GOLPE_antologia-manifesto
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golpe ANTOLOG ANTOLOGIA-M LOGIA-MANIF MANIFESTO g ESTO golpe go organizadores ana rüsche carla kinzo lilian aquino stefanni marion -MA olpe ANTOLOGIA- ANIFESTO Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamaña | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juliana calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | mei oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | veronica stigger Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia- Não existe poesia depois do golpe. Não existe poesia atrás do golpe. Não há poesia que vá à frente do golpe. Não há poesia que nos proteja do golpe. A poesia não entra na fila do golpe como um pagador de contas atrasadas, a poesia não carrega o caixão da democracia num féretro infeliz puxado pelo golpe. A poesia não é uma oração pelo golpe. A poesia não é o cortejo, não é como flores no velório para tornar menos feia a morte. Não é ostentação, não é choro, não é conforto, não é jeito. E o golpe não é a morte. Porque a morte é mais digna que o golpe. A poesia não é sobre o golpe. A poesia não é sob o golpe. A poesia não faz explicar o golpe. Não é para suportar o golpe. A poesia não é o bálsamo que conforta os pés queimados do golpe sobre as brasas apagadas da democracia. Não existe poesia que ligue um cidadão ao golpe. Não existe poesia que permita pensar o golpe. Não há poesia para dialogar com o golpe. O golpe não é mensurável, o golpe não é incomensurável. A poesia não é uma medida do golpe. Nenhuma teoria da poesia é capaz de dar conta do golpe. Não é possível uma teoria do conhecimento do golpe. Uma filosofia política do golpe. Uma estética do golpe. O golpe não se explica na ciência, na medicina ou na botânica, na antropologia ou na psicologia, na geologia ou na física quântica, na cartomancia ou na leitura das mãos dos golpeados ou dos golpistas. A poesia não é a expressão que sobrevive ao golpe porque a ciência falhou em impedir o infarto, em ver a anatomia do golpe. É que a poesia não tem nada a ver com o golpe. O golpe não vê a poesia. O golpe aparece quando a poesia desaparece. O golpe está onde a poesia não se deu. É onde não há nudez. Não há poesia onde há golpe. A poesia não conversa com o golpe, a poesia não concorda, a poesia não sucumbe. A poesia não se perde, não se entrega, não se impõe, não entra em trabalho de parto pelo golpe. Não dá a mão em cumprimento amigável com o golpe. A poesia não morre por um golpe. Por quantos 7 golpes o golpe seja capaz de produzir. A poesia persiste e nos dá a mão com que escrevemos o texto, um texto que se lança como pedra contra as vidraças transparentes do golpe sempre pronto a impedir a vida para dar lugar a espectros. Não existe uma poética do golpe. Nenhuma elaboração do golpe é suficiente, nunca entenderemos o golpe, por mais que o golpe seja contra todos, seja contra nós, seja contra cada um. Sentimos o golpe sem saber onde ele se deu. Em que parte de nosso corpo a picada venenosa, que parede, a encosta, a pedra, que teto, que coice, que facada, que tiro, que soco intransponível. O golpe é grande, o golpe pode ser gigante. O tamanho do golpe é o da tristeza que ele causa. Mesmo que o golpe venha de fora, venha de baixo, venha de cima, venha pelas costas, o golpe atinge é dentro de cada um. No lugar onde somos, onde corpo e espírito nunca foram diferentes. A poesia pode ter apenas uma relação com o golpe. Não importa o tempo, não importa como, a relação que a poesia tem com o golpe é única: a poesia é contra o golpe. Não existe poesia depois do golpe. O que existe é a poesia contra o golpe. O golpe surge, a poesia se insurge. A poesia contra o golpe é o cuspe, a pedrada, o soco, o pontapé, o pneu em chamas, as vias impedidas, a greve geral. A poesia é o fora do texto para onde o texto olha a abrir com as armas perigosas da palavra a passagem para a vida revolucionária. 8 Marcia Tiburi é graduada em filosofia e artes e mestre e doutora em filosofia (UFRGS, 1999). Publicou diversos livros de filosofia, entre eles As mulheres e a filosofia” (Ed. Unisinos, 2002); Filosofia cinza: a melancolia e o corpo nas dobras da escrita (Escritos, 2004); Mulheres, filosofia ou coisas do gênero (EDUNISC, 2008); Filosofia em comum (Record, 2008); Filosofia brincante (Record, 2010); Olho de vidro (Record, 2011); Filosofia pop (Bregantini, 2011); Sociedade fissurada (Record, 2013); Filosofia prática: ética, vida cotidiana, vida virtual (Record, 2014). Publicou também romances: Magnólia (2005); A mulher de costas (2006); O manto (2009) e Era meu esse rosto (Record, 2012). É autora ainda dos livros Diálogo/desenho (2010), Diálogo/dança (2011), Diálogo/fotografia (2011), Diálogo/cinema (2013) e Diálogo/educação (2014), todos publicados pela editora Senac-SP. Em 2015 publicou Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record, 2015). É colunista da revista Cult. 9 ao estêvão ferraz e a todos os pequenos que nasceram durante a idealização e fechamento da antologia-manifesto. por certo, um dia serão grandes e irão se orgulhar de terem nascido numa época de lutas. Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo todos sabem as pessoas como todos os dias jantam guardam a louça, tomam café fumam conversam sob a lua urinam, transam, contam piadas falam sobre autopeças ou um lateral-direito de um time as pessoas escrevem artigos, publicam poemas, produzem chips e pneus fazem planos de viajar, tomar sol, mudar os móveis da casa as pessoas cuidam de seus filhos, prosperam, brigam pelo direito a uma vaga no estacionamento do shopping as pessoas se previnem, ou não, contra o HIV, o H1N1 e o aedes aegypti vejo daqui da janela os prédios em seus lugares, as casas em seus lugares os pés e as cabeças das pessoas nos seus mesmos respectivos lugares e alguém assobia na rua enquanto leva um cão para passear hoje e amanhã como dias quaisquer nascendo naturalmente de noites, madrugadas com a sacudida do sol ou a lufada gelada do vento as pessoas – mas maquinaram um golpe e o país vive neste exato momento 12 em estado de exceção os homens e as mulheres que eu vejo daqui não se espantam não cerram os dentes atônitos não sangram pelos olhos, não gritam continuam empurrando seu dia, saboreando seu silêncio ressonando o sono cínico (os sonsos essenciais de Clarice o que somos) na sala do apartamento esperando – a infâmia abateu o país? estamos vivos, inabaláveis, inamovíveis na firme rotina – a nação foi usurpada? o usurpador dorme tranquilo ou toma chope em Ipanema seguindo liso seu caminho o riso escarninho dos que maquinam golpes e golpeiam sorrindo sem nenhum ruído – a voz dos pobres dos pretos dos índios é divertida a voz do usurpado, banguela, mal fala divertida a voz do peão nordestino puta bicha bandido drogado sapata traveco morador de rua divertidos quando horrorizada, essa voz é divertida o ditador ri apanha o riso no ar é aplaudido 13 o ditador é esperto, sério, reto, engraçado divertido o salário mínimo do peão, a carteira de trabalho da empregada doméstica divertidos ingênuos, ridículos conduzindo jegues, pronunciando “conzinha” eles são, todos sabem disso, divertidos pra caramba o mundo não pode ter perdido toda sua graça, vejam só, o ditador comenta e ri é aplaudido ladrões craqueiros pedreiros favelados sapatas bichas lésbicas não são exatamente gente é diferente ser gente todo mundo sabe disso, está no ar ele ri o ditador fala em tortura é aplaudido fala em defesa da família da moralidade, do brasão com seu nome sobram aplausos “eles não são exatamente gente” afinal gente não se deixa levar gente não deixa barato olha isso: gente é menos engraçada desses aí, ó – dá dó mal sabem pegar elevador, escada rolante e obrigar-lhes a andar por bibliotecas, pegar avião, trem noturno na Europa é lamentável um desperdício dá dó, vergonha índio preto pobre 14 comem paçoca farinha feijão mandioca são acostumados todos sabem imploram esmolas são também espertos inventam traquitanas dão corres mas as mudanças se aproximam Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou alvissareiros dias tudo se encaixando novamente em seu perfeito lugar de origem coisa sagrada isso, gente: a sagrada família romana protegida da conversa encachaçada dos bolivianos a sagrada família livre da promiscuidade de mulheres que falam em direito e sabem que não são nem um pouco direitas todos sabem os índios os pretos as bichas os travecos 15 todos sabem não há golpe, nunca houve é só a vontade do mais forte. Adriano de Almeida é professor e pesquisador em literatura, autor do livro Entulhos e do blog não basta. Quer usar todas as letras possíveis para denunciar o GOLPE. 16 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo c Jornal do Brasil, 11 de maio de 2036. Por Alessandra Safra, São Paulo, 23h13 Vinte anos do manifesto A Greve do Ventre Encerraram-se há pouco os atos nas capitais do país sobre os vinte anos do manifesto A Greve do Ventre. Os movimentos sociais culminaram, nesta noite, na representação central das Mulheres em Luta e fizeram um balanço geral do que aconteceu nesses vinte anos pós-golpe de 2016. Embora tenham apurado os índices e impactos significativos do apoio positivo das mulheres à greve, não houve absolutamente nenhuma comemoração. As autoridades já buscam insistentemente dialogar, no entanto a decisão foi unânime: não haverá diálogo, o manifesto é inegociável. A questão central de A Greve do Ventre objetiva basicamente não gerar “escravos modernos”, de acordo com a inferência de que o sistema vigente transformou os seres humanos, e propõe assim uma nova ordem mundial com “direitos universais e ética prática no respeito à vida e ao meio ambiente, em toda plenitude e complexidade que isso implica”. O golpe das eleições “teocráticas” – e alguns estudiosos afirmam ter sido este o objetivo inicial da tomada de poder em 2016 – contou com a seguinte e bem-sucedida estrutura: 1) A mídia nativa engendrava os fatos, fazia uso de psicologia de manipulação das massas e repetia mentiras até torná-las verdades; 2) Grupos financiados inflamavam a população e falavam em nome dela; havia mercenários em todas as instituições. Além disso, políticos corrompidos e empresários corruptos geravam crimes implantando provas contra quem se opusesse à conspiração; 3) E, para finalizar o golpe, anunciavam processos jurídicos, via sentenças graves em que o oponente do regime era punido com prisão quase perpétua; sem defesa, já que não havia justiça. Tudo era vendido como natural e legal. 18 Neste cenário, o primeiro pastor foi eleito presidente. Desde então, o horror se sucedeu. A história registra desde a brutalidade nos campos de tratamento da sexualidade, que eram mantidos pelo governo teocrático com a finalidade de tratar os “distúrbios do pecado” – como informavam as propagandas estatais, a igualmente terrível legalização do “estupro dos maridos”, obrigados a seguir as leis de Deus e gerar muitos filhos em suas esposas, afinal “toda mulher com 18 anos ou mais precisa cumprir sua missão genitora, de forma ininterrupta, segundo a Vontade de Deus”. O inominável ocorreu também nos presídios femininos – muitos e lotados –, em que as primeiras a aderirem à Greve do Venw tre foram submetidas ao estupro para que a “lei de Deus fosse respeitada”. Após os atos das Mulheres em Fúria, que há cinco anos queimaram os meios de comunicação a serviço da ditadura teocrática capitalista, o manifesto A Greve do Ventre tornou-se o mais inquestionavelmente revolucionário ato da história, não só brasileira, mas de toda a humanidade, visto que diversas nações opressoras se afligem hoje com a possibilidade de o manifesto ser incorporado por mulheres insurgentes. Ale Safra (São Paulo/SP) é escritora, publicou Dedos não brocham (Draco, 2012). Participa de algumas antologias, como Geração em 140 caracteres (microcontos, Geração Editorial). Tem textos publicados em várias revistas eletrônicas e mantém sua página, Dedos Não brocham, ativa no Facebook. [dedosnaobrocham@ gmail.com] 19 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | Alessa Menezes é pernambucana, artista-educadora. Costuma sorrir quando é chamada de Maria Bonita. Pronta pra luta em tempos de golpe, acredita que o “ideal seria se não precisássemos lutar todos os dias pela causa feminina”. 21 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia “…Y asi van destruyendo el mundo, matando toda esperanza. Como estan secos y huecos, y ya no se acuerdan de cuando eran humanos, aniquilan todo sentimiento real con el cual se encuentren, todo latido de vida los molesta…” (Performer: Alessandra Cestac / Foto: Pedro Bigali) Los vampiros existen. Como hace mucho tiempo que están en este mundo, vida tras vida, han aprendido a mimetizarse con los hombres. Han aprendido a parecerse buenos y confiables. Han aprendido a disfrazarse de hombres casi a la perfección, casi porque cuando la luz del dia desaparace ellos no pueden evitar mostrarse tal como son. Sombrios, frios y sin corazón. Huyen de la oscuridad porque es ahi donde son desenmascarados, no porque ella los disguste. La oscuridad es su habitat, es donde se vuelven cada vez mas fuertes, mas cínicos, mas mónstruos. Se aprendieron muchos artilúgios para poder pasar como hombres de bien. Mienten porque no podrían decir la verdad, y como mienten dicen que otros nos mienten y si uno anda distraido les cree. Se aprendieron todas las palabras acertadas y empezaron a dar otros nombres a las situaciones, seduciendo con su oralidad, escondiendo sus intenciones. Y si uno anda dolido, desesperanzado, les cree ciegamente. Ellos no se alimentan de sangre como se piensa, se alimentan de la dignidad humana, chupan el alma, las ganas y la vida. Matan indirectamente, detras de leyes, de mandatos, de contratos y firmas. Los vampiros ocupan muchos cargos de poder, asi que tienen muchas maneras para que no los descubran y asi puedan seguir alimentandose libremente. Hay que reconocer que entre ellos hay un codigo muy fuerte y se cuidan entre ellos. Como precisan mucho mucho dinero para esconder su jodida condición de vampiro y su hambre insaciable no les importa de donde venga el billete, lo que importa es que venga. Y asi van destruyendo el mundo, matando toda esperanza. Como estan secos y huecos, y ya no se acuerdan de cuando eran humanos, aniquilan todo sentimiento real con el cual se encuentren, todo latido de vida los molesta. Los vampiros no van a parar hasta que el mundo deje de existir, porque saben que ya no pueden volver a ser humanos, les es imposible volver atrás, quieren que todos sufran porque estan arrepentidos y su deseo desmedido y su terrible envidia por volver a estar vivos los tortura dia a dia. (Veronica Cestac 13/05/16) 24 Alessandra e Veronica Cestac, irmãs, argentino/brasileiras, mimetizadas e construídas nessas duas culturas. Netas de artesãos, filhas de artistas plásticos, não são capazes de viver e enxergar o mundo fora de uma visão cheia de arte. Através da escritura, das fotos, do tear, vão fabricando e propondo um melhor lugar para se viver, sem pressa e com muita fé. 25 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | j Bom dia, Brasil Acordei com vontade de esfregar na sua cara minha viadagem, mas agora a polícia pega pesado e como entre o hospital e a cadeia nenhum é boa opção, desisti. Fui espiar a net e assim que conectei acionei o cronômetro, não dá pra ver de tudo ou acaba a franquia. Comecei com um pornô em baixa resolução (HD nem pensar!) aliás, tão baixa que não sabia se eram pessoas trepando ou um teste Rorschach. Depois, Face, estava tudo lindo, paz, amor e trechos do evangelho. Chamei um amigo no inbox e pedi que ligasse no fixo, whatsapp e celular nem pensar e as operadoras andam mais rápidas no corte do que a Revolução Francesa. Desliguei o note e olhei para o cronômetro, ainda rola uns dez minutos de Netflix, mas não direto, divididos até o fim do mês. O telefone tocou em seguida e temos um esquema, cada um fala cerca de três minutos, desliga e liga para o outro, assim o valor fica razoável para ambos. Ele me contou que andava subindo pelas paredes, mas com os novos planos, os aplicativos ficaram inviáveis e chat então nem pensar, cinemão e boite é coisa do passado, todos viraram templos, choramos nossas mágoas e nos despedimos. Precisava ir ao mercado e separei o dinheiro, cartões só para morte ou acidente. Vesti a roupa mais discreta e seguro de que nada estava afrontando, peguei a sacola e fui. Esperando o elevador encontro uma vizinha, mulher jovem que abandonou a carreira para cuidar do marido e filhos, pois agora mulher só trabalha mesmo como diarista, enfermeira, caixa e essas profissões em que um toque feminino é essencial, fora isso tem de ser recatada, cuidar do lar e ser a mulher literalmente atrás do homem. Ficamos num silêncio amargo, acho que mentalmente trocamos confissões. No elevador, descemos olhando 27 os números em contagem regressiva que para nós acabou há tempos. Nos separamos à rua. O mercado estava lotado e as filas quilométricas, compro meia dúzia de produtos que o dinheiro permite e vou pra fila, quarenta minutos depois saio do mercado com um sacolinha, sem troco, suor escorrendo pela testa e a certeza de que amanhã será um dia muito pior. Alexandre Willer Melo – Pode ser fantasia e deveria mesmo ser, caso não fosse algo tão próximo de nossa realidade atual, a eterna vigilância pegou há tempos no sono... 28 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli Parque Trianon essa sexta-feira henrique Montes saiu contente da faculdade. Foi andando pela Avenida Paulista com dois colegas – conversas, piadas, uma cerveja, o alívio de ter deixado para trás horas e dias em estado de seriedade, e aqui fora o céu azul das tardes majestosas de setembro, as bancas de revista, pessoas sorrindo. Demorou-se nas despedidas com os colegas, e, quando ficou só, caminhou um instante com o rosto meio tonto de quem não sabe bem o que fazer. Dezoito anos, a tarde azul e alheia, Henrique sentia o tempo apenas passar: era liberdade demais dentro dele, pois acreditava ter aprendido a viver sem sofrer ditaduras e golpes que ferissem sua juventude. – Foi um crime sem importância, um travesti assassinado. Mas o senhor desculpe a demora, detivemos muita gente. Henrique atravessou a Alameda Casabranca e não soube se continuava até a Rua Augusta ou se entrava no Parque Trianon. Gostava do parque por causa do silêncio repentino que se instala na Avenida Paulista, como se desafiasse à cidade. Estava bem concorrido nessa hora, não era o melhor momento, mas sempre haverá mais aventura no parque que nas galerias da avenida. Seria mais fácil uma boa conversa e um papo já era uma aventura, ver os caras na hora de afrouxar a gravata e descontrair-se já é aceder a aventuras minúsculas, no outro lado dessas vidas que Henrique via ao redor dele e nas quais sempre valerá a pena penetrar. – Cercamos todo o parque. Trouxemos seu filho porque ele não apresentou documentos. Não devia estar fazendo nada de bom naquele lugar, a juventude anda perdida. Henrique entrou pela aleia principal. Olhava para os homens, todos com caras escondidas atrás do rosto, caras ocultas que Henrique gostava de descobrir, as que se filtram pelas fissuras 30 frágeis do rosto: um olhar, um leve movimento do nariz, um lábio apertado, as caras que Henrique, aos dezoito anos, precisava possuir de alguma maneira. Passou frente ao Fauno e, como sempre, desviou o olhar: aquela estátua trazia azar, um rosto de pedra. Encontrou lugar num dos bancos antes da Alameda Santos. Sentou-se e aconteceu o que o irritava, que o jogo se invertesse e fossem os outros os que penetrassem pelas fissuras do seu rosto. Levantou-se e não hesitou: iria ao banheiro, o banheiro público – não era a primeira vez que o frequentava - que será sempre o lugar mais propício para essa espécie de magia que torna as caras brandas e inocultáveis depois de algum manuseio na braguilha, durante o qual o rosto ainda é de pedra, como o Fauno. – Sim, foi assassinado com uma navalha, atrás do colégio Dante Alighieri. Pensamos que seu filho era menor, por isso intimamos o senhor em Santos. Veja com que companhias anda seu filho. A coisa não demorou. O Indivíduo, de aliança no dedo e pasta na mão, fez o gesto – a cara ainda de Fauno – para que Henrique entrasse com ele na cabine. Quando saíram, tinham os rostos outra vez pétreos depois da viagem por caras transfiguradas, e da viagem só ficava o suor. Foi então quando Henrique viu o guarda do banheiro fazendo para os Faunos presentes o gesto solidário – pensava em dinheiro? – de avisar que saíssem rápido. “Sujou, chegou polícia”, disse um jovem, meio experiente, meio assustado. – Claro que seu filho não tem nada com o crime. Já sabemos que ele é estudante. Por isso o colocamos nessa sala com aquele outro que parece que é professor. Veremos que aulas vai dar a ele. Presos no camburão, além de Henrique Montes, iam duas travestis e um rapaz de vinte e cinco ou vinte e seis anos, músico de profissão, nascido no Uruguai. Ninguém falou. O silêncio das 31 travestis era um silencio profissional. O silêncio de Henrique era de surpresa. No rosto do quarto homem estava estampada a cara da humilhação. Alfredo Fressia é brasileiro e nasceu há 326 anos em Montevidéu, no Uruguai. Sempre foi torto, igual aqueles anjos de mediana elegância que viviam dentro dos poemas. Queimou incunábulos em Santos e folheou histórias da democracia de Péricles sentado na ágora de Éfeso. 32 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Mesó-crise consertá-lo-ei (não temos compromisso – com o erro) encantem-se com meu português castiço, esse mesmo: tão distante de vocês quanto a dignidade. apavorem-se com estas palavras feitas de hífens bem no meio: ninguém está aqui para esclarecer a que veio. Ana Elisa Ribeiro é mineira de Belo Horizonte, 40 anos, descontente com um país em que cultura e educação são sempre os primeiros pilares a serem golpeados. 34 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli dos fogos, a faca 1. essas águas tão mínimas, ainda sim, não cabem nesses dias; 2. amanhã não haverá lenha de todas as manhãs que ainda podemos ter é apenas hoje esse fogaréu; 3. estamos entre cavalos cegos é tudo o que há para ver: galopes galopes mesmo que nos digam que abaixo há somente pedais; 4. ternos cinzas, ternos azul petróleo, gravatas, gravatas; 5. escondam os rostos, não há mais mulheres escondam as sombras debaixo da tapeçaria disfarcem com lenços, há ratos em toda parte; 6. girar, girar, até desinfetar; 7. as primaveras estão encubadas nas retinas, à revelia elas erguem-se transparentes – pelo contágio; 8. nódoa, flancos, junho, carne solar; 9. só as flores e os incêndios podem ser legítimos e os sapatos sangue, só por sangue; 10.que tem escarpa; cortado a prumo à golpe frio como disse o Herberto, é amargo o coração do poema. Ana Estaregui vive e trabalha em São Paulo. Em tempos mais sombrios, tenta sempre se lembrar de que “a arte é garantia de sanidade” / “a arte é garantia de sanidade” / “a arte é garantia de sanidade.” 36 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli sobre o céu que agora cai em nossas cabeças te digo, um golpe não abolirá o acaso não abolirá a sorte, a má fortuna e as flores tamo aqui na mágica do embuste de ficar em pé como pedra de gelo ao sol de sacudir a poeira, de segurar a água com a peneira te digo, aqui não é lugar pra principiante se não guenta, não desce não assanha o formigueiro se o céu cai a gente fica Ana Rüsche sempre tenta estar nas ruas escutando. Nem sempre dá certo. Tem dias em que o assombro é tanto que se refugia nos fones de ouvido. Sonhos bonitos também dão medo. 38 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | ju André Dahmer é carioca do ano de 1974. Republicano, aprecia golpes em campeonatos de judô. Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli André Vallias é poeta, foi contra o desmonte da gestão Gilberto Gil no MinC e é contra qualquer governo que construa Belo Monte. 43 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli Muralha A hora mais difícil era às cinco da tarde. A luz ainda entrava pelas paredes de vidro, mas já começávamos a espalhar os tatames pelo chão da casa. O tempo, então, ganhava uma estrutura metálica. Cada minuto se fincava no chão como uma grade, que se fechava às sete em ponto. Quando a fachada do condomínio era trancada, ficávamos deitados. – Mãe, a gente precisa mesmo desligar a luz agora? Ainda não tô ouvindo nada. – E eu não terminei de fazer as tarefas... O gestor de conhecimento avisou: se eu falhar em outra meta, vou ser rebaixado. Era absolutamente cansativo ouvir a argumentação dos dois todos os dias. Eu já havia transitado por uma gama de sensações diante do mesmo episódio. Nos primeiros meses, eu me sentia culpada. Talvez um pouco como a poeta americana, que há mais de um século tinha escrito algo sobre como uma criança mereceria mais do que um teto escuro e sem estrela. O fracasso dessa aspiração a tinha feito desistir da vida. Naquela época em que as pessoas escreviam e se matavam (Hoje não há mais tempo para o suicídio). Depois, o cansaço foi destruindo minha empatia. Eu respondia aos protestos como uma atriz que sabe eficientemente desempenhar seu papel. Dizia o que mais rapidamente fizesse acabar a conversa. E tentava dormir, antes que os disparos de balas e explosões, lá pela meia-noite, atingissem seu auge. Mesmo que com algumas interrupções – uma bomba que caia mais perto, um invasor que usava o megafone para ampliar seus grunhidos de ordem para a turba – os meninos dormiam. Eu não, o que restringia a minha possibilidade de sono ao período das oito às onze. No resto da noite, adormecer e acordar em intervalos curtos me deixavam não só fisicamente desfigurada, mas moralmente fraca. Diante do espelho, uma estranha ia surgindo. Pálpebras roxas, íris pardacentas transformavam os olhos – antes janelas – em 45 abismo escuro. E pouco a pouco fui odiando cada vez mais tudo o que me sobressaltasse. As perguntas impertinentes das crianças. Os risos ocasionais dos vizinhos. A população que diariamente insistia em atacar e saquear o condomínio, relinchando agudamente quando encontrava a morte diante dos nossos muros. Eu precisava reencontrar algo que rompesse com essa sensação de aprisionamento. Talvez voltar a sonhar. Mas nesses dias difíceis, meu único alento era A Guarda Unificada com seus cantos de guerra e pés marchando ordenadamente. Andréa Catrópa, desde sua primeira foto oficial, quando fez três anos, estava brava. A cara feia só piorou nos últimos meses, mas, sozinha, não assusta. Acredita que é preciso união para levantar uma enorme carranca contra quem dá como certa a vitória das leis de mercado sobre os direitos humanos. 46 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul – Deixa ver tua boca. Nico abriu e revelou uma amígdala inflamada. – Tizica, pega um mato pra chá que ele tá com dor de garganta. Amanhã ele começa no café – ordenou Geraldo. Tizica cuidava da casa e tirava o que podia de uma espiga de milho: angu, fogo, papel de tabaco, óleo, curau. Tratou de Nico com uma erva qualquer, fingiu dar a ele o unguento certo. Deixou que a garganta inflamasse até um limite possível, assim ele não trabalharia debaixo de sol. Tizica levava bolo para o quarto e especulava Nico. – Como ficou o corpo da tua mãe? A empregada não descansava desde a chegada do menino, numa manhã foi ter com o patrão. – Vou ficar com o Nico. – Ser teu filho vai mudar nada, boto ele pra trabalhar do mesmo jeito. Amanhã ele vai ajudar Osório pentear o café no terreiro. Dia seguinte, Tizica veio dizer que o garoto estava febril, que daquele jeito não ia render, nem adiantava, ia dar mais trabalho. – Nico já perdeu uma mãe. Na tua idade, não demora ele perde outra – respondeu Geraldo. Os dias correram, Nico levava para o cafezal o almoço dos trabalhadores. A febre se mantinha, vestígios do raio ficaram nos olhos, cintilando. Numa madrugada, levantou-se e foi à cozinha, a lenha em brasa deu um halo vermelho ao menino, os sabugos de milho estalavam no calor do fogão, o filtro de barro era seco e vazio. – Vai deitar, moleque – disse Tizica de camisola. Ao encostar nele percebeu a febre, mais um pouco matava as enzimas que transformam farinha de trigo em célula humana. Foi à cisterna puxar um balde com água. Levou com ela o garoto, que sorveu o frio madrigal. Molhou a nuca, os braços, testa, por fim todo o balde pelo corpo magro. Levantou a camisa dele, deixando o pulmão tomar raios lunares. – Vai te esfriar. 48 Tizica ouviu barulho no mato, podia ser lobo indo sondar galinhas. Fosse, Geraldo sairia com a espingarda. Questão de minuto e o patrão engatilhou no alpendre. Não viu os dois no terreiro, Nico adormeceu no colo de Tizica, ela estava sentada, imóvel. O barulho se aproximou, Nico gritou com o tiro. O lobo caiu perto das cebolinhas. Trecho de Os Malaquias, romance vencedor do Prêmio Saramago, publicado em Israel, França, Itália, Alemanha, Romênia, Portugal, Suécia e Argentina. Andréa del Fuego nasceu em São Paulo. A literatura foi a maior descoberta da sua vida, pois tem por certo que ela é um software que gera paisagens, mapas, direções. Mais ainda, acredita que literatura é resistência porque ela mesma não se conforma com a gramática, e, mesmo quando se conforma, afronta e revela. 49 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Tô morrendo de vergonha do Brasil Acabei de ver aquele apartamento da Odebrecht, amor! Acho que dá pra pagar em 20 anos. Eu não apoiei o golpe. Ah, não vamos no mercadinho, não... Bora num supermercado maior... tem mais opções de marcas. Eu não apoiei o golpe. Não dá pra colocar ele na escola pública, baby. Que tipo de formação ele vai ter? Eu não apoiei o golpe. Não esquece de pagar o plano de saúde, amor. Eu não apoiei o golpe. No whatsapp: linda, compra óleo de soja, por favor. Eu não apoiei o golpe. Como esse povo tem coragem de apoiar este golpe? Pelo amor de Deus, que gente burra! Será que eles não estudam? Pois, é. O povo brasileiro é muito ignorante, e a direita só pensa no lucro. Aliás, você viu meu post sobre isso no Facebook? Anita Deak acha que no fundo, bem no fundo, pode ser uma golpista por tabela. Cuidado com ela! 51 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | ju minhas palavras batem nas paredes alguém em casa? quais são as dúvidas maiores diante da porta fechada diante de um muro só teríamos de perguntar como abatê-lo como fazê-lo esses cacos ruínas de uma velha divisão hoje nada é partido ao meio nada além de uma mesma ordem mesma história de todos alguém em casa? alguém que nos ouça quando gritamos descalços no corredor com os cabelos molhados alguém nos ouvindo? minhas palavras batem nas paredes vazias ouço o eco das minhas palavras o golpe no vazio as dúvidas maiores diante de um muro a única coisa a fazer abatê-lo mas as palavras ecoam no vazio elas mesmas vazias golpes sem sentido se o sentido é aquilo que importa elas perdem isto: aquilo que importa perdem se perdem sem sentido em um mundo tornado único em um mundo que contempla ruínas mas alguma coisa havia antes abater um muro arrombar a porta fechada um mundo esperava por detrás hoje as palavras batem nas paredes batem golpeiam o oco das paredes e alguém ainda poderia ouvir? Que peut-on contre um mur sinon l’abattre? Edmond Jabès Annita Costa Malufe, poeta e professora, nasceu em São Paulo em 1975. Tem medo das ditaduras silenciosas e dos microfascismos. Só vê saída na educação. 53 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Sem chão A faca nas costas Sem crime A faca nas costas Sem constituição A faca nas costas Sem presidenta A faca nas costas Sem legitimidade A faca nas costas Sem mulheres nos ministérios A faca nas costas Sem negros nos ministérios A faca nas costas Sem LGBTT a faca nas costas Sem MinC, sem direitos humanos, sem desenvolvimento agrário A faca nas costas Sem ganhar eleições A faca nas costas Sem plano de governo aprovado nas urnas A faca nas costas Sem direitos constitucionais inalienáveis A faca nas costas Sem investigações A faca nas costas Sem previdência A faca nas costas Sem SUS A faca nas costas Sem farmácia popular A faca nas costas Sem cotas, sem Prouni, sem Fies, a faca nas costas Sem Bolsa Família 55 A faca nas costas Sem comida na mesa a faca nas costas Sem fundo de garantia para trabalhadores domésticos A faca nas costas Sem pré-sal A faca nas costas Sem BRICS, sem Mercosul A faca nas costas Sem autonomia do FMI a faca nas costas Sem Reforma Política A faca nas costas Sem auditoria da divida pública A faca nas costas Sem reforma agrária A faca nas costas Sem democratização da mídia: A faca nas costas. Beatriz Seigner é cineasta e não consegue acreditar naquilo que estamos vivendo. 56 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli Bruna Beber nasceu em 1984, em Duque de Caxias (RJ), e vive em São Paulo. É poeta, publicou alguns livros e, claro, não reconhece Michel Temer como presidente. 58 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | j Blasfêmia de vermelho As cores, aquelas, que não se vestem mais. As cores, que não representam mais. As palavras, que são outras. As palavras agora são outras. Blasfemas. Blasfêmias. As palavras que lemos, as palavras vestidas de ordem e progresso, que não valem mais, nem valiam, nem nunca. As palavras que hoje. As palavras, que tomara sejam outras. Levante, contragolpe, ocupação, baderna, blasfêmia, canto, dança, artista, vagabundo, mulher. As palavras em uma bandeira, que devem ser outras, que deve ser outra. Uma bandeira que hoje. Uma bandeira que hoje é pano sujo, pano roto, pano puído e pútrido. Não da limpeza, não da terra, não do suor ou do gozo, mas da máscara, das máscaras, desses aí. Vocês sabem quem. Máscara mortuária, vestida em vida, vertida em privado. As bandeiras agora são outras, as que sempre foram, deveriam ter sido, voltarão a ser, já são, sempre. As bandeiras, nós as brandimos e estendemos com nossos corpos. As bandeiras, bandalheiras, blasfemas, elas são de sete tons, de mil e uma cores, elas têm estrelas e ferramentas e caveiras dos que morreram. Nossas bandeiras da dor e da luta. Nossas palavras de luta e de dor. A dor, que não dói, a dor que alimenta. A dor da tortura não dói no útero, a dor da doença não dói no corpo, a dor da injustiça não dói na pele. A dor do golpe dói na alma. Menos aos que venderam a alma, menos aos que não têm corpo. Menos aos que odeiam o corpo, menos aos que não sabem o que é o corpo, o corpo solto, o corpo sem nada, o corpo que dança. Agora, nada a temer. Nada a temer a quem não tem nada. Quem tem é que tem a temer. Quem tem a temer são eles, instalados no cadafalso, reinando no patíbulo, vivendo no purgatório, acuados pelo vomitório da geral. Mas eles não podem dizer a que vêm, eles estão sem palavras e eles as procuram em bandeiras rotas, puídas e pútridas. Eles não são capazes de dizer, eles não sabem dizer. Não sabem o que amam, não sabem dizer o que amam, não sabem dizer o que temem, mas eu sei. Eu sei o que eles temem. O que eles temem mesmo. O que eles temem mesmo é aquela mulher de vermelho. 60 Bruno Zeni, 41, tem uma filha de um 1 ano e meio, a Clara, e ama a Sílvia, com quem está há uma década. Este texto prosaico, inspirado em poesia (salve Angélica Freitas e Ricardo Aleixo!), é dedicado à presidenta de vermelho. 61 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli Camarada Don’Otoni, Já não sei mais o que fazer com nossa esquerda. A gente fala, fala, não é de hoje, mas quem quer parar de falar um pouco pra escutar? Lembra do que a Ana C. disse pra M. Cecília Fonseca? “Teve época que eu piamente acreditei que bastava ter opiniões de esquerda pra ser de esquerda. A ideologia vinha primeiro. É a política alucinatória”. Em março minha TL estava num surto coletivo, dividida entre 1937 e 1964. Ninguém parecia se dar conta de que não, estamos em 2016. Economia? Desonestidade intelectual é hoje nossa pior crise: assolando (dicunforça) o país desde junho de 2013. O que me faz lembrar do que o Mailer disse, que se “esses movimentos vão conseguir algum efeito político imediato (...) pode ser um efeito negativo”. No caso, acabou dando na eleição do Bush. OK, ele disse isso no século passado. Pelo visto ainda vale. Com certeza valeu em 2013. Espero que deixe de valer o quanto antes. Fato é: após o golpe constitucionalista não tivemos outra opção. O que não quer dizer que não possa piorar. Sabe, eu sei o que esperar da Globo. Eu sei o que esperar dos políticos. O que esperar do judiciário, da PM. Venho aprendendo o que esperar da esquerda com o passar dos anos, tendo sempre em mente: todo ser humano é um monstro em potencial. Vê bem, não se trata de picuinha com A ou B, esquerda caviar ou esquerda avatar, nem é hora de picuinha. Só acho que outras questões tão fundamentais pra além do iMediatismo das hashtags acabam ficando de lado. Fazer-se compreender a sutil diferença entre “coup” e “putsch” por exemplo. Pra talvez conseguir entender de vez no que aquela tormenta 63 polarizada pré-Temer deu: tanto direita quanto esquerda foram responsáveis pelo golpe. Judas deu seu beijo. Enforcou-se de tanto remorso na cadeia. Até quando vamos pensar que a direita é burra? Não é. Há quem confunda política com intelligenza. Há quem não tenha entendido nada sobre o Bessias, jogada estratégica de gênio. Não à toa, os cem anos de reclusão. Questão da mais pura lógica analítica. Dilma sabia estar sendo gravada. Não se trata de apelar pro método hipotéticodedutivo, ao contrário: maior oportunidade pro direito enfim largar mão de vez do positivismo. Onde já se viu, ordem? Importa, quando muito, o progresso. A questão primordial no entanto é: frente a esse Frankenstein sfeziano, “como recuperar a humildade sem cair na inferioridade? E como recuperar as pessoas que eu pisei nessa cavalgada das valquírias?” Como reverter essa onda reaça a tempo das eleições em outubro? Porque sim, temos “eleições” em outubro e outubro é logo ali. Nem quero pensar no desfecho desse desfile da Independência depois das não-Olimpíadas nesse Vermelho Agosto que mal começou. Até quando vamos rir dos Bolsonaro como rimos do Trump? O meme acordou. Já não nos bastava o gigante nessa terra sem João nem pé de feijão? Lembro da vez em que a gente viu aquele filme, “Contos da era de ouro”, sobre o regime do Ceausescu na Romênia, no quanto tu te empolgou com o que chamou de esquerda brinquedão. Talvez esteja na hora, Otoni, de assumirmos cada qual seu brinquedo chapéu mexicano. Atearmos fogo na aldeia espanhola do Tio Nelson e nos embrenharmos pelo que ainda sobra de floresta América Latina adentro sem pedir licença pra malária nem milico. 64 E que venham, porque hão de vir, os loucos anos 20. Atento y fuerte. Foco e risco. Porro y suerte. Nos vemos em breve, G. Ishak PS: O casamento segue nos vagões da clandestinidade, mas em bons trilhos. Beijos na Ninoca. Caco Ishak é escritor e pai da Malu, terrorista segundo o Estado e redige suas notas esteganográficas dos subterrâneos em http:// ciaocretini.org 65 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli verdamarelista ou a voz do comprimido xega de corrupisão! a Gente sente ódio da iguinorançia sabe que as polícias são pra defender o povo - e descer cacete nos vandalos que uma mulher no plan’Alto mesmo sem roubar, não presta a Gente sabe há mais de kinhentos anos que preto e pobre não tem vez num é, Gente? vamos lutar pelo nossos direitos em time que tá sempre ganhando não se méxi! Caco Pontes / é poeta brasilêro / sem ser ufanista / não dialoga / com (des)governo / golpista / nem teme(r) quem te adora / a própria morte. Site: http://www.cacopontes.net/ 67 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul uma certa distância no tempo simplifica as coisas permite que quase todo mundo diga o estado nazista cometeu crimes terríveis por exemplo embora numa sociedade mergulhada no regime nazista na máquina de propaganda nazista no projeto econômico nazista em 1938 digamos a frase o estado nazista comete crimes terríveis provavelmente fosse amplamente contestada a despeito das evidências * é claro que os nazistas foram derrotados o que simplifica as coisas o estado brasileiro cometeu crimes terríveis durante a guerra do paraguai digamos mas não há muito por que repetir por aí essa frase a despeito das evidências foi uma guerra menor somos um povo pacífico quem perdeu foi o paraguai * não é preciso pensar muito sobre o nazi-fascismo 69 para dizer o estado nazista cometeu crimes terríveis o que simplifica as coisas podemos reproduzir práticas do estado nazista digamos e a despeito das evidências seguir repetindo essa frase sem constrangimento * a ditadura militar brasileira cometeu crimes terríveis isso podemos repetir sem tanta contestação digamos mas seria melhor não falar muito mais do que isso a distância no tempo não é tão grande assim não é preciso esmiuçar esses crimes ou que ideias os alimentavam ou o que disso permanece - a despeito das evidências apenas essa frase já é plenamente satisfatória o que simplifica as coisas * não nos apressemos somos um povo pacífico talvez em alguns anos se possa repetir houve um golpe parlamentar-jurídico-midiático no brasil em 2016 sem que a frase cause incômodo a ninguém 70 digamos uma certa distância no tempo simplifica as coisas vamos evitar os verbos conjugados no presente a despeito das evidências Caetano Gotardo é cineasta, escreve e tenta cotidianamente olhar para as coisas sem negar nelas suas contradições e complexidades. 71 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Minha melhor amiga é uma mulher. Uma mulher me ensinou a meditar e a minha guia espiritual é uma mulher. Minha referência intelectual é uma mulher. Minha cineasta favorita é uma mulher. A pessoa que me ensinou a duvidar e não ter certezas de nada é uma mulher, assim como meu maior exemplo de quem muitas vezes transformou o mundo é uma mulher. Minhas melhores professoras foram e são mulheres. E estou atualmente perdidamente apaixonado por uma mulher. Não somente para mim, um país regido por homens ricos, brancos e criminosos é o cenário do maior pesadelo possível, pois não me identifico com esse universo, não me identifico com a cultura que proliferam - com seus sonhos, desejos e motivações. Não consigo nem ao menos estar próximo de seres como esses, covardes, que fogem da sua sombra como uma criança que não tem dimensão de nada e buscam através de um golpe acobertar a verdade que escancara suas misérias. Estou a cada dia tentando destruir os resquícios dessa educação que me assola por todos os lados e ao ver esse cenário político e lidar com um sentimento de derrota terrível. Terrível. Converso neste instante como uma mulher que me diz efusivamente que não devemos desistir e nem ao menos nos sentirmos culpados diante dessa situação, já que estamos em constante processo de luta por acreditar em mil formas de mudar o mundo. E para continuarmos a lutar, acreditar e tentar mudar o que for possível. Então, só me resta ouvir e erguer a cabeça. Caetano Grippo, cineasta, fotógrafo, montador. Busca desesperadamente formas de dizer que não compactua com esse horror. 73 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | ju grito a palavra como coisa dura cheia de pontas estatelada na parede tantas vezes atirada ao chão pisada a palavra seca partida ao meio cacos indecifráveis miúdos sílabas trincadas rascunhos tentando dizer desse tempo ou do que não há de durar como ela Carla Kinzo acredita, ainda, que a palavra possa refundar o mundo. 75 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia Glosa catanada bordoada cutilada mossa pisadura cortadura incisão gume corte intersecção ablação abscisão paço palácio poda pugilato pulsação taça tapona zurbada bernarda esborralhada délabrement débâcle bouleversement viravolta giravolta soçobro ura-naguê cambadela cambalhota sismo cataclismo varinha de fada quid pro quo recambó satrapismo cesarismo vexação 77 Mote “Potestatem volant, aesthetica manent” (O poder voa, a estética permanece.) Carol Rodrigues vive em São Paulo na urgência de um encantamento ágil, irrestrito e pós-racional. 78 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli Guia da semana. Marchar. Manchas que só saem com muito alvejante (mentira). Go. Marcar. Mancar passos em aços batidas de ódios (em óleos) antigos. Go! Selecionar. A culpa que cabe a cada cu cura quem ataca e (programa) impedimento ou linha-burra: Gol Vídeo Show Sessão da Tarde Vale a pena ver de novo Malhação: seu lugar no mundo Êta mundo Bom! Golpe 80 – É tarde, te deitas, aquietas aprenda, antes do sono-justoo silêncio dos inocentes. Charles Marlon: belo (há controvérsias), recatado (às vezes, dormindo) e do bar (informação inconteste). Poeta de Osasco, de esquerda, acha que o PT não é de esquerda, mas votou nele, pensa que golpe é golpe e é contra e não aceita o governo de Temer, que teme, mas não compactua. 81 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul a força das ruas sente esse tremor? é o ribombar do peso das pisadas determinadas a mudar o mundo, é a rua a reclamar, a chacoalhar ouve esse som? são os gritos de indignação das vozes abertas, é a rua a reclamar, a bradar percebe esse sol? é o reflexo do brilho da força da rua que acordou e que não parará de crescer os pés marcam o ritmo as gargantas retomam o ritmo e de nada valerão as baixezas pois nada é maior que a rua de nada adiantará a escuridão pois nada brilha mais do que a rua de nada adiantará a força ah, pois que força mais poderosa que o grito das ruas dizendo BASTA? Claudinei Vieira acredita que as palavras têm força e que a Poesia é uma tremenda arma. Considera-se um poeta armado que fornece as balas-poemas. Mas são as ruas que têm o poder. 83 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul três poemas dos cadernos bestiais hino à polícia Toca o terror – cabeças de arimãs reverberam féretros assanha-se histérica turba de behemoths damballas beherits capacetes visores escudos tonfas vidro moído ferro esturricado pneus incendiados entre balas de borracha rasgando rasgando vielas entrevértebras fantoches toscos fantoches-ferrabrás com fuzis automáticos de mira telescópica escarnecidos espectros em carros blindados para a contrainsurgência nas avenidas furiosas de meu próprio país. hino ao congresso nacional Cabeças à venda – corvos corcundas traficam trevas. antimídia vii (macumba poética) O Apresentador do Grande Telejornal sofre de terríveis dores estomacais. Tosse. É impotente. E peida muito. O Apresentador do Grande Telejornal tem dispneia paroxística noturna. É cardíaco. Asmático. Psicótico. O Apresentador do Grande Telejornal foi acometido de taquicardia supraventricular ou taquicardia patológica (há divergência entre os especialistas). É obeso. Diabético. Tem tremores nas mãos. O Apresentador do Grande Telejornal sofre de erisipela, 86 eritema ab igne, pênfigo e dermatite herpetiforme. O Apresentador do Grande Telejornal tem câncer no reto. Claudio Daniel, poeta e militante político, publicou, entre outros livros, os Cadernos bestiais volumes i e ii (Lumme Editor, 2015), nos quais faz uma alegoria crítico-poética do golpe de estado em curso no país, apresentando retratos satíricos de juízes, senadores, deputados, jornalistas, policiais, humoristas e outros setores envolvidos na deposição do governo legítimo e democrático da presidenta Dilma Rousseff. 87 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli VOU COMER SEU CORAÇÃO Porque seguimos sorrindo quando não está bom Porque continuamos fingindo com as luzes apagadas com as trilhas abafadas Porque ainda nos seguimos Deixa ser bonito Deixa ser mistério Deixa ser possível Passarinho não morre na janela Amarildo não dorme no chão A neguinha não dança na boleia Carnaval de gigante exportação Ostentação Deixa ser bonito Deixa ser mistério Deixa ser possível Dan Nakagawa é diretor da Cia Àtropical, cantor e compositor. 89 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul esses dias de guerra sangram meus olhos. essa fumaça. esse pecado. esse projeto de país. esse projétil. e tantas mãos projetam amarguras. esses dias de sangue molham meus olhos. nenhum ombro amigo. nenhum ombro, amigo. nenhum amigo. nenhum. ogum proteja, ogum. esses dias de barulho desafiam não meus sambas. bambeiam pecados. cuicam ideias. desritmia. meu coração tolo soluça em vão, ledo engano. es.s.es. d.ia.s d.e p.ro.tes.t.o.s e.sta.mp.ido.s p.or. to.d.os l.ad.os. silenciam júris silenciam justos. se lei ciam. poros há, pimentam, a falta que rosa faz. 91 ** acredite. não é de mudanças que falam os coros. acredite não. são de ecos que falam os hinos. jamais do canto dos nossos passos, jamais dos braços que se perdem e das vozes tortas destoadas. acredite não. são de enxofre esses slogans. acredite. não importa o que faz você feliz. é de flor e de sol, de estouro e carne, que se faz o vento a luz e até a tempestade e as ranhuras os rancinzas rezas e também os corvos e rancores. é de todo osso que me diz o silên cio. Daniel Minchoni não é ninguém até que se restabeleça a democracia. ou ao menos a anarquia. não acredita nessa cleptocracia. 92 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | ju Curso avançado de filosofia política. Tema de hoje: “O poder e as massas”. – Você nos enganou, você nos enganou! – Eu? Vocês é que se enganaram. – Não, nós acreditamos em você! – Mas eu não estava falando com vocês. Denise Bottmann, que acredita na ideia de bem e julga que defender o bem, hoje, é lutar contra o golpe em nosso país. 94 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | ju colheita Zalila, banco de praça, café em copo de plástico do Starbucks – queria sentir que a cidade era sua, que a praça era sua. Pensava. Naquele dia se dispôs a implicar com a palavra: e as palavras têm força mesmo? Começava a duvidar, toda vez que lia notícias bárbaras. Imaginava as últimas palavras que aquelas pessoas – e eram tantas – poderiam ter dito e de nada adiantaram: parem, por favor, não me machuquem! me deixem viver! eu tenho esse direito! fora, canalhas! roubaram meu dinheiro! eu te amo, não me deixe... Machucaram. Mataram. Tiraram direitos. Canalhas permanecem. O dinheiro, não mais viu. O amor foi embora, não mais voltou. Por que essas palavras gritadas, expectoradas nunca adiantaram? Zalila pensava. Pensava em hortaliças loiras, morenas, gorduchas ou magricelas, tristes hortaliças que ficavam contentes com alguns copos de cerveja, algumas fotos patéticas, com crianças para cuidar, com a missa no domingo, com o lar, a beleza e o recato. Divas das couves de flores brancas, Zalila as culpava – e se fechar às palavras poderia ser uma escolha? E escolher palavras como os japoneses chegaram ao país para inventar o pastel era uma escolha? Elas fugiam do interior da palavra. Escolhiam somente as prontas, aquelas. O que importava era a ordem e a segurança, com uma pitadinha de tristeza pelos maus tratos contra os animais. Pensava. Então se sentaram juntas, ao banco, uma garota e uma senhora miúda e frágil, mas de gestos enérgicos, de cabelos brancos e bem curtinhos; a menina, magra, cabelos longos, adolescente bonitinha, que poderia dizer minha mãe é uma hortaliça; meu pai é um pé de milho. A garota tinha no máximo quinze e a senhora, no mínimo setenta. A jovem abriu um tablet. Puseram-se a ler juntas um texto enorme, ocupava toda a tela do aparelho. Dói, sabia, vó? Pensar dói e ler essas coisas também, mas me sinto tão feliz por entender tudo, mesmo que doa... porque, quando dói e a gente entende, algo muda; nem sei explicar direito, 96 mas a professora disse que, se eu quiser, logo aprendo também a explicar. Você entende agora como eu, vovozinha, entende? A senhora fez que sim com os lábios finos, assim como toda ela se fazia fina e enérgica, embora agora compreendesse. A garota olhou-a como se fosse mais sábia que a velhice, mas com amor, aquele amor que muitos adolescentes sabem sentir com a vida toda. Zalila experimentou certa ternura; aquela cena de passado e futuro debruçando-se sobre palavras presentes começou a significar alguma coisa que podia chamar de esperança. Denise Sintani é professora e escritora. Formada pela Universidade de São Paulo, tem mestrado em literatura brasileira. Seu caminho é árduo e sua maior luta, como professora e escritora – e que lhe traz grandes e produtivos conflitos –, é justamente criar meios de fazer da palavra ferramenta do pensamento responsável, crítico, justo e humano. 97 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul a beleza ela não podia ter dado mole assim. de santa não tem nada. anda quase pelada depois reclama. pediu pra ser estuprada. se joana se tainá se priscila se vanessa se daiane, se uma dessas mulheres, que integram um corpo coletivo e feminino um corpo a cada onze minutos invadido e abusado, recuperar a voz e transformá-la em denúncia, talvez venha a se deparar com o número 5069/2013. maria era espancada por vinícius mas ouviu na fila do supermercado sobre um caso semelhante ao seu ouviu que a mulher é culpada sem dúvida a mulher tem culpa provoca o marido. aline ouviu joão contar bem alto aos amigos sobre o nojo do gosto do cheiro sobre o enorme nojo de chupar sua buceta mas leu que um terço dos homens é como joão e culpa a mulher tem culpa por não estar aparadinha. por não estar apertadinha não estar molhadinha por ser ou não ser mais novinha. a mulher é culpada sem dúvida tem culpa mas isso não vem ao caso, o golpe teve pouco a ver com aquela vaca que nem bolsonaro nem frota encarariam, aquela que joão luiz qualificou como uma insone sem erotismo, o golpe teve muito pouco a ver com dilmanta ser mulher. além do mais. o adesivo de dilma com pernas abertas colado nos tanques de gasolina dos carros o adesivo que remetia à nossa primeira presidenta sendo perfurada foi ideia de uma mulher. além do mais. a capa da revista na qual dilma aparenta ser louca, mais uma diagnosticada histérica mais uma desequilibrada, foi ideia de uma mulher. além do mais. para cada feminista há um espelho feminino em forma e idade batendo panela no prédio em frente ou gritando no cortiço ao lado que aquela é mal comida aquela é mal amada e não tem a menor condição de governar um país. a voz da mulher que confeccionou o adesivo a voz da idealizadora da capa da revista a voz de um espelho feminino que papagaia “dilma mal comida dilma mal amada” é uma voz que estupra mas antes uma voz que no berço uma voz que no útero foi estuprada. desde que nascem mulheres sofrem golpes são golpeadas às vezes só sobrevivem golpeando outras mulhe- 99 res que golpeiam novas mulheres que seguem se arrastando sob o peso de terem a culpa são as culpadas. toda joana toda tainá toda priscila toda vanessa toda daiane sente que o estupro antecedeu o coito, toda mulher que foi ou não a uma DEAM sente a violação da própria voz. não há beleza no ato de a pequena sereia sacrificar sua voz para estar ao lado do homem-príncipe, não há beleza na banditocracia dos homens brancos que sitiaram a câmara e os ministérios; conhecer o golpe pela rede globo é conhecer o conto de andersen pela disney. há beleza em se desgrenhar na batalha pela restituição da própria voz e as das pequenas sereias ao nosso lado, há beleza em se desgrenhar na batalha pela sororidade com mulheres cujas vozes estupram por terem sido estupradas; há beleza em se desgrenhar para combater o golpe ao começar por combater um golpe muito mais primitivo de que a-mulher-tem culpa-a-mulher-é-a-culpada. Diana de Hollanda, escritora e diretora teatral, enxerga o ilegítimo governo de temer como a mais realista versão dos 120 dias de sodoma, de marquês de sade. quando o tema é política, diana pensa em representatividade igualitária de gênero e raça. 100 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul dia sim, tinha esperança dia não, desacreditava dia sim, tinha paciência para ser eloquente dia não, não havia paciência que chegasse dia sim, ignorava o que acontecia dia não, transbordava de tristeza dia sim, achou força nas ruas dia não, tinha dúvidas entre realidade e ficção dia não, em casa sentia derrota dia não, sua forma de andar não era a mesma dia sim, se achou novamente nas ruas dia sim, democracia dia não, sem ela dia sim e dia não, trazia no coração na mente na alma no corpo as marcas do golpe que deram nela dia sim e dia não, foi às ruas dia sim e dia não, se fortaleceu dia sim e dia não, estava pronto para lutar pelo que acredita 102 corações vermelhos amam sem temer Diego Carvalho Sá expressa o que sente, o que pensa e o que procura entender em letras, cinema e outras artes. Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia duplo cego i estes prédios crescem por tropismo caçando buracos nas nuvens feito buracos de bala sob o sol nenhuma reza fura a asfixia nunca termina de matar uma vela de pano, garrafa e gasolina um murmúrio: j’accuse! ii é quando no sangue das cobaias também as cápsulas de placebo vertem veneno (e) não se distingue o urro dos coturnos da tropa de choque e os jornais moídos onde o rei está posto o rato está nu 106 e você também acusa o golpe Diego Vinhas nasceu em Fortaleza (CE) em 1980. Publicou Primeiro as coisas morrem (2004), Nenhum nome onde morar (2014), ambos pela 7Letras (RJ). Acredita em microrrevoluções, e não muito mais. 107 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia “ratos brotando dos bueiros” foi escrito em 15 de março de 2015, quando já se notava nas multidões verdamarelas de Integralistas, exumados de suas tumbas, o perigo anunciado de um Golpe de Estado: & uma vez que tudo o que vem de uma boa bola de cristal não tem prazo de validade, o poema de ação segue abaixo, até porque agora se aplica àqueles que assaltaram o poder imitando o exemplo de 1964, & já fazem a destruição milagrosa de 30 anos de democracia em 7 dias de Golpe. Gaudete, D. ratos brotando dos bueiros você sabe bem que eles são roedores, e que também são infectos: os ratos, eles se escondem até que então saem, ratos dos grandes, com muita energia nervosa, cheios de peste nas presas, furtivos não mais, animais regressivos, os sempre velhos covardes de esgoto na espessa violência de gangue: a sujeira em suas línguas de ralo ergue os ratos do escuro e antigo buraco; não vivem de resto ou rasteiro: reis na ratice, nos golpes, & ditam as regras de ratos pra todo mundo que seja um bom rato como eles — às vezes, num país inteiro, & às vezes depois de fugir por uns bons 30 anos. quem não é rato, cuidado: pois há ratos brotando dos bueiros. Dirceu Villa é poeta, tradutor &, segundo o Ministro da Injustiça, um terrorista, porque está se manifestando, por escrito & nas ruas, contra o Golpe de Estado que pôs o golpista Michel Temer no poder. 109 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli este gostoso beijo da faca I scratch your back And you’ll knife mine (J. L) i. De minha parte, já beijei todas as bocas de Judas que pude com a mesma lascívia de novo e no novo E cada saliva me pareceu um voto de amor à causa Qual causa, qual nada Ninguém te ama quando se está acima /ou/ muito debaixo [Cold turkey has got me on the run] Pra que crer? No que ser? Babel fala ora a mesma língua 111 Nheegatu esperanta, Língua falha, procissão Walking deadengajada Voto sim Voto não Pelo leite das tetas /pus de filhotes/, pela porra dos paus: Voto sim[...] Voto não [...] Pelesbór ni amálgama Pelo fim [...] Voto enfim: Digo sim, quero sim, quero não. ii. Que tudo se foda disse ela e se fodeu toda disse o poeta que artistalgum vai atrás por medo ou prudência por medo ou cautela por medo ou medo de o medo cristalizar no fundo da dita-cuja que sela a corda vocal condena forte e condena morte demo iii. Nem onde se cava liberdade se livra do estribo: Cobra comendo cobra 112 Poeta fodendo poesia Boicote de democrata: Falange, burocracia Duvito Ergo sum Édito, (diga-se): Titã sou Sentido a quem cipreste Não sou poeta, não sou eleitor. Meu nulo ser exaspera /-/ te iv. Nadapologia Tudofôda Cerosão Terrengula Qualseja Ifim v. Desta terra, donde canta um sabiá 113 morto, quero um machado na raiz carcomida em cupim. Na base duma palmeira putrefeita, no contorno do mapa, de Uruguaiana a Rio Branco vi. Mostra-me tua cara cazuza, latrina musa vii. Todas as ilusões me caibam no peito Todas as ilusões currem o pleito Bandidos sodomizem minha segunda-feira que a mim e ao meu povo urge o grito da mais baixa capitulação. Que é mentira a máxima: “Plantando, tudo dá” Que a falência vem de dentro, que mesquinha é a pátria chã. viii. Que apolítica é a paragem 114 final onde devo repousar meu intelectuálibintransigênte que, de traidor, basta-me existir. E vou me vestir com o desvelo do pouco que me traz o fenômeno vida ix. Carótida rota em meio aos votos por esse ou aquele [...] prefiro extinção: Mais segura e preventiva x. De mais a mais: Dor não se veta A legítima defesa Da morte almejada Meu sonho feliz Meu porto seguro Meu golpe certeiro Meu último alento Donny Correia é um poeta e cineasta desgostoso com tudo e que desconfia que o mundo acabou mesmo em 2012 e o que vemos são os escombros. Apolítico, mas não ingênuo, acreditou num novo pleito, que não veio. 115 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli kólaphos As palavras já não significam nada. Isso é duro para um poeta. Concreto para as pessoas em geral. As palavras que interessam derivam do grego. Politeia é o papel dos cidadãos no Estado. Qual Estado? Quais cidadãos? Anacronismo é nossa vivência cotidiana. Economia já não significa ‘administração da casa’. O sentido original dos vocábulos foram estuprados. São milhares a cada segundo. Os princípios das melhores ações, ignorados. Eliminados do horizonte a cada não reflexão. O cinismo gera mais sofrimento aos que já sofrem. Bofetadas nos restos mortais de algum sentido, de alguma dignidade. Todos são ignorados. O corpo é ignorado. O ser é ignorado. O futuro é ignorado. E assim, por sermos ignorados nos tornamos ignorantes. Alienação é uma palavra 117 chique demais para o momento. Há milhares de acepções para o estado das coisas. Choque. Pancada. Incisão. Lesão. Murro. Ardil. Trama. Rombo. Abalo. Rasgo. Lance. Desgraça. Mas somos sobreviventes. Nos acostumamos com as bombas e com Auschwitz. Somos piores do que as baratas, porque somos mortais. Elas parecem estar mais bem equipadas do que nós. Conseguem ficar até um mês sem comer nada, semanas sem ingerir água. E ainda são capazes de sobreviver por até outro mês sem a cabeça. As estruturas vitais ficam espalhadas pelo abdômen, incluindo as da respiração. Caso percam a cabeça, no sentido literal, um gânglio nervoso no tórax coordena seus movimentos, permitindo que fujam das ameaças. Como o seu corpo tem um revestimento 118 de células sensíveis à luz, elas ainda podem localizar e correr para as sombras a fim de se proteger. Nós, nem isso. Pois já estamos na sombra. E nada, nem mais as palavras nos protegerão. Mas, ainda sim, somos piores do que as baratas. E sobreviveremos porque somos mortais. Pobres mortais. Edson Cruz é poeta e budista. Acredita na vida e, apesar de tudo, no ser humano. Acreditar também é uma escolha e exerce-a, às vezes, com muita convicção. 119 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia tudo é perigoso Era uma vez um tanque, muitos tanques, uma, tantas praças atravessadas. Esses tanques atropelaram o pato que, quatro anos antes, em 1960, cantava alegremente pelas cordas de João Gilberto. E suscitaram outro tipo de estrofe. Em 1969, cinco anos depois do golpe, Gal pedia atenção para as janelas no alto e o sangue sobre o chão em “Divino, Maravilhoso”, canção de Caetano e Gil. Divino, maravilhoso era estar atento e forte, sem tempo de temer a morte. A sangue quente. O sangue que correu nos porões do Dops. E parece que ainda não estancou. Muitos que envergam a bandeira da “Ordem e Progresso” não devem ainda saber pra que serviam os alicates. Mais de 50 anos depois, muita coisa que era da rua virou cenário de novela e maquete de plenário. E história não passa de matéria nada exata no irrespirável fundo da classe. As classes que não respiram. Caetano e Gil exilados em 1969, quando não havia mais “Alegria, Alegria”. Nessa música, de 1968, caras de presidentes e grandes beijos de amor na mesma estrofe e o sol ainda nas bancas de revista. Por que não seguir vivendo, amor? Porque a criança feia e morta de “Tropicália”, também de 1968, estende de novo a mão. Porque mesmo essa canção virou trilha sonora de novela. Em um país de exilados em seus próprios quintais. Brincam com patos de borracha que revoam sem João Gilberto, sem bossa alguma. “Sobre a cabeça os aviões.” Olhos em forma de x, os olhos dos mortos, zumbis da cor da camisa de futebol. Esses patos estampam anúncios nas revistas que enchem as bancas de escuridão e de caras de presidente sem beijos de amor para legitimá-las. 121 Tudo é perigoso, como cantava a Gal. Das janelas no alto ouvimos a artilharia das panelas. O que ecoa no Planalto é artilharia pesada. A sangue frio. Mas ainda há estudantes, como em 1968. Há os olhos firmes desses jovens ocupando escolas. O sangue nos olhos desses jovens. “Você vem? Quantos anos você tem?” Vem. “Não temos tempo de temer a morte.” Temer. A morte. A simbologia além da mera coincidência. Não há coincidências. É preciso ferver todo sangue de barata. Negar o sangue ao vampiro. Se era uma vez, que não seja de novo, mais de 50 anos, muitas canções e tanto sangue derramado depois. Edson Valente escutou “Divino, Maravilhoso” pela primeira vez aos 8 anos. Não parou mais de ouvir a música e hoje tem vontade de pintar as ruas com o batom vermelho da Gal. 122 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Para L. Ouço dizer que há tiroteio ao alcance do nosso corpo. É a revolução? o amor? (Drummond) conquanto seja ano do golpe, a galope vem meu plano: amo é claro que choro, no entanto e pergunto: – o que pode o amor contra o poder? – o amor, este gesto mínimo, mas único movimento legítimo – Eduardo Lacerda realmente acredita que poderemos mudar o mundo (para melhor). 124 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia Às vezes um botão. O barro ainda não se dissolveu e, no entanto, já vemos outra cor se misturar à correnteza. Sangue. As paredes, desta vez, não caem. Vemos os usurpadores tomarem o castelo, hastearem bandeira feita com velhos trapos, enquanto a mulher ainda está presa na torre mais alta. Ela não é uma princesa, mas também está acorrentada. As torres não caem. Já vimos isso antes na tv. Dias depois, furacões revelam a masmorra escondida no Ministério. E uma cela de tortura é exibida pelo Canal7, enquanto uma testemunha anônima relata os detalhes. Chove prata em seus bolsos. No congresso, uma nuvem de gafanhotos tenta deslegitimar a lista de delações como documento histórico. Alguns juízes prometem pensar com carinho sobre o assunto. Um jogo de boliche é televisionado. E o vencedor patrocinado por uma marca de inseticida, injeta frases da bíblia em sua página web, antes de estender os braços na janela. Outra bomba é lançada. O chorume produzido é enterrado em hectares de soja. Em poucos instantes, para encobrir a notícia, jornais mostram com exclusividade o espólio do rosto do atual governante. Litros de botox são colocados às pressas e inauguram um novo jardim vertical. Frigideiras de inox aplaudem desde seus armários de madeira envelhecida no óleo de peroba. Após a quebra do grampeador, e do envio de 16G de material tóxico aos bancos suíços, algumas toalhas brancas são estiradas à lona. Camaleões e percevejos se unem aos gafanhotos. Em assembleia, decidem colar chicletes em seus olhos, mesmo a poucos dias das olimpíadas. Um sacrifício diante das últimas emissões. Bem longe das câmeras, barricadas escolares se armam de artefatos culturais. Indígenas se dirigem ao castelo, determinados a tecer com suas próprias mãos o amanhã. A comunidade negra se assenhoreia do que sempre lhe pertenceu. Uma pilha de livros é montada pela brigada LGBT, que resgata a mulher da torre, mais viva do que nunca. Diante da conjuntura, as minorias que, somadas, suspeitam ser mais de 80% da população, desabitam a metanarrativa ficcional e a transformam em fuzis de aniquilamento da ignorância. Cílios bastardos e peda- 126 ços de pastas tutti-frutti caem constrangidos. Trabalhadores que, desde a madrugada, economizam até o ar que respiram, inflam o peito, alvissareiros. Nomeados os bois, é instaurada, finalmente, a construção coletiva da democracia dos sonhos. Ellen Maria acredita, assim como Alberto Laiseca, que um poema serve para não estar só. Apesar da seriedade posta, suas palavras favoritas são rio e ria. 127 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Vera de Freitas (fragmento) A mão da diretora de escola pública de favela que, tantas vezes, meteu o balde embaixo da torneira, o mau-humor na cara, a faxineira com o menorzinho doente outra vez e alguém tem de dar um jeito nos banheiros dos meninos. Então se revezavam, os professores. E o masculino no substantivo aqui é um pudor da língua. As professoras. Não que não tivesse homem, porque tinha. Mas não que se dispusessem a ajudar. Mas ela então limpa. Nos rótulos e na memória estão o amarelo cromo, o jaune transparent vert, o ivory black. Cada um dizendo: é só apertar e a beleza vem. Vera teve uma bolsa do governo, estudou depois de velha por causa dessa bolsa o que sempre quis estudar, a pintura. Mas passou e ela limpa os tubos já quase secos. E depois torna a guardar na caixa de madeira que o marido fez para ela. E que é onde está também a faquinha do tableau aux fromages da época da bolsa, da galeria de arte, da vernissage, e mais uma chave de fenda, duas espátulas, umas forminhas de empada - quem faz empada hoje em dia? - e que ela usa, uma só, embora sejam uma dúzia, para juntar o bleu phtalo vert com o óleo de linhaça, quando então ele fica tão transparente e tão lindo que dá vontade de cobrir o mundo com ele. Ela ainda deve fazer isso de vez em quando. Pega a forminha, mistura e cobre o mundo. Depois vê, acha falso, limpa com o paninho, deixando só a promessa, o que poderia ser, caso não houvesse o corte cinza, esse sempre lá, o do Viaduto da Mangueira, o corte cortando tudo e ela do lado de cá. Mas ela faz. Olha por uns dias, uma vontade enorme de a qualquer hora do dia só olhar. Depois apaga para tornar a cobri-la, objetos grandes difíceis de guardar, e para quê? Mas põe. Primeiro a base, um branco sujo. Depois um azul cobalto, uma siena queimada. Para que, outra vez, mesmo que por só uns dias, as manchas tornem a falar de uma possibilidade. E aí ela para, guarda tudo, vai cuidar da vizinha, limpar a calçada, tomar o café que o marido faz. Vai olhar o viaduto, o corte 129 de tudo, e os carros. E ela olha com a indiferença de quem os conhece muito bem. E isso era o que eu queria aprender. Como não acreditar completamente, mesmo enquanto está bom. Elvira Vigna não gosta de gente esperta há 68 anos. Foi passada pra trás em vários concursos e programas culturais. PhD em semiótica de rua: acredita que pedido de ‘paz’ é medo de levar troco. 130 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | jul Um segundo antes do fim Ele para, atento, à beira do precipício. Para um segundo antes do fim, em tempo de ver a manada caindo. Os animais desabam uns sobre os outros. Empurram uns aos outros. Agridem uns aos outros, e uns com os outros vão caindo. Despencam como peças interligadas a formar um animal maior, irracional, histriônico e indefinido. Barrigas rasgadas dos chifres, pés quebrados dos coices, olhos cegos do ódio vazio, vão caindo. Mas ele para. Não sabe dizer o que o levou a parar, mas para. Primeiro um pé, depois o outro. Tenta se firmar contra a terra, quebrar o fluxo que o empurra em direção à morte. Tenta gritar à manada que foi dali que eles vieram, muito tempo atrás, e que só há dor e tristeza no abismo. Grita até que a garganta inche e a voz desapareça, até que os chifres lhe doam na cabeça. Mas o barulho é alto demais. Se sente fraco. Sente vontade de fechar os olhos e se deixar levar, o corpo arrastado pelos outros animais que sequer o enxergam no caminho. Talvez fosse mais fácil, enfim, encerrar a luta e se jogar no precipício. Mas esse é um talvez que se recusa a aceitar. Assim, passado o instante de fraqueza, ele para. Com a força que lhe resta, se joga para o lado, aos encontrões. Acerta um ombro, aproveita uma nesga de espaço, limpa do rosto o suor e recomeça tudo outra vez. Manobra como pode e como não pode, sabendo que sua vida depende disso, e consegue escapar daquele caudal de morte. Ofegante, ele para. As pernas tremem, o corpo dói, mas está vivo. Se pergunta o que o fez parar, ajoelhado, exaurido, um resto de si. A percepção do abismo, talvez. Talvez o cheiro de sangue, de barro, de bosta. Talvez o inverso disso. O traço de ar puro acima das cabeças, dos cornos retorcidos, lembrando que sim, existe outro caminho. 132 E por desejar esse caminho, ele para. Fica de pé, se vira para trás. Sem voz, se limita a olhá-los nos fundos dos olhos. Pode ser que convença um deles, quem sabe dois, dez. Ou talvez ninguém. O importante é que ele para, atento, à beira do precipício. Para um segundo antes do fim, em tempo de ver a manada caindo. Eric Novello é autor e tradutor. Não bate palma pra maluco dançar, nem dá audiência pra close errado. Acredita que, apesar de tudo, ainda temos solução. E que o mundo pode ser um lugar menos babaca e careta. 133 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello |fabiana faleiros |flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli Eu sou a Lady Incentivo. Falo sobre amor e dinheiro. Tenho dito que mulher também tem cu demais, mulher também tem cu atrás e que quero todo o meu dinheiro de volta. O dinheiro é público e a buceta é minha. Não sou da lei. Estou na rua, em palcos que não existem. Não trouxemos o projeto e nem somos o proponente. Você me ouve. Eu falo muito. Eu escuto. Eu sou o tempo. Sou as horas que ganhei, o sono. Gosto de usar o microfone para sair do corpo. Gosto de usar o microfone para ter outra voz. Para fazer sair do corpo dxs outrxs o que elxs dizem. Elxs dizem: JE SUIS jesus, JE SUIS você, JE SUIS meu corpo. Sou o que se ouve. E repito. A minha voz. E a sua. Não caio mais no buraco que se abre entre o palco e o público. As coisas são dos outrxs. Me levanto. Minhas mãos sustentam o corpo que estava no chão. Vou até o chão porque eu quero. Para ficar mais perto da terra que tem ferro. Assim como o sangue. 136 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamaña | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia Os criadores de baratas os criadores de baratas amam limpeza amam água sanitária pura ou diluída amam o cheiro das próprias mãos limpas os criadores de baratas detestam mau cheiro odores estranhos a sua íntima geografia jogam o desinfetante sobre o liso ladrilho os criadores de baratas amam as baratas adoram suas patas esculturais e delicadas idolatram as finas asas de fios em relevo os criadores de baratas vivem pelas baratas acocoram-se dia e noite pelas baratas adormecem e sonham com gordas baratas os criadores de baratas homens opiados com rostos petrificados e dedos untados no caldo que expele do sexo das baratas os criadores de baratas alimentam as baratas com a gordura de suas peles e das vísceras com o torrão ainda morno de suas fezes os criadores de baratas não têm nenhum lucro nenhum centavo do governo nem credenciais os criadores de baratas morrem sem perdão Flavio Caamaña é um trabalhador braçal e poeta nascido em Tamboril, desertão do Ceará. Vivenciou o auge da ditadura, a infâmia e a injustiça. No início dos anos noventa participou como voluntário em campanhas de apoio às vítimas da Aids. É autor do livro de poemas Aquedutos (Patuá, 2016). 138 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia ossos partidos Para Z. G. Cantá seja lá cumu fô Si a dô fô mais grandi qui o peito Cantá bem mais forte qui a dô [Gildes Bezerra] lança que atravessa o peito nessa terra não se canta são os olhos que no leito anoitecem a visão aqui tudo corre o sangue escorre mas o tempo não anda pássaro ferido sobre o peito emudecido faz-se rasgo e clarão vem a morte e não se vê, de ossos partidos, é mais uma vida na lida que não vale a ascensão faz escuro, eu já não canto só ouço uma viola dedilhar o coração que lá fora só a escuridão Francesca Cricelli nasceu no Brasil, ainda sob a ditadura, viveu na Itália durante as duas tragédias berlusconianas e a insurgência do movimento separatista e xenófobo lega-nord. Votou pela primeira vez aos 16 na Malásia, na embaixada do Brasil. Continua lutando pela democracia, é contra o retrocesso dos direitos civis e trabalhistas, luta e resiste, todos os dias, pelos direitos das mulheres. 141 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli O Dezesseis Os golpes são vários, sórdidos, diários. Cochichos, calúnias, conchavos, difamação. O estado é de denúncia: vazias, premiadas, denúncias em promoção. Os golpes são muitos, rápidos, injustos. Desprezo, patíbulo, cadafalso, demissão. O estado é de alerta: todo cuidado, pouco cada vizinho, um espião. Os golpes são tantos ávidos, espantos. Desamor, desacordo, divórcio, derrisão. O estado é desespero: todo grito é mudo todo gesto, uma ilusão. São vários, muitos, tantos, mas o mais sórdido, rápido, ávido, é o golpe de estado. Frederico Barbosa, aos três anos, em 1964, viu sua casa no Recife cercada e invadida pelo exército, que buscava opositores ao golpe de 31 de março. Guarda marcas e medos. 143 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia De onde Fujo Para onde volto Últimas palavras De uma boca Escancarada: “Dói!” Na superfície Da folha em branco: Sangue No canto Do olho Roxo: Pranto Do fundo do poço Onde ela está: Tic tac tic tac O tempo é bomba Para quem vive Na sombra Tic tac tic tac Dentro dela O sangue Congela Tic tac tic tac Últimas palavras De uma boca Amordaçada: (não deu para entender - um grito abafado é mesmo uma coisa pavorosa) Tic tac tic tac Que dia é hoje? Que ano é hoje? Que tempo é hoje? 145 Ninguém mais vem Para ver Como ela está O coração ainda bate - Quase para Mas torna a bater Últimas palavras De uma boca Ressecada: (é um sopro quente E vivo! Realmente uma coisa curiosa) Taparam o poço Porque “vai que...” As pessoas andam Despreocupadas Ao redor da tumba As pessoas riem As pessoas gritam As pessoas bradam Mas quando aquietam Quando quase-morrem No sono-desespero À noite Em suas camas De espuma e bruma Elas ouvem Baixinho Entrando pelas frestas das janelas O sopro De uma boca Que nunca se cala: “De onde foges É para onde voltarás” E quando o sol nasce 146 Prometendo vida, Margarina E uma ponte Para o futuro Convém olhar para trás E ver as flores Pisoteadas Que ficaram no caminho E o corpo Que persiste Dentro do poço E que sopra O sopro Que ainda agita: Os lençóis As bandeiras As folhas As roupas Os papeis Os cabelos As árvores As casas E as bigornas de mil toneladas Gabriela Amaral Almeida é cineasta e reside em São Paulo. 147 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli depois de quinhentos anos de sinistra exploração a multidão começava a aprender a dizer não o patrão teve uma ideia pra tentar silenciá-la a chave da casa-grande fica agora com a senzala desde que não atrapalhe os negócios da fazenda não divida minha terra nem tribute minha renda que justiça não fizesse o salário não aumentasse por acaso não cismasse em fazer luta de classe a senzala prometeu que não ia comer nada ficaria trancadinha lá no quarto de empregada só que tinha aprendido a mentir com o patrão bastou chegar ao poder pra mudar a situação dentre os pobres os mais pobres ganharam uma ajudada quem antes não tinha nada tinha agora quase nada e o patrão até gostou de ver pobre no mercado comprando televisão tablet ar-condicionado mas o pobre tem mania de querer o que não tem bastou ter um dinheirinho 149 já quis estudar também quando viu queria tudo saúde salário terra o patrão ficou cabreiro mas assim você me ferra o chofer queria subir de elevador social as mulheres vejam só queriam ganhar igual a justiça investigava não importava quem fosse tua conta na suíça acabou-se o que era doce era só o que faltava puta falta de noção botar pobre na escola e milionário na prisão desse jeito, pessoal o país não vai pra frente não dá pra fazer justiça desse jeito impunemente o rico tomou de volta o que era seu de direito mulheres mandou pro lar negros tirou do pleito e cada qual no seu canto em cada canto uma dor tudo tomou seu lugar depois que o golpe passou mas o que eles ignoravam e o que o patrão esquecia é que a tal da liberdade é um negócio que vicia mas o que ninguém sabia e quem sabia estava mudo 150 é que o povo ganharia o morro o asfalto tudo agarrado no poder viciado igual crackudo Gregorio Duvivier tem a idade da democracia no Brasil e não quer morrer junto com ela. 151 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia sobre golpes e galopes i. o espaço o chão do outro é o mesmo chão do outro que também é o nosso mesmo chão apesar d’eu estar sem chão posso usar o chão do outro que é o nosso mesmo chão para expressar dramaticamente meu presente estado de estar sem chão ii. o tempo ao tempo, faço-me futuro mas presente me prende e restabeleço o laço com a terra: minha terra por ora, não queria que fosse mas é preciso estar presente e resistir aos mesmos erros pretéritos Gustavo Nagib não criou a luta. É apenas mais um que luta para que a vida deixe de ser uma luta injusta 153 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia Domingo Hoje é um dia estranho Na varanda onde sento para fumar um cigarro e ler alguns poemas o sol do outono bate fresco no lado esquerdo do meu rosto e me aquece um pouco enquanto ouço no ar invadido e subtraído o ruído aterrador de helicópteros o alarido de crianças brincando em salões de festa uma histeria angustiante que se alastra contra as pilastras mais radiantes do sol 17/04/2016 Heitor Ferraz nasceu em 1964. Cresceu num país retrógrado, violento e perverso. De injustiças enormes. A literatura ajudou-o a entender o lugar privilegiado que ocupa nessa sociedade e a brigar por um país igualitário, sem a presença asquerosa dessa elite, que nunca se afastou do poder e agora quer novamente nos impor sua política antidemocrática e fascista. 155 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juli [fala da personagem do filme Ralé interpretada pela atriz Barbara Vida] Enquanto na sociedade machista algumas mulheres forem invadidas, humilhadas por serem consideradas vadias, somos todas vadias, somos todas santas, somos todas livres, somos todas fortes. Se ser vadia é ser livre somos todas vadias. E fora traidores golpistas! Helena Ignez, com mais de 50 anos de produção nos vários campos das artes cênicas e cinematográficas, já foi homenageada na Ásia e na Europa, como no 20º Fribourg International Film Festival, na Suíça, com a Mostra «La Femme du Bandit» com 25 de seus filmes e no 17º Festival of Kerala, na Índia, com a exibição de 6 filmes em que trabalhou como atriz ou diretora. Ela dirigiu os filmes Reinvenção da Rua, A Miss e o Dinossauro – Bastidores da Belair, Canção de Baal, Luz nas trevas, Feio, eu? e Poder dos Afetos, selecionado para o 67º Festival del Film Locarno em 2014, e Ralé. 157 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julian O nome do cão Eram tantas e tão desconexas vozes que ela não ouvia, apenas se deixava, e deixando-se estava atônita e anoitecida, ainda que fosse pouco antes das sete, não, muito antes das sete da manhã – não eram dias de precisão. Caminhava pelo bairro, perto do metrô, sozinha com as vozes que vinham e não vinham do homem baixo de gravata azul que abria a porta do quatro por quatro preto, da mulher de branco que empurrava um carrinho com um bebê choraminguento, da senhora de moletom e tênis esportivo que, de cabeça baixa, tentava atravessar a rua, da mulher que corria de short, com fios vindo de algo que lhe tapava os ouvidos. Necessidade, eram dias de necessidade. Do quê? As vozes não cessavam: diziam uns, diziam outros, palavras de 1992, palavras de 1964, palavras reinventadas e feias, bichos, patos e feras, e coxinha e mortadela não eram comida; verde e amarelo e vermelho não eram cores. Cansada do vozerio, ela decidiu se calar. Não chamaria de, nem de. Não diria: é! Ou: não é! Não diria nada. Sumiria. Sumida, seguiu caminhando e não chamou de ônibus o ônibus, nem de calçada a calçada, nem de semáforo o semáforo, nem de prédio o prédio. Até que o cão. O cão mudou tudo. O cão que caiu do 14o andar do prédio que ela não disse. O cão que caiu quase em cima dela. Ela parou, e rua, pessoas e prédio também pararam. Um pouquinho. Silêncio! Ela rompeu com um berro que escapou para chegar perto do horror. E seu grito chamou de suicídio o pulo do animal, de corpo o resto dele no chão, de muito sangue o sangue que escorria e fez poça, de tudo-pra-fora as vísceras que se mostravam, desalojadas, nojentas, brilhantes à luz do sol das quase sete da manhã. Ela avisou o porteiro. O porteiro demorou a sair da cabine, pois estava ao telefone, pois pediu que antes de qualquer coisa ela se identificasse. Quando ele veio, foi sereno: este cão, sim, do 14º andar, sim, um pastor, não, outra raça, não importa: eles o chamavam de Pássaro, disse. E por que ele pulou?, ela chorava. Ele não pulou, respondeu o homem, passou a acreditar no nome que lhe deram. Foi por isso que aconteceu. 159 Isabela Noronha é escritora e jornalista, acredita em Educação e Cultura, em pessoas que gritam por horror, por paixão, e em dar a cada coisa o seu nome. 160 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia 33 × 1 Uma mulher torturada na ditadura foi vaiada em plena abertura da Copa do Mundo em 2014. 1 × 0. é golpe. uma mulher torturada na ditadura e vaiada na abertura da Copa do Mundo é eleita pela segunda vez a presidente do país. 1 × 1. uma mulher torturada na ditadura e eleita democraticamente duas vezes tomou posse e todas as notícias eram sobre a roupa que ela vestia. 2 × 1. é golpe. uma mulher torturada na ditadura, eleita democraticamente duas vezes e com propostas de educação para todos não conseguiu governar um dia sequer do seu segundo mandato como presidente do país. 3 × 1. é golpe. o ‘povo’ foi às ruas pedir o ‘impeachment’ desta mesma mulher, sem qualquer crime cometido. 4 × 1. é golpe. uma mulher torturada na ditadura, eleita democraticamente duas vezes, com propostas de educação para todos recebe uma carta do vice que se considera decorativo e ministra um golpe. 5 × 0. é golpe. uma mulher torturada na ditadura, eleita democraticamente duas vezes, com propostas de educação para todos e uma carta do vice decorativo é estampada na capa de uma revista com ‘acessos de raiva’. 6 × 1. é golpe. uma mulher torturada na ditadura, eleita democraticamente duas vezes, com propostas de educação para todos e uma carta do vice decorativo recebe a maioria dos votos favoráveis ao seu impeachment por um congresso e um senado que... 7 × 1. é golpe. é golpe. é golpe. é golpe. é golpe. é golpe. é golpe. é 7 × 1 todo dia. todo santo dia. todo dia santo. é golpe. sem gole. engole. enfiado goela abaixo. é golpe. é 30 × 1. é 33 × 1. é uma mulher torturada na ditadura que teve um rato enfiado em sua vagina. é golpe. é duro. é uma menina. 33 × 1. é uma garota. é uma mulher. poderia ser você. é uma menina torturada na ditadura de um golpe. é uma menina de 16 anos. é golpe. ela tem só 16 anos. e uma menina torturada. 33 vezes. por 33 homens. trinta e três contra uma. uma menina. de um golpe só. sem luta. de luto. uma menina torturada, violada, violentada. silenciada. é 7 × 1 todo dia. é 33 × 1 todo dia. uma mulher torturada na ditadura. uma menina torturada por 162 33 homens. é golpe. dói. é desvio de merenda. é golpe. é bela. é recatada. é do lar. é uma menina. torturada. trinta e três vezes. sangra. é bela. é uma luta. punho em riste. poderia ser sua filha. um rato na vagina. a mão pra cima. é recatada. é uma menina. sem alma. perfurada. arde. em silêncio. ouve. escuta. no lar. uma escola ocupada. pá. um tiro. polícia. uma menina torturada na ditadura. uma mulher violentada por 367 homens que disseram sim. não. 7 × 1. 30 × 1. a alma sangra. o punho em riste. a luta é nula. muda. só por hoje. é golpe. e a culpa não é dela. Jéssica Balbino é jornalista, produtora cultural, pesquisa literatura feita por mulheres e luta contra o golpe e o estupro no Brasil. 163 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julia Não é que eu goste “Lúcidos? São poucos. Mas se farão milhares Se à lucidez dos poucos Te juntares.” Hilda Hilst Não é que eu goste ser viúvo de um Brasil na trama porque ocultam fatos entre almofadas e o caixão aberto na tv em comitiva histórica não se solta da Globo. Não é que eu goste do que estava incidindo e hoje aguardo escândalos como quem sofre baleado nas periferias parecendo estar na ditadura crua do poder autoafirmado. Não é que eu goste do tempo como estava e quis crer na previsão de um falso método sinônimo de emboscada no final de um tempo que não chovia pingado. Não é que eu goste de um que não foi eleito 165 e por isso nego-lhe posto que apenas os seus ajeitou no jeito brasileiro senhor presidente somos olímpicos e recatadamente pelo lar. Não é que eu goste da incerteza que estava e ainda assim preferia que deixassem o governo fazer ou não seu marketing por trás antes das eleições que o povo vive maquete. Não é que eu goste da saúde tão sem defesa da educação sem repasses pra municípios pequenos e impostos pra assegurar salário dos que ocuparam aquela sessão centrada. Não é que eu goste que o Brasil se afunde porque acredito morrer o quanto antes trucidado pelo ódio da não escolha jamais secreta se corpo vai à urna poucas vezes. Não é que eu goste da palavra golpe assim como a do homem que amo e não o deixo mesmo com sussurros 166 do que fazer pro golpe não avançar por traição. Não é que eu goste de recomendar o óbvio na palavra democracia ainda traz antonímia com ditadura tirania e em seis meses o sol pode nascer quadrado. Não é que eu goste de preparar um poema que cita meus desgostos confirmando que cultura pro comando golpista não passa de desperdício pois é poeta o Temer. Não é que eu goste de ocultar o pensamento às panelas emborcadas há uma divisão com erro e desprazer como crime da democracia ser mulher e golpe artigo pra história. João Gomes é editor do selo virtual Vida Secreta e se espanta diariamente com a sabotagem da história brasileira, quando a antipatia parece ter mais valor que o respeito. 167 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | julian Estava tudo lá, em 2013: Michel Temer, Marta Suplicy, Feira de Frankfurt, MinC, abaixo-assinado, Educação, Globonews, rua, golpe, pesadelo 1 A notícia de que o MinC seria eliminado pelo presidente interino Temer, me levou imediatamente a outubro de 2013, quando o Brasil foi país-convidado da Feira de Frankfurt e o vice lá estava, ao lado de Marta Suplicy, então Ministra da Cultura. Na época, a hipótese de que ela apoiasse um golpe ao lado de Temer e o desaparecimento da pasta nos pareceria um delírio. Pareceria? Preciso construir alguma narrativa com isso para organizar o pensamento. E lembrar de 2013. Tudo em 2013 foi decisivo para o que vivemos agora. Difícil era imaginar tamanho retrocesso. O pesadelo de agora. Em 2013, o governo do PT, o PMDB, a oposição do PSDB e a grande imprensa estavam todos unidos em criminalizar as manifestações de rua. Diversas vezes apontei a manipulação dessa narrativa pela mídia e o absurdo da violência policial, em debates, em textos e inclusive ao vivo na Globonews (https://youtu.be/p4UM5VsfidE?t=3m24s), dando um contraponto imediato ao que exibiam – o que hoje em dia, sinal dos tempos, me parece algo absolutamente impossível. (A impressão é que agora o massacre precisa ser total, sem nada que possa contradizer a narrativa hegemônica, nem mesmo por um minuto num canal a cabo.) Na época eu andava bastante desgostoso com isso (https://www. facebook.com/jpcuenca/posts/10152293115768289) e resolvi levar o tema aos colegas em Frankfurt (https://www.facebook.com/jpcuenca/posts/10152295475288289). 169 Idealizei um abaixo-assinado apoiando professores em greve e denunciando a violência policial em manifestações:https://www. facebook.com/photo.php?fbid=10152303042528289&set=a.681378 73288.79443.685748288&type=3&theater. Mandei traduzir o texto, redigido numa viagem de trem entre Colônia e Frankfurt com o Luiz Ruffato e o Paulo Lins. A Raquel Cozer, que na época trabalhava na Folha e hoje edita meu livro na Planeta, me ajudou clandestinamente a fazer cópias na sala de imprensa. Distribuí os papéis na cerimônia de abertura da feira e do stand brasileiro. (Há um vídeo curioso disso aqui: http://www.srf.ch/…/ video/brasilien-an-der-frankfurter-buch…) Uns funcionários do cerimonial do Planalto, com medo de algum tipo de confusão, me procuraram oferecendo encontros com o vice-presidente Temer e com a então Ministra da Cultura, Marta Suplicy. Eles queriam a foto. E eu não queria sujar minha mão. Apenas mandei entregar o abaixo-assinado. Na abertura da feira, o sempre repugnante Michel Temer nos presenteou com um discurso constrangedor que recebeu sonora vaia. Não lembro das platitudes que Marta disse quando inaugurou o stand brasileiro, apenas da cara de profundo desprezo que fez quando deparou-se com o abaixo-assinado que deixei no púlpito de onde ela discursaria. 2 2013. 2016. O El País publicou que Dilma passou seus últimos momentos no Planalto cercada pelos movimentos sociais e longe dos políticos (http://brasil.elpais.com/…/…/politica/1462926904_504785. html). 171 Demorou demais. As costas que o seu governo deu aos movimentos populares em 2013, preferindo criminalizá-los e ecoar o discurso do “vandalismo” ao lado da imprensa que depois a rifaria, foi decisiva para o que acontece agora. Com popularidade ainda em alta, Dilma poderia ter aberto um caminho de reformas e diálogo direto com o povo brasileiro. Era o momento decisivo para estender essa ponte e buscar apoio nas ruas. Mas ela não o fez. E hoje o Ministro da Educação e Cultura é um representante do DEM, partido que entrou no STF contra cotas nas universidades públicas. A pasta é de Mendonça Filho, um investigado na Lava Jato que definiu, em recente entrevista, universidades como “guetos esquerdopatas e esquerdoides”. Entre 2013 e agora, esse frustrado abaixo assinado mostra o que falhou, e o que amanhã falhará pior: nosso sistema de educação básica, a repressão policial apoiada pelo governo federal. Um projeto de cidadania que nos parece cada vez mais distante com o Ministério da Educação nas mãos desse sacripanta. A democracia que nos foi cassada. E uma repressão ainda mais severa dos direitos de expressão e manifestação por um Ministro da Justiça, Alexandre de Morais, autoritário e antagonista das liberdades civis. Um sujeito que manda sua polícia bater em crianças e mulheres. E que terá como mais um instrumento para criminalizar movimentos e organizações sociais uma vaga lei antiterrorismo sancionada pela própria Dilma. (Volto ao vídeo de 2013: https://youtu.be/p4UM5VsfidE?t=3m24s) O Brasil dormiu e teve um pesadelo. Acordou num pior ainda. J.P. Cuenca nasceu no Rio de Janeiro, em 1978, e desde então é um inconformista. 172 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juliana no lombo a chibata do abatimento operário sem alma sem cabimento labuta sem luta é esquecimento operário no lombo do abatimento a chibata sem alma sem cabimento sem luta labuta é esquecimento sem luta é esquecimento Jr. Bellé é poeta e sonha biografar Buenaventura Durruti. Seu livro mais recente, Trato de Levante (Patuá), é uma ode à revolução. Fora Temer! Viva a anarquia! 174 Prefácio por Marcia Tiburi | Antologia–manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juliana Desembarque Embarquei na tua nau, a nau que dizias sem rumo, a nau que cruzaria ao futuro. Acabado de chegar, vi homens brancos velhos pregando ordem e progresso, vociferando em uníssono contra a cultura. Dominavam todo o convés, com poder concedido a si mesmos. Soberbos em seus ternos, gritavam mesóclises equívocas, Acabá-la-emos a roubalheira, enquanto enchiam os bolsos de papéis das empreiteiras. Pregavam medidas austeras em prol do equilíbrio do barco. Queriam os poucos gordos de um lado, a engordar quanto pudessem, e os magros todos do outro, acumulando apenas magreza. Resolvi descer ao porão, não conseguia ficar ali em cima. Vi homens mais magros ainda, sobretudo jovens negros, padecendo a aspereza dos remos. Vi mulheres de olhos ferinos, tramando a revolta certeira. Na tua nau o salário era mínimo: quem não aceitasse, afogar-se-ia. Na tua nau se dormia ao relento e sem nenhum cuidado médico. A tua nau garantia a certeza de que todo direito era excesso. Cogitei um instante me jogar no mar, mas não quis te dar esse prazer. Me juntarei agora às mulheres, ocuparei com elas o convés, beberei suas palavras tão firmes, me embriagarei de sua resistência. Antes te escrevo esta mensagem, sobre o passado que habita o futuro. Antes te escrevo esta carta com rimas, esta carta que emula o teu pobre poema. Antes te digo o óbvio, o que tão logo dirá o tempo. A tua nau, meu caro Temer, é um navio negreiro. Julián Fuks nasceu ao despontar de duas democracias, a brasileira e a argentina. Não imaginava ver uma delas morrer tão cedo. Prefácio por Marcia Tiburi | Antologiajuliana calderón –manifesto | adriano de almeida | ale safra | alessa menezes | alessandra e verônica cestac | alexandre willer melo | alfredo fresia | ana elisa ribeiro | ana estaregui | ana rüsche | andré dahmer | andré vallias | andréa catrópa | andrea del fuego | anita deak | annita costa malufe | beatriz seigner | bruna beber | bruno zeni | caco ishak | caco pontes | caetano gotardo | caetano grippo | carla kinzo | carol rodrigues | charles marlon | claudinei vieira | claudio daniel | dan nakagawa | daniel minchoni | denise bottmann | denise sintani | diana de hollanda | diego carvalho sá | diego vinhas | dirceu villa | donny correia | edson cruz | edson valente | eduardo lacerda | ellen maria | elvira vigna | eric novello | fabiana faleiros | flávio caamana | francesca cricelli | frederico barbosa | gabriela amaral almeida | gregório duvivier | gustavo nagib | heitor ferraz | helena ignez | isabela noronha | jéssica balbino | joão gomes | joão paulo cuenca | jr. bellé | julián fuks | juliana calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Nós Um dia ele nasceu. Ou era ela. Ele/ela não sabia o que era. Era, apenas e, apenas sendo, não sabia se era rico, pobre, homo, hetero, muçulmano, ateu, branco, preto, verde, amarelo, ou vermelho. Aliás, não era mesmo nada disso. Era antes do nome, antes do templo, antes do julgamento, um trovão uma rajada de vento. Era o tempo em que a diferença ainda não havia sido. Era o Infinito alento Era Vênus a expandir universos de fora pra dentro. Eu × Você Quero transparência na política. E você? Quero me sentir representado pelo congresso nacional. E você? Quero que meus impostos sejam revertidos em saúde, cultura, educação e transporte PÚBLICO de qualidade. E você? Quero que políticos trabalhem para o bem da sociedade e não para atender aos interesses privados das mega corporações que pagaram por suas campanhas. E você? Quero o fim das ‘Doações’ milionárias a políticos. E você? Quero que o Estado Laico seja Laico. E você? Quero ver todos os políticos e não políticos corruptos na cadeia. E você? Quero que os jornais façam jornalismo e não incitação ao ódio. E você? Quero que meu voto tenha valor. E você? Quero que as regras democráticas valham para TODOS. E você? Quero respeitar e me sentir respeitada. E você? Puxa. Talvez queiramos a mesma coisa. Por que estamos brigando mesmo? Juliana Calderón é atriz, comunicadora, canto-autora, humanista e idealista incurável. Preza pela defesa e constante aprimoramento do Estado Democrático de Direito e, portanto, é veementemente contra o governo ilegítimo de Michel Temer. 180 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigge resistência 182 Juliana Cordaro reafirma-se como mulher, artista e educadora, um tipo de pescadora e costureira de possibilidades e pessoas. Torce para que caiba mais do povo no mundo, e para que caiba mais do mundo no povo. Viver coletivamente é revolucionário. 183 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Estação Cuidado: veículos Para a sua segurança este veículo possui dispositivo que só permite a sua movimentação de portas fechadas Atenção: mudança de linha Acesso não permitido Mind the gap (Não são as palavras se formando aqui e agora que constroem o espaço. Mesmo que os teus olhos, a tua boca, o teu nariz, os teus ouvidos, as tuas mãos sobre esse meu corpo, fossem meus olhos, minha boca, meu nariz, meus ouvidos, minhas mãos. É o espaço. Upu que mora entre o meu umbigo e o meu sexo, que forma as palavras – estado democrático de direito – passos em busca da Terra sem Mal.) Deixe a esquerda livre 1 - Puxe a alavanca 2 - Empurre a janela Karine Kelly Pereira é feminista e poeta. Na sua primeira participação eleitoral não teve seu voto respeitado, mas insiste em lutar para amar e mudar as coisas. 185 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Laerte é autora de quadrinhos, cartuns e charges. Nasceu em São Paulo, em 1951 – fez alguns cursos livres de pintura, desenho e teatro; entrou na USP, em Comunicações, pra fazer Música e depois Jornalismo – não se formou. É uma das criadoras da revista Balão (quadrinhos) e da empresa Oboré (assessoria de comunicação para sindicatos). Publicou seu trabalho n’O Pasquim, n’O Bicho, no Estado de São Paulo, na Folha de São Paulo, em várias revistas. Foi autora da revista Piratas do Tietê – também o nome da tira diária que produz. Participou da redação de programas de tevê da Rede Globo: TV Pirata, TV Colosso, Sai de Baixo. Apresentou o programa Transando com Laerte, no Canal Brasil. calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Leonardo Costa é astronauta e acredita que só a democracia é o caminho. Diariamente combate bestas extraterrenas, pois sabe que o governo é quem deve temer o povo. 191 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Letícia Novaes é atriz, escritora, cantora e compositora da banda Letuce. Escreveu o livro Zaralha - abri minha pasta, já lançou 3 álbuns com sua banda e em breve sai em projeto solo. 195 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger No fogo inimigo cozinhar, antes, emanava era um cheiro bom daquilo que mataria a fome o fogo preparando um futuro – mas não agora não neste país – aqui cozinharam meses a fio uma tramoia em banho-maria em fogo baixo e esse repasto saído da panela resulta podre, fétido e à força empurram goela abaixo - disfarçado de aviãozinho manobrado com todo tipo de pirueta picareta. mas o fogão segue aceso e a boca vai cuspir devolver à cozinha sua missão de alimentar saciar a sede sem temer. Lilian Aquino nasceu em São Paulo em 1979, quando finalmente o irmão do Henfil pôde voltar ao Brasil. Acredita na força da ação coletiva, da palavra e da arte como forma de enfrentamento contra o golpe em curso no país. 197 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger golpe Um gosto amargo, um nó na garganta, irrompe em meu peito um fogo que inflama a dor da batalha, o contar dos corpos dentro da sala Entra na noite a brisa do medo, a temer o açoite, o sim ao degredo, o lodo que escorre esconde o sorriso ao cunhado golpe Seguem dormindo aqueles que outrora abriram caminho aos homens que agora são seus algozes silenciando o coro das vozes Correm os loucos, as putas, os roucos, Certos da morte, talham seus ventres, negam a sorte 199 Lineker é bailarino, cantor e diretor. Mineiro de Bambuí, reside em São Paulo desde 2013. Esta é a letra da canção “Golpe”, que estará presente em seu próximo disco, a ser lançado em novembro de 2016. 200 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger A Murilo e aos revolucionários Junto com o outono vieram os vikings os marujos toda sorte de bárbaros e piratas As ruas estão um tanto em pânico um tanto em festa Busco semblantes familiares entre os escombros de medo e alegria Uma estrutura de concreto armado sustenta meu coração no alto Vejo corpos translúcidos, lindos carregados por guindastes alguns estão mortos Os vivos celebram a ignorância de seus grilhões com adoráveis bolas de ferro atadas aos tornozelos Meus olhos são duas granadas meus pulmões são artefatos de guerra palavras são como projéteis que se enchem de pólvora antes de explodirem em chamas sobre a cidade Atravesso o elevado Costa e Silva um senhor tira confetes do cabelo de sua namorada Na República uma criança chora suas bolas de gude confundiram-se com estilhaços Mendigos, putas, traficantes, poetas, operários, estudantes, bêbados, atrizes e filósofos todos foram convocados para essa formidável festa de despedida os demais permanecerão em suas trincheiras buscando a sorte em jogos de azar colecionando peças amputadas da realidade dobrando a esquina enquanto uma horda de revolucionários escreve o poema do século em plena praça pública. Luana Vignon nasceu nos anos 80 e ouviu algumas histórias sobre censura, subversão e exílio, não são boas histórias. Acredita no poder transformador da arte. Arrisca dizer que se você não está do lado do oprimido, você é o opressor. O mundo precisa de mais poesia, mais música, mais dança, mais amor; essa é a verdadeira revolução que está em curso. 203 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger há insegurança no ar. uma névoa cinza cobre a cidade não é sobre poluição não é sobre o outono é sobre uma noite que insiste ao meio-dia é sobre uma noite que insiste dentro do que dizem: democracia dentro do que dizem: democracia queimaram nossos votos é essa fumaça que sobe diante dos olhos: há insegurança no ar. Lubi Prates acredita na democracia como única forma de construir um país com igualdade social, assim como acredita na arte como forma de manifestação e resistência. 205 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Os mortos vivos 1. A mãe Minha mãe sepultou as parcas alegrias em uma lata colorida de biscoitos, que diziam de origem dinamarquesa: três filhos que vingaram, um que não, sombria matemática de outros tempos; a água fresca da mina em seu rosto; uma viagem de carro à praia longínqua, quando enfim estabeleceu dessemelhanças entre areia e ondas, entre ruínas e posse; o mugido de vacas tangendo a alvorada; um cachorro de nome Peri, outro, Veludo; vizinhas engraçadas, vizinhas sisudas; a comadre que se foi para São Paulo. Suas mãos queimadas de água-sanitária jamais colecionaram retratos ou sorrisos. Guardavam imagens, que se extraviaram incendiando as nuvens desta tarde clara, que a tudo ignora, eterna em seu mutismo. 2. O pai Nasceu meu pai do ar e com os ventos se criou. Foi tempestade, aragem, borrasca, placidez, estio. Ninguém o ouvia, sua voz rouca pregava o livro santo para insetos e pássaros que inundavam as matas calcinadas da minha infância mais que obscura. Seus passos miúdos vasculhavam a cidade e, às horas mortas, exausto, compreendia a invisibilidade de seu corpo inútil e vazio. 207 3. O irmão O rádio chovia a noite toda ondas curtas que meu irmão insone sintonizava. As estrelas chuleadas no azul escuro fascinavam bocas cobiçosas de idades. Ronronavam as horas quietas em seu colo e formigas escalavam a parede pacientes carreando fragmentos de conversas do quintal. Meu irmão acreditava em galinhas e alfaces, e mantinha, sob a cama, agrilhoado, um deus feroz, vingativo e rancoroso. Ignorava relógios e ampulhetas, imerso o corpo nas águas límpidas do presente. Por inveja, ciúme ou ingratidão, explodiu numa cinzelada manhã de gatos baldios, cicatrizes a envenenar estes dias vulgares que se abatem como látegos em meu dorso. 4. A avó Amortalhada em seu quarto, minha avó enxaguava os longos cabelos grisalhos em bacias de estanho, aspirando com sofreguidão o fim inevitável. Mirava-me perplexa, como se eu, e não ela, o fantasma, murmurando sentenças a ninguém mais compreensíveis. Seu corpo frágil desconhecia sombra e, secretamente, cultivava antúrios, margaridas e rosas de plástico. Nas madrugadas, excomungava os pesadelos, agarrando-se a rosários, fiando promessas incumpridas. Nunca conheceu a felicidade, minha avó, e a alegria, substantiva, acariciou-a certa feita, quando, inerte, 208 na cama, primavera entrada, balbuciou o nome daquele pássaro que, erradio, debatia-se com vigor contra as paredes e as telhas que o asfixiavam. Luiz Ruffato é um cidadão brasileiro, enojado com a conspiração encabeçada por Michel Temer e apoiada pelo que há de pior na política brasileira para derrubar uma presidente legitimamente eleita. 209 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger eram tempos de ódio e ferrugem antiga de muito grito e pouca voz tempos de ritalina amnésia aspirina eram tempos de roleta russa guerra fria requentada como se miami fosse terra prometida e cuba, a praga infestada eram tempos repetidos história como farsa história como força história como falsa história como forca estouro com memória e faca e continuo nessa jornada enquanto falar não seja denúncia nem renúncia perante a barbárie entenda: sua panela de teflon não conhece a fome seu milagre faz crescer o bolo mas não multiplica os pães de que adianta ir pra rua, se você nunca sai de casa? tão importante quanto a bandeira é com quem tu caminha qual sua gente-parceira eu estou do lado 211 do acarajé da diversidade de fé do direito ao corpo da mulher qualé? se diz homem de bem mas discrimina quem vem de assaré qualé? quer um país que preste mas agride alguém pela cor que veste qualé? conclama justiça mas compactua com deputado racista qualé? quer melhorar o brasil mas qual humanidade se constrói na mira de um fuzil contradição tamanha só vi na alemanha antro de besteira versão atualizada do ensaio da cegueira pode até dizer que a intenção é pura mas não há justificativa pra ditadura que venham os touros furiosos continuarei erguendo minha bandeira vermelha porque meu sangue é rubro e não azul 212 (muito menos amarelo) se pinta sua cara de verde na mão, carrego martelo e isso é mais que tomar partido é tomar coragem de enfrentar a cruz e a bala da sua bancada milionária se for preciso teremos guerra ressuscitaremos marighella essa é nossa conduta contra o golpe vai ter luta Luiza Romão é poeta, atriz e diretora de teatro. Em 2014, publicou o livro Coquetel Motolove e participou de inúmeros saraus/ slams (sendo campeã do Slam do 13, Slam da Guilhermina e vicecampeã nacional via Slam BR). Atualmente é atriz convidada no Núcleo Bartolomeu de Depoimentos; e integrante do coletivo de performance da palavra Literatura Ostentação. 213 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Cannes começa em ny Fazer arte tem uma aura de emergência difícil de descrever. Diante da eternidade do cinema, nada é mais importante do que buscar a alma do momento presente, falar além desse tempo/espaço para gerações futuras quando já não estaremos aqui. Talvez isso explique a paixão que mobilizou mais de 30 pessoas, entre equipe e amigos do filme, a tirar dinheiro de seus próprios bolsos pra pagar passagem, hospedagem, comida, tudo pra estar juntos na première mundial de Aquarius no Festival de Cannes. Enquanto corríamos de um lado pro outro escolhendo vestidos e smokings para o festival, assistimos perplexos a uma série de acontecimentos políticos no Brasil, dignos de uma narrativa de ficção. E o roteiro parecia duvidoso. Saí do Brasil com uma presidenta da república sendo afastada de seu cargo sob gritos de “chega de corrupção”. Voltei vinte dias depois com áudios vazados na imprensa escancarando o óbvio: o impeachment foi um plano pra estancar a Lava Jato e livrar políticos da cadeia. Segundo eles próprios, a presidenta deixa a investigação correr solta demais. Estar em competição no Festival de Cannes foi uma experiência pessoal e profissional de proporções avassaladoras, mas nada me tocou tanto como assistir ao filme que fizemos e me dar conta da assustadora sincronicidade do filme com o Brasil de hoje. Tal paralelo não foi proposital, o roteiro de Kleber Mendonça é uma antena poderosa que capta a sensibilidade de uma sociedade dividida, que despreza sua memória recente em nome da manutenção de privilégios de uma minoria. Nesse aspecto, não me surpreende que hoje a cultura seja uma ameaça para certos setores a ponto de alguns defenderem o fim do seu subsídio. Mas a personagem de Sonia Braga em Aquarius é acima de tudo resistente. E, se a câmera tem o poder de captar o além tempo, para mim nada faz mais sentido do que minha memória em loo- 215 ping recordando o instante em que, sobre o tapete vermelho, levantamos um papel a4 pra dizer que, sim, vivemos um golpe. Foi um pequeno e simbólico gesto, mas a julgar pela atual juventude nas escolas que nos ensina como se apropriar dos espaços e multiplicar vozes, certamente esse gesto é eterno. Maeve Jinkings é uma atriz brasiliense formada pela EAD/USP. Em maio de 2016 esteve no Festival de Cannes representando o filme Aquarius, segundo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho. 216 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger dissonâncias porque os mesmos necromantes que evocam os mortos e os moribundos pra predizer um futuro de cartas marcadas, carcomidas porque os mesmos plutocratas que conduzem a farsa pra lucrar em cima de quem é absorvido pela intriga (esta: o ventríloquo, com o punho enfiado no oco do boneco antigo/antiquado, caiado com tinta fresca cunha falas de efeito, vende nas revistas serpentes como evolução dos dinossauros) porque mesmo o punho do ventríloquo cerrado como porta burra na cara de quem é absorvido pela intriga porque os mesmos que defendem com garras, dentes e cinismo a imposição de um futuro obscurantista invocam nesse ato outras vozes (e a voz, sabemos, é secreção de corpo vivo) antizumbis (porque a morte, sabemos, uniformiza) e antiusurpadores inundamos o entorno da sala de espera com esta recusa musical e outras secreções de gente viva com a diversidade de corpos que se expõem insubmissos Maiara Gouveia jamais terá o recato necessário pra brincar de doce lar enquanto a covardia comer solta. Recusa que o decorativo tome pra si o lugar do legítimo e defraude ainda mais nosso poder de escolha. 218 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger hileia, nosso humble abode seus grassos frutos de pele fina polpa de refugo chinchulina colostral quem se aburra? quem será ingerido primeiro? estamos em jejum, perdão, diria a tripa de podreres espumas e pipocos de gás no bucho inflamado, stufffados, ingerências à parte. mas o miasma não mente: tem algo de pungente no reino das pizzas en regalia e a bestafera tripartite sofre de comorbidades digestórias: tricotilomania & refluxo decorrentes carepa nas barbelas e aliento de saburra. mas no cardápio temos apenas os frutos de pele fina e sebolhosos servidos em bandejas importadas da lenda dos fri, home dos bravo sinto afirmar, mas recomidos estamos todos e enterinos semo-nos, gravitástricos no sumo dos viraláticos peristaltas. Maíra Mendes Galvão gostava de viagem no tempo até que nos levaram de volta a 64. Azedou. 220 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger sonetos de michel i Fizeste-me um anão decorativo, Oh avara búlgara, e eis que choldra riu-m’a Submissa condição, queimou meu filme, ah, Mas me vinguei, que saibas, sou altivo, Manejo a língua bem, e no meu crivo Não vai passar quem outrora partiu-m’a Vaidade de poeta, Dona Dilma Tu vais chorar amargo, então aí vou Cortar onda de mulher, pobre e preto Ministro meu só macho adulto e branco Deixo o Brasil aos trancos e barrancos Na mão da pior corja, e um soneto Eu faço de vingança, minha filha: Tomanucu tu e teu bolsa-família! ii Achar-se-ia muita aleivosia Da parte das mulheres do Brasil Tomasse eu toco de mais uma tia Não pode o meu governo expor-se a ardil. Bruna negou, Daniela, até Marília Me esculacharam, puta que pariu, Artista e o povo do bolsa-família Vão ver com quantos paus faz-se um xibiu. 222 Vou tentar mais dois lances na roleta: Regina, até Marilena Chauí, Minha intenção é colocar aqui Mandando na Cultura uma boceta Pra acalmar ânimos. Se não der, sinto Muito, valeu, coloco mais um pinto. iii Na tua nau embarquei. Um homem pode Tudo na vida, a vitória é só querê-la Sinceramente, e agradar deuses com vela, Pipoca, enxofre, ebó, sangue de bode. Assim meti o país numa esparrela: Uns garotão bunito, criado a toddy, Os boy da academia Health & Body, Galinha preta e farofa amarela Nem desconfiam que eu uso a mancheias. Aos inimigos, que a polícia açoite Neste país só otário vê cadeia Trabalho do meidia à meia noite Livro os parcêro e detono os mané C’ ajuda do paizinho Baphomet. 223 iv Eu sou poeta e tenho um nome angélico Meu pacto não é propriamente com Deus Mas nome bem parecido: Asmo-Deus Eu, ademais, tenho apoio evangélico, Pastores, crentes, todos fariseus. Meu nome é o mesmo do Arcanjo Azul, bélico, Que pisa no meu Mestre. Estes famélicos Que ganham bolsa, farei de judeus Num campo de concentração nazista. Retomarei pra mim número treze Exterminarei a nação petista E a minha musa eu encherei de anéis. Ela há de amar-me além de quinze meses Tenho bem mais que onze contos de réis. Manoel Herzog nasceu em 1964, com o golpe instalado. Não pensava de voltar a viver este horror depois dos cinquentinha, mas enfim. Trabalhou em fábrica, estudou Direito, desencantou-se da Justiça dos homens e virou escritor. 224 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Manoel Quitério é artista visual, de Recife. Expoente da nova cena da arte urbana em Pernambuco, tem um trabalho que bate de frente com ideologias da dominação, ganhando rápido destaque nas cenas independentes. Recentemente, realizou trabalhos que ganharam as ruas de Istanbul, denunciando o regime ditatorial da Turquia, sob a perseguição de órgãos fiscais e sob o risco das duras penas aplicadas aos artistas pelo governo local. Tem também trabalhos em Israel, Bruxelas, Amsterdam, Paris e por todo o continente Europeu. calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger “Imagens do Golpe” – Nanquim sobre papel, 2016 Manu Maltez, São Paulo, 1977, é mais um artista na luta pela volta da democracia no Brasil. 229 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger fuuuuuuuuu (Conto inédito ) O corpo virou uma flâmula. Porque já estava acabando o gás. O fôlego das chamas. Irreconhecível, à porta da Federação. Chegou chamuscando da rua para dentro. E fuuuuuuuuu. Riscou-se. Pólvora em polvorosa. Parecia um carvão. Era negro? Nem sei se era homem. Veio vestindo um moletom. E a cara disfarçada por debaixo da toca, na sombra. Correu urrando. E pelo urro, não dava para ver se era mulher? Todo sexo e urro ficam iguaizinhos embaixo de um moletom. E de uma toca. Foi muito rápido. Virou uma tocha em um segundo. E aqui está agora, Meu Cristo, quase um papel. Uma fogueirinha de osso. Não se pode jogar água não. Já chamaram os bombeiros? Já chamaram a polícia? Já chamamos, já chamamos. E os movimentos? Terá sido um estudante? Se for um estudante, coitado. Desgraçar o futuro assim, em um palito. Só vi coisa parecida nos Estados Unidos. O Brasil está virando os Estados Unidos. Não seria menos dramático ter feito uma greve de fome? Nunca vi um corpo assim, ao vivo, queimado. Uma testemunha disse que essa pessoa saiu de um ônibus vindo do Largo da Batata. Tá explicado. Aí a batata dela assou. Por que, neste país, tudo acaba em piada? Não é em pizza? Tô pensando aqui se ele (ou ela) tivesse tocado esse inferno dentro do ônibus. Não vivem queimando ônibus? 231 Coisa do Diabo. Ninguém vê evangélico protestando. Muito menos católico. Quem protesta não acredita em Deus. Mas alguém jura que ouviu o suicida (a suicida) gritar o nome de Deus. Antes de desaparecer. Fuuuuuuuuu. Não reconhecemos extremistas. Não reconhecemos religiosos. Nem fanáticos. Agora é esperar as imagens de alguma câmera da Federação. Temos a certeza, hoje já tem filmagem exclusiva vazando na Rede Globo. Na internet, não já tem? Alguém sempre filma. Estamos filmando, aqui, só o que sobrou aceso. Meu Jesus. Do pó ao pó. E esse cheiro insuportável. Acho que era uma mulher. Como sabe? Quem entende de cozinhar, brother? Mulher. E todo mundo riu. Eu acho que só homem, meu, tem essa coragem. Era algum filhinho de papai. Que acha bonito ser super-herói. Aposto que assistiu a essa cena no cinema. Não reconhecemos filhinhos de papai. Muito menos se era um branquinho filho da puta. Mano. Foi um mano. Acostumado a queimar pneu. Acostumado a queimar favela. A queimar fumo. Drogado, não tenho dúvida. E o corpo ocupando um chão inteiro. E gente e mais gente na rua. E nada dos bombeiros. Ninguém está aí para nada, para nada. Já pensou se a moda pega? Será que foi com isqueiro? Se foi, já derreteu. Fósforo é arriscado. Pode não pegar. E nessa avenida bate um vento de lascar. Por isso ele (ou ela) já virou, ligeiro demais, essa bola de fuligem. Era contra o quê? A Petrobrás. Mas como ser contra a Petrobrás usando gasolina? E foi com gasolina? Pelo jeito, gás. Água raz, thinner, querosene. E se a gente se juntasse para rezar? Pela alma do infeliz? Ou da infeliz? Ah, mas alma é masculina, é feminina. Alma é alma. Ave-Maria, cheia de graça. E se era um ateu, uma ateia? Todo artista é assim, maluco, maluca. Melhor não abusar. Cometeremos um sacrilégio. Quanto tempo vai demorar? O quê? Esse maço de chumaço em frente à Federação. Por que não pegamos nós uma pá? E jogar essa coisa onde? No lixo? O que você faz com capim? Com resto de floresta? Com cinza de cigarro? Com comunista? Só comunista faz uma merda dessas. E lugar de comunista é mesmo no lixo. Para para refletir um pouco. E se fosse o seu filho morto? A sua filha? Ensinei sempre para o meu filho, desde pequeno, a não brincar com fogo. Mas não tem jeito. Eles sempre se queimam. E tudo, dizem, em nome do Brasil. Estão lutando pelo Brasil. Puta que pariu. Só se for Brasa, Brasil. Fuuuuuuuuu. E todo mundo riu. 233 Marcelino Freire, 49, é escritor. Autor, entre outros, de “Angu de Sangue” (contos, Ateliê Editorial), “Contos Negreiros” (Editora Record) e “Nossos Ossos” (romance, Editora Record). É o criador e curador da Balada Literária, evento que acontece, anual e gratuitamente, desde 2006 em São Paulo. O conto acima foi escrito especialmente para esta antologia. Para saber mais sobre o autor, acesse: www.marcelinofreire.wordpress.com 234 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger 235 Sobre o feminino É possível associar o feminino com a água com a fluidez, sensibilidade, atravessamento, abertura da água em contraponto com a rigidez, brutalidade, empedramento e aridez do masculino e se estamos vivendo no mundo uma crise da água ela tem conexões profundas com uma crise de recepção do feminino Vejo como necessária a recuperação de um novo modo de pensar o potencial humano, como uma potência da fragilidade Algo que não está associado apenas ao feminino, mas ao humano seria uma parvoíce, uma estupidez programada associar a potência da fragilidade apenas ao feminino, a fragilidade é uma força por onde o mundo pode passar, a fragilidade é como o aparente ser do orvalho esta potência da fragilidade está em oposição ao poder da brutalidade, elogio da força bruta, Aética da brutalização que para ser instaurada necessita dominar a natureza, retirar o mundo e até destruí-lo Quando os homens reconhecerem em si também a potencialidade sensível da fragilidade, começaremos a transformação de paradigmas da destruição em atos criadores de um reconhecimento do mundo e não apenas da projeção de dualismos e estratégias de dominação e submissão, teremos o início de um mundo do dialógico, onde diferenças e alteridades serão reconhecidas como modos de ser do próprio mundo, da própria Terra atuando sinergicamente e em ressonâncias dialógicas O feminino que foi construído como projeto e projeção de ideias de dominação e submissão ao modo de ser da Aética da brutalidade deve dar lugar a uma construção das próprias mulheres sem margem para estas projeções perversas que são 236 a base de um projeto político totalitário e secularizado que ignora o mundo como ser e como ente, poderá ser implantada no mundo uma ética do cuidar, da devoção, da serenidade ativa. uma ética a partir do feminino. O Pai também será mãe a mãe poderá ser reconhecida não apenas como um anjo do Paraíso, mas como o caminho para o Paraíso, a mulher poderá ser reconhecida como uma materialidade do Sagrado no Mundo porque desse modo o Mundo se torna ele mesmo Sagrado Marcelo Ariel, Santos, 1968, poeta e dramaturgo. Autor dos livros O rei das vozes enterradas (Editora Córrego), O Livro das árvores dentro do Livro dos salmos dentro do Livro dos anjos sem nome (Pharmakon), Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (Editora Patuá), entre outros. 237 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Memórias do Golpe Confesso que vivi dois Golpes de Estado, o militar de 31 de março de 1964 e agora, o midiático-jurídico-político, de 17 de abril de 2016. A diferença é que em 1964 – há 50 anos – não se sabia absolutamente nada graças à grande imprensa totalmente vendida aos militares e norte-americanos, daí os vinte anos de trevas absolutas quando então nos informávamos esparsamente, seja pelos nanicos (os tabloides de esquerda e imprensa alternativa), seja pelos amigos e parentes dos desaparecidos, torturados e mortos, seja pela imprensa internacional. Afinal, não havia internet, eis a razão das trevas terem durado vinte amargos anos de mentiras, violência encoberta, repressão, censura, canalhices, mortes, tortura, silenciamento, traições, arrocho humano e mesmo assim, já em 1984, repito, após 20 anos de sacanagens, prestes a ocorrer a redemocratização, uma manifestação de 300 mil pessoas na Praça da Sé em 25 de janeiro, a Globo reportou como “multidão que comemorava o aniversário da cidade de São Paulo”. O Brasil não precisava disto. Não merecia isto. O fato é que a elite brasileira é reiteradamente, historicamente, secularmente, irremediavelmente apátrida. Razão pela qual agora, maio de 2016, quando se sabe de tudo, nada escapa ao domínio público, novamente a mídia hegemônica (Globo, Band, Record, SBT, rádio e televisão, os grandes jornais como O Globo, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo) desinforma e conspira contra a população! Aliás, as Organizações Roberto Marinho e a Rede Globo estão repetindo e ampliando a mesma atuação de 64, confirmando plenamente que a história se escreve como tragédia e se repete como farsa. Eu sei porque eu lembro. E aí? Ocorrerá o alargamento do campo do possível (Sartre)?Ou o que poderemos fazer? Nós, os 30% da população que escaparam à cooptação, que se mantém ilesos à desinformação 239 diária e doutrinação inversa ministrada dia e noite em todas as tevês e rádio e jornais, no céu na terra em toda parte, uma vez que, como já apontam Tariq Aliq e Noam Chomsky, o Brasil não é mais uma democracia? O Brasil não precisa disto. Não merece isto novamente. Mas o fato é que a elite brasileira é reiteradamente, historicamente, irremediavelmente apátrida. Márcia Denser é escritora paulistana, 62 anos. Tem 12 livros solos publicados, como Diana Caçadora, Caim, Toda Prosa, DesEstórias, e participação em 48 antologias. Sua obra já foi traduzida em 10 países e 9 línguas. 240 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger noturno do golpe vê, já é quase noite ouve a festa dos corvos o esfregar das mãos imensas e o rumor afiado de rapinas à espera da carniça. vê, já faz noite me bate o queixo nesse frio de sombras e o pulsar frenético na antemarcha dos coturnos. vê na alta noite o banquete dos conspiradores entorpecidos e o desespero do corpo violentado da democracia se debatendo no escuro. ouve, os gritos vêm da sala estão todos em transe na madrugada a laje balança à faina saqueadora tremem os lustres, o reboco do teto nos cai sobre os berços. mas teus filhos não dormem ó, amada mãe-gentil, no silêncio da desonra, saiba estão vivos, sob o pó, no escuro e um dia voltarão com o sol. que nascerá da verdade. 242 Marcílio Godoi viu a Democracia brasileira ser reconquistada a duras penas e não vai se calar agora diante de mais um golpe. É pai de dois filhos, com os quais tenta compreender e evitar que a história se repita como farsa. 243 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger O voto fantasma Sempre sonho com espíritos que aparecem para conversar, tomar café, meter medo, possuir pessoas que usam roupa preta. É tudo parte do trabalho deles, das atividades que precisam executar diariamente para manter a sociedade ectoplásmica em funcionamento. Em geral são homens os fantasmas nos sonhos. Mas sonhei, noutra noite, que fantasmas do sexo feminino apareciam na escola estadual em que eu costumava ser mesário. Subiam as escadas em grupo e em silêncio no dia da eleição. Dava para ver, através dos corpos delas, os desenhos das crianças pendurados nas paredes. – Foram vocês os criadores dessa lei que diz que não podemos votar porque estamos mortas. Essa lei não nos serve. Viemos votar. O mesário era um menino, um homem, um rapaz, e ele não queria estar ali, e ele ainda não sabia em quem votar. Pediu o documento-com-foto das mortas. – Sim. Mas não nos peça para assinar nada porque não temos como segurar a caneta. Seria bom ter a opinião de alguém que conhece as coisas de uma maneira que ele jamais poderia conhecer, então o mesário perguntou em quem elas votariam. – Votaremos em quem acredita que uma pessoa morta na verdade vale tanto quanto uma pessoa viva; em quem não teme as pessoas mortas porque sabe que elas sempre ganham: elas são muitas, elas morrem há centenas de anos, e se acumulam, e ocupam espaço. Elas são infinitas, e fazem parte do mundo das pessoas vivas, e no entanto até ontem só nos era dado o direito de dormir sob as camas e nos armários, e precisá- 245 vamos esperar e esperar até a hora certa de dar o susto. Há tanta coisa que nós, fantasmas, podemos fazer. Tanta coisa. No sonho, elas não puderam segurar a caneta tão material com seus dedos de éter, mas conseguiram apertar os botões das urnas. ... Marco Dutra (36) é cineasta nascido e criado em São Paulo, acredita na força da pena e no fim das tempestades. 246 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Recomeço (Trecho da peça Motel Rashomon) Mesmo que amanhã a mão invisível do tempo sobre os nossos corpos exaustos nos diga que sempre será amanhã apenas uma palavra mesmo essa palavra será sempre a possibilidade de um recomeço Alguém nessa sucessão eterna deverá sempre recomeçar Sobre o nada Sobre o silêncio Alguém se importa se eu começar de novo? Os corpos exaustos em terrenos baldios em cemitérios clandestinos Ossos à procura de sentido para a palavra amanhã Mas quem se importa? 248 Marcos Gomes é dramaturgo, autor do livro Luz fria. Não escreve pela família, nem por deus, nem pela propriedade. 249 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger acusar o golpe Fui criança na época do medo, quando as palavras já nasciam encolhidas e a semelhança entre elas era quase um ato reflexo. Comecei a escrever com a Abertura e não demorei muito a perceber que se tratava de outro tipo de fechamento. Durante a Década Perdida, as palavras viviam em completo desacordo com as coisas e manter-se acima da linha d’água já exigia grandes esforços. Estava fora do país, vestido de preto, enquanto Collor caía. Depois, voltei à universidade como professor. Eram tempos de ansiedade, pois as palavras não coincidiam com aquilo que pareceriam dizer. O século xxi, antes longínquo, fadado à consumação, abriu ao contrário muitos outros caminhos. Durante uma década, ouvi, falei, senti as palavras se aproximarem das coisas, flertarem com elas, ensinarem-lhe a confiança. Como se tivéssemos chegado a outro padrão de linguagem. Confesso que nada do que se seguiu me surpreendeu muito. Poetas e contrabandistas pragmáticos sabem muito bem o quanto custa sustentar artifícios de paraíso, essas ideias fora do lugar, onde quer que estejam, flutuações que não se fixam e sem as quais não viveríamos. É verdade que a história da gravidade é feita de golpes, se golpe significa o inesperado, aquilo que resta de um lance, de um movimento ruim, como um corpo que se abate, estatelado, de um duro baque. O golpe não acabou. Ele está em curso. Mas já existe um cadáver do golpe, e esse cadáver são as palavras dos meus dessemelhantes, criaturas ávidas, coradas como eu, mas antes pelo desejo de que as novas palavras continuem a regrar os velhos equívocos. Meus dessemelhantes são velhos e são jovens, são interessados e desinteressados, como eu. O grotesco da nossa semelhança me choca e me entristece. Por isso hoje, a propósito de golpe, eu teria publicado um poema, digamos uma “Pietà aos dessemelhantes”. Queria expor os efeitos do golpe para, como se diz, acusar o golpe, denunciá-lo em mim. Não haveria nisso perdão nem incriminação. Mas não tive forças de erguer esse espelho. Ademais, hoje sabemos: os dessemelhantes não leem. Dessemelhante é aquele que não consegue se ver? 251 bibliografia do golpe Marcos Siscar é professor na Unicamp, onde publicou um livro de ensaios chamado Poesia e crise. Em seus poemas, cair nunca foi um problema. Por isso precisou escrever, recentemente, um Manual de flutuação para amadores. 252 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Maio para junho, 2016 Cara amiga, Escrevo-te do não lugar. Entrei no avião, dois dias após ver, junto a alguns conhecidos, um mundo e um sistema podre subir à presidência. Homens defensores de uma visão de mundo que eu considerava velha, e morta. Tanta inocência. Julgava finalmente vencida e virada uma página velha e amarelada de algo que acreditava ser uma geração autoritária derrotada pelo mundo, pela luta, e sobretudo pelo bom senso do passar do anos. Por aquilo que enchemos o peito para chamar de história. Aquilo que por si só não diz mais nada. Eu escrevo do não lugar. Uma vez mais, a geração única, velha e caquética vai vencendo a sua própria geração, e a nova, esperançosa, ainda por vir. Estamos tan cerca, diria Celan. E ainda sem lugar. Os dias que antecederam esse lançamento da minha vida e meu corpo ao espaço foram dias de destruição completa. Como perdoar esses anos todos lidando com a política como se fosse mais uma relação familiar? Como deixamo-nos enganar que um “pai” ou uma “mãe” bons, são melhores e não reprodutores do mesmo sistema paternalista, patriarcal, masculino e branco de deus? Quem olha por nós, senão nós? Estivemos tão perto. E, ainda, escrevo do não lugar. Já não há para onde regressar, nem para onde partir. Ficam as dores de um crescimento às custas de um golpe, autoritário, injusto e realista. O real é da ordem da falta de construção de um espaço. Da pobreza de interpretação. 254 Paramos, então, diante do abismo e estendemos as mãos em um gesto singelo. Damos adeus a tudo que foi. Adeus que, turvo no espelho, se torna aos poucos – oh, será? – oh, será? – em “alô”. Em uma nova forma de se dizer “olá”. Nos reinventamos, mais fúnebres, mais agressivos, mais turvos, menos reais. E resistimos. Resistimos de lugar nenhum para lugar algum. Acenando, com um sorriso irônico, a todos aqueles que já não existem porque não são nada além de cadeiras e títulos que já não são traduzidos por palavra alguma. Cadeira. Título. Título. Cadeira. Cadeira. C a d i t e r a. … Ocupamos, então, suas palavras, suas origens. Ocupamos suas famílias, suas netas, seus primos e titios. Ocupamos a gramática e construímos uma coisa qualquer que se define em coisa nenhuma. Damos olá e acenamos do único lugar que agora existe. O lugar nenhum, que agora é nosso, o não lugar. Maria Clara Escobar tem 27 anos. Realizou filmes, como o longa de documentário Os Dias Com Ele, escreveu roteiros e escreve textos curtos, a fim de tentar estabelecer diálogo com o mundo em constante transformação. 255 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger saliva a minha voz a minha vez o meu cuspe o meu cu Queria ser minhoca pra arejar esta terra de ódio. Meu corpo político estético oferecendo os seios às setas da polícia. Minhas raivas obstétricas expostas aos gritos vazios. E meus cus dados aos mundos avessos aos sofrimentos dos mortos de fome, que já nem ouvem aquilo que não alimenta. [Hoje menstruei um vermelho tão vivo. Fiquei orgulhosa do erótico liberto que trago comigo ainda que meus olhos públicos sejam inundados de um amarelo insonso pálido sepulcro.] Maria Giulia Pinheiro está mulher há 25 anos. Nunca viveu fora da democracia e não quer. Acredita em Deus e também que quem mais fala em nome dEle menos ouve o que Ele diz. 258 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger hoje Não há tempo para floreios. A destruição da delicadeza está em curso. Os ideais serão arruinados até o cerne arqueológico, mutilado e adaptado para que caiba no futuro livro escrito pelos vencedores. Não por nós. O nosso livro é efêmero. Amanhã, postos os pés nas ruas, tudo será desconhecido. Hoje um homem carregava uma linda brochura da bíblia no metrô. O amigo dele domesticado pelo mesmo livro, segurava seu ombro. Um riso amarelo. Um canto de meninos tupis saudando a chegada do Salvador. Eu não ouvia nada com meus fones de ouvido. Na minha mão um poema da Anna Akhmátova, escrito na época em que ela se ajoelhava aos pés de Stalin, submetendo sua escrita aos esforços do regime para livrar o filho da cadeia. O regime não livrou. Não sei mais se o filho de Akhmatova resistiu em São Petesburgo. O afago do Salvador serve somente aos impunes. A poesia não vai salvar porra nenhuma. Dezesseis anos antes do golpe, fui à Biblioteca Nacional com minha turma de literatura portuguesa da faculdade. Francisco Weffort, ministro da cultura, também estava lá acompanhando o novo presidente da Embratel, um norte-americano. O norte-americano fingia melhor interesse pelos antigos livros portugueses do que Weffort com sua apática cara gorda de sono. Na mesma época entrei pela primeira vez no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Havia lá a cadeira do funcionário indicado pessoalmente pelo José Sarney. Havia um cômodo improvisado para abrigar a cadeira do funcionário indicado pessoalmente pelo Sarney. Havia um computador na mesa em frente a cadeira do funcionário indicado pessoalmente pelo Sarney. Não havia mesmo era o funcionário. Vez ou outra, havia. Entrava, branco, grisalho, pançudo, com um eterno semblante de estou derrotado me olhem. Não se demorava muito. Desaparecia com pastas debaixo do braço. Voltava alguns meses depois, igual. Lembro ainda das baratas que acordavam mortas aos pés dos pesados arquivos metálicos onde eu e os outros funcionários 260 guardávamos os papéis mais importantes da literatura brasileira. A sala dos papéis ficava atrás de uma velha porta de madeira, num subsolo sem janelas. Uma fresta lateral no chão, onde havia outra porta, trancafiada, servia de respiradouro bem como de entrada das baratas. Colocávamos uma pano com inseticida para evitar sua invasão em massa. Do outro lado dessa porta trancafiada estava a cozinha onde comiam os funcionários terceirizados do prédio inteiro. Algumas vezes eu era o responsável por retirar os cadáveres das baratas pela manhã. Com vassoura em punho, tentava adivinhar, pelo cheiro, o prato do dia que era preparado no cômodo ao lado. Pouco tempo depois informaram-me que o novo ministro Gilberto Gil visitaria o Arquivo-Museu. Lá estava ele numa manhã, de terno, com seu enorme penteado de dread locks, cercado de assessores. Era o único negro no prédio, pensava eu, com exceção do Seu Miguel, o segurança que controlava a entrada e a saída dos visitantes. Voltei ao Arquivo-Museu depois de alguns anos. O funcionário indicado pessoalmente pelo Sarney “havia se aposentado”, me informaram. O arquivo metálico agora era outro e ocupava uma sala duas vezes maior, climatizada, feito com pequenos corredores deslizantes. Para chegar até ele precisei passar por duas pesadas portas corta-fogo e por nenhuma barata morta. Francisco Weffort dizia que a cultura brasileira deveria ser resplandecente aos olhos dos visitantes europeus. Weffort parecia um seguidor de Couto de Magalhães, autor de “O Selvagem”, livro que explica as nossas raças primitivas aos homens interessados no Brasil entre o concerto das nações. Gilberto Gil era a cultura em si com um violão em punho no grande salão da ONU, interessado no desconcerto desse Brasil gordo, apático e branco. Antes de saltar do metrô, volto os olhos novamente para a belíssima bíblia amarela na mão do homem domesticado. Ontem uma mulher foi estuprada por mais de 30 homens e sei que quem carrega uma bíblia dessas na mão afirma, sem pestanejar, que a culpa foi inteiramente dela. Saio da estação em direção à escola 261 ocupada onde lerei em voz alta o poema de Ana Akhmátova para os alunos e para as mulheres que lá estarão: “Eu estava bem no meio de meu povo, lá onde o meu povo infelizmente estava”. A destruição está em curso. Tudo vai demorar, mais uma vez. Mariano Marovatto (Rio de Janeiro, 1982) é também www.marovatto.org 262 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | mei oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Pagu sem Palanque “A liberdade das almas, ai! com letras se elabora...” Cecília Meireles Eu, Mulher, tenho nojo de apologia à tortura de ratos e baratas na vagina da cadeira do dragão [para as princesas sem recato e sem castelo] de SIM pela família e pela destruição do grelo de SIM pelos filhos e pela destruição do útero de SIM por Deus e contra a fé na vida no futuro na existência. Eu, indignada e injustiçada, de dentes quebrados e passado aniquilado por um verme [hoje] exaltado aplaudido aclamado saio com o corpo e a alma usurpados pelo estupro pela perda dos direitos [esses eu nunca conheci] pela linha de frente pela chacota à minha feminilidade pelo descaso à minha humanidade pelo circo à minha governabilidade pelo destaque à minha fragilidade. Só porque sou MULHER TORTURADA VILIPENDIADA HUMILHADA INJUSTIÇADA VIOLENTADA 264 DESACREDITADA ULTRAJADA VITIMADA pelo nosso Estado de não-direito não-acesso não-cidadão em nossa História que explica a minha má formação em nossa sociedade fraca submissa pequena nada igualitária. Mas eu luto desde jovem por convicção por paixão Mesmo quando a dor era física Mesmo quando eu achei que conseguiria. E hoje, na minha madureza perpetrada [de sonhos ceifados e torturados] por pusilânimes ataques daqueles que não souberam perder, sei que estou do lado da História da Democracia da Luta. Ao sair, deixarei minha marca. Não começou o fim A mulher que o mundo masculino nega vai fazê-lo dormir sob sua sombra nada mãe e nunca gentil. [Da voz de uma brasileira silenciada e golpeada pelo sim rumo ao fim da democracia no país - mais uma vez - 18.04.2016] Mei Oliveira é pesquisadora em Literatura e Cinema, ou flâneur sem nenhuma propriedade. É professora há 15 anos, por acreditar no poder transformador da Educação e da Arte. Sendo partidária, há 36 anos, do livre pensar, abomina silêncios e recatos. À Igualdade, ao Amor e à Democracia, ela diz sempre SIM. 265 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Fui apunhalada. Um golpe certeiro perfurou minhas entranhas sagradas Foi a farda, a fala mal dada, a mídia comprada, as maletas recheadas Foi o zombar da minha gente, as dores em doses homeopáticas O retrocesso é fato! Quero mais Freire menos Frota Quero ver as panelas batidas em varandas gourmets servirem merenda nas escolas Como será que um corpo suporta, tanta violência inescrupulosa? Como é possível dormir com as vozes em minha cabeça de tantas irmãs mortas? Nossas almas pedem por socorro num silêncio que ninguém nota... ACORDA!! Corrupção instaurada por uma corja Fortunas que ninguém descobre de onde brotam, mas é evidente onde faltam Senhores em seus altares, disputando egos maiores Bancada evangélica definindo o futuro de um estado laico? Democracia ditada por senhores do mato? Fui apunhalada. Meu ventre sangra por todas Dandaras abortadas Minha consciência implora por respostas não dadas Hoje, a revolta que instaura minhas palavras antes calmas, Vem pra minimizar a dor perante essa situação tão caótica! E se com todas essas conversas grampeadas, fatos e provas legítimas Não se fizer entender essa manobra política Voltaremos de vez à Idade das Pedras Pra fazer valer com as próprias mãos a justiça. 267 Mel Duarte é produtora cultural e poeta. Movida pela arte, utiliza suas palavras afiadas para lidar com o chicote vida todos os dias. Está indignada ao ver seu país sendo governado pelos assessores diretos do diabo que insistem em humilhar seus iguais. A hora é agora, seguir em luta, guiada pela revolta, pois TEMER jamais! 268 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger excertos duma peça suja Ato 1. dezessete de abril capitão do mato portando sessentaeoito carregado espalha no púlpito da câmara os nomes dos homens da terra o santo nome, os da parentela suja as mãos de sangue com a consciência limpa pr’encher os vãos da história de hieróglifos ilegíveis [os inscritos cravados nas tumbas obscurantistas do barulho de tambores ensandecidos sua boca cheia de sin não cala o marulho dos nós detrás da mesa de madeira-de-lei [O demo - seria? O demo se ria na cara dos cavaleirxs-contra-os-moinhos-de-vento a demo crash! ia Ato 2. a um dia do 13 de maio Descendo a rua asséptica árvores. condomínios. pius em voo 270 [de novo, a voz dos pios [sic] de povo, mal um piu Pessoas falavam – network Cartazes berravam – sale Na portada do [mall O carro de publicidade no meio-fio: lifestyle – gastronomia. luxo, Quando fogos de artifício rangiram a vitória do artíficie a moça de vassoura em punho não parou de limpar a calçada da loja de doces finos Ato 3. A descoberta do Brasil [nenhuma escrita substituirá a luta contudo – todo verso – impulso do ato , viceversamente.Temer é transitório pros valentes: preenche: __________________________________ __________________________________ __________________________________ __________________________________ ....] 271 Michele Santos nasceu de inverno na metrópole paulistana e vive a buscar primaveras nos entremeios do cinza. Escritora, educadora nas redes públicas de ensino de São Paulo, coorganizadora do Coletivo Cultural Sobrenome Liberdade, faz do alumbramento com a palavra matéria para a lida e para a vida. Lançou Toda via, no último verão. Acredita no que virá. 272 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Patópolis é aqui nosso deus está lá na porta do templo amarelo e inchado de nosso orgulho Patópolis é aqui mergulho em apneia entre as moedas que escondemos avaramente Patópolis é aqui nossas BMW nossas vacinas contra o mundo as bundas brancas rebolantes de Pato Donald o Trump nosso ídolo, nosso totem quá quá quá Patópolis é aqui as crianças mortas sobre a mesa nosso ódio o antigo ódio colonial venham Huguinho, Zezinho, Luizinho vamos render graças ao velho tio quá quá quá 274 Micheliny Verunschk é escritora entre a prosa e a poesia. Feminista em tempo integral, acredita na arte de guerrilha, na pedra da palavra e que golpistas não passarão. 275 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger eis que se aproxima o maior conflito bélico de todos os tempos legiões romanas dominam o colorado e a linha do front candango se rompe do alto da torre de tv digital o inimigo coordena o ataque impiedoso a queda de brasília é iminente e mudará o curso da história tropas nazistas se concentram na ponte do bragueto e no balão do aeroporto dessa vez jan sobieski não virá salvar a cidade sitiada (viena que se dane) galés otomanas ocupam o paranoá e tomam o alvorada pela retaguarda guerreiros celtas explodem o noroeste, incendeiam parte da asa norte quem capturar o memorial jk domina o ponto mais estratégico da cidade, a tumba do fundador profanada escondam seus crachás omitam seus cargos 277 disfarcem a arrogância arqueiros mongóis e tanques sioux se posicionam no parque da cidade os ministérios carbonizados a catedral em chamas a rodoviária: escombros bombardeios sobre o congresso nacional o botim de guerra cobiçado por todos é o trono presidencial, incrustado de carimbos de ouro e clips de prata é a volta da blitzkrieg asteca é a volta dos kamikazes tupis as poderosas muralhas que protegem o lago sul começam a ruir, atacadas por aríetes e catapultas ceilandeses vingativos e desocupados da periferia se aliam aos rebeldes o exército de mercenários ingleses contratado pelo senado se debanda para o lado inimigo os deputados distritais são os primeiros a oferecer aos invasores cargos de confiança (desconfiados, todos recusam) 278 cada superquadra organiza sua própria defesa: barricadas nas comerciais, blocos caídos – a cidade modernista em ruínas, ensanguentada (ali é o eixão ou a via estrutural? pra que lado fica a asa sul?) o encouraçado potemkin direciona seus canhões para a praça dos três poderes que lampião e seu bando tenham piedade de ti Nicolas Behr nasceu em Cuiabá, MT, em 1958. Está em Brasília desde 1974. Poeta, é integrante da geração que tenta dissociar Brasília da ideia de poder, mostrando uma cidade viva, anárquica, criativa. Acredita no amadurecimento político através da participação popular, como temos visto nos acontecimentos recentes. 279 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Como são bonitos o golpe de vista, o golpe de ar e fazer algo de golpe. A palavra golpe se ajusta tão bem à instantaneidade, à surpresa e ao ineditismo do gesto, que até parece uma onomatopeia. Ressoando nela, podemos até ouvir um “gulp”, a palavra antes de ser entoada, como se nela só houvesse as consoantes “g”, “l” e “p”, pronunciadas assim, como um susto. Ops, passou, foi um golpe. Algo aqui soa como um lance, um transe, um galope. Por outro lado, e de forma inexplicável como quase tudo que ocorre na língua - esse domínio do mistério - a mesma palavra soa feia quando usada nas expressões golpe do baú, golpe baixo e golpe de estado. Nesse caso, ela, ao contrário, passa a soar não mais como algo súbito, mas como um processo lento, premeditado e calculado para a sabotagem. Como se o golpe final fosse o coroamento de uma trama urdida lentamente em detrimento de alguém. Nesses casos, a palavra golpe perde a coincidência sonora e soa mais como esquema, projeto e manipulação. São mesmo os golpes que a língua nos dá e que a realidade, imponderável, dá à língua. Nós, falantes, contemplamos, contestamos, aceitamos e, de vez, em quando, inventamos palavras novas. Mas, nesse caso, não há o que inventar. Foi, só e pobremente, um golpe. Noemi Jaffe é escritora, professora e crítica literária. Escreveu Írisz: as orquídeas (Companhia das Letras), Livro dos começos (Cosac Naify), entre outros. 281 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Odyr desenha e pinta, ocasionalmente forma frases. Mora num país tropical onde a democracia quase aconteceu. Tem alguma esperança que um dia, quem sabe. calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Em desacordo i – Entrevista – O voto importa para o golpe? – Sim, pois sem voto, não haveria campanha e, sem campanha, não teríamos financiadores. Trata-se de números, como em qualquer democracia representativa. Segue-se que somente pessoas jurídicas têm direitos políticos e, seguindo tecnicamente a gestão do descarte de sobras humanas, governam por meio de seus periódicos prepostos. – É verdade que a democracia do país está tendo um caso com o golpe? – Acompanhe as notícias deste casal da tevê nas páginas de política, ou nas de fofoca ou simplesmente nos anúncios dos patrocinadores, sempre a seção mais atualizada. – Para o golpe, o verde vale? – Defende a economia verde, isto é, usinas hidrelétricas em áreas indígenas e a ressignificação de bacias hidrográficas por meio de rejeitos de mineração. As paredes das usinas serão pintadas de verde, os rejeitos mudam de cor naturalmente com o tempo, a mudança é o que vale. – O golpe combate a corrupção? – Claro, ele soprará sobre ela e com isso encherá arquivamentos, jantares, liminares e outros bonecos infláveis da política. – O golpe valoriza a política? – Sim, porque ele a transforma em governabilidade, que tem um espaço duplo: paraísos fiscais e valas anônimas. – Segundo o golpe, existe golpe? – Não existe ar para a própria atmosfera, entende? As águas nadam a seco. – O golpe é de direita ou de esquerda? – O Estado segue em frente, isso basta. 285 ii – Estrutura da federação Aqui, onde existia uma perna, passaram dois tiros da Guarda Nacional, não passou a Ambulância Estadual, ausentou-se a Maca Municipal que teria erguido o corpo antes que agentes de segurança pisassem sobre o membro enfim cortado para que a fazenda se erguesse em terras ancestrais. Nesta fossa, soava o Discurso Presidencial na vibração das bombas Estaduais sobre os corpos sem a Licença Municipal de carregarem nos punhos as palavras originárias. Durante o cartaz rasgado, nova Medida Municipal de tempo explodindo os Relógios Estaduais, o Calendário Nacional é sempre da eleição passada, durante o cartaz rasgado e roubado 286 das mãos futuras. No entanto, Ancestral, Originária, ou seja, Futura, a federação das bocas a calar os tiros. iii – Escuta e delação Oi Roliço Tudo bem Delícia Olhe sei que tem umas vagas aí para o meu grupo Ah mas a organizadora é osso duro de roer O que que a [inaudível] está querendo Ela quer critérios claros e transparentes e o seu grupo não se qualifica Posso qualificar oferecendo vaga na [inaudível] da faculdade tem muito seminário Mas é muito pouco Eu sei que o pessoal do tribunal pode oferecer muito mais ajuda de custo que eu mas os eventos da faculdade são mais divertidos Você não entendeu o trampo Não é tão pouco hoje seminário amanhã concurso depois de amanhã chefe de departamento é um investimento como tudo na vida Você não entendeu que ela não está interessada em nada disso ela não quer o seu grupo não se encaixa nos critérios Critério é uma [inaudível] a função social desta verba é ir para a gente não podemos deixar o desvio nas mãos dos desonestos Ela acha que por ser uma antologia de poetas de até 30 anos você não se encaixa Eu tenho duas vezes 30 meu grupo eu mereço o espaço em dobro vamos derrubá-la dizer que ela está desviando o dinheiro oficial Vamos logo afastá-la ela não quis me incluir só porque estou organizando também e tenho uma idade [inaudível] A gente pode ser criativo e dizer que o governo não pode fazer propaganda de opção sexual Boa ideia os progressistas nos ajudam a antologia vai calçar 36 Quanto mesmo estão pagando pela participação nesta [inaudí- 287 vel] [inaudível] Ah rejubilar-me-ei com a porcentagem sobre cada um do meu grupo isto começa a me soar poesia iv – Alarido Impasse no passo impedido pelo Internacionalistas em prol do governo que atacou o sistema internacional de direitos Rápido e ríspido raio que O estupro pauta a política na aliança entre a bala e a bíblia A bomba abrindo as bocas da Os sem-terra de mãos dadas com as longas unhas do latifúndio Vento avante o vórtice Queimar favelas o requisito para se esquentar com a cidade e suas verbas Sussurro insidioso dos ossos sob os Corrupção é tudo igual para liderar o governo o homicídio é o diferencial Patinhos pisando a praça pagando o pato dos pactos aparelhados Aplaudiu o massacre de jovens negros premiado com o palácio e negros jovens que lhe baterão continência Impasse na pauta do raio A merenda furtada quem diria alimentou as festas da justiça Sussurro no vórtice da bomba A aliança entre o boi e o banco deputados que mugem executivos que pastam política Avante o impedimento da praça E se o governo só for isto mesmo a administração de quem cairá amanhã rindo loucamente dos corpos que lhe amortecerão a queda só for isto mesmo a fratura dos discursos a osteoporose do público só for o consenso do protesto com a lápide – em desacordo todas as palavras são políticas – Pádua Fernandes é autor, entre outros livros, de Cidadania da bomba e Cálcio, ambos contrários às continuidades do autoritarismo no Brasil e, em especial, aos golpes repetidamente sofridos pelos povos indígenas. 288 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Como dizia o Barão de Itararé, de onde menos se espera, daí é que não sai nada. Por essa razão, as ruas devem ser ouvidas: áudios verídicos, vazados na mente acovardada e melancólica da escritora. Cena 1 Externa – manhã, céu encoberto. (quando: dia da direção coercitiva do Lula) (onde: avenida Paulista, SP) (áudio: trilha sonora de rojões, fogos de artifício, buzinas de automóveis) (plano de fundo: carros passam, aceleram; no canteiro da avenida, um homem gordo, vestido com roupa social, agita seu corpanzil, frenético, e sacode raivoso, para o alto, o mais alto que pode, uma cartolina: Fora Lulla, Fora PT) (diálogo/monólogo que se escuta ao pé da faixa de pedestres) Senhora x: “Tudo isso porque o Lula morreu” Senhora y: “Por essas e outras que vou votar no Eduardo Cunha para a prefeitura” Cena 2 Interna – noite (quando: domingo pós-afastamento da presidenta [presidenta com a, acesse sempre um dicionário]) (onde: shopping em SP) (imagem: abre-se o elevador, piso três, vemos a loja de departamentos com as portas semiabertas). (áudio: os vendedores, lá de dentro, dão seu grito de guerra, de entusiasmo, o coro ditado pela estratégia de marketing; segundos antes de iniciarem mais um domingo da crise financiada pela mídia). 290 (diálogo/monólogo que se escuta de olhos baixos, todos nós acossados, no fundo da caixa do elevador). Senhora z, após ouvir os gritos, enerva-se, gira o pescoço à esquerda e à direita, sua impaciência não vê a loja, tampouco a reunião dos vendedores. Com o rosto deformado pela careta, dirige-se a mim, justo a mim, e espuma: “O quê? Agora trouxeram as manifestações para dentro do shopping? Esses vagabundos. Que coisa mais sem vergonha. Era só o que faltava, invadirem este nosso espaço! ” Senhor k toma seu braço: “Por isso eu vou comprar a Veja, eles falam de todas essas pegadinhas que estão fazendo com a gente. ” Cena 3 Interna – noite (quando: primeiro dia pós-colóquio mui decoroso entre Machado e Jucá). (onde: praça de alimentação, shopping novamente). (cinto fivelão, carteirão na mão, músculos trabalhados, sabe muito, muito sobre tudo. Está bem certo disso. Bem certo. Aponta o dedo para o rapazote que o escuta sem parar). “... embolsou dois milhões com a lei ruanê, dois milhões! ” Catou a chave da Tucson sobre a mesa: “Por isso eu não vou ao show da Preta Gil, só ouço Claudia Leite, no spotfai, meurmão”. Levantou, não era tão novo, já devia estar nos quarenta; arrematou: “O Brasil precisa de pulso firme, de um paizão”. Sem comentários. Não. Nunca leia a caixa de comentários. Paula Fábrio é escritora, possivelmente vagabunda, insubmissa, descontente. Em luta constante pela cultura e pela educação. Pergunta, a todo o momento, por que rasgaram seu título de eleitora. 291 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger para não esquecer – nº 3 – contra os golpistas de ontem e de hoje Com essa sacava o 38, tinha sempre seis projéteis ungidos em sacros óleos pelo arcebispo; com a aquela manejava o cassetete como quem brinca de espada – lembrança da criança antiga que surrava os empregados, o avô contara que o mesmo dava aos pretos: um tantinho de educação. São as mesmas mãos frágeis que hoje só sabem afetos, as mesmas mãos que viris asfixiavam hoje alisam cabelos (as mesmas mãos – basta que seus netinhos escarafunchem nos vãos dos dedos, debaixo das unhas, ali descobrirão sangue gravado que a senectude não apaga). Não se assustem, meninos, o vovô só lhes dava um cascudo, um tantinho de educação. Pronto, agora todo mundo pra caminha. Paulo Ferraz é poeta e por dez anos viveu numa ditadura militar apoiada pela imprensa, pelos empresários, pelos banqueiros e pela OAB... Até parece que nasci hoje. 293 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Contra seu ventre, nascemos... (Poema em voz alta para ser lido nas vigílias em defesa da Democracia) i. Armazém das Utopias. Cais do porto. Descrevemos uma larga parábola como se desenhássemos a cartografia de um improvável regresso ao que fomos um dia (e já não somos) ao largar do porto de partida: um chão de fábrica, um remoto campo de futebol. Aqui estamos num verão tardio sobre esse chão castigado por séculos de suor. Salgado pelos pés de negros e estivadores. Os rostos marcados por tantas batalhas. E essa luz de estrelas, talvez extintas, nos fere os olhos e o coração, mais uma vez. Envolvido pela algaravia das vozes, pelo calor dos corpos, esperanças e enganos que me cercam, teço com os dedos do espírito, num relâmpago, como na tela plana de um computador, essa íntima geografia de tempo e silêncio por onde miro as sólidas estruturas de ferro, tijolo e sonhos que nos abrigam, por um momento, da ferocidade dos inimigos. Contemplo a fria lâmina dos ódios que desatamos. Temperada por séculos no fogo lento dos banguês, das caldeiras desse engenho tropical de mando movido à surda força de espora e rebenque e penso: como podemos esperar um ato de contenção ou respeito da mão que nos desce o látego sobre o lombo em carne viva? E maneja a lâmina, de golpe, contra a cabeça que se levanta? A mesma mão guiada pela fúria de quem dia após dia, por vergonha, desejou nos encarcerar no ventre? E nos negar a luz e o ar que respiramos? E nos calar a voz e interditar o gesto? Essa ibérica senhora coberta de rendas, e arrogância, habitante do solar da Casa Grande para quem nunca deveríamos ter nascido? E saber que apesar dela nascemos... Contra seu ventre, nascemos... renascemos todos os dias, 296 como se fôramos uma vingança da vida, com outra luz, que ilude o cerco da sombra, e acende aqui uma nova face, outra estrela recolhida no estoque infinito das utopias, renascemos... ii. Que a cidade possa nos ouvir desde o Cais do Valongo. Que o país possa nos ouvir pela voz sobrevivente de João Cândido um dia enterrado em cal virgem. Renasce aqui o rumor das ruas entre a canção e o grito que se desata de dentro das veias para alcançar os ouvidos da multidão anestesiados pela Hidra de Lerna ou do Jardim Botânico? Pergunto. Será esse o lugar onde viemos beber canções pisadas pelos pés de negros, guiados pela batida dos tamborins, que se ouvem nos becos da Lapa, nos morros da Providência e da Conceição para retomar a marcha? Aprendemos nos Pelourinhos que não se palmilha desertos tão vastos, sem recuos. Sem erros na rota que traçamos e o vento varreu do areal durante a noite. 297 Sem traições, desvios, vilanias. Sem as perdas de muitos que a tempestade apartou de nós. Sei, desde tempos subterrâneos, que não estão vendados os olhos da Justiça. Que Justiça pode fazer a justiça de uma só face? Que Justiça pode fazer a justiça de classe? Mira com um olho só a justiça dos meninos de granja. Invocamos nossos santos e orixás, nossos combatentes e sua memória para redesenhar o percurso. Repercute no peito o som do surdo. Ecoa a cadência de um samba antigo, sempre novo, para alimentar esse delírio que nos assalta a medula: fomos condenados à liberdade. Seguiremos proscritos por uma ordem sem remédio. Alimentados pela voz rouca do peão que não se dobra ao açoite. Devo curvar-me até ao chão para recolher os estilhaços da estrela, a palavra e o sal que sustentam nossas dúvidas e nossas certezas: não seremos expulsos do tempo que nos coube viver. Contemplo vigas, tijolos, palavras. Os rostos. Os corações abertos. As cores, os abraços. As lágrimas. 298 Os olhos das pessoas inundados pelo sublime veneno da esperança. Estamos de pé, para retomar a marcha interrompida. Agora é a vigília. Agora é a rua, a praça, os becos, os morros, os cais, os corações. O chão da fábrica, o assédio à cerca do latifúndio. As escolas ocupadas pelos que nasceram depois de nós. A guerrilha digital contra a acidez do ódio que sonha dissolver a invencível alegria de nossa gente. Acreditem, os sonhos do ódio, não vingam. Rio, 27/02/2016 Brasília, 10/03/2016 Pedro Tierra nasceu no Tocantins em 1948. Quando publicou seus primeiros textos quem se interessou não foram os críticos literários, foi o delegado de polícia. O primeiro livro, Poemas do Povo da Noite, foi escrito durante os cinco anos de prisão que cumpriu nos períodos Médici/Geisel e traz como epígrafe: “Há os que vivem lamentando a opressão, eu viverei denunciando-a” (Babeuf). Ela dá sentido ao que escrevo. 299 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger O terror o terror o terror do estado o terror o terror fardado o terror o terror invade a tua casa o terror de terno e gravata exclamando bordão o terror nas manchetes de jornal o terror em muros grades estacas de edifícios o terror habitando mansões o terror assombrando a multidão o terror o terror promove chacinas genocídios o terror trancafia o bem no cofre dos peitos o terror justifica o terror o terror lincha culpados e inocentes o terror está armado de argumentos o terror quer te convencer que é inocente o terror é um homem de bem o terror o terror sangrando os dentes o terror em comentários de portais o terror misturado no arroz feijão o terror pra nos manter calados o terror reformatando as almas o terror organizando as filas o terror levando pras prisões o terror o terror estampado nas vitrines o terror em 30 segundos comerciais o terror sufocando o teu ar o terror te vê do alto de arranha-céus o terror faz sombra nos mendigos 301 o terror não gosta de crianças o terror o terror o terror o terror vai estar lhe transferindo o terror cochila às sextas-feiras o terror não dorme nunca o terror não te deixa dormir o terror vende os teus rivotris o terror é alucinógeno o terror come teu fígado o terror ainda vai te matar Pedro Tostes guerrilha com as palavras há 20 primaveras de luta. Mais famoso por seus entreveros com a lei do que pela eficácia da lira. 302 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger pertencimento: leitura de mundo Novas Perspectivas frente ao golpe no Brasil O problema social no Brasil é um problema de leitura. Não apenas a leitura do livro, mas da notícia, da mensagem midiática, dos acontecimentos, a leitura de mundo. A apreensão do narrado se dá entre a história visível e a subjacente, a que se revela nos interstícios da história. O que há por trás da notícia? Quando, por exemplo, um taxista diz: “Também acho um absurdo esse abuso cometido pela polícia militar que mata indiscriminadamente os jovens universitários e é por isso que sou a favor da intervenção militar no Brasil” podemos sugerir que esse sujeito não possui leitura de mundo. Ele liga dois pensamentos excludentes e, portanto, ilógicos. Isso não é um raciocínio dialético, é inabilidade crítica. Quando um grupo de pessoas se une nas ruas para pedir a intervenção militar no Brasil, será que esse mesmo grupo tem conhecimento das consequências nefastas que tal exigência implica em suas próprias vidas? A grande mídia orquestrou o golpe e assim, conseguiu afastar do ministério mulheres, negros e gays, além de diminuir vários programas sociais que alavancaram o surgimento de uma nova geração periférica dentro das universidades. Deputados comprovadamente corruptos tiraram uma presidente do cargo sem prova de crime de responsabilidade. Acusar, denegrir e punir não deve vir antes da comprovação da inocência. Se a inocência é negligenciada pela punição imediata, será que há uma leitura dos fatos correta ou apenas desejo de punição e castigo? O problema social do Brasil é um problema de leitura. E para que a mudança ocorra é necessário haver uma real problematização sobre o que se vê e o que se lê. Nunca se viu tanto, nunca se leu tanto. E nunca se compreendeu tão pouco. O discurso TFP (Tradição, Família e Propriedade) que inunda hoje o país, asfixiando qualquer singularidade, comprova uma cegueira generalizada. A leitura de mundo pode ser o ato revolucionário deste milênio se existir por trás a necessidade de aprofundar 304 quais são as reais causas que impedem a tolerância e o convívio social com a pluralidade e a diferença. Os Felicianos anseiam pela falta de pensamento próprio, pela falta de imaginação, que na verdade é justamente a única forma de desvendar a realidade que nos cerceia. Eles querem tirar de nós o espanto. Não se arranca a alma com intervenções militares. Com canhões. Com discursos autoritários. Lutaremos até o fim pelo direito à nossa identidade (com alteridade). Porque a noção de pertencimento nasce da cultura. Priscila Gontijo é carioca, radicada em São Paulo. É dramaturga, roteirista, licenciada em Letras Português/Francês pela PUC/SP e artista-orientadora de teatro do Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura da cidade de SP. Filha de jornalistas, conviveu desde criança com militantes de movimentos sociais e figuras como Henfil e Frei Betto, que a incentivaram a acreditar no contato direto com os movimentos nos quais os pobres se organizam e lutam por seus direitos. É contra o golpe, a favor da democracia e luta contra o machismo, a misoginia e pelo fim da cultura do estupro. E a favor da volta de Dilma ao poder. 305 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger não é nada demais As pessoas só estão assustadas não houve tempo e você sabe as cenas se desenrolam sem um ensaio sem sequer um roteiro as pessoas pegam o que têm à mão se você olha de longe pode perceber o medo e o em si mesmo curiosamente animal das pessoas Dirceu Villa – As pessoas só estão assustadas não é nada demais nós só estamos assustados hoje se fizer frio e se chover ao mesmo tempo e por causa disso só por causa disso não pudermos sair de casa nós só estamos assustados quando chegamos tarde da noite cansados e acendemos todas as luzes da casa nós só estamos assustados ao pedir para o garçom que nos troque de mesa ou os talheres por algo mais confortável só estamos assustados com os olhos pregados na embalagem de um alimento matinal que vem pronto nós olhamos assustados para os gatos à noite havíamos imitado os gatos à noite à noite quando olhamos bem assustados para os olhos de alguém e repetimos aquelas frases que escolhemos para declarar nosso amor que pode bem ser amor verdadeiro como os tais girassóis de Van Gogh para os quais nós também nós já olhamos assustados nós só estamos assustados e falamos o tempo todo de jogos de gato e rato e esperamos o tempo de olharmos em volta como o gato, nós somos os ratos nós só estamos assustados como quando começa o carnaval e sabemos que se chove ou não sempre nos sobra alguma coisa porque 307 todas as ruas são becos e todos os becos são avenidas intermináveis nós só estamos assustados mesmo quando você volta atrás e decide que agora sim vai me seguir embora não esteja clara a diferença entre amor e adoração para que eu te siga também e também assustado lhe digo que procuro a um bairro industrial antigo quando passo pela praça em frente de onde você mora e penso que se me visse agora ou não me reconhecia ou ficava muito surpresa nós só estamos assustados lado a lado pensando tratar de outro assunto nós estamos ficando assustados porque digo a você quero vê-la mesmo assim nós só estamos assustados querida nós dormimos assustados nos braços um do outro e acordamos ainda assustados nos braços um do outro quando é tarde da noite e passamos o dia todo em claro estamos mesmo muito assustados assustados quando olhamos para o calendário e nos parece ver ali outro futuro que não este a que estamos condenados ficamos mais assustados nosso futuro ainda não estava no calendário quer dizer que ainda não estamos com os dias contados nós só estamos vivendo numa época em que chamam luz à escuridão e embora minha língua esteja morta suas formas me enchem a cabeça nós só estamos vivendo num período cujo nome não sabemos e embora seja o medo o que me move meu coração está parando nós só estamos assustados quando vendemos nosso carro muito barato quando compramos outro carro mais caro nós só estamos assustados quando vendemos nosso carro por uma bicicleta porque nossos filhos terão de esperar tempos melhores para nascer nós só estamos assustados mas não chegue tão não chegue perto talvez não seja tempo ainda de se dizer que nós só estamos assustados Rafael Rocha Daud é poeta e psicanalista; teme o ridículo, teme o cansaço, teme o precisar de esperanças, mas teme acima de tudo o governo do medo, assim chamado o inevitável. 309 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger quando você olhar pra essas pernas saiba que são pernas de ciranda pernas que marcham e que dançam pernas que enfrentam homens armados pernas que se entrelaçam com outras pernas pernas pernas pernas pernas de luta e de festa pernas de explorar o palco pernas parecidas com as suas pernas estendidas na rua pernas doídas de correr atrás do ônibus pernas que derrubam as suas pernas pernas pernas quando olhar pra essas pernas saiba que elas são minhas e não suas Regina Azevedo é natalense nascida em 2000. Poeta, militante, sente uma forte dor de barriga ao ver seu país entregue a ratos de terno e gravata. Ela se recusa a desistir e um dos seus meios de resistência é a poesia. 311 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger uma manobra política a portas fechadas (grossas cortinas, verniz da impostura), no grande teatro, um homem – tão homem e velho e branco – prepara mais um discurso de posse. sua fala precisa (gravata alinhada) explana a si mesma e a seus pares as medidas necessárias para o grand finale. ele quer e acredita pôr tudo nos trilhos, construir uma ponte, pôr ordem na casa: seus atores, no palco, com seus ritos legais, com seus gestos certeiros no xadrez do mercado, repetem o bordão não me inveje, trabalhe. mas um NÃO (movimento com tantas mil faces) no meio da rua interrompe seu pacto. (contra a farsa, queima o fogo das legiões – e somos muitos) Renan Nuernberger (São Paulo, 1986) é poeta. Embora se entristeça com a política institucional e suas manobras, reencontra alegria na força renovadora dos movimentos sociais que, de diversas maneiras, enfrentam a rígida ordem vigente. No momento, está organizando um livro, Luto, cujo título quer ser lido não como substantivo, mas como verbo. 314 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Teve Copa. E teve golpe. No Brasil, em 2014, teve copa. Fui contra desde antes do 7x1. Nunca gostei do futebol, um esporte que frequentou compulsoriamente minha infância, mais como pedágio da violência simbólica de uma sociabilidade masculina forçada do que como vontade sincera de correr atrás da bola. Mas não é só. Também estava contra porque achava que a Copa encarnava o megaevento da exclusão e representava a velha exceção brasileira potencializada na grande escala, sem falar naquela empolgação verde-amarela desbotada de quem berrava ofensas como “vagabunda” e “puta” para a presidenta no estádio. “Ei, Dilma, vai tomar no cu” era o grito torcido que ecoava das bocas das pessoas brancas, repletas de dentes bem clareados e alinhados, enfim, daqueles nossos velhos conhecidos “cidadãos de bem” que tinham dinheiro de sobra - ou ao menos suficiente - para pagar um salário mínimo por um lugarzinho naquela abertura de cafonice estética ímpar. Enquanto isso, no mesmo horário, eu estava na manifestação do “Não vai ter Copa”, não tão longe do Itaquerão. Fazíamos um protesto pacífico na margem da Avenida Radial Leste, perto do Tatuapé, caminho por onde passavam os carros oficiais e de passeio rumo àquela grande festa. Enquanto uns tocavam vuvuzelas e xingavam a presidenta lá, aqui nós ganhávamos bombas de gás, balas de borracha, spray de pimenta, porrada de todos os lados. A única saída foi o refúgio dentro da quadra do Sindicato dos Metroviários, que nos abrigou enquanto cavalos, viaturas, tropas de choque, helicópteros nos sitiavam do lado de fora. A polícia é estadual, mas a ordem e a lei eram determinação federal. Por isso, eu também estava revoltado com Dilma, desde antes do 7x1. Mas por outras razões. Ali, acuado diante da iminência de uma invasão violenta, o espaço pelas “forças de segurança”, sem ter pra onde correr, em um momento algo epifânico, enxerguei o que já era evidente: nós perdemos. 316 Perdeu o time brasileiro de 7x1. Perdia Dilma que se reelegeu ao final daquele ano com promessas às esquerdas e fazendo um governo cada vez mais rendido às direitas até seu vice conspirar e tomar seu lugar. Perderam o senso de alteridade e de respeito aqueles que faziam panelaços com xingamentos machistas a cada pronunciamento da presidenta na televisão. Perdeu-se a dignidade com gente nas ruas pedindo volta de uma ditadura. Perdemos nós, que fomos golpeados pelo autoritarismo deles e por erros nossos. No fim, teve Copa. E logo teve golpe. E, em meio ao golpe, ainda vai ter Olimpíadas. Mas a sorte é que ainda não perdemos a história e a oportunidade de estar do lado certo nessa disputa. Renan Quinalha é um ativista dos direitos humanos que tem certeza de que é um golpe contra nossas liberdades. E também de que é preciso resistir com todas as boas armas: pedras, noite e poemas. 317 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger etimologias golpe de sorte vai bem golpe de ar às vezes resfria golpe de mestre nem sempre ensina ippon é o golpe preciso mas quando golpe vem de traição conchavo maracutaia vira golpe baixo golpe sujo golpe de Estado que serve para sitiar cidadão democracia esperança golpe que também é trapaça para burlar a lei garantir privilégios manter os poderes do usurpador a gula do capital o ódio fascista contra tudo o que pode ser libertário luta libido arruaça praça canção pedra noite poema esse golpe tramado mais abaixo do subterrâneo provoca náusea e medo dos ditadores de sua abominável sombra onde flores medrosas morrem Reynaldo Damazio nasceu às vésperas do golpe militar de 1964, numa família pequeno-burguesa; começou a escrever poemas (ruins) e peças de teatro na adolescência; formou-se em sociologia e sempre trabalhou com livros e literatura, mais por teimosia que competência. Ainda se considera de esquerda e costuma ver o mundo sob uma perspectiva rebelde. 319 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger do fundamentalismo de um lar mariazinha cresceu em uma casa bem família com pai de família na patente mais alta bem cidadão de bem firmemente orientada a ser mulher extremamente direita docilmente pela voz materna domesticada seja vaso e escrava mais nada mais ou menos quando deixava de ser menina se percebeu gostando de meninas a mulher que nela se precipitava divagou sobre as reações do tal lá do patente alta algumas gravadas no espelho por vezes em segredo negado rosto de mãe trincado pela mão de macho no quarto sozinha enquanto a corda terminava de estrangulá-la seu último sopro aliviou 321 já nem mulher nem menina passa agora a mais nada e desabitou a casa Ricardo Escudeiro é poeta e vive em Santo André/SP. Cresceu e trabalhou com metalúrgicos. Com alguns deles aprendeu a não crer em discurso de patrão e procurar a transgressão. 322 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger história (às vezes oral) do tempo presente Parei na calçada agora cedo para esperar o farol fechar. Dois garis conversavam perto de mim, aparentemente tranquilos. Ouvi a frase de um deles: – Se essa menina tivesse um macho que nem eu em casa, não precisaria ser estuprada por trinta. * A Universidade de Oxford está organizando um evento acadêmico de grandes proporções para discutir a situação política brasileira e os caminhos para superarmos a dicotomia. (O título do evento é “Transcendig the dichotomy”.) São 17 convidados. Entre eles, 2 mulheres. Todos brancos. Posso citar alguns nomes: Persio Arida, Celso Amorim, Luis Roberto Barroso e o impagável Luis Felipe Pondé. Não convidaram nem um artista, ninguém dos movimentos sociais e, repito, nem um negro. Quase todo mundo de direita. * Vi que os lucros dos bancos continuam crescendo. O Congresso Nacional está estudando o perdão à dívida dos convênios médicos. * Estou na fila do caixa do Fran´s Café da Haddock Lobo. Duas meninas estão namorando em uma mesa à direita. Na minha frente, um casal um pouco mais velho que eu conversa: – Antes do PT, isso não acontecia. – É culpa da Marta Suplicy. Se ela não tivesse no poder não teriam coragem. – E aqui em São Paulo temos que aguentar o marido dela de prefeito. – Só sabe fazer ciclovia. 324 * O principal executivo do Bradesco, de sobrenome Trabuco, foi indiciado ontem pela polícia Federal, acusado de corrupção em um tribunal que julga questões tributárias. * Um menino com uma caixa de engraxate me pediu agora há pouco na fila do supermercado para eu comprar três latinhas de graxa para ele trabalhar. Eu coloquei as latinhas no meio das minhas poucas compras e o menino saiu para me esperar lá fora. Uma senhora então se virou e disse que eu não devia gastar dinheiro com esses vagabundos. * Jorge Coli publicou um artigo na Folha de S. Paulo afirmando que o ambiente da performance contemporânea é frívolo. * Na esquina ali atrás, ao lado do banco, sempre fica um rapaz de uns 16 anos vendendo chocolate. Todo mundo daqui o conhece. Hoje, um homem subia a rua bem na minha frente, quando o rapaz se voltou para ele e estendeu a caixa de chocolate (Charge). Na hora o cara deu um pulo para trás, estendeu as mãos e atravessou a rua correndo, quase foi atropelado. Ouvi o que ele disse: – Não me assalta! O vendedor ambulante respondeu: – Tio, o senhor só pode me chamar de ladrão depois que eu te roubar, não antes. Aconteceu há 20 minutos em uma esquina de Moema, em São Paulo. 325 * Tuíte de uma pessoa chamada Rodrigo Constantino: * Fiz uma palestra-performance ontem no Departamento de Filosofia da Unicamp. Fiquei em Barão Geraldo com a intenção de, hoje, tomar um café com o Leonardo e depois voltar para São Paulo no ônibus que sai do campus às 13 horas. Descobri agora que por conta da paralisação só teremos o carro das 17 horas. Estou almoçando um yakissoba no Ciclo Básico. Passaram duas mulheres ao meu lado agora há pouco e uma disse para a outra que a sua vontade é de cortar o pinto dele. Ricardo Lísias publicou sete livros, tem quarenta anos, e sua mãe achava que ele nunca iria assistir a um golpe de estado. 326 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Vazem, demônios Flecha que partiu beijo que traiu nude que mandou panela que bateu fofoca que fedeu espelho que trincou pasta de dente que saiu presidente que mentiu – porra nenhuma volta atrás Vazem, demônios das ruas aos palácios Lavem, hormônios cus, bucetas e caralhos Queimem os patrimônios derrubem os armários fumem o Deuteronômio – se tudo virou adversário só a putaria total salva o Brasil Ronaldo Bressane (São Paulo, 1970) é poeta, ficcionista, jornalista e quer eleições gerais já. 328 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Legalidade jurídica Golpe é uma palavra muito forte. Eu não sou golpista. Eu não tinha como saber que você estava falando sério quando disse não, eu achei que você também queria, vai dizer que você não estava gostando nem um pouquinho? Você brava fica tão bonita, minha querida presta atenção, eu não tinha como saber, você é uma vagabunda adora essas coisas como eu ia adivinhar que não queria? Achei que estivesse se fazendo de difícil, resistindo um pouquinho, feminista adora já falei que não foi golpe. Eu fiz tudo por você e não precisa gritar, achei que você ia acabar gostando e foi tudo culpa sua, se tivesse cedido logo não ia ter sangrado tanto, eu não tinha como saber que você não queria. Não foi golpe, sua puta, também não precisa falar assim, você provocou, ficou falando que ia resistir até o final e eu achei que você queria, vai dizer que sua carne não é minha? Eu não sou golpista, no fundo você gosta disso tudo que eu sei sua puta, você adora dizer que não e ficar toda sofrida você devia me agradecer por tudo que eu faço por você. Eu só estava brincando, poxa, como eu ia saber que você não tem senso de humor? Eu peço desculpas, mas só se você renunciar. Anda, querida. Não é golpe se a gente se ama. Sheyla Smanioto é escritora puta da vida e pronta pra luta. Reside na periferia de São Paulo, tem 26 anos e habita um corpo assombrado por mil mulheres. calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Shiko é paraibano, faz quadrinhos, ilustrações, graffiti e cinema. 332 333 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Inteiro teor dELA ELA foi despertada por grunhidos de ratos e pela angústia vivendo dentro do seu estômago devido aos tempos de constante bruma onde a direita tentou dia após dia imperar e atrasar os rumos do Brasil. Enquanto os ratos insistiam em se debaterem e proliferarem abaixo de seus pés no porão da casa onde vive há pouco mais de quatro anos. A certeza de não fugir à luta crescia, precisava levantar, pegar a vassoura e varrê-los dali o quanto antes. Ao chegar na cozinha, ligou seu pequeno radinho de pilha para tentar distrair a cabeça. Entre canções, o locutor anunciava um golpe de estado em tom de vitória, distorcendo o fim da democracia e o estupro de uma Constituição como algo positivo. Aquilo tudo era irritante por demais, afinal sentia dentro de si o quanto rechaçava toda e qualquer manipulação da mídia em desfavor de um governo democraticamente eleito. Tomou um gole de café e abriu o jornal, as manchetes eram angustiantes. ELA pegou uma caneta pilot preta e começou a rasurar uma notícia, ocultando dela frases tão cheias de mentiras onde se lia claramente uma direita manipuladora, interessada apenas em destruir e mascarar tudo que havia sido construído pelo governo nos últimos anos. Extraiu dali o que percebeu ser um poema-protesto e o inteiro teor dos seus sentimentos tão golpeados nos últimos tempos. Seu despertador apitou, precisava sair - era dia de ato no país. Foi então que se lembrou que antes de ir para as ruas ainda havia ratos interinos para serem retirados do porão e varridos para fora da casa. 335 Stefanni Marion um dia encontrou dentro de sua caixa de correios uma pequenina bandeira vermelha. Sem remetente, sem envelope, estava lá vibrante misturada às cartas e contas para pagar. Sorriu, enfaixou-a no pulso feito um cordão umbilical e levou-a para morar com ele. Hoje ela é sua alma. 336 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Sobre barcos bêbados e trens desgovernados Perdemos muito nos últimos meses. A cada semana que passou perdemos mais. A cada um dos últimos dias perdemos mais intensamente. E é bem provável que amanhã e depois seja ainda mais veloz nossa derrota. Não é exagero, não é drama nem charminho. Aliás, seria bem tranquilo poder ficar aqui vendo a composição e as decisões do governo provisório-mas-definitivo e dando risada de quem apostou nas melhorias que viriam com o golpe. Mas não dá. Nem tem lugar para “eu te disse”, para escarnecer de quem dizia “fora corruptos” ou “tchau querida”. O barco é e sempre foi um só: não dá para rir de quem achou que seria legal vê-lo afundar, enquanto afundamos junto. Estamos assistindo ao desmanche dos frágeis pilares de um país melhor: os melhores horizontes da Constituição estão sob ataque, o (pouco) que há de mais democrático nas instituições está sob ataque, as ideias mais interessantes estão sob ataque. Não sei dizer o quanto disso tudo é irreversível, caso o processo se reverta ou, quem sabe, surjam outras forças políticas à esquerda, porque a vida política às vezes é surpreendente. Mesmo os mais atentos observadores da política brasileira estão em sobressalto, surpresos com as voltas e reviravoltas dos últimos meses, principalmente pela constatação diária de que tudo aquilo que havia para não deixar tudo aqui ser ainda pior é bem mais frágil do que costumavam afirmar. Ninguém mais se arrisca a dizer “não vai passar, porque a Constituição proíbe”, ninguém mais tem muita convicção quando diz “o Judiciário vai barrar com base na lei”, todos hesitam quando dizem “eu tenho direito”. Está tudo suspenso, estão todos surpresos. Perplexos. Você dorme imaginando que o trem vai para um lado e acorda vendo a máquina sumir na direção contrária. O desespero nos faz arriscar ou acreditar nas previsões mais variadas, mas é só desespero. Fizemos de tudo pela governabilidade e acabamos escorregando para fora de qualquer normalidade – o Brasil de hoje é um país desamarrado. Se as coisas por aqui nunca foram fáceis, se o país real nunca en- 338 tregou o “país do futuro” que esperamos, a hora agora me parece ainda mais aterradora. Há tempos me dedico a defender que, por mais que os grandes males do país se devam à parte que cumprimos no capitalismo, há instrumentos no direito que podem ao menos ajudar a resistir na esfera local e preparar para lutas mais amplas contra a lógica do capital. Ver agora tais instrumentos escorrerem entre os dedos é uma forma bem dolorosa de perceber que a luta por um país melhor se tornou mais difícil ainda. É desse retrocesso que estamos falando. UM PAÍS A TEMER Presidência Salvo-Conduto Vice-Presidência Roleta-Russa Ministério do Planejamento de Fuga Ministério da Defesa Criminal Ministério da Intransparência Ministério da Desfazenda e Antiprevidência Ministério da Deseducação Ministério da Saúde para Quem Pagar Ministério da Agricultura Gourmet Miniministério da Cultura Ministério do Trabalho Precário Ministério das Submissões Exteriores Tarso de Melo nasceu em 1976 e não sabia que, então, seu país vivia sob um golpe, muito menos que, 40 anos e um pouquinho de democracia depois, estaria na mesma situação. 339 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger ergue mais um arranha céu no coração da cidade em meio às sinagogas no lugar de um antigo batalhão ergue mais um arranha céu no coração da cidade com a bênção da igreja destruindo um antigo quarteirão tira a criança no braço bota essa escola abaixo mete um prédio no alvo desse megacondomínio sampa judaico cristão a meninada deu lição de história resistiu ocupou encantou não adiantou truculência não adiantou força bruta não adiantou a violência desse estado velho e decadente fernão dias vaza fernão dias bandeirantes desprestígio fechou caminho 341 fogo na mata faca nos índios virou grife virou marca virou nome de estrada virou nome de escola que agora é ocupada por meninas e meninos que sabem o que querem e cantam fernão dias vaza a escola fica fernão dias vaza a meninada fica fernão dias vaza a poesia fica Tatá Aeroplano lançou recentemente Step psicodélico, seu terceiro disco, onde canta com vozes diferentes e encarna as entidades que vivem dentro dele. Adora o som derretendo pelas paredes, melodias espaciais e o chão de terra batido e pulsante que salta pra fora das caixas de som. 342 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Aqui de Lisboa, do meu (auto)exílio, eu queria escrever uma carta, mas já não se escrevem cartas. E também não saberia para quem escrevê-la. Para um amigo que reconhece o golpe e luta contra ele? Para um amigo que reconhece o golpe mas vai ao supermercado como se nada fosse? Para um amigo que diz não saber se é ou não é golpe? Para um amigo que diz que o impeachment da Dilma não é um golpe, mas uma vitória da população que foi pras ruas? Para o povo brasileiro? Se é que realmente existimos como povo... Pode um povo não ter memória? Pode um povo ter esquecido a barbárie ocorrida 50 anos atrás? Ter esquecido que faz muito pouco vivemos outro golpe, que os militares tomaram o poder, que a liberdade foi cerceada, que milhares de pessoas foram perseguidas, silenciadas, presas, assassinadas? Porque não temos memória, começamos sempre do zero. Dito assim, até pode ser bonito, poético – imaginem se esquecêssemos diariamente que o sol se põe? Mas também tenebroso. Só o esquecimento permite que um novo golpe político seja engendrado como se não fosse um atentado à democracia. Só o esquecimento pode fazer alguém acreditar que o PMDB quer limpar o Brasil da corrupção. Nietzsche já dizia que para esquecer é preciso, antes, lembrar. Lembremos nossos mortos, então. Lembremos nossas bocas caladas. Nossos cálices de vinho tinto, de sangue. Lembremos o que era o Brasil militar. Lembremos o que é viver num país sem democracia. E não deixemos que o retrocesso dê cabo de nossos valores, de nossas conquistas. Não deixemos que se louvem torturadores. Não deixemos que a política seja feita à nossa mercê. Não deixemos as mulheres de fora em 2016. Nem os negros, nem os homossexuais, nem os índios. Chega dessa hegemonia branca e machista. Lembremo-nos de quem somos e só assim existiremos. Quando eu era adolescente, ouvi várias vezes que a minha geração era acomodada porque não tinha motivo para lutar. Não havia um inimigo. Pois bem, o monstro não demorou a reaparecer. À luta, então. 344 Tatiana Salem Levy vive há três anos em Lisboa, onde nasceu durante o exílio de seus pais. Do Brasil, chegam as mais terríveis notícias. Não pode ir para a rua, mas acredita que as palavras têm seu poder de transformação. 345 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Tempo de se envergonhar do filho no tempo de se envergonhar do filho anda-se curvado e de cabeça baixa rabo entre as pernas alma ulcerada no tempo de se envergonhar do filho não há como explicar à cria a fome o estupro o desprezo a tirania a bota no pescoço do desarmado no tempo de se envergonhar do filho tudo é causa de acanhamento o ar é ácido a água é podre o céu imundo a lei é surda a voz é muda a vida um perigo no tempo de se envergonhar do filho o passado é um peso o presente opressor o futuro temido no tempo de se envergonhar do filho há um planeta de primatas armados metralhando a infância a graça a alegria exilando beleza poesia e arte pendurando a liberdade num pau de arara antigo esse tempo de se envergonhar do filho eu não quero não aceito não me cabe não me venham eu engulo qualquer coisa menos isso menos isso menos isso São Paulo, maio de 2016. 347 Thelma Guedes, com 5 anos, viu seu país virar ditadura. Com 13, viu professores sumirem. Com 16, viu a ditadura matar o povo de fome e falta de ar. Lutou, protestou e, com 26, viu a ditadura acabar. Com 44, viu um nordestino operário, como seu pai, tirar o Brasil do mapa da fome. Com 57, luta contra o golpe que quer fazer o tempo voltar. 348 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Osso Era uma porta. Ou: era uma porta a ser porta. No centro de uma parede acinzentada, sem tinta, fez-se um retângulo de quatro lados quase iguais. Na parte de cima, na primeira linha horizontal, prendeu-se um suporte de aço, desses que descem quando está terminado o expediente. Mas não era um comércio, era uma casa, talvez um país. Foram feitos nos lados verticais do retângulo, para que a porta pudesse desenrolar e deslizar, fechando o vão quadrangular, sulcos que seriam forrados por moldes de aço, moldes que receberiam camada de graxa. A borda da porta, presa de cada lado do interior dos moldes, deslizaria por ali. A porta seria porta, cumpriria seus fins, confirmaria engenhos. Usou-se marreta. Os moldes foram afixados com concreto fresco. O que temos agora é um vão quadrangular cujos lados verticais são borrados por uma mancha cinza, que é o concreto fresco fixando os moldes e refazendo as quinas antes desfeitas a marretadas. Foi quando passei em frente à porta que testaram a porta. Não vi quem eram. Ouvi a porta descendo: uma chapa mole de aço escorregando para baixo, o retângulo subitamente aberto tornado uma invariável superfície metálica. Um molde envergou; o outro saltou. Estourou cimento fresco, as quinas desfeitas, os tijolos abertos sob o sol a tudo indiferente. Os aços entortaram e saltaram, a porta dobrou e não fechou, desfaleceu como uma doente, envergou-se, como de joelhos, entre as estruturas de aço rasgando o cimento fresco. 350 Thiago Mattos nasceu em Petrópolis. No dia seguinte ao golpe jurídico-midiático-parlamentar, uma amiga de 70 anos lhe disse aos prantos: nem eu nem vocês nunca teremos visto a democracia. Quer crer e ver que não é verdade. 351 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Eu tenho dúvidas sobre muitas coisas. Antigamente as pessoas tinham dúvidas, eu acho. Não sei se é hora para poemas ou panfletos (Michel Temer também escreveu seus poemas). Não sei se é hora para usar vermelho, para jargão, para provar uma tese. No entanto, apesar das dúvidas, sem esquecer as dúvidas, porque não é hora para vacilo, estarei na rua articulando minhas convicções provisórias e organizando o nojo e o ódio por esta máfia despudorada cheia de dinheiro e de mandatos. Tony Monti acha que tem muita gente querendo microfone e palanque e pouca gente disposta a ser mais um na rua. 353 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Sou uma garota ousada Meu cabelo é crespo, minha pele é negra Meu esmalte é colorido, meu batom não tem cor Não tenho boca de mulata Minha pele é negra Gosto de salto alto Mas não uso meia fina, Meu decote te incomoda? É melhor do que andar nua Mostrando minha pele negra... Sou uma garota ousada! tenho 29 anos mas, já vivi mais de 100 Considerando meus conhecimentos Minha sabedoria Incluindo a rebeldia Não sou uma menina má, não! Posso ser poesia Uso um turbante, pego um violão, Abro um sorriso, beijo um camarada Durmo com quem quiser e sigo sem compromisso Sou uma garota ousada! Meu cabelo crespo, minha pele negra Já esperei um príncipe, já vivi na favela, sou da periferia Toco violão, escrevo poesia, tiro uma fotografia Ando na madrugada! Nos batuques de umbigada! Tango, hip hop Mostro meus conhecimentos Canto com os camaradas! Sou uma garota ousada! Meu cabelo crespo, minha pele negra Tenho que ser corajosa, persistente e abusada Carolinas e Dandaras Aqualtunes e Odaras Para ser uma garota ousada... Tula Pilar é poeta, performer, dançarina (dança negra, dança do ventre). Mantém desde 2004, junto com seus três filhos e convidados, o COLETIVO RAIZARTE. Está indignada e descontente com o ocorrido no país no dia 12 de maio de 2016. Sente muito por Dilma Rousseff, acredita que é assustadora a traição sofrida por ela. Mulheres (inclusive as negras) terão que se fortificar, ser “ousadas” na luta por mudanças em nossa sociedade, em nosso sistema político atualmente tão decadente. 356 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | verônica stigger Miguel Reaça Jr. Helio Bocudo Sergio Morto Michel Têmor Gilmar Mentes : escritores fascistas poetas conservadores cineastas corruptos filósofos reacionários pintores xenófobos psicanalistas mentirosos professores dedos-duros livreiros homofóbicos atores racistas designers sádicos músicos sectários atores pedófilos jornalistas de direita editores ignorantes : Suíça Panamá usa Curitiba : Seleção Brasileira Av. Paulista Fiesp Copacabana : 358 PSDB Folha Estadão O (A) Globo Isto É Veja : tomem cuidado: sangue também germina a terra. : Vanderley Mendonça é jornalista, designer, tradutor e editor dos Selos Demônio Negro e Edith. Lecionou Editoração da ECA-USP. Traduziu, entre outros livros, Poesia vista, antologia bilíngue do poeta catalão Joan Brossa (Ateliê, 2005), Crimes exemplares, de Max Aub (Amauta, 2003), Nunca aos domingos, de Francisco Hinojosa (Amauta, 2005) e Greguerías, de Ramón Gómez de La Serna (Selo Demônio Negro, 2010). É autor do livro Iluminuras (Patuá, 2013). 359 calderón | juliana cordaro | karine kelly pereira | laerte | leonardo costa | leonardo mathias | letícia novaes | lilian aquino | lineker | luana vignon | lubi prates | luiz ruffato | luiza romão | maeve jinkings | maiara gouveia | maíra mendes galvão | manoel herzog | manoel quitério | manu maltez | marcelino freire | marcelo ariel | márcia denser | marcia tiburi | marcílio godoi | marco dutra | marcos gomes | marcos siscar | maria clara escobar | maria giulia pinheiro | mariano marovatto | meire oliveira | mel duarte | michele santos | micheliny verunschk | nicolas behr | noemi jaffe | odyr | pádua fernandes | paula fábrio | paulo ferraz | pedro tierra | pedro tostes | priscila gontijo | rafael rocha daud | regina azevedo | renan nuernberger | renan quinalha | reynaldo damazio | ricardo escudeiro | ricardo lisias | ronaldo bressane | sheyla smanioto | shiko | stefanni marion | tarso de melo | tatá aeroplano | tatiana salem levy | thelma guedes | thiago mattos | tony monti | tula pilar | vanderley mendonça | veronica stigger o maquinista Mateus chegou cedo, muito cedo. Não era dia ainda. Como de costume, ele viera a pé, pelo meio dos trilhos, debaixo da escuridão da noite. Gostava de sentir o ar gelado da madrugada no rosto. Acordava-o, dizia. Vinha uniformizado, com capacete e luvas. Precisou sair de casa às quatro da manhã para não se atrasar para o encontro, marcado para as cinco. Lá já estava João, também vestindo uniforme e o imprescindível capacete. Em pé, sozinho no meio dos trilhos, cabeça baixa, mãos juntas na altura do peito, rezava. Mateus estranhou, nunca o vira rezando. Achava até que o amigo fosse ateu. Pensou em saudá-lo fazendo graça, em falar que ele estava parecendo o Maquinista com aquele tipo de carolice, mas desistiu. Não era o momento mais adequado para isso. Mateus se aproximou devagar, pisando de leve sobre as pedrinhas que atapetavam o chão. A dois passos do amigo, estacou. Não queria interromper João. Afinal, talvez fosse mesmo uma boa ideia rezar. Se Mateus soubesse rezar, certamente se juntaria ao outro. Mas ele não sabia e, por isso, esperou. João estava tão concentrado que não percebeu a proximidade de Mateus. Parado feito uma estátua, apenas seus lábios se mexiam. Porém, mesmo de perto, não era possível escutar o que dizia. E se ele não estivesse rezando? E se ele estivesse apenas fingindo rezar?, pensou, preocupado, Mateus. Enquanto este, absorto, considerava se seria ou não um problema fingir rezar em vez de rezar de fato, João encerrava sua suposta prece, deslocando um pouco para trás sua perna direita e inclinando ligeiramente o tronco e o joelho esquerdo, como se cumprimentasse uma alta autoridade. Quando finalmente levantou o rosto, viu Mateus. Abriu um largo sorriso e abraçou-o apertado. Sejamos fortes, camarada, sussurrou-lhe no ouvido esquerdo, quase num beijo. Sejamos fortes. Mateus escondeu o rosto no ombro do amigo, como se quisesse cheirar sua nuca, e estreitou-o ainda mais contra o próprio peito. Sejamos fortes, repetiu uma vez mais João. Mateus desvencilhouse de João e perguntou se os outros já haviam aparecido. Não, eles 361 ainda não haviam aparecido, chegariam mais tarde. E o Maquinista? Está lá dentro, indicou João, está vendo? Ele está sempre lá dentro, resmungou Mateus, acho que ele mora aí. João fez um sinal para que Mateus o acompanhasse. Mateus depôs sua mão esquerda sobre o braço direito de João, e os dois seguiram juntos. Amanhecia. Eles saíram dos trilhos e contornaram o vagão em que se encontrava o Maquinista. João e Mateus iam abaixados, com os joelhos inclinados, tentando se deslocar da maneira mais discreta e silenciosa possível. Quando passaram ao lado da janela através da qual se via o Maquinista, não resistiram e espiaram para dentro. O Maquinista, mesmo sendo um tipo franzino, com o rosto chupado e os ossos saltados como os de um faquir, mal cabia no espaço exíguo. De pé, ajeitara-se como pôde no comprimido vão entre uma parede e outra: recostara o quadril na divisória às suas costas, esticara as pernas para a frente, apoiara os braços no painel adiante, depusera a cabeça sobre os braços e assim dormia. Roncava alto o suficiente para ser ouvido da rua, onde estavam João e Mateus. Vai por mim, sussurrou Mateus no ouvido de João, o Maquinista dorme aí. Em pé? Não sei se sempre em pé, mas que ele dorme aí, ele dorme. Gringo desgraçado, grunhiu João. Já era dia, um dia nublado com pesadas nuvens cinzas no céu. João e Mateus avistaram os outros companheiros, todos os três com seus respectivos uniformes e capacetes. Tiago foi o primeiro a vê-los também. Acenou de longe e correu para abraçá-los. É hoje, camaradas, disse ele sorrindo, enquanto abarcava ao mesmo tempo João e Mateus. Os irmãos Pedro e André, os mais jovens da turma, os abraçaram em seguida. Estes portavam, além dos uniformes e dos capacetes, rádios de comunicação. Cá estamos, companheiros, para o que der e vier, falou Pedro. O Maquinista já está aí?, indagou André, ao que João respondeu afirmativamente. Acho que ele mora aí, resmungou Mateus, sem ser ouvido. Trouxeram as ferramentas? João abriu o casaco e mostrou um martelo e um podão presos ao seu cinto de couro com tiras de tecido vermelho. Mateus abaixou a mão direita e deixou cair de dentro de sua luva um canivete suíço. E vocês? 362 André arregaçou a barra da calça e apontou para uma faca presa a sua botina. Pedro ergueu a camisa, revelando a corda de sisal que trazia amarrada ao peito. E Tiago tirou de um bolso uma grossa fita adesiva e do outro, uma chave de fenda. João, então, juntou as mãos na altura do peito em mais uma prece. Pedro e André alongaram-se como se estivessem prestes a praticar algum esporte, elevando os braços ora para o alto, ora para os lados. Tiago, seguindo o exemplo dos dois, segurou o peito do pé direito e ergueu a perna para trás, encostando-a ao glúteo, para forçar o músculo da coxa. Ficou segurando o pé durante uns vinte segundos e repetiu o mesmo gesto com a perna esquerda. Mateus, sem saber o que fazer, roía as unhas. Impaciente, caminhava de um lado para o outro, parando apenas para conferir as horas, a intervalos muito curtos e regulares. Terminada a reza, João fez novamente sua estranha reverência. Recomposto, respirou fundo e conclamou, batendo palmas: vamos lá, camaradas, não podemos correr o risco de que os outros cheguem. Todos sorriram, ainda que com certa tristeza. Vestiram seus óculos escuros, ajeitaram os capacetes e se puseram em marcha. Apenas João não colocou os óculos escuros. Veronica Stigger é escritora, professora e crítica de arte. Autora, entre outros, de Opisanie świata. 363 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação [cip] Golpe: antologia-manifesto: Ana Rüsche... [et al.]. São Paulo: Punks Pôneis, 2016. 366 p., 27 il. Vários autores. Sobre os autores. 1. Poesia. 2. Prosa. 3. Fotografia. 4. Arte visual. 5. Política. i. Kinzo, Carla. ii. Aquino, Lilian. iii. Marion, Stefanni. cdu 304 / r593 Copyright © Punks Pôneis, 2016. Copyright © dos autores, 2016. Editores e organizadores Ana Rüsche, Carla Kinzo, Lilian Aquino e Stefanni Marion Capa Rodrigo Sommer Logotipo Punks Pôneis Katia Spagnol Projeto gráfico e diagramação Bloco Gráfico – Gabriela Castro, Gustavo Marchetti e Paulo André Chagas ePub Bruno Palma e Silva Revisão Ligia Ulian Lilian Aquino Meire Oliveira Revisão do espanhol Stefanni Marion Fontes Andada, Woodkit