois aquilo que o cineasta ousa apresentar como a realidade é assimilável como qualquer outra mercadoria visual, transformando o horror em paisagem mental habituée, logo imune à realidade sensível. A lição de Rivette que essa terceira via de filmes, por assim dizer, “incorporam”, pode ser resumida na recusa de representar o buraco negro do real servindo-se dos códigos hegemônicos da arte. Por uma consequência lógica dos pressupostos, o próximo passo da pesquisa foi justamente analisar a obra em sua imanência formal, atentando para os procedimentos adotados para narração da estória, uma vez que inventá-la é também, e pelo mesmo procedimento, inventar uma forma de conta-la. Resumo aqui alguns dos resultados dessa empreitada. Do irreconhecível à visão. Ao som inassimilável de uma turbina no escuro anterior à projeção do olhar em direção em direção à tela, um recuo sobre a imagem permite enxergar a plataforma do aeroporto de Orly enquanto aparecem os letreiros do filme. “Essa é a história de um homem marcado por uma imagem da infância”, o narrador nos informa que esta só seria compreendida mais tarde “enquanto cicatriz”. Etéreo, porque fora da cena que narra, o narrador em La Jetée inscreve-se na definição de Píer Paolo Pasolini, a do narrador morto que conhece o desenlace daquilo que descreve para e, por isso, poder ver em perspectiva, lançando sentidos sobre o passado e extraindo lições das situações. Resulta dessa posição consciente do caminho histórico uma oscilação entre fatalismo e pedagogia. Mais interessante que nos guiarmos por essa voz do saber, condenando esse texto a própria obviedade dos seus materiais, parece ser condução pelas imagens, delegando a elas o trabalho crítico a partir das posições que elas tomam enquanto olhar, isto é, enquanto discurso. A principal cena de La Jetée tem lugar no aeroporto de Orly. Constitui-se de 14 imagens. A caminhada, as torres metálicas, a balaustrada dedicada à observação do espetáculo, a multidão, o sol fixo, a rampa, os sons e as vozes, o ritual familiar no domingo: todo dispositivo cinematográfico foi montado. Três eventos visuais são dados ao olhar: o voo dos aviões, o rosto de uma mulher, uma imagem incompreensível. 14 imagens e uma não-imagem. A partir de três diferentes posições, a cena concentra três ideias visuais particulares, três enunciados que inscrevem o cinema de Chris Marker na tarefa de pensar o mundo através de imagens. O título La Jetée nomeia a prolongação de uma fronteira que avança em direção a um fora de campo desconhecido, sobre o qual se projeta um sentido, como em uma plataforma ou um molhe – que nada mais são que uma ponte em direção ao infinito. Por outro lado, quando pronunciado, La Jetée confunde-se sonoramente com La j’ai etais (eu estava lá), já expondo, logo no seu título, o paradoxo do filme, uma vez que o voo em direção ao devir, o gesto de projetar-se no tempo, é reorientado para uma reminiscência vivida como lembrança da infância. A imagem do avião no cinema de Marker é ambígua. Ambiguidade semântica porque tecnicamente ambígua. Por um lado, constitui-se como metáfora da força de aniquilação da História ao figurar a moderna perspectiva da guerra6 como fruição de um espetáculo. Por outro lado, o avião participa do imaginário da paz, mimetizando, sob a perspectiva de quem nele viaja, a percepção cinematográfica da paisagem, do tempo e do espaço. Símbolo do deslocamento, deslocamento dos símbolos: a imagem alça voo. 6 “a história das batalhas é, antes de mais nada, a história da metamorfose de seus campos de percepção” in VIRILIO, Paul. Guerra e cinema, logística da percepção. São Paulo: Boitempo, 2005. A poética de Marker se propõe a tomar o avião, ou melhor, se propõe a tomar o voo que decola de uma imagem próxima, familiar, para pousar sobre uma outra, distante em regime e sentido, encontrando, nesse voo entre imagens, correspondências que entram em ressonância ou dissonância. Para além de uma cinematografia como um extenso itinerário de deslocamentos geográficos percorrendo civilizações mundo afora (Japão, África, Coréia, Islândia, Cuba, Sibéria...), que acaba promovendo tanto um desenraizamento de pátria quanto de quaisquer sistemas fundados na centralidade de um “eu solar” (isto é, o “eu” centro do sistema discursivo universal) ao confrontar-se com a experiência do depaysment, da falta de fundamento que, paradoxalmente, funda o seu olhar; para além do deslocar-se entre um inventário de media (cinema, fotografia, literatura, vídeo, CD-Rom), que antevendo uma série de questões hoje em voga no debate sobre arte e cultura (a submissão irreverente de toda uma história do cinema e das artes uma suposta atitude criativa pós-moderna, que encontra originalidade na combinação de influências aparentemente incombináveis; a ideia de “cinema expandido”). Trata-se, aqui, de pensar o deslocamento entre Vertigo, e Aelita, entre o noir-policial-romanceado e ficção científica, entre um aniquilamento nuclear mundial e um boy meets girl. O pensamento ensaístico em Marker, nasce desse pôr em relação. Pensar é fazer relações. Concepção que se estende a um jogo de chiaroscuro com a história, isto é, com as imagens da história: jogo de olhar, portanto. Cineasta para quem o gesto de rever, de começar novamente uma projeção composta de ações individuais, determinações impostas aos indivíduos e a cadeia de acasos impossíveis de prever ou evitar ganha densidade ao não se limitar a um tema ou em crítica a uma concepção museológica da arte segundo a qual “um objeto está morto quando o olhar ativo (vivant) que se coloca sobre ele desapareceu”. 7 A essa promoção botânica da arte que separa sujeito e objeto, espectador e obra, passado e presente, estética e política, o cinema de Marker contrapõe um eterno estado de passagem e disposição às intervenções do olhar atento ao movimento, sempre dialético, de releitura dos anacronismos da história por meio do comentário, da montagem e das versões – afinal, para além dessa teoria de um olhar em movimento, podemos estender o ato da revisão (enquanto vínculo de relação com o presente) para recorrência de “versões” empreendidas curso de sua cinematografia, sobretudo na de registro mais ensaístico, a partir da qual Marker retrabalhou sob o imperativo de atualizar, de cultivar os lampejos das imagens fugazes do passado levando “tudo que se esconde à sombra das estátuas e dos templos” 8 à luz da presença cinematográfica. A valorização da presença em Marker, todavia, só pode ser ambígua. Propostas estéticas para um cinema cotidianamente atento às convulsões sociais, geralmente, encontram na presença um valor em si, expresso num estar lá para “ver com os próprios olhos”. Isso porque, a despeito do que se filma o que se filma já legitimaria o registro discursivo sobre o qual se acredita captar a manifestação hic e nunc, seja para preservála, tal como recomenda o cinema observacional, seja para violenta-la, como prescreve o cinema-verdade. A obra de Marker é, também ela, um manancial de viagens ao encontro do âmago dos eventos que irrompem na História, pelo menos desde Olympia 52 (1952). Lá, no entanto, o narrador celebra o hipismo chileno na figura de quem, mais tarde, ao voltar-se para essas imagens em sua última versão de Le fond de l’air est rouge (1977), reconhece ser a figura do general Mendoza, braço direito de Pinochet. “Nunca sabemos o que estamos filmando”, conclui. As imagens sabem mais que nós, eis o motivo pelo 7 “E quando nós tivermos desaparecido, nossos objetos irão lá onde nós enviamos os dos negros: ao museu” 8 MARKER, Chris. Giraudoux par lui-même. Paris, Seuil Ecrivains de toujours n° 8, 1959, pg 30. qual é preciso desconfiar da presença como lugar privilegiado a partir do qual se legitima o enunciador, ver novamente para instaurar uma crise no olhar que crê acessar cirurgicamente um acontecimento no momento em que ele ocorre a fim de interrogar aquilo que vemos para melhor enxergar aquilo que nos é mostrado. Como então fixar categorias a partir das quais se verifique um estilo quando esse olhar assume a leitura como vertigem? Se a noção de estilo implica necessariamente em identidade por meio da fixação ou variação de traços sempre iguais no curso de uma escritura, a tarefa que se coloca para quem rastreia a topografia do específico markeriano são da ordem da impossibilidade. Por um lado, se admitirmos o movimento e a impossibilidade de fixação como sendo próprio do cinema de Marker, como Serge Daney em face da obra de Hawks, podemos cartografar o seu estilo como a própria impossibilidade de escritura9. Por outro lado, podemos notar no movimento entre os deslocamentos momentos em que as imagens tomam posições recorrentes, ainda que feita a ressalva de não formarem categorias estanques, essas imagens estão lá. Como pensa-las lá onde elas aparecem? É preciso ir às imagens novamente. Os dois eventos restantes no aeroporto desafiam o voo entre imagens, ou seja, contestam a possibilidade de pensar ensaisticamente. O primeiro deles é o rosto feminino. A imagem de maior duração em La Jetée é o rosto feminino olhando para a objetiva. Sempre associado à estética da mercadoria que filia em si desejo e consumo, o rosto feminino em Marker não consegue encontrar ressonância em outro sentido para além de si, é como se ela devolvesse ao espectador, olhando o nos olhos, a falta de sentido em pôr sentido sobre o mundo, formando uma espécie de muro intransponível entre significante e significado. Não se trata, como escreveu Alain Bergala no Cahiers du Cinéma a propósito da fotografia da estrela de cinema, de radicalizar o ato de 9 “Velhice do mesmo, Howard Hawks e Rio Lobo” in DANEY, Serge. A Rampa. São Paulo, Cosac Naify isolamento que já caracteriza a imagem da grande estrela no cinema hollywoodiano e na publicidade, mas de enquadrar à mesma altura uma fenomenologia tátil que desvela a “linguagem cinematográfica” como contradição em termos, recusando a imagem como meio para algo além dela mesma, imagem que nada comunica a não ser a própria erosão da comunicação. Podemos dizer que a única relação que Marker consegue fazer com um rosto feminino é quando, mais tarde no CD Rom Immemory, em que Marker guarda algumas informações sobre certos eventos que o marcaram, evoca um plano de uma outra cena vista na infância, o close no rosto da atriz em La Merveilleuse vie de Jeanne d’Arc (1928), de Marc de Gastyne, ao qual ele associa a própria noção de cinema: “cinema e mulher tornaram-se duas noções inseparáveis, e um filme sem uma mulher ainda é incompreensível [para a criança que viu esse filme aos sete anos] como uma ópera sem música. Porque esse rosto e olhar permaneceram desconhecidos por quase sessenta anos é ainda um mistério”. O terceiro evento na plataforma acrescenta um impasse a mais ao do evento anterior. O rosto feminino como imagem que desafia o pensamento, levando o cinema a encontrar a sua vocação, ainda é percebido como situação óptica que permite a rememoração do personagem, Todavia, como proceder quando aquilo que nos é apresentado transborda a nossa capacidade de pensar e até de perceber? Como produzir uma imagem que excede o seu próprio meio, logo, o próprio estatuto de imagem? A valorização de um registro indicial, muito mais próxima de uma noção barthesiana de rastro que de uma ontologia baziniana da presença, prende à superfície do rosto de uma mulher, de uma turbina que grita, uma imagem ruidosa e, por fim, imagem alguma: nada fornece qualquer instância de objetividade. Fotografia mínima, residual. A mesma estrutura que produz o fetiche via fragmento é, também ela, afirmação do lacunar, específico ao trauma, que encontra seu equivalente imagético nos escombros da paisagem coletada nos arquivos fotográficos de um trauma coletivo que repousa no passado, tornado presente em um evento do futuro, visto como passado. A imagem, aqui, é fatal: encontra-la é perder-se. Imagem traumática, portanto. Imagem inconsciente que prende o herói– aquele que sofre de reminiscência – a uma topografia que o impede de agir, de transformar uma situação pela vontade individual (sublimando as modernas frustrações de seu público). Topografia da memória sob a qual se enterram corpos, cemitério no qual só o testemunho (no sentido de testes10) pode romper a cripta e reconciliar a vida reconquistando a possibilidade de morrer. Resta ao herói morto-vivo resgatar o vislumbre de um telos neste tempo em eterna repetição do idêntico. Há sempre um “aqui” e um “alhures” em Marker, uma necessidade de distanciar-se do mundo para melhor vê-lo, de jamais fundir-se num “lá” onde jamais se pode estar. Questão de método. Não há juízos de inexistência ou totalidade da imaginação em La Jetée. A imagem é sempre imagem-lacuna (Didi-Huberman), não pode dar tudo, não chega à síntese; por outro lado, “a lição de Bataille ou de Lacan, para quem o real, por ser ‘impossível’, não existe senão manifestando-se sob a forma de pedaços, resquícios, objetos parciais”11, resta imaginar, apesar de tudo. Aqui, o “inimaginável” do trauma é repensado e represado pela ficção científica, a forma mais adequada que Marker encontra para lidar com a obrigação de dizer o que não pode ser dito. O inimaginável, por assim dizer, “nos obriga, não a eliminar, mas a repensar a imagem”, isto é, imaginar criticamente. É este, aliás, seu gênio: falar de coisas invisíveis através de coisas visíveis – um ano depois, em 10 Isto é: o testemunho do terceiro, exterior à cena traumática e que não se assemelha ao testemunho do sobrevivente. 11 Georges Didi-Huberman. Images malgré tout, pp. 82. seu Le petit soldat, Godard daria uma forma equivalente: a representação mais realista da guerra é o absurdo. Permitindo-se instalar no centro de uma decupagem rigorosa um instante bruto do presente, mesmo que esse dure o limite do perceptível, hic e nunc num piscar de olhos. Assim como a plataforma do olhar pode ser palco do desejo e da morte, as próprias condições fenomenológicas a que está submetido o herói, que sofre as experiências para viajar no tempo e que tanto se assemelham ao espectador de cinema amarrado a cadeira e na escuridão, assinalam não apenas esta consanguinidade fenomenológica com o sonhador, mas também com o torturado, aquele que sofre (no sentido de ser objeto de) o império das imagens sobre si. Apresentando um mundo retalhado através de uma fotogramática (Dubois), La Jetée permite uma ontologia da experiência cinematográfica tanto no objeto da representação quanto no da recepção. Se pensarmos no percurso feito até aqui, do pensamento como relação entre imagens, passando pela afirmação enunciativa das coisas mudas, chegando à crise da imaginação diante do irrepresentável, podemos perceber como o filme de Marker ajuda a estabelecer critérios de relevância para a produção que emerge logo após. Ao enfrentar questões basilares da cultura ocidental, seus filmes permitem refletir sobre os parâmetros de formação da História. A maior surpresa, e também a maior alteração no curso da pesquisa, ocorreu através de uma pista lançada por Dubois, que pesquisou o arquivo de títulos que Chris Marker requisitou a Jacques Ledoux (na ocasião, presidente da Cinèmathèque Royale de Belgique) durante a preparação de La Jetée em janeiro de 1962. Esses vão de filmes hollywoodianos sobre a invasão interplanetária dos anos 1950 até os filmes sobre as consequências da destruição da vida terrestre por guerras nucleares dos anos 196012. Não me interessou perseguir uma intertextualidade do filme de Marker com todos esses outros filmes, mas verificar como ele da continuidade à visão de mundo contida no gênero e irredutível a ele (porque presente em tantos outros, a exemplo do noir), que consiste em opor ao projeto ideal que o indivíduo lança sobre o mundo o seu dado de realidade: às invenções “do espírito” – que vão experiências atômicas até a viagem no tempo – para melhor realizar as potencialidades humanas opõe-se o uso racionalista de encontro ao uso militar, em que ao avanço da técnica (do cinema, sobretudo13) corresponde um avanço equivalente da potência destrutiva do extermínio. e) Plano de trabalho e cronograma para as etapas seguintes A pesquisa aprofundará suas descobertas acumuladas até aqui através de um artigo (em processo de elaboração) que constituirá a summa desse processo. Após a sua conclusão, enviarei às revistas universitárias a fim de tentar publicá-lo ainda esse semestre. Outra tarefa almejada e viável, por dispor de um material razoável para o artigo, consiste em inscrever-me em congressos de iniciação científica que contemple o objeto de pesquisa. 12 A lista pode ser vista em La Jetée de Chris Marker ou le cinématogramme de la conscience in Org. Théorème 6: Recherches sur Chris Marker. 13 Ver Guerra e cinema, logística da percepção, de Paul Virilio.