O USO DO VIDEOCLIPE COMO ARTICULAÇÃO
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O USO DO VIDEOCLIPE COMO ARTICULAÇÃO
O USO DO VIDEOCLIPE COMO ARTICULAÇÃO DRAMÁTICO-NARRATIVA NA TELENOVELA BRASILEIRA: O EXEMPLO DE SANGUE BOM1 Andre Checchia Antonietti2 Claudiney Rodrigues Carrasco3 Resumo: A canção é uma narrativa musicada. O entendimento dos versos cancionais, aliados ao gesto interpretativo do intérprete, constrói um signo de forte capacidade informativa. Em um produto audiovisual, ela é capaz de criar sentidos que não são possíveis quando música e cena estão separados, sendo grande aliada para a construção dramático-narrativa da história. A teledramaturgia da Rede Globo de Televisão utiliza a canção com este fim desde suas primeiras produções, também utilizando seu poder comercial na divulgação da obra audiovisual e das coletâneas comercializadas a partir de 1967. O tema musical romântico pertencia ao casal principal da telenovela. Diferente da construção dramático-narrativa usual neste tipo de produto, esta inserção foi acompanhada de cenas envolvendo outras personagens, que não tinham sido relacionadas a este tema. Viu-se cenas de disjunção amorosa por toda a duração da inserção. Ao final, o casal de protagonistas consumia pela primeira vez o relacionamento preparado pela história prévia. Por apresentar várias cenas distintas, com cortes rápidos e preparando o espectador para a cena final, pode-se dizer que esta inserção se aproxima mais da linguagem do videoclipe do que da construção comum à telenovela (inserção curta e canção ligada a um personagem). Além disso, a presença da integra da canção reforça questões comerciais envolvendo a venda da coletânea internacional da telenovela, lançada posteriormente. Palavras-chave: canção; videoclipe; articulação dramático-narrativa; telenovela; trilha musical. Abstract: The song is a narrative set to music. Understanding the cancionais verses, combined with interpretive gesture interpreter builds a strong sign of informative capacity. In an audiovisual product, she is able to create meanings that are not possible when music and scene are separated, being great ally for building dramatic-narrative of history. The television drama of the Globo Television Network uses the song for this purpose since their first productions, also using their market power in the dissemination of audiovisual works and compilations marketed from 1967 The romantic theme music belonged to the main couple of Trabalho apresentado no Seminário Temático “Serialidade e Narrativa Transmídia”, durante a I Jornada Internacional GEMInIS, realizada entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, na Universidade Federal de São Carlos. 2 Graduado em Música Popular, modalidade Canto, pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em Música pela Universidade Estadual de Campinas. Doutorando em Multimeios. Atua em pesquisa acadêmica desde 2007, no Grupo de Pesquisa em Música e Sound Design Aplicadas à Dramaturgia e ao Audiovisual do Instituto de Artes da UNICAMP, coordenado pelo Prof.Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco, com projetos ligados à canção e à música para produtos de teledramaturgia. 3 Graduado em Música - Composição pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Cinema e Doutor em Cinema pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Música da UNICAMP desde 1989. Compositor de trilhas musicais desde 1985. Tem como área central de pesquisa as trilhas sonoras. Desde 2006 coordena o Grupo de Pesquisa em Música Aplicada à Dramaturgia e ao Audiovisual, registrado no CNPq e sediado no Instituto de Artes da UNICAMP. 1 the telenovela. Unlike the usual dramatic-narrative construction in this type of product, this insertion was accompanied by scenes involving other characters that were not related to this topic. Found himself scenes of loving disjunction throughout the duration of insertion. At the end, the couple consumed protagonists for the first time the relationship prepared by previous history. By presenting several distinct scenes with quick cuts and preparing the viewer for the final scene, one can say that this insertion is closer to the language of video clips than the common building the telenovela (short insertion and song linked to a character). Furthermore, the presence of part of the song reinforces trade issues involving the sale of the international collection of telenovela launched later. Keywords: song. video clip. joint-dramatic narrative. telenovela. soundtrack. A música na teledramaturgia brasileira "A música na telenovela tem várias finalidades: fazer o espectador saber que a novela está começando, dar mais emoção às cenas e muitas outras." Daniel Filho (in FILHO, 2001, p.324) A teledramaturgia brasileira teve muitas de suas técnicas desenvolvidas a partir da dramaturgia feita para o rádio. Os profissionais do rádio trouxeram para a televisão algumas formas de realização que influenciaram a base da linguagem teledramatúrgica. Estes conceitos foram sendo adaptados e alguns são repetidos até a contemporaneidade. As novas tecnologias do novo veículo absorveram esses conceitos, e deram ferramentas criativas para a realização da programação teledramatúrgica brasileira (FILHO, 2001, p.11-25). Cabe também dizer que os programas televisivos brasileiros de ficção também sofreram influências do cinema americano e brasileiro, além do teatro de revista. (SADEK, 2008, p.11-12). Sendo a música é "uma mercadoria cultural de características muito peculiares, não somente pela proximidade que tem com os indivíduos, mas, sobretudo, por sua ampla capacidade de se difundir" (Heloísa Maria dos Santos Toledo in GUERRINI, 2010, p.25), pode-se notar que esta se diferencia de outras mercadorias culturais por permitir uma grande interação com vários tipos de produtos. A música é dependente de outros meios de divulgação para tornar-se conhecida. Esta simbiose é explorada em seu uso dentro da estrutura narrativa. Para Cláudia Gorbman, “a música no cinema tem como função principal envolver emocionalmente o espectador, desarmando o seu espírito crítico e colocando-o ‘dentro’ do filme”. Sendo assim, a música é utilizada na dramaturgia para a criação de um ambiente que facilite o envolvimento do espectador, ajudando a diminuir a consciência da natureza tecnológica do discurso fílmico, reforçando sensações e sentimentos com clichês psicológicos, além de harmonizar os ouvidos e os olhos do espectador (GORBMAN, 1987, p.01-30). As funções diferenciadas da música no produto audiovisual a tornam um recurso de caráter hibrido. Ela deve dialogar diretamente com as imagens para que não se consiga perceber sua presença de forma isolada ou fora de contexto. Ela pode ter função narrativa, sendo voz do narrador subjetivo, como também acaba sendo voz da personagem e de sua ação, ao se ligar mais diretamente à dramaturgia da cena. Seu caráter lírico, contido em sua raiz, traz lirismo à composição audiovisual, sendo frequentemente utilizada como ferramenta para auxiliar a progressão dramática da obra onde está inserida. E, ao dialogar diretamente com as imagens, ela precisa não ser percebida de forma isolada ou fora de contexto. (CARRASCO, 2003) trilha musical do cinema americano, já estabelecida no início de sua televisão, pode-se encontrar basicamente trilhas musicais originais, composta de muita música instrumental. A canção tem um papel importante, quase sempre inserida como trilha de fundo ou como número musical. As convenções de uso da canção no musical americano são diferentes das convenções do musical brasileiro: é mais comum encontrar a canção como condução dramática. O cinema incorpora a tradição dramático-musical proveniente do teatro musical e da ópera, onde se estabeleceram as convenções dramático-narrativas baseadas nessa tradição que chega transformada na teledramaturgia americana. O modelo de inserção musical utilizado na teledramaturgia brasileira é um amálgama dos modelos adotados pelo rádio e pelo cinema. No início da televisão no Brasil, a chanchada era um dos gêneros de cinema de grande apelo popular. A chanchada possui convenções um pouco diferentes das do musical americano, convenções estas oriundas do rádio e do teatro de revista. No musical americano, o que se vê são canções que funcionam como diálogo e, quase sempre, acontecem ao mesmo tempo da ação. Na chanchada, temos canções que aparecem em momentos muito específicos, com cantores muito conhecidos e em pausas narrativas. A principal influencia vinda do rádio era o número musical que apresentava a canção e seus intérpretes. O rádio tinha criado uma mecânica de seduzir o ouvinte à programação com a ajuda de grandes interpretes e compositores brasileiros da época. Inclusive, o fascínio do publico vinha acompanhado de uma curiosidade em ver materializado o corpo que carregava essa voz. Já a suspensão da narrativa durante o número musical é uma das influências do teatro de revista. Apresentada em pequenos intervalos, a canção era inserida em momentos onde os acontecimentos dramatúrgicos eram pausados, permitindo a divulgação dos sucessos radiofônicos e seus respectivos artistas. (FERREIRA, 2010) A música na teledramaturgia precisa ser capaz de refletir estados emocionais, sentimentos das personagens, intenções do narrador, estados de alma, entre outros. Além disso, ela tem que abarcar a evolução complexa de cada personagem durante a história, já que na teledramaturgia existe a possibilidade de se expandir ou retrair personagens e tramas. Também utilizada como signo de localização de uma situação ou emoção, a escolha de uma música para uma obra dramatúrgica deve ser feita com cautela já que sua interferência é direta na cena, sendo capaz de mudar seus sentidos e estabelecendo outros caminhos para a narrativa. Outro fator importante que deve ser levado em consideração é o grande valor mercadológico da música quando inserida em um produto de teledramaturgia. Além de contribuir para a narrativa e para a progressão dramática, ela pode ser vendida como produto isolado, ajudando a divulgação simbiótica da obra e das coletâneas lançadas. Daniel Filho explica a diferença no processo de escolha da música para o cinema e para a teledramaturgia: "No cinema, na maior parte das vezes, a busca da música é deixada para o final. Já na televisão, onde a mídia precisa ser utilizada em toda a sua potência, a escolha das músicas de uma novela é feita simultaneamente à entrega do texto." (in FILHO, 2001, p.324) Em produtos de teledramaturgia, a música deve pensada e escolhida de forma diferenciada. É necessário que as músicas reflitam, em alguns casos, superficialmente a situação psicológica e física das personagens, pois estas são mutáveis durante toda a exibição da obra. A música escolhida para a trilha musical de uma telenovela deve ter abertura suficiente para conduzir as mudanças que a história permite. Outro fato importante é que o profissional que finalizará a trilha sonora do capítulo não terá tempo para refinar as inserções musicais quanto à sua duração e suas relações dramático-narrativas: o sonoplasta só terá que identificar qual o tipo de cena que está acontecendo, as personagens envolvidas e, assim, utilizar as canções ou músicas instrumentais referentes a elas. A música é utilizada de forma diferenciada em cada produto de teledramaturgia. A telenovela é permeada de inserções musicais e, grande parte destas inserções são de canções. A quantidade de inserções pode fazer com que o espectador não tenha consciência de que a música está sendo executada já que, quando se trata de teledramaturgia, pode-se classificar o fundo musical como onipresente. Ao longo de toda sua duração, este fundo musical fará parte do cotidiano do espectador, dando à trilha sonora o "status de um acontecimento cultural, econômico e estratégico ao mesmo tempo" (Heloísa Maria dos Santos Toledo in GUERRINI, 2010, p.27). As trilhas musicais das telenovelas costumam conter canções e músicas instrumentais. O que se observa na grande maioria das obras é a presença de canções nacionais, canções internacionais e trilha musical instrumental. Esta trilha instrumental pode conter música instrumental original ou versões instrumentais das canções contidas na trilha sonora. Estas canções são comercializadas em coletâneas desde 1970. No inicio das trilhas contendo canções, o que se observava era o lançamento de uma única coletânea contendo as canções nacionais. Esta prática se modifica em 1971, na telenovela O Cafona, onde se tem o lançamento da primeira coletânea internacional. Até 1985, o que se observava era o lançamento de duas coletâneas para a grande maioria das obras. Primeiramente era lançada a coletânea que continha as canções nacionais. Essas canções eram inseridas na telenovela desde o primeiro capítulo até quase a metade de capítulos pensada originalmente para a obra. A partir deste momento, a trilha de canções nacional dava lugar às canções internacional, sendo lançada então essa coletânea. A telenovela Roque Santeiro é a primeira a obra a conter duas coletâneas de canções nacionais, sendo que as canções da segunda trilha também só apareciam inseridas na obra na metade da quantidade de capítulos. A telenovela Olho no Olho, de 1993, foi uma das primeiras a apresentar uma canção internacional que fazia parte da coletânea que seria lançada, em seus capítulos iniciais. Em 1999, a telenovela Terra Nostra tem lançada primeiramente sua coletânea internacional, contendo versões de canções italianas cantadas por artistas brasileiros. Em O Clone, temos o lançamento de outras quatro coletâneas além das tradicionais nacional e internacional. Essas coletâneas continham estilos musicais definidos que eram executados na obra. A telenovela Mulheres Apaixonadas, de 2004, teve o lançamento simultâneo da coletânea nacional e internacional, sendo que as canções das duas já estavam inseridas desde o começo da obra. Atualmente, a telenovela Meu Pedacinho de Chão é a primeira a ter uma trilha de 14 canções de um único grupo musical. A canção: o locutor, o destinatário e o texto cancional A canção é uma narrativa musicada. Gênero musical de importância singular na música popular brasileira, a canção é capaz de transmitir informações e sentidos que não são possíveis de serem apresentados pela poesia e pela música instrumental. A junção entre melodia e letra é capaz de carregar significados que, sendo eles compreendidos conscientes ou inconscientemente pelo receptor, tornam a canção um aliado significativo para o produto audiovisual. Toda canção pressupõe dois papéis de fácil identificação: o locutor e o destinatário. Locutor é a figura que materializa a mensagem a ser passada pelos versos. O locutor pode assumir posição participativa quando os versos narram algo que foi alterado pelas suas ações e pensamentos. Ele também pode assumir uma posição de observação ao descrever uma ação ou situação da qual ele assume posição passiva. Já o destinatário é representado pela figura à qual se destina a mensagem da canção. Este também pode ser participativo, suas ações também são responsáveis pela mensagem emitida pela voz da canção, ou ouvinte quando não tem nenhuma relação direta com as ações descritas pelo locutor (TATIT, 1986). Sendo assim, o entendimento do texto cancional passa primeiramente por localizar as posições de cada uma dessas figuras. A partir disso, a análise dos versos permite a elucidação do tema da canção e das intenções textuais. A voz do intérprete será então responsável pela confirmação ou negação do que está sendo dito no texto cancional, fazendo com que o ouvinte possa compreender os sentidos pretendidos dentro da música. A articulação dramático-narrativa da canção na teledramaturgia "Eu pegava o tema de cada personagem, fazia dez, quinze variações de cada tema e deixava lá arquivado. À medida que a novela ia correndo, de acordo com o comportamento do personagem, já existia uma variação orquestral que correspondia mais ou menos ao espírito do personagem naquele momento." Júlio Medaglia (in ORTIZ, 1989, p.145) O uso da canção na telenovela pode ser explicado pela teoria dos gêneros, tal como já foi feito com a linguagem fílmica. A canção pode ter caráter épico, caráter dramático e também interferir liricamente, de acordo com a maneira como ela é usada na composição audiovisual. Nenhum dos caracteres se manifesta de forma isolada. A função épica da canção se manifesta explicitamente quando a voz do narrador a utiliza como instrumento narrativo. A função dramática da canção se dá quando a mesma é inserida no contexto do filme como sonoridade, justificada pelo caráter naturalista com que ela é apresentada. E a canção, por ser derivada da lírica, sempre traz para a construção dramático-narrativa o caráter lírico que sempre tinge a composição audiovisual (CARRASCO, 1993). A prática comum na telenovela é utilizar as canções em sua versão original de duas formas diferentes. Temos a canção inserida como parte do pensamento do narrador onipresente, demarcando assim situações, ações e lugares. A canção, nestes casos, servirá de localizador para que o espectador entenda o conteúdo da cena, seja relembrado do assunto tratado ou identifique o local da ação. Neste tipo de inserção, cada personagem, solitário ou em grupo, cada lugar ou situação pode ter seu tema musical. Este tema se estabelece logo nos capítulos iniciais da obra e, salvo algumas exceções, acaba se repetindo por toda a telenovela. As versões instrumentais dessas canções acabam tendo o mesmo papel e se referenciam às articulações previamente estabelecidas pela versão cantada da canção. As canções ainda aparecem nas cenas de passagem – cenas que marcam a mudança das tramas que estão sendo tratadas dentro do capítulo. Neste caso, a canção até pode antever o espectador sobre o que será tratado a seguir no capítulo, mas não é este seu papel. Ela funciona nesses casos como pequenos videoclipes que situam o espectador, que relembram constantemente qual obra está sendo assistida. Quase sempre essas cenas de passagem contém imagens da cidade onde a trama se passa, ou fazem referência à algum tema da história. E a canção inserida acaba reforçando a unidade musical dos capítulos. As inserções musicais de canção em telenovelas são basicamente de dois tipos diferentes. O primeiro tipo contém as inserções musicais de canções com longa duração, que funcionam como pequenos videoclipes. Essas cenas, em geral, contem somente o personagem/local/situação ao qual se referencia. Aqui, o espectador entra em contato com parte da letra da canção, geralmente a parte que tem relação mais direta com o comportamento, situação ou personalidade da personagem em questão. Esta prática faz com que sejam criadas relações dramático-narrativas que facilitam o entendimento das ações e reações das personagens. O segundo tipo de inserções de canção são aquelas contendo pequenos trechos das canções em momentos específicos das cenas. Estas inserções narram ou pontuam determinada sensação das personagens envolvidas na cena, reforçando aquilo que não está sendo dito por ela. Para as músicas instrumentais originais a prática comum é a recorrência temática, a presença por toda a telenovela dos mesmos temas que podem ser alterados para se adaptarem a alguma situação. Quase todas as inserções de canção em uma telenovela são não-diegéticas. As poucas inserções diegéticas acontecem em cenas que contém ambiente onde há música normalmente. Nestes casos, mesmo que a fonte sonora não possa ser vista na cena, a sonoridade da mesma é trabalhada para que fique explicito que aquela música vem do ambiente no qual as personagens se encontram. Os aspectos que regem a escolha de uma canção para fazer parte de uma obra de teledramaturgia abrangem não somente seus aspectos narrativos, mas também os aspectos comerciais. O exemplo de Sangue Bom: o videoclipe inserido na telenovela "Antes de existir o videoclipe, fizemos cenas de novelas com músicas integradas a elas. (...) em Véu de Noiva, para a música “Teletema”, fizemos um clipe de lua de mel (do casal principal)...” Daniel Filho (in FILHO, 2001, p.325-326) O videoclipe uma peça audiovisual composta de canção e imagens em movimento, geralmente em cortes rápidos, que pode ou não conter uma narrativa direta. Inicialmente, o videoclipe foi criado para servir como peça promocional de artistas, canções e discos. Porém, o que se observa é que essa linguagem esta presente em muitos momentos no produto audiovisual. Se olharmos a história do videoclipe, possivelmente esta fala tem uma parcela de verdade: a primeira peça audiovisual pensada para promover uma canção é contemporânea à telenovela Véu de Noiva. No Brasil, as primeiras experiências com videoclipe acontece nos números musicais do programa dominical Fantástico, também na mesma época da telenovela. O capítulo 44 da telenovela Sangue Bom, escrita por Maria Adelaide Amaral e Vicent Villari, apresentou um tipo de articulação dramático-narrativa entre imagem e canção que não é usual dentro da teledramaturgia brasileira. A canção Ho Hey!, do grupo The Lumineers aparece numa construção dramática que a aproxima à linguagem de um videoclipe. Para entender a construção dramática realizada nesta cena, primeiro se faz necessário entender a história, a canção e a articulação dramático-narrativa da canção inserida até o momento da inserção musical. A telenovela apresenta a história de seis jovens que se conhecem devido às tramas da vida. Amora é uma menina de rua que foi morar numa casa de adoção. Lá ela conheceu Bento, um órfão que desconhece sua origem. Da amizade entre os dois nasce um amor que perdura até que Amora é adotada. O primeiro capitulo da telenovela mostra que Amora está distante de Bento desde sua adoção. Um evento dramático faz com que os dois protagonistas se encontrem no final do primeiro capítulo. Bento então começa a lidar com o amor que estava adormecido desde a separação dos dois. Só que Amora não é mais uma criança: ela agora é uma mulher ambiciosa, interesseira e fútil. Apesar do amor dos dois se mostrar impossível pela diferença entre suas personalidades, Bento segue apaixonado. Todas as cenas envolvendo esse casal são acompanhadas da canção nacional De Janeiro a Janeiro, cantada por Roberta Campos e Nando Reis. Foram lançadas três coletâneas para a telenovela: duas nacionais, lançadas primeiro e uma internacional, lançada mais ao final da telenovela. Porem, todas as canções, tanto as nacionais quanto as internacionais, já estavam contidas na trilha musical da telenovela. A canção Ho Hey!4, do grupo Lumineers, aparece na trilha musical de Sangue Bom em algumas cenas de passagem: ela não aparece em nenhuma das cenas importantes do casal Amora e Bento até a inserção do capítulo 44. A canção traz o locutor participativo enunciando que todos seus problemas de pertencimento, de participação como membro familiar e social. Ele diz ao destinatário participativo que é o sentimento de pertencer, 4 Composição: Wesley Schultz/ Jeremy Fraites. Álbum: The Lumineers (2012). Letra: I've been trying to do it right / I've been living a lonely life / I've been sleepin here instead / I've been sleepin in my bed / Sleepin in my bed / So show me family / All the blood that I will bleed / I don't know where I belong / I don't know where I went wrong / But I can write a song / I belong with you, you belong with me / You're my sweetheart / I belong with you, you belong with me / You're my sweet / I don't think you're right for him / Think of what it might have been if we / Took a bus to Chinatown / I'd be standin on canal and bowery / And she'd be standin next to me / I belong with you, you belong with me / You're my sweetheart / I belong with you, you belong with me / You're my sweet / Love we need it now / Let's hope for some / Cause oh, we're bleedin out / I belong with you, you belong with me / You're my sweetheart / I belong with you, you belong with me / You're my sweet proveniente de seu amor, que o faz se sentir alguém, algo que tem importância e que pode inclusive se pronunciar numa canção. O locutor, antes adormecido, agora acorda devido à descoberta de seu ser amado. Ele precisa expressar sua indignação quanto à não ser amado de volta. Ele propõe que lhe seja dado uma chance, que eles possam ter um rompante amoroso e tentar assim viver o amor. Eles precisam do amor, já que estão sangrando diante da realidade. Este amor será capaz de estancar o sangramento emocional que ele sente e que ele vê o destinatário sentir. Afinal, ao ter encontrado seu amor, ele restaura não só sua própria vida, como também sua fé na vida. Além do que está sendo dito nos versos cancionais, a forma de dizer do intérprete também traz informações que contribuem para o sentido da canção. Sendo ela uma boa representante do gênero balada romântica, a canção é cantada com um timbre vocal que opta por utilizar um timbre leve nos versos iniciais contidos na primeira estrofe. Neste versos, temos o locutor assumindo sua culpa perante algumas escolhas que fez. A forma de cantar, tecnicamente denominada gestualidade oral5, reforça a sensação de culpa descrita nos versos. A partir da segunda estrofe, o locutor opta for utilizar um timbre forte, de emissão frontal, que contaminam os versos com a sensação de que ha uma urgência em fazer com que o destinatário entenda a mensagem o mais rápido possível. Ele precisa ser entendido, precisa convencer o ser amado que o melhor para os dois é estar um ao lado do outro. De posse do entendimento da história pregressa das personagens, da nãoparticipação da canção dentro da construção deste casal até a inserção analisada e do significado da canção, podemos entender o caminho utilizado até a entrada do videoclipe analisado. Voltando ao capítulo 44 de Sangue Bom. Na história, temos Bento não conseguindo mais esconder seu amor por Amora. A menina, noiva de Mauricio, termina o relacionamento por não mais conseguir esconder seus sentimentos por Bento. Ela então parte em direção ao encontro do amado. Eles já se beijaram em capítulos pregressos, mas sempre ao som de De janeiro a janeiro. Há desdobramentos provenientes da possibilidade de que o amor dos dois se concretize. Mauricio está devastado. Malu, irmã de Amora, está apaixonada por 5 Pode-se definir gestualidade oral como "a maneira como cada cantor equilibra as tensões da melodia somada às tensões linguisticas, construindo um universo de sentidos para a canção, valendo-se também das possibilidades timbrísticas" (MACHADO, 2007, p. 59). O entendimento de uma canção não passa somente pelo sentido literário de sua letra, mas também por como o cantor explicita os sentidos do que diz utilizando a voz. Numa adaptação própria, gestualidade oral é o sentido que se dá ao conteúdo a partir da emissão vocal Bento, bem como Giane, a sócia de Bento. Além disso, outros personagens também estão vivendo suas desventuras. A inserção musical de Hey Ho! se inicia em uma cena de casamento. Temos a noiva, uma senhora que está se casando pela segunda vez desde o primeiro capítulo, fazendo um discurso sobre o amor, sobre como as pessoas devem aproveitar o amor e vivê-lo intensamente. As personagens presentes na festa comemoram o discurso. Tem-se o inicio da canção. O que segue são cenas intercortadas. São elas: - Dois jovens, Xande e Luz, namorando escondidos de todos, já que o garoto é empregado da mãe da garota. - Douglas, outro jovem. Ele está apaixonado por Giane e não era correspondido. Ele sonha com a realização de seu amor. Giane aparece em cena e fica brava que o garoto está parado em seu portão. - Lucindo, o motorista de Damaris, chora e é consolado pela patroa. Ele sofre pois sua ex-namorada, Charlene, está namorando outro homem. - Rosemere observa seu filho Felipe se relacionando com o recém descoberto pai, Perácio. Ela está feliz e preocupada ao mesmo tempo, já que conhece Perácio e não acha que ele é um homem sério. - Renata sofre por ter traído seu ex-noivo, Érico. Ela toma banho e chora. - Érico pensa em Verônica, que aparece para ele sob o disfarce da cantora Palmira Valente. O jovem está apaixonado pela cantora, mas ainda não se declarou. - Verônica tira o vestido que usou em seu disfarce de Palmira de dentro da bolsa. Ela pensa em Érico. - Mauricio, em seu quarto, pensa e sofre devido ao término de seu noivado com Amora. - Malu sofre porque está apaixonada por Bento, mas sabe que o jovem é apaixonado por Amora. Ela já sabe que o noivado da irmã terminou e que, possivelmente, ela e Bento estão juntos. - Giane sofre por não ter seu amor por Bento correspondido. Apesar de ser de conhecimento do público o amor da jovem, Bento não sabe o que ela sente e já havia informado à amiga que estava prestes a realizar seu amor com Amora. - Bento e Amora fazem sexo pela primeira vez na casa de Bento. Após essa ultima cena, o capítulo se finaliza. Há alguns pontos a serem levantados acerca desta inserção. O primeiro deles é a construção narrativa das imagens. Os cortes rápidos e os takes curtos são características do videoclipe. Não que na telenovela os planos sejam lentos, mas as outras cenas contidas no capitulo da inserção, e em outros capítulos, não apresentavam essa construção como característica principal. Inclusive nas construções que contem canção. O comum é que as cenas acompanhada por canções sejam compostas de planos longos, para que o foco principal seja a articulação dramático-narrativa que esta sendo construída/repetida na cena. O segundo ponto a se notar diz respeito às personagens presentes na inserção. A canção pertencia ao casal Bento e Amora. Nesta inserção outros personagem aparecem ligados ao tema. Esta construção não parece ser aleatória: é possível perceber que o videoclipe criado na inserção tem como objetivo mostrar que a situação dramatúrgica das personagens esta se invertendo. Alguns casais estão se desfazendo, outros são impossíveis de serem concretizados. E o único casal que tinha sido sinalizado como impossível desde o primeiro capitulo da novela esta prestes a se concretizar no final da inserção. Todas as cenas que estão contidas no videoclipe e antecedem a cena final de Bento e Amora acabam por negar o discurso feito pela noiva antes do inicio da canção. E também enganam o espectador, que espera para ver se o amor entre Bento e Amora vai se concretizar. O terceiro ponto diz respeito ao tamanho da inserção. A canção aparece em sua totalidade na inserção, feito pouco presente na teledramaturgia. Isto intensifica o entendimento da canção por parte do espectador, além de funcionar diretamente como promotora da coletânea internacional que, no momento da exibição do capitulo, ainda não tinha sido lançada. A canção já era executada em rádios e, ao estar inserida em sua totalidade no capitulo, faz com que haja uma simbiose nos produtos, um promovendo o outro. Considerações Finais A força da canção quando inserida em um produto audiovisual se torna inegável. Ela é capaz de trazer sentidos, criar ambiências, corroborar ou negar ações das personagens e assim criar um nível de entendimento da obra que não aconteceria sem ela. A canção deve ser utilizada na televisão em seu potencial máximo, sendo ela responsável por grande parte do sentido das cenas em que estão inseridas. As formas de inserção da canção na teledramaturgia tem-se apoiado em repetições de procedimentos que podem parecer datados ou pouco conscientes do papel que a música pode ter na trama narrativa. O videoclipe inserido analisado neste trabalho mostra que há formas inovadoras de se usar a canção dentro da telenovela. Podemos perceber que há uma preocupação em não só comercializar a trilha, mas também em criar um artifício narrativo diferenciado do que se tem em comum dentro deste tipo produto. E, a partir de inciativas como esta, pode-se notar que o uso da canção na teledramaturgia está longe de ser somente a repetição de um clichê. Referencias Bibliográficas CARRASCO, Claudiney Rodrigues. Sygkronos: A formação da poética musical do cinema. São Paulo: Editora Via Lettera, 2003. CARRASCO, Claudiney Rodrigues. Trilha Musical: Música e Articulação Fílmica. São Paulo, 1993. Dissertação de Mestrado – Universidade de São Paulo. FERREIRA, Sandra Cristina Novais Ciocci Ferreira. Assim era a música da Atlântida : a trilha musical do cinema popular brasileiro no exemplo da Companhia Atlântida Cinematográfica 1942/1962 . Campinas, 2010. 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