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Naura Syria Carapeto Ferreira Pierre Bourdieu e a Educação: um legado histórico a ser estudado Naura Syria Carapeto Ferreira (Doutora) Mestrado em Educação - Universidade Tuiuti do Paraná Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 111 112 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... Resumo Este texto apresenta momentos da trajetória de investigação de Pierre Bourdieu . Com este objetivo são apresentadas suas teses sobre o papel da escola na reprodução e legitimação das desigualdades sociais. Palavras-chave: educação, reprodução, desigualdades sociais, Bourdieu, escola. Abstract This paper presents some moments of Pierre Bourdieu’s research pathway. From this perspective, Bourdieu’s theses about the role of school in the reproduction and legitimation of social inequalities are presented. Key words: education, reproduction, social inequalities, Bourdieu, school. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 Naura Syria Carapeto Ferreira A moral só tem alguma oportunidade de futuro, particularmente em política, se trabalharmos pela criação dos meios institucionais de uma política da moral. Esse trabalho de desvelamento, de desencantamento, de desmistificação nada tem de desencantador. Só pode com efeito ser cumprido em nome dos próprios valores que se encontram na origem da eficácia crítica do desvelamento de uma realidade em contradição com as normas oficialmente professadas, igualdade, fraternidade e sobretudo, no caso particular, sinceridade, desinteresse, altruísmo, em suma, tudo aquilo que define a virtude civil. Pierre Bourdieu Introdução Porque escrever sobre Pierre Bourdieu? Não fosse sua significativa produção que revela sua dedicação às questões da vida social e humana, que por si só atestaria a importância de se registrar sua vida e sua obra, bastaria respeitar o depoimento dos mais significativos intelectuais do mundo que, compartilhando ou debatendo com ele, reconheceram sua obra como uma das mais importantes contribuições teóricas do pensamento humano, que possibilita interpretar o Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 113 114 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... mundo a partir das contradições que emergem da realidade social. Bourdieu construiu um sólido discurso sociológico e da educação analisando com rigor e escrúpulo empírico a função das instituições educacionais contribuindo para esclarecer que as diferenças de dons e atitudes consideradas pela educação até então são produzidas pelas diferenças sociais. Forneceu um importante quadro macrossociológico de análise das relações entre o sistema de ensino e a estrutura social. Seu constructo teórico inovou e trouxe importantes debates às Ciências Sociais, particularmente à Sociologia da Educação e à Educação, permitindo compreensões até então não havidas. Bourdieu teve o mérito de formular, a partir dos anos 60, uma resposta original, abrangente e bem fundamentada, teórica e empiricamente, para o problema das desigualdades escolares. Esta resposta tornou-se um marco na história, não apenas da Sociologia da Educação, mas do pensamento e da prática educacional em todo o mundo. A importância e força do trabalho de Bourdieu, que nos deixou órfãos no início de 2002, é ter construído suas teorias a partir de múltiplas fontes teóricas: Emanuel Kant, Claude Lévi-Strauss, Karl Marx; Ludwig Wittgenstein, Émile Durkheim, Marcel Mauss, Max Weber, Gaston Bachelard, Thorsten Veblen, Martin Heidegger, Erving Goffman, Juhn Austin, Norbert Elias, Basil Bernstein, Raymond Aron e tantos outros. Intelectual engajado, sua trajetória acadêmica como sociólogo é profundamente marcada por questões objeto de suas atividades científicas e por oportunas intervenções políticas na vida social. A contribuição de Pierre Bourdieu foi, sem dúvida, a de ter fornecido as bases para um rompimento frontal com a ideologia do dom e com a noção moralmente carregada de mérito pessoal. Sua contribuição fundamental para a educação foi que a partir de sua obra tornou-se impossível analisar as desigualdades escolares, simplesmente, como frutos das diferenças naturais entre os indivíduos. A produção, em quantidade e qualidade científica, do discurso sociológico, as múltiplas traduções não só de suas obras, mais representativas, como A reprodução que escreveu com Passeron, a infinidade de artigos, a atenção que, internacionalmente, se dedica à sua obra, mesmo que tecendo, em algumas ocasiões, análises críticas que demonstram algum desconhecimento do fio condutor e dos pressupostos básicos que fundamentam – os numerosos discípulos formados e o reconhecimento oficial de autoridade científica1 - , são alguns 1 Ao falar de “reconhecimento oficial” refiro-me ao seu ingresso no Colégio de França, onde pronunciou a famosíssima conferência Leçon sur la leçon ( 1982), donde se reafirma nos pressupostos indispensáveis do discursos sociológico sujeito às exigências do empírico. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 Naura Syria Carapeto Ferreira dos avais que se podem apresentar para conceder-lhe o título de mestre no ensino do ofício da construção de um coerente discurso sociológico e da educação(Vara Coomonte, 1999, p. 276). A respeito deste reconhecimento se pode observar que quando se trata de elucidar sobre o específico do discurso epistemológico da sociologia da educação, se recorre a Pierre Bourdieu, como um clássico com autoridade na sociologia da educação atual. Inquestionável, portanto, porque escrever sobre Pierre Bourdieu. Impossível, todavia, descrever sua vida e obra. Só a leitura de sua produção poderá revelar o profundo e significativo conteúdo de sua produção. Nesse sentido, este texto objetiva fornecer uma “rápida” visão panorâmica de sua vida e obra na tentativa de salientar um pouco da riqueza das idéias e dos debates que ela suscitou, tentando apontar e não reduzir a grandeza de seu precioso trabalho, evidenciando como Bourdieu contribuiu com a educação, oferecendo um novo modo de interpretação da escola que, pelo menos num primeiro momento, pareceu ser capaz de explicar tudo o que a perspectiva funcionalista encobria com seu paradigma “neutro” e anômalo. Todavia, a densidade de sua produção que engloba assuntos, os mais variados, como escola, cultura, campesinato, política, consumo, mídia etc., não pode ser reduzida nem apequenada nos limites destas linhas. Desta forma, os Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 marcos da abordagem deste texto devem servir, fundamentalmente, de estímulo à investigação da obra de Pierre Bourdieu em sua totalidade. Quem foi Pierre Bourdieu Difícil empreendimento, dizer quem foi Pierre Bourdieu. Todavia é importante, mesmo que nos limites de um texto e das compreensões de quem o elabora, falar um pouco - porque é impossível poder descrever a sa totalidade da vida e obra de Pierre Bourdieu – sobre o significativo pensamento deste renomado intelectual francês. Considerado um dos maiores sociólogos do século XX e reconhecido internacionalmente, Pierre Bourdieu elaborou, através de sua vasta produção científica, um sistema completo de leitura das relações sociais, criando uma verdadeira “escola” que contribuiu para a reflexão crítica do mundo, das instituições. De origem modesta, nasceu no interior da França, em agosto de 1930, na pequena cidade de Denguin situada no sul dos Pirineus. Diplomou-se em Filosofia na Escola Normal Superior, instituição esta, onde também estudaram Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Raymond Aron e tantos outros intelectuais de apósguerra. Já no final dos anos 50 inicia sua participação no espaço público, produzindo seus primeiros traba- 115 116 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... lhos sobre as transformações sociais na Argélia, onde também exerceu o magistério. É a partir desta experiência na Argélia que, a seu ver, passa a se considerar verdadeiramente sociólogo e etnólogo. Ainda em sua última aula no colégio de França evoca fatos ou idéias que nasceram desta época e que marcaram sua teoria tornando-o sociólogo e etnólogo. Este é um período intenso quando escreve uma profusão de obras cujas publicações aparecem posteriormente: Sociologie de Algérie (1958); Travail et travailleurs en Algérie (1963); Le Déracinement (1964); Algérie, année 60 (1977). Em sua produção Trabalho e trabalhadores na Argélia, Bourdieu desenvolve um dos conceitos chaves de sua teoria, marcando profundamente a sociologia tanto para utilizá-lo como para criticá-lo: trata-se do conceito de habitus. Este conceito, que desenvolverá ao longo de sua vida em toda a sua obra, corresponde a uma matriz, determinada pela posição social do indivíduo que lhe permite pensar, ver e agir nas mais variadas situações. Traduz, desta forma, estilos de vida, julgamentos políticos, morais e estéticos. Considera um meio de ação que permite criar ou desenvolver estratégias individuais e coletivas. A partir de 1961, quando retorna à França dá continuidade à sua obra, fazendo da escola, política, cultura, artes, mídia, lazer e tantos outros setores da vida social o centro de suas preocupações intelectuais e políticas. Nesta ocasião, torna-se professor assistente na universidade de Lille e, em 1964, passa a ser professor na atual Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales. Com Jean Claude Passeron inicia um profícuo período de trabalho sobre o ensino universitário. Tendo sido, ambos, alunos de Raymond Aron, passam a por em dúvida uma das idéias mais tenazes da ideologia republicana: a igualdade de oportunidades e a importância do sistema escolar para garantir igualdade social a todos. Criticam o próprio fundamento da sociedade meritocrática e o sistema de ensino considerado como a ponta de lança dessa ideologia. Em sua obra Les Héritiers (1964), apontam para a relação entre o “capital cultural” , a seleção social e escolar. O conceito de capital cultural - diplomas, nível de conhecimento geral, boas maneiras - é utilizado para distinguir do capital econômico e do capital social – rede de relações sociais -. O que Bourdieu demonstra é que existe a relação entre a cultura e as desigualdades escolares: a escola pressupõe certas competências que são de fato adquiridas na esfera familiar. Explica que os estudantes da classe média ou da alta burguesia, pela proximidade com a cultura “erudita”, pelas práticas culturais ou lingüísticas de seu meio familiar, têm mais probabilidades de obter sucesso escolar. Esta relação entre o ensino e a cultura inspira uma série de estudos e investigações que originam publicaTuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 Naura Syria Carapeto Ferreira ções sobre as funções sociais das práticas culturais. Assim produz: Lárt moyen (1965) com L. Boltanski, R. Castel e J. C. Chamboredon; L’Amour de l’art ( 1966) com A . Darbel e D. Schnapper quando define a arte em seu sentido mais amplo, como manifestação cultural, elaborada a partir de um modelo de registro de visitas a museus. A este respeito escreve: Dado que a obra de arte só existe como tal na medida em que é percebida, isto é, decifrada, é óbvio que as satisfações vinculadas a esta percepção – já que se trata de deleite propriamente estético ou de satisfações mais indiretas, como o ‘efeito de distinção’- não são acessíveis além de quem está disposto a apropriar-se delas por que lhe atribuem um ‘valor’, subtendendo-se que não podem atribuir-lhes um valor senão porque dispõem dos meios para adquiri-las. Por conseguinte, a necessidade de apropriar-se dos bens, que como bens culturais, existem como tais para quem recebeu de seu meio familiar e de sua escola os meios para adquiri-las, só pode aparecer naqueles que podem satisfazê-la. (Bordieu, 1966, pp. 60-61) Bourdieu explicita que diferentemente das necessidades primárias, a necessidade cultural como necessidade cultivada se incrementa na medida em que se satisfaz já que cada nova apropriação tende a reforçar o domínio dos instrumentos de apropriação e, desse modo, as 2 Denominado também de Centro de Sociologia Européia. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 satisfações vinculadas a uma nova apropriação – e, por outro lado que a consciência da privação decresce a medida que cresce a privação, dado que os indivíduos mais completamente despossuídos dos meios de apropriação das obras de arte são os mais despossuídos da consciência dessa impossibilidade de posse. Desta forma, a disposição de apropriar-se dos bens culturais é o produto da educação difusa ou específica, institucionalizada ou não, que cria e cultiva a competência artística como domínio dos instrumentos de apropriação desses bens, e que cria a “necessidade cultural” subministrando os meios de satisfazê-la. Esta relação entre educação e cultura motiva à criação do Centro de Sociologia da Educação e da Cultura2 em 1968, onde trabalha até 1981, quando começa a trabalhar no Colégio de France. As investigações que desenvolve abarcam um amplo leque temático que tem o sistema educativo como destaque analisando desde a dinâmica de seu campo cultural, sua imbricação no sistema econômico e social. Outros temas importantes de investigação se centram na socialização familiar, nas atitudes religiosas, políticas e econômicas, nas ações pedagógicas das organizações como a igreja, os partidos e os sindicatos. Pierre Bourdieu foi um dos primeiros sociólogos europeus que soube compreender a trama ideológica 117 118 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... do que tem sido denominado a “American Science estadounidense” e fazer uma análise crítica da dita sociologia “made in USA” e da produção sociológica européia, principalmente francesa 3 que estava construída a imagem e semelhança da mesma. Por esse saber compreender o que estava se passando no mundo, Bourdieu, assim como Bernstein na Inglaterra, soube antecipar-se e começar a abrir caminhos abrindo uma brecha importante na elaboração de uma teoria sociológica, empiricamente fundamentada a partir dos pressupostos da dinâmica do contexto e da formação social, a partir das análises dos autores clássicos. Assim como Bernstein, Bourdieu começa a publicar seus trabalhos muito antes de que se consolide a crise da sociologia imperante e hegemônica no Estados Unidos. Com Jean Claude Passeron elabora uma obra fundamental no pensamento acadêmico e educacional mais amplo. Trata-se da Reprodução: elementos para uma teoria do ensino que publica em 1970. Contrapondo-se à idéia difundida de que a escola é um reflexo e um instrumento da reprodução social, desenvolve a noção da violência simbólica que é exercida através dos determinismos e da força da coação social, o que cau- sa inúmeras críticas, principalmente no meio professoral, sindicatos e associações. Através do uso da noção de violência simbólica tenta desvendar o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como ‘natural” as representações ou as idéias sociais dominantes. A violência simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos agentes que as animam e sobre a qual se apoia o exercício da autoridade. Desta foram, Bourdieu considera que a transmissão pela escola, da cultura escolar – conteúdos, programas, métodos de trabalho e de avaliação, relações pedagógicas, práticas lingüísticas – própria à classe dominante, revela uma violência simbólica exercida sobre os alunos das classes populares. Já em A economia das trocas simbólicas publicado no Brasil em 1974, explicita que a organização do mundo e a fixação de um consenso a seu respeito constitui uma função lógica necessária que permite à cultura dominante numa dada formação social cumprir sua função político-ideológica de legitimar e sancionar um determinado regime de dominação. Nesta obra desenvolve e articula conceitos-chave explorados com maestria: violência simbólica, habitus, prática, ação pedagógica, autoridade pedagógica, arbitrário cultural, 3 Na obra conjunta que escreve com Passeron intitulada Microssociologia ( 1975, p. 62-63) critica a sociologia européia empírica, principalmente a francesa, que segue as pistas científicas da civilização americana, pistas estas que se alicerçam suas raízes no estruturalismo funcionalista de aspiração universalista, ao estilo de Talcott Parsons, um dos seu maiores representantes. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 Naura Syria Carapeto Ferreira trabalho pedagógico, modos de aquisição, imposição, inculcação, reprodução cultural e social. O fecundo pensamento de Pierre Bourdieu O trajeto intelectual de Bourdieu visa aliar o conhecimento da organização interna do campo simbólico – cuja eficácia reside justamente na possibilidade de ordenar o mundo natural e social através de discursos, mensagens e representações, que não passam de alegorias que simulam a estrutura real de relações sociais – a uma percepção de sua função ideológica e política e legitimar uma ordem arbitrária em que se funda o sistema de dominação vigente. Tal solução liga-se a uma determinada imagem da sociedade e, em particular da sociedade capitalista, cujo desenvolvimento baseia-se numa divisão do trabalho altamente complexa e diferenciada a que corresponde uma sociedade de classes, cujas posições respectivas e cujo peso relativo encontram seu fundamento nas formas pelas quais se reparte, de maneira desigual, o produto do trabalho, sob as modalidades de capital econômico e cultural. Assim, para Bourdieu, os atos simbólicos supõe sempre atos de conhecimento e reconhecimento, atos cognitivos por parte daqueles que são os seus destinatários. Para que uma troca simbólica funcione, é preciso que as duas parte tenham categorias de percepção e de apreciação idênticas. E isto vale também, assim explica, para os atos de dominação simbólica que, como no caso da dominação masculina, se exercem com a cumplicidade objetiva dos dominados, na medida em que, para que uma forma semelhante de dominação se instaure, é preciso que o dominado aplique aos atos do dominante (e a todo o seu ser) estruturas de percepção que sejam as mesmas que o dominante emprega para produzir estes atos. Nesta via de raciocínio explica que um dos efeitos da violência simbólica é a transfiguração das relações de dominação e de submissão em relações afetivas, a transformação do poder em carisma ou em condão de molde a suscitar um encantamento afetivo. O reconhecimento da dívida torna-se reconhecimento, sentimento duradouro para com o autor do ato generoso, podendo ir até à afeição, ao amor, como vemos particularmente bem nas relações entre gerações. A violência simbólica, para este sociólogo e etnólogo francês, é potente porque torna-se uma verdadeira alquimia simbólica produzida em proveito daquele que realiza os atos de eufemização, de transfiguração, de por em forma, um capital4 de reconheci- 4 Bourdieu denomina de “capital simbólico” ‘uma qualquer propriedade, força física, riqueza, valor guerreiro, que, percebida por agentes Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 119 120 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... mento que lhe permite o exercício de efeitos simbólicos (Ferreira, Vieira, Vidal, 2002). A violência simbólica é essa violência que extorque submissões que não são sequer percebidas como tais apoiando-se em ‘expectativas coletivas’, crenças socialmente inculcadas. Como a teoria da magia, a teoria da violência simbólica assenta numa teoria da crença ou, numa teoria da produção da crença, do trabalho de socialização necessário para produzir agentes dotados dos esquemas de percepção e de apreciação que lhes permitirão perceber as injunções inscritas numa situação ou num discurso e obedecer-lhes (Bourdieu, 1997a: 130-131) Num sentido amplo, pode-se falar de violência ideológica, moral, etc. – esta violência simbólica que faz obedecer sem a percepção lúcida do real. Trata-se de uma ação exercida diretamente sobre a consciência tendente a transformá-la ou a orientá-la numa direção mediante o debilitamento ou destruição de suas defesas. Nesse sentido, a violência ideológica ou moral se contrapõe literalmente à ação exercida sobre a consciência por meio da educação. Com Passeron, seu parceiro intelectual, em 1970, Bourdieu escreve A reprodução: elementos para uma teoria de ensino, traduzido para o português do Brasil em 1975 e que, de certo modo é uma continuação, mais polida e documentada, ao mesmo tempo que mais “sofisticada” do pensamento desenvolvido em Les étudiants et leur études e Les étudiants et la culture, ambas escritas em 1964. Esta obra – A reprodução – é o estudo empírico do funcionamento do sistema escolar na estrutura francesa de relações de classe, que desvela os mecanismos utilizados pelo sistema escolar para encobrir uma desigualdade social, mediante os sucessivos mecanismos de comunicação, inculcação de uma cultura legítima, de seleção e de legitimação; e toda esta exposição é feita no contexto da violência simbólica que supõe a irremediável imposição de uma cultura arbitrária. O discurso sociológico da educação deve partir, portanto, do significado e do sentido da arbitrariedade cultural, conceito que se clarifica e explicita, enquanto fundamento do discurso que é exposto, na mesma introdução da obra. É a exposição do fundamento orientador do que pode ser denominado - teoria da reprodução. Tempos depois, advertindo para o caráter imobilista que pode encerrar o conceito de “profis- sociais dotados das categorias de percepção e de apreciação permitindo percebê-la, conhecê-la e reconhecê-la, se torna simbolicamente eficaz, como uma verdadeira força mágica: uma propriedade que, por responder a ‘expectativas coletivas’ socialmente constituídas, a crenças, exerce uma espécie de ação à distância, sem contato físico”. (Bourdieu, 1997a, p. 130) Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 Naura Syria Carapeto Ferreira são”, Bourdieu introduz a noção de campo entendido como espaço social, marcado por uma lógica particular, por hierarquias e disputas internas. Os diversos campos sociais, mesmo mantendo uma relação entre si, se definem através de objetivos específicos, o que lhe garantem uma lógica de funcionamento e de estruturação. É característico do campo possuir suas hierarquias e disputas internas, assim como princípios que lhe são inerentes, cujos conteúdos estruturam as relações que os autores estabelecem entre e no seu interior (Ferreira, 2002). A esse respeito assevera: Profession é uma palavra de linguagem comum que entrou de contrabando na linguagem científica: mas é sobretudo uma “construção social”, produto de todo um trabalho social de grupo e de uma “representação” dos grupos, que se insinuou docemente no mundo social. É isso que faz com que o “conceito” caminhe tão bem. Bem demais, de certo modo: se vocês o aceitarem para construírem o vosso objeto, encontrarão listas já feitas, centros de documentação, que resumem informações a seu respeito e talvez por pouco hábeis que sejais, fundos para o estudar (...) Mas se, tomando o conhecimento do espaço das diferenças que o trabalho de “agregação” necessário para construir a profession teve de superar, em perguntar se não se trata de um ‘campo”, então tudo se torna difícil. (Bourdieu, 1989, p.40) Dessa forma, alerta, para o questionamento acerca de classificações apriorísticas sobre o magistério Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 em termos de patamares que devem possuir, dos saberes e habilidades de que deve ser portador, do grau de profissionalismo que deve alcançar, questões esta que devem ser examinadas no complexo “campo” dessas relações. O conceito de campo contribui para o conhecimento de frações existentes no interior do magistério, das lutas travadas em torno de idéias, valores e práticas construídas nos espaços por onde transitou e transita, como um real campo de contradições que necessitam ser percebidas e, por incorporação, superadas (Ferreira, 2002). De toda sua contribuição teórica, entretanto, vale ressaltar a articulação dos conceitos de habitus e de campo já falados acima. Com o conceito de habitus – entendido como sistema transferível de disposições socialmente constituídas -, o sociólogo pretendia apreender o social sob sua forma incorporada e assim atacar as bases do mito da liberdade individual, isto é, o que o mundo social deixa em cada um de nós, na forma de propensões a agir e reagir de certa forma, de preferências e detestações, de modos de perceber, pensar e sentir. É em Bourdieu, que se encontra o maior esforço de explicitação em matéria de teoria da ação, como as noções de interiorização ou de incorporação das estruturas objetivas, de sistema de disposições, de fórmula geradora ou de princípio gerador e unificador das práticas, de transponibilidade 121 122 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... ou de transferibilidade das disposições. Graças à noção de habitus, foi possível ultrapassar a oposição teórica estéril entre “a sociedade” e o “indivíduo”, oposição que deve ser explicitada e não dicotomizada, como o fez magistralmente Norbert Elias em várias de suas obras. Já a noção de “campo” é explicitada como um microcosmo incluído no macrocosmo constituído pelo espaço social (nacional) global, um “sistema” ou um “espaço” estruturado de posições, espaço de lutas entre diferentes agentes que ocupam as diversas posições. É um espaço social, marcado por uma lógica particular, por hierarquias e disputas internas, e que possui uma estrutura própria relativamente autônoma em comparação a outros espaços sociais. Esse espaço é um espaço de lutas entre os diferentes agentes que ocupam as diversas posições e as lutas se dão em torno da apropriação de um capital específico do campo e/ ou da redefinição daquele capital que é desigualmente distribuído dentro do campo. Em luta uns com os outro, os agentes de um campo têm pelo menos interesse em que o campo exista e, portanto, mantém um “cumplicidade objetiva” para além das lutas que os opõem. Nesse sentido, os interesses sociais são sempre específicos de cada campo e não se reduzem ao interesse de tipo econômico. A cada “campo” corresponde um habitus próprio do campo (por exem- plo o habitus da medicina ou o habitus do magistério). Somente quem tiver incorporado o habitus próprio do campo tem condição de “jogar” o jogo e de acreditar na importância do jogo. Como o sociólogo afirma em sua obra A economia das trocas simbólicas: A lei que rege a relação entre as estruturas objetivas do campo ( em particular, a hierarquia objetiva dos graus de consagração) e as práticas por intermédio do habitus princípio gerador de estratégias inconscientes ou parcialmente controladas tendentes a assegurar o ajustamento às estruturas de que é produto tal princípio - constitui apenas um caso particular da lei que define as relações entre as estruturas, o habitus e a prática, e segundo a qual as aspirações subjetivas tendem a ajustar-se às oportunidades objetivas (Bourdieu, 1974, p. 160). Pierre Bourdieu elabora, desta forma, um sistema teórico que não cessará de desenvolver: as condições de participação social baseiam-se na herança social. O acúmulo de bens simbólicos e outro estão inscritos nas estruturas do pensamento (mas também no corpo) e são constitutivos do habitus através do qual os indivíduos elaboram suas trajetórias e asseguram a reprodução social. Essa não pode se realizar sem a ação sutil dos agentes e das instituições, preservando as funções sociais pela violência simbólica exercida sobre os indivíduos e com a adesão deles. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 Naura Syria Carapeto Ferreira Entende, Bourdieu, que a passagem do capital de qualquer espécie para o capital cultural supõe toda uma reestruturação do sistema de estratégias de reprodução, produzindo-se uma reconversão do dito capital cultural no contexto das relações de poder entre as classes de uma estrutura social determinada. Pode-se dizer, portanto, que o sistema educativo é o que legitima a divisão e seleção conforme ao capital com que se ingressa nele, reconvertendo-se no capital diferenciado. A Sociologia da Educação de Bourdieu se notabiliza pela diminuição que promove do peso do fator econômico, comparativamente ao cultural, na explicação das desigualdades escolares. Ressalta que o sistema escolar não reproduz diretamente a economia familiar. Não se pode falar, portanto, de uma reprodução simples ou ampliada, mas que a educação reproduz as relações entre a reprodução social e Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 28, FCHLA 04, p. 111-125, Curitiba, mar. 2002 a cultural contribuindo, o sistema educativo, à reprodução da estrutura das relações de poder e das relações simbólicas entre as classes a participar na reprodução da estrutura da distribuição do capital cultural entre as classes. Salientando como Pierre Bourdieu se torna indispensável ao regime de leituras necessário à formação intelectual e profissional, apresenta-se como síntese, o que se considera o núcleo temático principal do discurso sociológico da cultura de Bourdieu no que concerne à reprodução sócio-educativa: analisar os mecanismos propriamente pedagógicos por meio dos quais a escola contribui para reproduzir a estrutura das relações de classes reproduzindo a desigual repartição entre as classes do capital cultural (Bourdieu, 1975, p. 222). Desta forma, finaliza-se com a intenção de estimular o início de profícuos estudos e investigações sobre o legado histórico de Pierre Bourdieu. 123 124 Pierre Bourdieu e a Educação: um legado... Referências bibliográficas BOURDIEU, P. (1958). Sociologie de Algérie. Paris: PUF, Coll. _____.(1963). Travail et travailleurs en Algérie. Paris- La Haye: Mouton. _____.(1964a). Le Déracinement. Paris: Ed. De Minuit. _____.(1964b). Les Héritiers. Paris: Ed. 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