Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre

Transcrição

Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE
BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
Filiada à International Psychoanalytical Association – IPA
v. 3, n. 1, 2001
EDITOR
Ana Rosa Chait Trachtenberg
CONSELHO EDITORIAL
Elfriede Susana Lustig de Ferrer • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara
Zac de Filc
COMISSÃO EDITORIAL
Cynara Cezar Kopittke • Denise Zimpek T. Pereira• Geraldo Rosito • Vera
Dolores Mainieri Chem • Vera Maria H. Pereira de Mello
BIBLIOTECÁRIA
Geisa Costa Meirelles
EDITORAÇÃO
Luiz Cezar F. de Lima
LAY-OUT
Josimo Silva Lopes – Speed Press
DIGITAÇÃO
Nilza Cidade Cardarelli
SECRETÁRIA
Antonia de Castro Lima
REVISÃO DE PORTUGUÊS
Professora Helena Totta Silveira
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre – Filiada à International
Psychoanalytical Association (IPA)
Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected]
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[email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
1
Capa:
“Balsamarium
87
Etrúria, século III a.C.
Bronze, alt. 9,4 cm
Este recipiente para óleo perfumado, incenso ou ungüento, fundição oca em várias partes, tem a
forma de duas cabeças unidas pela parte posterior. As cabeças são de um sátiro e de uma bacante,
seguidores masculino e feminino de Dionísio, deus do vinho. Os sátiros são criaturas turbulentas e sensuais,
parte homens, parte animais, as bacantes são sua contrapartida feminina, que simbolizam o ímpeto e o
abandono. Ambas as cabeças são cuidadosamente moldadas e bem-acabadas. A bacante usa uma faixa
torcida em volta da cabeça, uma tira em torno da testa e um colar em volta do pescoço. Suas feições são
simples mas fortemente definidas – um nariz reto, olhos proeminentes, boca larga e queixo cheio. O rosto
do sátiro é caracteristicamente feio, com sobrancelhas agudamente inclinadas, esta fortemente enrugada,
orelhas grandes, nariz arrebitado e cabelos, bigode e barba encaracolados. Ele também usa uma faixa
torcida em volta da cabeça, e um cacho de uvas pende no centro de sua testa. No lado em que as duas
cabeças se unem há um cacho de uvas sobre uma folha de videira.
Vasos de bronze como este são encontrados comum e regularmente em tumbas etruscas do
século III a.C. Alguns podem ter sido usados para perfumar o ar, pois muitos deles têm correntes ou, como
na peça de Freud, furos para fixação de correntes, pelas quais devem ter sido suspensos. Outros podem
ter simplesmente guardado cosméticos. Alguns dos vasos são moldados na forma de uma única cabeça,
em geral feminina, mas muito freqüentemente apresentam este arranjo com duas cabeças, e a combinação
mais popular era a de cabeças de sátiro e bacante. A atração desta combinação está, talvez, na justaposição
de opostos – belo e feio, feminino e masculino.
Freud, o profundo dualista, tinha várias figuras de duas faces. Já em 1899 ele possuía uma cabeça
de Jano em pedra, e em seus últimos anos mantinha este balsamarium de duas cabeças sobre sua
escrivaninha. O dualismo permeia todo o pensamento de Freud, aparecendo em dicotomias fundamentais,
como o princípio do prazer versus o princípio da realidade, Eros versus Tanatos, libido versus agressão,
assim como na noção do mecanismo de transposição próprio dos sonhos – a representação de uma idéia
pelo seu oposto.
Do mesmo modo, o ponto central deste objeto é a noção da bissexualidade básica de todos os
seres humanos, que Freud discutiu em sua obra fundamental, Three Essays on the Theory of Sexuality, de
1905 (SE, 7, pp.135-243)”
Esta peça pertence ao Freud Museum de Londres e fez par te das exposições da coleção de
Antiguidades de Freud, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1994; está retratada no livrocatálogo da exposição “Sigmund Freud e Arqueologia – sua Coleção de Antiguidades”. Rio de Janeiro,
1994, Salamandra Consultoria Editorial S.A. Direitos autorais pagos ao Freud Museum – The Bridgeman
Art Library – Londres, sob a forma da lei.
P975
Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 3, n. 1, 2001.
Porto Alegre: SBPdePA, 2001.
1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre.
ISSN 1518-398X
CDU: 616.891.7
Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles
2
CRB 10/1110
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE
(Provisória)
Filiada à International Psychoanalytical Association – IPA
DIRETORIA
Presidente
Dr. Gley Pacheco Costa
Tesoureiro
Dr. Luiz Gonzaga Brancher
Secretário
Dr. Leonardo A. Francischelli
Secretário Científico
Dr. New ton M. Aronis
Vogais
Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg
Dr. Marco Aurélio Rosa
INSTITUTO DE PSICANÁLISE
Diretor
Dr. Gildo Katz
Coordenador de Formação
Dr. Antônio Mostardeiro
Secretário
Dr. Lores Pedro Meller
Coordenador de Seminários
Dr. José Facundo Oliveira
BIBLIOTECA e
PSICANÁLISE – Revista da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Diretora – Editora
Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
3
MEMBROS FUNDADORES
Alberto Abuchaim
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Antonio Luiz Bento Mostardeiro
David Zimmermann
Gildo Katz
Gley Silva de Pacheco Costa
Izolina Fanzeres
José Facundo Passos de Oliveira
José Luiz Freda Petrucci
Júlio Roesch de Campos
Leonardo Adalberto Francischelli
Lores Pedro Meller
Luiz Gonzaga Brancher
Marco Aurélio Rosa
New ton Maltchik Aronis
Renato Trachtenberg
Sérgio Dornelles Messias
MEMBRO HONORÁRIO
Dr. David Zimmermann (Falecido)
LIAISON COMMITTEE
Dra. Elfriede Susana Lustig de Ferrer (Chair)
Dr. Samuel Zysman
4
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
SUMÁRIO
SAUDAÇÕES
Palavras do Presidente
Gley P. Costa
•
9
EDITORIAL
Palavras do Editor • 13
Ana Rosa Chait Trachtenberg
ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES
O Papel do Antepassado
Alberto Eiguer
•
17
A Posição Fóbica Central
André Green
•
35
Winnicott e Neurociência Cognitiva: Atual e Transicional
Carlos Doin
•
71
A Importância da Observação de Bebês para a Formação de Psicanalistas
Claudia Lucía Borensztejn
Encaminhando o Encaminhamento • 101
Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg
Compartilhanho a Experiência Clínica • 111
Maria Regina Junqueira e Nilde J. Parada Franch
Sobre as Primeiras Inscrições
Myrta Casas de Pereda
•
129
Por trás do Véu (sobre uma viagem ao Irã)
Nelson Asnis
•
145
Análise Terminável e Interminável: Algumas Reflexões
New ton Aronis
•
153
O Sonhar e o Brincar, Simbolismo do Mundo Interno da Criança
Olga Santa María de Gómez-Roch
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
5
•
163
•
89
Algumas Reflexões sobre a História da Técnica Psicanalítica
R. Horácio Etchegoyen
•
175
Psique e Cultura • 199
Samuel Arbiser
CONFERÊNCIA na SBPdePA
“Psicanálise e Ciência: Parentes, Amigas ou Estranhas? Bases Científicas da
Psicanálise” • 213
Paulo Cesar Sandler
ENTREVISTA da SBPdePA
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
6
•
257
Psicanálise v. 1, n. 1, 1999
Saudações
Fluctuat nec
mergitur
Gley P. Costa
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
Em 1914, Freud realizou um
extenso relato do desenvolvimento
da Psicanálise desde os seus primórdios, procurando definir os
princípios essenciais com simplicidade e precisão. Para epigrafar o artigo, intitulado “A história do movimento psicanalítico”, Freud escolheu a frase do emblema da cidade
de Paris, que representa uma embarcação: Fluctuat nec mergitur, ou
seja, “as ondas a abalam, mas não a
afundam”. Uma alusão ao impacto
das teorias de Adler e Jung, que ele
considerava totalmente incompatíveis com os postulados fundamentais da Psicanálise.
Passados quase 90 anos, acompanhando o desenvolvimento e a difusão da ciência Psicanalítica,
encontramo-nos diante de um número que cresce sem parar de práti9
Gley P. Costa
Palavras do
Presidente
PALAVRAS
DO
PRESIDENTE
cas que também reivindicam o reconhecimento de psicanalíticas, em que
pese fraudarem os alicerces da teoria e da técnica freudiana. Esta situação
nos convoca a refletir sobre o nosso destino, na expectativa de que a frase,
tomada por empréstimo do brasão parisiense, possa ser mantida ainda por
muito tempo.
Sem dúvida, o crescimento interno da Psicanálise, mediante o
aprofundamento da teoria, a preservação de sua especificidade técnica e o
empenho em manter uma formação direcionada a criar condições favoráveis ao desenvolvimento de uma verdadeira identidade analítica, constitui
o pilar que poderá sustentar nossa tarefa, nos próximos anos.
Sendo assim, as revistas, por representarem importante meio de transmissão do conhecimento proporcionado pela prática analítica, conferindo
à Psicanálise indispensável reconhecimento científico, encontram-se na linha de frente do trabalho que teremos que desenvolver com dedicação, e
de forma continuada. Provavelmente, esse foi o pensamento de Freud, em
1918, ao destinar o dinheiro recebido de um fundo para finalidades culturais à fundação de uma editora psicanalítica internacional, a Verlag, e à
concessão de prêmios a trabalhos que se destacassem nos campos da Psicanálise clínica e aplicada.
Gley P. Costa
Porto Alegre, junho 2001
10
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Editorial
Ana Rosa Chait
Trachtenberg
Ao pensar no lançamento do
volume 3 de Psicanálise – Revista
da SBPdePA avaliei o quanto o número 3, em si mesmo, é caro para a
Psicanálise. Todos sabemos, naturalmente, o porquê desta afirmação.
Curiosamente, para o mundo
editorial, em suas mais variadas
apresentações, também. Traz consigo ares de prosperidade e mostra-se
como um indício de progresso e
continuidade.
Freud, grande colecionador, a
quem homenageamos mais uma vez
estampando uma de suas
antigüidades na capa desta revista,
possuía aproximadamente três mil
peças em 1939, ano de sua morte.
Começou a adquirir objetos artísticos imediatamente após a morte de
seu pai, em 1896. Teria sido uma
resposta a tão dolorosa perda, pois
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 13
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Palavras
do Editor
PALAVRAS
DO
EDITOR
ele encontrou nesses objetos uma fonte de excepcional alívio e consolo.
Simultaneamente, o luto impulsionou, sobremaneira, a sua auto-análise,
culminando no majestoso livro “A interpretação dos sonhos”. Assim, Arqueologia e Psicanálise se entrecruzam; em “A etiologia da histeria”
(1896), Freud afirmava que as pedras falam aos arqueólogos, assim como
as recordações esquecidas, enterradas, falam ao psicanalista.
Freud, arqueólogo da mente, estudioso de “pré-histórias”, dizia que o
procedimento de extrair camada por camada do material psíquico
patogênico pode ser comparado à técnica de fazer escavações numa cidade
enterrada.
Em 1938, quando foi obrigado a abandonar Viena e transferir-se para
Londres, temia especialmente pelo destino de sua coleção de antigüidades.
Após a chegada a Londres, escreveu para sua amiga Jeanne Lampl de
Groot: “Todas as peças egípcias, chinesas e gregas chegaram bem, suportaram a viagem com poucos danos (...). Há, somente, um detalhe: uma
coleção na qual não se fazem novos acréscimos está realmente morta”.
Sigmund Freud foi, também, um expert como colecionador científico,
e se contam especialmente quatro dessas coleções: casos, textos de sonhos,
histórias judias e lapsus em geral.
Psicanálise – Revista da SBPdePA, que neste volume 3 – 2001 traz
consigo a novidade de editar dois números (junho e dezembro), pode já
pretender e postular a sua inscrição no mundo das coleções, das coleções
vivas, que ultrapassa a fronteira da dualidade e ruma, fortalecida, à caminho da triangulação.
Assim, bem-vindos leitores e colaboradores nesta viagem. Assim,
muito obrigada aos que partilharam dessa, por vezes acidentada, jornada,
até aqui.
A todos, boas e vivas leituras.
Ana Rosa Chait Trachtenberg
Porto Alegre, junho 2001
Informações colhidas em: S. Freud – Partes de Guerra
John Forrester Gedisa editorial, Barcelona, 2001
14
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Artigos/Ensai0s/Reflexões
Alberto Eiguer
Membro Associado da Sociedade
Psicanalítica de Paris
Inicialmente, gostaria de ressaltar alguns pontos referentes ao
conceito de identificação:
1. Geralmente, a identificação
utiliza pouca energia.
2. Ela se manifesta depois da
tempestade conflituosa, no momento em que ela tende a se acalmar.
3. Toda a identificação implica
um processo em duas direções: do
interior (do sujeito) para o exterior
e do exterior para o interior. Assim,
na identificação introjetiva, o primeiro movimento se dirige para o
exterior, investindo o objeto; em seguida, o segundo movimento se dirige para o interior. Na identificação
projetiva, o primeiro movimento
vai do exterior para o interior: o indivíduo capta as fragilidades
narcísicas do outro, em seguida, o
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 17
Alberto Eiguer
O Papel do
Antepassado
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
segundo movimento se dirige para o exterior, expulsando os conteúdos
desagradáveis.
4. O investimento precede as identificações secundárias, enquanto
que ele vem depois das identificações primárias.1
5. Reproduzindo o modelo do investimento materno, todo o investimento supõe, além do investimento do outro, o de seus objetos internos (a
esse outro) e o de sua interação; o de sua capacidade de pensar e de fantasiar; o de sua linhagem. Procede daí o interesse de nos debruçar sobre o
antepassado.
No Âmago dos Antepassados
Um objeto transgeracional2 é um ancestral, um avô (antepassado) ou
um outro parente direto ou colateral de gerações anteriores que suscita
fantasias e provoca identificações em um ou vários membros da família.
Aparece no discurso dos pacientes como uma revelação muitas vezes inesperada, ou nas associações e recordações a propósito de sonhos que abrem,
por assim dizer, a via real para setores sepultados do aparelho psíquico e
mantidos à margem por uma clivagem severa. Muitos desses objetos são a
conseqüência de uma política de segredo, de uma grande fidelidade a um
dos pais que desejou, muitas vezes por vergonha, colocar a(as) criança(as)
à parte de toda a referência a esse objeto. O objeto transgeracional está
inscrito no aparelho psíquico através de representações de palavra e de
coisa, referentes a traumatismos dolorosos e/ou moralmente reprováveis.
1. FREUD, S., Psychologie collective et analyse du moi (1921), tradução francesa em Essais de
psychanalyse, Payot, Paris, 1951, pp.80-175. Nova tradução, Psychologie des foules et analyse du
moi, 1981; FREUD, S., “Le moi et le ça” (1923). Tradução francesa em Essais de psychanalyse,
Payot, Paris P.B., 1975, pp.177-234; FREUD, S., Malaise dans la civilisation (1929), tradução
francesa, PUF, Paris, 1971; FREUD, S., L´ avenir d´ une illusion (1927), tradução francesa, PUF,
Paris, 1971; FREUD, S., Nouvelles conférences sur la psychanalyse (1932), tradução francesa,
Gallimard, Paris, 1936; FREUD, S., Moïse et le monothéisme (1938), tradução francesa,
Gallimard, Paris, 1948; FREUD S., Totem et tabou, 1912, tradução francesa, Payot, Paris, 1977.
2. EIGUER, A., La parenté fantasmatique. Transfert et contre-transfert en thérapie familiale
psychanalytique. Dunod, Paris, 1987.
18
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
3. EIGUER, A., “Les représentations transgénérationnelles et leurs effets sur le transfert dans la
thérapie familiale”, Gruppo, 1986, 2, pp.55-72.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19
Alberto Eiguer
Às vezes, seu estatuto é o de um vazio de representação ou de uma
protorepresentação de coisa incapaz de aceder ao estatuto de palavra e de
pensamento. Essas representações se ligam a um só objeto, mas, às vezes,
a dois ou mais: cenas violentas, eróticas ou equivalentes(um o carrasco e o
outro vítima, por exemplo). Em suma, elas se acompanham de um ambiente ideológico, isto é, de lendas mitificadas de caráter alegórico que envolvem e dão uma certa coerência à lembrança.
No momento do encontro amoroso, essas representações
transgeracionais organizam a escolha sexual dos pais. É freqüente que cada
um dos parceiros encontre no outro um objeto transgeracional semelhante
ao seu (ou complementar); citemos o caso dos antepassados desonestos ou
que morreram jovens, nascimentos ilegítimos ou avós onipresentes, e mesmo dominantes.3 Também pode-se observar situações ou experiências traumáticas semelhantes nos dois parceiros, tais como os casamentos de conveniência na linhagem de cada um, pais que abandonaram o lar, etc. Essas
representações são projetadas no contexto dos elos inconscientes, cada
membro da família se dirigindo ao outro, de acordo com o modelo objetal
e relacional das representações em questão.
Cada família tem uma imagem mítica de uma família ideal, a que ela
liga a um ou outro ramo da árvore genealógica, e mesmo àquela “que inaugurou a genealogia”. Mas a família disfuncional quer, em numerosos casos, “romper” com suas origens, privando-se, então, de suas próprias raízes
e, através disso mesmo, do que ela possui de mais rico. Às vezes, a referência às linhagens de cada genitor criará conflitos de pertinência entre eles,
cada um se preocupando em conservar-se leal a sua própria família. O
Édipo desempenha um certo papel, mas não exclusivo. Em outros casos, a
referência às linhagens será vivida como um fardo pesado para carregar. A
interfantasmatização está dominada, nestes exemplos, pela fantasia do
auto-engendramento. Ouve-se dizer: “Eu não devo nada a ninguém. Eu me
fiz sozinho.” É o caso extremo: onipotência, recusa de existência que anula
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
a força do superego, frequentemente florescente.
No caso funcional “normal”, a linhagem propõe o núcleo da
pertinência, uma filiação, um sobrenome comum, uma religião comum,
uma série de tradições, opções profissionais, às vezes uma linguagem ou
um jargão típicos e um conjunto de mitos alegóricos que têm força de coesão. A recusa da filiação ocasiona, como se compreenderá facilmente, uma
vivência potencialmente psicótica.
Nesse estágio de nossa reflexão nos colocaremos as seguintes questões:
– Quais são as relações entre a representação do genitor e a representação do antepassado?
– Elas são superponíveis, consoantes, conflituosas ou totalmente independentes?
– A representação ancestral é exclusivamente patológica ou universal
e eventualmente patológica?
– A qual economia ela corresponde? Ou, mais precisamente, a identificação do sujeito ao antepassado que ele jamais encontrara, ou mesmo, do
qual jamais ouvira falar é de natureza semelhante ou não às identificações
habitualmente listadas (primária, narcísica, histérica ou pós-edípica)?
Os Objetos Transgeracionais
Podemos agrupar os objetos transgeracionais em três conjuntos.
Primeiro conjunto. As representações de objetos benevolentes se atribuem à fidelidade edípica e são características dessas pessoas cuja libido
está fixada no estágio fálico. O objeto interno do genitor do sexo oposto
desempenhou um papel durante a evolução da fase edípica: o pai ou a mãe
do sujeito formatou ou facilitou as identificações do sujeito “para encontrar” seus amores edípicos4. Embora o sujeito conheça a ligação de seu
genitor(a) com seu avô(avó), o trabalho da repressão e do contra-investimento pede, necessariamente, uma elaboração analítica conseqüente.
Segundo conjunto. As representações de objetos transgeracionais
4. JONES, E., Théorie et pratique de la psychanalyse, tradução francesa, Payot Paris, 1969.
20
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 21
Alberto Eiguer
idealizados, maciços, dominantes, glorificados exigem compensações e
criam sentimentos de dívida. O sujeito se sente parasitado e paralisado
pelo antepassado: os sentimentos de identidade individual e familiar são
abalados. Essas representações remetem à perda desse parente relativamente idealizado e a propósito do qual um trabalho de luto se prolonga
desde muito tempo (luto depressivo ou melancólico). Essa perda é vivida
tanto mais penosamente quanto ela tenha sido seguida por uma eventual
tentativa inábil de recusa do luto: por exemplo, o casamento ou a concepção de um filho. Também é freqüente que seja um dos cônjuges quem vive
interminavelmente esse luto, relativamente a um antepassado que não faz
parte de sua linhagem, enquanto que aquele que dela faz parte manifesta
uma atitude de recusa total do luto.
Nesses casos, não se trata, geralmente, de segredo, mas de
desinvestimento e de deslocamento da idealização para outros objetos. O
sentimento de culpa, a ambivalência relativamente ao objeto, a impressão
de dívida, a identificação narcísica ao objeto são, aqui, a regra. Essas representações remetem, às vezes, à erotização de um destino familiar de
fracasso ou do doentio como uma tara hereditária inevitável: um desejo
marcado pela procura de experiências previamente fadadas ao fracasso. A
complacência com a própria infelicidade é uma conseqüência disso.
Do ponto de vista patológico, citemos os distúrbios depressivos e
psicossomáticos, as adições tradicionais às anfetaminas, aos tranqüilizantes, ao álcool, no enlutado ou em um outro membro da família.
Terceiro conjunto. As representações de objetos fantasmas criam lacunas que se traduzem por sentimentos de vazio irrepresentável. Trata-se
de um parente próximo, de uma outra geração, que cometeu um ato repreensível que, por vergonha, foi mantido em segredo por um dos membros
da família. Os atos podem ser violentos, suicidas, incestuosos, anti-sociais
(crime, deserção, difamação, delação, fraude). A presença na genealogia
de um filho ilegítimo ou produto de um incesto ou nascido com
malformação, implica, também, uma situação de segredo. Trata-se de um
corpo estranho, um morto que vagueia como um fantasma, uma alma pe-
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
nada que não alcançou o último repouso. N. Abraham5 emprega a metáfora
de uma alma que não tem energia própria, mas que persegue, em silêncio,
a obra de desligamento.
A circulação da figura do fantasma permanece uma questão difícil de
elucidar: esses segredos se impõem de uma tal forma à mente que eles
desenvolvem curiosidade, perplexidade, assim como grande interesse no
que se refere ao personagem fantasma. Os que deveriam ficar afastados do
segredo são atingidos pela paixão que os guardiões desse segredo utilizam
para escondê-lo. E eles se culpam por sua curiosidade; em seguida, eles a
reprimem ou a inibem... A revelação do segredo faz temer a reprodução do
ato traumático, a decadência, ou o surgimento de uma outra desgraça. A
capacidade de investigação corre o risco de estagnar com conseqüências
sobre a evolução das capacidades cognitivas naquele que deve estar afastado do segredo ou naquele que carrega o fantasma. Como no caso dos filhos
adotivos, o sentido do oculto e o desejo da revelação dos mistérios ocasionam, eventualmente, um desenvolvimento suplementar. É o caso dos sujeitos que se dedicam a profissões na área da pesquisa como a investigação
científica ou policial, em detrimento, muitas vezes, de sua vida
sentimental.
Certamente, não é suficiente que uma mãe seja portadora de um fantasma. É necessário que o pai também seja o portador de um outro fantasma, ou que ele esteja ligado a sua esposa por um vínculo simbiótico. A
recusa da identidade ou de sua origem, um desapego de si criam as condições para um impensável: um vazio se enxerta em outro vazio.
Esses impensáveis não implicam, necessariamente, sempre, um segredo: seja porque o segredo tenha perdido seu estatuto consciente e seja incorporado, depois clivado no ego de um membro da família; seja porque se trate
de um não dito a propósito de um fato não forçosamente condenável, mas
desinvestido; seja porque se trate de um não dito que faça parte de um estratagema perverso; seja porque se trate de um objeto que suscite um luto penoso, mais ou menos vergonhoso (imagem desvalorizada, miserável).
5. ABRAHAM, N., TOROK, M., L´ écorce et le noyau, Aubier-Flammarion, Paris, 1978.
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
O País dos Antepassados
Trata-se da análise de um paciente obsessivo que se perguntava por
que a mulher lhe era tão enigmática: a mãe, de origem alemã, silenciosa,
distante, fazia-se ignorar por todos. Ele mesmo não tinha lembrança de um
contato terno com ela. O pai, nascido na França, de pais italianos, encontrou sua mãe na Alemanha, durante a ocupação das tropas francesas. Esta
6. AULAGNIER, P., La violence de l´ interprétation, PUF, Paris, 1975.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23
Alberto Eiguer
Mas, do nosso ponto de vista, todas essas situações têm em comum
uma mesma dificuldade de fazer circular as representações através da palavra e despertam, como pelo fantasma, um afeto negativo e imobilizador.
Do ponto de vista psicopatológico, as figuras são múltiplas: citemos a
síndrome de influência com idéia megalomaníaca de adivinhação do pensamento, em ressonância, precisamente, com a política familiar do segredo6; o delírio de identidade em que o sujeito se toma por um outro que se
assemelha, curiosamente, ao antepassado vilipendiado; o delírio de filiação
com recusa da paternidade e da maternidade dos pais; os comportamentos
de fuga ou transgressores no adolescente ou no adulto; os sentimentos imprecisos de erro; e, em geral, patologia toxicômana, delituosa, perversa.
No caso do fantasma, a imagem é a seguinte: toda energia disponível
é utilizada para contra-investir o que deve ficar clivado ou forcluído. Desde muito tempo, uma representação nidou, sucessivamente, em uma série
de psiquismos (os portadores), que constituíram uma cadeia
transgeracional, cada sujeito tendo se identificado com um de seus
genitores, ou, mais precisamente, com aquele cujo objeto está sepultado
em seu ego clivado. Tratou-se, primeiramente, de investimento do investimento do outro, seguido de identificação. Mas, na verdade, trata-se de
identificação narcísica: primeiro, investe-se o amor louco e enigmático do
outro por seu objeto interno, admira-se sua auto-complacência no mistério
e no seu desligamento do mundo, em seguida, identifica-se com esse
narcisismo letal, incluindo em si o portador do fantasma e o fantasma, tudo
isso sem reconhecer os contornos do outro ...
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
ficou mais ou menos ligada a seu primeiro noivo alemão, um jovem oficial
da aeronáutica, morto em missão no fronte russo ... Gregório tem um irmão
mais velho, Francisco, e uma irmã mais jovem.
As sessões que vou sintetizar a seguir trazem elementos que permitem
esclarecer esses pontos obscuros. Elas se realizaram três anos e meio depois do começo do tratamento.
Sonho. “É a despedida da visita à Siena.” Ele embarca em um carro
que parte e, saindo da cidade, sobe uma montanha rochosa. Chega em um
bairro da periferia onde se encontra a estação de depuração de esgotos. Ele
constata que o carro voltou, em lugar de se afastar. Mas, a parte baixa da
cidade assemelha-se à Florença. Ao longe, ele percebe companheiros com
suas famílias.
Associações. Por ocasião de sua visita à Florença, ele pegou com amigos um carro que viajava de pico em pico pelas montanhas. Recorda-se de
uma bela vista sobre um porto, de barcos [...]
Interpretação. Essa cidade que ele deixa e depois reencontra remete à
idéia de partir e voltar. Eu lhe comuniquei minha impressão de que esse
sonho fala “de volta às origens”.
Por ocasião de uma outra sessão, dentre suas associações, ele disse
que seu pai e o aviador (o primeiro noivo) seriam, para a mãe, o mesmo
personagem, intercambiáveis. “Eu acabo de perceber que seu sobrenome,
Eiguer, é um sobrenome alemão!”
Durante a sessão seguinte, ele evoca um sonho: Alguém que viajou
“por toda parte”, mais do que ele ... fala-lhe do Marrocos, aconselhando-o,
vivamente, a visitar “a nação berbere”.
Eu reconstituo algumas das associações. O que é dito, aqui, prenuncia
as revelações da próxima sessão:
– o paciente pensa que, para ele, o desenho torna-se uma atividade
essencial que lhe dá pontos de referência (repères);
– A. Eiguer: “Repères (pontos de referência) ... assemelha-se a
berbère (berbere), père-père (pai-pai). Duas vezes o pai ... ou o pai do pai.”
A partir desse instante, ele fala de religião, de sua própria decisão de
24
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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Alberto Eiguer
tornar-se ateu, o que exasperou seu pai, do ecumenismo deste último ao
escolher uma mulher protestante, referindo-se, muitas vezes, à confissão
como um exame de consciência, preferindo as Epístolas de São Paulo, enquanto que sua mãe relê O Apocalipse, etc.
Mais para o final, o paciente faz um jogo de palavras com Berlinguer
e Eiguer (guer-guerre) e Berlin-Strasse, uma das ruas da aldeia de sua mãe,
e Berlin-Strafe: a punição.
Na sessão seguinte, ele fala de um sonho. “Eu venho falar aqui de
Rudy Dutschke. Você (A. Eiguer) me toma pelo braço e me diz: você tem
uma nostalgia, remorsos”. No prédio, há ruídos como de uma britadeira”.
Ele olha pela janela e nota galerias comerciais, terraços, escadas que os
ligam entre si.
Associações. Rudy “le Rouge” (o Vermelho) o faz pensar em sua mãe
que tem um chapéu vermelho. Britadeira: a guerra, as trincheiras (interrupção). “Eu nunca lhe disse que o avô – paterno – foi intoxicado por gás
de combate, durante a primeira guerra? (com emoção). Foi do lado das
trincheiras francesas. Enquanto que meu outro avô se encontrava do outro
lado das trincheiras. Ele também recebeu gás de mostarda mas pôde voltar
para casa. Mais tarde, ele concebeu minha mãe e morreu jovem, devido,
conforme dizem, às conseqüências do gás de mostarda.” Os dois avós tiveram esse destino em comum de sofrer os efeitos do gás. Esta evocação
muito significativa é seguida de outras lembranças, no período que se segue a essa sessão.
– Na Alemanha de antes da guerra, a avó materna foi considerada louca porque fez compras em lojas de judeus. Podia-se fazer isto durante o
nazismo, somente se se fosse louco.
– Sua mãe vive intensamente sua adolescência, torna-se “campeã” de
natação, adere à Juventude Nacional-Socialista e escapa, por pouco, no
fim da guerra, do bombardeio da estação de Ulm pelos aviões americanos.
– Outros membros desse ramo familiar sofreram bombardeios pelo
gás sulfuroso e só puderam salvar-se lançando-se no rio: se seus corpos
ficassem em contato com o ar, eles prenderiam fogo.
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
Outras associações (sessão seguinte):
– Ele fala muito do encontro dos pais pós-guerra, nesse clima tão bem
descrito por Malaparte.
– Recordação da adolescência: Numa noite, o pai, desatinado, desceu
subitamente ao porão, acreditando, de forma delirante, tratar-se de um
bombardeio. Ele havia escutado a sirene dos bombeiros.
– Em uma de minhas intervenções, eu lhe assinalo que ele me pede
(ao Eiguer) para evitar-lhe a guerra, protegê-lo de situações extremas, da
loucura...o que sofreram os membros da família – as guerras.
Comentários. Eu estou associado a Berlin-guer (um dirigente); ocorre
um deslocamento sobre a palavra Strafe (punição).
Foi na noite seguinte a essa sessão que ele sonhou comigo, acompanhando-o, pegando-o pelo braço. Eu lhe interpreto: “Você tem nostalgia,
remorsos”, o que o conduz à inexorável revelação dos dramas secretos que
perturbaram sua mãe e seu pai. Compreende-se à posteriori o sentido dos
sonhos “retorno às origens” e “ele me aconselha a visitar a nação berbere”
(le père du père – o pai do pai). O significante “britadeira” mergulha-o,
novamente, no ambiente histórico destas recordações: as guerras, as trincheiras, o gás. Emerge, então, o paradoxo que une suas duas linhagens.
Estranhos um ao outro, pertencendo a nações inimigas, os dois avós sofrem o efeito do “gás de mostarda”. Assim, diante da paranóia coletiva que
é a guerra, o único refúgio é a loucura, a da avó materna. Os atos sensatos,
tolerantes, humanos são considerados loucos. O paciente fala da loucura,
da destrutividade e do desinvestimento na história de sua mãe, que viveu
lutos, provavelmente longos e vergonhosos, explicando-nos melhor esse
algo inatingível da representação da mãe, e seu desligamento.
Certas confidências testemunharão, no ano que se seguirá a esta sessão, a dificuldade materna de viver esse lutos: por exemplo, o bombardeio
da estação de Ulm.
Numa primeira versão, a mãe afirma que ela partiu logo antes da chegada dos aviões.
Em seguida, ela lhe confessou que se encontrava lá, no momento do
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
7. BERGERET, J., La violence fondamentale, Dunod, Paris, 1982.
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Alberto Eiguer
bombardeio; viu feridos, agonizantes, cenas de horror.
Uma outra versão, dois anos mais tarde, revelará uma imagem dela
totalmente diferente. Quando o paciente questionou: como ela pôde se salvar? a mãe dirá, aos prantos, ter sido obrigada a fazer coisas horríveis,
caminhar sobre corpos dilacerados, atacar feridos, empurrar ventres enfraquecidos, afastar outros dali que, como ela, queriam sair do inferno ... Ela
justifica penosamente seu gesto, essa violência fundamental inspirada pelo
seu desejo de sobreviver7. O desejo de sobreviver planava igualmente sobre o encontro com o pai.
Se Gregório vive, com uma tal intensidade, o sórdido universo anal, é
porque ele está sobredeterminado pela insuficiência da ancoragem oral ao
seio de uma mãe enlutada ainda pelos seus próprios dramas pessoais. Não
permaneceu ela como filha única após a morte prematura de seu pai? Eu
posso propor a construção de que a mãe investiu seu filho mais velho de
maneira diferente em relação ao segundo. O pai também ficou filho único.
Suas mães tiveram um filho, depois um marido morto...
Para os pais de Gregório então, o primeiro filho foi como um duplo,
enquanto que o segundo concentrou nele a representação dos dois pais
mortos: Gregório não foi o filho da alegria. Depois, ele experimentou o
seio materno como carente de tônus, o mamilo côncavo, o olhar da mãe
desviado, seus braços frágeis, suas carícias mornas.
Apoiado sobre o ramo da analidade, ele direciona, à posteriori, seu
olhar distante para a floresta da oralidade. Uma oralidade da qual ele procura, desesperadamente, os sinais do afeto. A flacidez do seio foi contrainvestida pela hipertensão do músculo anal.
Gregório, interessado, até mesmo excitado, vai investir maciçamente
na história da mãe (“a descida ao porão”), estudá-la minuciosamente, olhála de todos os ângulos. Ele quer preencher, completar esse vazio com o
saber: encontrar o desejo de sua mãe.
Uma das primeiras descobertas da análise foi que esse desejo estava
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
em outro lugar, o noivo aviador; o novo esclarecimento mostra em sua mãe
a busca do amor como evasão e como sobrevida face ao horror, horror esse
que emergiu em seu nascimento.
Durante o sexto ano de análise, a busca de Gregório, que não se deteve depois dessas sessões, leva-o a se interrogar sobre as condições de vida
durante o pós-guerra. Ele compreende seu febril interesse pela obra de
Curzio Malaparte, narrador cáustico de um mundo macabro e impiedoso.
Do bombardeio da estação de Ulm, passou-se ao período das privações
alimentares. Oferecer seu corpo, oferecer-se parece lógico, a moral faz vistas grossas diante da fome.
Quando o filme A pele surgiu nas telas parisienses, o paciente ficou
fascinado. A confrontação dos americanos com a miséria napolitana (em
l944), excita-o; ele acredita ver seu pai no soldado americano que se apaixona pela “prostituta”, ele se vê em Malaparte pelo lado cáustico. Por que
e como esses seres, de origem tão diferente, se encontram um diante do
outro e se amam? (Notemos a inversão: C. Malaparte é o pai-criador dos
personagens em questão).
Uma associação vem confortá-lo em seu prazer de reunir os pais: seu
pai teve de fazer como seu avô italiano (paterno) que voltou ao país (ele era
trabalhador imigrante em Paris), à Itália, para procurar uma mulher . O pai
também foi procurar uma mulher em outro lugar... Uma outra interpretação, mais no sentido da escolha de objeto homossexual, veria o pai ir procurar uma mulher na Alemanha, do lado da fronteira onde morreu seu pai.
(Na obra de Malaparte, o pai da “prostituta” virgem exige pagamento para
mostrar o hímen de sua filha: alegoria cínica da Virgem Maria.)
O nome de Curzio Malaparte lhe sugere jogos de palavras: Malaparte
com Bonaparte (a escolha desse pseudônimo foi deliberada pelo escritor),
a parte má, o lado tenebroso do próprio Gregório.
Curzio evoca Kurtz, Court, Corto, depois o personagem de Corto
Maltese inventado pelo desenhista de histórias em quadrinhos ítalo-argentino Hugo Pratt. O herói nasce de pais de origem heterogênea, realiza feitos remarcáveis entre as duas guerras, onde se misturam o sonho, o fantás28
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Identificação Narcísica e Identificação Primária
Proponho-me a organizar meus comentários teóricos em seis pontos:
l – O antepassado é, muitas vezes, um filho morto que pode substituir
um outro morto. No caso do meu paciente, Gregório seria como o filho
identificado com os dois avós mortos.
2 – O antepassado é o objeto de identificação de um outro. Isto perturba a idéia de identificação. Até aqui, admitia-se que a identificação seguia
o investimento; hoje, é preciso admitir que ela pode ser feita sobre a cópia
do investimento ou da identificação de um outro, em relação a um terceiro
desconhecido para o sujeito, neste caso, o antepassado.
3 – No caso do desinvestimento, o antepassado tira uma parte da libido destinada ao sujeito (cf. a mãe de Gregório). Sob o peso de um luto
rodeado de mistério, esse desinvestimento suscita desinvestimento no sujeito, depois, um vazio. Ao redor do antepassado, um círculo de nada,
absorvente e impensável.
4 – A rememoração não seria, então, a conseqüência de um retorno do
reprimido, mas a abertura de uma brecha, a quebra de uma clivagem rígida.
Quando um paciente associa o objeto antepassado a outras representações, a estrutura narcísica é profundamente abalada. O sujeito sente-se
perplexo, não pode admitir o vínculo de uma parte de sua identidade com
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Alberto Eiguer
tico e a ação violenta. Ele se identifica com o detetive-herói que descobre
os antepassados e os faz reviver.
A frase “Meu avô italiano foi morto pelo gás, na guerra de l4” contém
condensadas quase todas as representações que se distinguirão depois: a
incitação à procura, do lado dos avós, para explicar as primeiras relações
com sua mãe; a tristeza desta última, o medo do leite tóxico, asfixiante e
corrosivo (gás de mostarda), bem como o desejo de intoxicá-la, por sua
vez, pelo gás anal. O representante gás de mostarda encerra as duas falhas:
o orifício anal e o orifício inerte em lugar do mamilo, e seus dois produtos:
o gás anal fétido e o leite amargo. O bastão fecal é encontrado no cadáver
desse mesmo avô enterrado na trincheira (reto).
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
esse personagem, por outro lado, repelido. Abatido pela estranheza, ele
toca, de perto, seu núcleo psicótico. Temos as angústias de aniquilamento e
de queda sem fim. Em um segundo momento, o narcisismo, assim abalado,
tende a fabricar um duplo: um gêmeo imaginário (cf. para Gregório, C.
Malaparte ou C. Maltese), ou à reprodução frenética de encontros sexuais...
5 – O impensável irrompe na sessão através de um acting ou através
de um sintoma físico, repetindo-se, durante muito tempo, antes de tomar
forma, através da palavra. O impensável absorve a substância narcísica do
sujeito.
6 – Assinalemos, agora, o aspecto estruturante da mensagem
transgeracional das origens, ativador da fantasia e primeiro modelo da
identificação com o pai. Estamos em condição de articular esses dados
com as representações de objeto de característica patológica. Falaremos,
naturalmente, de uma oposição entre a mensagem estruturante das origens
arcaicas da espécie e os mandatos abusivos transmitidos há gerações, ou as
criptas fantasmáticas dos lutos secretos fracassados e sepultados.
Habitualmente, o outro do objeto que é o antepassado, o ideal do ego
dos pais herdeiros dos nobres propósitos das linhagens e desempenhando o
papel que se sabe na integração do ideal do filho, o superego dos pais
oferecendo seu modelo à edificação do superego do filho, todos seriam os
diplomatas prudentes do pacto totêmico proibidor e apaziguador entre os
irmãos. Esse pacto pôs fim à arbitrariedade do pai tirânico, para erigir, em
seu lugar, a representação do pai justo8. É como se a violência subterrânea
que exerce o antepassado carregado com vergonha, viesse desmanchar o
esforço arcaico para sobrepujar a culpabilidade pelo assassinato do pai:
(re)aparece, então, o temor da violência que impele ao sacrifício e ao ostracismo
A confiança delegada pelos pais, o sentimento de que eles amarão o
filho, não importando o que lhe aconteça, e qualquer que seja sua disposição de espírito, são vividos como presentes dessa mensagem das origens,
8. ROSOLATO, G., Études sur le symbolique, Gallimard, Paris 1969.
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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Alberto Eiguer
ausente, enquanto as lacunas do impensável objeto de um luto secreto dominar.
Na mãe, o desinvestimento devido ao investimento do fantasma, ao
esforço defensivo na constituição de uma clivagem para alojar esse fantasma e o contra-investimento que ele supõe, deixam pouca libido disponível
para o objeto externo, mais freqüentemente o filho. É ou o vazio relacional,
ou o exagero de um investimento narcísico de exclusão, entrecortado por
recusas múltiplas, onde o filho não tem o direito de se representar a si
próprio, fora da atribuição da mãe. A tensão é extrema ao nível do superego parental, impiedoso e devastador.
Esses modos de investimento e de identificação dominados pela identificação narcísica, causadora de confusão, sempre triunfante, e a identificação primária em declínio, levarão a abalar a própria estrutura individual,
na medida em que a identificação primária e a libido narcísica, ativadas
pela mensagem arcaica das linhagens, constituem o tecido de base dessa
estrutura.(O narcisismo, dizia Freud, está a serviço da continuidade da espécie e da transmissão dos ideais comuns.)
No psicótico, a pertinência à linhagem é seqüestrada pelos fantasmas
crípticos. Tornados mestres, estes últimos lhe delegam uma onipotência
que, exercida sobre o filho, permite somente uma dessubstancialização do
ser e/ou uma identificação com essa onipotência. Em alguns casos, a identificação mimética e caricatural dos atos do antepassado se traduz por sintomas ou traços de caráter incompreensíveis, por causa do caráter críptico
da referência ao objeto transgeracional. O sacrifício de seu desenvolvimento, com o objetivo de inocentar esse objeto, torna a missão do filho
grandiosa, dando-lhe a ilusão de ser pai.
Mas, exceto os casos de psicose, todo o paciente é traspassado pelas
identificações com os antepassados. Eu tentei mostrá-lo através de um neurótico. É a transferência, em última análise, que recolherá as representações ancestrais, suas alturas idealizantes, ou seus subterrâneos perturbados, o muito-cheio das designações abusivas, ou o muito-vazio do
impensável, o muito-frio do desinvestimento, ou o muito-quente das
O PAPEL
DO
ANTEPASSADO
inomináveis paixões. (Ver, a esse respeito, os jogos de palavras Eiguer – a
punição e o Eiguer – as guerras). Não foi um acaso se Sigmund Freud, em
“A dinâmica da transferência”, se pergunta: “E, aliás, a própria constituição não seria a resultante de todos os acontecimentos fortuitos que influenciaram a série infinita de nossos antepassados9?”
Sinopse
A representação do antepassado nos interroga: como pode, um sujeito, chegar a identificar-se com uma pessoa desconhecida e que, às vezes, foi inclusive
ocultada por seus aparentados. Na clínica se observa um combate universal que
opõe os brancos da memória familiar, ou as delegações abusivas transmitidas
deste várias gerações atrás, ante a mensagem simbólica das origens, esta última
interrogando-se no superego da criança que é, como se sabe, herdeiro do superego
dos pais. Quais são os diferentes modelos de relações com os objetos dos antepassados? Que tipo de economia psíquica faz com que esses pacientes apareçam
como particularmente vulneráveis? Que modalidade de identificação entra em
jogo ali?
Summary
The ancestor’s representation interrogates us: as a fellow he/she can to end
up being identified with an unknown person, and that aveces was even hidden by
their relatives? In the clinic, an universal combat is observed that it opposes the
targets of the family memory, or the abusive delegations transmitted behind from
several generations, before the symbolic mensage of the origins, this I finish being
integrated in the boy’s super-ego that is as the heir of the super-ego ot the parents
is known. Which are the different ones models of relationship with the objects of
the ancestors? What type of psychic economy makes theses patients to appear as
particularly vulnerable? What identification modality does he/she enter there in
game?
9. FREUD, S., La dynamique du transfert (1912b), La technique psychanalytique, tradução francesa, PUF, Paris, 1953.
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
La representacion del antepasado nos interroga: como puede un sujeto llegar
a identificarse con una persona desconocida, y que aveces fue incluso ocultada
por sus allegados? En la clinica, se observa un combate universal que opone los
blancos de la memoria familiar, o las delegaciones abusivas transmitidas desde
varias generaciones atras, ante el mensage simbolico de los origenes, este ultimo
integrandose en el superyo del nino, que es como se sabe el heredero del superyo
de los padres. Cuales son los diferentes modelos de relaciones con los objetos de
los antepassados? Qué tipo de economia psiquica hace que estos pacientes
aparezcan como particularmente vulnerables? Qué modalidad de identificacion
entra en juego alli?
Palavras-chave
Antepassado; Identificação primária; Mimetismo; Fantasma.
Key-words
Ancestor; Primary identification; Mimicry; Ghost.
Palavras-llave
Antepasado; Identificacion primaria; Mimetismo; Fantasma.
Artigo
Este artigo foi publicado no “Journal de Psychanalyse de l`enfance”,
1991, 10, 93-109, retomado e atualizado na obra dos “best-off” da
revista “L`enfant, ses parents et le psychanalyste”, sob a direção de
Cl. Geismann e D. Honzel, Paris, Bayard, 2000, 311-322.
Tradução do original francês: Profa. Helena Totta da Silveira
Revisão de tradução: Dra. Ester Malque Litvin
Dr. Alberto Eiguer
154, rua d’Alesia
75.014 Paris – França
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 33
Alberto Eiguer
Resumen
André Green
Membro Titular da
Sociedade Psicanalítica de Paris
A neurose fóbica, desde o início da Psicanálise, era definida
como um medo irracional,
freqüentemente acompanhado de
repugnância que surgia diante de
certos objetos ou determinadas situações. Ela associa uma atitude de
evitamento, um deslocamento para
o objeto ou para a situação que se
tornarão fobígenos e uma projeção
para o exterior. Habitualmente, este
conjunto que constitui o sintoma só
interessava ao psiquismo de uma
maneira circunscrita e limitada, a
tal ponto que, em alguns casos,
quando o sujeito conseguia contornar os objetos ou as circunstâncias
que faziam aparecer a fobia, ele podia até ter um funcionamento compatível com a normalidade. Depois,
este quadro bem delimitado foi colocado em questão devido ao fato
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André Green
A Posição
Fóbica
Central
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
de terem sido encontradas formas muito mais extensas, cuja análise se
apoiava apenas muito raramente em mecanismos de simbolização que o deslocamento tinha permitido constatar. O quadro neurótico da fobia parecia
extrapolado, deixando aparecer formas de angústia muito mais invasivas.
Além disso, é a própria natureza da angústia que apareceu sob uma
luz diferente daquela que existia na neurose fóbica. Não faço alusão às
diferenças estabelecidas, desde o início, entre neurose de angústia e fobia,
chamada também de histeria de angústia, mas sim, às relações entre angústia, terror e medo que foram só alusivamente nomeadas sem ser verdadeiramente desenvolvidas, embora tenham sido levadas em consideração na
patologia psiquiátrica. Certamente, encontramos menções disto na teoria a
propósito de uma ocorrência hipotética, na infância dos pacientes, de “medos de aniquilamento, de angústias sem nome” ou “de tormentos atrozes
(agonias)”, mas sua descrição clínica, no adulto, foi pouco detalhada na
clínica psicanalítica.
Aliás, a análise da fobia consistiu sobretudo em tentar compreender a
constituição do sintoma neurótico, a partir das deduções que se podiam
tirar das informações fornecidas pelo paciente, sem que para tanto pensássemos em colocar em evidência o aparecimento de um funcionamento psíquico particular na sessão. Fala-se, no divã, da crise de angústia que se
teve fora da sessão, isto é, da lembrança que se guardou de uma crise entre
as sessões. O que me proponho a descrever é a análise de um funcionamento fóbico durante a sessão. Para que um tal funcionamento não seja contido
dentro dos limites de um sintoma que se manifesta sobretudo no exterior, é
preciso que este último não seja suficiente para circunscrever o conflito
ou, ao menos, seus aspectos mais investidos.
Os pacientes dos quais vou falar podem apresentar manifestações
fóbicas. No entanto, sua análise, durante as sessões, não chega a lugar nenhum, pois ficam imprecisas e indeterminadas. Levam a poucas associações, mobilizam maciçamente as soluções de evitamento das quais falei,
mas não incitam o paciente a compreender o que elas traduzem de sua vida
psíquica, nem a relacioná-las com aquilo de que seriam o deslocamento.
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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André Green
Diferentemente dos casos em que a fobia é circunscrita e permite um funcionamento psíquico normal, aqui, ao contrário, o resultado termina em
uma inibição extensa do Ego, confinando os pacientes, com freqüência, a
um isolamento cada vez mais importante. Muito freqüentemente, eles alegam, sobretudo, a imposição de adotar uma atitude de fuga, sem conseguir
definir o que eles temem. Os aumentos de angústia não são objeto de qualquer tematização significativa, mesmo sob uma forma racionalizada. No
entanto, não se está diante de ataques de pânico, onde o medo está em
primeiro plano. Em suma, é como se o funcionamento fóbico tivesse se
instalado no interior da comunicação e impedisse toda manifestação possível no psiquismo. O analista acaba sendo impressionado por certas particularidades do funcionamento associativo do paciente na sessão, sem que
consiga dizer se aquilo que percebe na escuta traduz bem o mesmo mecanismo fóbico que existe no exterior. Em todo caso, se o sentido não é idêntico, poderia bem originar-se de uma fonte comum que se pode identificar
como perturbação do pensamento. Aqui, poder-se-ia dizer que o único objeto implicado é o analista e que o evitamento diz respeito à própria função
analítica com o desejo de escapar da investigação. Mas, de fato, trata-se,
então, menos do analista como objeto diferenciado do que de uma situação
de não separabilidade entre sujeito e objeto, onde a transferência temida
sobre o analista evidencia a projeção sobre ele de um poder de penetração
sobre os pensamentos do paciente, de tal forma que não deixa outra solução a não ser uma erosão radical da inteligibilidade que poderia surgir da
comunicação. Este aspecto de projeção, aqui limitado à própria presença
do analista, dissimula, de fato, a necessidade, para o paciente, de fugir dele
mesmo, como se corresse um perigo incomparável com o que é temido
pela remoção de uma repressão. Aqui, como sempre, o medo profundamente enraizado, consistirá, para o paciente, em descobrir alguma coisa
que está nele, mas que não se pode explicar apenas em termos de transgressão, se bem que o temor desta também esteja presente. Quando o analista conseguir, apesar de tudo, chegar a uma elucidação, constatar-se-á
que o evitamento diz respeito menos a um medo do que a uma espécie de
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
captura, numa armadilha sem saída que se fecha sobre si mesma. Parece
mesmo que o analista é imaginado como vítima da situação na qual o paciente teria conseguido aprisioná-lo.
Definição da Posição Fóbica Central
Por posição fóbica central, entendo uma disposição psíquica de base,
que se encontra, com freqüência, no tratamento de alguns estados-limites.
Fiz a escolha do adjetivo “central” a fim de marcar o aspecto do funcionamento mental do paciente que quero descrever. Não viso ao que é considerado como o mais profundo dos estágios do funcionamento psíquico do
paciente, pulsão ou relação de objeto, nem, ao contrário, ao aspecto
vinculável ao consciente através do discurso do paciente. Da mesma forma, não se trata de atingir os níveis do que se supõe ser o mais antigo ou o
mais primitivo. Não tratarei simplesmente do acesso ao consciente de algumas partes do inconsciente do paciente, mas, antes, das ressonâncias e
das correspondências entre alguns temas que abrem caminho através de
alguns aspectos vindos do reprimido, ameaçadores, não somente em relação às sanções do Superego, mas, também, para a organização do Ego. É
esta a razão pela qual é preciso impedir o pleno desenvolvimento desses
conteúdos no consciente e sua revivescência completa. Esses temas, que
determinam a história do sujeito, se potencializam mutuamente, quer dizer
que eles não se limitam a se adicionar, mas se amplificam pela relação de
uns com os outros, afetando seu funcionamento psíquico que não pode
mais, então, se contentar em evitar o que vem novamente à superfície isoladamente ou em impedir o ressurgimento do mais antigo ou do mais profundo, pois se trata, também, de impedir a extensão da ligação dos temas
uns com os outros. O resultado global não pode ser compreendido pela
referência a um evento traumático único, por mais profundo e intenso que
ele seja, mas pelas relações de reforço mútuo entre eventos, cujo conjunto
criará uma desintegração virtual nascida da conjunção de diferentes situações traumatizantes que fazem eco umas nas outras. É portanto necessário
conceber, na comunicação do paciente, as condensações que se apresen38
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André Green
tam como cruzamentos, inquietantes, pois se tornam o nó de encontros
onde se entrecruzam diferentes linhagens traumáticas. Gostaria de submeter a idéia de que não se trata apenas de impedir o retorno do trauma mais
marcante, nem do que foi descrito em termos de traumatismos cumulativos
(Khan), mas das relações entre as diferentes constelações traumáticas, cuja
relação de umas com as outras é sentida como uma invasão angustiante por
forças incontroláveis, onde o despertar de qualquer um desses traumas entraria em ressonância com outros, cuja imagem compósita seria
impensável porque ela desencadearia uma violência inusitada dirigida contra o Ego do paciente. É preciso, então, supor que o que torna a aglomeração desses temas muito ameaçadores, é que eles dizem respeito a
organizadores fundamentais da vida psíquica, suscetíveis de desencadear a
catástrofe. São os pilares da vida psíquica que são atingidos, tendo o paciente conseguido mantê-los separados, mal ou bem, ou negar suas relações, antes da análise. O verdadeiro trauma consistirá, então, na possibilidade de reuni-los em uma configuração de conjunto onde o sujeito perde
sua capacidade interior de se opor aos interditos e não mais está em condições de assegurar os limites de sua individualidade, recorrendo a identificações múltiplas e, às vezes, contraditórias, encontrando-se, daqui por diante, incapaz de acionar suas soluções defensivas isoladas. É por isto que a
idéia de centralidade pareceu-me a mais apropriada para definir uma situação “entre dois”, nível intuitivamente percebido pelo analista como sendo
aquele em que progride o filão associativo, lidando com o que faz obstáculo a sua progressão, a suas ramificações, a sua manifestação em direção à
superfície, tanto quanto em direção à profundidade. Este tipo de funcionamento que testemunha a fragilidade da capacidade de auto-investigação,
tem consequências tão radicais que não se pode explicar o recurso a estes
mecanismos auto-mutilantes para o pensamento a não ser pela necessidade
de enfrentar importantes ameaças internas. É por isto que ainda é a referência ao pavor ou ao pânico que parece melhor corresponder à experiência do
paciente. Será aqui justificado falar, se isto fosse possível, de traços
mnêmicos de terrores diurnos profundamente sepultados, mas sempre ativos.
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
O Discurso Associativo na Sessão
Para bem compreender o que quero dizer, é indispensável mostrar,
previamente, como concebo o funcionamento de uma sessão idealmente
produtiva. Partamos do esquema do capítulo 14, “Introdução do ‘Ego’”, da
primeira parte do “Projeto” (Fig.1)*. Nesta representação gráfica, Freud
imagina um encadeamento de unidades que supõe serem neurônios e dos
quais ele descreve as junções conforme dois caminhos. O que mantém sua
atividade são, em sua terminologia, quantidades móveis. De uma parte, o
investimento direto de uma quantidade móvel do neurônio a para o
neurônio b coloca-os em relação devido a uma “atração provocada pelo
desejo”; de outra parte, uma cadeia chamada por ele investimento colateral
que, partindo de a se estende, segundo um trajeto arborescente, para outros
neurônios α, β γ δ. O investimento colateral supre a via a→b quando esta
está impedida, por ser suscetível de causar desprazer. Freud fala, de fato,
em inibição, pois a repressão ainda não foi descoberta. “Nós vemos facilmente como, com a ajuda do mecanismo que atrai a atenção do ego sobre
um investimento novo da imagem penosa, o ego consegue, algumas vezes,
inibir a passagem de uma quantidade que emana desta imagem e leva a
uma produção de desprazer. Ele consegue isto graças a um investidor
colateral considerável, suscetível de aumentar, quando as circunstâncias
assim exigem1 ”. O investimento colateral encontra, portanto, uma saída
alternativa a estas passagens inibidas. Eu levanto a hipótese de que a relação entre a e o investimento colateral substitutivo α β γ δ deve ter uma
ligação mais ou menos homóloga com a passagem inibida a→b; de tal
maneira que a análise deste investimento colateral em relação com a, deveria
nos dar uma idéia parcial ou aproximativa referente à relação inibida ab.
Considerarei esta esquematização como um modelo nuclear que reú* Esta numeração corresponde à (Fig. 14) utilizada na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora Ltda., 2ª edição, Rio de Janeiro, 1987. (N.
da T.)
1. Projeto (esboço) de uma Psicologia científica em Esquisse d’une psychologie scientifique “La
naissance de la psychanalyse”, publicado por M.Bonaparte, Anna Freud, E. Kris, trad. A.Berman,
PUF, 1956, p.342.
40
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 41
André Green
ne o investimento, a dinâmica do sentido, a repressão e a resistência, assim
como as associações, como modo de reconhecimento que permite a abordagem indireta e parcial do inconsciente reprimido. Quero modificar o esquema para aplicá-lo ao tipo de comunicação na sessão. Quando a regra da
associação livre é observada durante uma sessão frutífera, o paciente enuncia frases que se seguem sem elo lógico. Nessa ordem dispersa, pode-se
notar que cada idéia que tem uma certa consistência semântica – chamo-as
semantemas principais –, é rodeada de comentários circunstanciais que
assimilo aos investimentos colaterais do esquema de Freud. Estes comentários, às vezes, servem de simples desenvolvimentos sobre os semantemas
principais, desempenhando um papel análogo às proposições subordinadas da gramática e traduzem, ocasionalmente, uma dificuldade de deixar
um outro semantema principal se associar diretamente. O que é importante
observar é que a associação livre se serve das estruturas narrativas ou gramaticais, sem respeitar seu ordenamento hierárquico, de maneira que o
encadeamento do discurso estabelece vínculos que ignoram a
categorização em principal e subordinado, ou passagem direta e investimento colateral. A resistência obriga ao desvio, mas este, em contrapartida,
enriquece as possibilidades de associação! É o que mostra, retrospectivamente, a análise de uma significação que emerge de algumas relações provindas dos diferentes elementos dispersos na comunicação. É, portanto,
possível supor que o discurso associativo, produzido pela associação livre,
pressiona para desenvolvimentos acessórios a fim de impedir o estabelecimento de vínculos demasiadamente diretos com o inconsciente e que os
comentários que parecem secundários ou subordinados são suscetíveis de
desempenhar o mesmo papel que os investimentos colaterais: quer dizer
que, ao lado de sua função de desvio, os caminhos seguidos entram em
conexão, aproveitando a diminuição da censura racional, para criar novas
relações surgidas em favor da exclusão das hierarquias do discurso. Isto é
conhecido e admitido pelos psicanalistas que, em geral, não vão mais longe. Percebeu-se bem que uma nova trama de relações poderia transparecer,
mas as vias pelas quais ela se forma foram deixadas na sombra. Se, para o
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
consciente, este aspecto incoerente revela uma grande obscuridade quanto
à inteligibilidade de conjunto, para a escuta analítica, a nova trama permite
pensar que relações significativas existem entre quaisquer elementos
enunciados, quer eles digam respeito a duas idéias semanticamente consistentes, ou a uma idéia semanticamente consistente com qualquer outro aspecto da verbalização, presente de maneira incidente ou contingente, fazendo parte dos investimentos colaterais enunciados ou ligados por
inferência. Isto decorre da hipótese que nós levantamos de que os diferentes investimentos colaterais deveriam ter uma relação com a via impedida
que não pode ser percorrida, a que leva diretamente de a→b.
Isto é apenas os preliminares do que temos a compreender. Esta
associatividade nos convida a buscar o sentido latente, prevendo que a
compreensão de um elemento, por exemplo, o elemento d, da cadeia a, b,
c, d, e, f não pode desvendar sua função apenas por sua referência presumida com aquele que o precede c. Mais precisamente, é necessário acrescentar que c será infiltrado, habitado, potencialmente aumentado pelas relações reflexivas que ele terá podido estabelecer com um ou vários elementos contingentes de uma outra cadeia distante dele, seja com seus investimentos colaterais, seja com um elemento precedente, pertencente à série
das idéias semanticamente consistentes. A idéia geral é que o sentido inconsciente, na medida em que pressiona em direção à consciência, busca
abrir um caminho e deve, para ser liberado, passar por conexões que não
colocam em contato direto os elementos que entram em sua composição
ou que estes não podem ser deduzidos por simples relações de proximidade imediata, negligenciando o que parece apenas desempenhar a função de
digressões. Evidentemente que, os afetos desempenham o mais importante
papel nessa difração, nessas derivações, rupturas ou encadeamentos. Estaríamos, no entanto, errados em pensar que a marca dos afetos seria suficiente para orientar claramente a direção que deve conduzir à significação
latente. Pois os afetos podem surgir como uma conseqüência do
desmantelamento associativo e ter apenas como função a conotação de um
aspecto do discurso surgido no meio do caminho, sem por isso desempe42
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nhar um papel importante na trama significativa colocada em evidência
graças ao trabalho associativo.
Vê-se que esta forma de pensamento não busca apenas um relaxamento da censura, mas que ela induz a um funcionamento livre da imposição de colocar as palavras em seqüência, numa sucessão direta, fazendo
exercer a atração (e a repulsão que a acompanha) dos elementos reprimidos que comandam a produção dos temas apresentados na superfície. A
demanda de associação livre tem uma dupla conseqüência. Se, por um
lado, ela leva à renúncia da imposição que assegura o encadeamento de
idéias, a coerência lógica requerida pelo pensamento secundário, e à liberação, assim, da circulação das divagações temáticas, tanto sobre o seguimento das diferentes idéias emitidas, quanto sobre os desvios produzidos
por algumas delas, que podem parecer, à primeira vista, contingentes ou
adjacentes, este modo de discursividade, ao mesmo tempo frouxa e fendida, facilita, em compensação, pelo afrouxamento das relações internas à
comunicação, uma atividade que intensifica modos de irradiação à distância entre partes do discurso, como a poesia e a escrita artística buscam,
deliberadamente, mas de maneira controlada. O que nos indica que esta
irradiação, que suscita efeitos à distância, parece ser uma capacidade da
mente humana acionada, quando ao que o discurso visa não pode ser enunciado, sem fazer com que aquele que se exprime corra um risco, ou que um
discurso indireto é mais rico quando adota as formas da poética. Os elos
entre as palavras têm muito mais capacidades semânticas que a própria
sequência das palavras. Isto coloca em evidência a importância da dimensão
de evocação da linguagem (Lacan) que escapa à visibilidade, à continuidade
e ao arranjo obtido pelos elos perceptíveis numa lógica que define suas regras.
O funcionamento clandestino obtido permite-nos melhor apreender a
originalidade do entendimento analítico. Ou seja que, na desordem aparente da comunicação, são os efeitos de ressonância mútua que dão importância a esse funcionamento. Ainda é necessário precisar de que maneira esse
funcionamento induz a compreensão e a interpretação do analista. As associações permitem indicar, ajudadas por condensações e deslocamentos,
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
núcleos de reverberação retroativa: ou seja, que um elemento enunciado
só toma verdadeiramente sentido se, a partir dele, são esclarecidos ecos
retroativos às vezes convergentes, contidos em propósitos enunciados anteriormente na sessão, que testemunham a persistência de seu poder significativo muito tempo depois que o discurso que os continha tenha se apagado. Da mesma forma, em outros momentos, embora nada o pressagie,
alguns termos terão efeitos de advertência, experimentados como tal a
posteriori, sem que o analista, no momento em que os ouve, esteja à altura
de predizer a forma do que acontecerá e cuja ocorrência ulterior permitirá
deduzir sua relação com seu precursor. O alcance dessas relações é percebido a posteriori pois o valor de antecipação estava isolado e não podia
deixar pressentir precisamente o que então se anunciava. Assim, reverberação retroativa e anunciação antecipatória agirão juntas ou
alternadamente, fazendo-nos compreender que a associação livre permitenos aceder a uma estrutura temporal complexa que coloca em questão a
linearidade aparente do discurso para nos tornar sensíveis a uma
temporalidade tanto progressiva quanto regressiva, que toma uma forma
arborescente e, sobretudo, produtora de potencialidades não expressas ou
geradoras de ecos retrospectivos. Se é assim, é porque a organização psíquica não cessa de se modificar ao longo de sua história, fato ao qual Freud
fez alusão, sem elaborar as implicações teóricas, ao falar da atração no
reprimido pré-existente (A Repressão).
Como se vê, um tal funcionamento evoca muito mais a figura de rede
do que a de linearidade, às vezes, ramificada na coexistência de diferentes
temporalidades, lineares e reticulares.. Aliás, entre as ramificações que
entram na figuração do processo, alguns ramos podem ficar mudos porque
são objeto de um contra-investimento muito forte; não são menos ativos no
inconsciente, suscetíveis de serem reanimados ou, em outros casos, de excitarem outros, sem se expressar explicitamente. Outros parecerão ausentes, jamais dando origem ao sentido, mas sugerindo ao analista a idéia de
que necessita deles para conseguir uma compreensão mínima e, no entanto, sempre hipotética. Se existe arborescência do sentido, é na medida em
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que se pode passar de um ramo da árvore ao outro, por um trajeto recorrente para voltar, em seguida, para as bifurcações ulteriores do ramo de
onde se partiu.
Conseqüentemente, é preciso insistir no caráter das associações que
coloca em evidência uma característica que, que eu saiba, só pertence à
Psicanálise. Acabamos de colocar em questão a linearidade das associações que é utilizada de maneira geral nas teorizações lingüísticas. Os lingüistas dizem naturalmente que as relações entre os termos reunidos primam sobre o sentido dos próprios termos. Além disso, devido à infiltração
do discurso consciente pelo inconsciente, o que quer ainda dizer, ao efeito
indireto, invisível e mudo dos investimentos das representações de coisas
inconscientes sobre as representações de palavras, e à pressão exercida
pelo montante de afetos que os conotam e que comandam sua progressão
dinâmica, o discurso associativo é marcado, em alguns momentos, pelo
que denomino efeitos de irradiação. Portanto, alguns termos – ou melhor,
alguns momentos do discurso – que ocupam uma posição estratégica que,
com freqüência, só será compreendida a posteriori – são portadores de efeitos dinâmicos tais que, uma vez pronunciados, e mesmo antes de sê-lo,
quando ainda só são pensamentos não articulados, irradiam e influenciam
a intencionalidade do discurso. São, aliás, com freqüência, os mesmos que,
defensivamente, engendram investimentos colaterais. É então que eles terão tendência a entrar em ressonância, seja com termos já enunciados, de
uma maneira retroativa, seja, ainda, e, às vezes, simultaneamente, com termos que vão vir, não ainda pensados, mas potencialmente geradores de
temas que deixam perceber novas relações com o que foi expresso. Eles
estariam, portanto, aqui, em posição de indicadores sob o efeito de uma
vibração interna. Nós o vimos tanto no movimento para trás como no para
frente, no escoamento da comunicação durante a sessão, em relação ao já
dito, como em relação a um dizer por vir, sugerindo uma virtualidade de
existência. Esta concepção, que proponho chamar de irradiação
associativa, traça, através do desenrolar do discurso manifesto, decorrente
da associação livre, linhas de força que o atravessam e que vão constituir
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
as veias do discurso que permitem seguir, ressoar, retroagir, acolher previamente o valor significativo que circula ao longo dos percursos, cujo plano
se desenha baseado nas coordenadas do inconsciente, marcadas pelos
superinvestimentos e contrainvestimentos que as acompanham. Os momentos de suspensão da associação têm o interesse de assinalar os nós da
resistência e de tornar sensíveis os remanejos aos quais eles procedem.
Esta descrição serve para melhor apreender as modalidades pré-conscientes da escuta pelo analista do discurso, na sessão, com todas sua conotações
transferenciais e suas recorrências contratransferenciais.
Deste ponto de vista, o analista segue uma conduta que corresponde
ao que ele percebe do modo de expressão do paciente. Ele tenta o esclarecimento do sentido veiculado pela palavra, através do que ele já escutou do
discurso do analisando, na sessão, o que não deixará de fazer eco a temas já
abordados em sessões anteriores ou atuais. Além disso, seu ouvido está
também atento ao que ele não pode deixar de se preparar para escutar,
relativo ao desenvolvimento dos temas expostos pelo discurso já enunciado, num percurso interrompido, misturando tempos passados e por vir, seguindo uma exploração em vaivém, no seio do desenrolar do presente. Este
movimento de espera de um sentido a se realizar não se contenta, na maioria das vezes, com uma só antecipação ou uma hipótese única que espera
sua realização, mas, simultaneamente, com várias, das quais talvez uma só
será selecionada para estabilizar o sentido. Em alguns casos, nenhuma delas será validada, todas tendo de dar lugar a uma hipótese imprevista,
surgida extemporaneamente, que resulta das relações já estabelecidas pelo
discurso. As hipóteses anteriores invalidadas não desaparecerão completamente; elas serão, na maior parte do tempo, colocadas em latência, podendo reaparecer eventualmente na superfície ou tornarem-se obsoletas se
nada vier reanimá-las. Mas de toda maneira, a marcha da sessão está em
busca de um equilíbrio entre o freio da resistência e a pressão da progressão para a consciência, prepara o ouvido para a recepção de uma complexidade polisêmica aberta, prospectiva e retrospectiva, tomando parte na
construção de uma dialética semântica processual. Processo quer dizer
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Primeira Abordagem do Evitamento
Associativo como Manifestação do Negativo
Há já muito tempo, fiquei intrigado pelo comportamento associativo
de alguns analisandos que, chegando a diferentes momentos da sessão,
pareciam dar meia volta a todo movimento de pensamento que os havia
conduzido até um determinado ponto de seu discurso, quando até mesmo a
conclusão da continuação de seu avanço parecia quase previsível. Na época, eu tinha feito estas observações em pacientes neuróticos e tinha atribuído a uma resistência o que me parecia uma fuga frente a uma tomada de
consciência diante de um desejo proibido. Posteriormente, fiquei impressionado ao ler, pela pena de Bion, o relato de uma situação um pouco diferente que, no entanto, não pude deixar de relacionar com a observação
precedente. Bion falava desses casos em que o material exposto pelos pacientes parecia bastante significativo para o analista sem, no entanto, fazer
sentido para o analisando. Mas, neste caso, tratava-se de pacientes
psicóticos e o dano profundo de seu funcionamento mental era manifesto.
Isto esteve na origem, com outros fatos notáveis, da concepção, à qual o
nome de Bion está ligado, de “ataques aos vínculos”. A comparação com a
situação anterior fazia evidenciar que, enquanto no primeiro caso, a repressão dizia respeito, principalmente, aos derivados das pulsões sexuais,
no segundo, a ação das forças destrutivas sobre o Ego estava em primeiro
plano. Posteriormente, o interesse que atribuí ao trabalho do negativo aguçou meu ouvido para as formas de negatividade que não se deixam interSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 47
André Green
marcha, ação de ir avançando.
Enfim, falando dos organizadores da vida psíquica do paciente, faço
alusão a esses conceitos chaves em torno dos quais se constrói o universo
mental do paciente. Eles são, para nós, o que são os referentes, para os
linguistas. É totalmente deplorável ter de constatar que ainda não há concordância, entre os psicanalistas, sobre as categorias que eles representam.
Certamente, será uma tarefa do futuro chegar a um acordo sobre este assunto.
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
pretar devido a sua relação direta com as pulsões destrutivas. É com a
destrutividade que o analista lida, essencialmente na relação de transferência
com os pacientes “limite” e a mesma se apresenta, de maneira prevalente,
prioritariamente, sobre o próprio funcionamento psíquico do sujeito. A
destrutividade pode não ser afetada a não ser pelas defesas negativistas
cuja clivagem freudiana é a forma mais sutil. A comunicação analítica encerra contradições essenciais, que vivem em coexistência, sem que uma
domine a outra, obrigando o pensamento do analista a elaborar o produto de
sua escuta conforme registros incomuns, desconcertantes, estranhos. Referime, mais de uma vez, a este escrito inacabado de Freud, “Some Elementary
Lessons in Psycho-Analysis”, versão inglesa de seu Abriss, onde ele previa
que a análise conheceria, no futuro, modos de funcionamento psíquico
cada vez mais distantes do senso comum. O que quer, provavelmente, também, dizer cada vez mais distantes do que a psicanálise das neuroses lhe tinha
ensinado e que funda o pedestal da Metapsicologia. O trabalho do negativo se
esforçou em desenvolver as implicações clínicas, técnicas e teóricas disto.
Dedicar-me-ei, hoje, a algumas manifestações “negativistas” no tratamento, que podem se apresentar de uma maneira cuja função o analisando
leva muito tempo para reconhecer e que não se interrompem, uma vez que
ele as tenha reconhecido. Faço aqui alusão ao comportamento de um analisando que veio me ver por uma angústia crônica. Ele havia feito várias
tentativas terapêuticas que revelaram, entre outras, sua intolerância à relação e ao silêncio. Pouco tempo depois do início do tratamento comigo,
que, no entanto, ele parecia ter ardentemente desejado, e depois de intervenções que tinham me parecido tanto mais necessárias em relação a suas
experiências precedentes, respondeu-me: “Não o ouço, tenho merda nos
ouvidos”. Ele não falava desta surdez como de uma impossibilidade de me
escutar, mas, sim, de uma recusa de me ouvir. Dez anos depois, durante
uma sessão recente, ele me disse, novamente, a propósito de uma interpretação que não foi feliz: “Não o ouço”. Não compreendi que ele expressava
a mesma oposição que antigamente e acreditei, verdadeiramente, que minha voz não estava suficientemente audível. Surpreendente constância; ele
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Descrição da Posição Fóbica Central
O caso clínico de Gabriel trouxe-me o esclarecimento que me faltava.
Esta análise, tempestuosa em muitos momentos, abunda de peripécias e de
descobertas heuristicamente fecundas. Ela está, atualmente, numa etapa
muito avançada, depois de um longo percurso. Algumas experiências terapêuticas tinham terminado por uma decisão unilateral, devida, provavelmente, a reações contratransferenciais não controladas. Isto aumentava o
sentimento de abandono, em um momento em que ele tinha particularmente necessidade de ser apoiado. Durante longos anos, as sessões foram consagradas a queixas relativas a angústias permanentes, e seus propósitos
eram de uma rara confusão. Às vezes, também, emergiam temas, muitíssimo interessantes, quando eu conseguia seguí-los, regularmente acompanhados pela impressão de que eu suspirava de lassidão, de irritação e de
tédio, tantos sinais precursores que anunciavam, segundo ele, que eu ia
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 49
André Green
tinha apenas suprimido a contração anal metafórica de sua orelha. Na sessão seguinte, ele mostrou, no entanto, uma admirável capacidade
integradora. Todavia, este entendimento denteado, com altos e baixos, permanecera característico de seu funcionamento, mesmo após avanços admiráveis. A diferença estava em sua capacidade de restabelecimento do
insight cujo progresso não era uma ilusão, mas cujo exercício devia, primeiramente, ser precedido pela compulsão à repetição que se tornou, felizmente, transitória, destinada a me fazer perder o controle para lidar com a
iminência do perigo que poderia representar a visão mais aprofundada que
ele tinha adquirido de seus conflitos passados.
Hoje, parece-me que estes comportamentos, cujo objetivo defensivo
eu compreendera bem, devem ser ligados a manifestações fóbicas. Mas
faltava-me passar do plano do comportamento, por mais sintomático que
ele fosse, àquilo que faz sua especificidade e que oferece obstáculo à
inteligibilidade analítica, isto é, o sentido, como emergência da associação
livre, na relação transferencial, torna-se o objeto de uma confusão e de
uma asfixia quase sistemáticas.
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
colocá-lo porta afora. “Eu não sei”, “Eu não sei muito”, “Não me lembro”,
“O que eu estou dizendo não é apaixonante”, entrecortavam as sequências
de seu discurso. Eu não tinha qualquer indicação precisa sobre sua história.
Ele reconheceria mais tarde que estas fórmulas tinham o poder de matar
qualquer representação. Os fatos, nunca datados de maneira a fornecer uma
cronologia, estavam situados, ora em uma idade, ora em outra, raramente
acompanhados de lembranças evocáveis que teriam dado uma idéia sobre
a posição psíquica do paciente face aos eventos relatados. Inventários
submersos no ressurgimento dos eventos relatados. Uma vida entrecortada,
marcada por uma grande solidão, agravada aos doze anos de idade pelo
divórcio de seus pais, o que o levou a compartilhar sua vida com uma mãe
deprimida e inacessível, cativa de sua morosidade e de sua falta de vontade
de viver. Aos quinze anos, a mãe desapareceu, um dia, não mais retornando
de um tratamento termal. O pai continuava o objeto de uma oposição sem
trégua. Não sabendo mais para que santo se voltar, o pai, divorciado e
casado novamente, decidiu consultar um psiquiatra clássico que transmitiu
suas conclusões, dizendo ao pai que seu filho o detestava, sem nada propor. Ele deixou a região parisiense, não sem ter proposto, em vão, a Gabriel
de seguí-lo. Este último estava em conflito permanente com sua madrasta
e se encontrou de novo completamente isolado após a partida deles. Estudos caóticos, um período de adolescência bastante perturbada, marcada
pela agitação política e alguns comportamentos transgressores que revelarão sua vulnerabilidade. Depois do fracasso no vestibular, uma estada temporária no estrangeiro, vivida no isolamento, na solidão e na tristeza, um
retorno ao país e à faculdade, pela iniciativa de um amigo, para estudos
que não tinham nada a ver com sua atividade atual. Foi-me necessário tempo para compreender, que o sentimento que eu tinha de perder, periodicamente, o fio do que ele me comunicava, era devido a rupturas associativas,
potencialmente significativas. Mais do que interrupções ou mudanças de
tema – o que se inscreve como consequência de associações livres – tratava-se de um discurso que parecia ser mantido à distância, longamente desenvolvido a partir de generalidades que me davam a impressão de buscar
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meu caminho na névoa. Acreditei, inicialmente, estar diante de uma atitude que remetia a uma repressão maciça e extensa. Até o momento em que
compreendi que se ele estava assim obrigado a impedir a instalação da
associação livre, não era por falta, mas, ao contrário, por um excesso potencial de associações. Dito de outra maneira, quanto mais ele progredia
no que ele tinha para dizer, mais ele tinha um sentimento de perigo, porque
a comunicação entre as partes de seu discurso não estavam suficientemente impermeáveis e que ele interrompia sua palavra ou a embaralhava, como
se tivesse buscado prevenir uma saída, em direção à qual teria sido irresistivelmente levado se ele se tivesse deixado levar. A saída que ele temia não
era outra senão a doença somática ou a loucura, para limitar-se, posteriormente, à segunda. Vários indícios tinham-me permitido compreender que
a ameaça de loucura estava relacionada com a idéia de que ele estava ligado a sua mãe por um vínculo que nada nem ninguém poderia jamais romper, não deixando lugar algum para qualquer investimento que ameaçasse
distanciá-lo dela. Ao vir a essas sessões, ele tinha a impressão de ouvir sua
voz chamando-o.
Na infância, um acontecimento maior: fora colocado na casa de uma
mãe substituta. Em que idade? Levei mais ou menos oito anos para saber
que ocorreu entre um e três anos. Por qual razão? Mistério; os motivos
invocados eram pouco convincentes. Mas mais um trauma agravou o da
separação: seu pai teria ido vê-lo aproximadamente todas as semanas, no
interior, a 300 km de Paris, sua mãe nunca – a não ser para retomá-lo.
Como era de se esperar, nesse dia ele não a reconheceu e chamou-a de
Senhora durante o trajeto de retorno. Algumas horas após, ele pôde recuperar a lembrança de quem ela era. Esta mãe, que vive, atualmente, no interior, nunca o visitava, nunca lhe escrevia, nunca lhe telefonava, cortando
sua linha durante longos períodos, sem responder aos chamados, nunca via
ninguém, rechaçando suas propostas de vir vê-la, ao mesmo tempo em que
se dirigia a ele de maneira apaixonada quando ele conversava com ela,
pelo telefone, para se queixar de tudo e de nada, acrescentando que só
tinha ele para ajudá-la. Todavia, todas as sugestões e proposições que ele
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
lhe fazia eram infalivelmente rechaçadas. Que ela fosse seriamente perturbada, é provável, eu me apercebi há muito tempo, mas o significado de seu
comportamento era mais difícil de circunscrever. Sua atitude
desconcertante se explicava, acabei compreendendo, pelo fato de que ela
preferia não ver as pessoas porque ela não suportava separar-se delas, temendo adoecer assim que elas a deixassem.
Antes de ir para a casa da mãe substituta, contaram-lhe que, enquanto
o nutria, sua mãe tinha tido um abcesso no seio quando o amamentava. Ela
continuara a nutri-lo, pois nada sentia – o que dá uma idéia de seu masoquismo. Ela não se deu conta de que seu filho gritava como um abandonado, definhava a olhos vistos, só absorvendo o produto de um seio purulento
e vazio. O pai, enfim, interveio e o médico, chamado, separou a mãe do
filho e prescreveu “injeções de água marítima”, outra maneira de dizer,
suponho, soro fisiológico, para reidratá-lo.
Um dia, em seu décimo ano de análise, enquanto evocava pela
enésima vez o período na mãe substituta, embora quando era eu que fazia
alusão a isto ele preferisse banalizar o acontecimento, no estilo: “Todas as
crianças que foram colocadas em mães substitutas não ficaram marcadas
por isto, não se tornaram como eu, etc.”, ele me disse: “Ontem, repensei
nessas visitas de meus pais que eu esperava no domingo. Revi-me criança,
à mercê de uma tensão angustiante indescritível, inteiramente ávido, na
entrada da fazenda, à espera da vinda deles e na esperança de vê-los aparecer. Ele falava, de fato, da decepção de não ver sua mãe. Meu rosto tinha
uma expressão tão tensa, tão terrível que eu disse para mim mesmo: “Isto
não é possível, isto não pode ser eu”.
Fiquei emocionado por este movimento que aliava uma recordação
traumática e o não reconhecimento de uma imagem de si percebida e representada, mas desmentida. Eu estava, aliás, embaraçado para saber se
tratava-se de uma rememoração de uma revivescência. Mas eu tinha a convicção de que não poderia se tratar de uma fantasia. Uma criação do tratamento, certamente, mas carregada de verdade. Acrescentando-se, à decepção renovada de não ver aparecer a silhueta de sua mãe, o medo de mostrar
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sua tristeza ao pai por temor de que ele também deixasse de visitá-lo, compreende-se que essa situação, que poderia retumbar com a relação dual da
criança ao seio que a deixava esfomeada, era, na época, terceirizada. Sem
falar da fantasia possível de que era ainda o pai que impedia a mãe de vir
vê-lo, a fim de guardá-la só para si, como tinha sido ele que, antigamente,
o privou desse seio que, apesar de mortífero, era sua possessão. Ele levou
um certo tempo antes de admitir que esta interpretação era plausível.
Desde então compreendi que estava ali a chave da atitude de meu
paciente. Ele vivia aterrorizado permanentemente, mas, de uma certa maneira, não era ele quem vivia os terrores. Ou então, o que o angustiava
encontrava explicação no comportamento dos outros em relação a ele. Esse
movimento defensivo era facilitado por numerosas confusões de identidade transitórias entre sua mãe e ele, entre ele e o tio morto, de quem tinha o
nome, a quem ele jamais conhecera mas a quem tinham lhe dito que ele se
assemelhava muito, depois, mais recentemente, entre sua mulher e sua mãe
e, enfim, entre seu filho pequeno e ele. Além disso, sua mãe fizera confusões semelhantes na adolescência, tendo, inclusive, apresentado-o às pessoas do bairro como seu irmão, até mesmo seu marido, modificando o sobrenome comum deles. Não se tratava de identificações, mas de suspensões transitórias de sua identidade. Em um momento da transferência, ele
dirá: “Tomo-me pelo Dr. Green”, o que levava a um sentimento de
usurpação que, de fato, interditava qualquer identificação.
Algum tempo depois da evocação da espera da percepção da mãe que
não vinha, ele voltou para o episódio do abcesso do seio para me relatar
uma frase dela: “E tu chupavas, e tu chupavas, e tu chupavas”. E eu dizia,
para mim mesmo: “E nada vinha!” Não se tratava somente de um movimento de identificação com meu paciente, nem mesmo de uma reconstrução. Bruscamente, compreendi que eu associara os dois acontecimentos.
Entre o primeiro e o segundo havia diferenças. Mas o estabelecimento de
um ponto associativo era a consequência dessa irradiação à qual eu fazia
alusão e da qual eu já tinha a experiência ao escutar o que ele me comunicava. Quanto a ele, vários de seus atos pareciam querer impedir essa possi-
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
bilidade de se deixar surpreender tomando a dianteira e fazendo os outros
viverem o vazio que ele criava com seu desaparecimento real ou seu retraimento. Por outro lado, ele era de uma fidelidade rigorosa a suas sessões.
Compreendi, então, ainda melhor, o sentido dos comportamentos de meu
paciente. Eu completara uma sequência em que ele tinha se contentado em
descrever a reação do outro, sua mãe, sem imaginar, diante de mim, o que
ele tinha podido experimentar, mas me incitando, inconscientemente, a ir
até o fim do que ele sentia. Não há então saída, a não ser pela ruptura da
atividade mental, por temor da ressonância das diferentes situações traumáticas que se poderia relacionar-lhes. Não me demoro sobre outras situações, relacionadas com temas melhor conhecidos da Psicanálise, como a
angústia de castração ou o sentimento de não ser compreendido por sua
companheira atual, ou a traição de uma amizade. Só as menciono, sem
desenvolvê-las, para sustentar essa idéia de que se tratava, no caso dele, da
grande insegurança que ele experimentava ao considerar os significanteschave da Psicanálise.
Ele me tinha impressionado por alguns comportamentos característicos: decidiu, sob o choque de um fracasso sentimental, pensando que ele
tinha pago bastante com todas suas infelicidades, não mais pagar seus impostos, desaparecendo para a administração. Evidentemente, ele foi encontrado pelo fisco ao cabo de alguns anos, temendo sanções muito mais
graves que as que são aplicadas em caso semelhante. Profissionalmente,
ele se engajava nas primeiras etapas de um trabalho coletivo, depois, subitamente, desaparecia. Na análise, ele não dava a menor explicação sobre
essa maneira de se esquivar. Também fugia dos encontros com os parentes,
diante dos quais temia ser acusado pelas incomodações que atingiam seu
ambiente. Muito angustiado, ao menor sinal que pudesse testemunhar um
problema de saúde em seu filho, não tinha outro recurso a não ser tentar
exercer um domínio absoluto sobre sua mulher, esperando que ela fizesse
desaparecer os sintomas, mesmo benignos, que aquele pudesse apresentar
e não suportando que ela respondesse que ela mesma não compreendia a
causa dos sintomas. Por seu lado, extremamente preocupado em estabele54
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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cer uma relação sem nuvens com o filho, mostrava-se muito pouco receptivo às manifestações de ciúme edípico desse, não podendo imaginar a
existência disso.
O que me apareceu, no entanto, com clareza, foi a razão de ser de seu
funcionamento associativo: ao mesmo tempo sem nitidez, vago, frequentemente inalcançável, defasado em relação aos eventos relatados. Em alguns momentos, ele reconhecia a exatidão de algumas interpretações, fazendo, em seguida, como se elas nunca tivessem sido enunciadas. Compreendi, então, que o que impedia seu desenrolar associativo, o que, em
suma, fazia estagnar essa progressão pluri-direcional e esterilizava seu curso era a antecipação do fim ao qual ela ameaçava conduzi-lo. Era como se
todas devessem levar à cascata dos traumas que tinham correspondência
uns com os outros. Compreendi que o efeito de repressão não era suficiente para se fazer uma idéia do que acontecia. De fato, um certo grau de
desinvestimento da arborescência das cadeias associativas apagava a potência de irradiação dos momentos temáticos. Dito de outra maneira, o
discurso caía na linearidade. A capacidade associativa não voltava mais
para trás no a posteriori que ela não antecipava a continuação, abrindo para
uma potencialidade. Não cessava de falar, talvez de associar – às vezes de
uma maneira fragmentária, mas, de toda forma, associava de maneira plana, sem relevo, sem profundidade, sem ritmo. Não era gerador, nenhuma
solução poderia ser esperada pela interpretação.
Mas por que essa posição fóbica central? Por que esse evitamento do
término do percurso associativo? Para fazer-me vivenciar a decepção de
não o ver concluir, de não o ver chegar, como a mãe, nunca apercebida?
Sem dúvida, mas sobretudo porque o que revela o desamparo é o assassinato da representação da mãe que não aparece ou do seio que não acalma
a fome mas aumenta a excitação. Sucede-lhe a recusa de existência da
própria realidade psíquica do sujeito que o realizou. “Não, isso não existe
em mim, não pode ser eu, não sou eu”. Eis portanto uma variedade nova do
trabalho do negativo referindo-se à alucinação negativa do sujeito por ele
mesmo, consistindo menos em uma não percepção do que em um não reco-
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
nhecimento. Gabriel ao não ver sua mãe reativava nachträglich o não-seio
da mãe. Não o seio ausente – uma vez que se trata de um seio que se supõe
estar lá amamentando – mas um seio presente e vazio, quer dizer, destituído de suas funções, não existindo como seio, pressionando a se desfazer
dele, a fazê-lo desaparecer, embora ele esteja muito perceptivelmente ali,
na boca, em carne, mamilo entre os lábios que não sugam nada de valor.
Tampouco se imaginava podendo receber algo de uma imagem paterna
que teria o desejo de transmitir-lhe o que quer que seja que ele pudesse
utilizar na vida, para seu progresso pessoal. O percurso associativo, portanto, despertaria os vínculos entre a ausência da mãe aos dois anos, o seio
do período dos seis aos sete meses, sua impotência para ser investido pela
mãe, o sentimento de um pai decepcionado por ele, o abandono de amantes
pelas quais era apaixonado, abandonadas antes que elas o abandonassem, e
o abandono de seus terapeutas. Essa revivescência completa na análise
ameaçava ser devastadora. Ela corresponde ao sentimento de uma multiplicação que, a cada lembrança de um dentre eles, divide-o ainda mais,
tornando-o inapto a se utilizar de seus afetos para interrogar o que seu Ego
poderia fazer com isso, tentando reunir o sentido que poderia se desprender de uma expectativa.
Gostaria de ressaltar que não me parece exato atribuir tudo ao
traumatismo mais antigo, o do abcesso no seio. Procurei mostrar, ao contrário, que o que se deve levar em consideração é o agrupamento de diversos traumas que se evocam uns aos outros, os quais levam o sujeito a se
esforçar para recusar que eles possam, mutuamente, se colocar em comunicação pela psiquê, porque eles configuram menos uma evolução
integradora e tomam mais a forma de uma perseguição repetitiva que leva,
ao extremo, à recusa da própria realidade psíquica do sujeito ou da imagem
que ele tem de si mesmo. Isso explica que a posição fóbica esteja no centro
da organização psíquica, controlando, a cada circunstância, todas as vias
que chegam a ela, assim como todas as que partem dela, porque o quadro
que se formaria o obrigaria a aceitar sua raiva, sua inveja e, mais que tudo
isso, sua destrutividade que o obrigaria a se ver no mais profundo desam56
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Conseqüências da Posição Fóbica Central
Quais são os efeitos da posição fóbica central quando não é suficiente
para conter os conflitos?
– Já assinalamos a pouca nitidez do discurso, sinal de evitamento
associativo mais do que de ataque aos vínculos que, para existir, pareceme sempre posterior a esse evitamento quando esse não conseguiu impedir que os vínculos se estabelecessem. Ele engendra no analista o sentimento de que uma confusão habita o analisando e que acaba, por sua vez,
alcançando-o.
– A projeção. Ela visa, nesse caso, a uma objetivação. Ocorre, de fato,
que esses sujeitos – era o caso de Gabriel – se encontrem mergulhados em
situações onde os terceiros se conduzem em relação a eles de maneira realmente hostil. Isso não impede o sujeito de utilizar psiquicamente essas
maledicências verdadeiras para se cegar a respeito do lugar que elas tomam em sua realidade psíquica, servindo-lhe de tela de projeção. Da mesma maneira, a percepção de carências e de falhas nas pessoas próximas,
por ser real, serve para manejar as auto-acusações, muito mais graves.
– O masoquismo: os traços masoquistas infiltram o conjunto do quadro clínico: eles se ligam, ora a uma identificação ao objeto materno, ora a
mecanismos de reparação ou, mais fundamentalmente, ao sentimento de
culpa inconsciente, de uma profundidade insondável. Quanto ao sadismo,
ele está menos relacionado com o prazer de fazer sofrer, do que com o
desejo de domínio, como tentativa de controle vingativo sobre um objeto
particularmente inalcansável, imprevisível, precário e evanescente.
– A repetição submerge de novo e indefinidamente o sujeito nas mesmas situações, excedendo os meios do Ego para evitar recair nelas; ela
desempenha um papel de insistência, de marcação, de descarga, de
reasseguramento familiar, de auto-cegamento.
– A provocação em relação ao objeto, a pseudo-agressividade masoSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 57
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paro como sujeito de uma onipotência só podendo se situar na transgressão, excedido por uma excitação sem fim.
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
quista visa a repetir a injustiça do outro, a suscitar o abandono do objeto
para confirmar uma espécie de maldição inexorável.
– O narcisismo ferido, consequência das humilhações do masoquismo. Os fracassos renovados e os abandonos repetidos, minam a auto-estima, desencadeando a depressão.
– A recusa, enfim, que deve ser distinguida, sem dúvida, da negação,
vimos que tomava a forma de uma recusa de reconhecimento de si, sobre a
qual retornaremos mais em detalhe.
Este conjunto constitui uma segunda linha de defesa, acionada inconscientemente pelo sujeito, quando a posição fóbica central é excedida, os
afetos depressivos e angustiantes tornando-se preponderantes.
Todas essas modalidades de funcionamento psíquico, quer pertençam
ao regime erótico, narcísico ou destrutivo, têm como função proteger de
uma sensação de abatimento que repete os traumas mais antigos.
Gabriel me diz, ao falar de suas relações atuais com sua mãe, a quem
ele não viu, desde o início de sua análise, e com quem ele não se comunicou, desde muitos meses: “Faço como se ela não existisse mais me dizendo: Agora estou tranquila”. “E, no entanto, não posso renunciar a evocar os
raros momentos do passado em que ela era atenta, carinhosa, portanto e
nem a esperar reencontrá-la assim”. Esta mãe, ornada de uma auréola frágil – ele pode evocá-la assim somente há muito pouco tempo, fazendo
compreender à posteriori o que sua perda apagou. Ele não podia renunciar
à expectativa da ressurreição dela. No entanto, esta esperança era contrariada pelo excesso potencial que poderia animá-la. Ele ficou aterrorizado,
sobre o divã, quando se lembrou de um momento de intimidade com ela,
em férias, na ausência de seu pai, quando ele tinha dez anos. Ele se lembrava dessas manhãs, no hotel da estação de esqui, onde levavam-lhes o café
da manhã, na cama. “Lembro-me muito bem do chá e dos biscoitos”. Mas,
a lembrança de se encontrar na mesma cama que ela, provocou-lhe o temor
retrospectivo de que eles pudessem ter tido relações incestuosas, cuja reminiscência seria o retorno do reprimido. Aos três anos de idade, ele acompanhara sua mãe em uma viagem ao seu país de origem e fora acolhido em
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
O Sentido em Rede e as Irradiações Associativas
Gabriel recebeu notícias alarmantes de sua mãe, através dos médicos
dela. Ela tinha uma doença grave que tratara com desprezo e que obrigou
seu filho a se ocupar dela, o que ele não pudera fazer, até então, devido a
sua oposição. Foi ocasião de reencontros muito emocionantes que criou
uma verdadeira reunião familiar em torno dela. Contrariamente a toda expectativa, sua mulher gostou muito de sua mãe com quem ela conseguiu se
relacionar de maneira a surpreender seu filho. Ela acha esta mulher “excepcional”. Durante toda a hospitalização, a equipe do serviço ficou impressionada pela enorme oposição da enferma, sua recusa de se deixar cuidar e, sobretudo, sua anorexia que ameaçava precipitar seu fim. Gabriel
fazia todos os esforços possíveis para trazer-lhe a comida que supostamente lhe agradaria. É preciso dizer que esta última hospitalização reavivara a
lembrança de, anos após sua partida inesperada de casa, ter sido chamado
por aquele que ele chamava de tio e que vinha a ser o antigo amante de sua
mãe, tendo a ligação deles provocado o divórcio, sem que, por isto, ele
tivesse deixado sua família para viver com a mãe de Gabriel. Este o fez vir
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sua família como um pequeno príncipe. Aqui, parecia que todo o ambiente
familiar aplaudia o fato de ele estar só com sua mãe. Enquanto que em sua
casa, eram só disputas continuadas e o sentimento de que o pai condenava
sua proximidade com a mãe. Ele tinha a impressão de ler no olhar de sua
mãe: “Tu e eu concordamos em considerar o pai um chato”. Mas, na maioria das vezes, ela o olhava sorrindo e nada dizia, com um ar cheio de
subentendidos. Ele acabou admitindo que sua mãe o havia deixado, quando ele tinha quinze anos, porque ele tornava sua vida impossível, pressionando-a, de fato, a ir embora porque ele estava muitíssimo inquieto com
sua tolerância exagerada em relação aos seus comportamentos
transgressores, na época, se bem que ela mesma não fosse objeto de nenhum gesto deslocado. Há muitos anos, ele tinha vindo visitá-la, foi o último encontro deles. Era verão, ele usava sandálias. Ela disse-lhe: “Tu tens
pés bonitos”. No dia seguinte, ele voltou precipitadamente para Paris.
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
com urgência para perto de sua mãe que ele descobriu em uma clínica,
agonizante, “com tubos que saiam de toda parte”. Ele ficou perturbado
com este espetáculo de catástrofe física e psíquica, pois havia manifestamente uma depressão associada. E eis que era como o retorno desse pesadelo que lembrava, de uma forma inversa, sua doença, depois do abcesso
do seio. No divã, ele pôde experimentar afetos muito intensos e, pela primeira vez, expressar seu amor. Ele teria desejado, dizia ele, tomar para si
todo o sofrimento, fantasia freqüente neste tipo de situação, mas que dava
um novo sentido às manifestações anteriores de fusão. Parecia, no entanto,
que todos os problemas levantados pelo corpo de sua mãe nas mãos dos
médicos tinham revelado a recordação de suas próprias experiências corporais quando era ela quem exercia um controle sobre sua saúde. Lembrava-me dos trabalhos de Joyce McDougall que, descrevendo estruturas psíquicas diferentes, mas não sem relação, falava de “um corpo para dois”.
Era por ocasião destes cuidados físicos na sua infância que se ativava uma
angústia muito intensa de ver se confundir suas zonas erógenas, fazendo
surgir o espectro de uma identificação que conduziria a uma identidade
feminina que o apavorava, ainda mais que ela se produzia com uma
vivência de intrusão que fazia pensar em uma verdadeira invasão que tomava progressivamente possessão dele. E isto ainda mais porque seu pai,
que ele continuava a ver intermitentemente, suportava muito mal as manifestações da homossexualidade mais benigna, o que reduzia seus encontros a longos silêncios, ainda mais que a mãe de Gabriel os desaprovava e
o responsabilizava por eles. Ao lado de sessões onde as mesmas queixas e
as mesmas ladainhas se sucediam a respeito de sua mãe, houve outras sessões em que ele expressava sua surpresa em reencontrar uma mãe como há
muito tempo ela não lhe parecia mais e, segundo suas próprias palavras,
uma mãe como ele tinha sonhado que ela pudesse ser. Eu sentia que uma
mudança ocorria nele, na medida em que ele podia admitir uma imagem
menos fixa do que aquela que ele tinha apresentado durante a análise. No
entanto, ele voltou longa e repetitivamente à anorexia de sua mãe e a sua
impotência em fazê-la comer, quando ele era criança. Ele voltou a sentir,
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com grande emoção, a irritação profunda que isto lhe provocava. Uma observação reteve-me sem compreender o que ela significava. Mesmo no
hospital onde ela estava e onde ele próprio trazia-lhe os alimentos que poderiam abrir-lhe o apetite, ele me disse que dava um jeito de não estar
presente quando ela comia. Logo ele pôde evocar um período do passado
do qual ele nunca tinha falado e em que sua mãe, saída de seu marasmo,
tinha feito um curso e levado uma vida ativa durante um certo tempo antes
de se deprimir gravemente de novo, devido a uma causa desconhecida.
Além disso, Gabriel suportava mal ter de sofrer as conseqüências de algumas dificuldades presentes em seu ambiente e independentes dele, reagindo a situações objetivamente sofridas, realizando algumas clivagens, tentando distanciar-se pela recusa dos problemas que o cercavam, sem que ele
tivesse algo a ver com isto. Concomitantemente, favorecido pelas conversas com sua mãe, ele voltou, na sessão, às lembranças de infância. Ela
lembrou-lhe como eles viviam, em 25m2 que serviam também de oficina
ao pai. Ele dormia numa cama de acampamento, na oficina, seu pai na
cama da sala de estar e sua mãe em um canapé do qual não se podia dizer
se estava no mesmo quarto em que o pai dormia ou naquele em que ele
mesmo se deitava. A mãe tampouco foi capaz de dar esta precisão que era
plena de consequências psíquicas. Ele mesmo tinha, obstinadamente, repetido nunca ter visto seus pais deitados juntos, a não ser uma manhã de
Natal em que ele tinha recebido presentes. Pouco depois, retomando a
anorexia de sua mãe, surgiu uma idéia: ele nunca conseguia evocá-la comendo, mas ele lembrava de uma certa circunstância em que ela bebia
perto dele. Ao tomar sua taça de chá, ela emitia alguns ruídos com a garganta que lhe causavam uma irritação extrema. Ele quisera poder interromper os ruídos insuportáveis que seu corpo fazia. Eu sugeri que estes
ruídos o forçavam a representar o interior do corpo de sua mãe, o que ele
admitiu, mas sem que se seguisse uma verdadeira mudança. Na sessão
seguinte, após ter evocado os problemas de seu filho e os projetos de separação e aqueles relativos ao seu futuro, dos quais me falava com uma reticência cheia de desconfiança, ele expressou o desejo de voltar à lembrança
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
de sua mãe bebendo chá. Tendo refletido sobre isto, ele se deu conta de que
na língua de seus pais, dizia-se “um copo”: gluss (de chá), palavra cuja
sonoridade evocava o verbo “glousser” (cacarejar). Ele próprio concluiu
que era a idéia de um prazer dentro do corpo de sua mãe que lhe era intolerável e que teria desejado poder parar imediatamente. Vê-se como esta
associação surgiu no contexto separação-aproximação, sustentada pela
idéia de que o desejo da mãe era de dormir com ele. Depois, na sessão, ele
aproximou sua raiva e sua irritação diante destes ruídos corporais, de raivas comparáveis à que sentia quando sua mãe saía à noite com uma amiga.
Nós encontrávamos aqui a separação, mas com a implicação de um terceiro. A irritação quando ela bebia o chá, ao contrário, estava relacionada com
a fantasia de uma mãe excitada em sua presença, como se se tratasse de
uma sedução de sua parte, e expressando um desejo de reaproximação que
ele vivenciava como incestuoso. Ele mesmo se identificava com esta excitação projetada que engendrava nele a raiva que ele atribuía a seu pai, mas
com o resultado que a ausência do interdito materno fazia disto uma excitação destinada a apavorá-lo, sem encontrar solução. Eu o lembrava de que
sua mãe o tinha feito passar por seu irmão e, acrescentou ele, por seu marido. De fato, ele admitiria depois que a mãe tinha ficado na relação irmãoirmã, e que bem podia ter sido ele que pensara que ela pudesse chegar até
a dizer que ele era seu marido, alarmando-se com esse pensamento e atribuindo-o a ela. Mas o essencial não era a questão de sua fantasia, reconhecida
como tal, mas a idéia do consentimento de sua mãe a uma tal possibilidade.
É preciso observar este encontro de extremos, como se apatia, depressão, anorexia e insatisfação, reivindicações e queixas só encobrissem esta
excitação, louca, mas tendo o poder de enlouquecer. Ele tinha visto seu pai
louco de raiva, quando descobriu a traição de sua mulher. Como se a representação de um objeto demasiado ausente criasse em sua mente uma falta
demasiada que despertava uma excitação sem resolução possível. Durante
uma sessão em que eu tentava apresentar-lhe este quadro psíquico, ele respondeu-me “pulsão de morte” sem nada acrescentar. Depois ele me disse:
“Eu de fato pensava sobre o que tinha lido a propósito dos alcoolistas,
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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falando de um objeto interno insaciável e inconsolável”. Nós estávamos
em duas linhas associativas, convergentes. Na saída dessa sessão, ele se
disse: “Tenho um companheiro”. Tudo o que relato, tentando restituir o
caminho associativo que vê reaparecer alguns temas centrais sobre séries
associativas diferentes, e mesmo proceder a inversões, passou-se em algumas sessões. Tive de reagrupar o conjunto para esta exposição, mas é para
melhor ilustrar este funcionamento em irradiação que pôde, enfim, ser observado, mas que pode ser tão rico que é preciso resignar-se a não poder
dar uma imagem dele a não ser através de algumas amostras. É extremamente difícil restabelecer a integridade do funcionamento associativo nas
sessões, pois em tais casos a própria mente do analista é solicitada, constantemente, pelo que chamarei reaproximações não estabilizadas, isto é,
que não permitem à tomada de consciência perceber estes relatos, mas ele
mesmo deve funcionar superando sua própria fobia de pensamento, isto é,
sendo solicitado pela reverberação retroativa e pela antecipação
anunciadora nas vias possíveis onde elas podem ser engajadas. Em minha
experiência, é apenas nesta condição, a que permite ao paciente ver-se refletir um funcionamento psíquico que siga a mesma abordagem que a que
eu descrevi para dar conta dos movimentos de pensamento na sessão, que
o paciente pode transformar seus bloqueios e suas inibições, reconhecendo
o que ele faz das forças psíquicas que o habitam, substituindo a destruição
por uma circulação mais livre de seus afetos e de suas representações.
Esta construção interpretativa só é possível se cada elemento, produzido como retorno do reprimido, conserva uma capacidade de ressonância
sobre outros, da qual somente o sentido libera a chave. Do meu ponto de
vista, não há outra saída para o surgimento da verdade a não ser a do tempo
prévio da dissociação dos elementos conscientemente vividos e da busca
de cooptação possível com outros elementos isolados, cujo agrupamento
permitirá fazer aparecer suas condensações contraditórias: furor da separação, perigo da reaproximação, medo da volta sobre o sujeito, das projeções
sexuais sobre o objeto, aparecendo sob uma forma tanto mais louca na
medida em que elas são supostas de serem ainda mais impedidas no objeto
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
do que dentro do Ego. Tentativas permanentes para romper a continuidade
e a tendência do fluxo associativo de formar uma visão mais completa da
situação.
Desenvolvimentos Metapsicológicos
Como compreender metapsicologicamente o que a posição fóbica
central revela nesses pacientes? Após ter avançado na elaboração de minha
descrição clínica, folheando, ainda uma vez, para um trabalho diferente,
“O homem dos lobos”, caí novamente sobre esta citação bem conhecida
concernindo a castração, a propósito do que Lacan chamou forclusão. “Isto
não implicava, na verdade, em julgamento sobre a questão da sua existência, pois era como se não existisse”. Isso também, como a frase de Gabriel,
ressoou em mim: “Eu, à beira de um desmoronamento porque minha mãe
nunca chega. Isto não existe em mim, não sou eu”. E também: “Minha mãe
abandonou-me. Que mãe? Não tenho mais mãe. Ela não é mais. Ela não é”.
Estas soluções colocam em evidência o paradoxo de uma culpabilidade
que pede uma reparação interminável apesar de o sujeito se colocar em
posição de vítima a quem se fez mais mal do que ele mesmo fez. A culpabilidade é a consequência do assassinato primário cujo objetivo é proceder a uma excorporação do objeto abandonador. Condutas auto-eróticas
tentarão preencher o vazio deixado por esta evacuação: aditivas,
alcóolicas, bulímicas, ou, ainda, à base de seduções compulsivas, tudo é
bom para provar e se provar que o objeto é sempre substituível, portanto
destrutível – o que, de maneira alguma, engana o Superego a quem o assassinato primário não escapou. Um outro paradoxo deste objeto cujo vestígio
se manifesta pelo buraco de sua presença: esses pacientes “têm a cabeça
cheia de vazio”, como o observaram outros autores (Khan). Eis, portanto, a
característica desse objeto materno: ele só se apreende no vazio no qual ele
deixa o sujeito e se, ao contrário, ele manifestar sua presença, seu fantasma
ocupa todo o espaço, ele “enche a cabeça” como se diz. Ao assassinato
primário do objeto, responderá, por ocasião de suas ressurreições, a idéia
de uma potência paterna que só pode se inclinar, ao mesmo tempo que
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deplora que ela não possa livrá-lo deste aprisionamento fascinante.
Que tipo de julgamento está em questão aqui? “A Negativa” apresenta-nos dois julgamentos: o de atribuição que decide sobre a propriedade
que uma coisa possui e o de existência que, diante de uma representação,
deve decidir se ela remete a uma coisa que existe na realidade. Nenhum
dos dois se aplica ao nosso caso. Não podemos considerar que se trata
somente de atribuir à coisa a qualidade boa ou má. O ato de suprimi-la
testemunha que ela deve ser má mas, como assinalamos, o apego inabalável que a liga ao sujeito deve levar a pensar que ela é considerada como
insubstituivelmente necessária. O que pensar de sua representação? Ela
remete, sem dúvida, a um objeto que existe, a mãe, mas, por outro lado,
esta representação a quer morta – não apenas pelo fato de haver desejo de
morte, mas porque sua representação foi evacuada, declarada inexistente,
morta, como pela sobrevinda de um luto instantâneo e cumprido imediatamente. O desaparecimento da representação na psique é retroativamente
tão brutal quanto a de sua não-percepção no real. Esta situação é devida ao
fato que o julgamento negativo de atribuição não visa, aqui, a reprimir– o
que ainda é uma outra maneira de conservar – mas a apagar, a desenraizar
do mundo interno. E, da mesma forma, o julgamento de existência negativo não se limita à relação com a realidade externa mas a um recurso onipotente que gostaria de se desfazer da realidade psíquica. Pode-se observar,
do ponto de vista desta realidade psíquica singular, que quando o paciente
é atraído por alguma coisa a qual ele poderia aspirar, ele parece raramente
formar uma fantasia de desejo que permitiria conhecer sua posição subjetiva. Ele fantasia menos do que ele faz advir a coisa como já realizada; realizada não no sentido de uma realização do sujeito, mas de um acontecimento na realidade que o coloca, não na posição daquele que deseja, mas
daquele que já agiu. Dito de outra maneira, este deveria pedir uma sanção,
não por ter desejado o que ele não deveria, mas por ter transgredido em ato.
O Superego, aqui, não desempenha o papel que Freud lhe atribui, o herdeiro do complexo de Édipo; ele promulga uma punição que é aquela mesma
que significa a transgressão. Assim, a obstinação em ser o possuidor da
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
mãe, que encontra sua sanção na loucura, cumpre a separação mas às custas da segregação e do exílio, confinando-o a permanecer entre os que nunca terão aceito se separar da mãe, segundo sua interpretação desta doença.
Pode-se falar de uma recusa da realidade psíquica, na medida em que tais
pacientes só podem conceber seu mundo interno como formatado pelas
ações e pelas reações dos outros com respeito a eles, toda demanda de
reconhecimento de sua parte, só podendo conduzir ao desvendamento,
sempre percebido como uma conseqüência da maneira como era o comportamento em relação a eles, de uma raiva destrutiva ou de uma sexualidade transgressora com relação aos seus objetos primários, interpretados
pelos outros como sinal de loucura que deve, necessariamente, levar ao seu
afastamento. O paradoxo é que a posição fóbica central deveria velar para
que não aparecesse o que se poderia adivinhar de tudo isto e, ao mesmo
tempo, reproduziria esta situação temida, ele mesmo agindo assim com
respeito às suas próprias produções psíquicas que não podiam encontrar
acesso a sua própria consciência. Pode-se dizer que ele os violentava, considerando que os elos que se formavam em sua mente deveriam sofrer uma
exclusão que interditava sua inserção em contextos mais extensos, necessários a uma atividade de pensamento. Negar é, neste caso, suprimir o que,
em sua percepção, atenta contra a existência do sujeito: para continuar a
ser, é preciso que o objeto que não está ali, deixe de existir, sem preocupação, com as conseqüências de sua perda. E se a ameaça contra o ser consegue retornar, rompendo a barreira das defesas, é preciso, então, que seja
retirado o investimento dos vestígios que ele terá deixado. A forclusão com
a qual ele o conota, que se continuará com a recusa desta parte do
psiquismo subjetivo, terá, apesar de tudo, sobrevivido, contestando que é
este Ego ferido do passado que retorna para perseguir o Ego precário do
presente. Também, é preciso sempre fugir do olhar daquele que pode perceber no olhar do sujeito os vestígios de uma mãe que reduz à impotência
porque ela não é mais que um fantasma de objeto ou uma fonte de excitação, sem que algum desejo lhe dê sentido.
Em seu artigo sobre a Negativa, Freud escreve: “Assim, originalmen66
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2. S. Freud, Résultats, idées, problèmes, t.II, p.137.
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te, a mera existência da representação é já uma garantia da realidade daquilo que era representado”2. Precisaria poder dizer no caso que ora falamos:
a inexistência da representação, sua supressão, é uma garantia da não-realidade do que foi forcluído, como se a não representação do objeto fosse
suficiente para se livrar da ameaça que ele exerce. Se for necessário, é o
próprio sujeito que se excluirá para evitar o novo assassinato que sugere o
reaparecimento do objeto que foi morto. Assim, ele terá ao menos suprimido a dor que ameaça voltar, ligada ao investimento primeiro, original,
basal, primordial. Ficará uma aparência de sujeito que permanecerá à mercê dos mortos e das ressurreições do objeto.
Retornemos, portanto, um momento à forclusão: o que Freud descreve concerne a sessão de análise e o que é ali relatado se relaciona não
somente ao que ocorreu na infância mas ao que ressurgiu dela. Deduzo
disto que a forclusão se cumpre quando do retorno da experiência que
permite inferi-la à posteriori, portanto, na retrospecção. A forclusão,
como a posição fóbica central, pertence ao processo analítico. Ela bloqueia
a generatividade associativa que permite o desenvolvimento da causalidade psíquica.
Vive-se demasiado freqüentemente com a idéia de que a importância
dos conflitos pré-genitais poderiam nos levar a considerar negligenciável
o Complexo de Édipo. É, ao mesmo tempo, verdadeiro dizer que o Complexo de Édipo não consegue, neste caso, organizar de maneira central a
personalidade e verdadeiro, também, levantar-se contra a idéia de que se
poderia considerá-lo negligenciável. Por exemplo, poder-se-á observar que
a angústia de castração está muito presente e que não se poderia reduzi-la à
forma superficial de um conflito mais profundo do qual ela seria apenas
uma falsa aparência. Por outro lado, não se pode falar de um complexo de
castração. Vimos, ao longo deste texto, que o pai pode suscitar a fantasia
de ter, por assim dizer, sequestrado a mãe. E, no entanto, o sujeito adulto
nunca aceita as tentativas maternas de afastar a criança do pai. Que este
último incarne os interditos, isto está bem presente. Sua importância é re-
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
conhecida e seus esforços para favorecer a individuação são objeto de gratidão. Resta que os sentimentos de hostilidade que pertencem ao contexto
edípico são aqui vivenciados, menos como a criança em rivalidade com o
pai, que como o desejo da mãe de excluí-lo para fora do mundo psíquico, –
tentativa que, mais tarde, será objeto de dolorosos arrependimentos –, para
estar em situação de consonância afetiva com a mãe. Mesmo quando o
sujeito conseguir uma reconciliação com o pai, que ele prezará cuidadosamente, esta não poderá ajudá-lo a compreender melhor a relação com a
mãe. Ao lado do pai edípico, guardião da Lei, respeitoso da linhagem ancestral, existe um outro pai. Aquele que, dentro da própria psique, tem a
função de reconhecer as astúcias do pensamento, o desvio da verdade, o
jogo dos deslocamentos porque ele os traz para si mesmo, genitor de um
pensamento em busca de sua verdade, aquela que conhece a relatividade
dos interditos, seu caráter inconstante, variável, discutível, colocando-o a
serviço de sua crítica e de sua contestação, mas que se faz o arauto de seu
reconhecimento, assim como de sua falibilidade. Tal é a compensação de
não ter podido se inscrever no psiquismo infantil com o inegável poder de
participar na construção de um universo mental, engajando nele todas as
formas da intimidade mais profunda, aquela dos corpos dialogando.
Ficamos impressionados, em relação a esses pacientes, diante de momentos críticos que eles atravessam, com a simplicidade das situações
causais – decepções, abandonos, traumas afetivos, feridas narcísicas – e a
dissimulação diante dos conteúdos e dos afetos mobilizados, mesmo quando estes parecem “naturais” e, enfim, a extrema complicação dos processos psíquicos e das modalidades do trabalho do negativo. Quanto mais
claro, mais deve ser mascarado, mais deve parecer incompreensível.
De fato, esses pacientes sabem que a análise é o único lugar onde eles
podem expressar sua loucura e vivê-la sem temor de rejeições demasiado
graves. Além da recusa, da enérgica tentativa de não reconhecer o que encobre este fundo antigo que emerge, periodicamente, à superfície, além
dos combates que esses pacientes travam na transferência contra o reconhecimento da verdade e onde todos os meios são válidos: esquecimentos,
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Post Scriptum
Desde sua primeira apresentação, este trabalho foi objeto de adições,
à medida que a psicanálise do paciente foi evoluindo.
Antes de encerrá-lo definitivamente, gostaria de fazer algumas observações finais.
O tratamento de Gabriel seguiu um curso que mostra que ele não cessava de melhorar. Ele pôde enfim “reencontrar” sua mãe e encontrá-la, não
somente como ela era em sua lembrança, mas como ele sempre quis vê-la
e como ele percebeu que ela também tinha sido. De agora em diante, posso
dizer que a imago materna, com a ajuda da transferência, foi verdadeiramente internalizada, sem idealização excessiva mas com um pleno reconhecimento dos aspectos positivos que ela lhe havia transmitido (particularmente na sublimação). O luto se desenrolou da maneira mais comum.
Outros sinais da virada no caminho da cura apareceram. Gabriel deu provas de sua capacidade de enfrentar e de ultrapassar, com sucesso, situações
diante das quais ele até então recuara.
Aconteceu-lhe de me dizer não somente que ele estava feliz com seus
feitos, mas, o que me parece não menos importante, que ele se sente agora
um homem “quase” livre. Quem, portanto, o é totalmente?
Palavras-chave
Associação livre; Destrutividade; Recusa da realidade psíquica; Forclusão;
Alucinação negativa; Fobia; Trabalho do negativo.
Key-words
Free association; Destructiveness; It refuses of the psychic realid; Foreclosure;
Negative hallucination; Phobia; Work of the negative.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69
André Green
contradições, culpabilização do analista, desmentida, distorções do raciocínio,
a transferência permanece positiva pois devem à análise terem ficado sãos,
senão salvos. Freud nos lembrou: ninguém pode escapar de si mesmo.
A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL
Palavras-llave
Asociación libre; Destructividad; Rehusa de la realidad psíquica; Forclusión;
Alucinación negativa; Fobia; Trabajo del negativo.
Artigo
Copyright PUF
Trabalho publicado na Revue Française de
Psychanalise, 2000, Tome LXIV-3, pp.743-773
Tradução do original francês: Dra. Ester Malque Litvin
Revisão da tradução: Dra. Cynara Cezar Kopittke
André Green
9 avenue de l’Observatoire
75006 Paris – França
E-mail: [email protected]
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Introdução
Carlos Doin
Membro Efetivo Didata da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
do Rio de Janeiro
O presente trabalho se inspira
em idéias destacadas no pensamento de Winnicott: permanência e
transmutação, integração seletiva,
saltos qualitativos e propriedades
emergentes. Já o título anuncia um
conceito geminado, o de
Neurociência (que lida com a relação corpo-mente, especificamente,
a da Neurologia com a Psicologia) e
o de Psicologia Cognitiva (que se
ocupa do processamento de informações carregadas de importância
vital, de todos os tipos e procedências, do mundo externo, do corpo e
da própria mente).
Atual e transicional celebram a
contemporaneidade e a coerência
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71
Carlos Doin
Winnicott e
Neurociência
Cognitiva:
Atual e
Transicional
WINNICOTT
E
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL
E
TRANSICIONAL
de Winnicott com suas idéias, a continuidade em aberto e a criatividade
fecunda do que ensinou e praticou. Mas atual também remete à distinção
que Pierre Lévy (1995) aproveitou de uma garimpagem de Gilles Deleuze
na herança de Aristóteles: potencial em oposição a real; virtual em relação
antitética-dialética com atual. Esse agrupamento de quatro modos de ser
que se antagonizam e complementam, se aproxima bastante das relações
entre o objeto real e o transicional, na visão de Winnicott, bem como da
criatividade inovadora, não predeterminada, imprevista, transicional.
Conforme Lévy (1995), no estágio potencial algo se encontra no
limbo, pronto para se manifestar sem nenhuma modificação, para se realizar tal como já está em latência. Por exemplo, um programa gravado na
memória de um computador. Pelo contrário, no virtual nada existe prédeterminado, completo; o que há é um conjunto de tendências, forças, disposições, complexos problemáticos, tensões em busca de soluções imprevistas, através de atualizações com características originais, idéias dispostas em configurações novas, criações inéditas. Por exemplo, a memória
humana, cujos registros não se repetem como reproduções fiéis exatas, em
fac-símile, mas se atualizam de maneiras diferentes, em novo contexto e
para um interlocutor novo.
É curioso conjeturar que Winnicott haja adotado, intuitivamente, uma
postura transicional-virtualizante, quando entendeu a dinâmica
transicional-virtual do objeto transicional, do brincar, e suas repercussões
de amplo alcance existencial, psíquico e cultural. Teve um descortino de
gênio ao lançar uma mirada diferente sobre situações tidas e havidas como
banais, aquela coisa ou brinquedo favorito que se tornou indispensável
para fazer o bebê dormir, a brincadeira infantil que é “de verdade, sim, mas
só de mentirinha”.
Como na dinâmica aberta da transicionalidade, a dialética
virtualidade-atualização-revirtualização não cessa em seu processo contínuo de repetição inovadora. Nós é que precisamos interromper essa introdução conceitual, para retomá-la, depois, a respeito de alguns temas da
Neurociência Cognitiva.
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 73
Carlos Doin
Pertence igualmente ao espírito transicional de Winnicott alargar as
fronteiras das ciências, promover o progresso dos conhecimentos nas
interfaces das disciplinas. Assim se explica, em boa parte, o crescente interesse por suas obras, no bojo das crises desta virada de século,
destacadamente a da Epistemologia e a da Epistemologia Psicanalítica.
Numerosos autores se convenceram de que uma defesa cabal da Psicanálise consiste em reforçar seu estatuto científico, após a desilusão com os
ideais racionalistas do positivismo, que inspiraram os pioneiros da Psicanálise, e do beco sem saída do relativismo radical, do ceticismo e do
nihilismo pós-moderno, de que muitos psicanalistas também não escaparam. Vem, então, ocorrendo um renascer dos valores antigos, temperado
pelo reconhecimento da complexidade dos fenômenos e dos
determinismos, da incerteza e pluralidade das teorias – animado, contudo,
de uma mentalidade mais pragmática, na busca de verdades falibilistas,
provisórias, colocadas com critério e cautela, no intuito de que sirvam de
ferramentas heurísticas e hipóteses de trabalho. Neste terreno propício, é
natural que estejam vicejando tantas contribuições de Winnicott, como a
que assinala a condição transicional dos conhecimentos, teorias e métodos, e as que favorecem a atual posição epistemológica complementar da
Psicanálise como ciência natural e como ciência humanística
hermenêutica.
A Psicanálise sempre freqüentou, durante todo o seu percurso histórico, diversas áreas culturais vizinhas, ocasionando, em geral, intercâmbios
com ganhos mútuos. Desde Freud, e em movimentos oscilantes, tem-se
tentado correlacionar os funcionamentos psíquicos com os somáticos, especialmente os do sistema nervoso central, na vertente epistemológica da
Psicanálise como ciência natural. O empenho interdisciplinar nessa direção vem se acentuando, ultimamente, em grande parte devido aos avanços
da Neurociência Cognitiva, às técnicas de produção de neuro-imagens,
como a da tomografia com emissão de pósitrons (PET) e a da ressonância
magnética funcional (fMRI). Com tais aportes estão se confirmando diversas formulações teóricas e técnicas da Psicanálise, outras sendo revistas,
WINNICOTT
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NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL
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TRANSICIONAL
contestadas ou complementadas. Winnicott, com realce, tem sido um dos
autores mais referendados pelos novos conhecimentos, como tentarei ilustrar nos tópicos seguintes, retomando algumas reflexões que apresentei
recentemente (2000 b), acrescentando outras.
Continuum Corpo-mente
Os avanços da Neurociência têm reforçado, substancialmente, as evidências a favor da tese unicista somatopsíquica, do continuum corpo-mente (Damasio, A. e Damasio, H. in Llinás, R. e Churchland, P., 1996). Se os
instrumentos tecnológicos de ponta não conseguem “filmar” o curso do
pensamento, permitem, sem dúvida, correlacionar, ao vivo, o que está se
processando no cérebro com o que se passa na mente e registrar padrões
regulares, bastante típicos, relativos ao funcionamento concomitante
neuronal e psíquico. Ao lado disso, vem se robustecendo, entre os autores
da Neurociência Cognitiva afinada com a Psicanálise, a compreensão da
continuidade e funcionalidade dos processos vitais, na filogênese e na
ontogênese, através da evolução, conservação e aperfeiçoamento articulado de estruturas biológicas e, depois, também mentais, a serviço da perpetuação e melhoramento das formas e dispositivos de vida, em todas as suas
manifestações, da sobrevivência seletiva dos mais aptos na integração adequada aos meios físicos, biológicos e sociais.
As palavras de Antonio Damasio (1999) se inserem na mesma ordem
de pensamento: “(...) considero os padrões neurais como precursores das
entidades biológicas que chamo de imagens [imagens ou padrões mentais]. Mantenho dois níveis de descrição, um para a mente, um para o
cérebro. Essa separação (...) não resulta em dualismo. (...) Mantendo níveis separados de descrição, não estou sugerindo duas substâncias distintas, uma mental e outra biológica. Estou apenas reconhecendo a mente
como um processo biológico de alto nível, que requer e merece uma descrição própria por causa da natureza particular de sua aparência e porque essa aparência é a realidade fundamental que desejamos explicar” 1.
1. A tradução é do autor.
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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Carlos Doin
Creio que podemos considerar vários níveis de virtualização e
transicionalidade inovadoras, como na progressão do sistema nervoso préhumano, para o humano; das estruturas neuronais encefálicas, para formas
iniciais de consciência e representação de si mesmo, até o psiquismo humano mais refinado – aquele que se associa ao self autobiográfico e à consciência ampliada (Damasio, A., 1994) –, dependente da integração de todos os dispositivos anatomo-fisiológicos anteriores, mas também e especialmente do córtex cerebral pré-frontal, culminância da linha evolutiva de
que somos beneficiários.
Gerald Edelman (1987, 1999), participa de visões semelhantes: o sistema nervoso e o psiquismo, que surge dele, constituem um elo importante
na cadeia evolutiva. O meio e a biografia individual se inscrevem nas próprias redes neurais, anatômica e fisiologicamente. Em outras palavras: os
neurônios do cérebro se interligam em circuitos extremamente complexos,
através de bilhões de ramificações e sinapses que vão se desenvolvendo,
fortalecendo ou morrendo, numa intensa competição em que predominam
as que se mostram mais flexíveis e adequadas aos propósitos da vida, nas
circunstâncias ambientais daquele pessoa. Pode-se assim dizer que o mundo humano, biológico e físico se inscrevem na neuromente individual, já
na própria trama de circuitos neuronais, que o de fora em parte se
interioriza, condicionando, em diferentes graus, todas as características
somato-psíquico-sociais daquele ser em particular.
Há um escalonamento de funções e prioridades vitais. As mais básicas e indispensáveis são, também, as mais antigas na evolução das espécies e dependem de estruturas encefálicas que herdamos, por via genética, de
formas biológicas remotas, notadamente a partir dos répteis – lagartos e
dinossauros; elas perduram porque se mostraram bem sucedidas na preservação da vida em todos os seus níveis, desde a manutenção da homeostase
do meio interno (regulação do metabolismo energético, da bioquímica do
sangue, da respiração, digestão, etc.), até equilíbrio dinâmico dos relacionamentos com o meio externo, físico, biológico e humano; em nosso caso,
graças ainda a fortes determinismos para a maternagem, apego, filiação,
WINNICOTT
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NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL
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TRANSICIONAL
auto-afirmação, competição e luta, solidariedade e colaboração, sexualidade e reprodução, curiosidade, descoberta e criatividade, além de outros.
Pensa-se, atualmente, que toda a vida psíquica, inclusive a vivência
de um eu individualizado, ou self, se baseie em experiências muito primitivas de unidade e continuidade daquilo que se passa dentro de um mesmo
organismo, no equilíbrio de sistemas integrados, biológicos e relacionais,
formando um todo que se conserva, se regenera, se reorganiza e autocura,
se modifica e evolui, numa faixa mais ou menos regular e constante de
desempenhos registrados como bons. Esses tendem a se repetir, por força,
inclusive, de dispositivos que premiam a realização do que é melhor para a
vida com uma quota de prazer, basicamente garantida por mecanismos
neuro-hormonais, a cargo do hipotálamo, do tronco cerebral e de outras
estruturas, à qual se juntam, gradativamente, emoções, sentimentos, pensamentos gratificantes, ligados a setores mais evoluídos, principalmente,
do neocórtex. Quer dizer, os valores de base permanecem, ao lado de outros que se refinam como valores e atividades apreciadas no campo cultural, ético, estético, filosófico. No entanto, pelo conservadorismo das
homeostases biopsiquicorrelacionais, tendem a se perpetuar as estratégias
que tiveram sucesso vital, mesmo quando ultrapassadas e inconvenientes
em contextos novos e sob outros aspectos.
Caberia, aqui, uma reflexão à moda winnicottiana sobre tudo o que foi
dito, mas eu ofereço a oportunidade, como objeto transicional, aos que
gostam de brincar com idéias e informações. Só à guisa de lembrete – são
inúmeros os níveis de atualização evolutiva de disposições virtuais ou
transicionais lato sensu, por exemplo, o movimento que vai de um conjunto de espécies biológicas para uma espécie determinada; o da espécie a que
pertence o indivíduo, do seu genoma, para a expressão fenotípica do seu
ser somatopsíquico singular, em função das dotações constitucionais em
interação com o meio ambiental (Pally, 1997a). O grande enigma para o
pensamento filosófico-científico continua sendo a passagem do nível corporal para as vivências psíquicas. Como é que as configurações, os mapas,
imagens ou padrões neurais, chegando ao córtex cerebral, dão origem ao
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Importância da Maternagem Primária
Com tudo o que foi dito no item anterior, confirmam-se e especificam-se as observações e intuições clínicas de argutos psicanalistas, como
Winnicott, Bion, Bowlby e diversos outros, sobre as funções essenciais da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77
Carlos Doin
salto qualitativo, transicional, à qualidade emergente composta de sentimentos, representações e idéias, à vida mental e ao mundo cultural? Considerando os enfoques de Pierre Lévy, a vida, em todas as suas manifestações, consiste em uma seqüência interminável de soluções que se
virtualizam e de disposições virtuais que se atualizam. Neste sentido, a
própria vida é fenômeno transicional.
A relevância do entrosamento indivíduo-ambiente, tema central em
Winnicott, encontra respaldo decisivo na Neurociência Cognitiva, como
vimos. O corpo e a mente não se adaptam ao meio do modo como amiúde
se diz, fazendo supor que eles existissem anteriormente de alguma outra
maneira e que, só depois, se ajustassem ao mundo. Não: o corpo e a mente
dum indivíduo vão sendo moldados, desde o seu início, por e para seu
mundo físico, biológico e humano, para esse em particular, para o seu
habitat, com essa mãe e não outra, no caso humano em especial, com essa
cultura, esse idioma, esse clima, esse pedaço do sistema gea, digamos assim. Em resumo: não há um bebê anterior à sua mãe e ao seu mundo. Seus
recursos genéticos e biológicos já resultam de gerações que se formaram,
sobreviveram e se reproduziram com razoável sucesso, em seus respectivos mundos. A partir daí, de determinações ancestrais e circunstanciais, a
notável capacidade humana de se modificar vai se realizando com alguma
liberdade, presa, ainda, a valores, limites e imposições de várias ordens.
Haverá sempre uma luta entre obedecer e transgredir tais determinações,
sendo que a própria capacidade de tentar romper barreiras também é parcialmente pré-determinada pela evolução filogenética e ontogenética – um
ímpeto para ir adiante, uma boa chance para dar certo, programas que partem da própria Biologia. Meu estudo sobre Psicanálise e utopia (2000a)
inclui essa idéia, a propósito das disposições para o progresso.
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boa maternagem, exercida pela mãe ou quem a substitua, desde os princípios da vida do ser humano, para que ele se crie e mantenha em funcionamento normal.
O padrão evolutivo, acima delineado, dá margem a incontáveis variações, mais ou menos normais ou patológicas, que respeitam os mesmos
valores básicos, inicialmente biológicos, destinados a privilegiar o que é
habitual, útil e agradável do ponto de vista da vida em convívio com aquela
mãe, com aquele meio ambiental. Tais modalidades tendem a se perpetuar,
mesmo quando se tornam inadequadas em outras circunstâncias existenciais. É o que se verifica, por exemplo, na absurda manutenção de funcionamentos limítrofes ou borderline, equilibrados “em cima do muro”; na
perseveração psicótica ou perversa daqueles pacientes que repetem obstinadamente estratégias deturpadas de “salvação”, ou “garantia de vida”, as
quais começaram a se estruturar bem cedo na infância e são conservadas
por terem se mostrado, e continuarem a ser sentidas, como prazerosas e
convenientes. Seus portadores podem até criticá-las, no raciocínio consciente, sem abandoná-las. Estando alertado para as dificuldades desses casos, o analista se sentirá mais disposto a investir esperança por mais tempo, sem se sentir derrotado, como, por exemplo, nas análises de pacientes
que nasceram de gravidezes difíceis, não desejadas, que sobreviveram a
tentativas de abortamento. É provável que o corpo e a mente da mãe tenham transmitido mensagens de expulsão, inclusive por vias bioquímicas.
E que o feto tenha tido que se adaptar biologicamente a seu primeiro mundo hostil, a um “anti-holding intra-uterino”, conformando seus sistemas
neuro-hormonais às imposições desse meio, onde, sem dúvida, chovia
muito mais “rejeitina” do que “acolhina”.
Creio não estar me afastando demasiado de uma linha traçada por
Winnicott (1965) acerca das provisões fisiológicas no estado pré-natal,
para compreender a patologia de diversos pacientes. Alguns chegarão para
análise como personalidades narcísicas patológicas, limítrofes, perversas,
esquizóides, depressivas etc., reincidentes em condutas desastrosas, relações pessoais eletivamente infelizes, os quais se empenham em forçar o
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79
Carlos Doin
analista a se ajustar aos seus funcionamentos aberrantes, através de um
jogo imperioso de identificações projetivas e atuações diversas. O
terapeuta lidará melhor com os assédios a seu equilíbrio se tiver boa noção
do que ocorre com tais pacientes. São sobreviventes de uma guerra
primeva, dentro de um útero belicoso; custam a se afeiçoar a um mundo
novo, mais pacífico e normal, e insistem em remontar o seu habitat original. Parafraseando outra formulação de Winnicott (1965): não foram feitos
em e para um meio facilitador.
Além de confirmar a importância primordial da maternagem, a
Neurociência Cognitiva acrescenta outros conhecimentos sobre a constituição neuromental do indivíduo nas fases iniciais de imaturidade, onde a
mãe é absolutamente indispensável como molde de normalidade evolutiva
e de moduladora de estímulos e emoções. O fato de que as funções
neuromentais se instalam em tempos diferentes elucida certas observações
clínicas. Por exemplo, a amídala encefálica, estrutura importante nos processos vinculados ao medo e à angústia, funciona plenamente desde o nascimento (Pally, 1998); além de outras tarefas, ela está programada para
acionar uma reação de alarme diante de indícios de perigos naturais para a
espécie, raios e trovões, cobras, etc., mesmo que o pânico não corresponda
a ameaças reais. Tal verificação está a cargo do hipocampo e do córtex
cerebral, que só funcionam, satisfatoriamente, bem mais tarde. Além disso, há vias anatômicas mais numerosas da amídala para o córtex
tranqüilizador, do que no sentido oposto. Parece que a evolução privilegiou, como estratégia de sobrevivência, um alarme exagerado, como se
mais valesse um apavorado vivo, que um descansado morto. No entanto, o
medo continuado, a angústia mantida, provocam atrofia dos mecanismos
de tranqüilização, mesmo em filhotes de animais de laboratório, privados
de mãe. A função tranqüilizante da maternagem está sendo comprovada
também em termos bioquímicos (Horton, P.C. et al., 1988). Um cuidado: é
sempre preciso dar um desconto à linguagem metafórica, antropomórfica,
utilizada na descrição desses fenômenos, e frisar que o funcionamento das
estruturas neuromentais deve ser entendido como um conjunto mais ou
WINNICOTT
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TRANSICIONAL
menos harmônico e integrado dos diversos componentes, embora alguns
se destaquem em determinadas atividades.
Comunicação em Todos os Níveis
A sobrevivência e o desenvolvimento normal da criança dependem
necessariamente da capacidade materna de entender o que se passa com
ela, desde os primeiros momentos de vida. Aqui a Neurociência Cognitiva
vem ao encontro, mais uma vez, do que os psicanalistas conheciam há
muito tempo (Masi, 2000; Migone e Liotti, 1998). Winnicott merece destaque especial no que se refere à comunicação holística nas relações mãebebê, analista-analisando e no convívio das pessoas em geral; o clima
transicional e compartilhado propicia a compreensão mútua que não se
prende à comunicação verbal, mas transcorre por vias paraverbais,
extraverbais, gestuais, comportamentais, além de outras mais sutis, talvez
do tipo chamado telepático, na falta de uma explicação e denominação
melhor (Doin, 1983). Parece que as hipóteses de Freud sobre a comunicação através de ondas, ou de Inconsciente a Inconsciente, ou a transferência
de pensamentos (l933-1932) podem encontrar algum apoio no que agora
se sabe sobre o funcionamento neurológico e mental. A percepção de imagens resulta da sincronia e sintonia de disparos elétricos em grupos de
neurônios corticais ativados por estímulos sensoriais, provindos do mesmo objeto (Pally, 1997b). Quer dizer, além da comunicação direta através
dos neurônios, neurotransmissores e hormônios, existe outra, indireta, à
distância, motivada pela simultaneidade e igualdade de freqüência de descargas elétricas, mesmo quando se passa entre os dois hemisférios cerebrais. Parece, então, possível conjeturar que algo semelhante se verifique
de um cérebro para outro.
Considerando que o hemisfério cerebral direito se desenvolve mais
rápido do que o esquerdo (Pally, 1998b), a comunicação não verbal predomina no primeiro ano e continua como recurso básico durante a vida inteira, especialmente na transmissão e recepção de mensagens guestálticas,
mais afetivas, intuitivas, musicais, conjunturais. Nossa cultura funciona
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Verdadeiro e Falso Self
Do que ficou exposto se depreende que a constituição do senso de eu
ou self, tarefa interminável de cada pessoa, se processa sobre um substrato
corporal e, em seguida, corporal-mental, a partir de vivências
crescentemente mais complexas, integradas e diversificadas. Vão se organizando representações de si mesmo, ou self, sempre articuladas a de outros. Em decorrência de funções mentais mais evoluídas, tais concepções
de si próprio se acompanham de outras, mais elaboradas intelectualmente
– umas se mantêm bem próximas das vivências pessoais fundamentais,
outras procuram absolutizar a existência do indivíduo, enquanto outras pretendem retirar do self toda a sua consistência e transformá-lo em ficção ou
ilusão, renegando a substancialidade fundamental do sujeito da
interioridade somatopsíquica.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81
Carlos Doin
predominantemente de acordo com a lógica aristotélica, em que predomina o pensamento verbal, analítico, conceitual, discursivo, racional, correspondente a funções atribuídas ao hemisfério esquerdo; e tende a abafar as
do hemisfério direito, vinculadas à criatividade, à originalidade artística, à
intuição, aos segundos significados. Creio que a comunicação transicional
no sentido winnicottiano, válida para todos os diálogos afetivo-cognitivos
bem entrosados, bem como a atenção flutuante e a livre associação recomendadas na situação analítica, passem pela revalorização das atividades
do hemisfério direito.
Wilma Bucci (1997) propôs um método de análise psicolingüística de
conversações e de textos, inclusive das falas nas sessões psicanalíticas,
tomando por base os três códigos de comunicação: subsimbólico pré-verbal (sensações, emoções, sentimentos), simbólico pré-verbal (imagens) e
simbólico verbal. Eles correspondem a níveis diferentes da evolução
neuromental e continuam funcionando mais ou menos integradamente,
durante toda a vida. Seu modelo é compatível com o dos referenciais que
mencionamos antes e com a comunicação abrangente, conceituada por
Winnicott..
WINNICOTT
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TRANSICIONAL
Ao estudar o psiquismo primitivo em desenvolvimento, Winnicott
(1958) estabeleceu noções que encontram respaldo na Neurociência
Cognitiva afinada como a Psicanálise sobre as bases senso-emocionais da
representação de eu, o sentimento de existir em continuidade, o prazer de
viver em harmonia e individualização crescentes, com aquela mãe, naquele mundo, onde se sente bem e bom, dentro duma faixa de segurança suficientemente garantida. Claro que, de início, nada é assim pensado, muito
menos dito, mas vivido e sentido de imediato, como natural e verdadeiro,
numa imanência que é também transcendência vital de algo de dentro que
também vem de fora. A linguagem do paradoxo, tipicamente winnicottiana,
procura dar conta dum sujeito que se configura como peculiarmente essencial e transicional, uno e múltiplo, em transformações constantes; como
unidade em continuidade que se origina na filogênese e na ontogênese
somatopsíquica, que é singular mas precisa ter sua integração e
especificidade promovida, confirmada e completada pelo meio ambiental
humano e físico, num jogo interativo interminável
Dentro de uma faixa considerada normal para aquele indivíduo, naquela cultura, se estabelece um verdadeiro self suficientemente verdadeiro, para utilizar a afortunada expressão pragmática de Winnicott. Diga-se
de passagem que mais um dos motivos do sucesso permanente de
Winnicott (acentuado no pensamento pragmático pós-moderno e condizente com as linhas da Neurociência Cognitiva aqui esboçadas), consiste
na sua valorização das condições reais da existência, daquilo que efetivamente funciona na vida cotidiana das pessoas e grupos, como seja a mãe
suficientemente boa, capaz de promover o desenvolvimento suficientemente normal da individualidade suficientemente verdadeira daquela
criança singular. Penso que Winnicott, não se pretendendo como filósofo
de profissão, intuiu que, afinal, pragmática é a vida, pois que a vida é feita
pela vida e para a vida, e não para as construções intelectuais dos sábios.
Quando não se conseguem tais condições de suficiência, ocorre um
falso self, com características e gradações próprias, em cada caso. O padrão geral de evolução, descrito até aqui, supõe a formação normal de uma
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Percepção, Memória, Mundo Interno e Virtualização
A percepção não espelha fielmente o mundo, nem a memória resgata
o passado como ocorrido. (Pally, 1997c). A Neurociência Cognitiva vem
confirmar, com outros argumentos, essas noções nada novas. A
estruturação e o funcionamento das redes de neurônios, base orgânica do
psiquismo, sua complexidade conectiva, plasticidade, redundância,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 83
Carlos Doin
individualidade inteira, mas como sabemos, os processos de não integração
ou de dissociação são bastante freqüentes. A normalidade também se situa
numa faixa de variações comedidas. Há momentos e graus de falso self na
maioria de pessoas, conforme os winnicottianos descrevem. À luz da
Neurociência Cognitiva se pode pensar que a maternagem insatisfatória
tenha impedido o desenvolvimento mais conveniente daquele indivíduo, a
partir da própria expressão fenotípica do seu genoma, forçando direções e
cronologias que, embora possíveis em função da plasticidade dos processos vitais, acarretam prejuízos mais ou menos desastrosos ao que seria
mais autêntico e endogenamente mais natural para aquele ser em particular; isso ocorre, por exemplo, quando a mãe exige prematuramente o controle do medo, antes que os dispositivos neuromentais ligados ao
hipocampo e ao córtex cerebral estejam suficientemente amadurecidos.
Considero indispensável a conceituação de falso self inicial de
Winnicott, aquele que se instala precocemente por falha da maternagem
primária. O dano que aí se produz é incomparavelmente maior, por lesar as
próprias bases anatomofisiológicas somatopsíquicas, como se procurou
explicar acima. Mesmo que a plasticidade desses processos permita alguma correção posterior, ela dificilmente será completa, dada a inclinação
conservadora dessas estruturas, tendentes a perpetuar os dispositivos e programas originários, os “defeitos de fábrica”. Quanto a outras conceituações
de falso falso, em que pese toda a sua eventual serventia, creio que não
deveriam obscurecer a especificidade e a gravidade do falso self primitivo,
o verdadeiro falso self, como já foi denominado, em oposição aos posteriores, ditos falsos falsos selves.
WINNICOTT
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TRANSICIONAL
alternância e suplência permitem compreender a inviabilidade de uma imagem única para um objeto, ou de uma só versão para um fato. Nossa mente,
como detentora de disposições virtuais, cria representações e soluções imprevistas, alternantes, ambíguas, a serem discriminadas pelas faculdades
mais sofisticadas, com maior ou menor sucesso. Pode-se considerar todo o
psiquismo como um acervo imenso de virtualidades, as quais são capazes
de se atualizar numa infinidade de expressões, como lembranças, sentimentos, imagens, falas, narrativas, sonhos... Além disso, nossas estruturas
neuropsíquicas possuem a capacidade de autoprogramar-se, de se modificar até certo ponto, talvez mesmo de se reaparelhar anatomo-fisiologicamente, para atender a novas exigências pessoais e ambientais, a novos contextos existenciais. Nossa mente preenche o mundo de intencionalidade,
referências objetais, afetos, símbolos, significados, intenções, denotações
e conotações, etc. Em tal riqueza incomparável de recursos se baseiam os
que distinguem radicalmente entre a mente humana e os computadores,
afastando a possibilidade de se criar uma inteligência artificial equiparável
à nossa. No campo contrário, estão os que acreditam que os avanços da
Neurociência Cognitiva, da tecnologia e da Matemática farão surgir os
“andróides”.
Fenômeno Transicional e Realidade Virtual no Ciberespaço
Pierre Lévy chama nossa atenção para a nova cultura lançada pelos
meios de comunicação eletrônica, suas perspectivas ilimitadas de evolução, os benefícios culturais que pode promover, ao lado dos riscos de eliminação dos contatos pessoais diretos, de perda dos valores tradicionais,
de desumanização. Sem desconsiderarmos a dimensão sociológica e antropológica da nova situação, a realidade virtual do ciberespaço está a convocar nosso interesse de psicanalistas para novos tipos de comunicação e
relacionamentos à distância. Vale ainda lembrar que toda esta revolução se
iniciou com modestos ábacos, com maquinetas de calcular, sucedidas por
computadores que foram se conectando em redes mundiais. Tão longe podemos seguir, pelos caminhos infindáveis da transicionalidade e da
84
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sinopse
O autor examina a sempre presente importância de certas idéias de Winnicott
à luz dos conceitos de virtualidade e transicionalidade, bem como de algumas
contribuições recentes da Neurociência Cognitiva em sua interface com a Psicanálise.
Summary
The ever present importance of certain ideas of Winnicott is examined in the
light of the concepts of virtuality and transitionality, as well as in reference to
some recent contributions from Cognitive Neuroscience in its interface with
Psychoanalysis.
Resumen
El autor examina la siempre presente importancia de ciertas ideas de Winnicott
a la luz de los conceptos de virtualidad y transicionalidad, bien como de algunas
contribuciones recientes de la Neurociencia Cognitiva en su interface con el Psicoanálisis.
Palavras-chave
Virtualidade; Atualidade; Transicionalidade; Neurociência Cognitiva.
Key-words
Virtuality; Actuality; Transitionality; Cognitive Neuroscience.
Palabras-llave
Virtualidad; Actualidad; Transicionalidad; Neurociencia Cognitiva.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 85
Carlos Doin
virtualização-atualização.
Como bom assunto transicional (e algum não é?), as faces das
interfaces não se esgotam. Fiquemos hoje por aqui, para prosseguir mais
adiante.
WINNICOTT
E
NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL
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TRANSICIONAL
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86
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Artigo
Versão modificada do trabalho apresentado no IX Encontro
Latino-Americano sobre o Pensamento de D.W. Winnicott,
no Rio de Janeiro, de 20 a 22 de outubro de 2000.
Dr. Carlos Doin
Rua Anfilófio de Carvalho, 29 – sala 405
(Castelo)
20030-060 Rio de Janeiro – RJ – Brasil
Fone/Fax: (0xx21) 551-2454
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 87
Carlos Doin
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WINNICOTT
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NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL
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TRANSICIONAL
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Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Claudia Lucía
Borensztejn
Membro Titular com Atividade
Didática da Associação
Psicanalítica Argentina
O método de observação de bebês oferece ao observador a oportunidade de colocar-se em contato
com estados emocionais primitivos
do bebê, sua família e sua própria
resposta a eles.
O lugar que esta experiência
ocupa na formação do psicanalista
é o principal motivo desta conversa.
Esta técnica particular de estudar bebês foi criada por Esther Bick
no pós-guerra, quando o treinamento na análise de crianças não estava
desenvolvido.
Esther Bick (Polônia 1901 –
Inglaterra 1983) estudou Psicologia
em Viena, com Charlotte Bühler,
com quem realizou estudos sobre
Desenvolvimento Infantil. Durante
uma pesquisa que realizou com gê-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 89
Claudia Lucía Borensztejn
A Importância
da Observação
de Bebês para
a Formação de
Psicanalistas
A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS
PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS
meos, chegou à conclusão de que, “para entender o desenvolvimento da
personalidade humana, sem estar regido por todas as teorias atuais (...)
devia estudar o cotidiano de um bebê no seu ambiente familiar”1.
Quando começou a Segunda Guerra Mundial, refugiou-se na Inglaterra, onde completou a formação psicanalítica na Sociedade local. Posteriormente, trabalhou na Tavistock Clinic e, a convite do Dr. John Bowlby, começou a dar seminários sobre formação de psicoterapeutas. Então, surgiu
a oportunidade de colocar em prática a conclusão a que havia chegado,
durante a pesquisa em Viena, e, em 1948, incluiu no curriculum da formação de psicoterapeutas de crianças na Tavistock o seminário de observação
de crianças. Em 1960, esse seminário passou a acontecer no Instituto de
Psicanálise de Londres.
O método consiste em realizar, regularmente, visitas semanais, com
duração de uma hora, durante os dois primeiros anos de vida de uma criança. Durante esta visita, não são feitas anotações. Somente doze horas após
é feita a reconstituição daquilo que foi observado, tratando de consignar
tudo com o maior detalhe possível, sem realizar interferências, nem especulações, mas, sim, colocando o acento na detecção das reações pessoais.
Para discutir as observações, uma reunião semanal é realizada, em um seminário de uma hora e meia, com um coordenador.
O objetivo do seminário da observação é explorar os acontecimentos
emocionais entre mãe e bebê e o que os rodeia, incluindo as reações emocionais do observador, e tentar entender os padrões inconscientes de conduta e comunicação.
Muitos observadores sentem que adquirem um real entendimento do
bebê partindo de dentro e são capazes, não somente, de causar empatia
com ele e reconhecer seus padrões de relações objetais, mas, também, de
fornecer a eles uma compreensão do desenvolvimento. O observador se
enriquece ao aprender a familiarizar-se com o conhecimento de suas rea1. Magagna, Jeanne (1987). Three years of infant observation with Mrs. Bick. Journal of Child
Psychotherapy, n.13, p.19-39. Tradução em espanhol: Tres años de observación de bebés con la
señora Bick. Psicanálise [Revista da APdeBA], v.XIX, 1-2, p.197-226, 1997.
90
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 91
Claudia Lucía Borensztejn
ções pessoais às observações, o descobrir como alguém encontra um lugar
na família, as identificações com seus diferentes membros em diferentes
momentos, a resposta para a ansiedade e para o desvelar e a exposição a
problemas pessoais como conseqüência das observações. Tudo isso constitui um valioso treinamento para o posterior entendimento e manuseio das
situações de transferência e contratransferência na tarefa clínica.
O setting da observação é não-clínico; o observador deve manter uma
atitude confiável, não-intrusiva, amistosa e atenta, e é uma boa oportunidade para descobrir sua aptidão para o trabalho clínico. A exposição a sentimentos intensos, o impacto de sentir-se atraído para um campo emocional
de forças, lutando para manter a própria estabilidade e o sentido dele próprio, o encontro com a confusão e o poder da vida emocional do bebê são
aspectos valiosos do treinamento psicoterapêutico.
Esses aspectos da aprendizagem estão ligados com o que Bion diferencia ao aprender alguma coisa como experiência intelectual e aprendendo da experiência, que leva a um tipo de conhecimento em contato com a
essência de algo ou de alguém que envolve profundidade emocional.
O trabalho, no seminário, é essencial para o gradual conhecimento
das situações de transferência e contratransferência.
Os observadores apresentam-se aos pais como pessoas interessadas
no desenvolvimento de bebês no seu ambiente familiar, e, desejando realizar a observação como parte de um treinamento profissional, em conexão
com o estudo das crianças, evitam-se qualquer referência a terapia ou saúde mental, colocando a ênfase nas relações da criança, no crescimento de
suas capacidades e no desejo de vê-la no seu meio com a menor alteração
possível na vida cotidiana da família.
Sem dúvida, a família e, especialmente, a mãe pode imaginar o observador como um especialista em crianças, imbuído de um conhecimento
especial, que pode lhe ensinar sobre os acontecimentos da vida prática, em
especial, relacionado ao cuidado de seu bebê. A troca, no seminário, é fundamental para alertar os observadores sobre a posição que ocupam na família, baseada não somente na realista percepção da mãe, mas também nas
A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS
PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS
necessidades oriundas do seu mundo interno. Eles são aconselhados a não
dar informação a respeito de si próprios, além da necessária, e de situaremse o mais comodamente possível como receptor-escuta, atentos e interessados, não como alvo passivo. Seu papel desenvolve-se através do tempo,
enquanto o bebê cresce, já que toma suas iniciativas de aproximar-se, brincar e, inclusive, conversar com ele.
Freqüentemente, os observadores estão preocupados com o potencial
intrusivo do setting observacional comprometido na relação de grande intimidade mãe-bebê, em momentos de grande vulnerabilidade de ambos.
Sua posição de observação exclui a atividade que é esperada dos adultos,
normalmente na presença de um bebê, e essa abstinência deixa um espaço
onde as sensações do bebê têm um impacto muito intenso. Identifica-se de
forma alternada com o bebê, com a mãe ou com outros integrantes do ambiente familiar (a empregada, a avó, até algum animal doméstico, etc.).
No seminário de discussão grupal, as ansiedades voyeurísticas tomam
a forma de críticas ao método, aos pais, e, especialmente, à mãe. O seminário deve ajudar a realizar um detalhado processo de pensamento e elaboração para resistir às tendências ao acting out, já que o self infantil do observador é dolorosamente estimulado pela observação da dupla mãe-bebê.
Pode sentir-se tomado por sentimentos de ser uma rival da mãe, um irmão
deslocado, uma avó benevolente ou um terceiro excluído. Memórias de
sentimentos inconscientes de sua própria experiência de bebê, ou temores
e desejos sobre si próprio como mãe ou pai, atual ou potencial, podem ser
suscitados. A posição do observador masculino é especialmente delicada.
Esse tipo de preocupação surge do significado inconsciente da utilização dos olhos, que podem ser sentidos como usados com benevolência,
interesse e sinceridade, ou instrumentos de ataque, projeção de sentimentos negativos de inveja, intrusão, além daquilo que é oferecido para a observação (como espiar através do olho da fechadura) ou distorção perversa
daquilo que se observa (como espelhos que deformam).
Através dos detalhes práticos das observações de como apresentar-se,
quando sentar-se, aceitar uma xícara de chá, como relacionar-se com ou92
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 93
Claudia Lucía Borensztejn
tras pessoas, como ir embora, o quanto falar, responder perguntas pessoais,
etc., através de tudo isso, adquire-se um incalculável treinamento para os
contatos formais e sociais de uma relação que, como a relação psicanalítica, está afetada pela regra de abstinência.
Existem outras questões relacionadas com o desenvolvimento de expectativas da mãe de contar com a ajuda de uma qualificada baby sitter, e
outras situações problemáticas, como a detecção de patologia severa ou
abuso infantil, questões extremas que devem ser tratadas e discutidas para
a avaliação de outro tipo de intervenção.
A ausência do recurso interpretativo obriga a um tratamento muito
cuidadoso com as mudanças de horário, cancelamentos, férias, com um
atendimento particular a toda reação de separação, que pode gerar interrupções imprevistas e frustrantes da experiência. Podemos destacar, através das discussões nos seminários, as reações transferenciais, que devem
ser elucidadas, dos elementos contratransferenciais, os quais incluem, tanto as reações pessoais inconscientes do observador, quanto os estados emocionais que parecem estar determinados pelas projeções dos membros da
família.
Quando os sentimentos envolvidos são muito intensos e, provavelmente, comunicados sobre uma base pré-verbal, o trabalho sobre a transferência/contratransferência é fundamental e é um valioso aporte para a formação do terapeuta, que inclui sua sensibilização às maneiras de conexão
infantil: a percepção da Identificação Projetiva, a compreensão da linguagem corporal. O esforço em encontrar uma linguagem adequada para descrever essas experiências pré-lingüísticas é de grande ajuda para comunicar-se, mais tarde, com crianças pequenas, assim como para descrever os
aspectos primitivos dos adultos, estados mentais regressivos,
psicossomáticos ou relacionar-se com pacientes silenciosos.
A mais valiosa contribuição cabe à formação da atitude psicanalítica,
algo que se conecta com o conceito de reverie descrito por Bion para a
compreensão da comunicação primitiva do bebê, o reconhecimento e a
contenção dos seus estados emocionais, algo que deve ser qualidade de um
A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS
PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS
observador e de um terapeuta. Isto requer o desenvolvimento de um espaço mental, onde os pensamentos comecem a tomar forma, e as experiências confusas possam ser contidas no estado caótico, no qual são recebidas,
até que seu significado se esclareça. Esse espaço mental requer o desenvolvimento da capacidade para tolerar a ansiedade, incerteza, desconforto,
revelação e o sentimento de ser bombardeado. É o equipamento pessoal
para revelar um psicanalista.
Dissemos como deve apresentar-se o observador, a arrumação do enquadre observacional e sua situação durante a hora em que a mesma transcorre, na qual deve prestar atenção a todos os detalhes, tratando de dirigir o
foco especialmente ao bebê, sua conduta e registrar sua própria
contratransferência.
Sobre o registro das observações, os observadores devem adotar um
estilo natural, do dia-a-dia, literal e de fatos, sem terminologia psicanalítica. O objetivo da observação de bebês é fornecer material da experiência
pessoal, que possa ser pensada, no que se refere a seu significado emocional. É importante que seja transmitida, o mais diretamente possível, ao
seminário, evitando codificá-la prematuramente em interpretações teóricas ou categorias. Devem conter detalhes das atividades do bebê, registros
das conversas que são produzidas e uma descrição, o mais sensível possível, dos sentimentos dos participantes, incluído o próprio observador. Isso
é um elemento diferencial do método de E. Bick, e é o que permitiria
denominá-lo de método de observação psicanalítica. Diferencia-se de outros métodos de observação direta, “objetiva”, com vídeos, etc., onde a
compreensão pode ser psicanalítica, mas não a própria observação. Foi
comprovado que esse registro de observações, o mais despojado possível
de interpretações, ajuda a liberar a percepção do observador, e, logo após,
este percebe que registrou muito mais do que acreditava. Com o tempo, as
observações escritas tendem a ser feitas cada vez mais completas e em
uma linguagem cada vez mais literária.
Na discussão grupal, muitas vezes, é possível ver como a situação
parece diferente daquilo que tinha sido pensado no momento de realizá-la
94
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 95
Claudia Lucía Borensztejn
e, mais tarde, ao registrá-la. Teorizar em um momento prematuro é mais
uma defesa contra a dor da experiência emocional ou a dor da ignorância.
Esse é um alerta para um posterior manejo interpretativo nas sessões.
As observações têm como objetivo seguir o desenvolvimento de um
bebê no seu ambiente natural, sem selecionar atributos de conduta específicos, habilidades cognitivas, etc., como em outro tipo de métodos
observacionais.
Este método de observação psicanalítica requer que os observadores
tenham em mente um leque de concepções e expectativas latentes pelas
quais possam dar coerência e forma à experiência e, ao mesmo tempo,
permanecerem abertos e receptivos às situações às quais estão expostos.
Não podem saber, com antecedência, qual das suas concepções encontrará
aplicação prática, nem qual das suas pré-concepções irá adequar-se; podem ser confrontados com situações que, ao menos inicialmente, ficam
fora da sua capacidade de compreendê-las e devem esperar que as observações continuem se desenvolvendo. Devem estar preparados para responder a situações novas nas famílias e neles mesmos.
Não há dúvida de que os observadores podem ter um papel importante
nas vidas das famílias que visitam, benéfico na medida em que são uma
presença confiável que somente quer dedicar um tempo de atenção à relação de um bebê com sua mãe, que permite a esta dedicar um tempo para
pensar seu bebê e dar uma parada no meio das demandas práticas e emocionais. Ela se identifica com o interesse do observador, e este lhe é útil
para encontrar um equilíbrio entre as necessidades engolfantes do bebê e
suas defesas de afastar-se a uma distância segura, às vezes, ao custo do
bebê.
Também vimos como, às vezes, o mesmo bebê introjeta esta função
de observação. É comum ver como, às vezes, somos nós os observados,
tanto pela mãe, quanto pelo bebê.
A tarefa de relacionar o nível descritivo e particular da observação
com termos mais teóricos e abstratos ocorre durante o seminário, onde o
material é explorado e digerido. Pensamos sobre os estados subjetivos da
A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS
PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS
mente como possíveis registros de estados de sentimentos, em uma relação
observada, e a discussão no seminário deve ser vista como uma extensão
do processo de observação, não como um método de ensino. Essas discussões, com freqüência, levam-nos a lembrar e a entender aspectos que não
haviam sido notados antes da observação, cujo significado havia escapado
ou que havia sido suprimido da consciência.
É neste sentido que propusemos, em um trabalho no Rio de Janeiro,
no International Meeting of Baby Observate, a existência de um campo
observacional que abrange, temporariamente, desde o momento da observação, passando pelo registro, até a discussão grupal, e inclui também as
sessões da própria análise.
O conceito de contratransferência adquire uma especial relevância
nessa situação. Aquilo que havia sido entendido como distorção do trabalho analítico foi, mais tarde, visto como recurso especial para a compreensão de estados mentais primitivos em análise, análogos, em determinados
aspectos, à comunicação de sentimentos entre o bebê e sua mãe, nos primeiros meses de vida. O papel do observador tão ativo, no que se refere a
pensamento, quão passivo, frente à descarga, através do recurso
interpretativo, dá oportunidade de um intenso treinamento para a clínica.
O foco na dimensão emocional da experiência é o diferencial do approach
psicanalítico, o que requer um treinamento em auto-análise e sensibilidade
perante a comunicação implícita ou inconsciente, o que é uma fonte de
compreensão muito frutífera. Com o Método de Observação de Bebês, que
é intensivo, não extensivo, não é possível realizar estudos comparativos
sobre o desenvolvimento. Seu maior potencial está na possibilidade de gerar novas hipóteses, e seu alcance consiste na profundidade da análise, e
não na quantidade. Assim como na prática da Psicanálise, este trabalho
pertence ao contexto do descobrimento mais do que ao da validação, em
parte, por razões metodológicas e, em parte, por uma crescente preferência
pelos modelos baseados no significado subjetivo, mais que por modelos de
relação causal. Porém, existe uma tendência atual de adaptar este modelo a
propósitos de pesquisa, terapêuticos e preventivos, por ser interessante e
96
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97
Claudia Lucía Borensztejn
valioso e dar lugar a múltiplos desenvolvimentos, mas não posso discutir
estes aspectos neste espaço.
Estamos interessados na linha que (seguindo a Meltzer) relaciona os
métodos da observação de bebês com o mais amplo campo das ciências
humanas, que diverge dos métodos que os empiristas críticos da Psicanálise usualmente reconhecem como válidos. Mas existem, também, atributos
deste trabalho que são compartilhados com a literatura imaginativa. A
imersão de um observador no estudo de uma relação, durante dois anos,
sua descrição narrativa, a mediação da sua experiência através da sua própria sensibilidade têm algo em comum com o modo pelo qual os escritores
de ficção ou biógrafos trabalham. Com a observação de bebês, tanto quanto com romances, os leitores estão implicitamente convidados a confirmar
a veracidade das representações com referência a sua experiência pessoal,
e não com os descobrimentos publicados, da Psicologia. Embora os casos
estudados não sejam ficções, os que se comprometem com essa tarefa devem alcançar um alto standard de agudeza literária e correspondência com
os fatos. Todas as ciências humanas dependem de um ponto de vista específico, de um marco definido que seleciona aspectos do mundo para seu
estudo sistemático. Esta seletividade de interesses é totalmente compatível
com as normas de consistência lógica e exatidão empírica na aplicação de
teorias e conceitos à experiência. A sutileza e a delicadeza de representações dos estados emocionais e mentais, em uma boa e imaginativa escritura, são necessárias para determinados tipos de pesquisa nas ciências humanas, não oposta a ela. O estudo de um caso como Freud mostrou requer
pesquisadores capazes de compreender e representar o estado mental de
um indivíduo complexo como um escritor o faria.
O método de observação de bebês provavelmente nunca terá a fertilidade teórica dos estudos clínicos, mas tem algumas virtudes. Como o observador deve manter uma atitude passiva e não intrusiva, sua presença
não é muito diferente da de outro visitante, alheio à família. Os fatos da
observação reportados em termos simples o fazem acessíveis a pessoas
não tão experientes em Psicanálise. Suas descrições e as suposições obti-
A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS
PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS
das delas, mesmo que menos elaboradas teoricamente, podem ser mais
fáceis de discutir do que as complexas construções dos relatórios clínicos.
Nesse sentido, estamos mais livres para a utilização de modelos, com maior flexibilidade de confirmação e/ou descarte, sem necessidade de modificar as teorias em curso. Os sentimentos transferenciais detectados na relação da mãe com o observador e as reações contratransferenciais do observador com a mãe e o bebê são estados mentais, muito reconhecíveis, da
vida cotidiana. Portanto, fornecem evidência recente e independente dos
processos emocionais postulados pela Psicanálise.
O método da observação psicanalítica de bebês tem muitas e potenciais aplicações em enquadramentos de saúde, educação, assistência social
e pesquisa. Mas, o núcleo desta aproximação e seu valor mais intenso como
experiência de aprendizagem, para os analistas, está no efeito que tem sobre a formação e o desenvolvimento da função psicanalítica da personalidade, o que leva o analista a incrementar sua função terapêutica, e, se chegar a ser um bom observador, tem muitas possibilidades de vir a ser um
bom psicanalista.
Apresentação da Autora
Médica, psicanalista, membro titular com função didática da Associação Psicanalítica Argentina. Professora do Instituto de Psicanálise da APA,
onde atualmente coordena um seminário de observação de bebês, com o
método de Esther Bick. Especialista em crianças e adolescentes, tem-se
interessado por temas diversos como o jogo em psicanálise de crianças, o
trabalho em escolas com crianças deficientes, o travestismo, que foram
apresentados em Congressos Regionais e Internacionais, e/ou publicados
na Revista de Psicanálise da APA. Desde 1992 trabalha em contato com as
idéias do Dr. Meltzer, supervisionando com ele, o tratamento de um jovem
autista. Um fragmento deste caso clínico foi apresentado no Congresso de
Barcelona em 1997 e publicado na revista da APA com o titulo “A Função
da Atenção do Analista”. Este trabalho e as conversações periódicas do Dr.
98
Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Palavras-chave
Observação de bebês; Método Esther Bick; Formação do analista; Método
psicanalítico.
Key-words
Baby observation; Esther Bick method; Psychoanalytical method.
Palavras-llave
Observación de bebés; Método Esther Bick; Formación del analista; Método psicoanalítico.
Ensaio
Trabalho apresentado na SBPdePA no dia 01 de Julho de 2000
Convidada Especial do Seminário Optativo da Infância e
Adolescência da SBPdePA
Tradução do original espanhol: Traduzca.
Revisão da tradução: Dra. Vera D. M. Chem
Dra. Claudia Lucía Borensztejn
Uruguay 1061, 2º “43”
1015 Buenos Aires – Argentina
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 99
Claudia Lucía Borensztejn
Meltzer em Oxford, em Buenos Aires e por correspondência, foram
determinantes para considerar a prática da observação de bebês como fonte de muito valor na formação do psicanalista. Escreveu em colaboração
vários trabalhos sobre o tema que serão proximamente reunidos em um
livro. Atualmente desempenha a função de secretária da Revista de Psicanálise da APA.
Encaminhar: mostrar o caminho a, guiar, conduzir,
orientar, dirigir, pôr no bom
caminho, aconselhar para o
bem, tender para um fim.
(Ferreira, 1975)
Fernando Kunzler
Membro Convidado da Sociedade
Brasileira de Psicanálise de Porto
Alegre, Membro Associado da
Associação Psicanalítica Argentina
e Membro Titular da Sociedade
Psicanalítica de Porto Alegre
Renato Trachtenberg
Membro Titular da Associação
Psicanalítica de Buenos Aires e da
Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre
Um paciente nos chega de muitas formas, mas sempre requerendo
a presença de um outro alguém que
faça o elo. Esse outro, tão essencial,
às vezes parece “desaparecer”, nem
bem uma análise começa. Mas será
realmente assim? Pensar psicanaliticamente o encaminhamento e a figura do encaminhador supõe alguns
passos que nos levam muito além
do manifesto. Essa personagem
fundamental tão presente/ausente,
pré-condição de qualquer análise,
deveria merecer um pouco mais da
nossa atenção, em lugar de simples-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 101
Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg
Encaminhando o
Encaminhamento
ENCAMINHANDO
O
ENCAMINHAMENTO
mente deixá-la do outro lado da porta de nossas reflexões, “agora que já
cumpriu o seu papel”.
Nestes tempos sombrios onde a Psicanálise, como terapêutica, é combatida em várias frentes, com óbvia repercussão nos encaminhamentos,
nos pareceu oportuno incluir o próprio encaminhamento como um objeto
de estudo abordável pela Psicanálise.
A história dos encaminhamentos poderia ser uma forma de contar a
própria história da Psicanálise, simultaneamente determinada e
determinante. O que seria dela sem suas Doras, Hans, Homens dos Lobos
e dos Ratos e todas as suas maravilhosas histéricas? Por outro lado, sabemos muito bem até que ponto se refletiram e se refletem, nos encaminhamentos, as diferentes crises teóricas e/ou técnicas que a Psicanálise (como
toda ciência) sempre atravessou. Neste mesmo sentido podemos falar da
relação dialética que se estabelece entre os encaminhamentos e a Psicanálise que cada analista pratica em seu consultório.
“Não tenho dúvida de que esse incidente [proposta amorosa do
Sr. K. a Dora, durante caminhada pelo lago] é responsável pelo abatimento, irritabilidade e idéias suicidas de Dora. Ela vive insistindo em
que eu rompa relações com o Sr. K., e em particular com a Sra. K., a
quem, antes, positivamente venerava. (...) Seu último ataque ocorreu
depois de uma conversa em que ela tornou a me fazer a mesma exigência [de romper com os K.]. Por favor, tente agora colocá-la no
bom caminho”1 (1905, p.24-25).
Quando, há exatamente cem anos, o pai de Dora usa essas palavras
para encaminhá-la a Freud (depois de ele mesmo ter sido seu paciente),
termina escolhendo, entre as várias acepções do termo, encaminhar aquela
que exerce a maior pressão sobre o receptor do encaminhamento. Isso se
agrava ainda mais se lembramos a presença do Sr. K. no momento do enca-
1. O grifo é dos autores.
102 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
2. Devemos ressaltar, contudo, que todo encaminhamento implica algum grau de pressão sobre o
próprio encaminhador, por um lado, e, especialmente, sobre o analista, por outro. Um dos elementos fundamentais de dita pressão são as fantasias de dívida e expectativas de retribuição consciente ou inconscientemente presentes em ambos. Isso é mais intenso quando o paciente e/ou o
encaminhador tem para o futuro analista algum significado especial. Quando o encaminhamento é
feito para “ajudar” o analista (necessidade de trabalho, supervisões didáticas, etc.), as fantasias e
expectativas citadas também aumentam consideravelmente. O paciente como “moeda de troca”
gera, muitas vezes, uma vivência de culpa nem sempre de fácil elaboração.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 103
Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg
minhamento2. Pode-se vislumbrar com bastante claridade como a figura
desse encaminhador vai-se constituindo, cada vez mais, em um ingrediente de primeira linha na relação transferencial e em seu desenlace, o acting
out final.
Desde essa perspectiva, Dora debuta na relação transferencial com a
fantasia de adjudicar a Freud a intenção de lograr cumprir “os desígnios”
do pai; em outros termos, que fosse convencida – através da psicanálise –
de deixar o pai prosseguir em paz suas relações amorosas com a Sra. K
.(constituindo-se esta idéia no conteúdo de uma verdadeira fantasia inconsciente de tratamento). O devir fará que esta idéia se constitua numa das
origens do sentimento de Dora por ser tratada como um objeto, não só pelo
pai, como pelo próprio Freud.
Vamos assistir à presença do encaminhador como um dos
condicionantes do desejo, impregnando o começo do processo psicanalítico, embora este fator adquira sua verdadeira significação nas vicissitudes
do vínculo transferencial e seu desenlace. Nesse caso clínico, Freud não
parece perceber com claridade a magnitude de sua localização como pólo
de projeções, desde seu vínculo prévio com o pai de Dora. Não descobriu
ainda o imenso poder da transferência; não está, todavia, preocupado,
como estará, poucos anos depois, com respeito à questão dos vínculos prévios entre o paciente e o analista.
Nosso objetivo não é o estudo exaustivo dos encaminhamentos dos
pacientes de Freud, mas usar o exemplo de Dora como ilustração de como
as questões vinculadas ao encaminhamento estão na origem dos diferentes
desenlaces dos processos analíticos e como esses mesmos desenlaces irão
ENCAMINHANDO
O
ENCAMINHAMENTO
retroalimentar, positiva ou negativamente, os novos encaminhamentos.
Em primeiro lugar, o encaminhador, na maior parte dos casos, pode
ser facilmente localizado em alguém que, a pedido do paciente, ou por
iniciativa própria, termina por cumprir uma função que incidirá, inevitavelmente, sobre o que virá a seguir. Entretanto, nem sempre podemos detectar quem é o agente do encaminhamento. No caso de Dora, por exemplo, teria sido seu próprio pai ou o Sr. K. quem, ao fazer a indicação e
também o acompanhando (o pai de Dora) quando da consulta a Freud, se
transforma no verdadeiro encaminhador? Ou foram ambos?3 Ou será o
próprio futuro paciente que nos “escolheu” porque leu algo que escrevemos, nos assistiu em algum evento, lhe parecemos ser alguém familiar, nos
encontrou no elevador e lhe causamos uma boa impressão, ou até mesmo
em função da facilidade de acesso a nossos consultórios? Ou, quem sabe,
em todos esses exemplos citados, somos nós mesmos que, simultaneamente, ocupamos esse duplo lugar de encaminhador e analista?4
O encaminhador funcionaria com um rol paterno e/ou materno (como
objeto das transferências), configurando uma determinada imagem que o
futuro paciente terá de seu futuro analista. O encaminhador, seja quando
toma a iniciativa manifesta do encaminhamento, seja quando é ativamente
buscado pelo paciente, é, em geral, um objeto com forte tendência a ser
idealizado e com tal carga pode ser levado pelo paciente às entrevistas e a
toda primeira etapa de sua análise. Esta confiança no encaminhador pode
chegar a ser um fator de superação da resistência, quando o encontro com
3. Pelas conseqüências que teve o caso, devido às intensas identificações de Freud com o Sr. K. a
ponto de impedi-lo de realizar a inversão dialética faltante (Lacan, 1951), não poderíamos supor
que Lacan teria optado por K. como o verdadeiro encaminhador, detectando que o “bom caminho” enunciado seriam os braços do próprio Sr. K.?
4. Isso sem falar nos casos de reanálise com o mesmo analista ou nas passagens de tratamentos
institucionais para privados com o mesmo analista, onde paciente e analista pareceriam ocupar
também o lugar de encaminhador. Porém, nessas situações, tanto o paciente como o analista estariam se encaminhando para uma análise em que ocorrerá um reencontro com o desconhecido. É
nessa ambigüidade entre continuação e o “muito prazer” de dois desconhecidos que ambos deverão transitar (se bem que desde a teoria da transferência esse desconhecimento deveria ser
relativizado).
104 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 105
Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg
o analista não satisfaz as expectativas ou fantasias prévias. Ao mesmo tempo, poderia ser, em si mesmo, um fator de resistência na análise (da transferência negativa), quando o analista é incluído na idealização do
encaminhador. Por outro lado, as fantasias do paciente sobre as relações
prévias entre o “encaminhador” e o analista podem transformar esse último num objeto de desconfiança e suspicácia.
De todos os modos, as transferências pré-estabelecidas com o nome,
imagem ou características observadas do futuro analista sofrerão um abalo, um estremecimento, uma ruptura, no momento do tão (ou nem tanto)
esperado encontro. Aquele analista que nos foi tão bem recomendado,
aquele simpático do elevador, aquele que nos pareceu tão criativo na apresentação do trabalho, que nos lembrou uma figura familiar, etc., já não é e
jamais será o mesmo. E o encaminhador, continuaria sendo o mesmo?
Denominamos função encaminhante (uma expressão do que Bion
(1962) chamou função psicanalítica da personalidade?) àquela exercida
por diferentes partes do self e objetos internos, atuando em uníssono (identificação introjetiva) com o fim de realizar o encaminhamento (“aconselhar para o bem”) e levando em conta as resistências em realizá-lo. Assim,
aquele que indica o nome do futuro analista é o pólo manifesto de uma
função. Essa pode ser executada pelo próprio sujeito (paciente potencial)
ou por algum outro que se adeqüe como representante da função. Entretanto, é somente na análise (e para isso os sonhos também são a via regia) que
podemos detectar (no melhor dos casos) quem realmente cumpriu ou conduziu a função. Observamos que, muitas vezes, o encaminhador manifesto
não foi aquele que verdadeiramente produziu o encaminhamento.
Consideramos o encaminhamento como um processo composto por
várias etapas que se articulam, de diferentes modos, com as diferentes etapas do processo analítico. A primeira iria desde os primeiros movimentos
buscadores de uma análise até a chegada do paciente, já encaminhado.
Uma segunda etapa poderia coincidir com as entrevistas analíticas. A terceira poderia abranger desde as primeiras sessões até um período extremamente variável, que se encerraria com o início da quarta etapa. Chamamos
ENCAMINHANDO
O
ENCAMINHAMENTO
des-encaminhamento esta última. É somente aqui que o paciente assume
sua função encaminhante e realiza, por primeira vez, a sua verdadeira escolha de analista5. A escolha do analista, como processo, acompanha as
diferentes etapas do encaminhamento, sendo mais frágil quando as transferências são mais poderosas e mais consistente quando os níveis não
transferenciais adquirem maior amplitude (des-encaminhamento). “Contrariando” o pai de Dora, é o momento em que o paciente começa a assumir e a decidir o seu próprio caminho (sua função encaminhante), o seu
próprio desejo, não mais intermediando um desejo que lhe é alheio. Esse
passo implica um luto pelo encaminhador e abre a possibilidade para um
outro luto que não tardará a ser enfrentado: a terminação da análise.
Existe um tempo e um espaço em que os papéis e funções do
encaminhador e receptor do encaminhamento não podem ser estritamente
definidos. É parte dos objetivos de uma análise deslindá-los e, para tanto,
se faz necessário manter uma atenção (flutuante) em relação à presença ou
ausência da figura do encaminhador, durante o processo analítico. Desse
ponto de vista, a chegada do paciente à análise é conseqüência da análise
de sua chegada. Como vimos, essa verdadeira chegada à análise, que pode
levar muitos anos para se concretizar, dialeticamente cria as condições de
seu final. Se não a confundirmos com a chegada formal, estaremos em
melhores condições de promover a própria analisabilidade dos nossos
analisandos. A chegada, assim considerada, marca um momento de passagem de um espaço público para um espaço privado. É claro que, ao falarmos de processo, estamos dizendo também que cada passagem, de certa
forma, se faz presente nas etapas precedentes, mesmo que seja como um
potencial. Apesar disso, pareceu-nos interessante marcarmos esses momentos de privatização, de des-encaminhamento, de chegada à análise.
No outro sentido, por sua localização privilegiada, a situação de encaminhamento faz a ponte entre o espaço (privado) de nossos consultórios e
o espaço público onde a Psicanálise faz seus vínculos com o mundo da
5. Às vezes isso ocorrerá somente depois da terminação da análise. De qualquer modo, será fundamental para o exercício da auto-análise e para o encaminhamento de uma eventual reanálise.
106 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sinopse
Um paciente nos chega de muitas formas, mas sempre requerendo a presença de um outro alguém que faça o elo. Nestes tempos sombrios onde a psicanálise
como terapêutica é combatida em várias frentes, com óbvia repercussão nos encaminhamentos, nos pareceu oportuno incluir o próprio encaminhamento como um
objeto de estudo abordável pela psicanálise. Área transicional que, ao transcorrer
entre o público e o privado de nossos consultórios, nos permitirá observar, de
forma privilegiada, os diferentes níveis em que o intra, o inter e o transubjetivo
vão estruturando as íntimas relações entre a Psicanálise e a Cultura.
Summary
A patient arrives at us under many forms, but always requiring the presence
of someone else to establish a link. In these obscure times, when the Psychoanalysis
is being opposed by many as a therapy and causing an obvious repercussion in the
addressing, it seems suitable to include the addressing itself as a study object,
which may be dealt by the Psychoanalysis. Transitional area, elapsing between
the public and the private of our offices, it will allow us to observe, in a privileged
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 107
Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg
cultura no qual está imersa. Quando saímos (analistas e analisandos), depois de cada dia e depois de cada análise, da intimidade de nossos consultórios, retornamos à dimensão do público, onde o que fizemos ou deixamos de fazer, no domínio do privado, irá, necessariamente, repercutir nos
novos encaminhamentos. Como dissemos no início, esses últimos irão, por
suas características, participar novamente dos diferentes desenlaces analíticos e, portanto, serão determinantes e determinados.
Uma forma de abordar as relações entre a Psicanálise e a Cultura é o
estudo psicanalítico do encaminhamento, elo que nos conecta com as possibilidades renovadas de vitalização da Psicanálise. Deixamos para outros
tempos e outros espaços questões tais como a técnica e a psicopatologia do
encaminhamento. Aqui e agora, o nosso propósito foi o de apenas tentar
colocá-lo “no bom caminho”.
ENCAMINHANDO
O
ENCAMINHAMENTO
manner, the different levels in which the intra, the inter and the transubjective will
structure the close relations between Psychoanalysis and Culture.
Sinopse
Un paciente nos llega de muchas formas, pero siempre requiriendo la presencia de otro alguien que haga el eslabón. En estos tiempos sombríos, donde el
Psicoanálisis como terapéutica se lo combate en varios frentes, con obvia
repercusión en las orientaciones, nos pareció oportuno incluir la propia orientación como un objeto de estudio abordable por el Psicoanálisis. Área transicional
que, al transcurrir entre lo públicio y privado de nuestros consultorios, nos permitirá observar, de forma privilegiada, los diferentes níveles en que el intra, el inter
y el transubjetivo van estructurando las íntimas relaciones entre el Psicoanálisis y
la Cultura.
Palavras-chave
Encaminhamento; Função encaminhante; Des-encaminhar.
Key-words
Guiding; Guide function; To mis-guide.
Palabras-llave
Derivación; Función derivante; Des-derivar.
Bibliografia
BION, W. (1962). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1975.
FREUD, S. (1905). Fragmento de análisis de un caso de histeria. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1978. v.7.
108 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Artigo
Tema Livre apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000,
Gramado, RS, Brasil
Dr. Fernando Kunzler
Rua Marquês do Pombal, 783/401
90540-001 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone: (0xx51) 3343-4376
E-mail: [email protected]
Dr. Renato Trachtenberg
Rua Florêncio Ygartua, 391/402
90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone: (0xx51) 3330-6453
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 109
Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg
LACAN, J. (1951). Intervención sobre la transferencia. In: Escritos 1. México:
Siglo Veintiuno, 1995.
ENCAMINHANDO
O
ENCAMINHAMENTO
110 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Introdução
Maria Regina
Junqueira
Membro Associado e Analista
de Crianças e Adolescentes da
Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo
Nilde J. Parada
Franch
Analista Didata e Analista de
Crianças e Adolescentes da
Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo
A apresentação do material que
se segue foi elaborada a partir do
convite dos organizadores do XXIII
Congresso da Fepal, em que foi solicitado às autoras que apresentassem e comentassem uma experiência clínica de análise de crianças. A
exigüidade de tempo levou-as a
uma escrita mais espontânea e
descomprometida com o rigor de
um trabalho científico.
É essa escrita que agora oferecemos aos leitores para que também
compartilhem dessa rica experiência, rica porque tanto a apresentadora quanto a comentadora puderam
repensar e articular a experiência
com os conceitos teóricos com que
trabalham e desse modo abrir um
outro campo, para além das vivências das sessões.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 111
Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
Compartilhanho
a Experiência
Clínica
COMPARTILHANDO
A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
A experiência clínica é solitária, se dá na presença da dupla analistaanalisando e, ao ser escrita, publicada, comentada permite que a mesma
seja compartilhada.
A apresentação do material clínico dar-se-á em quatro etapas, e os
comentários serão inseridos ao final de cada uma delas.
Caso Clínico
Apresento-lhes Pedro, um menino de quatro anos de idade, que está
em análise há oito meses com quatro sessões semanais.
1 – Meu Primeiro Encontro com os Pais de Pedro
Os pais de Pedro (que é primogênito do casal) me procuraram interessados numa avaliação profissional, daquilo que era por eles observado
como manifestações acentuadas de ciúmes. Segundo eles, Pedro sempre
foi uma criança muito tranqüila, não chorava, de nada reclamava, o que
permitia que eles o levassem para todo e qualquer compromisso social do
casal. Pedro foi amamentado ao seio até seis meses de idade. Nessa ocasião a mãe descobre estar grávida novamente, e para proteger o bebê que já
estava no seu segundo mês, realiza então o desmame num período de quinze dias. Segundo ela, não houve qualquer manifestação de desagrado por
parte do filho. Menciona porém que a partir dos oito meses de idade ele
passou a apresentar uma série de infecções respiratórias e, conseqüentemente, problemas com a alimentação. A mãe não observa relação entre
esses episódios e o processo de desmame. Um mês antes da irmã nascer, ou
seja, com um ano e dois meses, Pedro passa a freqüentar uma escola tipo
berçário-maternal, não apresentando problemas de adaptação nesse novo
convívio.
Em casa, entretanto, passa a morder, bater e cutucar com objetos pontiagudos, tanto a mãe como a irmã. A dinâmica familiar passa a ficar muito
conturbada, pois os pais a todo momento têm que estar atentos aos movimentos do filho, a fim de impedir tais ataques. A mãe revela estar exaurida,
pois além de ser constantemente solicitada pelo filho, exerce o papel de
112 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 113
Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
mediadora, criando atividades para que fique entretido e desvie sua atenção da irmã. Mas a tarefa parece ser insana já que Pedro percebe todos
esses movimentos, passando então a provocar cada vez mais a mãe: faz
xixi na calça, faz xixi no chão, chegando inclusive a se esfregar no mesmo
e até a lambê-lo. Apesar de ter o controle total dos esfíncteres, nesses momentos de provocação escolhe reentrâncias da mesa da sala para evacuar, e
buracos da rede de proteção de uma varanda externa, para urinar. Acorda
constantemente durante a noite e vai até o quarto dos pais, ora para dormir
junto com eles, ora para simplesmente brincar. Percebo que no transcorrer
dessas descrições o pai vai se aproximando mais afetivamente da mãe,
considerando-a portadora de uma capacidade ímpar de agüentar a turbulência do filho, considerando-a uma verdadeira heroína. A mãe parece que
aprecia esses comentários, sentindo-se valorizada.
O filho, portador de tanta “crueldade” e “destrutividade”, passa agora
a ser descrito de uma outra forma, com a inclusão de observações mais
acuradas a respeito da qualidade emocional. O pai revela perceber que o
movimento por parte do filho de cutucar as pessoas com objetos pontiagudos nem sempre tem como objetivo a crueldade, mas sim alcançar alívio.
Observa também que ao presenciar na televisão uma cena de violência, por
exemplo entre cão e gato, Pedro imediatamente se instala no colo do pai,
tentando reproduzir a cena entre eles. Se a expressão de violência é jogar
um aquário no chão, instantaneamente Pedro corre e faz o mesmo com seu
próprio aquário.
Passa então a surgir uma criança assustada, amedrontada e que se recusa a enfrentar situações novas, sejam elas um ambiente novo, uma brincadeira desconhecida, ou até mesmo a introdução de roupas e sapatos diferentes dos habituais. Existe uma recusa total a tudo aquilo que lhe é desconhecido. Vivências de pânico também são descritas, como por exemplo em
ocasiões quando precisa dirigir-se ao barbeiro para um corte de cabelo.
Pedro berra, chora, esperneia, morde e não permite que cortem seu cabelo:
recentemente foi gritando o trajeto inteiro e acabou dormindo. Cortaram
COMPARTILHANDO
A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
então seu cabelo enquanto dormia: ao despertar e constatar o corte, Pedro
avançou sobre a mãe, mordendo até feri-la.
A analista expõe algumas idéias ou ‘teorias’, dos pais sobre o bebê
Pedro: bebê tranqüilo, de nada reclamava, não houve manifestação de
desagrado ao desmame, não apresentou problemas de adaptação ao berçário.
Portanto, os pais descrevem um bebê sem manifestações de angústia.
Estariam descrevendo um bebê idealizado, e portanto negando o significado de algumas manifestações da criança real? Faltaria a eles percepção dos fenômenos emocionais? Seria este um bebê extremamente passivo, que se distanciava do contato emocional consigo próprio e com a mãe?
Ou as duas coisas?
Com 1 ano e 2 meses, o paraíso se transforma em inferno. Pedro passa a atacar a mãe e a irmãzinha recém-nascida.
A mãe procura ‘entretê-lo’, desviando sua atenção da irmã. Parece
não se sentir competente e suficiente para lidar de algum outro modo com
a situação agressiva, senão procurando negar a dor e o sofrimento de
Pedro. Talvez perceba a agressividade dele não como dor e sofrimento,
mas como maldade; parece estar profundamente decepcionada, em função do bebê tranqüilo e adaptado que ele foi.
Nos inícios da vida, normalmente o bebê lida com as terríveis ansiedades que o assolam por meio de mecanismos eminentemente expulsivos,
como o choro, a evacuação, os atos motores, e mecanismos incorporativos
como olhar, mamar, chupar.
Pedro passa a lidar com as angústias ligadas às fantasias de perda do
objeto materno fazendo uso predominantemente de ações expulsivas: evacua, urina.
Interessante observar que o pai percebe que ‘cutucar’ as pessoas com
objetos pontiagudos às vezes tem a ver com alcançar alívio (modelo mamilo duro na boca?). Pode estar utilizando modelos conhecidos, mas pare-
114 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
2 – Meu Primeiro Encontro com Pedro
Ouço Pedro na sala de espera, choramingando e dizendo que não queria cortar o cabelo. Repete isso inúmeras vezes. Abro a porta e encontro-o
de pé ao lado da mãe, que aguardava sentada na poltrona. Observo uma
proximidade relativa entre os dois, pois não havia nenhum contato físico
entre eles. Automaticamente me aproximo dele, me apresento e sento num
banquinho na sala de espera, enquanto aguardo o momento oportuno para
levá-lo à sala de ludo. Enquanto estou conversando com ele, uma das portas do consultório bate em função de uma corrente de vento, e ele logo se
assusta e pergunta o que era. Digo que era o vento que bateu a porta. Nesse
momento me vem à lembrança dos pais terem dito que ele se assustava
com ruídos mais fortes. Repito a estória da batida da porta por três vezes
consecutivas por solicitação de Pedro, que me ouve atento e temerosamente. Em seguida passa a olhar para o próprio dedo da mão e meio assustado,
quase chorando, diz que o dedo doía muito; comunica isso à mãe, apontando o dedo em sua direção. A mãe olha para o dedo, olha para ele, mas nada
diz ou faz. Pedro então vira-se incontinenti em minha direção, e com um
olhar muito assustado, faz a mesma comunicação. Pergunto porque o dedo
estava machucado, e ele responde “borboleta, borboleta, a borboleta” (opto
conscientemente em não fazer uma ligação com o possível temor de estar
ali comigo – algo novo – pois, eu não tinha ainda a menor idéia do grau de
funcionamento mental de Pedro; procurei formas conhecidas para
encaminhá-lo para o desconhecido).
Digo então que a borboleta era igual ao vento; que o vento bate a
porta, e a borboleta bate no dedo, e que talvez a borboleta tenha vindo com
o vento. Pedro fica parado, me escutando atentamente, olha para o dedo e
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 115
Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
ce não discriminar entre os modos de incorporação/ introjeção normais, e
os intrusivos.
Ao usar excessivamente o modelo expulsivo/projetivo, cria um mundo
muito perigoso, e sua maneira de se proteger é ficar no espaço conhecido
e sentido como controlado.
COMPARTILHANDO
A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
diz “já passou, não dói mais”. Percebo que fica mais ligado em mim, e
nesse momento convido-o a entrar na sala comigo. Pedro chama a mãe
para entrar junto e de mãos dadas com ela, dirige-se à mesa com brinquedos. Ao ver os carrinhos sobre a mesa larga a mão da mãe e começa a
brincar (A mãe então se retira). Parece que experimenta o contato com
cada um dos carrinhos (são quatro e um caminhão), checando sua movimentação. Ao brincar com um dos carros esbarra num dos bonecos que
está sobre a mesma mesa, e diz “é menina, não... não, é carro”. Em seguida
coloca todos os carros por debaixo das pernas dos bonecos que estão deitados sobre a mesa, dizendo que estão escondidos. Retira-os do esconderijo
e dois a dois, vai batendo um contra o outro, entrando num estado de euforia, falando alto “bate, bate, está batendo, está batendo”. Volta a escondêlos e retoma a mesma brincadeira de bater um contra o outro. O caminhão
parece ser o preferido dele, e é o que mais sobrevive às trombadas. Pedro
exultante vai descrevendo sucintamente o que ocorre, muito mais como
um processo de auto-estimulação, do que de comunicação direta comigo.
Aos poucos todos os carros vão ficando quebrados, segundo ele, e então
tem que guardá-los na garagem. Essa brincadeira é retomada diversas vezes, e eu o acompanho, ora repetindo o que ele fala, ora fazendo perguntas
a respeito do que acontecia. Percebo que as perguntas ele dispensa, mas o
repetir com a mesma entonação a sua fala, o entusiasma de uma tal forma
e ele solicita que eu continue nesse diapasão. Fico com a sensação de que
ele sabia que eu compreendia sua comunicação, que falávamos a mesma
linguagem. Seu campo de visão se amplia, descobrindo a presença de uma
caixa de lápis de cor sobre a mesa. Pede para eu abri-la, e assim que retira
o lápis marrom da caixa exclama “não, não, é noite, vai dormir, é noite não
tem sol não”, e o recoloca na caixa. Vai fazendo o mesmo com todos os
lápis, dando ordens para que voltem para a caixa pois têm que ficar escondidos pois é noite e tem lua. Vejo que fala com firmeza, dá ordens, está
bravo e ao mesmo tempo um pouco assustado. Digo: “o Pedro não gosta da
noite, ele tem medo”. Ele logo responde “não gosta, não pode aparecer”.
Pega então o lápis amarelo e diz “lá vem o sol, é dia”, mas o sol não se
116 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Este é um momento importante. Ao contar a história do vento que
bate portas, a analista introduz a questão da narrativa, que pode ir adquirindo, na relação que vai se estabelecendo, uma abertura para uma nova
forma de comunicação.
“O vento chega, bate a porta, Pedro fica assustado”. Pode ser o início de uma história: “Era uma vez um menino chamado Pedro, que um
dia...” Como em todas as histórias infantis, sempre aparece o medo e a
nomeação da qualidade desse sentimento, que a criança conhece porque
já o sentiu.
Em seguida, Pedro busca a analista para falar de outro sentimento:
dor. Assim como ela tinha uma história para o medo, talvez também tivesse
uma para a dor.
A analista foi extremamente sensível e intuiu que era hora de falar
dele, Pedro, de seus sentimentos e de sua busca de um objeto específico e
especial, que compreendesse suas dores e pudesse suportá-las. Apresentou-se como alguém que podia entender de histórias, de medos e de dores;
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 117
Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
mantém e logo em seguida tem que guardá-lo porque “é noite e tem lua”.
Deixa os lápis de lado, pega o caminhão que estava escondido, coloca-o
debaixo de uma folha de papel encobrindo-o por completo. A brincadeira
passa a ser de assustar o caminhão, levantando um pouco a folha de papel.
Pedro aproxima-se do caminhão e emite os sons” buu, buuuu!!! Ao mesmo
tempo passa a ficar inquieto com os pés, tira um dos sapatos, dobra a perna
sobre o seu joelho e mostrando a sola do pé, olha para mim com uma expressão de muita angústia e diz que o pé está doendo muito. Faço então
uma aproximação dos dodóis dele com os medos que me mostrava, incluindo o da borboleta e do seu pedido explícito de ajuda.
Pedro volta a brincar com os carros, e provavelmente a “dor” passou,
pois ele põe o pé no chão e não reclama mais.
Ao término da sessão faz questão de guardar ele mesmo os carros, e
vai em busca de um armário, coloca-os bem juntos empurrando-os para o
fundo da prateleira.
COMPARTILHANDO
A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
que podia caminhar da alucinação para a fantasia. “Já passou, não dói
mais”; é o resultado do encontro com um objeto com capacidade de
rêverie, que pode conter e dar significado às comunicações emocionais.
Ocorre-me que a satisfação, a euforia de Pedro ao brincar com os
carrinhos talvez tivesse relação com sua vivência de potência. Não é mais
o menino assustado, talvez impotente até para lidar com a “borboleta”,
ou com o “vento”, o que quer que isso significasse naquele momento;
pode lutar de igual para igual ou até ser o mais forte (caminhão).
Penso que nesse momento é importante observar o movimento em
direção à utilização de suas potências, mais do que qualquer interpretação sobre o provável conteúdo sexual da brincadeira.
Descobre a caixa de lápis de cor e passa a dialogar com cada lápis,
dando a conhecer um pouco do seu mundo de fantasias.
Vão aparecendo as proibições: “É noite, vá dormir”. Vão surgindo as
conotações superegóicas e fantasias de LUA PERIGOSA e SOL AMIGO.
Tem que se esconder da LUA e esperar a proteção do SOL.
A analista nomeia o medo e o relaciona com a noite, e ele confirma
que à noite ele tem que ficar escondido da LUA. Vê-se aqui um momento
em que a projeção de fantasias de um objeto persecutório e de um objeto
bom vão aparecendo; o objeto persecutório domina a cena. Identifica-se
com o objeto perseguidor e vai assustar o caminhão. Esse é um mecanismo conhecido e que as crianças usam muito para lidar com os perseguidores. Assumem o papel, por ex., do lobo mau, da bruxa e o interlocutor ou o
analista é a criança assustada. É o mecanismo de cisão e de identificação
projetiva, que M. Klein já descrevera em 1923, em um de seus primeiros
artigos.
Parece que Pedro não consegue manter por muito tempo essa boa
cisão, boa porque por meio dela pode examinar, de dentro, o objeto
persecutório. Retoma então a vivência persecutória, expressando-a como
dor: o pé dói. A analista dá significado a essa vivência, e ele se alivia.
Mais uma vez se observa a importância do objeto compreensivo que dá
significado emocional às experiências.
118 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
À medida que iniciamos nosso trabalho, noto que Pedro envolve-se
intensamente com o mesmo. Não suporta ficar aguardando na sala de espera (bate insistentemente na porta chamando-me pelo nome), e muitas vezes, ao terminar a sessão, recusa-se a sair solicitando, ora para ficar “só
mais um pouquinho”, ora pretendendo ficar ali “para sempre”. Fui sentindo a necessidade de estabelecer sinais precisos para marcar o término das
sessões; para tanto encaminhava a brincadeira de modo a terminar dentro
da caixa de ludo. Se Pedro estivesse entretido, por exemplo, com o “trem”
eu direcionava o movimento de tal forma que a caixa passava a ser a estação de chegada, o término do percurso definindo uma condição de acolhimento. Percebi que assim Pedro vivia o final da sessão não como uma
interrupção abrupta ou uma ruptura, mas como algo que sugeria um “repouso”, uma “trégua”, enfim uma continuidade. Movimentos dessa natureza foram necessários ao longo do nosso trabalho, pois Pedro tinha vivências extremamente ameaçadoras, sem nenhuma possibilidade de contenção. No início a própria sala de trabalho não tinha limites; tudo que seus
olhos alcançavam fazia parte do cenário da sessão; os carros estacionados
na rua, as motos que passavam, a fumaça que saía da chaminé de uma
lavanderia, eram vivenciados persecutoriamente como invadindo nossa
sala. Não havia discriminação entre dentro e fora, interno e externo. As
angústias eram avassaladoras e vivenciadas numa cadência de extensão
sem fim.
A única ferramenta que Pedro usava para tentar lidar com essas situações era a utilização de dois objetos pontiagudos que funcionavam como
uma tesoura “para cortar o perigo” (sic). Nesses momentos ficava envolvido na atividade de bater incansavelmente a “tesoura” contra a mesa, parede, cadeiras, carrinhos, não havendo nada que o fizesse interromper tal
atividade. Numa das sessões em que brincava com dois aviões de
massinha, um pequeno e um grande, tentando lidar com o medo que estes
lhe causavam, percebi que a todo momento lançava olhares através da janela. Notei que tentava controlar a lua que segundo ele estava lá fora no
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Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
3 – Construção da Relação Emocional
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A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
céu, mas que parecia poder penetrar na sala a qualquer instante, causando
estragos. Pedro estava irrequieto, apreensivo, assustado, desassossegado, e
o clima era de muita tensão. Num determinado momento, quando Pedro
lança mais um desses olhares para fora, para a suposta lua, automaticamente com o meu braço fiz um movimento de pegar a lua e traze-la para
dentro: assim, a minha mão direita tornou-se a lua. Pedro (diferentemente
do que eu esperava, quando me dei conta do meu ato), ficou muito interessado pela lua dentro da sala, fazendo parte do meu ser. A partir de então
passou a relacionar-se com uma lua mais real e presente, que ora era inimiga, brava, ameaçadora, e ora amiga e companheira. Durante algumas sessões só existia para ele a lua, e através dela representava suas relações de
medo ou de amizade. Num determinado dia, ao dar-se conta que a luz da
sala estava acesa e portanto, segundo ele, era dia, transformou imediatamente minha outra mão em sol. Este, sempre foi amigo, companheiro e
muitas vezes o grande aliado de Pedro contra a lua. Criou-se uma situação
de dois (Pedro e o sol) contra um (lua). É interessante salientar que diversas vezes, quando Pedro estava extremamente angustiado, e irritado com
minhas tentativas de aproximação, eu introduzia uma conversa entre o sol
e a lua, como se o sol-amigo estivesse contando para a lua o que estava
acontecendo com o Pedro. Ele parava o que estava fazendo, ficava muito
interessado e na maioria das vezes a situação era contida.
Talvez minha descrição dos fatos sugira uma evolução linear e constante, mas na realidade o que ocorria era algo muito mais turbulento e
desintegrador, com instantes um pouco mais contidos e integrados. O tecer
do vínculo era feito às custas de muito sofrimento, e muitas vezes eu ficava
numa atitude de observadora complacente com sua dor, mas sem muito o
que fazer. Durante várias sessões consecutivas Pedro se entretinha com
objetos pontiagudos (lápis) que ele fazia penetrar em qualquer orifício que
encontrasse na sala: buracos da fechadura, reentrâncias da mesa e da poltrona, saliências do piso e do rodapé. Esse universo de atuações passou a
ficar mais restrito, com o andamento do trabalho, e Pedro passou a recorrer
a esses movimentos apenas na poltrona que eu normalmente sento. Pude
120 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121
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então apreender nuances de vivências que antes eram impossíveis de serem detectadas. O penetrar do lápis na poltrona só ocorria quando eu estava nela sentada, e na sua maioria das vezes era acompanhado de um olhar
vago, com movimentos lentos, e de uma penetração suave e constante contendo, provavelmente aquilo que o pai relatara: uma sensação de alívio e
tranqüilidade. Aos poucos pude perceber que essas manifestações surgiam
quando Pedro demonstrava a dor de ter ficado afastado de mim (fosse o
intervalo de fim de semana, ou mesmo entre sessões). A poltrona passou a
ser identificada com a minha pessoa, e diversas vezes Pedro tirava toda sua
roupa, solicitava que eu sentasse na cadeira “dele” e, apoderando-se da
minha, passava a se esfregar nela e a cheirar o seu interior. A visão que eu
vislumbrei foi a de um bebê no útero, movimentando-se no seu interior, e
tendo prazer em “experimentar” este conteúdo interno: o resultado era satisfação e muita tranqüilidade.
A família de bonecos que até então não fazia parte de seu universo de
brincadeiras, passa a ser utilizada como uma expressão mais evoluída da
formação de vínculos. Ao descobrir a boneca mãe, agarra-a dizendo “ela é
minha”, e desenvolve uma brincadeira onde eu tenho que tentar aproximar
os demais bonecos (pai, irmã, avó) dele e da mãe. Pedro então empurra
violentamente com a mão o boneco-pai por exemplo, e aproxima do seu
corpo a boneca-mãe dizendo “não, não, ela é minha!”. Tempos depois passa a usar os bonecos mãe, irmã e avó numa encenação onde ele é aquele
que vai em busca de alimento para esses personagens. Para a realização da
função de provedor, eu tenho que segurar e representar os três bonecos,
que, segundo ele, estão em casa na sala de TV (sempre a irmã sentada no
colo da avó, liberando assim o colo da mãe), e especificar quais os filmes
que querem assistir ou os alimentos que desejam consumir. Pedro então
dirige-se a um canto da sala, e como se estivesse numa vídeo locadora
providencia o solicitado. Esse brincar muitas vezes ocupa a sessão inteira,
sendo acompanhado por intensa satisfação que às vezes beira a euforia.
Aos poucos aparece a criança possessiva, que já tem palavras para
exigir: ‘só mais um pouquinho’, ‘para sempre’.
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A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
Essa é uma das grandes dificuldades no desenvolvimento do ser humano: lidar com seu desejo de posse. Ter a posse é ter a satisfação plena e
infinita. Admitir que não tem a posse do objeto e renunciar à ilusão de
posse é um trabalho da vida inteira.
Interessante observar como a analista lida com a questão. Diz-nos
ela: “Fui sentindo a necessidade de estabelecer sinais precisos para marcar o término das sessões; para tanto, encaminhava a brincadeira de modo
a terminar dentro da caixa. Se Pedro estivesse entretido, por exemplo, com
o trem, eu direcionava o movimento de tal forma que a caixa passava a ser
a estação de chegada, o término do percurso definindo uma condição de
acolhimento. Percebi que assim Pedro vivia o final da sessão não como
uma interrupção abrupta, ou uma ruptura, mas como algo que sugeria um
‘repouso’, ou uma ‘trégua’; enfim, uma continuidade. Movimentos dessa
natureza foram necessários ao longo de nosso trabalho, pois Pedro tinha
vivências extremamente ameaçadoras, sem nenhuma possibilidade de contenção.”
Parece-me que a analista registrara a profunda ansiedade de Pedro
ao término das sessões como uma “ansiedade de precipitação”, como diz
D. Houzel, queda em um buraco sem fim, e então direcionava os brinquedos concretamente para o continente-caixa, mas simbolicamente para o
continente-mente da Analista que dá significado compreensivo-afetivo à
situação.
A analista relata também que no início a própria sala de trabalho não
tinha contornos definidos, incluindo parte do ambiente externo. Poderíamos pensar que Pedro não havia ainda constituído um continente psíquico
firme e estável. A falta de discriminação dentro-fora, interno-externo, fala
nesse sentido, assim como as vivências de angústia avassaladora.
A analista prossegue, informando-nos que a única ferramenta que
Pedro usava para lidar com essa situação era a utilização de dois objetos
pontiagudos, que funcionavam como tesoura ‘para cortar o perigo’.
Parece que em alguns momentos não existem representações mentais
para serem processadas, sonhadas, pensadas, e então o perigo se
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volatiliza. Está em todos os lugares.
Destaco aqui a importância da representação mental das experiências emocionais para fantasiar, sonhar, brincar, pensar, e da presença de
registros que ainda não ganharam representabilidade.
Momentos depois, talvez pela presença da analista que tem funcionado como continente firme para esses sentimentos sem representação,
Pedro alcança uma representação: novamente a lua persecutória. Impossível controlá-la ou se defender dela! Tão longe, mas tão perto, tão
onipresente, tão intrusiva.
A analista percebe essa onipresença e inatingibilidade e a transforma
em algo limitado no espaço, e agora acessível. Sua mão agora é a lua.
Momento de grande criatividade proporcionado pelo encontro dessa dupla. Com esse perseguidor mais próximo, mais limitado, dá para enfrentar
o conflito.
Ressalto aqui a importância de o analista “emprestar” sua fantasia
ao paciente quando este está paralisado pela angústia.
Surge agora a ambivalência. A lua tão ameaçadora, agora que mais
próxima e acessível, é também a lua amiga e companheira. A sombra de
uma enorme onça agora é percebida como a ampliação de um gato
(gata?).
Momento de início de integração, fruto das experiências vividas na
análise; ora aparecem identificações projetivas de vivências ‘objeto perseguidor’ na analista, ora vivências de objeto compreensivo. Quando predominavam vivências persecutórias, a analista introduzia o diálogo: ‘sol
amigo conversando com a lua’, criando espaço para que o aspecto objeto
bom-compreensivo se fortalecesse, possibilitando o reequilíbrio da situação. Um ego fortalecido pela presença mais ativa do objeto bom assume o
comando.
Quero salientar outro ponto, em que a analista nos informa sobre a
atividade repetitiva de Pedro, que preenche buracos com objetos pontiagudos. Repetição do modelo mamilo-duro na boca? Tampão, para não viver angústias de vazio, de queda no buraco sem fim? Pênis na vagina?
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A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
Vivências de completude? São idéias para serem examinadas.
A repetição culmina com uma ação de restrição: a poltrona da analista, que então pode compreender melhor a especificidade da defesa: a busca da sensação de alívio e satisfação que a completude traz (seio na boca?
pênis na vagina?). Defesas contra sentimento de separação e perda. Defesa primitiva que busca negar a ausência, ao invés de elaborá-la. É a defesa possível no momento. Não tem ainda um aparelho mental com melhores
recursos para lidar com a angústia de perda.
Pedro passa a brincar com os bonecos. Um progresso. Agora, é capaz
de externar verbalmente seu desejo e sua ilusão de posse da mãe: ‘Ela é
minha!’
A vivência de ser separado, e de não ter um objeto de satisfação único
e exclusivo gera a crise da dependência em relação ao objeto e suas conseqüências.
Nesse momento, Pedro vive a ilusão da fusão com a mãe-seio provedora e a analista é identificada com os bonecos mãe, avó, irmã, necessitados e desejantes. Vive um momento de onipotência, mais próprio de uma
criança de 2 a 3 anos. Ele é o objeto completo provedor. Parece-me importante que possa viver essa experiência, para depois poder trabalhar o luto
da ilusão perdida, ou seja, a desilusão.
4 – Sessão de Segunda-feira da
Última Semana Antes das Férias
Tenho que ir buscá-lo na sala de espera, por solicitação dele. Pedro
imediatamente se enfia por debaixo da cadeira onde a mãe está sentada, e
ao tentar pegá-lo, se agarra nas pernas da cadeira e grita “mãe, mãe, socorro”, mas ao mesmo tempo entrega-se a mim.
Ao entrar na sala de ludo, pega a tampa da caixa, joga-a ao chão e diz
que hoje não queria entrar. Dirige-se à caixa e encontra uma folha de papel
com o calendário que eu fizera para ele, pontuando os dias que indicariam
o término do nosso trabalho, e portanto o início das férias. Pedro pega dois
lápis e começa a bater forte na caixa. Faz questão de fazer bastante barulho
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 125
Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
e olhando para mim exclama “barulho, barulho, barulho!”. Digo para ele:
“Você está fazendo um barulhão porque a Regina está saindo de férias, e o
Pedro vai ficar sem vir aqui.” Ele então tira todos os objetos da caixa, entra
dentro dela, curva-se ao máximo de tal forma que caiba por inteiro dentro
da mesma; pega a tampa e solicita que eu feche a caixa com ele dentro.
Quando falo do seu sofrimento com relação à nossa separação, e que ele
queria ficar dentro da caixa-barriga-Regina, ele sai da caixa e dirigindo-se
à sua poltrona começa a emitir sons como se fosse um pequeno animal,
fraco e desamparado. Digo que se ele não fica dentro da barriga-Regina ele
fica igual a um cachorrinho sozinho, triste, chorando. Em seguida solicita
que eu pegue a boneca-mãe, retira-se para o banheiro, fecha a porta, e após
alguns minutos pede-me para buscá-lo com a boneca-mãe na mão, como
se ela estivesse indo pegá-lo na escola.
Repete essa brincadeira por três vezes consecutivas, e a seguir leva a
boneca para sua poltrona, passando a mordê-la incessantemente, numa tentativa violenta de incorporá-la. Enfia por inteiro a cabeça da boneca na
boca, faz movimentos de tentar engolir, repetindo o mesmo com os braços,
as pernas, e assim sucessivamente; ao mesmo tempo vai contorcendo-se
na poltrona, evocando-me a cena de uma gata que, no desespero de perder
seus filhotes numa situação de perigo, devora-os.
Vou então conversando com Pedro tentando transmitir a minha apreensão de quão perigoso era para ele a separação de alguma coisa, e que a
única forma de lidar com isso era tentar se sentir preso à coisa (engolir a
mãe ou permanecer sempre dentro dela). Apesar das minhas interpretações
e tentativas de contê-lo, Pedro continua desesperadamente “devorando” a
boneca-mãe. Senti que nada podia fazer ou interferir, mas fiquei impressionada e angustiada com aquela expressão emocional tão primitiva.
Sem me dar conta, passei a alternar o meu olhar: ora para ele (talvez
na ânsia de que ele estivesse com uma outra condição) ora para baixo, mais
voltada para os meus pensamentos e as minhas vivências. Pedro passa a
me chamar: “Regina, Regina, olha, olha, olha!”. Seu apelo era tão
compungente e desesperado no sentido de que eu continuasse olhando e
COMPARTILHANDO
A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
suportando aquela cena dramática.
Volto a me colocar inteiramente à sua disposição, mas ainda
impactada com os impulsos primitivos e as vivências dilacerantes. A mensagem era que se Pedro saísse do útero materno ele não sobreviveria: por
isso tinha que estar constantemente “ligado a”.
Passo automaticamente a conversar com ele, mas muito mais com a
“alma” do que com o “cérebro”. Apesar de não dispor da expressão consciente da linguagem primitiva, tento aproximar-me de seu nível de comunicação. Percebo que algo vai se transformando, já que Pedro vai reduzindo o ritmo de seus movimentos, senta-se na poltrona e fica olhando em
minha direção como que entendendo ou “comendo um alimento” que lhe
dizia respeito. Colocando agora numa linguagem mais desenvolvida e psicanalítica, o que eu tentei transmitir para ele foi minha apreensão da dor de
sentir-se sem o seio, e da necessidade imperativa de engolir esse seio, de
tê-lo dentro de si como única forma de proteger-se de um eventual abandono.
Pedro, em seguida à minha fala, abre as pernas da boneca-mãe e as
aproxima da região de seu baixo ventre, fazendo movimentos no sentido
de introduzir a boneca-mãe dentro dele. Digo que se ele guardar as coisas
dentro de si, consegue sentir que não vai perde-las. Pedro então coloca a
boneca-mãe por baixo da camiseta, como que introduzindo-a totalmente
para dentro de sua barriga e olhando para mim diz: “barriga Pedro”. Digo
que ele queria entrar dentro da caixa-barriga-Regina, para se sentir guardado ali, e desse modo não perder a Regina. Ele fala: “dentro barriga mamãe”. Digo: “como quando ele estava dentro da barriga da mamãe, e aonde
ela ia, ele ia junto; mas agora não é mais assim, e ele então sente muito
perigo, muito medo de que a mamãe vá embora e deixe o Pedro sozinho”.
Pedro passa a me chamar diversas vezes pelo nome, e embora eu estivesse lá e dizendo, “o que foi, o que foi, estou aqui, fala”, era como se ele
não me ouvisse, o importante sendo me chamar, como se eu estivesse longe. Não sei se isso era evidência de poder me ver mais longe, distante, de
férias, ou uma comunicação expressiva de que eu não o estava entendendo.
126 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127
Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch
Já de início demonstra sua ambivalência. Quer e não quer se encontrar com a analista. Sente-se como aquele objeto largado embaixo da cadeira (como as fezes eram anteriormente largadas sob a mesa de sua
casa), como a tampa da caixa largada no chão. O barulho é seu protesto,
mas também evidência do barulho interno, da ansiedade frente à próxima
separação.
Quando a analista compreende o significado do barulho, Pedro pode
explicitar muito claramente seu desejo de fusão com a caixa-analista, e o
sofrimento causado pela separação. Sente-se como o cachorrinho abandonado, largado, triste e solitário. É importante observar como a disponibilidade da analista para viver com ele sentimentos, desejos e frustrações,
verbalizando sua compreensão, leva Pedro a poder expressar cada vez
mais seus sentimentos. Não é mais o bebê tranqüilo que não se expressava
para nada, nem a criança desesperada, sem recursos para representar
suas experiências emocionais.
Encena, então, o reencontro: mãe que vai buscá-lo na escola, analista esperando por ele. Essa encenação nos parece expressar a esperança e
a confiança no reencontro. A separação não é mais vivida somente como
desespero, como queda num espaço sem fim. Há esperança.
Mas, esse momento é interrompido por violentas fantasias de perda e
desejo de incorporação do objeto. A esperança e a confiança não se mantêm. É o início de um débil movimento, ainda não solidificado. A angústia
brota violentamente. Precisa incorporar, controlar, ter a posse, fundir-se.
Ao perceber o olhar da analista se alternando, dirigido para ele e
para si mesma, Pedro a ajuda e se ajuda. Pede que olhe para ele. Quer ser
visto na sua dor, mas quer também que a analista o conserve em seu olharmente. Não quer que ela se contamine com seu desespero e “se retire”,
como provavelmente o bebê supertranqüilo se “retirava”.
O retorno da disponibilidade da analista, que contém e suporta o sofrimento de Pedro e dela mesma, que mantém sua capacidade de sentir,
pensar, falar, ajuda Pedro: é o “alimento” de que ele precisava naquele
momento.
COMPARTILHANDO
A
EXPERIÊNCIA CLÍNICA
No momento seguinte, fazendo o movimento de introduzir a bonecamãe dentro de si, não estaria nos falando mais da possibilidade de
introjeção de uma mãe suficientemente boa, que tem condições para receber a angústia do bebê, metabolizá-la e devolvê-la mitigada?
“Dentro da barriga da mãe” não poderia ser entendido como “dentro da mente da analista-mãe”?
Penso que logo depois Pedro descobre o poder da memória. Ao ficar
chamando a analista pelo nome, parece ter descoberto e estar exercendo o
poder da evocação. Quando lembramos o nome de alguém é como estar
trazendo essa pessoa para bem perto de nós.
Parece-me que ele sentia prazer nesse exercício, pelo prazer de reencontrar-se com a analista, mesmo quando de sua ausência. O desenvolvimento e o exercício dessa capacidade ajuda a criança a suportar as ausências e não se desesperar.
Reflexões
Trabalho apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000,
Gramado, RS, Brasil
Dra. Maria Regina Junqueira
Rua Helena, 170 cj. 121
04552-050 São Paulo – SP – Brasil
Fone: (0xx11) 3849.5242
Dra. Nilde J. Parada Franch
Rua João Moura, 647 cj. 103
05412-911 São Paulo – SP – Brasil
Fone: (0xx11) 3064.4609 e
(0xx11) 3845.6689
E-mail: [email protected]
128 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Introdução
Myrta Casas de Pereda
Membro Titular da Associação
Psicanalítica do Uruguai
O objetivo destas linhas será
sustentar, a partir da nossa práxis,
algumas idéias sobre uma perspectiva dinâmica para abordar a questão das primeiras inscrições. Sublinho, assim, a possibilidade de um
afrouxamento nos limites mais duros da psicopatologia, onde as fronteiras entre neurose e psicose, ampliadas pela gama de patologias
narcisistas e borderline, assinalam,
na verdade, diversas modalidades
de estruturação psíquica passíveis
de transformações e modificações,
especialmente quando são provenientes das crianças em análise. Isto
ajuda a redimensionar a neurose nas
suas prerrogativas de gravidade,
que não, necessariamente, se apre-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 129
Myrta Casas de Pereda
Sobre as
Primeiras
Inscrições
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
sentam como psicose, e que é o campo mais freqüente de incidência do
trabalho analítico.
Sem dúvida, as representações inconscientes condicionam modalidades da repetição e do sintomático que individualizam cada ser humano.
Mas, cabe pensar na nossa escuta psicanalítica, naquilo que somos capazes
de ouvir para que existam chances de que algo possa ser transformado. Se
existe certa fixação na modalidade sintomática (o sujeito nas suas relações
objetais), isso não significa a radicalidade que costuma ser dada a uma
suerte de marca a fuego, mas que constitui a maneira de processar o traumático: repetindo o que não pôde ser inscrito. A inscrição, por sua própria
definição, sempre apresenta um lado real, não representável, que assinala a
qualidade do inscrito e abre, a partir daí, caminhos de busca que o desejo
percorre. É traumático aquilo que não pode ser inscrito, mas, também,
aquilo que não pode não se inscrever e que aponta ao Outro em funções
que estão falhando. A marca, como escritura, denuncia a conjunção de uma
perda (lado coisa) com uma representação inconsciente que conserva a
qualidade (Freud, 1895, p.189) do acontecimento (sentidos incestuosos,
de terror, mortíferos, prazerosos...). A interpretação psicanalítica conduz ao mais perto possível das coordenadas prazerosas-nãoprazerosas que rodearam a inscrição psíquica.
Não irei considerar, neste trabalho, aqueles casos cuja magnitude de
esburacamento psíquico resulta em autismo ou psicose graves. Meu objetivo, então, será refletir sobre a dimensão estrutural das primeiras marcas,
seus efeitos e destinos durante o trabalho de subjetivação, o qual também
implica sua escuta, a partir dos efeitos transferenciais no processo analítico. Farei um breve relato metapsicológico sobre a inscrição psíquica para
abordar, desde a clínica, os efeitos de uma estruturação problemática que
reveste aparências de extrema gravidade e que, porém, era parte natural da
neurose, na sua estruturação defeituosa.
130 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
De uma maneira abrangente, chamamos de primeiras marcas ou primeiras inscrições um acontecimento psíquico que abrange categorias de
espaço e tempo não mensuráveis, não quantificáveis (pois isso comportaria uma perspectiva geneticista), mas um espaço – tempo aberto, mutante,
no gerúndio, onde diacronia e sincronia reúnem forças. Trata-se de um
sujeito realizando-se com o outro e o Outro, nos sutis e diversos laços
libidinais que tornam possível uma inscrição, ou seja, de que aconteça uma
repressão primária (Freud, 1895, 1896, 1915). Laplanche mostra muito
bem quando diz que a repressão primária é um processo, e não uma entidade isolada e pontual. Penso que é um “sucedendo”, durante muito tempo,
que abrange, sem dúvida, os primeiros anos infantis, onde se faz notória a
dimensão estrutural onde incide o desamparo psíquico com o qual nasce o
sujeito ao mundo (Hilflosigkeit).
Repressão primária e identificação primária são os nomes que mencionam o originário, o UR, o primordial, indispensáveis instrumentos na
nossa metapsicologia que indicam momentos míticos da constituição do
sujeito; míticos por não apreensíveis, não por não reais, míticos por não
recuperáveis na sua absoluta dimensão inaugural (Freud, 1896), pois o que
está em jogo, em ambos, é a marca de uma volta da pulsão que enlaça o
desejo do Outro antes de voltar sobre o eu (Lacan, 1964). Momento de
subjetivação que implica a divisão (consciente-inconsciente), descrito por
Freud (1895) no modelo oral da ação específica. Ali se reúnem a demanda
e a resposta do outro (Nebenmensch), fazendo marca psíquica através da
repressão, a dor, a angústia e a alucinação (fantasia), e onde descreve, ao
mesmo tempo, a inscrição (Vorstellungrepresentantz), como predicado da
perda de um lado coisa. Isto deriva, a partir daí, na capacidade de reproduzir uma imagem (alucinar), isto é, inaugura-se o espaço da fantasia, pois
emerge o desejo que circulará, para sempre, sobre as representações sujeitas, então, a novas articulações e ressignificações.
1. Estas idéias foram extensamente trabalhadas em Pereda, 1999.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 131
Myrta Casas de Pereda
Breve Relato Metapsicológico1
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
Verdadeiro espaço-tempo de uma experiência de sublevação que
acontece sempre entre sujeito e objeto, onde o Outro simbólico está presente na função materna (função narcisisante) consubstancial à função de corte.
Da assinalada emergência do desejo depende o curso da cadeia representacional (ou significante), as associações por similaridade, contigüidade, similicadência, que condicionam a maneira de funcionamento do chamado processo primário que não é, senão, o funcionamento do inconsciente através da condensação, o deslocamento e a figurabilidade; tropos da
linguagem, metonímia e metáfora. Cada vez que a pulsão pulsa, cada vez
que seu objeto, o outro e seu desejo, se fazem presentes no circuito da
pulsão (parcial), nas suas diversas modalidades, oral, anal, seu olhar e voz,
cada vez, então, é produzida uma marca, um sinal do outro em mim, que
conduz a uma perda estrutural e a emergência do desejo. É a constituição
do objeto perdido para Freud, ou a queda do objeto em Lacan, que nomeiam estes momentos de subjetivação, onde o desejo do Outro é
consubstancial à própria marca.
Incorporar o olhar e a voz como circuitos pulsionais é uma contribuição de Lacan2 à teoria. Também Winnicott (1968), em outro esquema
referencial, privilegiava o olhar da mãe como primeiro espelho para a
criança. Destaco, para fazer presente, a importância do especular nesses
primeiros momentos.
A primeira identificação com a imagem no espelho configura o eu
como unidade, e isso acontece em um duplo registro, imaginário e simbólico (eu ideal-ideal do eu), que implica a presença do olhar, o olhar da
criança no espelho, e daquele que a olha olhar-se, como um ato de reconhecimento3.
É a origem narcisista do eu com a alienação na sua origem; entretanto,
existe uma desmentida estrutural, presente na montagem das defesas, que
2. O desenvolvimento dessa proposta está no Seminário sobre A Angustia (Lacan, 1962).
3. Momento em que se reúne a repressão primária com a identificação primária, em que esta
última se plasma através desse significante do Outro, que vem através da imagem própria (Ph.
Julien, 1986).
132 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133
Myrta Casas de Pereda
se ocupa da pulsão e que fala de um efeito de desconhecimento da relação
simbólica, permitindo, precisamente, a ilusão.
Saber e não saber do simbólico em questão (que é sempre a castração
e a morte) oculta, também, o reconhecimento da dualidade e constrói e
constitui o imaginário que nunca será puro, visto que o desconhecimento
(não querer saber, que organiza a crença) é sobre uma relação simbólica
(Teorias Sexuais Infantis).
Poderíamos dizer que o eu é narcisista, especular e paranóico, pois
esse é seu primeiro modo de “conhecer”... a “realidade”. O conhecimento
paranóico é intrínseco ao transitivismo e constitui, por sua vez, a matriz do
eu. É, como assinala Lacan (1946), “esse palácio dos espelhismos que
reinam nos limbos deste mundo (dual e imaginário) ao que o Édipo faz
fundir-se no esquecimento”.
Nesse reinado de espelhismos, idealizações, onipotência, que transmitem, de maneira tão eloqüente, o desamparo, constitui-se a relação de
exclusão entre o eu e o outro: “A relação de exclusão que estrutura, a
partir desse momento, no sujeito, a relação dual de eu para eu” (Lacan,
1962). É a Urbild do eu, sua formação primária. Eu ideal, narcisismo, pano
de fundo nunca perdido de todo movimento de identificação. Eu ideal, ideal do eu, movimento permanente da subjetividade que implica essa luta até
a morte com o outro especular que assinala, cada vez, a saída do dualismo
paranóico. Modelo este, o do conhecimento paranóico, que se faz presente,
com mais freqüência do que podemos reconhecer, na sintomatologia infantil, expressando, assim, seus danos narcisistas.
Essa dimensão estrutural recria-se na transferência, constituindo um
lado medular da nossa escuta analítica. A partir dali, a atualização e a
ressignificação transferencial constituem um espaço-tempo privilegiado
que pode dar lugar a modificações estruturais, a novas marcas pulsionais,
escrevendo ou reescrevendo a história do sujeito.
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
Material Clínico4
Leo, aos seis anos de idade, apresenta uma seqüência de fracassos na
sua socialização, com sucessivas expulsões de dois colégios, por transtornos de conduta. Não respeita a autoridade nem os limites, sua atitude é
desafiadora, e com isso induz, com freqüência, ao descontrole do outro e
seu castigo subseqüente. Negava-se terminantemente a participar de aniversários e, em uma oportunidade, em que foi obrigado, bateu no pai do
homenageado, quando tentava dar limites, e, ameaçando a todos com um
pau, fugiu da casa. Os pais, após improdutivas buscas por novos colégios,
realizam uma consulta psiquiátrica e um estudo psicológico. Nasce aí um
prognóstico sombrio de esquizofrenia infantil. É indicada a psicoterapia.
Finalmente encontram um colégio que o aceita, e seu início coincide, também, com o início da sua psicanálise.
Na primeira entrevista com a pediatra, que indicou o tratamento analítico, a fúria da criança e seu descontrole foram extremos: começou a girar
vertiginosamente no chão sobre um dos seus lados, sem que fosse possível
contê-lo, até que a mãe “reduziu-o”, agarrando fortemente pelo tórax, durante o lapso de espera, até ser atendido; após, durante a consulta, insultou
a doutora de maneira tão agressiva e grosseira que a entrevista teve que ser
interrompida.
Os transtornos de conduta, em nível familiar, desencadeados pela mínima tolerância a limites e frustrações, “obrigavam” os pais a “colocá-lo
no chuveiro frio” nos momentos de crise. Também apresentava uma
encopresis secundária, intra e extrafamiliar com condutas bizarras na hora
de defecar: fechava-se por um longo tempo no banheiro, gastava o rolo
inteiro de papel, deixava restos de papel sujo esparramados e chegou a
sujar com matérias fecais paredes e artefatos do banheiro. Leo tem fobias
múltiplas, “mais que medo”, refere o pai, da morte, do escuro, das injeções. Durante a noite, os pesadelos o acordam assustado.
4. Agradeço, especialmente, à Dra. Diana Szabo pela autorização para dispor do material clínico
que ela apresentou no Seminário Curricular do nosso Instituto de Psicanálise: Seminário Teórico
Clínico, 1999. Coordenação Docente: Myrta Casas de Pereda.
134 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135
Myrta Casas de Pereda
A inquietude psicomotriz, presente há tempo, aumentou claramente, a
partir dos dois anos e meio (coincidindo com o nascimento de seu
irmãozinho), quando se instalam o negativismo e a desobediência extrema. A lactância desse segundo bebê foi uma verdadeira via crucis, pois
tinha refluxo gastro-esofágico, e a mãe fechava-se para dar-lhe de mamar
durante duas horas cada vez, abatida em sua depressão pelos vômitos durante a mamada. Progressivamente, esse bebê desenvolveu-se mal e pouco, acreditando-se ser surdo-mudo até há pouco tempo (quatro anos). Tinha lesões no ouvido médio de causa alérgica, que impediram sua audição
e o desenvolvimento da linguagem. Uma vez feito o diagnóstico (recentemente) e adequadamente tratada, a criança começou um desenvolvimento
acelerado, indicando ser uma criança bastante saudável. Leo, assistindo
esse drama cotidiano, que se cristalizou no crescimento defeituoso, pergunta constantemente por que seu irmão não é como as outras crianças,
“por que não posso brincar com ele?”
Ambos os pais dão uma imagem de desamparo desolado, completamente transtornados pela situação, ao mesmo tempo em que, através de
seu discurso e da história, se escuta com clareza a profunda desmentida e
negação diante dos problemas dos filhos. A mãe mostrava marcados elementos depressivos, e o pai um ar de imaturidade angustiada, evidenciando dificuldades em sustentar seu papel. Adjudicavam todos os transtornos
a diversas eventualidades que ocorriam a sua volta (mudanças, troca de
creche, troca de escola, doenças ou a própria sorte) e deixavam
transparecer seu próprio desamparo diante das dificuldades que venciam
todo o espaço da função simbólica parental do cuidado dos filhos. É realmente insólito que acreditassem que uma criança normal fosse surdamuda. Eles mesmos, sem limites claros, no que se refere às mínimas condutas educacionais: o pai toma banho com o filho, ou ambas as crianças
entram no quarto da mãe, quando ela troca de roupas, “para ver as tetas da
mãe”, não “podendo encontrar” qualquer recurso para evitar. Detive-me
nesses detalhes da história porque abonam o entendimento de suas dificuldades mais primordiais, que fixam Leo em um discurso persecutório: tem
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
medo de tudo e ataca tudo e todos. A conduta anti-social, Winnicott insistia
nisso, não é outra coisa senão uma reclamação e uma demanda de amor de
alguém que não pode mais que fazer ao outro aquilo que sente que fizeram
com ele; fantasias intensas de roubo, mutilação, desamor, desamparo reiterado ou filicídio, que sempre entranham a perigosa passagem para o suicídio.
Podemos inferir que todo o primordial é feito com certo defeito, mas é
feito, e seus efeitos não podem deixar de ressignificar-se e aumentar, com
o passar do tempo, em função desse desfalecimento das funções simbólicas familiares. Essas, por outra parte, também contêm elementos ternos e
libidinais que coexistem junto com as vivências de desolação. Transmitem, desta maneira, suas próprias dificuldades organizativas, em sintonia
com as da criança. Também prevêem um prognóstico não totalmente desfavorável. O que, do ponto de vista psiquiátrico, foi catalogado em vários
momentos como psicose infantil, demonstrou não sê-lo, através do andamento do seu tratamento.
Leo sente-se um dejeto, essas fezes que joga sobre o outro, fazendo
com que seja castigado, expulso, rejeitado. A pouca percepção dos problemas dos filhos por parte dos pais contribui para essa enorme instabilidade
da base parental, que não faz mais que aumentar a vivência de desamparo,
de insegurança, de estar sempre em perigo. A realidade das dificuldades
iniciais na vida de seu pequeno irmão incrementa as naturais culpas de
toda criança, perante suas fantasias agressivas fratricidas, onde culpas e
castigos reforçavam-se, intensificando, assim, sua localização paranóide.
O que os pais julgavam ser tudo externo (projeção) incide na conduta de pé
de guerra que exibe a criança.
Vou transmitir agora o primeiro encontro com a analista, a primeira
entrevista, através de seu próprio relato.
Leo está na sala de espera, sentado muito perto da sua mãe. Trata-se
de uma criança alta e robusta, com uma voz particularmente grave, que
parece mais velho e que contrasta com o aspecto frágil da mãe. Vou buscálo, me olha brabo, digo: “Oi, você é o Leo?, meu nome é Diana e queria
que nos conhecêssemos ...”. Interrompe-me, gritando: “Sai, velha, gorda,
136 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137
Myrta Casas de Pereda
nunca magra!”. Causou-me muita graça sua aguda perspicácia e eu sorrio.
Começa uma discussão com a mãe, que quer que ele entre no consultório,
e finalmente Leo tira-lhe as chaves do carro e me segue com elas na mão.
A.: Tens medo que a mãe vá embora e te deixe aqui?
L.: (Vai até o quadro e pega uma caneta verde.) Se este verde não
funciona, morro! Quando vais colocar um pincel atômico permanente?
Retira-se com álcool.
A.: Queres ficar permanentemente?
L.: Sim, mas retira-se com álcool.
A.: Claro, ficar, mas poder ir embora.
Rabisca o quadro sem desenhar nada específico.
A.: O que estás fazendo?
L.: (Mudando para um tom adultóide e didático). Sabes o que faziam
os homens das cavernas que não sabiam falar? Desenhavam. Por exemplo: sopa. Depois veio o alfabeto. Escreve algumas letras. Faz algumas
letras. O h é mudo, mas não em inglês. Após falarem, usavam o quadro
para desenhar coisas que não existiam e eram divertidas.
A.: Estás me ensinando?
L.: Sim, se eu puder, eu ainda vou à escola. (Apaga as letras e diz o
alfabeto.) Não existe letra que eu não saiba, não existe letra que fuja de
mim.
Está de costas para mim, desenha um quadrado preto e pinta seu interior de azul, continua riscando para baixo, cada vez com mais pressão.
L.: Posso ir?
A.: Ainda não.
L.: Eu não vou pensar em coisas boas porque irão me colocar em
uma má condição, que eu venha te ver.
Desenha um circulo e outra figura poligonal.
A.: E agora, o que estás fazendo?
L.: (Olha com a fronte franzida, desenha uma figura humana.) Esta é
você, com cara triste, porque me faz lembrar do (colégio do qual foi expulso), a uma diretora malvada. Tu achas que me enganas?
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
A.: (sorrindo) E sou uma velha podre.
Sorri com picardia.
[...]
Olha pela primeira vez o material de jogos que está sobre a mesa.
L.: Ah, uma construção. Sabes o que vou fazer? Vou transformar em
pó.
Joga tudo no chão. Tenta abrir a persiana de maneira brusca e torpe.
Digo que assim não e mostro como se faz. Examina o ambiente, vira as
cadeiras com os pés para cima. Marca o escritório com a ponta da chave.
A.: Não, Leo, não risques, porque se fica estragado, depois vais te
sentir mal.
L.: Quero marcar as vezes que virei.
Tira a lapiseira da minha mão de supetão.
A.: Se tivesses me pedido, teria te emprestado.
L.: Empresta a lapiseira?
A.: Sim. (Continuo escrevendo com o lápis).
Desenha em uma folha.
L.: É um mapa de fugas.
A.: Será que não é o caminho que vamos fazer juntos?
L.: Não, somente é um mapa de fugas.
Comentarei (parcialmente) o que entendo constituir um momento
pontual de quebra na vivência persecutória.
Diante da saída hostil da criança como primeiro contato verbal, junto
a gestos e tons desafiantes, a analista responde de uma maneira singular:
Fica assombrada, acha engraçado, valoriza, “Diverte-me sua aguda perspicácia”. Resposta cálida àquilo que pôde ter sido sentido como agressão e
que, ao mesmo tempo, e sem sabê-lo, introduz uma dimensão simbólica, o
terceiro da piada, como assinala Freud. Ridicularizá-la, como primeiro
contato, também assinala o sintoma como expulsão hostil (espalhar as fezes), que não é senão uma das variadas formas que assume a vivência
persecutória. Com o sorriso, a analista redimensiona o ataque, ao fazer
presente o humor. Surge de maneira espontânea, sem esforço nem prepara138 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139
Myrta Casas de Pereda
ção intelectual, e isso condiciona seu efeito de interferir nas mencionadas
vivências persecutórias. Incorre no outro (analista) através do ridículo que
une o erótico e a agressividade e que dá lugar a outro cenário, onde esses
mesmos elementos configuram novas imagens. A agressividade natural na
apropriação do objeto implica a pulsão, onde o outro se deixa amar, odiar,
tolerando sua própria destruição ou sobrevivendo-a, como assinala
Winnicott. Também demonstra de entrada que se pode brincar de atacar,
que o ataque pode ser incluído em uma dimensão lúdica onde é habilitada
a emergência dos fantasmas anais sádicos ou orais destrutivos
empantanados em uma faticidade que coagulava sentidos.
Se o fantasma recupera a dimensão de tal, o caminho da neurose fica
habilitado (simbolização). O investimento libidinal do analista, desde o
começo, alude a seu próprio compromisso na tarefa e alivia de possíveis
cristalizações persecutórias. Também aproxima sua escuta aos medos, nomeando-os quando, para entrar no consultório, Leo tira da mãe as chaves
do carro. A resposta de Leo não se faz esperar e emerge como seu primeiro
pedido de ajuda (demanda): “Se este verde não funciona, morro”. Patético
pedido de ajuda habilitado, sem dúvida, pela atitude da analista, que inaugura a possibilidade de reescrever as primeiras marcas, onde a depressão
materna fez estragos nas suas inscrições. A analista escuta as metáforas do
discurso de Leo, produzidas em uma temporalidade não coerente de tempos verbais, que estão presentes no diálogo lúdico, a dialética presençaausência: “Quando vais colocar um pincel atômico permanente? Retirase com álcool”. Isso é o que privilegia a analista ao retomar os termos
“permanente” e “o fato de ir embora” que alivia Leo do (possível)
engolfamento no desejo materno, da fusão enlouquecedora, própria do
dual.
Mas, o persecutório insiste: “tu achas que me enganas” – onde a analista reitera este recurso ao humor, agregando ao discurso da criança o “e
sou uma velha podre”. Coloca humor nesta impugnação ao outro, que a
criança insiste em promover, o qual redunda em sucessivos momentos de
alívio objetivados no material. A analista triadiza (de tríade) todo o tempo
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
e não devolve suscetibilidades, ataques ou retaliações. Leo reitera a
destrutividade fusional; ao termo “construção” lhe segue: “Vou transformar em pó”. Construir-desmontar, fazer-desfazer convocam um lado de
ser e des-ser (desfeito), que concretiza de fato. Ao mesmo tempo, isto constitui uma maneira de explorar a resposta do outro, e aqui a analista começa
um trabalho ininterrupto durante a análise, onde limitá-lo na destruição, no
des-fazer-se, também será essencial. É significativo como a criança entende o limite do “não”; diz: “Marcarei as vezes que virei”. Nessa breve
seqüência, existem indícios vitais em torno da possibilidade de confiar no
outro, de transformar desconfiança em confiabilidade, e antecipa a difícil
tarefa da repetição. Termina a sessão reiterando suas defesas – mapa de
fugas – que é um recurso habitual diante do enfrentamento dual e que assinala seu medo de ser eliminado, que alterna com eliminar a si próprio do
âmbito do outro (fuga e desaparecimento).
Para Concluir
Como saber das pegadas primordiais senão através da rede de significações já acontecidas, ainda nos primeiros anos da infância? Na primeira
entrevista, surge com força a demanda de ajuda da criança junto a sua capacidade simbólica. Faz de uma maneira muita bonita, quando, pouco antes de começar a sessão e referindo-se aos homens da caverna, diz que
antes de saber (“falar”) de seu sintoma estava o ato (“desenhavam sopa”
– valor icônico) e após o alfabeto (“saber falar”, “podiam ser desenhadas
coisas que não existiam”). Singular maneira de falar sobre seus símbolos.
Diacronia e sincronia do discurso infantil onde a atualização sintomática
falante (onde prevalece expulsar e ser expulso) acompanha suas disponibilidades representacionais. Verdadeira demanda ao outro de uma tolerância
extrema ao risco de uma queda na reiteração do círculo vicioso de ser efetivamente rejeitado e expulso. Também é presença do prazer do sintoma
(benefício primário e secundário do sintomático, Freud), que fixa o sintoma na sua repetição. A depressão materna deixa marcas fortes nas funções
parentais, que são reiteradas com o nascimento do irmão, ao contemplar na
140 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141
Myrta Casas de Pereda
decepção e angústia maternas um “não posso mais com isto”. A presença
do diferente, do estranho na figura do irmãozinho não faz mais que reiterar
um circuito dual e persecutório, onde o fracasso, o dano e a morte ficam
em oposição frontal e absoluta com a vida. É muito forte a marca de contemplar um irmão defeituoso, pois ressignifica os fantasmas de dano próprio, acusando ao Outro de fazer filhos mal feitos. O fantasma filicida,
presente na dimensão depressiva materna, alimenta a manutenção e a piora
sintomática de Leo. A mãe depressiva não consegue enfrentar a
agressividade do filho e contribui ao retorno sem saída do rejeitar-ser rejeitado.
A falta de limites em Leo recaía também no fracasso de seu esfíncter
anal, nesse complacente trânsito, onde dentro e fora ficavam impugnados e
onde ele mesmo se convertia em objeto descartado.
A constante alusão a limites que a analista propõe em diversos contextos e circunstâncias (nem sempre fáceis) também incide na possibilidade
de incorporá-los não sadicamente, mas de uma maneira prazerosa. Assim,
seu corpo começa a poder responder “às normas de socialização”. O fato
de valorizá-lo e respeitá-lo, desde o começo, assinala um ato de reconhecimento simbólico, imprescindível nesta história, onde, contra todo o previsto, após um ano e meio, a criança passa a “dispor” de seu fantasma, abandonando o ato sintomático, seja do desafio, ou dos transtornos de conduta,
as dificuldades em seu rendimento, o do briguento ou o do encoprético.
Não duvidamos de que sua disponibilidade simbólica esteja em seu início,
mas também está claro que o fato de que seja ouvido e potencializado pelo
encontro transferencial dá lugar às mudanças.
As primeiras marcas, então, não definem ou marcam para sempre a estrutura do sujeito, pois a possibilidade da ressignificação e de mudança estrutural, mediante a Psicanálise ou não, escrevem uma história em que o destino
da estrutura sempre depende de seu encontro com o outro, parental ou social.
Não esqueçamos que o destino, para Freud, recai, de fato, sobre as figuras
parentais, e o analista retoma simbolicamente esta passagem do bastão.
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
Sinopse
O trabalho propõe uma perspectiva dinâmica, onde a substituição e a transformação do fantasma sintomático reorganiza as articulações patogênicas das
marcas mnêmicas inconscientes. Ao enfoque da repetição sintomática se opõe a
escuta analítica que, propiciada pela recriação e atualização transferencial, permite que o objeto (para o outro a quem é dirigida a pulsão) ofereça um perfil diferente. A interpretação psicanalítica conduz o mais próximo possível das coordenadas
de prazer-desprazer que rodearam a inscrição psíquica. Através de um exemplo
clínico da análise de uma criança de seis anos, reflete-se sobre a dimensão
estruturadora das primeiras marcas (sempre inferidas), seus efeitos e destinos na
estruturação psíquica e sua escuta a partir dos efeitos transferenciais no processo
analítico. Desde uma socialização altamente dificultada por severos transtornos
de conduta, o espaço transferencial (como resposta espontânea e não programada
do analista) privilegia a demanda de amor em um forte discurso persecutório que
desarticula, uma e outra vez, o circuito paranóico. Também a utilização do humor
e a imposição de limites de forma serena e libidinal permitiram uma singular
inflexão da sintomatologia nos primeiros anos da análise.
Summary
This paper proposes a dynamic perspective, where the substitution and
transformation of the symptomatic phantasm reorganises the pathogenic
articulations of the unconscious marks (traces). The fixed character of the
symptomatic repetition is opposed by the analytic listening which, encouraged by
the transferential recreation and actualisation, allow the object (the other towards
whom the drive is addressed) to offer a different profile. The psychoanalytical
interpretation leads as close as possible the coordinates of pleasure-displeasure
that surrounded the psychic inscription. Using a clinical example from the analysis
of a six year old boy, we reflect on the structuring dimension of the first marks
(always inferred), their effects and aims in psychic structuring, and how they are
listened to via the transferential effects in the analytical process. From an extremely
hindered socialisation due to severe behaviour disorders, the transferential space
(as a spontaneous and non-programmed response from the analyst) hierarchises
the call for love in a highly persecutory discourse, which once and again
disarticulates the paranoid circuit. The use of humour and the serene and libidinal
setting of limits enabled a singular inflection of the symptomatology throughout
the first years of analysis.
142 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
El trabajo propone una perspectiva dinámica donce la sustitución y
transformación del fantasma sintomático reorganiza las articulaciones patógenas
de las marcas (huellas) inconscientes. A la fijeza de la repetición sintomática se
opone la escucha analítica que, propiciada por la recreación y actualización transferencial, permite que el objeto (el otro al que se dirige la pulsión) ofrezca un
perfil diferente. La interpretación psicoanalítica conduce lo más cerca posible de
las coordenadas de placer-displacer que rodearon a la inscripción psíquica. A
través de un ejemplo clínico del análisis de un niño de seis años se reflexiona
sobre la dimensión estructuradora de las primeras marcas (siempre inferidas), sus
efectos y destinos en la estructuración psíquica y su escucha desde los efectos
transferenciales en el proceso analítico. Desde una socialización altamente dificultada por severos trastornos de conducta, el espacio transferencial (como
respuesta espontánea y no programada del analista) privilegia el reclamo de amor
en un fuerte discurso persecutorio que desarticula, una y otra vez, el circuito
paranoico. También el uso del humor y la puesta de límites, serena y libidinal,
permitieron una singular inflexión de la sintomatología a lo largo de los primeros
años del análisis.
Palavras-chave
Cadeia representacional; Conduta anti-social, Conhecimento paranóico;
Depressão materna; Desejo do Outro; Encopresis; Estruturação psíquica; Traços
mnêmicos; Identificação primária; Inscrição; Marcas primordiais; Objeto “a”;
Objeto perdido; Pulsão; Repetição; Representação inconsciente; Repressão primária; Ressignificação; Simbolização; Sintoma; Transferência.
Key-words
Representational chain; Anti-social behaviour; Paranoid knowledge; Maternal depression; Desire for the Other; Encopresis; Psychic structuring; Memory
traces; Primary identification; Inscription; Original marks; “A” object; Lost object;
Drive; Repetition; Unconscious representation; Primary repression;
Resignification; Simbolisation; Symptom; Transference.
Palabras-llave
Cadena representacional; Conducta antisocial; Conocimiento paranoico;
Depresión materna; Deseo del Otro; Encopresis; Estructuración psíquica; Huellas
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143
Myrta Casas de Pereda
Resumen
SOBRE
AS
PRIMEIRAS INSCRIÇÕES
némicas; Identificación primaria; Inscripción; Marcas primordiales; Objeto “a”;
Objeto perdido; Pulsión; Repetición; Representación inconsciente; Represión primaria; Resignificación; Simbolización; Síntoma; Transferencia.
Bibliografia
CASAS DE PEREDA, Myrta. El camino de la simbolización: producción del
sujeto psíquico. Buenos Aires: Paidós, 1999.
FREUD, Sigmund (1895). Proyecto de psicología. Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1976. t.I.
FREUD, Sigmund (1896). Fragmento de la correspondencia con Fliess. Carta 52.
Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. t.I.
FREUD, Sigmund (1915). Lo inconsciente. Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1976. t.XIV.
JULIEN, Philippe. Le retour à Freud de Jacques Lacan. Litoral, Toulouse: Eres,
1986.
LACAN, Jacques (1946). Acerca de la causalidad psíquica. In: Escritos I. Buenos
Aires: Siglo XXI, 1988.
LACAN, Jacques (1964). Seminario XI – Los cuatro princípios fundamentales
del psicoanálisis.
LACAN, Jacques (1962). Seminario X – La angustia. Escuela Freudiana de Buenos Aires. (Seminário não publicado, material de distribuição interna).
WINNICOTT, Donald (1968). El uso de un objeto y la relación por medio de
identificaciones. In: Realidad y juego. Buenos Aires: Granica, 1972.
Artigo
Trabalho apresentado na Mesa Redonda de 07/09/00,
do XXIII Congresso Latino-americano de Psicanálise e
IV Congresso Latino-americano de Crianças e
Adolescentes. Gramado, RS, Brasil
Tradução do original espanhol: Traduzca
Revisão da tradução: Dr. Geraldo Rosito
Dra. Myrta Casas de Pereda
Av. Gral. Rivera, 2516
11300 Montevidéu – Uruguai
E-mail: [email protected]
144 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Este trabalho é parte de um estudo que venho fazendo no sentido
de buscar algum entendimento sobre outras culturas e religiões. A
partir de uma viagem realizada, em
fevereiro de 2000, à República
Islâmica do Irã, procurarei fazer algumas reflexões sobre este país e o
Islamismo, correlacionando as mesmas com alguns referenciais psicanalíticos.
Introdução
Nelson Asnis
Médico, Psiquiatra (Fundação
Universitária Mário Martins),
Candidato do Instituto de
Psicanálise da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de Porto Alegre
A agente de viagem Isabel me
informa que, após quase dois meses
de “tratativas”, o meu passaporte
acabara de chegar da embaixada do
Irã, em Brasília, dando o OK para a
viagem.
Pela última vez, ela ainda tentou, sem muito sucesso, convencerme a ir a Cancun ou Porto Seguro.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 145
Nelson Asnis
Por trás do
Véu (sobre
uma viagem
ao Irã)
POR TRÁS
DO
VÉU (SOBRE UMA
VIAGEM AO IRÃ)
Realizamos então uma reunião na agência de turismo para receber as
orientações sobre o rigoroso código de conduta a ser observado no Irã.
Respeitar o uso do véu para as mulheres e camisa de mangas compridas para os homens, nenhum contato físico (sequer aperto de mão) com
pessoas do sexo oposto e, dentre uma série de outras recomendações, as
duas principais, com vistas a poder voltar a ver o meu time (Inter) jogar em
Porto Alegre: nenhuma conversa sobre política e evitar dizer a minha religião (judaica). Esta última, por sinal, não foi problema; ao contrário, inúmeras vezes fui confundido com o mais legítimo iraniano.
O Irã é um país de 71,5 milhões de habitantes, com uma expectativa
de vida de 72 anos, uma mortalidade infantil de 26/1000, inflação em torno
de 20%/ano e salário mínimo ao redor de US$ 30. Como quarto maior
produtor de petróleo do mundo, um dólar coloca 30 litros de gasolina no
tanque.
Após a morte do aiatolá Khomeini, em julho de 1989, dois nomes
passaram a figurar entre os mais importantes do país: Sayyed Ali
Khamenei, aiatolá e líder do Conselho da revolução (sucedendo Khomeini)
e Mohammad Khatami, presidente eleito com mais de 70% dos votos, em
1997.
Os discursos de cada um, proferidos em 1997, na Organização da
Conferência Islâmica, deixam muito claras suas diferenças, como podemos observar a seguir:
Khamenei: “O Ocidente e sua civilização materialista encorajam a
gulodice, os prazeres carnais, a traição, a conspiração, a avareza, a luxúria,
a indecência, a falsidade, a opressão, o desprezo, a injúria e a arrogância”.
Khatami: “Se os muçulmanos querem progredir, devem lembrar seu
passado dourado, mas também possuir a capacidade e senso de justiça necessários a empregar as realizações científicas, tecnológicas e sociais, positivas, da civilização ocidental”.
146 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
O discurso fundamentalista de Khamenei vem, cada vez mais, perdendo espaço para os ideais progressistas de Khatami, refletindo a luta do
povo iraniano em busca de liberdade, traço característico da milenar cultura persa.
O fundamentalismo islâmico (ou, por que não, universal), com suas
pregações violentas, pode ser melhor entendido através da análise de
Kohut sobre a “Psicologia do self e a cultura humana” (1988). Para Kohut,
a agressão humana se torna perigosa, quando se acha ligada às duas constelações psicológicas absolutistas: o self grandioso e o objeto arcaico onipotente.
O que seria um aparente comportamento selvagem, regressivo e primitivo, na verdade, assume a forma de atividades organizadas e ordenadas,
nas quais a destrutividade de seus perpetradores se acha mesclada com
uma convicção absoluta acerca de sua grandeza e fervorosa devoção a figuras arcaicas onipotentes.
Não há rua dentro de Teerã em que a imagem onipresente do aiatolá
Khomeini não apareça. Estabelece-se assim, no Irã, um estado que Kohut
chama de raiva narcísica crônica, na qual as capacidades, metas e objetivos se tornam subservientes à raiva difusa, uma das mais penosas
atribulações da psique humana, com suas expressões de ressentimento,
despeito e atos vingativos, por vezes ardilosamente premeditados.
Do ponto de vista kleiniano, funda-se assim, literalmente, um estado
(psíquico e geográfico) esquizo-paranóide alicerçado na defesa contra perseguidores externos (no discurso do aiatolá Khamenei: “o Ocidente e sua
civilização materialista”).
Conversando com iranianos, admirando sua musicalidade, a magia de
seus tapetes persas e suas mesquitas, visitando as incrivelmente preservadas cidades de Persépolis e Pasárgada (capital do império de Ciro o Grande, 546 a.C.), percebemos que sua fascinante história (influenciada pelas
culturas grega, mongol, árabe, afegã, judaica...) remonta a 7 mil anos, e
não aos 20 anos da revolução fundamentalista dos aiatolás. A identidade
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 147
Nelson Asnis
Um Entendimento Psicodinâmico
do Fundamentalismo Islâmico
POR TRÁS
DO
VÉU (SOBRE UMA
VIAGEM AO IRÃ)
persa está repleta do que Kohut chama de objetos culturais do self.
Khatami, com certeza, está atento a esse passado que chamou de dourado e busca, através de seu discurso, colocar o islamismo como mais um
dos objetos apoiadores do self, e não como dogma irracional a subjugá-lo.
Curiosamente, Khatami é o primeiro líder iraniano que aparece sorrindo em fotos, e esta é, no meu entender, uma das mudanças psíquicas
mais importantes efetuadas no Irã dos aiatolás.
Preconceito: a Tendência para uma
Concepção Uniforme do Todo
Gostaria, agora, de examinar a questão do preconceito que vincula
inteiramente o iraniano e o islamismo ao extremismo fundamentalista.
O dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986) assim
conceitua a palavra preconceito: “1. conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida. 2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato
que os conteste. (...) 4. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a
outras raças, credos, religiões, etc.”.
As imagens do Irã e do Islamismo no Ocidente aparecem, em todas as
matérias, sempre associadas a terrorismo, fanatismo, bombas e violência.
Quando discutimos política no Brasil e queremos nos referir à ala radical de um partido, costumamos chamá-la de xiita. Neste caso, estamos
duplamente equivocados: primeiro, por estarmos incorrendo no preconceito citado acima e, segundo, porque a ala radical do islamismo é a sunita,
sendo a xiita, a moderada.
O escritor Naguib Mahfuz, o romancista mais popular do mundo árabe e Prêmio Nobel de Literatura em 1988, considera uma grande injustiça
o paralelo feito no Ocidente entre Islamismo e violência, expressando assim o seu pensamento: “Seguidamente respondo a esse tipo de juízo com a
seguinte pergunta: eram muçulmanos os nazistas e fascistas? O Islamismo
não é uma religião violenta, ao contrário, prega a tolerância entre povos e
as religiões. O extremismo nada tem a ver com a religião. Todos os re148 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 149
Nelson Asnis
sultados do extremismo são catastróficos” (Zero Hora, 2000).
Jamil Haddad (2000), professor das Universidades de Beirute e Damasco, aponta que, no nascedouro, a função do Islamismo foi, em grande
parte, a de eliminar desavenças intertribais.
Uma leitura mais cuidadosa da história da dominação muçulmana no
Oriente (ano 644) e na Península Ibérica (anos 711-715) mostra um período de grande liberdade para os “povos do livro” (cristãos e judeus). Igualmente, as contribuições do Islamismo para o progresso da Medicina, Astronomia, Matemática e Filosofia foram valiosas (Bowker, 1997; Gaarder
et al., 2000).
Maomé, o grande profeta do Islã, preconizava que “aquele que sai de
casa em busca do conhecimento está trilhando o caminho de Deus”. Livros e conhecimento têm sido sempre descritos pelos muçulmanos como
alimento espiritual (Bowker, 1997).
Os iranianos enfrentam, nos dias de hoje, o desafio de tentar adaptar
sua religião às idéias de liberdade e modernidade, o que, para muitos, nada
mais seria do que resgatar os princípios fundamentais do Islamismo. Igualmente procuram mostrar que o fundamentalismo, de forma alguma, representa a maioria, como dão a entender todas as matérias veiculadas no Ocidente. Por coincidência, chegou às minhas mãos, uma matéria sobre a Líbia
(Cockburn, 2000), na qual o dramaturgo líbio Mohammed al-Allasi desabafa: “o mundo exterior pensa que este país se resume a apenas um homem (Kadafi) e um deserto”.
Em Teerã, viajamos com um arquiteto que trabalhava como guia turístico e com um piloto da Força Aérea Iraniana que lutara na guerra IrãIraque e que, após a mesma, pedira baixa empregando-se como motorista
da agência de turismo. Tratavam-se de pessoas extremamente sensíveis, e,
por alguns dias, entre goles de chá, trocamos idéias, madrugadas a dentro.
Hafez, o piloto, contava que envelhecera 45 anos em 45 segundos,
tempo que durou o bombardeio ao Iraque de que participara, chamando a
atenção para a estupidez da guerra.
Davi, o guia turístico comentava que todo cidadão iraniano possui
POR TRÁS
DO
VÉU (SOBRE UMA
VIAGEM AO IRÃ)
extrema dificuldade para conseguir visto para a Europa, atentando para o
fato de que, até prova em contrário, um iraniano, fora do seu país,
preconceituosamente é visto sempre como um terrorista em potencial.
Ambos nos colocavam que, se tínhamos esta impressão do Irã, iríamos nos surpreender.
Na verdade, ao planejar a viagem, procurei conversar com pessoas
que para lá se dirigiram recentemente, bem como, via Internet, consultar
livros, filmes e revistas para analisar a viabilidade, a riqueza e os riscos da
mesma.
Dessa forma, ter encontrado um povo hospitaleiro que não permite
que se vá embora de suas casas sem que se beba uma xícara de chá, cidades
com praças floridas e ruas seguras para passear, embelezadas pelos
cânticos saídos de majestosas mesquitas, a sensibilidade do cinema e da
poesia, a riqueza arqueológica das primeiras civilizações persas com os
imperadores Ciro o Grande, Dario e Xerxes e seus palácios inteiramente
preservados, a arte dos tapetes, os bazares, as casas de chá e seus narguilés
com sabor de maçã, não foi uma surpresa.
O iraniano comum, retratado nos filmes de Abbas Kiarostami, vencedor do Festival de Cannes de 1997, que sai dignamente para estudar ou
trabalhar, levando seu pequeno tapete persa para as rezas do dia, em tudo
destoa das imagens de violência e terror da minoria fundamentalista. No
entanto, esta minoria acaba por introjetar, equivocada e
preconceituosamente, em nossas mentes, as representações psíquicas do
Irã e do Islamismo.
Karl Jaspers (1987) aponta que, sempre que compreendemos alguma
coisa, já trouxemos conosco o princípio que possibilita e constitui nossa
compreensão; tomaríamos consciência do que, inconscientemente, já tínhamos pensado como evidente. Trata-se de uma tendência que se satisfaz
com idéias básicas, simples e conclusivas, gerando, com isso, a inclinação
para absolutizar pontos de vista, métodos e categorias particulares, bem
como a confusão entre possibilidade do saber e convicção de fé. Os pre-
150 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Considerações Finais
Conhecer o Irã foi uma experiência única. Foi acertada a convicção de
que valeria a pena suplantar as dificuldades encontradas, desde o início da
preparação da viagem.
Por trás do véu nefasto do fundamentalismo, o Irã esconde a sua essência, os seus tesouros.
Correlacionando com o trabalho analítico, muitas vezes percebemos
que, por trás do véu imposto pela doença, esconde-se a essência da pessoa,
tesouros que ela muitas vezes desconhece ou há muito tempo deles se afastou (por vezes até para protegê-los).
É muito freqüente pronunciarmos a palavra respeito.
Mas o que vem a ser respeito? Ao buscar a etimologia da palavra, deime conta de que a mesma sintetiza o que procurei mostrar com este trabalho.
Re significa de novo, e spectore vem de enxergar. Respeitar seria,
pois, enxergar de novo, ver “com outros olhos” um país, uma cultura, uma
religião e, em nosso trabalho diário, os pacientes.
No trabalho analítico, a capacidade de respeitar (para Bion um dos
principais atributos necessários a um analista) evitará fazer com que nos
tornemos o que eu chamaria de “terapeutas fundamentalistas”, donos da
suprema verdade, adeptos fervorosos de uma “religião” (farmacológica,
cognitivista ou psicanalítica), utilizada dogmaticamente ,de forma a subjugar o paciente.
A capacidade de respeitar nos permitirá reavaliar idéias pré-concebidas, diagnósticos, entendimentos e condutas, tentando fazer com que o paciente igualmente consiga rever impressões, preconceitos e julgamentos
que possui de si próprio.
Buscamos todos, em última análise, tentar acessar o que se esconde
“por trás do véu”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151
Nelson Asnis
conceitos pesam sobre nós inconscientemente, mas com uma pressão
paralisante.
POR TRÁS
DO
VÉU (SOBRE UMA
VIAGEM AO IRÃ)
Palavras-chave
Irã; Fundamentalismo; Preconceito.
Key-words
Iran; Fundamentalism; Prejudice.
Palabras-llave
Iran; Fundamentalismo; Prejuicio.
Bibliografia
BOWKER, J. (1997). Para aprender as religiões. São Paulo: Ática.
COCKBURN, A. (2000). Uma nova Líbia? National Geographic. Rio de Janeiro:
Abril.
FERREIRA, A.B.H. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
GAARDER, J., NOTAKER, H., HELLERN, V. (2000). O livro das religiões.
São Paulo: Companhia das Letras.
HADDAD, J. (2000). O que é Islamismo. São Paulo: Brasiliense.
JASPERS, K. (1987). Psicopatologia geral. Rio de Janeiro: Atheneu.
KOHUT, H. (1988). Psicologia do self e a cultura humana. Porto Alegre: Artes
Médicas.
PINTO, I. (1999). Descobrindo o Irã. Porto Alegre: Artes e Ofícios.
ZERO HORA (2000). Caderno de Cultura (entrevista com Naguib Mahfuz). Porto Alegre, 4 nov.
Reflexões
Dr. Nelson Asnis
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90430-000 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone: (0xx51) 330-4377
E-mail: [email protected]
152 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Newton Aronis
Membro Efetivo e Analista Didata
da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de Porto Alegre
Gostaria, em primeiro lugar, de
agradecer aos organizadores deste
congresso o amável convite para
participar desta mesa, especialmente tendo, como companheiros, dois
colegas argentinos que representam
duas instituições ligadas à minha
origem como analista. Depois de alguns anos em Buenos Aires, onde
fiz a residência psiquiátrica em
Lanus, ingressei na Associação Psicanalítica Argentina ,para seguir seminários na Associação Psicanalítica de Buenos Aires, no primeiro
grupo regular; era a época da cisão,
e decidi priorizar minha análise pessoal.
Uma outra coincidência foi
que justamente o primeiro simpósio
interno da APdeBA, em 1978, teve,
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153
Newton Aronis
Análise
Terminável e
Interminável:
Algumas
Reflexões
ANÁLISE TERMINÁVEL
E INTERMINÁVEL:
ALGUMAS REFLEXÕES
como tema, “Análise Terminável e Interminável”.
Mas, subjacente a certas coincidências fenomênicas, pensava na dificuldade frente à amplitude do tema proposto, incluindo a idéia de
referencializar. Ou seja, se bem entendi, como pensar, nos distintos
referenciais, o problema do final da análise, seus indicadores, suas dificuldades.
A partir da releitura do clássico trabalho de Freud, ocorreram-me algumas articulações com dois autores que tiveram influência persistente no
meu pensar psicanalítico, apesar de ter tido contato com eles, anteriormente ao meu ingresso na APdeBA.
Um pensador não psicanalítico – Bachelard – e um pensador psicanalítico – David Liberman. Por que me ocorreram? Fugiria, talvez da proposta de pensar o problema, segundo as Escolas Psicanalíticas. Quem sabe, do
próprio tema proposto.
Muito se tem dito do trabalho de Freud. Alguns apontam a um certo
pessimismo, no final da vida, quanto à eficácia da análise. Também são
citadas as limitações teóricas e os desenvolvimentos posteriores que modificaram a visão das limitações do processo analítico. É possível.
O que nos chama a atenção, no entanto, é a profundidade
epistemológica de Freud, jamais se acomodando aos conhecimentos já adquiridos e apontando caminhos para seus seguidores. E não será demais
apontar para uma limitação do método em fatores que escapam ao seu alcance, talvez biológicos. O “leito de rochas”, ou “rocha virgem”, poderá
ter diferentes entendimentos em diferentes referenciais, mas a questão é se
aceitamos ou não limitações para o nosso trabalho. Um ponto a partir do
qual o trabalho de aprofundar não é mais possível. O desafio poderá ser o
de encontrar a brecha, a fundamentação que permite seguir. Mas a idéia de
limites, independente de sua natureza, não nos poderá ser útil?
Freud resgata o aspecto econômico, tanto ligado à intensidade de um
trauma quanto à intensidade da pulsão. O ego poderá se tornar impotente
frente a forças incontroláveis, externas e/ou, principalmente, internas.
Se pensarmos as fantasias originárias como herdadas, como uma es154 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155
Newton Aronis
pécie de organizadores psíquicos, universais e necessários e que, para
Freud, a vivência de castração ressignifica as experiências anteriores, então encontraremos coerência interna no que desenvolve em “Análise
Terminável e Interminável”.
A pulsão de morte poderá determinar uma maior ou menor dificuldade – de acordo com sua intensidade – na possibilidade de ligações, articulações no aparelho psíquico, nas suas representações. Há uma referência à
inveja do pênis e protesto masculino como uma ação desde o id, não tendo
que ver com elaborações mais conscientes do problema. É como uma base
do inconsciente, não passível de transformações e dependente da intensidade pulsional.
É possível que, entendido desta forma, nos encontremos com um obstáculo infinitamente mais poderoso que a inveja, na teoria kleiniana. Apesar de ser a expressão clínica da pulsão de morte, é passível de transformações no trabalho clínico.
Permitir-me-ia, aqui fazer um parêntese para assinalar que, em épocas
diferentes, tivemos várias concepções teóricas com diversas
aplicabilidades. Assim, a função da análise poderia consistir na lembrança
de um trauma. Ou incluir a pessoa do analista e transformar-se na análise
da transferência. Ou, quem sabe, incluir a contratransferência e pensar num
campo analítico.
O problema é como incluir um novo conhecimento sem, necessariamente, criar regras técnicas. A diferença é a maneira como os referenciais
se fazem representar na mente do analista. A análise, como análise da transferência, como análise da transferência negativa, como construções, como
análise do vínculo, pode se tornar limitadora da mente do analista.
Freqüentemente, podemos nos encontrar trabalhando com uma teoria
traumática, assim como, no momento seguinte, estarmos impregnados de
um aspecto vincular.
Bachelard utiliza o conceito de perfil epistemológico para caracterizar diferentes estágios do pensamento científico que podem estar presentes na elaboração de um conceito [realismo ingênuo, empirismo positivista,
ANÁLISE TERMINÁVEL
E INTERMINÁVEL:
ALGUMAS REFLEXÕES
racionalismo clássico (mecânica racional), racionalismo completo (relatividade), racionalismo discursivo].
Freud, num contexto bastante diverso – desenvolvimento libidinal –
assinala que a “transmutação nunca acontece de maneira integral; por
isso, na plasmação definitiva, podem conservar-se restos das formações
libidinais anteriores”. E acrescenta que erros, superstições primitivas sobrevivem entre nós, ainda nos extratos mais cultos da civilização.
Não seria de estranhar, já que as diferentes lógicas e formas de pensar,
assim como os sistemas de valores (ideais), têm sua origem nas transformações dos diferentes erotismos (ligados ao desenvolvimento libidinal).
Liberman, em seus desenvolvimentos teóricos, oferece-nos uma oportunidade de pensar o que Freud nos deixa indicado nesse trabalho (como,
de resto, ao longo de toda a segunda tópica), como a necessidade de conhecer melhor a instância egóica.
A partir de categorias lingüísticas, semióticas e comunicacionais,
Liberman desenvolve uma verdadeira psicologia do pré-consciente, bastante diferente do que é a psicologia do ego.
A partir de algumas premissas epistemológicas: que a Psicanálise é
uma ciência empírica, com indicadores observáveis e passível de ser pensada a partir do método hipotético dedutivo, Liberman articula sua teoria.
Os diferentes pontos libidinais, através de suas transformações, por ação
dos mecanismos de defesa, dão origem a diferentes estilos lingüísticos e
modalidades semióticas, que configuram determinadas estruturas egóicas.
Existe uma predominância de um estilo, com uma determinada linguagem, defesas, erotismos, ideais predominantes, com a presença de outros estilos subjacentes ou concomitantes. Já que se trata de uma linguagem discursiva, os estilos são observáveis através do estudo do diálogo
analítico, fora da sessão. É com este critério que Liberman elaborou a idéia
de estilos complementários (a melhor forma da interpretação com cada
paciente).
Mas também possibilitou uma Psicopatologia não fenomênica, assim
como a idéia de indicadores observáveis, mais confiáveis, da evolução de
156 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 157
Newton Aronis
um tratamento. Assim, um paciente obsessivo (estilo narrativo) poderá
evoluir com a aparição de novas formas verbais, correspondendo, por
exemplo, à histeria (estilo dramático com impacto estético).
Liberman nos fala de um “ego idealmente plástico”, em que não há
hipertrofia de estilos ou funções egóicas.
Estará de acordo com Freud: “Não só a compleição do ego do paciente: também a peculiaridade do analista demanda seu lugar entre os fatores
que influem sobre as perspectivas da cura analítica e dificultam essa, tal
como o fazem as resistências”. E, mais adiante: “É indiscutível que os
psicanalistas não alcançaram inteiramente, na sua própria personalidade, a medida de normalidade psíquica em que pretendem educar seus pacientes”.
A noção de par analítico, já presente em Freud, é valorizada por
Liberman, que utiliza um conceito operacional da transferência, que implica a constante interação da dupla analítica na transferênciacontratransferência.
Liberman foi principalmente um clínico agudo, de uma escuta musical bastante sutil, e creio que a persistência de suas idéias se deve a isso. A
consistência das suas teorias é a sua aplicabilidade à escuta analítica. Aliás, houve um enorme esforço seu para dar conta de sua clínica e permanece, apesar de usar uma terminologia não psicanalítica.
Voltando a Freud, encontramos uma interessante consideração a uma
mudança no questionamento de como cura a análise, para uma referência
aos impedimentos que obstaculizam a cura. Mais adiante, refere que “o
primeiro passo em direção ao domínio intelectual do mundo circundante
em que vivemos é achar universalidades, regras, leis que ponham ordem
no caos. Mediante este trabalho simplificamos o mundo dos fenômenos
mas não podemos evitar o falseá-lo também, em especial quando se trata
de processos de desenvolvimento e transmutação”.
Bachelard, em seu interessante livro “A formação do espírito científico”, desenvolve a noção de obstáculos epistemológicos.
Poderíamos considerar que um modelo para avaliar a proposta de
ANÁLISE TERMINÁVEL
E INTERMINÁVEL:
ALGUMAS REFLEXÕES
Freud incluiria as formas de pensar que vão se criando no campo analítico.
E que mais abrangente que resistência pode ser a idéia de obstáculo. Obstáculo ao pensamento criativo, obstáculo ao conhecimento, ao desenvolvimento que leva, como diz Liberman, a que a análise deva ser terminável
para o analista e interminável para o paciente.
Bachelard concorda com Freud quando fala da generalização como
obstáculo: “há efetivamente um gozo intelectual perigoso em uma generalização precoce e fácil”. Além disso, facilmente recorremos a exemplos,
imagens, analogias e metáforas fáceis.
Um obstáculo professoral que expressa um apego a entendimentos e
idéias já existentes é uma interessante modalidade de freio a novos conhecimentos. Pode ser compartilhado pelo par analítico. O novo modifica as
condições subjetivas de ambos os participantes do processo e exige uma
certa tolerância ao luto e à dor. Talvez tanto ou mais que os acontecimentos
externos. Seguindo Bachelard: “Na obra da ciência, só pode amar-se aquilo que se destrói, só pode continuar-se o passado, negando-o, só pode
venerar-se o mestre, contradizendo-o”.
De certa forma, a riqueza de nossos referenciais depende da riqueza –
pensamento aberto – de como são pensados. Os pensamentos não substituem o pensador, mas podem obturá-lo. Às vezes, é mais importante a confrontação constante de nossos referenciais com a clínica, de maneira a
torná-lo mais complexo, que o confronto entre referenciais. Segundo
Bachelard, não nos conformamos em ter razão, é preciso ter razão contra
alguém.
Os conceitos são transitórios, modificáveis, e é uma virtude de uma
teoria ter a capacidade de ser alterada, usada, crescer em complexidade, o
que implicará ser cada vez mais abarcativa. Se uma teoria psicanalítica
desse conta dos fatos clínicos, não teríamos outras.
Frente ao ecletismo ingênuo e ao dogmatismo, poderemos pensar no
dinamismo teórico que implica a complexificação crescente, com um ponto de encontro entre teorias, próximo do infinito.
Bachelard afirma: “Segundo nossa maneira de pensar, a riqueza de
158 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 159
Newton Aronis
um conhecimento científico se mede pelo seu poder de deformação. Esta
riqueza não pode vincular-se a um fenômeno isolado que se reconheça
cada vez mais rico em notas, cada vez mais rico em compreensão (...).
Para englobar novas provas será mister, então, deformar os conceitos primitivos, estudar as condições de aplicação desses conceitos e sobretudo
incorporar as condições de apreciação de um conceito no sentido mesmo
do conceito”.
Pode-se objetar que Bachelard pensou, essencialmente, uma filosofia
das ciências objetivas. É certo. Mas, também é verdade que seu pensamento se constitui numa verdadeira “psicanálise” do pensamento. Há algo em
comum entre o pensamento criativo nas ciências da objetividade e os esforços mentais em outras áreas do conhecimento, inclusive na Psicanálise.
E será que o que fazemos não se constitui numa verdadeira epistemologia
do sujeito? E uma forma de pensar o final da análise pode ser justamente
essa que diz respeito a como se estrutura o pensamento do paciente. Um
crescimento e uma autonomia no processo de pensar e apreender a realidade pode ser um poderoso indicador, não só do crescimento mental do paciente, mas, também, de nossa sobrevivência como analistas. Para nós a
análise do paciente deve estar inscrita como terminável, mas nossa autoanálise é interminável. Isso implica estarmos atentos, continuamente, aos
obstáculos que se oferecem no nosso trabalho, não só pelas fortes resistências e problemas oferecidos pela clínica, mas, também, pela força sedutora
que representa a gratificação do poder ligado ao saber, à dependência do
outro, à imposição de valores, etc.
As quantidades excessivas, referidas por Freud podem invadir qualquer dos integrantes da dupla, nem sempre estritamente ligadas a fatores
transferenciais.
A ideologização é uma patologia que freia o desenvolvimento teórico,
embota a mente e caractereopatiza o processo analítico.
E as instituições sofrem, e surgem conflitos que causam muita dor e
não geram crescimento. O problema do poder é muito sério, e seu entendimento envolve tanto as motivações narcisistas como o entendimento só-
ANÁLISE TERMINÁVEL
E INTERMINÁVEL:
ALGUMAS REFLEXÕES
cio-político. E como estarão as análises quando o funcionamento
institucional é patológico? O problema é se estamos lidando com um obstáculo ou com uma “rocha virgem”.
Bem, penso ter circulado por algumas idéias estimuladas pela leitura
de “Análise Terminável e Interminável”:
a) o resgate do modelo econômico, pulsão de morte e a “rocha virgem”, limites da análise;
b) o pensamento epistemológico de Freud e a articulação com
Bachelard;
c) as insistências de Freud com relação ao ego e a ligação com os
desenvolvimentos de Liberman.
Concluiria dizendo que trabalhamos essencialmente com modelos que
nos servem de ponte para o pensar. São transitórios e podem ser enriquecidos continuamente. É necessário que cada um faça sua própria síntese, ao
longo do tempo. Não devemos esquecer que nosso objeto do conhecimento – o inconsciente – é, em essência, incognoscível. Trabalhamos com seus
indícios de existência. Fazer consciente o inconsciente é força de expressão. Temos acesso a um pequeno fragmento do inconsciente, que se perde
assim que formulado. Já é uma boa razão para tornar nossa profissão impossível. Talvez não, desde que se aceite esta limitação: a quarta ferida
narcisista da humanidade deve ser a dos analistas que mal podem ter acesso ao seu tão apreciado objeto de estudo.
Palavras-chave
Final de análise; Epistemologia; Pensamento; Modelos.
Key-words
End of analysis; Epistemology; Thought; Pattern.
160 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Final de análisis; Epistemologia; Pensamiento; Modelos.
Ensaio
Ensaio apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000,
Gramado, RS, Brasil
Dr. Newton Aronis
Rua Florêncio Ygartua, 391/502
90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil
Fone/Fax: (0xx51) 3330.5356
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 161
Newton Aronis
Palabras-llave
Olga Santa María
de Gómez-Roch
Doutora em Psicologia Clínica;
Psicoterapeuta de Crianças e
Adolescentes; Psicanalista Titular da
Associação Psicanalítica Mexicana
Os sonhos, por natureza própria, despertam aspectos lúdicos.
Seus simbolismos e significados
não são inerentes, mas temos que
atribuí-los ao sonhador, que com ou
sem auxílio de seu intérprete, interessa-se pela sua elaboração,
dirigida ao auto-conhecimento.
Freud (1900) escreveu há um
século: “Os sonhos de forma mais
simples serão, sem dúvida, os das
crianças, cujos rendimentos psíquicos são, seguramente, menos complicados que os de pessoas adultas.
Não apresentam qualquer enigma
para resolver, mas possuem um valor inestimável para a demonstra-
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 163
Olga Santa María de Gómez-Roch
O Sonhar e
o Brincar,
Simbolismo
do Mundo
Interno da
Criança
O SONHAR
E O
BRINCAR, SIMBOLISMO
DO
MUNDO INTERNO
DA
CRIANÇA
ção de que, em sua última essência, o sonho significa uma realização de
desejos”.
Anna Freud (1926) sustenta que a interpretação dos sonhos em crianças mantém-se intacta, comparada à dos adultos. Considera que a transparência ou não do sonho estará de acordo com a resistência. Os sonhos das
crianças podem ser interpretados com maior facilidade, devido ao fato de
suas resistências serem menores, mas isto não significa que sempre sejam
simples. Enfatiza sua convicção de que as crianças gostam de trabalhar
com seus sonhos, nas sessões, e lhes dão um caráter lúdico que facilita a
compreensão da interpretação.
Mesmo que a maioria dos autores contemporâneos tenha concordado
com que a realização de desejos não satisfeitos no sonho infantil seja apenas uma parte do tema, sabe-se que neles existem manifestações significativas de conteúdos de ansiedade, agressão, repetição de eventos traumáticos, e que tanto o brincar como as ilusões e as fantasias estão intimamente
vinculadas aos sonhos, nas crianças. Garma (1971) coloca que os sonhos
das neuroses traumáticas não são exceções à regra, como sugeriu Freud,
originalmente, mas que todos os sonhos são de origem traumática. Mesmo
que este conceito seja controverso, o que está claro é que os sonhos de
repetição, que são muito freqüentes, nas crianças, em forma de pesadelos e
terrores noturnos, são constantes no seu denominador e são lembrados,
com clareza, até a fase adulta.
Para Palombo (1978), uma das funções do sonhar tem a ver com alinhar a memória com a realidade atual. Distingue o deslocamento, que é um
processo de substituição, do de condensação, que seria um ato primário de
criatividade do aparelho psíquico. Este seria um ato que dá as bases estruturais da massiva pirâmide do pensamento conceitual. Freud (1911) assentou as bases para esta idéia, quando disse que a melhor maneira de completar a interpretação de um sonho é deixá-lo de lado e dar atenção a outro,
subseqüente, que possa conter uma temática semelhante, mas de uma maneira mais acessível. Propõe que o sonhar seja visto como um precursor de
etapas mais adiantadas de desenvolvimento psíquico, nas quais o afeto é
164 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 165
Olga Santa María de Gómez-Roch
experimentado, e a ação é inibida. O sonho teria, portanto, mais do que
uma função defensiva, uma essência novata com funções adaptativas; conseguí-lo, seria o auto-conhecimento.
Seguindo esta idéia, o ambiente de trabalho converte-se, portanto, em
um “espaço de brincadeira e criatividade”, mais do que “espaço de trabalho”, no qual o sonho é um material único de brincadeira. Aquilo que a
criança pode vivenciar neste “espaço de brincadeira”, no contexto
terapêutico, leva a novas perspectivas organizacionais da economia
libidinal, novos significados para seus esquemas representacionais, facilitando, assim, o processo analítico e acrescentando-lhe a vontade de
desfrutá-lo.
Jerônimo, menino de 8 anos, manifestou, na sua sessão: “meu sonho
esteve ótimo, mas, quando eu te contei, não saiu igual ao meu sonho, não
acredito que possas me entender; necessitaria passá-lo como em um vídeo,
porque não existem palavras para contá-lo”.
Para poder brincar seriamente com os sonhos, necessitamos considerar as implicações lingüísticas e extralingüísticas, de como nós, terapeutas,
recebemos o sonho.
Para poder compreender como ocorre o desenvolvimento do símbolo
com a imagem mental, devemos, antes, considerar o símbolo inconsciente
que seria o que aparece nos sonhos e em alguma atividade lúdica de caráter
inconsciente, na criança, e que chamaremos de “simbolismo secundário”.
Sobre isto, Piaget (1951) descreve três grupos de símbolos lúdicos que são
observados, tanto nos sonhos, como na brincadeira das crianças: aqueles
relacionados ao corpo da criança, que seriam sucção, excreção, etc.; aqueles pertencentes aos afetos relacionados aos pais, como amor, ciúmes,
agressão, abandono, etc.; e, finalmente, as angústias, centradas no nascimento de bebês e rivalidade entre irmãos.
As imagens são a matéria-prima para a elaboração imaginativa, e esta
elaboração pode ser enriquecida no campo extralingüístico, que facilita o
brincar com as imagens do material sonhado. Temos, então, duas alternativas básicas de pensamento: as imagens (é a chamada linguagem dos so-
O SONHAR
E O
BRINCAR, SIMBOLISMO
DO
MUNDO INTERNO
DA
CRIANÇA
nhos) e as palavras (ou seja, o idioma propriamente dito). Que relação
pode existir entre estas duas linguagens? Sanville (1991) propõe que as
imagens são uma comunicação que vai do sujeito a seu próprio self, enquanto que as palavras fazem parte de um discurso que pertence, necessariamente, ao campo bipessoal, mesmo que esteja resultando na auto-interpretação de imagens. Considero que existe uma constante interação destas
duas modalidades, que ocorre com um enriquecimento espiral do inconsciente, o qual nos leva a considerações tanto teóricas como técnicas. Além
do anterior, sugiro que esse processo de expressão simbólica acontece de
idêntica e paralela maneira, tanto no sonhar, como no brincar.
Se aceitamos que a imagem é, em essência, individual, enquanto a
palavra é social, entendemos que o sonhador constrói seus sonhos, para o
que se vale das intermodalidades sensoriais (principalmente do visual, mas
não exclui, ocasionalmente, o gosto, o tato, o olfato e as sensações
cinestésicas). Portanto, a imagem não tem um significado per si, como
pretenderam algumas disciplinas, no sentido de rígidos equivalentes simbólicos, como o resultar que, toda vez que se sonhe com a imagem de uma
cadeira, é segurança; um leão, agressão, etc. De fato, existe um primeiro
momento no qual Freud considera o sonho, como os hermeneutas, como
algo a decifrar. A partir do sonho do “homem dos lobos” (Freud, 1918),
que é um sonho relatado quando adulto, mas sonhado quando criança, observa-se uma guinada à importância do discurso. Vai além, fazendo notar
que seu paciente podia, já adulto, utilizar palavras que não houvesse encontrado na sua infância, dado que a criança não conta, nesse momento,
nem com o pensamento nem com o vocabulário para transmitir a quantidade de ansiedade que continha o conteúdo onírico. Sem dúvida, nesse momento, estão sobreinvestidas as impressões sensoriais, especialmente a visão e a motricidade, e não as palavras nem o pensamento.
A imagem tem uma sobredeterminação, no sentido do ilimitado de
seu simbolismo, de tal maneira que a criança sonhadora poderá, com seu
sonho, assim como com sua brincadeira, viver seu drama pessoal da forma
mais individual e fantástica, no sentido de experimentar, refletir e/ou co166 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 167
Olga Santa María de Gómez-Roch
municar o impossível, o temido, o desejado, o idealizado, o tétrico; o quê,
o quando, o onde, o quem, o como e o porquê, refletindo sem
intencionalidade, sem temporalidade, nem seqüência organizada, o mais
inconsciente de seu mundo interno. Estas condensações, deslocamentos e
simbolismos refletem-se, simultaneamente, na brincadeira, quando um
personagem, marionete, desenho ou boneco transcende atos lógicos, inicia
sua ação sendo um personagem e termina com outra identidade. Ocorrem
transformações de identidade; inclusive, a mesma criança, protagonista da
sua própria brincadeira, pode secretamente exercitar diferentes papéis em
diferentes personagens, que vão desde o bondoso e querido, ao desamparado e angustiado, até o agressivo, enfurecido e cruel. Manifestará, sem qualquer impedimento, todas as ambivalências e contradições necessárias, desobedecendo livremente a regras e parâmetros de censura e repressão. A
repressão poderá, ocasionalmente, aparecer no terreno do onírico, mais
adiante, em crianças na etapa da latência, referente a simbolismo
anatômico, como seria o urinar-se enquanto dorme. Mas, mesmo assim, se
falhasse esta repressão, todo o limite da realidade seria justificável no estado do dormir, por ser um estado de inconsciência, assim como no brincar,
mesmo que em menor grau, dado que é de mentirinha. A responsabilidade,
a repressão e a censura ficam somente no campo do social consciente, no
sonhar não existe negativa, não existe o “não”.
Podemos, sem dúvida, considerar tanto o sonho como a brincadeira
um evento intrapsíquico privado, novato e livre, tanto no seu simbolismo,
como na sua expressão. No discurso que descreve o sonho ou a brincadeira, a criança poderá, já no plano bipessoal, articulá-lo de tal maneira que
decidirá quais conteúdos compartilha e quais não, aparecendo, assim, a
censura. Na sua tentativa de organizá-lo e dar lógica, poderão ser perdidos
elementos relevantes e primitivos; assim mesmo, a idade que a criança
tiver determinará em qual etapa de pensamento se encontra, para percebermos sua competência ou não, quanto à utilização dos aspectos lingüísticos
formais da linguagem, os que somente poderão ser resgatados com a técnica interpretativa, a qual pode incluir o recurso lúdico como substituto
O SONHAR
E O
BRINCAR, SIMBOLISMO
DO
MUNDO INTERNO
DA
CRIANÇA
extralingüístico na recuperação do conteúdo onírico.
Piaget (1951) diz que a criança não sonha, até que tenha linguagem.
Na minha opinião, isto é correto, somente se restringirmos o conceito de
sonho. Sabemos que existe um processo primário mediante o qual o bebê
vai construindo seu eu corporal, assimilando sensações proprioceptivas e
cinestésicas. Sabemos, graças a pesquisa em Neurofisiologia, que o bebê
passa 50% de seu sonho em estado REM, e dificilmente poderíamos saber
o que sonha. Do que não existe dúvida é que o sonho somente é comunicado pela criança ao aparecer a linguagem, mesmo que sejam observadas
manifestações de conduta tais como sorrisos, choro, balbuciação, sobressaltos, etc.. Langer (1942) refere que tendemos a nos referir sempre ao
visível para explicar o invisível. O que nós, analistas, fazemos, analisar,
cujo significado de origem é desmembrar, faz alusão àquilo que em alguma época foi um ato sensório-motor.
As contribuições de Stern (1985), referentes ao pensamento do bebê,
nos ensinam que a percepção inicial é “amodal”, no sentido de que a criança experimenta o mundo como uma unidade. Os afetos são um componente de cada ato perceptivo que se entrelaça com os sons, ruídos, cheiros,
visões e sensações tácteis, que configuram um padrão globalizado que resulta na primeira forma de apreender o mundo que os rodeia. No segundo
ano de vida, a linguagem, ao se fazer presente, vem como conseqüência de
um processo onde o conglomerado de afetos, percepções, enfim, formas de
apreender o mundo, são separados. Portanto, a linguagem sempre fragmenta ou secciona a experiência. Ao vincular experiências com palavras,
isolam-se da original percepção “amodal” que caracterizou a infância. O
anterior explicaria, em parte, porque o recontar de um sonho resulta já na
sua modificação, a encenação desse mesmo sonho na brincadeira, pode
dar-nos elementos valiosos de seu conteúdo original, no caso das crianças.
A intrusão, no que refere à insistência de trazer sonhos, não favorecerá a
sua originalidade. Lembremos, também, que o desejo expressado no sonho
é também tanto de reparação como de recriação, o significado não está
dado, mas se elabora no espaço transferencial lúdico e não exclusivamente
168 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 169
Olga Santa María de Gómez-Roch
em uma sessão, mas ao longo do processo. O sonho, assim como o jogo, é
construído em um espaço de uma única pessoa, e, portanto, o domínio está
naquele que brinca e naquele que sonha, assim como nas primeiras tentativas de associações auto-interpretativas.
A analogia, na minha opinião, entre o sonhar e o brincar é evidente.
Uma das diferenças é que, no simbolismo do sonho, pode haver terrores
noturnos e sonhos traumáticos de angústia repetitivos, enquanto que, na
brincadeira, até o medo é desfrutado, visto que existe maior reparação,
elaboração secundária e ela resulta, por motivos evidentes, mais controlável e manipulável do que o sonho. O anterior nos une ao tema da censura,
a qual aparecerá, obviamente, quanto mais consciente for a expressão. Portanto, o simbolismo onírico será, possivelmente, mais um autêntico disfarce que o mascaramento conseguido no campo lúdico; entretanto, o segundo nos leva a ter uma compreensão mais completa do que a linguagem
permite do primeiro. Os materiais de jogo facilitam, sem dúvida, as representações, dado que o sonho somente se vale de imagens visuais e sensoriais.
Jimena, de 6 anos, ilustra-nos, com um sonho, no qual ela dá resolução a seu conflito de lealdade a seus pais recém divorciados. Sonha que é
levada por sua avó, enquanto dorme, na sua casa, de tal maneira que Jimena
não tem que decidir, por si mesma, se passa mais tempo com seu pai ou
com sua mãe, mas que resolve o conflito, sendo levada contra sua vontade
(enquanto dorme e não tem consciência) para um terceiro lar que resulta
“neutro”.
Poderíamos concluir que existem:
1 – Sonhos de realização de desejos evidentes e transparentes, cujo
desenlace é seu cumprimento e não envolve um simbolismo secundário.
Exemplo deste sonho seria o de Maribel, menina de 5 anos, que participou
de um aniversário e chorou muito ao não conseguir pegar nenhuma bala do
balão surpresa. Nessa mesma noite, sonhou que era a sua festa e ela era a
única convidada. Estava sentada em seu jardim, comendo todas as balas do
seu balão surpresa. Ao entender os resíduos diurnos e a frustração de seu
desejo pelas balas não conseguidas, compreendemos facilmente seu sonho.
O SONHAR
E O
BRINCAR, SIMBOLISMO
DO
MUNDO INTERNO
DA
CRIANÇA
2 – Sonhos em que, da mesma forma que no jogo que envolve um
simbolismo primário, alguns objetos são substituídos por outros. Este seria
o caso de representar a mãe e o pai nos bichos de pelúcia, ou personagens
caricaturescos favoritos da criança. Mãe Urso Pooh e pai ursinho levam
seu filho ursinho para um passeio, deixando para trás os demais ursinhos.
Sem dúvida, também estaria presente neste conteúdo, tanto onírico como
lúdico, a realização do desejo de receber uma atenção exclusiva por parte
de seus pais.
3 – Sonhos nos quais existe algum acontecimento angustiante, mas
que, felizmente, é resolvido no mesmo sonho ou brincadeira. Beto, de 7
anos, sonhou que pediria balas no dia de Halloween, nas casas onde havia
cachorros que latiam e mostravam seus dentes, raivosamente. Sua irmã
mais velha abraça-o, e, como um milagre, os cachorros param de latir. O
elemento de angústia de castração, sem dúvida, está presente nesse sonho,
como poderia estar em uma situação lúdica semelhante. O que também
pode ser observado neste sonho é a função do “guardião dos sonhos”, descrita por Freud.
4 – Os verdadeiros terrores noturnos, os quais colocam neste caso
uma diferença importante do ato lúdico, seriam o regresso e ataque de um
monstro, a queda em um buraco negro sem fim, uma perseguição que termina em aniquilamento, etc. Na brincadeira, a intervenção de elementos
do consciente contribui para que os temores sejam representados por símbolos lúdicos que recorrem a uma fonte do prazer de brincar, proporcional
à angústia, modulando e neutralizando, assim, o pânico e os instintos agressivos e de morte.
5 – Sonhos de auto castigo e castigo. Estes são muito freqüentes nas
etapas de formação do superego e têm uma relação direta com um superego punitivo e sádico, característico desta etapa do desenvolvimento. A criança revive as ameaças, conseqüências e castigos que experimentou com
angústia, e, em algumas ocasiões, existem sonhos e/ou brincadeiras com
conteúdo fóbico.
6 – Sonhos e brincadeiras nas quais intervém, de maneira franca, o
170 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sinopse
Este trabalho apresenta como os sonhos, por natureza própria, despertam
aspectos lúdicos. Seus simbolismos e significados não são inerentes, mas temos
que atribuí-los ao sonhador, que, com ou sem ajuda de seu intérprete, se interessará pela sua elaboração, direcionada ao autoconhecimento. No contexto da análise
infantil, propõe-se ir além da mera realização de desejos. Dá-se importância ao
sonho como material de brincadeira dentro do contexto terapêutico, chegando a
novas perspectivas organizacionais da economia libidinal, a novos esquemas representacionais e à facilitação do processo analítico, com a conquista do prazer.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 171
Olga Santa María de Gómez-Roch
simbolismo secundário, e estão carregados de multisimbolismos; conseqüentemente, resultam complicados, pouco claros, muito elaborados em
personagens, tempos e lugares, apresentando, assim, uma maior dificuldade, tanto na sua compreensão, como na sua interpretação.
Quem de nós não lembra de um sonho infantil? Quantos pacientes não
relatam sonhos repetitivos ou de impacto que tiveram na sua infância e
tivessem desejado entendê-los e assimilá-los nesse momento? Como vimos, o sonho e a brincadeira, analogamente, com suas diferenças óbvias,
pertencem ao mais privado e livre que pode conservar o ser humano e que
permite a assimilação espontânea da realidade para o eu, mediante o simbolismo e as representações mentais. Elaborar o sonho além das palavras
é, também, a função da brincadeira. A participação dos instintos de vida e
morte, entendida em espiral simbólica, é um potencial existente no tratamento das crianças que deve ser valorizado com todo o peso potencial que
existe na repercussão psíquica de nossos pequenos pacientes.
Considero que o que realmente falta na literatura da análise infantil
contemporânea, com relação aos sonhos, é a discussão no que se refere às
diferenças de idades e etapas, o potencial e a relevância dos sonhos dentro
do processo analítico total e a utilização técnica destes.
Ajudar as crianças, levando para o terreno lúdico o onírico, significa
compreender seu mundo interno, facilitando-lhes, simultaneamente, seu
autoconhecimento.
O SONHAR
E O
BRINCAR, SIMBOLISMO
DO
MUNDO INTERNO
DA
CRIANÇA
Para compreender o anterior, são consideradas implicações lingüísticas e
extralingüísticas. Explicam-se as imagens como matéria-prima para a elaboração
no terreno extralingüístico, e a palavra, no lingüístico. Este processo de expressão
simbólica dá-se de idêntica e paralela maneira, tanto no sonhar, quanto no brincar.
A imagem tem uma sobredeterminação, no sentido do ilimitado de seu simbolismo, de tal maneira que a criança que sonha poderá, com seu sonho, assim
como com sua brincadeira, viver seu drama pessoal, refletindo, sem
intencionalidade, sem temporalidade, nem seqüência organizada, o mais inconsciente de seu mundo interno. Concluímos com diferentes tipos de sonhos que as
crianças têm, além de duas vinhetas que exemplificam sua utilidade analítica. O
sonho, como a brincadeira, é construído em um espaço de uma única pessoa, e,
portanto, o domínio está naquele que brinca e naquele que sonha no que se refere
às primeiras tentativas de associações auto-interpretativas.
Summary
This work presents the way dreams, by their own nature, arose playful aspects.
Their symbolisms and significances (meanings) are not inherent. We must ascribe
them to the dreamer, who, with or without the aid of an interpreter, will become
interested in their elaboration directed to self-knowledge. In an infantile analysis
context we go beyond a simple desire accomplishment. The dream is important as
a playing material within the therapeutic context, getting to new organizational
perspectives of the libidinal economy, new representational schemas and the
analytic process facilitation, conquering the enjoyment. In order to understand
the former, there are considered linguistic and extra-linguistic implications. The
images are explained as being raw material for the elaboration in extra-linguistic
and the word in linguistic grounds. This symbolic expression process occurs
identically and parallel in dreams as well as in playing.
The image has an over-determination, in the sense of the illimitability of its
symbolism, in such a way that a child who dreams will be able to live its personal
drama through its dream, as well as through its play, and will reflect the most
unconscious part of its inner world without any intention, organized sequence and
independently of time. We will finish with different kinds of dreams that children
have and two animations, which exemplify their analytic usefulness. The dream,
as well as the children’s play, is built in a space of a single person and, therefore,
172 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Resumen
El presente trabajo refiere como los sueños, por naturaleza propia, despiertan
aspectos lúdicos. Sus simbolismos y significados no son inherentes, sino tenemos
que atribuírselos al soñante, quien con, o sin ayuda de su interprete, se interesará
por su elaboración, dirigida al auto-conocimiento. En el contexto del análisis infantil se propone ir más allá de la mera realización de deseos. Se le da importancia
al sueño como material de juego dentro del contexto terapéutico, llagando a nuevas
perspectivas organizacionales de la economía libidinal, nuevos esquemas
representacionales y la facilitación del proceso analítico, con la ganancia del goce.
Para comprender lo anterior, se toman en cuenta implicaciones linguísticas y
extralinguísticas. Se explican las imágenes como materia prima para la elaboración
en el terreno extralinguístico y la palabra en el linguístico. Este proceso de expresión
simbólica se dá de idéntica y paralela manera tanto en el soñar, como en el jugar.
La imágen tiene una sobredeterminación, en el sentido de lo ilimitado de su
simbolismo, de tal manera que el niño soñanate podrá con su sueño, asi como con
su juego, vivir su drama personal, reflejando sin intencionalidad, sin temporalidad,
ni secuencia organizada, lo mas inconsciente de su mundo interno. Concluímos
con diferentes tipos de sueños que se dan en los niños y dos viñetas que ejemplifican
su utilidad analítica. El sueño, como el juego es construído en un espacio de una
sola persona y por lo tanto el dominio, está en el jugante y en el soñanante en
cuanto a los primeros intentos de asociaciones auto-interpretativas.
Palavras-chave
Simbolismo; Sonho; Brincar.
Key-words
Symbolism; Dream; Play.
Palabras-llave
Simbolismo; Sueño, Jugar.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 173
Olga Santa María de Gómez-Roch
the dominion is in those who play and dream in what refers to the first attempts of
auto-interpretative associations.
O SONHAR
E O
BRINCAR, SIMBOLISMO
DO
MUNDO INTERNO
DA
CRIANÇA
Bibliografia
FREUD, S. (1900). La interpretación de los sueños. Obras completas. 4.ed. Buenos Aires: Biblioteca Nueva, 1981. t.I.
______. (1918). Historia de una neurosis infantil (caso del Hombre de los Lobos).
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International University Press, 1959. v.I.
GARMA, A. (1971). El psicoanálisis: teoría clínica y técnica. Buenos Aires:
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LANGER, M. (1942). Philosophy in a new key. 3.ed. Cambridge, MA: Harvard
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PALOMBO, S. (1978). Dreams and memory. New York: Basic Books.
PIAGET, J. (1951). Play, dreams and imitation in childhood. New York: Norton,
1962.
SANVILLE, J. (1991). The playground of psychoanalytric therapy. London: The
Analytic Press.
STERN, D. (1985). The interpersonal world of the infant: a view from
psychoanalysis and developmental psychology. New York: Basic Books.
Artigo
Tema livre apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000,
Gramado, RS, Brasil
Tradução: Traduzca
Revisão da tradução: Dra. Vera M. H. Pereira de Mello
Dra. Olga Santa María de Gómez-Roch
Bosques de Duraznos 65 – 708
Bosques de las Lomas
México D.F. 11700 – México
Tels: (52) 55965839, (52) 52516824
Fax: (52) 55967786
E-mail: [email protected]
174 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
R. Horácio Etchegoyen
Membro Titular em Função
Didática da Associação Psicanalítica
de Buenos Aires (APdeBA).
Ex-Presidente da Associação
Psicanalítica Internacional (IPA).
Ex-Presidente da APdeBA.
Autor do livro “Fundamentos da
Técnica Psicanalítica”
Este Encontro propõe-se a traçar a história do trabalho psicanalítico clínico desde Freud até nossos
dias, com um enfoque retrospectivo
e prospectivo. Traçar as linhas nas
quais vai se desenvolvendo a teoria
a partir da monumental obra freudiana, onde as idéias divergem e
confluem, é um trabalho difícil; porém, mais difícil é estudar, desta
maneira, a técnica psicanalítica. As
mudanças na teoria são, em geral,
notórias e ruidosas e acompanhadas
de enfrentamento e polêmica; as da
técnica são graduais e podem passar inadvertidas, ainda que, por
mais de uma vez, originassem conflito e controvérsia.
Esta diferença, no entanto, é
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175
R. Horácio Etchegoyen
Algumas
Reflexões
sobre a
História da
Técnica
Psicanalítica
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
aleatória, e cabe lembrar que Freud sempre considerou que uma característica diferente de seu método é que a teoria e a técnica vão sempre unidas,
como bois à canga (Jutkim). Eu concordo com esta afirmação; porém, muitos psicanalistas destacados consideram que a teoria é versátil, e a técnica
permanece igual a si mesma. Isto pode explicar-se, a meu ver, porque a
influência entre ambas não se dá de imediato, e as prescrições técnicas
tardam em incorporar-se à prática, o que provém do exercício profissional
de cada analista e da comunidade à qual pertence.
Todos, ou quase todos, estamos contestes em afirmar que os trabalhos
técnicos de Freud, da segunda década do século, assentaram as bases de
nossa práxis que sempre respeitamos, sem desconhecer as infinitas variedades nas quais foram se apresentando.
Vou tratar de seguir o itinerário das grandes mudanças, sabendo que
não é simples abrangê-las nesta exposição e sem deixar de reconhecer que
nesta seleção podem influir minhas preferências pessoais e minha ignorância. Não vou me ocupar da evolução da técnica na psicose, nas crianças
e na doença psicossomática, tampouco sobre o casal e os grupos, porque
deles falarão colegas especializados, da mesma forma que da psicoterapia
analítica. Apesar de haver dito que a teoria e a técnica vão sempre juntas,
vou circunscrever-me à técnica e deixarei de lado a evolução da teoria,
para não me estender indevidamente e não entrar em polêmicas. Não vim a
Versalhes para opinar, mas para dar meu testemunho.
Um ponto de inflexão na história da técnica se produz quando Freud
abandona a hipnose e recorre à coerção associativa (concentração), impondo suas mãos na frente dos doentes para que surjam as lembranças. Este
procedimento se insinua nos primeiros casos que Freud apresenta nos Estudos sobre a histeria e utiliza-o, já amplamente, em 1892, com Isabel de
R. Neste momento, Freud descobre claramente a resistência, já que adverte que o esquecimento é um processo ativo do não querer lembrar.
Descobrir que a resistência existe e está sempre presente leva Freud,
determinista à outrance, a abandonar a coerção associativa pela associação
livre. Este passo, que acontece por volta de 1896 ou 1897, funda a psicaná176 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
1. Este manuscrito se chamou Sonhos e histeria e foi concluído em 24 de janeiro de 1901.
2. “Disse-lhe que a superação de resistências era um mandamento da cura que nos era impossível deixá-lo de lado” (Freud, 1909, A.E., 10:133).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177
R. Horácio Etchegoyen
lise. A isso se refere Freud, seguramente, quando afirma, nas Palavras preliminares do caso Dora, que “a técnica psicanalítica experimentou uma
reviravolta radical” (A.E., 7:11) desde que foram publicados os Estudos,
em 1895. Vale a pena lembrar que Fragmento de uma análise de um caso
de histeria apareceu em 1905, porém, foi escrito em janeiro de 1901, um
mês depois de interrompido o tratamento, que durou três meses e terminou
em 31 de agosto de 19001. É legítimo supor, como Strachey (1953), Alain
de Mijolla (1984) e outros estudiosos, que a afirmação recém transcrita
data de janeiro de 1901. Pode-se afirmar, então, que, já antes de tratar de
Dora, Freud praticava cabalmente a psicanálise.
Segundo se depreende deste histórico, Freud utiliza com Dora a associação livre e a interpretação dos sonhos, não menos que seus atos sintomáticos, até que ela o surpreende com a decisão de interromper o tratamento. Neste momento, Freud se dá conta, ainda que tarde, que Dora lhe
transferiu seu conflito com o Sr. K., e este contratempo lhe permite completar sua concepção da transferência, que já havia descoberto no quarto
capítulo dos Estudos sobre a histeria (Breuer e Freud, 1895).
Mais tarde, quando fala ao Colégio Médico de Viena, em 12 de dezembro de 1904, Freud separa categoricamente a Psicanálise (e o método
catártico) das outras formas de Psicoterapia, com o que assenta o objetivo
básico de seu procedimento, o que opera per via di levare, e não per via di
porre (Freud, 1905a). Esta lúcida delimitação mostra o gênio de Freud
para captar o essencial, como disse Zac (1971).
A análise de O homem dos ratos, que começou em outubro de 1907,
marca outro momento importante. Na segunda sessão, o paciente diz que
há coisas que não pode contar e, cheio de angústia, pede que o dispense de
entrar em certos pormenores; mas Freud lhe responde de forma tão inflexível que o Dr. Lanzer, ao ver-se obrigado a contar-lhe o tormento dos ratos,
o confunde com o cruel capitão2. Este episódio é detalhado no excelente
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
livro de Patrick Mahony (1986). Também David Rosenfeld (1992) estuda
este episódio e mostra, assim mesmo, a enorme distorção semântica com
que o Homem dos Ratos recebe os arenques que Freud lhe oferece, assim
como suas interpretações.
Pouco depois, e enquanto lida com O homem dos lobos, nos primeiros
anos da segunda década do século, Freud escreve seus trabalhos técnicos.
Vale lembrar que a análise de Sergei C. Pankejéff durou quatro anos e
terminou pouco antes de começar a Primeira Guerra Mundial (Freud a escreveu neste momento, porém, só a publicou em 1918). Muitos autores,
como Meltzer (1978), estimam que é o historial mais completo de Freud.
Aos objetivos deste trabalho, convém destacar os princípios gerais
que Freud estabelece nos seus trabalhos técnicos e que constituem o método psicanalítico, dos conselhos ao médico, de menor nível de abstração.
Freud estabelece a associação livre como uma única regra que impõe
aos seus pacientes, a regra fundamental, indispensável para o desenvolvimento da cura. A associação livre e a sua contrapartida, a atenção flutuante, marcam a tarefa do analisado, que é dar informação dizendo tudo o que
aflora em sua mente, e do analista, que é receber esta informação (escuta)
e responder somente com uma informação que se chama interpretação (e/
ou construção). Delas, seguem outras normas do método, isto é, a reserva
analítica, a assimetria e a regra de abstinência.
A reserva analítica se justifica por diversas razões. Desde já, para não
perturbar a associação livre, o analista deve permanecer em silêncio, na
escuta, sem interferir com perguntas, opiniões, conselhos, comentários e
exortações. A reserva analítica também se sustenta na transferência: “O
médico não deve ser transparente para o analisado, senão, como a lua de
um espelho, mostrar somente o que lhe é mostrado” (A.E., 12:117). Estas
palavras, que pertencem a Conselhos ao médico sobre o tratamento psicanalítico (Freud, 1912), foram muitas vezes criticadas; porém, ao meu ver,
são a chave da técnica. A reserva marca um diálogo singular no qual duas
pessoas falam somente de uma delas (Liberman, 1962), o que sanciona a
assimetria da relação e define a polaridade de ambos os papéis, igualmente
178 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179
R. Horácio Etchegoyen
difíceis, já que é tão penoso ter que dizer tudo, assim como não poder dizer
nada.
A regra de abstinência pode ser entendida de diversas maneiras. Freud
a introduziu em 1915 com referência aos sentimentos eróticos de suas analisadas e previne que o analista não pode satisfazer as demandas de amor,
nem em forma direta, nem mediante subrogados. Afirma inequivocamente: “A cura tem que ser realizada na abstinência” (A.E., 12:168). Ao voltar ao tema do Congresso de Budapeste, em 1918 (Freud, 1919), afirma
novamente: “Na medida do possível, a cura analítica deve ser executada
em um estado de privação – de abstinência –” (A.E., 17:158, itálico no
original), e esclarece, a seguir, que a abstinência aponta a evitar a satisfação substitutiva que os sintomas procuram no paciente; o mesmo havia
dito em 1915. Assim entendida, a regra de abstinência parece que se aplica
somente ao analisado e soa um pouco como técnica ativa, ignorando a
enorme privação que tem que suportar o analista, se vai cumprir com sua
dificílima função de espelho. Se é estendida a toda interação analisado/
analista, como fazem, com razão, María Isabel Siquier e Alberto Solimano
(2000), a regra de abstinência é um princípio básico do método.
Em meio às suas polêmicas com Jung e Adler, na sua Contribuição à
história do movimento psicanalítico (1914), logo após dizer que a teoria
psicanalítica se move nos parâmetros da resistência e da transferência,
Freud afirma: “Qualquer linha de investigação que admita estes dois fatos
e os tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamarse psicanálise, ainda que chegue a resultados diferentes dos meus” (A.E.,
14:16). Se bem que transferência e resistência são teorias e não fatos, o
certo é que, nesta forma, fica definido com precisão o procedimento técnico da psicanálise.
Diferentemente dos princípios gerais, que fazem o método e têm sempre um componente ético, estão os conselhos ao médico, que Freud mesmo
considera contingentes. Se bem que, certamente, existem entre ambos zonas de trânsito, creio ser necessário separá-los, porque muitas vezes discutimos sobre conselhos como se fossem normas e vice-versa.
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
Entre os conselhos, cabe mencionar o uso do divã, o número de sessões, a cobrança das horas em que o paciente não comparece, o acordo
sobre honorários, horários e férias. Apesar de serem variáveis, os conselhos foram de fato aceitos pelos psicanalistas, não só – creio eu – pela
enorme e compreensível autoridade que Freud exerce sobre nós, mas também porque englobam uma grande sabedoria e fazem realmente a história
da técnica.
O divã finca suas raízes na história; continua a técnica empregada no
método inicial de ampliar a consciência (Breuer) ou recuperar as lembranças (Freud) sob hipnose, e justifica-se, obviamente, no método da coerção
associativa. Freud dá também uma razão pessoal para seu uso: não suporta
o olhar de seus pacientes, em suas longas horas de trabalho, nem gosta que
eles percebam os gestos que os seus ditos lhe provocam. O uso do divã
pode explicar-se, todavia, por razões mais gerais que o aproximem às normas do método. Assim como se demonstrou que é necessário que o analista restrinja os contatos sociais com o paciente, para não turvar a assepsia
analítica, tampouco não é conveniente que o analisado tome contato com
as reações afetivas que nos desperta. Deste ponto de vista, o uso do divã
preserva a assimetria e a reserva analítica, e pode incluir-se, então, entre os
princípios gerais. Há outras circunstâncias, mais domésticas, que também
defendem o divã, que oferece ao paciente uma situação cômoda e relaxada
e o protege (o mesmo que ao médico) da posição frente a frente, que pode
lhe resultar embaraçosa. De todas as maneiras, quando convidamos o analisado a se deitar no divã e lhe dizemos que assim se desenvolve o tratamento, não lhe impomos. Uma vez introduzida a norma, o analisado tem a
liberdade de não cumpri-la, e nós, de interpretá-la, conforme vão se apresentando no material os motivos inconscientes de permanecer sentado. A
mesma atitude, por outro lado, mantemos ao introduzir a regra fundamental: não a propomos para que o analisado a cumpra, e sim para ter o direito
de interpretar seu não cumprimento como resistência.
Adler, depois de separar-se de Freud, nos anos dez, eliminou o uso do
divã, porque reforça o sentimento de inferioridade, o que casa perfeita180 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181
R. Horácio Etchegoyen
mente com sua técnica de analisar o ego mais do que o inconsciente. Também Fairbairn (1958) abandonou o divã ao final de sua prática, considerando que, da perspectiva de sua teoria, a relação real entre analisado e analista é um fator terapêutico na qual o divã interfere.
Enfim, que o divã tem algo mais que as preferências de Freud para ser
usado.
O número de sessões é outro dos conselhos que Freud dá e que gerou
grandes controvérsias. Advirta-se que, nos novos conselhos de 1913, Freud
diz que trabalha com seus pacientes seis vezes por semana (A.E., 12:129),
porém, não parece estar impondo uma regra que todos devemos cumprir,
especialmente, quando agrega o ato seguido: “Em casos benignos ou na
continuação de tratamentos muito extensos, bastam três sessões por semana” (Ibidem:129). Não parece, pois, ser definida a posição de Freud com
este ritmo, se bem, ele pensa, como a maioria de nós, que uma premissa do
tratamento é um contato permanente e continuado. Não crê assim
Winnicott (1977), no entanto, quando trata a The Piggle ‘on demand’.
O número de sessões por semana e sua distribuição em dias diferentes
têm sido tema de um amplo debate, ainda não esgotado, no seio da Associação Psicanalítica Internacional. Como dizem Ferrari e Seiguer (1977),
Freud não parece dar-lhe tanta importância; e a isto deve agregar-se que
ele sempre teve a idéia de que a duração do tratamento deve ser medida em
meses e até em semanas, em não em anos, como fazemos. Também devemos reconhecer que, ainda que Freud não prescreva o número de sessões
com toda a clareza e não o defenda teoricamente, como faz com a
assimetria e a regra de abstinência, é evidente que dá alguns elementos
empíricos (o gelo da segundas-feiras, etc.) para sustentar a necessária continuidade do contato.
Em suas reminiscências sobre sua análise com Freud, Kardiner (1977)
refere que, ao aceitá-lo em tratamento, Freud lhe escreve uma carta onde
lhe diz que seu tratamento durará seis meses (“Six months are a good term
to achieve something both theoretically and personally”), e assim o fez,
apesar se suas queixas.
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
Conta Kardiner um incidente divertido no começo do tratamento, conhecido por todos, que mostra que as seis horas de trabalho não eram um
imperativo categórico do método. Freud dispunha somente de trinta horas
vagas para seis pacientes que havia aceitado. Então, reuniu-os para dizerlhes que poderia atendê-los, porém, cinco vezes por semana3. Assim, instaurou-se o regime de cinco sessões, que depois se estendeu à Inglaterra,
onde o sábado inglês era sagrado, aos Estados Unidos e a outros países do
mundo. Quando foi fundada a Associação Psicanalítica Argentina, em
1942, as análises eram feitas, em geral, na freqüência de quatro vezes por
semana, ainda que alguns pacientes faziam cinco. Há muitos países, e a
França é um exemplo, onde o ritmo habitual é de três vezes por semana.
Em resumo, desde o ponto de vista do desenvolvimento histórico, a
idéia de que a análise deva ser feita quatro ou cinco vezes por semana e
deva durar anos é uma idéia mais pós-freudiana que freudiana. Apenas
recentemente a IPA formalizou seus estándares (Janice de Saussure, 19831985).
Para a maioria dos analistas, a duração das sessões deve ser sempre
fixa, indo de sessenta a quarenta e cinco minutos. A hora de cinqüenta
minutos é a mais aceita. Lacan (1953, 1966), contudo, sustentou sempre a
chamada sessão de tempo livre. Justifica esta atitude porque a sessão deve
terminar quando se fecha uma estrutura, já que a suspensão não é indiferente à trama do discurso e desempenha um papel de escanção que tem
todo o valor de uma intervenção para precipitar os momentos conclusivos
(Leitura estruturalista de Freud, p.73)4 . La parole vide, quando o sujeito
fala em vão (p.75; p.254), é outro motivo de escanção. Esta técnica tem
sido discutida por muitos autores, porque expõe a conflitos de
contratransferência, fica muito próxima da técnica ativa (Ahumada, 1992)
3. “Tradition yield to expediency” – “yet this expendiency in its turn became a tradition”, disse
Kardiner, p.18.
4. “C’est pourquoi la suspension de la séance dont la technique actuelle fait une halte purement
chronométrique et comme telle indifférence à la trame du discours, y joule la rûle d’une seansion
qui a toute la valeur d’une intervention pour précipiter les moments concluants” (Écrits, p.252).
182 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183
R. Horácio Etchegoyen
e aproxima-se, inevitavelmente, de problemas éticos (Gilbert Diatkine,
1999).
Baseado em suas teorias, Fairbairn (1958) também questiona que o
tempo da sessão seja regido pelo relógio, e não pela dinâmica interna da
relação.
Outro dos conselhos ao médico, que se aceita em geral sem conflito,
refere-se ao pagamento das sessões em que o analisado falta. Porém, esta
norma não é rígida e pode variar segundo o estilo do analista, as expectativas do analisado e as circunstâncias.
Agora que recordamos o método e os conselhos de Freud e os
avalizamos, desejo assinalar que Freud nem sempre seguia seus próprios
preceitos, como disseram Mahony (1986), Paul Roazen (1995) e outros
autores. Nesta contradição influem diversos fatores. É verdade que o ato
de criação parece liberar Freud de compromissos e formalidades. Porém,
não é suficiente para explicar suas infrações, que o expunham a perturbar
seu campo de observação. Speziale-Bagliacca (1982) o atribui ao
autoritarismo de Freud, e eu lhe dou a razão, porque me parece notório que
Freud pensava (e seu gênio o apoiava fortemente) que nunca se equivocava, e sua memória, realmente formidável, como a do pitoresco Funes de
Borges (1944), o fazia pensar que sempre estava certo. Contudo, a verdade
é que Freud, às vezes, se equivocava, e sua memória o traía.
Mas, além do gênio e do autoritarismo de Freud, suas renúncias devem explicar também porque, apesar da sua auto-análise, ele nunca foi
dono da sua contratransferência. Quando introduziu o conceito no Congresso de Nüremberg, Freud (1910) disse taxativamente que os pontos cegos na compreensão do psicanalista provêm da sua contratransferência,
que é, portanto, um obstáculo para seu trabalho. Esta concepção da
contratransferência como obstáculo foi compartilhada por todos os grandes pioneiros: Jones, Abraham, Melanie Klein, Reich, Anna Freud, Lacan,
Hartmann, somente com exceção, talvez, de Ferenczi. Para chegar a receber tudo o que disse o paciente como material, isto é, sem dar-lhe outro
rumo informativo, e para decodificar como ocorrência contratransferencial
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
(Racker, 1953), o que, naquele momento, quiséramos dizer: todos nós tivemos que percorrer um longo caminho. É coisa do ofício, da aprendizagem
do nosso métier, colocar as coisas em seus devidos lugares. Por isto, resultou mais difícil não dizer a meus pacientes que havia nascido meu filho
Alberto, do que, hoje, não lhes dizer que nasceu meu neto, Pedro. Valha
isto como princípio de explicação entre a distância que vai do que Freud
prescreve e proscreve e do que faz em Barggasse 19.
Melanie Klein pediu a Rosenfeld que não publicasse seus trabalhos
sobre a esquizofrenia até que ela apresentasse seus escritos sobre os mecanismos esquizóides (Grosskurth, 1986). Parece também que Abraham era
reticente ao interpretar algumas coisas a Klein antes de publicá-las. É evidente, enfim, que os grandes pioneiros nem sempre cumpriam com as normas do método, e o mesmo se aplica, é óbvio, a todos nós.
Os escritos técnicos estabelecem as bases de uma prática que coincide
com a teoria desses anos, a metapsicologia, enquanto põe o acento nas
resistências, no inconsciente e na superfície psíquica. Esta teoria foi se
mostrando cada mais insuficiente, o que levou a uma profunda crise.
Para facilitar a livre associação, Ferenczi recorre à técnica ativa, que
Freud elogiou em Budapeste (e praticou), enquanto Abraham (1919) chama a atenção sobre determinados analisados, que não só descumprem a
regra fundamental, como questionam o método da associação livre. O procedimento analítico resultava, pois, mais complicado do que parecia, e seus
efeitos terapêuticos nem sempre eram alcançados.
A conseqüência desta crise levou alguns destacados analistas a mudarem a teoria, e, assim, apareceram o Daseinsanalyse e a psicanálise cultural, enquanto que Freud (1923, etc.), sem abdicar de seus princípios, renovou suas teorias: a metapsicologia deu lugar à teoria estrutural. É difícil
decidir se a grande mudança que promoveu a teoria estrutural repercutiu
sobre a técnica, ou, ao contrário, como me inclino a pensar, as dificuldades
da prática levaram à nova teoria.
Em 1923, Ferenczi e Rank levantaram a questão da necessidade de
uma prática vital e ativa, que prestaria mais atenção à transferência do que
184 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 185
R. Horácio Etchegoyen
à lembrança, mais ao emocional do que ao conhecimento. Criticam o uso
intelectual da técnica de Freud, quando divide conhecimentos teóricos com
o analisado, e lhe objetam, também, não discriminar a resistência da transferência negativa, que reivindicam como parte essencial da cura.
Em concordância com esses princípios, e com o grande trabalho de
Abraham de 1919, Wilhelm Reich dita seu seminário técnico de Viena,
onde a transferência negativa vem ocupar o centro da cena, e o leva a uma
concepção mais ampla da superfície psíquica, que inclui a resistência
caracterológica como fator econômico. Esta investigação culmina com seu
célebre Análise do caráter (1933).
Simultaneamente, e por outro caminho, Melanie Klein (1926, etc.)
introduz a técnica do jogo na análise de crianças, onde, também, a transferência negativa ocupa um lugar de destaque.
Nisto coincidem Reich e Klein, porém, discordam no uso da interpretação, já que Reich a aplica sistematicamente para levantar a resistência
transferencial, enquanto Klein se inclina pela interpretação profunda do
material inconsciente, fazendo livre uso dos símbolos e atendendo igualmente à transferência negativa e positiva, materna e paterna. Se bem que
esta diferença se explica, a princípio, pela índole dos pacientes que tratam,
também é certo que existem divergências profundas que não tardarão em
aparecer.
Em 1927, Anna Freud publica suas conferências sobre psicanálise infantil, onde defende uma aproximação cautelosa com a criança, cuja análise só é possível após um período preparatório que consolida a relação de
trabalho, onde psicanálise e educação seguem juntas. Ela critica as interpretações profundas de Klein, que lhe parecem demasiado audaciosas, para
não dizer selvagens, e não acredita que a criança possa estabelecer uma
transferência, enquanto sua ‘primeira edição’, isto é, sua relação com os
pais, não se esgotou.
No Simpósio sobre análise infantil que aconteceu na Sociedade Britânica, Klein (1927) sustenta que a criança, ainda pequena, já estabeleceu os
seus pais como objetos internos, e os transfere ao analista; e que, se se
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
interpreta o jogo como um sonho e os comentários da criança ao brincar
como associações, o psicanalista tem acesso direto ao inconsciente sem
necessidade de um período prévio. Com esta técnica, a análise das crianças
poderá ser realizada, como a do adulto, sem recorrer a medidas pedagógicas.
Sabemos que Freud se aborreceu com Jones pela forma como os ingleses trataram Anna no Simpósio, segundo estuda Ricardo Steiner (1985).
Porém, convém acrescentar que a posição de Anna resulta mais semelhante com a do pai (dela e da psicanálise) do que a de Melanie.
Sem entrar na discussão sobre a origem do superego e do complexo de
Édipo, que pertencem mais ao âmbito da teoria, é evidente que a ênfase de
Klein na transferência negativa e na interpretação profunda não podia despertar a adesão de Freud. Por mais que Klein acreditasse que sua técnica
era mais ‘freudiana’, havia entre Sigmund e Anna vínculos não só de sangue, como também teóricos. Diferentemente de Reich e de Klein, que romperam totalmente com a sugestão, Freud nunca deixou de pensar que ela
era necessária para vencer a resistência. É que, para prescindir da sugestão,
há que interpretar a fundo a transferência negativa, o que Freud nunca fez.
Depois da crise dos anos vinte, e enquanto Reich e Fenichel sustentam que a técnica é passível de sistematização, polemizando com Theodor
Reik (1933), que defende a intuição e a surpresa, aparecem outros aportes
significativos.
O trabalho de Strachey (1934) sobre a ação terapêutica da análise é
uma síntese formidável de todas as idéias em luta na época. Strachey pensa
que a neurose se constitui a partir de um círculo vicioso em que o sujeito
projeta no objeto seu superego, que volta não modificado, quando não volta pior. Existe, felizmente, uma forma de romper este círculo vicioso, e é
quando o analista, sobre quem se projeta o objeto interno, se converte, por
um momento, em superego auxiliar e, desde esta posição, interpreta, em
dois tempos, a catexia que nele foi projetada e sua diferença com o objeto
arcaico. Se o psicanalisado consegue diferenciar o seu analista do objeto
primitivo, introjeta-o como mais racional, com o que se rompe, por um
186 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187
R. Horácio Etchegoyen
momento, o círculo vicioso e muda a estrutura.
A interpretação mutativa resolve os problemas que, naqueles anos,
estavam sendo debatidos, e que são, no final, os centrais do método psicanalítico de todos os tempos. A interpretação mutativa é inevitavelmente
(ou quase) uma interpretação transferencial, porque somente nela coincidem o objeto arcaico com o que o interpreta. É realmente muito improvável que o analista possa mostrar convincentemente ao analisando que este
está sobrepondo seu objeto arcaico com alguém a sua volta. E é muito raro
também que este alguém não responda à projeção como o objeto arcaico.
Além de ser transferencial, a interpretação mutativa respeita a idéia
freudiana de superfície psíquica, porque atende sucessivamente à defesa e
ao conteúdo, ao mesmo tempo que responde à exigência kleiniana de chegar a camadas profundas. (Se é mais examinada, a interpretação mutativa
ocorre no ponto exato e não é, portanto, nem superficial, nem profunda.) A
interpretação mutativa, enfim, obtém a vivência que reclamam Ferenczi e
Rank (1923), oferece o conhecimento do inconsciente que busca Freud e
constitui o momento de insight ostensivo do qual, muitos anos depois, falaria Richfield (1954) e também Hanna Segal (1962) no Congresso de
Edimburgo.
Ao lado do escrito de Strachey, aparece outro trabalho fundamental, O
destino do ego na terapia analítica, onde Sterba introduz o conceito de
aliança terapêutica: no processo psicanalítico, o ego divide-se numa parte
que expressa os conflitos neuróticos, e outra que, identificada com o analista, os observa e os compreende. Essa linha de investigação foi seguida
depois por Elizabeth R. Zetzel (1956, etc.) e Ralph Greenson (1965, etc.),
que colocaram ênfase na regressão no setting como condição necessária do
processo psicanalítico, enquanto Winnicott (1955), em um de seus trabalhos mais perduráveis, entende a regressão no setting como um fator de
alto valor curativo para certos pacientes.
Em 1936, aparece o lúcido livro de Anna Freud, que aplica, consistentemente, à técnica psicanalítica os princípios da teoria estrutural. Ainda
que Anna Freud respeite o princípio freudiano de partir da superfície psí-
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
quica e de atender primeiro à defesa do que ao conteúdo, como também o
fará Fenichel (1914), recolhe os princípios da análise do caráter de Reich
e, ao interpretar, coloca-se eqüidistante do id, do superego e do ego. A
técnica de Anna Freud é, pois, mais versátil que a de Reich, já que critica o
acesso direto ao inconsciente e o recurso aos símbolos, que propõe Klein, ainda que recolha dela, talvez, a idéia de interpretar, oscilando entre o ego e o id.
A monografia de Heinz Hartmann (1939) segue de perto os preceitos
de Anna Freud e separa a área de conflito da área livre de conflito do ego.
Como todos sabemos, o pensamento de Hartmann e de seus colaboradores
Loewenstein e Kris dominou por muitos anos a psicanálise dos Estados
Unidos, até que apareceram outras tendências, representadas por Leo
Rangell, Jacob Arlow, Robert S. Wallerstein, Harold P. Blum e Charler
Brenner, entre outros autores. Sem separar-se de Hartmann, Rangell entende que a psicanálise é uma empresa de todos, na qual os conhecimentos
vão se acumulando a partir de investigações díspares, as que, ele mesmo,
leva sua contribuição à função egoica de tomada de decisões e à teoria da
ação (Rangell, 1971, 1989, etc.). Arlow (1969, etc.) interessou-se pela
dialética entre fantasia e realidade, enquanto que Wallerstein (1988) buscou a unidade na diversidade de nossas teorias, e Blum renovou o interesse
de Freud (1937) pelas construções. Brenner (1994, 1999), por sua vez, foi
mais além do ego e do id da teoria estrutural e, colocando o conflito e as
formações de compromisso no centro de sua reflexão, abandonou, resolutamente, o conceito de área livre de conflito.
Também a técnica kleiniana foi sofrendo mudanças significativas,
com mais atenção no processo mental pré-consciente e certa cautela ao
interpretar a inveja primária. Cabe destacar os trabalhos de Betty Joseph,
que enfatiza a importância do acting in na transferência e o assinala como
uma séria e persistente tentativa de perverter o vínculo transferencial, tal
como pode ser estudado em seu valioso livro Equilíbrio psíquico e mudança psíquica (1989).
Quando, nos anos cinqüenta, Jacques Lacan inaugura seu Seminário e
pronuncia seu Discurso de Roma (1953), encontramo-nos com um desen188 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 189
R. Horácio Etchegoyen
volvimento teórico que haveria de deixar fortes vestígios marcas profundas na França e no mundo inteiro. Lacan toma como ponto de partida a
lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure para propor um retorno a
Freud com uma leitura estruturalista. Depois tomou outros caminhos, que
não é este o momento de recorrer, e podem encontrar-se no bem fundamentado livro de Elizabeth Roudinesco (1993). Muitos escritos de Lacan
ocupam-se da técnica psicanalítica, como, por exemplo, La direction de la
cure et les principes de son pouvoir (1958), onde podemos apreciar, seu
conceito de ego, diametralmente oposto ao de Hartmann, seu modo de entender dialeticamente a transferência e sua crescente ênfase no discurso
psicanalítico, que recentemente criticou Ahumada (1992).
Na metade do século, sobrevém uma mudança drástica na forma de
conceber a contratransferência. É um mérito de Paula Heimann (1950,
1960) e Henrich Racker (1960) entendê-la não só como um obstáculo,
como também como um instrumento da cura. Este salto qualitativo instaura verdadeiramente um novo paradigma (Kuhn, 1962), onde o compromisso do analista em seu trabalho é reconhecido, finalmente, explicitamente.
A partir deste momento, o conceito de assimetria muda, tem que mudar; e
assim se definem duas formas de entender a psicanálise e também de
praticá-la: alguns autores pensam que a participação contratransferencial
do analista no tratamento não apaga a assimetria, porém, torna mais difícil
mantê-la, obrigando o psicanalista a resgatar-se, momento a momento do
processo, para poder, a partir daí, interpretá-lo; outros, ao contrário, pensam que a assimetria se torna completamente ilusória.
Embora o descobrimento da contratransferência como instrumento
técnico tenha se dado, simultaneamente, em Londres e Buenos Aires, é
evidente que Racker a estudou mais consistentemente. Em 1948, Racker
postulou uma neurose de contratransferência como réplica da neurose de
transferência com suas características específicas (Estudo 5) e, no Estudo
6 de 1953, precisou os significados e usos da contratransferência, distinguindo vários tipos. Nas ocorrências contratransferenciais, o analista encontra-se pensando, espontaneamente, algo egodistônico, que no momen-
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
to não se justifica e depois aparece, de alguma forma, no material do analisado. As posições contratransferenciais, ao contrário, são mais permanentes e implicam um maior conflito no analista.
Racker também classifica a contratransferência em concordante e
complementar. Na contratransferência concordante, o analista se identifica, parte a parte, com as instâncias psíquicas do analisado e é, portanto,
mais empática; na contratransferência complementar, o analista ocupa o
lugar do objeto interno do paciente, o que implica um maior nível de conflito. A isto, acrescenta León Grinberg (1976, etc.) o conceito de contraidentificação projetiva, onde os conflitos do analista não entram em jogo, e
é a identificação projetiva do analisado que, por sua intensidade e qualidade, leva o analista a fazer-se cargo de “uma reação ou mecanismo que
pertence ao paciente” (Grinberg, 1976:89). Em outras palavras, na contraidentificação projetiva, o analista se vê, literalmente, forçado a assumir o
papel de um objeto que pouco ou nada tem a ver com ele. Este aporte de
Grinberg completa e enriquece as idéias de Racker e destaca o valor comunicativo da identificação projetiva.
A teoria da contratransferência como instrumento veio mostrar que o
processo psicanalítico é mais complexo do que antes se pensava, porém,
também abriu novos caminhos.
Os Baranger (1961-1962) definiram a situação analítica como campo
dinâmico, onde aparece uma fantasia de casal.
A partir da prática da psicanálise com casais, famílias e grupos, foi
constituindo-se outro marco teórico para abarcar os desafios que propõem
estas novas práticas. Culminando numa investigação de muitos anos,
Isidoro Berenstein e Janine Puget (1997) diferenciam relação de objeto e
vínculo. A tese fundamental destes autores é que o outro não é somente
semelhante, mas também alheio. Puget e Berenstein consideram que vivemos em diferentes mundos psíquicos, que não se sobrepõem. No mundo
intra-subjetivo, está o sujeito com suas representações e suas fantasias,
onde operam os mecanismos de projeção e introjeção; aqui funciona a relação de objeto, e o outro só é necessário para colocar aspectos da própria
190 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191
R. Horácio Etchegoyen
mente. No mundo intersubjetivo, o ego está com outros, e a relação é mais
homogênea, mais real. No vínculo – diz Moguillansky (1999) –, a
alteridade é irredutível (p.97), e, enquanto partícipes do vínculo, somos
significados por ele. No espaço vincular, aparece o que é alheio, o
incompartível do outro. O terceiro espaço é o sociocultural, com seus valores, suas crenças e suas ideologias: é mundo trans-subjetivo, que atravessa
os outros dois, onde se alojam as relações do ego com a sociedade.
Quando, em 1970, George S. Klein se pergunta se na psicanálise, existem duas teorias ou uma e se declara partidário da teoria clínica, contra a
metapsicologia, abre um caminho que nos conduz à hermenêutica. A linguagem e a teoria clínica dão conta da motivação e das relações objetais,
enquanto a metapsicologia, que concebe a mente como um modelo mecânico, paga um alto preço para sustentar uma explicação da atividade mental nos termos fisicalistas caros a Freud e aos cientistas do século XIX. A
teoria clínica, ao contrário, vai em busca dos significados que surgem do
conflito humano. Esta linha foi depois seguida por Gill (1994, etc.),
Schafer (1976, etc.) e, em outro sentido, por Owen Renik (1993) e Donald
P. Spence (1982, etc.).
A hermenêutica psicanalítica tem também grandes cultuadores na Europa, como Alfred Lorenzer (1970, etc.), com sua teoria da compreensão
cênica, que se sustenta no círculo hermenêutico com a compreensão, sem
recurso algum à explicação. Na França, destaca-se a obra de Serge
Viderman (1979), com sua ênfase na linguagem. O campo da hermenêutica
psicanalista é vasto e difícil de delimitar, como disse Saks (1999), ainda
que possamos mostrar que se interessa, fundamentalmente, pela linguagem e pelo sentido, por razões e não por causas, defendendo a compreensão, e não a explicação.
A viva controvérsia sobre se a psicanálise é uma ciência da natureza
(Naturwissenshaften) ou do espírito (Geisteswissenschaften) ocupa um lugar importante em nossos dias, que despertou o interesse de Charles Hanly
(1992), Gregorio Klimovsky (1994), Jorge Luís Ahumada (1999) e outros
pesquisadores. No valioso livro de Thomä e Kächele (1985), pode-se en-
ALGUMAS REFLEXÕES
SOBRE A
HISTÓRIA
DA
TÉCNICA PSICANALÍTICA
contrar uma clara exposição desta problemática. À margem desta discussão, cabe mencionar André Green (1991), para quem a psicanálise é um
conhecimento do sujeito válido por si mesmo e completamente separado
da ciência.
Toda teoria e toda prática nos expõem a certos riscos, e sustentá-las
tem um custo. Assim como os que entendem a psicanálise como ciência da
natureza podem cair no positivismo e perder de vista a singularidade da
linguagem humana, os que se amparam no círculo hermenêutico sempre
verão oscilar sobre suas cabeças a espada de Damocles de la folie à deux.
Os narrativistas, por sua vez, estão sempre a um triz de operar per via di
porre, e os interacionistas de jogar fora a assimetria. Também os que preferem operar com três mundos, na tentativa de incorporar, substancialmente,
ao nosso ‘que fazer’, ao outro e à sociedade, estão expostos a descuidar da
transferência.
Assim, cheguei ao fim da minha exposição. Lamento o que deixei
pelo caminho e o que tive que abreviar. Quero pensar, contudo, com otimismo, que o dito poderá ser um estímulo para o pensamento e a crítica de
todos vocês, que me honram com sua presença.
Quero agradecer a Harold J. Blum, Roberto Doria Medina Jr.,
Jacqueline Amati-Mehler, Jorge Luís Ahumada e María Isabel Siquier
pela ajuda que me prestaram para redigir este trabalho.
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196 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Artigo
Trabalho apresentado em “Recontre de Versailles” sobre a
História da Psicanálise, ano 2000, Versalhes, França
Tradução: Traduzca
Revisão da tradução: Dra. Vera D. M. Chem
Dr. R. Horácio Etchegoyen
Posadas 1580 Piso 13 “A”
1112 Buenos Aires – Argentina
Telephone: (5411) 4806-4373
Fax: (5411) 4804-0732
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 197
R. Horácio Etchegoyen
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198 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Samuel Arbiser
Membro Titular com Função
Didática da Associação
Psicanalítica de
Buenos Aires (APdeBA)
Este artigo é um convite à reflexão sobre três pontos:
O primeiro sustenta a relação
de interdependência entre o extraordinário desenvolvimento da psique
humana e a vida na cultura. Esta relação de interdependência é complexa e está longe de ser simétrica.
O segundo propõe a noção de
“grupo interno” como modelo do
psiquismo que, na minha opinião,
mais se ajusta a representar esta
interdependência.
O terceiro refere-se a sustentar,
como conseqüência dos anteriores,
a íntima relação entre as características da cultura em cada momento e
lugar e as expressões da Psicopatologia, particularmente as da cultura
pós-moderna.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 199
Samuel Arbiser
Psique e
Cultura
PSIQUE
E
CULTURA
I)
Sigmund Freud, involuntariamente, escandalizou o mais respeitável
do establishment social e acadêmico da sua época, quando, nas suas pesquisas sobre as histerias, reconheceu uma etiologia sexual e, como resultado não desejado de seu trabalho, desmascarou a hipocrisia social ou, se
preferível, a dupla moral, nos assuntos da sexualidade. Não o intimidou o
“esplêndido isolamento” ao qual foi condenado pelos que o rodeavam e,
durante o processo de criação do método e a teoria psicanalítica, especificamente aplicável aos indivíduos, foi além, refletindo sobre a dimensão
coletiva, isto é, sobre o social e o cultural. “A moral sexual ‘civilizada’ e
doença nervosa moderna” (1908), “Totem e tabu” (1912/3), “Psicologia
das massas e análise do ego” (1921), “O futuro de uma ilusão” (1927), “O
mal-estar na cultura” (1930), “O porquê das guerras” (1932) e “Moisés e a
religião monoteísta” (1938) formam uma relação ou, se preferível, um
contraponto entre o individual e o coletivo (social ou cultural).
A Psicanálise nasceu no apogeu da cultura européia “moderna”, no
final do século XIX, quando Sigmund Freud começa a abordagem de seus
pacientes “nervosos”, explorando um método e explicações inéditas para a
Medicina de seus contemporâneos. Justamente ele, um rigoroso
neurofisiopatologista familiarizado e experiente no uso do microscópio,
deixa de lado esse maravilhoso instrumento ótico com o qual havia prometido desvendar, definitivamente, todos os mistérios etimológicos das doenças. Em troca, reconhece, como sustento da sintomatologia, o “infortúnio
ordinário” e, desse modo, produz um extraordinário salto metodológico e
epistemológico no esclarecimento da “miséria histérica”. “Repetidas vezes tive que ouvir dos meus doentes, após prometer-lhes a cura ou o alívio
mediante a cura catártica, esta objeção: ‘Você mesmo diz: é provável que
meu sofrimento se misture com as condições e peripécias da minha vida:
você nada pode mudar nelas, e então, como pretende me socorrer?’ Pude
responder: ‘não duvido de que ao destino lhe resultaria mais fácil que a
mim livrá-lo do seu padecer. Mas, você se convenceria de que é grande o
ganho se conseguirmos mudar sua miséria histérica para infortúnio co200 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
1. O grifo é do autor.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 201
Samuel Arbiser
mum. Com uma vida anímica restabelecida você poderá se defender melhor deste último” 1 (Freud, 1895, T.II, p.309). Conseqüentemente, nem
microorganismo, nem mudança celular ou tissular eram responsáveis pelas
neuroses, mas se tratava de “condições e peripécias da vida”, isto é, vicissitudes dos inevitáveis conflitos derivados da convivência entre os seres
humanos na cultura. Supera-se, desta forma, o impasse no qual a Psiquiatria clássica havia parado, perseguindo seus esforços no terreno da Biologia.
Se nós os humanos compartilhamos com os animais o fim biológico
último da sobrevivência individual e da espécie, diferenciamo-nos desses
porque nosso ecossistema não é somente o mundo “natural”, mas, em um
âmbito muito maior, o mundo “sociocultural”. Enquanto os animais podem se conformar com um rudimentar psiquismo, confiando que seus instintos farão todo o trabalho necessário para a sobrevivência individual e da
espécie, no homo sapiens essa tarefa já não é instintiva, mas aprendida e,
conseqüentemente, a variedade do sucesso desta aprendizagem da disciplina da vida na sociedade e na cultura dependerá das cambiantes vicissitudes do desenvolvimento do seu aparelho mental. Ao assinalar a preponderância do aprendido sobre o instintivo, pretendo mostrar que a complexidade do psiquismo humano, tanto no seu rendimento como na sua
vulnerabilidade, está em consonância com a extraordinária complexidade
da cultura. Desta maneira, tento enfatizar a intrincada e solidária relação
de interdependência entre o desenvolvimento da nossa mente e o desenvolvimento da cultura e, nessa mesma ordem, interessar pelo modelo de
psiquismo proposto por Enrique Pichon Rivière (1971), e eu mesmo
(Arbiser, 1985) tentei desenvolver, durante as últimas décadas, o “grupo
interno”, este modelo tem como eixo essa relação psique-cultura.
PSIQUE
E
CULTURA
II)
O grupo interno é uma maneira de visualizar e conceituar – em um
sentido funcional – o psiquismo humano em termos de um repertório de
estruturas vinculares organizadas numa unidade que as faz coerente (no
melhor dos casos). Estas estruturas vinculares estão em permanente
intercâmbio de retroalimentação com as estruturas vinculares do
mundo externo presente. Foram incorporadas durante o desenvolvimento evolutivo e reproduzem refratado, no mundo interno, o mundo social e
cultural próprio de cada indivíduo. A infinita variedade de histórias pessoais determina a “singularidade” com que cada indivíduo decodifica e
processa os universos culturais e a herança cultural.
Em outros termos, minha opinião é que o “infortúnio ordinário”
ao qual Freud aludia nos seus primeiros trabalhos é a porção do inevitável “mal-estar na cultura” que toca a cada um de nós ao enfrentarmos a tarefa de viver. Portanto, partindo da idéia de que a cultura seria
algo assim como o psiquismo da humanidade no seu conjunto, poderiam
ser propostos três níveis de “mal-estar na cultura”: nível geral, abordado
pelo somatório das disciplinas humanas: a Filosofia, a Política, a Economia, a Arte, a Literatura, a Religião e outras que estudam os múltiplos
aspectos que constituem os universais e acontecem em toda cultura; nível
particular, que enfoca características de época ou lugar, ou de grupos determinados que estudam a Antropologia e a Psicologia Social, entre outras;
nível singular, resultante do encontro entre cada cultura particular com a
dotação genética de cada indivíduo e cada detalhe de suas circunstâncias
vitais. Este prematuro encontro da marca cultural e do desvalido neonato
humano institui o psiquismo, que irá requerer muitos anos de evolução,
assistido pelo entorno cultural íntimo (a família) e, que, com o passar do
tempo, será cada vez mais abrangente.
Com a teoria psicanalítica das “identificações constitutivas” (Freud,
1917, 1921, 1923) é dado o passo decisivo para configurar o nosso
psiquismo como um espaço interno povoado pelo mundo humano (cultural). Antes da teoria das identificações, o eixo da teorização girava em tor202 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
III)
É neste último nível do “mal-estar na cultura”, o da singularidade, que
a Psicanálise tem seu lugar específico de acesso. Não que os psicanalistas
não tenham tentado penetrar em outros níveis. Freud, mesmo, o fez em
todos seus trabalhos “sociais” já mencionados e, embora considerados contribuições essenciais no campo psicanalítico, conseguiram somente uma
limitada inserção nos campos específicos mais abrangentes da Religião, da
Antropologia, da História, e da Dinâmica dos Grupos. Nicolás Espiro
(1985) faz, nesse sentido, uma interessante e instrutiva crítica
epistemológica ao texto freudiano de “Mal-estar na cultura”. Os pensadores da cultura, no seu nível mais geral, não ignoram a importância decisiva
da Psicanálise e suas contribuições para a compreensão da conduta huma2. O grifo é do autor.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 203
Samuel Arbiser
no da repressão, que constituía a interface entre a consciência e o inconsciente. As explicações eram expressadas em termos vetoriais de forças em
conflito e de formações de compromisso entre as forças. O descobrimento
da existência de um mundo psíquico, desconhecido em cada pessoa, o inconsciente, centralizava o assombro da nova disciplina. A meu ver, a teoria
das identificações submerge, sem descartá-la, a anterior da repressão e configura um novo ponto de partida. A noção de “grupo interno” está baseada
na teoria das identificações e das relações de objeto, mas as torna complexas ao sustentar que não se internalizam objetos “isolados” no nosso
psiquismo, mas estruturas vinculares portadoras das particularidades
organizacionais sociais e a herança cultural, próprias de cada grupo familiar. Em poucas oportunidades Freud (1917) se manifesta tão claramente
no sentido de visualizar os pais como intermediários do mandato social, e
a criança em desenvolvimento, como na seguinte história: “A filha encontra na mãe a autoridade que cerceia sua vontade e a pessoa a quem foi
confiada a missão de lhe impor essa renúncia à liberdade sexual que a
sociedade demanda... Para o filho, o pai encarna toda a co-ação social,
que suporta com desgosto” 2 (T.XV, p.188).
PSIQUE
E
CULTURA
na, mas não aceitariam que por si só explicasse as motivações da vida
coletiva, a dinâmica dos grandes eventos sociais e os movimentos
evolutivos que ocorrem na cultura. Ninguém com escrúpulo
epistemológico aceitaria, sem reservas, que a guerra é um produto do aumento do “instinto de morte” ou das “tendências filicidas” dos indivíduos
de uma determinada comunidade. É necessário reconhecer que, durante o
século, a Psicanálise influenciou, nos decursos da cultura, apenas modestamente. A cultura tem seus próprios dinamismos que transbordam amplamente as possibilidades explicativas e operativas da Psicanálise. Seria ingênuo supor que uma humanidade idealmente psicanalisada, na sua totalidade, evitaria as guerras, a distribuição injusta dos bens e a administração
irracional do poder e do sexo. As Instituições psicanalíticas, nas quais supomos que todos os seus membros estariam psicanalisados, não mostram
melhores condutas que a sociedade no seu conjunto, quando se colocam
em jogo as questões mencionadas.
Mas, no sentido contrário, poucos colocariam em dúvida que as mudanças culturais produzidas na história da humanidade redundaram em
marcadas mudanças na subjetividade e, conseqüentemente, na
Psicopatologia. O lúcido trabalho de Eugenio Gaddini (1984), “As mudanças nos pacientes psicanalíticos de nossos dias”, entre muitos outros, apresenta, claramente, as mudanças na Psicopatologia durante o século XX
paralelamente às mudanças culturais. O que a Psicanálise, sim, pode abordar, são os “infortúnios humanos” daqueles poucos com suficiente
“egodistonia” que procuram para processá-los e permitir uma “adaptação
ativa à realidade”, nos termos de Pichon Rivière, ou nos termos de Freud
(1924, p.195), quando define: “Chamamos normal ou ‘sã’ uma conduta
que agregue determinados traços de ambas as reações: que, como na neurose, não desminta a realidade, mas, como na psicose, se empenhe em
modificá-la. Esta conduta adequada, dita normal, leva a realizar um trabalho que atue sobre o mundo externo, e não se conforma, como a psicose,
em produzir alterações internas; já não é autoplástica, mas aloplástica”.
Isto resulta em uma processo dialético entre uma introspeção crítica (o
204 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
3. Considero imprescindível para os psicanalistas uma consciência das dinâmicas que movem o
mundo no qual vivemos, mas isso não deve ser confundido com um alento à ação revolucionária
como se postulava como dever, no final da década de 60 e durante a de 70.
4. Esta autora, em apenas um parágrafo, dá uma imagem eloqüente dos pacientes “pós-modernos”: “Há alguns anos encontrávamos no divã do analista um bom número de pacientes que sofriam diversas formas de impotência sexual ou frigidez, em um contexto no qual o objeto sexual
habitualmente era amado ou superestimado. ‘Amo-a e, entretanto, não posso fazer amor com ela’.
Hoje existem mais analisados que dizem: ‘Faço amor com ela, mas não a amo’ ” (p.270).
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 205
Samuel Arbiser
insight) e uma visão também crítica3 (nem contestadora, nem sectária) do
nosso entorno e dos complexos dinamismos que o movem.
O impressionante avanço na ciência e na tecnologia do nosso tempo
conduziu a uma vertiginosa mudança do pensamento da humanidade. Sobre isso, existe abundante e instrutiva literatura de pensadores autorizados,
psicanalíticos (McDougall, 1982)4, (Ahumada, 1985), (Carlisky, compilador, 1998) e de outros campos (Lipovetsky, 1983; Sartori, 1997). Limitarme-ei a destacar somente alguns valores inerentes ao método e ao dispositivo analítico, em especial disputa com as mudanças culturais próprias da
pós-modernidade.
Insistiu-se, com razão, em que a Psicanálise caminha a contrapelo da
cultura pós-moderna. Não adianta reclamar. Esta evidência deveria estimular a autocrítica e a criatividade dos psicanalistas para abordar, com
renovados brios, o desafio que o novo nos apresenta e tentar, assim, atualizar a eficácia e o frescor do método e da teoria. O que é urgente é revisar
criticamente a rigidez dos parâmetros, a fim de poder, como Freud, na sua
época, discernir o ponto de urgência atual, tanto no indivíduo, como na
cultura. Mas, também, seria justo reconhecer que nessa revisão não haveria acordo unânime entre os psicanalistas sobre o que é essencial e
irrenunciável e aquilo que pode ser reinventado para enfrentar os novos
tempos. E esta é a ocasião para expor minha opinião pessoal sobre o que
considero como valores inerentes à Psicanálise:
a) Trabalho psíquico: com isto pretendo assinalar uma diferença entre a terapia analítica e qualquer outro método terapêutico. O analista não
fornece qualquer meio supressor para o alívio imediato do padecimento
PSIQUE
E
CULTURA
que molesta o paciente, mas que deve ser apresentado para conduzir um
processo tal, bem como para que o prórpio padecimento exerça no paciente o estímulo necessário para interiorizar-se no desconhecido ou
inexplorado de si próprio. É mais importante ajudar à auto-indagação que
ao fornecimento de respostas. Isto, para paciente e analista, significa renunciar aos atrativos atalhos das soluções prêt-à-porter e os expõem a enfrentar incertezas. O resultado para ambos, em experiência emocional e
vivencial, é incomensurável. Parafraseando o poeta: do que se trata, não é
de transitar os caminhos existentes, mas de “... fazer caminho ao andar...”.
Como conciliar este valor com a cultura atual da facilidade dos produtos
vistosamente embalados?
b) Atendimento personalizado: O contato pessoal, estável e contínuo com o paciente, em um quadro pactuado e coerente, não somente fornece um cenário propício para a emergência transferencial dos pretéritos
conflitos não resolvidos, mas produz, de forma simbólica, o âmbito humano, no qual o neonato se aprovisiona de suas necessidades biológicas,
afetivas e culturais (universo de significações), imprescindíveis para sua
sobrevivência. Não existe outra prestação tão centrada no atendimento humano, nem a suficiente valorização coletiva de seus efeitos terapêuticos,
especialmente nesta época onde a eficácia tecnológica desloca e faz esquecer o sentido entranhável e insubstituível dos vínculos humanos. Lembrar,
em apoio a esta afirmação, o fenômeno do “hospitalismo” descrito por
René Spitz.
c) Historicidade e singularidade: A experiência analítica, que permite recuperar a história própria e única de cada pessoa, contribui para
definir simultaneamente sua singularidade. Com a proposta de conceber a
idéia de singularidade se trataria de tirar a oposição – muitas vezes ideologicamente sustentada – entre o indivíduo “isolado” (Bleger) e o homemmassa-indiferenciado. O primeiro desestima suas relações de
interdependência com os demais e com a sociedade, em seu todo, enquanto
o segundo não terminou de adquirir os contornos que o definem e o diferenciam dos demais.
206 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sinopse
Este artigo aborda três pontos. O primeiro sustenta a relação de
interdependência entre o extraordinário desenvolvimento da psique humana e a
vida na cultura. Esta relação de interdependência é complexa e está longe de ser
simétrica. Dado que o homem vive num âmbito sociocultural, é o “infortúnio
ordinário’ (Freud) o que aborda a Psicanálise. Este “infortúnio”, num nível individual, é correspondente com o “mal-estar na cultura”, num nível coletivo, tributário de múltiplas disciplinas artísticas e científicas. O segundo propõe a noção de
“grupo interno” como modelo de psiquismo que, em minha opinião, mais se ajusta a dar conta desta interdependência. Este modelo implica o desenvolvimento a
partir do conceito de “identificações” e das “relações de objeto”. O terceiro sustenta, como conseqüência dos anteriores, a íntima relação entre características da
cultura em cada momento e lugar e as expressões da psicopatologia, em particular
as da cultura pós-moderna. Como os valores desta cultura e os valores inerentes à
Psicanálise se contrapõem, trataremos de fazer algumas pontualizações.
Summary
The article sets forth three main ideas. The first is the interdependent
relationship between the extraordinary advancement of human psyche and cultura life. This interdependence is complex and far from symmetric. Given that man
lives in a sociocultural surrounding, it is the “common unhappiness” (Freud) what
psychoanalysis will address. This “unhappiness” corresponds to what “civilization
and its discontents” is at the collective level, a tributary of multiple artistic and
scientific disciplines. The second purposes a notion of “internal group” as a psychic
model that, in my opinion, better adjusts to explain this idea of interdependence.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207
Samuel Arbiser
d) Interioridade psíquica: Sua atrofia ou desaparecimento provavelmente seja a pior conseqüência dos efeitos indesejáveis da pósmodernidade sobre nossa subjetividade, que, por conseqüência, não mereceria esse nome. A supervalorização da eficiência e operatividade das condutas, no mundo externo, vai em detrimento de uma interioridade inevitavelmente conflitante. Pareceria como se “os eternos problemas do homem”
tivessem submergido em problemas “extrínsecos”, assim como se o tempo
mecânico dos relógios deslocasse totalmente o tempo subjetivo.
PSIQUE
E
CULTURA
This model implies a development resulting as of the concept of “identifications”
and “object relations”. The third, and as a derivative of the other two, refers to the
maintenance of an intimate relationship between the characteristics of culture in a
given time and place, and the expressions of the psychopathology, particularly
those of the post-modern culture. However cultural values and those inherent to
Psychoanalysis are in contraposition, the article attempts to give an account of
some of the latter ones.
Resumen
Este artículo plantea tres puntos. El primero sostiene la relación de
interdependencia entre el extraordinario desarrollo de la psiquis humana y la vida
en la cultura. Esta relación de interdependencia es compleja y dista de ser simétrica. Dado que el hombre vive en un ámbito sociocultural, es el “infortunio ordinario”
(Freud) el que aborda el Psicoanálisis. Este “infortunio” en el nível individual se
corresponde con el “malestar en la cultura” en el nível colectivo, tributario de
múltiples disciplinas artísticas y científicas. El segundo propone la noción de “grupo
interno” como modelo del psiquismo que, en mi opinión, más se ajusta a dar
cuenta de esta interdependencia. Este modelo implica un desarrollo a partir del
concepto de las “identificaciones” y de las “relaciones de objeto”. El tercero está
referido a sostener, como consecuencia de los anteriores, la íntima relación entre
las características de la cultura en cada momento y lugar, y las expresiones de la
psicopatología, en particular las de la cultura posmoderna. En tanto los valores de
esta cultura y los valores inherentes al Psicoanálisis se contraponen, se trata de
puntualizar algunos de estos últimos.
Palavras-chave
Interdependência entre psique e cultura; O infortúnio ordinário e o mal-estar
na cultura; Psiquismo como grupo interno.
Key-words
Interdependence between psyche and culture; The common unhappiness and
civilization and its discontents; Psychism as internal group.
Palabras-llave
Interdependencia entre psiquis e cultura; O infortunio ordinário e o
mal estar em la cultura; Psiquismo como grupo interno.
208 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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Artigo
Tradução: Traduzca
Revisão da tradução: Denise Zympek Pereira
Dr. Samuel Arbiser
Dr. Luis Agote, 2437, piso 2º
1425 Buenos Aires – Argentina
E-mail: [email protected]
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209
Samuel Arbiser
Bibliografia
PSIQUE
E
CULTURA
210 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Conferência na SBPdePA
“E finalmente precisamos
não nos esquecer que a relação analítica se baseia em um
amor à verdade – ou seja, em
um reconhecimento da realidade – e isso exclui qualquer tipo
de fraude ou dissimulação”
(Freud, em Constructions in
Analysis, 1937, p.248)
Paulo Cesar Sandler
Membro Titular e Analista Didata
da Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213
“Assumo que o efeito permanentemente terapêutico de
uma psicanálise, caso exista,
depende da extensão que o
analisando se capacitou a usar
a experiência de ver um aspecto de sua vida, ou seja, ele mesmo, como ele é......Segue-se
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
“Psicanálise e
Ciência: Parentes,
Amigas ou
Estranhas? Bases
Científicas da
Psicanálise”
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
que uma psicanálise é uma atividade conjunta de analista e analisando para determinar a verdade; sendo assim, os dois estão envolvidos
– não importa o quão imperfeitamente – naquilo que, por intenção, é
uma atividade científica” (Bion, em Cogitations, p.114)
“Se não fizesse a menor diferença, aquilo que acreditamos, se
não houvesse tal coisa, o conhecimento, discriminando dentre nossas
opiniões por intermédio de correspondência com a realidade, poderíamos tanto construir pontes de papelão como de pedras, e poderíamos injetar tanto um decagrama quanto um centigrama de morfina
em nossos pacientes, e poderíamos usar gás lacrimogêneo ao invés
de éter como narcótico. Mas mesmos os anarquistas intelectuais repudiariam violentamente tais aplicações práticas de sua teoria”
(Freud, em The Question of a Weltanschauung?, 1933, p.176.)
Sandler – Boa noite, colegas. Eu agradeço de coração o convite, receando não estar à altura dele. Fiquei aqui meio enrubecido quando soube
que os dois textos, “Psicanálise e Ciência: Amigas, Parentes ou Estranhas?”, e “Noções de Epistemologia para Uso de Psicanalistas” foram
distribuídos...eu pensei que vocês iam escolher um deles. E olhem só, dentro desta pasta tão prática e bonita, eu gostaria de aprender com vocês este
modo de organizar eventos aqui no Sul...o belo aqui dos pampas é íntimo
do respeito, respeito humano que vocês tem...
Bem, tenho a impressão que o problema do conhecimento, como o
denominou Cassirer, interessa a vocês. Psicanálise tem algo a ver com teorias do conhecimento? É uma forma que assumiu a teoria do conhecimento? De conhecer a realidade? Será que epistemologia, o nome meio complicado desta teoria, teria sido uma ancestral da Psicanálise? Minha experiência comigo mesmo e com meus pacientes me autorizam a pensar que
Psicanálise é um método que apresenta o indivíduo a ele mesmo. Quem ele
realmente é, por meio de investigação. Vocês que me ouvem, têm propósi214 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
1. Eu tenho proposto, nos últimos seis anos de modo mais explícito, uma postura que me parece
sintetizar o que minha experiência indica ser psicanálise: a tolerância de paradoxos sem tentar
resolvê-los. A exposição detalhada desta indicação técnica e teórica aparece em alguns textos,
principalmente os volumes da série “A Apreensão da Realidade Psíquica”; uma versão sintetizada
da “tolerância de paradoxos” apareceu publicada no resumo que Jorge Ahumada fez de meu estudo sobre a visão binocular, apresentado no painel sobre a obra de Bion no Congresso da IPA em
Santiago, 1999, e publicado no International Journal of Psycho-Analysis, 2001.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 215
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
tos científicos, entendidos aqui como tentativas de apreender a realidade.
Vão reconhecer uma postura do Iluminismo, expressa por Bacon, Kant e
Samuel Johnson, a respeito dos fatos como eles são. Como observou Bion,
em Uma Memória do Futuro, o indivíduo é aquele com quem ele mesmo
vai ter que conviver até o fim de seus dias. De todos os outros que conhecemos, podemos nos separar; mas não de nós mesmos. Freud descobriu,
empiricamente, o quão útil é ao indivíduo, saber vivamente,
experiencialmente, quem ele é. Este auto-conhecimento difere do até então
procurado pela Filosofia, na medida que está a serviço do tornar-se quem
realmente se é. Manifestam-se realmente, no aqui e agora da sessão, os
impulsos amorosos da pessoa consigo mesma; e de fraternidade sob o ponto de vista do trabalho necessário para tanto, do analista com seu paciente.
Quem é, realmente, esta pessoa com quem ela mesma vai precisar conviver desde que nasce?
Aquilo que o indivíduo precisa saber sobre si pertence ao domínio que
Kant chamou de numênico, paradoxalmente individual e da espécie humana, chamado por Bion de “O”. Este saber é inconsciente e consciente ao
mesmo tempo – outro paradoxo a ser tolerado. Não pode ser nomeado de
modo total e último, mas pode ser vivido e intuído, eterno enquanto dura,
como se fosse o último na hora que ocorre.
Modelos Conseguidos Até Agora Os psicanalistas conseguiram fazer algumas das formulações paradoxais1 (modelos) atinentes a este domínio: amor e ódio, realidade psíquica e material, instintos de vida e morte e
suas várias e infinitas manifestações individuais dentro de uma sessão de
análise. Vou dar um exemplo prático: ao detectarmos as formas imanentes,
individuais, inconscientes que o triângulo edipiano assume em um deter-
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
minado paciente, no aqui e agora da sessão lá conosco, estamos ao mesmo
tempo lidando com a transcendência universal e atemporal “Édipo”, igualmente inconsciente – uma tarefa genuinamente científica. Tolera-se, como
na ciência de modo geral, o paradoxo de uma teoria precisar ser geral o
suficiente para abarcar particularizações. Isto não é criado pelo analista.
Nem pelas suas teorias prévias. Por isto fazemos uma tarefa científica: o
fígado não foi criado pelo médico, nem sódio e potássio, pelo químico,
nem a transmutação da matéria em energia, por Einstein.
Bion observa: Freud reconheceu, como cientista, que se defrontava
com um problema cuja solução requeria a aplicação do mito edipiano. “Daí
resultou não a descoberta do complexo de Édipo, mas da Psicanálise” (em
Cogitações, “Torre de Babel”, p.236) O psicanalista faz ciência e investigação em cada mili-segundo de sua prática, especialmente quando enfrenta a dor geralmente associada ao desconhecido, ao que ele não sabe, e
tão especialmente quanto, ao observar certas conjunções constantes e
invariâncias que dizem, aquela pessoa que ele trata é ela mesma e nenhuma outra; e que ela traz em si algo que é do ser humano, e que assim a
observação pode ser “replicada”.
Então podemos ver que ao falar em ciência, falamos, queiramos ou
não, conscientemente ou não, de um assunto que, surpreendentemente, virou tabu nos últimos trinta anos, também no meio científico (porque fora
dele já era tabu há muito tempo): verdade. Que no meu modo de ver, é
sinônimo de realidade. Isto não é moral, mas há tendências populares de
negá-la, justamente em bases morais. Muitos, inspirados em algo que pensam ser Psicanálise, tem oficializado a opinião individual e confundido o
fato de que aspiramos a percepções sobre a realidade psíquica, que é
imaterial, não é sensorialmente apreensível, como se esta aspiração pudesse negar a realidade material. Um ser desencarnado, isento de compromissos que não com sua imaginação e opiniões idiossincráticas, talvez inteligentes ou advocaticiamente persuasivas, alvo de críticas justas daqueles
que são desprezados como “organicistas”. Vejam só: eu estava sem os
meus óculos que me possibilitam ver “de perto”, já que a idade, se não
216 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 217
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
trouxe sabedoria, trouxe dificuldades maiores de acomodação de meu cristalino. E o que ocorreu? Eu não pude enxergar a citação. Isto me faz desconfiar que não podemos depreciar o nosso sistema sensorial, porque quando ele não funciona...nada mais funciona. Eu ia fazer uma citação para
tentar falar que nós estamos num momento muito complicado em termos
da própria filosofia ou da teoria do conhecimento. Nós estamos numa época em que se nega o conhecimento e se nega a possibilidade do conhecimento, e isto está muito popular. O que se nega é que é possível conhecer
alguma coisa. Houve um uso muito específico de alguns avanços na teoria
do conhecimento. Eu vou pincelar rapidamente um deles, porque esse foi o
momento histórico em que apareceram tanto Freud como aquele outros
dois que fizeram história, que foram os Professores Max Plank e Albert
Einstein. Não se nota freqüentemente, mas é facilmente demonstrável, que
os três descobrem mais ou menos a mesma coisa, que podemos dizer, que
há uma interferência do sujeito no objeto observado. Mas vejam só, passa
o tempo e o que eles três descobriram começou a ser usado para dizer que
não se sabe nada. Para se atacar o próprio conhecimento. Heisenberg, outro
físico, chamou esta descoberta – ou uma conseqüência dela, de “princípio da
incerteza”; eu penso que os quatro podiam ter uma tolerância de paradoxos.
Não foi só isto que tanto o Dr. Freud como esses físicos, que estavam
lá preocupados com os problemas da Física, descobriram ao mesmo tempo. Os físicos descobriram que a Física, nascida do estudo de objetos
macroscópicos e materiais, não é Física, é Química. Quer dizer, descobrem
que as partículas e as micropartículas não são micropartículas só, elas são
ondas também, são energia. Freud fala, no mesmo ano que Planck percebeu algo neste sentido, de realidade psíquica e realidade material. Há uma
espécie de “pulo do gato” nessa formulação verbal de Freud. Eu penso que
é um aspecto que não tem merecido a consideração que demanda, e eu
colocaria o assunto assim: é necessário ler com atenção o que ele deixou
escrito. Ele escreveu: a realidade psíquica é uma forma diferente de existência, se comparada com a realidade material. Porque a realidade material, essa que os nossos órgãos dos sentidos, apesar do seu espectro muito
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
limitado de absorção tanto acústica como visual, capta um objeto qualquer.
Ela possui uma forma de existência que transcende sua materialidade, sua
realidade psíquica, que não é material. Mas a existência é uma só, assim
como o fenômeno físico é partícula; e é onda. Os físicos ficaram séculos
brigando sobre a natureza da luz: Será que é partícula? Será que é onda?
Porque algumas vezes elas se comportavam como partículas, e às vezes
como onda. Descobriram que eram as duas. Não se trata de ecletismo, pax
romana ou aquele antigo partido político brasileiro, o PSD, do “deixa disso”. Não era uma questão política. É um paradoxo que não pode ser resolvido. A luz é partícula e é onda. A realidade é psíquica e material. As pessoas às vezes – tenho constatado que mais vezes do que menos vezes –
lêem isso que Freud escreveu de um modo clivado e pensam que a gente
fala de uma coisa desencarnada, inconsciente ou coisa assim, que estaria
independente da realidade material. E quando falamos, por exemplo, nos
distúrbios da sexualidade, que é algo que nós artesãos da obra do artista
Freud, que escreveu sobre os instintos básicos do homem, estamos – nós e
ele – tentando falar dos equivalentes psíquicos da realidade material. Ou
seja, não dividimos uma da outra. Quando ele escreveu sobre fantasia inconsciente, que eu penso ter sido um avanço na Psicanálise, estamos com
uma certa tarefa, de perceber que “fantasia inconsciente” não é obra da
mente de Freud’: os “equivalentes psíquicos dos instintos” são algo que
existiu antes de Freud, tomou forma por causa de sua intuição, investigação empírica e honestidade e continua existindo na vida de qualquer ser
humano – e pode ser observado na clínica, caso tenhamos observado em
nós mesmos, na nossa análise pessoal.
Mas o que é o instinto? Falamos tanto disto, confundimo-nos no jargão e na bizantinice de definições fora do que Freud escreveu, de um alemão por vezes eruditamente aprendido mas mal-apreendido na clínica, das
autoridades argentinas e francesas e de outras nacionalidades que se arrogam ao apostolado e ao ministrar religioso, e ficamos cegos para o fato
descrito. Pois não é o instinto, o básico da vida? Não diz esta palavra,
218 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – Quem não leu, vai ler.
Sandler – E dos que leram...alguém poderia contar para alguma coisa? (risos) Eu acho que para vocês pode ficar muito chato, se eu continuar
aqui falando...todo mundo vai estar dormindo daqui a pouco. Ah, o colega
pode contar.
Participante – Vou passar por mentiroso... Platão fez uma analogia.
Foi em função da morte de Sócrates. Ele escreveu que as pessoas estavam
em uma caverna, agrilhoadas e olhando para a parede da caverna, de
forma que atrás tinha uma fogueira e essa fogueira se projetava na parede, na tela da caverna, a sombra das pessoas. Também passavam na tela
da caverna, as pessoas que andavam do lado de fora, só as imagens, com
o sol atrás, de forma que a certa altura um deles se soltou e conseguiu sair
para o exterior e ver que havia formato, que havia cor, que havia outras
texturas e uma série de coisas. O que aconteceu é que ele voltou para
contar para aqueles, que era outra coisa o mundo, não aquele em que eles
passaram a vida dentro, e quando ele chegou lá, ele foi morto.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 219
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
taquigraficamente como toda palavra que se preze, de sobrevivência, tomar água, procriar, sobreviver?
Eu receio estar indo muito rápido. Mas vocês dizem que não, então,
vamos lá. Quando Freud formula, realidade material e psíquica, que são
duas formas diversas da mesma realidade, esta realidade, e aí está mais um
problema de natureza paradoxal. Ela não é só material e psíquica, ela é
cognoscível de certo modo; mas ao mesmo tempo incognoscível de modo
último. Muitos perceberam isso: Kant, e Platão, muito tempo antes. Acho
que todos vocês conhecem, ou leram alguma coisa que está lá no texto “A
República”, de Platão”. Refiro-me à metáfora da Caverna e das Sombras.
Alguém aqui nunca leu? Talvez seria bom se pudesse se denunciar, pois
teria uma vantagem, aqui e agora...
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
Sandler – É, quando você falou em metáfora e em analogia, eu penso
como você, que realmente é uma metáfora, e uma analogia. É quase uma
fábula, aquele conto...relativo à inacessibilidade da realidade. Eu diria que
a metáfora da Caverna e das Sombras, seria uma das formas que assumiu o
que os gregos chamavam de “doxa”, o discurso sobre o conhecimento. Nós
usamos metáforas, nós usamos analogias. O pessoal do conto de Platão
pensava, a realidade era aquela sombra que eles viam, assim como podemos nos iludir que Psicanálise é repressão, é sublimação, é Édipo, e etc. e
tal...e ficamos cegos para investigar, por exemplo, se Psicanálise não é o
discurso sobre ela, mas poderia bem ser algo que ocorre dentro do consultório. Eu acho que nos interessa a lembrança do colega, vamos considerála no momento, uma versão do conto. Do que eu li, acho que Platão contava algo a partir de Sócrates. Vocês sabem, este homem, um amante da
verdade, chegou num ponto da sua vida, em função de seu amor, que se
defrontou com uma opção: ou se suicidava ou ia ser morto. Tudo indica
que ele decidiu se suicidar, pois acreditava que era o único modo da verdade – a iniqüidade, estupidez e bestialidade das autoridades institucionais lá
da sociedade dele – emergir, e indelével. Parece que ele tinha razão, mas
isto traz uma notícia predestinadora para os psicanalistas, cientistas e todos aqueles que não odeiam a verdade em tempo integral e dedicação exclusiva. Este é o destino de um psicanalista que faça o seu trabalho, se ele
vai ter um acesso a algo da realidade, ainda que transitório, ainda que parcial. Uma das verdades é esta situação de percebermos que a realidade
última é incognoscível, nós não podemos saber tudo o tempo todo, sempre.
Isso tem sido um risco no movimento psicanalítico e nos consultórios. Pois
às vezes temos teorias, que parecem nos habilitar a saber como funciona a
cabeça da pessoa, ou como foi a infância da pessoa, coisas que não observamos. Será que podemos conciliar este ódio ao fato de que há coisas que
não conhecemos com algo que conhecemos? Pois a percepção de não se
saber acabou levando aquilo que eu estava me referindo anteriormente, à
crise que penso existir na teoria do conhecimento. Eu diria que foi a tragédia da Filosofia no nosso século: a incognoscibilidade última de seja lá o
220 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – (meneia negativamente).
Sandler – O quadrado da velocidade da luz. Todos conhecem a teoria
da relatividade, não? Ela se expressou de dois modos, um deles é uma
teoria gravitacional, é como funciona o universo; outro, são as
transmutações de matéria em energia. Quer dizer, teoricamente, se você
conseguir acelerar uma determinada partícula ao quadrado da velocidade
da luz, ela vira energia. Foi assim que eles fizeram a bomba atômica, e
aceleradores de partícula, etc. Então podemos dizer que isso foi, talvez, o
mais próximo que o ser humano chegou da realidade última, até hoje. Porque isso é isso, não é outra coisa. Isto não vai cair. As pessoas querem tanto
que caia...Muitos filósofos da ciência, que não tem nenhuma experiência
de ciência mesmo, ou fracassaram quanto tentaram obtê-la, inventaram
uma teoria que ficou muito popular durante este século, pois atendeu de
modo não frustrante o ódio à verdade que é uma característica humana.
Eles, ao invés de fazerem ciência, ficaram falando a respeito de boas teorias científicas. É mais ou menos como alguém que entendesse muito de
falar sobre cozinha, de livros de cozinha (como estes multicoloridos de
hoje me dia) mas jamais tivesse tido a experiência de cozinhar. Bem eles
espalharam muito bem espalhadinho, com argumentos realmente convincentes e plausíveis, porque racionais, que boas teorias têm que cair. Só
assim seriam científicas, mesmo. Eu me refiro aos popularíssimos Karl
Popper, nas décadas de cinqüenta e sessenta, ao seu discípulo Lakatos (que
morreu jovem e na verdade não ficou muito popular) e sua versão mais
requentada dos anos setenta, a idéia dos paradigmas de Thomas Kuhn.
Vocês lembram de nosso patrício, o físico brasileiro que estudou tão bem o
méson pi, o Professor César Lattes? Um homem honrado, cientista real,
mas que talvez tenha se afundado em algum problema que parece ser de
nossa alçada. Ele queria provar que Einstein estava errado e realmente se
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
que for, acoplada a termos chegado muito perto, com e=mc², quer dizer,
energia é igual...Ah, você quer falar...fale, por favor.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
atrapalhou, nunca mais pesquisou nada. Se a teoria da relatividade cair,
isto vai provar que ela não é verdadeira. Eu não entendo de Física nem sei
do futuro, mas desconfio que ela não vai cair, como a Física descrita por
Newton não caiu. Falar que isto vai cair é a mesma coisa que dizer que a
roda vai cair. A roda é uma realidade. Demorou tempo para ser descoberta,
formulada: começou com aqueles seixos que ficavam rolando na água depois tomou a forma de troncos de árvores em corredeiras e rios, e depois
alguém andou serrando os troncos e conseguindo secções de troncos, muito parecidas com as rodas de hoje em dia. Desde que a roda foi inventada
ela continua a ser usada, ela está aí. Temos pneumáticos, temos rolamentos, mas a concepção roda, a realidade roda, aquilo que eu estava
dizendo...a “rodisse”, a qualidade de ser roda, isso não vai cair.
Sem dúvida restam problemas. E=mc2 não nos diz o que é luz? A boa
ciência é essa, que ela abre novos problemas. Nós não sabemos o que é luz,
não sei se vamos saber. Conforme os físicos foram investigando, depois de
Einstein, eles descobriram, por exemplo, umas partículas que não tinham
massa; outras, que apareciam e desapareciam de repente. Houve um, Isidor
Rabi, que descobriu uma destas partículas meio esquisitas, e falou: “mas
quem encomendou isso aí?” Para que serviria uma partícula que não tem
massa, que aparece e desaparece? Mas ela existe. Quer dizer, os físicos
perceberam que há emanações desta realidade última, é algo que Freud
percebeu pertencer ao próprio inconsciente. Quando Freud usa este termo
– que ele não inventou, diga-se de passagem, já estava disponível – inconsciente, bom isto é inconsciente, a gente não sabe o que é. Se é inconsciente,
é que não se sabe o que é. Se pudermos, como de vez em quando de fato
podemos, tornar consciente, não é mais inconsciente e há algum outro
“algo” inconsciente, que precisamos continuar procurando. A análise vai
prosseguindo, percebemos algo a respeito de uma pessoa, se pudermos
caminhar mais, está ligado a outros fatores, outras situações até então desconhecidas, mas existentes e atuantes, podem ir surgindo. Teoricamente,
uma pessoa poderia ficar em análise a vida inteira... Umas, infelizmente,
quanto mais a gente investiga, menos se vê, pois há o falso self, as imita222 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – Era “Pierre dois”, em francês...
Sandler – Sim, quem estudava matemática e francês tinha uma vantagem, pois conseguia ter a regra mnemônica. Era isto mesmo, o símbolo
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
ções, os arranjos e improvisações, mas isto é da pessoa; ou quanto mais se
mexe, mas um mau odor se exala, mas nem sempre é assim. Freud, no final
da sua vida, escreve sobre análise terminável e interminável, com aquela
metáfora das cascas de cebola. Exemplos clínicos mostram, são
potencialidades das pessoas. Bom parece que termina quando a pessoa termina ou fica gagá, às vezes termina antes, ou alguma coisa assim.
Eu estava tentando dizer que a constatação de que ninguém pode se
aproximar da verdade última ao ponto de abarcá-la totalmente ou ser proprietário dela, em linguagem do senso comum ou da sabedoria popular,
ninguém é dono da verdade, deu uma chance para umas pessoas acharem
que agora poderiam provar, e com isto irem dormir sossegadas, que a verdade não existe. Uma coisa é dizermos que não podemos nos aproximar
totalmente ou sermos donos da verdade. Eu exemplifico outra vez com a
ajuda da roda, que é um exemplo bem simples de apreender, inclusive pela
senso-concretude que envolve. Ah, a roda deu muito trabalho para os gregos quando eles estavam conhecendo este fenômeno... Eu não sei se vocês
lembram do ginásio, ou colegial, como era que nossos professores nos ensinavam que se calculava... Quando os gregos começaram a medir a roda,
eles conheciam o círculo. Lembram disto? A gente pode até imaginar que é
o seguinte (desenha um círculo na lousa; “corta” o círculo em um ponto).
Vamos fazer o seguinte, nós desligamos aqui e podemos esticar isto aqui,
vai ficar uma coisa mais ou menos deste tamanho, não é mais roda. Imaginem que eu vou ter que ficar segurando aqui, pois se eu soltar esta ponta
volta para cá, porque é roda. (imaginariamente o círculo cortado tem uma
extremidade “puxada” para um lado e então surge uma reta) E o que os
gregos descobriram quando eles chegaram aqui? Como é que mediam o
perímetro?
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
grego era a letra do alfabeto deles, o π, exatamente...e eles conseguiam
calcular não só perímetro, mas também a área que era o π multiplicado
pelo Raio (uma medida do centro do círculo até um ponto qualquer de seus
limites), ao quadrado...
Participante – πR².
Sandler – Isso. Nesse negócio de π, aqui, foi que eles tiveram, depois
de tanto conhecimento que tinham obtido, de retas, números naturais, triângulos, astros, geometria plana, bom eles aí toparam com algo diverso.
Tiveram um contato com a incognoscibilidade....
Partcipante – Como é, desculpe? Eu não ouvi a tua última palavra.
Sandler – Incognoscibilidade. Como eles descobriram o π? Nós, uns
dois mil anos depois, pudemos saber desde a infância – repetimos na nossa
infância a infância do conhecimento, só que em muito menos tempo –
como se calculava o π. Como os gregos , tivemos que nos haver – vocês
lembram? – com esse diabo dessa figura aqui (desenha um pentágono dentro de um círculo) que nunca dava certo. Porque sempre faltava um
pouquinho, quando a gente ia fazendo com o compasso conforme o professor ou professora ensinava, era em matemática e em desenho geométrico,
sempre faltava um pouquinho, esse pouquinho era o π. O π valia algo,
valia ...
Participantes – 3,1416.
Sandler – Ad infinitum. Até hoje eles estão pondo o computador para
calcular isso aí, calcular o incalculável, são não sei quantos milhões de
casas que já calcularam e vão continuar calculando. É incognoscível. Com
isso os gregos descobriram, na verdade, que havia séries infinitas que não
podem ser calculadas. Parece que se sentiram doidos com isso, eles fica224 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 225
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
ram mesmo muito perturbados. Ele se contentaram em fazer as rodas, para
bigas e trigas e outras máquinas mas ficaram tão perturbados que pararam
o avanço da matemática. Ao descobrirem um número que não podia ser
escrito sob forma de raiz, disseram, este número π é irracional. Para não
ficarem loucos, disseram que louco, irracional, era o número. Mais ou menos como se faz quando se topa com um louco – a gente não sabe o que é e
diz, “é louco”. Pois todos os outros números que eles conheciam permitiam (os números naturais) que se os escrevesse sob forma de raiz. Mas este,
não. Este tinha esse diabo dessas casas infinitas. Nesse infinito, digamos,
sem forma. Poderia ter sido um modo dos matemáticos já perceberem essa
nossa questão. Sem forma, sem raiz, não quer dizer que esse número não
existe, não é um número inexistente, ele é infinito, ele existe, e se eu quiser
ficar calculando, eu calculo.
Mais recentemente surgiu um indivíduo, ele tem uma história pessoal
curiosa...chamava-se Werner Heisenberg. Foi discípulo de Plank, e ele estabelece o “princípio da incerteza”. Na filosofia de hoje em dia andaram
usando de um modo muito suspeito o que este homem formulou. A impressão que eu tenho é que isso está se infiltrando na Psicanálise com muita
velocidade. Muitos estão tentado, com certo sucesso, transformar o Princípio da Incerteza em um Princípio da Ignorância. Bom, quem aqui conhece
o que Werner Heisenberg calculou e escreveu? Vocês certamente já ouviram falar do princípio da incerteza? Ah, eu fico bem preocupado quando
constato que muita gente confunde isso com muito do que o Dr. Bion escreveu – ele mesmo menciona Heisenberg em dois de seus livros, o Transformações, e a Memória do Futuro. Mas não é a mesma coisa do que andam falando, nem o uso que o Dr. Bion faz é este. Eu observo que as pessoas fazem algo assim, “bom, então se é incerto, ninguém pode saber”. Os
psicanalistas às vezes se juntam e falam, “Ah, esta é a sua transformação, e
esta outra aqui é a sua transformação”, e cada um tem uma opinião e parece um samba do crioulo doido. Todos tem razão. É receita certa para popularidade, referendada por uma autoriade atribuída ao mais novo guru, que
chamam de “Bion”, pois há algo de sedutor nisto. Imaginem um
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
supervisor, em um seminário, dizendo que todos os seminaristas têm razão, inclusive os que emitem opiniões contraditórias entre si, que um exame mais acurado mostra que se anulam mutuamente? Ninguém vai ficar
perseguido nem preocupado em desenvolver seu trabalho, já que todos estão certos, baseados em sua opinião pessoal. De alguns anos para cá, bem,
já fazem uns 25 anos...defendem-se “leituras”, e todo mundo que fala lê
alguma coisa, e é o livro que o leitor viu, sem se preocupar com os sentidos
do autor, com o que está escrito. Estas pessoas alegam que a gente não tem
a possibilidade de ter algum contato com a verdade, ou com a realidade.
Nos nossos exemplos, com o que está escrito no livro, quem realmente é o
paciente sobre o qual se fala na supervisão ou quem é aquela pessoa na
análise, naquele momento? Eu costumo achar que vocês aqui no Sul estão
mais preservados disso, pois minha experiência tem sido esta e tenho muita admiração por vocês quanto a isto. Mas isso é alguma coisa que em
certos centros está acontecendo. A gente pega os livros na....
Participante – Aqui nós estamos somando 3, 14, 16, 32 .......... psicanálise, vem do π mesmo. É o símbolo para a psicologia.
Sandler – É curioso isto, mesmo. Símbolo psíquico, a área psíquica.
Bom, os gregos pararam, eles não foram adiante, mas como era algo real, e
um problema pendente, passam centenas e centenas de anos e a Matemática se volta a eles de novo. Eu estava falando do princípio da incerteza, pois
me parece uma formulação real de algo real, e útil para todo cientista, acho
que para o analista, apesar de alguns entre nós terem tentado corromper o
princípio. Heisenberg o elaborou por observações no domínio das
micropartículas e microenergias. Ele diz o seguinte: que nós não podemos
conhecer a velocidade de uma partícula, a velocidade angular de um
elétron...mas eu preciso interromper a definição, para me certificar se
vocês se lembram do modelo do átomo que estudaram no colégio, o modelo de Bohr, com que Heisenberg aprendeu muita coisa. Tinha um
nucleozinho central, e em torno dele, um tal de orbital S, e o orbital T, e os
226 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
outros, mais complexos...vocês lembram disso? (desenha na lousa) Eram
nuvens de probabilidades...Cadê o elétron? Cadê aquela partícula? Eu não
sei onde ela está, descobriu Heisenberg, mas sei que ela está por aqui. Você
quer falar alguma coisa? Não? Interrupções eu volto a dizer, são bemvindas...Mas esta nuvem aqui (assinala na lousa), ela é conhecida, ela está
por aqui. O nosso paciente é aquele paciente e não é outro. Não é possível
que uma teoria em Psicanálise fale do paciente e fala que ele é isso, por
exemplo, que o problema dele é narcisismo, que ele é muito narcísico, e
outra teoria fale, do mesmo paciente, que o problema dele é falta de
narcisismo. Será possível, existirem realmente duas teorias que sejam
válidas e falem de modo tão diferente, no sentido de se contradizerem –
não é uma diferença qualquer, de vértice por exemplo – do mesmo paciente? Um fígado não pode ser um fígado e um osso, ao mesmo tempo, por
exemplo. E então porque uma personalidade, por complexa e mulifacetada
que fosse, seria coisas tão intrinsecamente diversas como se sugere nos
encontros psicanalíticos? O princípio da incerteza diz o seguinte: nós não
podemos saber com precisão, onde está essa partícula (sua posição no espaço) e qual é a velocidade dela, ao mesmo tempo. Nós não podemos
saber com precisão esses dois parâmetros, simultaneamente. Mas nós podemos saber com precisão um dos dois. Simultaneamente, a medição nos
dá a nuvem de probabilidade que o Bohr observou, o modelo atômico dele.
Se isso funciona nesse universo quântico (que não é só micro, é macro, do
macro universo também) como seria em Psicanálise? Quer dizer, quando
lidamos com a mente humana, não podemos ter uma certeza precisa e absoluta quando tentamos ouvir algo que fala o paciente, mas observamos
algo porque estamos vivendo este algo com ele, e quando ele nos fala alguma coisa, é reação dele, e esta reação nos permite ir formando idéias sobre
o que aconteceu. Quem estudou Freud sabe que eu estou falando uma coisa
que Freud falou, que o valor de uma interpretação é aferido pela resposta
do paciente, em termos de associações livres. Porque podemos medir na
física, com muita precisão, a posição da partícula, mas aí a gente perde a
precisão na medida da velocidade. Essa partícula é um parte energia, e se
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
medirmos muito bem a velocidade, não sabemos bem onde ela está (posição). O que ele disse foi apenas isto, o princípio da incerteza é que não dá
para medir com precisão a velocidade e a posição, ao mesmo tempo. Então, com o paciente, falamos algumas coisas que achamos que são. Talvez
possamos usar um exemplo prático. Hoje de manhã, vivemos isto. No caso
trazido pelo colega, ele preferiu não colocar um dado, a profissão do paciente, por uma questão de sigilo profissional. Mas era algo que embora
ele tenha mantido escondido, eu havia falado durante a nossa conversa, e
foi uma coisa que deixou nosso colega animado, eu vi que ele estava animado. Eu não sabia nada do paciente, e ele confirmou, “Sim, é isto, ele é
esta coisa aí que você disse”. Uma das coisas, eu não vou dizer qual é,
justamente para não romper a questão do sigilo. Como eu sabia de algo que
o nosso colega não falou, se eu não conheço o paciente dele? É que ele
tinha me dito, sem ter falado, nas suas associações livres. E era uma verdade, o paciente era mesmo aquilo. Eu não soube disto porque estivesse na
minha cabeça, eu não soube porque eu tenha inventado, eu não soube por
causa da minha teoria, só sei porque observei algo subjacente ao que nosso
colega falava. Ocorre isto na sessão, e eu e o paciente juntos, podemos
chegar a uma verdade. Nós somos as duas variáveis, como o tempo e o
espaço das partículas.
Eu estou falando de ciência e Psicanálise, desde o início, e ilustrando
deste modo, simplesmente para dizer o seguinte: a realidade existe, parece
um absurdo isso, mas se em Psicanálise cada psicanalista vê uma coisa
num caso clínico, numa reunião clínica, cada um dá uma interpretação,
estamos, sem saber, nos jogando a algo que só pode se vincular a questões
de autoridade e poder. Então como vai ser? O paciente é o que ele é ou ele
é o que o supervisor que diz o que é? O candidato ou aluno, seja lá o que
for, ele é bobinho e não entende nada, e sempre todo analisa acha que seu
colega não sabe fazer análise mas ele mesmo, o analista, sabe. Neste caso,
eu penso que nós não estamos fazendo ciência, e nem estamos fazendo
alguma coisa que sirva para a pessoa. Eu observo que muitos se prevalecem do fato dos pacientes sempre saírem do nosso consultório com alguma
228 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 229
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
coisa que é impalpável, mas que se for Psicanálise, ele vai usar, e se não
for, ele não vai usar realmente, pois não era verdade, ou era uma verdade
que depende de cada um. Será que o mundo é o que a gente vê ou o mundo
é o que a gente quer? Será que o mundo são as coisas que a pessoa em
particular vê, só? Eu, que vim da psiquiatria, aprendi que isso era delírio,
que se eu olho alguma coisa, que eu acho que o mundo é o que eu estou
vendo, eu estou delirando. O mundo deve ser alguma coisa, não é apenas o
produto da minha mente. Eu bem sei – e a Psicanálise me parece o método
mais eficaz para avaliarmos isto – que nossa mente distorce e colore a
realidade, mas o caso é conhecer estas distorções e coloridos. Isto difere
muito do que nós hoje estamos vivendo no movimento psicanalítico.
Estamos – e isto é fruto de uma pesquisa proveniente de minha enorme preocupação com o que tenho observado – em um momento que a
filosofia já viveu, isso tem se infiltrado na Psicanálise. Inspirado na tragédia que se meteu a filosofia, eu tenho proposto chamar isto de subjetivismo
ou idealismo ingênuo, que o mundo é o produto da nossa mente. Quem tem
experiência psiquiátrica e mesmo médica, e quem tem experiência da vida,
advogados, engenheiros, donas de casa, acham estas posturas muito esquisitas e entram facilmente nessa conversa. Os analistas poderiam se perguntar o quanto tem contribuído para o descrédito de nosso ofício.
Por outro lado, o mundo também não é uma mensuração concreta,
porque o nosso espectro sensorial é muito limitado, mesmo que nós sejamos ajudados. Por exemplo, enxergamos as estrelas e podemos ter o telescópio. Ou, não enxergamos coisas muito pequenininhas e podemos ter o
microscópio, mas isto que vemos não é a verdade também. O próprio
neurônio...hoje sabemos, é um artefato histológico. O que estudamos como
sendo neurônio é um artefato determinado pelo jeito com que se corta a
célula, que se colore a célula. Pois o tal de neurônio é uma unidade funcional. Então, existem esses dois bandos, por assim dizer; e é isso que eu
comento no segundo texto que vocês receberam. Nós temos os vários filósofos da ciência que foram populares durante este século. Vocês já devem
ter ouvido falar do Professor Karl Popper, aquele vienense que dizia ter
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
conhecido Freud e marcou época, ficou famoso na Inglaterra; depois vem
o Professor Thomas Kuhn, americano. Bem, eu esperaria que vocês lembrassem, pois eu acabei de falar neles há uns 10 minutos atrás...Como eu
disse, eram pessoas que, na verdade, não eram cientistas, eles não tinham a
prática da ciência, e eles negam a própria possibilidade da ciência.
Popper ficou muito famoso ditando regras para dizer o que era a ciência e o que não era. Eu estou falando um pouco da obra de Popper porque
ele influenciou muito toda uma escola Argentina. Vocês aqui conhecem tão
bem o modo dos argentinos, e há lá o Professor Klimowsky, que insiste
muito em Popper. Popper odiava a psicanálise, ao ponto de iguala-la à obra
de Adler, não à de Freud. Ele não conhecia nada da obra de Freud. Vocês já
viram alguém ficar falando de DNA e dizerem que não sabe nada da obra
de Watson e Crick? Um cientista real não faz este tipo de coisa, tem respeito pela verdade. O Professor Popper foi contemporâneo de Freud, de certo
modo; ele era um jovenzinho quando Freud já era um senhor mais idoso,
eles moravam lá em Viena. Popper fez parte do grupo dos neopositivistas.
Ele tem dois critérios para dizer se uma coisa é ciência ou não.
O que é ciência? Eu a entendo, como milhões de pessoas, como um
método de apreensão da realidade. O ser humano foi tendo vários métodos
para lidar com uma ânsia que tem, a ânsia de conhecer. Um primeiro deles,
imagino, foi a música, baseada na sensorialidade auditiva; parece que ouvimos ruídos da natureza e tentamos reproduzi-los. Percebemos isto nas
crianças. A minha fábula pessoal é, alguém, um dia, ouviu o som de uma
criança chorando e aí, talvez tenha descoberto que era pai, que aquele minihominídeo que estava lá...tinha a ver com ele. Bom, há alguns estudos
antropológicos que eu estou resumindo muito, e deles eu construiria essa
fábula. Que os hominídeos estavam lá naquela fase, e isso acontece no ser
humano até hoje, não havia noção de paternidade, o homem lidava com a
mulher apenas como alguma coisa que satisfazia um desejo, ele não tinha
noção de que aqueles mini-homnídeos eram produto de um ato que ele
tinha feito, que aquele objeto do prazer dele tinha resultado em alguma
coisa que tinha a ver com ele.
230 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 231
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
Então talvez possamos dizer que ele apreendeu uma realidade quando
descobriu a paternidade. Eu acho que as fêmeas, as mães descobriram isto
antes dos pais. E continuam descobrindo. Bem, elas tem uma vantagem,
levam o mini-produto embutido nelas durante vários meses...A realidade
não é só física nem só psíquica...Se vocês quiserem ter uma bibliografia,
posso fornecer. Parece-me um estudo fascinante, como o homem demorou
para se dar conta disto...e nós vemos isso até hoje na clínica, em geral o
homem demora muito mais, os meninos demoram mais para crescer; nos
jovens casais, em geral a mulher tem uma noção mais clara disso, e esse
drama continua existindo e ainda bem que continua...Pode parecer ruim
falar isto, mas trata-se de tornar proveitoso um mau negócio. Porque aí nós
temos pacientes... Se não fosse assim, boa parte da nossa clínica não estaria aí... (risos)
Depois o ser humano obteve os mitos, as metáforas, ele começou a
fazer música e literatura e teatro, aperfeiçoou muito os métodos
verbais...Diz-se que o conhecimento nasceu quando se começou a pintar
nas cavernas as experiências, aquelas pinturas rupestres. Há bastante aqui
no Brasil. A coisa foi indo, e a ciência é um desenvolvimento de tudo isto.
Muito nova, como mais um método de apreender essa realidade. Popper
diz que, para algo ser ciência, precisa ser reprodutível e falsificável. A Psicanálise não é reprodutível no sentido dele, que se poderia reproduzir o
experimento. Popper diz que uma boa ciência ela é boa quando você pode
jogar o resultado dela fora, ela é falsificável, e aí que está um ponto sério:
nesse momento ele nega a ciência. Ele nega qualquer conhecimento que
transcenda o tempo, como a roda, por exemplo. Então ele acha que a boa
teoria científica é aquela que vai cair. E isso ficou popular, acho que todos
vocês já devem ter esse conceito, porque foi um conceito que ficou espraiado. Pessoalmente, eu acho que isso é bobagem, isso é um ódio à ciência, é um ódio à verdade, porque distorce algo que caracteriza a atitude
científica é a crítica, mas isto difere de exigir que tenha que ser falsificável.
Eu acho que o cientista é mais parecido com o advogado do diabo, a gente
vai tentando ver se é verdade, mas se não fica nada no final, como vai ser?
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
O pós-modernismo é isso, levado ao extremo. Alguns franceses usaram
este termo, criado por Toynbee para outras finalidades. Fico pensando no
que aconteceu com eles, na vida deles. Não sei se vocês acompanharam,
todos eles mergulharam em uma tragédia pessoal: ou mataram alguém, ou
se suicidaram, até agora. Todos esses que negam a ciência, que dizem que
a ciência é ideológica, que toda ciência é produto de ideologia, ou que a
ciência é um acordo entre cientistas.
Thomas Kuhn basicamente fala isso: que ciência é uma idéia que algum gênio de repente tem, que ela não é verdadeira, mas os cientistas dizem que aquilo ali é verdade, é presto, temos um paradigma. Todo o mundo fala em paradigma hoje em dia. “O moderno paradigma da psicanálise
é...”, e segue-se algo bem erudito. Afirma-se que o paradigma da Psicanálise era o Édipo, porque o Freud era genial e inventou um excelente
paradigma.
Mas se isto for verdade, eu acho que psicanálise não vale a pena.
Édipo é mãe, pai e filho. Isso é Édipo. Édipo não é um paradigma psicanalítico que um vienense genial inventou. Kuhn fala que existem paradigmas
que viram acordos políticos entre a nata do establishment. Os cientistas se
reúnem e decidem: “Agora nós vamos estudar isso aqui.” E passam-se anos
– até que surge outro “peer group” que inventa outro paradigma, e prossegue. Me fez lembrar de uma anedota: os militares argentinos, quando foram invadir as Malvinas, eles não tinham mais o que fazer lá na Argentina.
Eles já tinham matado os comunistas, já tinham feito isso e aquilo, quer
dizer, o episódio foi o produto de uma reunião de mentes onipotentes que
falam, “isto é assim e acabou”. Porque se eu estou lá com o paciente e eu
sou autoritário e digo “isto é assim e acabou”, eu posso fazer um escravo,
se eu tiver uma pessoa muito pobre comigo lá, ou aterrorizada, mas eu não
estou fazendo psicanálise.
Minha experiência diz outra coisa: isto é assim porque eu e você podemos constatar se é ou não, nós vamos ver se é assim, se você é isso que
você está falando que é – se você é homossexual, se você é inteligente, se
232 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – E o primeiro texto?
Sandler – O primeiro tem um título que é uma extensão de um título
de um artigo que tem um autor... Eu gostaria de morrer sem nunca ter plagiado ninguém, e então já vou avisando, que esse título – Psicanálise e
Ciência – tem dono. Foi escrito por Winnicott. Há colegas que me criticam, veladamente percebo o dedo em riste, “Pedante! Exibido! Erudito!”
pois faço questão de citar a autoria. O artigo de Winnicott chama-se “Psicanálise e Ciência, Parentes ou Amigas”, está no livro Tudo Começa em
Casa, não sei se vocês conhecem este livro. Eu tenho que conhecer porque
fui eu mesmo quem o traduziu, devo conhecer alguma coisa dele...(risos)
Eu acrescentei uma coisa, isso não está no título de Winnicott. Então –
Parentes, Amigas ou Estranhas.*
E também estou parafraseando uma frase de Bion, “a mente é um
fardo muito pesado que a besta sensorial não consegue carregar”, ou, que a
besta dos sentidos não consegue carregar. Esta é a frase de Bion. Minha
paráfrase é, ”a verdade é um fardo muito pesado que a besta do desejo não
consegue carregar” Então eu diria que toda vez que estamos subservientes
a desejos, não podemos ser cientistas, nem psicanalistas, mas estamos na
condição de procurar um analista. Eu acho que estou falando do princípio
* O Dr. Paulo Sandler refere-se aos dois textos de sua autoria que estão no Boletim Científico da
SBPdePA nº 03/2001 intitulados: “Psicanálise e Ciência: Parentes, Amigas ou Estranhas?” e
“Epistemologia: um Resumo Crítico sob a Ótica de um Psicanalista para uso de Psicanalistas”.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 233
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
você é burro, se você sofreu, estas coisas de seu pai, de sua mãe, isso tudo
nós vamos verificar.
Tenho visto, por exemplo, pessoas dizerem que a psicanálise está
morta, que é preciso ter outro paradigma que não o Édipo. Que Édipo era
um problema vitoriano, da época de Freud, hoje demodée. Mas talvez
Freud escreveu sobre algo da realidade humana. Os gregos já tinham visto.
Bom, este é um apanhado do segundo texto*. Eu acho que me alonguei mais do que devia...
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
da realidade e do princípio do prazer/desprazer. Mas eu não sei se vale a
pena eu ficar aqui falando do primeiro texto, porque como alguns de vocês
me falaram que puderam ter a paciência de tê-lo lido, poderíamos ver as
idéias de vocês...Talvez vocês concordariam comigo que tento falar de certos instrumentos que a psicanálise – ela mesma, um instrumento – trouxe
que nós nos aproximássemos da verdade, definindo cada um deles. Talvez
interessasse discutir se é pertinente dizer que Freud trouxe ou não trouxe
algo de novo. Penso que vale a pena termos uma noção do nosso lugar na
história. Não nascemos de geração espontânea, nós não somos frutos de
uma coisa ideal ou de um “clique”, um “ahá!”, “eureka”. Freud foi formado em toda esta evolução que tento delinear. Ele não inventou o inconsciente, o inconsciente já era conhecido, e a palavra inconsciente já era usada mais ou menos uns 150 anos antes dele. O Platão, nessa Metáfora que o
colega contou para gente, estava falando de algo inconsciente.
Participante – Essa revisão que o José Cândido Bastos fez, há uns 15
anos atrás, ele revê o conceito de inconsciente de Freud.
Sandler – Eu não conheço esta revisão. Eu gostaria de poder
conhecer...Imagino que deve estar em alguma revista.
Participante – Acho que num boletim da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Sandler – Ah, então a minha ignorância tem uma desculpa...não recebemos esta publicação em São Paulo, e não é fácil inclui-la em resenhas de
bibliografia...Mas tudo isto é apenas uma desculpa, esfarrapada como toda
desculpa que mereça tal nome, para minha ignorância. Pessoalmente, eu
acho que esta noção é de utilidade inestimável. Se a experimentamos – não
teoricamente – sempre temos trabalho para fazer. Podemos investigá-lo,
mas isso não quer dizer que necessariamente vamos conhecer alguma coisa nesse processo de investigação. Eu acho que Freud trouxe duas coisas
234 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – ... quando a gente se refere àquilo, o inconsciente como
aquilo, como uma coisa estranha que não é conhecida... Quando ele é
conhecido, na análise, aparece uma coisa nova, pode se dizer isso?
Sandler – Acho que esta é uma maneira muito útil de se colocar a
situação. Todo mundo ouviu o que o colega falou? Ih, eu acho que não.
Talvez você precise repetir tudo de novo. Eu ouvi... (o participante repete a
intervenção).
Eu acho que o colega fala do insight, porque no insight teríamos um
contato, ainda que fugaz, com a realidade interna, não é? No insight, a
experiência mostra que o paciente se reconhece.
Participante – A semana passada eu estava ouvindo um professor da
genética, fazendo crítica à psicanálise; enfim, as coisas que ele levantava
era a questão do teste de Kloch; então ele tinha feito um trabalho, por
exemplo, sobre o homossexualismo, em que é dito que a família, ou a criação, teria uma influência no desembocar do homossexualismo, então ele
foi investigar todas as características da família, e o que ele coloca é que
não apareceu diferença, nenhuma. Então como é que a psicanálise, ou o
conhecimento psicanalítico afirma que isso no teste de Kloch não resiste.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 235
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
que, na minha investigação, nenhum outro investigador da escola da civilização ocidental trouxe. Ele trouxe o princípio da realidade. Pois o princípio do prazer/desprazer era bem conhecido. John Locke, Thomas Hobbes
antes dele o conhecia isso muito bem, Kant falava dele. Shakespeare e
Goethe, que percebo como mentores intelectuais de Freud, discorrem amplamente sobre a tragédia humana quando se está subserviente ao princípio do prazer. Mas princípio da realidade foi Freud quem primeiro que
formula. Ele é o primeiro que traz o uso prático das associações livres, que
eu acho que são instrumentos de investigação da realidade. Mas vamos ver
que idéia vocês têm.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
Então estava pensando que em relação a isto que tu estás trazendo ... o
insight, sei lá, o teste de Kloch ....
Sandler – Bom, a atitude científica é realmente de se ter uma hipótese, geralmente é chamada de hipótese nula. Por exemplo, faço a hipótese
que a ocorrência de tal fato não está associado com um outro tal fato. O
cientista vai investigar estatisticamente se esta associação existe, ou não
existe como supõe a hipótese nula, por intermédio de grupos controle.
Como é que testamos hipóteses na acepção? Bom, eu vou voltar a dizer de
novo, o nosso teste, em psicanálise, e ela própria. Fazemos ciência pura
nesse ponto; Melanie Klein por exemplo, ela fazia ciência pura. A linguagem dela é colada na experiência. Que ironia, a teoria dela às vezes é atacada com base na afirmação de que não teria o poder de generalização. O que
é uma afirmação científica? São afirmações que conseguem ter um poder
de generalização e um poder de particularização; é um paradoxo, isso aí.
Eu diria que vamos tolerando esses paradoxos e em certos instantes, fugazes porém eternos enquanto duram, podemos enxergar aquilo que é realidade. Édipo é uma formulação científica. Por quê? Porque é geral o suficiente para abarcar tudo quanto é caso, ou a maioria dos casos, e é particular
o suficiente para abranger os casinhos particulares. O mito de Édipo é uma
formulação científica da mais alta qualidade, como muitos mitos gregos o
são, pois ele fala a respeito de uma situação que é de todo o mundo, e pode
ser vista particularmente em cada indivíduo. Hoje, pelo menos numa psicanálise que usa o que Melanie Klein e Bion iluminaram, percebem-se
configurações específicas de Édipo em cada paciente. Como foi se desenvolvendo, como não foi, que fantasias fez, como lidou, ou não.
Comparemos o Édipo com o “Dois”. O “Dois” é uma teoria científica
muito boa porque abrange qualquer “dois” que a gente encontre pela frente. Faz parte da teoria dos números. O Número “2”, ele representa a
“doisisse”. Existe uma invariante, uma qualidade, que independe da coisa
material e sensorialmente apreensível. Pode ser dois macacos ou bolachas,
mas a qualidade “dois”, imaterial e subjacente, pode ser intuída. Assim é
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Édipo, uma qualidade. Em certos pacientes as teorias psicanalíticas conhecidas não dão conta. Às vezes o Édipo é tão malformado, tão atrapalhado
que a gente nem enxerga Édipo nenhum; a relação de objeto parcial predomina. Ocorrem coisas na sessão de psicanálise que eu constato, após ter
lido uma observação de Bion, que a teoria da identificação projetiva não dá
conta. Ela não está errada, mas não dá conta de tudo. É um caso idêntico ao
daqueles testes estatísticos da ciência que eu estava falando. Os cientistas
estão tentando ver quantas vezes erram ou acertam quando afirmam que
algo é verdade. Quer dizer, é uma outra característica da teoria científica, é
para ver se aquelas afirmações que a gente está fazendo são verdades e
quantas vezes elas são verdades. Você faz uma testagem com um grupo
controle porque você vai dizer “em x vezes eu vou errar”, 10%; 5% – é o
nível de significância, na linguagem estatística, fixado arbitrariamente.
Para 10% dentre os pacientes que tomam um remédio, ele não vai funcionar; 0,0001% dos aviões fabricados com o material x, o material vai romper e o avião pode cair. Porque se exige mais das teorias psicanalíticas?
Não testei o nível de significância da teoria da identificação projetiva e não
quantifiquei em quantos ela não dá conta de certas coisas. Só sei que ela
não dá conta, embora não saiba sequer coisas são essas nem sei como lidar
com elas. Algumas, podemos saber. Certos fenômenos por exemplo, são
ligados à intuição, que a gente capta ou percebe, ou certos efeitos que a
gente também sente, mas não é a teoria da transferência que dá conta nem
nenhuma teoria dá conta.
Os cientistas que fazem esse tipo de estudo que você está citando, que
é mais dentro da linha da “hard science”, positivista, o que eles estão querendo dizer? Eles se perguntam, ”Quando é verdade algo que eu afirmo?”
Se eles fizessem um estudo estatístico na população em geral, será que
todo mundo apresentaria a questão edipiana? Isso foi feito na primeira
metade do século quando eles foram investigar em outras civilizações. O
que se notou? De início, bradaram, “Psicanálise não existe”, porque não
acharam Édipo lá entre certos povos primitivos. Bronislaw Malinowski,
um antropólogo prático, não teórico, fez isso entre os tobriandeses, lá na
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
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Polinésia. Mas passa um tempo e ele descobre que não é bem que ele não
tenha achado o Édipo, é que ele achou um Édipo diferente e ele não sabia
analisar aquilo, ele estava com uma teoria muito distante do Édipo. Eles
têm o Édipo também, mas eles lidam de uma forma diferente. Eu estou
falando isso por causa do seguinte: você está vendo que podemos adaptar
certos critérios, e de modo muito elegante, neste tipo de ciência que testa a
veracidade, testa o valor verdade das afirmações, se tivermos realmente
domínio de psicanálise e confiança nela. Vamos pegar este exemplo que
você deu. Esse é um exemplo complicado porque eu penso que se a psicanálise estuda o homossexual, provavelmente ela descobre que o
homossexualismo não existe. Esse homem que fez esse estudo está partindo do princípio de que o homossexualismo existe. Eu diria que ele não está
sendo científico porque ele tem um postulado que não questiona. Ele disse
que alguém é homossexual. Podia dizer que é Corinthiano, certo? Não vou
falar do Grêmio bem aqui... Eu me lembro quando comecei a estudar estatística, por coincidência eu tenho uma formação nisso, fiquei vários anos
da minha vida lidando e fazendo estudos com grupos e também em grandes populações. Quando você faz um estudo desse tipo, você define uma
certa coisa, mas você não está perguntando se essa coisa existe ou não
existe. Por exemplo: se você fala que homossexual existe, você já parte
desse princípio, você não está questionando. Para a psicanálise, eu penso
que o homossexual não existe. Freud não pensava que a escolha sexual das
pessoas interessasse à psicanálise. Um agricultor não pode aplicar certos
princípios que seriam adequados à fabricação de parafusos; se as
invariâncias sobre as quais tentei falar são tão diversas em sua natureza,
não cabe comparação nem transdisciplinaridade. O problema em nossa
área é que os profissionais perdem de vista que lidamos com pessoas e
nomes, e alguém pode falar Antonio, mas não tem nada a ver com outro
Antonio. Eu diria que talvez não possamos coadunar esse estudo que você
cita com psicanálise, mesmo que o autor queira dizer que ele entende de
psicanálise ou queira misturar seus parafusos com nossos morangos, ou os
morangos dele com nossos parafusos. Não penso que um analista partiria
238 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 239
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
deste postulado, e até o ponto que posso falar de minha experiência com
análise, eu partiria de algum outro tipo de visão dessas pessoas, que não
seria esse diagnóstico. Eu digo para vocês que psicanaliticamente, e não só
psicanaliticamente, na vida real – e análise real é vida real – o homossexual não existe. O que existe é uma alucinação social compartilhada que demanda este tipo de crença – que homossexual existe, hoje inclusive envolvendo um mercado, conscientemente projetado e construído, quase todo
mercado explora a capacidade humana de alucinar. Não existe, pelo seguinte fato real, biológico: ou é homem ou é mulher. Nós não estamos
estudando hermafroditas; isso existe, hermafroditas. Nós não estamos estudando os sobreviventes dos desastres de Nagasaki ou Hiroshima, ou os
filhos de técnicos de Raio-X que mudaram lá o sexo das pessoas. Nós
estamos falando de pessoas que falam, “Eu sou homossexual”. Nós temos
homossexual do mesmo jeito que temos um freudiano, um kleiniano, um
corinthiano ou um judeu. O grupo social precisa de um treco desses, e
alguém fala “eu sou isso”. Pronto, agora você tem o “isso”.
O grupo social às vezes fala assim: “o que você é?” “Eu sou médico”,
diz alguém. Não é médico. Se uma pessoa foi desafortunada o suficiente
para ter lá um infarto, ele vai lá, tratam dele com cuidado, com Isordil, e
não sei o quê mais hoje em dia, ou se ele está hipertenso, com
extrassístoles, podem dar Propanolol, ele pode ser muito desafortunado e
deu no lado direito do coração então complica com um edema agudo do
pulmão, e o homem ou mulher que está lá trabalhando sabe que precisa
puncionar uma veia femural para baixar a pressão. Esta pessoa está sendo
médico porque ele está medicando. Nós somos psicanalistas porque nós
temos um paciente que nós estamos tratando dele. Socialmente dispomos
destes rótulos e o rótulo de homossexual é um rótulo social. Se o psicanalista estuda pessoas, ou lida com pessoas que se dizem homossexuais, ele
vai falar em situações, me diz a experiência, de inveja do seio, ele vai falar
em situações de inveja e agressão com a mãe, de ódio da dupla parental, de
não suportar uma dupla parental criativa. Nós não estamos falando mais
em homossexuais, a gente pode falar de uma pessoa que odeia tanto a rea-
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
lidade dela que, sendo homem ela diz que não é homem ou, sendo mulher,
ela diz que não é mulher. Isso o psicanalista faz. Vamos dizer assim, “homossexual” é o mesmo que “duas batatas”. Não interessa a batata, a
concretude, o conteúdo manifesto, a não ser como indicador; nem o “dois”.
Precisamos chegar à “doisisse”, a qualidade de ser dois, ou número, ou a
“batatisse”, a qualidade de ser batata, ou planta. Esse homem que você cita
tem razão, ele não pode usar o critério psicanalítico, porque ele nem sabe o
que é psicanálise. Ele está usando alguma psicanálise de que ele ouviu
falar e de coisas que andaram se espalhando em nome da psicanálise. Eu te
diria que o problema que ele traz é um problema anterior à psicanálise, é o
problema que os povos de fala inglesa e fazem ciência dizem, “nature
versus nurture”, natureza ou criação, a coisa endógena, é genética, é inata,
ou é ambiental? É genotípica ou fenotípica? Freud tinha aguda percepção
disto e falava das séries complementares, vocês lembram disso, acho que
conhecem, não é?
Isso não é importante para nós, e se ele acha que psicanálise é isso, eu
diria que tanto ele quanto os psicanalistas que acham isto estão enganados.
E é útil que ele apresente esses resultados para os psicanalistas, pois parece
ser um homem sério este seu pesquisador. Quem sabe ele ajudaria os psicanalistas pararem de fazer generalizações a partir de um, dois ou três casos,
e de reconstruções, em geral, que nós estávamos falando hoje de manhã no
caso clínico, de fatos que eles nem viram, e que estas reconstruções do
passado não são o que se passou realmente. Hoje em dia nós temos observações de bebê, não é? Foi uma esperança do analista testemunhar o desenvolvimento histórico, da vida emocional, sem precisar apelar para reconstruções Não me parece que tenha sido bem sucedido. Eu não sei se
aqui no Sul vocês fazem isto, mas mesmo observações de bebês não são a
realidade mãe – bebê, pois podemos ver que esse bebê observado é um
bebê que não é mais o bebê da mãe, é o bebê da mãe sendo observado por
uma pessoa que o estava observando.
Com isto eu estou tentando introduzir outra questão científica, que o
seu pesquisador não leva em conta: que há uma interferência do observa240 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – Como é o teste da hipótese na sessão?
Sandler – O nosso teste de hipótese na sessão, que eu estava tentando
dizer, é a realidade empírica do que está acontecendo na sessão. Se você
quiser talvez uma leitura sobre isso, eu acho que pode ser útil a obra de um
epistemólogo da psicanálise, o Dr. Bion. Nos cinco primeiros capítulos do
livro Transformações, ele fala exatamente disso. Ele comenta sobre o que
acontece quando temos duas ou três hipóteses quando precisamos de uma
só. Não adianta ter duas ou três. A minha idéia é que o teste de hipótese que
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 241
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
dor no fenômeno observado. Sabem que Freud descobriu isto lá por 1900,
e Planck e Einstein e Heisenberg, alguns anos depois. O observador, quando observa algo, interfere no fenômeno. Os analistas tentam conhecer características do observador, que somos nós mesmos. Fomos pioneiros nisto, na ciência. Para saber o que nós estamos fazendo no fenômeno, então
nós vamos fazer nossa própria análise pessoal. Os físicos modernos eles
não falam só da trajetória da partícula, eles bombardeiam a partícula, com
um facho de energia conhecido, e então eles interferem na trajetória e vêem
o que aconteceu com aquelas interferências. Então, voltando a esse estudo,
se houvesse um diálogo pessoal, ele poderia ter o seguinte teor: “Olha, é
verdade, você acabou de descobrir que essas teorias ditas psicanalíticas
são falsas, elas são mesmo, mas elas não são psicanálise. E para a gente
conversar e você fazer um estudo, você vai ter que bolar um outro estudo
que não parta do diagnóstico social ou psiquiátrico, ou o lugar comum de
homossexual, porque se você quer ter algo a ver com psicanálise, a questão
não é esta. Se um dia alguém puder fazer um estudo desses e as análises
forem conduzidas de uma maneira tão semelhante que a gente possa medir
num grupo controle, sei lá qual seria também, inveja do seio, ou inveja do
casal criativo, da suprema criatividade do casal, talvez nós poderíamos ter
critérios quantitativos”
Eu não sei se isso é possível ou se vai ser possível algum dia, eu acho
muito difícil. Isto está fazendo sentido para você?
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
fazemos em análise é como você jogar, por exemplo, uma pedra num lago
tranqüilo. Você joga a pedra e tem aquelas ondas e você pode medir. Então
você tem uma situação que é o setting analítico. Você observa algo e você
lança alguma coisa para o paciente. Pela resposta dele, nós estamos testando nossa hipótese. Nós precisamos ter algumas hipóteses, ou pelo menos
uma hipótese. O nosso teste de hipótese é feito no fogo do inferno da clínica, vamos dizer assim. O nosso teste de hipótese é o mesmo do médico
praticante, não sei se faz sentido para você. E dessas hipóteses, o Freud foi
construindo a Psicanálise. Por exemplo, quando ele percebeu que a hipótese de que havia um trauma, de uma causa e de um efeito, uma causa na
infância e um efeito na idade adulta, era uma hipótese cujo resultado não a
confirmava, ele rejeitou a tal hipótese. Um procedimento científico de nível igual a qualquer procedimento científico. Ele ficou algum tempo estudando e percebeu que aquela teoria que ele tinha de causa e de efeito, era
uma teoria que ele tinha na cabeça dele, que era um fenômeno que ele
achava que existia, mas não existia na realidade. A gente fala alguma coisa
para um paciente. Bom, se não fizer efeito, Freud escreveu em Construções em Análise, não é necesário ficar muito preocupado. Você se lembra
dessa frase? Porque o paciente, na resposta que der, vai te mostrar se não
vai ter efeito nenhum; se nutrir uma cadeia associativa, então deu resultado. Então eu acho que o nosso teste de hipótese é esse. Isso responde a tua
pergunta? Não é estatístico, nós somos cientistas que testamos as hipóteses
em nós mesmos também, na nossa análise pessoal. Nós somos o único tipo
de médico que podemos fazer isso sem morrer da doença. Teve muito médico que testou vacinas, ou injetou certos microorganismos. Talvez fiquemos meio danificados, mas podemos prosseguir, levantar, caminhar.
Participante – A gente está colocando em discussão toda a linha
investigativa da Psicanálise, do Kächele? Você está criticando o trabalho
dele, alguma coisa assim?
Sandler – Não do trabalho em si, mas eu penso que há um engano na
242 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – Não discutiria isso?
Sandler – Não, eu não discutiria porque eu não posso falar disso, eu
não estou na condição dele. Pelo menos, não ainda. Se um dia eu tiver que
sobreviver e tiver que fazer o que ele faz lá, eu não sei se eu não vou fazer.
Eu não sou árbitro, eu não sou juiz.
Participante – Mas o juiz fala...
Sandler – Como é que ele fala?
Participante – Vamos falar mais do Kächele...O Secretário de Segurança sabe muito bem julgar...Ele diz que não se sabe quem é polícia e
quem é ladrão.
Sandler – Eu acho que sim, ele é polícia, e polícia acha que sabe quem
é ladrão, mas às vezes não dá para diferenciar. Não é de surpreender isso, o
policial está tão em contato com o ladrão que ele tem uma certa noção mas
às vezes perde a noção. Uma vez que eu fui assaltado lá em São Paulo, fui
seqüestrado, fiquei cinco horas numa espécie de alcova, eles estavam assaltando um prédio e eu falei para o ladrão o seguinte: que eu preferia que
a polícia não fosse lá. Ele também preferia. (risos) Então que eu não queria
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 243
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
proposta. Eu sei que eles vieram aqui para o Sul, vocês gostam dele aqui,
deve ser uma pessoa muito interessante, e do que eu li que ele e o amigo
dele escrevem, é um homem sério. Mas eu penso que há um engano nisso.
Eu posso tentar dizer: em primeiro lugar o seguinte: uma vez que ele deu
uma declaração que estava preocupado com o sistema de saúde alemão
que não ia pagar mais nada. Ele tem que provar que Psicanálise funciona
para poder receber, Isto é fora da área da Psicanálise, isto é uma questão de
sobrevivência e eu não me colocaria para discutir isto com ninguém, nem
com ladrão que rouba. É uma questão de sobrevivência.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
atrapalhar nem que ninguém atrapalhasse enquanto ele fizesse o trabalho
dele. Na hora que eu falei, “Fizesse o trabalho”, eu estava com outros analistas, eles me deram uma bronca, “Você está gozando dele, que trabalho,
que nada, ele está roubando”. É trabalho, retruquei, mas meus colegas tinham teorias sobre provocar o ladrão, sobre uma porção de coisas que se
deveria ou não fazer, que sabiam que a reação ia ser esta ou aquela. Eu
pensei no momento e continuo pensando que ele estava fazendo um trabalho que para mim é mal remunerado, é muito perigoso, complicado, mas é
um trabalho. Ele ficou suando feito um desgraçado, ficou cinco horas lá
fazendo aquilo, e ele nos tratou com muito respeito. Ele falou assim: “Não
olha para mim” e eu não olhei para ele. Eu achava que ele era policial
também, o problema também foi esse, e um dos nossos colegas tinha sido
alvejado por um policial numa situação dessas, eu estava com muito medo
mesmo, que acontecesse isso. Ele estava armado, ele me botou a pistola,
uma 9 milímetros no meu flanco direito também, uma série de coisas que
não importam agora, mas num certo momento eu queria dizer para ele que
a gente não ia aprontar nada, e que eu não ia para polícia reconhecer ele
depois, etc. e tal: “Olha, o sr. faz o seu trabalho aí, a gente espera aqui, não
vamos causar problema”. Eu observei que ele estava bem irritado que nós
estávamos lá, ele queria assaltar o prédio e nós fomos fazer um grupo de
estudos num domingo. (risos) Então ele falou: “Vocês aí são tudo burguês
(sic), o que que vocês estão fazendo aqui num domingo? Por que não estão
almoçando em casa com a família?” Ele era um homem que tinha contato
com a realidade e nós, bem nós negamos a realidade até que ela veio cobrar
sua conta, dolorosamente (risos). Acho que devíamos pagar o preço de
uma sessão para este homem, caso ele tivesse a intenção de nos ajudar.
Mas acho que não tinha.
Participante – Mas a tua crítica ao pós-modernismo, interessante, eu
estava pensando no livro que eu li há pouco, não sei se tu conheces, escrito
por um físico, Sokal, “Imposturas Intelectuais”, ele diz algumas coisas
interessantes ali, faz algumas críticas, a forma como começou aquele li244 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sandler – Todo o mundo está ouvindo o que o colega está falando?
Acho isso de uma importância fundamental.
Participante – Porque hoje em dia, alguns trabalhos que a gente vê
por aí, de alguns autores ... A minha impressão é de que esta idealização é
muito mais que o hermetismo de não entender, de tão idealizados, porque
ele diz alguma coisa de importante, ... eu li a coisa, não entendi,, eu sou
muito burro, eu não posso ser psicanalista, eu não entendo esses caras, aí
o Sokal me disse isso e eu entendi, me tranqüilizei também com essa questão. Eu acho importante essa relação que tu fazes com a Psicanálise. Uma
colocação que eu acho fundamental , casualmente no teu trabalho. É teórico, mas teórico com prática... ninguém pode ser teórico sem ter uma
assistência empírica, a Psicanálise é empírica. O Sokal diz que os trabalhos dos lacanianos têm gravíssimos erros: são trabalhos que apresentam
teorias sem a menor fundação científica, clareza científica. Ele diz que a
psicanálise é uma ciência muito nova e ela demanda muita investigação
empírica e não demanda teorias. Leio trabalhos das revistas de Psicanálise, eu vejo poucos clínicos, e muitos trabalhos teóricos, teoria, teoria.
Sandler – Essas teorias que a colega estava se referindo, e que o
geneticista estranhou.
Participante – Muito importante realmente o que tu colocaste, que a
gente tem que pensar bastante nisso, em nosso meio, numa clínica; a gente
precisa realmente ir com a clínica para buscar as coisas. E uma outra
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 245
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
vro, enfim é muito interessante. O que ele tinha de pós-moderno não mudou, começou na França mas se estendeu, na verdade... ele diz uma coisa
que é muito interessante, ele diz que quando tu lês um trabalho e tu achas
extremamente complicado e não entendes, não te preocupa porque ele não
quer dizer absolutamente nada, como os trabalhos pós-modernos, são frases dele, do Sokal.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
questão também, eu acho que tu tocas num momento, até diretamente, é
quando o Sokal fala também disso, e muita gente tem falado, quando hoje
em dia está muito em moda, tu colocar a questão assim, que é uma questão
ideológica, a psicanálise fica absolutamente secundária, desde que a questão ideológica seja satisfeita. Não é justo que um dos piores ataques que se
fazem à psicanálise hoje em dia. Concordo contigo. A Psicanálise não está
em crise, nunca esteve melhor, mais linda, cada vez mais rica, não há outra solução para determinadas pessoas do que fazer Psicanálise e a gente
sabe disso. A gente fica pensando o que a gente está fazendo na Psicanálise, talvez aí, se a gente mudar essa postura da gente dentro da psicanálise,
eu acho que as crises da psicanálise tendem a acabar. Lamentavelmente
não é o que eu tenho visto, a postura geral em relação à Psicanálise tem
sido cada vez provar a questão ideológica, coisas deste tipo. Desvalorizam a investigação psicanalítica na clínica. Era isso que eu queria dizer.
Sandler – Eu queria pegar um gancho do que o colega está falando
porque eu não sei se todo o mundo conhece o que o Professor Sokal fez.
Vocês sabem a história como começou, não? Quem não sabe? Alguém falou que vale a pena, ou não vale a pena? Você quer contar a história?
Participante – O início do livro?
Sandler – O que foi que ele fez?
Participante – Ele escreveu uma impostura e mandou para algumas
dessas revistas importantes.
Sandler – Uma delas.
Participante – Uma delas, perdão.
Sandler – Podemos fazer um duo aqui? É o seguinte: é mais ou menos
246 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – Foi publicado, muito elogiado, maravilha, e aí ele vem
a público e diz que tudo aquilo era uma impostura, que ele escreveu esse
livro para falar sobre as várias imposturas que ele reconhecia lá dentro do
meio intelectual.
Sandler – Ele é um cientista, um físico, e fez uma coisa dentro de uma
tradição que eu diria, vem desde o Iluminismo. Um sábio do iluminismo
inglês, que não é muito conhecido em nosso meio, que se chamava
Alexander Pope (não é o Popper, ele é muito anterior). Esse Pope era um
pouco rabugento, segundo consta, eu acho que parecido com Sokal, e ele
falou uma coisa assim, que pouco saber é uma coisa perigosa. “Little
learning is a dangerous thing”. Sokal percebe que certos intelectuais franceses padecem de pouco saber. E realmente, se vocês lêem ou podem ler
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 247
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
o que você estava falando mas tem um pulo do gato que serve. Sokal teve
habilidade, eu até acho pessoalmente que ele foi um pouco sarcástico, rude,
porque na verdade ele está irritado porque o pós-modernismo está entrando tardiamente lá nos Estados Unidos, no meio cultural americano, não
tinha entrado lá ainda, no Brasil já tinha, pelo menos em São Paulo. Então
ele pegou o jargão, isso é importante para o psicanalista, para nós é uma
lição o que ele fez, ele pegou o jargão da revista, ele pegou o jeitão. Se
vocês quiserem escrever qualquer artigo em qualquer revista de psicanálise hoje, peguem o jargão, peguem o jeitão de como é que se monta aquilo
lá, pode escrever um monte de besteiras, pode falsificar a clínica, pode
fazer o que quiser que vocês conseguem que o artigo seja aprovado, conseguem mesmo, está dentro do padrão. Vocês lembram do Pequeno Príncipe,
do astrônomo indiano, só quando ele se vestiu de ocidental que deixaramno falar? É o mesmo fenômeno. Alan Sokal montou um artigo muito bem
montado em que ele provava os maiores absurdos. Ele relacionava a teoria
quântica como Lacan relacionou, um monte de besteiras e a revista filosófica e de teoria da ciência mais prestigiosa dos Estados Unidos aceitou o
artigo, como se fosse um artigo sério.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
lá, inclusive o que o Lacan escreveu, percebe que eles pegam uma coisa
meio de orelhada, não sabem do que estão falando e fazem correlações
imaginárias, engenhosas e plenas de raciocínio, som e fúria que não tem
nenhuma contraparte na realidade. Sokal denuncia que essas pessoas não
entendem de física para falar o que estão falando, que usaram fora de contexto, que torceram as palavras. Bom, isso foi um escândalo mesmo. Porque nos é útil? Quando estamos escrevendo para as revistas de psicanálise,
quando estamos com os pacientes, também pode ocorrer de bolarmos uma
teoria com palavras bonitas para dizer coisas do paciente, e o paciente pode
acreditar naquilo que estamos falando, acredita porque ele pode estar doente, ele pode estar assustado, ele pode não estar ouvindo o que estamos
falando, ele pode estar delirando que somos o que ele achou que somos, e
então tanto faz o que falamos ou não. Há uns 15 anos, lá no International
Journal, um colega nosso que se chama Warren Kinston escreveu algo,
mas ninguém nunca mais ouviu falar nele. Ele mostra que, independentemente da teoria usada, incrível, os pacientes melhoram. Então nos é importante, porque eu acho que estamos nos arriscado com muitas teorias, a fazer imposturas também. O Sokal fez foi montar racionalmente uma coisa
plausível e palatável. A psicanálise não lida com coisas plausíveis nem
palatáveis nem racionais, mas muitos preferem teorias psicanalíticas que o
sejam. Bion alertou, em 1976, que o todo da psicanálise bem pode não
passar de uma vasta paramnésia para ocupar o lugar de nossa ignorância
(no estudo “Evidência”).
Participante – Posso dar um palpite? Mais para dizer alguma coisa e
registrar a minha grande satisfação e dos meus colegas de te ter aqui
conosco, em que pese nossa antiga amizade e tudo, é honroso para mim te
ver aqui. Mas eu queria dizer o seguinte: quando tu fizeste a pergunta
quem é que conhecia aquela metáfora do Goethe e do Platão, eu fiz uma
analogia com o filme Zelig, do Woody Allen, que era um impostor, como se
diz, um homem-camaleão, ele usava a identidade das pessoas: ele ia falar
com um chinês e virava chinês, assumia a identidade do outro. Lá pelas
248 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Sandler – Eu penso que sim. Vamos dizer assim que, sob forma de
metáfora, uma brincadeira com personagens. O ditador italiano Mussolini
diria “todos os caminhos levam à Roma”, isso se fala. Talvez o Italo
Calvino, não sei quem têm contato com a obra dele, que eu acho um escritor eterno, que vai ficar, ele diria assim: “muitos caminhos levam à Roma”.
E o Freud ou Platão talvez diriam assim: “Roma, a cidade eterna, existe e é
uma só”.
Participante – Te conheço há mais tempo, te vi outras vezes. Para mim
parece uma espécie de evolução no pensamento, na forma de tu veres a
psicanálise, porque eu sei que toda teoria que tu sabes é uma impostura.
Pelo que eu escutei é o que quiseste passar.
Sandler – É.
Participante – Toda teorização depende dos dois princípios do funcionamento mental, o princípio do prazer e o da realidade; depois a situaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 249
Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
tantas ele se sentiu infeliz, reprimido, ele não conseguia ser ele mesmo, ele
era todo o mundo, era famoso, mas não conseguia ser ele mesmo, vai se
analisar e descobre, no tratamento dele, que a origem desse problema é
que na infância, no colégio, talvez como agora aqui tu fizeste, o professor
perguntou quem tinha lido Moby Dick para os alunos, e todos foram dizendo eu, eu, eu. Quando passou por ele, ficou com vergonha de dizer que não
tinha lido. Como aquela história do Platão, eu acho que a maioria que
disse que tinha lido, também não tinha, mas ele aí se dá conta disso, tinha
50 anos, 50 e tantos anos e disse que vai ler o Moby Dick, estava lendo e
nem estava achando tão interessante assim. Isso aí mostra a situação que
se criou aqui, a questão da impostura, acho que a questão da psicanálise.
Para mim é o seguinte: o importante não é o conhecimento, não é ter lido
ou não ter lido Moby Dick, é dizer a verdade, a questão central é dizer a
verdade. Pode ter muitas teorias escritas, o importante é a verdade.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
ção de Klein que privilegiava mais o mundo interno, como conseqüência o
paciente teria que deduzir como seria o mundo exterior. Bion, com a situação da continência, dando maior importância para a realidade externa
num certo sentido de Klein e agora tu falas em Winnicott e todo o teu
trabalho dessa revisão filosófica do inconsciente que existia há muito tempo, antes de Freud, toda a situação dos filósofos e da preocupação do
conhecimento; revela a tua grande preocupação em saber o que é verdade
e o que é realidade. O que é a realidade da psicanálise? Então tu dizes, de
certa maneira, que o analista, quando entra na sala, ele tem que esquecer,
praticamente, toda a teoria que ele tem, ter estudado, quanto mais ele
souber da teoria, melhor. Pode parecer que a teoria não fosse importante,
não é isso que tu estás dizendo, ao contrário. Tem que saber muito todas e
mais possível, e onde der para saber. E qual é a verdade, então? Acho que
o grande problema é que, quando o paciente associa ou consegue associar, ou todas as manifestações somáticas ou tipos de comunicação que ele
faça, cinestésico ou o que for, o analista só pode usar a atenção flutuante
como busca da impressão, isso é em teoria, como o Freud fazia, observar
o necessário, como dizia Charcot, até que as coisas se façam falar por si
próprias. Então, o que é verdade, muitas vezes, para o analista, é que ele
não saiba. Quando ele sabe, de certa maneira ele bloqueou, só pode oferecer interpretação do paciente como uma hipótese, mesmo que esteja convicto que aquilo é verdade, porque aí a validação da interpretação, pelo
paciente, ele descobre aquilo, que se transformou nisso, em algo que realmente é válido. Essa inverdade dos dois, naquele momento, pode ser modificada posteriormente, mas não adianta sair da caverna do analista e dizer “olha, eu fui lá fora, eu sei, é assim”, aí ele é morto. A tentativa de tirar
os grilhões, quem sabe tu olhas um pouquinho para cá, quem sabe tu olhas
um pouquinho para lá, sem indução, e ele vai descobrir que o mundo lá
fora também vai ser diferente do paciente. Isso que tu me passaste eu não
sei se está dentro do teu pensamento ou se eu perdi um pouco...
Sandler – Não, eu gostaria de poder sintetizar o que eu estava falando
250 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – É que dentro disso.... Eu li esse trabalho do Sokal e
realmente ele é muito contundente, ele arrasa com Lacan, mas isto também não quer dizer que muitas coisas que o Lacan disse ali não fossem
verdades ou não pudessem ser aproveitadas como coisas muito importantes.
Sandler – Ele também não ataca a obra do Lacan inteira.
Participante – Não ataca a obra.
Sandler – Ele pega naqueles pontos onde...
Participante – Não estou aqui dizendo que a obra de Lacan não tenha
validade.
Participante – Exatamente. Uma pessoa pode não ter uma elaboração como Lacan teve em algumas coisas, não estou aqui para defender o
Lacan, mas muitas manifestações de qualquer pessoa e qualquer teoria
podem ser úteis para muitas coisas. Como você relaciona Bion e Lacan?
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Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
do modo que você pode. Há no que você foi falando muito que poderíamos
expandir ou conversar mais, mas vou escolher um aspecto. Quando chegamos a falar alguma coisa para a pessoa, há uma certa convicção, intuímos
ou percebemos algo. A teoria está introjetada, são agora as nossas ferramentas. E aí vem a reação do paciente, não é se ele concorda ou não concorda. Que associação livre ele teve frente a nossa atenção flutuante, como
ele reagiu? Ele pode concordar conosco, ele pode não concordar. Ele pode
concordar e ser mentira, aquilo que nós dois falamos, como aquela recusa
do que foi falado pode ser recusa da verdade. Ele pode não concordar e ser
verdade, ele não concorda justamente porque é verdade. Mas não tem regra. Não é sempre que ele não concordar, que é verdade.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
Sandler – Houve uma passagem dele, era jovem ainda e foi entrevistar Bion, e ficou muito impressionado. E eu acho que existem relações,
mas não conheço suficientemente a obra de Lacan para fundamentar isso
do jeito que gostaria. Parece-me que existem muitos pontos em contato das
obras dos dois, quer dizer, eles observaram os mesmos fenômenos e formularam de maneiras diferentes, com palavras diferentes. O que eu acho
interessante nele é quando ele estava mais idoso; ele desautorizou qualquer lacaniano.
Participante – Ele se redimiu.
Sandler – Acho que tentou, mas também acho que não deu tempo.
Acho que se estivesse mais jovem, teria até salvado melhor a teoria dele,
ao desautorizar seus apóstolos e discípulos.
Participante – Ele falou do dois também, se interessou pelos números,
zero.
Sandler – Ignácio Matte Blanco falou a respeito do inconsciente como
uma série infinita. Bion, Matte Blanco e Lacan são três autores que conseguem perceber que o matemático e o psicanalista lidam com problemas
mais ou menos parecidos. Mas talvez vocês estejam cansados, e antes que
alguém durma por aqui, será que posso dizer umas palavras finais?
São de agradecimento mesmo...os mais novos talvez não saibam, mas
eu não tenho como agradecer, na verdade, por estar junto com vocês de
novo. Eu realmente não tenho como agradecer com palavras, espero com
alguns atos, no futuro, poder fazer isso. Mas é para mim importante estar
aqui, eu tenho muito respeito e consideração por vocês aqui do Sul, pelos
amigos muito queridos e novamente se confirma algo que eu já
achava...que vocês têm condições talvez melhores por aqui, David
Zimerman uma vez me disse, “Mas você está em São Paulo? Em São Paulo
você está apeado, em psiquiatria você está apeado”. Ele até falou “vem
252 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Participante – Nós é que te agradecemos toda essa possibilidade de
pensar um pouco sobre todas essas questões. Eu só discordo, e isso eu
acho que é um delírio do gaúcho, que aqui se fazem as coisas de modo
mais perfeito, que a justiça gaúcha é mais séria, que todas as coisas aqui
são mais sérias.
Sandler – Mas até as construções são mais bem feitas aqui! Parece a
Europa...
Participante – A impressão é uma ilusão.
Sandler – Acho que eu estou preso a alguma aparência e falando de
coisas que certamente entendo muito menos do que vocês...
Muito obrigado Sandler, pelos momentos tão instigantes que tu nos
oportunizas-te. Boa noite a todos.
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Paulo Cesar Sandler na SBPdePA
para cá, vem fazer residência aqui, etc. e tal, senão depois fica impossível,
você vai casar, depois você vai ter clínica”. Eu já era casado e já tinha
clínica. Existe um tipo de seriedade mesmo, do jeito que vocês fazem as
coisas em tudo, acho que não é só em psicanálise. Às vezes eu acho que o
futuro está por aqui. Certamente vocês estão aqui também com dificuldades, questões emocionais e de colegas e coisas que vão surgindo, mas eu
sinto muita firmeza aqui em vocês. Essas questões que vocês levantaram, o
tipo de feedback que vocês me dão. Então, eu sou realmente muito grato
pela oportunidade de estar aqui com vocês hoje, pela paciência que vocês
tiveram.
“PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS?
BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE”
Breve Apresentação do Conferencista
Analista Didata da SBPSP; Mestre em Medicina pela USP; Professor
no Curso de Pós-graduação Senso Lato em Psicoterapia Psicanalítica do
Instituto de Psicologia da USP (Serviço do Prof. Ryad Simon); Ex-Executor do Programa de Saúde Mental da Faculdade de Saúde Pública da USP
(1979-1983); Membro Honorário da Força Aérea Brasileira (2000); Exassistente do Instituto Ache (1973-79) e Ex-residente de Psiquiatria do
H.C. da FMUSP (1974); Autor de vários livros (“A Apreensão da Realidade Psíquica”; “Fatos: a Tragédia do Conhecimento em Psicanálise”; “Introdução a uma Memória do Futuro”; “As Origens da Psicanálise na Obra
de Kant”; “Os Primórdios do Movimento Romântico e a Psicanálise”;
“Turbulência e Urgência”).
Conferência
Conferência proferida na Sociedade Brasileira de Psicanálise
de Porto Alegre, em 30 de março de 2001
Dr. Paulo Cesar Sandler
Rua Joinville, 157
04008-010 São Paulo – SP – Brasil
E-mail: [email protected]
Fone: (0xx11) 3884-0239
254 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Entrevista da SBPdePA
R. Horácio Etchegoyen
Membro Titular em Função
Didática da APdeBA (Associação
Psicanalítica de Buenos Aires);
ex-Presidente da IPA; ex-Presidente
da APdeBA; autor do livro “Os
Fundamentos da Técnica
Psicanalítica”.
Entrevista realizada com
exclusividade para Psicanálise –
Revista da SBPdePA, por Ana Rosa
Chait Trachtenberg, em Buenos
Aires, junho de 2001
SBPdePA – Uma questão que
eu pensei que poderia ser interessante, para começar nossa entrevista à revista da SBPdePA, seria um
vôo panorâmico sobre tua história
psicanalítica, institucional, pessoal, não?
Etchegoyen – Bom, isso posso
dizer. Bom, começo com isso?
Quando me formei médico na Universidade de La Plata. Eu morei,
desde muito pequeno, em La Plata.
Nasci num povoado perto daqui.
Papai morreu quando eu era muito
pequeno, e mamãe se foi com seus
filhos para La Plata. Ali vivi, até que
fui para Mendoza. Ali cursei o primário, secundário, universidade.
Ali me casei, ali tive meus filhos
com Élida, assim que...
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 257
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
SBPdePA
Entrevista
R. Horácio
Etchegoyen
SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN
SBPdePA – Élida era de La Plata?
Etchegoyen – Élida era platense. Ela amava Buenos Aires. Gostava
muito mais de Buenos Aires que de La Plata. Era apaixonada pelas grandes
cidades, tinha um encanto. Mas eu, bem, prefiro as cidades pequenas. Poderia morar talvez melhor em Porto Alegre do que em São Paulo. Então
comecei a viajar a Buenos Aires. Quando me formei, estive em dúvida
sobre Clínica médica, Anatomia Patológica e Psiquiatria. Na realidade, eu
havia sido ajudante na cátedra de Anatomia Patológica e gostava muito.
Meu primeiro trabalho científico foi um trabalho de Anatomia Patológica.
Depois me decidi por Psiquiatria, e ali apareceu a Psicanálise. Bom, então
comecei a viajar para Buenos Aires, fiz análise, com Luis Rascovski; depois, essa análise se interrompeu... Então comecei, pouco depois, com
Racker. Foi uma pessoa muito importante na minha vida. Mais ainda, sendo eu um órfão de pai desde tão pequeno, não? Racker era muito bom
analista, muito boa pessoa, um homem de enorme criatividade. Bom, depois, quando estava terminando minha análise, me surgiu a possibilidade
de ir, como professor de Psiquiatria, para Mendoza e fui de 57-58 até 65.
Estive vários anos. Fui, creio, um bom professor de Psiquiatria. E talvez
poderia haver seguido como professor de Psiquiatria. Houve dificuldades
com o establishment da faculdade, eles combatiam muito os psicanalistas
como reformistas. Eu sou um homem da reforma universitária, enfim. Para
eles eu era uma praga. Como professor, consegui uma bolsa pela Oficina
Sanitária Panamericana, por meus méritos como professor, e fui a Londres.
Ali me reanalisei, um ano, com Meltzer, foi uma experiência muito importante para mim; 66 eu passei em Londres. Em 1967, voltamos à Argentina
e eu me instalei em Buenos Aires. Élida também queria morar em Buenos
Aires. Não voltamos a Mendoza nem à La Plata, coisa que foi uma boa
decisão, porque em Buenos Aires se tem mais possibilidades de desenvolvimento como psicanalista, como psiquiatra. Bom, quando fui a Mendoza
ainda não era membro associado. Assim, continuei viajando, fazendo supervisões que me faltavam com Leon Grinberg e com Marie Langer,
258 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
SBPdePA – Quantos anos o grupo durou como Grupo Ateneo?
Etchegoyen – Dois, três anos. As pessoas que me querem
ambivalentemente dizem que eu sempre tive uma veia política, que eu
sempre neguei, mas o fato real é que fui presidente da APdeBA, da IPA.
Não é tão fácil negá-lo, mas eu diria, e isto é uma confissão para a revista,
que quando eu digo que não sou político me estou enganando, mas também é certo no sentido de que nunca me interessou a política como tal, tive
que assumi-la, sei lá, não? Mas essas são coisas muito subjetivas, talvez eu
esteja equivocado, mas no sentido de que eu me considero basicamente um
analista que teve que assumir cargos políticos importantíssimos, mas não
alguém com alguma verdadeira vocação. Meu padrinho, que foi uma pessoa sumamente importante na minha vida, Horácio, foi ministro de
Irigoyen; papai era médico, mas meu padrinho que foi uma figura imporSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 259
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
Liberman... Em Londres, tive um ano interessante e trabalhei na Tavistok
Clinic, e ali se apresentou o problema de ficar definitivamente lá ou voltar.
Felizmente decidimos voltar, principalmente porque minha filha Alícia tinha ficado aqui para terminar sua carreira, não? Não era possível Alícia
terminar seus estudos na Inglaterra e então... Esse foi um fato familiar,
fundamental, para que voltássemos. Talvez se Alícia pudesse terminar sua
carreira em Londres, não tivéssemos voltado. Creio que teríamos cometido
um erro. No sentido de que minha carreira aqui foi muito melhor do que
talvez teria sido lá. Por diversos motivos, porque teria sido sempre um
estrangeiro. Por outra parte, eu não tenho a sorte que tu tens de ter muito
domínio nos idiomas. Eu falo muito bem e penso em espanhol, mas, contrastando com isso, sou muito torpe com as outras línguas. Nunca cheguei
a falar bem o inglês... Bom, voltamos: aqui, fiz meu trabalho para titular,
depois fui didata, pertenci ao grupo que estava descontente com algumas
orientações da APA. Eu fui o último presidente do Grupo Ateneo e o primeiro presidente da sociedade provisória (APdeBA). O segundo foi David
Liberman, que foi presidente da sociedade componente.
SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN
tante para mim, ainda mais que papai morreu sendo eu tão pequeno; era
uma figura política sobressalente, de maneira que, se você quer tirar conclusões, pode-se dizer que eu segui o caminho do meu pai e de meu irmão
Juan Carlos, que, como eu, é médico. Muito de minha vocação... Bom, a
política é minha grande identificação com Horácio. Tenho o seu nome.
Quando eu nasci, meus pais pediram a meus dois irmãos que me pusessem
nome. Um deles disse que me chamessem Ricardo, e Juan Carlos disse que
me chamassem Horácio. Então, meus pais, salomonicamente, disseram,
bom, que se chame Ricardo Horácio. Depois, quando morreu papai, meu
tio Palácios, que me quis muito, renunciou a seu apadrinhamento, e dizia a
Horácio: “para que vou ser eu padrinho desse menino. Seja você, que o é
muito mais”. Então Horácio colocou como condição que a madrinha fosse
a esposa de Palácios, irmã de minha mãe e que me chamassem Horácio,
porque o assassino de seu pai, que era dirigente radical, se chamava
Ricardo. Assim que você pode ver que sou o único cara que não tem complexo de Édipo! (Risos) E bom...
SBPdePA – Seu pai como se chamava?
Etchegoyen – Se chamava Pedro. Meu irmão mais velho se chamava
Pedro, e o filho de Alberto, meu filho, também se chama Pedro. Quando
nós, um matrimônio jovem noutra época, decidimos não pôr os nomes da
família, então não chamamos Alberto de Pedro, como deveríamos ter feito
porque ele era... Isso é importante, uma tradição para a família. E Alberto,
que se casou há pouco tempo, com a segunda mulher, e tiveram um filho, o
chamaram Pedro (Horário Etchegoyen busca uma foto de Pedro).
SBPdePA – Mas ele está lindo! Parabéns! Agora entendo porque,
neste belíssimo trabalho (“Algumas Reflexões sobre a Técnica Psicanalítica”, publicado nesta mesma revista), há uma referência tanto a Alberto
quanto a Pedro. Nele você diz: “foi mais difícil não dizer a meus pacientes
260 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
Etchegoyen – Claro. Isso no sentido de como o ofício vai se melhorando, no sentido de que, tanto como experiência de vida, como experiência da Psicanálise... É uma profissão da qual eu gosto muito. Também gosto muito de analisar. E bom, o mais importante, talvez, que vem agora é o
tratado do livro de técnica que eu escrevi lá no andar de cima e Élida aqui,
estimulando para que eu o terminasse e publicasse. Claro, levou muito
tempo.
SBPdePA – O livro está traduzido em muitos idiomas, não?
Etchegoyen – Em italiano, em inglês, em português, em espanhol. A
primeira tradução foi em português. Henrique Kiperman (ArtMed) fez a
primeira edição, em 86. Saiu primeiro a tradução em português, que foi foi
revisada por Newton Aronis e prefaciada por David E. Zimerman. Depois
saiu a edição em italiano, em inglês, da qual se fez já uma segunda edição.
E agora vai sair, com base na segunda edição inglesa, com alguns anexos,
a segunda edição em espanhol, e dom Henrique está esperando que saia a
segunda edição em espanhol e então...
SBPdePA – No trabalho (ao qual nos referimos há pouco) está dito,
por exemplo, que você considera que um núcleo da técnica psicanalítica
está nos trabalhos de Freud na segunda década. Tomemos isso como, digamos, uma âncora da Psicanálise.
Etchegoyen – Sim, sim.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 261
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
que tinha nascido meu filho Alberto, que hoje não lhes dizer que nasceu
meu neto Pedro”.
SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN
SBPdePA – E daí, estão descritos e conceitualizados, no trabalho,
transferência, associação livre, atenção flutuante...
Etchegoyen – Que são as bases que nos deixou Freud.
SBPdePA – Seguramente. Pareceu-me entender que a partir daí damos outro salto no tempo. Você se refere aqui, no trabalho, aos anos 40-50
com Heinrich Racker e Paula Heinman, com o tema da contratransferência.
Etchegoyen – Claro, eu penso que a idéia da contratransferência foi
uma idéia muito fértil e muito revolucionária da técnica, porque, realmente, incluiu como instrumento técnico aquilo que acontece com o analista,
que a contratransferência não é somente um obstáculo, senão, também,
vários instrumentos para compreender o paciente, se sabe usá-lo para se
analisar internamente, não?
SBPdePA – E agora a pergunta, temos algum outro salto depois daquele de 50 anos atrás na teoria e na técnica psicanalítica?
Etchegoyen – Desde o ponto de vista da técnica, me parece que esse
salto dos anos 50, que está em Londres e em Buenos Aires, simultaneamente, é o maior, não há outro que tenha tanta transcendência, me parece.
Porque inclui uma perspectiva que até esse momento se havia ignorado,
como a participação do analista e também uma participação na qual o analista segue desempenhando seu papel. O analista volta à transferência, mas
sem sair dali, interpreta desde ali. Me parece que, na história da técnica,
não há outro momento comparável nos últimos anos. Com a teoria é diferente, porque, claro, a teoria tem se diversificado muito, tem havido aportes
importantes na teoria. Desde Freud, os psicológicos do ego, Melanie Klein,
Fairbairn, Winnicott, Lacan, etc., todos têm sido aportes importantes para
262 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
SBPdePA – Desde o ponto de vista da técnica, depois do que passou
nos anos 40-50 com Paula Heinman e Racker, estamos esperando, ainda,
alguma coisa novamente revolucionária. Pode-se dizer assim? Parece-te
que se pode dizer algo...?
Etchegoyen – Sim, virão outros desenvolvimentos, seguramente.
Aqui, no nosso país, Liberman fez aportes importantes para a compreensão do diálogo psicanalítico, relações entre o diálogo e a interação comunicativa. Grinberg também fez aportes muito importantes. Porque, ao referirse à contratransferência, Grinberg fez mais que Racker na idéia de identificação projetiva. Racker não usou tanto como poderia ter usado. Quem mais
usou nesse sentido foi Grinberg, com o conceito de contra-identificação
projetiva. E esses são aportes importantes também, de latino-americanos.
SBPdePA – No trabalho você diz que, depois de fazer referência à
questão da contratransferência, estão presentes os desenvolvimentos mais
recentes de Berenstein e Puget...
Etchegoyen – Eu, no trabalho, tratei de incluir panoramicamente todos os fatos que marcam algum momento importante na história da técnica. Custou-me, em algum sentido, custou-me não talvez porque não conheça a bibliografia, não? Em geral a conheço, logicamente. Porém me
custou para dar harmonia... Pôr cada coisa no lugar. Isso é difícil, eu trato
de ser neste trabalho, em geral, equânime, mostrar as contribuições que se
têm feito, independentemente de predileções pessoais, não é? Os desenvolvimentos dessa teoria que se chama Vincular, de Isidoro Berenstein,
Janine Puget e também de Rodolfo Moguillansky, são aportes interessantes, não? Eu... faço alguma crítica. Pessoalmente não concordo muito com
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 263
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
a Psicanálise, mas que não têm repercutido, me parece, na técnica, tanto
quanto a compreensão da contratransferência repercutiu.
SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN
essa teoria, mas creio que tem que se dar o lugar que merece. Eu não creio
que exista algo mais que a relação de objeto; quero dizer que não é a relação de objeto aqui, o vínculo lá. Penso que as coisas que esses e outros
analistas assinalam, como o vínculo, como algo novo, mas penso que... é
uma aplicação da noção de objeto total e de angústias depressivas, quando
a gente assume a posição depressiva se dá conta de que não é o objeto e que
o objeto é autônomo, independente da gente. Não creio que exista outro
tipo de relação que não seja através de mecanismos de projeção e
introjeção, que vão se modificando ao compasso do desenvolvimento. Tratei de pôr, nesse trabalho, nessa brevidade que tem um relato de congresso,
as coisas que a mim me parecem que têm sido mais importantes no sentido
técnico.
SBPdePA – Efetivamente, pode ser traçada uma visão histórica que
marca momentos importantes.
Etchegoyen – Claro, com vistas ao futuro.
SBPdePA – Essa era a pergunta! (Risos) Queria te escutar um pouco: que idéia tens do futuro da psicanálise e dos psicanalistas?
Etchegoyen – Penso que estamos passando um momento difícil para
a Psicanálise. Sociais, econômicos, culturais. Estamos vivendo num mundo no qual o cultivo interior, o autoconhecimento, o inconsciente, não são
muito valorizados neste momento. Nesse sentido, creio que a Psicanálise
passa um momento difícil. Eu sou otimista, ou quero ser otimista no sentido de que vai haver um retorno à Psicanálise como um instrumento indispensável para o desenvolvimento humano. Não há nenhum outro método
psicoterapêutico que faça o que faz a Psicanálise. Não há tampouco drogas
que possam modificar o ser humano desde dentro como faz a Psicanálise,
me parece. Então, ao fim de alguns anos, vai voltar a se impor a necessidade da Psicanálise com seus métodos: freqüência, assimetria, neutralidade.
264 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
SBPdePA – Está muito bom. Muito linda essa idéia de futuro, como
uma saída para a crise que se está dando na Psicanálise.
Etchegoyen – Bom, estamos vivendo uma crise muito grande, não?
Mas não quer dizer que a crise vai se perpetuar ou que vai terminar numa
coisa que possa prescindir da Psicanálise, eu não creio que se possa prescindir da Psicanálise porque a psicanálise aporta elementos indispensáveis
para...
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 265
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
A Psicanálise como psicoterapia é um método que por sua neutralidade
está expressando um respeito pelo outro que os demais métodos não têm.
Eu, nesse sentido, não vou ver, mas vocês vão ver e talvez se lembrem de
mim daqui a uns anos, quando a Psicanálise volte a ser valorizada. Porque
estamos vivendo um momento de globalização, de tanta ênfase no econômico. Eu creio que vai ter que se registrar num tempo não muito longo...
Eu não creio que a ninguém convenha, ao final... Em todo o mundo, vai
mudar a visão do homem sobre si mesmo, os valores que são inerentes à
cultura e estão consubstanciados como conhecimento próprio desde
Sócrates até Freud. Mas esta conferência [Conferência Interregional da
IPA, Buenos Aires, 1 a 3 de junho de 2001] está aqui planteando problemas
certos, temos que repensar como nos adaptar a um mundo novo e também
como adaptar o mundo novo a nossos ideais. Finalmente, Freud foi revolucionário porque não se deixou levar pela pressão social, mas disse: aqui há
algo mais que inconsciente ou a sexualidade infantil. Eu creio que nós, em
algum momento, vamos poder repensar reivindicação dos humanistas que
têm na Psicanálise um instrumento poderoso, me parece. Defender os princípios básicos da ética da Psicanálise. Que no fundo esse respeito pelo
outro só pode se dar numa relação tão especial como a análise. Eu sou um
respeitoso àquilo que o paciente sente e quer, e ao que não quer e não pode,
devolvendo a sua própria identidade; me parece que isso é o típico da Psicanálise, como grande instrumento da transformação e de hominização do
homem.
SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN
SBPdePA – Chegou há muito tempo e em forma definitiva para a humanidade.
Etchegoyen – A mim me parece que sim, claro.
SBPdePA – Quer falar um pouquinho de política? Depois de ter sido
o primeiro presidente latino-americano da IPA, por enquanto o único, e já
passado algum tempo, como vê a IPA na atualidade, como vê a IPA no
futuro...
Etchegoyen – Me parece que algumas mudanças que introduziu a primeira administração latino-americana ficaram. Por exemplo, uma estrutura mais democrática, atender mais a opinião dos membros. Me parece que
também modificar o funcionamento do trust. Depois, há coisas mais contingentes. Eu tentei realizar uma presidência a mais democrática e psicanalítica possível. Nisso estava não seguir depois querendo manter uma
hegemonia, de modo que eu já cumpri com meu período e me pareceu
importante não seguir ocupando um lugar político. O que eu te dizia, a
política tem sido uma conjuntura, uma obrigação, mas não um prazer, uma
vocação para mim. Penso que a IPA vai seguir adiante. Que vai ter dificuldades que provêm, me parece, de situações profissionais com psicanalistas. Não é tão boa como foi há uns anos. Como a IPA pode modificar, isso,
sim, não é tão fácil, porque isso responde a situações mais sócioculturais,
econômicas. Estas conferências regionais às quais você assistiu são uma
tentativa desde o ponto de vista da IPA de se fazer conhecer mais a Psicanálise, não? A conferência tem tido êxito, tem ido muita gente. E isso pode
modificar algo, mas não creio que seja fácil para nós, neste momento, modificar a situação em que estamos. Se deve dar tempo ao tempo, trabalhando. Eu creio que trabalhar com honestidade e entusiasmo, desde o nosso
lugar de analistas, é importante para o futuro da Psicanálise. O futuro da
Psicanálise se joga em cada sessão, em cada associação livre do paciente e
266 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
SBPdePA – Horácio, não quero abusar de tua disponibilidade, boa
vontade e generosidade, mas quero deixar aqui um grande abraço da
SBPdePA e especialmente da revista, bem como dos valiosos colegas da
comissão editorial, que me ajudaram a pensar esta entrevista. A ti,
Horácio, sempre tão generoso, toda a nossa gratidão. Muchas gracias.
Breve apresentação do entrevistado
R. Horácio Etchegoyen, analisando de Racker e de Meltzer, colega de
Cyro Martins durante a sua formação psicanalítica na APA – Buenos Aires,
foi o primeiro presidente latino-americano da IPA.
Membro fundador da APdeBA (Asociación Psicoanalítica de Buenos
Aires), veio a ser seu primeiro presidente. Autor de numerosos trabalhos,
versando sobre diferentes temas da técnica psicanalítica, é também o autor
do já clássico livro “Fundamentos da Técnica Psicanalítica”, publicado em
vários idiomas e referência obrigatória em qualquer seminário sobre Teoria da Técnica. Profundo conhecedor da obra de Freud, Klein e pósKleinianos, estudou por muitos anos a teoria de Lacan e os desenvolvimentos da Epistemologia e suas aplicações à Psicanálise.
Etchegoyen teve uma participação transcendental na constituição da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 267
SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen
em cada interpretação do analista. Ali se está jogando o futuro da Psicanálise. Por isso também é importante que os analistas tenham uma boa formação. Ter uma boa formação para trabalhar melhor e trabalhar melhor
para ter mais evidência na vida comunitária. Creio que algo que nos prejudica muito é que muita gente não tem uma verdadeira formação, se intitula
e funciona como psicanalista, mas não pratica a Psicanálise. Deixam como
remanentes ou como seqüelas a decepção das pessoas, a desconfiança no
método, que eles não aplicam. Esse é um problema importante.
SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN
nossa Sociedade (SBPdePA), ainda que devido à sua já conhecida modéstia nunca quis tornar pública sua efetiva e afetiva colaboração (do Editor).
Entrevista
Entrevista gentilmente concedida à Psicanálise – Revista da SBPdePA
Tradução do original espanhol: Marta Minteg
Revisão da tradução: Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg
Dr. R. Horácio Etchegoyen
Posadas 1580/13º
1112 Buenos Aires – Argentina
E-mail: [email protected]
268 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE
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Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 269
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270 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001
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de dúvida, citar o nome por ex tenso.
Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras
maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação.
BOWLBY, J. (1963). Attachment and Loss, Volume 1. New York: Basic Books.
______. (1979). Psychoanalysis as art and science. Int. Rev. Psychoanal., n.
6, p. 3-14.
HOLZMAN, P. S., GARDNER, R. W. (1960). Levelling and repression. J. Abnorm.
Soc. Psychol., n. 59, p.151-155.
WALLERSTEIN, R.S. (1972). The future of psychoanaly tic education. J. Amer.
Psychoanal. Assn., n. 2, p.591-606.
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 271
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272 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001