Nosferatu Spectrum Tunga - movimento freudiano-home
Transcrição
Nosferatu Spectrum Tunga - movimento freudiano-home
Ruth Chindler Nosferatu Spectrum Tunga Marseille - Vielle Chapelle-2002 1 Ruth Chindler Seja qual for o caminho que eu escolher, o poeta já passou por ele antes de mim Sigmund Freud Nosferatu, uma sinfonia do horror (ou da alegria?) Nosferatu, ou a performance do artista, nos provoca estranhamento e, por que não dizer, certo arrepio. Não existe nesta performance uma natureza maligna que o tradicional vampiro nos evoca; existe sim unheimlich e, ao contrário do vampiro que só surge na escuridão em um mundo de só trevas, o artista nos leva a um mundo de claridade; Tunga dá luz a Nosferatu ao trazer à tona seu recalcado e nos mostra como a representação deste passado nos persegue. Ao verificar a antítese escuridão/claridade, não pude deixar de me reportar ao brilhante texto de 1910, ―A Significação Antitética das Palavras Primitivas‖, onde Freud vai relatar que os sonhos apresentam a bifididade do inconsciente, isto é, os opostos se unem em uma e mesma coisa, mostrando deste modo não haver contradição, lembrando sempre que ao lado dos sons agudos da cantora lírica, dos estranhamentos de sons retirados do violoncelo e piano, a performance termina ao som da batucada de Aquarela do Brasil, com uma ―passista‖ francesa ensaiando passos de samba. Também a palavra pode significar o contrário do apresentado (ex. ―não, não é minha mãe‖)... Diz Freud, ―os intérpretes dos sonhos da antiguidade parecem ter feito uso mais extenso da noção de que uma coisa num sonho pode significar seu oposto‖ (pág.141). O modo pelo qual os sonhos tratam a categoria de contrários e contradições é bastante singular: ―Eles simplesmente o ignoram‖. O Não parece não existir no que se refere aos sonhos. Eles mostram uma preferência particular para combinar os contrários numa unidade como uma e mesma coisa. Quando Tunga opta por apresentar seu Nosferatu à luz do dia, inclusive se refere em seu discurso pré-performance, diante de uma imensa multidão, o interesse que a luz sempre lhe despertou: na performance ―Tesouro Nosferatu‖, diz o artista: ―quebrando um relógio, tentei descobrir o tempo; aí me perguntaram: por que não fazer vidros? O que é o vidro? O vidro talvez retenha um pouco de luz... Quebrando o vidro talvez consiga compreender melhor a luz... a luz já foi quebrada inúmeras vezes na física... Newton quebrou a luz no prisma de vidro... eu queria quebrar a luz de outro jeito, tentar construir um outro espectro... espectro foto fóbico... nunca gostei de luz... sou foto fóbico... a luz me faz mal... talvez quebrando o vidro, me vingasse da luz‖. 2 Ruth Chindler 1. Na 5ème Bienal d‘Art Contemporain de Lyon - ano 2000, na performance intitulada ―Lucida Nigredo e sua Sombra‖, diz o artista: ―Os vidros, podem quebrar, mas não estão quebrados... remember the instant when they were all One continent (imaginário?)... they split e agora temos ilhas, lakes... there are people there... sexuals, polimorphs, perverse, monstruous. Objetos monstruosos porque não são mais contínuos like they were before. They search that condition (imaginário /fechamento). Look at the mirror: será que aqui podemos encontrar nossa imagem? será que delas há uma imagem correspondente? I don‘t think so... they are pathological images of the same... an image que reflete a patologia de seu espectro porque busca o inteiro que não é mais... they are just images, they do not have a real existance... all the same, all different... each piece is image of the other, but they are just images... e é por isso que mostram essa diversidade de reflexos; all the same , all different.‖ Será que o artista tinha em mente os textos freudianos? Ou mesmo de Lacan? Talvez nunca os tenha lido, e mesmo que os tivesse, certamente não foi essa a origem desta performance, e de tantas outras, mostrando, desta forma, um saber sobre o inconsciente que só os poetas detêm. Nós, analistas, é que corremos atrás para tentar pegar ―o bonde andando‖. Freud cita o texto completo das passagens cruciais do artigo do filólogo Abel de onde obtém informações surpreendentes de que ―o comportamento do trabalho do sonho que acabei de descrever é idêntico a uma peculiaridade das línguas mais antigas que conhecemos‖ (pág. 142). Ao se referir a isso, Freud já mostra a importância da linguagem de onde Lacan vai extrair mais adiante, em sua obra, que ―o inconsciente é estruturado como linguagem‖. Bem antes, ainda em 1905, ao publicar o caso ―Dora‖, diz: ―Nesta época aprendi a traduzir a linguagem dos sonhos em formas de expressão da nossa própria linguagem-pensamento‖ (pág. 13). ―Atualmente na língua egípcia, esta relíquia única de um mundo primitivo (recalque?) há um bom no de palavras com duas significações uma das quais é o oposto exato da outra. Por ex. em alemão a palavra ―forte‖ significa também ―fraco‖; em Berlim o substantivo ‖luz‖ se usa para significar ao mesmo tempo ―luz‖ e ―escuridão‖; que um cidadão em Munique chame cerveja de ―cerveja‖ enquanto outro use a mesma palavra para falar de água‖ (Freud, Vol. XI, pág.142). Portanto estamos diante do fato de que numa língua um grande número de palavras designava uma coisa e seu oposto, como é o caso de ―unheimlich‖, como veremos mais adiante. 3 Ruth Chindler Como poderemos entender o fato de que os egípcios se permitiam uma linguagem tão contraditória, que usassem a mesma palavra que estava na mais forte oposição uma da outra? Pensamos que, se a linguagem não tivesse essa estrutura de contraditórios, como explicar, por exemplo, os atos falhos no sentido de se dizer uma coisa que não é o que eu queria dizer? É evidente que um dos sentidos está recalcado. Trazendo outros exemplos significativos desta extraordinária língua, há também compostos como ―velho-jovem‖, ‖fora-dentro‖ (without = with-out), withdraw (retirar em inglês (with-draw)) que, apesar de combinarem opostos, têm apenas um dos sentidos, o outro está recalcado. O outro está recalcado, mas presente no discurso; é como se estivesse presente/anulado. ―De vez que todo conceito é dessa maneira o gêmeo de seu contrário, como poderia ser ele de início pensado e como poderia ser ele comunicado a outras pessoas que tentavam concebê-lo, senão pela medida de seu contrário...?‖ (pág.143). Talvez o Outro ainda não existisse neste momento ou pelo menos o recalcado, apenas o ―outrinho‖. Portanto, o conceito de força tem necessariamente a lembrança simultânea de fraco, embutido (pode-se concluir daí também o conceito de verdade/mentira?). Segundo Freud, na realidade, esta palavra não designava nem ―forte‖ nem ―fraco‖, mas a relação e a diferença entre os dois. Para uma comparação com o trabalho dos sonhos, há outra característica extremamente estranha da antiga língua egípcia que é significativa (o texto é de Abel em ―A Origem da Linguagem‖, 1885, pág. 305): ―Em egípcio, as palavras podem aparentemente inverter seu som bem como seu sentido; suponhamos que a palavra alemã ―gut‖ fosse egípcia; ela poderia significar ―mau e bom‖ e ser pronunciada ―tug‖ do mesmo modo que ―gut‖ (...). Nos sonhos, são as imagens que se invertem e as crianças se divertem invertendo o som das palavras‖. Freud finaliza seu texto ao dizer que ―nós psicanalistas não podemos escapar a suspeita de que melhor entenderíamos a língua dos sonhos se soubéssemos mais sobre o desenvolvimento da linguagem‖ 2. Se Freud coloca a linguagem como estatuto do inconsciente não pode deixar de inclui o texto ―O Estranho‖ – Unheimlich – por vários motivos; o primeiro deles é seu aspecto contraditório, pois se apresenta em seu sentido ―estranho‖, mas também familiar ―Heimlich‖. 4 Ruth Chindler 1º- ―Só raramente um psicanalista se sente impelido a pesquisar o tema da estética, mesmo quando por estética se entende não simplesmente a teoria da beleza, mas a teoria das qualidades do sentir‖ (pág.275). Daí Unheimlich, o tema do ―estranho‖ relaciona-se com o que é assustador, com o que provoca medo e horror. Os trabalhos sobre este assunto preocupam-se mais com o que é belo, sublime (sentimentos positivos) do que com sentimentos opostos de repulsa, aflição e estranheza. Porém, esta equação está incompleta porque há algo mais do que isto: 1a - o estranho é categoria do assustador, mas que remete também ao que é conhecido, velho, familiar: ―Pode se tornar em opostos (estranho e familiar ao mesmo tempo)‖, por exemplo: ―O lugar era tão sereno, tão isolado, tão sombreadamente - heimlich‖. 1b - Estranho como escondido, oculto da vista, de modo que os outros não consigam ver. Por exemplo, fazer alguma coisa heimlich, isto é, por trás das costas de alguém; roubar heimlich, por exemplo. Schelling diz: ―unheimlich é o nome de tudo que deveria ter permanecido... secreto e oculto, mas veio à luz‖ (pág. 281). Como nos sonhos, os opostos (heimlichunheimlich) se unem em uma e mesma coisa sem serem contraditórias. 5 Ruth Chindler Quando toma o sentido de inconsciente (escondido, afastado da consciente. pág.283): Conselheiros heimlich são funcionários que dão conselhos importantes, que têm de ser mantidos em segredo. 1c - A noção de algo oculto e perigoso, heimlich chega a ter o significado habitualmente atribuído a unheimlich: por exemplo: ―Às vezes sinto-me como um homem que caminha pela noite e acredita em fantasmas; cada esquina para ele é heimlich e cheia de terrores‖. (Klinger, Theatre, três. 298) 1d - O estranhamento vem do duplo, o eu duplo, o que é consciente; e o que é inconsciente e que remonta ao eu primitivo, objeto de terror. Assim, o eu primitivo, antes amistoso, agora é terror e, na ânsia de defesa, o eu projeta (para fora) o material como estranho a si mesmo (Freud, pág. 295). Portanto, ser primitivo passa a ser ―estranho‖ porque não reconhecido. 1e - Para Freud, unheimlich como estranhamento, traz aspectos filogenéticos, daí sua estranheza: ―É como se cada um de nós houvesse atravessado uma fase de desenvolvimento individual correspondente a esse estádio animista dos homens primitivos, como se ninguém houvesse passado por essa fase sem preservar certos resíduos e traços dela, que são ainda capazes de se manifestar, e que tudo aquilo que agora nos surpreende como ‗estranho‘ satisfaz a condição de tocar aqueles resíduos de atividade mental animista dentro de nós e dar-lhes expressão‖ (pág. 300, Vol XVII). Neste sentido, podemos pensar a psicanálise como unheimlich também ao revelar as forças ―ocultas‖ que estão recalcadas, e ao virem à consciência, nos provocam grande mal-estar (e também alívio). Onde estará Nosferatu em Tunga? 6 Ruth Chindler Quando passamos a rever as coisas, impressões e situações que despertam em nós sentimentos de estranheza tão fortemente marcados, a primeira coisa a fazer é pensar sobre elas. 7 Ruth Chindler É absolutamente necessário relatar um fato ―Unheimlich-síssimo‖ que me ocorreu horas antes da performance. Se for verdade que o artista cria em nós certa estranheza conduzindo-nos a um mundo puramente fantástico, Tunga escolhe como palco de sua ação um mundo unheimlich que nos remete a fantasmas e alucinações. 8 Ruth Chindler É um cenário tão extraordinariamente real durante o tempo em que nos colocamos em suas mãos que só percebemos que são alucinações ao revermos a performance seis anos depois do ocorrido (nastraglisch). Tunga utiliza a estranheza para alavancar algo do inconsciente e ao retirar todo e qualquer aspecto do consciente, desloca-o para o inconsciente. Relato da pré-performance: o pedido de socorro do André Milan, ―Socorro Ruth, preciso de uma analista, pelo amor de Deus me ajude‖, relatando-me que Tunga queria ―quebrar tudo”, minha corrida em direção ao artista, meu mal-estar ao pensar na ousadia de interferir no trabalho do artista retirando-o da sala, e ―impedindo-o‖ de quebrar todos os vidros, sua ―obediência‖ a mim etc. Tudo aconteceu muito rápido, numa velocidade que não dá para pensar em nada. Assisti a uma performance de vidros estilhaçados, a cantora lírica descalça, perigando se ferir com os vidros, etérea, levitando; achei aquilo tudo uma grande maluquice, mas, em se tratando de Arte... Ato analítico — corte abrupto: entrevero entre Tunga e a diretora do museu de Marselha: ―Quelle est le problème?, pergunta o artista à diretora. ―Problème‖?, repete ela. ―N‘y a pas de problème‖, responde a diretora, e Tunga dá-lhe as costas encerrando assim a brevíssima sessão. Nem Lacan foi tão rápido. Quando, seis anos depois assisti ao DVD, os vidros não estavam quebrados, a cantora lírica não estava descalça, nem etérea, muito menos levitando. Fiquei perplexa por muito tempo até que a história apresentou-se à minha consciência. Portanto preciso falar não só da transferência, que foi a locomotiva da minha alucinação, como desta propriamente dita: o núcleo de todo sujeito é o núcleo alucinatório, é a marca mnêmica primária que Lacan vai chamar de S1. Na carta 52 (Freud, 1890, pág. 317), Freud utiliza um esquema cuja figura prenuncia os quadros esquemáticos do aparelho psíquico. Existe a percepção, seguida de traço-de-percepção que é também chamado de traço unário porque é traço único, não tem sequência, traço de algo que não existe, mas que deixou uma marca. Esta marca é a alucinação primária onde ainda não existe objeto, e é a partir desta marca inicial que sobrevirão todas as outras alucinações posteriores. Pois foi esta marca da falta, que 9 Ruth Chindler para além da ignorância, me permitiu, via transferência, ler o que ―seria‖ o desejo do Tunga. É a transferência estrutural que possibilita o acesso ao recalcado, o amor ao saber. É também na carta 52, que Freud vai dizer que ―consciente e memórias se excluem mutuamente. Se um evento X quando era atual despertou uma determinada quantidade de desprazer, então o seu registro mnêmico, X1, possui um meio de inibir a produção de desprazer, quando a lembrança é despertada. Quanto mais frequentemente a lembrança retorna, mais inibida se torna a produção de desprazer‖. Lembro-me do grande mal-estar ao impedir Tunga de quebrar os vidros pensando na violência que seria a interferência na obra, mas o pensamento foi imediatamente suspenso e agi o politicamente correto. Todas as vezes em que me lembrava da performance, esta nunca vinha acompanhada do desprazer inicial (relato o almoço na casa de amigos seis anos depois, dizendo que tinha eu agido como ―bundona‖, ele me abraça e diz: ―aconteceu o que tinha de acontecer‖, isto é, o artista confia no inconsciente; e, ao contar sobre minha alucinação via transferência, diz o artista, me abraçando e emocionado: ―você realmente entende do que é ARTE.‖ Transferência Se a transferência – esta força safada que nos atrai e nos resiste – dá ao analista um lugar de S.S.S. (Sujeito Suposto Saber) é este o lugar em que colocamos o poeta; é o amor e a confiança em seu saber inconsciente que nos transportou alucinatoriamente a uma performance que seria a de seu desejo naquele momento crucial. Certamente seria outra performance, e já nos perguntamos diversas vezes qual não seria a reação da plateia já embasbacada com o que estava assistindo. Se a transferência é logro é porque o sujeito é dividido. Se for logro na medida em que é representada no aqui e agora (não pode ser ―in absentia‖), mas que é repetição de uma mesma forma que ocorreu a partir de outra cena. Pierre-Gilles Gueguen, em ―A transferência como Logro‖, afirma que a comunicação racional e transparente não existe por estar sempre bloqueada por inúmeros outros processos. (pág. 94). Diferente da transferência imaginária que, por excesso de amor e ou ódio, é impeditiva para se atingir o recalcado, portanto um obstáculo ao desejo; o amor na transferência não é o amor ao analista, e sim um tipo particular de amor dirigido ao saber (transferência estrutural); é este o lugar em que nos colocamos neste momento (e em outros também) diante da poesia deste artista. 10 Ruth Chindler Cada vez que vamos à montagem de uma performance, temos de nos perguntar que força é esta que nos transporta de tão longe para este lugar; e afirmamos a nós mesmos que não existe escolha sem crença (no saber do grande Outro) nem escolha sem transferência. Tanto para Lacan quanto para Freud, ―a transferência é transferência de um significante para outro significante, de uma significação para outra significação‖ (Gueguen, pág.96). Se a transferência para Lacan e também para Freud não é uma questão de afetos deslocados, e sim o motivo de o julgamento de alguém ser tão distorcido, podemos nos questionar porque tanto Tunga quanto eu obedeci a este ―julgamento distorcido‖ de Andre Milan, a não ser na crença desta força do inconsciente. Last but not least, poderíamos falar mais e mais; como não falar, por exemplo, no Estádio do Espelho, pelo menos na performance da minha alucinação, com os espelhos inteiramente estilhaçados e também como não falar sobre o olhar como objeto a, mas, já que a leitura de uma obra de arte é infindável, por hoje basta. Fico por aqui. Texto dedicado ao artista plástico- poeta- escultor-performer, escritor... Tunga. Rio de Janeiro, setembro de 2008. Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano Espaço Psicanálise & Arte 11 Ruth Chindler 12
Documentos relacionados
1 HEIMLICH - UNHEIMLICH Devemos a Freud Lacan ter
unerkannt que Lacan relaciona ao urverdrängt, o recalque originário.
Certamente, o que desperta pode ser o barulho do fogo que se espalha sobre a
cama mortuária, a visão horrível da representação, ...