A beleza e a feiúra na contemporaneidade
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A beleza e a feiúra na contemporaneidade
A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros A beleza e a feiura na contemporaneidade Clarissa Dubeux Barros Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica - UNICAP e Doutoranda em Psicologia Social - UFPB Resumo: Os conceitos de belo e feio são definidos a partir dos períodos históricos e das culturas. As atribuições de beleza ou de feiura, voltadas aos critérios estéticos, estão intrinsecamente ligadas aos aspectos políticos, morais e sociais. O feio, estranho e deformado exercia uma atração do olhar do outro, no começo do século XIX. O cuidado com a aparência tem se tornado exacerbado na contemporaneidade e promovido concepções de beleza apoiada pela nova ordem da redefinição do corpo humano, e atrelado às tecnologias médicas. Compreender essas mudanças implica em perceber a representação do corpo na contemporaneidade no qual se aporta na noção de ascese corporal ou bioascese. Palavras chaves: história da feiura, corpo, ascese corporal. 1. Introdução Presenciamos a um processo de redescrição dos limites do corpo, muito impulsionado pela tecnologia médica. Não nos restringimos a técnicas de embelezamento, mas a uma indústria que favorece a imagem do corpo como a ordem do dia. As DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 73 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros imagens de membros, músculos, tecidos são constantes na mídia e novidades têm aparecido regularmente. Várias possibilidades para os corpos e sujeitos: congelamento de óvulos, transplante de face, próteses que restauram a função do corpo, enfim, a ciência se desenvolvendo para responder alguns questionamentos sócio-históricos colocados pelo tempo que vivemos. O desenvolvimento e o refinamento tecnológico da medicina têm contribuído bastante para o elevado número de cirurgia plástica. Na sociedade contemporânea, o enquadramento nos padrões do culto da beleza tem encorajado a procura da cirurgia como solução rápida de suas insatisfações. “É tempo de corpos jovens, saudáveis”, assim promulga a mídia. A ideologia de um corpo também portador de medidas ideais encontra-se com a tecnologia médica fortalecendo a procura pelas cirurgias plásticas estando subjacente a ideia de que o corpo é maleável de forma infinita. O público feminino e jovem é um dos segmentos que mais procuram o procedimento da cirurgia estética, que passou a não ser mais associada somente à correção de marcas do envelhecimento ou deformações inatas. Há uma busca da adequação aos padrões socialmente construídos e potencializados pelos meios de comunicação, estabelecidos pela valorização da estética, onde se tem preterido a própria saúde. A convivência com o corpo fora dos padrões era mais tolerado na antiguidade. Veremos esse aspecto, traduzindo a história do corpo, no entanto, inserimos a constituição do corpo para o ser do sujeito. 2. O corpo e a cultura Na tradição filosófica, o corpo é o suporte do próprio DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 74 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros sujeito, suporte das relações objetivas e das relações intersubjetivas. O corpo é o que possibilita a presença no mundo. Os tempos sociais, afetivo, cultural e psíquico passam pelo suporte do corpo para demarcarem sua existência. Suporte da subjetividade, o corpo é o nosso primeiro universo. É ele que recebe as primeiras impressões do mundo: cheiro, sabores, luz, calor... Muito antes do pensamento, o corpo é sensação. Desde os cuidados necessários para a sobrevivência ao suporte do prazer nas sensações de alivio e de repetição de uma satisfação, o corpo está lá sob vários aspectos. Lá onde o sujeito se personifica nele, lá onde o individuo é contado através dele. No corpo, acompanhamos as origens, raças, valores e classe social, como também as modificações culturais das sociedades. Desde que o homem é homem, e instaurado em uma cultura não podemos falar de corpo fisiológico. Não há como dissociar o corpo da cultura. Louro (2004) afirma que não existe corpo que não seja, desde sempre, dito e feito na cultura. O corpo se situa, então, em uma dimensão individual e coletiva, sendo na verdade, o limite das expressões culturais como o lugar onde se inscreve a distinção individual. Em todas as modificações geracionais, o corpo se apresentou como alvo de preocupações. A determinação dos lugares sociais ou da posição de um sujeito em seu grupo é referida a seu corpo. Vestuário, cor da pele, tipo de cabelo, tamanho das mãos e é assim que se tornam ou não marcas de raça, gênero, etnia, classe e nacionalidade. Como resultado provisório das convergências entre técnica e sociedade, sentimentos e objetos, o corpo pertence mais à história do que à natureza. Não existe um corpo impermeável às marcas da cultura. DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 75 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros 3. A Feiúra Os conceitos de belo e de feio são relativos aos vários períodos históricos ou às várias culturas. As atribuições de beleza ou de feiura eram devidas não a critérios puramente estéticos, mas a critérios políticos, morais e sociais. As formas de problematizar as aparências, os modos de conceber e de produzir noções de beleza são modificados ao longo do tempo na sociedade. Compreender essas mudanças implica em perceber a coerências das representações que, ao longo do tempo, acentuam a repulsa pelas aparências consideradas feias. Para demarcar o lugar do feio na contemporaneidade, é importante situar historicamente qual o destino dele na História, e aqui iremos fazer um recorte desse amplo assunto, a partir da obra História da Feiúra, de Umberto Eco (2007). Sob as marcas da cultura, ao longo da história, artistas e filósofos sempre procuraram definir o que é a beleza. Na maioria das vezes, o feio é definido como oposição a beleza. No entanto, a História da Feiúra, apresentada por Umberto Eco (2007), traz elementos respaldados nas referências das representações visuais ou verbais e coisas de pessoas consideradas feias, através das artes. Nossa intenção não é abarcar o conceito de feiura voltado para ações humanas, mas apenas para imagens, reveladas nos corpos, na face, sobretudo. O mundo grego é amplo por muitos tipos de feiuras e maldade. O ideal do mundo grego da perfeição era representado pela Kallokagathia, termo que nasce tanto de Kállos (traduzido como belo) e agathós (traduzido como bom). Uma pessoa bela seria aquela de aspecto digno, coragem, estilo, e habilidade moral. O ideal vinculado ao helenismo elaborou uma vasta literatura sobre a relação entre feiura física e feiura moral. A mitologia clássica é cheia de narrativas cruéis. Como DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 76 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros exemplo, temos Saturno que devora os próprios filhos, Medeia, que movida pela vingança, assassina os filhos e Ulisses que faz de tudo para não ceder aos encantos das sereias com caudas de pássaro, entre outros. O que se está em pauta, nessas obras, é o caráter duplo do belo e feio, através da representação moral das ações dos personagens míticos. Pensar a feiura na Antiguidade é também se aproximar das posições de Platão. Se para ele, a única realidade possível seria a das puras ideias, como caminho único para a chegada da verdade, o mundo material seria apenas sombra do mundo das ideias. O feio deveria ter sido, então, vinculado ao mundo material, como o não-ser, sendo equivalente ao imperfeito do mundo material. (Eco, 2007). Dizer que belo e feio são relativos aos tempos e às culturas não significa que se tentou vê-los como padrões definidos em relação a um modelo estável. Nietzsche, no Crepúsculo dos Ídolos, citado por Eco (2007) ressalta: “no belo, o ser humano se coloca como medida de perfeição; (…) “O feio é entendido como sinal e sintoma de degenerescência”. (p. 15) Destaca-se ainda as referências utilizadas por São Tomás de Aquino, na sua Suma teológica, (citado por Eco, 2007, p.13), para quem o belo provém da harmonia da proporção e da luminosidade ou clareza, pela integridade, e dessa forma, uma coisa, seja ela, um corpo, planta ou objeto deve exibir todas as características que a forma impõe à matéria. A falta de proporção ou de simetria era descrito como erro de natureza, por filósofos e artistas, fazendo crer que as pessoas que assim se apresentavam, estariam misturados com outras espécies. Já se coloca a ideia de que algo não humano se apresenta na feiura. Darwin, no ensaio sobre A expressão dos sentimentos DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 77 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros no homem e nos animais, citado por Eco (2007) afirma que “parece que os diversos movimentos descritos como expressivos do desprezo e do nojo são idênticos em grande parte do mundo”. (p. 19) A ideia de aprovação daquilo que é considerado belo por ser fisicamente desejável é conhecido por todo o mundo com reações próximas uma das outras, apesar das diferenças culturais que podem existir. Por exemplo: o alvoroço que homens fazem ao ver passar uma bela mulher, ou da alegria incontida de um glutão diante de um prato de comida bonito. Nesse sentido, fala-se das emoções que são consideradas universais pela sua manifestação orgânica. É pela face que se comprova e traduzem-se tais emoções. Percebe-se aí uma relação entre a face de pessoas com emoções semelhantes, embora de culturas diferentes. Eco (2007) chama atenção para a distinção entre três tipos de manifestações de feiura: o feio em si, traduzido por um excremento, uma decomposição; o feio formal, sendo revelado pelo desequilíbrio das partes e do todo, e a representação artística de ambos, que é muitas das vezes a única maneira de atingir o passado e a história das imagens do corpo percorrida nas expressões artísticas. Cabe se indagar se o feio poderia ser conceituado apenas como o contrário do belo? Ou até que ponto uma história da feiura coloca-se como contraponto simétrico de uma história da beleza? Há uma linha tênue que separa o feio, o cômico e o obsceno. Eco (2007) retrata algumas noções que fazem a diferença entre esses três aspectos. Sua análise começa com a valorização dos órgãos sexuais, que para muitas culturas foi desenvolvida como atribuição do belo. A escultura Davi, de Michelangelo, é um exemplo. Já em outras, acha-se engraçado. No entanto, exacerba-se a produção cômica quanto mais envolver o espectro da sexualidade. DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 78 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros Nas culturas onde existe forte senso de pudor, o gosto pela sua violação manifesta-se através do oposto, onde reside o conceito de obscenidade. Rir dos comportamentos obscenos é uma tentativa de burlar a censura que mantém os códigos sociais estabelecidos. Freud (1905) desenvolveu estudo sobre chistes e a relação com o inconsciente mostrando o efeito cômico e chistoso como sendo o produto eficaz quando se burla a censura egóica, onde podemos fazer uma equivalência para o caráter normativo social. O culto ao falo, desde a remota antiguidade, é descrito como aquilo que une as “características da obscenidade, de certa feiura e de uma inevitável comicidade”. (Eco, 2007, p. 132). Príapo é uma divindade dotada de um enorme órgão genital. Filho de Afrodite, em geral se mostra em uma folha de madeira de figueira e sua imagem é colocada para proteger as lavouras. Circulava a ideia de que sua imagem afastava ladrões, por conta da ameaça de sodomização. Esse exemplo clássico não está isolado no mundo das obscenidades. Algo mais recente, as festas carnavalescas, também nos mostram vários exemplos de caricaturas, opostos, motor de escape para as tensões do cotidiano, onde se revela o não dito construtor das relações normativas do cotidiano. Na idade média a obscenidade aparecia nas sátiras contra o aldeão e nas festas carnavalescas em relação à vida dos humildes. As deformidades do aldeão eram apreciadas com sadismo e ria-se deles e não com eles. (Eco, 2007) Com o Renascimento houve uma reviravolta nesses fenômenos da obscenidade e comicidade. Dois personagens bastante conhecidos são vinculados a reviravolta de sucesso e de valorização, mesmo sob o foco de alvo cômico. Referimos a Gargântua e seu filho Pantagruel, de Rabelais, que deixa a mostra o excremento e o nojo. Obras como A invenção do DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 79 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros limpa-cu, e O peido de Pantagruel, ambas de Rabelais, são exemplos dessa situação. O Marquês de Sade, que através de suas cartas, também se revela como um autor que com maestria escreveu uma ode ao obsceno. Não poupando o leitor, Sade revela o lado fétido e repulsivo da natureza humana. “Sade, ao superar o limite entre o dizível e o indizível, vai além do exercício normal das funções corporais.” (Eco, 2007, p. 150). Uma das formas do cômico é a caricatura. Ela se apresenta como proposta crítica, irônica e engraçada, ao revelar com exagero alguma parte do corpo. Sob o estatuto de tornar o elemento de desorganização mais orgânico, ou seja, funcional, as caricaturas podem ser tidas como representações harmônicas do feio. Bruxaria, satanismo e sadismo são perspectivas históricas que existiram desde a mais remota antiguidade. Seres diabólicos capazes de feitiçaria são nomeados no Código de Hamurabi. Causam medo e são reconhecidos pelo caráter andrógino, misto do humano e de inumano. Às bruxas podemos considerar um capítulo à parte, devido às representações sobre a mulher e seu o pacto com o diabo, no tocante à sexualidade. Mesmo com o fim das perseguições religiosas, elas sobreviveram na literatura fabulística e no terror. “O que interessa para nosso foco é que na maior parte dos casos as bruxas foram acusadas de serem feias e por isso também jogadas na fogueira”. (Eco, 2007, p.212). As monstruosidades aparecem desde a idade média e voltam no mundo moderno sob duas formas: portentos e monstros. Os primeiros são tidos como eventos prodigiosos que causavam espanto, mas naturais, como por exemplo, bebês hermafroditas ou dicéfalos. Desde a idade média, os monstros são tidos como indivíduos de raça não humana, ou seja, contrário à natureza DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 80 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros conhecida. Junte-se a isso, não devemos esquecer que estamos em plena época das explorações e descobertas de outros continentes, certamente habitados por selvagens e animais não conhecidos. Certamente o que não pode ser menosprezado ao realizar esse breve pesquisa por meio dos elementos pictóricos é trazido por Álvaro e Ruiz (2006), onde pontuam que os monstros revelam desejos. Iguais ao que habitam em nossos sonhos são os monstros do imaginário coletivo. A trajetória da visão sobre o corpo e os aspectos da feiura é atravessada pelos ideais sociais. Longe de esgotar os principais aspectos entre beleza e feiura, a tentativa deste tópico foi apresentar a feiura não como ausência da beleza, mas com sentidos próprios da história que se mistura com valores, religião e necessidades humanas intangíveis de aproximar da estética do feio. 4. A atração pelo estranho Courtine (2006) fez um levantamento histórico onde retratou a atração que se deu por corpos anormais, na França, no começo do século XIX. Alguns pedidos chegavam às autoridades para exibir em praças públicas da cidade pessoas com diferenças congênitas. Um pai solicitou mostrar a população seus dois filhos de cinco anos com o mesmo tronco. Outras solicitações seguiram, na virada da década de 1880: uma criança microcéfala entre macacos e leões do Atlas, uma mulher barbada que se apresentava em uma feira do Trône, e onde se revelava um entre-e-sai (“entre-sorts”). É este o nome que se dá por Jules Valles (1866), espectador das estranhezas anatômicas que povoavam as feiras parisienses, ao movimento de atração e procura pela visão de corpos anormais. Ressalta-se nessa discussão a noção de fenômenos vivos direcionados para esses corpos exóticos, disformes que DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 81 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros apareceram no século XIX. “Zôos humanos”, espécimes teratológicas, surgiam no cenário. A curiosidade pelo estranho e a atração para olhar as deformidades exalta nessa época. Como museu de monstruosidades a céu aberto, Paris ia se transformando num centro de excentricidades. O monstro revela-se como um modelo de catalisar os argumentos para todas as irregularidades possíveis. Todos os pequenos desvios voltavam-se para a inteligibilidade fornecida pela imagem do monstro. Segundo a descrição de Courtine (2007), “a etnologia e a teratologia ficavam face a face” (p.258) O caráter da monstruosidade acaba apagando outras diferenciações, como por exemplo, sociais e de gênero. “O homem elefante”, “a mulher barbada”, “a criança sem braços” deixam de ser vistos como mulher, homem, criança, velho, novo, mas apenas como monstros. Essa identidade já era suficiente. A homogeneidade e indiferenciação que a categoria “monstro” confere, evoca a necessidade de conluio entre o que é deformado e o que é monstruoso. Até os primórdios dos anos 1940 ainda existiam as exibições, onde ressaltava-se essa vinculação de categorias. Esses corpos exóticos, disformes, estrangeiros de si mesmo, acabaram sendo alvo dos primeiros investimentos da indústria moderna da diversão de massa. (Coutrine, 2006). O exótico, então, é buscado a principio de uma forma artesanal, desorganizada, quando surgem os primórdios de um comércio dos monstros. Tal realidade se transformava em um canal de ganhar dinheiro. Inspirado em Foucault, através de sua obra Les anormaux, Courtine (2007) conceitua que o anormal é no fundo um monstro cotidiano, onde possui um importante papel na formação do poder de normalização. DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 82 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros A norma revela-se pelo contrário, ou seja, pela imagem invertida retratada nas deformidades. Um conjunto de dispositivos de exibição se fazia presente através do controle do Estado. Primeiramente uma exibição considerada artesanal sendo seguida de uma exibição em forma de diversão de massa. Barnum funda o seu American museu, e segundo relatos de Courtine (2007), ele vai se tornar a atração mais frequentada na cidade de Manhattan, entre 1841 a 1868. Nessas situações, de ajuntamento de monstruosidades, a frenologia em alta na época, mostrava-se através de um discurso científico. Não foi considerada marginal essa indústria, muito pelo contrário, trouxe experimentação para outros segmentos dentro da indústria de massa. Juntaram-se também alguns shows, onde se mostravam falsos monstros. A criatividade humana acrescentou a ilusão de ótica. As apresentações teratológicas se firmavam a partir da curiosidade humana. A cada exposição, o fantasma do corpo normal se apresentava no imaginário popular, bem como a transgressão - real ou imitada – das leis da natureza se fazia presente. Mas, o que estava em jogo nesse grande espetáculo? O que movia as pessoas a buscarem olhar a deformação? Segundo Courtine (2007) o espectador do entre-e-sai, diante do monstro, perde uma parte do corpo, e depois a resgata. Toda necessidade se passava pelo alívio provocado posteriormente ao olhar do disforme. A representação do burlesco da castração não poderia ter outro sentido se não culminasse nesse alívio que poderia aparecer em forma de hilaridade. Está é uma descrição importante, pois nos aproxima de um mecanismo psicológico de projeção. Foucault novamente é resgatado por Courtine quando insere o poder médico e jurídico diante dos deformados. Somente o médico podia dar o parecer sobre a viabilidade de DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 83 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros um monstro. Alguns sentimentos começaram a aparecer, em especial na Inglaterra, onde se mescla à curiosidade, o sentimento de compaixão. Aos poucos, o poder normativo do médico e do juiz muda o cenário das exposições, onde começam a exibir as primeiras condenações dos espetáculos. Chega-se a posição de que a curiosidade pelos monstros humanos, quando exercida fora do campo da medicina, será pervertida e doente. A exibição dos monstros humanos vai desaparecer após a Segunda Guerra Mundial. A força de atração de olhar um deformado era maior quanto mais distante fosse da representação humana. Só a partir do momento que se percebeu a monstruosidade como algo humano é que o espetáculo começou a ficar problemático. A visão histórica auxilia a compreensão do lugar atribuído ao presente a partir do passado e vice-versa. Dito de outra forma, ver se há alguma linha contínua de apresentação do problema da deformidade a partir dos discursos sobre ela, que atravesse o tempo e a memória do historiador. 5. Considerações Gerais Não há um delineamento próprio entre as cirurgias estéticas e restauradoras. Tal junção é promulgada pela própria ciência. Ao buscar o equilíbrio da estrutura corporal a função da estética está atrelada a qualquer cirurgia reparadora, que é indicada a restaurar a forma ocasionada por alguma enfermidade, traumatismo ou defeito congênito (Leal, Catrib, Amori e Montagner, 2010). A procura por padrões excêntricos, de um olhar capturado pelo disforme e feio, revela uma tolerância e uma atração pelo que está fora do padrão. A ciência e a tecnologia médica estão sendo um instrumento eficaz na não tolerância ao DIÁLOGOS – Revista de Estudos Culturais e da 84 Contemporaneidade – N.° 9 – Maio/Junho - 2013 A beleza e a feiúra.... Dubeux Barros que é despadronizado. Busca-se um corpo perfeito, fazendo prevalecer a ideia de uma bioascese corporal. Segundo Ortega (2008) diferentemente da antiguidade grega, onde a ascese era fundamentalmente uma prática de liberdade que integrava corpo e alma, a ascese contemporânea, ou a bioascese, fez nascer uma nova forma de sociabilidade, uma biossociabilidade. O imperativo de um eu em conformidade com a norma. No lugar do outro e da polis, o eu extremamente individualizado. Sob as ideologias da moralidade da saúde, o homem contemporâneo se vê obrigado a constituir uma "bioidentidade apolítica", levado pelos discursos da saúde e da perfeição corporal. Enquanto as asceses clássicas possuíam uma dimensão político-social, que privilegiava o conjunto social e visava à liberdade, as bioasceses são individualistas e estão submetidas ao disciplinamento corporal. Referências ÁLVARO, J. y Ruiz, B. Representaciones sociales de la mujer. Athenea Digital - num. 9: 65-77. Disponível em <http://antalya.uab.es\athenea\num9\alvaro.pdf. 2006>. COURTINE, G. “O corpo anormal: história e antropologia culturais da deformidade”. In.: CORBIN, A.; COURTINE, J.J.; VIGARELLO, G. (Orgs.). História do corpo: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis: Vozes: 2008. Vol. 3. p. 253340. ECO, H. A história da feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007. FREUD, S. Os Chistes e sua relação com o Inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1905. LEAL, C.; CATRIB, A. AMORIM, R.; MONTAGNER, M. O corpo, a cirurgia estética e a Saúde Coletiva: um estudo de caso. 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