O trabalho do bombeiro
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O trabalho do bombeiro
O trabalho do bombeiro - Uma análise crítica do filme “Brigada 49” O que leva uma pessoa a ir de encontro a sua autopreservação, o mais primitivo dos instintos humanos? O que motiva um homem a arriscar a sua vida entrando num prédio em chamas quando todos estão saindo? Altruísmo, orgulho, honra “sentimento do dever” são algumas das possíveis respostas que são apresentadas em “Brigada 49”. O filme, cujo título original é “Ladder 49” é uma produção americana de 2004, cujo enredo gira em torno do resgate do bombeiro Jack Morrison (Joaquin Phoenix), que fica preso dentro de um incêndio, e a série de eventos que o fizeram chegar até aquele ponto. O roteiro original de Brigada 49 previa que as filmagens ocorressem em Nova York, mas a cidade foi mudada para BaltimoreMaryland após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. O filme que enaltece os bombeiros, é um drama sobre a transição do bombeiro Jack Morrison de um novato inexperiente (“rookie”) em um veterano maduro. Numa ordem cronológica não sequencial, o filme se inicia com os bombeiros combatendo um incêndio dantesco num armazém de grãos de vinte 1 andares na cidade americana de Baltimore. Na sequência, eles entram no prédio em chamas e começam a procurar por vítimas presas no décimo segundo andar. Num determinado momento, logo após salvar a vida de uma pessoa que estava presa pelas chamas, há uma grande explosão, fazendo que o piso desabe e que o personagem principal, o bombeiro Jack, caia de uma grande altura e fique momentaneamente inconsciente. Ao recobrar os sentidos, percebe que precisa de ajuda para sair daquele espaço. Enquanto seus companheiros, liderados pelo comandante da subunidade e mentor de Jack, chefe Mike Kennedy (Deputy Chief), - papel que é interpretado por John Travolta - fazem tudo que podem para resgatá-lo, sua sobrevivência continua incerta e Jack começa a relembrar sua vida desde a sua chegada à Companhia 49 até aquele momento. Nas cenas que se seguem, vislumbra-se um homem comum que se arrisca numa profissão perigosa e seus dramas íntimos quando sua profissão começa interferir na sua vida familiar. Logo após se graduar na academia dos bombeiros, Jack é designado para trabalhar no Departamento de Incêndio da cidade de Baltimore (Baltimore City Fire Department – BCFD), especificamente na Companhia 49/Grupo 33 (ENGINE, 33), uma das mais movimentadas subunidades de bombeiros da cidade de Baltimore. Ao se apresentar no seu local de trabalho, Jack é alvo de um “trote” de seus novos companheiros, que, como veremos depois, é executado com todos os recém-chegados. Através da socialização os indivíduos assimilam os hábitos característicos de um grupo social, apreendendo a cultura que lhe é característica, compartilhando seus códigos, ideias e significados comuns (SETTON, 2012). São várias as instituições que se encarregam desse processo, entre elas a família, a escola, os grupos profissionais, dentre vários outros. Numa sociedade global, o indivíduo integra voluntaria e simultaneamente, diferentes grupos de onde recebe sua cultura juntamente com uma quantia de saberes técnicos objetivos. 2 No departamento, mesmo sendo tratado como um “recruta”, Jack passa a adquirir novos hábitos e costumes característicos dos bombeiros, sua nova família. Sobre isso, Pinheiro (2010), em estudo sobre curso de formação de bombeiros mergulhadores também afirma que nesta atividade vários comportamentos de um indivíduo ser modificados, potencializados e ainda criados de acordo com os processos de socialização a que é submetido nas diferentes instituições as quais tem interação em sua vida e complementa que nos treinamentos de funções específicas dos bombeiros novas aptidões podem ser desenvolvidas, criando inclusive novas identidades dentro da própria profissão. Inserido no contexto de um novo círculo, passa então a agir, pensar, socializaremse de forma a seguir os padrões convencionados pelo ambiente. Outro fator importante é que a sua vivência na atividade lhe possibilitou a aprendizagem de novas habilidade, o aprimoramento das já existentes e, consequentemente, a adaptação às diversas situações consideradas de alto risco. Outro detalhe que merece comentários diz respeito ao que Pierre Bourdieu (2009) chamou de incorporação de um habitus que, de uma maneira geral, é [...] concebido como um sistema de esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes), adquirido nas e pelas experiências práticas (em condições sociais especificas de existência), constantemente orientado para funções e ações do agir cotidiano. (SETTON, 2002, p. 63). 3 Dessa maneira, o indivíduo naturaliza esquemas de percepção e de ação característicos, interiorizando determinado habitus. Bourdieu também distingue dois componentes desse habitus: um ethos que compreende sistemas de valores em estado prático (esquemas de ação com uma moral praticada inconscientemente) e uma hexis1 corporal, que são posturas ou atitudes que o indivíduo adquire durante a sua trajetória de vida, ou seja, sua história praticada. O habitus, segundo (BOURDIEU, 2009, p. 90): [...] garante a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e de ação, tendem, de forma mais segura que todas as regras formais e que todas as normas explícitas, a garantir a conformidade das práticas e sua constância ao longo do tempo. Jack rapidamente faz amigos, incluindo o próprio Comandante Mike Kennedy e começa participar mais ativamente da vida da unidade. Seu primeiro incêndio, que pode ser considerado um “rito de passagem”, se dá em uma casa vazia, onde o Comandante Mike faz questão de orientar pessoalmente seu pupilo para, em segurança, enfrentar seu primeiro grande desafio. Eles entram juntos, com Jack na dianteira segurando a mangueira e seu comandante logo atrás didaticamente lhe transmitindo orientações e a confiança necessária para extinguir o fogo. VAN GENNEP, um dos primeiros autores a estudar os ritos de passagem, contribui com o simbolismo desse ato, afirmando que: [...] para os grupos, assim como para os indivíduos, viver é continuamente desagregar-se e reconstituirse, mudar de estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém, de modo diferente (VAN GENNEP, 2013, p.160). Nessa direção, discorrendo acerca das transformações sofridas pelo indivíduo durante esses rituais, afirmando que: 1 - Aristóteles utilizou essa palavra para designar as características do corpo e da alma adquiridas em um processo de aprendizagem. (SETTON, 2002, p. 61) 4 É assim que cada “pequena morte” é seguida por um “renascimento” em nova condição. Esta transformação tem em seu período intermediário geralmente a representação de um risco: socialmente, o indivíduo não é mais o que era, mas também ainda não é o que será, após o fim dos ritos. (RODOLPHO, 2004, p.142) Com o fogo apagado, vê-se a alegria do bombeiro Jack, agora não mais um recruta, tendo cumprida a sua iniciação que lhe consagra como um bombeiro veterano. [...] que marcam a transição de um status social para outro (morte e renascimento simbólicos). A iniciação é, portanto, a “forma sintética dos ritos de passagem, por meio dos quais ela opera”. Mas a iniciação é mais do que simplesmente um rito de transição, ela é um rito de formação. Esta formação vai diferenciar os participantes ou o círculo dos neófitos dos “de fora”, daqueles exatamente não iniciados (RODOLPHO, 2004, p.143-144), Na cena do primeiro incêndio que Jack participa efetivamente, observa-se que ele é conduzido por seu comandante, como se passasse por uma prova final para enfim ser considerado um veterano. Jack nesse momento tem reações emocionais, recua, para diante das labaredas que parecem tomar vida, mas é encorajado por seu comandante a continuar, e assim avança cada vez mais no combate. Jack foi submetido ao que PINHEIRO (2010) denomina de Treinamento de Preparo Emocional, que, de maneira geral, é expor indivíduos à situações muito próximas das realidade, de forma a desencadear comportamentos emocionais como medo, ansiedade, estresse, entre outros, para que se estabeleçam habilidades afetivas que os ajudarão na preservação de suas vidas e de outros. De acordo com a autora, os indivíduos que passaram por experiências dessa natureza, julgaram ser importante, pois assim foi viabilizado certo grau de segurança no desempenho de suas funções. Jack, depois deste "rito de passagem", tornou-se um bombeiro confiante e veterano. Nesta cena, como em várias outras que se seguirão, percebe-se a maneira como o Comandante Mike exerce seu comando - através da liderança. 5 O poder advindo da “autoridade” está relacionado a posição (cargo, função, posto, etc.) que o indivíduo ocupa, isto é, sua fonte de poder “não flui da sua própria individualidade” e está “baseada em normas impessoais e objetivas” (CASTRO, 1990, p.23),. Nesse cenário, a obediência ao chefe, comandante ou superior se dá em função das prerrogativas da posição que ele ocupa e não de suas qualidades pessoais. Em se tratando do filme, percebe-se que o Capitão Mike Kenned, apesar de ocupar uma posição que lhe proporciona uma ascendência funcional aos demais bombeiros por meio da sua superioridade hierárquica como capitão, ele a exerce por meio de seu “prestígio” e da sua “liderança”, seguindo à risca a máxima utilizada frequentemente por líderes militares de que “a palavra convence, mas o exemplo arrasta”2. Nesse mesmo sentido, pode-se encontrar também em Max Weber (Weber, 1999, p. 196-198) uma análise sobre os três tipos de autoridade: tradicional, carismática e racional-legal. Weber apresenta a primeira, dita tradicional, e afirma que, nesse caso, a fonte de dominação se dá através dos costumes e tradições culturais e a legitimação do poder advém dos hábitos, tradições, mitos, etc. Na autoridade carismática, o mesmo autor argumenta que a ascendência se dá em função dos traços pessoais de um indivíduo. Finalmente, na autoridade racionallegal, o superior exerce sua autoridade com respaldo legal de normas e regulamentos reconhecidos e aceitos. Depois de algum tempo na profissão, Jack chega à cena de um outro incêndio, onde um de seus companheiros, Dennis Gauquin (Billy Burk), morre ao cair através do telhado no interior da edificação em chamas. Jack decide então assumir a posição de seu amigo, mesmo sendo mais perigosa que sua função atual. À medida que os anos passam, Jack continua se arriscando para salvar vidas e presencia outro acidente com um bombeiro de seu grupamento. Tommy Drake (Morris Chestnut) fica gravemente queimado após ser atingido por uma explosão de vapor em um edifício industrial. 2 - Esta frase pode ser lida, com mais ou menos ênfase, em quase todos os quartéis das Forças Armadas do Brasil e, frequentemente, em unidades especiais das Polícia e Bombeiros Militares. 6 Mesmo assim, o trabalho lhe parece gratificante e prazeroso mas sua esposa começa a pressiona-lo para aceitar uma posição administrativa que lhe foi oferecida pelo Comandante Mike. Jack recusa a oferta de um trabalho mais seguro e continua fiel a sua missão de salvar vidas e a seus companheiros. Ele diz “Soldados em batalha lutam menos pela bandeira ou pela causa do que pelos seus companheiros”. Sobre esse assunto, Natividade (2009, p. 417) ao discutir a configuração da identidade profissional dos bombeiros da região da grande Florianópolis-SC, relata que devido aos bombeiros “conviverem cotidianamente com o risco, com situações de acidente e morte, a maioria demonstrou que a atividade profissional interfere em sua qualidade de vida e em seu modo de agir”. Ressalta a autora para o fato de que essa interferência provoca diversas mudanças no próprio sujeito, como insensibilidade e estresse. Em continuação, Jack Morrison e seu companheiro Leonard "Lenny" Richter (Robert Patrick) recebem uma “Medalha de Valor” do departamento por suas ações de bravura no salvamento de uma jovem presa em um incêndio às vésperas do Natal. 7 Neste ponto, faremos um recorte para discutir uma das questões centrais do filme: os riscos dessa profissão. Tal qual os policiais, os bombeiros constituem uma categoria profissional bastante vulnerável à produção de sofrimento psíquico, ao elevado estresse, e a um sem número de situações de riscos, pois seu trabalho é marcado por um cotidiano em que a tensão e o perigo estão sempre presentes. Concordam com esse argumento vários autores, dentre eles Monteiro et al., Beck e Stekel e Natividade, afirmando que “no exercício da sua atividade profissional, [o bombeiro] coloca sua vida em risco para salvar a vida de terceiros e/ou para defender bens públicos e privados da sociedade. O risco é inerente a essa atividade profissional (...)” (NATIVIDADE, 2009, p. 411). Percebe-se, então, que ser bombeiro se caracteriza por exigir do indivíduo inúmeros sacrifícios, inclusive o da própria vida em prol da vida do outro. No Brasil, um de seus “gritos de guerra”3 é “Vidas por Vidas”. A morte, seja ela do próprio indivíduo, das vítimas ou dos próprios companheiros de trabalho, é uma realidade na vida deste profissional. A magnitude desta periculosidade é reconhecida, inclusive, pelo próprio Estado, tanto que fez questão de inserir na Constituição Estadual, uma compensação pecuniária significativa a todos os 3 - Também conhecidos como “brados”, os “gritos de Guerra” são frases utilizadas em corridas em formação, em marchas a pé ou em formaturas para demonstrar a “vibração” daquela fração de tropa e elevar a moral de todos. 8 bombeiros militares denominada “gratificação de risco de vida” e um seguro contra acidentes de trabalho4. Partindo de uma ampla revisão bibliográfica e de grupos focais realizados com policiais militares5, puderam demonstrar que os riscos percebidos por esses profissionais podem ser classificados em quatro categorias que combinam a visão epidemiológica, a visão jurídica, a visão sócio-antropológica, e os riscos voluntários, também chamados de riscos eletivos. A primeira categoria diz respeito à probabilidade de ocorrência de lesões, traumas e mortes. Nesse sentido, a atividade rotineira dos bombeiros está repleta de cenários em que precisam enfrentar incêndios, vasculhar escombros de desabamentos, salvar pessoas e bens vítimas de alagamentos, resgatar acidentados e um sem-número de outras situações onde arrisca sua vida e integridade física. A segunda, a dos riscos jurídicos, está relacionado às consequências administrativas e jurídicas advindas de decisões erradas, assumidas individualmente ou através de ordens dadas aos subordinados. Durante sua prática operacional, o bombeiro vivencia um sem-número de cenários para os quais tem que decidir, instantaneamente, sob vários aspectos, dentre os quais, sobre a vida e a morte. Suas decisões, que envolvem uma considerável e 4 - Constituição do Estado do Pará, Art.48, Incisos II e III. Todos os demais Estados e o Distrito Federal tem gratificações similares. 5 - Devido a similitude da atividade realizada, no sentido de arriscar a própria vida em prol da sociedade, os resultados obtidos com as amostras policiais podem ser estendidos aos bombeiros. 9 complexa equação de consequências e probabilidades de diferentes alternativas, além de acertadas, devem ser elaboradas sob circunstâncias geralmente desfavoráveis, caracterizadas pela urgência no tempo, em um ambiente hostil, em condições de temperatura, visibilidade e oxigenação ruins e por um clima de elevado estresse físico e mental. Adicionalmente, elas são fortemente baseadas na percepção do risco, e, esta por sua vez, é dependente de uma variedade de observações intuitivas e mecanismos cognitivos, já que tendemos a perceber o ambiente da maneira em que se encaixa em nossas crenças pré-existentes. O fato de que o cérebro não trabalha bem sob situações de estresse ou situações emergentes e que pressão e medo prejudicam a habilidade de pensar lógica e criativamente. Na mesma direção, SIDDLE (1995) pesquisou a chamada reação de sobrevivência e demonstrou uma importante relação entre percepção de ameaça e aceleração dos batimentos cardíacos. Sobre isso, OLIVEIRA (2013) cita estudos e pesquisas de Siddle (1995), Oslon (1998), Grossman (2004), LeDoux (2001) e Artwohl e Christensen (1997) que demonstram inequivocamente que, seres humanos levados à reação de sobrevivência experimentam diversas alterações fisiopsicológicas que incluem até 70% de diminuição do campo visual (visão em túnel), não entendimento auditivo do que se passa ao redor (redução ou anulação auditiva), perda temporária de memória, fugas irracionais, luta com um comportamento descontrolado, ações repetitivas, perda das habilidades motoras (efeitos no cérebro), dentre outros. Ressalta, porém que “deve-se perceber que o aumento da frequência cardíaca é tão somente um termostato ou um indicador de um nível de estresse percebido, e não uma força impulsora da deterioração do desempenho”(OLIVEIRA, 2013, p. 213). Os riscos sócio-antropológicos, situados na terceira categoria dos riscos, estão envoltos no contexto de "estigma"6, cunhado por Erving Goffman, e trata dos perigos associados ao significado cultural da profissão, isto é, um bombeiro, estando ou não de serviço, estando ou não fardado, se reconhecido como tal, é sempre solicitado a intervir numa emergência. Mesmo quando não é identificado, 6 - Goffman (1988) traz a luz o conceito de "estigma" numa perspectiva social que confere atributos a determinados indivíduos (ou profissões) que o tornam diferentes da "normalidade". 10 se sente “na obrigação” de arriscar sua vida em prol do outro. Dessa forma, no que tange ao aspecto da escolha profissional, a decisão de ser bombeiro traz a reboque uma ameaça (ou risco) constante de vitimização pelo simples fato de ser bombeiro. Neste sentido, o risco não está associado a uma atitude, a um gesto ou uma ação positiva e sim ao fato de que a vida corre perigo pela opção profissional. Fica evidente que, o fato de “ser bombeiro” de per si , já o coloca em risco que ultrapassam a sua jornada de trabalho e estão presentes nas vinte quatro horas e nos sete dias da semana – 24/77 - Muito a propósito, Dean (1999), afirma que: [...] em certas circunstâncias, o risco pode ser visto como um continuum e neste sentido nunca desaparece completamente. Assim, ele pode ser minimizado, localizado e evitado, mas nunca pode ser dissipado. De certo modo podemos considerar o risco como uma entidade condicional e omnipresente (DEAN, 1999, p. 146). Concordando sobre a situação de alerta persistente, Constantino, Ribeiro e Correia (2013) afirma que alguns autores discutem que a profissão tem um caráter permanente, no sentido de que um policial (estendido ao bombeiro) está sempre de prontidão para qualquer “emergência”, o que lhe confere uma característica de dedicação exclusiva, onde eles nunca se despem de seu papel profissional, função essa que invade todos os âmbitos de sua vida. Continua o autor asseverando que o risco não é uma disposição permanente do indivíduo: mesmo que uma pessoa já tenha vivido alguma 7 - “24/7” é um jargão utilizado pelos policiais e bombeiros que significa “nas 24 horas e nos sete dias da semana”, isto é, nunca deixa de existir. 11 situação arriscada, não quer dizer que ela esteja sempre pronta a enfrentar outras de mesma magnitude. O fato de se conviver cotidianamente com o risco não necessariamente assegura um “equilíbrio psicológico” adquirido pela experiência. Neves e Mello (2009) citando Duarte Filho (2005) afirmam que, em alguns casos, as condições de risco existem e são mantidas porque o convívio frequente com elas, ao longo do tempo, incorporou-as à normalidade das tarefas. Esse fato, segundo os autores, é desastroso, pois se acostumar a uma situação errada, em que há exposição não-controlada a um fator de risco, é fatal para a reflexão correta sobre o problema, pois, no ato de pensar sobre o todo, essa variável não será considerada e muito menos solucionada. Finalmente, a quarta categoria de riscos, se relaciona ao gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção, e não como destino (BERNSTEIN, 1997; GIDDENS, 2002; MINAYO; SOUZA; CONSTANTINO, 2008). Natividade (2009, p. 415) ao discutir a configuração da identidade profissional dos bombeiros da região da grande Florianópolis-SC, observou que seus sujeitos da pesquisa consideram que “possuem uma atividade profissional perigosa e estressante, possuindo um grau de perigo alto. Contudo, quando questionados sobre o que sentem durante a ocorrência, os itens com maiores índices foram: “satisfação”, “sentimento do dever cumprido” e “competência”. O risco também traz consigo sentimentos ambíguos de medo, perigo, ameaça, satisfação e prazer, encontrando eco na etimologia da própria palavra "risco" que deriva do vocábulo italiano antigo "risicare" e tem ideia associada a "ousar" (BERNSTEIN, 1997). O gosto pelo afrontamento e pela ousadia como opção de escolha profissional apresenta o risco dentro de uma conotação positiva e necessária. “Quem não se arrisca está fadado à morte no sentido real e simbólico” (CONSTANTINO, 2008, p.188). Concorda Muniz (1999), quando escreve que “o espírito aventureiro, o dinamismo, a canalização de energias pelas ações, o encantamento da superioridade e a disponibilidade para enfrentar riscos”, fazem parte do ethos do trabalho policial (e dos bombeiros) e também (Minayo, Souza e Constantino 2008, p.188) quando pontua que “a adrenalina produzida pelo inusitado os ‘vicia’ e os 12 motiva para a ação”. No mesmo sentido, agrega Bittner (2003) quando afirma que: O que se requeria dos recrutas eram as virtudes máculas da honestidade, lealdade, agressividade e coragem visceral. Como compensação, os policiais recebiam a nobreza do serviço, a oportunidade de contribuir para o melhoramento da vida e, por fim, mas não menos importante, a promessa da aventura. (BITTNER, 2003, p.16) Nas pesquisas de Minayo e Souza (2003) ficou constatado que durante o confronto com o perigo, a sensação da adrenalina percorrendo o corpo é tão prazerosa que ofusca o sentimento de medo presente. La Mendola (2005) complementa ao afirmar que “o impulso para arriscar-se trabalha, de qualquer modo, no interior das personalidades; permanece a necessidade de demonstrar o próprio valor a si mesmo e aos outros, ainda que com características de tipo narcisístico ou exibicionista” (LA MENDOLA, 2005, p. 86). A atividade operacional e consequentemente de maior risco pessoal para o profissional requer maior responsabilidade nas ações, maior autonomia na tomada de decisões rápidas, mas, por outro lado, é a que proporciona maior prazer no trabalho. Novamente, percebe-se que esses agentes estão envoltos em sentimentos e percepções ambivalentes em relação ao risco, ora de medo e sofrimento, ora de satisfação e prazer (SPODE e MERLO , 2006). Retornando ao incêndio que abriu o filme, percebe-se a determinação dos colegas bombeiros de Jack para resgatá-lo. O Comandante Mike, pelo rádio, instrui Jack a alcançar uma área segura e aguardar o resgate. No entanto, ao chegar naquela sala, Jack percebe que a única saída possível está obstruída por chamas furiosas, e pede para Mike ordenar aos homens que saiam do prédio, aceitando seu destino de morrer naquele incêndio. No funeral de Jack, o Comandante Mike, muito emocionado, faz um elogio a Jack, que inspira uma ovação de pé dos amigos e da família. O corpo de Jack é então transportada para seu lugar de descanso, com todas as honras, na parte de trás de um caminhão tanque dos bombeiros em procissão funeral. O filme termina com flashbacks de Jack e seus colegas bombeiros indo para incêndios e uma tomada final de Mike e Jack em triunfo, após extinguir seu primeiro incêndio. 13 REFERÊNCIAS ADAMS, John. Risco. São Paulo: Editora SENAC, 2009. BERNSTEIN P.L. Desafio dos deuses: a fascinante história do risco. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997. BITTNER, Egon. Aspectos do trabalho policial. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. São Paulo, Vozes, 2003. BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009. CASTRO, Celso. O Espírito Militar: um estudo de Antropologia Social na Academia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. CONSTANTINO, Patrícia; RIBEIRO, Adalgisa Peixoto; CORREIA, Bruna Soares Chaves. 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