A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia
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A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia
Christian Ingo Lenz Dunker Freud was quite emphatic and consistent when he pointed out the etiological role of the trauma in neuroses. Post-Freudian psychoanalytic tradition has emphasized investigation into the nature of childhood traumas, their occurrence in repetition, and the symbolic return of the trauma. The present article discusses another example of trauma, also referred to by Freud in his writings on war neurosis and traumatic neurosis. This example might be called the therapeutic function of the Real, that is, the possibility that the trauma, under certain phantasmatic circumstances, seems to be able to organize the subject’s narcissism and its psychic suffering, as Durkheim suggested. This phantasmatic condition, which induces this effect, must then be defined in terms of Lacan’s expression, “encounter with the Real”. The hypothesis pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 Freud foi bastante enfático e constante ao apontar o papel etiológico do trauma na neurose. A tradição psicanalítica posterior a Freud privilegiou a investigação da natureza do trauma infantil e de suas incidências na repetição e no retorno simbólico do trauma. A presente comunicação procura chamar a atenção para uma outra incidência do trauma, também lembrada por Freud em seus escritos sobre a neurose de guerra e sobre a neurose traumática. É o que podemos chamar de função terapêutica do real, ou seja, a possibilidade que o trauma, sob determinadas circunstâncias fantasmáticas, parece possuir de organizar o narcisismo do sujeito e de reduzir seu sofrimento psíquico, como Durkheim já sugerira. Seria preciso definir esta condição fantasmática a partir da qual o encontro com o Real, segundo expressão de Lacan que traduz a noção freudiana de trauma, desperta tal efeito. A hipótese que será desenvolvida nesta comunicação nos remeterá a noção de ato, tal como desenvolvida por Zizek, para postular uma desorganização e reorganização das coordenadas simbólicas do sujeito. Apresenta-se, a partir deste desenvolvimento, uma interpretação possível de certos aspectos de fenômenos clínicos, tais como a passagem ao ato e o acting out, como legíveis no quadro da função terapêutica do Real. > Palavras-chave: Trauma, fantasia, real, ato artigos > p. 15-24 A função terapêutica do real: trauma, ato e fantasia >15 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XIX, n. 186, junho/2006 developed here leads us to the notion of act, as developed by Zizek, to postulate a disorganization and reorganization of the symbolic coordinates of the subject. On the basis of this discussion, a possible interpretation of certain clinical phenomena is presented, such as the passage to act and acting out, both legible in the picture of the therapeutic function of the Real. > Key words: Trauma, fantasy, real, act >16 O ano de 1897 é conhecido pelos psicanalistas como a data em que Freud abandona sua teoria do trauma e inicia sua gradual substituição pela concepção da neurose baseada no papel da fantasia. É nesta famosa carta à Fliess de 21 de setembro de 1897 que Freud declara “não acredito mais na minha neurótica”. Alguns historiadores1 consideram este movimento como o ato inaugural da psicanálise, pois nele se afirmaria a supremacia da etiologia simbólica das neuroses bem como o afastamento definitivo do método catártico. Desde então trauma e fantasia constituem uma oposição que foi constantemente dialetizada ao longo da história da psicanálise. A noção de trauma interroga insidiosamente o estatuto da realidade ou do real que se deve levar em conta na psicanálise. O trauma pode ser considerado um evento hiperintenso, que excede à capacidade representacional e que colhe o sujeito antes que este possa tramitá-lo psiquicamente. O caráter disruptivo, desorganizativo ou imprevisível do trauma é uma tônica em Freud. A fantasia, ao contrário, surge como o es- pectro encobridor, distorsivo e refratário que ao mesmo tempo supõe e presume este referente. Se assim fosse as coisas seriam bastante simples: o trauma é realidade que a fantasia encobre como uma ilusão. O problema é que há uma realidade própria desta ilusão, assim como uma ilusão interna a esta realidade. Mas voltemos a 1897. No mesmo ano em que Freud iniciava sua “auto-análise” Emile Durkheim publicava um estudo modelo para a sociologia. Uma análise que punha em ação as regras de um novo método sociológico, assinalando, pela primeira vez, o caráter não individualmente consciente do fato social e de sua determinação. O tema deste estudo é o suicídio e a tese de Durkheim é que sua prevalência tende a permanecer constante ao longo do tempo com oscilações que tendem a se diluir conforme se leve em conta períodos mais extensos. Esta constância poderia ser explicada pela tendência a equilibração recíproca de três inclinações coletivas que se expressariam neste ato. O que a constitui são as correntes do egoísmo, do altruísmo ou de anomia que atuam dentro 1> Em 1897, porém, se a realidade do trauma lhe fora roubada, Freud já não podia acreditar em sua “neurótica. Altruísmo, egoísmo e anomia funcionam ao modo de uma série complementar, quando um fator perde força outro o compensa. Trauma, fantasia e narcisismo são os três elementos que Freud (1939, p. 75) cita em sua própria versão do problema. O estudo de Durkheim apóia-se na apreciação da taxa de suicídio em diversas regiões da Europa ao longo de vários anos e mostra-se tão mais persuasivo quanto maior a amplitude temporal considerada. No entanto os dados levantados nos mostram uma curiosa irregularidade. Precisamente no ano de 1848 a taxa de suicídio cai senão drasticamente, significativamente, nas mesmas regiões consideradas. Ora, sabemos que o ano de 1848 é um marco histórico para diversas convulsões sociais que culminam na implantação de regimes liberais. Um ano de profunda indeterminação e incerteza. Por que, então, no momento de maior “insegurança” teríamos um decréscimo do suicídio e não um aumento? Claro que, guardadas as proporções da analogia, podemos encontrar uma resposta trivial para esta questão se lembramos do caráter retroativo da eficácia traumática. Ou seja, o trauma não produz seus efeitos imediatamente, mas pela sua ressignificação posterior, no quadro da fantasia. Lembremos, por exemplo, que Emma (Freud, 1895) volta uma segunda vez á loja de doces onde passara pela sedução, antes que, depois de esquecida, a cena retorne em sua inibição para entrar em lojas de roupas. Portanto, o traumatismo, em sua realidade própria e violência intrínseca, é de pouca importância, para a determinação da efetividade etiológica do trauma. Isso a psicologia da traumatização terá sempre dificuldade em admitir. Afastada esta etiologia popular do traumatismo podemos dirigir nossa atenção para certos aspectos que sugerem o exato contrário do que nos diz esta concepção vitimista. Ou seja, a gravidade exterior do trauma, em vez de sugerir um efeito deletério mais agudo, parece indicar um prognóstico favorável. É nesta linha que Freud em “Análise terminável e análise interminável” (1937) declara que as neuroses traumáticas apresentam uma responsividade e uma perspectiva de cura mais favorável do que as neuroses onde não se pode dirimir muito bem o papel do trauma. Mais espantoso ainda é a observação de que no caso de neuroses traumáticas de guerra a presença de um dano corporal é muito mais favorável à recuperação do que a mera assistência ou participação em um episódio de perigo. Na mesma linha se afirmará que a ameaça de castração pode ser muito mais insidiosa, na etiologia da neurose do que a própria constatação da castração. Duas indicações que nos levam na direção do caráter intersubjetivo do trauma, ou seja, sua dependência da interpretação e significação derivada do Outro mais do que a inferência de si a si. Poderia-se levantar como terceiro argumento a problemática – mas efetivamente utilizada por Freud – categoria de angústia real. Ou seja, a angústia neurótica decorre do desenvolvimento do sinal de angústia no pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XIX, n. 186, junho/2006 da sociedade em consideração com as tendências para a melancolia langorosa ou para a renúncia ativa ou para a lassidão exasperada, conseqüências daquelas. São estas tendências da coletividade que, penetrando nos indivíduos, os levam a matar-se. (Durkheim, 1897, p. 487) >17 pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 artigos quadro da fantasia, o que é inteiramente diferente da angústia desencadeada por um perigo real. Evidente que Freud tem problemas em delimitar exatamente o que seria esta angústia real, decorrente de um perigo realístico, mas o que quero chamar a atenção aqui é que Freud opõe neurose e realidade como fontes e destinos distintos para a angústia. Mais uma vez o sofrimento psíquico, agora indicado pela origem real do perigo, aparece como índice do caráter benigno de sua tramitação psíquica. Podemos elencar aqui uma série de fenômenos clínicos que sugerem uma espécie de pacificação representada pelo encontro com um real, imprevisível, perigoso e disruptivo. O abreviamento da intensidade dos sintomas neuróticos diante da descoberta de um mal estar orgânico, a redução da angústia diante de uma grande perda sofrida, o deslocamento de inibições e a solução de fobias diante de uma situação de risco iminente de vida. Termino com o relato de um paciente no dia seguinte aos atentados a Nova York. >18 É tudo muito triste e quase inacreditável. Mas ao lado do sentimento trágico não posso esconder uma espécie de calma e quietude que isso tudo causou em mim. É como se no meio deste mundo de ilusões e incertezas, onde estou à espera de alguma coisa que não sei bem o que é, finalmente algo realmente aconteceu. Algo que já vi tantas vezes nos filmes e nos quadrinhos, que é tão violento como estes programas de televisão, mas que é tão mais real... finalmente aconteceu. Devemos nos lembrar, finalmente, que o caso prínceps de Lacan (1988) é também um caso onde esta função terapêutica do real aparece claramente. Aimée, uma jovem fun- cionária dos correios está atormentada pela angústia e vive um drama persecutório que passa pela erotomania, pela insônia e inquietação. Este quadro muda completamente após a passagem ao ato na qual Aimée tenta apunhalar uma famosa atriz francesa (Hugette Duflos). A cura, afirma Lacan, decorre de uma espécie de realização. Realização cujo destino é incerto no texto da tese, ora se prende à confissão, ora à satisfação da culpa pela via da autopunição, ora à realização, por Aimée, da perda de seu filho. O certo é que Lacan parece perceber uma espécie de valor terapêutico do ato real de Aimée. Ato, que como destacou Allouch (1997), implica uma dimensão de linguagem e de engajamento em suas conseqüências imprevisíveis e não antecipáveis. Ato que tem por fim o objeto a e que se caracteriza pelo fato de que não comporta “em seu instante, a presença do sujeito” (Lacan, aula de 27/11/67). Creio que por estes argumentos e pela regularidade das circunstâncias clínicas a que eles se ligam, podemos pensar em uma função terapêutica do real. Vimos como esta função relaciona-se primariamente com o ato. Um ato que se coloca, de maneira precisa entre a renovação repetitiva do trauma e a fixação insidiosa da fantasia. Podemos distinguir, nesta medida a passagem ao ato, como atualização do trauma do acting out como atualização da fantasia. Nos dois casos temos esta função de realização, ambos, em tese, associáveis à função terapêutica do real. O problema clínico que se coloca então é o seguinte: como distinguir estas duas formas da função terapêutica do real, de uma terceira, que seria própria á direção do tratamento psicanalítico, mas também atesta- Os efeitos do trauma são de índole dupla, positivos e negativos. Os primeiros são os esforços para devolver ao trauma sua vigência, vale dizer, recordar a experiência esquecida ou, todavia, melhor, torná-la real-objetiva (Real), vivenciar novamente uma repetição dela: toda vez que se tratar somente de um vínculo afetivo primitivo, fazer revivê-lo dentro de um vínculo análogo com outra pessoa. (p. 72) Não são influenciados, ou não o bastante, pela realidade exterior, não fazem caso desta nem de seus representantes psíquicos, de sorte que facilmente entram em contradição ativa com ambos. (Ibid., p. 73) Ora aqui a frase de Freud coloca um problema. Como pode ser que se a repetição traumática não sendo influenciada pela realidade, nem por seus representantes psíquicos, entre em contradição ativa com ambos? Se o real da repetição é indiferente ao real da realidade como pode haver contradição? Mais ainda, se o real da repetição não pode ser influenciado pela realidade, como justificar que o sujeito procure sobrepor o artigos Trauma e fantasia na produção do sintoma Que o trauma engendre sofrimento imediato e seu prolongamento repetitivo no sintoma, isso foi largamente explorado na psicanálise. Curar-se do trauma, lembrar, elaborar. A questão: como é possível que sob circunstância similares ao trauma ele seja dissolvido? Experiência emocional “corretiva”, para os americanos. Uma nova experiência para Winnicott e Masud Kahn (trauma cumulativo), os limites da transferência para Ferenczi, a travessia da fantasia para Lacan. Há um efeito terapêutico do real? Em “Moisés e o monoteísmo” F r e u d (1939) faz uma distinção crucial para nossos propósitos: Os efeitos positivos do trauma decorrem da fixação e da compulsão á repetição. Eles podem se integrar ao eu, ao caráter á condição de que seu fundamento permaneça esquecido. Os exemplos que Freud dá deste trabalho positivo do trauma são todos de repetições narrativas, insistências pelas quais um sujeito tende a tornar real certas experiências traumáticas, buscando sua repetição (os que delinqüem por sentimento de culpa). Os efeitos negativos do trauma buscam fins diferentes: nem recordar nem repetir o trauma esquecido. São as reações de defesa tais como as inibições, as evitações e silenciamento. Ancoram-se também na fixação, mas em aspirações de sentido oposto. É o esforço de apagamento, rasura, degradação do significante ao traço. O sintoma constitui-se como uma formação que reúne sob si as duas formas de trabalho do trauma. Ambas as formas de trabalho do trauma convergem para a compulsão da repetição, uma vez que: pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 da por certas curas “espontâneas” da neurose? Refiro-me aqui a aproximação genérica feita por Freud entre a cura pelo tratamento analítico e a cura pelo engajamento amoroso, formas de cura ás quais acrescento esta terceira dedutível do encontro do real. Para tentar responder a esta indagação farei um pequeno percurso acerca das relações entre trauma e fantasia procurando discernir este núcleo do real que pode ser atravessado pela experiência analítica. >19 pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XIX, n. 186, junho/2006 >20 real à realidade, pelo trabalho ativo do trauma? A resposta nos convida à idéia de que se o real da repetição não pode ser “influenciado” pela realidade é porque esta realidade já é antes de tudo produto de uma mediação. Esta mediação chama-se fantasia. É a fantasia que provê a estrutura da realidade tal qual o sujeito a imaginariza e simboliza. Isso poderia se demonstrado por uma análise comparativa do esquema I (Lacan, 1958) com as teses sobre a lógica do fantasma, ao qual não nos deteremos aqui. O que importa salientar é que o espaço entre realidade e real ocorre porque a realidade já é subjetivamente constituída pela fantasia. Ou seja, é só no quadro da fantasia específica que o real do trauma pode ser encontrado e reencontrado sem que se possa dizer, ao mesmo tempo, que o real do trauma é o mesmo que o real da fantasia. O real do trauma é inespecífico: desamparo (Hilflosigkeit), nascimento, excesso, destino, pré-sexual, pré-representacional. O real da fantasia é específico: “bate-se em uma criança” ou a expressão que dá sentido ao ato de jogar-se da ponte ferroviária, no caso da Jovem Homosexual (Freud, 1922), ou seja, um ato de Niederkommen (cair-engravidar). O real como situação e o real como condição. À relação entre trauma e fantasia aplica-se o grande princípio psicopatológico da segunda tópica freudiana, qual seja, fusão e desfusão das pulsões, articulação e desarticulação entre trauma e fantasia, entre real e imaginário. Vejamos então os sentidos possíveis para esta idéia de um encontro com o real, próprio do trauma, em comparação com o ato que toca o real, próprio da fantasia. Trauma e fantasia na dissolução do sintoma A noção de “encontro do real”, apesar de pouco recorrente no ensino de Lacan, tem sido bastante enfatizada por seus leitores. Ela aparece, especialmente, na quinta lição do Seminário XI (Lacan, 1964, p. 61), ligada à idéia aristotélica de causa acidental (symbebekos) em suas duas variantes, automaton, o que se move por si mesmo, e tyche, ou seja, o acaso que aponta para uma necessidade ainda desconhecida para o homem (fortuna). Ambas as formas de causalidade sugerem excepcionalidade, desvio e surpresa, no entanto, somente a tyche remete ao encontro de duas séries causais sendo automaton o que escapa à deliberação dos homens (Garcia Roza, 1986). Há, portanto, dupla acepção de tyche em sua relação com a idéia de encontro. De um lado o sentido de encontro entre pessoas ou objetos e de outro encontro de séries de causas eficientes. Esta separação entre a série dos objetos e a série das causas foi admiravelmente contornada por Lacan com a noção de objeto a , que é simultaneamente objeto e causa. Ficamos, portanto, com esta primeira idéia de que o ato, que visa o objeto, não pode ser direta e genericamente reduzido ao real. Em outras palavras o real como impossível não é o mesmo que o re a l c o m o a l e a t ó r i o. Ambos são imprevisíveis, mas por motivos distintos. Implicações heterogêneas, e que, como quero sugerir, conferem um lugar estratégico para a expressão “encontro do real”. Falar de encontro é falar de lugar e tempo, de sujeito e outro. O lugar do encontro é aquele que se situa entre o trauma e a fan- artigos ra: marco um encontro, mas ela não aparece... de novo. Fico esperando mesmo assim. Ernst Kris, conhecido na tradição lacaniana como uma espécie de anti-cristo da psicanálise do ego, tem um texto muito interessante chamado The recovery of childhood memories in psychoanalisis (1956c) onde ele distingue “traumas por choque” e “traumas por tensão”, ou seja traumas que tem a estrutura temporal de um instante não antecipável e outros que tem a estrutura de um momento que se prolonga indefinidamente. Pensando nesta oposição podemos ver que o trauma representado pela incidência cumulativa de uma determinada injunção pode ser “modificado” por um evento traumático de tipo instantâneo. Inversamente os efeitos de um trauma cuja estrutura temporal se prende ao instante imprevisível pode ser “tratado” pela remissão a um estado traumático contínuo. Se no primeiro caso o trauma aparece como desencontro, no segundo ele se mostra na face do reencontro. O único objetivo da ênfase metapsicológica que estou levantado é postular que isso permite inferir intervenções diferenciais tendo em vista a dissolução do sintoma. Diante de pacientes cuja situação é de retraumatização cotidiana e um aparente empobrecimento da fantasia, seja por práticas específicas como o desamparo, a violência ou mesmo injunções traumáticas triviais, mas constantes (como aquele telefone semanal para mamãe ou aquele comentário disruptivo do colega de trabalho). Ou seja, nestes casos onde a noção de traumatização cumulativa parece fazer algum sentido, trata-se de encontrar o instante da fantasia, o momento em que a presença do objeto pode ser antecipada, no significante que o repre- pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 tasia, isto é textual em Lacan (1964, p. 61). Trauma e fantasia são as duas bordas do Real concernido pelo encontro, as duas séries que se encontram na tyche. Do trauma Lacan depreendeu uma temporalidade própria (retrospectiva) que não se confunde com a temporalidade da fantasia (prospectiva). Já em Freud esta dissimetria entre o cedo demais, que caracteriza o trauma na histeria, será contrastada com o tarde demais, que caracteriza sua fantasia, e inversamente na neurose obsessiva. Agora podemos reler o que Freud (1988) nos apontou pelo duplo trabalho do trauma sobre o sujeito, seu efeito negativo de amnésia e esquecimento, mas também o trabalho positivo de insistência, retorno e reatualização. Enquanto o trabalho positivo visa recriar o trauma no futuro, tornando-o presente, o trabalho negativo tenta aboli-lo no passado, excluindo-o do presente. Ora, estas duas formas de temporalidade encontram-se presentes no tempo do sintoma. Sua dissolução depende, portanto, de encontrar o instante de articulação entre trauma e fantasia. Trauma e fantasia encontram-se dissociados por um descompasso temporal. O trauma permanece ativo na sustentação do sintoma, porque sua fantasia não foi subjetivada. Inversamente a fantasia permanece ativa na causação do sintoma porque seu núcleo traumático do real, seu objeto, não é inteiramente “objetivado”. Há, portanto o encontro como lugar e tempo invertidos do trauma à fantasia. O Real, que volta sempre ao mesmo lugar, e o Real que é o tempo em que o desejado não surge, são enquadrados sob esta situação que é a do encontro. Uma imagem simplificado- >21 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 >22 senta. É, o que se poderia chamar de clínica da interpretação baseada na extração do significante mestre que liberta o saber do sintoma. Aqui a dissolução do sintoma se dá por um ato de corte, um ato novo, um elemento criativo, introduzido na monotonia contínua do trauma. Inversamente, há casos em que o impacto do trauma é instantâneo, mas a ação da fantasia é extensa. São pacientes cuja situação é de exposição cotidiana ao excesso da fantasia, seja por práticas específicas de sua encenação (acting out constantes), seja pela indução de desejo que esta permite. Ou seja, nestes casos em que a noção de trauma instantâneo pode fazer algum sentido, trata-se de encontrar o objeto que coordena o encontro traumático. É o que se poderia chamar de clínica da interpretação baseada na extração do objeto que liberta a verdade do sintoma. Aqui a dissolução do sintoma se dá pela queda do objeto, pelo reconhecimento de sua sempiterna e constante presença. Alain Badiou (1986) caracterizou a experiência contemporânea à partir de um expressão bastante feliz: a paixão pelo Real. Paixão que haveria dominado o século XX em sua obsessão por desmascarar a aparência. Paixão que se revela em quatro exigências: a revolta crítica, a razão universal, a aposta amorosa e o pensamento emancipador. Paixão, que assim conduzida, culmina em seu oposto aparente, a espetacularização da vida e a existência em estrutura de semblante. O Real não se integra, ele não pode ser dominado por uma narrativa, assumindo a figura primária do antagonismo social, como vem defendendo Zizek (2002). Portanto a questão filosófica e clínica é saber se há uma forma de paixão pelo real que não se reduza nem ao acting out, nem à passagem ao ato e que seria, por sua vez, própria à eficácia do tratamento analítico. No acting out não é o real que invade a imagem, mas a imagem que invade o real. Ele é, neste sentido, a realização pacificadora da fantasia. Ele exprime uma forma de paixão reacionária pelo real, como endosso do reverso obsceno da Lei. É a paixão pela “purificação do excesso”, pela destruição do elemento perturbador, que pode ser infinitesimalmente reduzido, em acordo com o sentido hegeliano do “infinito mau”. Nesta face da função terapêutica do real, de procedência fantasmática, verificamos uma espécie de totalização do Outro (o Outro sem heteridade). São exemplos desta função a transgressão da lei em nome da lei, que caracteriza um certo cálculo do gozo. Nele o sujeito se faz instrumento direto da vontade do Outro, como que a dizer: “se é assim que você quer, é assim que você o terá”. Curioso altruísmo-egoísta, diria Durkheim. Mas a paixão pelo Real, admite ainda uma segunda face, a face traumática da anomia. Aqui poderíamos localizar os efeitos da passagem ao ato. Ela exprime a realização positiva do objeto em um ato paradoxal, tal qual o suicídio. Não se trata de “purificar o excesso” mas de uma identificação com o elemento perturbador. Nesta face da função terapêutica do Real encontramos o fascínio pela catástrofe e também a indução imaginária de que ela corresponde a um novo começo. É o real que invade a imagem mostrando seu valor de superfície. Muito do que se vem fazendo em nome da chamada clínica do Real reduz-se simplesmente à estas duas formas de encenação da Referências ALLOUCH, J. Marguerite ou a “Aimée” de Lacan. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1997. BADIOU, A. Para uma nova teoria do sujeito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1986. DURKHEIM, E. (1897). O suicídio. In: Coleção Os pensadores , Abril Cultural, São Paulo, 1973. p. 487. FREUD, S. (1895). Projeto de uma psicologia científica para neurólogos. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Buenos Aires: Amorrortu, 1988. _____ (1922). Sobre a psicogênese de um caso de homossexualismo feminina. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud . Buenos Aires: Amorrortu, 1988. V. XVIII. _____ (1939). Moisés e a religião monoteísta. In: Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XXIII, Buenos Aires: Amorrortu, 1988. v. XXIII, p. 72. _____ (1937). Análise terminável e análise interminável. In: Edição Standard das Obras artigos Conclusão Deste cruzamento se precipita a idéia da fantasia como desencontro e do trauma como reencontro. Conseqüência clínica: a pulsão pode ser liberada da fantasia assim como o sintoma pode ser liberado do trauma ao longo do encontro analítico. É por isso ainda que a repetição, própria ao real, não se confunde nem com o retorno (transferência), nem com a reminiscência-insistência (sintoma), cada qual pertencendo a uma das duas séries da tyche, não estando ela mesma compreendida inteiramente em nenhuma delas. Ou seja, são as coordenadas simbólicas, dadas no contexto de automaton significante, e as coordenadas imaginárias, dadas no contexto da fantasia, que delimitam o momento e a circunstância do encontro traumático do Real, mas também do encontro terapêutico do Real. O trabalho do trauma é sua função terapêutica, que visando eliminá-lo acaba por reproduzi-lo. Mas a análise implica a produção de uma experiência que possui, como vimos estrutura isomorfa à da relação trauma-fantasia. É por isso que ela não é só descoberta (redescoberta), mas também invenção (criação). É por isso que o terapêutico, como retorno a um estado anterior, é também uma volta ao pior (Lacan, 1971-1972). É neste registro que se poderá verificar os efeitos deste encontro no sujeito e no Outro. De novo é a situação de borda que reaparece aqui. O último significante retido antes ou depois do evento traumático, é assim que Lacan esboçará uma pequena teoria da neurose traumática. O último fragmento retido do Outro em sua degradação ao objeto a, é assim que Lacan desenhará a lógica da fantasia. Novamente borda, limite configurado pelo encontro do Real em sua opacidade e compacidade. Opacidade demonstrada pelo caráter não especularizável do objeto a . Compacidade demonstrada pelo recobrimento de um espaço fechado (o encontro) por dois espaços abertos (trauma e fantasia). pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 fantasia e de exposição ao trauma. Uma má leitura da técnica ativa em Ferenczi pode levar ao mesmo caminho. Mas isso não elimina a hipótese de que a função terapêutica do Real seja uma conjectura clínica que deva ser abandonada, mas apenas sinaliza a extrema cautela teórica que a deveria justificar. >23 pulsional > revista de psicanálise > ano XIX, n. 186, junho/2006 artigos Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. XXIII, Buenos Aires: Amorrortu, 1988. GARCIA-Roza, L. A. Acaso e repetição em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. K RIS, E. (1956c). The recovery of childhood memories in psychoanalisis . London: Study Child, 17. LACAN, J. (1964). O seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. _____ (1971-1972). ... Ou pior. 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