Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
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Revista - Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre
ISSN 1518-398X PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE Filiada à International Psychoanalytical Association – IPA v. 3, n. 1, 2001 EDITOR Ana Rosa Chait Trachtenberg CONSELHO EDITORIAL Elfriede Susana Lustig de Ferrer • Leonardo Wender • Samuel Zysman • Sara Zac de Filc COMISSÃO EDITORIAL Cynara Cezar Kopittke • Denise Zimpek T. Pereira• Geraldo Rosito • Vera Dolores Mainieri Chem • Vera Maria H. Pereira de Mello BIBLIOTECÁRIA Geisa Costa Meirelles EDITORAÇÃO Luiz Cezar F. de Lima LAY-OUT Josimo Silva Lopes – Speed Press DIGITAÇÃO Nilza Cidade Cardarelli SECRETÁRIA Antonia de Castro Lima REVISÃO DE PORTUGUÊS Professora Helena Totta Silveira Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre – Filiada à International Psychoanalytical Association (IPA) Rua Quintino Bocaiúva, 1362 – 90440-050 – Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (55-51) 3330.3845 • E-mail: [email protected] (55-51) 3333.6857 [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 1 Capa: “Balsamarium 87 Etrúria, século III a.C. Bronze, alt. 9,4 cm Este recipiente para óleo perfumado, incenso ou ungüento, fundição oca em várias partes, tem a forma de duas cabeças unidas pela parte posterior. As cabeças são de um sátiro e de uma bacante, seguidores masculino e feminino de Dionísio, deus do vinho. Os sátiros são criaturas turbulentas e sensuais, parte homens, parte animais, as bacantes são sua contrapartida feminina, que simbolizam o ímpeto e o abandono. Ambas as cabeças são cuidadosamente moldadas e bem-acabadas. A bacante usa uma faixa torcida em volta da cabeça, uma tira em torno da testa e um colar em volta do pescoço. Suas feições são simples mas fortemente definidas – um nariz reto, olhos proeminentes, boca larga e queixo cheio. O rosto do sátiro é caracteristicamente feio, com sobrancelhas agudamente inclinadas, esta fortemente enrugada, orelhas grandes, nariz arrebitado e cabelos, bigode e barba encaracolados. Ele também usa uma faixa torcida em volta da cabeça, e um cacho de uvas pende no centro de sua testa. No lado em que as duas cabeças se unem há um cacho de uvas sobre uma folha de videira. Vasos de bronze como este são encontrados comum e regularmente em tumbas etruscas do século III a.C. Alguns podem ter sido usados para perfumar o ar, pois muitos deles têm correntes ou, como na peça de Freud, furos para fixação de correntes, pelas quais devem ter sido suspensos. Outros podem ter simplesmente guardado cosméticos. Alguns dos vasos são moldados na forma de uma única cabeça, em geral feminina, mas muito freqüentemente apresentam este arranjo com duas cabeças, e a combinação mais popular era a de cabeças de sátiro e bacante. A atração desta combinação está, talvez, na justaposição de opostos – belo e feio, feminino e masculino. Freud, o profundo dualista, tinha várias figuras de duas faces. Já em 1899 ele possuía uma cabeça de Jano em pedra, e em seus últimos anos mantinha este balsamarium de duas cabeças sobre sua escrivaninha. O dualismo permeia todo o pensamento de Freud, aparecendo em dicotomias fundamentais, como o princípio do prazer versus o princípio da realidade, Eros versus Tanatos, libido versus agressão, assim como na noção do mecanismo de transposição próprio dos sonhos – a representação de uma idéia pelo seu oposto. Do mesmo modo, o ponto central deste objeto é a noção da bissexualidade básica de todos os seres humanos, que Freud discutiu em sua obra fundamental, Three Essays on the Theory of Sexuality, de 1905 (SE, 7, pp.135-243)” Esta peça pertence ao Freud Museum de Londres e fez par te das exposições da coleção de Antiguidades de Freud, realizadas no Rio de Janeiro e em São Paulo em 1994; está retratada no livrocatálogo da exposição “Sigmund Freud e Arqueologia – sua Coleção de Antiguidades”. Rio de Janeiro, 1994, Salamandra Consultoria Editorial S.A. Direitos autorais pagos ao Freud Museum – The Bridgeman Art Library – Londres, sob a forma da lei. P975 Psicanálise – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre/ Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. v. 3, n. 1, 2001. Porto Alegre: SBPdePA, 2001. 1. Psicanálise-Periódicos I. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. ISSN 1518-398X CDU: 616.891.7 Bibliotecária Responsável: Geisa Costa Meirelles 2 CRB 10/1110 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE (Provisória) Filiada à International Psychoanalytical Association – IPA DIRETORIA Presidente Dr. Gley Pacheco Costa Tesoureiro Dr. Luiz Gonzaga Brancher Secretário Dr. Leonardo A. Francischelli Secretário Científico Dr. New ton M. Aronis Vogais Dra. Ana Rosa C. Trachtenberg Dr. Marco Aurélio Rosa INSTITUTO DE PSICANÁLISE Diretor Dr. Gildo Katz Coordenador de Formação Dr. Antônio Mostardeiro Secretário Dr. Lores Pedro Meller Coordenador de Seminários Dr. José Facundo Oliveira BIBLIOTECA e PSICANÁLISE – Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Diretora – Editora Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 3 MEMBROS FUNDADORES Alberto Abuchaim Ana Rosa Chait Trachtenberg Antonio Luiz Bento Mostardeiro David Zimmermann Gildo Katz Gley Silva de Pacheco Costa Izolina Fanzeres José Facundo Passos de Oliveira José Luiz Freda Petrucci Júlio Roesch de Campos Leonardo Adalberto Francischelli Lores Pedro Meller Luiz Gonzaga Brancher Marco Aurélio Rosa New ton Maltchik Aronis Renato Trachtenberg Sérgio Dornelles Messias MEMBRO HONORÁRIO Dr. David Zimmermann (Falecido) LIAISON COMMITTEE Dra. Elfriede Susana Lustig de Ferrer (Chair) Dr. Samuel Zysman 4 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 SUMÁRIO SAUDAÇÕES Palavras do Presidente Gley P. Costa • 9 EDITORIAL Palavras do Editor • 13 Ana Rosa Chait Trachtenberg ARTIGOS/ENSAIOS/REFLEXÕES O Papel do Antepassado Alberto Eiguer • 17 A Posição Fóbica Central André Green • 35 Winnicott e Neurociência Cognitiva: Atual e Transicional Carlos Doin • 71 A Importância da Observação de Bebês para a Formação de Psicanalistas Claudia Lucía Borensztejn Encaminhando o Encaminhamento • 101 Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg Compartilhanho a Experiência Clínica • 111 Maria Regina Junqueira e Nilde J. Parada Franch Sobre as Primeiras Inscrições Myrta Casas de Pereda • 129 Por trás do Véu (sobre uma viagem ao Irã) Nelson Asnis • 145 Análise Terminável e Interminável: Algumas Reflexões New ton Aronis • 153 O Sonhar e o Brincar, Simbolismo do Mundo Interno da Criança Olga Santa María de Gómez-Roch Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 5 • 163 • 89 Algumas Reflexões sobre a História da Técnica Psicanalítica R. Horácio Etchegoyen • 175 Psique e Cultura • 199 Samuel Arbiser CONFERÊNCIA na SBPdePA “Psicanálise e Ciência: Parentes, Amigas ou Estranhas? Bases Científicas da Psicanálise” • 213 Paulo Cesar Sandler ENTREVISTA da SBPdePA SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen 6 • 257 Psicanálise v. 1, n. 1, 1999 Saudações Fluctuat nec mergitur Gley P. Costa Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Em 1914, Freud realizou um extenso relato do desenvolvimento da Psicanálise desde os seus primórdios, procurando definir os princípios essenciais com simplicidade e precisão. Para epigrafar o artigo, intitulado “A história do movimento psicanalítico”, Freud escolheu a frase do emblema da cidade de Paris, que representa uma embarcação: Fluctuat nec mergitur, ou seja, “as ondas a abalam, mas não a afundam”. Uma alusão ao impacto das teorias de Adler e Jung, que ele considerava totalmente incompatíveis com os postulados fundamentais da Psicanálise. Passados quase 90 anos, acompanhando o desenvolvimento e a difusão da ciência Psicanalítica, encontramo-nos diante de um número que cresce sem parar de práti9 Gley P. Costa Palavras do Presidente PALAVRAS DO PRESIDENTE cas que também reivindicam o reconhecimento de psicanalíticas, em que pese fraudarem os alicerces da teoria e da técnica freudiana. Esta situação nos convoca a refletir sobre o nosso destino, na expectativa de que a frase, tomada por empréstimo do brasão parisiense, possa ser mantida ainda por muito tempo. Sem dúvida, o crescimento interno da Psicanálise, mediante o aprofundamento da teoria, a preservação de sua especificidade técnica e o empenho em manter uma formação direcionada a criar condições favoráveis ao desenvolvimento de uma verdadeira identidade analítica, constitui o pilar que poderá sustentar nossa tarefa, nos próximos anos. Sendo assim, as revistas, por representarem importante meio de transmissão do conhecimento proporcionado pela prática analítica, conferindo à Psicanálise indispensável reconhecimento científico, encontram-se na linha de frente do trabalho que teremos que desenvolver com dedicação, e de forma continuada. Provavelmente, esse foi o pensamento de Freud, em 1918, ao destinar o dinheiro recebido de um fundo para finalidades culturais à fundação de uma editora psicanalítica internacional, a Verlag, e à concessão de prêmios a trabalhos que se destacassem nos campos da Psicanálise clínica e aplicada. Gley P. Costa Porto Alegre, junho 2001 10 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Editorial Ana Rosa Chait Trachtenberg Ao pensar no lançamento do volume 3 de Psicanálise – Revista da SBPdePA avaliei o quanto o número 3, em si mesmo, é caro para a Psicanálise. Todos sabemos, naturalmente, o porquê desta afirmação. Curiosamente, para o mundo editorial, em suas mais variadas apresentações, também. Traz consigo ares de prosperidade e mostra-se como um indício de progresso e continuidade. Freud, grande colecionador, a quem homenageamos mais uma vez estampando uma de suas antigüidades na capa desta revista, possuía aproximadamente três mil peças em 1939, ano de sua morte. Começou a adquirir objetos artísticos imediatamente após a morte de seu pai, em 1896. Teria sido uma resposta a tão dolorosa perda, pois Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 13 Ana Rosa Chait Trachtenberg Palavras do Editor PALAVRAS DO EDITOR ele encontrou nesses objetos uma fonte de excepcional alívio e consolo. Simultaneamente, o luto impulsionou, sobremaneira, a sua auto-análise, culminando no majestoso livro “A interpretação dos sonhos”. Assim, Arqueologia e Psicanálise se entrecruzam; em “A etiologia da histeria” (1896), Freud afirmava que as pedras falam aos arqueólogos, assim como as recordações esquecidas, enterradas, falam ao psicanalista. Freud, arqueólogo da mente, estudioso de “pré-histórias”, dizia que o procedimento de extrair camada por camada do material psíquico patogênico pode ser comparado à técnica de fazer escavações numa cidade enterrada. Em 1938, quando foi obrigado a abandonar Viena e transferir-se para Londres, temia especialmente pelo destino de sua coleção de antigüidades. Após a chegada a Londres, escreveu para sua amiga Jeanne Lampl de Groot: “Todas as peças egípcias, chinesas e gregas chegaram bem, suportaram a viagem com poucos danos (...). Há, somente, um detalhe: uma coleção na qual não se fazem novos acréscimos está realmente morta”. Sigmund Freud foi, também, um expert como colecionador científico, e se contam especialmente quatro dessas coleções: casos, textos de sonhos, histórias judias e lapsus em geral. Psicanálise – Revista da SBPdePA, que neste volume 3 – 2001 traz consigo a novidade de editar dois números (junho e dezembro), pode já pretender e postular a sua inscrição no mundo das coleções, das coleções vivas, que ultrapassa a fronteira da dualidade e ruma, fortalecida, à caminho da triangulação. Assim, bem-vindos leitores e colaboradores nesta viagem. Assim, muito obrigada aos que partilharam dessa, por vezes acidentada, jornada, até aqui. A todos, boas e vivas leituras. Ana Rosa Chait Trachtenberg Porto Alegre, junho 2001 Informações colhidas em: S. Freud – Partes de Guerra John Forrester Gedisa editorial, Barcelona, 2001 14 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Artigos/Ensai0s/Reflexões Alberto Eiguer Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Paris Inicialmente, gostaria de ressaltar alguns pontos referentes ao conceito de identificação: 1. Geralmente, a identificação utiliza pouca energia. 2. Ela se manifesta depois da tempestade conflituosa, no momento em que ela tende a se acalmar. 3. Toda a identificação implica um processo em duas direções: do interior (do sujeito) para o exterior e do exterior para o interior. Assim, na identificação introjetiva, o primeiro movimento se dirige para o exterior, investindo o objeto; em seguida, o segundo movimento se dirige para o interior. Na identificação projetiva, o primeiro movimento vai do exterior para o interior: o indivíduo capta as fragilidades narcísicas do outro, em seguida, o Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 17 Alberto Eiguer O Papel do Antepassado O PAPEL DO ANTEPASSADO segundo movimento se dirige para o exterior, expulsando os conteúdos desagradáveis. 4. O investimento precede as identificações secundárias, enquanto que ele vem depois das identificações primárias.1 5. Reproduzindo o modelo do investimento materno, todo o investimento supõe, além do investimento do outro, o de seus objetos internos (a esse outro) e o de sua interação; o de sua capacidade de pensar e de fantasiar; o de sua linhagem. Procede daí o interesse de nos debruçar sobre o antepassado. No Âmago dos Antepassados Um objeto transgeracional2 é um ancestral, um avô (antepassado) ou um outro parente direto ou colateral de gerações anteriores que suscita fantasias e provoca identificações em um ou vários membros da família. Aparece no discurso dos pacientes como uma revelação muitas vezes inesperada, ou nas associações e recordações a propósito de sonhos que abrem, por assim dizer, a via real para setores sepultados do aparelho psíquico e mantidos à margem por uma clivagem severa. Muitos desses objetos são a conseqüência de uma política de segredo, de uma grande fidelidade a um dos pais que desejou, muitas vezes por vergonha, colocar a(as) criança(as) à parte de toda a referência a esse objeto. O objeto transgeracional está inscrito no aparelho psíquico através de representações de palavra e de coisa, referentes a traumatismos dolorosos e/ou moralmente reprováveis. 1. FREUD, S., Psychologie collective et analyse du moi (1921), tradução francesa em Essais de psychanalyse, Payot, Paris, 1951, pp.80-175. Nova tradução, Psychologie des foules et analyse du moi, 1981; FREUD, S., “Le moi et le ça” (1923). Tradução francesa em Essais de psychanalyse, Payot, Paris P.B., 1975, pp.177-234; FREUD, S., Malaise dans la civilisation (1929), tradução francesa, PUF, Paris, 1971; FREUD, S., L´ avenir d´ une illusion (1927), tradução francesa, PUF, Paris, 1971; FREUD, S., Nouvelles conférences sur la psychanalyse (1932), tradução francesa, Gallimard, Paris, 1936; FREUD, S., Moïse et le monothéisme (1938), tradução francesa, Gallimard, Paris, 1948; FREUD S., Totem et tabou, 1912, tradução francesa, Payot, Paris, 1977. 2. EIGUER, A., La parenté fantasmatique. Transfert et contre-transfert en thérapie familiale psychanalytique. Dunod, Paris, 1987. 18 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 3. EIGUER, A., “Les représentations transgénérationnelles et leurs effets sur le transfert dans la thérapie familiale”, Gruppo, 1986, 2, pp.55-72. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 19 Alberto Eiguer Às vezes, seu estatuto é o de um vazio de representação ou de uma protorepresentação de coisa incapaz de aceder ao estatuto de palavra e de pensamento. Essas representações se ligam a um só objeto, mas, às vezes, a dois ou mais: cenas violentas, eróticas ou equivalentes(um o carrasco e o outro vítima, por exemplo). Em suma, elas se acompanham de um ambiente ideológico, isto é, de lendas mitificadas de caráter alegórico que envolvem e dão uma certa coerência à lembrança. No momento do encontro amoroso, essas representações transgeracionais organizam a escolha sexual dos pais. É freqüente que cada um dos parceiros encontre no outro um objeto transgeracional semelhante ao seu (ou complementar); citemos o caso dos antepassados desonestos ou que morreram jovens, nascimentos ilegítimos ou avós onipresentes, e mesmo dominantes.3 Também pode-se observar situações ou experiências traumáticas semelhantes nos dois parceiros, tais como os casamentos de conveniência na linhagem de cada um, pais que abandonaram o lar, etc. Essas representações são projetadas no contexto dos elos inconscientes, cada membro da família se dirigindo ao outro, de acordo com o modelo objetal e relacional das representações em questão. Cada família tem uma imagem mítica de uma família ideal, a que ela liga a um ou outro ramo da árvore genealógica, e mesmo àquela “que inaugurou a genealogia”. Mas a família disfuncional quer, em numerosos casos, “romper” com suas origens, privando-se, então, de suas próprias raízes e, através disso mesmo, do que ela possui de mais rico. Às vezes, a referência às linhagens de cada genitor criará conflitos de pertinência entre eles, cada um se preocupando em conservar-se leal a sua própria família. O Édipo desempenha um certo papel, mas não exclusivo. Em outros casos, a referência às linhagens será vivida como um fardo pesado para carregar. A interfantasmatização está dominada, nestes exemplos, pela fantasia do auto-engendramento. Ouve-se dizer: “Eu não devo nada a ninguém. Eu me fiz sozinho.” É o caso extremo: onipotência, recusa de existência que anula O PAPEL DO ANTEPASSADO a força do superego, frequentemente florescente. No caso funcional “normal”, a linhagem propõe o núcleo da pertinência, uma filiação, um sobrenome comum, uma religião comum, uma série de tradições, opções profissionais, às vezes uma linguagem ou um jargão típicos e um conjunto de mitos alegóricos que têm força de coesão. A recusa da filiação ocasiona, como se compreenderá facilmente, uma vivência potencialmente psicótica. Nesse estágio de nossa reflexão nos colocaremos as seguintes questões: – Quais são as relações entre a representação do genitor e a representação do antepassado? – Elas são superponíveis, consoantes, conflituosas ou totalmente independentes? – A representação ancestral é exclusivamente patológica ou universal e eventualmente patológica? – A qual economia ela corresponde? Ou, mais precisamente, a identificação do sujeito ao antepassado que ele jamais encontrara, ou mesmo, do qual jamais ouvira falar é de natureza semelhante ou não às identificações habitualmente listadas (primária, narcísica, histérica ou pós-edípica)? Os Objetos Transgeracionais Podemos agrupar os objetos transgeracionais em três conjuntos. Primeiro conjunto. As representações de objetos benevolentes se atribuem à fidelidade edípica e são características dessas pessoas cuja libido está fixada no estágio fálico. O objeto interno do genitor do sexo oposto desempenhou um papel durante a evolução da fase edípica: o pai ou a mãe do sujeito formatou ou facilitou as identificações do sujeito “para encontrar” seus amores edípicos4. Embora o sujeito conheça a ligação de seu genitor(a) com seu avô(avó), o trabalho da repressão e do contra-investimento pede, necessariamente, uma elaboração analítica conseqüente. Segundo conjunto. As representações de objetos transgeracionais 4. JONES, E., Théorie et pratique de la psychanalyse, tradução francesa, Payot Paris, 1969. 20 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 21 Alberto Eiguer idealizados, maciços, dominantes, glorificados exigem compensações e criam sentimentos de dívida. O sujeito se sente parasitado e paralisado pelo antepassado: os sentimentos de identidade individual e familiar são abalados. Essas representações remetem à perda desse parente relativamente idealizado e a propósito do qual um trabalho de luto se prolonga desde muito tempo (luto depressivo ou melancólico). Essa perda é vivida tanto mais penosamente quanto ela tenha sido seguida por uma eventual tentativa inábil de recusa do luto: por exemplo, o casamento ou a concepção de um filho. Também é freqüente que seja um dos cônjuges quem vive interminavelmente esse luto, relativamente a um antepassado que não faz parte de sua linhagem, enquanto que aquele que dela faz parte manifesta uma atitude de recusa total do luto. Nesses casos, não se trata, geralmente, de segredo, mas de desinvestimento e de deslocamento da idealização para outros objetos. O sentimento de culpa, a ambivalência relativamente ao objeto, a impressão de dívida, a identificação narcísica ao objeto são, aqui, a regra. Essas representações remetem, às vezes, à erotização de um destino familiar de fracasso ou do doentio como uma tara hereditária inevitável: um desejo marcado pela procura de experiências previamente fadadas ao fracasso. A complacência com a própria infelicidade é uma conseqüência disso. Do ponto de vista patológico, citemos os distúrbios depressivos e psicossomáticos, as adições tradicionais às anfetaminas, aos tranqüilizantes, ao álcool, no enlutado ou em um outro membro da família. Terceiro conjunto. As representações de objetos fantasmas criam lacunas que se traduzem por sentimentos de vazio irrepresentável. Trata-se de um parente próximo, de uma outra geração, que cometeu um ato repreensível que, por vergonha, foi mantido em segredo por um dos membros da família. Os atos podem ser violentos, suicidas, incestuosos, anti-sociais (crime, deserção, difamação, delação, fraude). A presença na genealogia de um filho ilegítimo ou produto de um incesto ou nascido com malformação, implica, também, uma situação de segredo. Trata-se de um corpo estranho, um morto que vagueia como um fantasma, uma alma pe- O PAPEL DO ANTEPASSADO nada que não alcançou o último repouso. N. Abraham5 emprega a metáfora de uma alma que não tem energia própria, mas que persegue, em silêncio, a obra de desligamento. A circulação da figura do fantasma permanece uma questão difícil de elucidar: esses segredos se impõem de uma tal forma à mente que eles desenvolvem curiosidade, perplexidade, assim como grande interesse no que se refere ao personagem fantasma. Os que deveriam ficar afastados do segredo são atingidos pela paixão que os guardiões desse segredo utilizam para escondê-lo. E eles se culpam por sua curiosidade; em seguida, eles a reprimem ou a inibem... A revelação do segredo faz temer a reprodução do ato traumático, a decadência, ou o surgimento de uma outra desgraça. A capacidade de investigação corre o risco de estagnar com conseqüências sobre a evolução das capacidades cognitivas naquele que deve estar afastado do segredo ou naquele que carrega o fantasma. Como no caso dos filhos adotivos, o sentido do oculto e o desejo da revelação dos mistérios ocasionam, eventualmente, um desenvolvimento suplementar. É o caso dos sujeitos que se dedicam a profissões na área da pesquisa como a investigação científica ou policial, em detrimento, muitas vezes, de sua vida sentimental. Certamente, não é suficiente que uma mãe seja portadora de um fantasma. É necessário que o pai também seja o portador de um outro fantasma, ou que ele esteja ligado a sua esposa por um vínculo simbiótico. A recusa da identidade ou de sua origem, um desapego de si criam as condições para um impensável: um vazio se enxerta em outro vazio. Esses impensáveis não implicam, necessariamente, sempre, um segredo: seja porque o segredo tenha perdido seu estatuto consciente e seja incorporado, depois clivado no ego de um membro da família; seja porque se trate de um não dito a propósito de um fato não forçosamente condenável, mas desinvestido; seja porque se trate de um não dito que faça parte de um estratagema perverso; seja porque se trate de um objeto que suscite um luto penoso, mais ou menos vergonhoso (imagem desvalorizada, miserável). 5. ABRAHAM, N., TOROK, M., L´ écorce et le noyau, Aubier-Flammarion, Paris, 1978. 22 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 O País dos Antepassados Trata-se da análise de um paciente obsessivo que se perguntava por que a mulher lhe era tão enigmática: a mãe, de origem alemã, silenciosa, distante, fazia-se ignorar por todos. Ele mesmo não tinha lembrança de um contato terno com ela. O pai, nascido na França, de pais italianos, encontrou sua mãe na Alemanha, durante a ocupação das tropas francesas. Esta 6. AULAGNIER, P., La violence de l´ interprétation, PUF, Paris, 1975. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 23 Alberto Eiguer Mas, do nosso ponto de vista, todas essas situações têm em comum uma mesma dificuldade de fazer circular as representações através da palavra e despertam, como pelo fantasma, um afeto negativo e imobilizador. Do ponto de vista psicopatológico, as figuras são múltiplas: citemos a síndrome de influência com idéia megalomaníaca de adivinhação do pensamento, em ressonância, precisamente, com a política familiar do segredo6; o delírio de identidade em que o sujeito se toma por um outro que se assemelha, curiosamente, ao antepassado vilipendiado; o delírio de filiação com recusa da paternidade e da maternidade dos pais; os comportamentos de fuga ou transgressores no adolescente ou no adulto; os sentimentos imprecisos de erro; e, em geral, patologia toxicômana, delituosa, perversa. No caso do fantasma, a imagem é a seguinte: toda energia disponível é utilizada para contra-investir o que deve ficar clivado ou forcluído. Desde muito tempo, uma representação nidou, sucessivamente, em uma série de psiquismos (os portadores), que constituíram uma cadeia transgeracional, cada sujeito tendo se identificado com um de seus genitores, ou, mais precisamente, com aquele cujo objeto está sepultado em seu ego clivado. Tratou-se, primeiramente, de investimento do investimento do outro, seguido de identificação. Mas, na verdade, trata-se de identificação narcísica: primeiro, investe-se o amor louco e enigmático do outro por seu objeto interno, admira-se sua auto-complacência no mistério e no seu desligamento do mundo, em seguida, identifica-se com esse narcisismo letal, incluindo em si o portador do fantasma e o fantasma, tudo isso sem reconhecer os contornos do outro ... O PAPEL DO ANTEPASSADO ficou mais ou menos ligada a seu primeiro noivo alemão, um jovem oficial da aeronáutica, morto em missão no fronte russo ... Gregório tem um irmão mais velho, Francisco, e uma irmã mais jovem. As sessões que vou sintetizar a seguir trazem elementos que permitem esclarecer esses pontos obscuros. Elas se realizaram três anos e meio depois do começo do tratamento. Sonho. “É a despedida da visita à Siena.” Ele embarca em um carro que parte e, saindo da cidade, sobe uma montanha rochosa. Chega em um bairro da periferia onde se encontra a estação de depuração de esgotos. Ele constata que o carro voltou, em lugar de se afastar. Mas, a parte baixa da cidade assemelha-se à Florença. Ao longe, ele percebe companheiros com suas famílias. Associações. Por ocasião de sua visita à Florença, ele pegou com amigos um carro que viajava de pico em pico pelas montanhas. Recorda-se de uma bela vista sobre um porto, de barcos [...] Interpretação. Essa cidade que ele deixa e depois reencontra remete à idéia de partir e voltar. Eu lhe comuniquei minha impressão de que esse sonho fala “de volta às origens”. Por ocasião de uma outra sessão, dentre suas associações, ele disse que seu pai e o aviador (o primeiro noivo) seriam, para a mãe, o mesmo personagem, intercambiáveis. “Eu acabo de perceber que seu sobrenome, Eiguer, é um sobrenome alemão!” Durante a sessão seguinte, ele evoca um sonho: Alguém que viajou “por toda parte”, mais do que ele ... fala-lhe do Marrocos, aconselhando-o, vivamente, a visitar “a nação berbere”. Eu reconstituo algumas das associações. O que é dito, aqui, prenuncia as revelações da próxima sessão: – o paciente pensa que, para ele, o desenho torna-se uma atividade essencial que lhe dá pontos de referência (repères); – A. Eiguer: “Repères (pontos de referência) ... assemelha-se a berbère (berbere), père-père (pai-pai). Duas vezes o pai ... ou o pai do pai.” A partir desse instante, ele fala de religião, de sua própria decisão de 24 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 25 Alberto Eiguer tornar-se ateu, o que exasperou seu pai, do ecumenismo deste último ao escolher uma mulher protestante, referindo-se, muitas vezes, à confissão como um exame de consciência, preferindo as Epístolas de São Paulo, enquanto que sua mãe relê O Apocalipse, etc. Mais para o final, o paciente faz um jogo de palavras com Berlinguer e Eiguer (guer-guerre) e Berlin-Strasse, uma das ruas da aldeia de sua mãe, e Berlin-Strafe: a punição. Na sessão seguinte, ele fala de um sonho. “Eu venho falar aqui de Rudy Dutschke. Você (A. Eiguer) me toma pelo braço e me diz: você tem uma nostalgia, remorsos”. No prédio, há ruídos como de uma britadeira”. Ele olha pela janela e nota galerias comerciais, terraços, escadas que os ligam entre si. Associações. Rudy “le Rouge” (o Vermelho) o faz pensar em sua mãe que tem um chapéu vermelho. Britadeira: a guerra, as trincheiras (interrupção). “Eu nunca lhe disse que o avô – paterno – foi intoxicado por gás de combate, durante a primeira guerra? (com emoção). Foi do lado das trincheiras francesas. Enquanto que meu outro avô se encontrava do outro lado das trincheiras. Ele também recebeu gás de mostarda mas pôde voltar para casa. Mais tarde, ele concebeu minha mãe e morreu jovem, devido, conforme dizem, às conseqüências do gás de mostarda.” Os dois avós tiveram esse destino em comum de sofrer os efeitos do gás. Esta evocação muito significativa é seguida de outras lembranças, no período que se segue a essa sessão. – Na Alemanha de antes da guerra, a avó materna foi considerada louca porque fez compras em lojas de judeus. Podia-se fazer isto durante o nazismo, somente se se fosse louco. – Sua mãe vive intensamente sua adolescência, torna-se “campeã” de natação, adere à Juventude Nacional-Socialista e escapa, por pouco, no fim da guerra, do bombardeio da estação de Ulm pelos aviões americanos. – Outros membros desse ramo familiar sofreram bombardeios pelo gás sulfuroso e só puderam salvar-se lançando-se no rio: se seus corpos ficassem em contato com o ar, eles prenderiam fogo. O PAPEL DO ANTEPASSADO Outras associações (sessão seguinte): – Ele fala muito do encontro dos pais pós-guerra, nesse clima tão bem descrito por Malaparte. – Recordação da adolescência: Numa noite, o pai, desatinado, desceu subitamente ao porão, acreditando, de forma delirante, tratar-se de um bombardeio. Ele havia escutado a sirene dos bombeiros. – Em uma de minhas intervenções, eu lhe assinalo que ele me pede (ao Eiguer) para evitar-lhe a guerra, protegê-lo de situações extremas, da loucura...o que sofreram os membros da família – as guerras. Comentários. Eu estou associado a Berlin-guer (um dirigente); ocorre um deslocamento sobre a palavra Strafe (punição). Foi na noite seguinte a essa sessão que ele sonhou comigo, acompanhando-o, pegando-o pelo braço. Eu lhe interpreto: “Você tem nostalgia, remorsos”, o que o conduz à inexorável revelação dos dramas secretos que perturbaram sua mãe e seu pai. Compreende-se à posteriori o sentido dos sonhos “retorno às origens” e “ele me aconselha a visitar a nação berbere” (le père du père – o pai do pai). O significante “britadeira” mergulha-o, novamente, no ambiente histórico destas recordações: as guerras, as trincheiras, o gás. Emerge, então, o paradoxo que une suas duas linhagens. Estranhos um ao outro, pertencendo a nações inimigas, os dois avós sofrem o efeito do “gás de mostarda”. Assim, diante da paranóia coletiva que é a guerra, o único refúgio é a loucura, a da avó materna. Os atos sensatos, tolerantes, humanos são considerados loucos. O paciente fala da loucura, da destrutividade e do desinvestimento na história de sua mãe, que viveu lutos, provavelmente longos e vergonhosos, explicando-nos melhor esse algo inatingível da representação da mãe, e seu desligamento. Certas confidências testemunharão, no ano que se seguirá a esta sessão, a dificuldade materna de viver esse lutos: por exemplo, o bombardeio da estação de Ulm. Numa primeira versão, a mãe afirma que ela partiu logo antes da chegada dos aviões. Em seguida, ela lhe confessou que se encontrava lá, no momento do 26 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 7. BERGERET, J., La violence fondamentale, Dunod, Paris, 1982. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 27 Alberto Eiguer bombardeio; viu feridos, agonizantes, cenas de horror. Uma outra versão, dois anos mais tarde, revelará uma imagem dela totalmente diferente. Quando o paciente questionou: como ela pôde se salvar? a mãe dirá, aos prantos, ter sido obrigada a fazer coisas horríveis, caminhar sobre corpos dilacerados, atacar feridos, empurrar ventres enfraquecidos, afastar outros dali que, como ela, queriam sair do inferno ... Ela justifica penosamente seu gesto, essa violência fundamental inspirada pelo seu desejo de sobreviver7. O desejo de sobreviver planava igualmente sobre o encontro com o pai. Se Gregório vive, com uma tal intensidade, o sórdido universo anal, é porque ele está sobredeterminado pela insuficiência da ancoragem oral ao seio de uma mãe enlutada ainda pelos seus próprios dramas pessoais. Não permaneceu ela como filha única após a morte prematura de seu pai? Eu posso propor a construção de que a mãe investiu seu filho mais velho de maneira diferente em relação ao segundo. O pai também ficou filho único. Suas mães tiveram um filho, depois um marido morto... Para os pais de Gregório então, o primeiro filho foi como um duplo, enquanto que o segundo concentrou nele a representação dos dois pais mortos: Gregório não foi o filho da alegria. Depois, ele experimentou o seio materno como carente de tônus, o mamilo côncavo, o olhar da mãe desviado, seus braços frágeis, suas carícias mornas. Apoiado sobre o ramo da analidade, ele direciona, à posteriori, seu olhar distante para a floresta da oralidade. Uma oralidade da qual ele procura, desesperadamente, os sinais do afeto. A flacidez do seio foi contrainvestida pela hipertensão do músculo anal. Gregório, interessado, até mesmo excitado, vai investir maciçamente na história da mãe (“a descida ao porão”), estudá-la minuciosamente, olhála de todos os ângulos. Ele quer preencher, completar esse vazio com o saber: encontrar o desejo de sua mãe. Uma das primeiras descobertas da análise foi que esse desejo estava O PAPEL DO ANTEPASSADO em outro lugar, o noivo aviador; o novo esclarecimento mostra em sua mãe a busca do amor como evasão e como sobrevida face ao horror, horror esse que emergiu em seu nascimento. Durante o sexto ano de análise, a busca de Gregório, que não se deteve depois dessas sessões, leva-o a se interrogar sobre as condições de vida durante o pós-guerra. Ele compreende seu febril interesse pela obra de Curzio Malaparte, narrador cáustico de um mundo macabro e impiedoso. Do bombardeio da estação de Ulm, passou-se ao período das privações alimentares. Oferecer seu corpo, oferecer-se parece lógico, a moral faz vistas grossas diante da fome. Quando o filme A pele surgiu nas telas parisienses, o paciente ficou fascinado. A confrontação dos americanos com a miséria napolitana (em l944), excita-o; ele acredita ver seu pai no soldado americano que se apaixona pela “prostituta”, ele se vê em Malaparte pelo lado cáustico. Por que e como esses seres, de origem tão diferente, se encontram um diante do outro e se amam? (Notemos a inversão: C. Malaparte é o pai-criador dos personagens em questão). Uma associação vem confortá-lo em seu prazer de reunir os pais: seu pai teve de fazer como seu avô italiano (paterno) que voltou ao país (ele era trabalhador imigrante em Paris), à Itália, para procurar uma mulher . O pai também foi procurar uma mulher em outro lugar... Uma outra interpretação, mais no sentido da escolha de objeto homossexual, veria o pai ir procurar uma mulher na Alemanha, do lado da fronteira onde morreu seu pai. (Na obra de Malaparte, o pai da “prostituta” virgem exige pagamento para mostrar o hímen de sua filha: alegoria cínica da Virgem Maria.) O nome de Curzio Malaparte lhe sugere jogos de palavras: Malaparte com Bonaparte (a escolha desse pseudônimo foi deliberada pelo escritor), a parte má, o lado tenebroso do próprio Gregório. Curzio evoca Kurtz, Court, Corto, depois o personagem de Corto Maltese inventado pelo desenhista de histórias em quadrinhos ítalo-argentino Hugo Pratt. O herói nasce de pais de origem heterogênea, realiza feitos remarcáveis entre as duas guerras, onde se misturam o sonho, o fantás28 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Identificação Narcísica e Identificação Primária Proponho-me a organizar meus comentários teóricos em seis pontos: l – O antepassado é, muitas vezes, um filho morto que pode substituir um outro morto. No caso do meu paciente, Gregório seria como o filho identificado com os dois avós mortos. 2 – O antepassado é o objeto de identificação de um outro. Isto perturba a idéia de identificação. Até aqui, admitia-se que a identificação seguia o investimento; hoje, é preciso admitir que ela pode ser feita sobre a cópia do investimento ou da identificação de um outro, em relação a um terceiro desconhecido para o sujeito, neste caso, o antepassado. 3 – No caso do desinvestimento, o antepassado tira uma parte da libido destinada ao sujeito (cf. a mãe de Gregório). Sob o peso de um luto rodeado de mistério, esse desinvestimento suscita desinvestimento no sujeito, depois, um vazio. Ao redor do antepassado, um círculo de nada, absorvente e impensável. 4 – A rememoração não seria, então, a conseqüência de um retorno do reprimido, mas a abertura de uma brecha, a quebra de uma clivagem rígida. Quando um paciente associa o objeto antepassado a outras representações, a estrutura narcísica é profundamente abalada. O sujeito sente-se perplexo, não pode admitir o vínculo de uma parte de sua identidade com Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 29 Alberto Eiguer tico e a ação violenta. Ele se identifica com o detetive-herói que descobre os antepassados e os faz reviver. A frase “Meu avô italiano foi morto pelo gás, na guerra de l4” contém condensadas quase todas as representações que se distinguirão depois: a incitação à procura, do lado dos avós, para explicar as primeiras relações com sua mãe; a tristeza desta última, o medo do leite tóxico, asfixiante e corrosivo (gás de mostarda), bem como o desejo de intoxicá-la, por sua vez, pelo gás anal. O representante gás de mostarda encerra as duas falhas: o orifício anal e o orifício inerte em lugar do mamilo, e seus dois produtos: o gás anal fétido e o leite amargo. O bastão fecal é encontrado no cadáver desse mesmo avô enterrado na trincheira (reto). O PAPEL DO ANTEPASSADO esse personagem, por outro lado, repelido. Abatido pela estranheza, ele toca, de perto, seu núcleo psicótico. Temos as angústias de aniquilamento e de queda sem fim. Em um segundo momento, o narcisismo, assim abalado, tende a fabricar um duplo: um gêmeo imaginário (cf. para Gregório, C. Malaparte ou C. Maltese), ou à reprodução frenética de encontros sexuais... 5 – O impensável irrompe na sessão através de um acting ou através de um sintoma físico, repetindo-se, durante muito tempo, antes de tomar forma, através da palavra. O impensável absorve a substância narcísica do sujeito. 6 – Assinalemos, agora, o aspecto estruturante da mensagem transgeracional das origens, ativador da fantasia e primeiro modelo da identificação com o pai. Estamos em condição de articular esses dados com as representações de objeto de característica patológica. Falaremos, naturalmente, de uma oposição entre a mensagem estruturante das origens arcaicas da espécie e os mandatos abusivos transmitidos há gerações, ou as criptas fantasmáticas dos lutos secretos fracassados e sepultados. Habitualmente, o outro do objeto que é o antepassado, o ideal do ego dos pais herdeiros dos nobres propósitos das linhagens e desempenhando o papel que se sabe na integração do ideal do filho, o superego dos pais oferecendo seu modelo à edificação do superego do filho, todos seriam os diplomatas prudentes do pacto totêmico proibidor e apaziguador entre os irmãos. Esse pacto pôs fim à arbitrariedade do pai tirânico, para erigir, em seu lugar, a representação do pai justo8. É como se a violência subterrânea que exerce o antepassado carregado com vergonha, viesse desmanchar o esforço arcaico para sobrepujar a culpabilidade pelo assassinato do pai: (re)aparece, então, o temor da violência que impele ao sacrifício e ao ostracismo A confiança delegada pelos pais, o sentimento de que eles amarão o filho, não importando o que lhe aconteça, e qualquer que seja sua disposição de espírito, são vividos como presentes dessa mensagem das origens, 8. ROSOLATO, G., Études sur le symbolique, Gallimard, Paris 1969. 30 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 31 Alberto Eiguer ausente, enquanto as lacunas do impensável objeto de um luto secreto dominar. Na mãe, o desinvestimento devido ao investimento do fantasma, ao esforço defensivo na constituição de uma clivagem para alojar esse fantasma e o contra-investimento que ele supõe, deixam pouca libido disponível para o objeto externo, mais freqüentemente o filho. É ou o vazio relacional, ou o exagero de um investimento narcísico de exclusão, entrecortado por recusas múltiplas, onde o filho não tem o direito de se representar a si próprio, fora da atribuição da mãe. A tensão é extrema ao nível do superego parental, impiedoso e devastador. Esses modos de investimento e de identificação dominados pela identificação narcísica, causadora de confusão, sempre triunfante, e a identificação primária em declínio, levarão a abalar a própria estrutura individual, na medida em que a identificação primária e a libido narcísica, ativadas pela mensagem arcaica das linhagens, constituem o tecido de base dessa estrutura.(O narcisismo, dizia Freud, está a serviço da continuidade da espécie e da transmissão dos ideais comuns.) No psicótico, a pertinência à linhagem é seqüestrada pelos fantasmas crípticos. Tornados mestres, estes últimos lhe delegam uma onipotência que, exercida sobre o filho, permite somente uma dessubstancialização do ser e/ou uma identificação com essa onipotência. Em alguns casos, a identificação mimética e caricatural dos atos do antepassado se traduz por sintomas ou traços de caráter incompreensíveis, por causa do caráter críptico da referência ao objeto transgeracional. O sacrifício de seu desenvolvimento, com o objetivo de inocentar esse objeto, torna a missão do filho grandiosa, dando-lhe a ilusão de ser pai. Mas, exceto os casos de psicose, todo o paciente é traspassado pelas identificações com os antepassados. Eu tentei mostrá-lo através de um neurótico. É a transferência, em última análise, que recolherá as representações ancestrais, suas alturas idealizantes, ou seus subterrâneos perturbados, o muito-cheio das designações abusivas, ou o muito-vazio do impensável, o muito-frio do desinvestimento, ou o muito-quente das O PAPEL DO ANTEPASSADO inomináveis paixões. (Ver, a esse respeito, os jogos de palavras Eiguer – a punição e o Eiguer – as guerras). Não foi um acaso se Sigmund Freud, em “A dinâmica da transferência”, se pergunta: “E, aliás, a própria constituição não seria a resultante de todos os acontecimentos fortuitos que influenciaram a série infinita de nossos antepassados9?” Sinopse A representação do antepassado nos interroga: como pode, um sujeito, chegar a identificar-se com uma pessoa desconhecida e que, às vezes, foi inclusive ocultada por seus aparentados. Na clínica se observa um combate universal que opõe os brancos da memória familiar, ou as delegações abusivas transmitidas deste várias gerações atrás, ante a mensagem simbólica das origens, esta última interrogando-se no superego da criança que é, como se sabe, herdeiro do superego dos pais. Quais são os diferentes modelos de relações com os objetos dos antepassados? Que tipo de economia psíquica faz com que esses pacientes apareçam como particularmente vulneráveis? Que modalidade de identificação entra em jogo ali? Summary The ancestor’s representation interrogates us: as a fellow he/she can to end up being identified with an unknown person, and that aveces was even hidden by their relatives? In the clinic, an universal combat is observed that it opposes the targets of the family memory, or the abusive delegations transmitted behind from several generations, before the symbolic mensage of the origins, this I finish being integrated in the boy’s super-ego that is as the heir of the super-ego ot the parents is known. Which are the different ones models of relationship with the objects of the ancestors? What type of psychic economy makes theses patients to appear as particularly vulnerable? What identification modality does he/she enter there in game? 9. FREUD, S., La dynamique du transfert (1912b), La technique psychanalytique, tradução francesa, PUF, Paris, 1953. 32 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 La representacion del antepasado nos interroga: como puede un sujeto llegar a identificarse con una persona desconocida, y que aveces fue incluso ocultada por sus allegados? En la clinica, se observa un combate universal que opone los blancos de la memoria familiar, o las delegaciones abusivas transmitidas desde varias generaciones atras, ante el mensage simbolico de los origenes, este ultimo integrandose en el superyo del nino, que es como se sabe el heredero del superyo de los padres. Cuales son los diferentes modelos de relaciones con los objetos de los antepassados? Qué tipo de economia psiquica hace que estos pacientes aparezcan como particularmente vulnerables? Qué modalidad de identificacion entra en juego alli? Palavras-chave Antepassado; Identificação primária; Mimetismo; Fantasma. Key-words Ancestor; Primary identification; Mimicry; Ghost. Palavras-llave Antepasado; Identificacion primaria; Mimetismo; Fantasma. Artigo Este artigo foi publicado no “Journal de Psychanalyse de l`enfance”, 1991, 10, 93-109, retomado e atualizado na obra dos “best-off” da revista “L`enfant, ses parents et le psychanalyste”, sob a direção de Cl. Geismann e D. Honzel, Paris, Bayard, 2000, 311-322. Tradução do original francês: Profa. Helena Totta da Silveira Revisão de tradução: Dra. Ester Malque Litvin Dr. Alberto Eiguer 154, rua d’Alesia 75.014 Paris – França E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 33 Alberto Eiguer Resumen André Green Membro Titular da Sociedade Psicanalítica de Paris A neurose fóbica, desde o início da Psicanálise, era definida como um medo irracional, freqüentemente acompanhado de repugnância que surgia diante de certos objetos ou determinadas situações. Ela associa uma atitude de evitamento, um deslocamento para o objeto ou para a situação que se tornarão fobígenos e uma projeção para o exterior. Habitualmente, este conjunto que constitui o sintoma só interessava ao psiquismo de uma maneira circunscrita e limitada, a tal ponto que, em alguns casos, quando o sujeito conseguia contornar os objetos ou as circunstâncias que faziam aparecer a fobia, ele podia até ter um funcionamento compatível com a normalidade. Depois, este quadro bem delimitado foi colocado em questão devido ao fato Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 35 André Green A Posição Fóbica Central A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL de terem sido encontradas formas muito mais extensas, cuja análise se apoiava apenas muito raramente em mecanismos de simbolização que o deslocamento tinha permitido constatar. O quadro neurótico da fobia parecia extrapolado, deixando aparecer formas de angústia muito mais invasivas. Além disso, é a própria natureza da angústia que apareceu sob uma luz diferente daquela que existia na neurose fóbica. Não faço alusão às diferenças estabelecidas, desde o início, entre neurose de angústia e fobia, chamada também de histeria de angústia, mas sim, às relações entre angústia, terror e medo que foram só alusivamente nomeadas sem ser verdadeiramente desenvolvidas, embora tenham sido levadas em consideração na patologia psiquiátrica. Certamente, encontramos menções disto na teoria a propósito de uma ocorrência hipotética, na infância dos pacientes, de “medos de aniquilamento, de angústias sem nome” ou “de tormentos atrozes (agonias)”, mas sua descrição clínica, no adulto, foi pouco detalhada na clínica psicanalítica. Aliás, a análise da fobia consistiu sobretudo em tentar compreender a constituição do sintoma neurótico, a partir das deduções que se podiam tirar das informações fornecidas pelo paciente, sem que para tanto pensássemos em colocar em evidência o aparecimento de um funcionamento psíquico particular na sessão. Fala-se, no divã, da crise de angústia que se teve fora da sessão, isto é, da lembrança que se guardou de uma crise entre as sessões. O que me proponho a descrever é a análise de um funcionamento fóbico durante a sessão. Para que um tal funcionamento não seja contido dentro dos limites de um sintoma que se manifesta sobretudo no exterior, é preciso que este último não seja suficiente para circunscrever o conflito ou, ao menos, seus aspectos mais investidos. Os pacientes dos quais vou falar podem apresentar manifestações fóbicas. No entanto, sua análise, durante as sessões, não chega a lugar nenhum, pois ficam imprecisas e indeterminadas. Levam a poucas associações, mobilizam maciçamente as soluções de evitamento das quais falei, mas não incitam o paciente a compreender o que elas traduzem de sua vida psíquica, nem a relacioná-las com aquilo de que seriam o deslocamento. 36 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 37 André Green Diferentemente dos casos em que a fobia é circunscrita e permite um funcionamento psíquico normal, aqui, ao contrário, o resultado termina em uma inibição extensa do Ego, confinando os pacientes, com freqüência, a um isolamento cada vez mais importante. Muito freqüentemente, eles alegam, sobretudo, a imposição de adotar uma atitude de fuga, sem conseguir definir o que eles temem. Os aumentos de angústia não são objeto de qualquer tematização significativa, mesmo sob uma forma racionalizada. No entanto, não se está diante de ataques de pânico, onde o medo está em primeiro plano. Em suma, é como se o funcionamento fóbico tivesse se instalado no interior da comunicação e impedisse toda manifestação possível no psiquismo. O analista acaba sendo impressionado por certas particularidades do funcionamento associativo do paciente na sessão, sem que consiga dizer se aquilo que percebe na escuta traduz bem o mesmo mecanismo fóbico que existe no exterior. Em todo caso, se o sentido não é idêntico, poderia bem originar-se de uma fonte comum que se pode identificar como perturbação do pensamento. Aqui, poder-se-ia dizer que o único objeto implicado é o analista e que o evitamento diz respeito à própria função analítica com o desejo de escapar da investigação. Mas, de fato, trata-se, então, menos do analista como objeto diferenciado do que de uma situação de não separabilidade entre sujeito e objeto, onde a transferência temida sobre o analista evidencia a projeção sobre ele de um poder de penetração sobre os pensamentos do paciente, de tal forma que não deixa outra solução a não ser uma erosão radical da inteligibilidade que poderia surgir da comunicação. Este aspecto de projeção, aqui limitado à própria presença do analista, dissimula, de fato, a necessidade, para o paciente, de fugir dele mesmo, como se corresse um perigo incomparável com o que é temido pela remoção de uma repressão. Aqui, como sempre, o medo profundamente enraizado, consistirá, para o paciente, em descobrir alguma coisa que está nele, mas que não se pode explicar apenas em termos de transgressão, se bem que o temor desta também esteja presente. Quando o analista conseguir, apesar de tudo, chegar a uma elucidação, constatar-se-á que o evitamento diz respeito menos a um medo do que a uma espécie de A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL captura, numa armadilha sem saída que se fecha sobre si mesma. Parece mesmo que o analista é imaginado como vítima da situação na qual o paciente teria conseguido aprisioná-lo. Definição da Posição Fóbica Central Por posição fóbica central, entendo uma disposição psíquica de base, que se encontra, com freqüência, no tratamento de alguns estados-limites. Fiz a escolha do adjetivo “central” a fim de marcar o aspecto do funcionamento mental do paciente que quero descrever. Não viso ao que é considerado como o mais profundo dos estágios do funcionamento psíquico do paciente, pulsão ou relação de objeto, nem, ao contrário, ao aspecto vinculável ao consciente através do discurso do paciente. Da mesma forma, não se trata de atingir os níveis do que se supõe ser o mais antigo ou o mais primitivo. Não tratarei simplesmente do acesso ao consciente de algumas partes do inconsciente do paciente, mas, antes, das ressonâncias e das correspondências entre alguns temas que abrem caminho através de alguns aspectos vindos do reprimido, ameaçadores, não somente em relação às sanções do Superego, mas, também, para a organização do Ego. É esta a razão pela qual é preciso impedir o pleno desenvolvimento desses conteúdos no consciente e sua revivescência completa. Esses temas, que determinam a história do sujeito, se potencializam mutuamente, quer dizer que eles não se limitam a se adicionar, mas se amplificam pela relação de uns com os outros, afetando seu funcionamento psíquico que não pode mais, então, se contentar em evitar o que vem novamente à superfície isoladamente ou em impedir o ressurgimento do mais antigo ou do mais profundo, pois se trata, também, de impedir a extensão da ligação dos temas uns com os outros. O resultado global não pode ser compreendido pela referência a um evento traumático único, por mais profundo e intenso que ele seja, mas pelas relações de reforço mútuo entre eventos, cujo conjunto criará uma desintegração virtual nascida da conjunção de diferentes situações traumatizantes que fazem eco umas nas outras. É portanto necessário conceber, na comunicação do paciente, as condensações que se apresen38 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 39 André Green tam como cruzamentos, inquietantes, pois se tornam o nó de encontros onde se entrecruzam diferentes linhagens traumáticas. Gostaria de submeter a idéia de que não se trata apenas de impedir o retorno do trauma mais marcante, nem do que foi descrito em termos de traumatismos cumulativos (Khan), mas das relações entre as diferentes constelações traumáticas, cuja relação de umas com as outras é sentida como uma invasão angustiante por forças incontroláveis, onde o despertar de qualquer um desses traumas entraria em ressonância com outros, cuja imagem compósita seria impensável porque ela desencadearia uma violência inusitada dirigida contra o Ego do paciente. É preciso, então, supor que o que torna a aglomeração desses temas muito ameaçadores, é que eles dizem respeito a organizadores fundamentais da vida psíquica, suscetíveis de desencadear a catástrofe. São os pilares da vida psíquica que são atingidos, tendo o paciente conseguido mantê-los separados, mal ou bem, ou negar suas relações, antes da análise. O verdadeiro trauma consistirá, então, na possibilidade de reuni-los em uma configuração de conjunto onde o sujeito perde sua capacidade interior de se opor aos interditos e não mais está em condições de assegurar os limites de sua individualidade, recorrendo a identificações múltiplas e, às vezes, contraditórias, encontrando-se, daqui por diante, incapaz de acionar suas soluções defensivas isoladas. É por isto que a idéia de centralidade pareceu-me a mais apropriada para definir uma situação “entre dois”, nível intuitivamente percebido pelo analista como sendo aquele em que progride o filão associativo, lidando com o que faz obstáculo a sua progressão, a suas ramificações, a sua manifestação em direção à superfície, tanto quanto em direção à profundidade. Este tipo de funcionamento que testemunha a fragilidade da capacidade de auto-investigação, tem consequências tão radicais que não se pode explicar o recurso a estes mecanismos auto-mutilantes para o pensamento a não ser pela necessidade de enfrentar importantes ameaças internas. É por isto que ainda é a referência ao pavor ou ao pânico que parece melhor corresponder à experiência do paciente. Será aqui justificado falar, se isto fosse possível, de traços mnêmicos de terrores diurnos profundamente sepultados, mas sempre ativos. A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL O Discurso Associativo na Sessão Para bem compreender o que quero dizer, é indispensável mostrar, previamente, como concebo o funcionamento de uma sessão idealmente produtiva. Partamos do esquema do capítulo 14, “Introdução do ‘Ego’”, da primeira parte do “Projeto” (Fig.1)*. Nesta representação gráfica, Freud imagina um encadeamento de unidades que supõe serem neurônios e dos quais ele descreve as junções conforme dois caminhos. O que mantém sua atividade são, em sua terminologia, quantidades móveis. De uma parte, o investimento direto de uma quantidade móvel do neurônio a para o neurônio b coloca-os em relação devido a uma “atração provocada pelo desejo”; de outra parte, uma cadeia chamada por ele investimento colateral que, partindo de a se estende, segundo um trajeto arborescente, para outros neurônios α, β γ δ. O investimento colateral supre a via a→b quando esta está impedida, por ser suscetível de causar desprazer. Freud fala, de fato, em inibição, pois a repressão ainda não foi descoberta. “Nós vemos facilmente como, com a ajuda do mecanismo que atrai a atenção do ego sobre um investimento novo da imagem penosa, o ego consegue, algumas vezes, inibir a passagem de uma quantidade que emana desta imagem e leva a uma produção de desprazer. Ele consegue isto graças a um investidor colateral considerável, suscetível de aumentar, quando as circunstâncias assim exigem1 ”. O investimento colateral encontra, portanto, uma saída alternativa a estas passagens inibidas. Eu levanto a hipótese de que a relação entre a e o investimento colateral substitutivo α β γ δ deve ter uma ligação mais ou menos homóloga com a passagem inibida a→b; de tal maneira que a análise deste investimento colateral em relação com a, deveria nos dar uma idéia parcial ou aproximativa referente à relação inibida ab. Considerarei esta esquematização como um modelo nuclear que reú* Esta numeração corresponde à (Fig. 14) utilizada na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Imago Editora Ltda., 2ª edição, Rio de Janeiro, 1987. (N. da T.) 1. Projeto (esboço) de uma Psicologia científica em Esquisse d’une psychologie scientifique “La naissance de la psychanalyse”, publicado por M.Bonaparte, Anna Freud, E. Kris, trad. A.Berman, PUF, 1956, p.342. 40 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 41 André Green ne o investimento, a dinâmica do sentido, a repressão e a resistência, assim como as associações, como modo de reconhecimento que permite a abordagem indireta e parcial do inconsciente reprimido. Quero modificar o esquema para aplicá-lo ao tipo de comunicação na sessão. Quando a regra da associação livre é observada durante uma sessão frutífera, o paciente enuncia frases que se seguem sem elo lógico. Nessa ordem dispersa, pode-se notar que cada idéia que tem uma certa consistência semântica – chamo-as semantemas principais –, é rodeada de comentários circunstanciais que assimilo aos investimentos colaterais do esquema de Freud. Estes comentários, às vezes, servem de simples desenvolvimentos sobre os semantemas principais, desempenhando um papel análogo às proposições subordinadas da gramática e traduzem, ocasionalmente, uma dificuldade de deixar um outro semantema principal se associar diretamente. O que é importante observar é que a associação livre se serve das estruturas narrativas ou gramaticais, sem respeitar seu ordenamento hierárquico, de maneira que o encadeamento do discurso estabelece vínculos que ignoram a categorização em principal e subordinado, ou passagem direta e investimento colateral. A resistência obriga ao desvio, mas este, em contrapartida, enriquece as possibilidades de associação! É o que mostra, retrospectivamente, a análise de uma significação que emerge de algumas relações provindas dos diferentes elementos dispersos na comunicação. É, portanto, possível supor que o discurso associativo, produzido pela associação livre, pressiona para desenvolvimentos acessórios a fim de impedir o estabelecimento de vínculos demasiadamente diretos com o inconsciente e que os comentários que parecem secundários ou subordinados são suscetíveis de desempenhar o mesmo papel que os investimentos colaterais: quer dizer que, ao lado de sua função de desvio, os caminhos seguidos entram em conexão, aproveitando a diminuição da censura racional, para criar novas relações surgidas em favor da exclusão das hierarquias do discurso. Isto é conhecido e admitido pelos psicanalistas que, em geral, não vão mais longe. Percebeu-se bem que uma nova trama de relações poderia transparecer, mas as vias pelas quais ela se forma foram deixadas na sombra. Se, para o A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL consciente, este aspecto incoerente revela uma grande obscuridade quanto à inteligibilidade de conjunto, para a escuta analítica, a nova trama permite pensar que relações significativas existem entre quaisquer elementos enunciados, quer eles digam respeito a duas idéias semanticamente consistentes, ou a uma idéia semanticamente consistente com qualquer outro aspecto da verbalização, presente de maneira incidente ou contingente, fazendo parte dos investimentos colaterais enunciados ou ligados por inferência. Isto decorre da hipótese que nós levantamos de que os diferentes investimentos colaterais deveriam ter uma relação com a via impedida que não pode ser percorrida, a que leva diretamente de a→b. Isto é apenas os preliminares do que temos a compreender. Esta associatividade nos convida a buscar o sentido latente, prevendo que a compreensão de um elemento, por exemplo, o elemento d, da cadeia a, b, c, d, e, f não pode desvendar sua função apenas por sua referência presumida com aquele que o precede c. Mais precisamente, é necessário acrescentar que c será infiltrado, habitado, potencialmente aumentado pelas relações reflexivas que ele terá podido estabelecer com um ou vários elementos contingentes de uma outra cadeia distante dele, seja com seus investimentos colaterais, seja com um elemento precedente, pertencente à série das idéias semanticamente consistentes. A idéia geral é que o sentido inconsciente, na medida em que pressiona em direção à consciência, busca abrir um caminho e deve, para ser liberado, passar por conexões que não colocam em contato direto os elementos que entram em sua composição ou que estes não podem ser deduzidos por simples relações de proximidade imediata, negligenciando o que parece apenas desempenhar a função de digressões. Evidentemente que, os afetos desempenham o mais importante papel nessa difração, nessas derivações, rupturas ou encadeamentos. Estaríamos, no entanto, errados em pensar que a marca dos afetos seria suficiente para orientar claramente a direção que deve conduzir à significação latente. Pois os afetos podem surgir como uma conseqüência do desmantelamento associativo e ter apenas como função a conotação de um aspecto do discurso surgido no meio do caminho, sem por isso desempe42 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 43 André Green nhar um papel importante na trama significativa colocada em evidência graças ao trabalho associativo. Vê-se que esta forma de pensamento não busca apenas um relaxamento da censura, mas que ela induz a um funcionamento livre da imposição de colocar as palavras em seqüência, numa sucessão direta, fazendo exercer a atração (e a repulsão que a acompanha) dos elementos reprimidos que comandam a produção dos temas apresentados na superfície. A demanda de associação livre tem uma dupla conseqüência. Se, por um lado, ela leva à renúncia da imposição que assegura o encadeamento de idéias, a coerência lógica requerida pelo pensamento secundário, e à liberação, assim, da circulação das divagações temáticas, tanto sobre o seguimento das diferentes idéias emitidas, quanto sobre os desvios produzidos por algumas delas, que podem parecer, à primeira vista, contingentes ou adjacentes, este modo de discursividade, ao mesmo tempo frouxa e fendida, facilita, em compensação, pelo afrouxamento das relações internas à comunicação, uma atividade que intensifica modos de irradiação à distância entre partes do discurso, como a poesia e a escrita artística buscam, deliberadamente, mas de maneira controlada. O que nos indica que esta irradiação, que suscita efeitos à distância, parece ser uma capacidade da mente humana acionada, quando ao que o discurso visa não pode ser enunciado, sem fazer com que aquele que se exprime corra um risco, ou que um discurso indireto é mais rico quando adota as formas da poética. Os elos entre as palavras têm muito mais capacidades semânticas que a própria sequência das palavras. Isto coloca em evidência a importância da dimensão de evocação da linguagem (Lacan) que escapa à visibilidade, à continuidade e ao arranjo obtido pelos elos perceptíveis numa lógica que define suas regras. O funcionamento clandestino obtido permite-nos melhor apreender a originalidade do entendimento analítico. Ou seja que, na desordem aparente da comunicação, são os efeitos de ressonância mútua que dão importância a esse funcionamento. Ainda é necessário precisar de que maneira esse funcionamento induz a compreensão e a interpretação do analista. As associações permitem indicar, ajudadas por condensações e deslocamentos, A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL núcleos de reverberação retroativa: ou seja, que um elemento enunciado só toma verdadeiramente sentido se, a partir dele, são esclarecidos ecos retroativos às vezes convergentes, contidos em propósitos enunciados anteriormente na sessão, que testemunham a persistência de seu poder significativo muito tempo depois que o discurso que os continha tenha se apagado. Da mesma forma, em outros momentos, embora nada o pressagie, alguns termos terão efeitos de advertência, experimentados como tal a posteriori, sem que o analista, no momento em que os ouve, esteja à altura de predizer a forma do que acontecerá e cuja ocorrência ulterior permitirá deduzir sua relação com seu precursor. O alcance dessas relações é percebido a posteriori pois o valor de antecipação estava isolado e não podia deixar pressentir precisamente o que então se anunciava. Assim, reverberação retroativa e anunciação antecipatória agirão juntas ou alternadamente, fazendo-nos compreender que a associação livre permitenos aceder a uma estrutura temporal complexa que coloca em questão a linearidade aparente do discurso para nos tornar sensíveis a uma temporalidade tanto progressiva quanto regressiva, que toma uma forma arborescente e, sobretudo, produtora de potencialidades não expressas ou geradoras de ecos retrospectivos. Se é assim, é porque a organização psíquica não cessa de se modificar ao longo de sua história, fato ao qual Freud fez alusão, sem elaborar as implicações teóricas, ao falar da atração no reprimido pré-existente (A Repressão). Como se vê, um tal funcionamento evoca muito mais a figura de rede do que a de linearidade, às vezes, ramificada na coexistência de diferentes temporalidades, lineares e reticulares.. Aliás, entre as ramificações que entram na figuração do processo, alguns ramos podem ficar mudos porque são objeto de um contra-investimento muito forte; não são menos ativos no inconsciente, suscetíveis de serem reanimados ou, em outros casos, de excitarem outros, sem se expressar explicitamente. Outros parecerão ausentes, jamais dando origem ao sentido, mas sugerindo ao analista a idéia de que necessita deles para conseguir uma compreensão mínima e, no entanto, sempre hipotética. Se existe arborescência do sentido, é na medida em 44 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 45 André Green que se pode passar de um ramo da árvore ao outro, por um trajeto recorrente para voltar, em seguida, para as bifurcações ulteriores do ramo de onde se partiu. Conseqüentemente, é preciso insistir no caráter das associações que coloca em evidência uma característica que, que eu saiba, só pertence à Psicanálise. Acabamos de colocar em questão a linearidade das associações que é utilizada de maneira geral nas teorizações lingüísticas. Os lingüistas dizem naturalmente que as relações entre os termos reunidos primam sobre o sentido dos próprios termos. Além disso, devido à infiltração do discurso consciente pelo inconsciente, o que quer ainda dizer, ao efeito indireto, invisível e mudo dos investimentos das representações de coisas inconscientes sobre as representações de palavras, e à pressão exercida pelo montante de afetos que os conotam e que comandam sua progressão dinâmica, o discurso associativo é marcado, em alguns momentos, pelo que denomino efeitos de irradiação. Portanto, alguns termos – ou melhor, alguns momentos do discurso – que ocupam uma posição estratégica que, com freqüência, só será compreendida a posteriori – são portadores de efeitos dinâmicos tais que, uma vez pronunciados, e mesmo antes de sê-lo, quando ainda só são pensamentos não articulados, irradiam e influenciam a intencionalidade do discurso. São, aliás, com freqüência, os mesmos que, defensivamente, engendram investimentos colaterais. É então que eles terão tendência a entrar em ressonância, seja com termos já enunciados, de uma maneira retroativa, seja, ainda, e, às vezes, simultaneamente, com termos que vão vir, não ainda pensados, mas potencialmente geradores de temas que deixam perceber novas relações com o que foi expresso. Eles estariam, portanto, aqui, em posição de indicadores sob o efeito de uma vibração interna. Nós o vimos tanto no movimento para trás como no para frente, no escoamento da comunicação durante a sessão, em relação ao já dito, como em relação a um dizer por vir, sugerindo uma virtualidade de existência. Esta concepção, que proponho chamar de irradiação associativa, traça, através do desenrolar do discurso manifesto, decorrente da associação livre, linhas de força que o atravessam e que vão constituir A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL as veias do discurso que permitem seguir, ressoar, retroagir, acolher previamente o valor significativo que circula ao longo dos percursos, cujo plano se desenha baseado nas coordenadas do inconsciente, marcadas pelos superinvestimentos e contrainvestimentos que as acompanham. Os momentos de suspensão da associação têm o interesse de assinalar os nós da resistência e de tornar sensíveis os remanejos aos quais eles procedem. Esta descrição serve para melhor apreender as modalidades pré-conscientes da escuta pelo analista do discurso, na sessão, com todas sua conotações transferenciais e suas recorrências contratransferenciais. Deste ponto de vista, o analista segue uma conduta que corresponde ao que ele percebe do modo de expressão do paciente. Ele tenta o esclarecimento do sentido veiculado pela palavra, através do que ele já escutou do discurso do analisando, na sessão, o que não deixará de fazer eco a temas já abordados em sessões anteriores ou atuais. Além disso, seu ouvido está também atento ao que ele não pode deixar de se preparar para escutar, relativo ao desenvolvimento dos temas expostos pelo discurso já enunciado, num percurso interrompido, misturando tempos passados e por vir, seguindo uma exploração em vaivém, no seio do desenrolar do presente. Este movimento de espera de um sentido a se realizar não se contenta, na maioria das vezes, com uma só antecipação ou uma hipótese única que espera sua realização, mas, simultaneamente, com várias, das quais talvez uma só será selecionada para estabilizar o sentido. Em alguns casos, nenhuma delas será validada, todas tendo de dar lugar a uma hipótese imprevista, surgida extemporaneamente, que resulta das relações já estabelecidas pelo discurso. As hipóteses anteriores invalidadas não desaparecerão completamente; elas serão, na maior parte do tempo, colocadas em latência, podendo reaparecer eventualmente na superfície ou tornarem-se obsoletas se nada vier reanimá-las. Mas de toda maneira, a marcha da sessão está em busca de um equilíbrio entre o freio da resistência e a pressão da progressão para a consciência, prepara o ouvido para a recepção de uma complexidade polisêmica aberta, prospectiva e retrospectiva, tomando parte na construção de uma dialética semântica processual. Processo quer dizer 46 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Primeira Abordagem do Evitamento Associativo como Manifestação do Negativo Há já muito tempo, fiquei intrigado pelo comportamento associativo de alguns analisandos que, chegando a diferentes momentos da sessão, pareciam dar meia volta a todo movimento de pensamento que os havia conduzido até um determinado ponto de seu discurso, quando até mesmo a conclusão da continuação de seu avanço parecia quase previsível. Na época, eu tinha feito estas observações em pacientes neuróticos e tinha atribuído a uma resistência o que me parecia uma fuga frente a uma tomada de consciência diante de um desejo proibido. Posteriormente, fiquei impressionado ao ler, pela pena de Bion, o relato de uma situação um pouco diferente que, no entanto, não pude deixar de relacionar com a observação precedente. Bion falava desses casos em que o material exposto pelos pacientes parecia bastante significativo para o analista sem, no entanto, fazer sentido para o analisando. Mas, neste caso, tratava-se de pacientes psicóticos e o dano profundo de seu funcionamento mental era manifesto. Isto esteve na origem, com outros fatos notáveis, da concepção, à qual o nome de Bion está ligado, de “ataques aos vínculos”. A comparação com a situação anterior fazia evidenciar que, enquanto no primeiro caso, a repressão dizia respeito, principalmente, aos derivados das pulsões sexuais, no segundo, a ação das forças destrutivas sobre o Ego estava em primeiro plano. Posteriormente, o interesse que atribuí ao trabalho do negativo aguçou meu ouvido para as formas de negatividade que não se deixam interSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 47 André Green marcha, ação de ir avançando. Enfim, falando dos organizadores da vida psíquica do paciente, faço alusão a esses conceitos chaves em torno dos quais se constrói o universo mental do paciente. Eles são, para nós, o que são os referentes, para os linguistas. É totalmente deplorável ter de constatar que ainda não há concordância, entre os psicanalistas, sobre as categorias que eles representam. Certamente, será uma tarefa do futuro chegar a um acordo sobre este assunto. A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL pretar devido a sua relação direta com as pulsões destrutivas. É com a destrutividade que o analista lida, essencialmente na relação de transferência com os pacientes “limite” e a mesma se apresenta, de maneira prevalente, prioritariamente, sobre o próprio funcionamento psíquico do sujeito. A destrutividade pode não ser afetada a não ser pelas defesas negativistas cuja clivagem freudiana é a forma mais sutil. A comunicação analítica encerra contradições essenciais, que vivem em coexistência, sem que uma domine a outra, obrigando o pensamento do analista a elaborar o produto de sua escuta conforme registros incomuns, desconcertantes, estranhos. Referime, mais de uma vez, a este escrito inacabado de Freud, “Some Elementary Lessons in Psycho-Analysis”, versão inglesa de seu Abriss, onde ele previa que a análise conheceria, no futuro, modos de funcionamento psíquico cada vez mais distantes do senso comum. O que quer, provavelmente, também, dizer cada vez mais distantes do que a psicanálise das neuroses lhe tinha ensinado e que funda o pedestal da Metapsicologia. O trabalho do negativo se esforçou em desenvolver as implicações clínicas, técnicas e teóricas disto. Dedicar-me-ei, hoje, a algumas manifestações “negativistas” no tratamento, que podem se apresentar de uma maneira cuja função o analisando leva muito tempo para reconhecer e que não se interrompem, uma vez que ele as tenha reconhecido. Faço aqui alusão ao comportamento de um analisando que veio me ver por uma angústia crônica. Ele havia feito várias tentativas terapêuticas que revelaram, entre outras, sua intolerância à relação e ao silêncio. Pouco tempo depois do início do tratamento comigo, que, no entanto, ele parecia ter ardentemente desejado, e depois de intervenções que tinham me parecido tanto mais necessárias em relação a suas experiências precedentes, respondeu-me: “Não o ouço, tenho merda nos ouvidos”. Ele não falava desta surdez como de uma impossibilidade de me escutar, mas, sim, de uma recusa de me ouvir. Dez anos depois, durante uma sessão recente, ele me disse, novamente, a propósito de uma interpretação que não foi feliz: “Não o ouço”. Não compreendi que ele expressava a mesma oposição que antigamente e acreditei, verdadeiramente, que minha voz não estava suficientemente audível. Surpreendente constância; ele 48 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Descrição da Posição Fóbica Central O caso clínico de Gabriel trouxe-me o esclarecimento que me faltava. Esta análise, tempestuosa em muitos momentos, abunda de peripécias e de descobertas heuristicamente fecundas. Ela está, atualmente, numa etapa muito avançada, depois de um longo percurso. Algumas experiências terapêuticas tinham terminado por uma decisão unilateral, devida, provavelmente, a reações contratransferenciais não controladas. Isto aumentava o sentimento de abandono, em um momento em que ele tinha particularmente necessidade de ser apoiado. Durante longos anos, as sessões foram consagradas a queixas relativas a angústias permanentes, e seus propósitos eram de uma rara confusão. Às vezes, também, emergiam temas, muitíssimo interessantes, quando eu conseguia seguí-los, regularmente acompanhados pela impressão de que eu suspirava de lassidão, de irritação e de tédio, tantos sinais precursores que anunciavam, segundo ele, que eu ia Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 49 André Green tinha apenas suprimido a contração anal metafórica de sua orelha. Na sessão seguinte, ele mostrou, no entanto, uma admirável capacidade integradora. Todavia, este entendimento denteado, com altos e baixos, permanecera característico de seu funcionamento, mesmo após avanços admiráveis. A diferença estava em sua capacidade de restabelecimento do insight cujo progresso não era uma ilusão, mas cujo exercício devia, primeiramente, ser precedido pela compulsão à repetição que se tornou, felizmente, transitória, destinada a me fazer perder o controle para lidar com a iminência do perigo que poderia representar a visão mais aprofundada que ele tinha adquirido de seus conflitos passados. Hoje, parece-me que estes comportamentos, cujo objetivo defensivo eu compreendera bem, devem ser ligados a manifestações fóbicas. Mas faltava-me passar do plano do comportamento, por mais sintomático que ele fosse, àquilo que faz sua especificidade e que oferece obstáculo à inteligibilidade analítica, isto é, o sentido, como emergência da associação livre, na relação transferencial, torna-se o objeto de uma confusão e de uma asfixia quase sistemáticas. A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL colocá-lo porta afora. “Eu não sei”, “Eu não sei muito”, “Não me lembro”, “O que eu estou dizendo não é apaixonante”, entrecortavam as sequências de seu discurso. Eu não tinha qualquer indicação precisa sobre sua história. Ele reconheceria mais tarde que estas fórmulas tinham o poder de matar qualquer representação. Os fatos, nunca datados de maneira a fornecer uma cronologia, estavam situados, ora em uma idade, ora em outra, raramente acompanhados de lembranças evocáveis que teriam dado uma idéia sobre a posição psíquica do paciente face aos eventos relatados. Inventários submersos no ressurgimento dos eventos relatados. Uma vida entrecortada, marcada por uma grande solidão, agravada aos doze anos de idade pelo divórcio de seus pais, o que o levou a compartilhar sua vida com uma mãe deprimida e inacessível, cativa de sua morosidade e de sua falta de vontade de viver. Aos quinze anos, a mãe desapareceu, um dia, não mais retornando de um tratamento termal. O pai continuava o objeto de uma oposição sem trégua. Não sabendo mais para que santo se voltar, o pai, divorciado e casado novamente, decidiu consultar um psiquiatra clássico que transmitiu suas conclusões, dizendo ao pai que seu filho o detestava, sem nada propor. Ele deixou a região parisiense, não sem ter proposto, em vão, a Gabriel de seguí-lo. Este último estava em conflito permanente com sua madrasta e se encontrou de novo completamente isolado após a partida deles. Estudos caóticos, um período de adolescência bastante perturbada, marcada pela agitação política e alguns comportamentos transgressores que revelarão sua vulnerabilidade. Depois do fracasso no vestibular, uma estada temporária no estrangeiro, vivida no isolamento, na solidão e na tristeza, um retorno ao país e à faculdade, pela iniciativa de um amigo, para estudos que não tinham nada a ver com sua atividade atual. Foi-me necessário tempo para compreender, que o sentimento que eu tinha de perder, periodicamente, o fio do que ele me comunicava, era devido a rupturas associativas, potencialmente significativas. Mais do que interrupções ou mudanças de tema – o que se inscreve como consequência de associações livres – tratava-se de um discurso que parecia ser mantido à distância, longamente desenvolvido a partir de generalidades que me davam a impressão de buscar 50 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 51 André Green meu caminho na névoa. Acreditei, inicialmente, estar diante de uma atitude que remetia a uma repressão maciça e extensa. Até o momento em que compreendi que se ele estava assim obrigado a impedir a instalação da associação livre, não era por falta, mas, ao contrário, por um excesso potencial de associações. Dito de outra maneira, quanto mais ele progredia no que ele tinha para dizer, mais ele tinha um sentimento de perigo, porque a comunicação entre as partes de seu discurso não estavam suficientemente impermeáveis e que ele interrompia sua palavra ou a embaralhava, como se tivesse buscado prevenir uma saída, em direção à qual teria sido irresistivelmente levado se ele se tivesse deixado levar. A saída que ele temia não era outra senão a doença somática ou a loucura, para limitar-se, posteriormente, à segunda. Vários indícios tinham-me permitido compreender que a ameaça de loucura estava relacionada com a idéia de que ele estava ligado a sua mãe por um vínculo que nada nem ninguém poderia jamais romper, não deixando lugar algum para qualquer investimento que ameaçasse distanciá-lo dela. Ao vir a essas sessões, ele tinha a impressão de ouvir sua voz chamando-o. Na infância, um acontecimento maior: fora colocado na casa de uma mãe substituta. Em que idade? Levei mais ou menos oito anos para saber que ocorreu entre um e três anos. Por qual razão? Mistério; os motivos invocados eram pouco convincentes. Mas mais um trauma agravou o da separação: seu pai teria ido vê-lo aproximadamente todas as semanas, no interior, a 300 km de Paris, sua mãe nunca – a não ser para retomá-lo. Como era de se esperar, nesse dia ele não a reconheceu e chamou-a de Senhora durante o trajeto de retorno. Algumas horas após, ele pôde recuperar a lembrança de quem ela era. Esta mãe, que vive, atualmente, no interior, nunca o visitava, nunca lhe escrevia, nunca lhe telefonava, cortando sua linha durante longos períodos, sem responder aos chamados, nunca via ninguém, rechaçando suas propostas de vir vê-la, ao mesmo tempo em que se dirigia a ele de maneira apaixonada quando ele conversava com ela, pelo telefone, para se queixar de tudo e de nada, acrescentando que só tinha ele para ajudá-la. Todavia, todas as sugestões e proposições que ele A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL lhe fazia eram infalivelmente rechaçadas. Que ela fosse seriamente perturbada, é provável, eu me apercebi há muito tempo, mas o significado de seu comportamento era mais difícil de circunscrever. Sua atitude desconcertante se explicava, acabei compreendendo, pelo fato de que ela preferia não ver as pessoas porque ela não suportava separar-se delas, temendo adoecer assim que elas a deixassem. Antes de ir para a casa da mãe substituta, contaram-lhe que, enquanto o nutria, sua mãe tinha tido um abcesso no seio quando o amamentava. Ela continuara a nutri-lo, pois nada sentia – o que dá uma idéia de seu masoquismo. Ela não se deu conta de que seu filho gritava como um abandonado, definhava a olhos vistos, só absorvendo o produto de um seio purulento e vazio. O pai, enfim, interveio e o médico, chamado, separou a mãe do filho e prescreveu “injeções de água marítima”, outra maneira de dizer, suponho, soro fisiológico, para reidratá-lo. Um dia, em seu décimo ano de análise, enquanto evocava pela enésima vez o período na mãe substituta, embora quando era eu que fazia alusão a isto ele preferisse banalizar o acontecimento, no estilo: “Todas as crianças que foram colocadas em mães substitutas não ficaram marcadas por isto, não se tornaram como eu, etc.”, ele me disse: “Ontem, repensei nessas visitas de meus pais que eu esperava no domingo. Revi-me criança, à mercê de uma tensão angustiante indescritível, inteiramente ávido, na entrada da fazenda, à espera da vinda deles e na esperança de vê-los aparecer. Ele falava, de fato, da decepção de não ver sua mãe. Meu rosto tinha uma expressão tão tensa, tão terrível que eu disse para mim mesmo: “Isto não é possível, isto não pode ser eu”. Fiquei emocionado por este movimento que aliava uma recordação traumática e o não reconhecimento de uma imagem de si percebida e representada, mas desmentida. Eu estava, aliás, embaraçado para saber se tratava-se de uma rememoração de uma revivescência. Mas eu tinha a convicção de que não poderia se tratar de uma fantasia. Uma criação do tratamento, certamente, mas carregada de verdade. Acrescentando-se, à decepção renovada de não ver aparecer a silhueta de sua mãe, o medo de mostrar 52 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 53 André Green sua tristeza ao pai por temor de que ele também deixasse de visitá-lo, compreende-se que essa situação, que poderia retumbar com a relação dual da criança ao seio que a deixava esfomeada, era, na época, terceirizada. Sem falar da fantasia possível de que era ainda o pai que impedia a mãe de vir vê-lo, a fim de guardá-la só para si, como tinha sido ele que, antigamente, o privou desse seio que, apesar de mortífero, era sua possessão. Ele levou um certo tempo antes de admitir que esta interpretação era plausível. Desde então compreendi que estava ali a chave da atitude de meu paciente. Ele vivia aterrorizado permanentemente, mas, de uma certa maneira, não era ele quem vivia os terrores. Ou então, o que o angustiava encontrava explicação no comportamento dos outros em relação a ele. Esse movimento defensivo era facilitado por numerosas confusões de identidade transitórias entre sua mãe e ele, entre ele e o tio morto, de quem tinha o nome, a quem ele jamais conhecera mas a quem tinham lhe dito que ele se assemelhava muito, depois, mais recentemente, entre sua mulher e sua mãe e, enfim, entre seu filho pequeno e ele. Além disso, sua mãe fizera confusões semelhantes na adolescência, tendo, inclusive, apresentado-o às pessoas do bairro como seu irmão, até mesmo seu marido, modificando o sobrenome comum deles. Não se tratava de identificações, mas de suspensões transitórias de sua identidade. Em um momento da transferência, ele dirá: “Tomo-me pelo Dr. Green”, o que levava a um sentimento de usurpação que, de fato, interditava qualquer identificação. Algum tempo depois da evocação da espera da percepção da mãe que não vinha, ele voltou para o episódio do abcesso do seio para me relatar uma frase dela: “E tu chupavas, e tu chupavas, e tu chupavas”. E eu dizia, para mim mesmo: “E nada vinha!” Não se tratava somente de um movimento de identificação com meu paciente, nem mesmo de uma reconstrução. Bruscamente, compreendi que eu associara os dois acontecimentos. Entre o primeiro e o segundo havia diferenças. Mas o estabelecimento de um ponto associativo era a consequência dessa irradiação à qual eu fazia alusão e da qual eu já tinha a experiência ao escutar o que ele me comunicava. Quanto a ele, vários de seus atos pareciam querer impedir essa possi- A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL bilidade de se deixar surpreender tomando a dianteira e fazendo os outros viverem o vazio que ele criava com seu desaparecimento real ou seu retraimento. Por outro lado, ele era de uma fidelidade rigorosa a suas sessões. Compreendi, então, ainda melhor, o sentido dos comportamentos de meu paciente. Eu completara uma sequência em que ele tinha se contentado em descrever a reação do outro, sua mãe, sem imaginar, diante de mim, o que ele tinha podido experimentar, mas me incitando, inconscientemente, a ir até o fim do que ele sentia. Não há então saída, a não ser pela ruptura da atividade mental, por temor da ressonância das diferentes situações traumáticas que se poderia relacionar-lhes. Não me demoro sobre outras situações, relacionadas com temas melhor conhecidos da Psicanálise, como a angústia de castração ou o sentimento de não ser compreendido por sua companheira atual, ou a traição de uma amizade. Só as menciono, sem desenvolvê-las, para sustentar essa idéia de que se tratava, no caso dele, da grande insegurança que ele experimentava ao considerar os significanteschave da Psicanálise. Ele me tinha impressionado por alguns comportamentos característicos: decidiu, sob o choque de um fracasso sentimental, pensando que ele tinha pago bastante com todas suas infelicidades, não mais pagar seus impostos, desaparecendo para a administração. Evidentemente, ele foi encontrado pelo fisco ao cabo de alguns anos, temendo sanções muito mais graves que as que são aplicadas em caso semelhante. Profissionalmente, ele se engajava nas primeiras etapas de um trabalho coletivo, depois, subitamente, desaparecia. Na análise, ele não dava a menor explicação sobre essa maneira de se esquivar. Também fugia dos encontros com os parentes, diante dos quais temia ser acusado pelas incomodações que atingiam seu ambiente. Muito angustiado, ao menor sinal que pudesse testemunhar um problema de saúde em seu filho, não tinha outro recurso a não ser tentar exercer um domínio absoluto sobre sua mulher, esperando que ela fizesse desaparecer os sintomas, mesmo benignos, que aquele pudesse apresentar e não suportando que ela respondesse que ela mesma não compreendia a causa dos sintomas. Por seu lado, extremamente preocupado em estabele54 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 55 André Green cer uma relação sem nuvens com o filho, mostrava-se muito pouco receptivo às manifestações de ciúme edípico desse, não podendo imaginar a existência disso. O que me apareceu, no entanto, com clareza, foi a razão de ser de seu funcionamento associativo: ao mesmo tempo sem nitidez, vago, frequentemente inalcançável, defasado em relação aos eventos relatados. Em alguns momentos, ele reconhecia a exatidão de algumas interpretações, fazendo, em seguida, como se elas nunca tivessem sido enunciadas. Compreendi, então, que o que impedia seu desenrolar associativo, o que, em suma, fazia estagnar essa progressão pluri-direcional e esterilizava seu curso era a antecipação do fim ao qual ela ameaçava conduzi-lo. Era como se todas devessem levar à cascata dos traumas que tinham correspondência uns com os outros. Compreendi que o efeito de repressão não era suficiente para se fazer uma idéia do que acontecia. De fato, um certo grau de desinvestimento da arborescência das cadeias associativas apagava a potência de irradiação dos momentos temáticos. Dito de outra maneira, o discurso caía na linearidade. A capacidade associativa não voltava mais para trás no a posteriori que ela não antecipava a continuação, abrindo para uma potencialidade. Não cessava de falar, talvez de associar – às vezes de uma maneira fragmentária, mas, de toda forma, associava de maneira plana, sem relevo, sem profundidade, sem ritmo. Não era gerador, nenhuma solução poderia ser esperada pela interpretação. Mas por que essa posição fóbica central? Por que esse evitamento do término do percurso associativo? Para fazer-me vivenciar a decepção de não o ver concluir, de não o ver chegar, como a mãe, nunca apercebida? Sem dúvida, mas sobretudo porque o que revela o desamparo é o assassinato da representação da mãe que não aparece ou do seio que não acalma a fome mas aumenta a excitação. Sucede-lhe a recusa de existência da própria realidade psíquica do sujeito que o realizou. “Não, isso não existe em mim, não pode ser eu, não sou eu”. Eis portanto uma variedade nova do trabalho do negativo referindo-se à alucinação negativa do sujeito por ele mesmo, consistindo menos em uma não percepção do que em um não reco- A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL nhecimento. Gabriel ao não ver sua mãe reativava nachträglich o não-seio da mãe. Não o seio ausente – uma vez que se trata de um seio que se supõe estar lá amamentando – mas um seio presente e vazio, quer dizer, destituído de suas funções, não existindo como seio, pressionando a se desfazer dele, a fazê-lo desaparecer, embora ele esteja muito perceptivelmente ali, na boca, em carne, mamilo entre os lábios que não sugam nada de valor. Tampouco se imaginava podendo receber algo de uma imagem paterna que teria o desejo de transmitir-lhe o que quer que seja que ele pudesse utilizar na vida, para seu progresso pessoal. O percurso associativo, portanto, despertaria os vínculos entre a ausência da mãe aos dois anos, o seio do período dos seis aos sete meses, sua impotência para ser investido pela mãe, o sentimento de um pai decepcionado por ele, o abandono de amantes pelas quais era apaixonado, abandonadas antes que elas o abandonassem, e o abandono de seus terapeutas. Essa revivescência completa na análise ameaçava ser devastadora. Ela corresponde ao sentimento de uma multiplicação que, a cada lembrança de um dentre eles, divide-o ainda mais, tornando-o inapto a se utilizar de seus afetos para interrogar o que seu Ego poderia fazer com isso, tentando reunir o sentido que poderia se desprender de uma expectativa. Gostaria de ressaltar que não me parece exato atribuir tudo ao traumatismo mais antigo, o do abcesso no seio. Procurei mostrar, ao contrário, que o que se deve levar em consideração é o agrupamento de diversos traumas que se evocam uns aos outros, os quais levam o sujeito a se esforçar para recusar que eles possam, mutuamente, se colocar em comunicação pela psiquê, porque eles configuram menos uma evolução integradora e tomam mais a forma de uma perseguição repetitiva que leva, ao extremo, à recusa da própria realidade psíquica do sujeito ou da imagem que ele tem de si mesmo. Isso explica que a posição fóbica esteja no centro da organização psíquica, controlando, a cada circunstância, todas as vias que chegam a ela, assim como todas as que partem dela, porque o quadro que se formaria o obrigaria a aceitar sua raiva, sua inveja e, mais que tudo isso, sua destrutividade que o obrigaria a se ver no mais profundo desam56 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Conseqüências da Posição Fóbica Central Quais são os efeitos da posição fóbica central quando não é suficiente para conter os conflitos? – Já assinalamos a pouca nitidez do discurso, sinal de evitamento associativo mais do que de ataque aos vínculos que, para existir, pareceme sempre posterior a esse evitamento quando esse não conseguiu impedir que os vínculos se estabelecessem. Ele engendra no analista o sentimento de que uma confusão habita o analisando e que acaba, por sua vez, alcançando-o. – A projeção. Ela visa, nesse caso, a uma objetivação. Ocorre, de fato, que esses sujeitos – era o caso de Gabriel – se encontrem mergulhados em situações onde os terceiros se conduzem em relação a eles de maneira realmente hostil. Isso não impede o sujeito de utilizar psiquicamente essas maledicências verdadeiras para se cegar a respeito do lugar que elas tomam em sua realidade psíquica, servindo-lhe de tela de projeção. Da mesma maneira, a percepção de carências e de falhas nas pessoas próximas, por ser real, serve para manejar as auto-acusações, muito mais graves. – O masoquismo: os traços masoquistas infiltram o conjunto do quadro clínico: eles se ligam, ora a uma identificação ao objeto materno, ora a mecanismos de reparação ou, mais fundamentalmente, ao sentimento de culpa inconsciente, de uma profundidade insondável. Quanto ao sadismo, ele está menos relacionado com o prazer de fazer sofrer, do que com o desejo de domínio, como tentativa de controle vingativo sobre um objeto particularmente inalcansável, imprevisível, precário e evanescente. – A repetição submerge de novo e indefinidamente o sujeito nas mesmas situações, excedendo os meios do Ego para evitar recair nelas; ela desempenha um papel de insistência, de marcação, de descarga, de reasseguramento familiar, de auto-cegamento. – A provocação em relação ao objeto, a pseudo-agressividade masoSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 57 André Green paro como sujeito de uma onipotência só podendo se situar na transgressão, excedido por uma excitação sem fim. A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL quista visa a repetir a injustiça do outro, a suscitar o abandono do objeto para confirmar uma espécie de maldição inexorável. – O narcisismo ferido, consequência das humilhações do masoquismo. Os fracassos renovados e os abandonos repetidos, minam a auto-estima, desencadeando a depressão. – A recusa, enfim, que deve ser distinguida, sem dúvida, da negação, vimos que tomava a forma de uma recusa de reconhecimento de si, sobre a qual retornaremos mais em detalhe. Este conjunto constitui uma segunda linha de defesa, acionada inconscientemente pelo sujeito, quando a posição fóbica central é excedida, os afetos depressivos e angustiantes tornando-se preponderantes. Todas essas modalidades de funcionamento psíquico, quer pertençam ao regime erótico, narcísico ou destrutivo, têm como função proteger de uma sensação de abatimento que repete os traumas mais antigos. Gabriel me diz, ao falar de suas relações atuais com sua mãe, a quem ele não viu, desde o início de sua análise, e com quem ele não se comunicou, desde muitos meses: “Faço como se ela não existisse mais me dizendo: Agora estou tranquila”. “E, no entanto, não posso renunciar a evocar os raros momentos do passado em que ela era atenta, carinhosa, portanto e nem a esperar reencontrá-la assim”. Esta mãe, ornada de uma auréola frágil – ele pode evocá-la assim somente há muito pouco tempo, fazendo compreender à posteriori o que sua perda apagou. Ele não podia renunciar à expectativa da ressurreição dela. No entanto, esta esperança era contrariada pelo excesso potencial que poderia animá-la. Ele ficou aterrorizado, sobre o divã, quando se lembrou de um momento de intimidade com ela, em férias, na ausência de seu pai, quando ele tinha dez anos. Ele se lembrava dessas manhãs, no hotel da estação de esqui, onde levavam-lhes o café da manhã, na cama. “Lembro-me muito bem do chá e dos biscoitos”. Mas, a lembrança de se encontrar na mesma cama que ela, provocou-lhe o temor retrospectivo de que eles pudessem ter tido relações incestuosas, cuja reminiscência seria o retorno do reprimido. Aos três anos de idade, ele acompanhara sua mãe em uma viagem ao seu país de origem e fora acolhido em 58 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 O Sentido em Rede e as Irradiações Associativas Gabriel recebeu notícias alarmantes de sua mãe, através dos médicos dela. Ela tinha uma doença grave que tratara com desprezo e que obrigou seu filho a se ocupar dela, o que ele não pudera fazer, até então, devido a sua oposição. Foi ocasião de reencontros muito emocionantes que criou uma verdadeira reunião familiar em torno dela. Contrariamente a toda expectativa, sua mulher gostou muito de sua mãe com quem ela conseguiu se relacionar de maneira a surpreender seu filho. Ela acha esta mulher “excepcional”. Durante toda a hospitalização, a equipe do serviço ficou impressionada pela enorme oposição da enferma, sua recusa de se deixar cuidar e, sobretudo, sua anorexia que ameaçava precipitar seu fim. Gabriel fazia todos os esforços possíveis para trazer-lhe a comida que supostamente lhe agradaria. É preciso dizer que esta última hospitalização reavivara a lembrança de, anos após sua partida inesperada de casa, ter sido chamado por aquele que ele chamava de tio e que vinha a ser o antigo amante de sua mãe, tendo a ligação deles provocado o divórcio, sem que, por isto, ele tivesse deixado sua família para viver com a mãe de Gabriel. Este o fez vir Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 59 André Green sua família como um pequeno príncipe. Aqui, parecia que todo o ambiente familiar aplaudia o fato de ele estar só com sua mãe. Enquanto que em sua casa, eram só disputas continuadas e o sentimento de que o pai condenava sua proximidade com a mãe. Ele tinha a impressão de ler no olhar de sua mãe: “Tu e eu concordamos em considerar o pai um chato”. Mas, na maioria das vezes, ela o olhava sorrindo e nada dizia, com um ar cheio de subentendidos. Ele acabou admitindo que sua mãe o havia deixado, quando ele tinha quinze anos, porque ele tornava sua vida impossível, pressionando-a, de fato, a ir embora porque ele estava muitíssimo inquieto com sua tolerância exagerada em relação aos seus comportamentos transgressores, na época, se bem que ela mesma não fosse objeto de nenhum gesto deslocado. Há muitos anos, ele tinha vindo visitá-la, foi o último encontro deles. Era verão, ele usava sandálias. Ela disse-lhe: “Tu tens pés bonitos”. No dia seguinte, ele voltou precipitadamente para Paris. A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL com urgência para perto de sua mãe que ele descobriu em uma clínica, agonizante, “com tubos que saiam de toda parte”. Ele ficou perturbado com este espetáculo de catástrofe física e psíquica, pois havia manifestamente uma depressão associada. E eis que era como o retorno desse pesadelo que lembrava, de uma forma inversa, sua doença, depois do abcesso do seio. No divã, ele pôde experimentar afetos muito intensos e, pela primeira vez, expressar seu amor. Ele teria desejado, dizia ele, tomar para si todo o sofrimento, fantasia freqüente neste tipo de situação, mas que dava um novo sentido às manifestações anteriores de fusão. Parecia, no entanto, que todos os problemas levantados pelo corpo de sua mãe nas mãos dos médicos tinham revelado a recordação de suas próprias experiências corporais quando era ela quem exercia um controle sobre sua saúde. Lembrava-me dos trabalhos de Joyce McDougall que, descrevendo estruturas psíquicas diferentes, mas não sem relação, falava de “um corpo para dois”. Era por ocasião destes cuidados físicos na sua infância que se ativava uma angústia muito intensa de ver se confundir suas zonas erógenas, fazendo surgir o espectro de uma identificação que conduziria a uma identidade feminina que o apavorava, ainda mais que ela se produzia com uma vivência de intrusão que fazia pensar em uma verdadeira invasão que tomava progressivamente possessão dele. E isto ainda mais porque seu pai, que ele continuava a ver intermitentemente, suportava muito mal as manifestações da homossexualidade mais benigna, o que reduzia seus encontros a longos silêncios, ainda mais que a mãe de Gabriel os desaprovava e o responsabilizava por eles. Ao lado de sessões onde as mesmas queixas e as mesmas ladainhas se sucediam a respeito de sua mãe, houve outras sessões em que ele expressava sua surpresa em reencontrar uma mãe como há muito tempo ela não lhe parecia mais e, segundo suas próprias palavras, uma mãe como ele tinha sonhado que ela pudesse ser. Eu sentia que uma mudança ocorria nele, na medida em que ele podia admitir uma imagem menos fixa do que aquela que ele tinha apresentado durante a análise. No entanto, ele voltou longa e repetitivamente à anorexia de sua mãe e a sua impotência em fazê-la comer, quando ele era criança. Ele voltou a sentir, 60 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 61 André Green com grande emoção, a irritação profunda que isto lhe provocava. Uma observação reteve-me sem compreender o que ela significava. Mesmo no hospital onde ela estava e onde ele próprio trazia-lhe os alimentos que poderiam abrir-lhe o apetite, ele me disse que dava um jeito de não estar presente quando ela comia. Logo ele pôde evocar um período do passado do qual ele nunca tinha falado e em que sua mãe, saída de seu marasmo, tinha feito um curso e levado uma vida ativa durante um certo tempo antes de se deprimir gravemente de novo, devido a uma causa desconhecida. Além disso, Gabriel suportava mal ter de sofrer as conseqüências de algumas dificuldades presentes em seu ambiente e independentes dele, reagindo a situações objetivamente sofridas, realizando algumas clivagens, tentando distanciar-se pela recusa dos problemas que o cercavam, sem que ele tivesse algo a ver com isto. Concomitantemente, favorecido pelas conversas com sua mãe, ele voltou, na sessão, às lembranças de infância. Ela lembrou-lhe como eles viviam, em 25m2 que serviam também de oficina ao pai. Ele dormia numa cama de acampamento, na oficina, seu pai na cama da sala de estar e sua mãe em um canapé do qual não se podia dizer se estava no mesmo quarto em que o pai dormia ou naquele em que ele mesmo se deitava. A mãe tampouco foi capaz de dar esta precisão que era plena de consequências psíquicas. Ele mesmo tinha, obstinadamente, repetido nunca ter visto seus pais deitados juntos, a não ser uma manhã de Natal em que ele tinha recebido presentes. Pouco depois, retomando a anorexia de sua mãe, surgiu uma idéia: ele nunca conseguia evocá-la comendo, mas ele lembrava de uma certa circunstância em que ela bebia perto dele. Ao tomar sua taça de chá, ela emitia alguns ruídos com a garganta que lhe causavam uma irritação extrema. Ele quisera poder interromper os ruídos insuportáveis que seu corpo fazia. Eu sugeri que estes ruídos o forçavam a representar o interior do corpo de sua mãe, o que ele admitiu, mas sem que se seguisse uma verdadeira mudança. Na sessão seguinte, após ter evocado os problemas de seu filho e os projetos de separação e aqueles relativos ao seu futuro, dos quais me falava com uma reticência cheia de desconfiança, ele expressou o desejo de voltar à lembrança A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL de sua mãe bebendo chá. Tendo refletido sobre isto, ele se deu conta de que na língua de seus pais, dizia-se “um copo”: gluss (de chá), palavra cuja sonoridade evocava o verbo “glousser” (cacarejar). Ele próprio concluiu que era a idéia de um prazer dentro do corpo de sua mãe que lhe era intolerável e que teria desejado poder parar imediatamente. Vê-se como esta associação surgiu no contexto separação-aproximação, sustentada pela idéia de que o desejo da mãe era de dormir com ele. Depois, na sessão, ele aproximou sua raiva e sua irritação diante destes ruídos corporais, de raivas comparáveis à que sentia quando sua mãe saía à noite com uma amiga. Nós encontrávamos aqui a separação, mas com a implicação de um terceiro. A irritação quando ela bebia o chá, ao contrário, estava relacionada com a fantasia de uma mãe excitada em sua presença, como se se tratasse de uma sedução de sua parte, e expressando um desejo de reaproximação que ele vivenciava como incestuoso. Ele mesmo se identificava com esta excitação projetada que engendrava nele a raiva que ele atribuía a seu pai, mas com o resultado que a ausência do interdito materno fazia disto uma excitação destinada a apavorá-lo, sem encontrar solução. Eu o lembrava de que sua mãe o tinha feito passar por seu irmão e, acrescentou ele, por seu marido. De fato, ele admitiria depois que a mãe tinha ficado na relação irmãoirmã, e que bem podia ter sido ele que pensara que ela pudesse chegar até a dizer que ele era seu marido, alarmando-se com esse pensamento e atribuindo-o a ela. Mas o essencial não era a questão de sua fantasia, reconhecida como tal, mas a idéia do consentimento de sua mãe a uma tal possibilidade. É preciso observar este encontro de extremos, como se apatia, depressão, anorexia e insatisfação, reivindicações e queixas só encobrissem esta excitação, louca, mas tendo o poder de enlouquecer. Ele tinha visto seu pai louco de raiva, quando descobriu a traição de sua mulher. Como se a representação de um objeto demasiado ausente criasse em sua mente uma falta demasiada que despertava uma excitação sem resolução possível. Durante uma sessão em que eu tentava apresentar-lhe este quadro psíquico, ele respondeu-me “pulsão de morte” sem nada acrescentar. Depois ele me disse: “Eu de fato pensava sobre o que tinha lido a propósito dos alcoolistas, 62 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 63 André Green falando de um objeto interno insaciável e inconsolável”. Nós estávamos em duas linhas associativas, convergentes. Na saída dessa sessão, ele se disse: “Tenho um companheiro”. Tudo o que relato, tentando restituir o caminho associativo que vê reaparecer alguns temas centrais sobre séries associativas diferentes, e mesmo proceder a inversões, passou-se em algumas sessões. Tive de reagrupar o conjunto para esta exposição, mas é para melhor ilustrar este funcionamento em irradiação que pôde, enfim, ser observado, mas que pode ser tão rico que é preciso resignar-se a não poder dar uma imagem dele a não ser através de algumas amostras. É extremamente difícil restabelecer a integridade do funcionamento associativo nas sessões, pois em tais casos a própria mente do analista é solicitada, constantemente, pelo que chamarei reaproximações não estabilizadas, isto é, que não permitem à tomada de consciência perceber estes relatos, mas ele mesmo deve funcionar superando sua própria fobia de pensamento, isto é, sendo solicitado pela reverberação retroativa e pela antecipação anunciadora nas vias possíveis onde elas podem ser engajadas. Em minha experiência, é apenas nesta condição, a que permite ao paciente ver-se refletir um funcionamento psíquico que siga a mesma abordagem que a que eu descrevi para dar conta dos movimentos de pensamento na sessão, que o paciente pode transformar seus bloqueios e suas inibições, reconhecendo o que ele faz das forças psíquicas que o habitam, substituindo a destruição por uma circulação mais livre de seus afetos e de suas representações. Esta construção interpretativa só é possível se cada elemento, produzido como retorno do reprimido, conserva uma capacidade de ressonância sobre outros, da qual somente o sentido libera a chave. Do meu ponto de vista, não há outra saída para o surgimento da verdade a não ser a do tempo prévio da dissociação dos elementos conscientemente vividos e da busca de cooptação possível com outros elementos isolados, cujo agrupamento permitirá fazer aparecer suas condensações contraditórias: furor da separação, perigo da reaproximação, medo da volta sobre o sujeito, das projeções sexuais sobre o objeto, aparecendo sob uma forma tanto mais louca na medida em que elas são supostas de serem ainda mais impedidas no objeto A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL do que dentro do Ego. Tentativas permanentes para romper a continuidade e a tendência do fluxo associativo de formar uma visão mais completa da situação. Desenvolvimentos Metapsicológicos Como compreender metapsicologicamente o que a posição fóbica central revela nesses pacientes? Após ter avançado na elaboração de minha descrição clínica, folheando, ainda uma vez, para um trabalho diferente, “O homem dos lobos”, caí novamente sobre esta citação bem conhecida concernindo a castração, a propósito do que Lacan chamou forclusão. “Isto não implicava, na verdade, em julgamento sobre a questão da sua existência, pois era como se não existisse”. Isso também, como a frase de Gabriel, ressoou em mim: “Eu, à beira de um desmoronamento porque minha mãe nunca chega. Isto não existe em mim, não sou eu”. E também: “Minha mãe abandonou-me. Que mãe? Não tenho mais mãe. Ela não é mais. Ela não é”. Estas soluções colocam em evidência o paradoxo de uma culpabilidade que pede uma reparação interminável apesar de o sujeito se colocar em posição de vítima a quem se fez mais mal do que ele mesmo fez. A culpabilidade é a consequência do assassinato primário cujo objetivo é proceder a uma excorporação do objeto abandonador. Condutas auto-eróticas tentarão preencher o vazio deixado por esta evacuação: aditivas, alcóolicas, bulímicas, ou, ainda, à base de seduções compulsivas, tudo é bom para provar e se provar que o objeto é sempre substituível, portanto destrutível – o que, de maneira alguma, engana o Superego a quem o assassinato primário não escapou. Um outro paradoxo deste objeto cujo vestígio se manifesta pelo buraco de sua presença: esses pacientes “têm a cabeça cheia de vazio”, como o observaram outros autores (Khan). Eis, portanto, a característica desse objeto materno: ele só se apreende no vazio no qual ele deixa o sujeito e se, ao contrário, ele manifestar sua presença, seu fantasma ocupa todo o espaço, ele “enche a cabeça” como se diz. Ao assassinato primário do objeto, responderá, por ocasião de suas ressurreições, a idéia de uma potência paterna que só pode se inclinar, ao mesmo tempo que 64 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 65 André Green deplora que ela não possa livrá-lo deste aprisionamento fascinante. Que tipo de julgamento está em questão aqui? “A Negativa” apresenta-nos dois julgamentos: o de atribuição que decide sobre a propriedade que uma coisa possui e o de existência que, diante de uma representação, deve decidir se ela remete a uma coisa que existe na realidade. Nenhum dos dois se aplica ao nosso caso. Não podemos considerar que se trata somente de atribuir à coisa a qualidade boa ou má. O ato de suprimi-la testemunha que ela deve ser má mas, como assinalamos, o apego inabalável que a liga ao sujeito deve levar a pensar que ela é considerada como insubstituivelmente necessária. O que pensar de sua representação? Ela remete, sem dúvida, a um objeto que existe, a mãe, mas, por outro lado, esta representação a quer morta – não apenas pelo fato de haver desejo de morte, mas porque sua representação foi evacuada, declarada inexistente, morta, como pela sobrevinda de um luto instantâneo e cumprido imediatamente. O desaparecimento da representação na psique é retroativamente tão brutal quanto a de sua não-percepção no real. Esta situação é devida ao fato que o julgamento negativo de atribuição não visa, aqui, a reprimir– o que ainda é uma outra maneira de conservar – mas a apagar, a desenraizar do mundo interno. E, da mesma forma, o julgamento de existência negativo não se limita à relação com a realidade externa mas a um recurso onipotente que gostaria de se desfazer da realidade psíquica. Pode-se observar, do ponto de vista desta realidade psíquica singular, que quando o paciente é atraído por alguma coisa a qual ele poderia aspirar, ele parece raramente formar uma fantasia de desejo que permitiria conhecer sua posição subjetiva. Ele fantasia menos do que ele faz advir a coisa como já realizada; realizada não no sentido de uma realização do sujeito, mas de um acontecimento na realidade que o coloca, não na posição daquele que deseja, mas daquele que já agiu. Dito de outra maneira, este deveria pedir uma sanção, não por ter desejado o que ele não deveria, mas por ter transgredido em ato. O Superego, aqui, não desempenha o papel que Freud lhe atribui, o herdeiro do complexo de Édipo; ele promulga uma punição que é aquela mesma que significa a transgressão. Assim, a obstinação em ser o possuidor da A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL mãe, que encontra sua sanção na loucura, cumpre a separação mas às custas da segregação e do exílio, confinando-o a permanecer entre os que nunca terão aceito se separar da mãe, segundo sua interpretação desta doença. Pode-se falar de uma recusa da realidade psíquica, na medida em que tais pacientes só podem conceber seu mundo interno como formatado pelas ações e pelas reações dos outros com respeito a eles, toda demanda de reconhecimento de sua parte, só podendo conduzir ao desvendamento, sempre percebido como uma conseqüência da maneira como era o comportamento em relação a eles, de uma raiva destrutiva ou de uma sexualidade transgressora com relação aos seus objetos primários, interpretados pelos outros como sinal de loucura que deve, necessariamente, levar ao seu afastamento. O paradoxo é que a posição fóbica central deveria velar para que não aparecesse o que se poderia adivinhar de tudo isto e, ao mesmo tempo, reproduziria esta situação temida, ele mesmo agindo assim com respeito às suas próprias produções psíquicas que não podiam encontrar acesso a sua própria consciência. Pode-se dizer que ele os violentava, considerando que os elos que se formavam em sua mente deveriam sofrer uma exclusão que interditava sua inserção em contextos mais extensos, necessários a uma atividade de pensamento. Negar é, neste caso, suprimir o que, em sua percepção, atenta contra a existência do sujeito: para continuar a ser, é preciso que o objeto que não está ali, deixe de existir, sem preocupação, com as conseqüências de sua perda. E se a ameaça contra o ser consegue retornar, rompendo a barreira das defesas, é preciso, então, que seja retirado o investimento dos vestígios que ele terá deixado. A forclusão com a qual ele o conota, que se continuará com a recusa desta parte do psiquismo subjetivo, terá, apesar de tudo, sobrevivido, contestando que é este Ego ferido do passado que retorna para perseguir o Ego precário do presente. Também, é preciso sempre fugir do olhar daquele que pode perceber no olhar do sujeito os vestígios de uma mãe que reduz à impotência porque ela não é mais que um fantasma de objeto ou uma fonte de excitação, sem que algum desejo lhe dê sentido. Em seu artigo sobre a Negativa, Freud escreve: “Assim, originalmen66 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 2. S. Freud, Résultats, idées, problèmes, t.II, p.137. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 67 André Green te, a mera existência da representação é já uma garantia da realidade daquilo que era representado”2. Precisaria poder dizer no caso que ora falamos: a inexistência da representação, sua supressão, é uma garantia da não-realidade do que foi forcluído, como se a não representação do objeto fosse suficiente para se livrar da ameaça que ele exerce. Se for necessário, é o próprio sujeito que se excluirá para evitar o novo assassinato que sugere o reaparecimento do objeto que foi morto. Assim, ele terá ao menos suprimido a dor que ameaça voltar, ligada ao investimento primeiro, original, basal, primordial. Ficará uma aparência de sujeito que permanecerá à mercê dos mortos e das ressurreições do objeto. Retornemos, portanto, um momento à forclusão: o que Freud descreve concerne a sessão de análise e o que é ali relatado se relaciona não somente ao que ocorreu na infância mas ao que ressurgiu dela. Deduzo disto que a forclusão se cumpre quando do retorno da experiência que permite inferi-la à posteriori, portanto, na retrospecção. A forclusão, como a posição fóbica central, pertence ao processo analítico. Ela bloqueia a generatividade associativa que permite o desenvolvimento da causalidade psíquica. Vive-se demasiado freqüentemente com a idéia de que a importância dos conflitos pré-genitais poderiam nos levar a considerar negligenciável o Complexo de Édipo. É, ao mesmo tempo, verdadeiro dizer que o Complexo de Édipo não consegue, neste caso, organizar de maneira central a personalidade e verdadeiro, também, levantar-se contra a idéia de que se poderia considerá-lo negligenciável. Por exemplo, poder-se-á observar que a angústia de castração está muito presente e que não se poderia reduzi-la à forma superficial de um conflito mais profundo do qual ela seria apenas uma falsa aparência. Por outro lado, não se pode falar de um complexo de castração. Vimos, ao longo deste texto, que o pai pode suscitar a fantasia de ter, por assim dizer, sequestrado a mãe. E, no entanto, o sujeito adulto nunca aceita as tentativas maternas de afastar a criança do pai. Que este último incarne os interditos, isto está bem presente. Sua importância é re- A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL conhecida e seus esforços para favorecer a individuação são objeto de gratidão. Resta que os sentimentos de hostilidade que pertencem ao contexto edípico são aqui vivenciados, menos como a criança em rivalidade com o pai, que como o desejo da mãe de excluí-lo para fora do mundo psíquico, – tentativa que, mais tarde, será objeto de dolorosos arrependimentos –, para estar em situação de consonância afetiva com a mãe. Mesmo quando o sujeito conseguir uma reconciliação com o pai, que ele prezará cuidadosamente, esta não poderá ajudá-lo a compreender melhor a relação com a mãe. Ao lado do pai edípico, guardião da Lei, respeitoso da linhagem ancestral, existe um outro pai. Aquele que, dentro da própria psique, tem a função de reconhecer as astúcias do pensamento, o desvio da verdade, o jogo dos deslocamentos porque ele os traz para si mesmo, genitor de um pensamento em busca de sua verdade, aquela que conhece a relatividade dos interditos, seu caráter inconstante, variável, discutível, colocando-o a serviço de sua crítica e de sua contestação, mas que se faz o arauto de seu reconhecimento, assim como de sua falibilidade. Tal é a compensação de não ter podido se inscrever no psiquismo infantil com o inegável poder de participar na construção de um universo mental, engajando nele todas as formas da intimidade mais profunda, aquela dos corpos dialogando. Ficamos impressionados, em relação a esses pacientes, diante de momentos críticos que eles atravessam, com a simplicidade das situações causais – decepções, abandonos, traumas afetivos, feridas narcísicas – e a dissimulação diante dos conteúdos e dos afetos mobilizados, mesmo quando estes parecem “naturais” e, enfim, a extrema complicação dos processos psíquicos e das modalidades do trabalho do negativo. Quanto mais claro, mais deve ser mascarado, mais deve parecer incompreensível. De fato, esses pacientes sabem que a análise é o único lugar onde eles podem expressar sua loucura e vivê-la sem temor de rejeições demasiado graves. Além da recusa, da enérgica tentativa de não reconhecer o que encobre este fundo antigo que emerge, periodicamente, à superfície, além dos combates que esses pacientes travam na transferência contra o reconhecimento da verdade e onde todos os meios são válidos: esquecimentos, 68 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Post Scriptum Desde sua primeira apresentação, este trabalho foi objeto de adições, à medida que a psicanálise do paciente foi evoluindo. Antes de encerrá-lo definitivamente, gostaria de fazer algumas observações finais. O tratamento de Gabriel seguiu um curso que mostra que ele não cessava de melhorar. Ele pôde enfim “reencontrar” sua mãe e encontrá-la, não somente como ela era em sua lembrança, mas como ele sempre quis vê-la e como ele percebeu que ela também tinha sido. De agora em diante, posso dizer que a imago materna, com a ajuda da transferência, foi verdadeiramente internalizada, sem idealização excessiva mas com um pleno reconhecimento dos aspectos positivos que ela lhe havia transmitido (particularmente na sublimação). O luto se desenrolou da maneira mais comum. Outros sinais da virada no caminho da cura apareceram. Gabriel deu provas de sua capacidade de enfrentar e de ultrapassar, com sucesso, situações diante das quais ele até então recuara. Aconteceu-lhe de me dizer não somente que ele estava feliz com seus feitos, mas, o que me parece não menos importante, que ele se sente agora um homem “quase” livre. Quem, portanto, o é totalmente? Palavras-chave Associação livre; Destrutividade; Recusa da realidade psíquica; Forclusão; Alucinação negativa; Fobia; Trabalho do negativo. Key-words Free association; Destructiveness; It refuses of the psychic realid; Foreclosure; Negative hallucination; Phobia; Work of the negative. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 69 André Green contradições, culpabilização do analista, desmentida, distorções do raciocínio, a transferência permanece positiva pois devem à análise terem ficado sãos, senão salvos. Freud nos lembrou: ninguém pode escapar de si mesmo. A POSIÇÃO FÓBICA CENTRAL Palavras-llave Asociación libre; Destructividad; Rehusa de la realidad psíquica; Forclusión; Alucinación negativa; Fobia; Trabajo del negativo. Artigo Copyright PUF Trabalho publicado na Revue Française de Psychanalise, 2000, Tome LXIV-3, pp.743-773 Tradução do original francês: Dra. Ester Malque Litvin Revisão da tradução: Dra. Cynara Cezar Kopittke André Green 9 avenue de l’Observatoire 75006 Paris – França E-mail: [email protected] 70 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Introdução Carlos Doin Membro Efetivo Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro O presente trabalho se inspira em idéias destacadas no pensamento de Winnicott: permanência e transmutação, integração seletiva, saltos qualitativos e propriedades emergentes. Já o título anuncia um conceito geminado, o de Neurociência (que lida com a relação corpo-mente, especificamente, a da Neurologia com a Psicologia) e o de Psicologia Cognitiva (que se ocupa do processamento de informações carregadas de importância vital, de todos os tipos e procedências, do mundo externo, do corpo e da própria mente). Atual e transicional celebram a contemporaneidade e a coerência Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 71 Carlos Doin Winnicott e Neurociência Cognitiva: Atual e Transicional WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL de Winnicott com suas idéias, a continuidade em aberto e a criatividade fecunda do que ensinou e praticou. Mas atual também remete à distinção que Pierre Lévy (1995) aproveitou de uma garimpagem de Gilles Deleuze na herança de Aristóteles: potencial em oposição a real; virtual em relação antitética-dialética com atual. Esse agrupamento de quatro modos de ser que se antagonizam e complementam, se aproxima bastante das relações entre o objeto real e o transicional, na visão de Winnicott, bem como da criatividade inovadora, não predeterminada, imprevista, transicional. Conforme Lévy (1995), no estágio potencial algo se encontra no limbo, pronto para se manifestar sem nenhuma modificação, para se realizar tal como já está em latência. Por exemplo, um programa gravado na memória de um computador. Pelo contrário, no virtual nada existe prédeterminado, completo; o que há é um conjunto de tendências, forças, disposições, complexos problemáticos, tensões em busca de soluções imprevistas, através de atualizações com características originais, idéias dispostas em configurações novas, criações inéditas. Por exemplo, a memória humana, cujos registros não se repetem como reproduções fiéis exatas, em fac-símile, mas se atualizam de maneiras diferentes, em novo contexto e para um interlocutor novo. É curioso conjeturar que Winnicott haja adotado, intuitivamente, uma postura transicional-virtualizante, quando entendeu a dinâmica transicional-virtual do objeto transicional, do brincar, e suas repercussões de amplo alcance existencial, psíquico e cultural. Teve um descortino de gênio ao lançar uma mirada diferente sobre situações tidas e havidas como banais, aquela coisa ou brinquedo favorito que se tornou indispensável para fazer o bebê dormir, a brincadeira infantil que é “de verdade, sim, mas só de mentirinha”. Como na dinâmica aberta da transicionalidade, a dialética virtualidade-atualização-revirtualização não cessa em seu processo contínuo de repetição inovadora. Nós é que precisamos interromper essa introdução conceitual, para retomá-la, depois, a respeito de alguns temas da Neurociência Cognitiva. 72 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 73 Carlos Doin Pertence igualmente ao espírito transicional de Winnicott alargar as fronteiras das ciências, promover o progresso dos conhecimentos nas interfaces das disciplinas. Assim se explica, em boa parte, o crescente interesse por suas obras, no bojo das crises desta virada de século, destacadamente a da Epistemologia e a da Epistemologia Psicanalítica. Numerosos autores se convenceram de que uma defesa cabal da Psicanálise consiste em reforçar seu estatuto científico, após a desilusão com os ideais racionalistas do positivismo, que inspiraram os pioneiros da Psicanálise, e do beco sem saída do relativismo radical, do ceticismo e do nihilismo pós-moderno, de que muitos psicanalistas também não escaparam. Vem, então, ocorrendo um renascer dos valores antigos, temperado pelo reconhecimento da complexidade dos fenômenos e dos determinismos, da incerteza e pluralidade das teorias – animado, contudo, de uma mentalidade mais pragmática, na busca de verdades falibilistas, provisórias, colocadas com critério e cautela, no intuito de que sirvam de ferramentas heurísticas e hipóteses de trabalho. Neste terreno propício, é natural que estejam vicejando tantas contribuições de Winnicott, como a que assinala a condição transicional dos conhecimentos, teorias e métodos, e as que favorecem a atual posição epistemológica complementar da Psicanálise como ciência natural e como ciência humanística hermenêutica. A Psicanálise sempre freqüentou, durante todo o seu percurso histórico, diversas áreas culturais vizinhas, ocasionando, em geral, intercâmbios com ganhos mútuos. Desde Freud, e em movimentos oscilantes, tem-se tentado correlacionar os funcionamentos psíquicos com os somáticos, especialmente os do sistema nervoso central, na vertente epistemológica da Psicanálise como ciência natural. O empenho interdisciplinar nessa direção vem se acentuando, ultimamente, em grande parte devido aos avanços da Neurociência Cognitiva, às técnicas de produção de neuro-imagens, como a da tomografia com emissão de pósitrons (PET) e a da ressonância magnética funcional (fMRI). Com tais aportes estão se confirmando diversas formulações teóricas e técnicas da Psicanálise, outras sendo revistas, WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL contestadas ou complementadas. Winnicott, com realce, tem sido um dos autores mais referendados pelos novos conhecimentos, como tentarei ilustrar nos tópicos seguintes, retomando algumas reflexões que apresentei recentemente (2000 b), acrescentando outras. Continuum Corpo-mente Os avanços da Neurociência têm reforçado, substancialmente, as evidências a favor da tese unicista somatopsíquica, do continuum corpo-mente (Damasio, A. e Damasio, H. in Llinás, R. e Churchland, P., 1996). Se os instrumentos tecnológicos de ponta não conseguem “filmar” o curso do pensamento, permitem, sem dúvida, correlacionar, ao vivo, o que está se processando no cérebro com o que se passa na mente e registrar padrões regulares, bastante típicos, relativos ao funcionamento concomitante neuronal e psíquico. Ao lado disso, vem se robustecendo, entre os autores da Neurociência Cognitiva afinada com a Psicanálise, a compreensão da continuidade e funcionalidade dos processos vitais, na filogênese e na ontogênese, através da evolução, conservação e aperfeiçoamento articulado de estruturas biológicas e, depois, também mentais, a serviço da perpetuação e melhoramento das formas e dispositivos de vida, em todas as suas manifestações, da sobrevivência seletiva dos mais aptos na integração adequada aos meios físicos, biológicos e sociais. As palavras de Antonio Damasio (1999) se inserem na mesma ordem de pensamento: “(...) considero os padrões neurais como precursores das entidades biológicas que chamo de imagens [imagens ou padrões mentais]. Mantenho dois níveis de descrição, um para a mente, um para o cérebro. Essa separação (...) não resulta em dualismo. (...) Mantendo níveis separados de descrição, não estou sugerindo duas substâncias distintas, uma mental e outra biológica. Estou apenas reconhecendo a mente como um processo biológico de alto nível, que requer e merece uma descrição própria por causa da natureza particular de sua aparência e porque essa aparência é a realidade fundamental que desejamos explicar” 1. 1. A tradução é do autor. 74 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 75 Carlos Doin Creio que podemos considerar vários níveis de virtualização e transicionalidade inovadoras, como na progressão do sistema nervoso préhumano, para o humano; das estruturas neuronais encefálicas, para formas iniciais de consciência e representação de si mesmo, até o psiquismo humano mais refinado – aquele que se associa ao self autobiográfico e à consciência ampliada (Damasio, A., 1994) –, dependente da integração de todos os dispositivos anatomo-fisiológicos anteriores, mas também e especialmente do córtex cerebral pré-frontal, culminância da linha evolutiva de que somos beneficiários. Gerald Edelman (1987, 1999), participa de visões semelhantes: o sistema nervoso e o psiquismo, que surge dele, constituem um elo importante na cadeia evolutiva. O meio e a biografia individual se inscrevem nas próprias redes neurais, anatômica e fisiologicamente. Em outras palavras: os neurônios do cérebro se interligam em circuitos extremamente complexos, através de bilhões de ramificações e sinapses que vão se desenvolvendo, fortalecendo ou morrendo, numa intensa competição em que predominam as que se mostram mais flexíveis e adequadas aos propósitos da vida, nas circunstâncias ambientais daquele pessoa. Pode-se assim dizer que o mundo humano, biológico e físico se inscrevem na neuromente individual, já na própria trama de circuitos neuronais, que o de fora em parte se interioriza, condicionando, em diferentes graus, todas as características somato-psíquico-sociais daquele ser em particular. Há um escalonamento de funções e prioridades vitais. As mais básicas e indispensáveis são, também, as mais antigas na evolução das espécies e dependem de estruturas encefálicas que herdamos, por via genética, de formas biológicas remotas, notadamente a partir dos répteis – lagartos e dinossauros; elas perduram porque se mostraram bem sucedidas na preservação da vida em todos os seus níveis, desde a manutenção da homeostase do meio interno (regulação do metabolismo energético, da bioquímica do sangue, da respiração, digestão, etc.), até equilíbrio dinâmico dos relacionamentos com o meio externo, físico, biológico e humano; em nosso caso, graças ainda a fortes determinismos para a maternagem, apego, filiação, WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL auto-afirmação, competição e luta, solidariedade e colaboração, sexualidade e reprodução, curiosidade, descoberta e criatividade, além de outros. Pensa-se, atualmente, que toda a vida psíquica, inclusive a vivência de um eu individualizado, ou self, se baseie em experiências muito primitivas de unidade e continuidade daquilo que se passa dentro de um mesmo organismo, no equilíbrio de sistemas integrados, biológicos e relacionais, formando um todo que se conserva, se regenera, se reorganiza e autocura, se modifica e evolui, numa faixa mais ou menos regular e constante de desempenhos registrados como bons. Esses tendem a se repetir, por força, inclusive, de dispositivos que premiam a realização do que é melhor para a vida com uma quota de prazer, basicamente garantida por mecanismos neuro-hormonais, a cargo do hipotálamo, do tronco cerebral e de outras estruturas, à qual se juntam, gradativamente, emoções, sentimentos, pensamentos gratificantes, ligados a setores mais evoluídos, principalmente, do neocórtex. Quer dizer, os valores de base permanecem, ao lado de outros que se refinam como valores e atividades apreciadas no campo cultural, ético, estético, filosófico. No entanto, pelo conservadorismo das homeostases biopsiquicorrelacionais, tendem a se perpetuar as estratégias que tiveram sucesso vital, mesmo quando ultrapassadas e inconvenientes em contextos novos e sob outros aspectos. Caberia, aqui, uma reflexão à moda winnicottiana sobre tudo o que foi dito, mas eu ofereço a oportunidade, como objeto transicional, aos que gostam de brincar com idéias e informações. Só à guisa de lembrete – são inúmeros os níveis de atualização evolutiva de disposições virtuais ou transicionais lato sensu, por exemplo, o movimento que vai de um conjunto de espécies biológicas para uma espécie determinada; o da espécie a que pertence o indivíduo, do seu genoma, para a expressão fenotípica do seu ser somatopsíquico singular, em função das dotações constitucionais em interação com o meio ambiental (Pally, 1997a). O grande enigma para o pensamento filosófico-científico continua sendo a passagem do nível corporal para as vivências psíquicas. Como é que as configurações, os mapas, imagens ou padrões neurais, chegando ao córtex cerebral, dão origem ao 76 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Importância da Maternagem Primária Com tudo o que foi dito no item anterior, confirmam-se e especificam-se as observações e intuições clínicas de argutos psicanalistas, como Winnicott, Bion, Bowlby e diversos outros, sobre as funções essenciais da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 77 Carlos Doin salto qualitativo, transicional, à qualidade emergente composta de sentimentos, representações e idéias, à vida mental e ao mundo cultural? Considerando os enfoques de Pierre Lévy, a vida, em todas as suas manifestações, consiste em uma seqüência interminável de soluções que se virtualizam e de disposições virtuais que se atualizam. Neste sentido, a própria vida é fenômeno transicional. A relevância do entrosamento indivíduo-ambiente, tema central em Winnicott, encontra respaldo decisivo na Neurociência Cognitiva, como vimos. O corpo e a mente não se adaptam ao meio do modo como amiúde se diz, fazendo supor que eles existissem anteriormente de alguma outra maneira e que, só depois, se ajustassem ao mundo. Não: o corpo e a mente dum indivíduo vão sendo moldados, desde o seu início, por e para seu mundo físico, biológico e humano, para esse em particular, para o seu habitat, com essa mãe e não outra, no caso humano em especial, com essa cultura, esse idioma, esse clima, esse pedaço do sistema gea, digamos assim. Em resumo: não há um bebê anterior à sua mãe e ao seu mundo. Seus recursos genéticos e biológicos já resultam de gerações que se formaram, sobreviveram e se reproduziram com razoável sucesso, em seus respectivos mundos. A partir daí, de determinações ancestrais e circunstanciais, a notável capacidade humana de se modificar vai se realizando com alguma liberdade, presa, ainda, a valores, limites e imposições de várias ordens. Haverá sempre uma luta entre obedecer e transgredir tais determinações, sendo que a própria capacidade de tentar romper barreiras também é parcialmente pré-determinada pela evolução filogenética e ontogenética – um ímpeto para ir adiante, uma boa chance para dar certo, programas que partem da própria Biologia. Meu estudo sobre Psicanálise e utopia (2000a) inclui essa idéia, a propósito das disposições para o progresso. WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL boa maternagem, exercida pela mãe ou quem a substitua, desde os princípios da vida do ser humano, para que ele se crie e mantenha em funcionamento normal. O padrão evolutivo, acima delineado, dá margem a incontáveis variações, mais ou menos normais ou patológicas, que respeitam os mesmos valores básicos, inicialmente biológicos, destinados a privilegiar o que é habitual, útil e agradável do ponto de vista da vida em convívio com aquela mãe, com aquele meio ambiental. Tais modalidades tendem a se perpetuar, mesmo quando se tornam inadequadas em outras circunstâncias existenciais. É o que se verifica, por exemplo, na absurda manutenção de funcionamentos limítrofes ou borderline, equilibrados “em cima do muro”; na perseveração psicótica ou perversa daqueles pacientes que repetem obstinadamente estratégias deturpadas de “salvação”, ou “garantia de vida”, as quais começaram a se estruturar bem cedo na infância e são conservadas por terem se mostrado, e continuarem a ser sentidas, como prazerosas e convenientes. Seus portadores podem até criticá-las, no raciocínio consciente, sem abandoná-las. Estando alertado para as dificuldades desses casos, o analista se sentirá mais disposto a investir esperança por mais tempo, sem se sentir derrotado, como, por exemplo, nas análises de pacientes que nasceram de gravidezes difíceis, não desejadas, que sobreviveram a tentativas de abortamento. É provável que o corpo e a mente da mãe tenham transmitido mensagens de expulsão, inclusive por vias bioquímicas. E que o feto tenha tido que se adaptar biologicamente a seu primeiro mundo hostil, a um “anti-holding intra-uterino”, conformando seus sistemas neuro-hormonais às imposições desse meio, onde, sem dúvida, chovia muito mais “rejeitina” do que “acolhina”. Creio não estar me afastando demasiado de uma linha traçada por Winnicott (1965) acerca das provisões fisiológicas no estado pré-natal, para compreender a patologia de diversos pacientes. Alguns chegarão para análise como personalidades narcísicas patológicas, limítrofes, perversas, esquizóides, depressivas etc., reincidentes em condutas desastrosas, relações pessoais eletivamente infelizes, os quais se empenham em forçar o 78 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 79 Carlos Doin analista a se ajustar aos seus funcionamentos aberrantes, através de um jogo imperioso de identificações projetivas e atuações diversas. O terapeuta lidará melhor com os assédios a seu equilíbrio se tiver boa noção do que ocorre com tais pacientes. São sobreviventes de uma guerra primeva, dentro de um útero belicoso; custam a se afeiçoar a um mundo novo, mais pacífico e normal, e insistem em remontar o seu habitat original. Parafraseando outra formulação de Winnicott (1965): não foram feitos em e para um meio facilitador. Além de confirmar a importância primordial da maternagem, a Neurociência Cognitiva acrescenta outros conhecimentos sobre a constituição neuromental do indivíduo nas fases iniciais de imaturidade, onde a mãe é absolutamente indispensável como molde de normalidade evolutiva e de moduladora de estímulos e emoções. O fato de que as funções neuromentais se instalam em tempos diferentes elucida certas observações clínicas. Por exemplo, a amídala encefálica, estrutura importante nos processos vinculados ao medo e à angústia, funciona plenamente desde o nascimento (Pally, 1998); além de outras tarefas, ela está programada para acionar uma reação de alarme diante de indícios de perigos naturais para a espécie, raios e trovões, cobras, etc., mesmo que o pânico não corresponda a ameaças reais. Tal verificação está a cargo do hipocampo e do córtex cerebral, que só funcionam, satisfatoriamente, bem mais tarde. Além disso, há vias anatômicas mais numerosas da amídala para o córtex tranqüilizador, do que no sentido oposto. Parece que a evolução privilegiou, como estratégia de sobrevivência, um alarme exagerado, como se mais valesse um apavorado vivo, que um descansado morto. No entanto, o medo continuado, a angústia mantida, provocam atrofia dos mecanismos de tranqüilização, mesmo em filhotes de animais de laboratório, privados de mãe. A função tranqüilizante da maternagem está sendo comprovada também em termos bioquímicos (Horton, P.C. et al., 1988). Um cuidado: é sempre preciso dar um desconto à linguagem metafórica, antropomórfica, utilizada na descrição desses fenômenos, e frisar que o funcionamento das estruturas neuromentais deve ser entendido como um conjunto mais ou WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL menos harmônico e integrado dos diversos componentes, embora alguns se destaquem em determinadas atividades. Comunicação em Todos os Níveis A sobrevivência e o desenvolvimento normal da criança dependem necessariamente da capacidade materna de entender o que se passa com ela, desde os primeiros momentos de vida. Aqui a Neurociência Cognitiva vem ao encontro, mais uma vez, do que os psicanalistas conheciam há muito tempo (Masi, 2000; Migone e Liotti, 1998). Winnicott merece destaque especial no que se refere à comunicação holística nas relações mãebebê, analista-analisando e no convívio das pessoas em geral; o clima transicional e compartilhado propicia a compreensão mútua que não se prende à comunicação verbal, mas transcorre por vias paraverbais, extraverbais, gestuais, comportamentais, além de outras mais sutis, talvez do tipo chamado telepático, na falta de uma explicação e denominação melhor (Doin, 1983). Parece que as hipóteses de Freud sobre a comunicação através de ondas, ou de Inconsciente a Inconsciente, ou a transferência de pensamentos (l933-1932) podem encontrar algum apoio no que agora se sabe sobre o funcionamento neurológico e mental. A percepção de imagens resulta da sincronia e sintonia de disparos elétricos em grupos de neurônios corticais ativados por estímulos sensoriais, provindos do mesmo objeto (Pally, 1997b). Quer dizer, além da comunicação direta através dos neurônios, neurotransmissores e hormônios, existe outra, indireta, à distância, motivada pela simultaneidade e igualdade de freqüência de descargas elétricas, mesmo quando se passa entre os dois hemisférios cerebrais. Parece, então, possível conjeturar que algo semelhante se verifique de um cérebro para outro. Considerando que o hemisfério cerebral direito se desenvolve mais rápido do que o esquerdo (Pally, 1998b), a comunicação não verbal predomina no primeiro ano e continua como recurso básico durante a vida inteira, especialmente na transmissão e recepção de mensagens guestálticas, mais afetivas, intuitivas, musicais, conjunturais. Nossa cultura funciona 80 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Verdadeiro e Falso Self Do que ficou exposto se depreende que a constituição do senso de eu ou self, tarefa interminável de cada pessoa, se processa sobre um substrato corporal e, em seguida, corporal-mental, a partir de vivências crescentemente mais complexas, integradas e diversificadas. Vão se organizando representações de si mesmo, ou self, sempre articuladas a de outros. Em decorrência de funções mentais mais evoluídas, tais concepções de si próprio se acompanham de outras, mais elaboradas intelectualmente – umas se mantêm bem próximas das vivências pessoais fundamentais, outras procuram absolutizar a existência do indivíduo, enquanto outras pretendem retirar do self toda a sua consistência e transformá-lo em ficção ou ilusão, renegando a substancialidade fundamental do sujeito da interioridade somatopsíquica. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 81 Carlos Doin predominantemente de acordo com a lógica aristotélica, em que predomina o pensamento verbal, analítico, conceitual, discursivo, racional, correspondente a funções atribuídas ao hemisfério esquerdo; e tende a abafar as do hemisfério direito, vinculadas à criatividade, à originalidade artística, à intuição, aos segundos significados. Creio que a comunicação transicional no sentido winnicottiano, válida para todos os diálogos afetivo-cognitivos bem entrosados, bem como a atenção flutuante e a livre associação recomendadas na situação analítica, passem pela revalorização das atividades do hemisfério direito. Wilma Bucci (1997) propôs um método de análise psicolingüística de conversações e de textos, inclusive das falas nas sessões psicanalíticas, tomando por base os três códigos de comunicação: subsimbólico pré-verbal (sensações, emoções, sentimentos), simbólico pré-verbal (imagens) e simbólico verbal. Eles correspondem a níveis diferentes da evolução neuromental e continuam funcionando mais ou menos integradamente, durante toda a vida. Seu modelo é compatível com o dos referenciais que mencionamos antes e com a comunicação abrangente, conceituada por Winnicott.. WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL Ao estudar o psiquismo primitivo em desenvolvimento, Winnicott (1958) estabeleceu noções que encontram respaldo na Neurociência Cognitiva afinada como a Psicanálise sobre as bases senso-emocionais da representação de eu, o sentimento de existir em continuidade, o prazer de viver em harmonia e individualização crescentes, com aquela mãe, naquele mundo, onde se sente bem e bom, dentro duma faixa de segurança suficientemente garantida. Claro que, de início, nada é assim pensado, muito menos dito, mas vivido e sentido de imediato, como natural e verdadeiro, numa imanência que é também transcendência vital de algo de dentro que também vem de fora. A linguagem do paradoxo, tipicamente winnicottiana, procura dar conta dum sujeito que se configura como peculiarmente essencial e transicional, uno e múltiplo, em transformações constantes; como unidade em continuidade que se origina na filogênese e na ontogênese somatopsíquica, que é singular mas precisa ter sua integração e especificidade promovida, confirmada e completada pelo meio ambiental humano e físico, num jogo interativo interminável Dentro de uma faixa considerada normal para aquele indivíduo, naquela cultura, se estabelece um verdadeiro self suficientemente verdadeiro, para utilizar a afortunada expressão pragmática de Winnicott. Diga-se de passagem que mais um dos motivos do sucesso permanente de Winnicott (acentuado no pensamento pragmático pós-moderno e condizente com as linhas da Neurociência Cognitiva aqui esboçadas), consiste na sua valorização das condições reais da existência, daquilo que efetivamente funciona na vida cotidiana das pessoas e grupos, como seja a mãe suficientemente boa, capaz de promover o desenvolvimento suficientemente normal da individualidade suficientemente verdadeira daquela criança singular. Penso que Winnicott, não se pretendendo como filósofo de profissão, intuiu que, afinal, pragmática é a vida, pois que a vida é feita pela vida e para a vida, e não para as construções intelectuais dos sábios. Quando não se conseguem tais condições de suficiência, ocorre um falso self, com características e gradações próprias, em cada caso. O padrão geral de evolução, descrito até aqui, supõe a formação normal de uma 82 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Percepção, Memória, Mundo Interno e Virtualização A percepção não espelha fielmente o mundo, nem a memória resgata o passado como ocorrido. (Pally, 1997c). A Neurociência Cognitiva vem confirmar, com outros argumentos, essas noções nada novas. A estruturação e o funcionamento das redes de neurônios, base orgânica do psiquismo, sua complexidade conectiva, plasticidade, redundância, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 83 Carlos Doin individualidade inteira, mas como sabemos, os processos de não integração ou de dissociação são bastante freqüentes. A normalidade também se situa numa faixa de variações comedidas. Há momentos e graus de falso self na maioria de pessoas, conforme os winnicottianos descrevem. À luz da Neurociência Cognitiva se pode pensar que a maternagem insatisfatória tenha impedido o desenvolvimento mais conveniente daquele indivíduo, a partir da própria expressão fenotípica do seu genoma, forçando direções e cronologias que, embora possíveis em função da plasticidade dos processos vitais, acarretam prejuízos mais ou menos desastrosos ao que seria mais autêntico e endogenamente mais natural para aquele ser em particular; isso ocorre, por exemplo, quando a mãe exige prematuramente o controle do medo, antes que os dispositivos neuromentais ligados ao hipocampo e ao córtex cerebral estejam suficientemente amadurecidos. Considero indispensável a conceituação de falso self inicial de Winnicott, aquele que se instala precocemente por falha da maternagem primária. O dano que aí se produz é incomparavelmente maior, por lesar as próprias bases anatomofisiológicas somatopsíquicas, como se procurou explicar acima. Mesmo que a plasticidade desses processos permita alguma correção posterior, ela dificilmente será completa, dada a inclinação conservadora dessas estruturas, tendentes a perpetuar os dispositivos e programas originários, os “defeitos de fábrica”. Quanto a outras conceituações de falso falso, em que pese toda a sua eventual serventia, creio que não deveriam obscurecer a especificidade e a gravidade do falso self primitivo, o verdadeiro falso self, como já foi denominado, em oposição aos posteriores, ditos falsos falsos selves. WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL alternância e suplência permitem compreender a inviabilidade de uma imagem única para um objeto, ou de uma só versão para um fato. Nossa mente, como detentora de disposições virtuais, cria representações e soluções imprevistas, alternantes, ambíguas, a serem discriminadas pelas faculdades mais sofisticadas, com maior ou menor sucesso. Pode-se considerar todo o psiquismo como um acervo imenso de virtualidades, as quais são capazes de se atualizar numa infinidade de expressões, como lembranças, sentimentos, imagens, falas, narrativas, sonhos... Além disso, nossas estruturas neuropsíquicas possuem a capacidade de autoprogramar-se, de se modificar até certo ponto, talvez mesmo de se reaparelhar anatomo-fisiologicamente, para atender a novas exigências pessoais e ambientais, a novos contextos existenciais. Nossa mente preenche o mundo de intencionalidade, referências objetais, afetos, símbolos, significados, intenções, denotações e conotações, etc. Em tal riqueza incomparável de recursos se baseiam os que distinguem radicalmente entre a mente humana e os computadores, afastando a possibilidade de se criar uma inteligência artificial equiparável à nossa. No campo contrário, estão os que acreditam que os avanços da Neurociência Cognitiva, da tecnologia e da Matemática farão surgir os “andróides”. Fenômeno Transicional e Realidade Virtual no Ciberespaço Pierre Lévy chama nossa atenção para a nova cultura lançada pelos meios de comunicação eletrônica, suas perspectivas ilimitadas de evolução, os benefícios culturais que pode promover, ao lado dos riscos de eliminação dos contatos pessoais diretos, de perda dos valores tradicionais, de desumanização. Sem desconsiderarmos a dimensão sociológica e antropológica da nova situação, a realidade virtual do ciberespaço está a convocar nosso interesse de psicanalistas para novos tipos de comunicação e relacionamentos à distância. Vale ainda lembrar que toda esta revolução se iniciou com modestos ábacos, com maquinetas de calcular, sucedidas por computadores que foram se conectando em redes mundiais. Tão longe podemos seguir, pelos caminhos infindáveis da transicionalidade e da 84 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sinopse O autor examina a sempre presente importância de certas idéias de Winnicott à luz dos conceitos de virtualidade e transicionalidade, bem como de algumas contribuições recentes da Neurociência Cognitiva em sua interface com a Psicanálise. Summary The ever present importance of certain ideas of Winnicott is examined in the light of the concepts of virtuality and transitionality, as well as in reference to some recent contributions from Cognitive Neuroscience in its interface with Psychoanalysis. Resumen El autor examina la siempre presente importancia de ciertas ideas de Winnicott a la luz de los conceptos de virtualidad y transicionalidad, bien como de algunas contribuciones recientes de la Neurociencia Cognitiva en su interface con el Psicoanálisis. Palavras-chave Virtualidade; Atualidade; Transicionalidade; Neurociência Cognitiva. Key-words Virtuality; Actuality; Transitionality; Cognitive Neuroscience. Palabras-llave Virtualidad; Actualidad; Transicionalidad; Neurociencia Cognitiva. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 85 Carlos Doin virtualização-atualização. Como bom assunto transicional (e algum não é?), as faces das interfaces não se esgotam. Fiquemos hoje por aqui, para prosseguir mais adiante. WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL Bibliografia BUCCI, W. (1997). Psychoanalysis & cognitive science: a multiple code theory. Nova York: The Guilford Press. DAMASIO, A. (1994). Descartes’s error. Nova York, Putnam. Trad. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ______. (1999). The feeling of what happens. Nova York: Harcourt Brace. Trad. O mistério da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DOIN, C. (1983). Telepatia e comunicação sutil em psicanálise. Nono Congresso Brasileiro de Psicanálise. São Paulo, 1983. ______. ((2000a). 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Dr. Carlos Doin Rua Anfilófio de Carvalho, 29 – sala 405 (Castelo) 20030-060 Rio de Janeiro – RJ – Brasil Fone/Fax: (0xx21) 551-2454 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 87 Carlos Doin WINNICOTT, D. W. (1958). Through paedriatics to psychoanalysis. Londres: The Hogarth Press. ______. (1965). The maturational processes and the facilitating environment. Londres: The Hogarth Press, 1976. WINNICOTT E NEUROCIÊNCIA COGNITIVA: ATUAL E TRANSICIONAL 88 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Claudia Lucía Borensztejn Membro Titular com Atividade Didática da Associação Psicanalítica Argentina O método de observação de bebês oferece ao observador a oportunidade de colocar-se em contato com estados emocionais primitivos do bebê, sua família e sua própria resposta a eles. O lugar que esta experiência ocupa na formação do psicanalista é o principal motivo desta conversa. Esta técnica particular de estudar bebês foi criada por Esther Bick no pós-guerra, quando o treinamento na análise de crianças não estava desenvolvido. Esther Bick (Polônia 1901 – Inglaterra 1983) estudou Psicologia em Viena, com Charlotte Bühler, com quem realizou estudos sobre Desenvolvimento Infantil. Durante uma pesquisa que realizou com gê- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 89 Claudia Lucía Borensztejn A Importância da Observação de Bebês para a Formação de Psicanalistas A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS meos, chegou à conclusão de que, “para entender o desenvolvimento da personalidade humana, sem estar regido por todas as teorias atuais (...) devia estudar o cotidiano de um bebê no seu ambiente familiar”1. Quando começou a Segunda Guerra Mundial, refugiou-se na Inglaterra, onde completou a formação psicanalítica na Sociedade local. Posteriormente, trabalhou na Tavistock Clinic e, a convite do Dr. John Bowlby, começou a dar seminários sobre formação de psicoterapeutas. Então, surgiu a oportunidade de colocar em prática a conclusão a que havia chegado, durante a pesquisa em Viena, e, em 1948, incluiu no curriculum da formação de psicoterapeutas de crianças na Tavistock o seminário de observação de crianças. Em 1960, esse seminário passou a acontecer no Instituto de Psicanálise de Londres. O método consiste em realizar, regularmente, visitas semanais, com duração de uma hora, durante os dois primeiros anos de vida de uma criança. Durante esta visita, não são feitas anotações. Somente doze horas após é feita a reconstituição daquilo que foi observado, tratando de consignar tudo com o maior detalhe possível, sem realizar interferências, nem especulações, mas, sim, colocando o acento na detecção das reações pessoais. Para discutir as observações, uma reunião semanal é realizada, em um seminário de uma hora e meia, com um coordenador. O objetivo do seminário da observação é explorar os acontecimentos emocionais entre mãe e bebê e o que os rodeia, incluindo as reações emocionais do observador, e tentar entender os padrões inconscientes de conduta e comunicação. Muitos observadores sentem que adquirem um real entendimento do bebê partindo de dentro e são capazes, não somente, de causar empatia com ele e reconhecer seus padrões de relações objetais, mas, também, de fornecer a eles uma compreensão do desenvolvimento. O observador se enriquece ao aprender a familiarizar-se com o conhecimento de suas rea1. Magagna, Jeanne (1987). Three years of infant observation with Mrs. Bick. Journal of Child Psychotherapy, n.13, p.19-39. Tradução em espanhol: Tres años de observación de bebés con la señora Bick. Psicanálise [Revista da APdeBA], v.XIX, 1-2, p.197-226, 1997. 90 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 91 Claudia Lucía Borensztejn ções pessoais às observações, o descobrir como alguém encontra um lugar na família, as identificações com seus diferentes membros em diferentes momentos, a resposta para a ansiedade e para o desvelar e a exposição a problemas pessoais como conseqüência das observações. Tudo isso constitui um valioso treinamento para o posterior entendimento e manuseio das situações de transferência e contratransferência na tarefa clínica. O setting da observação é não-clínico; o observador deve manter uma atitude confiável, não-intrusiva, amistosa e atenta, e é uma boa oportunidade para descobrir sua aptidão para o trabalho clínico. A exposição a sentimentos intensos, o impacto de sentir-se atraído para um campo emocional de forças, lutando para manter a própria estabilidade e o sentido dele próprio, o encontro com a confusão e o poder da vida emocional do bebê são aspectos valiosos do treinamento psicoterapêutico. Esses aspectos da aprendizagem estão ligados com o que Bion diferencia ao aprender alguma coisa como experiência intelectual e aprendendo da experiência, que leva a um tipo de conhecimento em contato com a essência de algo ou de alguém que envolve profundidade emocional. O trabalho, no seminário, é essencial para o gradual conhecimento das situações de transferência e contratransferência. Os observadores apresentam-se aos pais como pessoas interessadas no desenvolvimento de bebês no seu ambiente familiar, e, desejando realizar a observação como parte de um treinamento profissional, em conexão com o estudo das crianças, evitam-se qualquer referência a terapia ou saúde mental, colocando a ênfase nas relações da criança, no crescimento de suas capacidades e no desejo de vê-la no seu meio com a menor alteração possível na vida cotidiana da família. Sem dúvida, a família e, especialmente, a mãe pode imaginar o observador como um especialista em crianças, imbuído de um conhecimento especial, que pode lhe ensinar sobre os acontecimentos da vida prática, em especial, relacionado ao cuidado de seu bebê. A troca, no seminário, é fundamental para alertar os observadores sobre a posição que ocupam na família, baseada não somente na realista percepção da mãe, mas também nas A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS necessidades oriundas do seu mundo interno. Eles são aconselhados a não dar informação a respeito de si próprios, além da necessária, e de situaremse o mais comodamente possível como receptor-escuta, atentos e interessados, não como alvo passivo. Seu papel desenvolve-se através do tempo, enquanto o bebê cresce, já que toma suas iniciativas de aproximar-se, brincar e, inclusive, conversar com ele. Freqüentemente, os observadores estão preocupados com o potencial intrusivo do setting observacional comprometido na relação de grande intimidade mãe-bebê, em momentos de grande vulnerabilidade de ambos. Sua posição de observação exclui a atividade que é esperada dos adultos, normalmente na presença de um bebê, e essa abstinência deixa um espaço onde as sensações do bebê têm um impacto muito intenso. Identifica-se de forma alternada com o bebê, com a mãe ou com outros integrantes do ambiente familiar (a empregada, a avó, até algum animal doméstico, etc.). No seminário de discussão grupal, as ansiedades voyeurísticas tomam a forma de críticas ao método, aos pais, e, especialmente, à mãe. O seminário deve ajudar a realizar um detalhado processo de pensamento e elaboração para resistir às tendências ao acting out, já que o self infantil do observador é dolorosamente estimulado pela observação da dupla mãe-bebê. Pode sentir-se tomado por sentimentos de ser uma rival da mãe, um irmão deslocado, uma avó benevolente ou um terceiro excluído. Memórias de sentimentos inconscientes de sua própria experiência de bebê, ou temores e desejos sobre si próprio como mãe ou pai, atual ou potencial, podem ser suscitados. A posição do observador masculino é especialmente delicada. Esse tipo de preocupação surge do significado inconsciente da utilização dos olhos, que podem ser sentidos como usados com benevolência, interesse e sinceridade, ou instrumentos de ataque, projeção de sentimentos negativos de inveja, intrusão, além daquilo que é oferecido para a observação (como espiar através do olho da fechadura) ou distorção perversa daquilo que se observa (como espelhos que deformam). Através dos detalhes práticos das observações de como apresentar-se, quando sentar-se, aceitar uma xícara de chá, como relacionar-se com ou92 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 93 Claudia Lucía Borensztejn tras pessoas, como ir embora, o quanto falar, responder perguntas pessoais, etc., através de tudo isso, adquire-se um incalculável treinamento para os contatos formais e sociais de uma relação que, como a relação psicanalítica, está afetada pela regra de abstinência. Existem outras questões relacionadas com o desenvolvimento de expectativas da mãe de contar com a ajuda de uma qualificada baby sitter, e outras situações problemáticas, como a detecção de patologia severa ou abuso infantil, questões extremas que devem ser tratadas e discutidas para a avaliação de outro tipo de intervenção. A ausência do recurso interpretativo obriga a um tratamento muito cuidadoso com as mudanças de horário, cancelamentos, férias, com um atendimento particular a toda reação de separação, que pode gerar interrupções imprevistas e frustrantes da experiência. Podemos destacar, através das discussões nos seminários, as reações transferenciais, que devem ser elucidadas, dos elementos contratransferenciais, os quais incluem, tanto as reações pessoais inconscientes do observador, quanto os estados emocionais que parecem estar determinados pelas projeções dos membros da família. Quando os sentimentos envolvidos são muito intensos e, provavelmente, comunicados sobre uma base pré-verbal, o trabalho sobre a transferência/contratransferência é fundamental e é um valioso aporte para a formação do terapeuta, que inclui sua sensibilização às maneiras de conexão infantil: a percepção da Identificação Projetiva, a compreensão da linguagem corporal. O esforço em encontrar uma linguagem adequada para descrever essas experiências pré-lingüísticas é de grande ajuda para comunicar-se, mais tarde, com crianças pequenas, assim como para descrever os aspectos primitivos dos adultos, estados mentais regressivos, psicossomáticos ou relacionar-se com pacientes silenciosos. A mais valiosa contribuição cabe à formação da atitude psicanalítica, algo que se conecta com o conceito de reverie descrito por Bion para a compreensão da comunicação primitiva do bebê, o reconhecimento e a contenção dos seus estados emocionais, algo que deve ser qualidade de um A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS observador e de um terapeuta. Isto requer o desenvolvimento de um espaço mental, onde os pensamentos comecem a tomar forma, e as experiências confusas possam ser contidas no estado caótico, no qual são recebidas, até que seu significado se esclareça. Esse espaço mental requer o desenvolvimento da capacidade para tolerar a ansiedade, incerteza, desconforto, revelação e o sentimento de ser bombardeado. É o equipamento pessoal para revelar um psicanalista. Dissemos como deve apresentar-se o observador, a arrumação do enquadre observacional e sua situação durante a hora em que a mesma transcorre, na qual deve prestar atenção a todos os detalhes, tratando de dirigir o foco especialmente ao bebê, sua conduta e registrar sua própria contratransferência. Sobre o registro das observações, os observadores devem adotar um estilo natural, do dia-a-dia, literal e de fatos, sem terminologia psicanalítica. O objetivo da observação de bebês é fornecer material da experiência pessoal, que possa ser pensada, no que se refere a seu significado emocional. É importante que seja transmitida, o mais diretamente possível, ao seminário, evitando codificá-la prematuramente em interpretações teóricas ou categorias. Devem conter detalhes das atividades do bebê, registros das conversas que são produzidas e uma descrição, o mais sensível possível, dos sentimentos dos participantes, incluído o próprio observador. Isso é um elemento diferencial do método de E. Bick, e é o que permitiria denominá-lo de método de observação psicanalítica. Diferencia-se de outros métodos de observação direta, “objetiva”, com vídeos, etc., onde a compreensão pode ser psicanalítica, mas não a própria observação. Foi comprovado que esse registro de observações, o mais despojado possível de interpretações, ajuda a liberar a percepção do observador, e, logo após, este percebe que registrou muito mais do que acreditava. Com o tempo, as observações escritas tendem a ser feitas cada vez mais completas e em uma linguagem cada vez mais literária. Na discussão grupal, muitas vezes, é possível ver como a situação parece diferente daquilo que tinha sido pensado no momento de realizá-la 94 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 95 Claudia Lucía Borensztejn e, mais tarde, ao registrá-la. Teorizar em um momento prematuro é mais uma defesa contra a dor da experiência emocional ou a dor da ignorância. Esse é um alerta para um posterior manejo interpretativo nas sessões. As observações têm como objetivo seguir o desenvolvimento de um bebê no seu ambiente natural, sem selecionar atributos de conduta específicos, habilidades cognitivas, etc., como em outro tipo de métodos observacionais. Este método de observação psicanalítica requer que os observadores tenham em mente um leque de concepções e expectativas latentes pelas quais possam dar coerência e forma à experiência e, ao mesmo tempo, permanecerem abertos e receptivos às situações às quais estão expostos. Não podem saber, com antecedência, qual das suas concepções encontrará aplicação prática, nem qual das suas pré-concepções irá adequar-se; podem ser confrontados com situações que, ao menos inicialmente, ficam fora da sua capacidade de compreendê-las e devem esperar que as observações continuem se desenvolvendo. Devem estar preparados para responder a situações novas nas famílias e neles mesmos. Não há dúvida de que os observadores podem ter um papel importante nas vidas das famílias que visitam, benéfico na medida em que são uma presença confiável que somente quer dedicar um tempo de atenção à relação de um bebê com sua mãe, que permite a esta dedicar um tempo para pensar seu bebê e dar uma parada no meio das demandas práticas e emocionais. Ela se identifica com o interesse do observador, e este lhe é útil para encontrar um equilíbrio entre as necessidades engolfantes do bebê e suas defesas de afastar-se a uma distância segura, às vezes, ao custo do bebê. Também vimos como, às vezes, o mesmo bebê introjeta esta função de observação. É comum ver como, às vezes, somos nós os observados, tanto pela mãe, quanto pelo bebê. A tarefa de relacionar o nível descritivo e particular da observação com termos mais teóricos e abstratos ocorre durante o seminário, onde o material é explorado e digerido. Pensamos sobre os estados subjetivos da A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS mente como possíveis registros de estados de sentimentos, em uma relação observada, e a discussão no seminário deve ser vista como uma extensão do processo de observação, não como um método de ensino. Essas discussões, com freqüência, levam-nos a lembrar e a entender aspectos que não haviam sido notados antes da observação, cujo significado havia escapado ou que havia sido suprimido da consciência. É neste sentido que propusemos, em um trabalho no Rio de Janeiro, no International Meeting of Baby Observate, a existência de um campo observacional que abrange, temporariamente, desde o momento da observação, passando pelo registro, até a discussão grupal, e inclui também as sessões da própria análise. O conceito de contratransferência adquire uma especial relevância nessa situação. Aquilo que havia sido entendido como distorção do trabalho analítico foi, mais tarde, visto como recurso especial para a compreensão de estados mentais primitivos em análise, análogos, em determinados aspectos, à comunicação de sentimentos entre o bebê e sua mãe, nos primeiros meses de vida. O papel do observador tão ativo, no que se refere a pensamento, quão passivo, frente à descarga, através do recurso interpretativo, dá oportunidade de um intenso treinamento para a clínica. O foco na dimensão emocional da experiência é o diferencial do approach psicanalítico, o que requer um treinamento em auto-análise e sensibilidade perante a comunicação implícita ou inconsciente, o que é uma fonte de compreensão muito frutífera. Com o Método de Observação de Bebês, que é intensivo, não extensivo, não é possível realizar estudos comparativos sobre o desenvolvimento. Seu maior potencial está na possibilidade de gerar novas hipóteses, e seu alcance consiste na profundidade da análise, e não na quantidade. Assim como na prática da Psicanálise, este trabalho pertence ao contexto do descobrimento mais do que ao da validação, em parte, por razões metodológicas e, em parte, por uma crescente preferência pelos modelos baseados no significado subjetivo, mais que por modelos de relação causal. Porém, existe uma tendência atual de adaptar este modelo a propósitos de pesquisa, terapêuticos e preventivos, por ser interessante e 96 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 97 Claudia Lucía Borensztejn valioso e dar lugar a múltiplos desenvolvimentos, mas não posso discutir estes aspectos neste espaço. Estamos interessados na linha que (seguindo a Meltzer) relaciona os métodos da observação de bebês com o mais amplo campo das ciências humanas, que diverge dos métodos que os empiristas críticos da Psicanálise usualmente reconhecem como válidos. Mas existem, também, atributos deste trabalho que são compartilhados com a literatura imaginativa. A imersão de um observador no estudo de uma relação, durante dois anos, sua descrição narrativa, a mediação da sua experiência através da sua própria sensibilidade têm algo em comum com o modo pelo qual os escritores de ficção ou biógrafos trabalham. Com a observação de bebês, tanto quanto com romances, os leitores estão implicitamente convidados a confirmar a veracidade das representações com referência a sua experiência pessoal, e não com os descobrimentos publicados, da Psicologia. Embora os casos estudados não sejam ficções, os que se comprometem com essa tarefa devem alcançar um alto standard de agudeza literária e correspondência com os fatos. Todas as ciências humanas dependem de um ponto de vista específico, de um marco definido que seleciona aspectos do mundo para seu estudo sistemático. Esta seletividade de interesses é totalmente compatível com as normas de consistência lógica e exatidão empírica na aplicação de teorias e conceitos à experiência. A sutileza e a delicadeza de representações dos estados emocionais e mentais, em uma boa e imaginativa escritura, são necessárias para determinados tipos de pesquisa nas ciências humanas, não oposta a ela. O estudo de um caso como Freud mostrou requer pesquisadores capazes de compreender e representar o estado mental de um indivíduo complexo como um escritor o faria. O método de observação de bebês provavelmente nunca terá a fertilidade teórica dos estudos clínicos, mas tem algumas virtudes. Como o observador deve manter uma atitude passiva e não intrusiva, sua presença não é muito diferente da de outro visitante, alheio à família. Os fatos da observação reportados em termos simples o fazem acessíveis a pessoas não tão experientes em Psicanálise. Suas descrições e as suposições obti- A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO DE BEBÊS PARA A FORMAÇÃO DE PSICANALISTAS das delas, mesmo que menos elaboradas teoricamente, podem ser mais fáceis de discutir do que as complexas construções dos relatórios clínicos. Nesse sentido, estamos mais livres para a utilização de modelos, com maior flexibilidade de confirmação e/ou descarte, sem necessidade de modificar as teorias em curso. Os sentimentos transferenciais detectados na relação da mãe com o observador e as reações contratransferenciais do observador com a mãe e o bebê são estados mentais, muito reconhecíveis, da vida cotidiana. Portanto, fornecem evidência recente e independente dos processos emocionais postulados pela Psicanálise. O método da observação psicanalítica de bebês tem muitas e potenciais aplicações em enquadramentos de saúde, educação, assistência social e pesquisa. Mas, o núcleo desta aproximação e seu valor mais intenso como experiência de aprendizagem, para os analistas, está no efeito que tem sobre a formação e o desenvolvimento da função psicanalítica da personalidade, o que leva o analista a incrementar sua função terapêutica, e, se chegar a ser um bom observador, tem muitas possibilidades de vir a ser um bom psicanalista. Apresentação da Autora Médica, psicanalista, membro titular com função didática da Associação Psicanalítica Argentina. Professora do Instituto de Psicanálise da APA, onde atualmente coordena um seminário de observação de bebês, com o método de Esther Bick. Especialista em crianças e adolescentes, tem-se interessado por temas diversos como o jogo em psicanálise de crianças, o trabalho em escolas com crianças deficientes, o travestismo, que foram apresentados em Congressos Regionais e Internacionais, e/ou publicados na Revista de Psicanálise da APA. Desde 1992 trabalha em contato com as idéias do Dr. Meltzer, supervisionando com ele, o tratamento de um jovem autista. Um fragmento deste caso clínico foi apresentado no Congresso de Barcelona em 1997 e publicado na revista da APA com o titulo “A Função da Atenção do Analista”. Este trabalho e as conversações periódicas do Dr. 98 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Palavras-chave Observação de bebês; Método Esther Bick; Formação do analista; Método psicanalítico. Key-words Baby observation; Esther Bick method; Psychoanalytical method. Palavras-llave Observación de bebés; Método Esther Bick; Formación del analista; Método psicoanalítico. Ensaio Trabalho apresentado na SBPdePA no dia 01 de Julho de 2000 Convidada Especial do Seminário Optativo da Infância e Adolescência da SBPdePA Tradução do original espanhol: Traduzca. Revisão da tradução: Dra. Vera D. M. Chem Dra. Claudia Lucía Borensztejn Uruguay 1061, 2º “43” 1015 Buenos Aires – Argentina E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 99 Claudia Lucía Borensztejn Meltzer em Oxford, em Buenos Aires e por correspondência, foram determinantes para considerar a prática da observação de bebês como fonte de muito valor na formação do psicanalista. Escreveu em colaboração vários trabalhos sobre o tema que serão proximamente reunidos em um livro. Atualmente desempenha a função de secretária da Revista de Psicanálise da APA. Encaminhar: mostrar o caminho a, guiar, conduzir, orientar, dirigir, pôr no bom caminho, aconselhar para o bem, tender para um fim. (Ferreira, 1975) Fernando Kunzler Membro Convidado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Membro Associado da Associação Psicanalítica Argentina e Membro Titular da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre Renato Trachtenberg Membro Titular da Associação Psicanalítica de Buenos Aires e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Um paciente nos chega de muitas formas, mas sempre requerendo a presença de um outro alguém que faça o elo. Esse outro, tão essencial, às vezes parece “desaparecer”, nem bem uma análise começa. Mas será realmente assim? Pensar psicanaliticamente o encaminhamento e a figura do encaminhador supõe alguns passos que nos levam muito além do manifesto. Essa personagem fundamental tão presente/ausente, pré-condição de qualquer análise, deveria merecer um pouco mais da nossa atenção, em lugar de simples- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 101 Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg Encaminhando o Encaminhamento ENCAMINHANDO O ENCAMINHAMENTO mente deixá-la do outro lado da porta de nossas reflexões, “agora que já cumpriu o seu papel”. Nestes tempos sombrios onde a Psicanálise, como terapêutica, é combatida em várias frentes, com óbvia repercussão nos encaminhamentos, nos pareceu oportuno incluir o próprio encaminhamento como um objeto de estudo abordável pela Psicanálise. A história dos encaminhamentos poderia ser uma forma de contar a própria história da Psicanálise, simultaneamente determinada e determinante. O que seria dela sem suas Doras, Hans, Homens dos Lobos e dos Ratos e todas as suas maravilhosas histéricas? Por outro lado, sabemos muito bem até que ponto se refletiram e se refletem, nos encaminhamentos, as diferentes crises teóricas e/ou técnicas que a Psicanálise (como toda ciência) sempre atravessou. Neste mesmo sentido podemos falar da relação dialética que se estabelece entre os encaminhamentos e a Psicanálise que cada analista pratica em seu consultório. “Não tenho dúvida de que esse incidente [proposta amorosa do Sr. K. a Dora, durante caminhada pelo lago] é responsável pelo abatimento, irritabilidade e idéias suicidas de Dora. Ela vive insistindo em que eu rompa relações com o Sr. K., e em particular com a Sra. K., a quem, antes, positivamente venerava. (...) Seu último ataque ocorreu depois de uma conversa em que ela tornou a me fazer a mesma exigência [de romper com os K.]. Por favor, tente agora colocá-la no bom caminho”1 (1905, p.24-25). Quando, há exatamente cem anos, o pai de Dora usa essas palavras para encaminhá-la a Freud (depois de ele mesmo ter sido seu paciente), termina escolhendo, entre as várias acepções do termo, encaminhar aquela que exerce a maior pressão sobre o receptor do encaminhamento. Isso se agrava ainda mais se lembramos a presença do Sr. K. no momento do enca- 1. O grifo é dos autores. 102 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 2. Devemos ressaltar, contudo, que todo encaminhamento implica algum grau de pressão sobre o próprio encaminhador, por um lado, e, especialmente, sobre o analista, por outro. Um dos elementos fundamentais de dita pressão são as fantasias de dívida e expectativas de retribuição consciente ou inconscientemente presentes em ambos. Isso é mais intenso quando o paciente e/ou o encaminhador tem para o futuro analista algum significado especial. Quando o encaminhamento é feito para “ajudar” o analista (necessidade de trabalho, supervisões didáticas, etc.), as fantasias e expectativas citadas também aumentam consideravelmente. O paciente como “moeda de troca” gera, muitas vezes, uma vivência de culpa nem sempre de fácil elaboração. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 103 Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg minhamento2. Pode-se vislumbrar com bastante claridade como a figura desse encaminhador vai-se constituindo, cada vez mais, em um ingrediente de primeira linha na relação transferencial e em seu desenlace, o acting out final. Desde essa perspectiva, Dora debuta na relação transferencial com a fantasia de adjudicar a Freud a intenção de lograr cumprir “os desígnios” do pai; em outros termos, que fosse convencida – através da psicanálise – de deixar o pai prosseguir em paz suas relações amorosas com a Sra. K .(constituindo-se esta idéia no conteúdo de uma verdadeira fantasia inconsciente de tratamento). O devir fará que esta idéia se constitua numa das origens do sentimento de Dora por ser tratada como um objeto, não só pelo pai, como pelo próprio Freud. Vamos assistir à presença do encaminhador como um dos condicionantes do desejo, impregnando o começo do processo psicanalítico, embora este fator adquira sua verdadeira significação nas vicissitudes do vínculo transferencial e seu desenlace. Nesse caso clínico, Freud não parece perceber com claridade a magnitude de sua localização como pólo de projeções, desde seu vínculo prévio com o pai de Dora. Não descobriu ainda o imenso poder da transferência; não está, todavia, preocupado, como estará, poucos anos depois, com respeito à questão dos vínculos prévios entre o paciente e o analista. Nosso objetivo não é o estudo exaustivo dos encaminhamentos dos pacientes de Freud, mas usar o exemplo de Dora como ilustração de como as questões vinculadas ao encaminhamento estão na origem dos diferentes desenlaces dos processos analíticos e como esses mesmos desenlaces irão ENCAMINHANDO O ENCAMINHAMENTO retroalimentar, positiva ou negativamente, os novos encaminhamentos. Em primeiro lugar, o encaminhador, na maior parte dos casos, pode ser facilmente localizado em alguém que, a pedido do paciente, ou por iniciativa própria, termina por cumprir uma função que incidirá, inevitavelmente, sobre o que virá a seguir. Entretanto, nem sempre podemos detectar quem é o agente do encaminhamento. No caso de Dora, por exemplo, teria sido seu próprio pai ou o Sr. K. quem, ao fazer a indicação e também o acompanhando (o pai de Dora) quando da consulta a Freud, se transforma no verdadeiro encaminhador? Ou foram ambos?3 Ou será o próprio futuro paciente que nos “escolheu” porque leu algo que escrevemos, nos assistiu em algum evento, lhe parecemos ser alguém familiar, nos encontrou no elevador e lhe causamos uma boa impressão, ou até mesmo em função da facilidade de acesso a nossos consultórios? Ou, quem sabe, em todos esses exemplos citados, somos nós mesmos que, simultaneamente, ocupamos esse duplo lugar de encaminhador e analista?4 O encaminhador funcionaria com um rol paterno e/ou materno (como objeto das transferências), configurando uma determinada imagem que o futuro paciente terá de seu futuro analista. O encaminhador, seja quando toma a iniciativa manifesta do encaminhamento, seja quando é ativamente buscado pelo paciente, é, em geral, um objeto com forte tendência a ser idealizado e com tal carga pode ser levado pelo paciente às entrevistas e a toda primeira etapa de sua análise. Esta confiança no encaminhador pode chegar a ser um fator de superação da resistência, quando o encontro com 3. Pelas conseqüências que teve o caso, devido às intensas identificações de Freud com o Sr. K. a ponto de impedi-lo de realizar a inversão dialética faltante (Lacan, 1951), não poderíamos supor que Lacan teria optado por K. como o verdadeiro encaminhador, detectando que o “bom caminho” enunciado seriam os braços do próprio Sr. K.? 4. Isso sem falar nos casos de reanálise com o mesmo analista ou nas passagens de tratamentos institucionais para privados com o mesmo analista, onde paciente e analista pareceriam ocupar também o lugar de encaminhador. Porém, nessas situações, tanto o paciente como o analista estariam se encaminhando para uma análise em que ocorrerá um reencontro com o desconhecido. É nessa ambigüidade entre continuação e o “muito prazer” de dois desconhecidos que ambos deverão transitar (se bem que desde a teoria da transferência esse desconhecimento deveria ser relativizado). 104 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 105 Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg o analista não satisfaz as expectativas ou fantasias prévias. Ao mesmo tempo, poderia ser, em si mesmo, um fator de resistência na análise (da transferência negativa), quando o analista é incluído na idealização do encaminhador. Por outro lado, as fantasias do paciente sobre as relações prévias entre o “encaminhador” e o analista podem transformar esse último num objeto de desconfiança e suspicácia. De todos os modos, as transferências pré-estabelecidas com o nome, imagem ou características observadas do futuro analista sofrerão um abalo, um estremecimento, uma ruptura, no momento do tão (ou nem tanto) esperado encontro. Aquele analista que nos foi tão bem recomendado, aquele simpático do elevador, aquele que nos pareceu tão criativo na apresentação do trabalho, que nos lembrou uma figura familiar, etc., já não é e jamais será o mesmo. E o encaminhador, continuaria sendo o mesmo? Denominamos função encaminhante (uma expressão do que Bion (1962) chamou função psicanalítica da personalidade?) àquela exercida por diferentes partes do self e objetos internos, atuando em uníssono (identificação introjetiva) com o fim de realizar o encaminhamento (“aconselhar para o bem”) e levando em conta as resistências em realizá-lo. Assim, aquele que indica o nome do futuro analista é o pólo manifesto de uma função. Essa pode ser executada pelo próprio sujeito (paciente potencial) ou por algum outro que se adeqüe como representante da função. Entretanto, é somente na análise (e para isso os sonhos também são a via regia) que podemos detectar (no melhor dos casos) quem realmente cumpriu ou conduziu a função. Observamos que, muitas vezes, o encaminhador manifesto não foi aquele que verdadeiramente produziu o encaminhamento. Consideramos o encaminhamento como um processo composto por várias etapas que se articulam, de diferentes modos, com as diferentes etapas do processo analítico. A primeira iria desde os primeiros movimentos buscadores de uma análise até a chegada do paciente, já encaminhado. Uma segunda etapa poderia coincidir com as entrevistas analíticas. A terceira poderia abranger desde as primeiras sessões até um período extremamente variável, que se encerraria com o início da quarta etapa. Chamamos ENCAMINHANDO O ENCAMINHAMENTO des-encaminhamento esta última. É somente aqui que o paciente assume sua função encaminhante e realiza, por primeira vez, a sua verdadeira escolha de analista5. A escolha do analista, como processo, acompanha as diferentes etapas do encaminhamento, sendo mais frágil quando as transferências são mais poderosas e mais consistente quando os níveis não transferenciais adquirem maior amplitude (des-encaminhamento). “Contrariando” o pai de Dora, é o momento em que o paciente começa a assumir e a decidir o seu próprio caminho (sua função encaminhante), o seu próprio desejo, não mais intermediando um desejo que lhe é alheio. Esse passo implica um luto pelo encaminhador e abre a possibilidade para um outro luto que não tardará a ser enfrentado: a terminação da análise. Existe um tempo e um espaço em que os papéis e funções do encaminhador e receptor do encaminhamento não podem ser estritamente definidos. É parte dos objetivos de uma análise deslindá-los e, para tanto, se faz necessário manter uma atenção (flutuante) em relação à presença ou ausência da figura do encaminhador, durante o processo analítico. Desse ponto de vista, a chegada do paciente à análise é conseqüência da análise de sua chegada. Como vimos, essa verdadeira chegada à análise, que pode levar muitos anos para se concretizar, dialeticamente cria as condições de seu final. Se não a confundirmos com a chegada formal, estaremos em melhores condições de promover a própria analisabilidade dos nossos analisandos. A chegada, assim considerada, marca um momento de passagem de um espaço público para um espaço privado. É claro que, ao falarmos de processo, estamos dizendo também que cada passagem, de certa forma, se faz presente nas etapas precedentes, mesmo que seja como um potencial. Apesar disso, pareceu-nos interessante marcarmos esses momentos de privatização, de des-encaminhamento, de chegada à análise. No outro sentido, por sua localização privilegiada, a situação de encaminhamento faz a ponte entre o espaço (privado) de nossos consultórios e o espaço público onde a Psicanálise faz seus vínculos com o mundo da 5. Às vezes isso ocorrerá somente depois da terminação da análise. De qualquer modo, será fundamental para o exercício da auto-análise e para o encaminhamento de uma eventual reanálise. 106 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sinopse Um paciente nos chega de muitas formas, mas sempre requerendo a presença de um outro alguém que faça o elo. Nestes tempos sombrios onde a psicanálise como terapêutica é combatida em várias frentes, com óbvia repercussão nos encaminhamentos, nos pareceu oportuno incluir o próprio encaminhamento como um objeto de estudo abordável pela psicanálise. Área transicional que, ao transcorrer entre o público e o privado de nossos consultórios, nos permitirá observar, de forma privilegiada, os diferentes níveis em que o intra, o inter e o transubjetivo vão estruturando as íntimas relações entre a Psicanálise e a Cultura. Summary A patient arrives at us under many forms, but always requiring the presence of someone else to establish a link. In these obscure times, when the Psychoanalysis is being opposed by many as a therapy and causing an obvious repercussion in the addressing, it seems suitable to include the addressing itself as a study object, which may be dealt by the Psychoanalysis. Transitional area, elapsing between the public and the private of our offices, it will allow us to observe, in a privileged Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 107 Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg cultura no qual está imersa. Quando saímos (analistas e analisandos), depois de cada dia e depois de cada análise, da intimidade de nossos consultórios, retornamos à dimensão do público, onde o que fizemos ou deixamos de fazer, no domínio do privado, irá, necessariamente, repercutir nos novos encaminhamentos. Como dissemos no início, esses últimos irão, por suas características, participar novamente dos diferentes desenlaces analíticos e, portanto, serão determinantes e determinados. Uma forma de abordar as relações entre a Psicanálise e a Cultura é o estudo psicanalítico do encaminhamento, elo que nos conecta com as possibilidades renovadas de vitalização da Psicanálise. Deixamos para outros tempos e outros espaços questões tais como a técnica e a psicopatologia do encaminhamento. Aqui e agora, o nosso propósito foi o de apenas tentar colocá-lo “no bom caminho”. ENCAMINHANDO O ENCAMINHAMENTO manner, the different levels in which the intra, the inter and the transubjective will structure the close relations between Psychoanalysis and Culture. Sinopse Un paciente nos llega de muchas formas, pero siempre requiriendo la presencia de otro alguien que haga el eslabón. En estos tiempos sombríos, donde el Psicoanálisis como terapéutica se lo combate en varios frentes, con obvia repercusión en las orientaciones, nos pareció oportuno incluir la propia orientación como un objeto de estudio abordable por el Psicoanálisis. Área transicional que, al transcurrir entre lo públicio y privado de nuestros consultorios, nos permitirá observar, de forma privilegiada, los diferentes níveles en que el intra, el inter y el transubjetivo van estructurando las íntimas relaciones entre el Psicoanálisis y la Cultura. Palavras-chave Encaminhamento; Função encaminhante; Des-encaminhar. Key-words Guiding; Guide function; To mis-guide. Palabras-llave Derivación; Función derivante; Des-derivar. Bibliografia BION, W. (1962). O aprender com a experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991. FERREIRA, A.B.H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975. FREUD, S. (1905). Fragmento de análisis de un caso de histeria. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1978. v.7. 108 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Artigo Tema Livre apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000, Gramado, RS, Brasil Dr. Fernando Kunzler Rua Marquês do Pombal, 783/401 90540-001 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 3343-4376 E-mail: [email protected] Dr. Renato Trachtenberg Rua Florêncio Ygartua, 391/402 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 3330-6453 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 109 Fernando Kunzler e Renato Trachtenberg LACAN, J. (1951). Intervención sobre la transferencia. In: Escritos 1. México: Siglo Veintiuno, 1995. ENCAMINHANDO O ENCAMINHAMENTO 110 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Introdução Maria Regina Junqueira Membro Associado e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Nilde J. Parada Franch Analista Didata e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo A apresentação do material que se segue foi elaborada a partir do convite dos organizadores do XXIII Congresso da Fepal, em que foi solicitado às autoras que apresentassem e comentassem uma experiência clínica de análise de crianças. A exigüidade de tempo levou-as a uma escrita mais espontânea e descomprometida com o rigor de um trabalho científico. É essa escrita que agora oferecemos aos leitores para que também compartilhem dessa rica experiência, rica porque tanto a apresentadora quanto a comentadora puderam repensar e articular a experiência com os conceitos teóricos com que trabalham e desse modo abrir um outro campo, para além das vivências das sessões. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 111 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch Compartilhanho a Experiência Clínica COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA A experiência clínica é solitária, se dá na presença da dupla analistaanalisando e, ao ser escrita, publicada, comentada permite que a mesma seja compartilhada. A apresentação do material clínico dar-se-á em quatro etapas, e os comentários serão inseridos ao final de cada uma delas. Caso Clínico Apresento-lhes Pedro, um menino de quatro anos de idade, que está em análise há oito meses com quatro sessões semanais. 1 – Meu Primeiro Encontro com os Pais de Pedro Os pais de Pedro (que é primogênito do casal) me procuraram interessados numa avaliação profissional, daquilo que era por eles observado como manifestações acentuadas de ciúmes. Segundo eles, Pedro sempre foi uma criança muito tranqüila, não chorava, de nada reclamava, o que permitia que eles o levassem para todo e qualquer compromisso social do casal. Pedro foi amamentado ao seio até seis meses de idade. Nessa ocasião a mãe descobre estar grávida novamente, e para proteger o bebê que já estava no seu segundo mês, realiza então o desmame num período de quinze dias. Segundo ela, não houve qualquer manifestação de desagrado por parte do filho. Menciona porém que a partir dos oito meses de idade ele passou a apresentar uma série de infecções respiratórias e, conseqüentemente, problemas com a alimentação. A mãe não observa relação entre esses episódios e o processo de desmame. Um mês antes da irmã nascer, ou seja, com um ano e dois meses, Pedro passa a freqüentar uma escola tipo berçário-maternal, não apresentando problemas de adaptação nesse novo convívio. Em casa, entretanto, passa a morder, bater e cutucar com objetos pontiagudos, tanto a mãe como a irmã. A dinâmica familiar passa a ficar muito conturbada, pois os pais a todo momento têm que estar atentos aos movimentos do filho, a fim de impedir tais ataques. A mãe revela estar exaurida, pois além de ser constantemente solicitada pelo filho, exerce o papel de 112 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 113 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch mediadora, criando atividades para que fique entretido e desvie sua atenção da irmã. Mas a tarefa parece ser insana já que Pedro percebe todos esses movimentos, passando então a provocar cada vez mais a mãe: faz xixi na calça, faz xixi no chão, chegando inclusive a se esfregar no mesmo e até a lambê-lo. Apesar de ter o controle total dos esfíncteres, nesses momentos de provocação escolhe reentrâncias da mesa da sala para evacuar, e buracos da rede de proteção de uma varanda externa, para urinar. Acorda constantemente durante a noite e vai até o quarto dos pais, ora para dormir junto com eles, ora para simplesmente brincar. Percebo que no transcorrer dessas descrições o pai vai se aproximando mais afetivamente da mãe, considerando-a portadora de uma capacidade ímpar de agüentar a turbulência do filho, considerando-a uma verdadeira heroína. A mãe parece que aprecia esses comentários, sentindo-se valorizada. O filho, portador de tanta “crueldade” e “destrutividade”, passa agora a ser descrito de uma outra forma, com a inclusão de observações mais acuradas a respeito da qualidade emocional. O pai revela perceber que o movimento por parte do filho de cutucar as pessoas com objetos pontiagudos nem sempre tem como objetivo a crueldade, mas sim alcançar alívio. Observa também que ao presenciar na televisão uma cena de violência, por exemplo entre cão e gato, Pedro imediatamente se instala no colo do pai, tentando reproduzir a cena entre eles. Se a expressão de violência é jogar um aquário no chão, instantaneamente Pedro corre e faz o mesmo com seu próprio aquário. Passa então a surgir uma criança assustada, amedrontada e que se recusa a enfrentar situações novas, sejam elas um ambiente novo, uma brincadeira desconhecida, ou até mesmo a introdução de roupas e sapatos diferentes dos habituais. Existe uma recusa total a tudo aquilo que lhe é desconhecido. Vivências de pânico também são descritas, como por exemplo em ocasiões quando precisa dirigir-se ao barbeiro para um corte de cabelo. Pedro berra, chora, esperneia, morde e não permite que cortem seu cabelo: recentemente foi gritando o trajeto inteiro e acabou dormindo. Cortaram COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA então seu cabelo enquanto dormia: ao despertar e constatar o corte, Pedro avançou sobre a mãe, mordendo até feri-la. A analista expõe algumas idéias ou ‘teorias’, dos pais sobre o bebê Pedro: bebê tranqüilo, de nada reclamava, não houve manifestação de desagrado ao desmame, não apresentou problemas de adaptação ao berçário. Portanto, os pais descrevem um bebê sem manifestações de angústia. Estariam descrevendo um bebê idealizado, e portanto negando o significado de algumas manifestações da criança real? Faltaria a eles percepção dos fenômenos emocionais? Seria este um bebê extremamente passivo, que se distanciava do contato emocional consigo próprio e com a mãe? Ou as duas coisas? Com 1 ano e 2 meses, o paraíso se transforma em inferno. Pedro passa a atacar a mãe e a irmãzinha recém-nascida. A mãe procura ‘entretê-lo’, desviando sua atenção da irmã. Parece não se sentir competente e suficiente para lidar de algum outro modo com a situação agressiva, senão procurando negar a dor e o sofrimento de Pedro. Talvez perceba a agressividade dele não como dor e sofrimento, mas como maldade; parece estar profundamente decepcionada, em função do bebê tranqüilo e adaptado que ele foi. Nos inícios da vida, normalmente o bebê lida com as terríveis ansiedades que o assolam por meio de mecanismos eminentemente expulsivos, como o choro, a evacuação, os atos motores, e mecanismos incorporativos como olhar, mamar, chupar. Pedro passa a lidar com as angústias ligadas às fantasias de perda do objeto materno fazendo uso predominantemente de ações expulsivas: evacua, urina. Interessante observar que o pai percebe que ‘cutucar’ as pessoas com objetos pontiagudos às vezes tem a ver com alcançar alívio (modelo mamilo duro na boca?). Pode estar utilizando modelos conhecidos, mas pare- 114 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 2 – Meu Primeiro Encontro com Pedro Ouço Pedro na sala de espera, choramingando e dizendo que não queria cortar o cabelo. Repete isso inúmeras vezes. Abro a porta e encontro-o de pé ao lado da mãe, que aguardava sentada na poltrona. Observo uma proximidade relativa entre os dois, pois não havia nenhum contato físico entre eles. Automaticamente me aproximo dele, me apresento e sento num banquinho na sala de espera, enquanto aguardo o momento oportuno para levá-lo à sala de ludo. Enquanto estou conversando com ele, uma das portas do consultório bate em função de uma corrente de vento, e ele logo se assusta e pergunta o que era. Digo que era o vento que bateu a porta. Nesse momento me vem à lembrança dos pais terem dito que ele se assustava com ruídos mais fortes. Repito a estória da batida da porta por três vezes consecutivas por solicitação de Pedro, que me ouve atento e temerosamente. Em seguida passa a olhar para o próprio dedo da mão e meio assustado, quase chorando, diz que o dedo doía muito; comunica isso à mãe, apontando o dedo em sua direção. A mãe olha para o dedo, olha para ele, mas nada diz ou faz. Pedro então vira-se incontinenti em minha direção, e com um olhar muito assustado, faz a mesma comunicação. Pergunto porque o dedo estava machucado, e ele responde “borboleta, borboleta, a borboleta” (opto conscientemente em não fazer uma ligação com o possível temor de estar ali comigo – algo novo – pois, eu não tinha ainda a menor idéia do grau de funcionamento mental de Pedro; procurei formas conhecidas para encaminhá-lo para o desconhecido). Digo então que a borboleta era igual ao vento; que o vento bate a porta, e a borboleta bate no dedo, e que talvez a borboleta tenha vindo com o vento. Pedro fica parado, me escutando atentamente, olha para o dedo e Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 115 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch ce não discriminar entre os modos de incorporação/ introjeção normais, e os intrusivos. Ao usar excessivamente o modelo expulsivo/projetivo, cria um mundo muito perigoso, e sua maneira de se proteger é ficar no espaço conhecido e sentido como controlado. COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA diz “já passou, não dói mais”. Percebo que fica mais ligado em mim, e nesse momento convido-o a entrar na sala comigo. Pedro chama a mãe para entrar junto e de mãos dadas com ela, dirige-se à mesa com brinquedos. Ao ver os carrinhos sobre a mesa larga a mão da mãe e começa a brincar (A mãe então se retira). Parece que experimenta o contato com cada um dos carrinhos (são quatro e um caminhão), checando sua movimentação. Ao brincar com um dos carros esbarra num dos bonecos que está sobre a mesma mesa, e diz “é menina, não... não, é carro”. Em seguida coloca todos os carros por debaixo das pernas dos bonecos que estão deitados sobre a mesa, dizendo que estão escondidos. Retira-os do esconderijo e dois a dois, vai batendo um contra o outro, entrando num estado de euforia, falando alto “bate, bate, está batendo, está batendo”. Volta a escondêlos e retoma a mesma brincadeira de bater um contra o outro. O caminhão parece ser o preferido dele, e é o que mais sobrevive às trombadas. Pedro exultante vai descrevendo sucintamente o que ocorre, muito mais como um processo de auto-estimulação, do que de comunicação direta comigo. Aos poucos todos os carros vão ficando quebrados, segundo ele, e então tem que guardá-los na garagem. Essa brincadeira é retomada diversas vezes, e eu o acompanho, ora repetindo o que ele fala, ora fazendo perguntas a respeito do que acontecia. Percebo que as perguntas ele dispensa, mas o repetir com a mesma entonação a sua fala, o entusiasma de uma tal forma e ele solicita que eu continue nesse diapasão. Fico com a sensação de que ele sabia que eu compreendia sua comunicação, que falávamos a mesma linguagem. Seu campo de visão se amplia, descobrindo a presença de uma caixa de lápis de cor sobre a mesa. Pede para eu abri-la, e assim que retira o lápis marrom da caixa exclama “não, não, é noite, vai dormir, é noite não tem sol não”, e o recoloca na caixa. Vai fazendo o mesmo com todos os lápis, dando ordens para que voltem para a caixa pois têm que ficar escondidos pois é noite e tem lua. Vejo que fala com firmeza, dá ordens, está bravo e ao mesmo tempo um pouco assustado. Digo: “o Pedro não gosta da noite, ele tem medo”. Ele logo responde “não gosta, não pode aparecer”. Pega então o lápis amarelo e diz “lá vem o sol, é dia”, mas o sol não se 116 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Este é um momento importante. Ao contar a história do vento que bate portas, a analista introduz a questão da narrativa, que pode ir adquirindo, na relação que vai se estabelecendo, uma abertura para uma nova forma de comunicação. “O vento chega, bate a porta, Pedro fica assustado”. Pode ser o início de uma história: “Era uma vez um menino chamado Pedro, que um dia...” Como em todas as histórias infantis, sempre aparece o medo e a nomeação da qualidade desse sentimento, que a criança conhece porque já o sentiu. Em seguida, Pedro busca a analista para falar de outro sentimento: dor. Assim como ela tinha uma história para o medo, talvez também tivesse uma para a dor. A analista foi extremamente sensível e intuiu que era hora de falar dele, Pedro, de seus sentimentos e de sua busca de um objeto específico e especial, que compreendesse suas dores e pudesse suportá-las. Apresentou-se como alguém que podia entender de histórias, de medos e de dores; Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 117 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch mantém e logo em seguida tem que guardá-lo porque “é noite e tem lua”. Deixa os lápis de lado, pega o caminhão que estava escondido, coloca-o debaixo de uma folha de papel encobrindo-o por completo. A brincadeira passa a ser de assustar o caminhão, levantando um pouco a folha de papel. Pedro aproxima-se do caminhão e emite os sons” buu, buuuu!!! Ao mesmo tempo passa a ficar inquieto com os pés, tira um dos sapatos, dobra a perna sobre o seu joelho e mostrando a sola do pé, olha para mim com uma expressão de muita angústia e diz que o pé está doendo muito. Faço então uma aproximação dos dodóis dele com os medos que me mostrava, incluindo o da borboleta e do seu pedido explícito de ajuda. Pedro volta a brincar com os carros, e provavelmente a “dor” passou, pois ele põe o pé no chão e não reclama mais. Ao término da sessão faz questão de guardar ele mesmo os carros, e vai em busca de um armário, coloca-os bem juntos empurrando-os para o fundo da prateleira. COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA que podia caminhar da alucinação para a fantasia. “Já passou, não dói mais”; é o resultado do encontro com um objeto com capacidade de rêverie, que pode conter e dar significado às comunicações emocionais. Ocorre-me que a satisfação, a euforia de Pedro ao brincar com os carrinhos talvez tivesse relação com sua vivência de potência. Não é mais o menino assustado, talvez impotente até para lidar com a “borboleta”, ou com o “vento”, o que quer que isso significasse naquele momento; pode lutar de igual para igual ou até ser o mais forte (caminhão). Penso que nesse momento é importante observar o movimento em direção à utilização de suas potências, mais do que qualquer interpretação sobre o provável conteúdo sexual da brincadeira. Descobre a caixa de lápis de cor e passa a dialogar com cada lápis, dando a conhecer um pouco do seu mundo de fantasias. Vão aparecendo as proibições: “É noite, vá dormir”. Vão surgindo as conotações superegóicas e fantasias de LUA PERIGOSA e SOL AMIGO. Tem que se esconder da LUA e esperar a proteção do SOL. A analista nomeia o medo e o relaciona com a noite, e ele confirma que à noite ele tem que ficar escondido da LUA. Vê-se aqui um momento em que a projeção de fantasias de um objeto persecutório e de um objeto bom vão aparecendo; o objeto persecutório domina a cena. Identifica-se com o objeto perseguidor e vai assustar o caminhão. Esse é um mecanismo conhecido e que as crianças usam muito para lidar com os perseguidores. Assumem o papel, por ex., do lobo mau, da bruxa e o interlocutor ou o analista é a criança assustada. É o mecanismo de cisão e de identificação projetiva, que M. Klein já descrevera em 1923, em um de seus primeiros artigos. Parece que Pedro não consegue manter por muito tempo essa boa cisão, boa porque por meio dela pode examinar, de dentro, o objeto persecutório. Retoma então a vivência persecutória, expressando-a como dor: o pé dói. A analista dá significado a essa vivência, e ele se alivia. Mais uma vez se observa a importância do objeto compreensivo que dá significado emocional às experiências. 118 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 À medida que iniciamos nosso trabalho, noto que Pedro envolve-se intensamente com o mesmo. Não suporta ficar aguardando na sala de espera (bate insistentemente na porta chamando-me pelo nome), e muitas vezes, ao terminar a sessão, recusa-se a sair solicitando, ora para ficar “só mais um pouquinho”, ora pretendendo ficar ali “para sempre”. Fui sentindo a necessidade de estabelecer sinais precisos para marcar o término das sessões; para tanto encaminhava a brincadeira de modo a terminar dentro da caixa de ludo. Se Pedro estivesse entretido, por exemplo, com o “trem” eu direcionava o movimento de tal forma que a caixa passava a ser a estação de chegada, o término do percurso definindo uma condição de acolhimento. Percebi que assim Pedro vivia o final da sessão não como uma interrupção abrupta ou uma ruptura, mas como algo que sugeria um “repouso”, uma “trégua”, enfim uma continuidade. Movimentos dessa natureza foram necessários ao longo do nosso trabalho, pois Pedro tinha vivências extremamente ameaçadoras, sem nenhuma possibilidade de contenção. No início a própria sala de trabalho não tinha limites; tudo que seus olhos alcançavam fazia parte do cenário da sessão; os carros estacionados na rua, as motos que passavam, a fumaça que saía da chaminé de uma lavanderia, eram vivenciados persecutoriamente como invadindo nossa sala. Não havia discriminação entre dentro e fora, interno e externo. As angústias eram avassaladoras e vivenciadas numa cadência de extensão sem fim. A única ferramenta que Pedro usava para tentar lidar com essas situações era a utilização de dois objetos pontiagudos que funcionavam como uma tesoura “para cortar o perigo” (sic). Nesses momentos ficava envolvido na atividade de bater incansavelmente a “tesoura” contra a mesa, parede, cadeiras, carrinhos, não havendo nada que o fizesse interromper tal atividade. Numa das sessões em que brincava com dois aviões de massinha, um pequeno e um grande, tentando lidar com o medo que estes lhe causavam, percebi que a todo momento lançava olhares através da janela. Notei que tentava controlar a lua que segundo ele estava lá fora no Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 119 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch 3 – Construção da Relação Emocional COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA céu, mas que parecia poder penetrar na sala a qualquer instante, causando estragos. Pedro estava irrequieto, apreensivo, assustado, desassossegado, e o clima era de muita tensão. Num determinado momento, quando Pedro lança mais um desses olhares para fora, para a suposta lua, automaticamente com o meu braço fiz um movimento de pegar a lua e traze-la para dentro: assim, a minha mão direita tornou-se a lua. Pedro (diferentemente do que eu esperava, quando me dei conta do meu ato), ficou muito interessado pela lua dentro da sala, fazendo parte do meu ser. A partir de então passou a relacionar-se com uma lua mais real e presente, que ora era inimiga, brava, ameaçadora, e ora amiga e companheira. Durante algumas sessões só existia para ele a lua, e através dela representava suas relações de medo ou de amizade. Num determinado dia, ao dar-se conta que a luz da sala estava acesa e portanto, segundo ele, era dia, transformou imediatamente minha outra mão em sol. Este, sempre foi amigo, companheiro e muitas vezes o grande aliado de Pedro contra a lua. Criou-se uma situação de dois (Pedro e o sol) contra um (lua). É interessante salientar que diversas vezes, quando Pedro estava extremamente angustiado, e irritado com minhas tentativas de aproximação, eu introduzia uma conversa entre o sol e a lua, como se o sol-amigo estivesse contando para a lua o que estava acontecendo com o Pedro. Ele parava o que estava fazendo, ficava muito interessado e na maioria das vezes a situação era contida. Talvez minha descrição dos fatos sugira uma evolução linear e constante, mas na realidade o que ocorria era algo muito mais turbulento e desintegrador, com instantes um pouco mais contidos e integrados. O tecer do vínculo era feito às custas de muito sofrimento, e muitas vezes eu ficava numa atitude de observadora complacente com sua dor, mas sem muito o que fazer. Durante várias sessões consecutivas Pedro se entretinha com objetos pontiagudos (lápis) que ele fazia penetrar em qualquer orifício que encontrasse na sala: buracos da fechadura, reentrâncias da mesa e da poltrona, saliências do piso e do rodapé. Esse universo de atuações passou a ficar mais restrito, com o andamento do trabalho, e Pedro passou a recorrer a esses movimentos apenas na poltrona que eu normalmente sento. Pude 120 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 121 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch então apreender nuances de vivências que antes eram impossíveis de serem detectadas. O penetrar do lápis na poltrona só ocorria quando eu estava nela sentada, e na sua maioria das vezes era acompanhado de um olhar vago, com movimentos lentos, e de uma penetração suave e constante contendo, provavelmente aquilo que o pai relatara: uma sensação de alívio e tranqüilidade. Aos poucos pude perceber que essas manifestações surgiam quando Pedro demonstrava a dor de ter ficado afastado de mim (fosse o intervalo de fim de semana, ou mesmo entre sessões). A poltrona passou a ser identificada com a minha pessoa, e diversas vezes Pedro tirava toda sua roupa, solicitava que eu sentasse na cadeira “dele” e, apoderando-se da minha, passava a se esfregar nela e a cheirar o seu interior. A visão que eu vislumbrei foi a de um bebê no útero, movimentando-se no seu interior, e tendo prazer em “experimentar” este conteúdo interno: o resultado era satisfação e muita tranqüilidade. A família de bonecos que até então não fazia parte de seu universo de brincadeiras, passa a ser utilizada como uma expressão mais evoluída da formação de vínculos. Ao descobrir a boneca mãe, agarra-a dizendo “ela é minha”, e desenvolve uma brincadeira onde eu tenho que tentar aproximar os demais bonecos (pai, irmã, avó) dele e da mãe. Pedro então empurra violentamente com a mão o boneco-pai por exemplo, e aproxima do seu corpo a boneca-mãe dizendo “não, não, ela é minha!”. Tempos depois passa a usar os bonecos mãe, irmã e avó numa encenação onde ele é aquele que vai em busca de alimento para esses personagens. Para a realização da função de provedor, eu tenho que segurar e representar os três bonecos, que, segundo ele, estão em casa na sala de TV (sempre a irmã sentada no colo da avó, liberando assim o colo da mãe), e especificar quais os filmes que querem assistir ou os alimentos que desejam consumir. Pedro então dirige-se a um canto da sala, e como se estivesse numa vídeo locadora providencia o solicitado. Esse brincar muitas vezes ocupa a sessão inteira, sendo acompanhado por intensa satisfação que às vezes beira a euforia. Aos poucos aparece a criança possessiva, que já tem palavras para exigir: ‘só mais um pouquinho’, ‘para sempre’. COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA Essa é uma das grandes dificuldades no desenvolvimento do ser humano: lidar com seu desejo de posse. Ter a posse é ter a satisfação plena e infinita. Admitir que não tem a posse do objeto e renunciar à ilusão de posse é um trabalho da vida inteira. Interessante observar como a analista lida com a questão. Diz-nos ela: “Fui sentindo a necessidade de estabelecer sinais precisos para marcar o término das sessões; para tanto, encaminhava a brincadeira de modo a terminar dentro da caixa. Se Pedro estivesse entretido, por exemplo, com o trem, eu direcionava o movimento de tal forma que a caixa passava a ser a estação de chegada, o término do percurso definindo uma condição de acolhimento. Percebi que assim Pedro vivia o final da sessão não como uma interrupção abrupta, ou uma ruptura, mas como algo que sugeria um ‘repouso’, ou uma ‘trégua’; enfim, uma continuidade. Movimentos dessa natureza foram necessários ao longo de nosso trabalho, pois Pedro tinha vivências extremamente ameaçadoras, sem nenhuma possibilidade de contenção.” Parece-me que a analista registrara a profunda ansiedade de Pedro ao término das sessões como uma “ansiedade de precipitação”, como diz D. Houzel, queda em um buraco sem fim, e então direcionava os brinquedos concretamente para o continente-caixa, mas simbolicamente para o continente-mente da Analista que dá significado compreensivo-afetivo à situação. A analista relata também que no início a própria sala de trabalho não tinha contornos definidos, incluindo parte do ambiente externo. Poderíamos pensar que Pedro não havia ainda constituído um continente psíquico firme e estável. A falta de discriminação dentro-fora, interno-externo, fala nesse sentido, assim como as vivências de angústia avassaladora. A analista prossegue, informando-nos que a única ferramenta que Pedro usava para lidar com essa situação era a utilização de dois objetos pontiagudos, que funcionavam como tesoura ‘para cortar o perigo’. Parece que em alguns momentos não existem representações mentais para serem processadas, sonhadas, pensadas, e então o perigo se 122 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 123 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch volatiliza. Está em todos os lugares. Destaco aqui a importância da representação mental das experiências emocionais para fantasiar, sonhar, brincar, pensar, e da presença de registros que ainda não ganharam representabilidade. Momentos depois, talvez pela presença da analista que tem funcionado como continente firme para esses sentimentos sem representação, Pedro alcança uma representação: novamente a lua persecutória. Impossível controlá-la ou se defender dela! Tão longe, mas tão perto, tão onipresente, tão intrusiva. A analista percebe essa onipresença e inatingibilidade e a transforma em algo limitado no espaço, e agora acessível. Sua mão agora é a lua. Momento de grande criatividade proporcionado pelo encontro dessa dupla. Com esse perseguidor mais próximo, mais limitado, dá para enfrentar o conflito. Ressalto aqui a importância de o analista “emprestar” sua fantasia ao paciente quando este está paralisado pela angústia. Surge agora a ambivalência. A lua tão ameaçadora, agora que mais próxima e acessível, é também a lua amiga e companheira. A sombra de uma enorme onça agora é percebida como a ampliação de um gato (gata?). Momento de início de integração, fruto das experiências vividas na análise; ora aparecem identificações projetivas de vivências ‘objeto perseguidor’ na analista, ora vivências de objeto compreensivo. Quando predominavam vivências persecutórias, a analista introduzia o diálogo: ‘sol amigo conversando com a lua’, criando espaço para que o aspecto objeto bom-compreensivo se fortalecesse, possibilitando o reequilíbrio da situação. Um ego fortalecido pela presença mais ativa do objeto bom assume o comando. Quero salientar outro ponto, em que a analista nos informa sobre a atividade repetitiva de Pedro, que preenche buracos com objetos pontiagudos. Repetição do modelo mamilo-duro na boca? Tampão, para não viver angústias de vazio, de queda no buraco sem fim? Pênis na vagina? COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA Vivências de completude? São idéias para serem examinadas. A repetição culmina com uma ação de restrição: a poltrona da analista, que então pode compreender melhor a especificidade da defesa: a busca da sensação de alívio e satisfação que a completude traz (seio na boca? pênis na vagina?). Defesas contra sentimento de separação e perda. Defesa primitiva que busca negar a ausência, ao invés de elaborá-la. É a defesa possível no momento. Não tem ainda um aparelho mental com melhores recursos para lidar com a angústia de perda. Pedro passa a brincar com os bonecos. Um progresso. Agora, é capaz de externar verbalmente seu desejo e sua ilusão de posse da mãe: ‘Ela é minha!’ A vivência de ser separado, e de não ter um objeto de satisfação único e exclusivo gera a crise da dependência em relação ao objeto e suas conseqüências. Nesse momento, Pedro vive a ilusão da fusão com a mãe-seio provedora e a analista é identificada com os bonecos mãe, avó, irmã, necessitados e desejantes. Vive um momento de onipotência, mais próprio de uma criança de 2 a 3 anos. Ele é o objeto completo provedor. Parece-me importante que possa viver essa experiência, para depois poder trabalhar o luto da ilusão perdida, ou seja, a desilusão. 4 – Sessão de Segunda-feira da Última Semana Antes das Férias Tenho que ir buscá-lo na sala de espera, por solicitação dele. Pedro imediatamente se enfia por debaixo da cadeira onde a mãe está sentada, e ao tentar pegá-lo, se agarra nas pernas da cadeira e grita “mãe, mãe, socorro”, mas ao mesmo tempo entrega-se a mim. Ao entrar na sala de ludo, pega a tampa da caixa, joga-a ao chão e diz que hoje não queria entrar. Dirige-se à caixa e encontra uma folha de papel com o calendário que eu fizera para ele, pontuando os dias que indicariam o término do nosso trabalho, e portanto o início das férias. Pedro pega dois lápis e começa a bater forte na caixa. Faz questão de fazer bastante barulho 124 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 125 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch e olhando para mim exclama “barulho, barulho, barulho!”. Digo para ele: “Você está fazendo um barulhão porque a Regina está saindo de férias, e o Pedro vai ficar sem vir aqui.” Ele então tira todos os objetos da caixa, entra dentro dela, curva-se ao máximo de tal forma que caiba por inteiro dentro da mesma; pega a tampa e solicita que eu feche a caixa com ele dentro. Quando falo do seu sofrimento com relação à nossa separação, e que ele queria ficar dentro da caixa-barriga-Regina, ele sai da caixa e dirigindo-se à sua poltrona começa a emitir sons como se fosse um pequeno animal, fraco e desamparado. Digo que se ele não fica dentro da barriga-Regina ele fica igual a um cachorrinho sozinho, triste, chorando. Em seguida solicita que eu pegue a boneca-mãe, retira-se para o banheiro, fecha a porta, e após alguns minutos pede-me para buscá-lo com a boneca-mãe na mão, como se ela estivesse indo pegá-lo na escola. Repete essa brincadeira por três vezes consecutivas, e a seguir leva a boneca para sua poltrona, passando a mordê-la incessantemente, numa tentativa violenta de incorporá-la. Enfia por inteiro a cabeça da boneca na boca, faz movimentos de tentar engolir, repetindo o mesmo com os braços, as pernas, e assim sucessivamente; ao mesmo tempo vai contorcendo-se na poltrona, evocando-me a cena de uma gata que, no desespero de perder seus filhotes numa situação de perigo, devora-os. Vou então conversando com Pedro tentando transmitir a minha apreensão de quão perigoso era para ele a separação de alguma coisa, e que a única forma de lidar com isso era tentar se sentir preso à coisa (engolir a mãe ou permanecer sempre dentro dela). Apesar das minhas interpretações e tentativas de contê-lo, Pedro continua desesperadamente “devorando” a boneca-mãe. Senti que nada podia fazer ou interferir, mas fiquei impressionada e angustiada com aquela expressão emocional tão primitiva. Sem me dar conta, passei a alternar o meu olhar: ora para ele (talvez na ânsia de que ele estivesse com uma outra condição) ora para baixo, mais voltada para os meus pensamentos e as minhas vivências. Pedro passa a me chamar: “Regina, Regina, olha, olha, olha!”. Seu apelo era tão compungente e desesperado no sentido de que eu continuasse olhando e COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA suportando aquela cena dramática. Volto a me colocar inteiramente à sua disposição, mas ainda impactada com os impulsos primitivos e as vivências dilacerantes. A mensagem era que se Pedro saísse do útero materno ele não sobreviveria: por isso tinha que estar constantemente “ligado a”. Passo automaticamente a conversar com ele, mas muito mais com a “alma” do que com o “cérebro”. Apesar de não dispor da expressão consciente da linguagem primitiva, tento aproximar-me de seu nível de comunicação. Percebo que algo vai se transformando, já que Pedro vai reduzindo o ritmo de seus movimentos, senta-se na poltrona e fica olhando em minha direção como que entendendo ou “comendo um alimento” que lhe dizia respeito. Colocando agora numa linguagem mais desenvolvida e psicanalítica, o que eu tentei transmitir para ele foi minha apreensão da dor de sentir-se sem o seio, e da necessidade imperativa de engolir esse seio, de tê-lo dentro de si como única forma de proteger-se de um eventual abandono. Pedro, em seguida à minha fala, abre as pernas da boneca-mãe e as aproxima da região de seu baixo ventre, fazendo movimentos no sentido de introduzir a boneca-mãe dentro dele. Digo que se ele guardar as coisas dentro de si, consegue sentir que não vai perde-las. Pedro então coloca a boneca-mãe por baixo da camiseta, como que introduzindo-a totalmente para dentro de sua barriga e olhando para mim diz: “barriga Pedro”. Digo que ele queria entrar dentro da caixa-barriga-Regina, para se sentir guardado ali, e desse modo não perder a Regina. Ele fala: “dentro barriga mamãe”. Digo: “como quando ele estava dentro da barriga da mamãe, e aonde ela ia, ele ia junto; mas agora não é mais assim, e ele então sente muito perigo, muito medo de que a mamãe vá embora e deixe o Pedro sozinho”. Pedro passa a me chamar diversas vezes pelo nome, e embora eu estivesse lá e dizendo, “o que foi, o que foi, estou aqui, fala”, era como se ele não me ouvisse, o importante sendo me chamar, como se eu estivesse longe. Não sei se isso era evidência de poder me ver mais longe, distante, de férias, ou uma comunicação expressiva de que eu não o estava entendendo. 126 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 127 Maria Regina Junqueira e Nilde J. P. Franch Já de início demonstra sua ambivalência. Quer e não quer se encontrar com a analista. Sente-se como aquele objeto largado embaixo da cadeira (como as fezes eram anteriormente largadas sob a mesa de sua casa), como a tampa da caixa largada no chão. O barulho é seu protesto, mas também evidência do barulho interno, da ansiedade frente à próxima separação. Quando a analista compreende o significado do barulho, Pedro pode explicitar muito claramente seu desejo de fusão com a caixa-analista, e o sofrimento causado pela separação. Sente-se como o cachorrinho abandonado, largado, triste e solitário. É importante observar como a disponibilidade da analista para viver com ele sentimentos, desejos e frustrações, verbalizando sua compreensão, leva Pedro a poder expressar cada vez mais seus sentimentos. Não é mais o bebê tranqüilo que não se expressava para nada, nem a criança desesperada, sem recursos para representar suas experiências emocionais. Encena, então, o reencontro: mãe que vai buscá-lo na escola, analista esperando por ele. Essa encenação nos parece expressar a esperança e a confiança no reencontro. A separação não é mais vivida somente como desespero, como queda num espaço sem fim. Há esperança. Mas, esse momento é interrompido por violentas fantasias de perda e desejo de incorporação do objeto. A esperança e a confiança não se mantêm. É o início de um débil movimento, ainda não solidificado. A angústia brota violentamente. Precisa incorporar, controlar, ter a posse, fundir-se. Ao perceber o olhar da analista se alternando, dirigido para ele e para si mesma, Pedro a ajuda e se ajuda. Pede que olhe para ele. Quer ser visto na sua dor, mas quer também que a analista o conserve em seu olharmente. Não quer que ela se contamine com seu desespero e “se retire”, como provavelmente o bebê supertranqüilo se “retirava”. O retorno da disponibilidade da analista, que contém e suporta o sofrimento de Pedro e dela mesma, que mantém sua capacidade de sentir, pensar, falar, ajuda Pedro: é o “alimento” de que ele precisava naquele momento. COMPARTILHANDO A EXPERIÊNCIA CLÍNICA No momento seguinte, fazendo o movimento de introduzir a bonecamãe dentro de si, não estaria nos falando mais da possibilidade de introjeção de uma mãe suficientemente boa, que tem condições para receber a angústia do bebê, metabolizá-la e devolvê-la mitigada? “Dentro da barriga da mãe” não poderia ser entendido como “dentro da mente da analista-mãe”? Penso que logo depois Pedro descobre o poder da memória. Ao ficar chamando a analista pelo nome, parece ter descoberto e estar exercendo o poder da evocação. Quando lembramos o nome de alguém é como estar trazendo essa pessoa para bem perto de nós. Parece-me que ele sentia prazer nesse exercício, pelo prazer de reencontrar-se com a analista, mesmo quando de sua ausência. O desenvolvimento e o exercício dessa capacidade ajuda a criança a suportar as ausências e não se desesperar. Reflexões Trabalho apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000, Gramado, RS, Brasil Dra. Maria Regina Junqueira Rua Helena, 170 cj. 121 04552-050 São Paulo – SP – Brasil Fone: (0xx11) 3849.5242 Dra. Nilde J. Parada Franch Rua João Moura, 647 cj. 103 05412-911 São Paulo – SP – Brasil Fone: (0xx11) 3064.4609 e (0xx11) 3845.6689 E-mail: [email protected] 128 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Introdução Myrta Casas de Pereda Membro Titular da Associação Psicanalítica do Uruguai O objetivo destas linhas será sustentar, a partir da nossa práxis, algumas idéias sobre uma perspectiva dinâmica para abordar a questão das primeiras inscrições. Sublinho, assim, a possibilidade de um afrouxamento nos limites mais duros da psicopatologia, onde as fronteiras entre neurose e psicose, ampliadas pela gama de patologias narcisistas e borderline, assinalam, na verdade, diversas modalidades de estruturação psíquica passíveis de transformações e modificações, especialmente quando são provenientes das crianças em análise. Isto ajuda a redimensionar a neurose nas suas prerrogativas de gravidade, que não, necessariamente, se apre- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 129 Myrta Casas de Pereda Sobre as Primeiras Inscrições SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES sentam como psicose, e que é o campo mais freqüente de incidência do trabalho analítico. Sem dúvida, as representações inconscientes condicionam modalidades da repetição e do sintomático que individualizam cada ser humano. Mas, cabe pensar na nossa escuta psicanalítica, naquilo que somos capazes de ouvir para que existam chances de que algo possa ser transformado. Se existe certa fixação na modalidade sintomática (o sujeito nas suas relações objetais), isso não significa a radicalidade que costuma ser dada a uma suerte de marca a fuego, mas que constitui a maneira de processar o traumático: repetindo o que não pôde ser inscrito. A inscrição, por sua própria definição, sempre apresenta um lado real, não representável, que assinala a qualidade do inscrito e abre, a partir daí, caminhos de busca que o desejo percorre. É traumático aquilo que não pode ser inscrito, mas, também, aquilo que não pode não se inscrever e que aponta ao Outro em funções que estão falhando. A marca, como escritura, denuncia a conjunção de uma perda (lado coisa) com uma representação inconsciente que conserva a qualidade (Freud, 1895, p.189) do acontecimento (sentidos incestuosos, de terror, mortíferos, prazerosos...). A interpretação psicanalítica conduz ao mais perto possível das coordenadas prazerosas-nãoprazerosas que rodearam a inscrição psíquica. Não irei considerar, neste trabalho, aqueles casos cuja magnitude de esburacamento psíquico resulta em autismo ou psicose graves. Meu objetivo, então, será refletir sobre a dimensão estrutural das primeiras marcas, seus efeitos e destinos durante o trabalho de subjetivação, o qual também implica sua escuta, a partir dos efeitos transferenciais no processo analítico. Farei um breve relato metapsicológico sobre a inscrição psíquica para abordar, desde a clínica, os efeitos de uma estruturação problemática que reveste aparências de extrema gravidade e que, porém, era parte natural da neurose, na sua estruturação defeituosa. 130 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 De uma maneira abrangente, chamamos de primeiras marcas ou primeiras inscrições um acontecimento psíquico que abrange categorias de espaço e tempo não mensuráveis, não quantificáveis (pois isso comportaria uma perspectiva geneticista), mas um espaço – tempo aberto, mutante, no gerúndio, onde diacronia e sincronia reúnem forças. Trata-se de um sujeito realizando-se com o outro e o Outro, nos sutis e diversos laços libidinais que tornam possível uma inscrição, ou seja, de que aconteça uma repressão primária (Freud, 1895, 1896, 1915). Laplanche mostra muito bem quando diz que a repressão primária é um processo, e não uma entidade isolada e pontual. Penso que é um “sucedendo”, durante muito tempo, que abrange, sem dúvida, os primeiros anos infantis, onde se faz notória a dimensão estrutural onde incide o desamparo psíquico com o qual nasce o sujeito ao mundo (Hilflosigkeit). Repressão primária e identificação primária são os nomes que mencionam o originário, o UR, o primordial, indispensáveis instrumentos na nossa metapsicologia que indicam momentos míticos da constituição do sujeito; míticos por não apreensíveis, não por não reais, míticos por não recuperáveis na sua absoluta dimensão inaugural (Freud, 1896), pois o que está em jogo, em ambos, é a marca de uma volta da pulsão que enlaça o desejo do Outro antes de voltar sobre o eu (Lacan, 1964). Momento de subjetivação que implica a divisão (consciente-inconsciente), descrito por Freud (1895) no modelo oral da ação específica. Ali se reúnem a demanda e a resposta do outro (Nebenmensch), fazendo marca psíquica através da repressão, a dor, a angústia e a alucinação (fantasia), e onde descreve, ao mesmo tempo, a inscrição (Vorstellungrepresentantz), como predicado da perda de um lado coisa. Isto deriva, a partir daí, na capacidade de reproduzir uma imagem (alucinar), isto é, inaugura-se o espaço da fantasia, pois emerge o desejo que circulará, para sempre, sobre as representações sujeitas, então, a novas articulações e ressignificações. 1. Estas idéias foram extensamente trabalhadas em Pereda, 1999. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 131 Myrta Casas de Pereda Breve Relato Metapsicológico1 SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES Verdadeiro espaço-tempo de uma experiência de sublevação que acontece sempre entre sujeito e objeto, onde o Outro simbólico está presente na função materna (função narcisisante) consubstancial à função de corte. Da assinalada emergência do desejo depende o curso da cadeia representacional (ou significante), as associações por similaridade, contigüidade, similicadência, que condicionam a maneira de funcionamento do chamado processo primário que não é, senão, o funcionamento do inconsciente através da condensação, o deslocamento e a figurabilidade; tropos da linguagem, metonímia e metáfora. Cada vez que a pulsão pulsa, cada vez que seu objeto, o outro e seu desejo, se fazem presentes no circuito da pulsão (parcial), nas suas diversas modalidades, oral, anal, seu olhar e voz, cada vez, então, é produzida uma marca, um sinal do outro em mim, que conduz a uma perda estrutural e a emergência do desejo. É a constituição do objeto perdido para Freud, ou a queda do objeto em Lacan, que nomeiam estes momentos de subjetivação, onde o desejo do Outro é consubstancial à própria marca. Incorporar o olhar e a voz como circuitos pulsionais é uma contribuição de Lacan2 à teoria. Também Winnicott (1968), em outro esquema referencial, privilegiava o olhar da mãe como primeiro espelho para a criança. Destaco, para fazer presente, a importância do especular nesses primeiros momentos. A primeira identificação com a imagem no espelho configura o eu como unidade, e isso acontece em um duplo registro, imaginário e simbólico (eu ideal-ideal do eu), que implica a presença do olhar, o olhar da criança no espelho, e daquele que a olha olhar-se, como um ato de reconhecimento3. É a origem narcisista do eu com a alienação na sua origem; entretanto, existe uma desmentida estrutural, presente na montagem das defesas, que 2. O desenvolvimento dessa proposta está no Seminário sobre A Angustia (Lacan, 1962). 3. Momento em que se reúne a repressão primária com a identificação primária, em que esta última se plasma através desse significante do Outro, que vem através da imagem própria (Ph. Julien, 1986). 132 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 133 Myrta Casas de Pereda se ocupa da pulsão e que fala de um efeito de desconhecimento da relação simbólica, permitindo, precisamente, a ilusão. Saber e não saber do simbólico em questão (que é sempre a castração e a morte) oculta, também, o reconhecimento da dualidade e constrói e constitui o imaginário que nunca será puro, visto que o desconhecimento (não querer saber, que organiza a crença) é sobre uma relação simbólica (Teorias Sexuais Infantis). Poderíamos dizer que o eu é narcisista, especular e paranóico, pois esse é seu primeiro modo de “conhecer”... a “realidade”. O conhecimento paranóico é intrínseco ao transitivismo e constitui, por sua vez, a matriz do eu. É, como assinala Lacan (1946), “esse palácio dos espelhismos que reinam nos limbos deste mundo (dual e imaginário) ao que o Édipo faz fundir-se no esquecimento”. Nesse reinado de espelhismos, idealizações, onipotência, que transmitem, de maneira tão eloqüente, o desamparo, constitui-se a relação de exclusão entre o eu e o outro: “A relação de exclusão que estrutura, a partir desse momento, no sujeito, a relação dual de eu para eu” (Lacan, 1962). É a Urbild do eu, sua formação primária. Eu ideal, narcisismo, pano de fundo nunca perdido de todo movimento de identificação. Eu ideal, ideal do eu, movimento permanente da subjetividade que implica essa luta até a morte com o outro especular que assinala, cada vez, a saída do dualismo paranóico. Modelo este, o do conhecimento paranóico, que se faz presente, com mais freqüência do que podemos reconhecer, na sintomatologia infantil, expressando, assim, seus danos narcisistas. Essa dimensão estrutural recria-se na transferência, constituindo um lado medular da nossa escuta analítica. A partir dali, a atualização e a ressignificação transferencial constituem um espaço-tempo privilegiado que pode dar lugar a modificações estruturais, a novas marcas pulsionais, escrevendo ou reescrevendo a história do sujeito. SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES Material Clínico4 Leo, aos seis anos de idade, apresenta uma seqüência de fracassos na sua socialização, com sucessivas expulsões de dois colégios, por transtornos de conduta. Não respeita a autoridade nem os limites, sua atitude é desafiadora, e com isso induz, com freqüência, ao descontrole do outro e seu castigo subseqüente. Negava-se terminantemente a participar de aniversários e, em uma oportunidade, em que foi obrigado, bateu no pai do homenageado, quando tentava dar limites, e, ameaçando a todos com um pau, fugiu da casa. Os pais, após improdutivas buscas por novos colégios, realizam uma consulta psiquiátrica e um estudo psicológico. Nasce aí um prognóstico sombrio de esquizofrenia infantil. É indicada a psicoterapia. Finalmente encontram um colégio que o aceita, e seu início coincide, também, com o início da sua psicanálise. Na primeira entrevista com a pediatra, que indicou o tratamento analítico, a fúria da criança e seu descontrole foram extremos: começou a girar vertiginosamente no chão sobre um dos seus lados, sem que fosse possível contê-lo, até que a mãe “reduziu-o”, agarrando fortemente pelo tórax, durante o lapso de espera, até ser atendido; após, durante a consulta, insultou a doutora de maneira tão agressiva e grosseira que a entrevista teve que ser interrompida. Os transtornos de conduta, em nível familiar, desencadeados pela mínima tolerância a limites e frustrações, “obrigavam” os pais a “colocá-lo no chuveiro frio” nos momentos de crise. Também apresentava uma encopresis secundária, intra e extrafamiliar com condutas bizarras na hora de defecar: fechava-se por um longo tempo no banheiro, gastava o rolo inteiro de papel, deixava restos de papel sujo esparramados e chegou a sujar com matérias fecais paredes e artefatos do banheiro. Leo tem fobias múltiplas, “mais que medo”, refere o pai, da morte, do escuro, das injeções. Durante a noite, os pesadelos o acordam assustado. 4. Agradeço, especialmente, à Dra. Diana Szabo pela autorização para dispor do material clínico que ela apresentou no Seminário Curricular do nosso Instituto de Psicanálise: Seminário Teórico Clínico, 1999. Coordenação Docente: Myrta Casas de Pereda. 134 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 135 Myrta Casas de Pereda A inquietude psicomotriz, presente há tempo, aumentou claramente, a partir dos dois anos e meio (coincidindo com o nascimento de seu irmãozinho), quando se instalam o negativismo e a desobediência extrema. A lactância desse segundo bebê foi uma verdadeira via crucis, pois tinha refluxo gastro-esofágico, e a mãe fechava-se para dar-lhe de mamar durante duas horas cada vez, abatida em sua depressão pelos vômitos durante a mamada. Progressivamente, esse bebê desenvolveu-se mal e pouco, acreditando-se ser surdo-mudo até há pouco tempo (quatro anos). Tinha lesões no ouvido médio de causa alérgica, que impediram sua audição e o desenvolvimento da linguagem. Uma vez feito o diagnóstico (recentemente) e adequadamente tratada, a criança começou um desenvolvimento acelerado, indicando ser uma criança bastante saudável. Leo, assistindo esse drama cotidiano, que se cristalizou no crescimento defeituoso, pergunta constantemente por que seu irmão não é como as outras crianças, “por que não posso brincar com ele?” Ambos os pais dão uma imagem de desamparo desolado, completamente transtornados pela situação, ao mesmo tempo em que, através de seu discurso e da história, se escuta com clareza a profunda desmentida e negação diante dos problemas dos filhos. A mãe mostrava marcados elementos depressivos, e o pai um ar de imaturidade angustiada, evidenciando dificuldades em sustentar seu papel. Adjudicavam todos os transtornos a diversas eventualidades que ocorriam a sua volta (mudanças, troca de creche, troca de escola, doenças ou a própria sorte) e deixavam transparecer seu próprio desamparo diante das dificuldades que venciam todo o espaço da função simbólica parental do cuidado dos filhos. É realmente insólito que acreditassem que uma criança normal fosse surdamuda. Eles mesmos, sem limites claros, no que se refere às mínimas condutas educacionais: o pai toma banho com o filho, ou ambas as crianças entram no quarto da mãe, quando ela troca de roupas, “para ver as tetas da mãe”, não “podendo encontrar” qualquer recurso para evitar. Detive-me nesses detalhes da história porque abonam o entendimento de suas dificuldades mais primordiais, que fixam Leo em um discurso persecutório: tem SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES medo de tudo e ataca tudo e todos. A conduta anti-social, Winnicott insistia nisso, não é outra coisa senão uma reclamação e uma demanda de amor de alguém que não pode mais que fazer ao outro aquilo que sente que fizeram com ele; fantasias intensas de roubo, mutilação, desamor, desamparo reiterado ou filicídio, que sempre entranham a perigosa passagem para o suicídio. Podemos inferir que todo o primordial é feito com certo defeito, mas é feito, e seus efeitos não podem deixar de ressignificar-se e aumentar, com o passar do tempo, em função desse desfalecimento das funções simbólicas familiares. Essas, por outra parte, também contêm elementos ternos e libidinais que coexistem junto com as vivências de desolação. Transmitem, desta maneira, suas próprias dificuldades organizativas, em sintonia com as da criança. Também prevêem um prognóstico não totalmente desfavorável. O que, do ponto de vista psiquiátrico, foi catalogado em vários momentos como psicose infantil, demonstrou não sê-lo, através do andamento do seu tratamento. Leo sente-se um dejeto, essas fezes que joga sobre o outro, fazendo com que seja castigado, expulso, rejeitado. A pouca percepção dos problemas dos filhos por parte dos pais contribui para essa enorme instabilidade da base parental, que não faz mais que aumentar a vivência de desamparo, de insegurança, de estar sempre em perigo. A realidade das dificuldades iniciais na vida de seu pequeno irmão incrementa as naturais culpas de toda criança, perante suas fantasias agressivas fratricidas, onde culpas e castigos reforçavam-se, intensificando, assim, sua localização paranóide. O que os pais julgavam ser tudo externo (projeção) incide na conduta de pé de guerra que exibe a criança. Vou transmitir agora o primeiro encontro com a analista, a primeira entrevista, através de seu próprio relato. Leo está na sala de espera, sentado muito perto da sua mãe. Trata-se de uma criança alta e robusta, com uma voz particularmente grave, que parece mais velho e que contrasta com o aspecto frágil da mãe. Vou buscálo, me olha brabo, digo: “Oi, você é o Leo?, meu nome é Diana e queria que nos conhecêssemos ...”. Interrompe-me, gritando: “Sai, velha, gorda, 136 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 137 Myrta Casas de Pereda nunca magra!”. Causou-me muita graça sua aguda perspicácia e eu sorrio. Começa uma discussão com a mãe, que quer que ele entre no consultório, e finalmente Leo tira-lhe as chaves do carro e me segue com elas na mão. A.: Tens medo que a mãe vá embora e te deixe aqui? L.: (Vai até o quadro e pega uma caneta verde.) Se este verde não funciona, morro! Quando vais colocar um pincel atômico permanente? Retira-se com álcool. A.: Queres ficar permanentemente? L.: Sim, mas retira-se com álcool. A.: Claro, ficar, mas poder ir embora. Rabisca o quadro sem desenhar nada específico. A.: O que estás fazendo? L.: (Mudando para um tom adultóide e didático). Sabes o que faziam os homens das cavernas que não sabiam falar? Desenhavam. Por exemplo: sopa. Depois veio o alfabeto. Escreve algumas letras. Faz algumas letras. O h é mudo, mas não em inglês. Após falarem, usavam o quadro para desenhar coisas que não existiam e eram divertidas. A.: Estás me ensinando? L.: Sim, se eu puder, eu ainda vou à escola. (Apaga as letras e diz o alfabeto.) Não existe letra que eu não saiba, não existe letra que fuja de mim. Está de costas para mim, desenha um quadrado preto e pinta seu interior de azul, continua riscando para baixo, cada vez com mais pressão. L.: Posso ir? A.: Ainda não. L.: Eu não vou pensar em coisas boas porque irão me colocar em uma má condição, que eu venha te ver. Desenha um circulo e outra figura poligonal. A.: E agora, o que estás fazendo? L.: (Olha com a fronte franzida, desenha uma figura humana.) Esta é você, com cara triste, porque me faz lembrar do (colégio do qual foi expulso), a uma diretora malvada. Tu achas que me enganas? SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES A.: (sorrindo) E sou uma velha podre. Sorri com picardia. [...] Olha pela primeira vez o material de jogos que está sobre a mesa. L.: Ah, uma construção. Sabes o que vou fazer? Vou transformar em pó. Joga tudo no chão. Tenta abrir a persiana de maneira brusca e torpe. Digo que assim não e mostro como se faz. Examina o ambiente, vira as cadeiras com os pés para cima. Marca o escritório com a ponta da chave. A.: Não, Leo, não risques, porque se fica estragado, depois vais te sentir mal. L.: Quero marcar as vezes que virei. Tira a lapiseira da minha mão de supetão. A.: Se tivesses me pedido, teria te emprestado. L.: Empresta a lapiseira? A.: Sim. (Continuo escrevendo com o lápis). Desenha em uma folha. L.: É um mapa de fugas. A.: Será que não é o caminho que vamos fazer juntos? L.: Não, somente é um mapa de fugas. Comentarei (parcialmente) o que entendo constituir um momento pontual de quebra na vivência persecutória. Diante da saída hostil da criança como primeiro contato verbal, junto a gestos e tons desafiantes, a analista responde de uma maneira singular: Fica assombrada, acha engraçado, valoriza, “Diverte-me sua aguda perspicácia”. Resposta cálida àquilo que pôde ter sido sentido como agressão e que, ao mesmo tempo, e sem sabê-lo, introduz uma dimensão simbólica, o terceiro da piada, como assinala Freud. Ridicularizá-la, como primeiro contato, também assinala o sintoma como expulsão hostil (espalhar as fezes), que não é senão uma das variadas formas que assume a vivência persecutória. Com o sorriso, a analista redimensiona o ataque, ao fazer presente o humor. Surge de maneira espontânea, sem esforço nem prepara138 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 139 Myrta Casas de Pereda ção intelectual, e isso condiciona seu efeito de interferir nas mencionadas vivências persecutórias. Incorre no outro (analista) através do ridículo que une o erótico e a agressividade e que dá lugar a outro cenário, onde esses mesmos elementos configuram novas imagens. A agressividade natural na apropriação do objeto implica a pulsão, onde o outro se deixa amar, odiar, tolerando sua própria destruição ou sobrevivendo-a, como assinala Winnicott. Também demonstra de entrada que se pode brincar de atacar, que o ataque pode ser incluído em uma dimensão lúdica onde é habilitada a emergência dos fantasmas anais sádicos ou orais destrutivos empantanados em uma faticidade que coagulava sentidos. Se o fantasma recupera a dimensão de tal, o caminho da neurose fica habilitado (simbolização). O investimento libidinal do analista, desde o começo, alude a seu próprio compromisso na tarefa e alivia de possíveis cristalizações persecutórias. Também aproxima sua escuta aos medos, nomeando-os quando, para entrar no consultório, Leo tira da mãe as chaves do carro. A resposta de Leo não se faz esperar e emerge como seu primeiro pedido de ajuda (demanda): “Se este verde não funciona, morro”. Patético pedido de ajuda habilitado, sem dúvida, pela atitude da analista, que inaugura a possibilidade de reescrever as primeiras marcas, onde a depressão materna fez estragos nas suas inscrições. A analista escuta as metáforas do discurso de Leo, produzidas em uma temporalidade não coerente de tempos verbais, que estão presentes no diálogo lúdico, a dialética presençaausência: “Quando vais colocar um pincel atômico permanente? Retirase com álcool”. Isso é o que privilegia a analista ao retomar os termos “permanente” e “o fato de ir embora” que alivia Leo do (possível) engolfamento no desejo materno, da fusão enlouquecedora, própria do dual. Mas, o persecutório insiste: “tu achas que me enganas” – onde a analista reitera este recurso ao humor, agregando ao discurso da criança o “e sou uma velha podre”. Coloca humor nesta impugnação ao outro, que a criança insiste em promover, o qual redunda em sucessivos momentos de alívio objetivados no material. A analista triadiza (de tríade) todo o tempo SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES e não devolve suscetibilidades, ataques ou retaliações. Leo reitera a destrutividade fusional; ao termo “construção” lhe segue: “Vou transformar em pó”. Construir-desmontar, fazer-desfazer convocam um lado de ser e des-ser (desfeito), que concretiza de fato. Ao mesmo tempo, isto constitui uma maneira de explorar a resposta do outro, e aqui a analista começa um trabalho ininterrupto durante a análise, onde limitá-lo na destruição, no des-fazer-se, também será essencial. É significativo como a criança entende o limite do “não”; diz: “Marcarei as vezes que virei”. Nessa breve seqüência, existem indícios vitais em torno da possibilidade de confiar no outro, de transformar desconfiança em confiabilidade, e antecipa a difícil tarefa da repetição. Termina a sessão reiterando suas defesas – mapa de fugas – que é um recurso habitual diante do enfrentamento dual e que assinala seu medo de ser eliminado, que alterna com eliminar a si próprio do âmbito do outro (fuga e desaparecimento). Para Concluir Como saber das pegadas primordiais senão através da rede de significações já acontecidas, ainda nos primeiros anos da infância? Na primeira entrevista, surge com força a demanda de ajuda da criança junto a sua capacidade simbólica. Faz de uma maneira muita bonita, quando, pouco antes de começar a sessão e referindo-se aos homens da caverna, diz que antes de saber (“falar”) de seu sintoma estava o ato (“desenhavam sopa” – valor icônico) e após o alfabeto (“saber falar”, “podiam ser desenhadas coisas que não existiam”). Singular maneira de falar sobre seus símbolos. Diacronia e sincronia do discurso infantil onde a atualização sintomática falante (onde prevalece expulsar e ser expulso) acompanha suas disponibilidades representacionais. Verdadeira demanda ao outro de uma tolerância extrema ao risco de uma queda na reiteração do círculo vicioso de ser efetivamente rejeitado e expulso. Também é presença do prazer do sintoma (benefício primário e secundário do sintomático, Freud), que fixa o sintoma na sua repetição. A depressão materna deixa marcas fortes nas funções parentais, que são reiteradas com o nascimento do irmão, ao contemplar na 140 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 141 Myrta Casas de Pereda decepção e angústia maternas um “não posso mais com isto”. A presença do diferente, do estranho na figura do irmãozinho não faz mais que reiterar um circuito dual e persecutório, onde o fracasso, o dano e a morte ficam em oposição frontal e absoluta com a vida. É muito forte a marca de contemplar um irmão defeituoso, pois ressignifica os fantasmas de dano próprio, acusando ao Outro de fazer filhos mal feitos. O fantasma filicida, presente na dimensão depressiva materna, alimenta a manutenção e a piora sintomática de Leo. A mãe depressiva não consegue enfrentar a agressividade do filho e contribui ao retorno sem saída do rejeitar-ser rejeitado. A falta de limites em Leo recaía também no fracasso de seu esfíncter anal, nesse complacente trânsito, onde dentro e fora ficavam impugnados e onde ele mesmo se convertia em objeto descartado. A constante alusão a limites que a analista propõe em diversos contextos e circunstâncias (nem sempre fáceis) também incide na possibilidade de incorporá-los não sadicamente, mas de uma maneira prazerosa. Assim, seu corpo começa a poder responder “às normas de socialização”. O fato de valorizá-lo e respeitá-lo, desde o começo, assinala um ato de reconhecimento simbólico, imprescindível nesta história, onde, contra todo o previsto, após um ano e meio, a criança passa a “dispor” de seu fantasma, abandonando o ato sintomático, seja do desafio, ou dos transtornos de conduta, as dificuldades em seu rendimento, o do briguento ou o do encoprético. Não duvidamos de que sua disponibilidade simbólica esteja em seu início, mas também está claro que o fato de que seja ouvido e potencializado pelo encontro transferencial dá lugar às mudanças. As primeiras marcas, então, não definem ou marcam para sempre a estrutura do sujeito, pois a possibilidade da ressignificação e de mudança estrutural, mediante a Psicanálise ou não, escrevem uma história em que o destino da estrutura sempre depende de seu encontro com o outro, parental ou social. Não esqueçamos que o destino, para Freud, recai, de fato, sobre as figuras parentais, e o analista retoma simbolicamente esta passagem do bastão. SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES Sinopse O trabalho propõe uma perspectiva dinâmica, onde a substituição e a transformação do fantasma sintomático reorganiza as articulações patogênicas das marcas mnêmicas inconscientes. Ao enfoque da repetição sintomática se opõe a escuta analítica que, propiciada pela recriação e atualização transferencial, permite que o objeto (para o outro a quem é dirigida a pulsão) ofereça um perfil diferente. A interpretação psicanalítica conduz o mais próximo possível das coordenadas de prazer-desprazer que rodearam a inscrição psíquica. Através de um exemplo clínico da análise de uma criança de seis anos, reflete-se sobre a dimensão estruturadora das primeiras marcas (sempre inferidas), seus efeitos e destinos na estruturação psíquica e sua escuta a partir dos efeitos transferenciais no processo analítico. Desde uma socialização altamente dificultada por severos transtornos de conduta, o espaço transferencial (como resposta espontânea e não programada do analista) privilegia a demanda de amor em um forte discurso persecutório que desarticula, uma e outra vez, o circuito paranóico. Também a utilização do humor e a imposição de limites de forma serena e libidinal permitiram uma singular inflexão da sintomatologia nos primeiros anos da análise. Summary This paper proposes a dynamic perspective, where the substitution and transformation of the symptomatic phantasm reorganises the pathogenic articulations of the unconscious marks (traces). The fixed character of the symptomatic repetition is opposed by the analytic listening which, encouraged by the transferential recreation and actualisation, allow the object (the other towards whom the drive is addressed) to offer a different profile. The psychoanalytical interpretation leads as close as possible the coordinates of pleasure-displeasure that surrounded the psychic inscription. Using a clinical example from the analysis of a six year old boy, we reflect on the structuring dimension of the first marks (always inferred), their effects and aims in psychic structuring, and how they are listened to via the transferential effects in the analytical process. From an extremely hindered socialisation due to severe behaviour disorders, the transferential space (as a spontaneous and non-programmed response from the analyst) hierarchises the call for love in a highly persecutory discourse, which once and again disarticulates the paranoid circuit. The use of humour and the serene and libidinal setting of limits enabled a singular inflection of the symptomatology throughout the first years of analysis. 142 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 El trabajo propone una perspectiva dinámica donce la sustitución y transformación del fantasma sintomático reorganiza las articulaciones patógenas de las marcas (huellas) inconscientes. A la fijeza de la repetición sintomática se opone la escucha analítica que, propiciada por la recreación y actualización transferencial, permite que el objeto (el otro al que se dirige la pulsión) ofrezca un perfil diferente. La interpretación psicoanalítica conduce lo más cerca posible de las coordenadas de placer-displacer que rodearon a la inscripción psíquica. A través de un ejemplo clínico del análisis de un niño de seis años se reflexiona sobre la dimensión estructuradora de las primeras marcas (siempre inferidas), sus efectos y destinos en la estructuración psíquica y su escucha desde los efectos transferenciales en el proceso analítico. Desde una socialización altamente dificultada por severos trastornos de conducta, el espacio transferencial (como respuesta espontánea y no programada del analista) privilegia el reclamo de amor en un fuerte discurso persecutorio que desarticula, una y otra vez, el circuito paranoico. También el uso del humor y la puesta de límites, serena y libidinal, permitieron una singular inflexión de la sintomatología a lo largo de los primeros años del análisis. Palavras-chave Cadeia representacional; Conduta anti-social, Conhecimento paranóico; Depressão materna; Desejo do Outro; Encopresis; Estruturação psíquica; Traços mnêmicos; Identificação primária; Inscrição; Marcas primordiais; Objeto “a”; Objeto perdido; Pulsão; Repetição; Representação inconsciente; Repressão primária; Ressignificação; Simbolização; Sintoma; Transferência. Key-words Representational chain; Anti-social behaviour; Paranoid knowledge; Maternal depression; Desire for the Other; Encopresis; Psychic structuring; Memory traces; Primary identification; Inscription; Original marks; “A” object; Lost object; Drive; Repetition; Unconscious representation; Primary repression; Resignification; Simbolisation; Symptom; Transference. Palabras-llave Cadena representacional; Conducta antisocial; Conocimiento paranoico; Depresión materna; Deseo del Otro; Encopresis; Estructuración psíquica; Huellas Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 143 Myrta Casas de Pereda Resumen SOBRE AS PRIMEIRAS INSCRIÇÕES némicas; Identificación primaria; Inscripción; Marcas primordiales; Objeto “a”; Objeto perdido; Pulsión; Repetición; Representación inconsciente; Represión primaria; Resignificación; Simbolización; Síntoma; Transferencia. Bibliografia CASAS DE PEREDA, Myrta. El camino de la simbolización: producción del sujeto psíquico. Buenos Aires: Paidós, 1999. FREUD, Sigmund (1895). Proyecto de psicología. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. t.I. FREUD, Sigmund (1896). Fragmento de la correspondencia con Fliess. Carta 52. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. t.I. FREUD, Sigmund (1915). Lo inconsciente. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. t.XIV. JULIEN, Philippe. Le retour à Freud de Jacques Lacan. Litoral, Toulouse: Eres, 1986. LACAN, Jacques (1946). Acerca de la causalidad psíquica. In: Escritos I. Buenos Aires: Siglo XXI, 1988. LACAN, Jacques (1964). Seminario XI – Los cuatro princípios fundamentales del psicoanálisis. LACAN, Jacques (1962). Seminario X – La angustia. Escuela Freudiana de Buenos Aires. (Seminário não publicado, material de distribuição interna). WINNICOTT, Donald (1968). El uso de un objeto y la relación por medio de identificaciones. In: Realidad y juego. Buenos Aires: Granica, 1972. Artigo Trabalho apresentado na Mesa Redonda de 07/09/00, do XXIII Congresso Latino-americano de Psicanálise e IV Congresso Latino-americano de Crianças e Adolescentes. Gramado, RS, Brasil Tradução do original espanhol: Traduzca Revisão da tradução: Dr. Geraldo Rosito Dra. Myrta Casas de Pereda Av. Gral. Rivera, 2516 11300 Montevidéu – Uruguai E-mail: [email protected] 144 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Este trabalho é parte de um estudo que venho fazendo no sentido de buscar algum entendimento sobre outras culturas e religiões. A partir de uma viagem realizada, em fevereiro de 2000, à República Islâmica do Irã, procurarei fazer algumas reflexões sobre este país e o Islamismo, correlacionando as mesmas com alguns referenciais psicanalíticos. Introdução Nelson Asnis Médico, Psiquiatra (Fundação Universitária Mário Martins), Candidato do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre A agente de viagem Isabel me informa que, após quase dois meses de “tratativas”, o meu passaporte acabara de chegar da embaixada do Irã, em Brasília, dando o OK para a viagem. Pela última vez, ela ainda tentou, sem muito sucesso, convencerme a ir a Cancun ou Porto Seguro. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 145 Nelson Asnis Por trás do Véu (sobre uma viagem ao Irã) POR TRÁS DO VÉU (SOBRE UMA VIAGEM AO IRÃ) Realizamos então uma reunião na agência de turismo para receber as orientações sobre o rigoroso código de conduta a ser observado no Irã. Respeitar o uso do véu para as mulheres e camisa de mangas compridas para os homens, nenhum contato físico (sequer aperto de mão) com pessoas do sexo oposto e, dentre uma série de outras recomendações, as duas principais, com vistas a poder voltar a ver o meu time (Inter) jogar em Porto Alegre: nenhuma conversa sobre política e evitar dizer a minha religião (judaica). Esta última, por sinal, não foi problema; ao contrário, inúmeras vezes fui confundido com o mais legítimo iraniano. O Irã é um país de 71,5 milhões de habitantes, com uma expectativa de vida de 72 anos, uma mortalidade infantil de 26/1000, inflação em torno de 20%/ano e salário mínimo ao redor de US$ 30. Como quarto maior produtor de petróleo do mundo, um dólar coloca 30 litros de gasolina no tanque. Após a morte do aiatolá Khomeini, em julho de 1989, dois nomes passaram a figurar entre os mais importantes do país: Sayyed Ali Khamenei, aiatolá e líder do Conselho da revolução (sucedendo Khomeini) e Mohammad Khatami, presidente eleito com mais de 70% dos votos, em 1997. Os discursos de cada um, proferidos em 1997, na Organização da Conferência Islâmica, deixam muito claras suas diferenças, como podemos observar a seguir: Khamenei: “O Ocidente e sua civilização materialista encorajam a gulodice, os prazeres carnais, a traição, a conspiração, a avareza, a luxúria, a indecência, a falsidade, a opressão, o desprezo, a injúria e a arrogância”. Khatami: “Se os muçulmanos querem progredir, devem lembrar seu passado dourado, mas também possuir a capacidade e senso de justiça necessários a empregar as realizações científicas, tecnológicas e sociais, positivas, da civilização ocidental”. 146 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 O discurso fundamentalista de Khamenei vem, cada vez mais, perdendo espaço para os ideais progressistas de Khatami, refletindo a luta do povo iraniano em busca de liberdade, traço característico da milenar cultura persa. O fundamentalismo islâmico (ou, por que não, universal), com suas pregações violentas, pode ser melhor entendido através da análise de Kohut sobre a “Psicologia do self e a cultura humana” (1988). Para Kohut, a agressão humana se torna perigosa, quando se acha ligada às duas constelações psicológicas absolutistas: o self grandioso e o objeto arcaico onipotente. O que seria um aparente comportamento selvagem, regressivo e primitivo, na verdade, assume a forma de atividades organizadas e ordenadas, nas quais a destrutividade de seus perpetradores se acha mesclada com uma convicção absoluta acerca de sua grandeza e fervorosa devoção a figuras arcaicas onipotentes. Não há rua dentro de Teerã em que a imagem onipresente do aiatolá Khomeini não apareça. Estabelece-se assim, no Irã, um estado que Kohut chama de raiva narcísica crônica, na qual as capacidades, metas e objetivos se tornam subservientes à raiva difusa, uma das mais penosas atribulações da psique humana, com suas expressões de ressentimento, despeito e atos vingativos, por vezes ardilosamente premeditados. Do ponto de vista kleiniano, funda-se assim, literalmente, um estado (psíquico e geográfico) esquizo-paranóide alicerçado na defesa contra perseguidores externos (no discurso do aiatolá Khamenei: “o Ocidente e sua civilização materialista”). Conversando com iranianos, admirando sua musicalidade, a magia de seus tapetes persas e suas mesquitas, visitando as incrivelmente preservadas cidades de Persépolis e Pasárgada (capital do império de Ciro o Grande, 546 a.C.), percebemos que sua fascinante história (influenciada pelas culturas grega, mongol, árabe, afegã, judaica...) remonta a 7 mil anos, e não aos 20 anos da revolução fundamentalista dos aiatolás. A identidade Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 147 Nelson Asnis Um Entendimento Psicodinâmico do Fundamentalismo Islâmico POR TRÁS DO VÉU (SOBRE UMA VIAGEM AO IRÃ) persa está repleta do que Kohut chama de objetos culturais do self. Khatami, com certeza, está atento a esse passado que chamou de dourado e busca, através de seu discurso, colocar o islamismo como mais um dos objetos apoiadores do self, e não como dogma irracional a subjugá-lo. Curiosamente, Khatami é o primeiro líder iraniano que aparece sorrindo em fotos, e esta é, no meu entender, uma das mudanças psíquicas mais importantes efetuadas no Irã dos aiatolás. Preconceito: a Tendência para uma Concepção Uniforme do Todo Gostaria, agora, de examinar a questão do preconceito que vincula inteiramente o iraniano e o islamismo ao extremismo fundamentalista. O dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (Ferreira, 1986) assim conceitua a palavra preconceito: “1. conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida. 2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste. (...) 4. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões, etc.”. As imagens do Irã e do Islamismo no Ocidente aparecem, em todas as matérias, sempre associadas a terrorismo, fanatismo, bombas e violência. Quando discutimos política no Brasil e queremos nos referir à ala radical de um partido, costumamos chamá-la de xiita. Neste caso, estamos duplamente equivocados: primeiro, por estarmos incorrendo no preconceito citado acima e, segundo, porque a ala radical do islamismo é a sunita, sendo a xiita, a moderada. O escritor Naguib Mahfuz, o romancista mais popular do mundo árabe e Prêmio Nobel de Literatura em 1988, considera uma grande injustiça o paralelo feito no Ocidente entre Islamismo e violência, expressando assim o seu pensamento: “Seguidamente respondo a esse tipo de juízo com a seguinte pergunta: eram muçulmanos os nazistas e fascistas? O Islamismo não é uma religião violenta, ao contrário, prega a tolerância entre povos e as religiões. O extremismo nada tem a ver com a religião. Todos os re148 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 149 Nelson Asnis sultados do extremismo são catastróficos” (Zero Hora, 2000). Jamil Haddad (2000), professor das Universidades de Beirute e Damasco, aponta que, no nascedouro, a função do Islamismo foi, em grande parte, a de eliminar desavenças intertribais. Uma leitura mais cuidadosa da história da dominação muçulmana no Oriente (ano 644) e na Península Ibérica (anos 711-715) mostra um período de grande liberdade para os “povos do livro” (cristãos e judeus). Igualmente, as contribuições do Islamismo para o progresso da Medicina, Astronomia, Matemática e Filosofia foram valiosas (Bowker, 1997; Gaarder et al., 2000). Maomé, o grande profeta do Islã, preconizava que “aquele que sai de casa em busca do conhecimento está trilhando o caminho de Deus”. Livros e conhecimento têm sido sempre descritos pelos muçulmanos como alimento espiritual (Bowker, 1997). Os iranianos enfrentam, nos dias de hoje, o desafio de tentar adaptar sua religião às idéias de liberdade e modernidade, o que, para muitos, nada mais seria do que resgatar os princípios fundamentais do Islamismo. Igualmente procuram mostrar que o fundamentalismo, de forma alguma, representa a maioria, como dão a entender todas as matérias veiculadas no Ocidente. Por coincidência, chegou às minhas mãos, uma matéria sobre a Líbia (Cockburn, 2000), na qual o dramaturgo líbio Mohammed al-Allasi desabafa: “o mundo exterior pensa que este país se resume a apenas um homem (Kadafi) e um deserto”. Em Teerã, viajamos com um arquiteto que trabalhava como guia turístico e com um piloto da Força Aérea Iraniana que lutara na guerra IrãIraque e que, após a mesma, pedira baixa empregando-se como motorista da agência de turismo. Tratavam-se de pessoas extremamente sensíveis, e, por alguns dias, entre goles de chá, trocamos idéias, madrugadas a dentro. Hafez, o piloto, contava que envelhecera 45 anos em 45 segundos, tempo que durou o bombardeio ao Iraque de que participara, chamando a atenção para a estupidez da guerra. Davi, o guia turístico comentava que todo cidadão iraniano possui POR TRÁS DO VÉU (SOBRE UMA VIAGEM AO IRÃ) extrema dificuldade para conseguir visto para a Europa, atentando para o fato de que, até prova em contrário, um iraniano, fora do seu país, preconceituosamente é visto sempre como um terrorista em potencial. Ambos nos colocavam que, se tínhamos esta impressão do Irã, iríamos nos surpreender. Na verdade, ao planejar a viagem, procurei conversar com pessoas que para lá se dirigiram recentemente, bem como, via Internet, consultar livros, filmes e revistas para analisar a viabilidade, a riqueza e os riscos da mesma. Dessa forma, ter encontrado um povo hospitaleiro que não permite que se vá embora de suas casas sem que se beba uma xícara de chá, cidades com praças floridas e ruas seguras para passear, embelezadas pelos cânticos saídos de majestosas mesquitas, a sensibilidade do cinema e da poesia, a riqueza arqueológica das primeiras civilizações persas com os imperadores Ciro o Grande, Dario e Xerxes e seus palácios inteiramente preservados, a arte dos tapetes, os bazares, as casas de chá e seus narguilés com sabor de maçã, não foi uma surpresa. O iraniano comum, retratado nos filmes de Abbas Kiarostami, vencedor do Festival de Cannes de 1997, que sai dignamente para estudar ou trabalhar, levando seu pequeno tapete persa para as rezas do dia, em tudo destoa das imagens de violência e terror da minoria fundamentalista. No entanto, esta minoria acaba por introjetar, equivocada e preconceituosamente, em nossas mentes, as representações psíquicas do Irã e do Islamismo. Karl Jaspers (1987) aponta que, sempre que compreendemos alguma coisa, já trouxemos conosco o princípio que possibilita e constitui nossa compreensão; tomaríamos consciência do que, inconscientemente, já tínhamos pensado como evidente. Trata-se de uma tendência que se satisfaz com idéias básicas, simples e conclusivas, gerando, com isso, a inclinação para absolutizar pontos de vista, métodos e categorias particulares, bem como a confusão entre possibilidade do saber e convicção de fé. Os pre- 150 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Considerações Finais Conhecer o Irã foi uma experiência única. Foi acertada a convicção de que valeria a pena suplantar as dificuldades encontradas, desde o início da preparação da viagem. Por trás do véu nefasto do fundamentalismo, o Irã esconde a sua essência, os seus tesouros. Correlacionando com o trabalho analítico, muitas vezes percebemos que, por trás do véu imposto pela doença, esconde-se a essência da pessoa, tesouros que ela muitas vezes desconhece ou há muito tempo deles se afastou (por vezes até para protegê-los). É muito freqüente pronunciarmos a palavra respeito. Mas o que vem a ser respeito? Ao buscar a etimologia da palavra, deime conta de que a mesma sintetiza o que procurei mostrar com este trabalho. Re significa de novo, e spectore vem de enxergar. Respeitar seria, pois, enxergar de novo, ver “com outros olhos” um país, uma cultura, uma religião e, em nosso trabalho diário, os pacientes. No trabalho analítico, a capacidade de respeitar (para Bion um dos principais atributos necessários a um analista) evitará fazer com que nos tornemos o que eu chamaria de “terapeutas fundamentalistas”, donos da suprema verdade, adeptos fervorosos de uma “religião” (farmacológica, cognitivista ou psicanalítica), utilizada dogmaticamente ,de forma a subjugar o paciente. A capacidade de respeitar nos permitirá reavaliar idéias pré-concebidas, diagnósticos, entendimentos e condutas, tentando fazer com que o paciente igualmente consiga rever impressões, preconceitos e julgamentos que possui de si próprio. Buscamos todos, em última análise, tentar acessar o que se esconde “por trás do véu”. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 151 Nelson Asnis conceitos pesam sobre nós inconscientemente, mas com uma pressão paralisante. POR TRÁS DO VÉU (SOBRE UMA VIAGEM AO IRÃ) Palavras-chave Irã; Fundamentalismo; Preconceito. Key-words Iran; Fundamentalism; Prejudice. Palabras-llave Iran; Fundamentalismo; Prejuicio. Bibliografia BOWKER, J. (1997). Para aprender as religiões. São Paulo: Ática. COCKBURN, A. (2000). Uma nova Líbia? National Geographic. Rio de Janeiro: Abril. FERREIRA, A.B.H. (1986). Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, GAARDER, J., NOTAKER, H., HELLERN, V. (2000). O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras. HADDAD, J. (2000). O que é Islamismo. São Paulo: Brasiliense. JASPERS, K. (1987). Psicopatologia geral. Rio de Janeiro: Atheneu. KOHUT, H. (1988). Psicologia do self e a cultura humana. Porto Alegre: Artes Médicas. PINTO, I. (1999). Descobrindo o Irã. Porto Alegre: Artes e Ofícios. ZERO HORA (2000). Caderno de Cultura (entrevista com Naguib Mahfuz). Porto Alegre, 4 nov. Reflexões Dr. Nelson Asnis Rua Dona Laura, 414/404 90430-000 Porto Alegre – RS – Brasil Fone: (0xx51) 330-4377 E-mail: [email protected] 152 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Newton Aronis Membro Efetivo e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre Gostaria, em primeiro lugar, de agradecer aos organizadores deste congresso o amável convite para participar desta mesa, especialmente tendo, como companheiros, dois colegas argentinos que representam duas instituições ligadas à minha origem como analista. Depois de alguns anos em Buenos Aires, onde fiz a residência psiquiátrica em Lanus, ingressei na Associação Psicanalítica Argentina ,para seguir seminários na Associação Psicanalítica de Buenos Aires, no primeiro grupo regular; era a época da cisão, e decidi priorizar minha análise pessoal. Uma outra coincidência foi que justamente o primeiro simpósio interno da APdeBA, em 1978, teve, Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 153 Newton Aronis Análise Terminável e Interminável: Algumas Reflexões ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL: ALGUMAS REFLEXÕES como tema, “Análise Terminável e Interminável”. Mas, subjacente a certas coincidências fenomênicas, pensava na dificuldade frente à amplitude do tema proposto, incluindo a idéia de referencializar. Ou seja, se bem entendi, como pensar, nos distintos referenciais, o problema do final da análise, seus indicadores, suas dificuldades. A partir da releitura do clássico trabalho de Freud, ocorreram-me algumas articulações com dois autores que tiveram influência persistente no meu pensar psicanalítico, apesar de ter tido contato com eles, anteriormente ao meu ingresso na APdeBA. Um pensador não psicanalítico – Bachelard – e um pensador psicanalítico – David Liberman. Por que me ocorreram? Fugiria, talvez da proposta de pensar o problema, segundo as Escolas Psicanalíticas. Quem sabe, do próprio tema proposto. Muito se tem dito do trabalho de Freud. Alguns apontam a um certo pessimismo, no final da vida, quanto à eficácia da análise. Também são citadas as limitações teóricas e os desenvolvimentos posteriores que modificaram a visão das limitações do processo analítico. É possível. O que nos chama a atenção, no entanto, é a profundidade epistemológica de Freud, jamais se acomodando aos conhecimentos já adquiridos e apontando caminhos para seus seguidores. E não será demais apontar para uma limitação do método em fatores que escapam ao seu alcance, talvez biológicos. O “leito de rochas”, ou “rocha virgem”, poderá ter diferentes entendimentos em diferentes referenciais, mas a questão é se aceitamos ou não limitações para o nosso trabalho. Um ponto a partir do qual o trabalho de aprofundar não é mais possível. O desafio poderá ser o de encontrar a brecha, a fundamentação que permite seguir. Mas a idéia de limites, independente de sua natureza, não nos poderá ser útil? Freud resgata o aspecto econômico, tanto ligado à intensidade de um trauma quanto à intensidade da pulsão. O ego poderá se tornar impotente frente a forças incontroláveis, externas e/ou, principalmente, internas. Se pensarmos as fantasias originárias como herdadas, como uma es154 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 155 Newton Aronis pécie de organizadores psíquicos, universais e necessários e que, para Freud, a vivência de castração ressignifica as experiências anteriores, então encontraremos coerência interna no que desenvolve em “Análise Terminável e Interminável”. A pulsão de morte poderá determinar uma maior ou menor dificuldade – de acordo com sua intensidade – na possibilidade de ligações, articulações no aparelho psíquico, nas suas representações. Há uma referência à inveja do pênis e protesto masculino como uma ação desde o id, não tendo que ver com elaborações mais conscientes do problema. É como uma base do inconsciente, não passível de transformações e dependente da intensidade pulsional. É possível que, entendido desta forma, nos encontremos com um obstáculo infinitamente mais poderoso que a inveja, na teoria kleiniana. Apesar de ser a expressão clínica da pulsão de morte, é passível de transformações no trabalho clínico. Permitir-me-ia, aqui fazer um parêntese para assinalar que, em épocas diferentes, tivemos várias concepções teóricas com diversas aplicabilidades. Assim, a função da análise poderia consistir na lembrança de um trauma. Ou incluir a pessoa do analista e transformar-se na análise da transferência. Ou, quem sabe, incluir a contratransferência e pensar num campo analítico. O problema é como incluir um novo conhecimento sem, necessariamente, criar regras técnicas. A diferença é a maneira como os referenciais se fazem representar na mente do analista. A análise, como análise da transferência, como análise da transferência negativa, como construções, como análise do vínculo, pode se tornar limitadora da mente do analista. Freqüentemente, podemos nos encontrar trabalhando com uma teoria traumática, assim como, no momento seguinte, estarmos impregnados de um aspecto vincular. Bachelard utiliza o conceito de perfil epistemológico para caracterizar diferentes estágios do pensamento científico que podem estar presentes na elaboração de um conceito [realismo ingênuo, empirismo positivista, ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL: ALGUMAS REFLEXÕES racionalismo clássico (mecânica racional), racionalismo completo (relatividade), racionalismo discursivo]. Freud, num contexto bastante diverso – desenvolvimento libidinal – assinala que a “transmutação nunca acontece de maneira integral; por isso, na plasmação definitiva, podem conservar-se restos das formações libidinais anteriores”. E acrescenta que erros, superstições primitivas sobrevivem entre nós, ainda nos extratos mais cultos da civilização. Não seria de estranhar, já que as diferentes lógicas e formas de pensar, assim como os sistemas de valores (ideais), têm sua origem nas transformações dos diferentes erotismos (ligados ao desenvolvimento libidinal). Liberman, em seus desenvolvimentos teóricos, oferece-nos uma oportunidade de pensar o que Freud nos deixa indicado nesse trabalho (como, de resto, ao longo de toda a segunda tópica), como a necessidade de conhecer melhor a instância egóica. A partir de categorias lingüísticas, semióticas e comunicacionais, Liberman desenvolve uma verdadeira psicologia do pré-consciente, bastante diferente do que é a psicologia do ego. A partir de algumas premissas epistemológicas: que a Psicanálise é uma ciência empírica, com indicadores observáveis e passível de ser pensada a partir do método hipotético dedutivo, Liberman articula sua teoria. Os diferentes pontos libidinais, através de suas transformações, por ação dos mecanismos de defesa, dão origem a diferentes estilos lingüísticos e modalidades semióticas, que configuram determinadas estruturas egóicas. Existe uma predominância de um estilo, com uma determinada linguagem, defesas, erotismos, ideais predominantes, com a presença de outros estilos subjacentes ou concomitantes. Já que se trata de uma linguagem discursiva, os estilos são observáveis através do estudo do diálogo analítico, fora da sessão. É com este critério que Liberman elaborou a idéia de estilos complementários (a melhor forma da interpretação com cada paciente). Mas também possibilitou uma Psicopatologia não fenomênica, assim como a idéia de indicadores observáveis, mais confiáveis, da evolução de 156 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 157 Newton Aronis um tratamento. Assim, um paciente obsessivo (estilo narrativo) poderá evoluir com a aparição de novas formas verbais, correspondendo, por exemplo, à histeria (estilo dramático com impacto estético). Liberman nos fala de um “ego idealmente plástico”, em que não há hipertrofia de estilos ou funções egóicas. Estará de acordo com Freud: “Não só a compleição do ego do paciente: também a peculiaridade do analista demanda seu lugar entre os fatores que influem sobre as perspectivas da cura analítica e dificultam essa, tal como o fazem as resistências”. E, mais adiante: “É indiscutível que os psicanalistas não alcançaram inteiramente, na sua própria personalidade, a medida de normalidade psíquica em que pretendem educar seus pacientes”. A noção de par analítico, já presente em Freud, é valorizada por Liberman, que utiliza um conceito operacional da transferência, que implica a constante interação da dupla analítica na transferênciacontratransferência. Liberman foi principalmente um clínico agudo, de uma escuta musical bastante sutil, e creio que a persistência de suas idéias se deve a isso. A consistência das suas teorias é a sua aplicabilidade à escuta analítica. Aliás, houve um enorme esforço seu para dar conta de sua clínica e permanece, apesar de usar uma terminologia não psicanalítica. Voltando a Freud, encontramos uma interessante consideração a uma mudança no questionamento de como cura a análise, para uma referência aos impedimentos que obstaculizam a cura. Mais adiante, refere que “o primeiro passo em direção ao domínio intelectual do mundo circundante em que vivemos é achar universalidades, regras, leis que ponham ordem no caos. Mediante este trabalho simplificamos o mundo dos fenômenos mas não podemos evitar o falseá-lo também, em especial quando se trata de processos de desenvolvimento e transmutação”. Bachelard, em seu interessante livro “A formação do espírito científico”, desenvolve a noção de obstáculos epistemológicos. Poderíamos considerar que um modelo para avaliar a proposta de ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL: ALGUMAS REFLEXÕES Freud incluiria as formas de pensar que vão se criando no campo analítico. E que mais abrangente que resistência pode ser a idéia de obstáculo. Obstáculo ao pensamento criativo, obstáculo ao conhecimento, ao desenvolvimento que leva, como diz Liberman, a que a análise deva ser terminável para o analista e interminável para o paciente. Bachelard concorda com Freud quando fala da generalização como obstáculo: “há efetivamente um gozo intelectual perigoso em uma generalização precoce e fácil”. Além disso, facilmente recorremos a exemplos, imagens, analogias e metáforas fáceis. Um obstáculo professoral que expressa um apego a entendimentos e idéias já existentes é uma interessante modalidade de freio a novos conhecimentos. Pode ser compartilhado pelo par analítico. O novo modifica as condições subjetivas de ambos os participantes do processo e exige uma certa tolerância ao luto e à dor. Talvez tanto ou mais que os acontecimentos externos. Seguindo Bachelard: “Na obra da ciência, só pode amar-se aquilo que se destrói, só pode continuar-se o passado, negando-o, só pode venerar-se o mestre, contradizendo-o”. De certa forma, a riqueza de nossos referenciais depende da riqueza – pensamento aberto – de como são pensados. Os pensamentos não substituem o pensador, mas podem obturá-lo. Às vezes, é mais importante a confrontação constante de nossos referenciais com a clínica, de maneira a torná-lo mais complexo, que o confronto entre referenciais. Segundo Bachelard, não nos conformamos em ter razão, é preciso ter razão contra alguém. Os conceitos são transitórios, modificáveis, e é uma virtude de uma teoria ter a capacidade de ser alterada, usada, crescer em complexidade, o que implicará ser cada vez mais abarcativa. Se uma teoria psicanalítica desse conta dos fatos clínicos, não teríamos outras. Frente ao ecletismo ingênuo e ao dogmatismo, poderemos pensar no dinamismo teórico que implica a complexificação crescente, com um ponto de encontro entre teorias, próximo do infinito. Bachelard afirma: “Segundo nossa maneira de pensar, a riqueza de 158 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 159 Newton Aronis um conhecimento científico se mede pelo seu poder de deformação. Esta riqueza não pode vincular-se a um fenômeno isolado que se reconheça cada vez mais rico em notas, cada vez mais rico em compreensão (...). Para englobar novas provas será mister, então, deformar os conceitos primitivos, estudar as condições de aplicação desses conceitos e sobretudo incorporar as condições de apreciação de um conceito no sentido mesmo do conceito”. Pode-se objetar que Bachelard pensou, essencialmente, uma filosofia das ciências objetivas. É certo. Mas, também é verdade que seu pensamento se constitui numa verdadeira “psicanálise” do pensamento. Há algo em comum entre o pensamento criativo nas ciências da objetividade e os esforços mentais em outras áreas do conhecimento, inclusive na Psicanálise. E será que o que fazemos não se constitui numa verdadeira epistemologia do sujeito? E uma forma de pensar o final da análise pode ser justamente essa que diz respeito a como se estrutura o pensamento do paciente. Um crescimento e uma autonomia no processo de pensar e apreender a realidade pode ser um poderoso indicador, não só do crescimento mental do paciente, mas, também, de nossa sobrevivência como analistas. Para nós a análise do paciente deve estar inscrita como terminável, mas nossa autoanálise é interminável. Isso implica estarmos atentos, continuamente, aos obstáculos que se oferecem no nosso trabalho, não só pelas fortes resistências e problemas oferecidos pela clínica, mas, também, pela força sedutora que representa a gratificação do poder ligado ao saber, à dependência do outro, à imposição de valores, etc. As quantidades excessivas, referidas por Freud podem invadir qualquer dos integrantes da dupla, nem sempre estritamente ligadas a fatores transferenciais. A ideologização é uma patologia que freia o desenvolvimento teórico, embota a mente e caractereopatiza o processo analítico. E as instituições sofrem, e surgem conflitos que causam muita dor e não geram crescimento. O problema do poder é muito sério, e seu entendimento envolve tanto as motivações narcisistas como o entendimento só- ANÁLISE TERMINÁVEL E INTERMINÁVEL: ALGUMAS REFLEXÕES cio-político. E como estarão as análises quando o funcionamento institucional é patológico? O problema é se estamos lidando com um obstáculo ou com uma “rocha virgem”. Bem, penso ter circulado por algumas idéias estimuladas pela leitura de “Análise Terminável e Interminável”: a) o resgate do modelo econômico, pulsão de morte e a “rocha virgem”, limites da análise; b) o pensamento epistemológico de Freud e a articulação com Bachelard; c) as insistências de Freud com relação ao ego e a ligação com os desenvolvimentos de Liberman. Concluiria dizendo que trabalhamos essencialmente com modelos que nos servem de ponte para o pensar. São transitórios e podem ser enriquecidos continuamente. É necessário que cada um faça sua própria síntese, ao longo do tempo. Não devemos esquecer que nosso objeto do conhecimento – o inconsciente – é, em essência, incognoscível. Trabalhamos com seus indícios de existência. Fazer consciente o inconsciente é força de expressão. Temos acesso a um pequeno fragmento do inconsciente, que se perde assim que formulado. Já é uma boa razão para tornar nossa profissão impossível. Talvez não, desde que se aceite esta limitação: a quarta ferida narcisista da humanidade deve ser a dos analistas que mal podem ter acesso ao seu tão apreciado objeto de estudo. Palavras-chave Final de análise; Epistemologia; Pensamento; Modelos. Key-words End of analysis; Epistemology; Thought; Pattern. 160 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Final de análisis; Epistemologia; Pensamiento; Modelos. Ensaio Ensaio apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000, Gramado, RS, Brasil Dr. Newton Aronis Rua Florêncio Ygartua, 391/502 90430-010 Porto Alegre – RS – Brasil Fone/Fax: (0xx51) 3330.5356 E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 161 Newton Aronis Palabras-llave Olga Santa María de Gómez-Roch Doutora em Psicologia Clínica; Psicoterapeuta de Crianças e Adolescentes; Psicanalista Titular da Associação Psicanalítica Mexicana Os sonhos, por natureza própria, despertam aspectos lúdicos. Seus simbolismos e significados não são inerentes, mas temos que atribuí-los ao sonhador, que com ou sem auxílio de seu intérprete, interessa-se pela sua elaboração, dirigida ao auto-conhecimento. Freud (1900) escreveu há um século: “Os sonhos de forma mais simples serão, sem dúvida, os das crianças, cujos rendimentos psíquicos são, seguramente, menos complicados que os de pessoas adultas. Não apresentam qualquer enigma para resolver, mas possuem um valor inestimável para a demonstra- Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 163 Olga Santa María de Gómez-Roch O Sonhar e o Brincar, Simbolismo do Mundo Interno da Criança O SONHAR E O BRINCAR, SIMBOLISMO DO MUNDO INTERNO DA CRIANÇA ção de que, em sua última essência, o sonho significa uma realização de desejos”. Anna Freud (1926) sustenta que a interpretação dos sonhos em crianças mantém-se intacta, comparada à dos adultos. Considera que a transparência ou não do sonho estará de acordo com a resistência. Os sonhos das crianças podem ser interpretados com maior facilidade, devido ao fato de suas resistências serem menores, mas isto não significa que sempre sejam simples. Enfatiza sua convicção de que as crianças gostam de trabalhar com seus sonhos, nas sessões, e lhes dão um caráter lúdico que facilita a compreensão da interpretação. Mesmo que a maioria dos autores contemporâneos tenha concordado com que a realização de desejos não satisfeitos no sonho infantil seja apenas uma parte do tema, sabe-se que neles existem manifestações significativas de conteúdos de ansiedade, agressão, repetição de eventos traumáticos, e que tanto o brincar como as ilusões e as fantasias estão intimamente vinculadas aos sonhos, nas crianças. Garma (1971) coloca que os sonhos das neuroses traumáticas não são exceções à regra, como sugeriu Freud, originalmente, mas que todos os sonhos são de origem traumática. Mesmo que este conceito seja controverso, o que está claro é que os sonhos de repetição, que são muito freqüentes, nas crianças, em forma de pesadelos e terrores noturnos, são constantes no seu denominador e são lembrados, com clareza, até a fase adulta. Para Palombo (1978), uma das funções do sonhar tem a ver com alinhar a memória com a realidade atual. Distingue o deslocamento, que é um processo de substituição, do de condensação, que seria um ato primário de criatividade do aparelho psíquico. Este seria um ato que dá as bases estruturais da massiva pirâmide do pensamento conceitual. Freud (1911) assentou as bases para esta idéia, quando disse que a melhor maneira de completar a interpretação de um sonho é deixá-lo de lado e dar atenção a outro, subseqüente, que possa conter uma temática semelhante, mas de uma maneira mais acessível. Propõe que o sonhar seja visto como um precursor de etapas mais adiantadas de desenvolvimento psíquico, nas quais o afeto é 164 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 165 Olga Santa María de Gómez-Roch experimentado, e a ação é inibida. O sonho teria, portanto, mais do que uma função defensiva, uma essência novata com funções adaptativas; conseguí-lo, seria o auto-conhecimento. Seguindo esta idéia, o ambiente de trabalho converte-se, portanto, em um “espaço de brincadeira e criatividade”, mais do que “espaço de trabalho”, no qual o sonho é um material único de brincadeira. Aquilo que a criança pode vivenciar neste “espaço de brincadeira”, no contexto terapêutico, leva a novas perspectivas organizacionais da economia libidinal, novos significados para seus esquemas representacionais, facilitando, assim, o processo analítico e acrescentando-lhe a vontade de desfrutá-lo. Jerônimo, menino de 8 anos, manifestou, na sua sessão: “meu sonho esteve ótimo, mas, quando eu te contei, não saiu igual ao meu sonho, não acredito que possas me entender; necessitaria passá-lo como em um vídeo, porque não existem palavras para contá-lo”. Para poder brincar seriamente com os sonhos, necessitamos considerar as implicações lingüísticas e extralingüísticas, de como nós, terapeutas, recebemos o sonho. Para poder compreender como ocorre o desenvolvimento do símbolo com a imagem mental, devemos, antes, considerar o símbolo inconsciente que seria o que aparece nos sonhos e em alguma atividade lúdica de caráter inconsciente, na criança, e que chamaremos de “simbolismo secundário”. Sobre isto, Piaget (1951) descreve três grupos de símbolos lúdicos que são observados, tanto nos sonhos, como na brincadeira das crianças: aqueles relacionados ao corpo da criança, que seriam sucção, excreção, etc.; aqueles pertencentes aos afetos relacionados aos pais, como amor, ciúmes, agressão, abandono, etc.; e, finalmente, as angústias, centradas no nascimento de bebês e rivalidade entre irmãos. As imagens são a matéria-prima para a elaboração imaginativa, e esta elaboração pode ser enriquecida no campo extralingüístico, que facilita o brincar com as imagens do material sonhado. Temos, então, duas alternativas básicas de pensamento: as imagens (é a chamada linguagem dos so- O SONHAR E O BRINCAR, SIMBOLISMO DO MUNDO INTERNO DA CRIANÇA nhos) e as palavras (ou seja, o idioma propriamente dito). Que relação pode existir entre estas duas linguagens? Sanville (1991) propõe que as imagens são uma comunicação que vai do sujeito a seu próprio self, enquanto que as palavras fazem parte de um discurso que pertence, necessariamente, ao campo bipessoal, mesmo que esteja resultando na auto-interpretação de imagens. Considero que existe uma constante interação destas duas modalidades, que ocorre com um enriquecimento espiral do inconsciente, o qual nos leva a considerações tanto teóricas como técnicas. Além do anterior, sugiro que esse processo de expressão simbólica acontece de idêntica e paralela maneira, tanto no sonhar, como no brincar. Se aceitamos que a imagem é, em essência, individual, enquanto a palavra é social, entendemos que o sonhador constrói seus sonhos, para o que se vale das intermodalidades sensoriais (principalmente do visual, mas não exclui, ocasionalmente, o gosto, o tato, o olfato e as sensações cinestésicas). Portanto, a imagem não tem um significado per si, como pretenderam algumas disciplinas, no sentido de rígidos equivalentes simbólicos, como o resultar que, toda vez que se sonhe com a imagem de uma cadeira, é segurança; um leão, agressão, etc. De fato, existe um primeiro momento no qual Freud considera o sonho, como os hermeneutas, como algo a decifrar. A partir do sonho do “homem dos lobos” (Freud, 1918), que é um sonho relatado quando adulto, mas sonhado quando criança, observa-se uma guinada à importância do discurso. Vai além, fazendo notar que seu paciente podia, já adulto, utilizar palavras que não houvesse encontrado na sua infância, dado que a criança não conta, nesse momento, nem com o pensamento nem com o vocabulário para transmitir a quantidade de ansiedade que continha o conteúdo onírico. Sem dúvida, nesse momento, estão sobreinvestidas as impressões sensoriais, especialmente a visão e a motricidade, e não as palavras nem o pensamento. A imagem tem uma sobredeterminação, no sentido do ilimitado de seu simbolismo, de tal maneira que a criança sonhadora poderá, com seu sonho, assim como com sua brincadeira, viver seu drama pessoal da forma mais individual e fantástica, no sentido de experimentar, refletir e/ou co166 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 167 Olga Santa María de Gómez-Roch municar o impossível, o temido, o desejado, o idealizado, o tétrico; o quê, o quando, o onde, o quem, o como e o porquê, refletindo sem intencionalidade, sem temporalidade, nem seqüência organizada, o mais inconsciente de seu mundo interno. Estas condensações, deslocamentos e simbolismos refletem-se, simultaneamente, na brincadeira, quando um personagem, marionete, desenho ou boneco transcende atos lógicos, inicia sua ação sendo um personagem e termina com outra identidade. Ocorrem transformações de identidade; inclusive, a mesma criança, protagonista da sua própria brincadeira, pode secretamente exercitar diferentes papéis em diferentes personagens, que vão desde o bondoso e querido, ao desamparado e angustiado, até o agressivo, enfurecido e cruel. Manifestará, sem qualquer impedimento, todas as ambivalências e contradições necessárias, desobedecendo livremente a regras e parâmetros de censura e repressão. A repressão poderá, ocasionalmente, aparecer no terreno do onírico, mais adiante, em crianças na etapa da latência, referente a simbolismo anatômico, como seria o urinar-se enquanto dorme. Mas, mesmo assim, se falhasse esta repressão, todo o limite da realidade seria justificável no estado do dormir, por ser um estado de inconsciência, assim como no brincar, mesmo que em menor grau, dado que é de mentirinha. A responsabilidade, a repressão e a censura ficam somente no campo do social consciente, no sonhar não existe negativa, não existe o “não”. Podemos, sem dúvida, considerar tanto o sonho como a brincadeira um evento intrapsíquico privado, novato e livre, tanto no seu simbolismo, como na sua expressão. No discurso que descreve o sonho ou a brincadeira, a criança poderá, já no plano bipessoal, articulá-lo de tal maneira que decidirá quais conteúdos compartilha e quais não, aparecendo, assim, a censura. Na sua tentativa de organizá-lo e dar lógica, poderão ser perdidos elementos relevantes e primitivos; assim mesmo, a idade que a criança tiver determinará em qual etapa de pensamento se encontra, para percebermos sua competência ou não, quanto à utilização dos aspectos lingüísticos formais da linguagem, os que somente poderão ser resgatados com a técnica interpretativa, a qual pode incluir o recurso lúdico como substituto O SONHAR E O BRINCAR, SIMBOLISMO DO MUNDO INTERNO DA CRIANÇA extralingüístico na recuperação do conteúdo onírico. Piaget (1951) diz que a criança não sonha, até que tenha linguagem. Na minha opinião, isto é correto, somente se restringirmos o conceito de sonho. Sabemos que existe um processo primário mediante o qual o bebê vai construindo seu eu corporal, assimilando sensações proprioceptivas e cinestésicas. Sabemos, graças a pesquisa em Neurofisiologia, que o bebê passa 50% de seu sonho em estado REM, e dificilmente poderíamos saber o que sonha. Do que não existe dúvida é que o sonho somente é comunicado pela criança ao aparecer a linguagem, mesmo que sejam observadas manifestações de conduta tais como sorrisos, choro, balbuciação, sobressaltos, etc.. Langer (1942) refere que tendemos a nos referir sempre ao visível para explicar o invisível. O que nós, analistas, fazemos, analisar, cujo significado de origem é desmembrar, faz alusão àquilo que em alguma época foi um ato sensório-motor. As contribuições de Stern (1985), referentes ao pensamento do bebê, nos ensinam que a percepção inicial é “amodal”, no sentido de que a criança experimenta o mundo como uma unidade. Os afetos são um componente de cada ato perceptivo que se entrelaça com os sons, ruídos, cheiros, visões e sensações tácteis, que configuram um padrão globalizado que resulta na primeira forma de apreender o mundo que os rodeia. No segundo ano de vida, a linguagem, ao se fazer presente, vem como conseqüência de um processo onde o conglomerado de afetos, percepções, enfim, formas de apreender o mundo, são separados. Portanto, a linguagem sempre fragmenta ou secciona a experiência. Ao vincular experiências com palavras, isolam-se da original percepção “amodal” que caracterizou a infância. O anterior explicaria, em parte, porque o recontar de um sonho resulta já na sua modificação, a encenação desse mesmo sonho na brincadeira, pode dar-nos elementos valiosos de seu conteúdo original, no caso das crianças. A intrusão, no que refere à insistência de trazer sonhos, não favorecerá a sua originalidade. Lembremos, também, que o desejo expressado no sonho é também tanto de reparação como de recriação, o significado não está dado, mas se elabora no espaço transferencial lúdico e não exclusivamente 168 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 169 Olga Santa María de Gómez-Roch em uma sessão, mas ao longo do processo. O sonho, assim como o jogo, é construído em um espaço de uma única pessoa, e, portanto, o domínio está naquele que brinca e naquele que sonha, assim como nas primeiras tentativas de associações auto-interpretativas. A analogia, na minha opinião, entre o sonhar e o brincar é evidente. Uma das diferenças é que, no simbolismo do sonho, pode haver terrores noturnos e sonhos traumáticos de angústia repetitivos, enquanto que, na brincadeira, até o medo é desfrutado, visto que existe maior reparação, elaboração secundária e ela resulta, por motivos evidentes, mais controlável e manipulável do que o sonho. O anterior nos une ao tema da censura, a qual aparecerá, obviamente, quanto mais consciente for a expressão. Portanto, o simbolismo onírico será, possivelmente, mais um autêntico disfarce que o mascaramento conseguido no campo lúdico; entretanto, o segundo nos leva a ter uma compreensão mais completa do que a linguagem permite do primeiro. Os materiais de jogo facilitam, sem dúvida, as representações, dado que o sonho somente se vale de imagens visuais e sensoriais. Jimena, de 6 anos, ilustra-nos, com um sonho, no qual ela dá resolução a seu conflito de lealdade a seus pais recém divorciados. Sonha que é levada por sua avó, enquanto dorme, na sua casa, de tal maneira que Jimena não tem que decidir, por si mesma, se passa mais tempo com seu pai ou com sua mãe, mas que resolve o conflito, sendo levada contra sua vontade (enquanto dorme e não tem consciência) para um terceiro lar que resulta “neutro”. Poderíamos concluir que existem: 1 – Sonhos de realização de desejos evidentes e transparentes, cujo desenlace é seu cumprimento e não envolve um simbolismo secundário. Exemplo deste sonho seria o de Maribel, menina de 5 anos, que participou de um aniversário e chorou muito ao não conseguir pegar nenhuma bala do balão surpresa. Nessa mesma noite, sonhou que era a sua festa e ela era a única convidada. Estava sentada em seu jardim, comendo todas as balas do seu balão surpresa. Ao entender os resíduos diurnos e a frustração de seu desejo pelas balas não conseguidas, compreendemos facilmente seu sonho. O SONHAR E O BRINCAR, SIMBOLISMO DO MUNDO INTERNO DA CRIANÇA 2 – Sonhos em que, da mesma forma que no jogo que envolve um simbolismo primário, alguns objetos são substituídos por outros. Este seria o caso de representar a mãe e o pai nos bichos de pelúcia, ou personagens caricaturescos favoritos da criança. Mãe Urso Pooh e pai ursinho levam seu filho ursinho para um passeio, deixando para trás os demais ursinhos. Sem dúvida, também estaria presente neste conteúdo, tanto onírico como lúdico, a realização do desejo de receber uma atenção exclusiva por parte de seus pais. 3 – Sonhos nos quais existe algum acontecimento angustiante, mas que, felizmente, é resolvido no mesmo sonho ou brincadeira. Beto, de 7 anos, sonhou que pediria balas no dia de Halloween, nas casas onde havia cachorros que latiam e mostravam seus dentes, raivosamente. Sua irmã mais velha abraça-o, e, como um milagre, os cachorros param de latir. O elemento de angústia de castração, sem dúvida, está presente nesse sonho, como poderia estar em uma situação lúdica semelhante. O que também pode ser observado neste sonho é a função do “guardião dos sonhos”, descrita por Freud. 4 – Os verdadeiros terrores noturnos, os quais colocam neste caso uma diferença importante do ato lúdico, seriam o regresso e ataque de um monstro, a queda em um buraco negro sem fim, uma perseguição que termina em aniquilamento, etc. Na brincadeira, a intervenção de elementos do consciente contribui para que os temores sejam representados por símbolos lúdicos que recorrem a uma fonte do prazer de brincar, proporcional à angústia, modulando e neutralizando, assim, o pânico e os instintos agressivos e de morte. 5 – Sonhos de auto castigo e castigo. Estes são muito freqüentes nas etapas de formação do superego e têm uma relação direta com um superego punitivo e sádico, característico desta etapa do desenvolvimento. A criança revive as ameaças, conseqüências e castigos que experimentou com angústia, e, em algumas ocasiões, existem sonhos e/ou brincadeiras com conteúdo fóbico. 6 – Sonhos e brincadeiras nas quais intervém, de maneira franca, o 170 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sinopse Este trabalho apresenta como os sonhos, por natureza própria, despertam aspectos lúdicos. Seus simbolismos e significados não são inerentes, mas temos que atribuí-los ao sonhador, que, com ou sem ajuda de seu intérprete, se interessará pela sua elaboração, direcionada ao autoconhecimento. No contexto da análise infantil, propõe-se ir além da mera realização de desejos. Dá-se importância ao sonho como material de brincadeira dentro do contexto terapêutico, chegando a novas perspectivas organizacionais da economia libidinal, a novos esquemas representacionais e à facilitação do processo analítico, com a conquista do prazer. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 171 Olga Santa María de Gómez-Roch simbolismo secundário, e estão carregados de multisimbolismos; conseqüentemente, resultam complicados, pouco claros, muito elaborados em personagens, tempos e lugares, apresentando, assim, uma maior dificuldade, tanto na sua compreensão, como na sua interpretação. Quem de nós não lembra de um sonho infantil? Quantos pacientes não relatam sonhos repetitivos ou de impacto que tiveram na sua infância e tivessem desejado entendê-los e assimilá-los nesse momento? Como vimos, o sonho e a brincadeira, analogamente, com suas diferenças óbvias, pertencem ao mais privado e livre que pode conservar o ser humano e que permite a assimilação espontânea da realidade para o eu, mediante o simbolismo e as representações mentais. Elaborar o sonho além das palavras é, também, a função da brincadeira. A participação dos instintos de vida e morte, entendida em espiral simbólica, é um potencial existente no tratamento das crianças que deve ser valorizado com todo o peso potencial que existe na repercussão psíquica de nossos pequenos pacientes. Considero que o que realmente falta na literatura da análise infantil contemporânea, com relação aos sonhos, é a discussão no que se refere às diferenças de idades e etapas, o potencial e a relevância dos sonhos dentro do processo analítico total e a utilização técnica destes. Ajudar as crianças, levando para o terreno lúdico o onírico, significa compreender seu mundo interno, facilitando-lhes, simultaneamente, seu autoconhecimento. O SONHAR E O BRINCAR, SIMBOLISMO DO MUNDO INTERNO DA CRIANÇA Para compreender o anterior, são consideradas implicações lingüísticas e extralingüísticas. Explicam-se as imagens como matéria-prima para a elaboração no terreno extralingüístico, e a palavra, no lingüístico. Este processo de expressão simbólica dá-se de idêntica e paralela maneira, tanto no sonhar, quanto no brincar. A imagem tem uma sobredeterminação, no sentido do ilimitado de seu simbolismo, de tal maneira que a criança que sonha poderá, com seu sonho, assim como com sua brincadeira, viver seu drama pessoal, refletindo, sem intencionalidade, sem temporalidade, nem seqüência organizada, o mais inconsciente de seu mundo interno. Concluímos com diferentes tipos de sonhos que as crianças têm, além de duas vinhetas que exemplificam sua utilidade analítica. O sonho, como a brincadeira, é construído em um espaço de uma única pessoa, e, portanto, o domínio está naquele que brinca e naquele que sonha no que se refere às primeiras tentativas de associações auto-interpretativas. Summary This work presents the way dreams, by their own nature, arose playful aspects. Their symbolisms and significances (meanings) are not inherent. We must ascribe them to the dreamer, who, with or without the aid of an interpreter, will become interested in their elaboration directed to self-knowledge. In an infantile analysis context we go beyond a simple desire accomplishment. The dream is important as a playing material within the therapeutic context, getting to new organizational perspectives of the libidinal economy, new representational schemas and the analytic process facilitation, conquering the enjoyment. In order to understand the former, there are considered linguistic and extra-linguistic implications. The images are explained as being raw material for the elaboration in extra-linguistic and the word in linguistic grounds. This symbolic expression process occurs identically and parallel in dreams as well as in playing. The image has an over-determination, in the sense of the illimitability of its symbolism, in such a way that a child who dreams will be able to live its personal drama through its dream, as well as through its play, and will reflect the most unconscious part of its inner world without any intention, organized sequence and independently of time. We will finish with different kinds of dreams that children have and two animations, which exemplify their analytic usefulness. The dream, as well as the children’s play, is built in a space of a single person and, therefore, 172 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Resumen El presente trabajo refiere como los sueños, por naturaleza propia, despiertan aspectos lúdicos. Sus simbolismos y significados no son inherentes, sino tenemos que atribuírselos al soñante, quien con, o sin ayuda de su interprete, se interesará por su elaboración, dirigida al auto-conocimiento. En el contexto del análisis infantil se propone ir más allá de la mera realización de deseos. Se le da importancia al sueño como material de juego dentro del contexto terapéutico, llagando a nuevas perspectivas organizacionales de la economía libidinal, nuevos esquemas representacionales y la facilitación del proceso analítico, con la ganancia del goce. Para comprender lo anterior, se toman en cuenta implicaciones linguísticas y extralinguísticas. Se explican las imágenes como materia prima para la elaboración en el terreno extralinguístico y la palabra en el linguístico. Este proceso de expresión simbólica se dá de idéntica y paralela manera tanto en el soñar, como en el jugar. La imágen tiene una sobredeterminación, en el sentido de lo ilimitado de su simbolismo, de tal manera que el niño soñanate podrá con su sueño, asi como con su juego, vivir su drama personal, reflejando sin intencionalidad, sin temporalidad, ni secuencia organizada, lo mas inconsciente de su mundo interno. Concluímos con diferentes tipos de sueños que se dan en los niños y dos viñetas que ejemplifican su utilidad analítica. El sueño, como el juego es construído en un espacio de una sola persona y por lo tanto el dominio, está en el jugante y en el soñanante en cuanto a los primeros intentos de asociaciones auto-interpretativas. Palavras-chave Simbolismo; Sonho; Brincar. Key-words Symbolism; Dream; Play. Palabras-llave Simbolismo; Sueño, Jugar. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 173 Olga Santa María de Gómez-Roch the dominion is in those who play and dream in what refers to the first attempts of auto-interpretative associations. O SONHAR E O BRINCAR, SIMBOLISMO DO MUNDO INTERNO DA CRIANÇA Bibliografia FREUD, S. (1900). La interpretación de los sueños. Obras completas. 4.ed. Buenos Aires: Biblioteca Nueva, 1981. t.I. ______. (1918). Historia de una neurosis infantil (caso del Hombre de los Lobos). Obras completas. 4.ed. Buenos Aires: Biblioteca Nueva, 1981. t.II. ______ . (1926). The psycho-analytic treatment of children. New York: International University Press, 1959. v.I. GARMA, A. (1971). El psicoanálisis: teoría clínica y técnica. Buenos Aires: Paidós. LANGER, M. (1942). Philosophy in a new key. 3.ed. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1976. PALOMBO, S. (1978). Dreams and memory. New York: Basic Books. PIAGET, J. (1951). Play, dreams and imitation in childhood. New York: Norton, 1962. SANVILLE, J. (1991). The playground of psychoanalytric therapy. London: The Analytic Press. STERN, D. (1985). The interpersonal world of the infant: a view from psychoanalysis and developmental psychology. New York: Basic Books. Artigo Tema livre apresentado no XXIII Congresso LatinoAmericano de Psicanálise, em setembro de 2000, Gramado, RS, Brasil Tradução: Traduzca Revisão da tradução: Dra. Vera M. H. Pereira de Mello Dra. Olga Santa María de Gómez-Roch Bosques de Duraznos 65 – 708 Bosques de las Lomas México D.F. 11700 – México Tels: (52) 55965839, (52) 52516824 Fax: (52) 55967786 E-mail: [email protected] 174 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 R. Horácio Etchegoyen Membro Titular em Função Didática da Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA). Ex-Presidente da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Ex-Presidente da APdeBA. Autor do livro “Fundamentos da Técnica Psicanalítica” Este Encontro propõe-se a traçar a história do trabalho psicanalítico clínico desde Freud até nossos dias, com um enfoque retrospectivo e prospectivo. Traçar as linhas nas quais vai se desenvolvendo a teoria a partir da monumental obra freudiana, onde as idéias divergem e confluem, é um trabalho difícil; porém, mais difícil é estudar, desta maneira, a técnica psicanalítica. As mudanças na teoria são, em geral, notórias e ruidosas e acompanhadas de enfrentamento e polêmica; as da técnica são graduais e podem passar inadvertidas, ainda que, por mais de uma vez, originassem conflito e controvérsia. Esta diferença, no entanto, é Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 175 R. Horácio Etchegoyen Algumas Reflexões sobre a História da Técnica Psicanalítica ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA aleatória, e cabe lembrar que Freud sempre considerou que uma característica diferente de seu método é que a teoria e a técnica vão sempre unidas, como bois à canga (Jutkim). Eu concordo com esta afirmação; porém, muitos psicanalistas destacados consideram que a teoria é versátil, e a técnica permanece igual a si mesma. Isto pode explicar-se, a meu ver, porque a influência entre ambas não se dá de imediato, e as prescrições técnicas tardam em incorporar-se à prática, o que provém do exercício profissional de cada analista e da comunidade à qual pertence. Todos, ou quase todos, estamos contestes em afirmar que os trabalhos técnicos de Freud, da segunda década do século, assentaram as bases de nossa práxis que sempre respeitamos, sem desconhecer as infinitas variedades nas quais foram se apresentando. Vou tratar de seguir o itinerário das grandes mudanças, sabendo que não é simples abrangê-las nesta exposição e sem deixar de reconhecer que nesta seleção podem influir minhas preferências pessoais e minha ignorância. Não vou me ocupar da evolução da técnica na psicose, nas crianças e na doença psicossomática, tampouco sobre o casal e os grupos, porque deles falarão colegas especializados, da mesma forma que da psicoterapia analítica. Apesar de haver dito que a teoria e a técnica vão sempre juntas, vou circunscrever-me à técnica e deixarei de lado a evolução da teoria, para não me estender indevidamente e não entrar em polêmicas. Não vim a Versalhes para opinar, mas para dar meu testemunho. Um ponto de inflexão na história da técnica se produz quando Freud abandona a hipnose e recorre à coerção associativa (concentração), impondo suas mãos na frente dos doentes para que surjam as lembranças. Este procedimento se insinua nos primeiros casos que Freud apresenta nos Estudos sobre a histeria e utiliza-o, já amplamente, em 1892, com Isabel de R. Neste momento, Freud descobre claramente a resistência, já que adverte que o esquecimento é um processo ativo do não querer lembrar. Descobrir que a resistência existe e está sempre presente leva Freud, determinista à outrance, a abandonar a coerção associativa pela associação livre. Este passo, que acontece por volta de 1896 ou 1897, funda a psicaná176 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 1. Este manuscrito se chamou Sonhos e histeria e foi concluído em 24 de janeiro de 1901. 2. “Disse-lhe que a superação de resistências era um mandamento da cura que nos era impossível deixá-lo de lado” (Freud, 1909, A.E., 10:133). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 177 R. Horácio Etchegoyen lise. A isso se refere Freud, seguramente, quando afirma, nas Palavras preliminares do caso Dora, que “a técnica psicanalítica experimentou uma reviravolta radical” (A.E., 7:11) desde que foram publicados os Estudos, em 1895. Vale a pena lembrar que Fragmento de uma análise de um caso de histeria apareceu em 1905, porém, foi escrito em janeiro de 1901, um mês depois de interrompido o tratamento, que durou três meses e terminou em 31 de agosto de 19001. É legítimo supor, como Strachey (1953), Alain de Mijolla (1984) e outros estudiosos, que a afirmação recém transcrita data de janeiro de 1901. Pode-se afirmar, então, que, já antes de tratar de Dora, Freud praticava cabalmente a psicanálise. Segundo se depreende deste histórico, Freud utiliza com Dora a associação livre e a interpretação dos sonhos, não menos que seus atos sintomáticos, até que ela o surpreende com a decisão de interromper o tratamento. Neste momento, Freud se dá conta, ainda que tarde, que Dora lhe transferiu seu conflito com o Sr. K., e este contratempo lhe permite completar sua concepção da transferência, que já havia descoberto no quarto capítulo dos Estudos sobre a histeria (Breuer e Freud, 1895). Mais tarde, quando fala ao Colégio Médico de Viena, em 12 de dezembro de 1904, Freud separa categoricamente a Psicanálise (e o método catártico) das outras formas de Psicoterapia, com o que assenta o objetivo básico de seu procedimento, o que opera per via di levare, e não per via di porre (Freud, 1905a). Esta lúcida delimitação mostra o gênio de Freud para captar o essencial, como disse Zac (1971). A análise de O homem dos ratos, que começou em outubro de 1907, marca outro momento importante. Na segunda sessão, o paciente diz que há coisas que não pode contar e, cheio de angústia, pede que o dispense de entrar em certos pormenores; mas Freud lhe responde de forma tão inflexível que o Dr. Lanzer, ao ver-se obrigado a contar-lhe o tormento dos ratos, o confunde com o cruel capitão2. Este episódio é detalhado no excelente ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA livro de Patrick Mahony (1986). Também David Rosenfeld (1992) estuda este episódio e mostra, assim mesmo, a enorme distorção semântica com que o Homem dos Ratos recebe os arenques que Freud lhe oferece, assim como suas interpretações. Pouco depois, e enquanto lida com O homem dos lobos, nos primeiros anos da segunda década do século, Freud escreve seus trabalhos técnicos. Vale lembrar que a análise de Sergei C. Pankejéff durou quatro anos e terminou pouco antes de começar a Primeira Guerra Mundial (Freud a escreveu neste momento, porém, só a publicou em 1918). Muitos autores, como Meltzer (1978), estimam que é o historial mais completo de Freud. Aos objetivos deste trabalho, convém destacar os princípios gerais que Freud estabelece nos seus trabalhos técnicos e que constituem o método psicanalítico, dos conselhos ao médico, de menor nível de abstração. Freud estabelece a associação livre como uma única regra que impõe aos seus pacientes, a regra fundamental, indispensável para o desenvolvimento da cura. A associação livre e a sua contrapartida, a atenção flutuante, marcam a tarefa do analisado, que é dar informação dizendo tudo o que aflora em sua mente, e do analista, que é receber esta informação (escuta) e responder somente com uma informação que se chama interpretação (e/ ou construção). Delas, seguem outras normas do método, isto é, a reserva analítica, a assimetria e a regra de abstinência. A reserva analítica se justifica por diversas razões. Desde já, para não perturbar a associação livre, o analista deve permanecer em silêncio, na escuta, sem interferir com perguntas, opiniões, conselhos, comentários e exortações. A reserva analítica também se sustenta na transferência: “O médico não deve ser transparente para o analisado, senão, como a lua de um espelho, mostrar somente o que lhe é mostrado” (A.E., 12:117). Estas palavras, que pertencem a Conselhos ao médico sobre o tratamento psicanalítico (Freud, 1912), foram muitas vezes criticadas; porém, ao meu ver, são a chave da técnica. A reserva marca um diálogo singular no qual duas pessoas falam somente de uma delas (Liberman, 1962), o que sanciona a assimetria da relação e define a polaridade de ambos os papéis, igualmente 178 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 179 R. Horácio Etchegoyen difíceis, já que é tão penoso ter que dizer tudo, assim como não poder dizer nada. A regra de abstinência pode ser entendida de diversas maneiras. Freud a introduziu em 1915 com referência aos sentimentos eróticos de suas analisadas e previne que o analista não pode satisfazer as demandas de amor, nem em forma direta, nem mediante subrogados. Afirma inequivocamente: “A cura tem que ser realizada na abstinência” (A.E., 12:168). Ao voltar ao tema do Congresso de Budapeste, em 1918 (Freud, 1919), afirma novamente: “Na medida do possível, a cura analítica deve ser executada em um estado de privação – de abstinência –” (A.E., 17:158, itálico no original), e esclarece, a seguir, que a abstinência aponta a evitar a satisfação substitutiva que os sintomas procuram no paciente; o mesmo havia dito em 1915. Assim entendida, a regra de abstinência parece que se aplica somente ao analisado e soa um pouco como técnica ativa, ignorando a enorme privação que tem que suportar o analista, se vai cumprir com sua dificílima função de espelho. Se é estendida a toda interação analisado/ analista, como fazem, com razão, María Isabel Siquier e Alberto Solimano (2000), a regra de abstinência é um princípio básico do método. Em meio às suas polêmicas com Jung e Adler, na sua Contribuição à história do movimento psicanalítico (1914), logo após dizer que a teoria psicanalítica se move nos parâmetros da resistência e da transferência, Freud afirma: “Qualquer linha de investigação que admita estes dois fatos e os tome como ponto de partida de seu trabalho tem o direito de chamarse psicanálise, ainda que chegue a resultados diferentes dos meus” (A.E., 14:16). Se bem que transferência e resistência são teorias e não fatos, o certo é que, nesta forma, fica definido com precisão o procedimento técnico da psicanálise. Diferentemente dos princípios gerais, que fazem o método e têm sempre um componente ético, estão os conselhos ao médico, que Freud mesmo considera contingentes. Se bem que, certamente, existem entre ambos zonas de trânsito, creio ser necessário separá-los, porque muitas vezes discutimos sobre conselhos como se fossem normas e vice-versa. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA Entre os conselhos, cabe mencionar o uso do divã, o número de sessões, a cobrança das horas em que o paciente não comparece, o acordo sobre honorários, horários e férias. Apesar de serem variáveis, os conselhos foram de fato aceitos pelos psicanalistas, não só – creio eu – pela enorme e compreensível autoridade que Freud exerce sobre nós, mas também porque englobam uma grande sabedoria e fazem realmente a história da técnica. O divã finca suas raízes na história; continua a técnica empregada no método inicial de ampliar a consciência (Breuer) ou recuperar as lembranças (Freud) sob hipnose, e justifica-se, obviamente, no método da coerção associativa. Freud dá também uma razão pessoal para seu uso: não suporta o olhar de seus pacientes, em suas longas horas de trabalho, nem gosta que eles percebam os gestos que os seus ditos lhe provocam. O uso do divã pode explicar-se, todavia, por razões mais gerais que o aproximem às normas do método. Assim como se demonstrou que é necessário que o analista restrinja os contatos sociais com o paciente, para não turvar a assepsia analítica, tampouco não é conveniente que o analisado tome contato com as reações afetivas que nos desperta. Deste ponto de vista, o uso do divã preserva a assimetria e a reserva analítica, e pode incluir-se, então, entre os princípios gerais. Há outras circunstâncias, mais domésticas, que também defendem o divã, que oferece ao paciente uma situação cômoda e relaxada e o protege (o mesmo que ao médico) da posição frente a frente, que pode lhe resultar embaraçosa. De todas as maneiras, quando convidamos o analisado a se deitar no divã e lhe dizemos que assim se desenvolve o tratamento, não lhe impomos. Uma vez introduzida a norma, o analisado tem a liberdade de não cumpri-la, e nós, de interpretá-la, conforme vão se apresentando no material os motivos inconscientes de permanecer sentado. A mesma atitude, por outro lado, mantemos ao introduzir a regra fundamental: não a propomos para que o analisado a cumpra, e sim para ter o direito de interpretar seu não cumprimento como resistência. Adler, depois de separar-se de Freud, nos anos dez, eliminou o uso do divã, porque reforça o sentimento de inferioridade, o que casa perfeita180 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 181 R. Horácio Etchegoyen mente com sua técnica de analisar o ego mais do que o inconsciente. Também Fairbairn (1958) abandonou o divã ao final de sua prática, considerando que, da perspectiva de sua teoria, a relação real entre analisado e analista é um fator terapêutico na qual o divã interfere. Enfim, que o divã tem algo mais que as preferências de Freud para ser usado. O número de sessões é outro dos conselhos que Freud dá e que gerou grandes controvérsias. Advirta-se que, nos novos conselhos de 1913, Freud diz que trabalha com seus pacientes seis vezes por semana (A.E., 12:129), porém, não parece estar impondo uma regra que todos devemos cumprir, especialmente, quando agrega o ato seguido: “Em casos benignos ou na continuação de tratamentos muito extensos, bastam três sessões por semana” (Ibidem:129). Não parece, pois, ser definida a posição de Freud com este ritmo, se bem, ele pensa, como a maioria de nós, que uma premissa do tratamento é um contato permanente e continuado. Não crê assim Winnicott (1977), no entanto, quando trata a The Piggle ‘on demand’. O número de sessões por semana e sua distribuição em dias diferentes têm sido tema de um amplo debate, ainda não esgotado, no seio da Associação Psicanalítica Internacional. Como dizem Ferrari e Seiguer (1977), Freud não parece dar-lhe tanta importância; e a isto deve agregar-se que ele sempre teve a idéia de que a duração do tratamento deve ser medida em meses e até em semanas, em não em anos, como fazemos. Também devemos reconhecer que, ainda que Freud não prescreva o número de sessões com toda a clareza e não o defenda teoricamente, como faz com a assimetria e a regra de abstinência, é evidente que dá alguns elementos empíricos (o gelo da segundas-feiras, etc.) para sustentar a necessária continuidade do contato. Em suas reminiscências sobre sua análise com Freud, Kardiner (1977) refere que, ao aceitá-lo em tratamento, Freud lhe escreve uma carta onde lhe diz que seu tratamento durará seis meses (“Six months are a good term to achieve something both theoretically and personally”), e assim o fez, apesar se suas queixas. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA Conta Kardiner um incidente divertido no começo do tratamento, conhecido por todos, que mostra que as seis horas de trabalho não eram um imperativo categórico do método. Freud dispunha somente de trinta horas vagas para seis pacientes que havia aceitado. Então, reuniu-os para dizerlhes que poderia atendê-los, porém, cinco vezes por semana3. Assim, instaurou-se o regime de cinco sessões, que depois se estendeu à Inglaterra, onde o sábado inglês era sagrado, aos Estados Unidos e a outros países do mundo. Quando foi fundada a Associação Psicanalítica Argentina, em 1942, as análises eram feitas, em geral, na freqüência de quatro vezes por semana, ainda que alguns pacientes faziam cinco. Há muitos países, e a França é um exemplo, onde o ritmo habitual é de três vezes por semana. Em resumo, desde o ponto de vista do desenvolvimento histórico, a idéia de que a análise deva ser feita quatro ou cinco vezes por semana e deva durar anos é uma idéia mais pós-freudiana que freudiana. Apenas recentemente a IPA formalizou seus estándares (Janice de Saussure, 19831985). Para a maioria dos analistas, a duração das sessões deve ser sempre fixa, indo de sessenta a quarenta e cinco minutos. A hora de cinqüenta minutos é a mais aceita. Lacan (1953, 1966), contudo, sustentou sempre a chamada sessão de tempo livre. Justifica esta atitude porque a sessão deve terminar quando se fecha uma estrutura, já que a suspensão não é indiferente à trama do discurso e desempenha um papel de escanção que tem todo o valor de uma intervenção para precipitar os momentos conclusivos (Leitura estruturalista de Freud, p.73)4 . La parole vide, quando o sujeito fala em vão (p.75; p.254), é outro motivo de escanção. Esta técnica tem sido discutida por muitos autores, porque expõe a conflitos de contratransferência, fica muito próxima da técnica ativa (Ahumada, 1992) 3. “Tradition yield to expediency” – “yet this expendiency in its turn became a tradition”, disse Kardiner, p.18. 4. “C’est pourquoi la suspension de la séance dont la technique actuelle fait une halte purement chronométrique et comme telle indifférence à la trame du discours, y joule la rûle d’une seansion qui a toute la valeur d’une intervention pour précipiter les moments concluants” (Écrits, p.252). 182 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 183 R. Horácio Etchegoyen e aproxima-se, inevitavelmente, de problemas éticos (Gilbert Diatkine, 1999). Baseado em suas teorias, Fairbairn (1958) também questiona que o tempo da sessão seja regido pelo relógio, e não pela dinâmica interna da relação. Outro dos conselhos ao médico, que se aceita em geral sem conflito, refere-se ao pagamento das sessões em que o analisado falta. Porém, esta norma não é rígida e pode variar segundo o estilo do analista, as expectativas do analisado e as circunstâncias. Agora que recordamos o método e os conselhos de Freud e os avalizamos, desejo assinalar que Freud nem sempre seguia seus próprios preceitos, como disseram Mahony (1986), Paul Roazen (1995) e outros autores. Nesta contradição influem diversos fatores. É verdade que o ato de criação parece liberar Freud de compromissos e formalidades. Porém, não é suficiente para explicar suas infrações, que o expunham a perturbar seu campo de observação. Speziale-Bagliacca (1982) o atribui ao autoritarismo de Freud, e eu lhe dou a razão, porque me parece notório que Freud pensava (e seu gênio o apoiava fortemente) que nunca se equivocava, e sua memória, realmente formidável, como a do pitoresco Funes de Borges (1944), o fazia pensar que sempre estava certo. Contudo, a verdade é que Freud, às vezes, se equivocava, e sua memória o traía. Mas, além do gênio e do autoritarismo de Freud, suas renúncias devem explicar também porque, apesar da sua auto-análise, ele nunca foi dono da sua contratransferência. Quando introduziu o conceito no Congresso de Nüremberg, Freud (1910) disse taxativamente que os pontos cegos na compreensão do psicanalista provêm da sua contratransferência, que é, portanto, um obstáculo para seu trabalho. Esta concepção da contratransferência como obstáculo foi compartilhada por todos os grandes pioneiros: Jones, Abraham, Melanie Klein, Reich, Anna Freud, Lacan, Hartmann, somente com exceção, talvez, de Ferenczi. Para chegar a receber tudo o que disse o paciente como material, isto é, sem dar-lhe outro rumo informativo, e para decodificar como ocorrência contratransferencial ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA (Racker, 1953), o que, naquele momento, quiséramos dizer: todos nós tivemos que percorrer um longo caminho. É coisa do ofício, da aprendizagem do nosso métier, colocar as coisas em seus devidos lugares. Por isto, resultou mais difícil não dizer a meus pacientes que havia nascido meu filho Alberto, do que, hoje, não lhes dizer que nasceu meu neto, Pedro. Valha isto como princípio de explicação entre a distância que vai do que Freud prescreve e proscreve e do que faz em Barggasse 19. Melanie Klein pediu a Rosenfeld que não publicasse seus trabalhos sobre a esquizofrenia até que ela apresentasse seus escritos sobre os mecanismos esquizóides (Grosskurth, 1986). Parece também que Abraham era reticente ao interpretar algumas coisas a Klein antes de publicá-las. É evidente, enfim, que os grandes pioneiros nem sempre cumpriam com as normas do método, e o mesmo se aplica, é óbvio, a todos nós. Os escritos técnicos estabelecem as bases de uma prática que coincide com a teoria desses anos, a metapsicologia, enquanto põe o acento nas resistências, no inconsciente e na superfície psíquica. Esta teoria foi se mostrando cada mais insuficiente, o que levou a uma profunda crise. Para facilitar a livre associação, Ferenczi recorre à técnica ativa, que Freud elogiou em Budapeste (e praticou), enquanto Abraham (1919) chama a atenção sobre determinados analisados, que não só descumprem a regra fundamental, como questionam o método da associação livre. O procedimento analítico resultava, pois, mais complicado do que parecia, e seus efeitos terapêuticos nem sempre eram alcançados. A conseqüência desta crise levou alguns destacados analistas a mudarem a teoria, e, assim, apareceram o Daseinsanalyse e a psicanálise cultural, enquanto que Freud (1923, etc.), sem abdicar de seus princípios, renovou suas teorias: a metapsicologia deu lugar à teoria estrutural. É difícil decidir se a grande mudança que promoveu a teoria estrutural repercutiu sobre a técnica, ou, ao contrário, como me inclino a pensar, as dificuldades da prática levaram à nova teoria. Em 1923, Ferenczi e Rank levantaram a questão da necessidade de uma prática vital e ativa, que prestaria mais atenção à transferência do que 184 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 185 R. Horácio Etchegoyen à lembrança, mais ao emocional do que ao conhecimento. Criticam o uso intelectual da técnica de Freud, quando divide conhecimentos teóricos com o analisado, e lhe objetam, também, não discriminar a resistência da transferência negativa, que reivindicam como parte essencial da cura. Em concordância com esses princípios, e com o grande trabalho de Abraham de 1919, Wilhelm Reich dita seu seminário técnico de Viena, onde a transferência negativa vem ocupar o centro da cena, e o leva a uma concepção mais ampla da superfície psíquica, que inclui a resistência caracterológica como fator econômico. Esta investigação culmina com seu célebre Análise do caráter (1933). Simultaneamente, e por outro caminho, Melanie Klein (1926, etc.) introduz a técnica do jogo na análise de crianças, onde, também, a transferência negativa ocupa um lugar de destaque. Nisto coincidem Reich e Klein, porém, discordam no uso da interpretação, já que Reich a aplica sistematicamente para levantar a resistência transferencial, enquanto Klein se inclina pela interpretação profunda do material inconsciente, fazendo livre uso dos símbolos e atendendo igualmente à transferência negativa e positiva, materna e paterna. Se bem que esta diferença se explica, a princípio, pela índole dos pacientes que tratam, também é certo que existem divergências profundas que não tardarão em aparecer. Em 1927, Anna Freud publica suas conferências sobre psicanálise infantil, onde defende uma aproximação cautelosa com a criança, cuja análise só é possível após um período preparatório que consolida a relação de trabalho, onde psicanálise e educação seguem juntas. Ela critica as interpretações profundas de Klein, que lhe parecem demasiado audaciosas, para não dizer selvagens, e não acredita que a criança possa estabelecer uma transferência, enquanto sua ‘primeira edição’, isto é, sua relação com os pais, não se esgotou. No Simpósio sobre análise infantil que aconteceu na Sociedade Britânica, Klein (1927) sustenta que a criança, ainda pequena, já estabeleceu os seus pais como objetos internos, e os transfere ao analista; e que, se se ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA interpreta o jogo como um sonho e os comentários da criança ao brincar como associações, o psicanalista tem acesso direto ao inconsciente sem necessidade de um período prévio. Com esta técnica, a análise das crianças poderá ser realizada, como a do adulto, sem recorrer a medidas pedagógicas. Sabemos que Freud se aborreceu com Jones pela forma como os ingleses trataram Anna no Simpósio, segundo estuda Ricardo Steiner (1985). Porém, convém acrescentar que a posição de Anna resulta mais semelhante com a do pai (dela e da psicanálise) do que a de Melanie. Sem entrar na discussão sobre a origem do superego e do complexo de Édipo, que pertencem mais ao âmbito da teoria, é evidente que a ênfase de Klein na transferência negativa e na interpretação profunda não podia despertar a adesão de Freud. Por mais que Klein acreditasse que sua técnica era mais ‘freudiana’, havia entre Sigmund e Anna vínculos não só de sangue, como também teóricos. Diferentemente de Reich e de Klein, que romperam totalmente com a sugestão, Freud nunca deixou de pensar que ela era necessária para vencer a resistência. É que, para prescindir da sugestão, há que interpretar a fundo a transferência negativa, o que Freud nunca fez. Depois da crise dos anos vinte, e enquanto Reich e Fenichel sustentam que a técnica é passível de sistematização, polemizando com Theodor Reik (1933), que defende a intuição e a surpresa, aparecem outros aportes significativos. O trabalho de Strachey (1934) sobre a ação terapêutica da análise é uma síntese formidável de todas as idéias em luta na época. Strachey pensa que a neurose se constitui a partir de um círculo vicioso em que o sujeito projeta no objeto seu superego, que volta não modificado, quando não volta pior. Existe, felizmente, uma forma de romper este círculo vicioso, e é quando o analista, sobre quem se projeta o objeto interno, se converte, por um momento, em superego auxiliar e, desde esta posição, interpreta, em dois tempos, a catexia que nele foi projetada e sua diferença com o objeto arcaico. Se o psicanalisado consegue diferenciar o seu analista do objeto primitivo, introjeta-o como mais racional, com o que se rompe, por um 186 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 187 R. Horácio Etchegoyen momento, o círculo vicioso e muda a estrutura. A interpretação mutativa resolve os problemas que, naqueles anos, estavam sendo debatidos, e que são, no final, os centrais do método psicanalítico de todos os tempos. A interpretação mutativa é inevitavelmente (ou quase) uma interpretação transferencial, porque somente nela coincidem o objeto arcaico com o que o interpreta. É realmente muito improvável que o analista possa mostrar convincentemente ao analisando que este está sobrepondo seu objeto arcaico com alguém a sua volta. E é muito raro também que este alguém não responda à projeção como o objeto arcaico. Além de ser transferencial, a interpretação mutativa respeita a idéia freudiana de superfície psíquica, porque atende sucessivamente à defesa e ao conteúdo, ao mesmo tempo que responde à exigência kleiniana de chegar a camadas profundas. (Se é mais examinada, a interpretação mutativa ocorre no ponto exato e não é, portanto, nem superficial, nem profunda.) A interpretação mutativa, enfim, obtém a vivência que reclamam Ferenczi e Rank (1923), oferece o conhecimento do inconsciente que busca Freud e constitui o momento de insight ostensivo do qual, muitos anos depois, falaria Richfield (1954) e também Hanna Segal (1962) no Congresso de Edimburgo. Ao lado do escrito de Strachey, aparece outro trabalho fundamental, O destino do ego na terapia analítica, onde Sterba introduz o conceito de aliança terapêutica: no processo psicanalítico, o ego divide-se numa parte que expressa os conflitos neuróticos, e outra que, identificada com o analista, os observa e os compreende. Essa linha de investigação foi seguida depois por Elizabeth R. Zetzel (1956, etc.) e Ralph Greenson (1965, etc.), que colocaram ênfase na regressão no setting como condição necessária do processo psicanalítico, enquanto Winnicott (1955), em um de seus trabalhos mais perduráveis, entende a regressão no setting como um fator de alto valor curativo para certos pacientes. Em 1936, aparece o lúcido livro de Anna Freud, que aplica, consistentemente, à técnica psicanalítica os princípios da teoria estrutural. Ainda que Anna Freud respeite o princípio freudiano de partir da superfície psí- ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA quica e de atender primeiro à defesa do que ao conteúdo, como também o fará Fenichel (1914), recolhe os princípios da análise do caráter de Reich e, ao interpretar, coloca-se eqüidistante do id, do superego e do ego. A técnica de Anna Freud é, pois, mais versátil que a de Reich, já que critica o acesso direto ao inconsciente e o recurso aos símbolos, que propõe Klein, ainda que recolha dela, talvez, a idéia de interpretar, oscilando entre o ego e o id. A monografia de Heinz Hartmann (1939) segue de perto os preceitos de Anna Freud e separa a área de conflito da área livre de conflito do ego. Como todos sabemos, o pensamento de Hartmann e de seus colaboradores Loewenstein e Kris dominou por muitos anos a psicanálise dos Estados Unidos, até que apareceram outras tendências, representadas por Leo Rangell, Jacob Arlow, Robert S. Wallerstein, Harold P. Blum e Charler Brenner, entre outros autores. Sem separar-se de Hartmann, Rangell entende que a psicanálise é uma empresa de todos, na qual os conhecimentos vão se acumulando a partir de investigações díspares, as que, ele mesmo, leva sua contribuição à função egoica de tomada de decisões e à teoria da ação (Rangell, 1971, 1989, etc.). Arlow (1969, etc.) interessou-se pela dialética entre fantasia e realidade, enquanto que Wallerstein (1988) buscou a unidade na diversidade de nossas teorias, e Blum renovou o interesse de Freud (1937) pelas construções. Brenner (1994, 1999), por sua vez, foi mais além do ego e do id da teoria estrutural e, colocando o conflito e as formações de compromisso no centro de sua reflexão, abandonou, resolutamente, o conceito de área livre de conflito. Também a técnica kleiniana foi sofrendo mudanças significativas, com mais atenção no processo mental pré-consciente e certa cautela ao interpretar a inveja primária. Cabe destacar os trabalhos de Betty Joseph, que enfatiza a importância do acting in na transferência e o assinala como uma séria e persistente tentativa de perverter o vínculo transferencial, tal como pode ser estudado em seu valioso livro Equilíbrio psíquico e mudança psíquica (1989). Quando, nos anos cinqüenta, Jacques Lacan inaugura seu Seminário e pronuncia seu Discurso de Roma (1953), encontramo-nos com um desen188 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 189 R. Horácio Etchegoyen volvimento teórico que haveria de deixar fortes vestígios marcas profundas na França e no mundo inteiro. Lacan toma como ponto de partida a lingüística estrutural de Ferdinand de Saussure para propor um retorno a Freud com uma leitura estruturalista. Depois tomou outros caminhos, que não é este o momento de recorrer, e podem encontrar-se no bem fundamentado livro de Elizabeth Roudinesco (1993). Muitos escritos de Lacan ocupam-se da técnica psicanalítica, como, por exemplo, La direction de la cure et les principes de son pouvoir (1958), onde podemos apreciar, seu conceito de ego, diametralmente oposto ao de Hartmann, seu modo de entender dialeticamente a transferência e sua crescente ênfase no discurso psicanalítico, que recentemente criticou Ahumada (1992). Na metade do século, sobrevém uma mudança drástica na forma de conceber a contratransferência. É um mérito de Paula Heimann (1950, 1960) e Henrich Racker (1960) entendê-la não só como um obstáculo, como também como um instrumento da cura. Este salto qualitativo instaura verdadeiramente um novo paradigma (Kuhn, 1962), onde o compromisso do analista em seu trabalho é reconhecido, finalmente, explicitamente. A partir deste momento, o conceito de assimetria muda, tem que mudar; e assim se definem duas formas de entender a psicanálise e também de praticá-la: alguns autores pensam que a participação contratransferencial do analista no tratamento não apaga a assimetria, porém, torna mais difícil mantê-la, obrigando o psicanalista a resgatar-se, momento a momento do processo, para poder, a partir daí, interpretá-lo; outros, ao contrário, pensam que a assimetria se torna completamente ilusória. Embora o descobrimento da contratransferência como instrumento técnico tenha se dado, simultaneamente, em Londres e Buenos Aires, é evidente que Racker a estudou mais consistentemente. Em 1948, Racker postulou uma neurose de contratransferência como réplica da neurose de transferência com suas características específicas (Estudo 5) e, no Estudo 6 de 1953, precisou os significados e usos da contratransferência, distinguindo vários tipos. Nas ocorrências contratransferenciais, o analista encontra-se pensando, espontaneamente, algo egodistônico, que no momen- ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA to não se justifica e depois aparece, de alguma forma, no material do analisado. As posições contratransferenciais, ao contrário, são mais permanentes e implicam um maior conflito no analista. Racker também classifica a contratransferência em concordante e complementar. Na contratransferência concordante, o analista se identifica, parte a parte, com as instâncias psíquicas do analisado e é, portanto, mais empática; na contratransferência complementar, o analista ocupa o lugar do objeto interno do paciente, o que implica um maior nível de conflito. A isto, acrescenta León Grinberg (1976, etc.) o conceito de contraidentificação projetiva, onde os conflitos do analista não entram em jogo, e é a identificação projetiva do analisado que, por sua intensidade e qualidade, leva o analista a fazer-se cargo de “uma reação ou mecanismo que pertence ao paciente” (Grinberg, 1976:89). Em outras palavras, na contraidentificação projetiva, o analista se vê, literalmente, forçado a assumir o papel de um objeto que pouco ou nada tem a ver com ele. Este aporte de Grinberg completa e enriquece as idéias de Racker e destaca o valor comunicativo da identificação projetiva. A teoria da contratransferência como instrumento veio mostrar que o processo psicanalítico é mais complexo do que antes se pensava, porém, também abriu novos caminhos. Os Baranger (1961-1962) definiram a situação analítica como campo dinâmico, onde aparece uma fantasia de casal. A partir da prática da psicanálise com casais, famílias e grupos, foi constituindo-se outro marco teórico para abarcar os desafios que propõem estas novas práticas. Culminando numa investigação de muitos anos, Isidoro Berenstein e Janine Puget (1997) diferenciam relação de objeto e vínculo. A tese fundamental destes autores é que o outro não é somente semelhante, mas também alheio. Puget e Berenstein consideram que vivemos em diferentes mundos psíquicos, que não se sobrepõem. No mundo intra-subjetivo, está o sujeito com suas representações e suas fantasias, onde operam os mecanismos de projeção e introjeção; aqui funciona a relação de objeto, e o outro só é necessário para colocar aspectos da própria 190 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 191 R. Horácio Etchegoyen mente. No mundo intersubjetivo, o ego está com outros, e a relação é mais homogênea, mais real. No vínculo – diz Moguillansky (1999) –, a alteridade é irredutível (p.97), e, enquanto partícipes do vínculo, somos significados por ele. No espaço vincular, aparece o que é alheio, o incompartível do outro. O terceiro espaço é o sociocultural, com seus valores, suas crenças e suas ideologias: é mundo trans-subjetivo, que atravessa os outros dois, onde se alojam as relações do ego com a sociedade. Quando, em 1970, George S. Klein se pergunta se na psicanálise, existem duas teorias ou uma e se declara partidário da teoria clínica, contra a metapsicologia, abre um caminho que nos conduz à hermenêutica. A linguagem e a teoria clínica dão conta da motivação e das relações objetais, enquanto a metapsicologia, que concebe a mente como um modelo mecânico, paga um alto preço para sustentar uma explicação da atividade mental nos termos fisicalistas caros a Freud e aos cientistas do século XIX. A teoria clínica, ao contrário, vai em busca dos significados que surgem do conflito humano. Esta linha foi depois seguida por Gill (1994, etc.), Schafer (1976, etc.) e, em outro sentido, por Owen Renik (1993) e Donald P. Spence (1982, etc.). A hermenêutica psicanalítica tem também grandes cultuadores na Europa, como Alfred Lorenzer (1970, etc.), com sua teoria da compreensão cênica, que se sustenta no círculo hermenêutico com a compreensão, sem recurso algum à explicação. Na França, destaca-se a obra de Serge Viderman (1979), com sua ênfase na linguagem. O campo da hermenêutica psicanalista é vasto e difícil de delimitar, como disse Saks (1999), ainda que possamos mostrar que se interessa, fundamentalmente, pela linguagem e pelo sentido, por razões e não por causas, defendendo a compreensão, e não a explicação. A viva controvérsia sobre se a psicanálise é uma ciência da natureza (Naturwissenshaften) ou do espírito (Geisteswissenschaften) ocupa um lugar importante em nossos dias, que despertou o interesse de Charles Hanly (1992), Gregorio Klimovsky (1994), Jorge Luís Ahumada (1999) e outros pesquisadores. No valioso livro de Thomä e Kächele (1985), pode-se en- ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA TÉCNICA PSICANALÍTICA contrar uma clara exposição desta problemática. À margem desta discussão, cabe mencionar André Green (1991), para quem a psicanálise é um conhecimento do sujeito válido por si mesmo e completamente separado da ciência. Toda teoria e toda prática nos expõem a certos riscos, e sustentá-las tem um custo. Assim como os que entendem a psicanálise como ciência da natureza podem cair no positivismo e perder de vista a singularidade da linguagem humana, os que se amparam no círculo hermenêutico sempre verão oscilar sobre suas cabeças a espada de Damocles de la folie à deux. Os narrativistas, por sua vez, estão sempre a um triz de operar per via di porre, e os interacionistas de jogar fora a assimetria. Também os que preferem operar com três mundos, na tentativa de incorporar, substancialmente, ao nosso ‘que fazer’, ao outro e à sociedade, estão expostos a descuidar da transferência. Assim, cheguei ao fim da minha exposição. Lamento o que deixei pelo caminho e o que tive que abreviar. Quero pensar, contudo, com otimismo, que o dito poderá ser um estímulo para o pensamento e a crítica de todos vocês, que me honram com sua presença. Quero agradecer a Harold J. Blum, Roberto Doria Medina Jr., Jacqueline Amati-Mehler, Jorge Luís Ahumada e María Isabel Siquier pela ajuda que me prestaram para redigir este trabalho. Bibliografia ABRAHAM, K. (1919). Una forma particular de resistencia neurótica contra el método psicoanalítico. In: Psicoanálisis clínico. Buenos Aires: Paidós, 1959. cap.15. AHUMADA, J.L. (1992). 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O terceiro refere-se a sustentar, como conseqüência dos anteriores, a íntima relação entre as características da cultura em cada momento e lugar e as expressões da Psicopatologia, particularmente as da cultura pós-moderna. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 199 Samuel Arbiser Psique e Cultura PSIQUE E CULTURA I) Sigmund Freud, involuntariamente, escandalizou o mais respeitável do establishment social e acadêmico da sua época, quando, nas suas pesquisas sobre as histerias, reconheceu uma etiologia sexual e, como resultado não desejado de seu trabalho, desmascarou a hipocrisia social ou, se preferível, a dupla moral, nos assuntos da sexualidade. Não o intimidou o “esplêndido isolamento” ao qual foi condenado pelos que o rodeavam e, durante o processo de criação do método e a teoria psicanalítica, especificamente aplicável aos indivíduos, foi além, refletindo sobre a dimensão coletiva, isto é, sobre o social e o cultural. “A moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna” (1908), “Totem e tabu” (1912/3), “Psicologia das massas e análise do ego” (1921), “O futuro de uma ilusão” (1927), “O mal-estar na cultura” (1930), “O porquê das guerras” (1932) e “Moisés e a religião monoteísta” (1938) formam uma relação ou, se preferível, um contraponto entre o individual e o coletivo (social ou cultural). A Psicanálise nasceu no apogeu da cultura européia “moderna”, no final do século XIX, quando Sigmund Freud começa a abordagem de seus pacientes “nervosos”, explorando um método e explicações inéditas para a Medicina de seus contemporâneos. Justamente ele, um rigoroso neurofisiopatologista familiarizado e experiente no uso do microscópio, deixa de lado esse maravilhoso instrumento ótico com o qual havia prometido desvendar, definitivamente, todos os mistérios etimológicos das doenças. Em troca, reconhece, como sustento da sintomatologia, o “infortúnio ordinário” e, desse modo, produz um extraordinário salto metodológico e epistemológico no esclarecimento da “miséria histérica”. “Repetidas vezes tive que ouvir dos meus doentes, após prometer-lhes a cura ou o alívio mediante a cura catártica, esta objeção: ‘Você mesmo diz: é provável que meu sofrimento se misture com as condições e peripécias da minha vida: você nada pode mudar nelas, e então, como pretende me socorrer?’ Pude responder: ‘não duvido de que ao destino lhe resultaria mais fácil que a mim livrá-lo do seu padecer. Mas, você se convenceria de que é grande o ganho se conseguirmos mudar sua miséria histérica para infortúnio co200 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 1. O grifo é do autor. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 201 Samuel Arbiser mum. Com uma vida anímica restabelecida você poderá se defender melhor deste último” 1 (Freud, 1895, T.II, p.309). Conseqüentemente, nem microorganismo, nem mudança celular ou tissular eram responsáveis pelas neuroses, mas se tratava de “condições e peripécias da vida”, isto é, vicissitudes dos inevitáveis conflitos derivados da convivência entre os seres humanos na cultura. Supera-se, desta forma, o impasse no qual a Psiquiatria clássica havia parado, perseguindo seus esforços no terreno da Biologia. Se nós os humanos compartilhamos com os animais o fim biológico último da sobrevivência individual e da espécie, diferenciamo-nos desses porque nosso ecossistema não é somente o mundo “natural”, mas, em um âmbito muito maior, o mundo “sociocultural”. Enquanto os animais podem se conformar com um rudimentar psiquismo, confiando que seus instintos farão todo o trabalho necessário para a sobrevivência individual e da espécie, no homo sapiens essa tarefa já não é instintiva, mas aprendida e, conseqüentemente, a variedade do sucesso desta aprendizagem da disciplina da vida na sociedade e na cultura dependerá das cambiantes vicissitudes do desenvolvimento do seu aparelho mental. Ao assinalar a preponderância do aprendido sobre o instintivo, pretendo mostrar que a complexidade do psiquismo humano, tanto no seu rendimento como na sua vulnerabilidade, está em consonância com a extraordinária complexidade da cultura. Desta maneira, tento enfatizar a intrincada e solidária relação de interdependência entre o desenvolvimento da nossa mente e o desenvolvimento da cultura e, nessa mesma ordem, interessar pelo modelo de psiquismo proposto por Enrique Pichon Rivière (1971), e eu mesmo (Arbiser, 1985) tentei desenvolver, durante as últimas décadas, o “grupo interno”, este modelo tem como eixo essa relação psique-cultura. PSIQUE E CULTURA II) O grupo interno é uma maneira de visualizar e conceituar – em um sentido funcional – o psiquismo humano em termos de um repertório de estruturas vinculares organizadas numa unidade que as faz coerente (no melhor dos casos). Estas estruturas vinculares estão em permanente intercâmbio de retroalimentação com as estruturas vinculares do mundo externo presente. Foram incorporadas durante o desenvolvimento evolutivo e reproduzem refratado, no mundo interno, o mundo social e cultural próprio de cada indivíduo. A infinita variedade de histórias pessoais determina a “singularidade” com que cada indivíduo decodifica e processa os universos culturais e a herança cultural. Em outros termos, minha opinião é que o “infortúnio ordinário” ao qual Freud aludia nos seus primeiros trabalhos é a porção do inevitável “mal-estar na cultura” que toca a cada um de nós ao enfrentarmos a tarefa de viver. Portanto, partindo da idéia de que a cultura seria algo assim como o psiquismo da humanidade no seu conjunto, poderiam ser propostos três níveis de “mal-estar na cultura”: nível geral, abordado pelo somatório das disciplinas humanas: a Filosofia, a Política, a Economia, a Arte, a Literatura, a Religião e outras que estudam os múltiplos aspectos que constituem os universais e acontecem em toda cultura; nível particular, que enfoca características de época ou lugar, ou de grupos determinados que estudam a Antropologia e a Psicologia Social, entre outras; nível singular, resultante do encontro entre cada cultura particular com a dotação genética de cada indivíduo e cada detalhe de suas circunstâncias vitais. Este prematuro encontro da marca cultural e do desvalido neonato humano institui o psiquismo, que irá requerer muitos anos de evolução, assistido pelo entorno cultural íntimo (a família) e, que, com o passar do tempo, será cada vez mais abrangente. Com a teoria psicanalítica das “identificações constitutivas” (Freud, 1917, 1921, 1923) é dado o passo decisivo para configurar o nosso psiquismo como um espaço interno povoado pelo mundo humano (cultural). Antes da teoria das identificações, o eixo da teorização girava em tor202 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 III) É neste último nível do “mal-estar na cultura”, o da singularidade, que a Psicanálise tem seu lugar específico de acesso. Não que os psicanalistas não tenham tentado penetrar em outros níveis. Freud, mesmo, o fez em todos seus trabalhos “sociais” já mencionados e, embora considerados contribuições essenciais no campo psicanalítico, conseguiram somente uma limitada inserção nos campos específicos mais abrangentes da Religião, da Antropologia, da História, e da Dinâmica dos Grupos. Nicolás Espiro (1985) faz, nesse sentido, uma interessante e instrutiva crítica epistemológica ao texto freudiano de “Mal-estar na cultura”. Os pensadores da cultura, no seu nível mais geral, não ignoram a importância decisiva da Psicanálise e suas contribuições para a compreensão da conduta huma2. O grifo é do autor. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 203 Samuel Arbiser no da repressão, que constituía a interface entre a consciência e o inconsciente. As explicações eram expressadas em termos vetoriais de forças em conflito e de formações de compromisso entre as forças. O descobrimento da existência de um mundo psíquico, desconhecido em cada pessoa, o inconsciente, centralizava o assombro da nova disciplina. A meu ver, a teoria das identificações submerge, sem descartá-la, a anterior da repressão e configura um novo ponto de partida. A noção de “grupo interno” está baseada na teoria das identificações e das relações de objeto, mas as torna complexas ao sustentar que não se internalizam objetos “isolados” no nosso psiquismo, mas estruturas vinculares portadoras das particularidades organizacionais sociais e a herança cultural, próprias de cada grupo familiar. Em poucas oportunidades Freud (1917) se manifesta tão claramente no sentido de visualizar os pais como intermediários do mandato social, e a criança em desenvolvimento, como na seguinte história: “A filha encontra na mãe a autoridade que cerceia sua vontade e a pessoa a quem foi confiada a missão de lhe impor essa renúncia à liberdade sexual que a sociedade demanda... Para o filho, o pai encarna toda a co-ação social, que suporta com desgosto” 2 (T.XV, p.188). PSIQUE E CULTURA na, mas não aceitariam que por si só explicasse as motivações da vida coletiva, a dinâmica dos grandes eventos sociais e os movimentos evolutivos que ocorrem na cultura. Ninguém com escrúpulo epistemológico aceitaria, sem reservas, que a guerra é um produto do aumento do “instinto de morte” ou das “tendências filicidas” dos indivíduos de uma determinada comunidade. É necessário reconhecer que, durante o século, a Psicanálise influenciou, nos decursos da cultura, apenas modestamente. A cultura tem seus próprios dinamismos que transbordam amplamente as possibilidades explicativas e operativas da Psicanálise. Seria ingênuo supor que uma humanidade idealmente psicanalisada, na sua totalidade, evitaria as guerras, a distribuição injusta dos bens e a administração irracional do poder e do sexo. As Instituições psicanalíticas, nas quais supomos que todos os seus membros estariam psicanalisados, não mostram melhores condutas que a sociedade no seu conjunto, quando se colocam em jogo as questões mencionadas. Mas, no sentido contrário, poucos colocariam em dúvida que as mudanças culturais produzidas na história da humanidade redundaram em marcadas mudanças na subjetividade e, conseqüentemente, na Psicopatologia. O lúcido trabalho de Eugenio Gaddini (1984), “As mudanças nos pacientes psicanalíticos de nossos dias”, entre muitos outros, apresenta, claramente, as mudanças na Psicopatologia durante o século XX paralelamente às mudanças culturais. O que a Psicanálise, sim, pode abordar, são os “infortúnios humanos” daqueles poucos com suficiente “egodistonia” que procuram para processá-los e permitir uma “adaptação ativa à realidade”, nos termos de Pichon Rivière, ou nos termos de Freud (1924, p.195), quando define: “Chamamos normal ou ‘sã’ uma conduta que agregue determinados traços de ambas as reações: que, como na neurose, não desminta a realidade, mas, como na psicose, se empenhe em modificá-la. Esta conduta adequada, dita normal, leva a realizar um trabalho que atue sobre o mundo externo, e não se conforma, como a psicose, em produzir alterações internas; já não é autoplástica, mas aloplástica”. Isto resulta em uma processo dialético entre uma introspeção crítica (o 204 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 3. Considero imprescindível para os psicanalistas uma consciência das dinâmicas que movem o mundo no qual vivemos, mas isso não deve ser confundido com um alento à ação revolucionária como se postulava como dever, no final da década de 60 e durante a de 70. 4. Esta autora, em apenas um parágrafo, dá uma imagem eloqüente dos pacientes “pós-modernos”: “Há alguns anos encontrávamos no divã do analista um bom número de pacientes que sofriam diversas formas de impotência sexual ou frigidez, em um contexto no qual o objeto sexual habitualmente era amado ou superestimado. ‘Amo-a e, entretanto, não posso fazer amor com ela’. Hoje existem mais analisados que dizem: ‘Faço amor com ela, mas não a amo’ ” (p.270). Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 205 Samuel Arbiser insight) e uma visão também crítica3 (nem contestadora, nem sectária) do nosso entorno e dos complexos dinamismos que o movem. O impressionante avanço na ciência e na tecnologia do nosso tempo conduziu a uma vertiginosa mudança do pensamento da humanidade. Sobre isso, existe abundante e instrutiva literatura de pensadores autorizados, psicanalíticos (McDougall, 1982)4, (Ahumada, 1985), (Carlisky, compilador, 1998) e de outros campos (Lipovetsky, 1983; Sartori, 1997). Limitarme-ei a destacar somente alguns valores inerentes ao método e ao dispositivo analítico, em especial disputa com as mudanças culturais próprias da pós-modernidade. Insistiu-se, com razão, em que a Psicanálise caminha a contrapelo da cultura pós-moderna. Não adianta reclamar. Esta evidência deveria estimular a autocrítica e a criatividade dos psicanalistas para abordar, com renovados brios, o desafio que o novo nos apresenta e tentar, assim, atualizar a eficácia e o frescor do método e da teoria. O que é urgente é revisar criticamente a rigidez dos parâmetros, a fim de poder, como Freud, na sua época, discernir o ponto de urgência atual, tanto no indivíduo, como na cultura. Mas, também, seria justo reconhecer que nessa revisão não haveria acordo unânime entre os psicanalistas sobre o que é essencial e irrenunciável e aquilo que pode ser reinventado para enfrentar os novos tempos. E esta é a ocasião para expor minha opinião pessoal sobre o que considero como valores inerentes à Psicanálise: a) Trabalho psíquico: com isto pretendo assinalar uma diferença entre a terapia analítica e qualquer outro método terapêutico. O analista não fornece qualquer meio supressor para o alívio imediato do padecimento PSIQUE E CULTURA que molesta o paciente, mas que deve ser apresentado para conduzir um processo tal, bem como para que o prórpio padecimento exerça no paciente o estímulo necessário para interiorizar-se no desconhecido ou inexplorado de si próprio. É mais importante ajudar à auto-indagação que ao fornecimento de respostas. Isto, para paciente e analista, significa renunciar aos atrativos atalhos das soluções prêt-à-porter e os expõem a enfrentar incertezas. O resultado para ambos, em experiência emocional e vivencial, é incomensurável. Parafraseando o poeta: do que se trata, não é de transitar os caminhos existentes, mas de “... fazer caminho ao andar...”. Como conciliar este valor com a cultura atual da facilidade dos produtos vistosamente embalados? b) Atendimento personalizado: O contato pessoal, estável e contínuo com o paciente, em um quadro pactuado e coerente, não somente fornece um cenário propício para a emergência transferencial dos pretéritos conflitos não resolvidos, mas produz, de forma simbólica, o âmbito humano, no qual o neonato se aprovisiona de suas necessidades biológicas, afetivas e culturais (universo de significações), imprescindíveis para sua sobrevivência. Não existe outra prestação tão centrada no atendimento humano, nem a suficiente valorização coletiva de seus efeitos terapêuticos, especialmente nesta época onde a eficácia tecnológica desloca e faz esquecer o sentido entranhável e insubstituível dos vínculos humanos. Lembrar, em apoio a esta afirmação, o fenômeno do “hospitalismo” descrito por René Spitz. c) Historicidade e singularidade: A experiência analítica, que permite recuperar a história própria e única de cada pessoa, contribui para definir simultaneamente sua singularidade. Com a proposta de conceber a idéia de singularidade se trataria de tirar a oposição – muitas vezes ideologicamente sustentada – entre o indivíduo “isolado” (Bleger) e o homemmassa-indiferenciado. O primeiro desestima suas relações de interdependência com os demais e com a sociedade, em seu todo, enquanto o segundo não terminou de adquirir os contornos que o definem e o diferenciam dos demais. 206 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sinopse Este artigo aborda três pontos. O primeiro sustenta a relação de interdependência entre o extraordinário desenvolvimento da psique humana e a vida na cultura. Esta relação de interdependência é complexa e está longe de ser simétrica. Dado que o homem vive num âmbito sociocultural, é o “infortúnio ordinário’ (Freud) o que aborda a Psicanálise. Este “infortúnio”, num nível individual, é correspondente com o “mal-estar na cultura”, num nível coletivo, tributário de múltiplas disciplinas artísticas e científicas. O segundo propõe a noção de “grupo interno” como modelo de psiquismo que, em minha opinião, mais se ajusta a dar conta desta interdependência. Este modelo implica o desenvolvimento a partir do conceito de “identificações” e das “relações de objeto”. O terceiro sustenta, como conseqüência dos anteriores, a íntima relação entre características da cultura em cada momento e lugar e as expressões da psicopatologia, em particular as da cultura pós-moderna. Como os valores desta cultura e os valores inerentes à Psicanálise se contrapõem, trataremos de fazer algumas pontualizações. Summary The article sets forth three main ideas. The first is the interdependent relationship between the extraordinary advancement of human psyche and cultura life. This interdependence is complex and far from symmetric. Given that man lives in a sociocultural surrounding, it is the “common unhappiness” (Freud) what psychoanalysis will address. This “unhappiness” corresponds to what “civilization and its discontents” is at the collective level, a tributary of multiple artistic and scientific disciplines. The second purposes a notion of “internal group” as a psychic model that, in my opinion, better adjusts to explain this idea of interdependence. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 207 Samuel Arbiser d) Interioridade psíquica: Sua atrofia ou desaparecimento provavelmente seja a pior conseqüência dos efeitos indesejáveis da pósmodernidade sobre nossa subjetividade, que, por conseqüência, não mereceria esse nome. A supervalorização da eficiência e operatividade das condutas, no mundo externo, vai em detrimento de uma interioridade inevitavelmente conflitante. Pareceria como se “os eternos problemas do homem” tivessem submergido em problemas “extrínsecos”, assim como se o tempo mecânico dos relógios deslocasse totalmente o tempo subjetivo. PSIQUE E CULTURA This model implies a development resulting as of the concept of “identifications” and “object relations”. The third, and as a derivative of the other two, refers to the maintenance of an intimate relationship between the characteristics of culture in a given time and place, and the expressions of the psychopathology, particularly those of the post-modern culture. However cultural values and those inherent to Psychoanalysis are in contraposition, the article attempts to give an account of some of the latter ones. Resumen Este artículo plantea tres puntos. El primero sostiene la relación de interdependencia entre el extraordinario desarrollo de la psiquis humana y la vida en la cultura. Esta relación de interdependencia es compleja y dista de ser simétrica. Dado que el hombre vive en un ámbito sociocultural, es el “infortunio ordinario” (Freud) el que aborda el Psicoanálisis. Este “infortunio” en el nível individual se corresponde con el “malestar en la cultura” en el nível colectivo, tributario de múltiples disciplinas artísticas y científicas. El segundo propone la noción de “grupo interno” como modelo del psiquismo que, en mi opinión, más se ajusta a dar cuenta de esta interdependencia. Este modelo implica un desarrollo a partir del concepto de las “identificaciones” y de las “relaciones de objeto”. El tercero está referido a sostener, como consecuencia de los anteriores, la íntima relación entre las características de la cultura en cada momento y lugar, y las expresiones de la psicopatología, en particular las de la cultura posmoderna. En tanto los valores de esta cultura y los valores inherentes al Psicoanálisis se contraponen, se trata de puntualizar algunos de estos últimos. Palavras-chave Interdependência entre psique e cultura; O infortúnio ordinário e o mal-estar na cultura; Psiquismo como grupo interno. Key-words Interdependence between psyche and culture; The common unhappiness and civilization and its discontents; Psychism as internal group. Palabras-llave Interdependencia entre psiquis e cultura; O infortunio ordinário e o mal estar em la cultura; Psiquismo como grupo interno. 208 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 AHUMADA, Jorge L. (1997). Crisis de la Cultura y crisis del Psicoanálisis. In: Descubrimientos y refutaciones. Biblioteca Nueva, A.P.M., 1999. 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Artigo Tradução: Traduzca Revisão da tradução: Denise Zympek Pereira Dr. Samuel Arbiser Dr. Luis Agote, 2437, piso 2º 1425 Buenos Aires – Argentina E-mail: [email protected] Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 209 Samuel Arbiser Bibliografia PSIQUE E CULTURA 210 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Conferência na SBPdePA “E finalmente precisamos não nos esquecer que a relação analítica se baseia em um amor à verdade – ou seja, em um reconhecimento da realidade – e isso exclui qualquer tipo de fraude ou dissimulação” (Freud, em Constructions in Analysis, 1937, p.248) Paulo Cesar Sandler Membro Titular e Analista Didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 213 “Assumo que o efeito permanentemente terapêutico de uma psicanálise, caso exista, depende da extensão que o analisando se capacitou a usar a experiência de ver um aspecto de sua vida, ou seja, ele mesmo, como ele é......Segue-se Paulo Cesar Sandler na SBPdePA “Psicanálise e Ciência: Parentes, Amigas ou Estranhas? Bases Científicas da Psicanálise” “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” que uma psicanálise é uma atividade conjunta de analista e analisando para determinar a verdade; sendo assim, os dois estão envolvidos – não importa o quão imperfeitamente – naquilo que, por intenção, é uma atividade científica” (Bion, em Cogitations, p.114) “Se não fizesse a menor diferença, aquilo que acreditamos, se não houvesse tal coisa, o conhecimento, discriminando dentre nossas opiniões por intermédio de correspondência com a realidade, poderíamos tanto construir pontes de papelão como de pedras, e poderíamos injetar tanto um decagrama quanto um centigrama de morfina em nossos pacientes, e poderíamos usar gás lacrimogêneo ao invés de éter como narcótico. Mas mesmos os anarquistas intelectuais repudiariam violentamente tais aplicações práticas de sua teoria” (Freud, em The Question of a Weltanschauung?, 1933, p.176.) Sandler – Boa noite, colegas. Eu agradeço de coração o convite, receando não estar à altura dele. Fiquei aqui meio enrubecido quando soube que os dois textos, “Psicanálise e Ciência: Amigas, Parentes ou Estranhas?”, e “Noções de Epistemologia para Uso de Psicanalistas” foram distribuídos...eu pensei que vocês iam escolher um deles. E olhem só, dentro desta pasta tão prática e bonita, eu gostaria de aprender com vocês este modo de organizar eventos aqui no Sul...o belo aqui dos pampas é íntimo do respeito, respeito humano que vocês tem... Bem, tenho a impressão que o problema do conhecimento, como o denominou Cassirer, interessa a vocês. Psicanálise tem algo a ver com teorias do conhecimento? É uma forma que assumiu a teoria do conhecimento? De conhecer a realidade? Será que epistemologia, o nome meio complicado desta teoria, teria sido uma ancestral da Psicanálise? Minha experiência comigo mesmo e com meus pacientes me autorizam a pensar que Psicanálise é um método que apresenta o indivíduo a ele mesmo. Quem ele realmente é, por meio de investigação. Vocês que me ouvem, têm propósi214 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 1. Eu tenho proposto, nos últimos seis anos de modo mais explícito, uma postura que me parece sintetizar o que minha experiência indica ser psicanálise: a tolerância de paradoxos sem tentar resolvê-los. A exposição detalhada desta indicação técnica e teórica aparece em alguns textos, principalmente os volumes da série “A Apreensão da Realidade Psíquica”; uma versão sintetizada da “tolerância de paradoxos” apareceu publicada no resumo que Jorge Ahumada fez de meu estudo sobre a visão binocular, apresentado no painel sobre a obra de Bion no Congresso da IPA em Santiago, 1999, e publicado no International Journal of Psycho-Analysis, 2001. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 215 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA tos científicos, entendidos aqui como tentativas de apreender a realidade. Vão reconhecer uma postura do Iluminismo, expressa por Bacon, Kant e Samuel Johnson, a respeito dos fatos como eles são. Como observou Bion, em Uma Memória do Futuro, o indivíduo é aquele com quem ele mesmo vai ter que conviver até o fim de seus dias. De todos os outros que conhecemos, podemos nos separar; mas não de nós mesmos. Freud descobriu, empiricamente, o quão útil é ao indivíduo, saber vivamente, experiencialmente, quem ele é. Este auto-conhecimento difere do até então procurado pela Filosofia, na medida que está a serviço do tornar-se quem realmente se é. Manifestam-se realmente, no aqui e agora da sessão, os impulsos amorosos da pessoa consigo mesma; e de fraternidade sob o ponto de vista do trabalho necessário para tanto, do analista com seu paciente. Quem é, realmente, esta pessoa com quem ela mesma vai precisar conviver desde que nasce? Aquilo que o indivíduo precisa saber sobre si pertence ao domínio que Kant chamou de numênico, paradoxalmente individual e da espécie humana, chamado por Bion de “O”. Este saber é inconsciente e consciente ao mesmo tempo – outro paradoxo a ser tolerado. Não pode ser nomeado de modo total e último, mas pode ser vivido e intuído, eterno enquanto dura, como se fosse o último na hora que ocorre. Modelos Conseguidos Até Agora Os psicanalistas conseguiram fazer algumas das formulações paradoxais1 (modelos) atinentes a este domínio: amor e ódio, realidade psíquica e material, instintos de vida e morte e suas várias e infinitas manifestações individuais dentro de uma sessão de análise. Vou dar um exemplo prático: ao detectarmos as formas imanentes, individuais, inconscientes que o triângulo edipiano assume em um deter- “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” minado paciente, no aqui e agora da sessão lá conosco, estamos ao mesmo tempo lidando com a transcendência universal e atemporal “Édipo”, igualmente inconsciente – uma tarefa genuinamente científica. Tolera-se, como na ciência de modo geral, o paradoxo de uma teoria precisar ser geral o suficiente para abarcar particularizações. Isto não é criado pelo analista. Nem pelas suas teorias prévias. Por isto fazemos uma tarefa científica: o fígado não foi criado pelo médico, nem sódio e potássio, pelo químico, nem a transmutação da matéria em energia, por Einstein. Bion observa: Freud reconheceu, como cientista, que se defrontava com um problema cuja solução requeria a aplicação do mito edipiano. “Daí resultou não a descoberta do complexo de Édipo, mas da Psicanálise” (em Cogitações, “Torre de Babel”, p.236) O psicanalista faz ciência e investigação em cada mili-segundo de sua prática, especialmente quando enfrenta a dor geralmente associada ao desconhecido, ao que ele não sabe, e tão especialmente quanto, ao observar certas conjunções constantes e invariâncias que dizem, aquela pessoa que ele trata é ela mesma e nenhuma outra; e que ela traz em si algo que é do ser humano, e que assim a observação pode ser “replicada”. Então podemos ver que ao falar em ciência, falamos, queiramos ou não, conscientemente ou não, de um assunto que, surpreendentemente, virou tabu nos últimos trinta anos, também no meio científico (porque fora dele já era tabu há muito tempo): verdade. Que no meu modo de ver, é sinônimo de realidade. Isto não é moral, mas há tendências populares de negá-la, justamente em bases morais. Muitos, inspirados em algo que pensam ser Psicanálise, tem oficializado a opinião individual e confundido o fato de que aspiramos a percepções sobre a realidade psíquica, que é imaterial, não é sensorialmente apreensível, como se esta aspiração pudesse negar a realidade material. Um ser desencarnado, isento de compromissos que não com sua imaginação e opiniões idiossincráticas, talvez inteligentes ou advocaticiamente persuasivas, alvo de críticas justas daqueles que são desprezados como “organicistas”. Vejam só: eu estava sem os meus óculos que me possibilitam ver “de perto”, já que a idade, se não 216 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 217 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA trouxe sabedoria, trouxe dificuldades maiores de acomodação de meu cristalino. E o que ocorreu? Eu não pude enxergar a citação. Isto me faz desconfiar que não podemos depreciar o nosso sistema sensorial, porque quando ele não funciona...nada mais funciona. Eu ia fazer uma citação para tentar falar que nós estamos num momento muito complicado em termos da própria filosofia ou da teoria do conhecimento. Nós estamos numa época em que se nega o conhecimento e se nega a possibilidade do conhecimento, e isto está muito popular. O que se nega é que é possível conhecer alguma coisa. Houve um uso muito específico de alguns avanços na teoria do conhecimento. Eu vou pincelar rapidamente um deles, porque esse foi o momento histórico em que apareceram tanto Freud como aquele outros dois que fizeram história, que foram os Professores Max Plank e Albert Einstein. Não se nota freqüentemente, mas é facilmente demonstrável, que os três descobrem mais ou menos a mesma coisa, que podemos dizer, que há uma interferência do sujeito no objeto observado. Mas vejam só, passa o tempo e o que eles três descobriram começou a ser usado para dizer que não se sabe nada. Para se atacar o próprio conhecimento. Heisenberg, outro físico, chamou esta descoberta – ou uma conseqüência dela, de “princípio da incerteza”; eu penso que os quatro podiam ter uma tolerância de paradoxos. Não foi só isto que tanto o Dr. Freud como esses físicos, que estavam lá preocupados com os problemas da Física, descobriram ao mesmo tempo. Os físicos descobriram que a Física, nascida do estudo de objetos macroscópicos e materiais, não é Física, é Química. Quer dizer, descobrem que as partículas e as micropartículas não são micropartículas só, elas são ondas também, são energia. Freud fala, no mesmo ano que Planck percebeu algo neste sentido, de realidade psíquica e realidade material. Há uma espécie de “pulo do gato” nessa formulação verbal de Freud. Eu penso que é um aspecto que não tem merecido a consideração que demanda, e eu colocaria o assunto assim: é necessário ler com atenção o que ele deixou escrito. Ele escreveu: a realidade psíquica é uma forma diferente de existência, se comparada com a realidade material. Porque a realidade material, essa que os nossos órgãos dos sentidos, apesar do seu espectro muito “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” limitado de absorção tanto acústica como visual, capta um objeto qualquer. Ela possui uma forma de existência que transcende sua materialidade, sua realidade psíquica, que não é material. Mas a existência é uma só, assim como o fenômeno físico é partícula; e é onda. Os físicos ficaram séculos brigando sobre a natureza da luz: Será que é partícula? Será que é onda? Porque algumas vezes elas se comportavam como partículas, e às vezes como onda. Descobriram que eram as duas. Não se trata de ecletismo, pax romana ou aquele antigo partido político brasileiro, o PSD, do “deixa disso”. Não era uma questão política. É um paradoxo que não pode ser resolvido. A luz é partícula e é onda. A realidade é psíquica e material. As pessoas às vezes – tenho constatado que mais vezes do que menos vezes – lêem isso que Freud escreveu de um modo clivado e pensam que a gente fala de uma coisa desencarnada, inconsciente ou coisa assim, que estaria independente da realidade material. E quando falamos, por exemplo, nos distúrbios da sexualidade, que é algo que nós artesãos da obra do artista Freud, que escreveu sobre os instintos básicos do homem, estamos – nós e ele – tentando falar dos equivalentes psíquicos da realidade material. Ou seja, não dividimos uma da outra. Quando ele escreveu sobre fantasia inconsciente, que eu penso ter sido um avanço na Psicanálise, estamos com uma certa tarefa, de perceber que “fantasia inconsciente” não é obra da mente de Freud’: os “equivalentes psíquicos dos instintos” são algo que existiu antes de Freud, tomou forma por causa de sua intuição, investigação empírica e honestidade e continua existindo na vida de qualquer ser humano – e pode ser observado na clínica, caso tenhamos observado em nós mesmos, na nossa análise pessoal. Mas o que é o instinto? Falamos tanto disto, confundimo-nos no jargão e na bizantinice de definições fora do que Freud escreveu, de um alemão por vezes eruditamente aprendido mas mal-apreendido na clínica, das autoridades argentinas e francesas e de outras nacionalidades que se arrogam ao apostolado e ao ministrar religioso, e ficamos cegos para o fato descrito. Pois não é o instinto, o básico da vida? Não diz esta palavra, 218 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – Quem não leu, vai ler. Sandler – E dos que leram...alguém poderia contar para alguma coisa? (risos) Eu acho que para vocês pode ficar muito chato, se eu continuar aqui falando...todo mundo vai estar dormindo daqui a pouco. Ah, o colega pode contar. Participante – Vou passar por mentiroso... Platão fez uma analogia. Foi em função da morte de Sócrates. Ele escreveu que as pessoas estavam em uma caverna, agrilhoadas e olhando para a parede da caverna, de forma que atrás tinha uma fogueira e essa fogueira se projetava na parede, na tela da caverna, a sombra das pessoas. Também passavam na tela da caverna, as pessoas que andavam do lado de fora, só as imagens, com o sol atrás, de forma que a certa altura um deles se soltou e conseguiu sair para o exterior e ver que havia formato, que havia cor, que havia outras texturas e uma série de coisas. O que aconteceu é que ele voltou para contar para aqueles, que era outra coisa o mundo, não aquele em que eles passaram a vida dentro, e quando ele chegou lá, ele foi morto. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 219 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA taquigraficamente como toda palavra que se preze, de sobrevivência, tomar água, procriar, sobreviver? Eu receio estar indo muito rápido. Mas vocês dizem que não, então, vamos lá. Quando Freud formula, realidade material e psíquica, que são duas formas diversas da mesma realidade, esta realidade, e aí está mais um problema de natureza paradoxal. Ela não é só material e psíquica, ela é cognoscível de certo modo; mas ao mesmo tempo incognoscível de modo último. Muitos perceberam isso: Kant, e Platão, muito tempo antes. Acho que todos vocês conhecem, ou leram alguma coisa que está lá no texto “A República”, de Platão”. Refiro-me à metáfora da Caverna e das Sombras. Alguém aqui nunca leu? Talvez seria bom se pudesse se denunciar, pois teria uma vantagem, aqui e agora... “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” Sandler – É, quando você falou em metáfora e em analogia, eu penso como você, que realmente é uma metáfora, e uma analogia. É quase uma fábula, aquele conto...relativo à inacessibilidade da realidade. Eu diria que a metáfora da Caverna e das Sombras, seria uma das formas que assumiu o que os gregos chamavam de “doxa”, o discurso sobre o conhecimento. Nós usamos metáforas, nós usamos analogias. O pessoal do conto de Platão pensava, a realidade era aquela sombra que eles viam, assim como podemos nos iludir que Psicanálise é repressão, é sublimação, é Édipo, e etc. e tal...e ficamos cegos para investigar, por exemplo, se Psicanálise não é o discurso sobre ela, mas poderia bem ser algo que ocorre dentro do consultório. Eu acho que nos interessa a lembrança do colega, vamos considerála no momento, uma versão do conto. Do que eu li, acho que Platão contava algo a partir de Sócrates. Vocês sabem, este homem, um amante da verdade, chegou num ponto da sua vida, em função de seu amor, que se defrontou com uma opção: ou se suicidava ou ia ser morto. Tudo indica que ele decidiu se suicidar, pois acreditava que era o único modo da verdade – a iniqüidade, estupidez e bestialidade das autoridades institucionais lá da sociedade dele – emergir, e indelével. Parece que ele tinha razão, mas isto traz uma notícia predestinadora para os psicanalistas, cientistas e todos aqueles que não odeiam a verdade em tempo integral e dedicação exclusiva. Este é o destino de um psicanalista que faça o seu trabalho, se ele vai ter um acesso a algo da realidade, ainda que transitório, ainda que parcial. Uma das verdades é esta situação de percebermos que a realidade última é incognoscível, nós não podemos saber tudo o tempo todo, sempre. Isso tem sido um risco no movimento psicanalítico e nos consultórios. Pois às vezes temos teorias, que parecem nos habilitar a saber como funciona a cabeça da pessoa, ou como foi a infância da pessoa, coisas que não observamos. Será que podemos conciliar este ódio ao fato de que há coisas que não conhecemos com algo que conhecemos? Pois a percepção de não se saber acabou levando aquilo que eu estava me referindo anteriormente, à crise que penso existir na teoria do conhecimento. Eu diria que foi a tragédia da Filosofia no nosso século: a incognoscibilidade última de seja lá o 220 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – (meneia negativamente). Sandler – O quadrado da velocidade da luz. Todos conhecem a teoria da relatividade, não? Ela se expressou de dois modos, um deles é uma teoria gravitacional, é como funciona o universo; outro, são as transmutações de matéria em energia. Quer dizer, teoricamente, se você conseguir acelerar uma determinada partícula ao quadrado da velocidade da luz, ela vira energia. Foi assim que eles fizeram a bomba atômica, e aceleradores de partícula, etc. Então podemos dizer que isso foi, talvez, o mais próximo que o ser humano chegou da realidade última, até hoje. Porque isso é isso, não é outra coisa. Isto não vai cair. As pessoas querem tanto que caia...Muitos filósofos da ciência, que não tem nenhuma experiência de ciência mesmo, ou fracassaram quanto tentaram obtê-la, inventaram uma teoria que ficou muito popular durante este século, pois atendeu de modo não frustrante o ódio à verdade que é uma característica humana. Eles, ao invés de fazerem ciência, ficaram falando a respeito de boas teorias científicas. É mais ou menos como alguém que entendesse muito de falar sobre cozinha, de livros de cozinha (como estes multicoloridos de hoje me dia) mas jamais tivesse tido a experiência de cozinhar. Bem eles espalharam muito bem espalhadinho, com argumentos realmente convincentes e plausíveis, porque racionais, que boas teorias têm que cair. Só assim seriam científicas, mesmo. Eu me refiro aos popularíssimos Karl Popper, nas décadas de cinqüenta e sessenta, ao seu discípulo Lakatos (que morreu jovem e na verdade não ficou muito popular) e sua versão mais requentada dos anos setenta, a idéia dos paradigmas de Thomas Kuhn. Vocês lembram de nosso patrício, o físico brasileiro que estudou tão bem o méson pi, o Professor César Lattes? Um homem honrado, cientista real, mas que talvez tenha se afundado em algum problema que parece ser de nossa alçada. Ele queria provar que Einstein estava errado e realmente se Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 221 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA que for, acoplada a termos chegado muito perto, com e=mc², quer dizer, energia é igual...Ah, você quer falar...fale, por favor. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” atrapalhou, nunca mais pesquisou nada. Se a teoria da relatividade cair, isto vai provar que ela não é verdadeira. Eu não entendo de Física nem sei do futuro, mas desconfio que ela não vai cair, como a Física descrita por Newton não caiu. Falar que isto vai cair é a mesma coisa que dizer que a roda vai cair. A roda é uma realidade. Demorou tempo para ser descoberta, formulada: começou com aqueles seixos que ficavam rolando na água depois tomou a forma de troncos de árvores em corredeiras e rios, e depois alguém andou serrando os troncos e conseguindo secções de troncos, muito parecidas com as rodas de hoje em dia. Desde que a roda foi inventada ela continua a ser usada, ela está aí. Temos pneumáticos, temos rolamentos, mas a concepção roda, a realidade roda, aquilo que eu estava dizendo...a “rodisse”, a qualidade de ser roda, isso não vai cair. Sem dúvida restam problemas. E=mc2 não nos diz o que é luz? A boa ciência é essa, que ela abre novos problemas. Nós não sabemos o que é luz, não sei se vamos saber. Conforme os físicos foram investigando, depois de Einstein, eles descobriram, por exemplo, umas partículas que não tinham massa; outras, que apareciam e desapareciam de repente. Houve um, Isidor Rabi, que descobriu uma destas partículas meio esquisitas, e falou: “mas quem encomendou isso aí?” Para que serviria uma partícula que não tem massa, que aparece e desaparece? Mas ela existe. Quer dizer, os físicos perceberam que há emanações desta realidade última, é algo que Freud percebeu pertencer ao próprio inconsciente. Quando Freud usa este termo – que ele não inventou, diga-se de passagem, já estava disponível – inconsciente, bom isto é inconsciente, a gente não sabe o que é. Se é inconsciente, é que não se sabe o que é. Se pudermos, como de vez em quando de fato podemos, tornar consciente, não é mais inconsciente e há algum outro “algo” inconsciente, que precisamos continuar procurando. A análise vai prosseguindo, percebemos algo a respeito de uma pessoa, se pudermos caminhar mais, está ligado a outros fatores, outras situações até então desconhecidas, mas existentes e atuantes, podem ir surgindo. Teoricamente, uma pessoa poderia ficar em análise a vida inteira... Umas, infelizmente, quanto mais a gente investiga, menos se vê, pois há o falso self, as imita222 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – Era “Pierre dois”, em francês... Sandler – Sim, quem estudava matemática e francês tinha uma vantagem, pois conseguia ter a regra mnemônica. Era isto mesmo, o símbolo Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 223 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA ções, os arranjos e improvisações, mas isto é da pessoa; ou quanto mais se mexe, mas um mau odor se exala, mas nem sempre é assim. Freud, no final da sua vida, escreve sobre análise terminável e interminável, com aquela metáfora das cascas de cebola. Exemplos clínicos mostram, são potencialidades das pessoas. Bom parece que termina quando a pessoa termina ou fica gagá, às vezes termina antes, ou alguma coisa assim. Eu estava tentando dizer que a constatação de que ninguém pode se aproximar da verdade última ao ponto de abarcá-la totalmente ou ser proprietário dela, em linguagem do senso comum ou da sabedoria popular, ninguém é dono da verdade, deu uma chance para umas pessoas acharem que agora poderiam provar, e com isto irem dormir sossegadas, que a verdade não existe. Uma coisa é dizermos que não podemos nos aproximar totalmente ou sermos donos da verdade. Eu exemplifico outra vez com a ajuda da roda, que é um exemplo bem simples de apreender, inclusive pela senso-concretude que envolve. Ah, a roda deu muito trabalho para os gregos quando eles estavam conhecendo este fenômeno... Eu não sei se vocês lembram do ginásio, ou colegial, como era que nossos professores nos ensinavam que se calculava... Quando os gregos começaram a medir a roda, eles conheciam o círculo. Lembram disto? A gente pode até imaginar que é o seguinte (desenha um círculo na lousa; “corta” o círculo em um ponto). Vamos fazer o seguinte, nós desligamos aqui e podemos esticar isto aqui, vai ficar uma coisa mais ou menos deste tamanho, não é mais roda. Imaginem que eu vou ter que ficar segurando aqui, pois se eu soltar esta ponta volta para cá, porque é roda. (imaginariamente o círculo cortado tem uma extremidade “puxada” para um lado e então surge uma reta) E o que os gregos descobriram quando eles chegaram aqui? Como é que mediam o perímetro? “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” grego era a letra do alfabeto deles, o π, exatamente...e eles conseguiam calcular não só perímetro, mas também a área que era o π multiplicado pelo Raio (uma medida do centro do círculo até um ponto qualquer de seus limites), ao quadrado... Participante – πR². Sandler – Isso. Nesse negócio de π, aqui, foi que eles tiveram, depois de tanto conhecimento que tinham obtido, de retas, números naturais, triângulos, astros, geometria plana, bom eles aí toparam com algo diverso. Tiveram um contato com a incognoscibilidade.... Partcipante – Como é, desculpe? Eu não ouvi a tua última palavra. Sandler – Incognoscibilidade. Como eles descobriram o π? Nós, uns dois mil anos depois, pudemos saber desde a infância – repetimos na nossa infância a infância do conhecimento, só que em muito menos tempo – como se calculava o π. Como os gregos , tivemos que nos haver – vocês lembram? – com esse diabo dessa figura aqui (desenha um pentágono dentro de um círculo) que nunca dava certo. Porque sempre faltava um pouquinho, quando a gente ia fazendo com o compasso conforme o professor ou professora ensinava, era em matemática e em desenho geométrico, sempre faltava um pouquinho, esse pouquinho era o π. O π valia algo, valia ... Participantes – 3,1416. Sandler – Ad infinitum. Até hoje eles estão pondo o computador para calcular isso aí, calcular o incalculável, são não sei quantos milhões de casas que já calcularam e vão continuar calculando. É incognoscível. Com isso os gregos descobriram, na verdade, que havia séries infinitas que não podem ser calculadas. Parece que se sentiram doidos com isso, eles fica224 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 225 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA ram mesmo muito perturbados. Ele se contentaram em fazer as rodas, para bigas e trigas e outras máquinas mas ficaram tão perturbados que pararam o avanço da matemática. Ao descobrirem um número que não podia ser escrito sob forma de raiz, disseram, este número π é irracional. Para não ficarem loucos, disseram que louco, irracional, era o número. Mais ou menos como se faz quando se topa com um louco – a gente não sabe o que é e diz, “é louco”. Pois todos os outros números que eles conheciam permitiam (os números naturais) que se os escrevesse sob forma de raiz. Mas este, não. Este tinha esse diabo dessas casas infinitas. Nesse infinito, digamos, sem forma. Poderia ter sido um modo dos matemáticos já perceberem essa nossa questão. Sem forma, sem raiz, não quer dizer que esse número não existe, não é um número inexistente, ele é infinito, ele existe, e se eu quiser ficar calculando, eu calculo. Mais recentemente surgiu um indivíduo, ele tem uma história pessoal curiosa...chamava-se Werner Heisenberg. Foi discípulo de Plank, e ele estabelece o “princípio da incerteza”. Na filosofia de hoje em dia andaram usando de um modo muito suspeito o que este homem formulou. A impressão que eu tenho é que isso está se infiltrando na Psicanálise com muita velocidade. Muitos estão tentado, com certo sucesso, transformar o Princípio da Incerteza em um Princípio da Ignorância. Bom, quem aqui conhece o que Werner Heisenberg calculou e escreveu? Vocês certamente já ouviram falar do princípio da incerteza? Ah, eu fico bem preocupado quando constato que muita gente confunde isso com muito do que o Dr. Bion escreveu – ele mesmo menciona Heisenberg em dois de seus livros, o Transformações, e a Memória do Futuro. Mas não é a mesma coisa do que andam falando, nem o uso que o Dr. Bion faz é este. Eu observo que as pessoas fazem algo assim, “bom, então se é incerto, ninguém pode saber”. Os psicanalistas às vezes se juntam e falam, “Ah, esta é a sua transformação, e esta outra aqui é a sua transformação”, e cada um tem uma opinião e parece um samba do crioulo doido. Todos tem razão. É receita certa para popularidade, referendada por uma autoriade atribuída ao mais novo guru, que chamam de “Bion”, pois há algo de sedutor nisto. Imaginem um “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” supervisor, em um seminário, dizendo que todos os seminaristas têm razão, inclusive os que emitem opiniões contraditórias entre si, que um exame mais acurado mostra que se anulam mutuamente? Ninguém vai ficar perseguido nem preocupado em desenvolver seu trabalho, já que todos estão certos, baseados em sua opinião pessoal. De alguns anos para cá, bem, já fazem uns 25 anos...defendem-se “leituras”, e todo mundo que fala lê alguma coisa, e é o livro que o leitor viu, sem se preocupar com os sentidos do autor, com o que está escrito. Estas pessoas alegam que a gente não tem a possibilidade de ter algum contato com a verdade, ou com a realidade. Nos nossos exemplos, com o que está escrito no livro, quem realmente é o paciente sobre o qual se fala na supervisão ou quem é aquela pessoa na análise, naquele momento? Eu costumo achar que vocês aqui no Sul estão mais preservados disso, pois minha experiência tem sido esta e tenho muita admiração por vocês quanto a isto. Mas isso é alguma coisa que em certos centros está acontecendo. A gente pega os livros na.... Participante – Aqui nós estamos somando 3, 14, 16, 32 .......... psicanálise, vem do π mesmo. É o símbolo para a psicologia. Sandler – É curioso isto, mesmo. Símbolo psíquico, a área psíquica. Bom, os gregos pararam, eles não foram adiante, mas como era algo real, e um problema pendente, passam centenas e centenas de anos e a Matemática se volta a eles de novo. Eu estava falando do princípio da incerteza, pois me parece uma formulação real de algo real, e útil para todo cientista, acho que para o analista, apesar de alguns entre nós terem tentado corromper o princípio. Heisenberg o elaborou por observações no domínio das micropartículas e microenergias. Ele diz o seguinte: que nós não podemos conhecer a velocidade de uma partícula, a velocidade angular de um elétron...mas eu preciso interromper a definição, para me certificar se vocês se lembram do modelo do átomo que estudaram no colégio, o modelo de Bohr, com que Heisenberg aprendeu muita coisa. Tinha um nucleozinho central, e em torno dele, um tal de orbital S, e o orbital T, e os 226 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 227 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA outros, mais complexos...vocês lembram disso? (desenha na lousa) Eram nuvens de probabilidades...Cadê o elétron? Cadê aquela partícula? Eu não sei onde ela está, descobriu Heisenberg, mas sei que ela está por aqui. Você quer falar alguma coisa? Não? Interrupções eu volto a dizer, são bemvindas...Mas esta nuvem aqui (assinala na lousa), ela é conhecida, ela está por aqui. O nosso paciente é aquele paciente e não é outro. Não é possível que uma teoria em Psicanálise fale do paciente e fala que ele é isso, por exemplo, que o problema dele é narcisismo, que ele é muito narcísico, e outra teoria fale, do mesmo paciente, que o problema dele é falta de narcisismo. Será possível, existirem realmente duas teorias que sejam válidas e falem de modo tão diferente, no sentido de se contradizerem – não é uma diferença qualquer, de vértice por exemplo – do mesmo paciente? Um fígado não pode ser um fígado e um osso, ao mesmo tempo, por exemplo. E então porque uma personalidade, por complexa e mulifacetada que fosse, seria coisas tão intrinsecamente diversas como se sugere nos encontros psicanalíticos? O princípio da incerteza diz o seguinte: nós não podemos saber com precisão, onde está essa partícula (sua posição no espaço) e qual é a velocidade dela, ao mesmo tempo. Nós não podemos saber com precisão esses dois parâmetros, simultaneamente. Mas nós podemos saber com precisão um dos dois. Simultaneamente, a medição nos dá a nuvem de probabilidade que o Bohr observou, o modelo atômico dele. Se isso funciona nesse universo quântico (que não é só micro, é macro, do macro universo também) como seria em Psicanálise? Quer dizer, quando lidamos com a mente humana, não podemos ter uma certeza precisa e absoluta quando tentamos ouvir algo que fala o paciente, mas observamos algo porque estamos vivendo este algo com ele, e quando ele nos fala alguma coisa, é reação dele, e esta reação nos permite ir formando idéias sobre o que aconteceu. Quem estudou Freud sabe que eu estou falando uma coisa que Freud falou, que o valor de uma interpretação é aferido pela resposta do paciente, em termos de associações livres. Porque podemos medir na física, com muita precisão, a posição da partícula, mas aí a gente perde a precisão na medida da velocidade. Essa partícula é um parte energia, e se “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” medirmos muito bem a velocidade, não sabemos bem onde ela está (posição). O que ele disse foi apenas isto, o princípio da incerteza é que não dá para medir com precisão a velocidade e a posição, ao mesmo tempo. Então, com o paciente, falamos algumas coisas que achamos que são. Talvez possamos usar um exemplo prático. Hoje de manhã, vivemos isto. No caso trazido pelo colega, ele preferiu não colocar um dado, a profissão do paciente, por uma questão de sigilo profissional. Mas era algo que embora ele tenha mantido escondido, eu havia falado durante a nossa conversa, e foi uma coisa que deixou nosso colega animado, eu vi que ele estava animado. Eu não sabia nada do paciente, e ele confirmou, “Sim, é isto, ele é esta coisa aí que você disse”. Uma das coisas, eu não vou dizer qual é, justamente para não romper a questão do sigilo. Como eu sabia de algo que o nosso colega não falou, se eu não conheço o paciente dele? É que ele tinha me dito, sem ter falado, nas suas associações livres. E era uma verdade, o paciente era mesmo aquilo. Eu não soube disto porque estivesse na minha cabeça, eu não soube porque eu tenha inventado, eu não soube por causa da minha teoria, só sei porque observei algo subjacente ao que nosso colega falava. Ocorre isto na sessão, e eu e o paciente juntos, podemos chegar a uma verdade. Nós somos as duas variáveis, como o tempo e o espaço das partículas. Eu estou falando de ciência e Psicanálise, desde o início, e ilustrando deste modo, simplesmente para dizer o seguinte: a realidade existe, parece um absurdo isso, mas se em Psicanálise cada psicanalista vê uma coisa num caso clínico, numa reunião clínica, cada um dá uma interpretação, estamos, sem saber, nos jogando a algo que só pode se vincular a questões de autoridade e poder. Então como vai ser? O paciente é o que ele é ou ele é o que o supervisor que diz o que é? O candidato ou aluno, seja lá o que for, ele é bobinho e não entende nada, e sempre todo analisa acha que seu colega não sabe fazer análise mas ele mesmo, o analista, sabe. Neste caso, eu penso que nós não estamos fazendo ciência, e nem estamos fazendo alguma coisa que sirva para a pessoa. Eu observo que muitos se prevalecem do fato dos pacientes sempre saírem do nosso consultório com alguma 228 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 229 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA coisa que é impalpável, mas que se for Psicanálise, ele vai usar, e se não for, ele não vai usar realmente, pois não era verdade, ou era uma verdade que depende de cada um. Será que o mundo é o que a gente vê ou o mundo é o que a gente quer? Será que o mundo são as coisas que a pessoa em particular vê, só? Eu, que vim da psiquiatria, aprendi que isso era delírio, que se eu olho alguma coisa, que eu acho que o mundo é o que eu estou vendo, eu estou delirando. O mundo deve ser alguma coisa, não é apenas o produto da minha mente. Eu bem sei – e a Psicanálise me parece o método mais eficaz para avaliarmos isto – que nossa mente distorce e colore a realidade, mas o caso é conhecer estas distorções e coloridos. Isto difere muito do que nós hoje estamos vivendo no movimento psicanalítico. Estamos – e isto é fruto de uma pesquisa proveniente de minha enorme preocupação com o que tenho observado – em um momento que a filosofia já viveu, isso tem se infiltrado na Psicanálise. Inspirado na tragédia que se meteu a filosofia, eu tenho proposto chamar isto de subjetivismo ou idealismo ingênuo, que o mundo é o produto da nossa mente. Quem tem experiência psiquiátrica e mesmo médica, e quem tem experiência da vida, advogados, engenheiros, donas de casa, acham estas posturas muito esquisitas e entram facilmente nessa conversa. Os analistas poderiam se perguntar o quanto tem contribuído para o descrédito de nosso ofício. Por outro lado, o mundo também não é uma mensuração concreta, porque o nosso espectro sensorial é muito limitado, mesmo que nós sejamos ajudados. Por exemplo, enxergamos as estrelas e podemos ter o telescópio. Ou, não enxergamos coisas muito pequenininhas e podemos ter o microscópio, mas isto que vemos não é a verdade também. O próprio neurônio...hoje sabemos, é um artefato histológico. O que estudamos como sendo neurônio é um artefato determinado pelo jeito com que se corta a célula, que se colore a célula. Pois o tal de neurônio é uma unidade funcional. Então, existem esses dois bandos, por assim dizer; e é isso que eu comento no segundo texto que vocês receberam. Nós temos os vários filósofos da ciência que foram populares durante este século. Vocês já devem ter ouvido falar do Professor Karl Popper, aquele vienense que dizia ter “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” conhecido Freud e marcou época, ficou famoso na Inglaterra; depois vem o Professor Thomas Kuhn, americano. Bem, eu esperaria que vocês lembrassem, pois eu acabei de falar neles há uns 10 minutos atrás...Como eu disse, eram pessoas que, na verdade, não eram cientistas, eles não tinham a prática da ciência, e eles negam a própria possibilidade da ciência. Popper ficou muito famoso ditando regras para dizer o que era a ciência e o que não era. Eu estou falando um pouco da obra de Popper porque ele influenciou muito toda uma escola Argentina. Vocês aqui conhecem tão bem o modo dos argentinos, e há lá o Professor Klimowsky, que insiste muito em Popper. Popper odiava a psicanálise, ao ponto de iguala-la à obra de Adler, não à de Freud. Ele não conhecia nada da obra de Freud. Vocês já viram alguém ficar falando de DNA e dizerem que não sabe nada da obra de Watson e Crick? Um cientista real não faz este tipo de coisa, tem respeito pela verdade. O Professor Popper foi contemporâneo de Freud, de certo modo; ele era um jovenzinho quando Freud já era um senhor mais idoso, eles moravam lá em Viena. Popper fez parte do grupo dos neopositivistas. Ele tem dois critérios para dizer se uma coisa é ciência ou não. O que é ciência? Eu a entendo, como milhões de pessoas, como um método de apreensão da realidade. O ser humano foi tendo vários métodos para lidar com uma ânsia que tem, a ânsia de conhecer. Um primeiro deles, imagino, foi a música, baseada na sensorialidade auditiva; parece que ouvimos ruídos da natureza e tentamos reproduzi-los. Percebemos isto nas crianças. A minha fábula pessoal é, alguém, um dia, ouviu o som de uma criança chorando e aí, talvez tenha descoberto que era pai, que aquele minihominídeo que estava lá...tinha a ver com ele. Bom, há alguns estudos antropológicos que eu estou resumindo muito, e deles eu construiria essa fábula. Que os hominídeos estavam lá naquela fase, e isso acontece no ser humano até hoje, não havia noção de paternidade, o homem lidava com a mulher apenas como alguma coisa que satisfazia um desejo, ele não tinha noção de que aqueles mini-homnídeos eram produto de um ato que ele tinha feito, que aquele objeto do prazer dele tinha resultado em alguma coisa que tinha a ver com ele. 230 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 231 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA Então talvez possamos dizer que ele apreendeu uma realidade quando descobriu a paternidade. Eu acho que as fêmeas, as mães descobriram isto antes dos pais. E continuam descobrindo. Bem, elas tem uma vantagem, levam o mini-produto embutido nelas durante vários meses...A realidade não é só física nem só psíquica...Se vocês quiserem ter uma bibliografia, posso fornecer. Parece-me um estudo fascinante, como o homem demorou para se dar conta disto...e nós vemos isso até hoje na clínica, em geral o homem demora muito mais, os meninos demoram mais para crescer; nos jovens casais, em geral a mulher tem uma noção mais clara disso, e esse drama continua existindo e ainda bem que continua...Pode parecer ruim falar isto, mas trata-se de tornar proveitoso um mau negócio. Porque aí nós temos pacientes... Se não fosse assim, boa parte da nossa clínica não estaria aí... (risos) Depois o ser humano obteve os mitos, as metáforas, ele começou a fazer música e literatura e teatro, aperfeiçoou muito os métodos verbais...Diz-se que o conhecimento nasceu quando se começou a pintar nas cavernas as experiências, aquelas pinturas rupestres. Há bastante aqui no Brasil. A coisa foi indo, e a ciência é um desenvolvimento de tudo isto. Muito nova, como mais um método de apreender essa realidade. Popper diz que, para algo ser ciência, precisa ser reprodutível e falsificável. A Psicanálise não é reprodutível no sentido dele, que se poderia reproduzir o experimento. Popper diz que uma boa ciência ela é boa quando você pode jogar o resultado dela fora, ela é falsificável, e aí que está um ponto sério: nesse momento ele nega a ciência. Ele nega qualquer conhecimento que transcenda o tempo, como a roda, por exemplo. Então ele acha que a boa teoria científica é aquela que vai cair. E isso ficou popular, acho que todos vocês já devem ter esse conceito, porque foi um conceito que ficou espraiado. Pessoalmente, eu acho que isso é bobagem, isso é um ódio à ciência, é um ódio à verdade, porque distorce algo que caracteriza a atitude científica é a crítica, mas isto difere de exigir que tenha que ser falsificável. Eu acho que o cientista é mais parecido com o advogado do diabo, a gente vai tentando ver se é verdade, mas se não fica nada no final, como vai ser? “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” O pós-modernismo é isso, levado ao extremo. Alguns franceses usaram este termo, criado por Toynbee para outras finalidades. Fico pensando no que aconteceu com eles, na vida deles. Não sei se vocês acompanharam, todos eles mergulharam em uma tragédia pessoal: ou mataram alguém, ou se suicidaram, até agora. Todos esses que negam a ciência, que dizem que a ciência é ideológica, que toda ciência é produto de ideologia, ou que a ciência é um acordo entre cientistas. Thomas Kuhn basicamente fala isso: que ciência é uma idéia que algum gênio de repente tem, que ela não é verdadeira, mas os cientistas dizem que aquilo ali é verdade, é presto, temos um paradigma. Todo o mundo fala em paradigma hoje em dia. “O moderno paradigma da psicanálise é...”, e segue-se algo bem erudito. Afirma-se que o paradigma da Psicanálise era o Édipo, porque o Freud era genial e inventou um excelente paradigma. Mas se isto for verdade, eu acho que psicanálise não vale a pena. Édipo é mãe, pai e filho. Isso é Édipo. Édipo não é um paradigma psicanalítico que um vienense genial inventou. Kuhn fala que existem paradigmas que viram acordos políticos entre a nata do establishment. Os cientistas se reúnem e decidem: “Agora nós vamos estudar isso aqui.” E passam-se anos – até que surge outro “peer group” que inventa outro paradigma, e prossegue. Me fez lembrar de uma anedota: os militares argentinos, quando foram invadir as Malvinas, eles não tinham mais o que fazer lá na Argentina. Eles já tinham matado os comunistas, já tinham feito isso e aquilo, quer dizer, o episódio foi o produto de uma reunião de mentes onipotentes que falam, “isto é assim e acabou”. Porque se eu estou lá com o paciente e eu sou autoritário e digo “isto é assim e acabou”, eu posso fazer um escravo, se eu tiver uma pessoa muito pobre comigo lá, ou aterrorizada, mas eu não estou fazendo psicanálise. Minha experiência diz outra coisa: isto é assim porque eu e você podemos constatar se é ou não, nós vamos ver se é assim, se você é isso que você está falando que é – se você é homossexual, se você é inteligente, se 232 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – E o primeiro texto? Sandler – O primeiro tem um título que é uma extensão de um título de um artigo que tem um autor... Eu gostaria de morrer sem nunca ter plagiado ninguém, e então já vou avisando, que esse título – Psicanálise e Ciência – tem dono. Foi escrito por Winnicott. Há colegas que me criticam, veladamente percebo o dedo em riste, “Pedante! Exibido! Erudito!” pois faço questão de citar a autoria. O artigo de Winnicott chama-se “Psicanálise e Ciência, Parentes ou Amigas”, está no livro Tudo Começa em Casa, não sei se vocês conhecem este livro. Eu tenho que conhecer porque fui eu mesmo quem o traduziu, devo conhecer alguma coisa dele...(risos) Eu acrescentei uma coisa, isso não está no título de Winnicott. Então – Parentes, Amigas ou Estranhas.* E também estou parafraseando uma frase de Bion, “a mente é um fardo muito pesado que a besta sensorial não consegue carregar”, ou, que a besta dos sentidos não consegue carregar. Esta é a frase de Bion. Minha paráfrase é, ”a verdade é um fardo muito pesado que a besta do desejo não consegue carregar” Então eu diria que toda vez que estamos subservientes a desejos, não podemos ser cientistas, nem psicanalistas, mas estamos na condição de procurar um analista. Eu acho que estou falando do princípio * O Dr. Paulo Sandler refere-se aos dois textos de sua autoria que estão no Boletim Científico da SBPdePA nº 03/2001 intitulados: “Psicanálise e Ciência: Parentes, Amigas ou Estranhas?” e “Epistemologia: um Resumo Crítico sob a Ótica de um Psicanalista para uso de Psicanalistas”. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 233 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA você é burro, se você sofreu, estas coisas de seu pai, de sua mãe, isso tudo nós vamos verificar. Tenho visto, por exemplo, pessoas dizerem que a psicanálise está morta, que é preciso ter outro paradigma que não o Édipo. Que Édipo era um problema vitoriano, da época de Freud, hoje demodée. Mas talvez Freud escreveu sobre algo da realidade humana. Os gregos já tinham visto. Bom, este é um apanhado do segundo texto*. Eu acho que me alonguei mais do que devia... “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” da realidade e do princípio do prazer/desprazer. Mas eu não sei se vale a pena eu ficar aqui falando do primeiro texto, porque como alguns de vocês me falaram que puderam ter a paciência de tê-lo lido, poderíamos ver as idéias de vocês...Talvez vocês concordariam comigo que tento falar de certos instrumentos que a psicanálise – ela mesma, um instrumento – trouxe que nós nos aproximássemos da verdade, definindo cada um deles. Talvez interessasse discutir se é pertinente dizer que Freud trouxe ou não trouxe algo de novo. Penso que vale a pena termos uma noção do nosso lugar na história. Não nascemos de geração espontânea, nós não somos frutos de uma coisa ideal ou de um “clique”, um “ahá!”, “eureka”. Freud foi formado em toda esta evolução que tento delinear. Ele não inventou o inconsciente, o inconsciente já era conhecido, e a palavra inconsciente já era usada mais ou menos uns 150 anos antes dele. O Platão, nessa Metáfora que o colega contou para gente, estava falando de algo inconsciente. Participante – Essa revisão que o José Cândido Bastos fez, há uns 15 anos atrás, ele revê o conceito de inconsciente de Freud. Sandler – Eu não conheço esta revisão. Eu gostaria de poder conhecer...Imagino que deve estar em alguma revista. Participante – Acho que num boletim da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Sandler – Ah, então a minha ignorância tem uma desculpa...não recebemos esta publicação em São Paulo, e não é fácil inclui-la em resenhas de bibliografia...Mas tudo isto é apenas uma desculpa, esfarrapada como toda desculpa que mereça tal nome, para minha ignorância. Pessoalmente, eu acho que esta noção é de utilidade inestimável. Se a experimentamos – não teoricamente – sempre temos trabalho para fazer. Podemos investigá-lo, mas isso não quer dizer que necessariamente vamos conhecer alguma coisa nesse processo de investigação. Eu acho que Freud trouxe duas coisas 234 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – ... quando a gente se refere àquilo, o inconsciente como aquilo, como uma coisa estranha que não é conhecida... Quando ele é conhecido, na análise, aparece uma coisa nova, pode se dizer isso? Sandler – Acho que esta é uma maneira muito útil de se colocar a situação. Todo mundo ouviu o que o colega falou? Ih, eu acho que não. Talvez você precise repetir tudo de novo. Eu ouvi... (o participante repete a intervenção). Eu acho que o colega fala do insight, porque no insight teríamos um contato, ainda que fugaz, com a realidade interna, não é? No insight, a experiência mostra que o paciente se reconhece. Participante – A semana passada eu estava ouvindo um professor da genética, fazendo crítica à psicanálise; enfim, as coisas que ele levantava era a questão do teste de Kloch; então ele tinha feito um trabalho, por exemplo, sobre o homossexualismo, em que é dito que a família, ou a criação, teria uma influência no desembocar do homossexualismo, então ele foi investigar todas as características da família, e o que ele coloca é que não apareceu diferença, nenhuma. Então como é que a psicanálise, ou o conhecimento psicanalítico afirma que isso no teste de Kloch não resiste. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 235 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA que, na minha investigação, nenhum outro investigador da escola da civilização ocidental trouxe. Ele trouxe o princípio da realidade. Pois o princípio do prazer/desprazer era bem conhecido. John Locke, Thomas Hobbes antes dele o conhecia isso muito bem, Kant falava dele. Shakespeare e Goethe, que percebo como mentores intelectuais de Freud, discorrem amplamente sobre a tragédia humana quando se está subserviente ao princípio do prazer. Mas princípio da realidade foi Freud quem primeiro que formula. Ele é o primeiro que traz o uso prático das associações livres, que eu acho que são instrumentos de investigação da realidade. Mas vamos ver que idéia vocês têm. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” Então estava pensando que em relação a isto que tu estás trazendo ... o insight, sei lá, o teste de Kloch .... Sandler – Bom, a atitude científica é realmente de se ter uma hipótese, geralmente é chamada de hipótese nula. Por exemplo, faço a hipótese que a ocorrência de tal fato não está associado com um outro tal fato. O cientista vai investigar estatisticamente se esta associação existe, ou não existe como supõe a hipótese nula, por intermédio de grupos controle. Como é que testamos hipóteses na acepção? Bom, eu vou voltar a dizer de novo, o nosso teste, em psicanálise, e ela própria. Fazemos ciência pura nesse ponto; Melanie Klein por exemplo, ela fazia ciência pura. A linguagem dela é colada na experiência. Que ironia, a teoria dela às vezes é atacada com base na afirmação de que não teria o poder de generalização. O que é uma afirmação científica? São afirmações que conseguem ter um poder de generalização e um poder de particularização; é um paradoxo, isso aí. Eu diria que vamos tolerando esses paradoxos e em certos instantes, fugazes porém eternos enquanto duram, podemos enxergar aquilo que é realidade. Édipo é uma formulação científica. Por quê? Porque é geral o suficiente para abarcar tudo quanto é caso, ou a maioria dos casos, e é particular o suficiente para abranger os casinhos particulares. O mito de Édipo é uma formulação científica da mais alta qualidade, como muitos mitos gregos o são, pois ele fala a respeito de uma situação que é de todo o mundo, e pode ser vista particularmente em cada indivíduo. Hoje, pelo menos numa psicanálise que usa o que Melanie Klein e Bion iluminaram, percebem-se configurações específicas de Édipo em cada paciente. Como foi se desenvolvendo, como não foi, que fantasias fez, como lidou, ou não. Comparemos o Édipo com o “Dois”. O “Dois” é uma teoria científica muito boa porque abrange qualquer “dois” que a gente encontre pela frente. Faz parte da teoria dos números. O Número “2”, ele representa a “doisisse”. Existe uma invariante, uma qualidade, que independe da coisa material e sensorialmente apreensível. Pode ser dois macacos ou bolachas, mas a qualidade “dois”, imaterial e subjacente, pode ser intuída. Assim é 236 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 237 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA Édipo, uma qualidade. Em certos pacientes as teorias psicanalíticas conhecidas não dão conta. Às vezes o Édipo é tão malformado, tão atrapalhado que a gente nem enxerga Édipo nenhum; a relação de objeto parcial predomina. Ocorrem coisas na sessão de psicanálise que eu constato, após ter lido uma observação de Bion, que a teoria da identificação projetiva não dá conta. Ela não está errada, mas não dá conta de tudo. É um caso idêntico ao daqueles testes estatísticos da ciência que eu estava falando. Os cientistas estão tentando ver quantas vezes erram ou acertam quando afirmam que algo é verdade. Quer dizer, é uma outra característica da teoria científica, é para ver se aquelas afirmações que a gente está fazendo são verdades e quantas vezes elas são verdades. Você faz uma testagem com um grupo controle porque você vai dizer “em x vezes eu vou errar”, 10%; 5% – é o nível de significância, na linguagem estatística, fixado arbitrariamente. Para 10% dentre os pacientes que tomam um remédio, ele não vai funcionar; 0,0001% dos aviões fabricados com o material x, o material vai romper e o avião pode cair. Porque se exige mais das teorias psicanalíticas? Não testei o nível de significância da teoria da identificação projetiva e não quantifiquei em quantos ela não dá conta de certas coisas. Só sei que ela não dá conta, embora não saiba sequer coisas são essas nem sei como lidar com elas. Algumas, podemos saber. Certos fenômenos por exemplo, são ligados à intuição, que a gente capta ou percebe, ou certos efeitos que a gente também sente, mas não é a teoria da transferência que dá conta nem nenhuma teoria dá conta. Os cientistas que fazem esse tipo de estudo que você está citando, que é mais dentro da linha da “hard science”, positivista, o que eles estão querendo dizer? Eles se perguntam, ”Quando é verdade algo que eu afirmo?” Se eles fizessem um estudo estatístico na população em geral, será que todo mundo apresentaria a questão edipiana? Isso foi feito na primeira metade do século quando eles foram investigar em outras civilizações. O que se notou? De início, bradaram, “Psicanálise não existe”, porque não acharam Édipo lá entre certos povos primitivos. Bronislaw Malinowski, um antropólogo prático, não teórico, fez isso entre os tobriandeses, lá na “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” Polinésia. Mas passa um tempo e ele descobre que não é bem que ele não tenha achado o Édipo, é que ele achou um Édipo diferente e ele não sabia analisar aquilo, ele estava com uma teoria muito distante do Édipo. Eles têm o Édipo também, mas eles lidam de uma forma diferente. Eu estou falando isso por causa do seguinte: você está vendo que podemos adaptar certos critérios, e de modo muito elegante, neste tipo de ciência que testa a veracidade, testa o valor verdade das afirmações, se tivermos realmente domínio de psicanálise e confiança nela. Vamos pegar este exemplo que você deu. Esse é um exemplo complicado porque eu penso que se a psicanálise estuda o homossexual, provavelmente ela descobre que o homossexualismo não existe. Esse homem que fez esse estudo está partindo do princípio de que o homossexualismo existe. Eu diria que ele não está sendo científico porque ele tem um postulado que não questiona. Ele disse que alguém é homossexual. Podia dizer que é Corinthiano, certo? Não vou falar do Grêmio bem aqui... Eu me lembro quando comecei a estudar estatística, por coincidência eu tenho uma formação nisso, fiquei vários anos da minha vida lidando e fazendo estudos com grupos e também em grandes populações. Quando você faz um estudo desse tipo, você define uma certa coisa, mas você não está perguntando se essa coisa existe ou não existe. Por exemplo: se você fala que homossexual existe, você já parte desse princípio, você não está questionando. Para a psicanálise, eu penso que o homossexual não existe. Freud não pensava que a escolha sexual das pessoas interessasse à psicanálise. Um agricultor não pode aplicar certos princípios que seriam adequados à fabricação de parafusos; se as invariâncias sobre as quais tentei falar são tão diversas em sua natureza, não cabe comparação nem transdisciplinaridade. O problema em nossa área é que os profissionais perdem de vista que lidamos com pessoas e nomes, e alguém pode falar Antonio, mas não tem nada a ver com outro Antonio. Eu diria que talvez não possamos coadunar esse estudo que você cita com psicanálise, mesmo que o autor queira dizer que ele entende de psicanálise ou queira misturar seus parafusos com nossos morangos, ou os morangos dele com nossos parafusos. Não penso que um analista partiria 238 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 239 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA deste postulado, e até o ponto que posso falar de minha experiência com análise, eu partiria de algum outro tipo de visão dessas pessoas, que não seria esse diagnóstico. Eu digo para vocês que psicanaliticamente, e não só psicanaliticamente, na vida real – e análise real é vida real – o homossexual não existe. O que existe é uma alucinação social compartilhada que demanda este tipo de crença – que homossexual existe, hoje inclusive envolvendo um mercado, conscientemente projetado e construído, quase todo mercado explora a capacidade humana de alucinar. Não existe, pelo seguinte fato real, biológico: ou é homem ou é mulher. Nós não estamos estudando hermafroditas; isso existe, hermafroditas. Nós não estamos estudando os sobreviventes dos desastres de Nagasaki ou Hiroshima, ou os filhos de técnicos de Raio-X que mudaram lá o sexo das pessoas. Nós estamos falando de pessoas que falam, “Eu sou homossexual”. Nós temos homossexual do mesmo jeito que temos um freudiano, um kleiniano, um corinthiano ou um judeu. O grupo social precisa de um treco desses, e alguém fala “eu sou isso”. Pronto, agora você tem o “isso”. O grupo social às vezes fala assim: “o que você é?” “Eu sou médico”, diz alguém. Não é médico. Se uma pessoa foi desafortunada o suficiente para ter lá um infarto, ele vai lá, tratam dele com cuidado, com Isordil, e não sei o quê mais hoje em dia, ou se ele está hipertenso, com extrassístoles, podem dar Propanolol, ele pode ser muito desafortunado e deu no lado direito do coração então complica com um edema agudo do pulmão, e o homem ou mulher que está lá trabalhando sabe que precisa puncionar uma veia femural para baixar a pressão. Esta pessoa está sendo médico porque ele está medicando. Nós somos psicanalistas porque nós temos um paciente que nós estamos tratando dele. Socialmente dispomos destes rótulos e o rótulo de homossexual é um rótulo social. Se o psicanalista estuda pessoas, ou lida com pessoas que se dizem homossexuais, ele vai falar em situações, me diz a experiência, de inveja do seio, ele vai falar em situações de inveja e agressão com a mãe, de ódio da dupla parental, de não suportar uma dupla parental criativa. Nós não estamos falando mais em homossexuais, a gente pode falar de uma pessoa que odeia tanto a rea- “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” lidade dela que, sendo homem ela diz que não é homem ou, sendo mulher, ela diz que não é mulher. Isso o psicanalista faz. Vamos dizer assim, “homossexual” é o mesmo que “duas batatas”. Não interessa a batata, a concretude, o conteúdo manifesto, a não ser como indicador; nem o “dois”. Precisamos chegar à “doisisse”, a qualidade de ser dois, ou número, ou a “batatisse”, a qualidade de ser batata, ou planta. Esse homem que você cita tem razão, ele não pode usar o critério psicanalítico, porque ele nem sabe o que é psicanálise. Ele está usando alguma psicanálise de que ele ouviu falar e de coisas que andaram se espalhando em nome da psicanálise. Eu te diria que o problema que ele traz é um problema anterior à psicanálise, é o problema que os povos de fala inglesa e fazem ciência dizem, “nature versus nurture”, natureza ou criação, a coisa endógena, é genética, é inata, ou é ambiental? É genotípica ou fenotípica? Freud tinha aguda percepção disto e falava das séries complementares, vocês lembram disso, acho que conhecem, não é? Isso não é importante para nós, e se ele acha que psicanálise é isso, eu diria que tanto ele quanto os psicanalistas que acham isto estão enganados. E é útil que ele apresente esses resultados para os psicanalistas, pois parece ser um homem sério este seu pesquisador. Quem sabe ele ajudaria os psicanalistas pararem de fazer generalizações a partir de um, dois ou três casos, e de reconstruções, em geral, que nós estávamos falando hoje de manhã no caso clínico, de fatos que eles nem viram, e que estas reconstruções do passado não são o que se passou realmente. Hoje em dia nós temos observações de bebê, não é? Foi uma esperança do analista testemunhar o desenvolvimento histórico, da vida emocional, sem precisar apelar para reconstruções Não me parece que tenha sido bem sucedido. Eu não sei se aqui no Sul vocês fazem isto, mas mesmo observações de bebês não são a realidade mãe – bebê, pois podemos ver que esse bebê observado é um bebê que não é mais o bebê da mãe, é o bebê da mãe sendo observado por uma pessoa que o estava observando. Com isto eu estou tentando introduzir outra questão científica, que o seu pesquisador não leva em conta: que há uma interferência do observa240 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – Como é o teste da hipótese na sessão? Sandler – O nosso teste de hipótese na sessão, que eu estava tentando dizer, é a realidade empírica do que está acontecendo na sessão. Se você quiser talvez uma leitura sobre isso, eu acho que pode ser útil a obra de um epistemólogo da psicanálise, o Dr. Bion. Nos cinco primeiros capítulos do livro Transformações, ele fala exatamente disso. Ele comenta sobre o que acontece quando temos duas ou três hipóteses quando precisamos de uma só. Não adianta ter duas ou três. A minha idéia é que o teste de hipótese que Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 241 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA dor no fenômeno observado. Sabem que Freud descobriu isto lá por 1900, e Planck e Einstein e Heisenberg, alguns anos depois. O observador, quando observa algo, interfere no fenômeno. Os analistas tentam conhecer características do observador, que somos nós mesmos. Fomos pioneiros nisto, na ciência. Para saber o que nós estamos fazendo no fenômeno, então nós vamos fazer nossa própria análise pessoal. Os físicos modernos eles não falam só da trajetória da partícula, eles bombardeiam a partícula, com um facho de energia conhecido, e então eles interferem na trajetória e vêem o que aconteceu com aquelas interferências. Então, voltando a esse estudo, se houvesse um diálogo pessoal, ele poderia ter o seguinte teor: “Olha, é verdade, você acabou de descobrir que essas teorias ditas psicanalíticas são falsas, elas são mesmo, mas elas não são psicanálise. E para a gente conversar e você fazer um estudo, você vai ter que bolar um outro estudo que não parta do diagnóstico social ou psiquiátrico, ou o lugar comum de homossexual, porque se você quer ter algo a ver com psicanálise, a questão não é esta. Se um dia alguém puder fazer um estudo desses e as análises forem conduzidas de uma maneira tão semelhante que a gente possa medir num grupo controle, sei lá qual seria também, inveja do seio, ou inveja do casal criativo, da suprema criatividade do casal, talvez nós poderíamos ter critérios quantitativos” Eu não sei se isso é possível ou se vai ser possível algum dia, eu acho muito difícil. Isto está fazendo sentido para você? “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” fazemos em análise é como você jogar, por exemplo, uma pedra num lago tranqüilo. Você joga a pedra e tem aquelas ondas e você pode medir. Então você tem uma situação que é o setting analítico. Você observa algo e você lança alguma coisa para o paciente. Pela resposta dele, nós estamos testando nossa hipótese. Nós precisamos ter algumas hipóteses, ou pelo menos uma hipótese. O nosso teste de hipótese é feito no fogo do inferno da clínica, vamos dizer assim. O nosso teste de hipótese é o mesmo do médico praticante, não sei se faz sentido para você. E dessas hipóteses, o Freud foi construindo a Psicanálise. Por exemplo, quando ele percebeu que a hipótese de que havia um trauma, de uma causa e de um efeito, uma causa na infância e um efeito na idade adulta, era uma hipótese cujo resultado não a confirmava, ele rejeitou a tal hipótese. Um procedimento científico de nível igual a qualquer procedimento científico. Ele ficou algum tempo estudando e percebeu que aquela teoria que ele tinha de causa e de efeito, era uma teoria que ele tinha na cabeça dele, que era um fenômeno que ele achava que existia, mas não existia na realidade. A gente fala alguma coisa para um paciente. Bom, se não fizer efeito, Freud escreveu em Construções em Análise, não é necesário ficar muito preocupado. Você se lembra dessa frase? Porque o paciente, na resposta que der, vai te mostrar se não vai ter efeito nenhum; se nutrir uma cadeia associativa, então deu resultado. Então eu acho que o nosso teste de hipótese é esse. Isso responde a tua pergunta? Não é estatístico, nós somos cientistas que testamos as hipóteses em nós mesmos também, na nossa análise pessoal. Nós somos o único tipo de médico que podemos fazer isso sem morrer da doença. Teve muito médico que testou vacinas, ou injetou certos microorganismos. Talvez fiquemos meio danificados, mas podemos prosseguir, levantar, caminhar. Participante – A gente está colocando em discussão toda a linha investigativa da Psicanálise, do Kächele? Você está criticando o trabalho dele, alguma coisa assim? Sandler – Não do trabalho em si, mas eu penso que há um engano na 242 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – Não discutiria isso? Sandler – Não, eu não discutiria porque eu não posso falar disso, eu não estou na condição dele. Pelo menos, não ainda. Se um dia eu tiver que sobreviver e tiver que fazer o que ele faz lá, eu não sei se eu não vou fazer. Eu não sou árbitro, eu não sou juiz. Participante – Mas o juiz fala... Sandler – Como é que ele fala? Participante – Vamos falar mais do Kächele...O Secretário de Segurança sabe muito bem julgar...Ele diz que não se sabe quem é polícia e quem é ladrão. Sandler – Eu acho que sim, ele é polícia, e polícia acha que sabe quem é ladrão, mas às vezes não dá para diferenciar. Não é de surpreender isso, o policial está tão em contato com o ladrão que ele tem uma certa noção mas às vezes perde a noção. Uma vez que eu fui assaltado lá em São Paulo, fui seqüestrado, fiquei cinco horas numa espécie de alcova, eles estavam assaltando um prédio e eu falei para o ladrão o seguinte: que eu preferia que a polícia não fosse lá. Ele também preferia. (risos) Então que eu não queria Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 243 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA proposta. Eu sei que eles vieram aqui para o Sul, vocês gostam dele aqui, deve ser uma pessoa muito interessante, e do que eu li que ele e o amigo dele escrevem, é um homem sério. Mas eu penso que há um engano nisso. Eu posso tentar dizer: em primeiro lugar o seguinte: uma vez que ele deu uma declaração que estava preocupado com o sistema de saúde alemão que não ia pagar mais nada. Ele tem que provar que Psicanálise funciona para poder receber, Isto é fora da área da Psicanálise, isto é uma questão de sobrevivência e eu não me colocaria para discutir isto com ninguém, nem com ladrão que rouba. É uma questão de sobrevivência. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” atrapalhar nem que ninguém atrapalhasse enquanto ele fizesse o trabalho dele. Na hora que eu falei, “Fizesse o trabalho”, eu estava com outros analistas, eles me deram uma bronca, “Você está gozando dele, que trabalho, que nada, ele está roubando”. É trabalho, retruquei, mas meus colegas tinham teorias sobre provocar o ladrão, sobre uma porção de coisas que se deveria ou não fazer, que sabiam que a reação ia ser esta ou aquela. Eu pensei no momento e continuo pensando que ele estava fazendo um trabalho que para mim é mal remunerado, é muito perigoso, complicado, mas é um trabalho. Ele ficou suando feito um desgraçado, ficou cinco horas lá fazendo aquilo, e ele nos tratou com muito respeito. Ele falou assim: “Não olha para mim” e eu não olhei para ele. Eu achava que ele era policial também, o problema também foi esse, e um dos nossos colegas tinha sido alvejado por um policial numa situação dessas, eu estava com muito medo mesmo, que acontecesse isso. Ele estava armado, ele me botou a pistola, uma 9 milímetros no meu flanco direito também, uma série de coisas que não importam agora, mas num certo momento eu queria dizer para ele que a gente não ia aprontar nada, e que eu não ia para polícia reconhecer ele depois, etc. e tal: “Olha, o sr. faz o seu trabalho aí, a gente espera aqui, não vamos causar problema”. Eu observei que ele estava bem irritado que nós estávamos lá, ele queria assaltar o prédio e nós fomos fazer um grupo de estudos num domingo. (risos) Então ele falou: “Vocês aí são tudo burguês (sic), o que que vocês estão fazendo aqui num domingo? Por que não estão almoçando em casa com a família?” Ele era um homem que tinha contato com a realidade e nós, bem nós negamos a realidade até que ela veio cobrar sua conta, dolorosamente (risos). Acho que devíamos pagar o preço de uma sessão para este homem, caso ele tivesse a intenção de nos ajudar. Mas acho que não tinha. Participante – Mas a tua crítica ao pós-modernismo, interessante, eu estava pensando no livro que eu li há pouco, não sei se tu conheces, escrito por um físico, Sokal, “Imposturas Intelectuais”, ele diz algumas coisas interessantes ali, faz algumas críticas, a forma como começou aquele li244 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sandler – Todo o mundo está ouvindo o que o colega está falando? Acho isso de uma importância fundamental. Participante – Porque hoje em dia, alguns trabalhos que a gente vê por aí, de alguns autores ... A minha impressão é de que esta idealização é muito mais que o hermetismo de não entender, de tão idealizados, porque ele diz alguma coisa de importante, ... eu li a coisa, não entendi,, eu sou muito burro, eu não posso ser psicanalista, eu não entendo esses caras, aí o Sokal me disse isso e eu entendi, me tranqüilizei também com essa questão. Eu acho importante essa relação que tu fazes com a Psicanálise. Uma colocação que eu acho fundamental , casualmente no teu trabalho. É teórico, mas teórico com prática... ninguém pode ser teórico sem ter uma assistência empírica, a Psicanálise é empírica. O Sokal diz que os trabalhos dos lacanianos têm gravíssimos erros: são trabalhos que apresentam teorias sem a menor fundação científica, clareza científica. Ele diz que a psicanálise é uma ciência muito nova e ela demanda muita investigação empírica e não demanda teorias. Leio trabalhos das revistas de Psicanálise, eu vejo poucos clínicos, e muitos trabalhos teóricos, teoria, teoria. Sandler – Essas teorias que a colega estava se referindo, e que o geneticista estranhou. Participante – Muito importante realmente o que tu colocaste, que a gente tem que pensar bastante nisso, em nosso meio, numa clínica; a gente precisa realmente ir com a clínica para buscar as coisas. E uma outra Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 245 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA vro, enfim é muito interessante. O que ele tinha de pós-moderno não mudou, começou na França mas se estendeu, na verdade... ele diz uma coisa que é muito interessante, ele diz que quando tu lês um trabalho e tu achas extremamente complicado e não entendes, não te preocupa porque ele não quer dizer absolutamente nada, como os trabalhos pós-modernos, são frases dele, do Sokal. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” questão também, eu acho que tu tocas num momento, até diretamente, é quando o Sokal fala também disso, e muita gente tem falado, quando hoje em dia está muito em moda, tu colocar a questão assim, que é uma questão ideológica, a psicanálise fica absolutamente secundária, desde que a questão ideológica seja satisfeita. Não é justo que um dos piores ataques que se fazem à psicanálise hoje em dia. Concordo contigo. A Psicanálise não está em crise, nunca esteve melhor, mais linda, cada vez mais rica, não há outra solução para determinadas pessoas do que fazer Psicanálise e a gente sabe disso. A gente fica pensando o que a gente está fazendo na Psicanálise, talvez aí, se a gente mudar essa postura da gente dentro da psicanálise, eu acho que as crises da psicanálise tendem a acabar. Lamentavelmente não é o que eu tenho visto, a postura geral em relação à Psicanálise tem sido cada vez provar a questão ideológica, coisas deste tipo. Desvalorizam a investigação psicanalítica na clínica. Era isso que eu queria dizer. Sandler – Eu queria pegar um gancho do que o colega está falando porque eu não sei se todo o mundo conhece o que o Professor Sokal fez. Vocês sabem a história como começou, não? Quem não sabe? Alguém falou que vale a pena, ou não vale a pena? Você quer contar a história? Participante – O início do livro? Sandler – O que foi que ele fez? Participante – Ele escreveu uma impostura e mandou para algumas dessas revistas importantes. Sandler – Uma delas. Participante – Uma delas, perdão. Sandler – Podemos fazer um duo aqui? É o seguinte: é mais ou menos 246 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – Foi publicado, muito elogiado, maravilha, e aí ele vem a público e diz que tudo aquilo era uma impostura, que ele escreveu esse livro para falar sobre as várias imposturas que ele reconhecia lá dentro do meio intelectual. Sandler – Ele é um cientista, um físico, e fez uma coisa dentro de uma tradição que eu diria, vem desde o Iluminismo. Um sábio do iluminismo inglês, que não é muito conhecido em nosso meio, que se chamava Alexander Pope (não é o Popper, ele é muito anterior). Esse Pope era um pouco rabugento, segundo consta, eu acho que parecido com Sokal, e ele falou uma coisa assim, que pouco saber é uma coisa perigosa. “Little learning is a dangerous thing”. Sokal percebe que certos intelectuais franceses padecem de pouco saber. E realmente, se vocês lêem ou podem ler Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 247 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA o que você estava falando mas tem um pulo do gato que serve. Sokal teve habilidade, eu até acho pessoalmente que ele foi um pouco sarcástico, rude, porque na verdade ele está irritado porque o pós-modernismo está entrando tardiamente lá nos Estados Unidos, no meio cultural americano, não tinha entrado lá ainda, no Brasil já tinha, pelo menos em São Paulo. Então ele pegou o jargão, isso é importante para o psicanalista, para nós é uma lição o que ele fez, ele pegou o jargão da revista, ele pegou o jeitão. Se vocês quiserem escrever qualquer artigo em qualquer revista de psicanálise hoje, peguem o jargão, peguem o jeitão de como é que se monta aquilo lá, pode escrever um monte de besteiras, pode falsificar a clínica, pode fazer o que quiser que vocês conseguem que o artigo seja aprovado, conseguem mesmo, está dentro do padrão. Vocês lembram do Pequeno Príncipe, do astrônomo indiano, só quando ele se vestiu de ocidental que deixaramno falar? É o mesmo fenômeno. Alan Sokal montou um artigo muito bem montado em que ele provava os maiores absurdos. Ele relacionava a teoria quântica como Lacan relacionou, um monte de besteiras e a revista filosófica e de teoria da ciência mais prestigiosa dos Estados Unidos aceitou o artigo, como se fosse um artigo sério. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” lá, inclusive o que o Lacan escreveu, percebe que eles pegam uma coisa meio de orelhada, não sabem do que estão falando e fazem correlações imaginárias, engenhosas e plenas de raciocínio, som e fúria que não tem nenhuma contraparte na realidade. Sokal denuncia que essas pessoas não entendem de física para falar o que estão falando, que usaram fora de contexto, que torceram as palavras. Bom, isso foi um escândalo mesmo. Porque nos é útil? Quando estamos escrevendo para as revistas de psicanálise, quando estamos com os pacientes, também pode ocorrer de bolarmos uma teoria com palavras bonitas para dizer coisas do paciente, e o paciente pode acreditar naquilo que estamos falando, acredita porque ele pode estar doente, ele pode estar assustado, ele pode não estar ouvindo o que estamos falando, ele pode estar delirando que somos o que ele achou que somos, e então tanto faz o que falamos ou não. Há uns 15 anos, lá no International Journal, um colega nosso que se chama Warren Kinston escreveu algo, mas ninguém nunca mais ouviu falar nele. Ele mostra que, independentemente da teoria usada, incrível, os pacientes melhoram. Então nos é importante, porque eu acho que estamos nos arriscado com muitas teorias, a fazer imposturas também. O Sokal fez foi montar racionalmente uma coisa plausível e palatável. A psicanálise não lida com coisas plausíveis nem palatáveis nem racionais, mas muitos preferem teorias psicanalíticas que o sejam. Bion alertou, em 1976, que o todo da psicanálise bem pode não passar de uma vasta paramnésia para ocupar o lugar de nossa ignorância (no estudo “Evidência”). Participante – Posso dar um palpite? Mais para dizer alguma coisa e registrar a minha grande satisfação e dos meus colegas de te ter aqui conosco, em que pese nossa antiga amizade e tudo, é honroso para mim te ver aqui. Mas eu queria dizer o seguinte: quando tu fizeste a pergunta quem é que conhecia aquela metáfora do Goethe e do Platão, eu fiz uma analogia com o filme Zelig, do Woody Allen, que era um impostor, como se diz, um homem-camaleão, ele usava a identidade das pessoas: ele ia falar com um chinês e virava chinês, assumia a identidade do outro. Lá pelas 248 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Sandler – Eu penso que sim. Vamos dizer assim que, sob forma de metáfora, uma brincadeira com personagens. O ditador italiano Mussolini diria “todos os caminhos levam à Roma”, isso se fala. Talvez o Italo Calvino, não sei quem têm contato com a obra dele, que eu acho um escritor eterno, que vai ficar, ele diria assim: “muitos caminhos levam à Roma”. E o Freud ou Platão talvez diriam assim: “Roma, a cidade eterna, existe e é uma só”. Participante – Te conheço há mais tempo, te vi outras vezes. Para mim parece uma espécie de evolução no pensamento, na forma de tu veres a psicanálise, porque eu sei que toda teoria que tu sabes é uma impostura. Pelo que eu escutei é o que quiseste passar. Sandler – É. Participante – Toda teorização depende dos dois princípios do funcionamento mental, o princípio do prazer e o da realidade; depois a situaSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 249 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA tantas ele se sentiu infeliz, reprimido, ele não conseguia ser ele mesmo, ele era todo o mundo, era famoso, mas não conseguia ser ele mesmo, vai se analisar e descobre, no tratamento dele, que a origem desse problema é que na infância, no colégio, talvez como agora aqui tu fizeste, o professor perguntou quem tinha lido Moby Dick para os alunos, e todos foram dizendo eu, eu, eu. Quando passou por ele, ficou com vergonha de dizer que não tinha lido. Como aquela história do Platão, eu acho que a maioria que disse que tinha lido, também não tinha, mas ele aí se dá conta disso, tinha 50 anos, 50 e tantos anos e disse que vai ler o Moby Dick, estava lendo e nem estava achando tão interessante assim. Isso aí mostra a situação que se criou aqui, a questão da impostura, acho que a questão da psicanálise. Para mim é o seguinte: o importante não é o conhecimento, não é ter lido ou não ter lido Moby Dick, é dizer a verdade, a questão central é dizer a verdade. Pode ter muitas teorias escritas, o importante é a verdade. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” ção de Klein que privilegiava mais o mundo interno, como conseqüência o paciente teria que deduzir como seria o mundo exterior. Bion, com a situação da continência, dando maior importância para a realidade externa num certo sentido de Klein e agora tu falas em Winnicott e todo o teu trabalho dessa revisão filosófica do inconsciente que existia há muito tempo, antes de Freud, toda a situação dos filósofos e da preocupação do conhecimento; revela a tua grande preocupação em saber o que é verdade e o que é realidade. O que é a realidade da psicanálise? Então tu dizes, de certa maneira, que o analista, quando entra na sala, ele tem que esquecer, praticamente, toda a teoria que ele tem, ter estudado, quanto mais ele souber da teoria, melhor. Pode parecer que a teoria não fosse importante, não é isso que tu estás dizendo, ao contrário. Tem que saber muito todas e mais possível, e onde der para saber. E qual é a verdade, então? Acho que o grande problema é que, quando o paciente associa ou consegue associar, ou todas as manifestações somáticas ou tipos de comunicação que ele faça, cinestésico ou o que for, o analista só pode usar a atenção flutuante como busca da impressão, isso é em teoria, como o Freud fazia, observar o necessário, como dizia Charcot, até que as coisas se façam falar por si próprias. Então, o que é verdade, muitas vezes, para o analista, é que ele não saiba. Quando ele sabe, de certa maneira ele bloqueou, só pode oferecer interpretação do paciente como uma hipótese, mesmo que esteja convicto que aquilo é verdade, porque aí a validação da interpretação, pelo paciente, ele descobre aquilo, que se transformou nisso, em algo que realmente é válido. Essa inverdade dos dois, naquele momento, pode ser modificada posteriormente, mas não adianta sair da caverna do analista e dizer “olha, eu fui lá fora, eu sei, é assim”, aí ele é morto. A tentativa de tirar os grilhões, quem sabe tu olhas um pouquinho para cá, quem sabe tu olhas um pouquinho para lá, sem indução, e ele vai descobrir que o mundo lá fora também vai ser diferente do paciente. Isso que tu me passaste eu não sei se está dentro do teu pensamento ou se eu perdi um pouco... Sandler – Não, eu gostaria de poder sintetizar o que eu estava falando 250 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – É que dentro disso.... Eu li esse trabalho do Sokal e realmente ele é muito contundente, ele arrasa com Lacan, mas isto também não quer dizer que muitas coisas que o Lacan disse ali não fossem verdades ou não pudessem ser aproveitadas como coisas muito importantes. Sandler – Ele também não ataca a obra do Lacan inteira. Participante – Não ataca a obra. Sandler – Ele pega naqueles pontos onde... Participante – Não estou aqui dizendo que a obra de Lacan não tenha validade. Participante – Exatamente. Uma pessoa pode não ter uma elaboração como Lacan teve em algumas coisas, não estou aqui para defender o Lacan, mas muitas manifestações de qualquer pessoa e qualquer teoria podem ser úteis para muitas coisas. Como você relaciona Bion e Lacan? Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 251 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA do modo que você pode. Há no que você foi falando muito que poderíamos expandir ou conversar mais, mas vou escolher um aspecto. Quando chegamos a falar alguma coisa para a pessoa, há uma certa convicção, intuímos ou percebemos algo. A teoria está introjetada, são agora as nossas ferramentas. E aí vem a reação do paciente, não é se ele concorda ou não concorda. Que associação livre ele teve frente a nossa atenção flutuante, como ele reagiu? Ele pode concordar conosco, ele pode não concordar. Ele pode concordar e ser mentira, aquilo que nós dois falamos, como aquela recusa do que foi falado pode ser recusa da verdade. Ele pode não concordar e ser verdade, ele não concorda justamente porque é verdade. Mas não tem regra. Não é sempre que ele não concordar, que é verdade. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” Sandler – Houve uma passagem dele, era jovem ainda e foi entrevistar Bion, e ficou muito impressionado. E eu acho que existem relações, mas não conheço suficientemente a obra de Lacan para fundamentar isso do jeito que gostaria. Parece-me que existem muitos pontos em contato das obras dos dois, quer dizer, eles observaram os mesmos fenômenos e formularam de maneiras diferentes, com palavras diferentes. O que eu acho interessante nele é quando ele estava mais idoso; ele desautorizou qualquer lacaniano. Participante – Ele se redimiu. Sandler – Acho que tentou, mas também acho que não deu tempo. Acho que se estivesse mais jovem, teria até salvado melhor a teoria dele, ao desautorizar seus apóstolos e discípulos. Participante – Ele falou do dois também, se interessou pelos números, zero. Sandler – Ignácio Matte Blanco falou a respeito do inconsciente como uma série infinita. Bion, Matte Blanco e Lacan são três autores que conseguem perceber que o matemático e o psicanalista lidam com problemas mais ou menos parecidos. Mas talvez vocês estejam cansados, e antes que alguém durma por aqui, será que posso dizer umas palavras finais? São de agradecimento mesmo...os mais novos talvez não saibam, mas eu não tenho como agradecer, na verdade, por estar junto com vocês de novo. Eu realmente não tenho como agradecer com palavras, espero com alguns atos, no futuro, poder fazer isso. Mas é para mim importante estar aqui, eu tenho muito respeito e consideração por vocês aqui do Sul, pelos amigos muito queridos e novamente se confirma algo que eu já achava...que vocês têm condições talvez melhores por aqui, David Zimerman uma vez me disse, “Mas você está em São Paulo? Em São Paulo você está apeado, em psiquiatria você está apeado”. Ele até falou “vem 252 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Participante – Nós é que te agradecemos toda essa possibilidade de pensar um pouco sobre todas essas questões. Eu só discordo, e isso eu acho que é um delírio do gaúcho, que aqui se fazem as coisas de modo mais perfeito, que a justiça gaúcha é mais séria, que todas as coisas aqui são mais sérias. Sandler – Mas até as construções são mais bem feitas aqui! Parece a Europa... Participante – A impressão é uma ilusão. Sandler – Acho que eu estou preso a alguma aparência e falando de coisas que certamente entendo muito menos do que vocês... Muito obrigado Sandler, pelos momentos tão instigantes que tu nos oportunizas-te. Boa noite a todos. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 253 Paulo Cesar Sandler na SBPdePA para cá, vem fazer residência aqui, etc. e tal, senão depois fica impossível, você vai casar, depois você vai ter clínica”. Eu já era casado e já tinha clínica. Existe um tipo de seriedade mesmo, do jeito que vocês fazem as coisas em tudo, acho que não é só em psicanálise. Às vezes eu acho que o futuro está por aqui. Certamente vocês estão aqui também com dificuldades, questões emocionais e de colegas e coisas que vão surgindo, mas eu sinto muita firmeza aqui em vocês. Essas questões que vocês levantaram, o tipo de feedback que vocês me dão. Então, eu sou realmente muito grato pela oportunidade de estar aqui com vocês hoje, pela paciência que vocês tiveram. “PSICANÁLISE E CIÊNCIA: PARENTES, AMIGAS OU ESTRANHAS? BASES CIENTÍFICAS DA PSICANÁLISE” Breve Apresentação do Conferencista Analista Didata da SBPSP; Mestre em Medicina pela USP; Professor no Curso de Pós-graduação Senso Lato em Psicoterapia Psicanalítica do Instituto de Psicologia da USP (Serviço do Prof. Ryad Simon); Ex-Executor do Programa de Saúde Mental da Faculdade de Saúde Pública da USP (1979-1983); Membro Honorário da Força Aérea Brasileira (2000); Exassistente do Instituto Ache (1973-79) e Ex-residente de Psiquiatria do H.C. da FMUSP (1974); Autor de vários livros (“A Apreensão da Realidade Psíquica”; “Fatos: a Tragédia do Conhecimento em Psicanálise”; “Introdução a uma Memória do Futuro”; “As Origens da Psicanálise na Obra de Kant”; “Os Primórdios do Movimento Romântico e a Psicanálise”; “Turbulência e Urgência”). Conferência Conferência proferida na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, em 30 de março de 2001 Dr. Paulo Cesar Sandler Rua Joinville, 157 04008-010 São Paulo – SP – Brasil E-mail: [email protected] Fone: (0xx11) 3884-0239 254 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Entrevista da SBPdePA R. Horácio Etchegoyen Membro Titular em Função Didática da APdeBA (Associação Psicanalítica de Buenos Aires); ex-Presidente da IPA; ex-Presidente da APdeBA; autor do livro “Os Fundamentos da Técnica Psicanalítica”. Entrevista realizada com exclusividade para Psicanálise – Revista da SBPdePA, por Ana Rosa Chait Trachtenberg, em Buenos Aires, junho de 2001 SBPdePA – Uma questão que eu pensei que poderia ser interessante, para começar nossa entrevista à revista da SBPdePA, seria um vôo panorâmico sobre tua história psicanalítica, institucional, pessoal, não? Etchegoyen – Bom, isso posso dizer. Bom, começo com isso? Quando me formei médico na Universidade de La Plata. Eu morei, desde muito pequeno, em La Plata. Nasci num povoado perto daqui. Papai morreu quando eu era muito pequeno, e mamãe se foi com seus filhos para La Plata. Ali vivi, até que fui para Mendoza. Ali cursei o primário, secundário, universidade. Ali me casei, ali tive meus filhos com Élida, assim que... Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 257 SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN SBPdePA – Élida era de La Plata? Etchegoyen – Élida era platense. Ela amava Buenos Aires. Gostava muito mais de Buenos Aires que de La Plata. Era apaixonada pelas grandes cidades, tinha um encanto. Mas eu, bem, prefiro as cidades pequenas. Poderia morar talvez melhor em Porto Alegre do que em São Paulo. Então comecei a viajar a Buenos Aires. Quando me formei, estive em dúvida sobre Clínica médica, Anatomia Patológica e Psiquiatria. Na realidade, eu havia sido ajudante na cátedra de Anatomia Patológica e gostava muito. Meu primeiro trabalho científico foi um trabalho de Anatomia Patológica. Depois me decidi por Psiquiatria, e ali apareceu a Psicanálise. Bom, então comecei a viajar para Buenos Aires, fiz análise, com Luis Rascovski; depois, essa análise se interrompeu... Então comecei, pouco depois, com Racker. Foi uma pessoa muito importante na minha vida. Mais ainda, sendo eu um órfão de pai desde tão pequeno, não? Racker era muito bom analista, muito boa pessoa, um homem de enorme criatividade. Bom, depois, quando estava terminando minha análise, me surgiu a possibilidade de ir, como professor de Psiquiatria, para Mendoza e fui de 57-58 até 65. Estive vários anos. Fui, creio, um bom professor de Psiquiatria. E talvez poderia haver seguido como professor de Psiquiatria. Houve dificuldades com o establishment da faculdade, eles combatiam muito os psicanalistas como reformistas. Eu sou um homem da reforma universitária, enfim. Para eles eu era uma praga. Como professor, consegui uma bolsa pela Oficina Sanitária Panamericana, por meus méritos como professor, e fui a Londres. Ali me reanalisei, um ano, com Meltzer, foi uma experiência muito importante para mim; 66 eu passei em Londres. Em 1967, voltamos à Argentina e eu me instalei em Buenos Aires. Élida também queria morar em Buenos Aires. Não voltamos a Mendoza nem à La Plata, coisa que foi uma boa decisão, porque em Buenos Aires se tem mais possibilidades de desenvolvimento como psicanalista, como psiquiatra. Bom, quando fui a Mendoza ainda não era membro associado. Assim, continuei viajando, fazendo supervisões que me faltavam com Leon Grinberg e com Marie Langer, 258 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 SBPdePA – Quantos anos o grupo durou como Grupo Ateneo? Etchegoyen – Dois, três anos. As pessoas que me querem ambivalentemente dizem que eu sempre tive uma veia política, que eu sempre neguei, mas o fato real é que fui presidente da APdeBA, da IPA. Não é tão fácil negá-lo, mas eu diria, e isto é uma confissão para a revista, que quando eu digo que não sou político me estou enganando, mas também é certo no sentido de que nunca me interessou a política como tal, tive que assumi-la, sei lá, não? Mas essas são coisas muito subjetivas, talvez eu esteja equivocado, mas no sentido de que eu me considero basicamente um analista que teve que assumir cargos políticos importantíssimos, mas não alguém com alguma verdadeira vocação. Meu padrinho, que foi uma pessoa sumamente importante na minha vida, Horácio, foi ministro de Irigoyen; papai era médico, mas meu padrinho que foi uma figura imporSociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 259 SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen Liberman... Em Londres, tive um ano interessante e trabalhei na Tavistok Clinic, e ali se apresentou o problema de ficar definitivamente lá ou voltar. Felizmente decidimos voltar, principalmente porque minha filha Alícia tinha ficado aqui para terminar sua carreira, não? Não era possível Alícia terminar seus estudos na Inglaterra e então... Esse foi um fato familiar, fundamental, para que voltássemos. Talvez se Alícia pudesse terminar sua carreira em Londres, não tivéssemos voltado. Creio que teríamos cometido um erro. No sentido de que minha carreira aqui foi muito melhor do que talvez teria sido lá. Por diversos motivos, porque teria sido sempre um estrangeiro. Por outra parte, eu não tenho a sorte que tu tens de ter muito domínio nos idiomas. Eu falo muito bem e penso em espanhol, mas, contrastando com isso, sou muito torpe com as outras línguas. Nunca cheguei a falar bem o inglês... Bom, voltamos: aqui, fiz meu trabalho para titular, depois fui didata, pertenci ao grupo que estava descontente com algumas orientações da APA. Eu fui o último presidente do Grupo Ateneo e o primeiro presidente da sociedade provisória (APdeBA). O segundo foi David Liberman, que foi presidente da sociedade componente. SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN tante para mim, ainda mais que papai morreu sendo eu tão pequeno; era uma figura política sobressalente, de maneira que, se você quer tirar conclusões, pode-se dizer que eu segui o caminho do meu pai e de meu irmão Juan Carlos, que, como eu, é médico. Muito de minha vocação... Bom, a política é minha grande identificação com Horácio. Tenho o seu nome. Quando eu nasci, meus pais pediram a meus dois irmãos que me pusessem nome. Um deles disse que me chamessem Ricardo, e Juan Carlos disse que me chamassem Horácio. Então, meus pais, salomonicamente, disseram, bom, que se chame Ricardo Horácio. Depois, quando morreu papai, meu tio Palácios, que me quis muito, renunciou a seu apadrinhamento, e dizia a Horácio: “para que vou ser eu padrinho desse menino. Seja você, que o é muito mais”. Então Horácio colocou como condição que a madrinha fosse a esposa de Palácios, irmã de minha mãe e que me chamassem Horácio, porque o assassino de seu pai, que era dirigente radical, se chamava Ricardo. Assim que você pode ver que sou o único cara que não tem complexo de Édipo! (Risos) E bom... SBPdePA – Seu pai como se chamava? Etchegoyen – Se chamava Pedro. Meu irmão mais velho se chamava Pedro, e o filho de Alberto, meu filho, também se chama Pedro. Quando nós, um matrimônio jovem noutra época, decidimos não pôr os nomes da família, então não chamamos Alberto de Pedro, como deveríamos ter feito porque ele era... Isso é importante, uma tradição para a família. E Alberto, que se casou há pouco tempo, com a segunda mulher, e tiveram um filho, o chamaram Pedro (Horário Etchegoyen busca uma foto de Pedro). SBPdePA – Mas ele está lindo! Parabéns! Agora entendo porque, neste belíssimo trabalho (“Algumas Reflexões sobre a Técnica Psicanalítica”, publicado nesta mesma revista), há uma referência tanto a Alberto quanto a Pedro. Nele você diz: “foi mais difícil não dizer a meus pacientes 260 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 Etchegoyen – Claro. Isso no sentido de como o ofício vai se melhorando, no sentido de que, tanto como experiência de vida, como experiência da Psicanálise... É uma profissão da qual eu gosto muito. Também gosto muito de analisar. E bom, o mais importante, talvez, que vem agora é o tratado do livro de técnica que eu escrevi lá no andar de cima e Élida aqui, estimulando para que eu o terminasse e publicasse. Claro, levou muito tempo. SBPdePA – O livro está traduzido em muitos idiomas, não? Etchegoyen – Em italiano, em inglês, em português, em espanhol. A primeira tradução foi em português. Henrique Kiperman (ArtMed) fez a primeira edição, em 86. Saiu primeiro a tradução em português, que foi foi revisada por Newton Aronis e prefaciada por David E. Zimerman. Depois saiu a edição em italiano, em inglês, da qual se fez já uma segunda edição. E agora vai sair, com base na segunda edição inglesa, com alguns anexos, a segunda edição em espanhol, e dom Henrique está esperando que saia a segunda edição em espanhol e então... SBPdePA – No trabalho (ao qual nos referimos há pouco) está dito, por exemplo, que você considera que um núcleo da técnica psicanalítica está nos trabalhos de Freud na segunda década. Tomemos isso como, digamos, uma âncora da Psicanálise. Etchegoyen – Sim, sim. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 261 SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen que tinha nascido meu filho Alberto, que hoje não lhes dizer que nasceu meu neto Pedro”. SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN SBPdePA – E daí, estão descritos e conceitualizados, no trabalho, transferência, associação livre, atenção flutuante... Etchegoyen – Que são as bases que nos deixou Freud. SBPdePA – Seguramente. Pareceu-me entender que a partir daí damos outro salto no tempo. Você se refere aqui, no trabalho, aos anos 40-50 com Heinrich Racker e Paula Heinman, com o tema da contratransferência. Etchegoyen – Claro, eu penso que a idéia da contratransferência foi uma idéia muito fértil e muito revolucionária da técnica, porque, realmente, incluiu como instrumento técnico aquilo que acontece com o analista, que a contratransferência não é somente um obstáculo, senão, também, vários instrumentos para compreender o paciente, se sabe usá-lo para se analisar internamente, não? SBPdePA – E agora a pergunta, temos algum outro salto depois daquele de 50 anos atrás na teoria e na técnica psicanalítica? Etchegoyen – Desde o ponto de vista da técnica, me parece que esse salto dos anos 50, que está em Londres e em Buenos Aires, simultaneamente, é o maior, não há outro que tenha tanta transcendência, me parece. Porque inclui uma perspectiva que até esse momento se havia ignorado, como a participação do analista e também uma participação na qual o analista segue desempenhando seu papel. O analista volta à transferência, mas sem sair dali, interpreta desde ali. Me parece que, na história da técnica, não há outro momento comparável nos últimos anos. Com a teoria é diferente, porque, claro, a teoria tem se diversificado muito, tem havido aportes importantes na teoria. Desde Freud, os psicológicos do ego, Melanie Klein, Fairbairn, Winnicott, Lacan, etc., todos têm sido aportes importantes para 262 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 SBPdePA – Desde o ponto de vista da técnica, depois do que passou nos anos 40-50 com Paula Heinman e Racker, estamos esperando, ainda, alguma coisa novamente revolucionária. Pode-se dizer assim? Parece-te que se pode dizer algo...? Etchegoyen – Sim, virão outros desenvolvimentos, seguramente. Aqui, no nosso país, Liberman fez aportes importantes para a compreensão do diálogo psicanalítico, relações entre o diálogo e a interação comunicativa. Grinberg também fez aportes muito importantes. Porque, ao referirse à contratransferência, Grinberg fez mais que Racker na idéia de identificação projetiva. Racker não usou tanto como poderia ter usado. Quem mais usou nesse sentido foi Grinberg, com o conceito de contra-identificação projetiva. E esses são aportes importantes também, de latino-americanos. SBPdePA – No trabalho você diz que, depois de fazer referência à questão da contratransferência, estão presentes os desenvolvimentos mais recentes de Berenstein e Puget... Etchegoyen – Eu, no trabalho, tratei de incluir panoramicamente todos os fatos que marcam algum momento importante na história da técnica. Custou-me, em algum sentido, custou-me não talvez porque não conheça a bibliografia, não? Em geral a conheço, logicamente. Porém me custou para dar harmonia... Pôr cada coisa no lugar. Isso é difícil, eu trato de ser neste trabalho, em geral, equânime, mostrar as contribuições que se têm feito, independentemente de predileções pessoais, não é? Os desenvolvimentos dessa teoria que se chama Vincular, de Isidoro Berenstein, Janine Puget e também de Rodolfo Moguillansky, são aportes interessantes, não? Eu... faço alguma crítica. Pessoalmente não concordo muito com Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 263 SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen a Psicanálise, mas que não têm repercutido, me parece, na técnica, tanto quanto a compreensão da contratransferência repercutiu. SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN essa teoria, mas creio que tem que se dar o lugar que merece. Eu não creio que exista algo mais que a relação de objeto; quero dizer que não é a relação de objeto aqui, o vínculo lá. Penso que as coisas que esses e outros analistas assinalam, como o vínculo, como algo novo, mas penso que... é uma aplicação da noção de objeto total e de angústias depressivas, quando a gente assume a posição depressiva se dá conta de que não é o objeto e que o objeto é autônomo, independente da gente. Não creio que exista outro tipo de relação que não seja através de mecanismos de projeção e introjeção, que vão se modificando ao compasso do desenvolvimento. Tratei de pôr, nesse trabalho, nessa brevidade que tem um relato de congresso, as coisas que a mim me parecem que têm sido mais importantes no sentido técnico. SBPdePA – Efetivamente, pode ser traçada uma visão histórica que marca momentos importantes. Etchegoyen – Claro, com vistas ao futuro. SBPdePA – Essa era a pergunta! (Risos) Queria te escutar um pouco: que idéia tens do futuro da psicanálise e dos psicanalistas? Etchegoyen – Penso que estamos passando um momento difícil para a Psicanálise. Sociais, econômicos, culturais. Estamos vivendo num mundo no qual o cultivo interior, o autoconhecimento, o inconsciente, não são muito valorizados neste momento. Nesse sentido, creio que a Psicanálise passa um momento difícil. Eu sou otimista, ou quero ser otimista no sentido de que vai haver um retorno à Psicanálise como um instrumento indispensável para o desenvolvimento humano. Não há nenhum outro método psicoterapêutico que faça o que faz a Psicanálise. Não há tampouco drogas que possam modificar o ser humano desde dentro como faz a Psicanálise, me parece. Então, ao fim de alguns anos, vai voltar a se impor a necessidade da Psicanálise com seus métodos: freqüência, assimetria, neutralidade. 264 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 SBPdePA – Está muito bom. Muito linda essa idéia de futuro, como uma saída para a crise que se está dando na Psicanálise. Etchegoyen – Bom, estamos vivendo uma crise muito grande, não? Mas não quer dizer que a crise vai se perpetuar ou que vai terminar numa coisa que possa prescindir da Psicanálise, eu não creio que se possa prescindir da Psicanálise porque a psicanálise aporta elementos indispensáveis para... Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 265 SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen A Psicanálise como psicoterapia é um método que por sua neutralidade está expressando um respeito pelo outro que os demais métodos não têm. Eu, nesse sentido, não vou ver, mas vocês vão ver e talvez se lembrem de mim daqui a uns anos, quando a Psicanálise volte a ser valorizada. Porque estamos vivendo um momento de globalização, de tanta ênfase no econômico. Eu creio que vai ter que se registrar num tempo não muito longo... Eu não creio que a ninguém convenha, ao final... Em todo o mundo, vai mudar a visão do homem sobre si mesmo, os valores que são inerentes à cultura e estão consubstanciados como conhecimento próprio desde Sócrates até Freud. Mas esta conferência [Conferência Interregional da IPA, Buenos Aires, 1 a 3 de junho de 2001] está aqui planteando problemas certos, temos que repensar como nos adaptar a um mundo novo e também como adaptar o mundo novo a nossos ideais. Finalmente, Freud foi revolucionário porque não se deixou levar pela pressão social, mas disse: aqui há algo mais que inconsciente ou a sexualidade infantil. Eu creio que nós, em algum momento, vamos poder repensar reivindicação dos humanistas que têm na Psicanálise um instrumento poderoso, me parece. Defender os princípios básicos da ética da Psicanálise. Que no fundo esse respeito pelo outro só pode se dar numa relação tão especial como a análise. Eu sou um respeitoso àquilo que o paciente sente e quer, e ao que não quer e não pode, devolvendo a sua própria identidade; me parece que isso é o típico da Psicanálise, como grande instrumento da transformação e de hominização do homem. SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN SBPdePA – Chegou há muito tempo e em forma definitiva para a humanidade. Etchegoyen – A mim me parece que sim, claro. SBPdePA – Quer falar um pouquinho de política? Depois de ter sido o primeiro presidente latino-americano da IPA, por enquanto o único, e já passado algum tempo, como vê a IPA na atualidade, como vê a IPA no futuro... Etchegoyen – Me parece que algumas mudanças que introduziu a primeira administração latino-americana ficaram. Por exemplo, uma estrutura mais democrática, atender mais a opinião dos membros. Me parece que também modificar o funcionamento do trust. Depois, há coisas mais contingentes. Eu tentei realizar uma presidência a mais democrática e psicanalítica possível. Nisso estava não seguir depois querendo manter uma hegemonia, de modo que eu já cumpri com meu período e me pareceu importante não seguir ocupando um lugar político. O que eu te dizia, a política tem sido uma conjuntura, uma obrigação, mas não um prazer, uma vocação para mim. Penso que a IPA vai seguir adiante. Que vai ter dificuldades que provêm, me parece, de situações profissionais com psicanalistas. Não é tão boa como foi há uns anos. Como a IPA pode modificar, isso, sim, não é tão fácil, porque isso responde a situações mais sócioculturais, econômicas. Estas conferências regionais às quais você assistiu são uma tentativa desde o ponto de vista da IPA de se fazer conhecer mais a Psicanálise, não? A conferência tem tido êxito, tem ido muita gente. E isso pode modificar algo, mas não creio que seja fácil para nós, neste momento, modificar a situação em que estamos. Se deve dar tempo ao tempo, trabalhando. Eu creio que trabalhar com honestidade e entusiasmo, desde o nosso lugar de analistas, é importante para o futuro da Psicanálise. O futuro da Psicanálise se joga em cada sessão, em cada associação livre do paciente e 266 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 SBPdePA – Horácio, não quero abusar de tua disponibilidade, boa vontade e generosidade, mas quero deixar aqui um grande abraço da SBPdePA e especialmente da revista, bem como dos valiosos colegas da comissão editorial, que me ajudaram a pensar esta entrevista. A ti, Horácio, sempre tão generoso, toda a nossa gratidão. Muchas gracias. Breve apresentação do entrevistado R. Horácio Etchegoyen, analisando de Racker e de Meltzer, colega de Cyro Martins durante a sua formação psicanalítica na APA – Buenos Aires, foi o primeiro presidente latino-americano da IPA. Membro fundador da APdeBA (Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires), veio a ser seu primeiro presidente. Autor de numerosos trabalhos, versando sobre diferentes temas da técnica psicanalítica, é também o autor do já clássico livro “Fundamentos da Técnica Psicanalítica”, publicado em vários idiomas e referência obrigatória em qualquer seminário sobre Teoria da Técnica. Profundo conhecedor da obra de Freud, Klein e pósKleinianos, estudou por muitos anos a teoria de Lacan e os desenvolvimentos da Epistemologia e suas aplicações à Psicanálise. Etchegoyen teve uma participação transcendental na constituição da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 267 SBPdePA Entrevista R. Horácio Etchegoyen em cada interpretação do analista. Ali se está jogando o futuro da Psicanálise. Por isso também é importante que os analistas tenham uma boa formação. Ter uma boa formação para trabalhar melhor e trabalhar melhor para ter mais evidência na vida comunitária. Creio que algo que nos prejudica muito é que muita gente não tem uma verdadeira formação, se intitula e funciona como psicanalista, mas não pratica a Psicanálise. Deixam como remanentes ou como seqüelas a decepção das pessoas, a desconfiança no método, que eles não aplicam. Esse é um problema importante. SBPDEPA ENTREVISTA R. HORÁCIO ETCHEGOYEN nossa Sociedade (SBPdePA), ainda que devido à sua já conhecida modéstia nunca quis tornar pública sua efetiva e afetiva colaboração (do Editor). Entrevista Entrevista gentilmente concedida à Psicanálise – Revista da SBPdePA Tradução do original espanhol: Marta Minteg Revisão da tradução: Dra. Ana Rosa Chait Trachtenberg Dr. R. Horácio Etchegoyen Posadas 1580/13º 1112 Buenos Aires – Argentina E-mail: [email protected] 268 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 PSICANÁLISE – REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSICANÁLISE DE PORTO ALEGRE ORIENTAÇÃO AOS COLABORADORES NORMAS GERAIS PARA PUBLICAÇÃO DE TRABALHOS* 1. Os manuscritos que se publicam na Revista devem ajustar-se a alguns requisitos formais: a. b. c. d. e. f. 2. O trabalho deve ser inédito (excetuam-se trabalhos publicados em anais de Congressos, Simpósios, Mesas Redondas, ou Boletins de circulação interna de Sociedades Psicanalíticas; exceções serão consideradas); O trabalho não pode infringir nenhuma norma ética e todos os esforços devem ser feitos de modo a proteger a identidade dos pacientes mencionados em relatos clínicos; O trabalho deve respeitar as normas gerais que regem os direitos do autor; O trabalho não deve conter nenhum material que possa ser considerado ofensivo ou difamatório; O autor deve estar ciente que ao publicar o trabalho na Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Por to Alegr e ele está transferindo automaticamente o “copyright” para essa, salvo as exceções previstas pela lei; O trabalho não deve estar sendo encaminhado simultaneamente para outra publicação sem o conhecimento explícito e confirmado por escrito do Conselho Editorial. A Revista normalmente não colocará obstáculos a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Quaisquer violações destas regras que impliquem em ações legais serão de responsabilidade exclusiva do autor. Os trabalhos aceitos e publicados tornam-se propriedade da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, sendo vedada a sua reprodução, ainda que parcial, sem a devida autorização da Revista. * Baseado na Revista Brasileira de Psicanálise da Associação Brasileira de Psicanálise. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 269 3. Os conceitos emitidos são da inteira responsabilidade do autor. 4. Os originais deverão obedecer as seguintes exigências mínimas: a. Os originais enviados para a publicação deverão ser endereçados ao Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto b. Alegre, cujo endereço é Quintino Bocaiúva, 1362. Os mesmos, devem ser entregues em três vias, e com cópia em disquete (gerado em Word for Windows); c. duplo em papel formato A4. Cada linha deve conter 70 toques e cada página 30 linhas sendo numerado no ângulo superior direito. Tabelas, gráficos, desenhos e outras ilustrações sob forma de cópias fotográficas devem ser enviadas em duplicatas de tamanho adequado. O conteúdo total de ilustrações não deverá exceder ¼ do espaço ocupado pelo artigo; exceções serão consideradas; d. e. 5. Ex tensão máxima de vinte (20) páginas digitadas só na frente, em espaço Os trabalhos deverão obedecer à seguinte estrutura: título, nome do autor, titulação, tex to, referências bibliográficas, sinopse (em português e inglês), palavras-chave (em português e inglês) e endereço do autor; Os ensaios e reflexões deverão obedecer a seguinte estrutura: título, nome do autor, titulação do autor, tex to, palavras-chave (em português e Inglês) e endereço do autor; A sinopse deverá conter em torno de 150 palavras e ser capaz de transmitir ao leitor os pontos principais que o autor deseja expressar. Referências Bibliográficas: As seguintes normas estão baseadas nas publicadas pelo International Journal of Phychoanalysis e na Revista Brasileira de Psicanálise. As referências deverão incluir somente trabalhos estritamente relevantes e necessários, não se deve acumular uma vasta bibliografia. As referências no decorrer do tex to serão dadas citando-se o nome do autor seguido do ano de publicação entre parênteses, por exemplo, Freud (1918) ou (Freud, 1918). Se dois co-autores são citados, os dois nomes deverão ser mencionados, por exemplo Marty, de M’Uzan (1963) ou (Marty , de M’Uzan, 1963). Se 270 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001 houver mais de dois autores, a referência no tex to indicará o primeiro, por exemplo: Rodrigues et al.(1983) ou (Rodrigues et al.,1983). A referência completa das obras citadas figurará na lista das referências bibliográficas, colocada no final do artigo, lista essa que deverá corresponder exatamente às obras citadas, sem referências suplementares. Os autores são mencionados em ordem alfabética e suas obras pela ordem cronológica de publicação. (para as obras de Freud, as datas correspondentes são indicadas entre parênteses na Standard Edition). Se várias obras foram publicadas no mesmo ano, deve-se acrescentar à data de publicação, as letras a, b, c etc. Quando um autor é citado individualmente e também como co-autor, serão citadas antes as obras onde ele é o único autor, seguidas das publicações em que ele é o co-autor. Os nomes dos autores não serão repetidos, mas indicados por um traço. Os títulos dos livros grifados, sendo que as palavras mais importantes serão escritas em letras maiúsculas, o lugar da publicação e o nome do editor serão igualmente indicados. Se uma referência é dada a partir de outra edição que a original, a data da edição utilizada deverá figurar no final da referência. Nos títulos dos artigos (e igualmente nas obras de Freud) somente a primeira palavra figurará em letra maiúscula. O título do ar tigo será seguido da abreviação grifada da revista, do número do volume, e dos números da primeira e da última página. Para as abreviações dos títulos das revistas, poder-se-ão consultar os números que já foram mencionados ou no caso de dúvida, citar o nome por ex tenso. Nos exemplos seguintes, podem-se obser var a utilização das letras maiúsculas, a pontuação, os dados e sua ordem de apresentação. BOWLBY, J. (1963). Attachment and Loss, Volume 1. New York: Basic Books. ______. (1979). Psychoanalysis as art and science. Int. Rev. Psychoanal., n. 6, p. 3-14. HOLZMAN, P. S., GARDNER, R. W. (1960). Levelling and repression. J. Abnorm. Soc. Psychol., n. 59, p.151-155. WALLERSTEIN, R.S. (1972). The future of psychoanaly tic education. J. Amer. Psychoanal. Assn., n. 2, p.591-606. Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre 271 6. Procedimentos de Avaliação: a. Todo ar tigo entregue para publicação será avaliado através de critérios padronizados por três avaliadores membros do Conselho Editorial da Revista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre; b. c. O avaliador será mantido em sigilo pela Revista, recomendando-se que o mesmo seja mantido pelo próprio avaliador; d. em princípio, aprovado para publicação. A decisão final quanto à data de sua publicação dependerá do número de artigos aprovados e do programa editorial estabelecido; Sendo o artigo recomendado pela maioria dos avaliadores, será considerado, Artigos que não forem publicados em 6 (seis) meses, a partir da data de sua aprovação serão oferecidos de volta ao seu autor, para que esse tenha liberdade de enviá-lo a uma outra publicação. 272 Psicanálise v. 3, n. 1, 2001